UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” unesp INSTITUTO DE BIOCIÊNCIAS – RIO CLARO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO Linguagem - Experiência - Memória - Formação

O CORPO COMO ESCRITA: (RE)EXISTÊNCIAS AFRICANAS NA

NATALIA PUKE

Rio Claro 2018 NATALIA PUKE

O CORPO COMO ESCRITA: (RE)EXISTÊNCIAS AFRICANAS NA CAPOEIRA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação, Instituto de Biociências do Câmpus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestra em Educação

Orientadora: Profª Dra. Maria Rosa Martins de Camargo Rodrigues

Rio Claro

2018 Puke, Natalia P979c O corpo como escrita : (re)existências africanas na capoeira / Natalia Puke. -- Rio Claro, 2018 188 p. : fotos

Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista (Unesp), Instituto de Biociências, Rio Claro Orientadora: Maria Rosa Martins de Camargo Rodrigues

1. Capoeira. 2. Corpo. 3. Filosofia Afroperspectivista. 4. Ritual. 5. Mandinga. I. Título.

Sistema de geração automática de fichas catalográficas da Unesp. Biblioteca do Instituto de Biociências, Rio Claro. Dados fornecidos pelo autor(a).

Essa ficha não pode ser modificada.

DEDICATÓRIA

À memória da minha querida mãe, que és jasmim.

Flores do campo, jasmim, brotam sem poda ou rega, mas florescem na toda primavera. Quando exalam perfume é para saudar o vento, pois espalha suas sementes para continuar a quimera. São flores simples, sem quase esplendor, mas o campo ficaria cinza se não houvesse essa flor.

(Deise Lúcia Puke, 1957 - 2011)

AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, a minha orientadora, a Dra. Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo, que me conduziu nas encruzilhadas dessa pesquisa com a sabedoria de Oxalufã, acalmando as minhas inquietudes com as batidas de Igbin. Meu companheiro, Maicon Araki que, com a paciência e atenção do caçador Oxóssi, me ajudou a atravessar as zonas perigosas, provendo o que fosse necessário para eu não hesitar. À Dra. Letícia Vidor de Sousa Reis e ao Dr. Dagoberto da Fonseca, que me orientaram assertivamente, apontando com o machado de Xangô as fragilidades e potencialidades desse trabalho. À minha irmã e fotógrafa Letícia Puke que, com a sensibilidade de Ewá, viu e captou os registros do corpo mandingueiro. E por fim, registro o meu agradecimento especial ao Mestre de Capoeira Vaguinho (Vagner Cristiano Farias) e sua companheira e Filha de Santo, Evelin Helena de Sousa Antônio Farias, pessoas que Orunmilá colocou em meu caminho, e com as quais passei a ter o privilégio de conviver, e, que, provavelmente, sem elas esse trabalho não teria tido o mesmo resultado. Vaguinho, jovem guerreiro – Oxaguiã – me acolheu na sua escola de Capoeira Angola e me iniciou nos segredos da mandinga. Com muita humildade e confiança, partilhou suas sabedorias e permitiu que eu fotografasse o seu corpo mandingueiro. Evelin, com seu espelho de abebé de Iemanjá, e sempre afirmando suas visões com cuidado de mãe, me fez ver a face sacralizada dos ritos e reconhecer o que eu não sabia.

Asè

Almas vibrantes em corpos orgulhosos (mesmo quando mutilados) andamos de cabeça para baixo. Põem a cabeça no chão, emparafusam-se nas coisas (conhecendo-as por dentro) e no giro, vão dando ideias subterrâneas que serve de guias pra a gente se transformar e encarar o mundo.

(Mestre Canjiquinha)

RESUMO

Este trabalho busca cartografar as (re)existências africanas na cultura da capoeira, tendo como objeto de estudo os fundamentos e a linguagem corporal no ritual da roda. A capoeira, como uma manifestação cultural de tradição negra, incorpora símbolos, cosmologias e ontologias dos povos da diáspora africana. Os povos de matriz africana, que se reterritorializaram em terras brasileiras, reconstituíram suas visões de mundo e desenharam suas formas de conhecimento por meio da escrita do corpo, entrecruzando nos movimentos e nos ritmos, saberes riscados pelas epistemologias das macumbas. Partindo do plano de imanência da Filosofia Afroperspectivista, e incorporando a perspectiva do cruzo entre as minhas experiências como capoeira, a base conceitual de obras de referências, o acervo documental de músicas, fotografias e vídeos, busquei cartografar no jogo de corpo de mandinga e nos ritos da roda de capoeira, a visibilidade das (re)existências africanas que coreografam saberes por meio de práticas de encantes, que reafirmam, entre as dobras das epistemes vigentes, um modo particular de ser e estar no mundo.

PALAVRAS-CHAVE: Capoeira. Corpo. Filosofia Afroperspectivista. Ritual. Mandinga.

ABSTRACT

This work aims to cartograph the african (re)existences into the capoeira culture, having as object of study the fundaments and the body language from the rodas de capoeira. Capoeira is a cultural manifestation derived from a black culture tradition and as such, incorporates symbols, cosmologies and ontologies from the people of the african diaspora. The people of the african roots that reterritorialized in brazilian lands, reconstituted their world vision and designed their forms of knowledge through their body writings, crisscrossing into the rhythms and movements, wisdoms scratched by the epistemology of the macumbas. Starting from the imanence plan on the afroperspectivist philosophy and incorporating the perspective of the crossing amongst my experiences as a capoeirista, the conceptual basis of the reference works, the music, photography and video documental archives, I’ve searched to cartograph the mandinga body set and the rites of the rodas de capoeira for a visibility of the african (re)existences that coreograph knowledges through the enchants that reaffirm, between the bends of the current epistemes, a particular way of being in the world.

KEYWORDS: Capoeira. Body. Afroperspectivist Philosophy. Ritual. Mandinga.

SUMÁRIO

1. ADENTRANDO A RODA ...... 9

2. PARTE I: O CAMINHO NEGRO ...... 16

3. PARTE II: A NEGAÇÃO DO OUTRO: O DESCONHECIMENTO SOBRE ÁFRICA E OS AFRO-BRASILEIROS ...... 38

4. PARTE III: UMA BREVE HISTÓRIA DA RAZÃO OCIDENTAL: A VISÃO PROMETEICA ...... 50

5. PARTE IV: A FILOSOFIA AFROPERSPECTIVISTA COMO POSSIBILIDADE DE DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO ...... 57

6. PARTE V: CAPOEIRA: ORIGENS E TRANSFORMAÇÕES ...... 85

7. PARTE VI: (RE)EXISTÊNCIAS AFRICANAS DA CAPOEIRA...... 110 7.1. A roda de capoeira: um lugar ritual ...... 111 7.1.1. A capoeira é jogo ritual ...... 133 7.2. A gramática da mandinga ...... 142 7.2.2. Cartografias do corpo mandingueiro ...... 155

8. ADEUS, ADEUS! BOA VIAGEM, EU VOU-ME EMBORA...... 180

REFERÊNCIAS ...... 182

9

1. ADENTRANDO A RODA

Iêê... Andam dizendo por aí Andam dizendo por aí Que uma lei já se formou Pra regulamentar a capoeira Isso é coisa de doutor. Quem elaborou essa lei Quem elaborou essa lei, ô iá iá Capoeira não jogou Capoeira nasceu no gueto E o mundo já ganhou. A capoeira está livre Desse sistema opressor. Para ser bom capoeira Oi para ser bom capoeira ô iá iá Não precisa ser doutor. Todo mestre é doutorado Dessa arte, meu senhor Camarada... Iê aquinderei Iê viva meu Deus Iê viva meu mestre Iê quem me ensinou Iê a respeitar Iê menino é bom Iê sabe jogar Joga aqui pra lá Ô de lá pra cá (Ladainha de Mestre Camaleão)

Foi no ano de 1996, quando eu tinha 10 anos, que ouvi pela primeira vez um berimbau tocar. Eu morava na cidade de Nova Odessa – SP e estava nadando na piscina de um clube, quando ecoou do ginásio uma música forte, com batuque e canto, que até então eu não conhecia. O ritmo soou dentro de mim como um encanto e corri curiosa para ver o que estava acontecendo no interior do ginásio. Havia uma grande roda que era composta por pessoas que tocavam, cantavam e se movimentavam no centro com performances corporais que aos meus olhos eram surpreendentes. Fui me embrenhando entre o público para me aproximar do acontecimento e então perguntei para uma pessoa o que era. Ela me respondeu: “É um de capoeira!” Fiquei a observar o acontecimento e vibrou em mim um imenso desejo de fazer parte dele. Depois desse dia a capoeira não mais saiu da minha cabeça, eu queria viver aquilo que vira no interior da grande roda, mas não sabia onde encontra-la e não

10

conhecia ninguém que a praticava. Naquela época, ainda não havia o admirável mundo digital que veio a facilitar o acesso e a busca de informações, então o meu reencontro com a capoeira foi lançado à sorte do destino. Nos meses seguintes, assisti na TV o filme “Esporte Sangrento”, que narra a história de um ex-militar que utiliza “a capoeira” para reabilitar jovens rebeldes do subúrbio de Miami que eram alvo de uma facção criminosa. O filme, que hoje é ridículo aos meus olhos, pois trata a capoeira de forma extremamente deturpada, pois atendia os moldes espetaculares do cinema hollywoodiano, naquela época de criança, alimentou ainda mais o meu imaginário sobre a capoeira. Eu passei a treinar no fundo do quintal, juntamente com os meus primos, reproduzindo os movimentos que vira no filme, recriando cenários e inventando golpes e acrobacias. Nesse ínterim, foi lançado o jogo Tekken 3, que tinha um lutador – o Eddy Gordo -, identificado como um personagem brasileiro, que dominava a luta da capoeira, e, a banda Terra Samba, se popularizou nos programas de TV, integrando nas apresentações, músicas e performances corporais da capoeira turística baiana. Comecei a treinar a capoeira em 1997, aos 11 anos de idade, no mesmo clube que ouvira tocar o berimbau pela primeira vez. Meu primeiro professor foi o Instrutor Robocop (Leonardo Ribas) da Abadá-Capoeira, uma associação que segue a linhagem da Capoeira Contemporânea. Robocop, pessoa de grande sabedoria e sensatez, viu em mim um potencial, e, mesmo eu não tendo condições de pagar a mensalidade, me estimulou a treinar e começar a trilhar o percurso na capoeira. Eu não faltava dos treinos e ia com ele para todas as apresentações e rodas. Aprendi a gingar, bater palma no ritmo e cantar, fazer aú “sem mão” e jogar com homens, mulheres e crianças. Pratiquei capoeira com o Instrutor Robocop por cerca de 4 anos, e na adolescência, dei um tempo, pois fui atentada a viver outras coisas.

Fotografia 1: Meu batizado de capoeira. Nova Odessa –SP, 1997

Fonte: Acervo Pessoal da Pesquisadora (1997)

11

Voltei a treinar aos 19 anos, quando me mudei para Piracicaba - SP, na academia do Mestrando Nego Duro (Eduardo Silva Caetano), que nessa época fazia parte da mesma escola que o Instrutor Robocop. Aperfeiçoei os movimentos que aprendera e segui assídua nas suas aulas durante mais ou menos um ano e meio. Infelizmente, em virtude das demandas que aportaram em minha porta de passagem para a vida adulta, assim como o trabalho e os estudos na universidade, novamente tive que parar de treinar, e esse intervalo durou quase 6 anos. Após concluir a graduação em Filosofia em 2012, aos 26 anos, retomei o meu envolvimento com a capoeira e desde então não parei mais. Novamente aluna do Mestrando Nego Duro, que fundara seu próprio grupo - a Império Vivo Capoeira -, formei-me Instrutora. Com grande seriedade que conduzia suas aulas, ele me estimulou a aprimorar a técnica dos movimentos e a me profissionalizar. Administrando o tempo como professora de Filosofia, passei também a desenvolver trabalhos com o ensino de capoeira, voltado para crianças e adolescentes.

Fotografia 2: Apresentação “Capô-brincadeira” com meus alunos. Piracicaba – SP, 2017

Fonte: Acervo Pessoal da Pesquisadora (2017)

Ao mesmo tempo em que buscava me profissionalizar na capoeira, passei a integrar os grupos Samba de Lenço – Mestre Antônio Carlos Ferraz, e o Maracatu Baque Caipira, o qual atualmente sou coordenadora, juntamente com o músico e companheiro Maicon Araki. O envolvimento com essas culturas, me estimulou a iniciar de forma autodidata a pesquisa sobre as manifestações afro-brasileiras. Sobretudo, o maracatu, com os seus símbolos sagrados e fundamentos ancestrais, me levou a perceber que as culturas de matriz africana se constituíam a partir de uma episteme muito distinta daquela que havia aprendido na graduação de Filosofia. Foi a partir daí, que decidi desenvolver um projeto de pesquisa de mestrado para

12

compreender a visão de mundo africana e investigar quais elementos da sua matriz configuravam a cultura da capoeira.

Fotografia 3: Apresentação do Maracatu Baque Caipira. Carnaval, Piracicaba – SP, 2016.

Fonte: Acervo Pessoal da Pesquisadora (2016)

No percurso em compreender a africanidade na capoeira, tive que me despir de tudo que sabia, abrir a cortina da minha janela estruturada na racionalidade ocidental, e mergulhar em um mundo “outro”, de saberes encruzados em práticas de encantes. Incorporando uma perspectiva do cruzo num ponto exusíaco, concebi o conhecimento como uma zona de atravessamentos e fronteiras, e percebi que “não há como pensar as produções de saber presentes em determinadas práticas culturais sem que nos afetemos e nos alteremos por aquilo que é próprio delas” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 33). Reconhecendo não-saber e deixando me afetar pelas paisagens que atravessava, nasceu a minha metodologia de pesquisa. Então, passei a visitar diferentes escolas e rodas de capoeira, conversar com mestres, frequentar terreiros, quilombos, batuques, praticar dança dos orixás e ritos de mandinga, e acolher no meu quintal uma galinha d’angola. Assumindo o papel de uma cartógrafa, deixei meu corpo vibrar por todas as frequências possíveis que me afetavam e fui inventando posições a partir das quais essas vibrações encontraram sons, canais de passagem e carona para a existencialização (ROLNIK, 1989). Ciscando aqui e acolá como a galinha d’angola e devorando tudo que se espalhava pelo chão que rodava, fui desenhando os caminhos da pesquisa com um ritual antropofágico. No cruzamento entre os ingredientes que me afetavam nas minhas experiências rodantes como galinha d’angola, fui misturando na panela da pesquisa o acervo documental de livros, músicas, fotos e documentários sobre a capoeira. Nessa encruzilhada de cartografar as (re)existências africanas na capoeira, me vi não só como sujeito da pesquisa, mas também como objeto que ia se transmutando nas giras que

13

pediam passagem em meu corpo. Então, na roda de conceitos e afetos, levei uma rasteira que deslocou os eixos referencias que estruturavam os discursos de verdade sob os quais eu havia me formado, e redescobri a capoeira. Numa dura decisão que me inquietou nos dois primeiros anos de pesquisa, me “converti” à Capoeira Angola1. Isso porque, fui reconhecendo que a Capoeira Contemporânea, a qual havia praticado desde criança, pouco preservava os fundamentos da ancestralidade africana, por valorizar mais os aspectos esportivos da prática. Enquanto a Capoeira Angola, considerada a “capoeira mãe”, foi me mostrando, naturalmente, durante a pesquisa, as memórias e linguagens de matriz africana que se reterritorializaram no Brasil com a diáspora negra. Encantada com os seus segredos, mergulhei na intensidade do seu ritual para dar língua aos afetos que me atravessavam. Nesse jogo, percebi que a capoeira não era tão somente um esporte, uma luta ou arte marcial como alguns defendiam. A capoeira assentada como um território de (re)existências africanas se mostrou mais complexa que uma atividade física, pois contemplava fundamentos, símbolos e ritos de um jogo ritual. Por isso, no decorrer do trabalho optei para o uso do termo “o capoeira”, em vez de “o capoeirista”, visto que este último é um termo relativamente recente e passa a ser atribuído aos praticantes de capoeira, no contexto da sua esportização.

Fotografia 4: Roda de Capoeira Angola. Piracicaba – SP, 2018

Fonte: Acervo Pessoal da Pesquisadora (2018)

Antes de adentrar na roda das (re)existências africanas na capoeira, trilhei, primeiramente, na Parte I - O caminho negro -, um percurso narrativo e fotográfico sobre a

1 Atualmente faço parte da Escola Piracicabana de Capoeira Angola (EPCA), coordenada pelo Mestre Vaguinho (Vagner Farias), que embora seja jovem, tem sabedorias de muitas vidas.

14

história da diáspora africana que tem como plano de imanência uma viagem que fiz ao . Em julho de 2017, fui convidada por um casal de amigos a passar alguns dias na cidade, e lá, incidentalmente, reconstruí pelos caminhos que percorri, histórias de resistência e (re)existências africanas nas terras brasileiras. Na Parte II - A negação do outro: o desconhecimento sobre África e os afro-brasileiros -, problematizei sobre o modo eurocêntrico de construir a História e sobre os discursos etnocêntricos, que contribuíram para criação de práticas racistas e preconceitos, que resultaram em políticas excludentes e no apagamento de visões de mundo que não se constituíram sob o cânone da razão ocidental. Na Parte III – Breve história da razão ocidental: a visão prometeica -, teci, a partir de uma proposital narrativa linear, uma linha histórica que elenca as principais estruturas do pensamento ocidental, no plano filosófico, sociopolítico e econômico que engendraram as epistemes vigentes que, pautadas numa lógica racionalista, tecnicista e produtivista, delineiam as formas de vida da contemporaneidade. Na Parte IV – A Filosofia Afroperspectivista como descolonização do pensamento -, coreografei os elementos culturais e conceituais que configuram o território negro-brasileiro, assumindo as lógicas das macumbas restituídas nos terreiros como uma forma de episteme. Assentada em saberes de encantes que tem o corpo como cosmovisão de mundo, o meu objetivo foi mostrar a Filosofia Afroperspectivista como uma antípoda da episteme ocidental. Na Parte V – A capoeira: origens e transformações -, fiz um levantamento bibliográfico sobre a história da capoeira, considerando as questões que envolvem suas possíveis origens no contexto rural e urbano, bem como suas identificações ancestrais com os jogos de combate de Angola. Além disso, destaquei as principais características do fenômeno da capoeiragem no Rio de Janeiro e suas reinvenções no território baiano. Por fim, na Parte VI – (Re)existências africanas na capoeira -, encontraremos o principal escopo desse trabalho, onde desenho a roda de capoeira como um lugar ritual, onde se praticam saberes que são entrecruzados pela Filosofia Afroperspectivista. Considerando os fundamentos da capoeira – o ritmo, os ritos e a gramática da mandinga, cartografei na linguagem corporal da capoeira as memórias escritas pelas (re)existências africanas. Nesse trabalho, sobretudo, na Parte VI, cartografei a capoeira que eu descobri, vi e passei a viver quando me lancei na roda da imprevisibilidade da pesquisa. Não é minha pretensão estabelecer verdades sobre o que é a capoeira ou como ela deve ser vivenciada, mesmo porque, observaremos que, no seu processo histórico, ela sempre passou por transformações e ressignificações. Do mesmo modo, na medida em que incorporamos a perspectiva do cruzo, reconhecemos que “o mundo, os seres e as práticas sociais não estão

15

acabados e que os conhecimentos possíveis não se esgotam na esteira de um modo de saber que se reivindica único” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 33). Nesse sentido, dado o trânsito de ressignificações e o dinamismo cultural que influem nas manifestações populares, a capoeira se assenta como uma prática de saber aberto, que pode ser vivenciada de forma plural, seja como esporte, luta, dança, jogo, ritual e ainda como uma ferramenta socioeducativa. Contudo, não podemos perder de vista, que a capoeira, sendo uma cultura negra, resguarda raízes ancestrais, que devem ser respeitadas e preservadas. Talvez seja por isso que alguns mestres afirmam que a tradição pode mudar, mas os fundamentos não.

16

2. PARTE I: O CAMINHO NEGRO

Muriquinho piquinino, Muriquinho piquinino Parente que quiçamba na cacunda Purugunta aonde vai, Purugunta aonde vai Ô parente, do Quilombo do dumbá (Clementina de Jesus. In: Canto dos Escravos)

A caminhada é longa para chegar até lá, está distante da cidade e dos barulhos frenéticos da civilização. Tem que adentrar a mata, subir. A poeira que levanta é leve porque é absorvida pelo verde das árvores centenárias, que reluzem ao sol, abrindo o horizonte da estrada, que hoje passa carro, carroça, onde passos descalços cruzaram num tempo de luta em que os sapatos simbolizavam ascensão social. Foi pela Mata Atlântica que o colonizador adentrou o território brasileiro, não por esse exato trecho de mata que abre o horizonte da estrada, mas foi por essa floresta que contorna a costa do Brasil da região sul a nordeste, que o homem branco na sua arrogante pretensão “civilizadora”, carregando crucifixos no peito, pisou na terra vermelha iluminada por Guaraci.

Fotografia 5: Parque Nacional da Pedra Branca

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora (2017)

No caminho tem gente que mora no morro íngreme, onde o chão de terra é desenhado pela passagem das águas da chuva. São casas de uma simplicidade bonita, tem cavalo

17

amarrado no tronco e criança que brinca com os velhos braços das árvores que despencaram pelas forças de Iansã. A natureza é atravessada pela cultura, o homem transforma por onde passa. Diria Nietzsche (1999) que o homem é o único animal que nega ser o que é. Negou o seu estado de natureza e criou um outro mundo a partir dela. Não mais se adapta à natureza, mas adapta a natureza às suas necessidades inventadas. Há antenas parabólicas em meio à mata, um poço artesiano no meio da estrada e caixas de som na porta das casas que emanam as batidas do funk carioca. O ritmo e a poética são do nosso tempo – tum, tá-tá, tum, tá-tá -, das músicas instantâneas que circulam pelos meios de massa e vão embora, mas sua referência rítmica vem do toque de congo do candomblé congo-angola, também presente na pulsação rítmica da dança guerreira do maculelê, encenada com dois paus que se chocam no ar de forma enérgica2.

Imagem 1: Maculelê

Fonte: Biancardi (2010)

2O maculelê é uma dança guerreira, que tem sua emergência na região de Santo Amaro, Bahia, provavelmente, oriunda dos africanos de origem nagô. Está associada às “tradições típicas canavieiras do Recôncavo, e que, nos antigos engenhos, era dançada com pedaços de cana cortados durante o trabalho diário [...]. Conta-se que, quando um escravo queria fugir, uma roda de maculelê era imediatamente formada por seus companheiros, com a finalidade de distrair os feitores e facilitar a evasão, o que bem demonstra a popularidade e a aceitação do folguedo na zona rural”. (BIANCARDI, 2006, p. 58).

18

A poucos metros de chegar lá, uma pequena ponte atravessa o riacho, adornado com pedras e plantas nativas. As águas que por ali correm, ligam-se a uma longa veia do rio que adentra o alto do morro, coberto por uma exuberante floresta que esconde belas cachoeiras, mirantes naturais e trilhas que moradores locais dizem que foram feitas por negros escravizados fugitivos3. Quando trilhamos os caminhos que cortam a mata, rememoramos as linhas de fuga dos tempos da escravidão. Era através da fuga pela mata adentro que os africanos escravizados encontravam a única possibilidade de liberdade. Ao trilharem o caminho certo e driblarem as emboscadas dos capitães do mato, teriam sucesso de encontrar os Quilombos.

Os quilombos eram acampamentos fortificados comandados por africanos fugitivos e constituíam-se por uma forte organização política, governada por “reis” e líderes que estabeleciam regras e valores internos, assim como práticas guerreiras capazes de agir em vastas regiões como uma forma de resistência. No interior desses acampamentos, laços de solidariedade ou de parentesco, bem como as práticas religiosas, fortaleciam o espírito da comunidade. A subsistência era provida, sobretudo, da atividade agrícola local, assim como da rede de negociações e relações de troca e venda com outros “tantos homens e mulheres destituídos de posses que, aos milhares, lutavam na Colônia contra as duras condições de vida que lhes eram impostas pela Metrópole”. (DEL PRIORE; VENANCIO, 2010, p. 45).

Sou Guerreiro do Quilombo, Quilombola Lê lê lê ô Eu sou Negro dos Bantus de Angola Negro nagô Fomos trazidos pro Brasil Minha família separou (...) Mas olha um dia Pro quilombo eu fugi Com muita luta e muita garra Me tornei um guerreiro de Zumbi (...) (Trecho de cantiga de Mestre Barrão)

3 São informações coletadas oralmente e não confirmadas em documentos. Em outras passagens, como por exemplo em Del Priore e Venancio (2010) é possível confirmar que na região dos rios Iguaçu e Sarapuí, no recôncavo carioca, as áreas de pântanos, afluentes e meandros, conduziam caminhos para os “quilombos que infestavam a região de Iguaçu e que aparecem na documentação do início do século XIX sob várias denominações: do Iguassu, do Pilar, da Barra do Rio Sarapuí, do Bomba, da Estrela e do Gabriel”. (DEL PRIORE;VENANCIO, 2010, p.46).

19

Ao atravessar a ponte, sobressai fincado entre as pedras uma placa de aviso: “Proibido fazer despachos”. Nas práticas de obrigação da religiosidade de matriz africana, os homens retornam à natureza para reverenciar os orixás4. Na busca de realizações ou agradecimento, reverenciam às forças divinas a partir das lógicas de trocas - o ebó (oferenda) -, entregue a Exú, o mensageiro entre o aiê (mundo material) e o orum (mundo espiritual). Assim como ninguém se comunica com os orixás sem a mediação de Exú, também, ninguém entra na mata sem pedir licença a Oxóssi, a divindade provedora da caça, do sustento e protetor das florestas e animais.

Fotografia 6: Placa

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora (2017)

A pouco mais de dez passos da ponte, uma casa de taipa convida à entrada. Difícil, talvez, dizer a quanto tempo ali se encontra, mas suas técnicas arquitetônicas nos remetem aos tempos coloniais. Nas áreas rurais do Brasil Colonial, nos engenhos e fazendas, a técnica de construção da taipa de pilão se tornou muito comum, pois teria sido uma opção barata e prática diante da ausência de matérias-primas de alvenaria, tais como o carbonato de carbono para a queima do cal e pedras. Consistindo no entrelaçamento de madeiras verticais e vigas horizontais amarradas entre si por cipó, cujos espaços são preenchidos de barro socado, a construção de casas de taipa teria sido desenvolvida há milênios por povos que ocupavam a

4Os orixás (ori = cabeça + xá = divindade), assim denominados no candomblé keto são entendidas ou forças energéticas/cosmológicas que relacionam-se aos pontos específicos da natureza e atuam como agentes divinos. No candomblé congo-angola as entidades espirituais são chamadas de inquice, e no candomblé jeje de vodum (BIANCARDI, 2010).

20

Mesopotâmia e o norte da África, vindo a penetrar a Europa pela Península Ibérica, possivelmente, como resultado das invasões mouras, no século VIII d.C. Sob influência dos mouros - africanos islamizados oriundos do Norte da África -, a arquitetura em taipa tornou-se comum no sul de Portugal e, por isso, historiadores afirmam que foi por esta via que ela fora trazida para o Brasil (WEIMER, 2015). Contudo, há indícios que as construções de taipa “eram de domínio de algumas populações africanas o que implica que a mesma também pudesse se originado por esta via, mas é mais provável que seu uso, nas terras brasileiras, tenha sido resultado da superposição de duas tradições, ibérica e negra” (WEIMER, 2015, p. 98), o que resultou em uma característica própria das casas rurais brasileiras, mesmo porque, eram construídas pelas mãos negras.

Fotografia 7: Casa de taipa na entrada da Comunidade Quilombola Cafundá Astrogilda

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora (2017)

Nesse lugar no alto do morro, onde se construiu a casa de taipa, se assenta a Comunidade Quilombola Cafundá Astrogilda, que existe há mais de 200 anos. Localizada no Parque Nacional da Pedra Branca, em Vargem Grande, no Rio de Janeiro, a comunidade é mantida por descendentes de africanos que foram escravizados na fazenda cafeeira Vargem Grande, no século XIX. Os quilombolas que lá vivem, mantêm tradições culturais, de subsistência e religiosas. Essa memória é inscrita na roda de samba, na bebida parangolée e no espaço de museu construído por iniciativa da família Santos Mesquita (RODRÍGUEZ, 2012).

21

O museu construído em 2015 é um espaço de memória que preserva os objetos sagrados pertencentes ao antigo terreiro de umbanda, que outrora era chefiado pela saudosa matriarca Dona Astrogilda. O espaço de memória se localiza no terreno de Jorge dos Santos Mesquita – o “Pingo” -, descendente direto de Dona Astrogilda. Pingo, considerado o griô da comunidade e nomeado Presidente da Associação Quilombo Vargem, infelizmente, veio a falecer em 2017, poucos dias antes de iniciarmos a caminhada pela mata. Em vida, Pingo foi um dos quilombolas que mais lutou pela manutenção e preservação das tradições locais, e se empenhou, junto a sua família e amigos, na construção do museu, que veio a contribuir para o fortalecimento do espírito da comunidade e da ancestralidade, como podemos observar na descrição abaixo:

A construção desse novo espaço de memória começou em dezembro de 2015, após escolher um local dentro do terreno de Pingo. Durante vários domingos, parentes e amigos se organizaram em mutirão para fazer a casa, em etapas que tiveram como ordem a compra dos materiais como madeiras e telhas, o estabelecimento dos cimentos, o levantamento da estrutura, a procura e o corte do bambu na lua minguante e o enripamento do bambu que daria origem à trama para suportar o barro. Em todas as jornadas, as tarefas se dividiam entre os homens – encarregados do trabalho braçal – e às mulheres que se dedicaram ao preparo de comidas e bebidas[...]. Ainda que muitas pessoas ali presentes nunca tivessem participado de outras jornadas de embarreio, elas se envolveram na ação assumindo uma familiaridade na técnica ancestral, em que o corpo – pés para pisar e mãos para embarrear –, alimentado coletivamente, é a principal ferramenta. A construção da casa foi, por si mesma, um trabalho prático de enquadramento da memória, e nele o corpo cumpriu um papel de mediação entre o conhecimento de técnicas antigas de construção e a necessidade do presente de edificação de um espaço para a memória. (CÁCERES, 2017, p. 221 – 222).

No Quilombo Cafundá Astrogilda, se planta banana, café, aipim, batata-doce, que são colhidos e vendidos na tradicional feira de orgânicos de Vargem Grande. Lá, não se colhe café sob chibatada do feitor, não mais se foge do capitão do mato e dos abusos da escravidão. O mando dos dias dos quilombolas é a liberdade provida do suor da propriedade do seu trabalho. Alguns até trabalham em áreas externas ao quilombo, mas grande parte dos moradores sobrevive do cultivo das próprias plantações ou de serviços aos visitantes, como é o caso da sorridente Dona Ilza, que possui um restaurante ao lado da casa da Família Santos. A senhora sorridente serve uma deliciosa comida: feijão preto, feijão guandu, arroz, farofa, aipim com carne de sol.

22

Fotografia 8: Comida de Dona Ilza

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora (2017)

O Quilombo Cafundá Astrogilda é um pedaço da história do caminho negro no Brasil, e elementos do cotidiano dessa comunidade nos remete às formas de resistência e a reterritorialização da cultura africana na diáspora. Uma parte importante da África é descoberta no Brasil, e nos percursos africanos que, pela via do tráfico no Atlântico adentraram ao território brasileiro é possível (re)reconstruir parte da história dessa nação. O comércio de africanos, entre os séculos XVI e XVIII, se tornou a atividade econômica mais rentável entre as potências europeias, intensificando-se graças ao tráfico para o Brasil. Os engenhos de açúcar, no Nordeste brasileiro, movimentavam a produção de riquezas da colônia (Brasil) para a metrópole (Portugal), porém, careciam de mão-de-obra. “A importação de africanos cobria a falta de mão de obra, uma vez que as epidemias e a mortalidade ligadas ao trabalho forçado, associadas à fuga de tribos inteiras para o interior, acabaram por inviabilizar o trabalho cativo dos índios”. (DEL PRIORE; VENANCIO, 2010, p. 35).

Vim no navio de Aruanda, Aruanda ê Vim no navio de Aruanda, Aruanda á Por que me trouxeram de Aruanda? Pra que me trouxeram de Aruanda? Vim no navio de Aruanda, Aruanda ê (Cantiga de Tony Angola)

23

Nos tempos em que os navios negreiros atravessaram o Atlântico, estima-se que cerca de seis milhões de africanos, de diferentes origens, desembarcaram em portos brasileiros, entre os séculos XVI e XIX (RIBEIRO, 2015). Embora a historiografia oficial tenha tentado camuflar, historiadores apontam que os africanos foram, em termos numéricos, os maiores “povoadores forçados” do território brasileiro, o que provocou um forte desequilíbrio entre a população livre e cativa. (DEL PRIORE; VENANCIO, 2010). As documentações mostram que um enorme contingente de africanos foi introduzido no Brasil, sobretudo, entre o final do século XVIII e metade do XIX, sendo direcionado especialmente para o Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. No Rio de Janeiro, que nesse período era relativamente pouco povoado, o influxo populacional africano atingiu e manteve níveis altos (SLENES, 1992), sobretudo, após 1808 com a vinda da Família Real portuguesa. Mais da metade dos africanos entraram no Brasil pelos portos do Rio de Janeiro. Só no Cais do Valongo, construído em 1811, na zona portuária da cidade carioca, pisaram cerca de um milhão de africanos, vindo, em sua maioria, de Angola e Congo. Formado por uma rampa calçada de pedras irregulares, o chamado pé-de-moleque, o Cais do Valongo é considerado o mais importante vestígio material do tráfico no Atlântico fora da África, sendo reconhecido em 2017 como Patrimônio Mundial pela UNESCO (IPHAN, 2017). Escondidas entre as obras do Boulevard Olímpico, revitalizadas para o encanto dos olhares turísticos, estão aterradas pedras cativas, por onde desembarcaram à força homens, mulheres e crianças de diversas línguas e de diferentes regiões do continente africano5, que resistiram à travessia da kalunga6.

5 No continente africano há uma grande diversidade cultural e linguística. São faladas 2.092 línguas que se ramificam em 8 mil dialetos, que para efeito de estudo, foram divididas em quatro macros grupos linguísticos: afro-asiático, khoisan, nilo-saariano e nigero-congolês. (PEREIRA;AQUINO, 2017, p. 9). 6 Segundo Slenes (1992), a palavra kalunga derivada das línguas bantu - kikongo, umbundu e kimbundo -, adquire a significação de “grande mar”. “Acontece que kalunga também significava a linha divisória, ou a “superfície”, que separava o mundo dos vivos daquele dos mortos; portanto, atravessar a kalunga (simbolicamente representada pelas águas do rio ou do mar, ou mais genericamente por qualquer tipo de água ou por uma superfície refletiva como a de um espelho) significava “morrer”, se a pessoa vinha da vida, ou “renascer”, se o movimento fosse no outro sentido”. (SLENES, 1992, p. 53 e 54).

24

Fotografia 9: Cais do Valongo (vista atual)

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora (2017)

Imagem 2: Desembarque (gravura), Johann Moritz Rugendas, 1835 (Possível vista do Cais no século XIX)

Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural (2017)

Dentre as 2.092 línguas de origem africana até hoje registradas, estima-se que foram entre 200 e 300 que desembarcaram em solo brasileiro, destacando-se as do grupo linguístico nigero-congolês, que compreende praticamente toda a região da África subsaariana (RIBEIRO, 2015). Quanto aos tipos culturais, distinguem-se três grandes grupos étnicos: Primeiro, pelas culturas sudanesas - Iorubá (ou nagô), pelos Dahomey (gegê), e pelos Fanti- Ashanti (minas). Segundo, pelas culturas islamizadas formadas pelos “Peuhl, Mandinga e

25

Haussa, do Norte da Nigéria, identificados na Bahia como negros malé e no Rio de Janeiro como negros alufá” (RIBEIRO, 2015, p. 86). Terceiro, pelo grupo cultural das “tribos Bantu, do grupo congo-angolês provenientes da área hoje compreendida pela Angola e a “Contra Costa”, que corresponde ao atual território de Moçambique”. (RIBEIRO, 2015, p. 86).

Vim no balanço do mar lá de Angola Vim no balanço do mar lá da Guiné Vim no balanço do mar de Moçambique Só quem veio sabe como é (...) (Trecho da cantiga de capoeira de Mestre Tamanduá)

Com a intensificação do tráfico negreiro, por uma questão de logística mercantil, os europeus passaram a identificar os diferentes grupos africanos em “nações”, sendo elas: minas, angolas, moçambiques, jejes, cassanges, cabindas, benguelas, monjolos, entre outras. Os critérios para a classificação das nações estavam associados aos nomes dos portos de embarque de cativos, aos principais mercadores, às localidades de batismo, bem como às características físicas e morais dos africanos. Nesse sentido, a etnia originária do africano era pouco considerada, o que significa que o termo “nação” é uma terminologia genérica, uma forma homogenia de categorizar a complexidade e a diversidade grupos africanos. (MATTOS, 2009).

Imagem 3: Rugendas. Diferentes etnias, 1820

Fonte: Acervo digital Pinterest (s/d)

26

As classificações e diferenças entre os africanos foram vetores de rivalidades no tecido social da escravidão e, inclusive, foram habilmente manipuladas pelos escravistas como uma forma de dificultar a comunicação e a formação de laços comunitários entre eles. Contudo, a diferenças não impediram que os africanos, tanto na travessia7, quanto em solo brasileiro, percebessem relações culturais comuns e reelaborassem a imposição de tais classificações. “Na labuta diária, na luta contra os (des)mandos (...), na procura de parceiros para a vida afetiva, necessariamente eles haveriam de formar laços com pessoas de outras origens, redesenhando as fronteiras entre as etnias” (SLENES, 1992, 57). A convivência cotidiana com as diferenças e a partilha da condição social comum, inseriram-se na comunidade negra, como um exercício de resiliência, identificação de relações de solidariedade e parentesco, possibilitando formas de reconhecimento e pertencimento a um determinado grupo. (MATTOS, 1994).

Uma vez no Brasil, os escravos bantu não teriam demorado a entender que estavam todos sujeitos a praticamente ao mesmo tipo de domínio, e que provavelmente passariam toda a vida na nova sociedade como seres limiares. Ao mesmo tempo, e em parte por causa disso, eles teriam percebido suas possibilidades de construir, a partir de uma herança cultural em comum, uma nova sociabilidade na própria soleira da porta que não se lhes abria, e contra aqueles que a mantinham fechada (SLENES, 1992, p. 59)

A diáspora africana desterritorializou povos e incidiu como uma ruptura nas vidas, nos modos de viver, sentir e ver que pulsavam do outro lado do Atlântico. A empresa do tráfico “não só sequestrava corpos biológicos, humanos, mas também os corpos das representações materiais, produzidas artisticamente como indicação do agir e pensar no seu mundo cotidiano” (TAVARES, 2012, p. 76). Contudo, esse processo de desterritorialização possibilitou ao mesmo tempo a restituição de visões de mundo e a reafirmação de um território negro-brasileiro. No aparente sólido chão da ordem colonizadora, os negros riscaram suas instituições simbólicas e manipularam instrumentos de resistência “extremamente sutis aos olhos do dominador, com a finalidade de se preservarem seus corpos e suas cosmovisões”

7 O mundo colonial mesclou indiscriminadamente indivíduos de diferentes etnias africanas, aglutinando símbolos, rituais, laços religiosos e culturais. Para Robert Slenes (1992) foi na experiência da diáspora que os africanos fizeram a “descoberta da África no Brasil”, formando uma “protonação bantu”, ou seja, a ideia de uma nação e de um povo africano só foi possível no exílio e através dele. Analisando a raiz da palavra malungu, termo presente o vocábulo dos diferentes dialetos do tronco linguístico bantu, o historiador identifica que, nos momentos que antecediam a travessia, possivelmente, os africanos de diferentes etnias passariam a identificar laços simbólicos comuns.

27

(TAVARES, 2012, p. 77). Nesse sentido, “não devemos subestimar as possibilidades dos africanos de manterem vivas suas identidades originais” (SLENES, 1992, p. 57), embora transmutadas em suas formas de expressão, dado o intercâmbio com diferentes grupos africanos, bem como com os elementos da cultura nativa e portuguesa, suas heranças culturais foram trazidas em seus corpos. Gingando e esquivando entre os golpes de um cotidiano despótico, o corpo africano, reterritorializou por meio da música, da dança e dos ritos litúrgicos os fragmentos das suas memórias. E assim, na dinâmica cultural das diferenças – na busca do restabelecimento do presente vivido e na reposição das tradições -, constituiu-se o diversificado patrimônio cultural negro-brasileiro, que chamamos de cultura afro-brasileira.

Fotografia 10: Mulher no Cais do Valongo

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora (2017)

Nas cidades brasileiras por onde se manteve o regime escravista, o negro cunhou suas identidades, contribuindo fortemente na construção da cultura e da formação da população brasileira. Os negros não se aportaram passivamente como força de trabalho na construção da modernidade e do Novo Mundo, mas foram agentes que influenciaram os modos de viver da sociedade brasileira. Isso porque, eles estavam em toda a parte, exerciam diversas funções nos campos e nas cidades, participando ativamente das relações socioculturais e econômicas da colônia (MATTOS, 1994). E mesmo que a historiografia oficial tente camuflar, há nas expressões culturais e nas práticas de saberes das terras brasileiras, uma influência direta, vaga ou remota do africano. Portanto, “a presença inconfundível do negro, com efeito, invade todos os setores da nossa vida social” (CARNEIRO, 2005). Nas batidas do samba, jongo, maracatu, congado, frevo e tambu; nos falares do idioma português – “não sei não”, “neném”

28

e “moleque”8 -; nas técnicas de mineração e de fundir o ferro – beng, beng, beng9; nas culinárias do acarajé, vatapá, caruru e que têm dendê; na ampliação do quadro religioso da nacionalidade fundindo deuses africanos, católicos e indígenas - a africanidade dança, fala, forja, tempera e ritualiza.

Ao caminharmos pela cidade do Rio de Janeiro encontramos vestígios materiais e simbólicos da herança africana por todos os cantos. Quando corremos o olhar pelas ruas da cidade velha sentimos o peso histórico materializado na cor, na textura e no cheiro que, inevitavelmente rememora caminhos de corpos negros que lutaram pela liberdade. Adentrando o centro, na Praça XV, vemos a estátua do almirante negro, João Cândido, um dos líderes da Revolta Chibata de 1910. A revolta, que contou com mais de mil marinheiros subalternos da Marinha de Guerra, foi uma resposta de resistência contra às más condições de trabalho e punições praticadas pelos oficiais brancos. Liderados por João Cândido, os marinheiros - na sua maioria negros e mulatos -, organizaram um motim, tomaram o controle de parte dos encouraçados de guerra na baía da Guanabara e enviaram uma carta ao governo, exigindo o fim da herança da escravidão na Marinha Brasileira. Esse evento, que praticamente caiu no esquecimento nos trabalhos da historiografia brasileira, na medida em que suas publicações documentais e literárias foram censuras até no período do Regime Militar, se postula como uma denúncia com relação “a dois tipos de vítimas da história brasileira: os perseguidos do autoritarismo militar e, em particular, os afro-brasileiros” (ALMEIDA, 2011).

8 O negro-africano como sujeitos falantes, ao longo de quatro séculos consecutivos, favoreceram a interferência de línguas africanas na língua portuguesa, no Brasil. Isso se fez sentir em todos os setores: no vocábulo, na morfologia e sintaxe, na fonologia e pronúncia (CASTRO, 2001). Dos vários dialetos existentes pela África, os que tiveram maior impacto no Brasil foram o quimbundo, o quicongo e o umbundo do grupo linguístico bantu. Centenas de palavras presentes nos falares do brasileiro são de origem africana: abadá, caçamba, cachaça, cachimbo, caçula, candango, canga, capanga, carimbo, caxumba, cochilar, corcunda, dengo, fubá, gibi, macaco, maconha, macumba, marimbondo, miçanga, moleque, quitanda, quitute, tanga, xingar, banguela, babaca, bunda, cafofo, cafundó, cambada, muquirana, muvuca (PEREIRA;AQUINO, 2017). O processo de reduplicação da silaba tônica é influência da boca africana, sobretudo da ama negra. “A linguagem infantil brasileira, e mesmo a portuguesa em um sabor africano: cacá, pipi, bumbum, tentem, neném, tatá, papá, papato, Lili, mimi, au-au, bambanho, cocô, dindinho, bimbinha”. (FREYRE, 2006, p. 414). 9 "Boa parte do ouro explorado durante todo o setecentos na gerais e nas capitanias de Goiás, de Mato Grosso e da Bahia, foi recolhido através de técnicas introduzidas pelos africanos e desconhecidas pelos europeus. Essa realidade estende-se, ainda, aos diamantes extraídos e ao minério de ferro encontrado na região, transformado em instrumentos de trabalho nas pequenas forjas montadas pelos africanos". (PAIVA, 2002).

29

Fotografia 11: Estátua de João Cândido na Praça XV, Rio de Janeiro

Fonte: Acervo Pessoal da Pesquisadora (2017)

Próximo à Praça XV, onde acena o Mestre-Sala dos Mares10, localiza-se o bairro Gamboa. Lá o Rio de Janeiro é negro, tem samba tradicional na Pedra do Sal, que brancos e estrangeiros correm para ouvir soar o tamborim. Passando por entre vielas, que encenam paredes amareladas pelo tempo, no Largo de São Francisco da Prainha, na Praça Mauá, sobressai a estátua de Mercedes Baptista. Mercedes foi a primeira bailarina negra brasileira, ícone e codificadora da dança afro no Brasil. Resistiu aos preconceitos e inseriu nos espetáculos de dança uma nova estética, valorizando os elementos de matriz africana11, destacando as práticas de trabalho e a movimentação das danças dos orixás. Sua estátua que se assenta nesse bairro negro, tem textura de gente, parece carne e seu manto, movimento.

10 Referência à música Mestre-Sala dos mares composta por Aldir Blanc e João Bosco em homenagem à João Cândido. 11 Informações coletadas do documentário Balé de pé no chão – a dança afro de Mercedes Baptista, 2005.

30

Fotografia 12: Estátua de Mercedes Baptista

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora

A cidade do Rio de Janeiro, que fora morada da Corte Portuguesa, é um cenário histórico que resguarda entre as edificações da arquitetura imperial, memórias de acontecimentos de uma tradição guerreira. No século XIX, milhares de negros escravizados circulavam pelas ruas da cidade da corte, carregando encomendas ou para serviços de ganho. Havia também os negros foros que exerciam ofícios diversos nas áreas comerciais e portuárias. Nas horas de folga, a população negra se reunia nas confrarias religiosas, ou nas praças, onde se tocava batuque e corria pernada, chamando a atenção dos olhares brancos temerosos de possíveis revoltas. A circulação da população negra foi uma preocupação permanente para os donos do poder da cidade, principalmente porque, centenas de negros cativos e foros participavam das maltas que perturbavam e aterrorizavam a sociedade carioca com os seus rituais de conflito. (SOARES, 1994).

Os caminhos que interligam a Glória, a Lapa, a Carioca, o Paço Imperial, a Praça da Candelária, e as áreas portuária e de cortiços, espremidas entre os morros de São Bento e Providência, foram cenários de duelos entre as maltas de capoeira dos grupos nagoas e guaiamus. As maltas eram uma “forma associativa de resistência mais comum entre os escravizados e homens livres pobres no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX” (SOARES, 1994, p.40). Configuradas em grupos formados por três, vinte e até cem

31

indivíduos, apresentavam uma unidade fundamental da atuação dos praticantes da capoeiragem, que disputavam os domínios geográficos da cidade.

As maltas dominavam as ruas do Rio de Janeiro, assim como os fadistas na marginalidade portuguesa. Eram os grupos dos nagoas e guaiamus que compilavam os principais redutos dos conflitos na cidade da corte. Guaiamu era o capoeira que pertencia aos partidos de São Francisco, Santa Rita, Marinha, Ouro Preto, São Domingos de Gusmão, que controlavam a área central, denominada de Cidade Velha, que corresponde aos pontos iniciais de ocupação da cidade e às áreas mais densamente povoadas. O ponto mais célebre era “(...) a freguesia de Santa Rita, áreas portuária e de cortiços, espremida entre os morros de São Bento e Providência” (SOARES, 1994, p. 50). Já nagoa era o capoeira que pertencia aos partidos de Santa Luzia, São José, Lapa, Santana, Glória, e se concentravam, sobretudo, na Glória, Lapa e Campo de Santana, áreas que coincidem com a “recente ocupação urbana, espaços por onde a cidade se expande neste final de século”. (SOARES, 1994, p. 50).

Imagem 4: Mapa arquitetural da cidade do Rio de Janeiro (parte comercial), identificando as áreas de domínios das maltas nagoas e guaiamus

Fonte: Soares (1994)

32

Os grupos que compunham as maltas tinham denominações associadas às freguesias que controlavam, cujos pontos de encontros se associavam às localidades das igrejas. Dentre os grupos mais famosos estão: Franciscanos, do largo do São Francisco, a Cadeira da Senhora, da freguesia de Santana, Três Cachos, da freguesia de Santa Rita, Flor da Gente, da freguesia da Glória, e Espada, do Largo da Lapa. A literatura sobre o tema indica que as associações dos nomes das maltas aos símbolos católicos, se dá provavelmente porque que igrejas se situavam em pontos geograficamente privilegiados da cidade colonial. (SOARES, 1994).

Os fatores que empreendiam as rivalidades entre as maltas, reconstroem aspectos da complexa estrutura social e política da cidade da corte, passando pelas diferenças de origem, pelas relações hierárquicas nascentes do sistema escravagista. Embora os negros partilhassem de um papel social comum - a condição de escravizados -, essa não era o bastante para apagar as profundas diferenças culturais, habilmente manipuladas pelos escravistas (SOARES, 1994). Além das disparidades de origem étnica, havia uma rivalidade entre os crioulos, negros nascidos no Brasil ou pardos, e os boçais, negros recém-chegados da África. Na região Centro-Sul, a escravidão era constituída predominantemente por africanos bantu e, apesar disso, estudos existentes indicam que os escravistas “discriminavam contra os africanos e a favor dos crioulos na distribuição de tarefas domésticas e qualificadas, e na concessão da alforria” (SLENES, 1992, p. 56). Ao que parece, “as chances dos africanos de melhorarem suas condições de trabalho dentro da escravidão e de ganharem a liberdade eram significativamente menores do que as dos crioulos”. (SLENES, 1992, p. 56).

Essa rivalidade entre africanos e crioulos aumentava pela função que cada um exercia no sistema da escravidão, pois denotava um status social relacionado ao prestígio do seu “proprietário”, como podemos identificar na passagem que segue:

(...) uma das forças que mais dividia a população escrava era o status: o abismo entre escravos pardos de nobres brasileiros, e africanos pobres de artesãos portugueses era tão grande quanto entre seus proprietários (...). Na perspectiva de seus proprietários e de muitos escravos nascidos no Brasil, brasileiros tinham superioridade sobre os africanos. Sem dúvida muitos africanos se opunham a tais classificações, pois seu nascimento africano era motivo de orgulho. (KARASCH, 1987 apud SOARES, 1994).

33

Essas diferenças culturais e sociais que o próprio sistema escravista impunha sobre os negros, reverberaram sobre as maltas. Os nagoas estariam associados ao grupo cultural iorubá (nagô), africanos oriundos a África Ocidental, chamados no território brasileiro de boçais. Enquanto os guaiamus, estariam associados aos negros escravizados nascidos no Brasil, os crioulos.

Os grupos de maltas cultivavam práticas de ritualização de conflito, com seus códigos próprios, cores e trajes distintos. Os nagoas utilizavam cintas de cor branca sobre a vermelha e chapéu de aba batida para frente. A cor branca estaria ligada a religião dos orixás, provavelmente com menções a Oxalá, sincretizado a Virgem Maria, aos santos não martirizados. Os guaiamus utilizavam a cor vermelha sobre a branca e chapéu de aba elevada na frente. A cor vermelha estaria associada a Xangô, sincretizado no catolicismo ao sangue dos mártires e a língua de pentecostes, ou, ao urucum, numa referência a tradição nativa. (SOARES, 1994).

Imagem 5: Tipos e uniformes dos antigos nagoas e guaiamus

Fonte: Soares (1994)

As tavernas eram locais típicos de reunião e conflito, porém, eram nos dias de folga, durante os momentos de grandes concentrações populares, permitidos pelo calendário religioso e festivo, que os integrantes das maltas, aproveitavam para exibir suas habilidades

34

corporais ou resolver conflitos com os grupos rivais (SOARES, 1994). A passagem abaixo revela alguns aspectos dos rituais de conflito praticados de dentro da taverna, que constroem uma cultura rigorosamente ordenada por uma tradição guerreira.

Assim quando em uma fortaleza (taverna) encontram-se adversários, o guaiamu pede vinho e aguardente e derrama esta no chão e saracoteia em cima, lançando por fim o vinho sobre o aguardente. É bastante isso para começar a luta, porque o capoeira não consente que a sua cor seja pisada, e muito menos que se coloque sobre ela a cor dos adversários. É por este motivo que muitos trabalhadores honestos, que usam faixas de cor são navalhados. (ABREU apud SOARES, 1994, p. 65).

Um dos registros policiais mais surpreendentes sobre os combates travados entre as maltas, pode ser rememorado do alto da Igreja Nossa Senhora da Glória do Outeiro, onde se abre o horizonte azul do mar, contornado por morros arredondados. Do lado urbano, onde edifícios residenciais e comerciais desenham um horizonte vertical, guarda a memória de uma noite tempestiva de 8 de março de 1874. Foi no Largo da Glória, às sete horas da noite que se iniciou o caminho de um ritual de conflito entre nagoas e guaiamus. (SOARES, 1994).

Fotografia 13: Vista atual do Largo da Glória

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora (2017)

Há 143 anos um grupo de pretos, liderado por Oscar, negro de “propriedade” do Dr. Taylor, morador na rua da Lapa 88, saiu do Largo da Glória e atravessou pela rua da Lapa. No

35

caminho, juntaram-se ao grupo o menor Isaías que era copeiro e nascido na província do Rio, e, Henrique, um africano, com cerca de quarenta anos, cozinheiro, que trabalhava na propriedade de César Farani. No grupo, destacavam-se aqueles que tinham sobre a cabeças chapéus de abas batidas para frente e cintas de cores brancas, sobrepostas sobre cores vermelhas (SOARES, 1994). Com passos firmes em compasso de combate de guerra, seguiram pelo Largo da Carioca, onde as luzes dos combustores reluziam um amarelo turvo, fazendo com que lançassem olhares atentos ao redor, procurando pessoas escondidas entre os becos. Ao chegar à rua dos Ouvires, o bando identificado como nagoa, adentrou o território guaiamu e se posicionou em frente à Igreja de Nossa Senhora do Bom Parto. Ali, Oscar, com um leve assovio agudo, deu o comando para esperarem. Alguns acenderam cigarros de palha, outros cuspiram no chão e mordiscaram palitos no canto da boca. Passados alguns minutos, Oscar acenou com cabeça, apontando para a esquina da rua São José, onde se localizava uma taverna, que se destacava por uma iluminação fraca alimentada por um lampião movido à “azeite de peixe”.

Fotografia 14: Vista atual de trecho da rua São José no centro do Rio de Janeiro

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora (2017)

O bando então reiniciou os passos firmes em direção à taverna e a poucos metros avistaram os guaiamus, do partido Santa Rita e Marinha, liderados pelo negro Maximiano, que expressava em alto tom, risadas de deboche, enquanto lançava ao chão vinho sobre a cachaça. Quando os nagoas da Glória adentraram a taverna, Maximiano gritou: “quem qué vê a cutia assoviá?”. O grito mal pudera terminar, e os dois grupos começaram a digladiar com

36

golpes de pernas velozes e difíceis de esquivar. Garrafas eram lançadas e explodiam no chão fazendo ecoar pelas paredes dos casarões sons de batalha. Um negro sacou uma navalha e foi em direção a Oscar que lhe respondeu com um chute no peito, lançando-o ao chão, onde quase foi pisoteado pelos demais que lutavam. O negro da navalha se levantou num salto e avançou novamente em direção a Oscar, com um grito de força guerreira. Os dois rolaram pela calçada, e num embate de ataque e defesa, seguiram lutando até o meio da rua. Em meio aos barulhos da batalha, sobressaíram gritos alarmantes de moradores e apitos das autoridades locais. Os dois grupos dispersaram-se pelas ruas do entorno. A malta nagoa seguiu pela rua da Assembleia, e os guaiamus correram para o sentido da Candelária. Na fuga, Zeferino, integrante do bando de Santa Rita, pardo, morador da rua do Sabão e que exercia serviços domésticos para Luís José da Silva, foi surpreendido com voz de prisão de Nemésio Ferreira da Costa, que assistira a pancadaria da janela do Salão dos Acadêmicos. Oscar, chefe da malta da Glória, seguiu cambaleando pela rua da Ajuda, apertando o peito, de onde escorria sangue. Logo caiu morto junto da casa 17, vitimizado com uma perfuração no pulmão esquerdo. Henrique, o africano de quarenta anos, sofreu uma apunhalada no estômago, dada pelo capoeira conhecido como Coruja, vendedor de pescados na praia do Peixe, reduto do lendário valentão Manduca da Praia. Maximiano foi preso dias depois, após investigações, mas libertado em julho, após apelo judicial do seu “proprietário”, que jamais hesitaria em perder a sua “propriedade”12.

Os jornais cariocas correram para publicar a batalha da rua Ouvires, apresentando descrições como uma crônica policial. O episódio se tornou caso judicial, e o motivo do entrevero foi registrado pelo escrivão da polícia como “questão por causa da igreja”. (SOARES, 1994). Um trecho da publicação no Jornal do Commercio, apresenta uma narrativa de temeridade da sociedade diante dos conflitos das maltas de capoeiras, e incide como um apelo às autoridades.

É indispensável que se ponha termo a estes atos de canibalismo que nos cobrem de vergonha. Nos domingos e dias santificados percorre as ruas da cidade uma horda de assassinos, uns de instintos ferozes, outros inconscientes do mal que praticam, mas arrastados pelos exemplos,

12 A narrativa sobre a batalha da rua do Ouvires foi inspirada no texto “Rituais de Conflito” da obra Negregada Instituição de Carlos Eugênio Líbano Soares (1994). O historiador, reconstrói, a partir dos documentos policiais e registros da imprensa, o universo das maltas de capoeiras no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX. Em minha viagem ao Rio de Janeiro, busquei trilhar os caminhos pelas ruas onde teria ocorrido a batalha da rua do Ouvires. Assim, a partir das descrições de Soares (1994) e das características dos ritos de conflito das maltas fui reconstruindo um imaginário que detalhou como poderia ter ocorrido tal batalha.

37

perpetram-se dois ou três assassinatos, e no próximo dia santo repete-se a cena de sangue. (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO apud SOARES, 1994, p. 64).

Em menos de duas décadas, após o acontecimento na rua Ouvires, as maltas foram dizimadas. Seu desaparecimento ficou marcado pela campanha de ordem cívica de 1890, liderada pelo então Chefe da Polícia Sampaio Ferraz – o cavanhaque de aço –, no primeiro governo republicano. Nesse contexto, a capoeira foi definitivamente criminalizada, vindo a ser inserida no Código Penal de 1890. Os fenômenos urbanos semelhantes às maltas que ocorriam em Bahia, Recife e São Paulo também foram desmantelados pela política higienista republicana de “ordem e progresso”. Então, no Rio de Janeiro, a capoeira teria se ramificado na luta de pernada, em Recife nos passos do frevo (CARNEIRO, 1977), em São Paulo no jogo da tiririca, e na Bahia, viria a florescer nas aventuras do lendário Besouro Mangangá, e nas reinvenções provindas da sabedoria dos grandes mestres Pastinha e Bimba.

38

3. PARTE II: A NEGAÇÃO DO OUTRO: O DESCONHECIMENTO SOBRE ÁFRICA E OS AFRO-BRASILEIROS

Um conto da tradição oral nagô da Bahia explica como os homens brancos conseguiram dominar o universo: limitaram-se a fazer as obrigações, enquanto os negros descuidaram-se das suas” (SODRÉ. In: A verdade seduzida)

Em 1980 o cineasta sul-africano Jamie Uys lançou o filme “Os Deuses devem estar loucos”, que narra a história de Xixo, um bosquímano do deserto do Kalahary, na África Austral, que tem sua vida transformada quando uma garrafa de Coca-Cola penetra acidentalmente a sua tribo. Essa garrafa, tida pelos bosquímanos com uma coisa misteriosa presenteada pelos deuses, a princípio é partilhada de forma funcional, sendo utilizada para amaciar o couro, pilar alimentos, brincar e produzir música. Contudo, com o tempo, essa coisa que era uma só e diferente de tudo que havia na natureza, desperta sentimentos diversos até então desconhecidos entre os bosquímanos. Os vícios egoístas de propriedade, competição, ciúme e ira tomam toda a tribo e ameaçam a desestruturar os valores de convívio. Xixo então passa a indagar os motivos pelos quais os deuses haviam lhes enviado essa coisa que mais lhe parecia um castigo, e, depois de refletir, conclui que a garrafa é uma “coisa maligna”, e então decide lança-la para fora do mundo para que ela não mais perturbe nenhum ser vivente. É assim que Xixo inicia a sua jornada para encontrar o fim do mundo, e nessa trajetória, conhece o homem ocidental, seus valores racionalizados, sua obsessão pela propriedade e suas estruturas de verdade que burocratizam e categorizam todas as formas de vida. De forma cômica, num primeiro momento, percebemos que a narrativa fílmica evidencia a diversidade cultural entre o homem ocidental e o homem bosquímano. Essa diversidade traduz a existência de diferentes modos de perceber e conceber a realidade. Para compreender a totalidade do modo de existência de Xixo, é preciso olhar para as estruturas internas que organizam o modo de ser do seu povo, isto é, compreender os seus códigos simbólicos e suas unidades de significação que influem na particularidade histórica e na interação cultural que partilham (GEERTZ, 1989). Ler o modo de existência de um determinado povo é considerá-lo sob a sua própria lógica interna e não em função ou em comparação aos valores exógenos. Contudo, no desdobramento da história do filme “Os deuses devem estar loucos”, o confronto entre a visão de mundo moderna e a visão de mundo

39

do homem bosquímano, demonstra como as relações de poder perpassam pela esfera discursiva e pelos construtos de verdade. E assim, os homens já colonizados pela ordem epistêmica do ocidente, desprezam as visões de mundo de Xixo, e, consequentemente, o condenam à prisão por não agir e não corresponder às categorias relacionais do mundo ocidental. O filme “Os deuses devem estar loucos” é uma narrativa ficcional, porém, é uma alegoria que encena como as culturas africanas foram rechaçadas para as periferias da História. Os discursos hegemônicos promoveram o “apagamento” dos modos de existência que se desenvolveram para além do modelo da episteme ocidental, transformando as diferenças em algo vil, primitivo ou fantasioso. Do mesmo modo, a maneira de se organizar a História criou um padrão de como se pensar a filosofia, as formas de conhecimento e o desenvolvimento da humanidade. O filósofo alemão Hegel, na sua obra Filosofia da História (1831), sistematizou a periodização da História, atribuindo à humanidade um processo evolutivo da razão, consequentemente lógico e linear, marcado primeiramente pela a invenção da escrita (passagem da pré-história à civilização), e, posteriormente pelo desenvolvimento de um conhecimento racional e científico, moldados pela expressão da racionalidade moderna ocidental. No plano dessa leitura, a impressão que se tem é que não se produziu pensamento, técnica ou ciência para além dos modelos eurocêntricos. Na perspectiva eurocêntrica, o continente africano é concebido como sendo o berço da humanidade, mas não da civilização, muito embora, estudos recentes comprovem que os desenvolvimentos técnicos da metalúrgica e agricultura tenham sido inventados na África (FONSECA, 2012). Desconsiderando os saberes dos povos africanos nos processos técnicos e científicos, Hegel (1995) afirmou que a África não teria História e não faria parte dela, pois não tem movimentos e progressos a nos mostrar.

(...) a principal característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis (...) negro representa, como já foi dito o homem natural, selvagem e indomável (...). Neles, nada evoca a ideia do caráter humano (...). Entre os negros, os sentimentos morais são totalmente fracos – ou, para ser mais exato inexistentes. (HEGEL, 1995, p. 83-86).

40

Nos escritos de filósofos anteriores a Hegel, há uma mentalidade construída em torno da inferioridade da população africana e de seus descendentes, que resultou em uma “geopolítica excludente e racista em relação a África” (ANTONACCI, p. 185, 2014). Sob o aval científico, “muitos iluministas eram defensores da tese de que os “negros” faziam parte de uma “raça inferior”, que estava ainda no primeiro estágio da evolução humana”. (FONSECA, 2012, p. 9).

Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um Negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. (KANT, 1993, p. 75-76).

No século XIX, os estudos da antropologia evolucionista contribuíram ainda mais com o fortalecimento dos discursos racistas e com o desenvolvimento das teorias eugênicas, na medida em que delimitaram o método de pesquisa aos estudos comparativos entre as culturas ditas “civilizadas” e “selvagens/primitivas”. Embebidos pelo “espírito” progressista preconizado pela abordagem positivista13 e influenciados pelos estudos das ciências biológicas - predominante em termos de matriz nos saberes desse século -, os antropólogos evolucionistas defenderam que o processo histórico cultural seria hierarquizado em estágios, desenvolvendo-se obrigatoriamente a partir de uma única origem e para uma finalidade uníssona – o progresso civilizatório. Assim, buscaram “reduzir as diferenças culturais a estágios históricos de um mesmo caminho evolutivo” (CASTRO, 2005, p. 27), sendo eles: selvageria, barbárie e civilização. “A ideia de evolução era a sua associação com a ideia de progresso, cuja imagem mais comum é a de uma “escada”, cujos degraus estão dispostos numa hierarquia linear” (CASTRO, 2005, p. 25), tendo como apogeu evolutivo o modelo cultural do homem europeu. A partir dessa ótica, as sociedades que não apresentassem os

13 “A característica do Positivismo é a romantização da ciência, sua devoção como único guia da vida individual e social do homem, único, conhecimento, única moral, única religião possível. Como romantismo em ciência, o Positivismo acompanha e estimula o nascimento e a afirmação técnico-industrial da sociedade moderna e expressa a exaltação otimista que acompanhou a origem do industrialismo”.(ABBAGNANO, 2007, p. 776).

41

mesmos padrões de costumes ou técnicos que o homem ocidental, eram taxadas como selvagens/primitivas ou bárbaras.

O objetivo desse método de análise não era compreender as sociedades por meio das suas particularidades culturais e lógicas simbólicas, mas reconstruir os possíveis passos passados que levaram as civilizações ocidentais a “alcançar” o seu aperfeiçoamento técnico e científico. Nesse sentido, o homem denominado como primitivo seria como uma fonte histórica que demonstraria o estágio anterior ao “homem civilizado”, isto é, a condição de sua inferioridade ou atraso ao modelo ocidental. Sob tal questão, o escocês Frazer afirmou que “em comparação com o homem civilizado, o selvagem representa um estágio estacionado, ou melhor, retardado do desenvolvimento social (...) (FRAZER, 2005, p. 107), tese esta que, o levou à abominável conclusão: “o selvagem é um documento humano, um registro dos esforços do homem para se elevar acima do nível da besta”. (FRAZER, 2005, p. 121).

Embora pautados em um discurso tido como científico, os antropólogos evolucionistas desenvolveram uma “antropologia de gabinete”; suas análises eram baseadas na coleta de relatos feitos por missionários, comerciantes, viajantes ou observadores superficiais, e não mediante um levantamento etnográfico empírico junto a cultura e linguagem das sociedades investigadas (LAPLANTINE, 2007). O método comparativo e as análises feitas a partir das interpretações dos colonizadores, geriram a emergência de uma série de visões equivocadas e exógenas sobre povos que se desenvolveram além do recorte geográfico e cultural do ocidente. Esse discurso popularizado no contexto da Conferência de Berlim (1884 -1885), contribuiu para as práticas racistas e se tornou uma fundamentação teórica no neocolonialismo europeu sobre os continentes africano e asiático.

Os discursos racistas também encontraram legitimidade teológica, identificando a cor da pele dos africanos como portadora de pecado. Essa estigmatização da cor justificou-se na narrativa bíblica sobre a maldição de Cam14, filho mais novo de Nóe, que teria se deparado com a nudez do pai, quando este se encontrava embriagado e desacordado em uma barraca. Conta-se que Cam, em vez de guardar pudor e cobrir Noé, foi contar aos seus irmãos Cem e Jafé, o que havia acontecido. Noé, ao tomar consciência amaldiçoou Cam, seu filho, Canaã, e toda a sua descendência, como descrito na passagem do Gêneses (9:25): “Maldito seja Canaã! Escravo de escravos será para os seus irmãos". Cam teria se estabelecido ao nordeste da

14 Na “Predição dos Castigos de Deus” do profeta Jeremias encontra-se a alusão de que a cor da pele é a emanação ou encarnação do pecado e do mal que reside nestes seres de forma inequívoca. (FONSECA, 2012, p. 8).

42

África, sendo o patriarca dos cuxitas, povo que viria a consolidar o Reino da Núbia, no vale do rio Nilo, região que atualmente abrange o norte do Sudão, o sul do Egito e partes da Etiópia, Eritreia e Somália.

Fomentada por teólogos, tais interpretações “consolidaram estigmas, preconceitos e crenças “antinegro” (FONSECA, 2012, p. 8). A Igreja Católica aliada aos interesses mercantis das potências europeias15, “legitimou e deu sua benção ao processo de escravização dos africanos, embasada por essas leituras teológicas” (Ibdem, p.9). A política da escravização justificaria a predição bíblica, e as violências ao corpo africano, seriam uma forma de resignar a herança “amaldiçoada impregnada” na sua pele.

A Igreja Católica justificava a escravização dos africanos com um discurso humanista e missionário baseado na salvação das almas, já que a cor e o corpo estavam mergulhados na perdição das trevas a partir da maldição de Cam. Com os maus tratos e violentos castigos corporais visavam macular o corpo e a carne dos escravizados, mas esperava-se que a alma fosse purificada, tornando-a boa e dócil. (FONSECA, 2012, p. 9).

Essas concepções pautadas na argumentação filosófica, antropológica e teológica foram naturalizadas pelas ideologias vigentes e orquestradas pelos detentores do poder como uma justificativa das lógicas de dominação, constituindo assim, “uma base histórica e cultural de processos discriminatórios, marginalizadores e criminalizadores da população africana e descendentes (...)” (FONSECA, 2012, p. 10). Essa herança excludente em relação a África, atualmente também é alimentada pela abordagem midiática, que aliada a espetacularização da vida, quase sempre é marcada pelo “afro-pessimismo”16, como se África fosse tão somente um território de misérias, barbáries e pessoas vitimizadas. No emaranhado desses discursos, identifica-se que a névoa que recobre o desconhecimento que temos da África e o preconceito em relação as culturas afro-brasileiras, possuem também um cunho ideológico, e “vincula-se ao posicionamento político de nossas

15 “Em 8/1/1454, o Papa Nicolau V assinou a Bula Romanus Pontifex e tornou os portugueses donos exclusivos do aprisionamento, tráfico e comércio de africanos. Os Papas Calixto III e Sixto IV, em 1456 e 1481, ratificaram essa bula, antes da expansão ultramarina de Portugal e Espanha” (FONSECA, 2012, p.9). 16 Termo utilizado por Hountondji (1996). Segundo filósofo de Benin, o homem ocidental construiu uma visão exógena da África, produzindo uma leitura equivocada sobre o continente, que é caracterizada pelo “afro- pessimismo” e pelo “unionismo”, que considera a África sob um olhar unificado, silenciando as diferenças culturais entre as etnias.

43

estruturas de poder, também presentes e direcionando os assuntos educacionais (FONSECA, 2012, p. 5). Esse posicionamento político-ideológico fora tecido por uma historiografia tradicional, cuja linha discursiva foi costurada pela visão eurocêntrica. Para tanto, faremos a seguir um breve levantamento sobre o desenvolvimento dos estudos historiográficos dos africanos e afro-brasileiros. Durante séculos, a historiografia mundial construiu uma paisagem etnocêntrica, e a História sobre a escravidão no Brasil, não esteve imune a isso. Baseada no olhar do colonizador, a historiografia brasileira, durante décadas, representou os africanos tão somente como aportes de força de trabalho, ou ainda como seres passivos, imorais ou desprovidos de cultura. Embora a produção literária do século XIX, protagonizada por Castro Alves, Luís Gama, Lima Barreto, Machado de Assis, entre outros, tenha contemplado a temática das populações afro-brasileiras e colaborado posteriormente com o movimento abolicionista, somente nas primeiras décadas do século XX a questão africana passou a ser tema central de um estudo histórico, antropológico ou sociológico. Em 1932, postumamente publicada, a obra Os Africanos no Brasil de Raimundo Nina Rodrigues foi pioneira na reconstituição das culturas negras do Novo Mundo. Seu ponto de partida metodológico, baseado na comparação cultural dos africanismos sobreviventes no Brasil e as culturas africanas originárias, influenciou os trabalhos brasileiros posteriores de africanologia. Rodrigues apontou nos seus estudos que as culturas africanas no Brasil não se “transplantaram na sua pureza inicial, mas se misturaram intimamente e se transformaram, dentro de um processo que hoje se chama aculturação” (RAMOS, 2005, p. 15). O seu método de reconstituição da herança africana, possibilitou ainda, um mapeamento da presença africana por meio da distribuição demográfica dos escravizados e estabeleceu um inventário das línguas e dos grupos étnicos africanos existentes no Brasil, dando ênfase às manifestações artísticas e religiosas. Embora as contribuições de Nina Rodrigues sejam inegáveis para os estudos africanos, seu discurso teceu um olhar discriminador, posto que considerou o africano como um ser de consciência pré-lógica e inferior aos brancos, vindo a contribuir para a defesa de uma política de branqueamento da população para “civilizá-la”. Ainda nos anos 30, momento fecundo para a construção da identidade nacional, que fora patrocinada pelos ideários nacionalistas-autoritários do Estado Novo, intelectuais se empenharam no desafio de pensar o que seria “o brasileiro”. Nesse contexto, a obra “Casa Grande & Senzala” de Gilberto Feire, inspirada pela abordagem metodológica da antropologia cultural, traçou as práticas e as representações culturais brasileiras, considerando

44

que, entre a herança africana e europeia, havia a existência de uma democracia racial no Brasil. Seus estudos, nas décadas seguintes, foram alvo de diversas críticas, pois negligenciaram os aspectos negativos de séculos de escravidão, e reforçaram os estereótipos exótico, sensual e violento atribuídos ao negro. (FONSECA, 2012). A obra “O Quilombo dos Palmares”, escrita por Edison Carneiro e publicada no Brasil por Caio Prado Júnior em 1947, foi o primeiro grande estudo que abordou a questão afro-brasileira de forma mais ampla, tratando as formas de resistência negra e a organização político-social em Palmares. Contudo, embora esse livro abordasse a realidade colonial brasileira, não abordou a questões sociais e históricas presentes na África (FONSECA, 2012). Nas duas décadas seguintes, a História dos africanos e da África permaneceram em silêncio, e somente entre os anos 70 e 80, encontramos obras que nos colocaram em contato com a realidade africana. O lançamento da coleção de Autores Africanos publicado pela editora Ática, a célebre coletânea História Geral da África coordenada por Ki-Zerbo, e os estudos de Pierre Verger, propiciaram novas interpretações nos estudos referentes às populações africanas e afro-brasileiras (FONSECA, 2012). Acompanhando o fortalecimento do movimento negro, muitos debates e publicações se seguiram em meados dos anos 90, e núcleos de estudos nas universidades da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, emergiram a partir de um renovado interesse historiográfico, que buscou compreender a tradição africana e o funcionamento dos mecanismos racistas implícitos na cultura brasileira. Esses estudos mostraram que as populações africanas no Brasil conseguiram superar os obstáculos impostos pela dominação escravista, restabelecendo identificações culturais e cosmologias que marcaram fortemente a constituição da cultura brasileira. Tais estudos, embora atualmente sejam amplamente divulgados, infelizmente ainda “não chegaram adequadamente nas escolas, nem influenciaram muitos de nossos intelectuais, tampouco afetaram os rumos, os currículos e os conteúdos programáticos dos cursos de história e de ciências sociais na maioria das universidades brasileiras” (FONSECA, 2012, p. 4). E mesmo com os esforços pela sanção da lei 10.63917, os conteúdos programáticos na maioria das instituições de ensino, ainda concebem a história como uma “ciência estruturada para ser a dos conquistadores, dos homens, dos brancos, dos cristãos e das sociedades

17 A lei 10.639 promulgada em janeiro de 2003, sancionou que o estudo da história e da cultura afro-brasileira deve ser obrigatório nas bases curriculares do ensino fundamental e ensino médio, tanto nos estabelecimentos públicos, quanto privados. Tal lei fomentou a importância das expressões culturais de matriz africana na formação da sociedade brasileira, de modo a destacar participação e a contribuição desses povos no processo histórico e cultural do Brasil. (BRASIL, 2003).

45

detentoras de poder” (FONSECA, 2012, p. 5). E nesse processo, lemos uma História escrita pelos “vencedores”, e “não estudamos a África, mas a Europa e a América anglo-saxã, ou seja, a história daqueles que possuem o poder e a possibilidade de difundir seus conhecimentos através da escrita, colecionando documentos, registros e fazendo seus monumentos e estátuas”. (LE GOFF, 1990 apud FONSECA, 2012). A herança histórica e cultural do racismo vinculada a abordagem historiográfica fundada numa ótica eurocêntrica, promove o desconhecimento sobre os povos de África e de suas contribuições na formação da cultura brasileira, e em suma, resulta no apagamento do pensamento africano. Nesse tocante, passamos a compreender que os processos de colonização não só provocaram guerras e extermínio de populações inteiras, mas também o epistemicídio, ou seja, o assassinato das perspectivas intelectuais que não estavam dentro do cânone europeu. (NOGUERA, 2011c). Admirado com grandes feitos e desenvolvimentos científicos e filosóficos que “iluminaram” a sua trajetória, o homem ocidental e colonizador, discriminou e negou outras formas e visões de mundo, produzindo o que podemos chamar de racismo epistêmico. Por racismo epistêmico devemos compreender um conjunto de dispositivos que recusam a validade das justificativas feitas a partir de referenciais não ocidentais. Assim, a invalidação e o apagamento do pensamento africano foi operado discursivamente com base nos critérios filosóficos ocidentais. (NOGUERA, 2011c). Segundo o filósofo brasileiro Renato Noguera (2011c), o racismo epistêmico marca os argumentos tradicionais sobre a centralização do nascimento da filosofia. A filosofia de acordo com os discursos vigentes, teria se iniciado na Grécia entre os séculos VI e V a.C, e seguido um caminho ascendente nos escritos documentados e demarcados no território europeu18. Tal perspectiva, aduz que o pensamento filosófico seria um privilégio do homem ocidental, afirmando incidentalmente que em nenhum outro lugar do mundo pessoas teriam pensado filosoficamente. Mas ora, nenhum outro ser humano além da Europa teria se deparado com questionamentos diante do mistério e tido a capacidade de refletir sobre questões fundamentais da existência? Essa indagação nos leva a pensar sobre o próprio conceito de Filosofia, e embora haja diversas interpretações e caracterizações sobre o seu papel, de um modo geral, a Filosofia está intimamente relacionada a uma experiência de estranhamento em relação a realidade, que

18 Embora célebres pensadores, tais como Plotino, Santo Agostinho, Derrida e Camus tenham nascido no continente africano, pouco se menciona sobre suas origens.

46

move o questionamento e o desejo humano de saber. A Filosofia é uma atividade do pensamento, um posicionamento diante da existência, que provoca a reflexão tanto numa dimensão subjetiva (consigo mesmo), quanto objetiva (com o mundo). O homem é propriamente um problema para si mesmo, portanto, “perguntar-se e buscar respostas é próprio da condição humana, e não uma notoriedade do homem ocidental” (OMOREGBE, 1998, p. 4). Observar o firmamento com suas estrelas e infinitudes, questionar sobre os mistérios que circundam os fenômenos naturais e construir explicações possíveis sobre as origens da existência, sempre foram impulsos inerentes à condição humana, tanto é, que se construíram diversas visões cosmogônicas e cosmológicas, assim como podemos encontrar no cosmograma bakonko, no tei gi (yan/yang) chinês ou no “om” hindu. Nesse sentido, é possível afirmar que antes mesmo da aparição dos primeiros filósofos gregos, se fazia filosofia em outras partes do mundo. Os pensamentos do indiano Sidarta Gautama (563 – 483 a.C), do chinês Lao Tsé (séc. VI a.C) e do egípcio Amen-em-ope (séc. XIV a.C), empenharam-se numa profunda reflexão sobre o sofrimento humano e paradoxos da existência, questões estas fundamentais nos estudos da ética filosófica ocidental. Na chave desse raciocínio, precisamos considerar duas questões: 1. “Distinguir entre filosofia e o modo de transmiti-la e preserva-la” (OMOREGBE, 1998, p. 4); 2. A filosofia pode existir mesmo sem prescindir dos raciocínios fundados “nos moldes do silogismo aristotélico ou da lógica de Russel”. (OMOREGBE, 1998, p. 7). Primeiramente, é necessário destacar que o continente africano não é todo destituído de escrita, muito embora, a cultura da oralidade seja tradicionalmente uma característica das sociedades que se situam na África Subsaariana. Os egípcios, em destaque, produziram uma escrita rebuscada que teria sucedido dos sistemas de escrita dos Akan e dos Mandinga, grupos étnicos da África Ocidental (FONSECA, 2012). As antigas inscrições em hieróglifos egípcios podem ser interpretadas como complexos tratados cosmológicos que deram base conceitual para o desenvolvimento da filosofia pré-socrática. Isso porque, no final do século XVIII, quando foi decifrada a pedra Rosetta, “comprovou-se que o conhecimento científico, religioso e filosófico da Grécia Antiga teve origem no Egito (África)” (FONSECA, 2012, p. 6). Possivelmente, “o saque e a destruição da biblioteca de Alexandria encobriram um processo de apagamento e de descrédito dos conhecimentos africanos, tornando-os exóticos, místicos e míticos”. (FONSECA, 2012, p. 6). Os antigos povos da África Subsaariana não legaram suas sabedorias por meio da escrita, porém, não podemos invalidar a sua qualidade filosófica ou afirmar que eles não

47

produziram pensamento. Suas perspectivas sobre o universo ou sobre o ser humano foram transmitidas pela oralidade e preservadas até os nossos dias com base nos mitos19, aforismos, provérbios e contos. Por outro lado, o conhecimento tradicional das sociedades orais africanas, foi registrado e pode ser reconhecido na estética das esculturas, música e dança, assim como na organização político-social elaborada por um povo, e, especialmente, nas doutrinas religiosas. (OMOREGBE, 1998).

Onde não há escrita, o ser humano está intimamente ligado à palavra, ela é a documentação viva de um povo, como também o princípio ontológico, divino e o testemunho daquilo que ele é20. As histórias contadas das bocas aos ouvidos, transmitidas pelos corpos que falam e ouvem, de geração a geração, têm o poder de conhecimento, pois exprimem e guardam a sabedoria ancestral de um grupo. A palavra, nesse sentido, toma a acepção de um saber corporal, de uma extensão sonora do corpo próprio que toca e é tocado.

Tradições orais materializam-se em organizadas palavras comunitárias, uma espécie de enciclopédia da palavra oral, produzida, transmitida e renovada em fazer-se contínuo corpo e da comunidade. Gêneros orais de comunicação caracterizam-se pela presença marcante dos corpos produzidos com fortes vínculos à palavra, considerada “na sua formulação e na proferição, como um agente ativo, eficaz”. (ANTONACCI, 2015, p. 43).

Para os povos africanos que não cultivaram suas memórias e saberes por meio da escrita “a tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos”. (HAMPATE BÁ, 1982, p. 169). O conhecimento africano deve ser entendido como uma “tradição viva” que está sempre em movimento através da palavra que é proferida e partilhada pelos/entre os corpos que narram, dançam e cantam, o que confere sempre um fluxo de pensamentos, uma abertura de sentido daquilo que é dito/expresso, e nunca um fechamento categórico e conceitual. Desse modo, os corpos nas suas expressões, em como “a memória dos anciões devem servir para descobrirmos as razões que são as bases do que nos foi transmitido (...) e podem estar no lugar dos livros”. (OMOREGBE, 1998, p. 7).

19 O mito não é fantasia, superstição ou uma forma irracional de interpretar a realidade. O mito é sabedoria de vida por meio dos símbolos, que nos fazem olhar para “dentro” para os sonhos desejos e medos mais abissais. (CAMPBEEL, 1990). 20 “A tradição bambara do Komo ensina que a Palavra, Kuma, é uma força fundamental que emana do próprio Ser Supremo, Maa Ngala, criador de todas as coisas. Ela é o instrumento da criação: “Aquilo que Maa Ngala diz, é!”, proclama o chantre do deus Komo. O mito da criação do universo e do homem, ensinado pelo mestre iniciador do Komo (que é sempre um ferreiro) aos jovens circuncidados, revela‑ nos que quando Maa Ngala sentiu falta de um interlocutor, e então criou o Primeiro Homem: Maa”. (HAMPATÊ BÁ, 1982, p.170).

48

Sobre a segunda questão: “A filosofia pode existir mesmo sem prescindir dos raciocínios fundados nos moldes do silogismo aristotélico ou da lógica de Russel”, devemos considerar, portanto, que “é falso afirmar que esse ou aquele povo não pode pensar logicamente ou empregar a razão de modo coerente porque não usa uma argumentação tipicamente ocidental” (OMOREGBE, 1998, p. 3). Embora não seja possível identificar grande parte da autoria dos pensamentos tradicionais da África Subsaariana, em virtude da ausência de registros escritos, certamente, os filósofos africanos se depararam com o estranhamento filosófico, questionaram e refletiram de forma racional, antes dos seus ensinamentos tomarem existência na memória coletiva.

Pensadores africanos não desenvolveram suas perspectivas sem razões, sem reflexões para fundamental as questões (...) mas é óbvio que eles postularam ideias racionalmente, (...) passaram por processos de observação, raciocínios e reflexões antes de obterem ideias, perspectivas e visões de mundo transmitidas para nós através de máximas, contos, mitos, organizações sociopolíticas, doutrinas religiosas. (OMOREGBE, 1998, p. 6).

Observa-se que, o conhecimento africano está fundado em outra lógica, numa hermenêutica mítica e poética que cria outro modelo de razão que descortina as matrizes dos nossos pensamentos e desconstrói a mentalidade cartesiana na qual fomos fundados. A soberba do homem ocidental e seu narcisismo em relação a sua própria estrutura de pensamento, legou ao mundo contemporâneo uma ideia universalista da razão, ou seja, a crença de que o conhecimento se desenvolveria de uma forma “homogênea”, que seria válida para todos. Nietzsche (1999), o filósofo das marteladas, no seu texto “Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral” de 1873, bem viu o quão fantasmagórico, patético e mesquinho é o intelecto defendido pela Filosofia Ocidental, assim como as suas verdades, nada mais são que um batalhão de metáforas e ilusões criadas para normatização das formas de vida. Sobre uma égide de superioridade, as epistemes vigentes pautadas em um saber positivado e num discurso detentor da verdade, promoveu o apagamento das visões de mundo elaboradas de modo distinto da tradição analítica grega, anglo-saxã e judaico-cristã. Essa negação do outro e da diferença é fruto de um racismo epistêmico que vem produzindo ao longo da história, práticas de violência, intolerância e exclusão social. Nos últimos anos,

49

assistimos nas mídias dezenas de ataques a templos religiosos de matriz africana21. Essas ações motivadas pelo fundamentalismo evangélico e pautadas em discursos demonizadores dos cultos afro-brasileiros, são fenômenos do racismo epistêmico, pois visam aniquilar e apagar do horizonte social o “outro” e a “diferença”, isto é, a diversidade das expressões de fé. Por fim, olhar para a herança africana e problematizar o apagamento do pensamento africano, é descolonizar as nossas visões de mundo, e sobretudo, empenhar-se numa resistência cultural e no enfrentamento ao racismo.

21 No segundo semestre de 2017, noticiou-se dezenas de ataques às casas de candomblé e umbanda na região metropolitana do Rio de Janeiro.

50

4. PARTE III: UMA BREVE HISTÓRIA DA RAZÃO OCIDENTAL: A VISÃO PROMETEICA

Aristarco, Hipátia e os Dogons, já haviam anunciado ser o sol o centro do sistema solar. Contudo, os estudos historiográficos, enfatizam as investigações do matemático Galileu Galilei como base da teoria heliocêntrica, isso porque ele utilizou um instrumento de observação – o perspicillum – para comprovar ser a terra um mero corpo celeste, assim como os demais planetas, que gira em torno do sol. A partir de daí o modelo cosmológico geocêntrico então ruiu, fazendo da ciência medieval, ainda reminiscente do pensamento aristotélico, um modelo caduco. “Tudo que era sólido se desmanchou no ar”, o cosmo ordenado, hierárquico, finito e munido de qualidades místicas foi desconstruído mediante a invenção do conceito de universo - infinito, quantitativo e incomensurável. E assim, os alicerces da ordem teológica do medievo foram rachados, e permeou-se nessas fissuras a passagem para a modernidade, que possibilitou a transformação completa de toda atitude do espírito humano (KOYRÉ, 1991).

O desenvolvimento das ciências empíricas e o advento da teoria cartesiana excitaram a emergência do pensamento antropocêntrico, que produziu um conhecimento ativo opondo-se à ciência contemplativa dos antigos gregos (MARCONDES, 1998). Nessa paisagem, o homem não seria mais um ser decaído na terra, submetido às sansões divinas, mas ele, propriamente, seria como um “deus”, que através da ciência poderia conhecer e dominar a natureza, que até então era concebida como vil e misteriosa. O mundo natural se mostrou como um território a ser submetido ao domínio instrumental, e foi “desencantado”, na medida em que todo fenômeno passou a ser matematizado e lido pelos princípios de uma causalidade mecânica. Do mesmo modo, o corpo perdeu o seu encanto cosmológico ao ser reconhecido como objeto da ciência, puramente na sua natureza física e biológica, como fora apresentado nos estudos da anatomia realizados pelo médico britânico William Harvey (1576 – 1657). A estrutura corpórea assumiu novas imagens que o assimilavam às máquinas inventadas nos ateliês da época, tais como relógios, bombas e pistons - aquelas que privilegiavam “a física hidráulica, a lei dos líquidos e dos choques, a força do sopro do vento, o sistema das engrenagens ou das alavancas”. (CORBIN et ali, 2008 a, p. 08).

As premissas de um conhecimento rigoroso e experimental, estimulado pela busca de um conhecimento cada vez mais objetivo e racionalizado, implicou na categorização dicotômica entre sujeito e objeto. Para se fazer ciência, entendeu-se que era preciso um

51

distanciamento do mundo vivido e a objetivação das formas de vida para se chegar a conclusões válidas isentas dos possíveis enganos dos sentidos e das paixões. Foi nesse plano de fundo que os estudos do matemático René Descartes estruturaram os paradigmas da Teoria do Conhecimento Moderna e fundou propriamente a matriz operacional do pensamento ocidental, elegendo a razão metódica como o fundamento verdadeiro de todo o conhecimento. Sua concepção racionalista pretendeu expurgar do processo do conhecer todas as paixões e percepções sensoriais, no intento de guiar a razão de forma clara e distinta, evitando o erro, a falsidade e a ilusão. Descartes (2007) considerou o homem uma dualidade formada pela res cogitans (razão) e res extensa (corpo), enunciando sua essência no cogito. Através do seu axioma “penso, logo existo”, ele definiu que o pensar é o “ser” fundante de toda a existência. Ao descrever a natureza inteligente distinta de tudo que é corporal, o pensamento cartesiano legou para o mundo moderno a racionalização das formas de conhecimento, em que o cognitivo se evidenciou em detrimento do sensível. Embora Platão, há séculos já postulara a dualidade epistêmica corpo e alma na sua Teoria das Ideias, condenando o sensível ao status de um simulacro análogo a uma caverna, foi o modelo cartesiano o referencial representativo da hermenêutica ocidental.

Essas vicissitudes que sucederam no território europeu, entre os séculos XVI e XVII, empreenderam rupturas nos âmbitos socioeconômicos, artísticos, técnicos, religiosos e, transformações culturais nos territórios além do “Velho Mundo”. Com o avanço das navegações, empenhadas pelo pensamento mercantil que buscava novos territórios para a exploração de especiarias que pudessem atender os caprichos das cortes europeias, incidiram também uma série de novos colonialismos, que sobre a égide de uma justificativa “civilizadora”, visou geometrizar o mundo pela ótica eurocêntrica. A partir de então, o homem europeu colonizador, assentado em seu etnocentrismo epistêmico, engendrou ao mundo um modelo hegemônico de conhecimento, produzindo saberes e formas discursivas que enredam até hoje a nossa percepção sobre as coisas.

Nos séculos XVIII, as “luzes da razão” encontraram seu apogeu. O pensamento liberal, dinamizado pelas investidas da classe burguesa, derrubou o Antigo Regime, e postulou a universalidade da nova ordem epistêmica: a ciência como guia doutrinário da humanidade. Na Era da Ilustração, o esclarecimento (Aufklärung), conceito preconizado pelos iluministas, caracterizou-se pela defesa de uma consciência autônoma do indivíduo, e de uma racionalidade científica, contra a fé, a superstição e o dogma religioso (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996). Os iluministas acreditavam que o homem poderia se emancipar da

52

subserviência política e do obscurantismo da ignorância através do uso da razão e do saber científico, tomando como primado social a educação laica, técnica e humanística. Nesse modelo social, que se pretendia universal e igualitário, vinculava objetivamente as necessidades econômicas e políticas em torno de um formalismo científico que foi se inscrevendo como o vetor de produção de verdades, isto é, como estrutura axiomática do conhecimento, imprescindível à nova ordem de poder (SODRÉ, 1988a). Doravante, “a forma de coerência dominante deixou de se expressar através de uma ordem ontológica (o mito) em favor de outra voltada para os discursos de descrição da organização interna dos objetos, sustentados pela lei de causa e efeito”. (SODRÉ, 1988a, p. 62).

O modelo ideal de homem moderno, na paisagem onírica iluminista estaria aliado a uma consciência autônoma, voltada para a produção livre e consciente, regulada por imperativos morais. É assim que a dimensão discursiva em defesa de uma ideologia22, acenada por uma razão analítica como uma lei absoluta e universal, ocupa as representações de sentido, postas até então pelas narrativas míticas, cosmológicas ou religiosas.

A ideologia moderna se opõe a ordem tradicional (mítica) por um conjunto de linhas de força, a primeira das quais é a constituição do indivíduo como sujeito de uma consciência autônoma. A segunda é a exacerbação do racionalismo – a universalização da razão analítica como instrumento necessário à consecução de fins e à descoberta da verdade (...) (SODRÉ, 1988, p. 62)

Privilegiando um conhecimento cada vez mais racionalizado através de um discurso que pretendia possibilitar a autonomia e liberdade do indivíduo, as imagens epistêmicas do iluminismo, subsidiaram a ascensão do capitalismo industrial e a expansão do liberalismo. Nesse plano, o pensamento burguês cunhado na noção de individualidade incentivada pela livre iniciativa e pelo valor da propriedade privada, delineou os contornos socioeconômicos, culturais e políticos subsequentes.

Na difusão da doutrina liberal, o pensamento de Adam Smith (1723 – 1790) ocupou uma notoriedade e fundou propriamente a economia política moderna. Defensor do capitalismo concorrencial, preconizou a livre aplicação do capital com intervenção mínima do

22 Ideologia compreendida como uma dimensão de poder, de coerência semiótica, ajustada a um dispositivo dominante da produção. (SODRÉ, 1988a).

53

Estado, visto que as sociedades deveriam regulamentar-se pelas leis próprias do mercado – “A mão Invisível” -, seguindo um curso natural a partir da lógica das trocas individuais. Considerando que o homem desde os primórdios sempre teve uma propensão natural às trocas, afirmou que as trocas de interesses privados promoveriam o desenvolvimento econômico, e desse modo, o esforço uniforme de cada pessoa em elevar a riqueza individual seria suficiente para manter o desenvolvimento das sociedades. (SANTANA, 1996).

No capitalismo o valor das trocas tem como fim a obtenção de lucros, isso porque a troca das mercadorias resulta em um excedente, que ao se tornar acumulado converte-se em capital. “O capital é definido como um conjunto de ativos não humanos que podem ser adquiridos, vendidos e comprados em algum mercado” (PIKETTY, 2014, p. 51). Logo, aqueles que detêm a propriedade do capital obtêm mais lucros. “Esses lucros são reinvestidos ou usados para aumentar o capital. Essa acumulação de capital leva a mais lucros, que, por sua vez, levam a mais acumulação, e o sistema continua em uma espiral ascendente” (HUNT, 1987, p. 48-49). Nessa lógica, a competitividade, a livre circulação e o acumulação de lucros resultantes das trocas de mercadorias passam a ser os imperativos que organizam as relações socioeconômicas.

Nesse contexto, marcado pela produção capitalista, a promessa da Filosofia Positiva em reformular o intelecto e a organização social tendo como guia universal a ciência, culminou na popularização da crença de que o progresso técnico viria a solucionar todos os problemas humanos. Na obra Curso sobre a Filosofia Positiva (1830/1842), Auguste Comte (1798 – 1857) buscou compreender o “progresso do espírito humano” que, segundo ele, apresentaria três estados: teológico, metafísico e positivo. O estado positivo seria o ápice do progresso do espírito humano, e marcado pela devoção à ciência como “guia da vida individual e social do homem, único conhecimento, única moral, única religião possível” (ABBAGNANO, 2007, p. 776). O estado positivo pretendia, portanto, a objetivação, racionalização e a neutralização do saber na busca de leis científicas que garantiriam a previsibilidade dos eventos sociais. Seus pensamentos se popularizaram com a crescente aura de progresso nos fins do século XIX, e contribuíram para a romantização da ciência como primado do homem ocidental. Nesse período, a expansão da industrialização e do capitalismo financeiro, o advento das novas tecnologias, e o nascimento das ciências humanas e biológicas instauraram o modelo de homem, baseado nos valores eurocêntricos. Todas as formas de vida passaram

54

pelo crivo de um saber ordenado, positivado e classificado, e o homem, colocado sob análise, tornou-se sujeito e objeto ao mesmo tempo.

[...] uma historicidade profunda penetra no coração das coisas, isola-as e as define na sua coerência própria, impõe-lhes formas de ordem que são implicadas pela continuidade do tempo; a análise das trocas e da moeda cede lugar ao estudo da produção, a do organismo toma dianteira sobre a pesquisa dos caracteres taxinômicos [...] o homem, por seu turno, entra, e pela primeira vez, no campo do saber ocidental (FOUCAULT, 2000, p. 20).

Na virada do XX, a sociedade europeia se mostrou confiante em suas aquisições, e por meio dos adventos das novas tecnologias – telefone, automóvel, avião, energia elétrica, entre outros -, inventou-se uma efervescente aura de progresso, que parecia otimista em relação ao uso da razão e suas aplicações sociais23. Contudo, a razão e a ciência como promessas de um conhecimento neutro, produtor de autonomia e de bem-estar social, se puseram em crise. Com a eclosão das duas Grandes Guerras, nas primeiras décadas do século XX, estabeleceu-se uma linha tênue entre razão e degenerescência, na medida em que ciência passou a ser instrumentalizada como forma de poder e controle social. A utopia preconizada pelo progresso técnico-científico e a confiança numa razão universal que seria válida para todos, se converteram em distopia. Tecnologias de destruição se tornaram os investimentos mais rentáveis no mercado, os recursos naturais passaram a ser explorados sem precedentes de modo a atender as necessidades produtivas dos bens de consumo, e o uso do corpo submetido à um saber positivado passou a ser “estreitamente subordinado às necessidades socioeconômicas, dependentes de relações de domínio” (CORBIN, 2003, p. 607). A partir da segunda metade do século XX, o triunfo do capitalismo afigurou-se no processo de globalização e na dispersão das tecnologias digitais. Toda uma era da história mundial se vê marcada pela passagem da sociedade da produção para a sociedade do consumo (BAUMAN, 2001). A indústria mercantil infiltra-se em todos os setores da atividade humana, e todas as formas de vida passam a ser contornadas pela lógica do mercado, que é

23 “Falar de finais do século XIX significa lembrar uma sociedade confiante em suas aquisições e marcada por uma atmosfera de fausto e luxo. Não é para menos que o termo fin de siècle tenha ficado, paradoxalmente, a esse período, assim, como a designação belle époque; duas expressões que remetem a uma só representação desse momento, que parecia alheio aos problemas graves que ameaçavam uma estrutura – aparentemente – tão sólida”. (COSTA; SCHWARCZ, 2000, p. 9).

55

propulsionada pelo espetáculo midiático: Demanda-se crédito, eficácia, rapidez, metas e resultados! O sólido projeto da razão moderna, pautado no ideário de progresso tomou sua forma mais perversa em nosso século, transpondo o contexto das macro políticas econômicas para sobrepor as representatividades individuais. O caráter competitivo no mercado atualmente é uma máxima valorativa e nutrida pelos próprios indivíduos no contexto do trabalho. Assim, engendram-se novos conflitos subjetivos: o anseio pelo sucesso, resultados e aceitação social, conduz a massa produtora ao esgotamento pessoal, na medida em que a existência permeada pela preocupação econômica se justifica nos derivados que o status profissional pode garantir. O sucesso profissional, na latência do senso comum, é associado à compra dos estilos do “bem viver” midiáticos. O carro do ano, o cruzeiro da vez, a casa dos sonhos, os lançamentos tecnológicos, as roupas de grife, e os estudos dos filhos nos Estados Unidos, por exemplo, categorizam a ascensão social na promessa dos ideais de felicidade. Assim, o fetichismo assume um caráter moral e administra a nossa letargia e complacência cotidiana. Não nos abstemos de trabalhar mais e consumir mais, já que toda essa cultura da produtividade reserva sonhos que vem “preencher o vazio existencial” que põe em marcha um processo de desorientação, afirmado, contraditoriamente, como “o princípio do pleno poder sobre a condução de si próprio e nas manifestações de dependência e de impotência subjetivas” (LIPOVETSKY; SERROY, 2011, p. 59).

Há algum tempo, acreditava-se que as máquinas viriam libertar os homens das longas horas de trabalho, o que significaria, consequentemente, mais horas de tempo livre. Nessa perspectiva, o economista francês Jean Fourastié (1907–1990) manifestou grande esperança a respeito do desenvolvimento capitalista, inferindo que progresso técnico e a produtividade poderiam contribuir para uma relação harmônica entre o tempo e trabalho. Contudo, os aparatos tecnológicos, tais como celulares, palmtops e e-mails fizeram com que as horas de trabalho fossem estendidas para a casa. Percebe-se, assim, que jornada de trabalho na era cibercultural tem aumentado nos últimos anos, invadindo a propriedade do nosso tempo, misturando-se com a privacidade dos nossos hábitos. E assim, “permanece irrealizada a utopia da libertação do homem pelas máquinas: nunca se trabalhou tanto, e o tempo livre jamais esteve tão fora da pauta”. (NOVAES, 2011).

Nesse breve percurso sobre a história do homem moderno, não se pretendeu traçar uma historicidade teleológica ou niilista, mas colocar em questão os paradigmas da razão

56

ocidental que, consolidada na ideia de progresso técnico-científico e de sua aplicação para o aperfeiçoamento humano, colocou a produção e o trabalho como matrizes universais do pensamento. Trata-se de uma visão prometeica24 que impõe uma tradição que liga o domínio da natureza a fins e benefícios humanos, ou seja, “o projeto prometeico do Ocidente: o indivíduo humano, todo-poderoso dominador da natureza, dispõe-se à produção ilimitada, cujo resultado lógico teria de ser, muito depois, o consumo exponencial, voltado para a satisfação de necessidades, dos prazeres, do gozo. (SODRÉ, 1988a, p. 23).

24 Alusão a narrativa mítica de Prometeu, Titã que roubou uma faísca de fogo dos deuses e deu aos humanos. O fogo possibilitou que os humanos desenvolvessem técnicas de domínio da natureza e o aprimoramento do trabalho, o que gerou certa independência em relação aos deuses. Zeus, furioso, decidiu vingar-se enviou a terra a bela Pandora com uma caixa que continha todos os males. O deus do Olimpo, ainda ordenou que Prometeu fosse preso no alto de um rochedo onde, todos os dias uma águia vinha bicar-lhe o fígado. Como o titã era imortal, a cada dia a ferida cicatrizava até que a águia retornava para novamente bica-lo. (BULFINCH, 2000).

57

5. PARTE IV: A FILOSOFIA AFROPERSPECTIVISTA COMO POSSIBILIDADE DE DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO

No rito, entendido como um conjunto de procedimentos cosmogônicos do grupo, o corpo encontra um outro tipo de totalidade, na qual se produz algo como uma sinergia (integração coletiva das energias ou dos sentidos individuais), e ele se torna ao mesmo tempo sujeito e objeto. Sujeito, no sentido da soberania dos músculos, gestos e movimentos; objeto no sentido da entrega ao domínio do ritmo e da liturgia coletiva. (SODRÉ, 2002 p. 86).

No horizonte da diáspora africana25, financiada pelo tráfico europeu, atravessaram pelo Atlântico múltiplas sabedorias, memórias, linguagens e experiências que, ancoradas nos corpos negros, desembarcaram em terras brasileiras. A Kalunga – o grande mar – como uma linha divisória entre a vida e a morte, abriu um caminho de encruzilhada de povos, que possibilitou identificações culturais entre diferentes etnias e o renascimento de visões de mundo que transgrediram as estruturas coloniais do saber enunciado pelos homens brancos. A solidariedade nascida entre os cativos na travessia e na senzala, permitiu o restabelecimento dos patrimônios simbólicos legados de uma tradição vivida. Os milhões de africanos sequestrados pela empresa do tráfico, “reelaboram e redefiniram suas regras originais com o objetivo de preservar uma matriz fundadora” (SODRÉ, 1988a, p.56), afirmando assim, suas tradições, não como formas paralisantes, “mas como algo capaz de configurar a permanência de um paradigma negro na descontinuidade histórica”. (Ibidem).

Desterritorializados, os africanos no Brasil, construíram na afirmação de uma herança africana reinventada, um território negro-brasileiro. Riscando o chão colonial com suas ontologias e cosmologias, driblaram a epistemologia dominante e dobraram a morte de suas

25 A diáspora africana é, como Yangí, um fenômeno de despedaçamento e de invenção. Cada fragmento dos saberes, das memórias e dos espíritos mesmo negro-africanos que por aqui baixam são pedaços de um corpo maior que mesmo recortado se coloca de pé e segue seu caminho dinamizando a vida. Yangí são as partes de Elegbara, filho de Orumiá, aquele que comeu todas as coisas do universo e as restituiu de forma transformada. O que Elegbara engole de um jeito, devolve de outro. A forma com que ele devolve o que engoliu é impossível de ser controlada ou até mesmo imaginada. (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 12).

58

cosmovisões (SIMAS; RUFINO, 2018). Em meio aos interditos escravistas, condensaram em maltas de danças, batuques e mandingas, um patrimônio simbólico de experiências ancestrais e de encantamento que resistiu a normatividade ocidental.

O patrimônio simbólico do negro brasileiro (a memória cultural da África) afirmou-se aqui como território político-mítico-religioso, para a sua transmissão e preservação. Perdida a dimensão do poder guerreiro, ficou para os membros de uma civilização desprovida de território físico a possibilidade de “reterritorializar” na diáspora através de um patrimônio simbólico consubstanciado no saber vinculado ao culto dos muitos deuses, à institucionalização das festas, das dramatizações e das formas musicais. (SODRÉ, 1988a, p.50).

Tomando como ponto de partida o conceito “Filosofia afroperspectivista” de Renato Noguera, pretendemos nesse capítulo, esboçar uma epistemologia do pensamento negro- brasileiro, considerando as inscrições das cosmovisões africanas que se assentaram no Brasil. Não temos, portanto, o objetivo de especificar a complexidade do pensamento africano às culturas de origens, ou mesmo discriminar tais diferenças, mesmo porque essa seria uma árdua tarefa, já que diversas etnias foram transplantadas para cá – nagôs, bantus, mandingas, minas, hauças, fons, entre outras. Para tanto, ciente da diversidade, complexidade cultural e histórica presente no continente africano e nas populações que se formaram no Brasil, nossa busca é cartografar os principais eixos simbólicos de matriz africanas – tendo como base, sobretudo, as referências bantu e nagô -, que se instituíram pelas frestas do colonialismo, como o grande acervo cultural negro-brasileiro.

Na empreitada em coreografar a reflexão sobre uma “Filosofia afroperspectivista” será necessário, primeiramente, “denegrir, escurecer, tornar o pensamento negro e reativar as forças próprias de um devir negro-africano”. (NOGUERA, 2011a, p. 3). Sendo assim, é preciso criar outros símbolos que ampliem o nosso horizonte de linguagem e, deixar-se afetar por pontos epistêmicos riscados em encruzilhada, isto é, por uma concepção de tempo-espaço de fronteiras e de multiplicidades que rompe com a racionalidade ocidental implicada numa linearidade de certezas conceituais.

59

Nos pontos epistêmicos riscados em encruzilhadas, o saber é assentando numa ontologia das macumbas26, num modo de ser/conhecer que admite um caminho polifônico, ambivalente e inacabado que se dinamiza pelo princípio da imprevisibilidade, deslocando os eixos referenciais vigentes e produzindo giras numa roda ampliada pelas lógicas de encantamento que tem o corpo como cosmovisão (SIMAS; RUFINO, 2018).

A macumba, em um primeiro momento, seria aquilo que apresentaria as marcas da diversidade de expressões subalternas codificadas no mundo colonial, investidas de tentativas de controle por meio da produção do estereótipo. Encruzada a esta perspectiva, está a macumba como uma potência híbrida que escorre para um não lugar, transita como um “corpo estranho” no processo civilizatório, não se ajustando à política colonial e ao mesmo tempo o reinventando. Como signo ambivalente que é, desliza e encontra frestas nos limites do poder, como potência do corpo que carrega em si parte possível de coexistência e de interpretação. (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 15).

Riscar o chão epistêmico com a pemba27 lógica dos saberes das macumbas, confere, então, evocar, primeiramente, Exu28 - Laroiê, Esù -, como um símbolo de resistência contra toda a normatização de mentalidades imposta pelo cânone europeu, que se constitui como um projeto que não contempla a diversidade. Exu29, que fora equivocadamente associado ao diabo pela mentalidade judaico-cristã, é dono das encruzilhadas, portanto, é aquele que circula entre as fronteiras, fazendo incidir a ponte entre o visível e invisível, entre os homens e os

26“A expressão macumba vem muito provavelmente do quicongo kumba: feiticeiro (o prefixo “ma”, no quicongo, forma plural). Kumba também designa os encantadores das palavras, poetas. Macumba seria, então, a terra dos poetas do feitiço; os encantadores de corpos e palavras que podem fustigar e atazanar a razão intransigente e propor maneiras plurais de reexistência pela radicalidade do encanto (...) (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 5). 27 Pemba é bastão cônico, uma espécie de giz utilizado nos ritos de matriz africana, como um instrumento espiritual que tem o poder de fechar, trancar ou abrir os terreiros, codificando o limiar entre o mundo espiritual e o mundo material. 28 O termo Exu é atribuído pela cosmogonia iorubá. A entidade que mora nas encruzilhadas para os fons é Legbá e para os bantus é Aluvaiá. Embora entre os africanos haja diferentes denominações, possuem a mesma acepção e representação. 29 Exú é o deus mais próximo dos desejos do corpo, do humano; seu símbolo ogó, espécie de porrete de forma fálica, remete à fertilidade, mas há representações que associam o tridente como sua ferramenta. Suas cores são preto e vermelho, e os elementos são terra e fogo. Na tradição cristão foi associado ao diabo, o que legou para a mentalidade popular que ele teria atribuições maléficas para os seres humanos. No resgate da mentalidade histórica cristã, identifica-se que os deuses próximos a natureza e aos desejos humanos foram demonizados, pois a teologia – inclusive influenciada pela leitura platônica -, atribuiu à matéria e à carne uma qualidade de danação, capaz de levar o humano ao pecado. Assim ocorreu com os deuses campestres das míticas greco- romana, tais como faunos, sátiros (seres com chifres, tronco humano e pernas de bode), seguidores de Dionísio/Baco, deus da fertilidade, do teatro e da embriaguez. Não é de se estranhar que no período medieval a representação do demônio fora construída por um imaginário semelhantemente aos sátiros e faunos.

60

deuses, entre o sagrado e o profano. É o deus que está mais próximo dos seres humanos e liga-se diretamente ao corpo, daí o associarem a alegria, ao gozo, ao prazer e as realizações no plano material. Nas várias narrativas míticas, ele é apresentado como aquele que sempre traz algo para a humanidade, desde o fogo, os signos de comunicação e o próprio sexo. Sem Exu não se faz nada, pois é “ele quem come primeiro”30, e possibilita a transformação e o movimento das trocas31, pondo fim a imobilidade do status quo. “Exu é o princípio dinâmico fundamental a todo e qualquer ato criativo. Elemento responsável pelas diferentes formas de comunicação, é ele o tradutor linguista do sistema de mundo” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 20). Assim, todos os discursos que “buscam interditá-lo, o pintando como o “diabo a quatro”, restringem suas visões, inviabilizando um vasto repertório de sabedorias que alargam as possibilidades de interação e invenção de outras possibilidades”. (Ibidem).

Imagem 6: Exú de Caribé

Fonte: Acervo de imagens Pinterest (s/d)

Na abordagem da “Filosofia afroperspectivista”, o animal-símbolo torna-se a galinha d’angola em contraposição a coruja32, animal símbolo da Filosofia Ocidental (NOGUERA,

30 Na abertura dos cerimoniais do candomblé e da umbanda oferenda-se primeiramente à Exu, pois ele é a chave de conexão entre os homens e as divindades. Essa conexão é ativada pelo rito de Padê, que é um preparado específico que compreende, normalmente, os seguintes elementos: água, cachaça, azeite de dendê e mel. 31 O ebó (oferenda) é o mecanismo de troca entre os humanos e os deuses, oferendado com intenções específicas. É Exú que media o canal de comunicação entre os humanos e as divindades, estabelecido pelo ebó. 32 Na perspectiva da Filosofia ocidental, o animal-símbolo é a coruja, ela acompanha Atena, a divindade da sabedoria. Na perspectiva da mítica grega, a coruja se aproxima dos deuses, pois está próxima dos céus. Ela só

61

2011a). Na cosmologia afro-brasileira a galinha d’angola é símbolo sagrado, pois é um animal feito dos mistérios dos orixás. Ela teria sido o primeiro iaô (filho de santo) e Oxalá, a teria criado para espantar a morte. Na cultura do candomblé keto, onde também é chamada de Etu ou conquém, “confere-lhe, ao mesmo tempo, um lugar de honra no seu sistema sacrificial”. (VOGEL;MELLO; BARROS, 2007). A galinha d’angola se relaciona com o princípio e o fim, já que está presente no ritual do Bori (feitura da cabeça), em que são iniciados os iaôs, e no Axexê (ritual fúnebre)33, rito de passagem após o falecimento de um iniciado no candomblé. A galinha d’angola, embora tenha asas e possa alçar voos rasteiros, é um animal que se mantém no chão, atado a imanência das coisas que provém da terra, e reserva sua habilidade de voar somente para os momentos emergenciais. “Diferente do caráter contemplativo da coruja, animal com gosto para observar e esperar o melhor momento para a abordagem da presa; a galinha d’angola é rodante, cisca no terreiro, transforma qualquer instante no melhor momento para seus movimentos” (NOGUERA, 2011a, p. 11), tanto no alvorecer quanto no crepúsculo.

Fotografia 15: Luanda - galinha d’angola34

Fonte: Acervo Pessoal da pesquisadora (2018)

alça voo no crepúsculo, no limiar entre o dia e a noite, e tem a capacidade de observar em meio a escuridão, se resguardando dos perigos. Assim, a coruja se porta como um animal símbolo de vigilância e prudência, movendo sua cabeça numa rotação de até 270º, demonstra um alerta constante, observa e contempla primeiramente no alto, antes de agir ou atacar uma presa. 33 Para o povo de santo a morte também é uma iniciação, pois é entendida como uma continuidade. Por isso, que a cerimônia do axexê significa “a origem das origens”. (SOUSA JÚNIOR, 2002) 34 Luanda é minha galinha d’angola, ainda em fase de crescimento é muito arrisca e brava. Corre, voa e esquiva- se por entre as árvores do quintal, dificultando que seja fotografada.

62

Na perspectiva deleuziana, a Filosofia é “a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos” (DELEUZE, 1992, p.10). Os conceitos tidos como pontos de intensidade e devir, nos permitem dizer sobre as coisas e acontecimentos, mas só podem ser avaliados em função dos problemas aos quais eles respondem e no plano sobre o qual eles ocorrem. Para tanto, o que caracteriza atividade filosófica de um modo geral é: 1. Traçar um plano de imanência: um horizonte que coreografa uma imagem do pensamento, isto é, uma maneira que estabelece o que significa pensar; 2. Inventar personagens conceituais: colocar em evidência os personagens que deixaram marcas históricas e que circulam no plano de imanência; 3. Criar conceitos: designar signos que desenham as coreografias no plano de imanência. Nesse jogo, a afroperspectividade se coloca como o plano de imanência; o iaô, o malandro, o griô, o cavalo de santo, o capoeira, o batuqueiro, os orixás, entre outros, aportam-se como personagens conceituais melanodérmicos; o terreiro, a macumba, o axé, a mandinga, encruzilhada, a roda, a ancestralidade, o batuque, etc, se apresentam como conceitos afroperspectivistas (NOGUERA, 2011a). Nessa coreografia, o plano de imanência da afroperspectividade (NOGUERA, 2011a) se desenha pela imagem do pensamento como um terreiro (SIMAS; RUFINO, 2018). Isso porque foi a partir do assentamento dessa comunidade litúrgica - o terreiro (egbé) -, que transferiu-se para o Brasil grande parte do patrimônio cultural negro-africano. Dado que o espaço da cidade fora controlado pelas estratagemas do colonizador, os terreiros de culto se constituíram como exemplos notáveis de resistência e de suporte territorial para a continuidade da cultura do antigo escravizado (SODRÉ, 1988a). Assim, “o terreiro afigura-se como a forma social negro-brasileira por excelência, porque além da diversidade existencial e cultural que engendra, é um lugar originário ou potência social para uma etnia que experimenta a cidadania em condições desiguais”. (SODRÉ, 1988a, p. 19).

Acerca desse plano, o terreiro35 pode ser lido com um assentamento da África qualitativa e reterritorializada, que surge para permitir a prática de uma cosmovisão exilada, que fundada numa perspectiva mítica reverberou formas de expressões culturais rizomáticas e singulares dos africanos da diáspora.

Enquanto comunidades responsáveis pela preservação de um patrimônio mítico-cultural, sempre foram pólos de identificação, propiciando

35 “Os terreiros podem dizer-se de candomblé, Xangô, pajelança, jurema, tambor de mina, umbanda ou qualquer que seja o nome assumido pelos cultos negros em sua distribuição pelo espaço físico brasileiro” (SODRÉ, 1988a, p. 51).

63

desdobramentos de suas matrizes simbólicas através de afoxés (grupos carnavalescos), congadas, maracatus, folias, grupos de samba. Dessa base territorial, teatro de uma memória coletiva ancestral, irradiaram-se para corpos negros ou não inscrições simbólicas que constituiriam aqui depois designado como “jeito negro-brasileiro de ser”. (SODRÉa, 1988).

O terreiro se configurou como um espaço de reterritorialização condensadora, transcultural de trocas e de resiliência frente as adversidades coloniais, reconfigurando as práticas originais africanas. Contudo, nada levou o negro a se distanciar da sua identidade mítica, partilhada por todas as etnias que aqui se encontraram. O entrecruzamento das diferenças produziu “um jogo de contatos, com vistas à preservação de um patrimônio comum na origem (embora diversificado na especificidade do ritual) e à conquista de um território social mais amplo para a etnia negra. (SODRÉ, 1988a, p. 57).

A posição litúrgico-existencial do elemento negro foi sempre a de trocar com as diferenças, de entrar no jogo da sedução simbólica e do encantamento festivo, desde que pudesse, a partir daí, assegurar alguma identidade étnico- cultural e expandir-se. Não vige aí o princípio lógico do terceiro excluído: os contrários atraem-se, bantu também é nagô, sem deixar de ser bantu. (SODRÉ, 1988a, p. 57).

Os cultos afro-brasileiros buscaram acolher as referências sagradas do “outro”: do nativo e do colonizador. Nos terreiros de candomblé, é reservado um espaço de culto ao caboclo, que é reverenciado do mesmo modo que os eguns (antepassados), em representação ao índio brasileiro – o dono da terra -, junto a cosmogonia negra. Na umbanda, os santos católicos foram associados aos orixás, graças à analogia de símbolos e funções. Do mesmo modo, nos ritos umbandistas incorporou-se elementos e símbolos das culturas que emergiram em terras brasileiras, por isso que nas giras reserva-se espaço de culto para o Preto-Velhos, Caboclos, Baianos, Boiadeiros e Marinheiros. Essas reelaborações dos cultos negros no Brasil, indicam que a afirmação das práticas litúrgicas africanas, não buscavam renegar ou destruir as diferenças, assim como muitos procederam na história, mas estabelecer contatos e estratégias de reterritorialização a partir da diversidade e possibilidades postas no contexto social no qual estavam inseridos. (SODRÉ, 1988a).

A afroperspectividade assentada na noção de terreiro “não pode ser compreendida nos limites de determinada reivindicação identitária que torne absoluta em termos étnicos”

64

(SIMAS; RUFINO, 2018, p. 54), pois compreendemos que há nas “práticas culturais recriadas na diáspora, particularidades que evidenciam a predominância de determinados elementos culturais em diferentes manifestações” (Ibidem). O que nos interessa, portanto, é incorporar as dinâmicas simbólicas do terreiro, que nos permitem inventar e ler o mundo a partir de saberes encantados. Tal imagem, pretende ir além das compreensões que entende o terreiro como espaço exclusivo das expressões de culto religioso, pois a sua a inscrição não está firmada nas dimensões físicas dos locais litúrgicos, mas se redefine “como um mundo que inventa e cruza múltiplas possibilidades de ressignificação da vida frente à experiência trágica da desterritorilização forçada”. (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 45).

Terreiro é um tempo/espaço onde o saber é praticado através da experiência do ritual. Pensar as práticas culturais pelas sabedorias do terreiro, abrange então um modo de conhecer que perpassa pela dinâmica do rito. Por ritual, compreende-se o sentido de um acontecimento, uma ação cerimonial que organiza a realidade humana em um campo simbólico36 intensamente vivido, cuja intencionalidade, sendo sagrada ou profana, pressupõe um processo de invenção da vida cotidiana, sempre aplicado a um reconhecimento. No ritual, expressa-se sempre uma unidade de significação, que se reafirma por meio da composição de uma série de gestos simbólicos repetitivos, que exprimem crenças, memórias, valores, desejos, saudações, entre outras finalidades. Sob o aspecto sagrado, afirma-se ser o rito uma “técnica mágica ou religiosa que visa obter sobre as forças naturais um controle que as técnicas racionais não podem oferecer” (ABBAGNANO, p. 1117). Portanto, através da ritualização os seres humanos adentram no mundo sacralizado, encantado, e se fazem presentes na realidade as forças inefáveis.

A experiência do ritual se dá pela construção de um mundo paralelo, ou seja, por meio dele se estabelece uma relação espacial recriada e extraordinária no tempo e espaço das atividades convencionais do cotidiano. Desse modo, o ritual tende a se caracterizar por uma linguagem de apelo mítico, que se revela como um “limiar e ao mesmo tempo o limite, a baliza, a fronteira que distinguem e opõem dois mundos – e o lugar paradoxal onde esses dois

36A palavra símbolo derivada do grego súmbolon (HOUAISS, 2001), significa “juntar” (ABBAGNANO, 2007). “Na antiga Grécia era difundido o costume de partir na metade anéis, moedas ou quaisquer objetos, dando-se uma das metades a um amigo ou a um hóspede. Essas metades, guardadas por ambas as pessoas, de geração em geração, permitiam que os descendentes dos dois amigos se reconhecessem. Esse signo de reconhecimento chamava-se símbolo. Platão, relatando o mito de “Zeus, que, querendo castigar o homem sem destruí-lo, partiu-o em dois”, concluí que daí por diante “cada um de nós é o símbolo de um homem” (O banquete, 189 – 193), a metade que procura a outra metade, o símbolo correspondente [...] evocando a sua parte correspondente, remete a determinada realidade que não é decidida pela convenção, mas pela recomposição de um inteiro”. (ABBAGNANO, 2007, p. 1069).

65

mundos se comunicam, onde se pode efetuar a passagem do mundo profano para o mundo sagrado”. (ELIADE, 1992, p.19).

A história humana se desenvolveu sob duas modalidades de experiência – a sagrada e a profana –, que são diferentes posições que o homem conquistou frente ao cosmo, na busca de estabelecer uma relação compreensível com a realidade. A experiência sagrada está associada a uma dimensão mítica, que remonta aos princípios da civilização, e se funda numa visão cosmogônica, em que forças extraordinárias manifestam-se na natureza e nas ações humanas. Já a experiência profana, uma descoberta recente do espírito humano, surge com o advento do desenvolvimento das ciências empíricas entre os séculos XVI e XIX. A partir de então, o homem dessacralizou a natureza e assumiu uma existência objetiva frente ao mistério. Para a consciência moderna, as necessidades fisiológicas, tais como a alimentação e sexualidade, não é, em suma, mais que um fenômeno orgânico, assim como as manifestações da natureza são fenômenos que atendem tão somente às necessidades física e química. (ELIADE, 1992).

A Filosofia Afroperspectivista posta pela noção de terreiro afigurada pela dimensão do ritual, mira transgredir qualquer tentativa de ajuste a esquemas binários, pautados nos princípios da lógica formal, logo se “desencadeia sobre a dinâmica de profanação do sagrado e sacralização do profano” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 43), considerando a experiência sempre como possibilidades de imbricação. Assim, a prática do saber coreografadas pelos ritos, assume variadas formas de invenção da vida: nas festas, nas brincadeiras, nos jogos e nas alegorias da realidade, codificando-se “como uma experiência inventiva que inscreve modos de coexistência e interação com as mais diversas formas de organização da vida”. (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 45).

Nas festas, brincadeiras de risos ou de valentias, nos jogos de sorte ou azar, nas seduções, movimentos, invocações e transes, a vida é significada a partir da reinvenção de outros tempos/espaços. A brincadeira de roda é também a circunscrição de um tempo/espaço em que o saber é praticado como rito: terreiro. Por ali cruzam saberes, poderes mágicos, imantados nos limites dos corpos e memórias. (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 45).

Nessa ladainha, os personagens conceituais melanodérmicos que circulam no plano de imanência da afroperspectividade como terreiro, deixam rastros de galinha d’angola,

66

assentam-se suas expressões no chão, dialogam com as forças da terra e “escrevem conceitos com os pés” (NOGUERA, 2011a, p. 14): dançam, sambam, gingam, driblam e giram, traçando caminhos pela linguagem do corpo. Transgridem o principal eixo de rotação do conhecimento ocidental - centrado na cabeça/razão -, para os membros inferiores - quadris e pés -, que possibilitam o descentramento e uma reelaboração simbólica do espaço, como um ato subversivo. Na história da escravidão, a dança se impôs como um ato libertador, pois movimentando-se por meio dela, o negro deixava momentaneamente de se perceber como escravizado, refazendo o espaço ordenado pelo colonizador, nos termos de uma outra orientação (SODRÉ, 1988a). Pela via de um sistema simbólico distinto daquele manejado pelo opressor que dominava o sistema econômico e político, os corpos negros dançantes, nas suas giras e gingas, rompiam os limites fiados pela territorialização dominante. Nas culturas de matriz africana, construídas pela via da tradição oral37, o corpo afirmou-se como um suporte de comunicação, em que a palavra, a dança, a música e a visibilidade, tomam o lugar de um saber racionalizado, abstrato e sistematizado pelo conceito. O corpo é então o mecanismo de linguagem e o aporte da cosmovisão de mundo das tradições orais, portanto, é por meio das performances corporais que se repercutem o sentido dos ritos e das suas celebrações. Nesse sentido, “os corpos africanos, plasticamente modelados na confluência de forças e energias da natureza, assumiram esse perfil como expressão cultural de suas vivências, cosmovisões e formas de inserção no mundo. (ANTONACCI, 2015, p. 125).

Para o Brasil foram transplantadas culturas de tradição oral, por isso, as culturas afro- brasileiras exprimem a sua história pela escrita corporal, cujos processos de comunicação se desenvolvem numa cognição experimental que é repassada entre as gerações por meio da partilha comunitária vivenciadas no aqui e agora, como uma tradição viva. Assim, “a dança é um ponto comum entre todos os ritos de iniciação ou de transmissão do saber tradicional. Ela é manifestamente pedagógica ou “filosófica”, no sentido de que expõe ou comunica um saber ao qual devem estar sensíveis as gerações presentes e futuras”. (SODRÉ, 1988a, p. 124).

37 Citando Bidima, Antonacci (2015) afirma que a palavra é o fundamento na constituição e do espaço público em África. Sob esse aspecto deve se atentar para a definição que “a oralidade não se reduz à palavra, pois o gesto e toda a performance corporal são artes constitutivas de sua ex-pressão: “Há oralidade onde há ex-pressão, que entendemos ato de surgir do cruzamento da palavra, do corpo, do Sujeito no mundo, ação e reação””. (BIDIMA apud ANTONACCI, 2015, p.24).

67

(...) tradições cantadas, declamadas, dançadas e vividas em presença de corpos em redes, materializam-se em estéticas não-verbais de expressão e comunicação. Perenizadas em corpos cultivados e instrumentos musicais engendrados a fonemas de suas línguas, associam ao corpo e ritmo, tons e melodias (...). (ANTONACCI, 2015, p. 223).

O conhecimento escrito pela afroperspectividade não é compreendido como um acúmulo de informações, nem tampouco se reduz a signos de uma língua, mas é falado na gramática da experiência do corpo próprio. Nesse sentido, a filosofia africana se distancia da cultura ocidental porque está fundada propriamente no âmbito da presença dos corpos que narram, tocam, cantam, rodopiam e ritualizam; “(...) não é algo abstrato que possa ser isolado da vida. Ela envolve uma visão particular do mundo, ou melhor dizendo, uma presença particular no mundo, mundo concebido como um Todo, onde todas coisas se religam e interagem”. (HAMPATÊ BÁ, 1982, p. 182-183).

O corpo na Filosofia Afroperspectivista é tal como um terreiro, pois é um “tempo/espaço onde o saber é praticado” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 53). É um território por onde traçam os caminhos da sabedoria de um grupo, e seus códigos e significações são ainda inseridos numa totalidade mais ampla. Atos físicos, técnicos, mágicos coreografados pela energia do corpo são associados à cosmologia, isso porque, a materialidade corpórea é concebida como um microcosmo, isto é, uma extensão da unificação cósmica, onde se integram todas as dimensões da existência. Nos eventos festivos e cerimoniais, as danças contemplam um caráter mais amplo do que a simples performance ou diversão, pois “reatualizam-se e revivem-se os saberes do culto. A dança, rito e ritmo, territorializam sacralmente o corpo do indivíduo, realimentando-lhe a força cósmica, isto é, o poder de pertencimento a uma totalidade integrada”. (SODRÉ, 1988a, p. 124).

Na festa do tambu38, coreografada pela dança de umbigada e pelas batidas do tambu, quinjengue e matraca, são formadas duas fileiras, por homens e mulheres, como que em uma quadrilha. Quando a moda começa, todos bailam e a respondem o coro: “Acabou a escravidão, acabou a escravidão, mas que beleza! Negro comia no cocho, negro comia no cocho, agora come na mesa!”39 Os homens, em conjunto, se aproximam em direção a fileira das mulheres para tirá-las para a dança. As mulheres avançam junto aos homens até o seu

38 Também conhecida como batuque de umbigada, é um tipo de samba rural, nascente da comunidade escrava de origem bantu, que trabalhava nas regiões de plantio de cana de açúcar e café no oeste paulista, na região do vale do Rio Tietê. 39 Modo da tradição popular do batuque de umbigada.

68

lugar de saída e, na sequência, bailando no compasso do batuque, retornam juntos até o centro imaginário das fileiras, onde começam a dançar com passos laterais e giros, e num dado momento, encostam os umbigos, dando uma umbigada.

A performance corporal do batuque de umbigada traduz uma cosmogonia. Na concepção africana bantu, o feminino e o masculino não são tidos como oposições, mas como energias complementares. Na simbologia da umbigada, ao tocarem os umbigos, homens e mulheres celebram a fertilidade e a fecundidade da vida em todos os seus aspectos, visto que o umbigo é concebido como o princípio gerador da vida. No ventre materno o umbigo é a nossa primeira boca, o canal por onde a vida que está sendo gerada, se alimenta. Após o nascimento, essa ligação é rompida, pois a existência só é possível pelo corte do cordão umbilical que conecta o bebê à mãe. Na dança de umbigada, materializa-se a visão de restabelecimento da unidade cosmológica, pois ao umbigar-se, celebra-se à fecundidade da vida e o dom da concepção, reafirmando os laços entre as pessoas e a continuidade da ancestralidade.

Fotografia 16: Batuque de Umbigada, Ecobantu, 2018

Fonte: Acervo de Ivan Bonifácio (2018)

69

Nessa visão de mundo, a visibilidade da dança funciona como transmissão/recepção de mensagens, valores e imaginários, fazendo com que o ritmo modulado nas performances corporais seja um elemento fundamental na filosofia da existência afroperspectivista. “O mundo africano não é feito e silêncios” (ANTONACCI, 2014, p. 149), a música relaciona-se integralmente a visão de mundo africana e está relacionada a todos os aspectos da vida, desde o nascimento à morte. Para tanto, nas tradições de matriz africana, não é apropriado conceber a música por uma lógica matematizada, ordenada de tons e sons em sucessão, pois ela evoca uma dimensão muito mais ampla, uma categoria ontológica que traduz uma holonicidade40, uma harmonia entre o ser, o cosmo, os deuses e os antepassados.

Na filosofia bantu, o universo é compreendido sob uma noção pantarreica41, enraizada numa concepção musical, cuja dinâmica produz “um movimento perpétuo e universal de compartilhamento e intercâmbio das forças da vida” (RAMOSE, 1999, p. 55). Nesse sentido, a atitude e reação africanas voltadas à dança passa a ser um imperativo epistemo-ontológico, significando que dançar é estar em sintonia com o ser em relação a todas dimensões da existência. Possivelmente é por isso que no “Norte de Sotho, por exemplo, em uma das línguas bantas, fala-se que Kosa ga e theeletswe o e duletse (sentado você não pode ouvir a música). (RAMOSE, 1999, p. 56).

Os movimentos corporais modulados pelas batidas dos tambores são canais de comunicação que sustentam os encontros entre os mundos visível e invisível, possibilitando uma integração constante entre o presente (corpo vivido), o passado (ancestralidade) e o futuro (aqueles que virão) (RAMOSE, 1999). Desse modo, a dança, a música, e o canto incorporados pelos vivos se articulam indissociavelmente a memória ancestral e a expectativa daqueles que virão, significando, portanto, que o corpo envolvido no rito nunca é tido como individualizado e personalizado, mas como a continuidade de um corpo comunitário que se viabiliza códigos simbólicos de uma tradição vivida que é sempre renovada e potencializada nas sensibilidades compartilhadas. (ANTONACCI, 2015).

40 O termo Holonicidade é utilizado por Ramose (1999) como uma ampliação do conceito de universo holístico. Tal definição “fala contra a fragmentação do ser, especialmente através da linguagem e define a filosofia africana como um entendimento do ser como uma unicidade” (RAMOSE, 1999, p. 55). 41 Referente ao termo grego panterei (“tudo flui”), utilizado por Heráclito na sua concepção cosmológica, que atribui que a arké (principio ordenador) da physis (totalidade de tudo que é) é o devir, isto é, movimento, o fluxo contínuo (BORNHEIM, 2007).

70

Diferentemente da episteme ocidental42 que concebe o humano como um ser individualizado – na filosofia bantu43 –, a noção de pessoa está intimamente ligada à comunidade. Tal concepção pode ser ilustrada a partir da filosofia Ubuntu, partilhada pelos grupos étnicos de língua banta (ndebele, swati, xhosa e zulu). A acepção etimológica da palavra Ubuntu, formada pelo prefixo ubu – que evoca a ideia de ser -, e pela raiz ntu - que indica os modos distintos de existência -, designa não apenas uma “categoria ontológica e epistemológica no pensamento africano do povo de língua banta” (ROMOSE, 1999, p. 50), mas também uma posição ética, que diz respeito a um modo de existir (NOGUERA, 2011b). Ubu, “aberto à existência é sempre orientado para um desdobramento, que é uma manifestação concreta, incessantemente contínua, através de formas particulares e modos de ser” (ROMOSE, 1999, p. 50). Nesse sentido, o ser é concebido como um vir-a-ser (devir), um movimento sempre orientado para um ntu, que se coloca como “a parte essencial de tudo que existe, tudo que está sendo e se transformando”. (NOGUERA, 2011b, p. 148). Ubuntu como uma condição própria do ser, pode então ser traduzido como “o que é comum a todas as pessoas”. A partir da máxima zulu e xhosa - umuntu ngumuntu ngabantu -, pode-se exprimir a seguinte premissa: “ser um humano é afirmar sua humanidade por reconhecimento da humanidade de outros e, sobre estas bases, estabelecer relações humanas com outros” (RAMOSE, 1999, p. 51). Em linhas gerais, compreende-se que na ética de ubuntu “uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”, portanto, um ser humano só se realiza quando humaniza outros seres humanos, “o que significa que uma pessoa precisa estar inserida numa comunidade, trabalhando em prol de si e de outras pessoas”. (NOGUERA, 2011b, p. 148).

A noção de comunidade na ética de Ubuntu possui três dimensões: a dos seres viventes (pessoas vivas), a dos seres mortos (ancestrais) e a dos seres do futuro (ainda-a-ser-

42 O aspecto comunitário é um valor distintivo entre o pensamento africano e ocidental, que por sua vez privilegia o indivíduo, nas suas características social e psíquica. Do latim individuum, o termo se refere à “corpo indivisível”. (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996, p. 140). Como um dos pressupostos do pensamento liberal, o individualismo formulou-se como um dos aspectos básicos para autonomia do sujeito em agir conforme os seus interesses. 43 O missionário franciscano belga Placide Tempels foi o primeiro a escrever sobre a ontologia bantu. Salvo suas intenções catequizadoras, ele faz interessantes apontamentos sobre a concepção bantu, atribuindo a noção de pessoa a força vital. “O bantu não é um ser sozinho [...] ele se sente e se sabe como uma força vital, como estando em relação íntima e pessoal com as outras forças que atuam acima e abaixo dele na hierarquia das forças. Ele sabe que ele próprio é uma força vital, capaz de influenciar algumas forças e de se influenciar por outras. Fora da hierarquia ontológica e da interação de forças, não existe ser humano, nas concepções dos bantus”. (TEMPELS apud SODRÉ (1983, p. 131).

71

nascido). Considera-se que os ancestrais, seres que partiram do mundo dos vivos, tiveram sua existência interrompida apenas no plano concreto, do corpo e da vida cotidiana, pois continuam a viver em um mundo desconhecido para aqueles deixados para trás. Nesse sentido, os ancestrais assumem o sinônimo de mortos-viventes, já que continuam a viver na memória comunitária apesar da saída do mundo dos vivos (RAMOSE, 1999). Do mesmo modo, os seres do futuro, que ainda estão por vir, dependem invariavelmente das ações no presente dos seres viventes para que possam se tornarem de fato nascidos. Levando em consideração essas três dimensões, no entendimento de ubuntu, o ser envolve esses três níveis de existência humana, o que indica uma estrutura onto-triádica de ser, sendo que dois desses níveis referem-se a seres invisíveis: os mortos-viventes e os seres- ainda-não-nascidos. A realização de uma pessoa está sempre na interação com estes níveis da existência, assim como na relação com todas as outras pessoas da comunidade. Com efeito, “ubuntu como modo de existir é uma re-existência, uma forma afroperspectivista de configurar a vida humana coletivamente, trocando experiências, solidificando laços de apoio mútuo e aprendendo sempre com os outros” (NOGUERA, 2011b, p. 149). Tal posição ética contribui para uma visão de mundo mais comunitária e solidária, já que a felicidade no plano presente, depende da continuidade da memória ancestral e da responsabilidade com os seres que virão a existir. No plano da afroperspectividade não há uma oposição categórica entre vida e morte, espírito e matéria, sagrado e profano44, natureza e cultura. Esses dualismos não são disjunções, mas dinâmicas substanciais e complementares que estabelecem as relações de significação entre o humano e as dimensões da existência. Nesse horizonte, diferentemente da concepção ocidental, a natureza não é tida como um objeto, algo separado do humano, que deve ser controlada, ordenada, racionalizada, explicada, civilizada e superada. Pelo contrário, os corpos e as expressões culturais cruzados pelas matrizes africanas “convivem com uma natureza culturalmente incorporada” (ANTONACCI, 2015, p. 149), fundindo as energias do reino vegetal, animal e mineral às suas cosmovisões.

A exemplo do rito iniciático do Bori45, a galinha d’angola é um artefato simbólico nas cerimônias de iniciação, e há uma identificação direta entre ela e o iaô (iniciado), como podemos acompanhar na descrição abaixo:

44 Nos cultos de matriz africana, as entidades e as forças cósmicas sagradas apresentam características humanas: desejam, têm paixões e vaidades, por isso a elas devotam alimentos e objetos mundanos. 45 Bori (feitura da cabeça), ritual do candomblé em que são iniciados os iaôs (filhos de santo).

72

Tal como o iaô, observaram, a galinha d’angola é “catulada e raspada”. Além disso, tem seu corpo coberto de pintas. Traz no alto da cabeça um chifrinho, parecido com o ósùu do iaô. Quase fala, como aliás, o próprio noviço. E, como este, é também espantada e arisca. Finalmente, acrescentaram, à guisa de conclusão, que a galinha d’angola era, pois, um bicho “feito”, sendo também isso semelhante ao iaô. (VOGEL;MELLO; BARROS, 2007, p. 25).

Fotografia 17: Initiation, Candomblé Opo Aganju, Salvador, Brasil, 1972 - 1973

Fonte: Acervo Digital da Fundação Pierre Verger (s/d)

Na cosmologia do candomblé, “todas as coisas, inorgânicas e orgânicas, plantas, animais e homens são igualmente seres encantados (...) por detrás das suas múltiplas máscaras, sejam elas minerais, animais ou humanas, espreita a matéria primordial e divina à qual foram subtraídos” (VOGEL; MELLO; BARROS, 2007, p. 26). As artes do corpo, sons, ruídos, vozes, técnicas de trabalho, fenômenos naturais e todas coisas que nos circundam materializam símbolos e as energias vitais das forças cósmicas. Nesse sentido, a dimensão espiritual/sagrada não é compreendida como algo transcendente, metafísico, que está fora da materialidade - além-mundo -, mas compreende a totalidade existencial de todos as coisas, na qual todos os seres interagem e se relacionam sob o mesmo fundamento.

Xangô gostava de sentar ao lado da forja para ver Ogum trabalhar. (...) Era Iansã que acionava os sopradores para atiçar o fogo. O vento soprava e fazia: fuku, fuku, fuku. E Ogum batia sobre a bigorna: beng, beng, beng (VERGER, 1977, p. 35 apud ANTONACCI, 2014, p. 149).

73

Na Filosofia Afroperspectivista, a terra (a natureza) é propriamente o sagrado e “guarda o segredo Invisível” (SODRÉ, 1988a, p. 51), já que é o campo de atuação das forças cósmicas - os orixás, voduns e inquices. Nessa perspectiva, restitui-se uma dimensão de encantamento frente ao mundo, visto que o ciclo da vida humana está inserido num plano cosmológico, em que forças universais dançam, lutam e se movimentam. Ao passo que a natureza é espiritualizada por forças divinas, com as quais os humanos se relacionam, “gera uma consciência ecológica, no sentido de que o indivíduo se faz simbolicamente parceiro da paisagem (...) fazendo do espaço como um todo objeto de preservação patrimonial” (SODRÉ, 1988a, p. 63).

Na concepção epistêmica assentada na lógica do terreiro, os símbolos, as mensagens e os segredos dos ritos, materializam-se no campo sensível, “passam pelos músculos do corpo, e dependem – ritualizados que são – do contato concreto dos indivíduos, através do qual o axé se transmite (...)”. (SODRÉ, 1983, p. 129). O axé é força viva e distingue-se da abstração do conceito, pois é um saber iniciaticamente vivido e transmitido pelo corpo, pela música e pela dança. Na cosmovisão africana todos os seres são dotados de força, esta concebida como uma energia criadora, se renova e se multiplica, não só nos ritos de caráter religioso, mas também na experiência comunitária e festiva por meio da dança e do ritmo. Essa energia para os nagôs é denominada de asé (axé)46 e para os bantus de muntu. O axé e o muntu possuem a mesma acepção, e remetem ao sentido de uma força vital que atua como o princípio dinâmico em todas as coisas viventes e não viventes, e sem qual nada poderia ter existência e nem transformação. (SODRÉ, 1983). Nas manifestações culturais afro-brasileiras – maracatu, jongo, tambú, capoeira entre outras expressões afro que contemplam a música e a dança -, o axé é concebido como uma força comunitária que integra tudo que está separado: os timbres sonoros emanados pelos tambores são encarnados, vibram nos corpos que dançam, desenhando as batidas executadas pelos batuqueiros47. Nos corpos rodantes, que sambam, que gingam, que cantam e tocam, o axé é potência que unifica as camadas dos movimentos sonoros e visíveis, e tem a intensidade de multiplicar-se no espaço e afetar todos os demais corpos envolvidos no acontecimento.

46 Asé é uma denominação da cosmogonia iorubá (nagô), para os bantus é denominada de muntu, mas possui a mesma acepção. “Os bantus dizem que o muntu tem a “força de conhecer” (“udi na Buninga bwa kuyuka”, em língua kiluba). E os nagôs são cientes de que o conhecimento efetivo depende da absorção de axé”. (SODRÉ, 1983, p. 130). 47 Certa vez, ao final de uma intensa apresentação do grupo de maracatu o qual participo, uma aluna de 10 anos me abordou e disse: “Quando os tambores começam a tocar o nosso coração bate no mesmo ritmo”.

74

Na perspectiva dos saberes de iniciação – umbanda e candomblé -, o axé é força que “mantém-se, cresce, diminui, transmite-se em função (ontológica) do indivíduo com os princípios cósmicos (orixás), com os irmãos de linhagem, com os ancestrais, com os descendentes”. (SODRÉ, 1983, p. 129-130). Desse modo, os conhecimentos iniciáticos, evocados pelos toques sagrados pretendem possibilitar a absorção da força vital, inserindo o indivíduo no ciclo das trocas espirituais entre vivos e outros seres48. A troca dinamizada pelo apelo estético do rito não é denominada pela acumulação linear de um resto (no sentido de lucro/diferença/excedente/sobra), como na concepção ocidental, porque ele é sempre simbólica e, portanto, reversível. (SODRÉ, 1983). Nos ritos litúrgicos de tradição africana, a música e a dança funcionam como canais de transmissão de axé, possibilitando a comunicação com as camadas sagradas e ancestrais. Nos rituais do candomblé e da umbanda, ritmo conduz os iniciados aos estados de transe, que movimentando-se pelo espaço com passos rodantes, expressam gestos simbólicos das entidades. “A música responsorial49, a polirritmia50 dos atabaques e o axé existentes fazem realizar o fenômeno da incorporação das divindades que, através de seus cavalos-de-santo51, realizam suas danças sagradas” (BIANCARDI, 2006, p. 306). Assim, o corpo no espaço de culto, seja no congá ou nos xirês é um território entrecruzado pela dinâmica profana e sagrada, pois as entidades - os princípios universais -, “se mostram através do corpo das pessoas, que se tornam um retrato vivo do sagrado”. (SOUSA JÚNIOR, 2002, p. 128). Nos ritos religiosos de matriz africana, os tambores são considerados sagrados, e denominados de Ilús ou atabaques. Os tambores têm uma gramática própria, que dá sustentação à comunicação na cultura oral, pois seus desenhos rítmicos narram histórias e modulam as variações das danças que incorporam os elementos simbólicos dos deuses. Nos cerimoniais do candomblé e da umbanda, a atabaque além de ser um instrumento musical, é um objeto ritual “detentor de significados fundamentais à existência do próprio culto, mantendo sua unidade litúrgica”. (BIANCARDI, 2006, p. 310). O atabaque é feito com ripas em madeiras e aros de ferro que sustentam o couro do animal. Atribui-se ao tambor um caráter sagrado, pois ele é tido como uma força cósmica, viva, já que integra os três elementos primordiais da natureza – vegetal (madeira/árvore),

48 Esses aspectos desafiam a razão moderna, na medida que a realidade do Ocidente é organizada a partir de dicotomias – morto/vivo, real/fantasia, natural/humano, bem como pela ordem da abstração dos conceitos. 49 É um canto coletivo, formado de um canto solo seguido da resposta de um coro. (BIANCARDI, 2006). 50 Refere a ritmos diversos executados ao mesmo tempo. (BIANCARDI, 2006). 51 Cavalos-de-santo, também chamados de iaôs são as pessoas preparadas religiosamente para incorporação dos orixás. (BIANCARDI, 2006).

75

mineral (ferro) e animal (couro). Os tocadores de atabaques -, são alfabetizados na língua da percussão, e aprendem, muitas vezes, desde criança, o toque adequado para cada orixá, vodum ou inquices. Nas tradições do candomblé keto os tocadores são chamados de ogãs; os jejes chamam de runtós, e os seguidos do rito de angola os intitulam de xicarangomos. Nas linhagens da nação keto e jeje, os atabaques são tocados com baquetas feitas de pedaços de galhos de goiabeira, chamados de aguidavis. Já no candomblé angola e na umbanda os atabaques são tocados com as mãos. Podemos dizer, que na linguagem percussiva, o tambor é um livro e o aguidavi ou as mãos que percutem no couro, são as canetas poderosas que escrevem as aventuras das forças divinas no universo. (SIMAS; RUFINO, 2018). Nos terreiros de candomblé, a orquestra é formada por três atabaques (rum, rumpi e lé), agogô ou gã, agabê, adjá e chocalhos em metal (BIANCARDI, 2006). Na umbanda, o grupo percussivo chamado de curimba, embora em alguns terreiros possa contemplar o uso do agogô, dá-se ênfase à tríade de atabaques: rum – o maior de todos e com um som grave; rumpi – o intermediário e com timbre médio; e lé – o menor que possui um registro agudo. Os três atabaques “completam-se enquanto linguagem musical, formando, por justaposições polirrítmicas, os toques dos deuses africanos” (CARNEIRO apud BIANCARDI, 2006, p. 312), portanto, constituem um só corpo, sendo: o rum a cabeça que comanda o ritmo, o rumpi o tronco que sustenta a base, e o lé as pernas que dança repiques entre os dois primeiros. (BIANCARDI, 2006).

Fotografia 18: Atabaque rum

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora (2018)

76

Os toques conduzidos pelos tocadores dramatizam histórias que expressam conquista, alegria, tristeza, conflito, harmonia e suavidade características as aventuras dos deuses. O toque Igbin52 do candomblé Keto é um dos mais nobres e é dedicado a Oxalá – deus da criação -, mais especificamente a Oxalufã, concebido como a “manifestação de Oxalá como um ancião, dotado da sabedoria dos mais velhos, que baila de forma lenta e curvada, apoiado em um bastão sagrado, o apaxorô” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 59). Igbin significa caramujo, por isso o ritmo do toque se assemelha a lentidão do caminhar desse animal. Do mesmo modo, o bailado incorporado pelo filho ou filha de santo, é coreografado calmamente e com prudência, visto que materializa no corpo as faces do orixá, nesse caso, “o toque de paciência, observação, peso do mundo e, ao mesmo tempo, de perseverança” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 60). Dessa linguagem corporal se subtrai a sabedoria posta no oriki53 iorubá: “Igbi ti o jade ni karrabun, k le ri orum” (A lesma que não sai do caracol, não pode ver o sol). O toque adarrum54 de Ogum – divindade do ferro e da guerra -, se caracteriza pela rapidez e pelo ritmo contínuo que evoca o caráter marcial da força guerreira. Assim, como o toque ilú55 (também conhecido como “quebra-pratos”) de Iansã – divindade dos ventos, que pode se manifestar em fúria -, “é muito rápido e repicado, representando a agitação da senhora dos ventos, controladora de relâmpagos e tempestades” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 62). Já o toque ijexá56 de Oxum – rainha das águas doces -, o ritmo é cadenciado e tocado com as mãos, e expressa suavidade, cuidado e a beleza do poder feminino. A linguagem dos toques sagrados é corporificada na dança dos orixás que, a partir dos fundamentos das culturas dos terreiros, expressa no corpo a estética cosmogônica que advém do panteão dos deuses africanos. O corpo embalado pelo ritmo incorpora as características de cada orixá, narrando por meio dos movimentos da dança sua história e símbolos. Os passos executados não são puramente representativos ou abstratos, já que os movimentos encarnam expressões concretas que atualizam a dimensão da força e da atividade de cada orixá. Assim, a dança à Oxóssi, por exemplo, orixá caçador e protetor das matas, é executada encarnando

52 Ouça em: https://www.youtube.com/watch?v=gIfAEPXksz8&list=PLDtsbz5z61zxNOJsIsUL9u1HcPbb4g_PM&index=12 53 A palavra Oriki, é formada por duas palavras, Ori = Cabeça e ki = Louvar / saudar. Então, Oriki significa, saudar ou louvar a algo que estamos nos referindo. Sendo as palavras portadoras de força e axé, dá-se aos orikis o poder de invocarem por si próprios a força vital. 54Ouça em: https://www.youtube.com/watch?v=j7Ar4VNv_nk&list=PLDtsbz5z61zxNOJsIsUL9u1HcPbb4g_PM&index=2. 55 Ouça em: https://www.youtube.com/watch?v=YKFUgpfGP94&list=PLDtsbz5z61zxNOJsIsUL9u1HcPbb4g_PM&index= 14. 56 Ouça em: https://www.youtube.com/watch?v=vpydvWVOiQ4.

77

propriamente a ação da caça, em que se empunha um arco flecha – o ofá, símbolo de Oxóssi -, e desenvolvem-se movimentos que expressam a perseguição de um animal. Assim, os movimentos evocam ao mesmo tempo a força guerreira do caçador, sua atenção para o apresamento e a suavidade do caminhar por entre as matas para não espantar a presa. Já a dança de Ogum – orixá da guerra e do ferro – encarna um estado de batalha, portanto, é esteticamente agressiva, executando movimentos ataque com espadas e defesa com escudos57. O ritmo e dança se configuram na Filosofia Afroperspectivista como discursos que escrevem pela estética musical, os desenhos da memória ancestral e dos poderes divinos. Nesse sentido, a gramática dos tambores e dos movimentos corporais são como textos sonoros e visuais – respectivamente -, que “(...) conversam com as mulheres, homens e crianças, modelam condutas e ampliam os horizontes do mundo” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 58). Sob esses aspectos, o corpo que dança e toca subjaz como suporte de conhecimento e memória de um grupo, pois “ritualiza-se o mito em música e dança, crença e arte, para que ele continue vivo para a comunidade, cumprindo assim sua função modelar”. (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 59). Historicamente, os toques sagrados passam integrar a o mundo profano, influenciando as rítmicas das escolas de samba, dos afoxés, do maculelê, da capoeira e dos maracatus. A exemplo disso, é notável, para quem conhece, que o agueré de Oxóssi – divindade da caça -, “anunciava a bateria da Mocidade Independente de Padre Miguel e, o ilú – também conhecido como agueré de Iansã – marcava as baterias da Portela e do Império Serrano” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 61). Nessa mesma batida, os tambores de maracatu (alfaias) da Nação Estrela Brilhante de Igarassú são associados aos ilús (tambores rituais do candomblé), e os batuqueiros, que são sempre homens, aos ogãs (tocadores de tambor ritual). Os batuqueiros do naipe de alfaia, utilizam duas baquetas, a de marcação é mais grossa e acentua a batida mais forte no tambor, e a de resposta, que é um galho de goiabeira, certamente, como uma possível referência aos aguidavis, baquetas utilizadas na execução das batidas nos atabaques do candomblé keto ou jeje.

57 Essas constatações foram feitas a partir dos meus estudos sobre a Dança dos Orixás, no grupo Abayomi, sob orientação de Evelin Helen Sousa Antônio Farias. Nesse processo, também fiz um levantamento de vídeos disponíveis nas plataformas digitais e acompanhei a apresentação do grupo percussivo Ilú Obá de Min de São Paulo, que executa um trabalho sobre os ritmos e danças sagradas dos xirês.

78

Fotografia 19: Batuqueiro tocando alfaia em ensaio da Nação Estrela Brilhante de Igarassu, 2016

Fonte: Álbum digital da Nação Estrela Brilhante de Igarassu (s/d)

Acerca desses exemplos, os desfiles carnavalescos dos maracatus e das escolas de sambas podem ser lidos como extensões dos cultos religiosos africanos, e “o tambor é talvez a ponte mais sólida entre o terreiro e a avenida” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 61). Nesse sentido, se traduz novamente que a separação entre sagrado e profano nunca é pertinente para as concepções de mundo e de saberes afro-brasileiros. A fragmentação que a diáspora negreira impôs se reconstituiu em instituições associativas de invenção, que dissolveram as fronteiras das identidades de culto e dos folguedos no Brasil. (SIMAS; RUFINO, 2018). A Filosofia afroperspectivista assentada na noção de terreiro riscado pela pemba das encruzilhadas de macumbas, evoca invariavelmente o conceito afroperspectivista de mandinga. Em sua acepção geral, a palavra mandinga designa o sentido de feitiço, magia ou bruxaria, isto é, a capacidade de intervir nos fenômenos naturais para certos fins. Provavelmente, o termo mandinga na tradição afro-brasileira, emerge como uma referência aos povos mandingas, conhecidos como excelentes feiticeiros (REGO, 1968). Os mandingas58 foram trazidos ao Brasil durante o período escravista e, em grande medida, compuseram os grupos de africanos islamizados, conhecidos como negros malé, na Bahia e, alufá, no Rio de Janeiro. (RIBEIRO, 2015).

58 Os mandingas habitam a região da África ocidental, banhadas pelo rio Níger, Senegal e Gâmbia, que entre os séculos XIII e XV, correspondia ao antigo reino de Mali. Fazem parte do tronco das línguas mandê (MATTOS, 2009).

79

Na sua obra “Viagem Pitoresca através do Brasil”, o pintor alemão Rugendas (1972), faz interessantes considerações sobre os costumes africanos no Brasil, destacando questões inerentes a “mandinga”:

Os feiticeiros chamam-se aí "mandingos" ou 'mandingueiros". Emprestam- lhes, entre outros poderes, os de lidar impunemente com as serpentes mais venenosas e de preservar as outras pessoas do efeito de seu veneno por meio de cantos e de exorcismos. Estes dizem fazer sair os répteis reunir-se em torno dos mandingueiros; agem, também, sobre outros seres venenosos ou malfazejos, e essa espécie de feitiçaria domina principalmente as cascavéis. Os feiticeiros têm por hábito domesticar serpentes não-venenosas que são consideradas dotadas de força sobrenatural. Teme-se, principalmente, o efeito da mandinga, espécie de talismã por meio do qual o mandingueiro pode fazer morrer de morte lenta todas as pessoas que o ofendem, ou que ele deseja prejudicar; onde, também, servir-se da mandinga para um feiticeiro qualquer. (RUGENDAS, 1972, p. 254).

No relato de Rugendas, observa-se o conhecimento da mandinga como um atributo “mágico” presente nos costumes negros no Brasil, posto na sua narrativa como uma habilidade de dominar as “serpentes mais venenosas”. Podemos especular que as “serpentes” são como ameaças à integridade física e espiritual do negro, portanto, a mandinga é tal como uma estratégia/recurso de proteção e realização de feitos, conferindo ao mandingueiro o poder de “fechar o corpo” frente as adversidades. Fala-se na tradição do samba e da capoeira que: “Quem não pode com mandinga não carrega o patuá” ou “quem tem medo de mandinga não carrega um patuá”. Nas narrativas orais, tal ideia parece estar associada a artimanha dos negros fugitivos de etnias diversas que tentavam se passar por negros mandingas que, oriundos de uma tradição islâmica, eram letrados e, por isso, assumiam funções privilegiadas no sistema escravista, tais como de capitão do mato. Os negros mandingas, muitas vezes eram identificados por carregarem dependurados no pescoço, cordões com trechos do alcorão, escritos em árabe, que eram chamados de patuás, uma espécie de talismã (objeto mágico), consagrado a partir das suas crenças. Acontece que os negros que não eram mandingas, ao fugirem, utilizam “patuás falsos”, sem os escritos árabes, com a intenção de ludibriar os capitães do mato mandingas, caso por eles fossem pegos, tendo então a possibilidade de se livrar das punições. Contudo, negro mandinga era astuto e pedia para o negro fugidio ler os trechos em árabe transcritos no patuá. Se o negro não conseguisse ler era interditado pelo capitão do mato que dizia: “Quem não pode com mandinga não carrega o patuá”.

80

Nessa transcrição presente nas narrativas da sabedoria oral, a mandinga está associada a uma artimanha dos escravizados para se livrarem dos perigos, ou seja, como um recurso que seduz e engana para um determinado fim. Porém, para ludibriar com a mandinga é preciso estar preparado e munido de recursos que permitem respostas diante das ameaças. Nos costumes do povo de santo “só quem pode com mandinga carrega o patuá”. Invertendo a expressão popular descrita no parágrafo anterior, somente aqueles que conhecem os segredos das macumbas (os poderes encantados), ou seja, os mandingueiros têm a legitimidade de levar tal insígnia – patuá -, no peito, no bolso ou em outro lugar do corpo. Do contrário, um patuá usado inocentemente, puramente como adorno, pode se tornar uma armadilha para a própria pessoa que o carrega. No corpo mandingueiro, a corporalidade é “atravessada pelo simbolismo equivalente dos ritos holísticos, em que o sagrado, o lúdico e o guerreiro estão fortemente imbricados”. (SODRÉ, 2002, p. 86). Por meio do saber da mandinga, o corpo envolvido no acontecimento se postula como campo de potência de encantes, em que a artimanha, astúcia e a sedução sobrepõem qualquer relação de força, no sentido físico do termo. Há diversas formas de mandinga, expressas por diferentes formas de rito, porém, todas elas carregam simbolismos encruzados de encantes. O próprio ato da fala, seja em canto ou na poética proverbial tem poder de mandinga. As batidas executadas pelo batuqueiro do tambú, do maracatu, do jongo, do congá, têm poder de mandinga. O toque no berimbau nas mãos do mestre capoeira tem poder de mandinga. A vela verde que se acende para Oxóssi ao pé de uma árvore tem poder de mandinga. O ebó dedicado a um orixá tem mandinga. O banho de sal grosso e de guiné tem mandinga. A oração tem mandinga. Assim como o pé de Espada de São Jorge plantado na calçada da porta de casa, tem poder de mandinga, e como um escudo, abre e fecha os caminhos para proteger o mandingueiro. Acolher a mandinga como uma sabedoria é permitir-se entrar na lógica dos encantamentos, e assumir que a vida também transcorre por vias sobre as quais não podemos ter controle ou entendimento por categorias puramente racionais. Admite-se então, numa acepção mais ampla, que o uso de objetos, dizeres, gestos, entre outras espécies de mandingas que são cruzadas por simbolismos encantados, são capazes que atualizar a intencionalidade do sujeito, seja pelo prisma da proteção, desejo ou afeto para com aquele que interage. Por outro lado, a sabedoria da mandinga também nos ensina a ler o mundo com certa malícia e malandragem, pois a vida e as relações são como travessias que nos armam arapucas

81

e surpresas. O malandro59, aquele que protagoniza o universo da vadiação das ruas, transita nas fronteiras, no limiar entre a ordem e a desordem, e por isso bem sabe que nesse mundo não se vive de sorte. Daí que é preciso estar atento aos perigos, ler nas entrelinhas, as intenções e pescar as oportunidades. Quando caminhando pelas ruas com passos em forma de ginga, o malandro “faz a curva aberta porque sabe da possibilidade de algo estar à espreita” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 12), não se lança inocentemente ao desconhecido, pois sabe que a rua é um campo de batalhas. Os jongueiros, nos tempos da escravidão, sabedores da mandinga eram mestres da dissimulação e ensejavam burlas para driblar o poder instituído. Comunicavam-se em meio ao batuque, utilizando palavras em línguas africanas ou mesmo misturando-as no português de forma camuflada, com a intenção de avisar os companheiros que os feitores estavam chegando, ou mesmo transmitir um recado cifrado ou ainda satirizar os donos da fazenda.

Escravos vigilantes, fingindo olhar para o sol quente, condimentavam suas palavras para comentar numa voz alta “Olha aquele sol vermelho de tão quente”, ou intercalavam palavras africanas, como na frase “Ngoma vem”60, para dar o aviso a seus parceiros, que rapidamente começavam a trabalhar esforçadamente. (SLENES, 1992, p. 62).

A gramática da mandinga escrita pela linguagem dos encantes se desenrola num campo de forças, de batalhas. Isso porque, no plano espacial e temporal da episteme como terreiro, a realidade transcorre num devir que se dinamiza pela luta61. A luta nesse aspecto, não é entendida como a violência ou força das armas, mas como um jogo, em que se apreciam “as artimanhas, a astúcia, a coragem, o poder de realização (axé) implicados” (SODRÉ, 1983, p. 143). A luta é a atividade que põe fim à imobilidade das coisas, é um movimento

59 Na linha de cultura da umbanda a entidade Zé Pelintra, “figura de respeito e destaque na malandragem carioca é mestre de ciência encantada”. (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 83). 60 Trata-se que ngoma na língua bantu é uma acepção geral de tambor. No Brasil ngoma, chamado de tambu era um tipo de tambor feito com um tronco de árvore oco tocado para acompanhar as danças associadas aos jongos feitos durante as horas de lazer. “Os escravos que utilizavam a frase “ngoma vem” para avisar seus parceiros de que o senhor ou o feitor estava chegando (...) estavam dando sinal de alarme, avisando que era hora de “dançar” (trabalhar no ritmo acelerado), e talvez gozando da pessoa que detinha autoridade sobre eles, (...) que não passava de um “pau oco”. (SLENES, 1992, p. 62 – 63). 61 Na filosofia de Heráclito o devir é a lei do universo. Tudo é fluxo, movimento e transformação que se dinamiza pela tensão entre as forças contrárias que exercem funções complementares. A exemplo do frag. 88: “Em nós, manifesta-se sempre uma e a mesma coisa: vida e morte, vigília e sono, velhice. Pois a mudança de um dá o outro e reciprocamente. (BORNHEIM, 2007, p. 41).

82

agonístico62 suscitado por uma provocação ou um desafio63, que se dá sempre na convergência do embate entre os “contrários”.

Tal concepção tem relação com a estrutura cosmogônica iorubá, presentes nas narrativas religiosas do Candomblé e da Umbanda. Segundo a narrativa mítica, a existência transcorre em dois planos, que são entrecruzados pela relação de tensão entre o sagrado e profano: o aiê (mundo visível), onde habitam os humanos e as demais coisas materiais; e orum (mundo invisível), dimensão espiritual, habitada pelos deuses. Esses mundos, embora possam ser distinguidos conceitualmente, não formam uma dualidade, pois são interpenetrados, formando o mesmo corpo cosmológico, que se desenha como cabaça. As forças cósmicas (entidades) que habitam o orum, se fazem presentes no mundo visível, no chão, na terra – no aiê. Numa relação de contradição, o mundo invisível se torna visível nos pontos específicos da natureza. E a partir daí, a entidades do orum se comunicam com os humanos, e também interagem entre si, numa constante luta – “alegram-se e sofrem, vencem e perdem, conquistam e são conquistados, amam e odeiam”. (PRANDI, 2016, p. 24).

Fotografia 20: Cabaça – Símbolo cosmológico da unidade entre o orum e o aiê

Fonte: Acervo Pessoal da Pesquisadora (2018)

62 Referência ao termo grego agon. Na tradição dos jogos olímpicos gregos, na era clássica, compreendia-se que “nos grandes momentos dos atletas, o poder dos deuses (e os próprios deuses) se tornavam presentes – presentes no espaço e no corpo do atleta”. (GUMBRECHT, 2007a, p. 13). A presença divina se efetivava na performance corporal do atleta, entendida como agon (força e combate). Nas narrativas de Homero, nas obras Ilíada e Odisseia, os deuses são frequentemente representados em situações de combate por meio de sua força física, pois a “o agon era sua forma preferida de vida – e muitas vezes de fato a única razão pelo seu interesse pelos humanos”. (GUMBRECHT, 2007a, p. 13). 63 Na tradição oral nagô, conta-se que houve um tempo em que o aiê estava próximo ao orum. Certo dia, uma criança penetrou o orum – o que era proibido, e desafio o poder de Orixalá. Orixalá, irado, cravou seu cajado no chão e separou o aiê e o orum para sempre.

83

Nessa tentativa de coreografar os símbolos, conceitos e personagens da “Filosofia afroperspectivista”, uma nova imagem do pensamento nos aporta, desenhando um conhecimento que consagra o corpo como um ritual, potencializado por encantes. A máxima cartesiana “cogito ergo sum” (penso logo existo), que fundou em termos de matriz, a base epistêmica da razão moderna, é rasurada pela pemba lógica das macumbas, que escreve outras interpretações de afirmação da existência: ““vibro logo existo”, “danço logo existo”, “toco logo existo”, “incorporo logo existo” e “sacrifico logo existo”” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 29). Nesse sentido, podemos cantar, dançar, tocar e ritualizar a Filosofia Afroperspectivista, pois ela é uma “epistemo-ontologia sensível”, uma cultura das aparências que nega abstração da existência.

Por aparência deve-se compreender aquilo que está para o corpo próprio (sua visibilidade) e na sua ação direta na produção da presença. A presença enfatiza a intensidade, o peso e o espaço, portanto, é “algo que está ao alcance, algo que pode tocar, e sobre o qual temos percepções sensoriais imediatas” (GUMBRECHT, 2007b, p. 50). “Na dimensão da presença, embora a auto-referência humana não exclua a mente, ela sempre atribui maior importância ao corpo que conhece” (GUMBRECHT, 2007b, p. 51). Não há distanciamento entre o ser que conhece e aquilo que é conhecido, pois o pensamento não atua como mediador entre a percepção e a “coisa”. Na dimensão da presença, estabelece-se uma relação fenomenológica que rompem com a dicotomia entre sujeito e objeto, em que “(...) as pessoas sentem-se parte do mundo físico, e contíguas aos objetos que a compõem”. (GUMBRECHT, 2007b, p. 51).

Não podemos jamais confundir a aparência64 da afroperspectividade como algo superficial ou ilusório como fora preconizado nos escritos de Platão e Descartes. Na gira dos saberes das macumbas, a aparência se revigora como uma perspectiva que recusa o valor universalista dado pela abstração do conceito, ou seja, pela “(...) a falta de um encadeamento entre signos à base de relações absolutas de causa e efeito e também a falta e recalcamento da verdade”. (SODRÉ, 1983, p. 137). Diferentemente da Filosofia Ocidental, que se ateve na busca de uma verdade que pudesse responder as inquietudes humanas e resignar toda a humanidade, a Filosofia Afroperspectivista acolhe a incerteza, o desconhecido e se assenta no auô (segredo/mistério). É preciso entrar no jogo ritual para conhecer, pois o auô é “a dinâmica

64 Segundo Hampâté Bâ (1982, p. 173), “o universo visível é concebido e sentido como o sinal, a concretização ou o envoltório de um universo vivo, constituído por forças em perpétuo movimento, no sentido de tradição viva”.

84

de comunicação, de redistribuição de axé, de existência e vigor das regras do jogo cósmico”. (SODRÉ, 1983, p. 142). A força do auô como um saber encantado, é “inapreensível a uma lógica que reduza o fenômeno a uma explicação” (SIMAS; RUFINO, 2018 p. 84), visto que “o segredo não existe para, depois da revelação, se reduzir a um conteúdo (linguístico) de informação (...) porque dispensam hipóteses de que a Verdade existe e de que deve ser trazida à luz”. (SODRÉ, 1983, p. 142).

Os construtos epistêmicos do homem ocidental engendraram ao mundo um modelo hegemônico de conhecimento que delineou as produções de saberes, produzindo formas discursivas que atuam nas percepções que construímos sobre as coisas. Acolher a Filosofia Afroperspectivista como uma episteme é produzir outros caminhos para o conhecimento, outras experiências e modos de existência. As epistemes das macumbas mostram-se como uma forma de resistência às epistemologias vigentes, e possibilitam que descolonizemos nossas percepções e destronemos a nossa racionalidade narcísica. ASÈ!

85

6. PARTE V: CAPOEIRA: ORIGENS E TRANSFORMAÇÕES

Você segue o movimento da árvore, a árvore se move no vento, você esquiva porque você aprendeu engolo. Quando você é hábil, você tem um coração leve (...) (Kahani Waupeta, jogador de engolo)

No dia 10 de setembro de 1810, na cidade do Rio de Janeiro, foi preso pela Guarda Real de Polícia, um africano de nome Felipe, nação Angola, de “propriedade” de Francisco José Alves, pelo crime de “capoeira”. Felipe seria o primeiro de uma longa legião de negros escravizados presos por “capoeira” (SOARES, 2001). As primeiras fontes documentais sobre as “aparições” da capoeira estão nos registros policiais da cidade do Rio de Janeiro, no início do século XIX. Tais registros contribuem para as interpretações que a capoeira seria um fenômeno originário do cotidiano urbano carioca, ligada às atuações dos negros cativos, foros e de ganho que trabalhavam nas zonas portuárias e identificados como capueiros65 – carregadores de cesto.

Para o dicionarista espanhol Morales de Los Rios, “capu” seria um grande cesto carregado pelos negros escravizados para desembarcar as mercadorias vindas dos portos. Esses negros encarregados de carregar o “capu”, muitas vezes colocados ao trabalho de ganho, assumiram com o passar do tempo funções de açougueiros, leiteiros, aguadeiros, barbeiros e outros tantos ofícios que viriam a formar a “escravaria urbana” (SOARES, 1994), tantas vezes registrada nos documentos policiais pelo crime de “capoeira”.

À luz dessas interpretações, Soares (1994) defende que a capoeira seria uma prática de origem urbana, nascida no Rio de Janeiro das “brincadeiras de combate” praticadas nos momentos de folga pelos negros estivadores – trabalhadores portuários, que recebiam as cargas dos navios.

65 A palavra capueiro, segundo a interpretação do dicionarista espanhol Morales Los Rios, é formada pelos prefixos tupi “ca” (qualquer material oriundo da mata), e “pu” (cesto). Nesse sentido, “capu” (cestos feitos com materiais da mata), somado do sufixo “eiro” (do português aquele que carrega), designa que capueiros eram os carregadores de cestos. (SOARES, 1994).

86

(...) a capoeira como luta teria nascido nas disputas da estiva, nas horas de lazer, nos “simulacros de combate” entre companheiros de trabalho, que pouco a pouco se tornaram hierarquias de habilidades, onde se duelava pela primazia do grupo. Dessas disputas de “perna” teria nascido o “jogo de capoeira” ou a dança do escravo carregador de “capu”. (LOS RIOS apud SOARES, 1994, p. 21).

Embora as hipóteses de Morales Los Rios e Soares, estejam em consonância com a história documental, não se encerram as possibilidades de a capoeira ter emergido também em outros contextos e regiões do Brasil. Na tradição oral, a sua origem está relacionada aos primórdios do século XVII, como uma luta praticada no interior das senzalas e nos quilombos66, inclusive em Palmares, localizado na Serra da Barriga, atual Alagoas. De acordo com as narrativas, a capoeira teria nascido nas áreas rurais, como uma arma de combate contra a escravidão, sendo utilizada estrategicamente pelos negros fugitivos e quilombolas como uma prática guerreira para resistir às expedições de captura empreendidas pelos capitães do mato.

(...) além dos inúmeros capitais-de-mato, contratados pelos senhores com a função de caçar negros fugidos, os governantes formavam várias expedições armadas até os dentes, com o objetivo de desarticular e acabar com os quilombos, restituindo os negros ao cativeiro. Porém, os negros, conhecedores das intempéries do jugo da escravidão, jamais aceitariam voltar a ser cativos. E por isso, lutam. (...) Não possuindo armas suficientes para se defenderem, quase nem mesmo as armas convencionais da época, torna-se necessário para os negros descobrirem uma forma de enfrentar as armas inimigas. Movidos pelo instinto natural de preservação da vida, os escravos descobrem no seu corpo a essência da sua arma. (AREIAS, 1983, p. 15).

A origem da capoeira associada ao contexto rural67 adviria, então, do termo tupi capueira (mato). Embora não se encontrem registros documentais para essas afirmações,

66 O historiador Carlos Eugênio Líbano Soares (2001), cita uma publicação anônima em uma revista especializada em assuntos criminalistas, que relaciona a capoeira ao quilombo: “A capoeira, instituição genuinamente carioca, nasceu de forma original. Os escravos, impiedosamente tratados por seus senhores, fugiam para as montanhas em cujas fraldas formavam núcleos poderosos a que denominavam quilombos”. (SOARES, 2001, p. 42). 67 Segundo os estudos do etnólogo, historiador e folclorista brasileiro Waldeloir Rego (1968), existe uma ave chamada capoeira (Odontophorus capueira, Spix), também conhecida como uru. É uma ave pequena, de pés curtos, corpo cheio e listrado de amarelo escuro, que alça voos rasteiros e vive sempre em bandos e possui um canto modulado que se assemelha a um assobio trêmulo e contínuo. Embora Rego (1968) não se aprofunde nessa discussão de que a ave capoeira tenha dado origem ao nome da luta capoeira, aponta que a ligação entre a ave e prática pode estar associada a postura e aos combates entre os machos da espécie. O macho da capoeira é muito

87

acredita-se que a relação entre a capoeira luta e a capoeira mato se dá porque eram pelas “capoeiras” (matos) que os negros escravizados encontravam os caminhos para fuga e “se entrincheiravam e exerciam seus treinos” (AREIS, 1983, p. 17). “Cadê o nego? Me pegou na capoeira! Respondia o feitor, referindo-se ao local onde fora vencido” (BOLA SETE, 2006, p. 20). A mata, então, seria o campo estratégico de combate contra os capitães do mato e, por isso, os comandantes recomendavam aos soldados “terem o máximo de cuidado com as emboscadas e ataques surpresa desferidos pelos negros, usando esse estranho jogo de corpo, vindos de repente do interior das capoeiras”. (AREIAS, 1983, p. 17).

Pode ser que capoeira venha de Capoeira mato. Do negro que fugia dizia-se e diz-se ainda: “Foi pra capoeira; caiu na capoeira, meteu-se na capoeira”. E não só do negro, mas também do recruta e do desertor do exército e da armada, que procurava fugir das autoridades policiais, empenhadas em agarrá-los. E diz-se também do gado que foge do campo. “Um capoeira” não seria sinônimo de “negro fugido, canhambora, quilombola”? (MACEDO apud CARNEIRO, 1977, p. 3).

Sejam as origens da capoeira o contexto urbano ou rural, há certa concordância na literatura que suas origens68 estão relacionadas às práticas africanas desenvolvidas em terras brasileiras, portanto, ela seria uma manifestação afro-brasileira. Mas quais as origens dos africanos que praticavam a luta? Ela foi efetivamente inventada no Brasil ou seria um continuum das danças/lutas guerreiras praticadas no continente africano?

Na tradição popular de Salvador a capoeira era identificada como uma “brincadeira de Angola”, alusão esta, que provavelmente deu origem à modalidade da Capoeira Angola. Aos olhares das autoridades, seriam os africanos angolanos “os que mais se davam a esse tipo de prática de brincadeiras “indecorosas”, sendo considerados de índole festiva e rebelde (...) férteis em recursos e manhas” (AREIAS, 1983, p.18). Alguns mestres, defendem que a

“ciumento e por isso trava lutas tremendas com o rival, que ousa entrar nos seus domínios” (REGO, 1968, p. 21). Partindo dessa premissa, “os passos de destreza desta luta, as negaças, foram comparadas com os destes homens que na luta simulada para divertimento lançavam mão apenas da agilidade”. (REGO, 1968, p. 21). 68 A obra “Capoeira uma arte indígena do Brasil: fundamentos e tradições” de Douglas Tessuto, do Professor Pelicano do grupo de Capoeira Muzenza, lançada em 2017, defende ser a capoeira uma cultura de origem indígena. Tal interpretação se pauta na etimologia do termo capoeira que advém da língua tupi, e de análises da carta de Pero Vaz de Caminha sobre o achamento do Brasil. Segundo o autor, os negros teriam aprendido a luta com os índios, pois estes foram colocados juntos nas senzalas, possibilitando um intercâmbio cultural de lutas tribais.

88

capoeira veio de Angola, por isso é comum nas cantigas referências ancestrais a essa região da África.

Capoeira vem de Angola Não vem da Bahia não Capoeira vem de Angola Não vem da Bahia não A ginga do capoeira Tá no aperto de mão (...) (Cantiga de Mestre Boca Rica)

Essas interpretações que percorrem o imaginário popular, também encontram referências nos registros policiais do Rio de Janeiro, da segunda metade do século XIX. Ainda que homens livres, brancos pobres, estrangeiros e, inclusive, figuras da elite69 também circulavam pelo universo da capoeiragem, tais registros mostram que do total dos africanos presos por capoeira, 84% eram oriundos da África centro-ocidental. Uma análise étnica revela que a grande maioria de africanos centro-ocidentais capturados como capoeiras é de origem bantu da região de Angola. (SOARES, 1994).

Essa documentação contribui com as interpretações históricas que relacionam as raízes ancestrais da capoeira aos jogos de combate dos povos do grupo bantu, do sul de Angola. Tal ideia foi difundida a partir da década de 1960, sob os escritos do folclorista Luís Câmara Cascudo (1967), com base nos registros iconográficos feitos pelo pintor luso-angolano Albano Neves e Sousa (1921 – 1995). Entre 1955 e 1956, Neves e Sousa registrou em aquarelas e desenhos, as movimentações dos jogos de combate70, dentre eles o n’golo (engolo), dos povos pastoris de Mucope, e da Bássula, dos pescadores de Luanda. Na década de 1960, Neves e Sousa viajou a Bahia e observou a capoeira praticada nas academias dos mestres Pastinha e Bimba e pode associá-la aos registros que havia feito em Angola.

69 Carlos Eugênio Líbano Soares (1994) aponta que na segunda metade do século XIX, foi registrado um número considerável de imigrantes presos por capoeira, que em grande medida eram deportados. Na documentação da época, destaca-se a figura do português José Elísio dos Reis, conhecido como Juca Reis, filho de um dos mais ricos representantes da colônia lusa no Rio, o conde de São Salvador de Matosinhos. 70 No sul de Angola há uma diversidade de jogos de combate e danças guerreiras, tais como Kambangula, também conhecida como Khandeka, praticada não só pelos povos nhaneca, mas também por povos vizinhos como os cuanhama e os ovimbundo. No jogo da khandeka, executado pelos homens durante o ritual de iniciação feminina, privilegia-se os ataques com as mãos e o canto. Na cidade de Quilengues, no povoado de Bonga, há a dança Onkhili, executada com chutes parecidos aos da zebra e saltos executados por homens sobre mulheres que os sustentam no ombro. Em Humbe, há a Khakula, dança de solo com performance que imita os movimentos do boi.

89

Imagem 7: N’golo de Albano Neves e Sousa, 1955- 1956

Fonte: Acervo digital de fotos Pinterest (s/d)

Em Mucope, ao sul de Angola, o n’golo (engolo) ainda é praticado pelo povo nhaneca71 durante a festa cerimonial do efiko72, rito da puberdade, onde ocorre a iniciação feminina para a vida matrimonial. Na festa, inclui-se uma série de ritos: consome o macau, bebida feita de um cereal chamado massambala (ASSUNÇÃO; PEÇANHA, 2008); sacrifica-se um boi a ser servido no banquete, enquanto as suas partes ingeríveis são exibidas como adorno para a moça que está se tornando mulher; e joga-se o n’golo (engolo), também conhecido como dança da zebra. Durante o rito do n’golo, forma-se uma grande roda, onde pessoas da tribo batem palmas e cantam em uma cadência específica, enquanto dois homens se movimentam com golpes de pernas no centro do círculo. Com os golpes de pernas que se assemelham aos coices de animais – e por isso também atribuísse a luta o nome Dança da Zebra -, o objetivo é atingir o rosto do adversário ou derrubá-lo com rasteiras. Os golpes de luta fundem-se com movimentos de dança e com o espírito de brincadeira, aqueles que contornam a roda, satirizam em tom de alegria as movimentações dos jogadores. (JOGO, 2013).

Os povos das tribos do sul de Angola teriam sido capturados para o trabalho escravo e levados para os portos de Luanda e Benguela. Essas cidades, localizadas na costa do

71 Os nhaneca que vivem em uma região de savanas e habitats áridos, tem um modo de vida tradicional baseado no pastoreio com agricultura complementar. O gado é a sua principal fonte de subsistência e apresenta uma importância simbólica nas festas cerimoniais, como o n’golo.

72 O folclorista Luís Câmara Cascudo (1967) se refere à festa como Efundula, e o historiador Carlos Eugênio Líbano Soares (1994), designa como Mufico.

90

continente africano, eram zonas portuárias que se configuravam como os maiores entrepostos do tráfico para as Américas. Só no século XIX, 80% dos africanos escravizados saíram desses portos e foram direcionados, sobretudo, para as regiões da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo (SLENES, 1992), o que nos leva a aduzir que aspectos das suas tradições, tais como o n’golo (engolo), podem ter sido introduzidos no Brasil por tais vias. (CASCUDO, 1967).

Algumas imagens73 evidenciam semelhanças surpreendentes entre a capoeira e o n’golo, como o uso de golpes com os pés enquanto as mãos se apoiam no chão (chamado na capoeira de “meia lua de compasso” ou “de rabo-de- arraia”), muito raro em outras artes marciais. Recentemente, surgiram mais evidências desse parentesco. A viúva de Albano revelou esboços e aquarelas inéditos, que ilustram estas páginas. Eles mostram detalhes adicionais do n’golo: o apoio nos braços com uma perna dobrada e a outra esticada para dar um golpe, por exemplo, é idêntico à movimentação na capoeira. E a postura de defesa, com um joelho dobrado e outro esticado, é muito parecida com a “negativa” dos nossos capoeiristas. Como esses movimentos parecem existir somente em jogos de combate da diáspora dos povos bantus, permanece relevante o vínculo ancestral entre o n’golo e a capoeira brasileira. (ASSUNÇÃO; PEÇANHA, 2008).

Para o pintor Neves e Sousa, o n’golo é a capoeira nas suas raízes formadoras74. Os africanos das tribos o Sul, levados para o entreposto de Benguela, teriam trazido ao Brasil “(...) a tradição da luta de pés. Com o tempo, o que era em princípio uma tradição tribal foi-se transformando numa arma de ataque e defesa que os ajudou a subsistir e a impor-se num meio hostil. (NEVES E SOUSA apud CASCUDO, 1967, p. 186). Já para o Mestre , que presenciou o cerimonial do efiko, há semelhanças das movimentações do n’golo com a capoeira, nas características referentes ao jogo de corpo, a negaça (finge que vai mas não vai) e a preferência dada aos golpes de pernas75. Nesse sentido, a capoeira não seria propriamente o n’golo, mas apresentaria ligações de um ancestral comum que ainda não conseguimos identificar e que, provavelmente, fora trazido ao Brasil por meio das memórias corporais dos africanos bantu.

73Imagens dos desenhos e aquarelas de Neves e Sousa. 74 “Segundo o pesquisador norte-americano Robert Farris Thompson, há duas lutas negras caribenhas que guardam alguma semelhança com a capoeira: mani ou bombosa, de Cuba e lagya da ilha de Martinica” (REIS, 1997, p. 23). 75 Mestre Cobra Mansa, é uma das importantes referências da capoeira angola na atualidade. Nascido no Rio de Janeiro, hoje reside nos EUA e é professor adjunto na George Washington University. Em 2013, em parceria com o cineasta Richard Pakleppa e o historiador Matthias Röhring Assunção, lançou o filme Jogo de corpo – capoeira e ancestralidade, que documenta jogos de combate, danças e instrumentos musicais no sul de Angola e explora possíveis vínculos com tradições afro-brasileiras, em particular a capoeira.

91

Desde a aparição dos primeiros registros documentais sobre a capoeira, ela passou por muitas transformações. Observa-se que “a capoeira é “carioca” até 1890, “baiana” até 1960, e brasileira, desde então” (FERREIRA, 2002, p. 18). Alguns mestres falam de uma capoeira pernambucana, que tem uma característica própria, funde nos golpes passos do frevo, sendo muito praticada em Olinda e Recife, porém, não encontrei literatura adequada para explorar esse tema.

A capoeira que se desenvolveu no Rio de Janeiro, tem aspectos diversos da baiana, bem como modos de atuação bem distintos daquela que se apresenta nos dias atuais. No século XIX, a capoeira carioca está aliada à representação de um tipo social – “o capoeira” -, identificado pelas autoridades como “uma figura sui generis do universo da criminalidade urbana da corte” (SOARES, 1994, p. 74). Isso porque, na primeira metade do século, metade da população do Rio de Janeiro era formada por negros escravizados, e o alto índice de criminalidade e revoltas era associado à presença maciça dos negros nas áreas urbanas. As documentações apontam que um terço de todas as prisões de negros escravizados estava relacionado a “crimes contra a ordem pública”, registrados nos boletins policiais sob o nome genérico de “desordens”.

A atuação dos capoeiras fora uma preocupação constante das autoridades e fortemente reprimida por todo o decorrer do século XIX, resultando nas prisões de centenas de negros forros e cativos, mestiços e, mais tarde, sobretudo, na segunda metade do século, imigrantes europeus pobres. Os negros detidos por “capoeira” eram levados para a Casa de Detenção, também conhecida como Calabouço, que se localizada na Praia de Santa Luiza, onde eram punidos com 200 açoites. Na década de 1820, além das chibatadas, o escravizado “era enviado ao dique da ilha das Cobras, onde podia ficar três meses. Ali o cativo era submetido a extenuantes trabalhos forçados, e era isolado da vida da cidade”. (SOARES, 1994, p. 29).

Nesse contexto, em que a capoeira está associada às práticas de “desordens”, caracterizou-se, predominantemente, pelos combates violentos entre as maltas - grupos formados por negros cativos e forros que disputavam, por uma questão identitária e de rivalidade em relação ao status social que assumiam no sistema escravista, os domínios geográficos das áreas urbanas do Rio de Janeiro. As maltas nagoas e guaiamus que compilavam os grupos rivais de negros cativos e forros que circulavam pela cidade velha, digladiam pelas ruas, obedecendo uma série de ritos de conflito, que incorporavam símbolos e trajes que esboçavam os contornos do pertencimento cultural a cada grupo. Nesse sentido, a

92

capoeira carioca apresentou-se como um fenômeno predominante urbano, que obedeceria a um objetivo determinado: “a consolidação do grupo, por um “patriotismo” de freguesia”. (SOARES, 1994, p. 68).

(...) Manhosos e traiçoeiros, eram Guaiamuns, eram Nagôs Maltas do Rio de Janeiro foi verdadeiro terror E nem mesmo a polícia Podia nada fazer Pois se ficassem frente a frente, colega “véio” era certo alguém morrer (...) (Trecho da cantiga de Mestre Mão Branca)

Pesquisadores apontam que a capoeira carioca sempre pareceu mais violenta do que a baiana, e apelando frequentemente para o uso de cabeçadas e murros, terminava gerando um combate fatal com a utilização de armas brancas, tais como facas, porretes e navalhas76 (SODRÉ, 2002). Um texto do pintor Rugendas evidencia a natureza do embate:

Os negros têm um outro jogo guerreiro muito violento – capuëra: dois campeões atiram-se um sobre o outro, tentando derrubar o adversário com cabeçadas no peito. O ataque é evitado com saltos laterais e bloqueios igualmente hábeis. Mas acontece, ocasionalmente, acertarem cabeça contra cabeça com grande força, fazendo a brincadeira degenerar em luta, não raro com as facas ensagüentando o esporte. (RUGENDAS apud SODRÉ, 2002, p. 45).

A primeira medida para conter o fenômeno da capoeiragem carioca, remonta ao contexto da instalação da Família Real Portuguesa. D. João, o príncipe regente de Portugal, que chegou em terras brasileiras no início de 1808, após fuga das tropas napoleônicas, promoveu uma série de mudanças e inovações na cidade do Rio de Janeiro, no intento de transformá-la em algo mais parecido com uma capital europeia, digna e segura de sediar a Monarquia portuguesa. Comprometido em “civilizar” a vila colonial, D. João criou a Intendência-geral de Polícia da Corte do Estado, que fora confiada ao advogado Paulo

76 Uso da navalha parece ter sido introduzido na capoeiragem pelos portugueses de classe baixa, que na segunda metade do século XIX passaram a compor as maltas. A navalha era um instrumento predileto dos fadistas portugueses, sujeitos que dominavam a boemia lusitana. (SOARES, 1994).

93

Fernandes Viana. (REGO, 1968). Coube ao intendente reprimir e criminalizar as manifestações de tradição negra - a capoeira, os batuques e os candomblés -, que aos olhos europeus eram vistos como uma ameaça à ordem pública. Foi assim, que em 1809, Paulo Fernandes Viana criou a Guarda Real de Polícia, e nomeou a direção ao Major Miguel Nunes Vidigal, o “verdadeiro terror dos capoeiras” (REGO, 1968, p. 291), que exerceu funções para a corte até sua morte em 1853.

A sua pessoa era atemorizante. Chegava inesperadamente nos quilombos, rodas de samba, candomblés e fazia miséria. Aos capoeiras, que era a sua mira principal, reservava um tratamento especial, uma espécie de surras e torturas a que chamava Ceia dos Camarões. Em Melo Barreto Filho e Hermeto Lima se lê esta notícia sucinta de sua personalidade: - Era um homem alto, gordo, do calibre de um granadeiro, moleirão, de fala abemolada, mas um capoeira habilidoso, de um sangue-frio de uma agilidade a toda prova respeitado pelos mais temíveis capangas de sua época. Jogava maravilhosamente o pau, a faca, o murro e a navalha, sendo que os golpes de cabeça e de pés era um todo inexcedível. Deu conta do recado, prestando os serviços desejados por D. Pedro I e D. Pedro II, principalmente no combate fulminante aos quilombos, candomblés e capoeiras, merecendo promoções várias, até quando faleceu, a 10 de junho de 1853, como Marechal de Campo e Cavaleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro. (REGO, 1968, p. 292)

Ao que tudo indica, as ações de repressão do Major Vidigal, teria, a partir de 1840 controlado as perturbações sociais que as maltas provocavam na esfera pública do Rio de Janeiro. Assim, a Corte assistiria o ressurgimento das maltas como um problema maior de ordem urbana, somente a partir de 1870, após a Guerra do Paraguai (SOARES, 1994), questão discutiremos mais à diante.

As modificações no sistema policial da Corte possibilitaram um maior registro das mobilizações dos negros e mestiços no interior das áreas urbanas do Rio de Janeiro (SOARES, 2002). Os registros policiais, indicam que a prática da capoeira seria uma arma de combate mais utilizada nos conflitos entre as maltas e na disputa entre os negros pela ocupação do espaço urbano, do que como uma arma contra os homens brancos. Do mesmo modo, não constam nos registros policiais a utilização dos instrumentos musicais (berimbau, atabaque, pandeiro, agogô, reco-reco) que hoje compõe uma roda tradicional de capoeira, o que provavelmente, pode justificar a característica menos lúdica, e mais combativa da capoeira carioca.

94

Os pintores europeus Augustus Earle e Rugendas que, nas três primeiras décadas do século XIX, estiveram em viagem ao Brasil cumprindo a missão artística de retratar o cotidiano da cidade da corte, produziram os primeiros registros iconográficos sobre a capoeira. Suas aquarelas nos possibilitam reconstruir algumas possíveis características do fenômeno da capoeiragem carioca, reafirmando, inclusive, que a prática estava aliada às formas de combates entre os negros e se ausentava dos instrumentos tradicionais.

Imagem 8: “Negroes fighting. Brazils” (Negros combatendo. Brasils). Augustus Earle, 1821 a 1823.

Fonte: Acervo ArchiveGrid (s/d)

Na aquarela de Auguste Earle (apresentada acima), vemos ao fundo, do lado esquerdo, um soldado se aproximando do local onde os negros estão lutando, como uma referência as repressões que a prática da capoeira acarretava. O negro da direta ataca aparentemente com uma chapa de frente (também conhecida como benção), e segura na mão direita um objeto, que parece um chapéu, porém, é curiosamente identificado por Carlos Eugênio Líbano Soares, como uma bacia77. Não há na aquarela nenhum registro instrumental; até poderíamos especular que o objeto que se situa ao lado do homem sentado no chão, poderia ser uma espécie de tambor pequeno, entretanto, tudo leva a crer que é um tipo de barril.

77 Vídeo-aula “Capoeira luta e os castigos” de Carlos Eugênio Líbano Soares, como parte do projeto Jogo do Jogo TV, disponível em: https://portalcapoeira.com/portfolio/jogo-do-jogo-tv. Acesso em: 17 de jan. 2018.

95

Imagem 9: Escravos jogando “a capoeira”. Rugendas, 1830.

Fonte: Soares (1994)

Na pintura de Rugendas, há dois homens no centro da imagem em posição de combate. O negro do lado esquerdo é retratado com a guarda firme, com os dois pés fixados no chão e com os punhos fechados, aparentemente prontos para um possível ataque e defesa; enquanto o da direita, embora também com os punhos fechados, parece estar com o corpo mais solto e, o seu movimento, na modulação das suas pernas, se aproxima a um passo de dança, indicando que, provavelmente está acompanhando o ritmo do tambu (tambor) tocado pelo homem de chapéu sentado. Na imagem, além do tambu, que é um tipo de tambor, formado por um tronco oco de árvore e tocado na horizontal com a pessoa montada sobre o seu corpo, e utilizado nas manifestações de batuque, há indícios de outro elemento que mais tarde viria a compor as rodas de capoeira - as palmas -, que é executada pelo homem do lado esquerdo, que na cintura carrega um tipo de punhal. Observamos ao fundo uma mulher servindo angu a um homem que se porta em posição de agradecimento, indicando que a capoeira, provavelmente era praticada nas horas de folga ou nos momentos de alimentação, perto dos locais de trabalho, nas proximidades dos casarões, assim como podemos observar no fundo. Os negros, do lado direito, observam a luta com atenção, um deles levanta um pau de bambu como numa expressão de estímulo à luta, e uma mulher carrega um cesto na cabeça, indicando que estava de passagem e parou para assistir a luta.

Na segunda metade do século XIX, a fenômeno da capoeira carioca tomou contornos mais complexos em virtude da eclosão da Guerra do Paraguai e das disputas políticas entre os partidos liberal e conservador. Com a eclosão da Guerra do Paraguai (1864 – 1870), as tropas

96

brasileiras careciam de soldados para os combates, e então, centenas de negros escravizados que dominavam a arte da capoeiragem foram recrutados como Voluntários da Pátria – à força e voluntariamente78 -, sob a promessa de alforria. Os capoeiras teriam exercido um papel de bravura durante a guerra, assim como podemos identificar no relato abaixo.

Durante a Guerra do Paraguai, por ocasião do assalto final e tomada da ponte de Itororó, os soldados constituintes do legendário 31º Corpo de Voluntários da Pátria (Polícia Militar da Corte) que seguiram na vanguarda, sob o comando do coronel Assunção, dessa milícia, seguidos pelos zuavos baianos sob o comando do dr. Marcolino de Moura Albuquerque, vendo esgotadas as munições em pleno combate corpo a corpo, ao ultrapassarem a fatídica ponte, retiraram os sabres-baionetas e jogaram fora as inúteis espingardas, lançando-se com ímpeto irresistível contra as trincheiras inimigas, e atacando os seus defensores à arma branca e golpes de capoeiragem. (OLIVEIRA apud SOARES, 1994, p. 189).

Com a vitória do Brasil na guerra, a força militar brasileira alcançou um prestígio diante da sociedade civil. Os capoeiras sobreviventes foram transformados de “doença moral” em “heróis da pátria”, gozando de alguns privilégios e incorporados ao Exército brasileiro79. “Tudo leva a crer que o retorno dos capoeiras recrutados para a guerra desencadeou uma sangrenta disputa de posições com os que ficaram” (SOARES, 1994, p. 57). E agora envergando fardas, os negros retornados da guerra iniciaram um rearranjo das relações de poder das maltas. Estabeleceu-se uma relação de solidariedade e proteção entre os capoeiras combatentes e os militares do exército, que disputavam poder nas ruas com a Guarda Real da Polícia. (SOARES, 1994).

As relações entre o mundo militar e o universo da capoeiragem foram caracterizadas por uma estranha simbiose. Seguindo bandas militares,

78 “A promessa de alforria dos escravos engajados na guerra transformou os quartéis militares em ponto final das rotas de cativos que fugiram das fazendas do interior, o que se refletiu nos anúncios de captura do vale da Paraíba fluminense: Fugiu no dia 14 do corrente o preto Antônio, crioulo, escravo de Inocêncio Gomes de Assunção, morador na Freguesia de Santo Antônio da Encruzilhada... este escravo disse que havia de fazer o possível para ir ao Paraguai (...) Até figuras legendárias da capoeiragem carioca, como Manduca da Praia, são obrigados a andar pelas ruas cercados de guarda-costas, para se protegerem das truculentas patrulhas de recrutadores. (SOARES, 1994, p. 188) 79 Desse fato, “a crônica do tempo guardou a lembrança do príncipe Obá II, ou Cândido Fonseca Galvão, um negro que se tornou alferes do batalhão de zuavos baianos, e depois encarnou o papel de monarca dos negros e negras da Corte, exibindo seus conhecimentos de figuras de proa da vida política do Império (...)”. (SOARES, 1994, p. 190).

97

utilizando a proteção da corporação militar para seus conflitos com a polícia, misturando-se com os soldados fardados em maltas, os capoeiras, principalmente nas décadas de 1870 e 1880, criaram um modus vivendi com a caserna que ameaçou, algumas vezes, a própria hierarquia militar. (SOARES, 1994, 76).

Em 1866 e 1871, sintomaticamente, os registros de xadrez da polícia da Corte deixam de registrar prisão por “capoeira” (SOARES, 1994). Contudo, a partir da década de 1870, “ressurgem as maltas, agora constituídas de militares e ex-combatentes, perambulando pela cidade junto com pobres e não-trabalhadores” (FERREIRA, 2002, p. 38). A partir de então, as ruas voltam a ser palco de batalhas, conduzidas pelos elaborados dos golpes de capoeiras que também desferiam garrafas, pauladas, navalhadas, provocando correrias e gritarias que aterrorizaram as ruas do Rio de Janeiro.

Sô eu Maitá80 Sô eu Maitá Sô eu Puxa puxa Leva leva Joga pra cima de mim (Cantiga popular da capoeira)

Nesse mesmo contexto, os chefes de maltas passam a negociar com as instituições políticas81. A malta Flor da Gente, ligada aos nagoas, aliou-se ao Partido Conservador nas disputas políticas contra os liberais. Nos eventos de comícios do Partido Liberal, os nagoas empreendiam arruaças desestruturando a campanha eleitoral. Esses aspectos indicam que os capoeiras eram utilizados como um tipo especial de capangagem, porém, como a aponta Soares (1994), as relações entre os capoeiras e os partidos políticos apresentavam contornos mais complexos, indicando que os negros não eram instrumentalizados docilmente pelos partidos, mas estavam atentos aos jogos de poder que traçavam novos horizontes políticos e sociais para a questão da escravidão, portanto, exerciam, mesmo que de forma obtusa, um papel de negociações com as instituições ligadas à corte.

80 A palavra Maitá é uma corruptela da palavra Humaitá, uma região que no contexto da Guerra do Paraguai se configurou com uma fortificação naval e via de acesso fluvial para a capital Assunção. Ela foi conquistada pelo Exército brasileiro em 1868. 81 Soares (1994) explora nas suas pesquisas os desdobramentos das relações entre os capoeiras e os partidos políticos, que culminam no criação da Guarda Negra, um tipo de milícia em defesa do regime monárquico após a abolição da escravatura, e o Partido Capoeira que, mesmo não sendo uma entendida específica, estabeleceu-se como uma rede de relações de interesses entre as maltas e a elite política do país.

98

A participação de negros, livres e escravos, no processo político de 1872 ia muito além do simples capanguismo. (...) A conjuntura a Lei do Ventre Livre, ligada ao impacto da participação popular na Guerra do Paraguai, trouxe um contexto político absolutamente novo na Corte do país. (...) Nesse contexto, para parcela importante da população negra da cidade, não cabia mais um papel acessório numa disputa entre dois contendores já velhos conhecidos, e com um resultado esperado. Era hora de traçar seu próprio caminho no campo rígido da política institucional. A militância negra do Partido Conservador era, assim, braço de um movimento social muito amplo. O Partido Conservador era o caudal único desta “onda negra” porque tinha se mostrado no debate deflagrado pelo Ventre Livre, que estava bastante sensível aos novos momentos que anunciavam. (...) O Partido Liberal, por mais que tivesse elementos sensíveis a questão escrava, e mesmo uma importância ala pró-emancipação, fracassou em entender o novo momento (...). Para os liberais, era mais importante despertar a classe média para o perigo que esta presença negra na política poderia representar”. (SOARES, 1994, p. 200 – 201).

No final da década de 1880, a monarquia estava definitivamente ameaçada. Os conflitos cada vez mais acirrados entre conservadores e liberais, que se tornaram ainda mais tensos pela questão da abolição da escravatura; e a insatisfação dos militares e da igreja frente às políticas de D. Pedro II, fortaleceram a ascensão do movimento republicano, resultando no golpe de 1889. Com o advento da República brasileira, sob os ideais positivistas de ordem e progresso, um amplo projeto de higienismo social, desmantelou as maltas. Tal feito teria sido mérito do novo chefe de polícia da capital da República, o advogado Dr. João Batista de Sampaio Ferraz, conhecido como “cavanhaque de aço”, que ensejou uma ferrenha caçada aos capoeiras cariocas, deportando-os para a ilha de Fernando de Noronha e cidades distantes da capital. Sampaio Ferraz, contando com o apoio da imprensa liberal, conquistou simpatia da opinião pública e buscou limpar o Rio de Janeiro da “ralé” que infestava as ruas. “De ordem positiva estavam excluídos prostitutas, curandeiros, vigaristas, capoeiras, desertores, feiticeiros, toda a imensa fauna de bastfond fluminense do final do século (...)” (FERREIRA, 2002, p. 48). Após a grande onda repressiva, em 1890, foi promulgado o Código Penal da República, no qual a capoeira passou a ser juridicamente criminalizada em todo território nacional através do Decreto nº 84782, sendo enquadrada no mesmo artigo sobre os vadios,

82 O trecho do decreto nº 847 do código penal de 1890 da República dos Estados Unidos do Brasil definiu: “Capítulo XIII - Dos vadios e capoeiras [...] Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem [...] Pena - de prisão cellular por dous a seis mezes. Paragrapho unico. E' considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta. Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro. Art. 403. No caso de reincidencia, será applicada ao capoeira, no gráo maximo, a pena do art. 400. Paragrapho unico. Si for estrangeiro, será deportado depois de cumprida a pena. Art. 404. Si nesses exercicios de capoeiragem perpetrar homicidio, praticar alguma lesão corporal, ultrajar o pudor publico e particular, perturbar a ordem, a tranquilidade ou segurança publica, ou for encontrado com

99

ficando, então, proibida qualquer manifestação pública da sua prática. Assim, nas décadas seguintes, a capoeira carioca passaria por um certo apagamento, saindo de cena das páginas policias dos jornais.

A capoeira retornaria aos jornais da época, com outras representações, ganhando destaque nas competições de luta livre que se popularizavam no Brasil. Em 1909, o capoeira Ciríaco Francisco da Silva, o Macaco Velho, da cidade Campos do Rio de Janeiro, nocauteou o lutador de jiu-jítsu Sada Miako, já nos primeiros trinta segundos de luta, ao desferir um violento rabo de arraia, que fora sequenciado após ele ter lançado uma cusparada na face do japonês (FERREIRA, 2002). Mais tarde, o baiano Mestre Bimba iria desafiar lutadores de várias modalidades marciais e, seus alunos, se destacariam nos ringues, contribuindo para uma notabilidade da capoeira na sociedade e para o reconhecimento da sua eficácia marcial.

Na primeira década do século XX, a reforma urbana do prefeito Pereira Passos, buscou transformar a cidade numa metrópole burguesa, nos moldes das cidades europeias, e, para tanto, sob um ideal moralizador e higienista, desalojou a população pobre, negra e mestiça das áreas centrais, confinando-a aos subúrbios. Contudo, uma parcela significativa, que sobrevivia vendendo produtos no centro da cidade, buscou a alternativa de moradia nos morros das partes centrais, dando origem a um novo tipo de moradia: a favela (FERREIRA, 2002). É nesse contexto que a capoeira assume uma nova roupagem, passando a compor o éthos do batalhão de malandros e valentões que desciam do morro para desafiar a ordem burguesa. Dentre as figuras mais memoráveis da capoeira malandra está Madame Satã e Demerval Lopes de Lacerda – Mestre Leopoldina, que aprendeu capoeira com Quinzinho, do morro da Favela (atual Providência), que por sua vez, a aprendeu na prisão, na Ilha Grande (FERREIRA, 2002)83. Conhecido pelo seu jogo cheio de maneirismos e pela sua vestimenta peculiarmente elegante - terno de linho branco, chapéu panamá branco e sapato bicolor -, Mestre Leopoldina, a partir dos anos 50 tornou uma figura extremamente popular na expressão da capoeira que resistia na ladeira do morro e nas comunidades pobres da cidade. Talvez ele tenha sido o último “bom malandro” da saga dos antigos capoeiras, vindo a falecer em 2007.

armas, incorrerá cumulativamente nas penas comminadas para taes crimes”. (In: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm). 83 Mestre Leopoldina treinou na academia de Arthur Emídio, quem o incentivou a desenvolver projetos com o ensino de capoeira. Segundo Ferreira (2002), Arthur Emídio seria um dos responsáveis pelo restabelecimento da capoeira no Rio de Janeiro, tendo fundado a primeira academia nos anos 50.

100

Fotografia 21: Mestre Leopoldina cantando

Fonte: Acervo de fotos Pinterest (s/d)

A repressão social republicana praticamente exterminou as manifestações da capoeira na esfera pública, lançando-a para o interior dos terreiros, o que, provavelmente, possibilitou que a capoeira incorporasse elementos sagrados da religiosidade africana84. Quando praticada nas ruas, a capoeira resistiu fundindo-se aos folguedos populares, com as danças de batuque, com a luta de pernada e rodas de samba, o que provavelmente, contribuiu para sua transformação de luta violenta para luta de combate indireto, com características lúdicas.

A partir de 1920, o principal reduto da capoeiragem passaria a ser a Bahia, sobretudo, as cidades do Recôncavo e a capital Salvador. O berço da capoeira baiana seria Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano, onde viveu Tio Alípio e seu discípulo Besouro Cordão de Ouro, bem como outros lendários capoeiras como Siri de Mangue e Samuel Querido de Deus. É no contexto baiano, que a capoeira passa a apresentar os contornos, os quais atualmente identificamos como tradição – os fundamentos do jogo e o rito da roda conduzido pela bateria85. Tais transformações que aparecem como desdobramentos das repressões policiais após a instauração do Código Penal de 1890 estão associadas às necessidades de dissimular os elementos combativos da luta frente aos olhos das autoridades. Essas mudanças,

84 As confrarias religiosas funcionavam como território de preservação do patrimônio cultural de matriz africana, por isso que, muitas manifestações de raiz africana, em algum momento passaram ou se constituíram no interior dos terreitos. “(...) Mestre Bimba, que tira a capoeira dos terreiros e a põe em recinto fechado, com nome e caráter de academia (...)” (REGO, 1968, p. 362). 85 A bateria é o conjunto instrumental da capoeira, que atualmente é formada pelo berimbau, atabaque, pandeiro, agogô e reco-reco. Contudo, no início do século XX, há registros de outros instrumentos compondo uma roda, tais como a viola, rabeca, afoxé, dentre outros

101

no decorrer do século, provocarão uma constante ressignificação da prática da capoeira, reinventando elementos da sua tradição, atribuindo-lhe um caráter polifônico jogo-luta-dança- ritual-esporte.

No Rio de Janeiro, capoeirava-se ao som de tambores – tal como o tambu -, mas não há inscrições de outros instrumentos percussivos, como podemos observar no registro iconográfico de Rugendas. Ao que tudo indica, o berimbau86 fora inserido nos fenômenos da capoeira na Bahia, configurando-se então como uma “invenção de tradição” da capoeira baiana (REIS, 1997).

Fotografia 22: Capoeira, Salvador, Brasil. Pierre Verger, 1946 -1950

Fonte: Acervo digital da Fundação Pierre Verger (s/d)

O berimbau, que atualmente é um instrumento ícone da capoeira, bem como uma autoridade rítmica e espiritual no ritual da roda, fora incorporado na capoeira como um

86 Não há registros do uso do berimbau na capoeira no período anterior ao século XX. No Rio de Janeiro, do século XIX, há registros iconográficos do berimbau nas ruas da cidade, identificado por Debret como urucungo e “associado ao comércio ambulante e à mendicância”. (REIS, 1997, p. 201). Na África Austral existe o mbulumbumba, que é um arco musical semelhante ao berimbau, mas tocado de horizontalmente ao invés de verticalmente. “O mbulumbumba tem sido muitas vezes associado a jovens ou pessoas com estilo de vida errante, que ganhavam seu sustento tocando o instrumento. (...) Além do mais, a possibilidade de incorporar o espírito de um antepassado que tocava mbulumbumba resultou na animosidade dos missionários desconfiados dessas tradições pagãs”. (JOGO, 2013).

102

elemento que, além de cadenciar os movimentos da luta em jogo/dança, também servia estrategicamente como uma comunicação entre os capoeiras, um código de aviso da chegada das autoridades. Há um toque chamado cavalaria, “cujo som imita o tropel dos cavalos e, segundo se conta, era uma senha para alertar os capoeiristas sobre a aproximação dos policiais”. (REIS, 1997, p. 202). Anunciado o toque, os capoeiras dispersavam-se rapidamente ou disfarçavam o jogo da capoeira com passos de samba e outras formas de gingado. Sendo assim, o berimbau se apresentava não só como um instrumento, mas como uma arma de resistência contra as autoridades, tanto é, que quando o capoeira prepara o instrumento, fala- se “armar” o berimbau (REIS, 1997).

Louvo aqui o berimbau Ai ai ai mestre de todo capoeira Que ao escravo avisava Ai ai ai a chegada do feitor No seu toque o desespero No seu som vida e valor Berimbau avisou Ê ô chegada do feitor (Cantiga de capoeira de Almir das Areias)

Enquanto o discurso republicano marginalizava a capoeira como uma prática de vadios87 - os cronistas, intelectuais e folcloristas -, desempenharam o importante papel de retirá-la do ostracismo moral. A capoeira passaria então de uma prática degenerada, sintoma de atraso da nação, para símbolo de uma expressão de originalidade da herança cultural brasileira. Tais mudanças, segundo Reis (1997), ocorreram no prumo da ressignificação das representações da prática, dada pelo no jogo de relações entre a cultura popular/erudita, negra/branca.

Para Ginzburg (2006) e Bakhtin (2010)88, a relação entre a cultura popular e a cultura erudita não se projeta num plano de polarizações estanques, como um jogo de oposição sem

87 “O capoeirista não era um mau caráter. O seu comportamento na comunidade social era ditado pelas circunstâncias, que se lhe impunham e pelas pressões e desmandos do que então detinham o poder. (REGO, 1968, p. 261) 88 O conceito de circularidade é utilizado por Ginzburg (2006), na obra O Queijo e os Vermes, em que ele analisa os processos inquisitoriais do século XVI, contra Domenico Scandella, um moleiro conhecido como Menocchio. Menocchio foi um sujeito singular na sua época, mesmo tendo vivido em uma pequena aldeia nas colinas do Friuli, Itália, de uma cultura predominantemente oral, teria tido contato com obras literárias da cultura erudita e desenvolvido “teorias” bizarras que chamaram a atenção dos inquisidores. A partir da figura de Menocchio, o historiador identifica que entre as culturas tidas como hegemônicas e as subalternas, sobretudo, no contexto do renascimento, havia um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de

103

limiares. Ao contrário, existe um influxo entre a cultura popular e a cultura erudita, caracterizado por um movimento de circularidade em que uma sofre influência da outra. Com base nas nuances dessa tese, Reis (1997), afirma que ao longo da história da capoeira a produção dos intelectuais (cultura erudita), bem como a inserção dos brancos da elite na cultura da capoeira (cultura popular), resultará na constante ressignificação das suas representações, possibilitando a sua legitimação na esfera social.

O movimento dinâmico de renovação de sentidos sociais, que a capoeira atravessa, forjado no interior de um quadro cultural mais amplo que põe em contato as culturas branca e negra do país, não resulta numa polarização absoluta entre duas culturas, mas, ao contrário, o que se observa é uma circularidade que leva à interação recíproca entre as mesmas. (REIS, 1997, p. 18).

Na gama de intelectuais que contribuíram para a visibilidade da capoeira no mundo das letras, Plácido de Abreu foi o pioneiro. Na sua obra “Os capoeiras”, de 1886, embora tenha criticado a capoeira ao descrever as “atrocidades” cometidas pelas maltas, ele foi o primeiro a rastrear as suas origens, atribuindo que ela teria nascido no Brasil, afirmação essa que seria um caminho central que projetaria a capoeira como símbolo nacional. Na sequência, Alexandre Mello Moraes Filho, buscou legitimar a capoeira como uma “luta nacional” genuinamente brasileira. E em 1906, Lima Campos em publicação a revista Kosmos, realçou as qualidades combativas da luta. Essas obras abriram caminho para uma nova representação social da capoeira – a de “gymnastica nacional”, compreendida como uma atividade física eficaz e de importância cultural na história brasileira. Nessa perspectiva, as obras de Coelho Neto e Aníbal Burlamaqui, ambas publicadas em 1928, ganham destaque. Coelho Neto no artigo “Nosso jogo”, defende a capoeira como um “esporte nacional”, como “um dos exercícios mais ágeis e elegantes” capazes de aprimorar o desenvolvimento harmonioso do “corpo e dos sentidos”. Compreendendo a capoeira como um esporte que possibilita a disciplina do corpo e do caráter, Coelho Neto propôs que a capoeira fosse inserida nas escolas civis e militares como uma atividade pedagógica.

(...) nos colégios, quarteis e navios, não só porque é excellente gymnastica, na qual se desenvolve, harmoniosamente todo o corpo e ainda se apuram os baixo para cima, bem como de cima para baixo (GINZBURG, 2006). Do mesmo modo explorado por Bakhtin, na obra A cultura popular a Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, o conceito de circularidade é articulado para compreender a penetração de elementos simbólicos da cultura da corte nas manifestações carnavalescas da cultura popular.

104

sentidos, como também porque constitui um meio de defesa individual superior a todos quantos são preconizados pelo estrangeiro e que nós, por tal motivo apenas, não nos envergonhamos de praticar. (COELHO apud REIS, 1997, p. 88).

Com a mesma abordagem de esportização da capoeira, o professor Aníbal Burlamaqui, conhecido como Zuma, lança o livro Ginástica Nacional (Capoeiragem) Metodizada e Regrada, onde estabelece regras para o “jogo desportivo da capoeira”. As regras são inspiradas no boxe, onde os lutadores, com trajes específicos, combatem em um ringue, constituído por uma circunferência de quatro metros de raio, sob a mediação de juiz e uma série de rounds. (REIS, 1997).

Nas duas obras, nota-se a capoeira pensada como um “esporte branco”, esvaziada dos elementos de matriz africana89. Caracterizada como desporto, o fenômeno não apresenta os elementos inerentes ao ritual da roda, e “deixa de ser uma performance artística (marcada pela música e pela dança) e, mais importante do que isso, perde seu caráter ofensivo e imprevisível de luta, já que agora as regras esportivas impõem o início e o fim dos combates”. (REIS, 1997, p. 91 – 92).

Na vertente folclórica, os estudos de Edison Carneiro e Luís Câmara Cascudo contribuem também para um novo enfoque da capoeira, compreendida como uma atividade lúdica, “no contexto das festas populares, e como expressão de uma cultura de festa, que deve ser preservada como parte das raízes sócio-culturais da nação” (SOARES, 1994, p. 14 – 15). Os trabalhos desses autores culminam na vasta produção sobre a cultura negra, na década de 30. A publicação de Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre revoluciona os estudos da antropologia e a questão racial, ao mesmo tempo em que as obras de Jorge Amado colocam em evidência a cultura popular e o folclore da Bahia.

Nesse ínterim, começa-se a formar um ideário nacionalista, com a implementação do Estado Novo de Getúlio Vargas. A partir de então “buscam-se os símbolos e as instituições que darão ao brasileiro o sentido de sua nacionalidade” (FERREIRA, 2002, p. 19). O projeto de construção de identidade nacional é amplamente difundido pelo Estado, e a capoeira é

89 Nesse contexto, destaca-se a história de Agenor Moreira Sampaio, o Sinhozinho. Era de uma família nobre da cidade de Santos, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde teve primeiro contato com a capoeira. Na década de 20 se tornou treinador de futebol e preparador físico de modalidades esportivas. Passou a ensinar a capoeira como modalidade esportiva, que prescindia da música e ginga, tendo como objetivo principal a eficiência da luta. Seu mais famoso aluno foi Rudolf Hermanny, campeão brasileiro de judô em 1954 e 1961 (FERREIRA, 2002).

105

identificada como um desses símbolos nacionais. Daí que, na década de 3090, é descriminalizada, retirada do Código Penal e oficializada como uma luta genuinamente brasileira.

A partir de então, no processo de valorização da cultura popular empenhado pelas instituições do Estado nacionalista de Vargas e na difusão da literatura sobre os elementos identitários do “ser brasileiro”, ganharam notabilidade, os movimentos da capoeira baiana, com a instituição da Capoeira Angola de Mestre Pastinha91, e da Capoeira Regional de Mestre Bimba92. Ambos os mestres buscaram a legitimidade social da capoeira, por meio da organização dos fundamentos que a diferenciava daquela representação desordeira dos fins do século XIX. Por fundamento, entende-se o conjunto de elementos que caracterizam o ritual da roda e as práticas de aprendizagem da capoeira, portanto, envolve: o conhecimento do ritmo (instrumentos e canto), o reconhecimento dos símbolos que organizam as práticas do rito na roda, a disciplina, o respeito à sabedoria e história dos mestres, e o saber da mandinga e da malícia. Com base nos fundamentos, os mestres Pastinha e Bimba, organizaram um método de ensino, estabeleceram trajes, ritos (embora apresentem algumas diferenças) e tiraram a capoeira das ruas, levando-a para o recinto fechado – a academia.

Para tanto a capoeira teria que sair das ruas e limitar-se ao espaço fechado das academias. Através da criação de uma pedagogia para o ensino dela, os dois mestres (principalmente Bimba) esforçaram-se para ampliar o espectro social e étnico dos praticantes, buscando a adesão das classes médias e brancas de Salvador. (REIS, 1997, p. 124).

90 “A descriminalização da capoeira é, de certa forma, controvertida. Para Soares (1994), a capoeira foi retirada do código Penal em 1932. Vieira (1998), Pires (1996) e Reis (1997) apontam para o ano de 1937. Já Araújo (1997), por não ter encontrado indícios precisos sobre o ano, indica 1941, para a data em foi promulgado o Decreto-Lei nº 3688 de 3 de outubro (Lei das Contravenções Penais, Parte Especial, Cap. I, Das contravenções referentes à pessoa)”. (FERREIRA, 2002). 91 Vicente Ferreira Pastinha nasceu em Salvador em 1889. Aos 8 anos de idade iniciou-se na capoeira com um negro de Angola de nome Benedito e aos 12 anos ingressou na Escola de Aprendizes da Marinha, na qual aprendeu esgrima, florete, carabina e ginástica sueca. Em 1941 fundou o Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA), no largo do Pelourinho. Se tornou uma das figuras mais populares de Salvador e conquistou apreço de intelectuais da época, tais como Jorge Amado, Caribé e Pierre Verger. Mulato e pequeno, aos 70 anos de idade apresentava uma habilidade corporal assombrosa e uma resistência incomum. Foi o sistematizador da capoeira angola e o seu maior difusor. Em 1964 publicou o livreto Capoeira Angola. Foi o primeiro capoeirista a demonstrar a capoeira fora do Brasil, viajando em 1966 a África com a delegação brasileira para participar do Premier Festival Internacional des Arts Négres de Dakar. (REGO, 1968). 92 , nasceu em Salvador em 1900. Aprendeu capoeira com um africano chamado de Bentinho, capitão da Companhia de Navegação Baiana. A princípio teria praticado a Capoeira Angola, mas com o tempo, teria identificado sua característica “folclórica” e “ineficaz” enquanto luta, no contexto de ascensão das artes marciais no Brasil. Daí criou a modalidade da Capoeira Regional – Luta Regional Baiana -, vindo a fundar em 1932, que era frequentado por universitários baianos. Negro forte de 1,90 m, Bimba era ogã-alabê da linhagem do candomblé-de-caboclo.

106

Embora ambos estivessem empenhados na tarefa de legitimar socialmente a prática da capoeira pela instituição de fundamentos e pedagogia específicos, semelhante às modalidades esportivas, eles divergiam quanto ao modo de fazê-la. Mestre Bimba, embora tenha iniciado na Capoeira Angola, afirmava que ela se tornara “folclórica” e “ineficaz” enquanto luta. Defendia a incorporação de movimentos corporais provenientes de outras modalidades esportivas para se tornar competitiva e reivindicava que a sua origem era baiana. Por outro lado, “Pastinha insistia na origem africana da capoeira e na impropriedade de sua fusão com outras lutas” (REIS, 1997, p. 125). Tais divergências instituem o debate acerca da autenticidade da capoeira e da questão da mestiçagem. E a partir de então, a capoeira angola foi difundida como uma capoeira “mãe”, que conservaria a autenticidade das raízes africanas, ou seja, a construção corporal negra. Enquanto a capoeira regional, seria uma capoeira mestiça93 na medida em que incorporaria elementos do batuque e de lutas ocidentais e asiáticas, tais como o boxe, jiu-jitsu e cath94. (REIS, 1997).

Fotografia 23: Mestre Bimba executando uma banda (movimento de provoca queda)

Fonte: Acervo de fotos Pinterest (s/d)

93 Mestre Bimba é considerado por alguns pesquisadores como o “branqueador” da capoeira, na medida em que desempenhou o papel de inserir na capoeira, pessoas das classes sociais da elite, bem como elementos de lutas estrangeiras. (REGO, 1968). 94 Pesquisadores afirmam que a luta regional criada por Mestre Bimba, salvou a capoeira da extinção. Do mesmo modo, a composição elitista de uma parte do seu alunado, como o advogado Décio Seabra, o político Joaquim de Araújo Lima, os médicos José Cisnando e Ângelo Decânio teriam contribuído para reconhecimento da capoeira.

107

Fotografia 24: Mestre Pastinha. Salvador, Bahia.

Fonte: Acervo de fotos Pinterest (s/d)

Mestre Pastinha95 e Mestre Bimba96 se tornariam os dois troncos edificadores da capoeira baiana, responsáveis pela formação de mestres que legaram para o mundo e para outros capoeiras os fundamentos dessa tradição. Na linhagem de Pastinha destacaram-se os irmãos João Pequeno e João Grande, e na linhagem de Mestre Bimba, Itapuã, Acordeon, Deputado, entre outros. Contudo, embora a importância de Mestre Bimba e Mestre Pastinha, seja inegável para a consolidação da cultura da capoeira, pelas áreas periféricas de Salvador corriam rodas que mostravam que a capoeira apresentava outras ramificações. O Barracão do Mestre Waldemar da Paixão, localizado no bairro da Liberdade, foi o mais célebre ponto de encontro de importantes capoeiras baianos entre os anos 40 e 60. As rodas realizadas aos domingos se tornaram redutos da preservação da tradição da capoeira antiga, que se desenvolvia pela espontaneidade de movimentos e pela expressão corporal da cultura da rua. No chão do Barracão de Waldemar, gingaram Traíra e Nagé (seus alunos), Onça Preta, Curió, Canjiquinha, Caiçara entre outros capoeiras que não seguiram necessariamente a linhagem das capoeiras organizadas por Mestre Pastinha e Mestre Bimba. O Barracão se tornou um

95 Mestre Pastinha não seria o criador da Capoeira Angola, mas o responsável pela organização e sistematização dos seus fundamentos. 96 Muniz Sodré (2002), apelidado de Americano, foi aluno de Mestre Bimba, afirma que a estruturação pedagógica do treinamento da Capoeira Regional teria sofrido influência da obra Ginástica Nacional (Capoeiragem) Metodizada e Regrada, de Aníbal Burlamaqui, que circulava pelas mãos dos seus alunos eruditos, os quais teriam ajudado o Mestre a escrever a cartilha “Curso de Capoeira Regional.

108

espaço aglutinador e festivo da população local, atraindo intelectuais e artistas da época, tais como Jorge Amado, Carybé e Pierre Verger. (ABREU, 2003).

No meio capoeirístico em que Mestre Waldemar viveu, a capoeira era aprendida na roda, entre goles de cachaças e incitações de desafio; não havia um método pedagógico ou trajes específicos como articulado nas academias de Mestre Bimba e Mestre Pastinha. Do mesmo modo, não havia a direção de um mestre específico. Waldemar aprendeu capoeira nas rodas de Periperi, subúrbio ferroviário de Salvador, e atribuía à sua formação aos mestres Telabi, Ricardo da Ilha de Maré, Siri de Mangue e Neco Canário Pardo.

Eles [os mestres] vinham para Periperi, aquela roda danada. Foi quando eu peguei a aprender com eles. Eu era rapazinho. Comprava duzentos réis de vinho tinto, aquele copo branco de alça, ele tomava e dizia: “pegue na boca da minha calça!” Levava para pegar na boca dele e ele virava aquela cambalhota desgraçada e já cobria [com] o rabo de arraia. Quando eu ia levantando ele dizia: “não levante não, lá vai outro!” Os alunos deles jogavam com a gente como que [se] a gente já era [fosse] bom. (ABREU, 2003, P. 16)

A partir dos anos 60, a capoeira passa a se difundir e se popularizar para além das cidades baianas. Chega em São Paulo por meio intermédio dos grupos Cativeiro, Capitães de Areia e Cordão de Ouro e se restabelece no Rio de Janeiro, sobretudo, por meio do grupo Senzala. Doravante, a capoeira toma contornos contemporâneos, fundindo a Capoeira Angola e Capoeira Regional e, inevitavelmente, com a ampliação dos grupos de capoeira, ela sofreria outras transformações que descaracterizariam os fundamentos de ambas as modalidades.

Na Bahia, as mudanças etnográficas na capoeira estariam associadas aos incentivos do órgão municipal de turismo de Salvador, em tornar a manifestação mais atraente aos olhares estrangeiros. Para receber apoio financeiro de tal órgão, as novas academias atendiam às exigências bizarras, vestindo-se com indumentárias grotescas semelhantes aos cordões carnavalescos e realizavam exibições públicas com um apelo simplesmente performático, com acrobacias extravagantes e narrativas deturpadas sobre a história da capoeira. (REGO, 1968).

No início dos anos 70, institui-se a Federação Paulista de Capoeira, como a “primeira tentativa de fôlego para a homogeneização da luta em nível nacional”. (REIS, 1997, p. 152). Na mesma década, integrou-se na Confederação de Pugilismo, um Departamento de Capoeira, que tinha como assessor o Mestre Mendonça, que foi responsável pela elaboração de um

109

Regulamento técnico da Capoeira, que viria a ser reconhecido pelo MEC, instituindo a prática como esporte em 1972. Nesse movimento de regulamentação da capoeira, “o capoeira” passa a ser chamado de “o capoeirista”97 e inserem-se graduações representadas por meio de cordões, numa referência às artes marciais orientais98. De algo modo, os membros da federação e da confederação intentaram em “desafricanizar” a capoeira, representando-a como “arte marcial brasileira”. Tais iniciativas buscaram legitimá-la como uma prática esportiva, apta a receber os mesmos incentivos de outras modalidades do desporto que não apresentavam históricos marginalizados.

Atualmente, há diversas expressões da capoeira, que podemos conceituar como contemporânea, na medida em que reinventam aspectos da tradição dos Mestres Pastinha e Bimba, e inserem acrobacias da ginástica olímpica e outros golpes das lutas ocidentais. Embora preservem os elementos formadores da capoeira baiana, tal como a ginga, a roda e os instrumentos, as expressões da capoeira contemporânea têm a primazia da objetividade da luta, da técnica dos movimentos enquanto arte marcial o que, consequentemente, tem sublimado os seus referenciais da ancestralidade africana.

97 Provavelmente, a mudança do termo “o capoeira” para “o capoeirista” se dá pela necessidade de desvincular os praticantes da capoeira, daquela representação social marginalizada, das práticas de vadiagem nas ruas. Observa-se então, que o termo capoeirista é uma adequação à nova roupagem da capoeira, reconhecida como esporte. 98 O sistema de graduação e vestimenta moderno, com o uso de cordões e abadá (traje baseado nas vestes de estivadores) teriam sido introduzidos na capoeira pelo Mestre Senna, que fora discípulo de Mestre Bimba. A ele atribui-se a criação uma nova expressão da capoeira – a capoeira estilizada. (DECÂNIO, 1997). Para Ferreira (2002), Arthur Emídio e Mestre Mendonça foram os responsáveis para criação do sistema de graduação. Mestre Pastinha estabelecia a graduação do seu alunado por meio de carteirinhas, enquanto Mestre Bimba, por meio de lenços, como uma referência aos antigos capoeiras, que usavam lenços de seda no pescoço para se proteger dos golpes das navalhas, já que diziam que a navalha não cortava.

110

7. PARTE VI: (RE)EXISTÊNCIAS AFRICANAS NA CAPOEIRA

A capoeira é atitude brasileira que reconhece uma história escrita pelo corpo, pelo ritmo e pela imensa natureza libertária do homem frente a intolerância. Luta e dança e ritmo e vigor físico. Os negros criaram a capoeira tanto para servir o prazer quanto ao combate. Realizaram, na própria carne, essa imagem da vida fundamental até hoje. (Gilberto Gil, In: Mestre Bimba – capoeira iluminada).

Entre os interditos da escravidão, os africanos, no Brasil, produziram práticas de mandingas que passaram rasteiras na estrutura sociocultural do colonizador. Apesar de terem seus corpos objetificados pelo trabalho, “o corpo negro preservou e condensou uma sabedoria pelos movimentos, pelos ritmos e pela energia, bem como pela oralidade” (TAVARES, 2002, p. 25). Foi na tensão entre a repressão e resistência, que os africanos da diáspora, reterritorializaram suas visões mundo e instituíram no saber corporal seu instrumento de “(re)existência”. O conhecimento incorporado na linguagem corporal – através das festas e rituais –, possibilitou uma comunicação das diferenças culturais e a instituição de um território negro-brasileiro. E assim, o corpo-território, se constitui como uma arma de transgressão do cotidiano despótico, fazendo do corpo violentado e mercantilizado pela escravidão um dispositivo de liberdade e recuperação da cosmovisão africana. (TAVARES, 2012). A capoeira como uma cultura diaspórica de reinvenção, nascida em terras brasileiras na contextura da escravidão, fora utilizada tanto como uma arma de combate quanto uma prática identitária e de sociabilidade entre os negros. Afirmando-se, pelo saber corporal e na inscrição de um éthos próprio, cujos códigos e simbolismos recompuseram a memória ancestral africana, a capoeira pode ser lida como uma cartografia de relevantes elementos da cosmovisão de mundo e das práticas culturais dos negros no Brasil. Assim, “os movimentos corporais dos jogadores de capoeira, inscritos em seus corpos por uma gramática forjada pela lógica da cultura, podem ser lidos e interpretados como testemunhos históricos”. (REIS, 1997, p. 209). A capoeira é uma cultura imantada pela “Filosofia Afroperspectivista”; os capoeiras (mesmo que sejam brancos) atuam sob os saberes que foram escritos pelos corpos dos

111

personagens melanodérmicos, e, os fundamentos, que constituem seu éthos, sobretudo, no contexto da roda, incorporam conceitos afroperspectivistas do devir negro. O axé transmitido pelos instrumentos e canto, a formação circular do rito e a linguagem corporal incorporada pela sabedoria da mandinga, fazem do seu universo uma cultura que se movimenta para além das práticas esportivas, compreendidas pela lógica ocidental. É, portanto, sobre essas questões que falaremos nesse capítulo.

7.1. A roda de capoeira: um lugar ritual

Fotografia 25: Roda Vadiando entre Amigos. Rio Claro, 2017

Fonte: Acervo pessoal do fotógrafo Ivan Bonifácio (2017)

Ponho-me na roda. Vejo os corpos formando um círculo, que demarca a fronteira entre o dentro e o fora – o lugar do ritual. O espaço de dentro, o microcosmo da capoeira, é temporalizado pelo ritmo da música, do canto, do jogo de corpo. O início do ritual é anunciado pelo toque do berimbau berra-boi, que marcando o toque angola, é seguido na sequência pelos berimbaus gunga99 e viola, e pelas batidas dos pandeiros. O cantador entoa em cadência de lamento um prolongado “Iêêêi”, evocando a força ancestral e dando início a ladainha, uma cantiga em forma de narrativa, que enaltece os antepassados, os fundamentos e

99 Alguns atribuem o nome de gunga ao berimbau berra-boi que normalmente tem a cabaça maior e sempre o som mais grave. Sendo assim, o berimbau que se coloca no intermédio entre o berra-boi (também chamado de gunga) e o viola é denominado por alguns de médio.

112

a história da capoeira. Dois capoeiras, já agachados ao pé do berimbau – na boca da roda -, ouvem, assim como os demais, a mensagem com atenção e respeito, que chega ao entendimento de forma velada. Alguns sorriem, captando o recado, e cientes de que dali nasce o segredo e o desafio. O cantador puxa a louvação: “Iêi, viva meu Deus, camará”, e os demais instrumentos, atabaque, agogô e reco-reco completam a orquestra, e, no conjunto, o coro responde: “Iê, viva meu Deus, camará”. O coro emana ainda mais força e como uma espécie de mantra une todos em um só corpo. Quando a louvação encerra, segue-se um canto corrido, com frases curtas e respostas sequenciadas. O cantador entoa: “Ai, ai, aidê/joga bonito que eu quero ver”, e o coro segue: “Ai, ai, aidêêê”. É o código para o início do jogo. Os capoeiras, concentrados ao pé do berimbau, se cumprimentam, fazem gestos em forma de rito – se bezem e um deles risca o chão –, e antes de se lançarem para dentro da roda, voltam suas cabeças para o solo, no sentido do berimbau. O jogo começa manhoso, rasteiro, ciscando o chão e desconfiado como a galinha d’angola. Rabo de arraia passa lento, cocorinha, desce negativa que num seguimento harmônico é transformada em outro rabo de arraia. O jogador esquiva-se equilibrando-se na queda de rim e avança em direção ao outro, abrindo uma tesoura. Em resposta e com destreza, o parceiro lança um aú pelas suas costas. Desfazendo a tesoura avança com uma cabeçada nas costelas, que é absorvida com elegância na continuidade de um rolê. Os corpos levantam, balançam na ginga, num-vai-e-vem, corporificando o canto e o toque dos instrumentos. Um deles tira uma meia lua e o outro num movimento ligeiro entra numa rasteira indireta e sai de banda rodopiando sobre uma das pernas. Volta com uma chapa de frente obrigando o outro jogador a uma descida rápida que, seguida de um rolê que se transforma em uma bananeira. Não sabemos se dançam, se brincam ou se lutam. O lúdico e o guerreiro são imbricados nos movimentos que se entrelaçam num embate indireto, como um jogo ritual. O ritmo acelera e pede mais atenção. O capoeira com malícia, finge que vai, mas não vai – negaceia. O cantador captura o acontecimento: “Oi sim, sim, sim, oi não, não, não”100. O jogador gira velozmente uma armada, o outro acompanha com um giro e lança uma chapa de costas no peito do outro jogador que salta para trás. Ele dissimula ter sido ferido, e então teatraliza um sofrimento, pondo as mãos no peito com expressão de dor. Os jogadores dão uma volta ao mundo, fazendo um contorno na fronteira da roda no sentido horário, como um retorno à ancestralidade. Olhando um para o outro, fazem desafios em tom de brincadeira, ajeitam a camiseta por dentro da calça, o chapéu e voltam para o pé do berimbau. O canto manda o aviso: “Olha o nego, olha o nego, olha o nego, meu

100 Cântico popular da capoeira.

113

sinhô”. O jogo recomeça, ainda mais rápido e com golpes rodados. Um dos jogadores faz trançados com as pernas como num passo de samba, e o outro floreia com movimentos que remetem o frevo. Repentinamente, o capoeira que driblou as próprias pernas, tira um rabo de arraia “violento”, e o outro jogador só tem tempo de virar o rosto para não sentir o gosto da sola do sapato do parceiro de jogo. Aquele que desferiu o rabo de arraia faz o sinal de chamada em cruz, de costas. Pergunto-me: que mandinga está por vir? De forma ressabiada, com movimentos indiretos, o parceiro vai se aproximando, neutraliza os possíveis pontos de ataque, como o calcanhar, a cabeça e o cotovelo, até encontrar os braços do parceiro e se posicionar na sua lateral. Ambos fazem um movimento de três passos que avança e recua pelo espaço da roda. E então aquele que respondeu a chamada, percebe que seu patuá caiu do pescoço e o avista no chão. Parecendo não conhecer os segredos da mandinga, tenta pegar o patuá e quase leva um “calcanheira” na boca. O jogador que fez a chamada, no momento de desfazê-la, percebe a desatenção do outro, preocupado com seu patuá, e então lhe passa um rasteira certeira. O jogador cai macio e todos exaltam e riem do acontecimento. O ritmo continua, os corpos balançam e desenham movimentos com os pés num disfarçado combate. Inebriada, dou-me conta que já se passaram quinze minutos, e os olhares atentos que circundam a roda, acompanham seduzidos os movimentos como num estado de epifania. “Perdida numa intensidade focada”101, mergulho nos sentidos estéticos da aparência dos corpos, que colocam em suspenso toda a realidade cotidiana, fazendo da roda, um microcosmo isolado das preocupações ordinárias da vida. Focalizo o jogo como um fenômeno presente, mas sei que ainda algo está por vir, na medida em que os corpos em movimento, entregues num jogo de improviso e criatividade, pertencem ao domínio das aparições102. Tomada por halos de emoção na presença dos corpos que pesam sobre o espaço, percebo que integro a sinergia de todo o conjunto do ritual da roda, e um sentimento de pertencimento, de uma relação comunal toma o meu corpo. O axé potencializa, e como uma força vital, cria uma

101 Na lógica do encantamento, “a palavra “perder-se” aponta para o isolamento e a distância específicos dos eventos esportivos em relação ao mundo cotidiano (...) Aquilo que os atletas e os espectadores “focalizam” – como algo já presente ou ainda por vir – pertence ao domínio das epifanias, isto é, ao acontecimento de uma aparição, mais exatamente aos acontecimentos de aparições que mostram corpos em movimento enquanto formas temporalizadas. Tanto a experiência quanto a expectativa das epifanias são acompanhadas por halos de intensidade, isto é, por uma consciência quantitativamente elevada das nossas emoções e dos nossos corpos”. (GUMBRECHT, 2007a, p. 12). 102 Refere-se a experiência das epifanias, no sentido de uma aparição súbita e transitória de algo que, ao esmo durante o tempo de sua aparição, tenha substância e forma simultaneamente. Mas epifania significa, além disso, aparência como evento (...) O evento dá-se na descontinuidade e no inesperado, fazendo aparecer o que não estava lá antes. Daí, a epifania, a tensão resultante da relação entre um corpo (substância) e uma forma. (...) Epifania é, aqui “a emergência de uma forma até então desconhecida”. (GUMBRECHT (2001) apud SODRÉ, 2002).

114

dimensão de unidade, rompendo os limiares entre jogadores, tocadores e espectadores. As fronteiras racionalizadas entre sujeito e objeto se diluem numa reversibilidade recíproca, assim como duas mãos atadas, em que não se sabe quem toca e quem é tocado.

A roda é espaço-tempo do acontecimento do jogo da capoeira, onde se concentra e se partilha toda a força e filosofia dessa cultura. Organizada por uma série de códigos simbólicos, onde o saber é praticado em forma de ritos, a roda pode ser compreendida como um lugar ritual – um terreiro -, onde “teremos uma arquitetura da energia cotidiana do negro na África diasporizada. Transubstanciação da diversidade de códigos que caracterizam as diferentes linguagens trazidas para cá (...)”. (TAVARES, 2012, p. 94).

A formação circular103 do rito é uma marca constante nas manifestações cerimoniais africanas, como podemos observar no candomblé, assim como nas danças de matriz bantu, a exemplo do jongo. Toda manifestação coreografada pela formação em roda, evoca a ideia de continuidade e amplia a dimensão de unidade entre as pessoas - os corpos compõe um só corpo, que não tem começo e não tem fim104. Tratando-se da roda de capoeira, embora a força emane da bateria (conjunto instrumental), tal unidade se perfaz da interação do conjunto: o ritmo, o canto e movimento do jogo. Tal interação redesenha um espaço ritual e comunitário que produz uma sinergia entre os corpos que ali habitam - o axé.

O espaço-tempo da roda de capoeira é um lugar ritual porque é um campo de suspensão da realidade ordinária, que recria um mundo paralelo de uma temporalidade distinta, atravessado por simbolismos e linguagens corporais convergentes às próprias unidades de significação.

Na roda, existiria um “ethos místico” que envolve a situação referida, correspondendo a um congelamento (macroestrutura, texto no contexto histórico de maneira secularizada), o qual recria a partir do resgate dos símbolos que condensaram diferentes momentos. Toda vez que este conjunto de meios se conecta – e se constitui a gira – temos o ritual, o evento vivido pelo corpo no tempo que a estrutura congelou por intermédio dos movimentos cinéticos. (TAVARES, 2012, p. 95).

103 Nos cerimoniais africanos, “o movimento em forma de círculo em danças religiosas (...) é praticamente um traço universal das culturas da África Ocidental e Central”. (SLENES, 1992, p. 57). 104 Na cosmogonia ioruba o círculo é um símbolo que evoca a união entre o orum e o aiê. Oxumaré, orixá da continuidade e da transmutação tem como um dos seus símbolos uma cobra que morde a própria cauda, simbolizando, com isso, o seu renascimento, as tantas metamorfoses que sofremos ao longo da vida.

115

Nesse lugar ritual, temos então uma temporalidade mítica (porque tem um forte apelo simbólico) e singular que se modula de forma cíclica, rompendo a lógica da linearidade e frenética do cotidiano. O tempo do jogo não é aquele devorado por Cronos105, mas dinamizado por Kairós106, que abre um campo de possibilidades, o momento oportuno para a entrada e saída dos movimentos. A roda dá “vorta do mundu”, predomina o princípio da incerteza e dá lugar da oportunidade do ato, portanto, joga mesmo capoeira aquele que “isperá entrá nu laçu”, que pesca “um tempu certu” e se insere como parte do contexto, no instante do tempo presente107.

A roda projetada no tempo de Kairós é um tempo outro, que identificaremos como tempo da vadiação108. A vadiação é o tempo do não trabalho que dá lugar à brincadeira, à espontaneidade e ao desfruto do prazer. Possivelmente, é por isso que os mestres falam que a capoeira é uma “coisa vagabunda”109, pois ela se insere como uma ruptura na sucessão da ordem cotidiana que nega a produtividade na qual estamos sujeitos no tempo cronológico. “Vamo vadiá, vamo vadiá...”110, a roda de capoeira é lugar de vadiar, de se perder, vagar até encontrar. O capoeira vadeia, vaga, passeia contornando os movimentos do parceiro de jogo, e como a galinha d’angola, é rodante, cisca ali e acolá, faz uma gira com seu corpo, circula caminhos com os pés até se deparar com o momento oportuno de atacar.

O jogo de vadiação é um plano de potência desenhado pelos corpos incorporados de sabedoria da mandinga, portanto, se dinamiza como um campo de combate que aporta o segredo, a astúcia e o perigo. Na lógica da vadiação, o jogo é algo contingente, isto é,

105 Cronos, filho de Urano (céu) e de Geia (terra), pertence a raça dos titãs e tem aparência bruta e grosseira. É a divindade do tempo, aquele que devora os próprios filhos temendo ser destronado. Portanto, destrói tudo que ele próprio cria, metaforizando a ideia de que o tempo como o próprio princípio da existência consume a própria vida (BULFINCH, 2000). As palavras cronômetro, cronologia, cronograma entendidas sob a noção temporal linear, que estabelece ordem, métrica, e limites dos acontecimentos sucessivos, derivam do termo Cronos. 106 Kairós, ao contrário de Cronos, simboliza um tempo irredutível que transcorre de uma forma relativa à presentificação de cada um que o percebe e o vivencia. Na realidade, é a representação do tempo subjetivo, que pode ser a eternização do momento pela presentificação em sua elaboração. Significa também o momento oportuno, a oportunidade agarrada. Era representado por um jovem atlético, com asas nos pés, que tinha como principal característica transitar em velocidade vertiginosa por todo o mundo de forma aleatória, sendo, assim, impossível se prever um encontro com ele. (RIBEIRO, 1962). 107 As frases “vorta do mundu”, “isperá entrá nu laçu”, “um tempu certu” são de Mestre Bimba, e foram registradas por Decânio (1997) 108 “Na vadiação o capoeirista se expõe aos domínios de outra temporalidade, diferente daquela mediada na ordem quantitativa e homogênea inscrita no compasso regular do tempo cronológico. Para Alvarez (2007, p. 21), o que move a constituição desta outra temporalidade não cronológica, é um perder tempo junto à tradição viva, algo possível através da vivência dos ritos, nas expressões estéticas, nos ritmos, na magia e na ética da mandinga, nos aspectos políticos de resistência e negociação com o adversário, na dimensão coletiva e em comunhão dos capoeiristas, na roda e no papel do Mestre de capoeira. (ALVES, 2013, p. 279). 109 Fala de Mestre Pastinha, reafirmada por Mestre Moreno. In: Documentário Essa Casa é de Angola Nagô, 2015. 110 Cantiga tradicional de capoeira

116

imprevisível, pois é determinado pelas circunstâncias do momento. Nesse sentido, vadiar é aceitar o desafio, acolher a imprevisibilidade e saber responder as eventualidades com elegância e lealdade111 às regras do ritual. Desse modo, se o jogo de capoeira não tem vadiação, é puramente performático, inocente, previsível ou exibicionista. E por outro lado, sem a vadiação, o jogo da capoeira também pode resultar em luta objetiva, que por ora pode empreender agressividade entre os jogadores, resultando em violência.

No plano da afroperspectividade, a condução musical por meio das batidas dos tambores exerce um papel fundamental na evocação do axé (força vital) e dos estados de epifania. Na capoeira isso não é diferente, a música atua como um suporte de sustentação do ritual da roda, cadenciando os movimentos dos jogadores e produzindo um sentimento de pertencimento dos indivíduos a um corpo comunitário. Nesse sentido, o conjunto instrumental e vocal modula a intensidade da energia e da harmonia da roda, unificando os corpos individualizados em um corpo coletivo. As partes compõem o todo, o que significa que no ritual da capoeira os sujeitos não são tidos individualizados, mas como parte de uma comunidade, a qual todos são interdependentes, assim como na ética ubuntu – “eu sou porque nós somos”. Tanto é que, quando o ritmo está atado ao jogo ou vice-versa, aqueles que compõe a bateria ou circundam a fronteira da roda, vibram com os corpos dos jogadores e até se esquivam ou pulam como estivessem susceptíveis aos movimentos e acontecimentos do jogo. E assim o corpo vibra com o jogo e o jogo vibra com o ritmo, numa reversibilidade que não tem fim.

A roda de capoeira é composta por um conjunto instrumental específico, embora ele possa variar em cada escola e linhagem (angola, regional e contemporânea). Tradicionalmente, na Capoeira Angola, compreendem os seguintes instrumentos: Três berimbaus (Berra-boi, gunga e viola), atabaque, dois pandeiros, agogô e reco-reco; e os tocadores se posicionam sentados em um banco longo ou em cadeiras. Na Capoeira Regional de Mestre Bimba, há apenas um berimbau posicionado no centro de dois pandeiros, e também os responsáveis pela condução rítmica ficam sentados. Já na Capoeira Contemporânea, os tocadores podem se posicionar em pé e normalmente usam todos os instrumentos, mas, às vezes, dependo da singularidade da escola, não se insere o reco-reco ou o agogô.

111 Mestre Pastinha escreveu que o capoeira deve ser leal como seu parceiro de jogo. Assim como Mestre Bimba, dizia que a capoeira não é feita para bater em capoeira, é feita para bater em otário.

117

Os capoeiras que formam e delimitam o espaço circular da roda, ora ficam sentados, como é o caso da Capoeira Angola, ora ficam em pé, como na Capoeira Regional e Contemporânea. Estes, sendo capoeiras ou não, não são meros espectadores, mas participam ativamente do ritual, na medida em que são responsáveis não só pela coesão do espaço fronteira da roda, como também pela condução do coro e das palmas (no caso da capoeira regional e contemporânea). O coro e as palmas também se portam como instrumentos, e potencializam a força do coletivo, da sinergia entre os corpos individualizados, que em conjunto, recriam uma experiência de unificação, como podemos identificam no romântico relato de Mestre Decânio (1997) sobre sua experiência em uma roda conduzida por Mestre Bimba.

Pelo coro de palmas o Mestre fazia da assistência um gigantesco amplificador das vibrações da roda de capoeira gerando um imenso campo de energia que nos envolvia uma atmosfera uníssona, fundindo corações, num grande ser comunitário, pela integração num só espírito. O canto em coro, as palmas em sintonia, o ritmo/melodia do berimbau num passe de magia ultrapassam os limites da matéria, alcançando pela vibração harmônica o êxtase supremo, a consciência global, o transe coletivo. (DECÂNIO, 1997, p. 145).

A formação da bateria, ou seja, a sequência da composição dos instrumentos não é regra universal, assim cada escola determina o lugar de cada instrumento. Contudo, a ênfase da formação, centralizada no “comando” berimbaus é um fundamento em toda a roda de capoeira. Isso porque o berimbau é um “instrumento musical e ao mesmo tempo uma autoridade espiritual” (REIS, 1994, p. 208), abre os trabalhos, dita o ritmo, o compasso e os toques que anunciam o tipo de jogo.

Os mestres da capoeira angola, dizem que a tríade dos berimbaus (berra-boi, gunga e viola) é uma referência aos tambores rituais (rum, rumpi e lé) dos ritos litúrgicos afro- brasileiros, isto é, uma transplantação da curimba da umbanda ou do Ìlubàtá, a exemplo do candomblé keto. Desse modo, o berimbau berra-boi, que emana uma sonoridade mais grave seria uma referência ao atabaque rum; o berimbau gunga, com tonalidade média ao rumpi; e o viola, de tonalidade mais aguda ao atabaque lé. Tal associação não se configura apenas na relação dada à tonalidade entre os berimbaus e os atabaques, mas também ao papel que cada

118

um exerce112. Assim como cada atabaque nos ritos sagrados exerce uma figura rítmica, cada berimbau também desempenha um toque, que em conjunto completam uma linguagem musical polirrítmica. O berimbau berra-boi, assim como o atabaque rum, é a cabeça do ritmo e comanda o toque; o gunga associado ao atabaque rumpi é o tronco que sustenta a base no contra toque do berra-boi; e o viola que se assemelha ao atabaque lé, é as pernas, que caminha improvisando entre os dois primeiros por meio de dobras.

Imagem 10: Representação icônica de uma Curimba da umbanda

Fonte: Acervo digital Triângulo da Fraternidade Fotografia 26: Capoeira, Salvador, Brasil, 1946 - 1948

Fonte: Acervo digital da Fundação Pierre Verger

112 Ouça os toques da tríade de berimbau na capoeira angola em: https://www.youtube.com/watch?v=OxRGj0Ae_7M

119

Algumas escolas, cientes da simbologia sagrada do atabaque, optam, utilizar na bateria, outros tipos de tambores, tais como tumbadoras ou congas. De todo modo, nas escolas que utilizam algum tipo de tambor, seja ele de qualquer tipo, consideram, na ordem hierárquica dos instrumentos da roda, aquele que vem na sequência da importância dada aos berimbaus. O tambor revestido com pele de animal (boi, bode ou cabra), corpo de vegetal (pinho, maçaranduba), e aro de mineral (ferro), é concebido como uma força viva, portanto, sua batida sustenta a energia do rito da roda. Dada a importância a tal significado, nas rodas de capoeira angola, o tambor não é tocado por qualquer capoeira, pois este, deve não só ter intimidade rítmica com o instrumento, mas a consciência de que a vibração suscitada da batida no couro do animal, em diálogo com o berimbau, dá sustentação tanto na cadência do conjunto musical, como ao axé que circula a roda.

O toque de atabaque utilizado em grande parte das escolas de capoeira tem a seguinte figura rítmica: “tum tá tum”, podendo variar no andamento mais rápido para “tum-tum tá- tum”113. A sua rítmica do toque de atabaque na capoeira tem origem no toque litúrgico denominado de ijexá114, dedicado no candomblé keto à divindade Oxum, como também aos orixás femininos – iabás -, como ocorre no candomblé angola. O ijexá é um ritmo cadenciado tocado só com as mãos e apresenta as variações rítmicas: “tá tum tá” ou” tá-tá, tum-tum-tá. Nota-se a primeira figura rítmica do toque de capoeira nada mais é que a inversão da primeira figura rítmica do toque do ijexá. Tal similaridade, permite que algumas escolas de capoeira, ainda utilizem o toque do ijexá na condução musical da roda. Segundo Mestre Decânio (1997) a marcação musical da capoeira, tanto no atabaque, quanto no pandeiro fluiu do toque de Logunedé115, que por sinal, é bem próximo ao ijexá.

O agogô é um instrumento de percussão idiofônico, que consiste numa campânula (forma de sino) dupla de ferro, que mede entre 15 a 20 centímetros aproximadamente, e que se percute com uma vareta em metal ou madeira. Oriundo dos povos iorubas da África Ocidental, compõe a orquestra do candomblé, marcando o toque inicial das cerimônias, bem como nos grupos de afoxés. Na capoeira, utiliza-se o agogô tanto de ferro quanto de ouriço de castanha do Pará. Para os adeptos mais tradicionais da Capoeira Angola, é fundamento manter o agogô na constituição material em ferro, pois no âmbito da simbologia sagrada, o ferro é um

113 Ouça de capoeira no atabaque em: https://www.youtube.com/watch?v=Wiew7zro_1Q. 114 Ouça o toque de ijexá em: https://www.youtube.com/watch?v=vpydvWVOiQ4&list=PLDtsbz5z61zxNOJsIsUL9u1HcPbb4g_PM&index= 13 115 Logunedé, orixá da fartura, da riqueza e da beleza, é filho de Oxum e Oxóssi.

120

elemento condutor de força e transformação. Na mítica ioruba o ferro está relacionado à Ogum, o orixá ferreiro e guerreiro, que descobriu e deu à humanidade a técnica da fundição dos metais, possibilitando o aprimoramento das armas e outros artefatos que permitiram o movimento e a evolução da cultura, no seu aspecto técnico.

Segundo os registros de Decânio (1997), a opção de Mestre Bimba em retirar o atabaque da orquestra (bateria) da capoeira e usar apenas um berimbau e dois pandeiros, tem relação com a preocupação do mestre em dar ênfase ao ritmo característico da regional, de modo a possibilitar que o praticante pudesse “sentir a “marcação” dos pandeiros, as flutuações do ritmo do berimbau que comanda os movimentos da “evolução”, o estilo do jogo” (DACÂNIO, 1997, p. 183). Contudo, as narrativas orais identificam que Mestre Bimba teria retirado o atabaque da capoeira, porque este instrumento é um elemento litúrgico dos ritos do candomblé. Bimba, era da linhagem do povo de santo, ogã-alabê (encarregado da curimba - atabaques) em candomblé de caboclo, no Terreiro de Oiá Padê da Riméia, de Mãe Alice, uma das suas companheiras (SODRÉ, 2002). Portanto, conhecia muito bem os ritos litúrgicos do candomblé, e reconhecia a função sagrada do atabaque na execução dos trabalhos de incorporação. Já em relação a permanência de apenas um berimbau, consta-se também nas narrativas dos mestres da angola, que ao retirar a tríade de berimbaus, ele estaria rompendo com a referência à curimba, visto que tendo como proposta a legitimação da capoeira como um desporto, de algum modo, entendeu-se que seria necessário desvincular da capoeira alguns elementos em referência a religiosidade116.

Apesar da preocupação com a legitimação da capoeira enquanto desporto, muitos elementos rituais se mantiveram presentes na modalidade criada por Mestre Bimba, sobretudo no modo como ele apresentava e conduzia os processos de aprendizagem, proferindo parábolas que evocavam sabedorias das mandingas117. Um exemplo disso, era a festa do batizado, que análogo a um rito de iniciação, demarcava a passagem de um calouro (aluno

116 Apesar dessas narrativas, Decânio (1997, p. 185) escreve que, “por ocasião da elaboração do anteprojeto de regulamentação da Capoeira a pedido de Pascoal Segreto Sobrinho, presidente da Confederação Brasileira de Pugilismo, sugeri, com a aprovação do Mestre que fosse adotado o berimbau único e dois pandeiros para facilitar a percepção do ritmo fornecendo mais um parâmetro para avaliar o nível técnico dos praticantes”. 117 Mestre Bimba dizia que o capoeira deveria manter com os pés firmes no chão, pois “A força dus homi tá na terra”; Afirma ser importante relacionar com as plantas: “U candomblé cabocu é mais forti qui u africano pruque trabaia cum as raiz e us nêgu trabaia cum as fôia. As raiz sãu di dentu da terra! As fôia tãu fora da terra!”; Quando algum aluno bocejava, o Mestre fazia o sinal dá cruz e dizia: “Prá num deixa intrá o má!”; Quando seu corpo ou de um aluno apresentava alguma lesão, ele encostava na parte afetava e em seguida apontava para outro lugar e dizia: “lá nêli”, reconhecendo o poder da palavra no afastamento de algo maléfico; Certa vez, um aluno levou um golpe e desmaiou durante o treino. Ao retomar a consciência gritou: “cocorocó”, e então Mestre Bimba, completou “incostu di galu”. (DÊCANIO, 1997).

121

iniciante) para a categoria de veterano. Após a realização de um jogo, sob os olhares de familiares e um padrinho, o Mestre indicava um nome de guerra (apelido) para o aluno, mas primeiramente perguntava para todos os presentes: “Cum qui é qui ele pareci?”. Em tom de alegria, na sequência gritava o cognome que era aplaudido por todos presentes, de modo semelhante à “djina” no candomblé, nome atribuído ao neófito, iniciado à condição de iaô (cavalo de santo). (DECÂNIO, 1997).

Retomando a análise dos instrumentos, o berimbau berra-boi, compreendido como uma autoridade espiritual, normalmente é conduzido por um mestre ou por uma pessoa que tem propriamente o conhecimento dos fundamentos da capoeira. Aquele que leva às mãos o berra-boi, não só dita o toque e a cadência rítmica, mas conduz os trabalhos e tem o poder de dimensionar a energia do ritual da roda. Nessa ótica, há entorno do berimbau uma forte concepção mística, no sentido de ele exercer o papel de produção da experiência ritualística, mas também de absorver as energias que transitam na roda. Por isso, quando se estoura o arame (corda do berimbau), ou quando ele repentinamente desenverga ou desafina, compreende-se que ali se condensou alguma energia estranha, que deve ser acolhida como um aviso, ou seja, como um indicativo de que algo coisa ruim ou tensão está acontecendo ou que talvez está por vir118.

A música no conjunto instrumental e vocal aclimatiza o ritual da roda, dá força e cadência ao jogo, funcionando como transmissão de axé e como um meio de comunicação. Na cosmovisão africana, a oralidade é fonte de conhecimento e a palavra ao ser pronunciada tem poder de criação. O canto na roda, como uma espécie de canal, abre uma fenda no tempo presente, na medida em que faz referência a um tempo primordial da constituição da capoeira, à ancestralidade africana, às formas de resistência contra a escravidão e aos grandes feitos dos antigos capoeiras.

Bahia manda seu axé pra mim Bahia manda seu axé pra mim. Dos mestres que viveram na Bahia Manda pra mim o seu axé

118 Eu estava no pandeiro, o jogo estava tenso, era entre um aluno da casa e uma capoeira visitante. O Mestre deixou o jogo rolar, teve rasteira bonita do aluno da casa na capoeira visitante, que não aguentou a desvantagem e fazia de tudo para acertar violentamente o rosto do parceiro. O Mestre começou então a chamar o final do jogo, dando sinal com o toque do berimbau, mas ambos não paravam de jogar. Ele chamou três vezes e não foi atendido pelos jogadores, até que o arame do berimbau berra-boi estourou, e inevitavelmente o jogo teve que parar.

122

E também sua magia. (Cantiga de Esquilo).

As ladainhas (capoeira angola), corridos e quadras (capoeira regional) são cantigas que evocam sabedorias da ancestralidade, mas também emanam mensagens diretas e indiretas aos capoeiras e têm o poder de influenciar no desenvolvimento do jogo. A ladainha, canto que abre os trabalhos na Capoeira Angola, se inicia com um prolongado “Iêêê”. Segundo Mestre Plínio119, a palavra “Iê” evoca a força ancestral, e tal como um rito de reverência, pede licença e torna presente a memória daqueles que já se foram. A narrativa da ladainha soa como um canto evocativo dos fundamentos da capoeira, que se reafirma pela louvação que é repetida pelo coro: “Iê viva meu mestre/iê viva meu mestre, camará”. Por outro lado, a ladainha também pode se enunciar como um sinal daquilo que está por vir ou como um desafio para os jogadores que se posicionam ao pé do berimbau. O cantador ou até mesmo um dos jogadores que está preste a adentrar a roda, puxam cantos que lançam recados que podem soar como elogio ou zombaria. Tal papel também é atribuído na condução dos corridos, que dentro da lógica da comunicação do ritual não pode soar em vão, por isso, o cantador experiente deve estar atento ao jogo, sensível à sua dinâmica, já que as músicas que evoca se atualizam como uma narrativa dos acontecimentos no interior do jogo. Do mesmo modo, o canto posto sob suas mensagens simbólicas, atua como uma provocação ou aviso que é capaz de influenciar o estado emocional do capoeira, e consequentemente, no desdobramento do jogo.

Um toque que eu dei malandro bambeou Quem estava de lado logo espiou A rasteira entrou A malandro caiu Lá na roda ninguém viu (Corrido de Mestre Cláudio e Felipe)

Na epistemologia das macumbas assentada nas lógicas dos encantes, não há separação entre o corpo e a palavra. “A palavra e todas as suas possibilidades de produção de linguagem e comunicação estão inscritas sobre os mesmos princípios e potências que versam acerca dos poderes do corpo e suas produções de discursos não verbais. (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 52). Assim, no ritual da roda, as palavras proferidas pelos cantores influem na vibração dos

119 Mestre Plínio conta que ao início da roda de angola se evoca a palavra “Iê”, no sentido de pedir a força a toda a ancestralidade que constitui essa arte. In: Documentário Capoeira Angola: Mito e Magia, 2011.

123

corpos, modulando as emoções e percepções, por isso, “o ritmo do conjunto típico que acompanha as melodias e improvisos dos cantadores adquire graça, ternura, encanto e misticismo que bole com a alma dos capoeiristas”. (PASTINHA, 1988, p. 28 – 29).

Cartografada sob a dimensão do ritual, a roda se faz como um tempo/espaço de linguagem complexa e polifônica, que revela códigos da memória ancestral e saberes da mandinga. Essa linguagem só pode ser apreendida de modo vivencial, ou seja, quando experimentamos a ritualização da roda, ou se bem quisermos, adentramos o espírito do jogo. Desse modo, a roda se traduz como um microcosmo, como uma “abertura”, que recria uma realidade extraordinária, de uma temporalidade mítica, orientada por regras singulares que deixam em suspenso, temporariamente, a realidade bruta da vida.

O pé do berimbau, uma região conhecida como boca-da-roda, donde saem os capoeiras para o jogo, se enuncia como um lugar de passagem para esse mundo mítico em forma de jogo. “O pé do berimbau, antes do começo de um jogo, é um lugar mágico e estranho. É dali que a gente parte pra dentro da roda, pra dentro do jogo, e pra dentro da capoeira. É como se fosse o portal entre o universo macro do mundo, e o microcosmos da capoeira”. (PASSOS NETO, 2011, s/p).

Fotografia 27: Região da boca de roda. Capoeira Angola Relíquia de espinho remoso, s/d.

Fonte: Acervo digital do Portal Capoeira (s/d)

124

Antes da saída para o jogo, ao pé do berimbau, o lugar de passagem para o microcosmo da capoeira, os capoeiras fazem gestos ritualísticos como se evocassem forças extraordinárias, pedindo licença e/ou proteção. Expressando uma linguagem de mandinga, preparam o corpo, na intenção de benzê-lo ou fechá-lo diante dos desafios que estão por vir. Alguns fazem sinal da cruz, estendem as palmas das mãos para o alto ou juntam as mãos como se fizessem preces; outros ainda, tocam ou riscam o chão ou levam rapidamente a mão na nuca como é usual no candomblé e umbanda.

“O velho jogador fez sua mandinga – traçou com o dedo um ponto riscado na terra” (PASSOS NETO, 2011, p. s/p). Nesse pequeno relato descrito pelo capoeira e pesquisador Nestor Capoeira, podemos identificar uma referência a cosmogonia africana. O rito de riscar a terra é utilizado nas cerimônias do candomblé e na umbanda, como uma função litúrgica de iniciação, purificação ou evocação de um deus. No rito de incorporação da umbanda, os médiuns fazem pontos riscados que apresentam símbolos, tais como: sóis, estrelas, triângulos, lanças, flechas, cruzes, folhas, raios, ondas, que identificam a entidade que se manifesta e que guiará os trabalhos. Os pontos riscados, geralmente identificados no chão ou em tábuas de mármore ou madeira, e feitos tradicionalmente com pemba, uma espécie de giz, confeccionado com calcário, se apresenta como um código espiritual e um instrumento que tem o poder de fechar, trancar ou abrir os terreiros, demarcando o limiar entre o mundo espiritual e o mundo material.

Na capoeira angola é rito primordial os jogadores voltarem suas cabeças para o chão, no sentido berimbau, por meio do movimento da negativa ou queda de rim, antes de adentrar o jogo. Tal linguagem corporal remete à memória do rito de “bater cabeça” presente nas cerimonias sagradas afro-brasileiras, embora também, possamos observar tal gesto em outras manifestações religiosas. Nos terreiros, o ato de bater cabeça voltando-se em direção ao assentamento sagrado120 tem o propósito de estabelecer a conexão entre os iniciados, os guias e as divindades que atuam no espaço cerimonial. Bate-se a cabeça no chão porque toda a cabeça (ori) é regida e subordinada à um orixá (divindade). Nesse sentido, tal gesto é um sinal de respeito e reverência às divindades, e se pontua como um canal de abertura às irradiações espirituais que estão na terra.

120 O espaço sagrado na umbanda, chamado de congá, é análogo ao altar do catolicismo, pois é onde se assentam os santos. No candomblé não há altar e nem santos, porém, o lugar sagrado onde acontecem os ritos e se posiciona o líder espiritual (babalorixá ou ialorixá) é chamado de peji.

125

Cabe lembrar que na visão de mundo africana o sagrado está no chão, “localiza-se primordialmente na terra, no baixo (em oposição ao legado judaico-cristão que situa o sagrado no céu, no alto)” (REIS, 1997, p. 208). Como vimos no capítulo sobre a Filosofia Afroperspectivista, é na natureza, no aiê, que as entidades cósmicas encontram seus pontos específicos e se comunicam com os humanos. Por isso que nos templos sagrados há espaços reservados para vegetais, animais e minerais, já que os elementos naturais são condutores das energias que vibram do campo espiritual. O contato com a natureza é um fundamento primordial dos ritos africanos, inclusive, dá-se importância do contato dos pés com o chão durante as giras121, pois isso visa o estabelecimento da ligação entre os homens e os poderes que emanam da terra.

A convergência entre o rito de entrada na roda executado na capoeira angola e o rito de “bater a cabeça” dos cerimoniais afro-brasileiros, nos permite identificar a bateria da capoeira à um assentamento sagrado (congá/peji). Não se sai para o jogo antes de fazer reverência ao berimbau, nem tampouco permite-se que os jogadores invadam a área demarcada pelos instrumentos. Preza-se demasiado respeito aos instrumentos, e se exige postura e atenção dos tocadores, pois dali se condensa e emana a força espiritual (axé) que guiará todo o ritual da roda. Em algumas escolas, a postura exigida se aproxima de uma disciplina corporal conservadora, as pernas devem estar fechadas, em destaque das mulheres e os pés firmes no chão.

Na linguagem da mandinga há uma grande importância do rito da “preparação”, isto é, a atenção dada a interiorização espiritual do sujeito antes de um acontecimento cerimonial: recolhimento do corpo, privação de sexo ou de certos alimentos e bebidas, e ainda banhos com ervas e orações. Principalmente na linhagem da Capoeira Angola, observamos anteriormente, a expressão de linguagens corporais ritualísticas, antes de adentrar a roda, que podem ser identificadas como ritos de “preparação”. Tais ritos extrapolam o momento do acontecimento da roda, pois preocupa-se com a “preparação”, antes mesmo da realização da roda. O capoeira “prepara” o corpo antes de sair de casa, assim como também o mestre “prepara” o espaço onde acontecerá o ritual da roda.

121 Os terreiros de candomblé jeje priorizam que o chão do espaço sagrado seja de terra batida e a estrutura das paredes rústicas, de modo a estabelecer um contato mais bruto com a realidade natural. Esta característica pude observar na Tenda Ilê Axé de Iansã, em Araras/SP. Os candomblé keto tem chão de piso liso, característica que observei na Casa Igbá Omi Asè Afojidan e Comunidade Lua Branca.

126

Mestre Paulo dos Anjos122, discípulo de Canjiquinha, dizia que a roda começava sempre no dia anterior, quando ele estava passando sua roupa. Mestre João Grande123, discípulo de Mestre Pastinha, fala que o capoeira precisa estar “preparado” para a roda, portanto, necessita alimentar o espírito: “Pra alimentar o espírito tem que fazer oração. Oração com o corpo limpo. Tomar banho de folha pra dar força ao espírito, ficar forte”124.

Em visita a algumas academias para participar de vivências, treinos e rodas, observei uma série mandingas, que dão visibilidade à lógica da “preparação”, no sentido de busca de proteção. Um jovem mestre plantou na calçada do portão da sua escola Espada de São Jorge. Essa planta que é biologicamente tóxica se ingerida, tem forte simbolismo mítico de proteção e prosperidade, e atua como um escudo que defende o espaço de energias negativas. No catolicismo popular, São Jorge é o santo guerreiro que montando no seu cavalo e com uma espada empunhada na mão matou um dragão. Sincretizado com Ogun, orixá do ferro e da guerra, tem o poder combativo: corta, bloqueia e ataca os inimigos. No interior da escola há vasos de plantas espalhadas - arruda, comigo ninguém pode, guiné, entre outras -, que ele diz que é para conduzir as forças espirituais e proteger o espaço das vibrações ruins trazidas pelas pessoas125. Um turíbulo em latão, utilizado para defumação fica dependurado na parede e indica que o espaço periodicamente é purificado; e uma espécie de mandala circular, posicionada no centro da parede e que se estende em direção ao chão por uma corrente de miçangas de cores azul claro, provavelmente faz reverência a Iemanjá. O jovem mestre me disse que quando realiza as rodas mensais em sua casa, começa a “preparar” o espaço já na noite anterior. Dentre os segredos que me revelou, o rito “preparação” contempla a defumação do espaço e dos instrumentos, e segue com uma prolongada atenção dada a afinação dos berimbaus, que pode durar até três horas.

122 José Paulo dos Anjos, nascido no Sergipe em 1936, mudou-se para Salvador aos 14 anos, onde conheceu Mestre Canjiquinha, com quem aprendeu a Capoeira Angola. Nos anos 70, fundou o Grupo Anjos de Angola na cidade de São José dos Campos – SP. Importante preservador da capoeira antiga e notável cantador, veio a falecer em 1999. 123 João Oliveira dos Santos, é uma das principais referências da Capoeira Angola e um dos mestres mais antigo ainda em atividade. Irmão do Mestre João Pequeno, foi discípulo de Mestre Pastinha, e maior responsável pela difusão da modalidade da Capoeira Angola em terras estrangeiras. Atualmente vive em Nova York/EUA, onde fundou o grupo Capoeira Angola Center, que possui filiais na Itália, Finlândia, Sérvia e Japão. 124 Falas dos Mestre Paulo dos Anjos e Mestre João Grande retiradas do Documentário Capoeira Angola: Mito e Magia, 2011. 125 Certa vez, eu, inocentemente, diante dos saberes das mandingas, peguei um galho de arruda do vaso da sua escola e coloquei na orelha. Eu percebi que o Mestre me olhou estranhamente, mas nada comentou. Quando fui embora, recebi uma mensagem sua, perguntando-me se eu estava bem, pois eu havia cometido um erro ao pegar o galho de arruda, já que a planta fora cruzada para purificar o espaço e tinha o poder de absorver as energias ruins das pessoas que visitavam o local. Ao colocar a planta na orelha, ele me disse que era como se eu estivesse pondo no meu corpo todas as energias ruins que ela canalizou. Como disse que estava bem, ele completou aliviado: “Então você está protegida”.

127

Um velho mestre, após a realização de uma oficina de movimentos concedida à diferentes escolas de capoeira, disse que não poderia encerrar a atividade com a realização de uma roda, pois não havia “preparado” o espaço. Fiquei a pensar se realmente ele não havia feito as mandingas necessárias anteriormente, ou se a sua fala era propriamente uma mandinga, ou seja, uma artimanha que o permitia escapar da responsabilidade de realizar uma roda na sua casa com diferentes capoeiras, já que tal acontecimento poderia resultar em acontecimentos inesperados, dada a rivalidade entre os capoeiras. Nesse dia, avistei em um dos cantos da sua academia, pequenos assentamentos de mandingas, velas e um tipo de cuia com um objeto que não identifiquei. E assim permaneceu o mistério...

O preparo do espaço para a realização da roda parece ser algo comum para os seguidores da Capoeira Angola, que por sinal está mais próxima das raízes africanas. Observei que muitos angoleiros são adeptos das religiões do candomblé ou umbanda. Tal constatação parece dar sentido a fala do antropólogo Waldeloir Rego: “O capoeirista procede como referência à capoeira, como procederia normalmente com outra coisa, procurando sempre se proteger, por esse caminho que é o que foi introduzido na sua formação”. (REGO, 1968, p. 39).

Bota mandinga aê Bota mandinga Bota mandinga aê Capoeira de Angola Eu vou jogar (Cantiga popular da capoeira)

Embora atualmente possamos identificar diversas relações entre as práticas que envolvem a capoeira aos ritos sagrados de matriz africana, no passado, com mais evidência, eram fortes as ligações entre a capoeira e o candomblé, ainda que, possamos afirmar que ambas as culturas se constituíram independentemente (REGO, 1968). Consta-se que devido a proibição da prática da capoeira em áreas públicas, sancionada pelo Código Penal de 1890, as rodas eram realizadas no interior dos terreiros. E mesmo após a descriminalização da prática nos idos dos anos 30, as rodas não se desligaram completamente dos espaços onde eram executados os ritos sagrados. Um exemplo disso foi o Barracão do Mestre Waldemar da Paixão, localizado no bairro da Liberdade, na cidade de Salvador/BA. No mesmo espaço em que se realizavam as rodas, podia também acontecer uma cerimônia de candomblé ou ainda

128

um samba (ABREU, 2003). Os registros fotográficos da época, mostram que a área onde se praticada o jogo da capoeira, tinha no chão simbologias riscadas, como um indício que ali tivera ocupado um ritual sagrado.

Fotografia 28: Roda no Barracão do Mestre Waldemar126

Fonte: Abreu (2003)

No mesmo contexto em que o Barracão do Mestre Waldemar se assentava como um terreiro da antiga capoeira baiana, Mestre Canjiquinha, que era de Iansã e descendente de avós africanos, preparava suas mandingas para se proteger dos supostos inimigos. Antes das exibições públicas de capoeira, consultava sua tia e irmã - mães de santo -, para verificar se havia algum ebó (oferenda) despachado por outrem, feito em seu nome (REGO, 1968). Do mesmo modo, nos salões onde realizava as rodas, se utilizava, a título de decoração, elementos litúrgicos dos ritos de proteção do candomblé, assim como podemos confirmar no relato de Rego (1968, p. 42).

As paredes do salão eram infestadas de ewê peregun (folhas de perugum) cruzadas, espada de Ogum num canto, corredeira no outro, pemba, mui discretamente pulverizada, em lugar estratégico, isso sem falar de pequenos

126 Observe o detalhe no chão (círculo riscado), onde o capoeira apoia sua mãe esquerda e equilibra na bananeira.

129

alguidares contendo acaçá, charuto, farofa de azeite de dendê, pipoca e cachaça, habilmente escondidos nos canteiros do jardim, na parte de cima, logo na porta de entrada.

Ao cartografar essas mandingas, visualizo que roda de capoeira não é tão somente um lugar onde os jogadores exibem suas performances físicas (embora muitas rodas, sobretudo, na linhagem da capoeira contemporânea se resumem puramente nisso), mas um lugar ritual, onde os jogadores empenham uma energia espiritual e praticam saberes em forma de rito em reverência as suas crenças e ancestralidade. A roda da capoeira, sob a episteme das macumbas, é um assentamento – assim como um terreiro -, onde se entrecruzam símbolos sagrados e lógicas dos encantamentos, revelando uma fusão não só entre jogo e luta, lazer e espiritualidade, como também entre a realidade profana e sagrada, onde nota-se a indistinção entre matéria e espírito.

(...) a roda de capoeira é o mundo, é um mundo diferente, particular simultaneamente profano e sagrado. Profano porque, para ter acesso a ele, os capoeiristas pagam simbolicamente, ou seja, eles “compram o jogo”. Mas, ao mesmo tempo, é o lugar do sagrado, porque lá ninguém entra, tampouco sai, sem antes de benzer. Além disso, ao final do ritual, canta-se uma música de despedida, quando os capoeiristas desejam-se, mutuamente, uma “boa viagem” em seu regresso do “mundo da roda” ao “mundo dos homens”. Estamos diante de uma visão de mundo distinta da ocidental no sentido de que há aqui uma indistinção entre matéria e o espírito (REIS, 1997, p. 207 – 208).

Embora possamos identificar menções ao catolicismo popular quando nos referimos aos nomes dos toques do berimbau – São Bento, Santa Maria e Ave Maria -, ou às cantigas - “Santo Antônio é protetor na barquinha de Noé” -, a linguagem do ritual na roda, sobretudo na Capoeira Angola, incorpora simbologias da tradição dos terreiros e da memória africana que se reterritorializou no Brasil. Essas relações entre a capoeira e os ritos litúrgicos de matriz africana, não pretendem identificar a capoeira como uma prática religiosa. O que observamos é a continuidade da memória e das linguagens constituídas pelas lógicas da africanidade e um reconhecimento das dimensões sagradas e espirituais que mantém vivas as raízes ancestrais da capoeira. Como observamos no capítulo sobre a Filosofia Afroperspectivista, os terreiros se configuraram como um território de preservação do patrimônio africano, e como redutos das manifestações dos negros brasileiros. Desse modo, as relações entre a capoeira e os ritos do

130

candomblé e umbanda são históricas e compuseram, de certa forma, o mesmo caminho de resistência nos processos de reafirmação da cultura afro-brasileira.

Nota-se que atualmente muitos grupos procuram omitir ou desvincular da capoeira os elementos de matriz africana, excluindo ritos e fundamentos que podem ser identificados com os símbolos relativos à episteme das macumbas127. Esse distanciamento, que ocorre em grande medida nas expressões da capoeira contemporânea, provavelmente procedem do receio em relação aos preconceitos e intolerâncias que recaem sobre as manifestações afro- brasileiras. Por isso, observa-se que a capoeira que se expandiu para o mundo, tem acentuado as características esportivas e marciais da prática, bem como os aspectos performáticos dos movimentos, o que leva o acontecimento da roda a ser visto mais como um espetáculo acrobático misturado com luta, no sentido da exibição das capacidades atléticas dos jogadores. Na medida em que a capoeira contemporânea focaliza apenas os aspectos esportivos e marciais da prática, omite ou até exclui os elementos de matriz africana, contribuindo para um processo de desafricanização da cultura da capoeira. Do mesmo modo, provoca um apagamento da sua memória ancestral, e, inevitavelmente, o enfraquece ou elimina a dimensão ritualística da roda.

Um fenômeno recente que vem causando polêmica na comunidade capoeirística e grande preocupação no movimento negro, bem como dos mestres que procuram preservar as raízes ancestrais da capoeira, é o crescimento da Capoeira Gospel ou Capoeira Evangélica. A capoeira que antes encontrava resistência no interior das igrejas neopentecostais, agora tem sido instrumentalizada como uma ferramenta de evangelização. Cantigas tradicionais ganham uma nova roupagem, converte-se “A palma de Bimba é um, dois, três” para “A palma de Cristo é um, dois, três”, ou ainda, em vez de se cantar “Zum, zum, zum, capoeira mata um”, entoa-se “Zum, zum, zum, Jesus Cristo salva um”128. Nesse sentido, mestres e professores que se converteram ao evangelismo, atuam como pastores e utilizam a capoeira como uma celebração de louvor, e assim, as rodas e os treinos se tornam experiências religiosas, ao passo que são alternados por momentos de pregação e oração.

127 Dezenas de vezes quando realizei vivências ou quando participei de rodas, notei certa resistência de algumas pessoas do público, que dizem num sentido pejorativo: “É macumba!” 128 Ouça música de capoeira gospel a partir do cd do Mestre Cari do grupo Restauração Capoeira. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gNfFzSNJhbs

131

Fotografia 29: Oração em treino de Capoeira Gospel

Fonte: BBC (2017)

Mestre Suíno129, líder do movimento “Capoeiristas de Cristo”130, praticante de capoeira desde os anos 70, converteu-se há 25 anos, e tem atuado como o maior difusor da Capoeira Gospel, realizando encontros nacionais e orientando na formação de outros capoeiras há pouco mais de uma década. Segundo ele, estima-se que no Brasil, há cerca de cinco mil adeptos desse movimento e cerca de 30 “ministérios” de capoeira diretamente ligados às igrejas (SCHREIBER, 2017). Assim como Mestre Suíno, outros defensores da Capoeira Gospel, dizem que a capoeira tem um papel social e educacional, sendo que “o berimbau vai aonde o terno não chega”. Dada a linguagem popular inerente a própria cultura da capoeira, nota-se que esse movimento evangelizador tem ocupado presídios, escolas públicas e bairros periféricos, onde a população tem pouco acesso às políticas públicas.

A relação entre os depoimentos de mestres convertidos131 e a crescente difusão das igrejas neopentecostais na sociedade brasileira, nos permite concluir que o fenômeno da Capoeira Gospel, provavelmente está relacionado a duas questões: 1. A necessidade dos

129 É Elton Pereira de Brito, presidente do Grupo Candeias, fundado em 1977. 130 Há muitos grupos de capoeira gospel espalhados por todo o país, tais como: Restauração Capoeira, Associação de Capoeira Shalom, Aliança Brasileira de Capoeira Gospel, entre outros. 131 Contra-mestre Gilson praticava capoeira desde os 14 anos, mas quando se converteu ao evangelismo, decidiu parar de praticá-la, pois não era visto com bons olhos pela comunidade e identificava que as músicas e ritos da capoeira faziam referências à elementos litúrgicos de matriz africana. Contudo, após conversar com o Pastor, sugerindo ensinar a capoeira como um recurso de multiplicar a “palavra de Deus”, recebeu aval da igreja, então, voltou a treinar, e atualmente é Pastor e líder do Grupo Resgate Capoeira Gospel. Depoimento disponível em: http://capoeira-resgate.blogspot.com/p/capoeira-de-deus-ou-nao-sabemos-que.html.

132

praticantes de capoeira de serem aceitos nas suas comunidades evangélicas, que por vezes, demonstram intolerância à ancestralidade africana da capoeira, e, consequentemente, demonizam a sua prática, alegando que “não é coisa de Deus”. 2. E ao macro projeto político das igrejas neopentecostais que estrategicamente se apropriam da cultura popular como uma ferramenta de evangelização das populações mais pobres.

O que gera preocupação em relação ao crescimento desse movimento é que muitas igrejas evangélicas se posicionam de forma intolerante à diversidade religiosa e às diferenças culturais, sobretudo, às manifestações de matriz africana. Nesse sentido, esse projeto evangelizador, por ora pautado numa ótica segregacionista, somado ainda à atuação conservadora da bancada evangélica no Congresso Nacional, pode fortalecer ainda mais os discursos de ódio e o racismo epistêmico na sociedade brasileira132. Nos últimos anos, acompanhamos nos noticiários, violentos ataques aos terreiros de candomblé e de umbanda, aliciados por pastores e traficantes133. Nesse crescente contexto de intolerância, especula-se que, a capoeira, nascida da tradição negra, contraditoriamente, possa ser instrumentalizada pelo movimento evangelizador como uma forma de combate às próprias expressões culturais que a constituiu.

A capoeira construída historicamente como uma cultura de resistência visa fortalecer a interação entre as pessoas, portanto, não nega “o outro”, a diferença, mas pelo contrário, acolhe os diferentes posicionamentos dos seus praticantes sob a égide da comunidade. Do mesmo modo, embora sejam identificados ritos com referência à liturgia sagrada africana, o acontecimento da roda não reduz a uma experiência de culto doutrinário, no sentido de pregação de uma ótica religiosa. As referências às simbologias sagradas, expressas nas cantigas e nos gestos dos capoeiras, se apresentam de forma sutil e indireta, dando ênfase a totalidade do ritual, que envolve o jogo, a musicalidade e o espírito comunitário.

Sendo uma manifestação cultural de resistência, a capoeira sempre teve uma capacidade criativa de se adaptar e de se transformar na intenção de sobreviver diante das adversidades e circunstâncias. Apresenta-se como uma cultura polifônica e de caminhos em

132 A banca evangélica cresce a cada eleição no parlamento brasileiro, e atualmente, representa 16% do total de deputados, contudo, quando se considera o total de deputados aliados à Frente Parlamentar Evangélica, registra- se 198 dos 513 parlamentares (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2015). Mesmo que o Estado brasileiro tenha garantia constitucional em se afirmar laico, observa-se na última década, uma forte relação entre política e religião. Parlamentares utilizam o recinto político como espaço de culto, e afirmando atuar em nome de Jesus, defendem pautas cada vez mais conservadoras que interessam às suas crenças particulares. (BENDINELLI, 2017). 133 “Uma série de ataques a terreiros de umbanda e candomblé na região metropolitana do Rio de Janeiro instaura uma onda de medo e incerteza”. (RODNEY, 2017).

133

encruzilhadas que pode ser vivida de vários ângulos, considerando os posicionamentos dos seus agentes – os capoeiristas/capoeiras. Alguns vão dizer que ela é luta – outros -, jogo, dança, esporte, ritual, experiência espiritual ou ainda uma cultura que envolve todos esses aspectos ao mesmo tempo134. A capoeira é livre, mas não podemos perder de vista, que ela é uma manifestação cultural que possui símbolos e fundamentos próprios ligados à ancestralidade africana. Portanto, acredito ser necessário empenhar um debate sobre os possíveis efeitos socioculturais provindos dos movimentos que, de algum modo, promovem o apagamento dos elementos da sua ancestralidade e a instrumentalizam como um mecanismo de doutrinação religiosa e política.

7.1.1. A capoeira é jogo ritual

O negro teve que aprender a jogar e ele soube jogar. Vivendo no cotidiano hostil da escravidão, onde eram tão restritas as possibilidades de liberdade, a luta, no seu caráter combativo não fora suficiente para vencer o opressor. Foi preciso jogar para lutar, criar artimanhas, códigos e recursos de linguagem no seu próprio corpo para sobreviver numa realidade tão dura. Na ginga do corpo guerreiro, na dança e na música, o negro inventou dispositivos de combate indireto, capazes de “dobrar” os limites factíveis postos pelo colonizador. Jogando, esquivando e seduzindo seus “adversários”, resistiu às adversidades e reterritorializou suas visões de mundo na roda da opressão. Foi nesse jogo de corpo, que a capoeira, nas suas características guerreiras e lúdicas, se inscreveu na história como um dos mais efetivos dispositivos de resistência negra. Dada a sua capacidade de resiliência e astúcia frente às forças que buscavam promover o apagamento das expressões afro-brasileiras, a roda de capoeira, que até pouco menos de cem anos era proibida, mas que hoje é Patrimônio Imaterial da Humanidade (UNESCO, 2014), pode ser interpretada como um jogo perspicaz que recria uma metáfora do confronto social travado entre negros e brancos nos tempos escravagistas.

Numa compreensão ampla, o jogo é compreendido como uma ação humana que envolve a tríade: limite, liberdade e invenção (CAILLOIS, 1990). Por limite entendemos a

134 Certa vez em conversa com o jovem mestre da Capoeira Angola, ele declarou que a capoeira na sua ótica particular não era uma cultura inventada pelos negros escravizados, mas uma entidade, uma força espiritual que fora canalizada nos africanos em terras brasileiras, como uma forma de combate capaz de libertá-los das violências da escravidão.

134

ideia de um plano fronteira, que determina o que está “no jogo”, “em jogo” e “fora do jogo”. Assim, o jogo se apresenta, essencialmente, “como uma ocupação separada, cuidadosamente isolada do resto da existência, e realizada, em geral dentro de limites precisos de tempo e de lugar” (CAILLOIS, 1990, p. 26). Do mesmo modo, sabemos que mecanismo do jogo funciona necessariamente por meio de um sistema de regras que dá significado a sua engrenagem, ou seja, estabelece-se um conjunto de regras que orientará o que é válido para que o jogo aconteça. Portanto, o jogo designa “não somente a atividade específica que nomeia, mas também a totalidade das imagens, símbolos ou instrumentos necessários a essa mesma atividade ou ao funcionamento de um conjunto complexo”. (CAILLOIS, 1990, p. 10).

Em relação a liberdade, compreendemos que as pessoas devem escolher se de fato desejam se aventurar na experiência proposta pelo jogo, tornando-se autonomamente jogadores. Exige-se então que haja uma sujeição voluntária dos participantes a esse conjunto complexo, na medida em que eles devem assumir temporariamente os papéis propostos e aceitar as restrições dadas, ou seja, o que é permitido e proibido, pois, do contrário, o universo recriado pelo jogo pode ser quebrado, o que resultaria na inviabilidade da sua dinâmica.

Compreende-se então, o jogo como um espaço/tempo de invenção, no sentido de um “universo recriado”. Contudo, consiste sempre numa recriação da vida própria, na produção de um mundo de encanto e do consentimento em viver temporariamente uma ilusão proposta, que não se sabe ao certo o que virá advir. No universo do jogo, a representação confere a presença de toda a ação, e o fingimento é posto como verdade, portanto, “tudo o que é, naturalmente, mistério ou simulacro está próximo do jogo” (CAILLOIS, 1990, p. 24).

Tais definições nos levam ao pensamento de Huizinga (2001), que diz: “reconhecer o jogo é, forçosamente, reconhecer o espírito, pois o jogo, seja qual for a sua essência, não é material, no jogo existe alguma coisa “em jogo” que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação”. (HUIZINGA, 2001, p. 4).

O jogo é uma ação livre, vivida como fictícia e situada para além da vida corrente, capaz, contudo, de absorver completamente o jogador, uma ação destituída de todo e qualquer interesse material e de toda e qualquer utilidade; que se realiza num tempo e espaço expressamente circunscritos, decorrendo ordenadamente e segundo regras dadas e suscitando relações grupais que ora se rodeiam propositalmente de mistério ora acentuam, pela simulação, a sua estranheza em relação ao mundo habitual. (HUIZINGA, 2001, p. 34-35)

135

A roda de capoeira, como a vemos/entendemos nos dias de hoje, é um lugar de invenção, que limita o espaço do acontecimento do jogo. Os corpos que compõe a espacialidade circular do rito, se afiguram como o contorno fronteira entre a realidade de dentro e fora. Assim como a ritualização do jogo só acontece sob a fundamentação de limites/regras que são acolhidas autonomamente pelos jogadores, ao mesmo tempo em que direcionam e legitimam o que é próprio do jogo da capoeira. O toque do berimbau que anuncia a modalidade a que se deve jogar, os golpes modulados e permitidos ao tipo do ritmo tocado, a maneira de se adentrar a roda (posicionados de cócoras aos pés do berimbau), a forma de se executar uma chamada (capoeira angola), a maneira de se “comprar” o jogo (capoeira regional), e a volta ao mundo são exemplos básicos da organicidade da roda de capoeira.

Na obra “Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem” de Caillois (1990), o autor define que há quatro categorias fundamentais de jogos: agon, alea, mimicry e Ilinx, que são caracterizados, respectivamente, pelo papel do combate/competição, sorte/azar, simulacro e vertigem.

Os jogos conferidos pela agon, “(...) aparecem sob a forma de competição, ou seja, como um combate em que a igualdade de oportunidades é criada artificialmente para que os adversários se defrontem em condições ideias, susceptíveis de dar valor preciso e incontestável ao triunfo do jogador” (CAILLOIS, 1990, p. 33-34). Trata-se, portanto, de jogos em que o resultado depende unicamente das qualidades dos jogadores, sem interferência de agentes externos, ou seja, se baseia na agilidade, resistência, vigor, habilidade, memória, entre outras virtudes empenhas pelos jogadores, tanto no aspecto da força física (lutas, atletismo, esportes de bola, etc) ou intelectual (xadrez).

Em clara oposição ao papel de agôn, nos jogos conferidos pela alea, uma decisão não depende das habilidades do jogador, pois trata-se da sorte, ou seja, se assinala e revela a benevolência do destino. Nesse sentido, o jogador se lança ao risco e se coloca face ao jogo de forma passiva, “limita-se a aguardar, expectante e receoso, as imposições da sorte” (CAILLOIS, 1990, p. 37). O jogador arrisca uma aposta, como a exemplo dos jogos de roleta, que podem resultar na desgraça total ou então na graça absoluta. Contrariamente aos jogos de combate, negam a qualificação e o treino, pois impera-se os “poderes” da deusa Fortuna, do acaso e da imprevisibilidade, portanto, “surge como uma insolente e soberana zombaria do mérito”. (CAILLOIS, 1990, p. 37).

136

Os jogos em que se predomina o papel da mimicry, supõe a aceitação temporária de uma ilusão, ou, pelo menos, a criação de universo e de cenários, sob alguns aspectos imaginário. A pessoa encarna um personagem e consente o seu respectivo comportamento, como a exemplo dos jogos de mímica ou das brincadeiras em que a crianças se fazem de aventureiras ou de animais. Nesse sentido, nos jogos da mimicry “encontramo-nos, então, perante uma variada série de manifestações que têm como característica comum se basearem no facto de o sujeito jogar a crer, a fazer crer a si próprio ou a fazer crer aos outros que é outra pessoa” (CAILLOIS, 1990, p. 39). Desse modo, uma das características fundamentais desses jogos é a invenção incessante, a dissimulação da realidade e a simulação de uma realidade outra, que converge com uma ação de liberdade, de convenção e de suspensão do real e espaço e tempo delimitados.

Por fim, os jogos que tem como caráter a Ilinx, “associa aqueles que assentam na busca da vertigem e que consistem numa tentativa de destruir, por um instante, a estabilidade da percepção e infligir à consciência lúcida uma espécie de voluptuoso pânico” (CAILLOIS, 1990, p. 43). Trata-se, portanto, dos jogos que envolvem situações de perigo ou que provocam um desnorteamento momentâneo, que de alguma forma podem levar o sujeito a atingir a sensação de êxtase, como por exemplo, girar velozmente no gira-gira, escorrer por um toboggan ou lança-se em queda das alturas.

Embora possamos conceber que em cada jogo predomina-se com mais evidência um desses papéis, pode-se considerar que em alguns jogos são conferidos duas ou mais das características apresentadas acima. No caso do jogo da capoeira podemos considerar que convergem simultaneamente agon, alea, mimicry e ilinx.

Sob o papel da agon, a capoeira é um jogo de combate porque os jogadores, postos sob as mesmas regras, buscam expressar suas habilidades e destrezas físicas, no sentido de alcançar alguma vantagem ou criar uma dificuldade para o parceiro de jogo. Contudo, tal combate compreendido sob lógica da vadiação, não se desenvolve no plano da competitividade propriamente dita, no sentido dos jogos ocidentais, em que o objetivo é derrotar o oponente, levando-o ao nocaute, como vemos, por exemplo, no boxe ou em outras artes marciais. Na capoeira, tal postura de competitividade levaria ao fim do jogo, logo a uma imobilidade das ações. Com efeito, o combate na capoeira é visto como um diálogo, não se joga “contra” o outro, mas “com” o outro, numa dialética constante de perguntas e respostas corporais, caracterizada por uma luta indireta. Busca-se na movimentação, no vai e vem

137

cíclico dos corpos, demostrar o furo, isto é, a falha do “outro”, passando uma rasteira no tempo certo ou acertando uma parte do corpo que ficou desprotegida com uma cabeçada ou ponta pé.

O jogo de capoeira sob o papel da agon tem aparência similar dos jogos de combates africanos, tais como n’golo e kambangula, praticado nos ritos de iniciação pelos povos pastoris do sul de Angola. Esses jogos, executados no interior de uma roda e ritmados por palmas, privilegiam ataques indiretos (o primeiro com os pés, e o segundo com as mãos), no intento de seduzir o outro com quem se joga, portanto, o corpo combativo é ao mesmo tempo lutador e brincante. Nesse sentido, a agon na capoeira se configura mais pela habilidade física e pelos saberes da mandinga, do que pela força física, o que confere a ela um jogo de combate que mistura expressões guerreiras, improviso, criatividade e ludicidade.

Considerando o papel da alea, embora ela apareça com menos frequência, os jogadores podem ser presenteados com a sorte ou azar. Agentes externos ou ocasiões que não dependem da habilidade e do treino do jogador podem influenciar no desenrolar de algum acontecimento do jogo. Pingos de suor nos olhos podem provocar uma breve perda de visão do jogar, que temporariamente pode se colocar em uma situação de risco, o que para ele seria um azar e para o outro uma sorte. Um chão liso, acidentado ou resquícios de areia podem provocar um escorregão ou um tropeção, e, consequentemente, uma desvantagem na mobilidade dos capoeiras, mas por outro lado, também surtir com a possibilidade do jogador de se safar de uma situação perigosa, ou improvisar diante de um golpes que poderia ter sido desferido com precisão.

Tendo em vista as características da mimicry, entendemos que a ideia do simulacro é a característica própria da ritualização do jogo da capoeira, e tem aparência na performance corporal dos jogadores. Eles teatralizam gestos que remetem às práticas de trabalho e a magia, expressam passos característicos de danças para inebriar o parceiro de jogo, e fazem provocações de forma lúdica entre as movimentações dos golpes de luta. Nesse sentido, “nenhuma finalidade estrita comanda o jogo, nem há uma divisão radical entre as formas de luta e as de brincadeira ou as formas de ataque e defesa” (SODRÉ, 1983, p. 204).

No jogo da capoeira angola, por exemplo, que tem uma durabilidade maior, entre cinco a quinze minutos, podendo até chegar a trinta minutos, se desenvolve uma história que é narrada pela linguagem corporal dos jogadores. Tal narrativa, incorporada pelos corpos, tem aparência de uma coreografia, e como um texto concreto desenha situações que tem apelo de

138

um “caráter estético, reinventando cenários, seres, imagens e movimentos” (ARAÚJO, 2004, p. 37). Tal característica inventiva enuncia ser a criatividade, a mandinga e o improviso, propriamente moduladas pelo saber corporal, os fundamentos essenciais para o desenvolvimento da beleza do jogo.

Nos jogos em que se impera a ilinx “há vários procedimentos físicos que as provocam: o volteio, a queda ou a projeção no espaço, a rotação rápida, a derrapagem, a velocidade, a aceleração de um movimento retilíneo ou a sua combinação com um movimento giratório”. (CAILLOIS, 1990, p. 44). Na capoeira há acrobacias, que são entendidas por alguns como floreios, e se caracterizam por movimentos fantásticos, executados por saltos ou que exigem uma contorção, abuso de sustentação de coluna, espirais e giros. As acrobacias no horizonte da vadiação não têm um caráter puramente estético, de desenhar a beleza dos movimentos, mas, sobretudo, o papel de criar uma armadilha, levando o parceiro de jogo ao desnorteamento (vertigem), ou ainda, como uma saída de improviso, que perpassa pela experiência de êxtase, por descentralizar o estado habitual da consciência corpórea.

Considerando esses aspectos, entendemos, portanto, que a capoeira não se trata de mero esporte, nem tampouco de uma luta objetiva, empenhada tão somente por técnicas de ataque e defesa, mas de um jogo de característica polifônica, que revela “uma totalidade (holos) articulada de formas inventadas, abertas a apropriações lúdicas e guerreiras, que também se pode designar como uma cultura, se não como uma alma ou espírito de grupo” (SODRÉ, 2002 p. 86). Do mesmo modo, a capoeira não se define apenas como um esporte135, ao menos do ponto de vista ocidental, pois não tem um caráter puramente competitivo, no sentido de quem ganha ou quem perde. Ela não é individualista, já que o rito da roda depende da interação entre as pessoas que jogam, tocam e cantam, portanto, “não abriga o “eu” isolado e onipotente de uma consciência esportiva, e sim o grupo – múltiplo, diferenciado, polimorfo, coletivo de almas – que faz eco criativo a uma tradição ritualística, musical, narrativa e corporal de origem negra”. (SODRÉ, 2002, p.22).

O esporte, do ponto de vista ocidental, é uma prática que objetiva aperfeiçoar as qualidades físicas do atleta, cujos exercícios e treinamentos visam primordialmente desenvolver a força muscular e a performance corporal, capazes de vencer o oponente ou superar os limites alcançados por outros corpos. Essa concepção é uma invenção recente, e

135 A historiadora Letícia Vidor de Sousa Reis define a capoeira com um esporte negro, o que salienta a sua particularidade esportiva sob uma ótica da africanidade. (REIS, 1997).

139

remonta à herança do pensamento progressista europeu do final do século XIX, quando a ciência, em termos de matriz, se configura como primado de todas as formas de vida. Nesse contexto, no âmbito da ginástica e do esporte, impõem-se novas regras aos jogos tradicionais, que passam a incorporar mais o caráter competitivo do que festivo.

Os desempenhos corporais são figurados em tabelas escalonadas, que estabelecem um programa de resultados fixados por cifras a serem atingidos ou ultrapassados. O universo das festas esportivas passa a ser regulamentado por competições sucessivas, hierárquicas, organizadas por instituições centralizadas. E nesse processo, “o exercício se torna um trabalho corporal de novo tipo: uma atividade precisamente codificada cujos movimentos são geometrizados e cujos resultados são calculados” (VIGARELLO, 2008, p. 394). Empreende- se assim, no âmbito esportivo, os pressupostos cartesianos e cifrados do saber matemático, na medida em que os resultados dos atletas são lidos pela ótica dos cronômetros e submetidos à métrica do espaço e do tempo.

Esporte, tal como hoje o concebemos, é invenção do Ocidente. Na Europa, entre 1840 e 1870, a palavra sport designava qualquer passatempo aristocrático, desde o boxe às corridas de cavalos e bailes mundanos. Na década de 70 aparecem os primeiros clubes “esportivos” definidos por uma atividade de exercício corporal. A partir de 1880, o termo adquire o significado moderno, passando a designar principalmente exercícios ingleses praticados ao ar livre, tais como o futebol, o atletismo, rugby. Havia toda uma doutrina pedagógica, de inspiração inglesa, com base no movimento do esporte. Na França do final do século, por exemplo, o esporte inglês era defendido por pedagogos e médicos como um instrumento de renovação educativa (...). A modernidade ideológica de doutrina esportiva estava na pregação dos sentimentos de obediência e comando aliados ao gosto do individualismo e da competição. (SODRÉ, 1983, p. 208-209).

Na antiguidade clássica, os jogos olímpicos gregos, por exemplo, para além da dimensão atlética, possuíam um caráter ritualístico e festivo. Esses jogos grandiosos mobilizavam populações inteiras das polies gregas que, para acompanhar as competições que duravam semanas, acampavam e conviviam nas redondezas das áreas dos eventos. Os jogos de Olímpia e Delfos eram realizados nas proximidades de santuários religiosos, e um dos costumes comuns realizados pelos gregos antes e entre as competições, eram os ritos de sacrifícios em devoção aos deuses (GUMBRECHT, 2007a). Isso porque, os jogos possuíam uma dimensão sagrada, eram realizados em homenagem a Zeus - e os atletas -, eram vistos como semi-deuses. Compreendia-se, portanto, que “nos grandes momentos dos atletas, o

140

poder dos deuses (e os próprios deuses) se tornavam presentes – presentes no espaço e no corpo do atleta”. (GUMBRECHT, 2007a, p. 13). A presença divina se efetivava na performance corporal do atleta, no empenho da agon (força e combate)136, que por sua vez, se potencializava pela condução musical que acompanhava as competições. Nesse sentido, para os espectadores, assistir aos jogos olímpicos era mais que apreciar as performances atléticas dos competidores, mas estar perto dos deuses e fazer parte de um corpo comum e divino.

Nesses eventos olímpicos, “contar com a presença de deuses como possibilidade permanente, não tenderá a usar palavras como “milagre” ou elaborar uma dimensão específica do “miraculoso”” (GUMBRECHT, 2007a, p. 13), porém, na mentalidade da época, tais eventos excediam o campo humanamente possível. Desse modo, “os gregos não se preocupavam em manter recordes, ou seja, em saber quão longe um disco havia sido lançado ou quanto um corredor se havia distanciado dos seus rivais, porque os poderes divinos tornariam risível qualquer tipo de mediação”. (Ibidem).

A partir do século XIX, desenvolveram-se métodos de treinamento científico e trabalhos acadêmicos capazes de esclarecer de forma racional, aquilo que os gregos entendiam como sendo a inspiração divina do desempenho atlético. Neste sentido, na medida em que as práticas esportivas foram submetidas às técnicas de um saber positivado, cujo o objetivo se reduz em “criar” um atleta competitivo, e, consequentemente vitorioso, perdeu-se a sua dimensão ritual e de encantamento, ao mesmo tempo em que se estabeleceu uma separação entre corpo e espírito, entre o sagrado e profano.

Nos dois últimos – 2017 e 2018 -, a empresa de bebida energética Red Bull, grande patrocinadora de eventos esportivos de modalidade radical e automobilística, organizou megas eventos de competição de capoeira denominado Red Bull Paranauê137, no Farol da Barra, Salvador - BA. Os eventos que contaram com presença de mestres de renome, buscaram integrar capoeiristas da linhagem da angola, regional e contemporânea, em uma mesma competição em que o estilo de jogo era sorteado por uma roleta e executado num tempo restrito em uma roda aberta, conduzida por uma bateria tradicional e apreciada por um grande público. A iniciativa da empresa dividiu opiniões no interior da comunidade capoeirística: enquanto alguns afirmaram que tal evento viria a contribuir para a valorização e

136 Nas narrativas de Homero, nas obras Ilíada e Odisseia, os deuses são frequentemente representados em situações de combate por meio de sua força física, pois a “o agon era sua forma preferida de vida – e muitas vezes de fato a única razão pelo seu interesse pelos humanos”. (GUMBRECHT, 2007a, p. 13). 137 Conferir evento em: https://www.redbull.com/br-pt/events/red-bull-paranaue.

141

visibilidade da capoeira na sociedade, outros apontaram preocupações, denunciando que a cultura popular e de resistência estava sendo capturada pelas lógicas midiáticas do mercado e representada de um modo espetacular, não resguardando seus fundamentos e tradições.

Fotografia 30: Competição Red Bull Paranauê, 2018.

Fonte: Red Bull Paranauê (2018)

Embora atualmente haja uma movimentação de alguns grupos em transformar a capoeira em desporto, bem como de organizações138 em institucionalizar e regulamentar sua prática, categorizando-a como uma atividade física/luta nos moldes do esporte e da racionalidade ocidental, tais definições e tentativas não encerram a totalidade da sua expressão. A capoeira pode até ser praticada como esporte ou atividade física/luta, porém, resumi-la a esses dois conceitos, pode simplificar a complexidade que envolve a sua cultura. Nascida da tradição negra, é uma cultura popular de resistência, cujos códigos e símbolos não são capturados pelos cânones da episteme ocidental. Impregnada da cosmovisão africana de mundo, resguarda segredos de um jogo ritual que só pode ser apreendido quando adentramos no plano de imanência afroperspectivista e reconhecemos a sabedoria da mandinga.

138 A iniciativa de institucionalizar e regulamentar a capoeira nos moldes do desporto parte da Confederação Brasileira de Capoeira em parceria com a Federação Internacional de Capoeira. As políticas empreendidas por essas organizações vêm sendo alvo de constantes críticas da comunidade capoeirística, pois visam estabelecer um sistema oficial de graduações e padrões normativos para integrar a capoeira em competições esportivas. Para os grupos e mestres que procuram preservar as raízes ancestrais da capoeira, essas políticas são duvidosas e definidas por um grupo restrito de mestres, que não parecem respeitar a pluralidade e a africanicidade da sua cultura.

142

7.2. A gramática da mandinga

A capoeira é mandinga, é manha, é malícia. É tudo o que a boca come (Mestre Pastinha)

Manoel Henrique Pereira, vulgo Besouro Mangangá139, nascido em Santo Amaro, Bahia, em 1897, filho de João Grosso e Maria Haifa era “negro forte, aventureiro, sem trabalho fixo nem profissão definida” (SODRÉ, 1988b, p.19). Sua história envolve muitos mistérios, pois pouco se sabe sobre sua trajetória. Dizem que teria saído de casa aos 13 anos e caído no mundo, trabalhando na estrada, a princípio, acompanhando a sua madrinha. Daí não parava na cidade, quase nunca visitava os familiares, e quando aparecia, era no dia de feira quando aconteciam as rodas de capoeira140.

Saudado na memória popular e nas cantigas de capoeira como um capoeira de primeira classe e um dos mais célebres mandingueiros é referenciado como um “totem da capoeira”. Negro ligeiro, ficou afamado como justiceiro do povo, pois confrontava a repressão social oriunda da herança escravista, se fazendo “inimigo dos cristãos, das leis, da polícia, dos proprietários, dos herdeiros”. (SODRÉ, 1988b, p. 21).

Ô Besouro preto, oh besouro preto malvado Oh Besouro preto bará141, oh Besouro preto danado (Ô Besouro preto, ô besouro preto malvado) Ô Besouro preto danado, ô besouro preto dourado (Ô Besouro preto, ô besouro preto malvado) (Cantiga popular da capoeira)

Besouro foi discípulo de Tio Alípio, com quem “aprendeu os segredos da capoeira, dos orixás, a jamais descuidar das obrigações”. (SODRÉ, 1988b, p. 21). Homem valente e sabido, era filho de Ogum - orixá guerreiro -, e carregava no peito um patuá que tua mãe de santo lhe dera amarrado em cordão142. Diziam que tinha o “corpo fechado” e ninguém pegava esse nego, que de modo danado e mágico, quando perseguido, “avuava como um besouro”, se ransformava num toco, num pé de árvore ou numa moita de mato”143. Tinha uma paixão por besouros, um inseto que contrariava as leis da ciência, pois segundo os recursos que tinha

139 Besouro mangangá é um inseto que mede de 3 a 4 cm, tido como muito feroz, capaz de furar madeiras duras, como a maçaranduba. 140 Narrativa do pesquisador Lampião. In: Documentário Memórias do Recôncavo, 2008. 141 Bará é uma entidade - o “senhor do corpo”. 142 Besouro Cordão de Ouro, nome também atribuído a ele, faz menção ao patuá de cordão. 143 Relatos de capoeiras e historiadores, com base na tradição oral do Recôncavo baiano. In: Documentário “Memórias do Recôncavo”, 2008.

143

dada as suas limitações físicas, não deveria voar, mas voava e voa muito. É por isso que se afeiçoara por besouros, esse inseto que rompia os limites, então, “costumava sussurrar para eles, pedindo que lhe ensinassem o extraordinário”. (SODRÉ, 1988b, p. 18). Na tradição oral do Recôncavo, fala-se que Besouro fazia justiça social na ginga do corpo, e mandingueiro que era dobrava e seduzia aqueles que ousavam lhe enfrentar. Conta-se que certa vez, se recusou a pagar uma dose de cachaça em uma venda local, e então a polícia foi acionada para poder contê-lo. Chegaram no local nove policiais que ainda dentro do recinto foram desarmados por Besouro, que passando para o lado de fora, juntou as armas no chão, deu as costas e começou a caminhar. Os policiais atônitos, empunharam suas as armas e lhe deram voz de prisão, mas Besouro continuou a caminhar, e então começaram a deflagrar tiros contra ele. Dizem que ele se meteu a pular de um lado para outro, como se zombasse a autoridade, e surpreendentemente nenhum tiro lhe atingiu. Enveredou-se para dentro de uma ruela, no antigo beco da Caixa Econômica em direção à Ponte do Xaréu, onde pulou de uma margem a outra, desaparecendo no meio do mato da Fazenda Recreio144.

Outro relato oral que alimenta o imaginário popular, é um acontecimento no Largo da Santa Cruz, onde ele teria vingado os maus tratos de um policial a um morador de rua.

Um praça que bebia num bar do Largo da Santa Cruz maltratou um mendigo. Besouro tomou-lhe a arma e o fez beber de vez meia garrafa de cachaça. Confusão armada: o morcego145 contou tudo ao cabo, que reuniu dez homens com ordem de levar vivo ou morto o ofensor. Pelo menos, tentaram. Encostando-se na cruz, bem no meio do largo, Besouro abriu os braços e disse que não se entregava. Violenta fuzilaria, ele estendido no chão até aproximar-se o cabo, para levar uma rasteira de mestre, perder a arma e o controle sobre a coragem do resto da tropa. Besouro saiu cantando: “Vão brigar com caranguejo/que é bicho que não tem sangue...”. (SODRÉ, 1988b p. 21).

Besouro que não baixava a cabeça e exibia sua destreza corporal contra os abusos das autoridades, morreu em uma emboscada em Maracangalha, armada por uma fazendeiro da região. Enfiaram-lhe uma faca de tucum/ticum na barriga – “a única arma com poderes para “abrir o corpo”, isto é, tornar vulnerável um elemento conhecedor de “mandinga” (BOLA SETE, 2006, p. 24) -, pois, como era filho de Ogum, nenhum metal lhe mataria. O único

144 Narrativa do pesquisador Lampião. In: Documentário Memórias do Recôncavo, 2008. 145 Refere-se a policial na linguagem popular da capoeiragem

144

discípulo de Besouro que se tem notícia foi Mestre Cobrinha Verde146, que se tornou o grande propagador do seu legado. (BOLA SETE, 2002).

Quando eu morrer Me enterre na Lapinha Calça, culote, paletó, almofadinha Adeus Bahia Zunzunzum Cordão de ouro Eu vou partir Porque matarão meu Besouro (...) (Cantiga de Capoeira)

As narrativas do povo do Recôncavo sobre Besouro constroem um imaginário fantástico, cujos relatos fazem menções às façanhas extraordinárias que escapolem à história documental, e qualquer compreensão lógica e racional dos acontecimentos. Embora muitos acusem que a memória oral sobre ele é pura invenção, entendemos que, sendo sua história cheia de segredos, ela adentra no universo lendário da capoeira, e reforça sua dimensão mítica, que não só alimenta o imaginário heroico de um povo sofrido, quanto traduz as representações encantadas dos poderes da mandinga.

Mestre Pastinha deixou registrado em seus ensinamentos que “a capoeira exige um certo misticismo” (PASTINHA, 1988, p. 25). O misticismo, do ponto de vista filosófico é “crença na existência de uma realidade sobrenatural147 e misteriosa, acessível apenas a uma experiência privilegiada – o êxtase místico” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996). Desse modo, o misticismo extrapola as explicações lógicas e escapa do controle das nossas categorias racionais, pois pertencem ao campo do encanto, a um modo de ver e compreender a realidade de forma poética e extraordinária.

Na capoeira tal dimensão mística associa-se aos domínios da mandinga. Esta palavra tão comum no meio capoeirístico e na episteme das macumbas, nos desafia abrir as cortinas

146 Rafael Alves França, nasceu em 1917, na cidade de Santo Amaro da Purificação, berço da capoeira baiana, e afirmava ser um parente legítimo do lendário capoeirista Besouro Mangangá. Foi um dos mais temidos e respeitados capoeiristas de sua época. Alcançou o posto de 3° Sargento no antigo Quartel do CR em Campo Grande e chegou a participar da Revolução de 32. Após dar baixa no exército, começou a dar aulas de capoeira na Fazenda Garcia e mais tarde no Centro Esportivo de Capoeira Angola Dois de Julho, localizado no nordeste de Amaralina. Nos anos 60 participou da gravação do disco Mestre Traíra – Capoeira da Bahia, considerado uma obra prima da capoeira. Faleceu em 1983, deixando legado dos antigos mestres da Bahia. 147 Entendemos que a dimensão sobrenatural é uma realidade que está além das categorias racionais, que se aproxima a dimensão do sagrado.

145

das nossas janelas, habituadas a ver o mundo a partir de uma ótica estruturada no saber positivado, que visa categorizar os fenômenos pela racionalidade ocidental e desmistificar as potencialidades criativas dos mistérios. Portando, leitor, para “entender” os domínios da mandinga, é necessário, primeiramente fazer um exercício de redução fenomenológica - “époche”148 -, deixar em suspenso temporariamente os juízos e preconceitos, de modo a permitir o afeto de outras formas de conhecimento.

Fala-se que o bom capoeirista não é aquele que apresenta o melhor desenvolvimento técnico ou força, mas sim aquele que é mandingueiro, isto é, que tem mandinga. A mandinga é explicada de diversos modos pelos mestres, e dentre as significações mais comuns, há a relação entre a mandinga e os termos malícia, manha, negaça, alma, magia, sedução, encanto, mistério, feitiço, fingimento, malandragem, entre outras interpretações. Apesar dessa série de definições, todos os termos nos levam a interpretar que é na mandinga que se encontra o fundamento, o encanto e o segredo da capoeira.

Agora sou mandingueiro Olho grande não me pega, Nem feitiço me derruba, Pois su sei rezar quebrante! (Trecho de Cantiga de Mestre Leopoldina)

Em sua acepção geral, a palavra mandinga designa o sentido de feitiço, magia e bruxaria, isto é, a capacidade de intervir nos fenômenos naturais para certos fins (HOUAISS, 2001). Apontamentos de pesquisadores reforçam essa definição, e associam que o termo mandinga emerge como uma referência aos povos mandingas, conhecidos como excelentes feiticeiros (REGO, 1968), capazes de dominar as serpentes mais venenosas (RUGENDAS, 1972). Podemos especular a partir dessas interpretações que as “cobras” representam ameaças à integridade física e espiritual do negro, e transpondo tal simbologia para a cartografia da capoeira, podemos conceber que “a própria movimentação rasteira da capoeira é associada às movimentações das cobras” (BARÃO, 1999, p. 94), que se embrenha nos “buracos” e prepara um possível “bote” a partir da improvisação e surpresa.

148 Époche que significa em grego “suspensão do juízo” (ABBAGNANO, 2007). No processo da époche os atributos do conhecimento e o mundo são colocados “entre parênteses” e o espectador coloca-se em um estado desinteressado desprovido dos preconceitos correspondentes à “tese mundo”, isto é, tende a transpor a “atitude natural” e cotidiana para se chegar ao dado imanente da consciência. (MARCONDES, 1998).

146

Fotografia 31: Fatê Navegantes. Salvador, Brasil, 1959.

Fonte: Acervo digital da Fundação Pierre Verger (s/d).

É por isso que nas cantigas de capoeira há menção simbólica às cobras, o que enuncia o jogo como uma zona perigosa e traiçoeira que exige uma vigilância constante na movimentação para não ser atacado ou pego de forma desprevenida. Quando o jogo está danado, com entradas de cabeçadas, rasteiras e pontas pés, os cantadores entoam cantigas que falam das cobras, botando na energia do jogo um alerta e aguçando a frequência do risco.

Esta cobra te morde, Sinhô São Bento Oi o bote da cobra, Sinhô São Bento Oi a cobra mordeu Sinhô São Bento O veneno da cobra Sinhô São Bento (...). (Cantiga Popular da Capoeira)

“Valha-me Deus, Sinhô São Bento/Buraco velho tem cobra dentro”!149 São Bento na tradição do catolicismo popular é referenciado como o protetor das picadas de cobras150, certamente é por isso que nas cantigas de capoeira há diversas referências ao santo, como

149 Cantiga de capoeira interpretada por Mestre João Grande. 150 Narrativas coletadas do Documentário “O rezador de cobras”, 2005.

147

pudemos observar na letra acima. Inclusive, há um toque no berimbau denominado de São Bento, e sendo “o mais veloz de todos, destina-se ao jogo duro, a que não estranha a possibilidade de violência” (SODRÉ, 2002, p. 78), ou seja, é um jogo perigoso que requer grande atenção e destreza dos jogadores para não ser “picado pela cobra”.

Ai, ai, ai, ai, São Bento me chama Ai, ai, ai, ai, São Bento chamou Ai, ai, ai, ai, Para jogar capoeira Ai, ai, ai, ai, Me chama que eu vou Ai, ai, ai, ai, São Bento me chama (...) (Cantiga Popular da capoeira)

A roda de capoeira como tempo/espaço ritual, é um lugar de assentamento de mandingas, como um terreiro, onde se praticam saberes encantados, ritos e movimentos cruzados que riscam o chão. Há uma encruzilhada de golpes que surgem de todos os lados e forças – axé -, que emanam dos corpos em movimento, que jogam, tocam e cantam. Toda encruzilhada é um lugar de contingência, e assim é a roda de capoeira, onde o jogo acontece num campo de possibilidades infinitas, cujas movimentações são sempre fronteiras e atravessamentos traiçoeiros como as “cobras”. Por isso, quando adentramos a roda é preciso estar sempre como um “pé atrás”, ressabiado, já que toda a inocência é destronada no campo de batalha da mandinga. Nunca sabemos o que está por vir, ainda mais se tratando de um jogo com um capoeira que não conhecemos, pois desconhecemos a sua mandinga, seus segredos. Depois de muitas experiências, até percebemos que o jogo se desenvolve como um acontecimento de ocorrência possível, porém, é sempre incerto, e nos coloca expostos a um fenômeno que não podemos prever. Daí que recorremos aos saberes da mandinga como um poder de proteção diante do desconhecido, capaz de contribuir para a preservação da nossa integridade física e espiritual, dando-nos recursos de “sobrevivência” no mundo ritual da roda.

A corporeidade mandingueira é “atravessada pelo simbolismo equivalente dos ritos holísticos, em que o sagrado, o lúdico e o guerreiro estão fortemente imbricados”. (SODRÉ, 2002, p. 86). Assim, o corpo mandingueiro é um corpo terreiro, um tempo/espaço onde se restitui memórias e saberes praticados pelas lógicas de resistência e de encantamento. O

148

mandingueiro tem axé, é sabedor dos encantes das “macumbas”, e expressa sua força em tudo que faz – no canto, toque e movimentos -, multiplicando sua energia no espaço em que atua. Por isso é tido como uma pessoa que “possui intimidade com a magia, com a feitiçaria, e estes saberes são utilizados durante o jogo e na vida “real”: rezas para “fechar o corpo”, para se “tornar invisível” quando se está sendo perseguido”. (PASSOS NETO, 2011, s/p).

Pensar o corpo como terreiro parte da consideração que o mesmo é assentamento de saberes e é devidamente encantado. O corpo codificado como terreiro é aquele que é cruzado por práticas de saber que o talham, o banham, o envolvem, o vestem e o deitam em conhecimentos pertencentes a outras gramáticas. Tais ritos vigoram esses corpos os potencializando ao ponto que os saberes assentados nesses suportes corporais, ao serem devidamente acionados, reinventam as possibilidades de ser/estar/praticar/encantar o mundo enquanto terreiro. (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 50)

No jogo de capoeira, o mandingueiro “é ligeiro, é ligeiro, paraná”151: escapa, pula, some e aparece, assim como as simbologias das narrativas orais sobre Besouro Mangangá. Na sua destreza corporal expressa propriedade espiritual e a total responsabilidade sobre si próprio, o que lhe dá a habilidade de dominar a dinâmica do jogo. Incorporando nos seus movimentos o axé da musicalidade da roda, tem poder de seduzir (como na magia), fazendo com que o parceiro de jogo se envolva na sua linguagem corporal. Consciente dos perigos, se mantém sempre alerta e nunca se dobra pela inocência, portanto, age sob a ética da malandragem, sabe “ler as entrelinhas do que é escrito, conhece as frestas e pratica as dobras na linguagem encruzando os tempos/espaços, praticando o mundo no viés”. (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 86).

Ter mandinga é saber ler as intenções do outro jogador, através da percepção de sua linguagem corporal e adiantar-se a elas, mas é também saber fazer com que o outro jogador “entre na sua”, quer dizer, jogue o seu jogo e não o dele, o que o colocará em uma situação de desvantagem. (REIS, 1994, p. 217).

O corpo de mandinga agindo sob a ética da malandragem, sorri e brinca mesmo na desvantagem. Isso por que ele sabe jogar e lhe é claro que a vida é um eterno perde e ganha.

151 Cantiga popular de capoeira.

149

Com elegância, “diante de qualquer infortúnio dribla a situação lançando a máxima: deixa estar, haverá volta” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 87). Ora, o mundo dá voltas, e assim também é na roda de capoeira; “o que é teu tá guardado”. Quando ele leva uma rasteira, esse golpe tão desmoralizante que nos lança com a bunda ao chão, sabe que melhor é “dá vorta ao mundo”152 para espairecer a cabeça, mas se percebe a desatenção e descontração do outro jogador já confiante com o seu feito, lança como resposta um rabo de raio surpresa. “Malandro não vive de sorte, mas sim de oportunidades”. (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 86).

A gramática corporal da mandinga alfabetizada pela ética da malandragem ensina o capoeira não só a ler as entrelinhas e esperar o tempo certo, mas também dissimular suas intenções, isto é, “negaciar”, como se diz na linguagem capoeirística. “Negaciar” é a ação da “negaça”, que surge no jogo como um engodo, em gestos e movimentos que visam enganar, seduzir e provocar. A “negaça” apareça como uma proposital contradição dos movimentos corporais, que afirmam e negam ao mesmo tempo a finalidade da sua ação, como é expresso na cantiga popular: “oi sim/sim/sim/oi não/não/não”. O capoeira simula lançar areia no rosto do outro jogador ou lhe ataca uma navalha imaginária, faz um rápido giro como se fosse tirar um violento rabo de arraia, mas não tira, lança o corpo para um lado, mas saia de outro, finge mancar, ter sido atingido por um golpe, se faz de cansado, dança, dá risada ou lança o olhar para alguma coisa inexistente, de modo a camuflar sua real intenção e desnortear o parceiro e jogo.

A essência da luta sempre esteve no desnorteamento do adversário por meio da malícia e da negaça. A estratégia do bom capoeira era tentar iludir o oponente com trejeitos de mãos e pés, envolvendo-o como uma aranha na teia, até poder aplicar o golpe. No fundo, uma arte de sedução e engano do olhar do outro, cuja tônica não se definia pela pretensão a uma verdade identitária do corpo (como no boxe anglo-saxão, por exemplo) mas pela falsidade, isto é, pela tapeação do adversário. Capoeira é bicho “farso”, resumiam os antigos. (SODRÉ, 2002, p. 48).

O jogador mandingueiro na sua arte de seduzir põe no jogo a malícia de Zé Pelintra, mas também a manha de Preto Velho - sem perder a percepção do perigo, executa saídas e

152 “Volta ao mundo” é uma movimentação circular nos contornos fronteira da roda, que os jogadores fazem – normalmente no sentido anti-horário -, quando há uma queda ou acontecimento que quebra a continuidade do jogo, podendo ser um ataque ofensivo, o cadarço desamarrado, a perda do chapéu ou do laço do cabelo. Contudo, a volta ao mundo não é uma movimentação que dispensa a atenção, pois pode ser uma armadilha, já que em meio a suposta descontração o capoeira pode ser atacado.

150

entradas com sabedoria e tranquilidade. Ele sabe que não pode confiar totalmente no outro, mas é capaz de perceber e zelar pelo outro, portanto, apresenta total controle sobre si próprio – emocional, espiritual e físico. Ele é malandro, mas não é trapaceiro ou oportunista, segue as regras do jogo com lealdade, e não ataca para aniquilar o parceiro, muito menos se a “guarda está vencida”153, pois sabe que “o princípio da vadiação é a presença integral do outro, é diálogo (...)” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 87), e depende invariavelmente do parceiro para que o jogo continue em movimento.

O jogo de mandinga sob as extensões da manha e da malícia é o que possibilita o diálogo entre os corpos dos jogadores e evita o constante embate direto – a dimensão da violência -, reservando os ataques somente para os momentos apropriados, o que vem a preservar a integridade física do parceiro. Na base desses fundamentos, o jogo de capoeira não deixa de ser luta, mas se modula como um combate indireto, em que a movimentação se traduz como uma espécie de negociação entre os corpos, que perguntam e respondem, com ataques e esquivas ou absorvendo os movimentos de oposição. Desse modo, “como o enfrentamento é indireto, não se bloqueia o golpe adversário154 (...), o contra-golpe vem sempre preencher o espaço vazio deixado pelo golpe” (REIS, 1997, 217). Nessa lógica, não se joga capoeira com o objetivo de bater, isto é, “contra” o outro, mas joga-se “com” e “pelo” outro, numa dialética de movimentos que dá vazão ao “furo”, permitindo que o jogador ocupe os “espaços vazios” e as “aberturas” no corpo do jogador.

Vem jogar mais eu Vem jogar mais, mano meu Vem jogar mais eu, mano meu Vem brincar mais eu, irmão meu (Cantiga popular da capoeira)

Tal linguagem do corpo mandingueiro está intimamente relacionada aos modos de resistência de escravizados, forros e malandros na sociedade escravagista (SODRÉ, 2002). Destituídos de armas eficientes, do ponto de vista bélico, os negros manipularam com manhã

153 Quando o jogador é levado a uma queda ou se encontra em uma condição em que não tem possibilidade de mobilidade, considera-se que a sua “guarda está vencida”, portanto, o capoeira leal, “não tira” vantagem da situação, não mais ataca, permitindo que o parceiro siga o jogo, preservando tanto a sua integridade física, quanto a continuidade do jogo. 154 Pode-se até bloquear com as mãos a entrada de uma cabeçada ou desviar a direção de uma chapa, com propósito de não ser atingido, porém, tal bloqueio, que tem função de defesa não pretende inviabilizar a continuidade do jogo, pois o que é gostoso no jogo de capoeira é o vai e vem dos corpos.

151

e malícia formas de resistência sutis e camufladas aos olhos do colonizador, que possibilitaram a construção de um cotidiano mais tolerável de ser vivido. Os escravizados, para se defendem dos patronos da escravidão, fizeram-se mestres da dissimulação, criando artimanhas e estratégias de negociação de modo a evitar punições e confrontos diretos. (SLENES 1992).

A resistência negra no Brasil pautou-se, sobretudo, pela negociação constante entre os escravos e seus senhores, mais do que pelo confronto aberto (rebeliões, fugas, formação de quilombos) (...). O jogo da capoeira remete mais a uma negociação do que a uma rebelião. Através do jogo da capoeira, os corpos negociam e a ginga significa a possibilidade de barganha, atuando no sentido de impedir o conflito. Porém, ao menor sinal de distração do oponente, quando “as chances de falhar são mínimas” (como ensina mestre Pastinha), aí sim, explode o contra-ataque, como um relâmpago, deflagrando-se então o conflito. (REIS, 1994, p. 220 - 221),

O combate indireto no jogo de capoeira pode ser lido como uma transposição dos “jogos” cotidianos na sociedade escravista, apresentando-se como uma “metáfora do espaço social, e talvez possamos dizer que o jogo da capoeira é uma metáfora da negociação política travada entre negros e brancos no Brasil” (REIS, 1997, p. 221). Foi nesse jogo de mandinga, manha e malícia em meio a um cotidiano hostil que os negros encontraram “aberturas” para as fugas e “espaços vazios” para reafirmar as suas visões de mundo. Tal característica combativa, expressa o modo como as classes populares podem inverter, a seu favor, a força visível e explícita dos poderosos, evitando o enfrentamento direto que sempre se realiza dentro de um jogo político cujas regras não foram definidas por elas. (REIS, 1997).

(...) o mesmo corpo que, à primeira vista, conforma-se, é aquele que, na ocasião oportuna, insurge-se e ataca. E ataca de um jeito inesperado, invertendo as regras do jogo que garantem a dominação, já que aqueles que aparentemente dominava a situação poderá, subitamente, tomar um “banho de fumaça” e tornar-se, ele próprio, dominado. (REIS, 1997, p. 221).

A roda de capoeira, assim como a vida é um campo de batalha, mas não uma batalha entendida como força física ou instrumentalizada por armas bélicas. O campo de batalha na capoeira é campo de mandinga - a arma é a sabedoria da mandinga que circula o jogo de corpo dos capoeiras. O que está em combate são as estratégias, astúcias e artimanhas dos jogadores que permeiam as frestas que aparecem entre os golpes e esquivas. Sendo assim, “o

152

jogo de capoeira é um jogo de contra poder. O que importa é saber aproveitar o espaço vazio deixado pelo outro e, quando houver oportunidade, partir para o embate direto”. (REIS, 1997, p. 221). É nesse campo que os jogadores convertem a agon, enquanto a força física, em força da mandinga, fazendo com que o mais forte não seja aquele fisicamente mais musculoso ou técnico, mas sim o mais malicioso, ardiloso, isto é, o mais mandingueiro, capaz de “encarnar na luta o encanto”. (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 107).

Campos de batalha são campos de mandinga. A partir daí, saímos para o jogo. Lançar-se aos campos de batalha demanda encantar-se na mandinga, espanta-se a miséria com festa, emergem possibilidades na escassez. Ladainhas, volta ao mundo, improvisos, pontos atados, pitadas de fumo, goles de cerveja, patuás, fecha-se o corpo para lutar e a abre para o encanto. Se sobrevivemos nos campos de batalha da vida comum, supravivemos nos campos de mandingas. Aprendemos com os múltiplos saberes que nos pegam a praticar, de forma encruzada, a batalha como política e a mandinga como poética. (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 107).

O desenvolvimento da força no jogo de capoeira, sobretudo no horizonte da linhagem da angola, não prioriza o treinamento corporal com o enfoque no aperfeiçoamento técnico e muscular. Embora, esses atributos sejam necessários para o desenvolvimento da habilidade e resistência do jogador, o treinamento físico atenta-se a outras virtudes155 corporais. A repetição de uma sequência de movimentos, por exemplo, não tem como foco um condicionamento mecânico do fortalecimento das fibras musculares, no sentido de uma educação física. Busca-se por meio da atividade física um rendimento vital e qualitativo – a potencialização do axé -, o qual é consequência da consciência do corpo próprio, que conjuga naturalidade, concentração, equilíbrio e leveza dos movimentos156.

A harmonia e a soltura dos membros inferiores/superiores, do pescoço, do tronco e do quadril, possibilitam que o corpo encontre uma conformidade na totalidade da sua forma. É preciso então, “ser” a linguagem corpo, incorporar a dimensão estética157 dos movimentos

155 A etimologia da palavra virtude advinda do latim virtus, designa, no seu sentido originária, uma força corpórea, ânimo ou potência. 156 O treinamento na Capoeira Angola sempre é conduzido pela música, seja pela própria bateria da capoeira, ou pelo som mecânico. A música no seu apelo estético contribui para presentificação do corpo na ação e para a potencialização do axé. A conjugação do movimento e da música promove um estado de consciência corporal, que se a aproxima ao transe. Esse estado de consciência se torna ainda mais evidente quando os mestres pedem que cantemos (ou seja, que respondamos o coro) enquanto executamos os movimentos. 157 A palavra estética, advém do termo grego aisthesis que designa o sentido de “faculdade de sentir” e “compreensão pelos sentidos” (SANTAELLA, 1994). Portanto, na dimensão estética o corpo é o canalizador da experiência e do conhecimento, sem a mediação da razão.

153

para que a vitalidade se condense e flua. Tais virtudes não são apreendidas pela submissão do corpo ao pensamento, nem tão pouco pelo condicionamento da força física, mas dependem invariavelmente da presença integral do jogador na ação (sem a separação entre razão e corpo ou entre espírito e matéria) e da incorporação dos saberes da mandinga.

Os paradigmas da razão ocidental em relação as atividades esportivas, tornaram-se discursos hegemônicos e estabeleceram verdades, que contribuíram para a naturalização da concepção de que o corpo deve ser submetido à um projeto disciplinar, cujo trabalho físico seria um resultado do rendimento mecânico e quantitativo, perpassado por parâmetros configurados por uma racionalidade objetiva. Nessa ótica, entendeu-se o corpo condicionado pela mente, assim como uma “coisa material” controlada pelo uma “coisa que pensa”, o que legou para o pensamento moderno do esporte, a separação entre corpo e espírito.

A filosofia ocidental do esporte faz força para convencer o indivíduo de que o treinamento esportivo reduz-se a uma técnica como um objetivo: progresso das qualidades físicas. Admite-se que a mente possa contribuir para tal objetivo (a vontade e a inteligência submetendo o corpo) e também que a cultura física influa sobre a saúde mental. Este é o sentido da fórmula mens sana in corpore sano. (SODRÉ, 2002, p. 21-22).

O conjunto de treinamento na Capoeira Angola, se apresenta como uma antípoda do que o Ocidente compreende por luta ou esporte. Daí que, considerando a dimensão marcial da capoeira, podemos aproximá-la das formas orientais de combate da antiga China (SODRÉ, 1983). Nas lutas orientais, tanto nos estilos “duros”, tais como o Kung Fu, quanto nos estilos “brandos” como o Tai chi, os movimentos marciais, antes de fortalecer os músculos, buscam fortalecer o chi (qui). Esse princípio, incorporado da filosofia taoísta, é concebido como uma essência cosmológica, a força vital que circula no organismo, assim como em todos os seres viventes. Assim, o corpo humano não é definido por uma substância pensante, mas formado de cinco essências – espírito, ossos, músculos, força interna (chi) e nervos. A prática corporal das artes marciais chineses, normalmente implicada em movimentos circulares, possibilitam a integração dessas essências, estabelecendo a harmonia do corpo (microcosmo) com o ritmo do universo (macrocosmo). Somente a leveza, a paciência, o relaxamento, a naturalidade e a perfeição da modulação dos golpes, permite que o chi flua livremente no corpo e produza uma corrente contínua de força que faz com que o lutador desenvolva toda a sua virtuosidade.

154

O axé entendido na filosofia africana como uma força vital que dinamiza o movimento de todos os seres viventes é análogo ao chi para os orientais. Na capoeira, essa força é entendida como uma energia que circula e se multiplica no ritual da roda através da musicalidade e da partilha comunitária, e atua na expressão do corpo mandingueiro, dando potência e encanto nas suas movimentações durante o jogo. A força do axé não se associa ao empenho técnico do capoeira, que pode ter até executar acrobacias incríveis, belos movimentos ou tocar bem o berimbau, mas a uma dimensão da corporeidade mandingueira que funde corpo e espírito em práticas de encantes.

É na gramática da mandinga em que se encontra o segredo da capoeira – o auô. Tal segredo não se ensina, nem tão pouco se aprende em livros ou cartilhas, pois não é um saber racional e abstrato, mas um saber corporal e concreto, que exige sabedoria da ação158, o envolvimento com os saberes praticados no rito da capoeira. Nesse sentido, o fundamento da mandinga só pode ser absorvido quando “somos a capoeira”159, ou seja, quando absorvemos a linguagem da capoeira, vivemos todos os aspectos do plano de imanência do ritual e convivemos com as sabedorias dos mestres. Por isso que o mestre cantador fala: “É fácil jogar capoeira, é fácil bater com o pé, é fácil fazer movimento na roda, difícil é mandinga e axé”.

158 “Poderíamos até dizer que, na capoeira, o corpo é mais importante que o intelecto – a sabedoria da ação” (PASSOS NETO, 2011, s/p). 159 “Para fazer capoeira você precisa “ser a capoeira”, assim ensina Mestre Moreno. In: Documentário Essa Casa é de Angola Nagô, 2015.

155

7.2.2. Cartografias do corpo mandingueiro

Fotografia 32: Saída de golpe frontal

Fonte: Acervo Pessoal da Pesquisadora (2018)

Na Filosofia afroperspectivista, os personagens conceituais – jongueiro, iaô, capoeira, sambista, griô, entre outros -, escrevem suas visões de mundo, isto é, suas formas de conhecimento, por meio da corporeidade - seja em música, dança ou palavra proferida. Sendo as manifestações de matriz africana desenvolvidas no Brasil pela via da tradição oral, o corpo se constituiu como um suporte de comunicação e de saberes que preservaram a memória ancestral. Portanto, é cartografando os movimentos da capoeira que damos visibilidade às cosmovisões, às práticas e aos simbolismos africanos que se reatualizaram em terras brasileiras e se ancoraram na linguagem corporal do capoeira.

Quando falamos de capoeira para alguma pessoa, mesmo que ela tenha o mínimo de referências sobre essa cultura, ela sabe que o capoeira ginga. A ginga é um movimento ícone da capoeira, a base de todos os movimentos e de onde emerge a gramática da mandinga. Caracterizada em meneios, produz uma movimentação oscilatória e de balanço no corpo, assumindo aparência de passo de dança. Privilegiando o baixo corporal, os quadris e os pés, a ginga é marcada por um movimento contínuo de vaivém, em que se apoia um dos pés atrás da linha do tronco, conservando a perna oposta na frente e parcialmente flexionada. O braço do mesmo lado da perna que está atrás, é levado até a altura do peito, numa constante proteção à face e ao tronco. Numa dinâmica de balanço, sempre com a passagem pela linha dos quadris, alternam-se as posições das pernas e dos braços fazendo o corpo gingar.

156

Fotografia 33: Visão frontal da base da ginga.

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora (2018)

A ginga modula a identidade/codificação do corpo do capoeira, assim como a nossa forma de andar, por isso não há uma padrão na forma de gingar. Contudo, é necessário que a ginga tenha um “gingado” natural, solto e leve que facilite a fluidez dos movimentos e o equilíbrio do corpo, pois é ela que nutre o tempo do jogo, bem como a potência motriz donde nasce a criatividade, a surpresa, “a chave da sua agilidade e deslocamento”. (SODRÉ, 2002, p. 68).

A palavra “ginga”, em capoeira, significa uma perfeita coordenação de movimentos do corpo que o capoeirista executa com o objetivo de distrair a atenção do adversário para torná-lo vulnerável à aplicação de seus golpes. [...] Na ginga se encontra a extraordinária malícia da capoeira além de ser sua característica fundamental. A ginga da capoeira tem, ainda, o grande mérito de desenvolver o equilíbrio do corpo, emprestando-lhe suavidade e graça própria de um bailarino. (PASTINHA, 1988, p. 40).

O balanço e o equilíbrio da ginga têm a centralidade nos quadris, característica essa que remete à motricidade das danças negro-africana (TAVARES, 2012) e enfatizam, sobretudo, a destreza dos movimentos dos pés. Segundo Reis (1997), os movimentos da capoeira, na sua maioria, privilegiam o baixo corporal, o jogo dos quadris, a habilidade e a criatividade dos pés, provocando um destronamento do alto corporal. Contudo, embora o centro de gravidade seja nos quadris e a habilidade do movimento seja conduzida pelos pés, isso não dispensa a importância dada a soltura do tronco, dos braços e do pescoço. Na

157

movimentação característica da Capoeira Angola, a ginga não é dura e reta como observamos na linhagem contemporânea, ele é solta e dançante: joga-se ou gira-se o tronco levemente para trás, faz-se trançados como as pernas, balança-se de forma ondulada o pescoço e desenha-se movimentos circulares com os braços.

Fotografia 34: Leve giro do tronco e dos braços para trás durante a passagem da ginga (preparação para um contra golpe)

Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora

A ginga é como a maré que indica o momento certo de se lançar a rede. Parece o balanço do barco conduzido pelo soprar do vento que mostra o caminho a se seguir. Ela projeta o corpo para todos os lados, nos aproxima ou nos distancia do parceiro de jogo, permitindo que nos desloquemos no espaço da roda, desenhando círculos e curvas. Assim, como a ginga desenha círculos invisíveis no chão, muitos golpes na capoeira sugerem tal circularidade ou expressões curvilíneas, tais como: aú, rabo de arraia, armada (ou meia-lua de costas), meia-lua, pião de mão, chapa giratória, macaco, parafuso (armada com martelo), gancho (esporão), chapéu de couro, rolê, entre outros. Essa modulação circular, é uma das características identitárias da estética artesanal e das danças africanas - “O sentido curvilíneo que representado com a forma, figura ou estrutura curva nos produtos artísticos e na posição dos corpos, é diretamente relacionado com os conceitos-guia das sociedades africanas de continuidade e fertilidade”. (PEREIRA; AQUINO, 2017, p. 39). Essa modulação curvilínea das estéticas africanas é também notável nas performances corporais de outras manifestações

158

afro-brasileiras, em destaque no maracatu, batuque de umbigada, jongo, afoxé, tambor de crioula, samba de roda, bem como nas danças de incorporação nas religiões afro-brasileiras.

Fotografia 35: Golpe meia-lua (meia-lua de frente)

Fonte: Acervo Pessoal da pesquisadora (2018)

Fotografia 36: Golpe rabo de arraia (ou meia lua de compasso)

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora (2018)

159

Fotografia 37: Meia-lua de costas (ou Armada)

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora (2018)

A ginga, assim como o berimbau, foi introduzida na capoeira como uma forma de dissimular a face marcial da prática, dando um caráter lúdico à dimensão combativa da luta. Na memória popular, sem referência de lugar ou tempo histórico, permanece a alusão de ser a ginga uma artimanha de sedução utilizada pelos negros quando eram abordados pelos feitores (no contexto rural) ou pelas autoridades policiais (no contexto urbano). Ao se perceberem observados ou questionados de praticarem a luta da capoeira que era proibida, os negros gingavam, alegando que estavam dançavam, ou seja, “a ginga servia para disfarçar a luta, dando-lhe um caráter lúdico e inofensivo e cadenciado (...)” (AREIAS, 1983, p. 24). Nesse sentido, a ginga aparece como uma “possibilidade de barganha” (REIS, 1997, p. 220), um recurso para dissimular a luta e ludibriar o outro, o que faz da capoeira essa “zona intermediária e ambígua situada entre o lúdico e o combativo” (REIS, 1997, p. 215), permitindo, que o capoeira lute dançando e dance lutando.

E, por ser a ginga a responsável por essa ambiguidade da capoeira, talvez possamos acrescentar que, justamente por isso, é ela que impede que a capoeira torne-se, verdadeiramente, um esporte branco, isto é, algo meramente competitivo e desprovido dessa ambivalência que faz da capoeira um luta-dança-jogo, em outras palavras, um esporte negro. (REIS, 1997, p. 216).

Considerando seu caráter lúdico e combativo, a ginga não é um adereço, nem tão pouco um movimento despropositado e mecânico. Ela é a base para cadenciar no corpo o ritmo musical, bem como a temporalidade da performance dos movimentos, fazendo com que

160

o capoeira mergulhe totalmente ao ritual da roda e potencialize o seu axé. Para Mestre Plínio, a ginga conduz ao estado de transe; assim como algumas dançam levam o dançarino ao transe, na capoeira a ginga exerce o mesmo papel, como um “tipo de passo mágico”160. O balanço maneiroso do corpo, sincronizado com a respiração e soltura muscular, possibilita uma oxigenação integral do organismo, capaz de alterar o nível de consciência do capoeira.

O nível de consciência pode oscilar da lucidez da consciência plena da vigília ao transe profundo de integração cósmica como descrito na linguagem védica da meditação transcendental por Maharishi (...) assim é que num dado momento ocorre a integração do ser ao ritmo/melodia do toque! E passamos a pertencer ao mundo mágico do jogo da capoeira! Onde não existe a duplicidade do “eu e você” que se funde na unidade do “nós” vibrando uníssono transfigurada na dança ritual da capoeira! Todo corpo, cintura, cabeça e tronco, pernas, braços, mãos e dedos procura traduzir em movimentos rituais e ritmos dependentes a beleza do que brota do Ser pela transmutação da energia do berimbau! Manifestam-se no contexto ritmo/melódico daquele instante atemporal num espaço infinito a experiência dos jogos passados (...) (DECÂNIO, 1997, pp. 50 – 51).

Sob esses aspectos, a ginga é entendida como movimentação ritualística, que não só desenha o equilíbrio dinâmico da materialidade física do corpo, como também produz um estado de consciência, próximo a um exercício meditativo. Tais características nos levam a raiz mística do seu movimento – o jicá -, dança ritual dos cerimoniais de incorporação do candomblé (DECÂNIO, 1997). A linguagem corporal da ginga, sobretudo a modulação de soltura dos ombros e a troca dos braços, se assemelha à dança (jicá) executada pelos “cavalos de santo” para saudar um orixá ou conduzir o iniciado ao estado de transe. Como descrevemos no capítulo sobre a Filosofia Afroperspectivista, nos ritos sagrados de matriz africana, a dança, conduzida pela sonoridade dos tambores possui um papel fundamental, pois possibilita a comunicação/integração entre o visível e invisível, convertendo as camadas espirituais à dimensão da aparência.

160 Fala de Mestre Plínio no documentário Capoeira Angola: Mito e Magia, 2011. Mestre Plínio é criador do Centro de Capoeira Angola Angoleiro Sim Sinhô, que nasce em São Paulo em 1993, com o propósito de realizar a busca, o resgate e a conservação da memória dos antigos mestres da capoeira angola.

161

Fotografia 38: Soltura dos ombros e troca de braços na ginga semelhantes a dança jicá

Fonte: Acervo Pessoal da pesquisadora (2018)

No ritual da roda integra-se num só corpo ritmo e movimento, a fusão entre a vibração sonora e as performances corporais. A musicalidade da bateria se faz forma na ginga dos jogadores, que seguem às modulações melódicas dos berimbaus cadenciando os movimentos em harmonia com ritmo. Os tocadores, atentos às modulações dos corpos dos jogadores, se necessário, diminuem ou acentuam o ritmo ou mudam a cantiga remodulando a frequência do jogo. Entre jogadores e tocadores, estabelece-se então um diálogo constante que fortalece a energia do rito, reafirmando a conexão entre os corpos. Quando o ritmo, canto, coro e jogo estão em sincronia, temos a impressão que a musicalidade na roda soa como um mantra, que conduz todos a um estado de transe.

A ginga no seu caráter ritual, é propriamente o exercício do mandingueiro, pois prepara a sua consciência corpórea e concentra a potencialidade da artimanha da mandinga, isto é, a capacidade de seduzir, encantar ou desviar a atenção do parceiro de jogo por meio de volteios e simbolismos corporais. É, portanto, através da evolução da ginga que a mandinga ganha expressividade; incorpora-se na movimentação básica do gingado uma série de performances corporais, que rememoram simbolismos da africanidade e experiências cotidianas do corpo negro. Expressões de trabalho, gestos de evocação ritual, aspectos de arquétipos de entidades, movimentação de animais, passos de dança, atitudes de rendição, entre outras performances, são “encarnados” durante a ginga e entre as movimentações, dando uma visibilidade ritual do jogo capoeira. Tendo em vista essas questões, a seguir vamos cartografar alguns movimentos que dão aparência à essas linguagens corporais.

162

Na linguagem corporal da Capoeira Angola há expressões fundidas na movimentação da ginga que remetem a gestos do cotidiano de trabalho das áreas rurais e portuárias. Não se sabe quem “criou” ou quando essas expressões foram introduzidas na capoeira, porém, provavelmente, foram incorporadas nos corpos dos capoeiras como uma ação reminiscente dos gestos executados pelos seus antepassados nas atividades da labuta diária. As movimentações que remetem às linguagens corporais de trabalho do ambiente rural, expressam gestos da atividade da colheita, como o corte de cana ou coleta de grãos.

Fotografia 39: Movimentação de “catar milho” juntando as duas pernas

Fonte: Acervo Pessoal da pesquisadora (2018)

Fotografia 40: Movimentação de “catar milho” na passagem da esquiva lateral

Fonte: Acervo Pessoal da pesquisadora (2018)

163

As duas imagens acima capturam a movimentação conhecida como “catar milho”. Observa-se que o capoeira flexiona as pernas quase até a altura do quadril e lança suas mãos para o chão, de forma intercalada como se estivesse colhendo algo que está no solo. Nas áreas rurais cata-se do chão o milho de “paiada”, isto é, os milhos que desabaram no solo e se misturaram com a palha após a colheita bruta. Na tradição oral, fala-se que nas áreas rurais - zonas que até fins do século XIX eram predominantemente constituídas pela mão de obra escravizada -, os negros, empenhavam os movimentos de trabalho, aprimorando suas capacidades físicas para desenvolver suas habilidades guerreiras.

Quebra lami comu gê Ê macá Quebra lami comu gê Ê macá Quebra conforme a razão Ê macá Quebra que quebra dendê161 (Cantiga popular da capoeira)

Fotografia 41: Movimentação de “corte de cana”

. Fonte: Arquivo Pessoal da pesquisadora (2018)

A imagem acima captura o movimento que expressa um gesto similar a atividade do corte de cana. Na linguagem corporal do capoeira, cartografamos que a mão direita, que se posiciona acima, segura o pé de cana e, a mão esquerda, que se situa abaixo empunha o facão, executando um movimento de poda. As plantações de cana, sobretudo até meados do século

161 “Quebra lami” seria a corruptela de “Quebra milho”. Essa cantiga é muito antiga, e hoje, muitos se recusam a cantá-la, pois ela atribuí em conteúdo racista, sendo que, “cumu gê, macá”, significaria “como gente, macaco”. Outros capoeiras, embora admitem que a cantiga seja uma afronta a dignidade do negro, afirmam que ao cantá-la ela assume o sentido de uma denúncia, apresentando os abusos e as práticas racistas remanescentes da escravidão.

164

XVIII, foram áreas ocupadas primordialmente pelo trabalho escravo, daí que na tradição oral, associa-se que a origem da capoeira é rural. Do mesmo modo, conta-se com base na memória popular, que a dança guerreira do maculelê, executada por suas pessoas que empunham dois paus, nasceu nesse ambiente, como uma forma de descontração no cotidiano do trabalho.

Ê planta cana Canavieiro Pra depois cortar Canavieiro Pra não ir pro tronco Canavieiro Tem que trabalhar Canavieiro (Trecho da cantiga de capoeira de Professor Esquilo)

Alguns movimentos de trabalho presentes na performance da Capoeira Angola, também remetem às atividades executadas pelos negros escravizados nas zonas portuárias. Alguns historiadores, tais como Carlos Eugênio Líbano Soares, defende que a capoeira é uma atividade urbana, que teve origem na região dos portos do Rio de Janeiro, onde havia uma grande circulação de negros. Relacionando as fontes documentais às práticas dos escravizados nas áreas urbanas, o historiador conclui, com base nos estudos de Morales De Los Rios, que a capoeira, provavelmente surgiu dos jogos de combate praticados nas horas de folga pelos negros estivadores que trabalhavam no cais, descarregando os produtos trazidos pelos navios. O próprio termo capoeira seria uma referência a palavra “capoeiro” que designa “carregador de cesto”, como uma menção às atividades empenhadas pelos negros de ganho das áreas urbanas. Fotografia 42: Movimentação corporal de “pegar/entregar o saco”

Fonte: Acervo Pessoal da pesquisadora (2018)

165

Na imagem acima, observa-se que o capoeira mantém esticada uma das pernas e flexiona a outra, produzindo um movimento de propulsão para o lado direito, que é potencializado pelo lançamento do tronco e dos braços como se pegasse ou entregasse algo. Essa expressão corporal elucidada pelos mestres como “pegar/entregar o saco”, é possivelmente uma memória da atividade de descarregar os produtos trazidos pelos navios, embora se possa também especular que o movimento é conveniente em outros contextos de trabalho, inclusive nas áreas rurais, por exemplo nos atos de carregar e descarregar as carroças que traziam e destinavam os produtos para o comércio. Muitos capoeiras foram estivadores, assim como Mestre Bimba, que aprendeu capoeira no cais da Bahia, com africano Bentinho, capitão da Companhia de Navegação Baiana.

Eu aprendi capoeira Lá na rampa e no cais da Bahia Vim de ilha de Maré No saveiro de mestre João Fui morar lá na Preguiça Me criei na Conceição Eu subi o Pelourinho Eu desci a Gameleira Eu passava o dia-a-dia Nas rodas de capoeira (...) (Trecho da cantiga de capoeira de Mestre Ezequiel)

Fotografia 43: Sequência da movimentação “pegar/entregar o saco” mesclada com a ginga

Fonte: Acervo Pessoal da Pesquisadora (2018)

166

O corpo mandingueiro “encarna” performances dos personagens melanodérmicos. Dribla as próprias pernas como Garrincha, faz um passo manhoso como Preto Velho e tem a malemolência de Zé Pelintra. Com esses trejeitos de mandinga bota molho nos movimentos, tempera a ginga com dendê e luta dançando e dança lutando.

Fotografia 44: Movimento de malemolência durante o gingado (passo de samba)

Fonte: Acervo Pessoal da Pesquisadora (2018)

O capoeira faz um trançado nas próprias pernas, cruza a perna direita por trás da esquerda como se dançasse um samba. Mesclando na ginga esse passo de malemolência, “encarna” a corporalidade do malandro carioca, que se assenta como uma referência arquetípica de Seu Zé Pelinta. Zé pelintra foi mestre de jurema, nos cultos sagrados do catimbó162 no Nordeste. Saiu da Paraíba, passou por Alagoas e “chegou no Rio de Janeiro e teve seu culto incorporado pela linha da malandragem na umbanda. Há quem diga que ele, nordestino, foi morar na Lapa. Virou malandro e teria morrido no Morro de Santa Teresa” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 82). Esse encantado nordestino é uma entidade de luz, carrega a fama de doutor e tem poder de cura. “Conhecedor das mandingas de livramento da má sorte, dos males do corpo e da proteção contra maldades alheias. Seu Zé é aquele que fez fama entre pessoas e lugares que, geralmente, são relegados à condição de subalternidade e incredibilidade” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 84). “Mestre-sala das ruas, fazendo o sambar no

162 “O culto do catimbó é de difícil definição e abrange um conjunto de atividades místicas que envolvem desde a pajelança indígena até elementos do catolicismo popular; como origem no Nordeste. Tem como seus fundamentos mais gerais a crença no poder da bebida sagrada da Jurema e no transe de possessão, em que os mestres trabalham tomando o corpo dos catimbozeiros. Esses mestres foram pessoas que, em vida, desenvolveram habilidades no uso de ervas curativas. Com a morte, passaram a habitar um reino místico do Juremá”. (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 81).

167

fio da navalha, esquivando-se dos infortúnios (...)” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 85), transita nos lugares onde há vícios – jogos, bebidas, prostituição -, dando rasteiras nos otários e protegendo seus seguidores de possíveis trapaças e ciladas.

Imagem 11: Seu Zé Pelintra

Fonte: Acervo digital Pinterest (s/d)

Seu Zé Pelintra ensina o capoeira a malícia - a arte da malandragem - “olhar ali, aqui e acolá”163. Dono das ruas, Seu Zé é mestre da vadiação, mantém sempre um pé atrás, desconfiado, pois não é bobo de se lançar à sorte. É por isso que o capoeira ginga sempre como um dos pés atrás, pois sabe que as duas pernas juntas podem lhe facilitar a queda. “A máxima da malandragem é a ginga sincopada, onde se coloca um pé se tira o outro, troca-se a mão pelo pé e o pé pela mão” (SIMAS; RUFINO, 2018 p. 82). Encarnar na capoeira a figura de Zé Pelintra, é dar aos movimentos uma cadência de graça e malemolência. É ter um corpo circular, elástico e flexível, de uma maleabilidade adaptativa às situações de perigo. É ser um “corpo toalha”, que se dobra, curva e absorve com facilidade, quebrando a rigidez da performance lutadora do “corpo telha”, que se mantém rígido, reto e circunscrito.

163 Mestre Moreno fala que capoeira é malandro, mas não o malandro que chega no lugar para roubar, mas aquele que está sempre de olho, atento a todos lados. In: Documentário Essa Casa é de Angola Nagô, 2015.

168

Fotografia 45: Cadência de Preto Velho

Fonte: Acervo Pessoal da Pesquisadora (2018)

Na imagem acima o capoeira faz um movimento manhoso, flexiona parcialmente suas pernas, encurvando o tronco como leveza. Sua performance corporal que emana tranquilidade e paciência, “encarna” o trejeito de andar do Preto Velho.

Fotografia 46: Preto Velho

Fonte: Acervo digital Pinterest (s/d)

Os Pretos Velhos são entidades de luz nos cultos da Umbanda, tidos como espíritos de africanos de idade avançada que viveram nas senzalas, conhecendo e resistindo as dificuldades da vida no cativeiro. Detentores do segredo e da ancestralidade africana trazida

169

para cá, são guias de elevada sabedoria e de exemplar humildade. “Símbolos de bondade, (...) apego ao próximo e aceitação incondicional do trabalho e das mazelas do mundo, que eles próprios sentiram na pele serenamente ao longo de uma vida sofrida de escravidão (...)” (DIAS; BAIRRÃO, 2011, p. 151), ensinam o capoeira a ter resiliência e amenizar suas paixões frente às adversidades do jogo. Os movimentos que incorporam movimentos de trabalho e arquétipos de entidades, normalmente comuns na linguagem corporal da Capoeira Angola, são tidos por alguns capoeiras como firulas ou gestos despropositados. O próprio Mestre Bimba teria dito ao jornal A Tarde, no ano de 1936, que dos artifícios da velha capoeira, havia retirado os “mendengues, cangapés, cabriolas, saracoteios para acrescentar o que de mais pesado havia no batuque (...)” (SODRÉ, 2002, p. 50). Talvez, Mestre Bimba não se referia especificamente a Capoeira Angola, sobretudo, a praticada por Mestre Pastinha e Mestre Waldemar, mas a capoeira baiana que conquistava as ruas com performances extravagantes para agradar os olhares dos turistas. Sendo uma crítica ou não à Capoeira Angola, de todo modo, Mestre Bimba, motivado pelo contexto da ascensão das artes marciais e da popularização do esporte na esfera nacional, buscou caracterizar os movimentos da Capoeira Regional, de forma mais objetiva e direta, com a intenção de reafirmá-la como uma luta combativa nos critérios do desporto. Nesse ínterim, muitos movimentos floreados e que incorporavam elementos simbólicos da ancestralidade negra, foram sublimados na linguagem corporal introduzida por Mestre Bimba. Cartografando os desdobramentos desses movimentos no jogo da Capoeira Angola, identifico que eles não descaracterizam a face combativa da capoeira, pois são utilizados como artimanhas de seduzir e confundir o parceiro de jogo, isto é, como força de batalha da mandinga. O angoleiro esquiva-se da meia-lua “pegando o milho no chão” e vê a perna de apoio do parceiro sobrando e lhe passa uma rasteira. Ele “lança o saco para a esquerda”, mas avança repentinamente no contra movimento com uma chapa de frente, surpreendendo o outro jogador. Ele samba na malandragem, deixa o corpo solto e, desnorteando o parceiro lhe mete uma cabeçada na “fuça”. Após passar por um “aperto”, ele anda como o Preto Velho, se faz de cansado, e surpreende com um rabo de arraia. O capoeira angola é tal como um sofista164, constrói um discurso pela linguagem corporal que engana o seu interlocutor, levando-o ao erro. O capoeira joga com o corpo, assim como o sofista joga com as palavras. Enquanto o sofista usa a sua habilidade argumentativa

164 “Na Grécia Clássica, os sofistas foram mestres da retórica e oratória, professores itinerantes que ensinavam sua arte aos cidadãos interessados em dominar melhor técnica do discurso, instrumento político fundamental para os debates e discussões públicas, já que na pólis grega as decisões políticas eram tomadas nas assembleias” (JAPIASSÚ&MARCONDES, 1996, p. 252)

170

para mostrar as contradições da fala do seu interlocutor, o angoleiro usa a dissimulação corporal - que funde luta, brincadeira e dança -, para mostrar os “furos” do parceiro de jogo - onde a sua guarda falhou, onde a sua perna sobrou, onde ele não se esquivou. A Capoeira Angola como a linhagem que mais preserva os simbolismos da raiz africana, incorpora movimentos que expressam códigos que restituem linguagens cosmológicas e sagradas dos terreiros.

Fotografia 47: Passagem para a esquiva

Fonte: Acervo pessoal da Pesquisadora (2018)

Fotografia 48: Passagem pela esquiva de banda (lateral)

Fonte: Acervo pessoal de Pesquisadora (2018)

Nas duas imagens acima, o capoeira volta-se suas mãos para o chão, mas sem tocá-lo. Na primeira, com o corpo na posição lateral e com as pernas parcialmente flexionadas, ele aponta com os dois braços para a terra. Na segunda, lança o tronco para a direita e apoia-se na

171

perna flexionada e direciona as mãos espalmadas para o solo. Ambos os movimentos fazem reverência a terra, ao sagrado que está no chão. Como discutimos no capítulo sobre a Filosofia Afroperspectivista, a dimensão sagrada na cosmovisão africana não está além-mundo, mas se assenta no plano de imanência da natureza, ou melhor, é a própria natureza. Assim, quando os seguidores dos ritos de matriz africana voltam-se sua cabeça (rito de “bater cabeça”) ou outras partes do corpo para chão (deitando-se de bruços em direção ao congá), pretendem se conectar às forças cósmicas que dele emanam. Nesse sentido, o capoeira ao voltar-se suas mãos para o chão reverencia a sacralidade da terra, buscando se alimentar da sua força. Observe que na continuidade do primeiro movimento – a descida para a passagem de negativa -, o capoeira aponta para a terra, como se energiza-se suas mãos e na sequência traz para si a força que captou.

Fotografia 49: Sequência do movimento para a esquiva com rolê

Fonte: Acervo Pessoal da Pesquisadora (2018)

Na Capoeira Angola há movimentos que resguardam a memória de gestos corporais de rendição e de jogos de combate africanos (bassula), como é o caso das chamadas. A chamada é um fundamento na Capoeira Angola, utilizada estrategicamente durante o jogo após o acontecimento de uma queda ou entrada de um golpe perigoso. Assim, a chamada é um movimento que insere uma pausa temporária no ritmo de jogo, reiniciando o ciclo. O capoeira que faz a chamada, normalmente é o mais experiente e encontra-se com certa vantagem no jogo, portanto, faz a chamada com o intento de testar a malícia do parceiro, pois tal

172

movimento se apresenta como uma arapuca. O parceiro que foi “chamado” deve se aproximar com cautela, neutralizando os possíveis pontos de ataque, até encontrar as mãos, braços ou barriga do parceiro, que por sua vez lhe conduzirá com passos semelhantes a dança – normalmente três -, que recuam e avançam pelo espaço da roda. Aquele que fez a chamada é quem desfaz o movimento, e se portando de pé ou agachado, convida o parceiro para seguir com o jogo, mostrando-lhe com os braços a direção ou até gesticulando o movimento a ser executado. Nesse momento há um breve diálogo capcioso que se aproxima ao tom de zombaria, que confundi ou deixa o parceiro que foi “chamado” ainda mais ressabiado. Ainda durante o passo da chamada, o jogador que convidou o movimento pode surpreender o parceiro desatento com uma rasteira, cabeçada ou cotovelada ou ainda na circunstância em que a desfaz, lançar um golpe surpresa. Fotografia 50: Chamada de passo a dois

Fonte: Acervo Pessoal da Pesquisadora (2018)

Fotografia 51: Chamada de frente

Fonte: Acervo Pessoal da Pesquisadora (2018)

173

Fotografia 52: Chamada de costas

Fonte: Acervo Pessoal da Pesquisadora (2018)

Há dezenas de chamadas, dentre elas as mais utilizadas são: chamada de passo a dois, chamada de frente, chamada de costas, sapinho, entre outras. Na chamada de passo a dois (fotografia 50), chamada de frente (fotografia 51) e de costas (fotografia 52) -, as expressões corporais do capoeira sugerem movimentos de rendição, como se ele tivesse sido abordado por uma autoridade e se desse por vencido. Na tradição popular, os mestres contam que a chamada seria uma referência às estratégias de defesa utilizadas pelos negros nas ações de fuga. Quando o capitão mato corria para capturar o negro fugitivo e lhe dava a ordem para parar e se render, os negros se posicionavam como se sujeitassem à captura, mas percebendo a aproximação do capitão do mato, já seguro que iria prendê-lo, desferia golpes certeiros – chapa de costas, chapa de frente, rabo de arraia ou cabeçada, o que lhe permitia continuar a fuga para o quilombo. Desse modo, essa posição de rendição para os negros fugitivos nada mais era executada como uma armadilha, isto é, uma mandinga para ludibriar o capitão do mato, assim como a chamada também é uma artimanha maliciosa (arapuca) para seduzir o parceiro de jogo no contexto da roda. Portanto, nunca se deve aproximar-se inocentemente à uma chamada, pois ela não é um movimento coreográfico ou para descansar como alguns pensam, mas um artifício enganador que pode levá-lo a uma cilada.

174

Fotografia 53: Golpe chapa de costas – facilmente convertido da chamada de costas, quando lança-se as mãos para o chão e uma das pernas para trás, empurrando o calcanhar com a força de flexão do joelho.

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora (2018)

Mestres da Capoeira Angola associam que as chamadas também têm sua origem nos movimentos do jogo de combate Bassula, que era praticado na ilha de Luanda, pelos pescadores e marinheiros. Segundo Cascudo (1967), com base nas descrições do pintor Neves e Sousa, esse jogo era praticado nas áreas portuárias pelos nativos e povos insulares da comunidade Axiluanda, que concentrava mestres e amadores da Bassula. O porto de Luanda foi um dos maiores entrepostos do tráfico negreiro para as Américas, portanto, considerando que a Bassula era uma prática comum nessa região, provavelmente, “teria sido uma escola para os prêtos exportados com destino ao Brasil” (CASCUDO, 1967, p. 187).

Imagem 12: Movimentos da Bassula

Fonte: Jornal Angolano de Artes e Letras (2012)

175

A palavra Bassula no regionalismo angolano tem o significado de rasteira ou golpe para derrubar o adversário (HOUAISS, 2001). Os movimentos têm o propósito de levar o parceiro à queda, seja passando uma rasteira ou lançando-o por cima do próprio corpo - pelas costas, pela frente ou pela lateral. Na capoeira há uma série de movimentos que quando olhamos de fora parecem ter finalidade coreográfica, pois enaltecem beleza e domínio corporal dos jogadores. Contudo, aqueles que conhecem os saberes da mandinga, muito bem sabem que até mesmo os movimentos com características acrobáticas têm o propósito de criar um campo de sedução para o parceiro de jogo e são utilizados como uma armadilha ou para testar a malícia do jogador.

Fotografia 54: Bananeira com ataque de ponteira

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora (2018)

Na imagem acima temos a captura de um dos movimentos ícones da capoeira – a bananeira. É um tipo de acrobacia em que o capoeira inverte radicalmente a posição habitual do corpo, equilibrando-se não mais pelas pernas e sim pelos braços. Segundo Reis (1997), nos movimentos da capoeira há uma constante permutação do alto e do baixo, da frente pelas costas, o que provoca uma inversão da hierarquia corporal. Tal permutação faz com que certas partes do corpo ganhem um novo uso165, como a exemplo da bananeira, em que as mãos são utilizadas no lugar dos pés.

165 Segundo a historiadora Letícia Vidor de Sousa Reis, a roda de capoeira põe o “mundo de pernas para o ar”, subvertendo as lógicas dominantes e ressignificando símbolos e gestos usuais. Analisando o movimento de bananeira, o jogo “apanha laranja no chão tico-tico” que é um desafio que o capoeira em meio aos movimentos

176

A bananeira muitas vezes é executada na roda como uma demonstração de habilidade corporal, por isso, é bem comum, quando um dos jogadores inicia o equilíbrio sobre as duas mãos, o parceiro se sentir desafiado e também iniciar o movimento. Mas por outro lado, a bananeira que aparentemente deixa o corpo vulnerável para um ataque, não tem apenas a função de brincar ou desafiar a destreza do parceiro de jogo. Sua finalidade é justamente atrair o jogador para perto, assim como uma teia de aranha e desfazer o movimento emendando um golpe. Quando o jogador se aproxima com a intenção de entrar uma cabeçada no tórax ou um ponta pé no rosto daquele que faz a bananeira, este usa como recurso de defesa as pernas, chutando a cabeça ou bloqueando a entrada do golpe.

Fotografia 55: Tesoura alta

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora (2018)

Outro movimento que tem como característica criar uma arapuca é a tesoura (imagem acima). O capoeira se posiciona de costas, sustentando o corpo nos braços, numa posição similar a flexão, em que as pernas se mantém abertas, apoiadas no chão e são impulsionadas no sentido do parceiro de jogo. O parceiro de jogo tem várias saídas para esse movimento, dentre as mais comuns, ele pode saltar com um aú pelas costas (se o quadril estiver baixo) ou faz uma passagem por baixo das pernas (se o quadril estiver alto). Acontece que se o jogador não tiver malícia, ao saltar de aú de forma desprevenida pode ser surpreendido com uma

tem que pegar com a boca um nota de dinheiro que está no chão; e o golpe benção (também conhecido como chapa de frente) em que o capoeira lança-se a perna frontalmente empurrando o calcanhar, a autora conclui que “essa lógica do avesso que perpassa os movimentos faz da roda de capoeira um mundo “invertido”. “Anda-se” com as mãos no chão e os pés para o alto, “abençoa-se com os pés em lugar das mãos ou “apanha-se” o dinheiro com a boca”. (REIS, 1997, p. 228).

177

cabeçada ou chapa de chão (benção de chão). E ainda, se demorar para executar a passagem por baixo das pernas, corre o risco de ficar exposto aos mesmos golpes ou joelhada. Os movimentos da capoeira provocam um destronamento da postura habitual, e possibilitam a “autonomia sobre o próprio gesto, subvertendo a proposta de corpos dóceis e mecanizados” (REIS, 1997, p. 231). O corpo é colocado em condições inusitadas, que descaracterizam a disciplina corporal tida como humanizada, na medida em que, também encarnam-se expressões similares às posturas dos animais.

Fotografia 56: Cabeçada rasteira

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora (2018)

No movimento de cabeçada rasteira (ou de chão), o capoeira lança seu corpo para o chão em posição de flexão e flexiona uma das pernas lhe permite avançar ou recuar diante do seu parceiro. A sua postura corporal é animalesca e pode ser associada a movimentação de um réptil – jacaré ou lagarto/camaleão. Esse movimento permite que o jogador penetre por baixo dos movimentos do parceiro, alcançando o ataque mesmo nas passagens de golpes mais rasteiros.

178

Fotografia 57: Passagem da inversão da negativa

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora (2018)

Na passagem da inversão da negativa, o capoeira se encolhe muito próximo ao chão numa postura similar a cobra enrolada. Esse movimento possibilita a continuidade de uma série de movimentos, inclusive “arma” possíveis ataques surpresa, assim como o bote da cobra. Contrariamente a cultura ocidental que buscou disciplinar o corpo expurgando tudo aquilo que era tido como animalesco ou selvagem, as tradições de matriz africana, convivem com a natureza culturalmente incorporada. “Moldam os corpos com inscrições, ritmos e movimentos, odores e perfis de seus ancestrais, interagindo com outros seres e elementos do mundo”. (ANTONACCI, 2014, p. 145). Pescadores sudaneses pescam em postura de flamingo no intento de enganar os peixes (ANTONACCI, 2014). No ritual do Bori no candomblé, os iniciados têm a sua pele pintada com os desenhos das penas da galinha d’angola (VOGEL; MELLO; BARROS, 2007). Na narrativa cosmogônica iorubá166, Oduduwa teve o auxílio de uma galinha, de um pombo e de um camaleão para criar o aiê (terra). Nesse sentido, consta-se que as “culturas afro constroem viveres sem experimentar a natureza como barreira instransponível, que precisa ser vencida, dominada, civilizada e irreversivelmente expropriada” (ANTONACCI, 2014, p. 149), mas pelo contrário, consideram-na sagrada e um espelho da própria humanidade. Há outras dezenas de movimentos da capoeira que são imantados de segredos da mandinga ou resguardam a memória da ancestralidade africana que poderiam ser

166 A galinha espalhou o pó da criação jogado que fora lançado nas águas por Oduduwa, o pombo semeou a terra e o camaleão assegurou que a terra estava firme.

179

contemplados nesse texto. Mas essa seria uma tarefa muito pretenciosa e até desrespeitosa com os fundamentos da capoeira, mesmo porque, há muitas interpretações possíveis para os mesmos movimentos e outros enigmas que desconheço, o que torna impossível exaurir o seu complexo acervo de significados. Portanto, nesse capítulo, pretendi cartografar os movimentos que vibraram em meus olhos e afetaram o meu corpo enquanto capoeira, permitindo-me fazer entrecruzar as minhas experiências na roda, as falas dos mestres e as literaturas.

180

8. ADEUS, ADEUS! BOA VIAGEM, EU VOU-ME EMBORA

A diáspora africana transplantou para o Brasil visões de mundo que vibravam em sons, falares e movimentos. Embora reatualizadas nas suas formas de expressão, as memórias trazidas nos corpos africanos, permitiram a reafirmação de um território negro-brasileiro. Instituídos pela via da tradição oral, os povos que aqui se reterritorializaram, serviam-se de seus corpos como suportes de comunicação e fontes de conhecimento. Nas danças, nos batuques, nas parábolas de sabedorias e nos cerimonias sagrados refundaram cosmologias e cosmovisões, que riscaram múltiplos símbolos, práticas e significações que vieram a constituir o amplo acervo cultural afro-brasileiro.

Os saberes afro-brasileiros encarnados em performances corporais e em práticas de encantes, configuram uma episteme distinta daquela que colonizou e triunfou pelo mundo. Enquanto a episteme ocidental teve como matriz fundadora a racionalidade posta em um saber lógico, positivado e explicativo, os saberes africanos tradicionais, se fundaram numa visão de mundo estética, a qual o corpo é concebido como linguagem e potência de significação dos modos de existência, que resguardam mistérios. A cultura afro-brasileira é escrita pelos corpos - a música, as danças e os ritos litúrgicos são livros encarnados que narram histórias e edificam o complexo conjunto simbólico das visões de mundo exiladas.

A capoeira, nascida da tradição negra, restitui memórias e linguagens dos complexos culturais africanos que foram transladados e resignificados na diáspora. Os corpos que hoje jogam no ritual da roda da capoeira, são narrativas que entrelaçam passado e presente simultaneamente, desenhando a aparência das (re)existências africanas. Por isso, que “a capoeira é tudo o que a boca come”, assim como versa a máxima de Mestre Pastinha. Ela engole de um jeito e devolve de outro, floreando dinamismo e reinvenções das potencialidades das visões de mundo africanas que foram trazidas para cá. Do mesmo modo, “a capoeira é tudo o que a boca come” porque ele é tudo o que o corpo dá. O conhecimento capoeirístico é escrito com os pés, pernas, tronco, braços, boca e ouvidos. A capoeira é corpo, um saber corporal que se funda na sabedoria da ação e não do pensamento. Diferentemente da episteme ocidental que legou o corpo a uma condição inferior aos atributos racionais, nas culturas de matriz africana, assim como na capoeira, o corpo é um truísmo, sem o qual não haveria existência ou conhecimento possível. Provocando um giro epistêmico na ordem dominante, o capoeira faz do seu corpo tempo, espaço, linguagem e

181

motricidade, codificando nos movimentos que cantam, jogam e tocam a potência do seu modo de existência. Fazendo o corpo lutar dançando e invertendo as lógicas habituais das posturas corporais, o capoeira subverte a normatização ocidental, possibilitando problematizar a natureza radical do ser e suas práticas de invenções. A roda de capoeira, cartografada como um tempo/espaço ritual, abre uma fenda na ordem cotidiana, inaugurando uma temporalidade outra que nega a continuidade da ótica vigente pautada numa lógica produtivista. Os ritos expressos nesse lugar ritual, incorporam conceitos afroperspectivistas que descolonizam as nossas percepções e resistem ao apagamento das visões de mundo que se construíram fora do plano de pensamento ocidental. A linguagem corporal dos capoeiras instituem saberes entrecruzados que possuem uma lógica própria que, nesse trabalho, definimos como gramática da mandinga. No corpo mandingueiro o saber é versado como um terreiro, visto que encarna saberes praticados em formas de ritos a partir das lógicas de encantes que emanam axé, segredos e poderes de sedução. A escrita da mandinga insere dobras nas folhas dos discursos vigentes, reinventando formas de ser e fazer capazes de transgredir os limites da racionalidade ocidental. E por essas travessias, conclui-se que a capoeira não é um mero esporte, pois condensa e preserva símbolos ritualísticos do amplo patrimônio cultural africano que se assentou no território brasileiro, desafiando os cânones dos colonizadores.

A capoeira é uma cultura complexa que só pode ser compreendida quando reconhecemos os seus fundamentos e vivenciamos todos os aspectos do seu ritual, pois somente quando absorvemos a sua linguagem é que a capoeira acontece167. Assim como nas culturas sacralizadas de matriz africana, é preciso seguir uma série de “obrigações” – seja dominar o ritmo, incorporar os ritos e as vestimentas -, para entrar no seu segredo (auô). O segredo168 da capoeira não é algo que se aprende do dia para noite – pois “fruta só dá nu tempu”169 -, assim como não se revela numa ordem explicativa, pois extrapola o campo dos nossos axiomas racionais. E então o segredo continua...

167 Mestre Moreno fala que a capoeira possui uma linguagem e somente quando absorvemos essa linguagem é que a capoeira acontece. Do mesmo modo, é preciso observar para “obsorver” seus movimentos. In: Documentário “Essa casa é de Angola Nagô”, 2015. 168 Mestre Plínio argumenta que “segredo revelado perde a força, não se pode falar muito”. In: Documentário Capoeira Angola: Mito e Magia, 2011. 169 Parábola de Mestre Bimba registrada por Decânio (1997, p. 89), fala sobre a paciência e a humildade diante do aprendizado. A partir dessa máxima, concluo que a sabedoria não é um conjunto de informações, mas um atravessamento de experiências que deixa marcas no corpo e transforma o nosso modo de ver e ser. Assim como o fruto, como o tempo, amadurece e se transmuta.

182

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. São Paulo, Martins Fontes, 2007. ALMEIDA, S. Do marinheiro João Cândido ao Almirante Negro: conflitos memoriais na construção do herói de uma revolta centenária. In: Revista Brasileira de História, vol. 31, nº 61, 2011. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2018.

ALVES, F. S. O encontro com a capoeira no tempo da vadiação. In: Revista Movimento (UFRGS), Porto Alegre, RS, v. 19, n. 02, p. 277-300, abr./jun. de 2013. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2018. ANTONACCI, M. A. Memórias ancoradas em corpo negros. São Paulo: 2014. ARAÚJO, R. C. Iê, viva o meu mestre: a Capoeira Angola da “escola pastiniana” como práxis educativa. 2004. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 21 set. 2004. AREIAS, A. O que é capoeira. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983. ASSUNÇÃO, M. R; PEÇANHA, C. F (Mestre Cobra Mansa). A dança da zebra. In: Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 3, n. 30, p. 14-21, mar. 2008. BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010. BALÉ de pé no chão. Direção de Lilian Solá Santiago e Marianna Monteiro. Brasil: Terra Firme Digital& SESC TV, 2005. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=x9CMU4aayjU. Acesso em: 08 fev. 2018. BARÃO, A. C. A performance ritual da “roda de capoeira”. 1999. Dissertação (Mestrado em Artes corporais) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1999. BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BENDINELLI, T. Os parlamentares religiosos tendem a ser mais conservadores do que a população evangélica. In: Jornal Digital El País, 2017. Disponível em: . Acesso em: 04 ago. 2018. BIANCARDI, E. Raízes musicais da Bahia. Salvador: Omar G., 2006. BÍBLIA. Bíblia Sagrada: nova versão internacional. [Traduzido pela comissão de tradução internacional]. São Paulo: Editora Vida, 2000. BOLA SETE, M. A capoeira angola na Bahia. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.

BORNHEIM, G. A. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 2007.

183

BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. In: Código Penal dos Estados Unidos do . Disponível em: . Acesso em: 21 nov. 2017. BRASIL. Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003. In: Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 21 nov. 2017. BULFINCH, T. O livro de ouro da mitologia: (a idade da fábula): história de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. CÁCERES, L. S. R. Pai Tertuliano, Vó Astrogilda e Pingo, o Guardião: de Memórias Familiares a Patrimônio Cultural no Quilombo de Vargem Grande no Rio de Janeiro (RJ). In: Revista Patrimônio e Memória (Unesp). São Paulo, SP, v. 13, n. 1, p. 201-226, jan./jun., 2017. Disponível em: . Acesso em: 27 de nov. 2017. CAILLOIS, R. Os jogos e os Homens: A máscara e a vertigem. Lisboa: Cotovia, 1990. CAIS do Valongo (RJ) ganha título de Patrimônio Mundial. IPHAN, 2017. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/noticias/detalhes/4188/cais-do-valongo-rj-pode-se-tornar- patrimonio-mundial. Acesso em: 10 ago. 2017. CAMPBELL, J. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990. CAPOEIRA angola: mito e magia. Produção de Renata Lima e Olho de boi doc. Goiás: Ladeluca films, 2011. 1 DVD. CAPOEIRA luta e os castigos (Vídeo-aula Carlos Eugênio Líbano Soares). Projeto Jogo do Jogo TV. Disponível em: https://portalcapoeira.com/portfolio/jogo-do-jogo-tv. Acesso em: 17 de jan. 2018.

CARNEIRO, E. Cadernos de Folclore: Capoeira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1977. ______. Importância nacional do negro. Antologia do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Agir, 2005. CASTRO, Celso. Evolucionismo Cultural: Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

COSTA, A. M; SCHWARCZ, L. M. Virando Séculos – No Tempo das Certezas (1890 – 1914). São Paulo, Companhia das Letras, 2000. CASCUDO, L.C. Capoeira. In: CASCUDO, L.C. Folclore do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1967. CASTRO, Y, P. Línguas africanas e a realidade brasileira. In: Revista da FAEEBA / Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Educação I - Ano 1, nº 1 (Jan./jun., 1992) - Salvador: UNEB, 1992. Disponível em: . Acesso em 12 jul. 2018. COMTE, A. Curso de Filosofia Positiva. In; COMTE, A. Os pensadores: textos

184

selecionados. São Paulo: Abril Cultural, 1983. CORBIN, A. Gritos e Cochichos. In: PERROT, Michelle (Org.). História da Vida Privada. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. CORBIN, A; et ali. Prefácio à História do Corpo. In: VIGARELLO, G (Dir.). História do Corpo: Da Renascença às Luzes. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. DECANIO FILHO, A.A. A herança de Mestre Bimba. Filosofia e Lógica africanas na capoeira. Sem Editora: Salvador, 1997. DEL PRIORE, M; VENANCIO, R. Uma breve história do Brasil. São Paulo: Ed. Planeta do Brasil, 2010. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. DESCARTES, René. Discurso do Método. Porto Alegre: L&PM, 2007. DIAS, R, N; BAIRRÃO, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. In: Memorandum 20, Belo Horizonte, 2011, p. 145- 176. Disponível em: . Acesso em 02 jun. 2018. ELIADE, M. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. ESSA casa é de Angola Nagô. Direção de Bruce Carosini. Brasil: Alvo Vídeo All, 2015. 1 DVD. FERREIRA, I. A capoeira no Rio de Janeiro: 1890/1950. Rio de Janeiro: Novas Ideias, 2007. FONSECA, D. J. A história, o africano e o afrobrasileiro. In: Elisa T. M. Schlunzen; Teresa Malatian. (Org.). Caderno de Formação - formação de professores - Didática de conteúdos. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. Disponível em https://acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/46188/1/01d21t05.pdf. Acesso em 18 de abr. 2018. FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2000. FRAZER, J.G. (1908) O escopo da Antropologia Social. In: CASTRO, C. (Org.). Evolucionismo cultural. Rio de Janeiro, Zahar, 2005.

FRENTE Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional. In: Portal da Câmara dos Deputados, 2015. Disponível em: . Acesso em 10 abr. 2018. FREYRE, G. O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro. In: FREYRE, G. Casa-Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51ª Ed. Rev. São Paulo: Global, 2006. GEERTZ, C. Uma Descrição Densa da Cultura. In: GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1989. GINZBURG, C. Prefácio à Edição Italiana. In: O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia

185

das letras, 2006. GUMBRECHT, H.U. Perdido numa intensidade focada: esporte e estratégias de reencantamento. In: Revista Aletria. Belo Horizonte, MG, v. 15, p. 11-19, jan./jun. 2007a. Disponível em: . Acesso em: 11 de dez. 2017.

______. Elogio da beleza atlética. São Paulo: Editora Schwarcz, 2007a.

HAMPÂTÉ BÂ, A. (1982). A Tradição Viva. In: KI-ZERBO, J. (org.). História Geral da África. São Paulo: Ática/Unesco, vol. 1, 2010.

HEGEL, F. Filosofia da História. Brasília: Editora da UnB, 1995. HOUAISS, A. Dicionário Eletrônico 3.0. Editora Objetiva, 2009. HOUNTONDJI, P. African Philosophy: myth & reality. Indiana: University Press, 1996. HUIZINGA, J. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2001. HUNT, E, K. História do pensamento econômico. Petrópolis: Vozes, 1987 JAPIASSÚ, H; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. JOGO de corpo: capoeira e ancestralidade. Direção de Richard Pakleppa, Brasil/Reino Unido: Arts & Humanities Research Council, 2013.

KANT, I. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime. Campinas, Papirus, 1993. Disponível em: . Acesso em 15 abr. 2018.

KOYRÉ, A. Estudos de história do pensamento filosófico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.

LAPLANTINE, F. Aprender Antropologia. São Paulo, Brasiliense, 2007.

LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A cultura como mundo e como mercado. In: LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A Cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. MATTOS, R. A. História e Cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2009. MARCONDES, D. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

MEMÓRIAS do Recôncavo: Besouro e outros capoeiras. Direção de Pedro Abib. Brasil: DocDoma Filmes, 2008. Disponível em: . Acesso em: 04 abr. 2018.

MUKUMA, K. W. Prefácio. In: ANTONACCI, M. A. Memórias ancoradas em corpo negros. São Paulo: 2014.

186

NIETZSCHE, F. Sobre a Verdade e a Mentira no sentido Extra-moral. In: NIETZSCHE, F. Os Pensadores: Textos Selecionados. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.

NOGUERA, R. Denegrindo a filosofia: o pensamento como coreografia de conceitos afroperspectivistas. In: Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v.4, n.2, dezembro/2011a. Disponível em: . Acesso em: 19 abr. 2018.

______. Ubuntu como modo de existir: elementos gerais para uma ética afroperspectivista. In: Revista da ABPN, v. 3, n. 6, nov. 2011b, p. 147-150. Disponível em: . Acesso em: 19 de abr. 2018.

NOGUERA, Renato. Ensino de filosofia e a Lei 10639. 1.ed. Rio de Janeiro: Ceap, 2011c.

NOVAES, A. Apologia da Preguiça – Sequestro do nosso tempo pelo trabalho. In: Folha de São Paulo, Caderno Ilustríssima. São Paulo, 24 jul. 2011. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/il2407201105.htm. Acesso em: 08 nov. 2017.

OMOREGBE, J. I. Filosofia africana: ontem e hoje. In: CHUKUDI EZE, E. (Org.). Filosofia Africana: uma antologia. Massachusetts/Oxford: Blacwell Publishers, 1998. (Tradução de Renato Noguera). Disponível em: . Acesso em: 19 abr. 2018.

O REZADOR de cobras. Direção de Raimundo Alves; Vinícius Berger Araújo. G3 & Associados e Ideia Cultural. Goiânia, 2005. Disponível em: . Acesso em: 04 fev. 2018.

PAIVA, Eduardo França. Bateias, carumbés, tabuleiros: mineração africana e mestiçagem no Novo Mundo. In: PAIVA, Eduardo França e ANASTASIA, Carla Maria Junho (orgs). O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de viver. Séculos XVI a XIX. São Paulo: Annablume:PPGH/UFMG, 2002. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2018. PASSOS NETO, N. S (Nestor Capoeira). Capoeira: a construção da malícia e a filosofia da malandragem, 1800/2010. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2011. PASTINHA, V. F (Mestre Pastinha). Capoeira Angola. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1988. PEREIRA, F; N, AQUINO. A diversidade linguística africana e suas heranças na formação do português no Brasil. In: África sem estereótipos. São Paulo: Coleção Afreaka, Vol. 2, 2017. PEREIRA, F; N, AQUINO. Os sentidos estéticos da dança africana. In: África sem estereótipos. São Paulo: Coleção Afreaka, Vol. 2, 2017. PIKETTY, T. Renda e Produção. In: PIKETTY, T. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. PRANDI, R. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

187

RAMOS, A. Os estudos negros e a escola de Nina Rodrigues. In: CARNEIRO, E. (Org.). Antologia do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Agir, 2005. RAMOSE, M. B. A Filosofia do Ubuntu e Ubuntu como uma Filosofia. Harare: Mond Books, 1999. (Tradução Arnaldo Vasconcellos). Disponível em: . Acesso em: 19 abr. 2018. REIS, L. V. S. O mundo de pernas para o ar: A capoeira no Brasil. São Paulo: Publisher Brasil, 1997. REGO, W. Capoeira Angola: Ensaio Sócio-etnográfico. Salvador: Editora Itapoan, 1968. RIBEIRO, J.C. Vocabulário e Fabulário da mitologia. São Paulo: Martins Fontes, 1962. RIBEIRO, D. O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Global, 2015. RODNEY, P. Traficantes e pastores unidos pelo preconceito? In: Carta Capital (Digital), 2017. Disponível em: . Acesso em 10 abr. 2018. RODRÍGUEZ, L. S. Museu Cafundá Astrogilda – Quilombo de Vargem Grande/RJ. Museu Afro Digital, 2012. Disponível em: . Acesso em: 10 ago. 2017. ROLNIK, S. Cartografia Sentimental: Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1989. RUGENDAS. Viagem pitoresca através do Brasil.. Rio de Janeiro: A Casa do Livro, 1972. SANTAELLA, L. Estética de Platão a Pierce. São Paulo: Experimento, 1994. SANTANA, Luiz Carlos. Liberalismo, ensino e privatização: um estudo a partir dos clássicos da economia política. 1996. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas/SP, 1996. SCHREIBER, M. Capoeira Gospel cresce e gera tensão entre evangélicos e movimento negro. In: BBC Brasil, 2017. Disponível em: . Acesso em: 10 abr. 2018. SIMAS, L. A; RUFINO, L. Fogo no mato: A ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Márula, 2018. SLENES, R. W. “Malungu, ngoma vem!” África coberta e descoberta do Brasil. In: Revista Usp, n. 12, 1992. Disponível em: . Acesso em: 08 nov. 2017. SOARES, C. E. L. A Negregada da Instituição: os capoeiras no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Divisão de Editoração, 1994. SOARES, C. E. L. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808 – 1850). Campinas: Ed. UNICAMP, 2001. SODRÉ, M. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro:

188

DP&A, 1983. ______. O terreiro e a cidade. Rio de Janeiro: Vozes, 1988a. ______. Santugri: Histórias de mandinga e capoeiragem. Rio de Janeiro: Ed. José Olympo, 1988b. ______. Mestre Bimba: Corpo de Mandinga. Rio de Janeiro: Manati, 2002. SOUSA JÚNIOR, V. C. As representações do corpo no universo afro-brasileiro. In: Corpo e História. Projeto História: Corpo & Cultura. Revista do Programa de Estudos Pós- Graduados em História e do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: EDUC, 25, dez., 2002. TAVARES, J. C. Dança da guerra: arquivo e arma. Belo Horizonte: Nandyala, 2012. UNESCO (2014). Capoeira torna-se Patrimônio Imaterial da Humanidade. Disponível em: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single- view/news/capoeira_becomes_intagible_cultural_heritage_of_humanity/#.Ve4YwlVViko. Acesso em 11 set. 2017. VIGARELLO, G; HOLT, R. Ginastas e Esportistas do Século XIX. In: CORBIN, A (Dir.). História do Corpo: Da Revolução à Grande Guerra. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. WEIMER, G. A casa do bandeirante: uma revisão de suas origens. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, RS, n. 149, p. 89-104, dez. 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2017.