<<

dezembro 2014 41 www.candido.bpp.pr.gov.br candidojornal da biblioteca pública do paraná André D ucci O Brasil é uma festa

Com mais de 200 festas literárias espalhadas pelo país, o cenário da literatura brasileira teve sua dinâmica alterada, com impacto na rotina dos escritores e na economia do livro

Ensaio | Arlete Parrilha Sendra • Música e poesia | Ivan Santos • Em Busca de Curitiba | Marcio Renato dos Santos 2 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná editorial

expediente m termos financeiros, as feiras e CARTUM Arnaldo Branco festas literárias fazem hoje aquilo que as vendas de livros nunca fi- candido zeram à grande maioria dos escri- Cândido é uma publicação mensal E da Biblioteca Pública do Paraná tores brasileiros. Ou seja, garantem aos autores autonomia para serem escrito- res em tempo integral, sem exercer ou- tras funções paralelas à escrita. Para isso, precisam participar de bate-papos sobre suas obras e temas análogos à literatura. Esta edição do Cândido traz re- Governador do Estado do Paraná: Beto Richa portagens sobre esse novo panorama Secretário de Estado da Cultura: Paulino Viapiana da literatura brasileira contemporânea, Diretor da Biblioteca Pública do Paraná: Rogério Pereira que não mudou apenas a rotina do es- critor, mas a relação entre público e au- Presidente da Associação dos Amigos da BPP: Gerson Gross tor e, até, a economia do livro. A reportagem ouviu escritores, Coordenação Editorial: editores e curadores para tentar identi- ficar qual o papel desses eventos na cul- Rogério Pereira e Luiz Rebinski Junior tura brasileira hoje. Formam público? Ajudam a difundir a literatura em luga- res mais inóspitos? Tânia Rösing, ideali- Redação: zadora e coordenadora-geral da Jornada Marcio Renato dos Santos e Omar Godoy Nacional de Literatura de Passo Fundo, um dos eventos mais tradicionais do ca- lendário literário brasileiro, diz que, para BIBLIOTECA AFETIVA Estagiários: dinamizar os livros, é preciso preparar Lucas de Lavor e Thiago Lavado

uma programação para os leitores en- D ivulgação D ivulgação contrarem autores. “E é a partir daí que continua o diálogo: primeiramente, do Coordenação de Desenho Gráfico | CDG | SEEC leitor com o livro e, depois, entre o leitor Rita Solieri Brandt | coordenação e o escritor. Com o tempo é que virá o Raquel Dzierva | diagramação gosto pela leitura dos clássicos.” Já o escritor Ricardo Lísias vê com reservas a relação entre autores e Colaboradores desta edição: o poder público, que em geral financia Alan Sieber, André Ducci, Arnaldo Branco, Arlete Parrilha esses encontros. “Isso explica um certo Sendra, Ben-Hur Demeneck, Giovana Madalosso, Heitor Yida, comportamento chapa-branca, muito Afirma Pereira, de Antonio Tabucchi, é um livro completo A linha de ônibus Araucária-Pinheirinho me levava Ivan Santos, Nina Moraes, Juliana Stein e Wilker Souza comum no establishment literário brasi- na forma, na linguagem (irônica e apropriada à identidade para casa quando lia O assassinato e outras histórias, leiro”, diz o autor do romance Divórcio. da personagem] e na conveniência de seu conteúdo de Anton Tchekhov. Ao som de música clássica e em A 41ª edição do Cândido ain- — um libelo contra a tirania e o terrorismo de estado, meio aos “soquetes” do coletivo, me surpreendia com Redação: da traz ensaio inédito de Arlete Parrilha no caso os produtos e subprodutos do salazarismo em o livro. Principalmente com o conto que empresta [email protected] | (41) 3221-4974 Sendra sobre O coronel e o lobisomem, de Portugal e suas relações com a Espanha de Franco e o nome à obra. O cotidiano da pobreza e religião, José Cândido de Carvalho, livro funda- a Alemanha de Hitler. Se existem livros cuja leitura é inerentes à história, ligam-se com a realidade daquele mental do romance brasileiro que com- obrigatória, um deles é Afirma Pereira. Tem como pano ônibus lotado de pessoas sonhadoras, buscando Biblioteca Pública do Paraná pleta 50 anos em 2014. Já o músico e Rua Cândido Lopes, 133. CEP: 80020-901 | Curitiba | PR de fundo um período trágico para a humanidade, de transcender ou permanecer no estado em que se jornalista Ivan Santos assina reportagem Horário de funcionamento: restrições à liberdade, de violência física e psicológica, encontram. Seres humanos, “soquetes” do caminho e sobre prolífica relação entre a poesia e a segunda à sexta, das 8h30 às 20h que a literatura tem o privilégio de manter vivo como música contribuíram para a construção de um “mundo Sábados, das 8h30 às 13h música curitibanas. E, entre os inéditos, exemplo para não ser repetido. próprio”, peculiar da literatura, em minha cabeça. contos de Giovana Madalosso e Wilker Sousa e, na seção Em Busca de Curitiba, Tailor Diniz é escritor e roteirista, autor de 13 livros, entre eles A Felipe Teider de Godoi, 18 anos, é estudante de Letras Português- Todos os textos são de responsabilidade exclusiva a ficção de Marcio Renato dos Santos. superfície da sombra, Em linha reta e Crime na feira do livro, traduzido Inglês na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Nasceu e do autor e não expressam a opinião do jornal. Boa leitura. para o alemão. Vive em Porto Alegre (RS). vive em Araucária (PR). 3 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido curtas da bpp

Divulgação

Paraná no Prêmio São Paulo Divulgação O maringaense Marcos Peres le- vou uma das categorias do Prêmio São Paulo de Literatura 2014. Peres, que tem 29 anos, ganhou na categoria que premia escritores estreantes até 40 anos. O livro vencedor, O evangelho segundo Hitler (Record), também venceu o Prê- mio Sesc de Literatura em 2012 e este- ve entre os finalistas do Prêmio Jabuti deste ano. A obra é inspirada no conto Três versões de Judas, do escritor argen- tino Jorge Luis Borges, que também é um personagem do livro. Em O evan- gelho segundo Hitler, há uma mistura de literatura com fatos históricos e um ho- mônimo de Borges se envolve com uma seita alemã e, posteriormente, com o nazismo de Adolf Hitler.

Iluminações de Rimbaud Pintura da BPP há duas décadas. A pintura é mais uma Um dos grandes títu- Acaba de ser realizada a pintu- etapa do processo de modernização da los da poesia universal, Ilu- ra externa da Biblioteca Pública do Pa- BPP iniciado em 2012, quando o arqui- minuras (Illuminations), do raná. A obra foi realizada a partir do teto Manoel Coelho realizou o proje- francês Arthur Rimbaud, projeto “Tudo de Cor para Você”, das to de reforma geral do prédio. No mes- ganha nova tradução, acom- Tintas Coral, que fornenceu o material mo ano, ocorreu a troca da rede lógica e panhada de ensaio crítico, para a pintura. As empresas Compagas elétrica da Biblioteca, o que possibilitou feita pelos poetas Rodrigo e Sanepar custearam a mão de obra. O que em 2013 os antigos fichários (fichas Garcia Lopes e Maurício prédio da BPP, que é tombado pelo pa- em papel) fossem substituídos por com- Arruda Mendonça. Após trimônio histórico, não recebia pintura putadores para pesquisa do acervo. 20 anos da primeira publi- cação pela Editora Iluminu- ras, esta versão bilíngue vem Natal na Seção do Paraná com a ONG Organização de revisada e anotada, trazendo Desenvolvimento do Potencial Huma- as percepções e iluminações Infatil no, que cuida de crianças em situação do jovem Rimbaud durante A Seção Infantil da BPP recebe, de risco. Além das celebrações natali- sua juventude na Europa no no dia 12 de dezembro, trinta crianças nas, elas também participarão de proje- final do século XIX. Escrito que passarão o dia na biblioteca numa tos da Seção Infantil, como o Bibliotour entre os 19 e 21 anos do au- celebração natalina. Com direito a Pa- e a Hora do Conto. A coordenadora do tor, a obra é um testamento pai Noel e uma ceia de Natal, as crian- Coral da BPP, Paula do Amaral Hara- poético de Rimbaud e um ças também receberão presentes, doados da, vai lecionar iniciação musical. No fi- dos textos fundadores da por funcionários da BPP que ficaram nal da programação, às 15h, as crianças poesia moderna. responsáveis por adotá-las. A iniciati- apresentam canções de Natal no Hall va é uma parceria da Biblioteca Pública de Entrada do prédio. 4 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ENSAIO

Divulgação Olhando o autor pelo retrovisor Especialista na obra de José Cândido de Carvalho, a professora Arlete Parrilha Sendra faz uma retrospectiva sobre a vida e a obra do autor de O coronel e o lobisomem, livro que em 2014 completa 50 anos e é um dos marcos do romance brasileiro

O escritor José Cândido de Carvalho, nos anos 1970, na Acadêmia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira 31. 5 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

este ano de 2014 todo o Brasil de boi que transportam o produto bru- comemora o centenário de nasci- to que alimenta esteiras que alimentam mento de José Cândido de Car- caldeiras. E das andanças desses mes- Nvalho, escritor fluminense que, mos carros recolheu o imaginário entre com , José Lins do Rego, os campos que um dia foram dos goita- Erico Verissimo, Guimarães Rosa, Jo- cazes. E, nas finalmências, documentou sué Montelo, Raquel de Queiroz, entre esse imaginário tal qual faz um escritor. outros, compõe a ciranda literária que Estava pronta sua obra. canta sua terra, sua gente. Ainda em Campos, em 1937, Também neste ano são come- José Cândido de Carvalho termina, na morados os 75 anos do lançamento Escola de Direito Clóvis Bevilacqua, de Olha pro céu, Frederico! e os 50 anos seu curso. Torna-se advogado, satisfa- de O coronel e o lobisomem, livro-senha zendo, assim, o desejo de seu pai, ver o que abriria a José Cândido as portas da filho fotografado com beca. Mas será o Academia Brasileira de Letras, institui- jornalismo que dará alicerces econômi- ção na qual ocupou a cadeira número cos a sua vida e a marcará. 31, que pertencera a Cassiano Ricardo. Ao deixar Campos, em 1939, Também lhe abriria o espaço sociocul- com destino ao Rio de Janeiro, leva, tural que viria ocupar em cenários bra- como passaporte, o livro com o qual fará sileiros e de outros países, como a Fran- seu ritual de iniciação literária, Olha pro ça, Alemanha, Portugal e Argentina, céu, Frederico!, romance acontecido nos onde o Coronel Ponciano de Azeredo tempos do gramofone, em Campos dos Furtado foi recebido. Goytacazes, ficção contextualizada que José Cândido de Carvalho viveu vem trazendo, entre caldeiras e forna- sua infância em Campos, no Rio de Ja- lhas, entre memória e relembranças, um neiro, entre espaços urbanos e rurais, am- retrato dos engenhos de Campos às pri- bos encontráveis em sua obra, levando- meiras usinas, fazendo a ficção e o real -nos a ver em sua ficção um pássaro que se co-fundirem e se confundirem. pousa no real e ao levantar voo vai le- No Rio, faz amizade com Vargas vando fragmentos desse real, construin- Neto, neto de Getúlio Vargas. A con- do, em outro tempo e em outro momen- vite deste, ingressou no jornal A Noite. to, um real ficcional. Ou ficcional real. Fechado o jornal, por razões políticas, obra-prima. Erico Verissimo disse: “Não além do continuum da história, toca o Menino de infância pobre, estu- José Cândido torna-se funcionário pú- exito em colocar O coronel e o lobisomem lado de lá do passado para que ele possa dou em escolas públicas e ainda garoto blico e, por indicação de Amaral Pei- entre os melhores romances da literatura ser alcançado pelo lado de cá do futu- foi ajudante de farmacêutico, cobrador xoto, vai ser redator do Departamento brasileira de todos os tempos”. Já Manoel ro, numa analogia com a ponte heide- de uma firma de aguardente e de açú- Nacional do Café, no Ministério da In- Cavalcanti Proença escreveu que “a força ggeriana: “Sempre e de modo diferente, car. Aos 16 anos, trabalhou em jornal. dústria e do Comércio. Torna-se reda- do livro e a compostura do herói lhes dão a ponte acompanha os caminhos mo- Essas experiências ele as levou para sua tor de O Estado. Também foi copides- entrada na literatura de sempre”. Ou seja, rosos ou apressados dos homens para obra. Com os conhecimentos farma- que de O Cruzeiro, a revista de maior o livro recebe total consagração. lá e para cá, de modo que eles possam cêuticos compôs a alquimia de seu tex- circulação do país naquele momento. A narrativa de O coronel e lobiso- alcançar outras margens. A ponte reú- to: misturou linguagens, inventou fór- Desta revista tornou-se, mais tarde, di- mem, de José Cândido de Carvalho, tem ne, enquanto passagem que atravessa. mulas; da aguardente, ele encontrou o retor. Colaborou com o Jornal do Brasil seus alicerces ficcionais em reais espa- Assim, em travessia, a cultura — como teor da cana/palavra na medida certa, e escreveu em A Cigarra, revista mensal, ços geopolíticos por onde a invenção a ponte — vem trazendo o outro lado, capaz de produzir efeitos etílicos/esté- editada por Herberto Sales. criativa ganha existência e o autor, via outro tempo/espaço que ela sequência ticos que desencadeiam risos, tiram as Somente 25 anos após lançar narrador, deixa fluir sua memória afeti- e, como águas heraclitianas, vem tra- censuras, levando seus personagens a se Olha pro céu, Frederico!, em 1964, por- va. Inventando um mundo com formas zendo a história de suas margens. despirem, desvelando sua mais secre- tanto, sai pelas oficinas de O Cruzeiro linguísticas verticalizadas, o autor reto- A narrativa O coronel e o lobisomem tas intimidades; da refinação do açúcar, seu livro O coronel e o lobisomem. A escri- ma os elementos culturais de suas raízes tem como narrador o próprio Ponciano. As- aproveitou a musicalidade dos carros tora Raquel de Queiroz vê no livro uma e, mimeticamente, fá-los explodir para sim, personagem e narrador se alternam: 6 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ENSAIO

ora é o narrador Ponciano que fala do ferro e lombo de canoa. Gargaú trancou rodas dentadas da primeira revolução in- personagem Ponciano, como se outro a porta em minha cara”. dustrial aportam no país. E faz seu ensaio fosse, ora é o próprio Ponciano que se Acolhido por Dadá Pereira, em inicial nas terras de Campos, que no texto Ao construir sua obra, narra, ou seja, se autonarra, dando ex- casa que abrigava moças de vira-e- não é uma geografia ficcional. “ pressão e originalidade a essa autobio- -mexe, mulheres não desposáveis, mas Instalado na cidade, Ponciano vai com singular imaginário, grafia ficcional. mulheres comíveis, expressão que en- buscar um novo sentido para sua vida e, A narrativa se serve de diferen- contramos em estudos antropológicos, para isto, rompe com o mundo rural, ain- e com plurais perfis e tes espaços contextuais: terras da baixa- Ponciano vai ser de “serviço completo”. da que o leve dentro de si, em sua lingua- da campista, Santo Amaro, Ponta Gros- E é nesse ambiente de luzes e sedução gem, em seu repertório — patrimônio destinos humanos, José sa dos Fidalgos, São Gonçalo, Fazenda que Ponciano vai encontrar antídoto herdado de seu autor — marcado pela Paus Amarelos, e em Campos, Rua da para sua primeira dor de amor. relação homem-natureza, dentro de um Cândido de Carvalho nela Jaca, Rua da Quitanda, Rua Aquida- Nos espaços rurais, Ponciano vai sistema simbólico-ideológico, onde sua bam, altos da livraria Ao Livro Ver- pontificar. Seu tipo físico, sua voz alta, autenticidade era moeda de respeito e esculpe e cinzela dramas de. E registrará a presença de persona- as vantagens que contava, o caso da se- valor. Na cidade, Ponciano vai ser envol- gens que integram os clãs tradicionais reia, o caso do lobisomem, a onça pin- vido pela ambição egoísta que faz do ou- e conflitos ideológicos de Campos, como a família Coelho dos tada, as conquistas jamais acontecidas tro, depois de usado, objeto descartável. Santos e espaços socioculturais, como mas por ele jamais assim assumidas fa- Sujeito solar, Ponciano não per- que se fundem em seu teatros, hotéis, lojas e casas de “tolerân- zem dele uma figura respeitável. Amigo cebe que seu desejo de ascensão social cia” que marcaram presença no desen- incondicional, Ponciano se torna maior estava barrado desde sempre pela estru- arsenal semântico.” rolar da história da cidade. que ele próprio. tura da cultura brasileira que impede a Ponciano surge na narrativa como Para atender a demandas de suas inclusão dos excluídos no contexto polí- menino órfão, criado pelo avô Simeão, terras no fórum, Ponciano vai a Cam- tico-nacional. Não percebe que está ex- rico proprietário, com terras de avantaja- pos e é a partir desse momento que ele, cluída a linguagem que traz o espaço ru- do porte. E fortuna de incalculável valor. levando como bagagem “acontecidos e ral de onde ele, sujeito do discurso, fala. Surpreendido em vadiagem com sucedidos” em noites trevosas de longes Dona Esmeraldina, a mulher que Interessa-nos, nesta leitura, apre- uma pardavasquinha, palavras de Pon- antigamente, vai viver o conflito entre enfeitiçara o Coronel, ele a conhece, endermos a visão do feminino que, atra- ciano, o avô o manda para colégio de as diferentes culturas: a rural e a urba- quando, instalado na Rua da Jaca, de- vés do Coronel, José Cândido de Car- padres, em Campos. Seus estudos ele na, através de fatos diversos da vida co- baixo de agasalho, metido na fervura, valho documenta, dentro de uma certa os prolonga, fazendo o avô acreditar tidiana, marcados concretamente entre Ponciano “recebe doutor novo, de canu- complexidade estética, dentro de um em sua incompletude. Paralelamente, se ele, Ponciano e Dona Esmeraldina — a do ainda molhado nos exames, o doutor mundo feito por ideias já feitas. torna frequentador de festas e arruagens. mulher de olhos de capim —, símbolos Coelho dos Santos, para tratar de uma No panteão feminino estrutu- Com a morte do avô Simeão, de diferentes classes sociais, de diferen- maleita da pior”. Está em processo de rado pelo Coronel, desfilam mulheres Ponciano volta a Sobradinho, casa em tes culturas, representantes de forças so- convalescênça, quando vê “parar na por- que insistem na construção de um novo que vivera na infância. A fortuna que lhe ciais em confronto, em simulação de um ta carro de cerimônia. Era Pernambuco contrato histórico. Mulheres que recu- é deixada lhe confere a patente de Coro- caso de amor. de Oliveira, munido de senhora, moça sam se pautar pelo espelho retrovisor. nel, título que Ponciano repetirá sempre: Ao deixar o Sobradinho, em Mata Ca- de sala e salão, que mal pisou a solei- Se na adolescência Ponciano co- “de que tenho honra e faço alarde”. valos, em Campos, o Coronel se instala no ra da varanda já suas águas de frasco nhecera o primeiro não do amor através Rastreando a tessitura narra- Hotel das Famílias, ali na Beira-Rio e, aromavam a casa inteira”. E será den- de Clara dos Anjos, outras tentativas tiva, constatamos que ela se abre com na carona de seu dinheiro, passa a ter tro desta estrutura que serão desveladas serão vividas pelo homem que acredi- um frustrado caso de amor que vai pro- uma ação efetiva na vida social, onde as ações e atitudes que vão constituir a ta ser o amor mercadoria adquirível se- vocar a primeira fissura na experiência Dona Esmeraldina, Dr. Pernambuco de problemática humana desse romance. gundo seu poder de compra. interior do adolescente Ponciano. Cito Oliveira, Salatiel de Castro, o Castrão Entendemos que há um soció- Por passarelas do Sobradinho Ponciano: “Assim por causa de um par do Banco da Província, além de Fon- logo no avesso desta ficção carvalhia- desfilam, em sonhos, mulheres que — de tranças de uma tal de Dona Bran- tainha e — bisbilhoteiro da im- na que é reveladora do fabuloso, do fan- Ponciano não sabia — recusavam am- ca dos Anjos, apareci em Gargaú, cida- prensa —, o envolvem e seduzem. tástico ato de viver. As personagens se pliar o coro da vitimização e exigiam ter dezinha criada e amamentada no areal Observador irônico de sua socieda- tornam símbolos de um humano jeito seu destino em suas próprias mãos. As- da costa.[...] Pelas prendas e esmerada de, José Cândido nos traz, através de um de ser em transformação, transforma- sim, depois de Clara dos Anjos, “a me- guarnição traseira da menina Branca background, a evolução histórica que acon- ção muitas vezes em descompasso com nina de andar de cobra”, de abraço não dos Anjos lá cheguei em trenzinho de tecia nos bastidores do Brasil, quando as a paisagem esboçada pelo por vir. consentido, Ponciano conhece dona 7 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Isabel Pimenta, “um morenão, puxado a Lembro que Ponciano traz os gar a Caetano de Melo, que guardava, Casar não casava. Iria para um conven- canela, olho de água e beiço de colchão”, traços de caráter do homem cordial em sua casa, a solteirice de dona Bebé to. Preferia a mortalha. Ponciano, jamais! professora que despertara, em Poncia- cantado por Cassiano Ricardo, por Ri- de Melo. Restava ainda a dona Antonia. no, o sonho de Azeredinhos. Cito Pon- beiro Couto, cujo fundamento socio- Ponciano chega às posses de Ca- Restava uma esperança. Engano. Pon- ciano: “Já presenciava a moça professora lógico foi dado por Sérgio Buarque de etano. Conhece dona Antônia, dona de ciano aguardava a caxumba de dona na fartura dos nove meses, na roupa fofa Holanda, em Raízes do Brasil: convívio “platibandas sedutoras, coisa de admi- Bebé para dela receber o sim, um mar- de esperar parteira. Mais de dez Azere- humano, fraqueza de caráter, ambigui- ração, apetrechos de fazer vista” e mui- chante de gado, desencalhava a solteiri- dinhos Furtados era eu capaz de jogar dade, a crença de ser possuidor de uma to do agrado de Ponciano. Mas Juju ce de 40 anos de dona Antônia. E sabe- no mundo. Mais de dez”. certa esperteza. Bezerra descarta dona Antonia por dor de que não havia mais ninguém da Ponciano lê o parecer de Isabel Dando vida a seus personagens, ser dona Bebé a apalavrada. Mas dona família, nem nas redondezas, Ponciano como se Isabel fosse. Acreditava estar a José Cândido de Carvalho traz para sua Bebé não aparece, uma caxumba exi- catarticamente (?) diz: “Nunca, seu Be- moça professora ‘ardida de sentimento’’. ficção os momentos iniciais em que o gia o resguardo do vento. Ponciano, que zerra, que vou ficar embaraçado nesse Assim, um dia, “sentado na ponta feminino começa a ensaiar seu pensar, a cortara pano novo para a visita, pensa cipó-rabo-de-macaco”. da cadeira, lenço metido na trouxa da mão, assumir seu libertar-se. E paralelamente em fazer a troca. Dona Antonia servia. Houve algumas e outras marias- Ponciano, em farda militar”, faz o pedido: nos mostra que o texto literário é mais Juju Bezerra não concorda, dona Bebé o -mijonas, expressão ponciana, interes- “Tinha lá meus anos entrados, que palavra. É vida. aguardava. Começasse Ponciano a “pre- sadas no Coronel. Mas não mereceram léguas de pasto, dinheiros forros no Ponciano continua sua caça. parar garrafada de jurubeba e levanta ho- seu registro, como as filhas de dona Banco Hipotecário, ensinamentos de Quer encontrar a mulher capaz de fazer mem”. Dona Bebé era macuco no em- Bidu. Tão logo dona Bidu soubera que escola, fora outras vantagens como ofi- dele homem-sapo, homem-príncipe. E bornal. Mas não foi. Livre da caxumba e o Coronel cheirava interesse na mais cial superior e homem de irmandade. E vai usar o Vermelhinho-pé-de-pilão, o ao saber que Ponciano fora também fa- tenrinha de suas filhas, a de “tranças de dei o último laço no petitório mais ou capitãozinho que atemorizava todos os zer vistoria de casamento, em estado de boneca”, escondeu sua menina. Poncia- menos assim: galos da região, como senha para che- susto, pede asilo aos primos de Macaé. no lera a intenção de dona Bidu: forçar — De Vossa mercê espero graça favorável”. A moça professora retornou a Campos para entendimentos com os pais. E de Campos a resposta viria. Ponciano esperou. Esperou e a resposta chegou. E foi com “Peito afron- tado e perna tremosa” que entra na lei- tura: “Nem demorou duas linhas, logo no rabo dos cumprimentos (Como-vai- -como-tem-passado-o-coronel?),tive o primeiro desgosto. Entre desculpas e desculpinhas, a mestra repelia meu pe- dido. Com um “cachorra”, Ponciano faz sua catarse. Na verdade, Ponciano so- fria com o não de Isabel, mas o vexame por que passara na sessão de despedida o atormentava. Trocara a aromagem da pólvora por água-de-cheiro. Lembrou- -se do amarrado de cravos que levara a dona Isabel. Amarrado que dava para 20 despedidas. Lembrou-se de que Juca Azeredo até pano de apadrinhagem mandara cortar. Juquinha Bezerra tinha razão: “Mulheres, tudo serve, Coronel. Todas têm seu proveito. E dona Isabel passou. E a vida tem pressa”. 8 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ENSAIO

Ponciano a extrair a menina em garupa em busca de Clara dos Anjos, mito de de cavalo, em noite de fantasia. Mas o Coro- mulher-flor; se lá atrás, dona Isabel era nel recusa. E diante da silenciosa recusa, dona a mulher esposável, que fazia nascer os Bidu espalhara: “Prefiro ver a menina amor- sonhos de Azeredinhos; se a menina de talhada do que em poder de Ponciano” “tranças de boneca” foi ingenuamente Também uma sereia recatada e pensada, agora Ponciano persegue Es- de fino trato ganha espaço no panteão. meraldina, a mulher-caça, a mulher co- Encantara-se com Ponciano. A moça mível, mulher com tempero de prazer, das águas a ele se oferece. Ele a toma cujos apelos carnais faziam latejar suas nos braços, arrasta-a para o seco, dei- pulsões inconscientes e o impediam de xando em águas, a parte escamosa, sem pensar em Azeredinhos. nenhuma serventia. Ouve-lhe o canto. Dona Esmeraldina é a mulher Escuta seu convite. Com ternas falácias, que fascina. E intriga. E instiga. Pren- recusa seus palácios, carruagens de ouro de e enfeitiça. Ela joga com Ponciano, que no fundo das águas verdes lhe per- aprisiona-o em uma promessa escamo- tenceriam. A sereia, em lamento triste, teada no amanhã, dando a ele a ilusão escorreu para profundezas inalcançá- de seu querer e desejar e não poder. veis. As águas cresceram. Enquanto a Escondendo sua verdadeira iden- lua se escondia. E a noite se fazia mais tidade, dona Esmeraldina, mulher de escura que a escuridão. escrúpulos duvidosos, prometia, em in- Ao construir sua obra, com singu- sinuações, inacontecíveis acontecíveis lar imaginário, e com plurais perfis e desti- e Ponciano, no aguardo dessa felicida- nos humanos, José Cândido de Carvalho de, não sentia, não via na espera perda nela esculpe e cinzela dramas e conflitos de tempo. Ponciano que não alcança- ideológicos que se fundem em seu arsenal va os ardis esmeraldinos, não des/ve- semântico. E tomando o signo feminino, lava a mulher. E sem lhe tirar os véus, estabelece uma tensão paralelizada com a ele não a via. De dona Esmeraldina ele força de uma cultura em trânsito. cobiçava a carne. Seu cheiro. Seu cor- José Cândido de Carvalho docu- po. Enquanto dona Esmeraldina cobiçava mentou, em farsa de ficção, a relação en- seu dinheiro: “Passei ao bolso do amigo tre o homem e a mulher, sem nenhuma doutor cinco pacotes de contos de réis proposta de acusação, tão só mimetizou e uma garantia de mais cinco”. “Como a vida em seu correr e transcorrer, ven- quem não sabia de nada, pedi a Noguei- do nessas relações um fenômeno cultu- ra (o marido de dona Esmeraldina) o ral, portanto, passível de ser modificado. especial favor de abrigar, na caixa forte Afinal, constituíram os homens — aqui do escritório uma certa quantia de que me centro no gênero — a única parcela eu andava desprecisado”. “E enquanto do universo incapaz de evolução? dona Esmeraldina ficava cada cada vez Não existe, insistimos, uma femini- mais embeiçada, amparei empréstimo lidade universal. Como não existe a mas- do marido no Banco da Província”. culinidade singular. Existem feminilidades. Vivendo entre Eros e Tanatos, Na modernidade líquida está presente uma dona Esmeraldina vai exigir de Poncia- feminilidade renovadora, essa feminilidade no viver seu desejo (dela), sem direito que se a ela for dada um fósforo, com ele à posse. Em Ponciano e com Poncia- acenderá estrelas, constelações. Com esse no ela testa o poder da mulher. E uma fósforo o céu inteiro se iluminará. plural sensorialidade vai emoldurar essa Concluindo o panteão, presença relação que tem como fundo o códi- entre presenças, está dona Esmeraldina. go sonoro orquestrado pela música do Se na adolescência Ponciano fora caixa de bancos, sons que incitam a O escritor posa ao lado da mãe, Maria Cândida de Carvalho, em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. 9 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Reprodução inquietude gozosa e a fruição da mu- cada momento seu. E então, Ponciano vê o lher “de olhos cor de capim”. que ao viver não vira. Vê suas raízes arran- Enquanto Ponciano sonhava com cadas. Vê a tragicidade de seu destino. os dois corpos em contorcimento pelas E, nas “finalmências”, no instante exis- garras de desejo, corpos incendiados tencial único, quando seu destino se cum- e enrijecidos pelas núpcias proibidas, pria, Ponciano é iluminado por uma in- dona Esmeraldina pensava dinheiros, tensa revelação interior, por uma fresta de insensível às promessas insinuadas, adia- luz que penetra nas rachaduras do vivido, das para um amanhã jamais “chegável”, momento em que a realidade é descorti- insensível às cicatrizes que ia imprimin- nada. E sem o desejo que o impedia de o do no soma e nos semas de Ponciano. ver além do que lhe era visível, de ver os Dona Esmeraldina jogava com signos que descobrem pessoas e revelam promessas: “Mas já preveni Nogueira. o que está no interior do homem, Pon- Acabada essa barafunda (política) vou ciano tem lembranças humilhadas e são embora, vou descansar no mato”. essas lembranças que coreografam seus Ponciano conta na ponta dos de- momentos últimos vividos. dos os dias que faltavam para o prazo da Em longínquo som, ele ouve a vo- eleição. Cito Ponciano: “Já via a moça do zinha do anjo comedor de terra: “Lá vai chalé sozinha comigo em ermo de pitan- o Coronel Ponciano de Azeredo Furtado gueira, em vadiagem de ninguém ver”. em sua mulinha de guerra”. E o tempo passou. E a eleição O luar caía a pino do alto do céu. g acabou. E Nogueira perdeu. E dinhei- ro vai, o dinheiro de Ponciano não vol- tou. E ele que valia pelas cifras que ti- nha, perde seu valor na bolsa dos afetos que não existiam. Cito Ponciano: “Um dia, uma tarde, na Praça da Quitanda, vi passar, em carruagem de luxo, Dona Esmeraldina e Selatiel de Castro, o Castro dos dinheiros a juro do Banco da Província... Ao dar comigo espetado na calçada, a mulher de No- gueira rebaixou os olhos... Dei de om- bro: Vaca!” Não há surpresa no desfecho da narrativa. Ponciano perdera tudo. Ape- nas um sabiá-laranjeira, “muito cantati- vo, mais que um tenor das ribaltas”, lhe faz companhia. Como se um oximoro fosse, Pon- ciano retorna ao Sobradinho, de árvores adormecidas e castradas. De pios negros. Ares tensos. Sons quebradiços. Cheiro de Arlete Parrilha Sendra é graduada em letras clássicas bolor. E vê as ervas-de-passarinho sobra- (português, latim e grego), mestre em Literatura das das cumeeiras meterem “os dedos nos Brasileira, doutora em Literatura de Língua Portuguesa rachados das paredes”. Ali e aí é atravessado e pós-doutorada em semiótica. Atualmente, é docente pela dor, na carne e no espírito. Se revê na nar- e pesquisadora da Universidade Estadual do Norte O escritor posa ao lado da mãe, Maria Cândida de Carvalho, em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. rativa, que ele próprio escrevera. Rebobina Fluminense (Uenf). Vive em Campos dos Goytacazes (RJ). 10 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

CONCURSO

Biblioteca Pública do Paraná Paraná em apenas três edições. “É o que (BPP) divulgou na última semana indica o elevado número de participan- de novembro os títulos dos livros tes nas três categorias do concurso. Fo- A vencedores do Prêmio Paraná de ram muitos inscritos e, embora alguns Literatura 2014. Em sua terceira edição, ainda se mostrem presos a padrões po- o concurso da Secretaria da Cultura do éticos, temas e estruturas algo desgasta- Estado (Seec) selecionou obras inéditas, dos e menos inventivos, a maioria apre- de autores de todo o País, em três ca- sentou um bom domínio dos elementos tegorias que homenageiam figuras im- que caracterizam a poesia”, avalia. portantes da literatura paranaense. O Para Cíntia Moscovich, o pro- júri apontou Operação impensável, de Va- cesso de seleção dos livros inscritos no nessa Barbara (SP), como o melhor ro- concurso revelou uma variedade na pro- mance (prêmio Manoel Carlos Karam). dução. “Tivemos contato com uma mirí- No início, de Adriana Griner (RJ), ven- ade de expressões narrativas, muitas ve- ceu a categoria contos (prêmio Newton zes com a interpenetração de gêneros, Prêmio Paraná Sampaio). E Fios, de Sônia Barros, foi o linguagens e inquietudes. Isso, per si, não destaque entre as obras de poesia (prê- é bom ou ruim. É uma característica do mio Helena Kolody). que se pratica em termos atuais”, afirma. Cada autor receberá R$ 40 mil e Lourival Holanda, jurado da ca- de Literatura terá sua obra publicada pela Biblioteca tegoria Romance, acredita que o Prêmio Pública, com tiragem de mil exempla- Paraná cumpriu sua função de promo- res. A entrega oficial dos prêmios e o ver e dar visibilidade à criação literária lançamento dos livros acontecem no dia do momento. “Um concurso literário 2014 anuncia 12 de dezembro, em um evento na BPP. pode ser um dos modos de sentir o pul- Neste ano, a comissão julgadora, forma- so da qualidade inventiva de um tempo da por nove membros, avaliou 636 tra- — de que o texto dá testemunho. Além balhos. Elvira Vigna, Regina Zilberman disso, a Biblioteca Pública do Paraná e Lourival Holanda foram os jurados da augura ser a pedra angular de uma car- vencedores categoria Romance. Cíntia Moscovich, reira literária e ajuda a estimular novos Operação Impensável (Vanessa Barbara), Fios (Sônia Antonio Carlos Viana e Paulo Ventu- projetos literários”, diz. relli escolheram o melhor livro de con- Barros) e No Início (Adriana Griner) foram escolhidos tos. Luci Collin, Augusto Massi e An- Os vencedores dré Seffrin analisam as obras de poesia. “Fios se destacou por explorar a entre as mais de 600 obras inscritas A comissão foi presidida por Rogério intertextualidade — passando, sobretudo, Pereira, diretor da BPP. pelo universo da música, das artes visuais Da Redação “O Prêmio Paraná tornou-se ra- e do cinema — e por evidenciar um do- pidamente um dos mais importantes do mínio formal no uso dos recursos rítmi- Brasil. Prova disso é que boa parte dos li- cos e de sonoridade que marcam o fazer vros vencedores nos anos anteriores aca- poético”, justifica Luci Collin. Ela ainda baram ganhando edições por grandes afirma que os poemas da autora paulis- editoras brasileiras”, diz Pereira. “Esse ta Sônia Barros apresentam imagens aos tipo de concurso é fundamental para for- mesmo tempo sutis e impactantes, que talecer a literatura brasileira, chamando a conferem beleza e densidade à obra. atenção dos leitores para excelentes livros Composto por contos inspirados de autores contemporâneos. Para 2015, em passagens do Antigo Testamento, estudamos a possibilidade de incluir a ca- No início, da estreante carioca Adriana tegoria infantojuvenil”, completa. Griner, cativou a comissão julgado- A jurada Luci Collin também des- ra, segundo Cíntia Moscovich. A auto- taca o prestígio adquirido pelo Prêmio ra ressalta, como qualidades da obra, o 11 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

forte sentido de unidade da narrativa, o viço da linguagem e a ousadia de revisi- tar o “livro dos livros”. “Chega a ser um alívio premiar só um volume. É o prê- mio que se dá à convicção”, garante. Operação impensável, de Vanes- sa Barbara (SP), apresenta um olhar fe- minino e contemporâneo sobre o eter- no tema da guerra conjugal. Mas, de acordo com Lourival Holanda, foi sua linguagem que levou o trio de jurados a premiá-lo. “O livro foi escolhido por unanimidade pela deleitação inventiva, Vencedores pelas nuances verbais, pela forma enge- nhosa e cativante de um estilo vivaz e pessoal. O tom irônico dá leveza e con- tundência à crítica aos valores do con- senso cultural que ali se delineia”, diz. g

2012 Sergio Y vai à América | romance de Alexandre Vidal Porto Papis et circensis | contos de José Roberto Torero As maçãs de antes | poesia de Lila Maia

2013 Meu primeiro morto | romance de Jaci Palma Ensaio sobre o entendimento humano | contos de Caetano Galindo Fábulas para adulto perder o sono | poesia de Adriane Garcia

2014 Operação Impensável | romance de Vanessa Barbara No início | contos de Adriana Griner Fios | poesia de Sônia Barros 12 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

EM BUSCA DE CURITIBA | marciO RENATO DOS SANTOS

Allan Sieber Ilustração 13 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido Bicicletas de Curitiba

Minhas pernas doem, espero que centro histórico, cerveja, vina e manjubi- desses caras que, na opinião dela, são goles. Não sei se entendi, exatamente, o não seja inflamação nos músculos, mas, nha na calçada. Muita gente participa e, uns losers e se assustam com a ideia de que o policial me disse. enfim, pedalo nessa rodovia que vai me não fosse pelo Ber, talvez eu não tives- casar, ter filhos, conseguir um bom em- Há algumas horas, um motoris- levar até o meu amor. Chego suada, ele se acesso. Os homens, em sua maioria, prego e, enfim, assumir a vida adulta. ta seguiu dois ciclistas após receber uma gosta e diz que até prefere assim. Fazer usam o mesmo uniforme: all star, jeans, Eu acabei me afastando da Juzinha. Te- fechada em uma avenida do centro. O o quê? Se eu morasse em Curitiba, tudo camiseta de banda ou camisa de brechó nho outra opinião. condutor de um Fox foi tirar satisfação, seria diferente. Mas sou de Piraquara e barba. As mulheres vão de saia, sandá- Já namorei playboy, executivo, levou duas facadas e morreu dentro da que, na real, é logo ali. lia e unhas por fazer. Tenho a impressão surfista, pós-graduado, uns canalhas, ambulância, antes de chegar no hospi- Poderia vir de carro, mas desde de que eles, e elas também, não tomam brutos e insensíveis. Estou em uma dos tal. Um dos ciclistas se chama Roberto. que conheci o Bernardo estou pedalan- banho todos os dias. melhores fases da minha vida profissio- O outro é o Ber. Eles fugiram. do. Ele curte esse lance de cicloativis- Mas o que me chama atenção é nal, com um salário que nunca imagi- E isso não é tudo. mo, novos modais, menos carros, mais o comportamento desses caras: andam nei que iria receber e quero mais é viver Na quinta-feira da semana passa- gente de bike nas ruas. devagar, quase se arrastando, falam bai- com gente relax. da, um homem de 89 anos estava cami- Me apaixonei pelo Ber, apesar da xinho, pra dentro, sorriem e dão a im- Nunca presenciei briga nesses nhando na faixa de pedestre, foi atingi- gente nunca ter transado. Ele sofre de pressão de serem molinhos, a começar eventos a céu aberto. A turma do Ber é da do por um ciclista e morreu. O acusado disfunção erétil. É broxa. E mesmo sem pelo aperto de mão. O Ber é assim. Os paz. A Mari já me perguntou: o que será é o Ber, o meu Ber, que, de acordo com a transar estou a fim. O Ber me abriu um amigos e os conhecidos dele também são. que eles fazem com a agressividade? Não polícia, responderá, neste caso, por ho- novo horizonte. É a primeira vez que Um ônibus buzina e quase perco tenho a resposta. Sei que escutam as can- micídio culposo. namoro um carinha que curte esse som o controle. Preciso prestar mais atenção ções do Cícero, do Jeneci, do Apanhador O policial que falou comigo tam- e, mais que tudo, essa visão de mundo no trânsito. Só e de Todos os Caetanos do Mundo. bém disse que o Ber e os seus amigos pós-Los Hermanos. A Bruna, uma de minhas me- Agora, estou em Curitiba — es- são investigados, há algum tempo, na Sigo nessa rodovia, está demo- lhores amigas, diz que estou cometen- sas viagens de bike são ótimas, e perigo- operação “Cara estranho”, que apura rando, e lembro que há alguns meses eu do um equívoco. Ela acha que esses ca- sas, mas penso durante a ida e a volta e crimes cometidos contra pedestres, in- ainda morava em Campo Largo e tam- ras, o Ber e os amigos dele, são todos isso é valioso. cluindo atropelamentos, sobretudo à bém tinha que pedalar por uma rodo- uns frouxos, e eu ainda nem contei, pra O que está acontecendo? Por que noite, em ciclovias. via para chegar até o Nonô, que é como ela, que o Ber é broxa. Ou melhor, está toda essa movimentação em frente ao Fui intimada, vou ter que prestar eu chamo o Ber quando ficamos juntos broxando — pelo menos é o que ele fala apartamento do Ber? depoimento e começo a desconfiar que — o que, lamento, não está acontecen- pra mim. “Mas vai passar, tenha certeza. — Sim. O meu nome é Cassandra. estou dentro de um pesadelo de onde eu do ultimamente. E não tenha pressa. Eu te amo”, ele sus- Um policial conversa comigo. gostaria de sair imediatamente e acor- Ele gosta, demais, de frequentar even- surra nos meus ouvidos. Deixo a bicicleta no muro, sento na cal- dar, agora, na minha cama, se possível, ao tos a céu aberto. E eu o acompanho. Tem ré- A Juzinha, minha amiga desde çada e alguém me entrega uma garra- lado do Ber, daquele Ber fofinho, moli- veillon fora de época, bloco de carnaval no a infância, insiste para que eu me afaste fa de água mineral. Bebo um, dois, três nho, fã de pós-rock e broxa, mas da paz. g

Marcio Renato dos Santos é jornalista e atua no Núcleo de Edições da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná (Seec). É autor do Dicionário amoroso de Curitiba (2014) e 2,99 (2014). Vive em Curitiba (PR). 14 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

CENA LITERÁRIA Música ultralírica Partindo de Leminski e o primeiro disco do Blindagem, Curitiba tem na relação entre música e poesia um dos elementos definidores da cultura da cidade

Ivan Santos

á vai longe o tempo em que o re- com o vídeo viral da canção “Oração”, ten- lacionamento entre a poesia e a do justamente como proposta inaugural o música era visto como um emba- registro de canções de compositores nati- Jte incestuoso entre “alta” e “baixa” vos, e como parceiros figuras como Luiz cultura. Afinal, em um país onde nosso Felipe Leprevost e Alexandre França. maior compositor — Antonio Carlos “A meu ver, as melhores músicas Jobim — tem como um de seus prin- do Blindagem são as que foram com- cipais parceiros o poeta e diplomata Vi- postas em colaboração com Leminski, nicius de Moraes — que publicou livros especialmente a parceria Ivo Rodrigues/ antes de ter a primeira música gravada Paulo Leminski. O primeiro disco do — não faz sentido insistir em separar grupo é um clássico do rock nacional. E duas expressões artísticas fundamen- está ligado a uma vertente importante tais para a compreensão da cultura e da da música setentista, aquela que tran- identidade nacional. sita entre o rock’n’roll (Mutantes, Tut- Em Curitiba, essa relação parece ti-Frutti, ) e o rock rural (Sá, ainda mais definidora doethos da pro- Rodrix & Guarabyra)”, diz o professor dução artística da cidade. Nosso artista de Literatura da Universidade Federal e escritor mais conhecido e pop (Dalton do Paraná Marcelo Sandmann, ele mes- é clássico), Paulo Leminski, é também mo poeta e compositor, com livros e dis- parceiro do mais importante registro cos lançados, autor de músicas e letras fonográfico da música paranaense — que integram o repertório de importan- o primeiro e homônimo disco da ban- tes grupos e artistas locais, como o Fato, da Blindagem, lançado pela gravadora Rogéria Holtz e Alexandre Nero, para Continental em 1981 — e no qual nove ficar em alguns dos mais conhecidos. das doze faixas trazem o nome de Le- Fiel ao espírito da contracultura de minski nos créditos. viver poucos anos a mil, Leminski foi mui- Leminski é sem dúvida o exem- to além do Blindagem ou das parcerias plo mais emblemático dessa linhagem com artistas nativos. Sua obra musical foi de poetas que fazem música, ou músicos abraçada por grandes nomes como Caetano que escrevem poesia, e que se espraia até Veloso — que gravou “Verdura”, última faixa os dias de hoje, desaguando não por aca- do primeiro disco do Blindagem, no LP Ou- so em trabalhos como o da Banda Mais tras palavras, do mesmo ano — e uma lista que Bonita da Cidade. O maior fenômeno inclui ainda A Cor do Som, os novos baianos pop contemporâneo da capital paranaen- Moraes Moreira e Paulinho Boca de Can- O primeiro disco da banda Blindagem é um marco do rock paranaense e conta se surgiu em 2009 e “estourou” em 2011 tore Edvaldo Santana, entre muitos outros. com nove letras assinadas por Paulo Leminski, sozinho ou em parceria. 15 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Divulgação

Divulgação Essa linhagem passa também por Alice Ruiz, companheira de versos, canções e vida de Leminski, mãe de três filhos do poeta, autora de mais de duas dezenas de títulos de poesia, letrista com parcerias com músicos como Ita- mar Assumpção, , José Miguel Wisnik, Zeca Baleiro, Waltel Branco e Alzira Espíndola. E desembo- ca no casal Estrela Ruiz Leminski e Téo Ruiz e seu projeto “Música de Ruiz” — com quatro discos, sendo o mais recen- te deles “Leminskações”, lançado em agosto de 2014, no qual a filha do poe- ta interpreta, ao lado de seus parceiros, a obra do pai.

A poesia vai ao punk (e vice-versa) Sem suingue, da banda Beijo AA Força, lançado em 1995, foi citado recentemente pelo crítico Hermano Vianna, que o Nos anos 1980, uma outra trupe considera um dos grandes discos da música brasileira. O álbum traz letras assinadas por poetas como Marcos Prado, de Curitiba assume o desafio de emba- Thadeu Wojciechowski e Sérgio Virallobos. ralhar música e poesia, claramente in- fluenciada pela geração anterior, capi- taneada por Leminski, mas também trazendo à cena um novo background deles é feito a muitas mãos, quase sem- Brasil”, ombro a ombro com obras-pri- de referências estéticas — sejam lite- pre com mais de um poeta/letrista atu- mas como o clássico Acabou chorare, dos rárias ou sonoras. Esse grupo se agluti- ando na parceria, daí não ser muito fá- Novos Baianos. na no rastro do movimento punk e em cil avaliar o peso de cada colaboração “As parcerias nos anos 1980 eram, torno da banda Beijo AA Força (ante- individual. Tem uma coisa fortemente na maioria das vezes, com a música sen- cedida pela Contrabanda), abastecido ligada ao punk, na intenção, mas o re- do feita sobre uma letra pronta. Algu- pelos textos dos irmãos Marcos e Ro- sultado é muito mais multifacetado do mas vezes as letras precisaram ser edita- berto Prado e de outros poetas como que o punk típico”, diz Sandmann, des- das para se ajustarem à métrica musical. Thadeu Wojciechowski, Sérgio Viralo- tacando que o crítico Hermano Vianna Outras vezes as letras foram feitas sobre bos, Arnaldo Machado e Edilson Del classificou recentemente o segundo dis- músicas”, explica o guitarrista do BAAF, Grossi. “Com relação ao BAAF, é pre- co do BAAF, Sem suingue (1995), como Luiz Antonio Ferreira. “Também com- ciso lembrar que o trabalho de criação “um dos melhores discos já gravados no pusemos e ainda compomos músicas e 16 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

CENA LITERÁRIA

Foto: Dico Kremer “O que dificulta a aproximação com o público é a precariedade ou a simples inexistência de mediações à altura, seja aqui em Curitiba, seja em muitos lugares do Brasil. E por ‘mediação’ eu entendo imprensa, rádio, TV, crítica musical, gravadoras, produtores, empresários, em síntese, todos aqueles que estão entre o público e os artistas.” Marcelo Sandmann, letrista e poeta

Além das parceria com a banda Blindagem, Paulo Leminski escreveu letras gravadas por , Paulinho Boca de Cantor e Moraes Moreira.

letras ao mesmo tempo, geralmente em canções do Marcos Prado, coletânea de —, essa relação entre poesia e música até mesmo dispensável — de ser traça- ‘tertúlias’, onde a música e a poesia são músicas compostas pelo BAAF em par- em Curitiba se desenvolveu natural- da. “Desde o século XVII, Gregório de sempre um ótimo pretexto para degustar ceria com o letrista considerado a figu- mente e de forma absolutamente orgâ- Matos, o Boca do Inferno, já unia as duas uma carne bem assada, beber cervejas e ra mais influente dopunk e do pós-punk nica. “Somos muito amigos e nos ad- artes. Muitas das canções populares da dar muitas risadas”, conta o músico. da capital paranaense. “Ultralyrics rom- miramos mutuamente, mas além disso Bahia levavam o seu gênio. Ele mesmo “São pessoas de origens e forma- pe a arbitrária divisão, feita pela crítica temos um traço em comum que é que- tocava sua viola e cantava algumas. Essa ções diferentes que se uniram pela ousa- latifundiária, que tenta separar a rica (e rer sempre inventar, revolucionar, criar tradição percorre toda nossa história. dia, pela experimentação, pelo bom hu- menosprezada) letra de música da pobre algo novo e se divertir fazendo isso. foi um dos expoentes. Carto- mor, pela coragem de enfrentar a jequice, coitada (e mistificada) poesia”, comen- Cada encontro nosso é uma festa e um la, , Chico, Caetano, por optar preferencialmente pela ale- tava Roberto Prado na época do lança- festival de barbaridades”, diz. Gil e Leminski levam a dupla marca de gria em um ambiente cultural que então, mento. Sobre a forma como as canções do grandes poetas e grandes músicos. Estou em grande parte, respirava uma tristeza grupo nascem, ele explica que é muito va- aí no meio fazendo bagunça”, brinca. mórbida”, define o poeta Roberto Pra- A regra é a falta de regras riável e depende das circunstâncias. “Os Essa mesma falta de regras no do que, junto com o irmão Marcos, é um Para Thadeu Wojciechowski, que parceiros é que decidem, já fiz muito poe- processo criativo perpassa o trabalho do dos principais parceiros dessa trupe. além do BAAF, é parceiro constante do ma que virou letra. E já recebi dezenas de grupo Fato, que desde 1994 se dedica Em 2005, foi lançado pela Tra- Maxixe Machine — banda que nasceu a gravações com poemas que nunca imagi- a musicar e difundir a obra de autores vessa dos Editores Ultralyrics — com- partir do grupo punk para tocar um re- nei como letras de música”, confessa. paranaenses — com 43 compositores bo que reúne um livro com versos de pertório inclassificável que vai de sam- De acordo com Wojciechowski, a gravados e interpretados, 38 deles da- Marcos Prado, organizado pelo diretor bas antigos a polcas, passando por mar- fronteira entre poesia literária e músi- qui da “terrinha” —, entre eles o próprio teatral Felipe Hirsch, e o CD Aquelas chinhas de carnaval e canções infantis ca popular é cada vez mais difícil — ou Wojciechowski, Sandmann, Arnaldo 17 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Reprodução Machado, Luiz Felipe Leprevost, Luiz (na expressão joycena, que combinam Antonio Fidalgo e Amarildo Anzolin. diferentes vocábulos, como o famigerado “Acho que a maioria dos textos musica- ‘Perhappiness’), trocadilhos, jogos de pa- dos por nós nasceram de poemas já exis- lavra, muito humor e nonsense”, explica. tentes. A maioria, não a totalidade. Par- Se há consenso entre os criadores cerias e colaborações também existem, — poetas e músicos — de que a união mas em menor número”, explica Ulis- das duas expressões ajuda o texto lite- ses Galetto, produtor e baixista do grupo. rário a atingir um público mais amplo,, “Não sei exatamente o impacto disso em também é corrente a opinião de que o nosso trabalho, mas sei que alguns desses caráter mais intelectualizado dessa pro- autores só têm suas músicas registradas dução não representa um empecilho à por nós, o que é uma pena. Seus talentos aproximação desse mesmo público. “O são muitos, ainda por serem reconheci- que dificulta a aproximação com o pú- dos aqui e em todo o Brasil”, diz. blico é a precariedade ou a simples ine- Um capítulo à parte da produção xistência de mediações à altura, seja dessa geração pode ser encontrado tam- aqui em Curitiba, seja em muitos luga- bém na parceria da banda Opinião Pú- res do Brasil. E por ‘mediação’ eu enten- blica, contemporânea do BAAF, com o do imprensa, rádio, TV, crítica musical, poeta e letrista Arnaldo Machado, dono gravadoras, produtores, empresários, em de um texto bastante sui generis, com ex- síntese, todos aqueles que estão entre o perimentações linguísticas da vanguarda público e os artistas”, avalia Sandmann.. literária, que segundo Sandmann remete “Acho que pode haver uma relação en- à poesia concreta, “e coisas que Leminski tre ‘grande-público-música popular-po- faz no Catatau e em esia’, mas o nó da questão está, a meu Galáxias” e a uma matriz que na avalia- ver, nas estruturas da indústria, concen- O poeta e letrista Marcelo Sandmann tem diversas letras musicadas pelo grupo Fato. ção do professor da UFPR vem de James tradora e pouco receptiva à novidades. Joyce — Ulisses e Finnegans Wake. “Arnal- Tanto para a literatura quanto para mú- do gosta de neologismos, palavras-valise sica”, considera Ulisses Galetto. g Reprodução

Os poetas-letristras Thadeu Wojciechowski, Edilson Del Grossi, Roberto Prado e Marcos Prado em foto dos anos 1980. 18 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

ENTREVISTA | ROBERTO PRADO

A literatura em geral e a poesia em particular são vistas muitas vezes como algo distante da realidade das pessoas comuns, “intelectualizado” demais, ou pra usar um termo popu- lar — “cabeça”. Você acha que a união “A separação da poesia com a música ajuda a atingir um público mais amplo, que normal- mente não leria poesia? Sem dúvida. Pouca gente tem da poesia escrita e cultura musical e literária suficiente para perceber o ritmo, o encadeamen- to, o batuque das sílabas, das palavras e do silêncio existentes em um poe- ma por escrito. A música ajuda a dei- cantadaIvan Santos é arbitrária” xar este aspecto mais evidente. Mas o ideal seria educar as pessoas para que elas próprias fossem capazes de elabo- rar mentalmente as melodias presentes Foto: Bebel Oliveira na poesia. Quando você aprende a ler, o poema é uma diversão, um prazer, uma aventura do espírito. Mas às vezes a po- esia pode ser realmente difícil de engo- poeta e letrista curitibano Rober- de desenvolvimento econômico, uma falha lir e digerir. Nesta hora, temos que lem- to Prado é, até o momento, autor em nosso capitalismo rudimentar, que ain- brar que a mente, o cérebro, necessitam de apenas um único livro publica- da não sabe comercializar bens culturais, as- de vez em quando de algo com mais O do, a coletânea de poemas Sim se- sim como não consegue desenvolver ciência sustança, mais fibra, mais conteúdo con- nhor às suas ordens isto é um motim (1994). e tecnologia próprios. O povo tem uma pa- centrado. Não se forja indivíduos livres, Mas ele assina dezenas, talvez centenas, lavra boa pra definir isso: somos ‘jacus’.” saudáveis e mais felizes alimentando a de letras de canções, algumas criadas em Para você, o interesse em pro- alma apenas com miojos e bolachas re- parceria — gravadas, entre outros, pelas dução literária/poesia surgiu simulta- cheadas culturais. Às vezes o desafio, o bandas Beijo AA Força, Maxixe Machi- neamente à música, ou algo veio antes mistério, o grau de dificuldade de uma ne e Fato. Prado transita pela poesia e e puxou a outra? obra é o que a torna essencial. pela letra de canções e, nesta entrevista, Chegou junto, desde muito piá. A diferencia as duas vertentes artísticas. “A minha geração teve o privilégio de acom- Acha que o trabalho da geração letra de música tem as mesmas exigências panhar o nascimento de uma poderosa de poetas/músicos da qual você faz do poema. Com a diferença de que pode geração de poet heroes da música popular. parte reflete de certa forma o “ethos” contar com o suporte melódico/harmô- Chico, Caetano, Gil, Torquato, Milton, da cultura e do “homem” curitibano? nico da canção. Às vezes, o texto sozi- Tom Zé, Vandré, Mutantes e tantos ou- Creio que sim. Nas obras desse nho, sem este suporte, pode-se revelar tros, o próprio Vinicius, já consagrado em grupo você encontra doses generosas mais fraco que o cantado, como se sentis- livro. Fora os internacionais. Claro, óbvio de humor ácido e vemos a alma pro- se a falta de alguma coisa”, diz o poeta. Ele e evidente que também devorei avida- vinciana esquartejada sem dó, a (auto) também fala sobre a cena poética e musi- mente todos os poetas por escrito que en- crítica feroz e sem limites, o aprovei- cal de Curitiba e critica a falta de agentes contrei pela frente. Não domino nenhum tamento de temáticas locais por mais culturais que façam o meio de campo en- instrumento, toco violão para mim mes- banais e jacus que pareçam, a profun- tre artistas e público: “Por incrível que pa- mo e arranho canções, mas não a ponto da integração entre vida e obra, mes- reça, não existem empresários especializa- de compor. Sou letrista e ouso dar os meus mo que esta não seja sempre, necessa- dos na área cultural. Talvez seja um problema palpites no ritmo, na divisão, na melodia. riamente, autobiográfica. 19 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Foto: Bebel Oliveira Qual a diferença entre escre- ser parte integrante do currículo desde ver poesia e compor letra de música? o primeiro ano e não existir apenas na Acha que a poesia exige um rigor for- forma de aulas extras em colégios parti- mal e uma preocupação com inovação culares. A música é um patrimônio multi- estética que a letra de música não ne- milenar da espécie humana, uma parte in- cessariamente tem? tegrante da sensibilidade e da inteligência A letra de música tem as mesmas do cidadão. Sem uma educação específica exigências do poema. Com a diferença nesta área, a maioria das pessoas vira mas- de que pode contar com o suporte me- sa, vira presa fácil da ganância da indús- lódico/harmônico da canção. Às vezes, o tria e do comércio culturais. Aí, dá a im- texto sozinho, sem este suporte, pode-se pressão que música é porcaria. Mas se o revelar mais fraco que o cantado, como povo começar a ler, vai descobrir que exis- se sentisse a falta de alguma coisa. Em te muita porcaria escrita também... outras, ele sobrevive tranquilamente no silêncio do papel. Na realidade, histo- Como vê a relação dessa produ- ricamente, a poesia publicada em livros ção musical-literária curitibana com é uma linguagem bem mais nova que a o público? canção. Passaram-se milhares de anos Em Curitiba, a criação literária, até aparecer o primeiro poema publica- poética e musical se desenvolveu anos- do. A poesia da antiguidade era cantada. -luz à frente do mercado. Onde estão os Os poetas de Provença, como Arnaut managers? Falta capitalismo. Para com- Daniel, alcançaram níveis elevadíssimos provar isso, basta observar que o artista de qualidade literária, musical e, sobre- local não conta com quase nenhum su- tudo, de capacidade inventiva. A sepa- porte profissional para viver da sua arte. ração da poesia escrita e cantada é, na Por incrível que pareça, não existem em- maioria das vezes, uma divisão arbitrá- presários especializados na área cultural. ria. Só para citar dois exemplos famo- Talvez seja um problema de desenvolvi- sos, o Caetano Veloso e o Walter Franco mento econômico, uma falha em nosso musicaram poemas ditos “visuais”, con- capitalismo rudimentar, que ainda não cretos. O rigor formal e a inovação esté- sabe comercializar bens culturais, assim tica podem (e na minha opinião, devem) como não consegue desenvolver ciên- estar presentes nas duas modalidades. cia e tecnologia próprios. O povo tem uma palavra boa pra definir isso: somos A poesia e a literatura são vis- “jacus”. Existe produto, existe público, tas muitas vezes como algo mais “no- existe um razoável circuito de casas de bre”, “alta cultura”, diferentemente da espetáculos. Falta alguém que interme- música popular, que por vezes é vis- deie profissionalmente os nossos artis- ta como algo banal, comercial ou até tas e os faça presentes de forma decente “vulgar”, baixa cultura, afinal. Como diante do público local, nacional, mun- você vê essa relação? Acha que essa é dial. Os criadores, em geral, são péssimos uma visão já totalmente superada? divulgadores da sua arte e piores ainda Deveria estar, pois é uma visão vendedores do seu trabalho. Precisamos falsa, limitada e sem nenhum embasa- de um choque de capitalismo nesta área. mento científico, histórico. Shakespea- Por incrível que pareça, somos trabalha- re era popular, lotava teatros e não dei- dores em busca de patrões. Pois tocar em xou de ser o que é e ter a importância botecos por duas mariolas, uma gasosa que teve. No Brasil, temos uma brutal Cini e um pão com banha não dá cami- ignorância nos dois sentidos, poético sa a ninguém e é uma vergonha para uma e musical. O ensino da música deveria cidade onde rola tanto dinheiro. g 20 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

especial | feiras literárias Festival de feiras A proliferação dos festivais m 2011, havia 75 feiras literárias feiras não serem apenas eventos que se es- cadastradas no “Circuito Nacional gotem em si mesmos, mas que consigam literários movimenta a cultura de Feiras de Livro”. No ano seguin- apoiar uma movimentação cultural nas ci- Ete, a Fundação Biblioteca Nacional dades que os sediam. No plano mais coti- e o negócio do livro, mas também e a Câmara Brasileira do Livro (CBL) diano da literatura, feiras se tornam objeto contabilizavam 200 eventos. Dezenas de de discussão nos bate-papos organizados traz dilemas aos autores, como feiras eram recém-instaladas ou estavam entre autores e leitores. em fase de consolidação por iniciativa “Feira”, “festival”, “bienal”, “salão” e a necessidade de aparecer em de cidades pequenas e médias. “jornada” são diferentes conceitos que se O volume de eventos literários espalham pela geografia brasileira. Soma- público em detrimento da escrita muda a economia do livro, causando im- da à influência de feiras tradicionais como pacto direto na rotina dos autores. Em a de Porto Alegre, a propagação de eventos termos culturais, persiste o desafio de as literários passa também pela visibilidade Ben-Hur Demeneck 21 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

midiática. A pequena Paraty ganha ma- que nos antecederam por gerações. Este au- térias de dois minutos no Jornal Nacional tor tornou-se um viajante”, escreve Ignácio e crava seções “FLIP” em cadernos cul- de Loyola Brandão em seu livro mais re- turais e portais de internet. Também não cente, chamado O mel de Ocara. Em 2013, faltou cobertura para os 720 mil visitan- Loyola passou por pelo menos 46 cidades e tes que estiveram na mais recente Bienal pouco depois de responder a reportagem iria de São Paulo, nem para as cenas de des- ao Ceará, para a FLAQ (Festa Literária de maio e choro na sessão de autógrafos de Aquiraz), participar de evento dedicado aos Cassandra Clare no mesmo evento. 40 anos da publicação de seu romance Zero. “[Apesar das viagens] minha ro- Literatura de viagem tina permanece. Aliás, o que prejudica “O escritor brasileiro contemporâ- um autor é a sua não vontade de escre- neo é completamente diferente daqueles ver”, diz Loyola. Além de ter dezenas de

André Ducci Ilustração 22 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná especial | feiras literárias

Guilherme Pupo livros publicados e manter desde 2005 uma coluna n’O Estado de S. Paulo, o autor nascido em 1936 dá pistas de onde vem a motivação de seu nomadismo: “Quando conheci um escritor importante, eu tinha quase 25 anos. Essas figuras eram impor- tantes, se achavam, se mostravam e agiam como importantes. E eles mantinham a distância. Quem sabe, num futuro dis- tante, um daqueles meninos se lembre de um escritor carrancudo que chegou à es- cola dele, no interior de Goiás? Se isso acontecer, já valeu a minha ida”. Ignácio faz alusão a sua partici- pação na Festa Literária de Pirenópo- lis, em que iria tomar café da manhã com crianças de escolas urbanas e rurais como parte da programação. Para ele, ações como essa transcendem a questão de formação de leitores. Significa des- sacralizar a literatura, torná-la acessível, prazerosa. E aproveita para fazer um aparte: “A avalanche de eventos literá- rios, ao contrário do que muitos pen- sam, não se deve apenas à FLIP”. Ele enumera várias ações, como a Jornada de Literatura Nacional de Passo Fun- do, a Feira de Livros de Porto Alegre, a Feira PanAmazônica (Belém), o Salipi (Teresina), os Encontros Sul America- nos de Corumbá e as Viagens Literárias promovidas anualmente pela Secretaria de Cultura de São Paulo. Ignácio de Loyola Brandão é dos escritores brasileiros que mais viaja pelo país. O mel de Ocara, publicado em 2013, traz crônicas inspiradas nas andanças do autor pelo Para o escritor André Sant´Anna, interior do Brasil. nascido em 1964, “as feiras literárias são uma sofisticação, um plus, em relação à cultura brasileira, já que, nelas, no mínimo, Um tema que seria interessante [de sistematizar] qualquer pessoa pode encontrar um bom “ livro e crescer individualmente, intelec- numa feira de livro, bienal, seria saber como determinado tualmente. A FLIP, por exemplo, exata- mente por ser uma espécie de ‘Disneylân- escritor lê Guimarães Rosa. Ou como aquele escritor lê O dia’ literária, faz com que muita gente que não tem o hábito de ler, acabe se interes- amanuense Belmiro, do Cyro dos Anjos, que é um grande sando pelos livros”, diz Sant’Anna. Segundo ele, a única coisa “cha- romance e um livro meio esquecido”, ta” para o escritor no modelo brasileiro, é que, vez ou outra, ouve “que está gastan- Milton Hatoum, autor de Dois irmãos. do dinheiro público, que faz parte de pa- nelinhas literárias e essa bobagem toda”. 23 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Por outro lado, considera que o encon- participado nos últimos cinco anos de 50 a Autores críticos podem incomodar, então tro com colegas colabore com seu pro- 60 eventos literários. “ cesso criativo e que “não há nada como Schroeder acredita também que não recebem tantos convites para feiras quanto um quarto de hotel neutro, numa cida- os curadores de eventos podem ser mais de desconhecida, para escrever”. ousados. “Se o autor aceitou o convite, aqueles de comportamento chapa-branca”, é porque quer conversar à sua maneira, Feiras e espetáculos seja qual for. Escritor não é palhaço, não Ricardo Lísias, autor do romance Divórcio. “Os autores que resolveram enca- precisa dar show, mas sim ser coerente rar eventos literários, de alguma manei- com sua obra, com o que ela represen- ra, afiaram seu discurso. Eu fui um de- ta”, diz Schroeder que, além de ser autor les. Sempre preparo ao menos as ideias de nove livros, entre eles o romance As Cia das Letras centrais do que vou abordar, um roteiro, fantasias eletivas, lançado este ano, tem para poder ser o mais conciso e objeti- experiência como curador do Festival vo possível nas falas. O lado ruim disso Nacional do Conto, evento que ajudou tudo é que parte do público acaba asso- a criar em 2011. ciando o sucesso de um autor ao núme- O fato de a obra acabar perden- ro de eventos que participa, ou o quanto do lugar para o perfil do escritor é uma ele sai na mídia. E isso é ridículo porque discussão “decisiva” ao se pensar o pa- uma obra se constrói com calma, livro a li- drão das feiras de livros, segundo Ricar- vro, e não indo a eventos”, analisa o escritor do Lísias, que é autor de cinco roman- Carlos Henrique Schroeder, que estima ter ces e já foi finalista dos prêmios Jabuti e

Divulgação

Para André Sant’Anna, autor de O paraíso é bem bacana e O Brasil é bom, a participação em Escritor e curador, Carlos Henrique Schroeder criou em 2011 o Festival Nacional do Conto, o feiras e bate-papos não afeta sua produção literárias. Para ele, “não há nada como um quarto único do gênero no país. Para ele, as feiras têm também um efeito adverso: parte do público de hotel neutro, numa cidade desconhecida, para escrever”. acredita que o sucesso literário está ligado ao número de eventos que o autor participa. 24 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

especial | feiras literárias

Matheus Dias/Rascunho

é que o frequentador da feira não toma ao vir para a 23ª Bienal de São Paulo, contato com a diversidade da produção onde lançou dois livros e também par- editorial brasileira. ticipou de uma mesa sob mediação de “Para mim, o melhor modelo é Rogério Pereira. O crítico sugere que, o Salão do Livro de Paris. Por que ele mais que uma difusão cultural, uma fei- é importante? Porque só tem editor. E ra do livro funciona como uma forma não tem mega-estande, pois há um li- de colaborar com a distribuição econô- mite de investimento. Você entra lá e mica dos livros. sabe que vai ver toda a produção fran- Gumbrecht é professor de Lite- cófona, pois tem desde a micro-editora ratura Comparada na Universidade de Ricardo Lísias acredita que, por muitos eventos serem patrocinados por prefeituras e governos estaduais, alguns até a Gallimard. É óbvio que o estan- Stanford e se espantou com a quanti- autores se recente em falar sobre vários temas. “Isso explica um certo comportamento chapa-branca, muito comum no de da Gallimard é maior, mas ele não dade de crianças que encontrou pelos establishment literário brasileiro”, diz. é mais pomposo. Não tem pirâmides corredores da Bienal. “Eu tenho ou- saindo fogo, ou letreiros em neon. Tudo vido que, no Brasil, os livros infantis é tem um padrão”, opina Ivan. que tornam muitas editoras economi- São Paulo de Literatura. “Autores críti- local, prefeituras e governos de Estados, Ainda que o editor reconheça camente viáveis — o que é ótimo! Ao cos podem incomodar, então não rece- podem incomodar os organizadores. “Os o valor positivo das feiras, o “PM da mesmo tempo, descobrir que uma feira bem tantos convites quanto os de com- escritores que querem ir a muitos even- L&PM” aposta é nas bibliotecas e nas de livros seja principalmente frequenta- portamento chapa-branca. Eu recebo tos, inclusive por razões financeiras, não livrarias e considera sintomático que, da por crianças me parece estranho — uma boa quantidade de convites, mas podem manifestar-se politicamente. Isso apesar da força da Feira de Porto Ale- quase assustador.” Ele ainda comenta isso se dá também porque meu roman- explica um certo comportamento chapa- gre, o Estado do Rio Grande do Sul não que nas feiras que conhece nos EUA e ce Divórcio acabou se tornando popular. -branca, muito comum no establishment tenha conseguido garantir a permanên- na Alemanha, “não passaria na cabeça Então, alguns organizadores sabem que literário brasileiro.” cia de duas grandes instituições — as de ninguém levar crianças para lá”. meu nome atrai público. Outros que- editoras Globo e Sulina (“cada uma ti- rem alguém que diga o que pensa. Mas Salão do automóvel nha 23 lojas”). Perguntado a respeito do O escritor lê há de fato discriminação”, reconhece. O fundador e editor da L&PM modelo das bienais, brinca que montar Milton Hatoum já não acei- Na Bienal Internacional de São Ivan Pinheiro Machado considera ha- um estande de 100 metros quadrados ta tantos convites para feiras literárias. Paulo, em mesa sob mediação de Manuel ver uma distorção entre a realidade edi- por cerca de R$ 200 mil é digno de um Quando os aceita, privilegia os leito- da Costa Pinto, Lísias contextualizou sua torial e as feiras literárias. Como o es- salão de automóvel. res brasileiros. Voltou impressionado de visão de mundo com temas como crise da paço físico tende a ser dominado por uma feira realizada em outubro na ci- USP, cotas raciais e o conservadorismo livrarias, o leitor passa por diferentes es- Infantil dade de Maringá, onde encontrou uma jurídico. O escritor acredita que externar tandes e encontra destaque para os mes- A faixa etária e o volume de públi- plateia de umas 300 pessoas que conhe- opinião em certos eventos, principalmen- mos títulos porque isso aumenta a chance co causaram um choque cultural no crítico ciam sua obra, cujo interesse decorria de te aqueles organizados pelo poder público de lucro para o livreiro. A consequência norte-americano Hans Ulrich Gumbrecht Dois irmãos, livro exigido no vestibular 25 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

da Universidade Estadual de Maringá leitura num contexto de país em que a Festivais e bienais internacionais não têm (UEM). Hatoum assegura que prefe- literatura é mal divulgada. No entanto, como cumprir esse papel sozinhos”. re esse tipo de evento do que “ir para a elas não substituem a política cultural Em diferentes pontos da geo- Bélgica falar numa pequena biblioteca nem a formação educacional mais con- grafia e diante de uma diversidade de para 12 belgas tristíssimos”. A obra de sistente. Hatoum gostaria de ver maior nomes e conceitos de eventos, o escri- Hatoum circula em mais de 15 países. envolvimento da universidade nesses tor brasileiro contemporâneo arruma “Um tema que seria interessan- eventos mais populares, uma vez que as malas e pega a estrada. A tensão en- te [de sistematizar] numa feira de livro, “uma boa leitura depende da universi- tre nomadismo e sedentarismo ganhou bienal, seria saber como determinado dade, da escola e da crítica”. Quanto à intensidade nos últimos cinco ou três escritor lê Guimarães Rosa. Ou como internacionalização da literatura brasi- anos para cá e lança questões relativa- aquele escritor lê O amanuense Belmiro, leira, registra que “para promover a li- mente novas para quem escreve, edita do Cyro dos Anjos, que é um grande teratura brasileira no exterior, teria que ou faz produção cultural. Questões que romance e um livro meio esquecido. Ou haver uma instituição ao estilo do Ins- ora se revelam nos bate-papos com os como o escritor lê Os ratos, do Dyoné- tituto Cervantes. Talvez um ‘Institu- autores, ora em reportagens especiais de lio Machado. Ou os contos do Dalton to Machado de Assis’, ou algo parecido. jornais literários. g Trevisan. Os próprios escritores podem falar de literatura, mesmo sem o apara- Foto: Letícia Remiao to crítico, porque isso não é obrigató- rio para quem escreve, e transmitir uma impressão de leitura sobre clássicos da leitura brasileira. Até mesmo para revi- ver esses clássicos e para colocar em cir- culação algumas obras fundamentais da literatura brasileira”, diz Hatoum. Para o autor de Cinzas do norte, as fei- ras literárias abrem um espaço importante à “Para mim, o melhor modelo é o Salão do Livro de Paris. Por que ele é importante? Porque só tem editor. E não tem mega-estande, pois há um limite de investimento”, Ivan Pinheiro Machado, editor da L&PM. O editor da L&PM Ivan Pinheiro Machado considera haver uma distorção entre a realidade editorial e as feiras literárias, já que o espaço físico é dominado por livrarias, e não por editoras. Por isso o público encontra os mesmos títulos em estandes diferente. 26 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná especial | feiras literárias

A madrinha das feiras Para a inglesa Liz Calder, idealizadora da FLIP e da FLIPSIDE, um bom curador deve estar ciente das novas escritas e publicações ao redor do mundo

Ben-Hur Demeneck

Liz Calder concebeu a Flip a partir de uma viagem à cidadezinha de Hay-on-Wye, no País de Gales, em 1997. Desde então, foram realizadas 12 edição da Festa no litoral do Rio de Janeiro. 27 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

Nelson Toledo/Flip

“Um curador deve ter imaginação, ler vorazmente, ter coragem, fazer contatos em outros festivais e comunidades publicação e seguir seus instintos” Liz Calder, idealizadora da Flip

liro (RO), Flivima (RJ), Flibo sileiros pela Bloomsbury. Ao chegar ao ter certeza de que qualquer combina- (PE), Flimar (AL), Flipoços, Flia- Hay Festival, ela estava acompanhada ção particular de escritores vai produ- raxá (MG), Fliporto (PE), Flipa- de um grupo de amigos influentes nas zir eventos interessantes. Um curador Franapiacaba (SP), Flicampos (PR), letras brasileiras, entre eles o editor Luiz deve ter imaginação, ler vorazmente, FLAP (AP), Flimt (Feira do Livro In- Schwarcz (Companhia das Letras) e o ter coragem, fazer contatos em outros dígena de Mato Grosso). Sim, o prefi- arquiteto Mauro Munhoz (hoje da As- festivais e comunidades de publicação xo “Fli” é um dos legados da Festa Lite- sociação Casa Azul). Foi daquela via- e seguir seus instintos”, dimensiona rária Internacional de Paraty (FLIP) e gem que partiu a decisão em organizar Liz Calder o grau de audácia presente um dos sinais de sua influência em seus um festival semelhante no Brasil. em um processo de curadoria. pouco mais de 10 anos de existência. Hay-on-Wye tem cerca de 1.500 Embora a celebridade da FLIP A inglesa Liz Calder, idelizado- moradores, 30 sebos e nela se encon- tenha alavancado em processos tradi- ra da FLIP, considera que um curador tram faixas afixadas em frente das li- cionais de difusão do livro e nas mo- de feira literária deve investir na cria- vrarias com esse tipo de dizer: “Kindles vimentações em prol da leitura, um de ção de um programa que aborde ques- estão banidos do reino de Hay.” Como seus méritos foi conseguir agregar mas- tões atuais e escolher autores que trarão que originário de uma obra ficcional, a sa crítica e visibilidade midiática. Em consigo histórias e experiências que vão história do festival deve muito à arte do 2014, por exemplo, antes da FLIP co- expandir a compreensão do público, ao blefe de seu fundador. Peter Florence meçar, a capa da revista Serafina (en- mesmo tempo que o entretenha e o ins- ganhara uma fortuna jogando pôquer e carte mensal da Folha de S.Paulo) es- pire. Um dos desafios está em selecionar com ela decidiu criar um festival de le- tampava um retrato de Michael Pollan escritores que consigam combinar bem tras. Por sua vez, o fato de Liz Calder composto por cereais, ervas e legumes. entre si tanto no desenvolvimento de ter descoberto “Harry Potter” deu a ela O autor era um dos convidados inter- ideias quanto em compartilharem uma a moral para bancar e apostar na FLIP. nacionais do festival. Um dia antes de experiências de diálogo juntos. “Os diretores de programa de acabar a FLIP, a Rede Globo transmitia A FLIP começou numa via- um festival literário devem estar cien- uma matéria das “ruas cheias de histó- gem à cidadezinha de Hay-on-Wye, no tes das novas escritas e publicações em ria” de Paraty minutos antes de come- País de Gales, em 1997. Liz Calder ha- tantas partes do mundo quanto for çar a novela Império com seus quase 35 via morado por décadas no Brasil e nes- possível. E é claro que isso vai signifi- pontos no Ibope. Novela cujo drama- sa nova fase editava livros de autores bra- car correr riscos, porque não é possível turgo participou da abertura da FLIP. g 28 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná especial | feiras literárias A feira “A mídia ainda dá pouco espa- ço para os autores de literatura infan- til e juvenil, excetuando-se aqueles que tiveram suas carreiras alavancadas por grandes investimentos de suas editoras em marketing, o que demonstra a fal- ta de crítica especializada nesta área”, aponta Marco Cena, coordenador-geral da Feira de Porto Alegre e presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro. O curador da 60º Feira do Li- vro de Porto Alegre também gostaria que os jornalistas dessem mais atenção a novos talentos, que “precisam ser ga- rimpados na Feira”, e atenção especial a A Jornada autores internacionais que se apresen- tam pela primeira vez no Brasil. A feira “Feira do livro e bienal do livro não são prova de atletismo, de detém o primeiro título de patrimônio corrida de bastão, onde a gurizada corre de um lugar para o outro sem imaterial da cidade de Porto Alegre e ter como objetivo primeiro ter lido um livro e encontrar um autor face chega a 2014 à sexagésima edição com a face. Para dinamizar os livros, é preciso preparar uma programação 127 expositores, cerca de 700 sessões de para os leitores encontrarem autores. E é a partir daí que continua o autógrafos distribuídos em duas sema- diálogo: primeiramente, do leitor com o livro e, depois, entre o do leitor nas de atividades. Em 1955, começou e o escritor. Com o tempo é que virá o gosto pela leitura dos clássicos”, com 14 barracas de madeira. diz Tânia Rösing, idealizadora e coordenadora-geral da Jornada Nacional de Dentro da programação da Fei- Literatura de Passo Fundo. Doutora em Teoria Literária, Tânia considera que as feiras, em geral, procuram divulgar e vender obras, mas fracassam em ra é possível encontrar atividades como dinamizar a leitura, tanto para leitores iniciantes quanto para os que estão o “Tu Frankenstein”, em que escritores em fase de formação. Lamenta que sejam comuns feiras privilegiarem livros são convidados a realizem uma criação infantis apenas por seu baixo preço e não pela qualidade do texto. Ou seja, literária ambientada na Biblioteca Pú- incentiva uma comercialização apenas para fins consumistas e não culturais. blica do Estado num 8 de novembro A Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo é conhecida por sua tal qual, na noite de 1816, Mary Shel- capacidade em promover a movimentação cultural. O evento bianual foi criado ley desenrola sua ficção de terror góti- em 1981. Para comprovar que acesso ao livro não significa leitura, a curadora co Frankenstein. A programação cultu- da Jornada menciona uma cena que assiste com frequência quando visita ral lança mão também de teatro, música, escolas — encontrar caixas fechadas de livros comprados via programas poesia e outros formatos tendo “a pala- governamentais, como o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola) e vra como protagonista”, sintetiza Cena. PNLD (Programa Nacional do Livro Didático). — Ela diz ainda que de nada E desde o ano passado, questões relati- vale investir em acervos se não houver formação dos professores tanto como vas à economia do livro têm procurado leitores e como mediadores da leitura. abrir o debate sobre a profissionalização na edição e na comercialização de livros. 29 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

O circuito“Tenho notado a revalorização do escritor mais tímido, que não é um show man e oferece ‘apenas’ a qualidade do seu texto. Os últimos vencedores do Prêmio Sesc de Literatura, por exemplo, são su- jeitos tímidos, quietos e talentosos pacas, e estão chamando muito a atenção por onde passam. Acho que a grande desco- berta está nos autores introspectivos, cuja figura contrasta com a voz poderosa de suas narrativas”, diz Henrique Rodrigues Pinto, assessor técnico em Literatura do Sesc Nacional e coordenador de projetos de incentivo à leitura e circulação de ma- nifestações literárias. A partir da experiência em mais de 70 semanas literárias, Henrique sus- tenta sua hipótese nos exemplos do maringaense Marcos Peres (O evange- lho segundo Hitler), do santista Alexan- dre Marques Rodrigues (Parafilias) e da pernambucana Débora Ferraz, (En- quanto Deus não está olhando). Como o SESC possui unidades espalhadas pelo país, suas ações permitem avaliar que, re- almente, houve uma popularização das feiras literárias municipais. Foram elas que levaram o SESC a se aproximar do conceito de jornada literária. O setor de cultura do SESC Na- cional identifica um aumento conside- rável do interesse de jovens pela leitura e, em se tratando de formato, uma de- manda por oficinas literárias. Se antes o problema era encontrar o livro, agora o público quer se aproximar de escritores e trocar ideias. A combinação de autores de centros maiores com os de outras re- giões também tem sido uma fórmula de troca cultural bastante estimulante para os envolvidos. Henrique, ao responder a entrevista, estava em Vitória, onde, asse- vera, “existe uma vida literária rica e pul- sante, com autores, infelizmente, pouco André Ducci Ilustração conhecidos nos Estados vizinhos”. g 30 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

EDITORAÇÃO

om a publicação dos três livros ganhadores do Prêmio Paraná de Literatura 2014, o selo Biblioteca CParaná completa 11 lançamen- Selo Biblioteca tos no ano. O material produzindo pela equipe do Núcleo de Edições da Se- cretaria de Estado da Cultura (SEEC), que funciona na Biblioteca Pública do Paraná publica 11 Paraná (BPP), foi distribuído a todas as bibliotecas públicas do Estado, escolas e a várias instituições culturais do país. “Conseguimos realizar proje- títulos em 2014 tos importantes, que supriram lacu- nas de nosso meio editorial, como as Edição fac-similar do jornal Nicolau e antologias de contistas antologias 48 contistas parananenses e 101 poetas paranaenses, que dão ao e poetas estão entre as publicações do selo leitor uma dimensão clara da produ- ção literária no Estado. Além disso, Lucas de Lavor colocamos novamente em circulação, em edição fac-similar, o jornal Nico- 31 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

lau”, diz Rogério Pereira, diretor da níveis para consulta local na Divisão Antologias Últimos lançamentos Biblioteca Pública. Os 60 números Paranaense da BPP. O livro traz con- Organizada por Luiz Ruffato, a No final de novembro, toda a prosa do suplemento de cultura paranaense versas com nomes importantes da li- antologia 48 contos paranaenses faz um conhecida de Newton Sampaio, conside- Nicolau, editado de 1987 a 1996, vol- teratura nacional, como Paulo Le- recorte do que foi produzido no gênero rado por Dalton Trevisan como “o maior taram a circular no segundo semestre minski, Luis Fernando Verisssimo, desde a emancipação do Paraná. Entre contista do Paraná”, foi publicada no livro deste ano. Acondicionadas em três Helena Kolody e . pioneiros como Andrade Muricy e Jaime Ficções — Newton Sampaio. Com prefá- caixas, a coleção teve tiragem de 2 O segundo volume reúne as conversas Balão Junior, o livro traz escritores co- cio do professor da Universidade Federal mil exemplares. da primeira edição do projeto após a nhecidos nacionalmente, como Dalton do Paraná (UFPR) Luís Bueno, o volume retomada, em 2011. Estão lá os ba- Trevisan e Miguel Sanches Neto, além traz os contos dos livros Irmandade (1938) Escritor na Biblioteca te-papos com Cristovão Tezza, Luiz de nomes da nova geração de contistas. e Contos do sertão paranaense (1939), além Retomando em 2011 após 27 Ruffato, Reinaldo Moraes e Sér- Já a poesia do Estado ganhou uma de textos de ficção publicados em jornais e anos de interrupção, o projeto “Um Es- gio Sant’Anna, entre outros autores. compilação inédita que inicia em 1844 e se também na revista Joaquim. critor na Biblioteca” recebeu mais 30 au- Ainda em dezembro, a BPP publica encerra em 1993. Organizada pelo poeta e Ainda em dezembro, o selo Bi- tores em quatro temporadas. As con- o terceiro volume de entrevistas, que crítico Ademir Demarchi, 101 poetas pa- blioteca Paraná publica o romance Ope- versas, publicadas no Cândido, foram vai reunir autores que participaram raenses está dividida em dois volumes, que, ração impensável (Vanessa Barbara), a editadas em livro no começo do ano. dos encontros nas temporadas 2012 juntas, somam mais de 800 páginas. No vo- coletânea de contos No início (Adriana O primeiro volume resgata os e 2013. São 16 escritores, como Ber- lume um, estão 50 poetas, nascidos entre a Griner) e o livro de poemas Fios (Sônia bate-papos dos anos 1980, que foram nardo Carvalho, Rubens Figueiredo, primeira metade do século XIX e a segun- Barros) — leia mais nas páginas 10 e 11 publicados em pequenos livretos que Luci Collin, Michel Laub e João Gil- da metade do século XX. Já o volume dois, — todos vencedores da edição 2014 do estavam fora de circulação, só dispo- berto Noll. traz 51 autores nascidos entre 1959 e 1993. Prêmio Paraná de Literatura.g

Biblioteca Paraná 2014 Um Escritor na Biblioteca | 1980 Um Escritor na Biblioteca | 2011 48 contos paranaenses Fac-símile jornal Nicolau 101 poetas paranaenses — antologia de escritas poéticas do século XIX ao XXI Ficções — Newton Sampaio Um Escritor na Biblioteca | 2012 e 2013 Operação Impensável, de Vanessa Barbara | Romance No início, de Adriana Griner | Contos Fios, de Sônia Barros | Poesia 32 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná conto | wilker souza 33 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

A PIPA

xícara funda insiste em prolongar tinado em apanhar a pipa cuja rabiola gem, como que para dificultar a partida a manhã, mas, de tão espaçados, pendia do gradil da minúscula varan- pelo estreito portão de ferro composto os goles de café trazem paulati- da do cara do 202 — ignora e escala a de cilindros encimados com pontas de A namente o sabor das horas esté- coluna com invejável destreza, para de- lança, em sua maioria, oxidadas. Cilin- reis. A tela ainda intata, a mão suspensa, sespero do primeiro que projeta o braço dros que em outro desenho abrigavam à espera de um só movimento imune à fino por entre a grade da janela do quar- mãos cerradas e entrecortavam a an- censura prévia daquela mente exaurida to exigindo que aquele moleque desça siedade indissimulada naquele rosto de de esboçar. imediatamente da sua garagem! sexta-feira à tarde. Sim, o portão fora O súbito barulho no vidro e as Jamais gostou de pipas. Vencer concebido apenas para chegadas. cerdas tocam a tela com desfaçatez. Ele muros enormes à procura do melhor lu- Até o dia em que quem sempre maldiz o condomínio e todos os seres gar para empiná-las ou — olhos fixos chegava não mais chegou e quem devia que fazem desse disparate da arquitetu- no céu, extasiados com a queda verti- partir há tempos não soube como. Ja- ra um verdadeiro atentado à civilidade ginosa de um mandadão — correr de- mais. A pintura perdeu o propósito, res- (semanas atrás, porém, vociferou contra satinado em meio a carros e moleques tando apenas o hábito inócuo. Do remo- a casa de campo alugada cuja morbi- para apanhá-lo eram esforços subuma- to e premeditado elogio da professora, dez jamais poderia inspirá-lo). É sensato nos para um propósito tão reles, como passando pelos longos anos de retidão abandonar a tela maculada pelo acaso ou diziam. As tintas ao menos não o in- e afinco à sempre renovada esperança subtrair aquele rastro acintoso, mas antes timidavam àquela época. Distraíam-no de anuência especializada, o caminho de dar cabo a algum desses pensamentos, durante a prolongada ausência do pai, fora meticulosamente traçado de modo abre discretamente a cortina para ver a para quem o talento do filho era tão in- a asseverar pelos quatro cantos o talento razão daquela pausa indesejada. conteste quanto conveniente. Na clau- que um dia lhe imputaram num abraço. Uma pipa — intacta, a despeito do sura do quarto, pululavam formas bem No fundo, sempre se quis digno daquele choque abrupto contra a materialidade acabadas — Que capricho! Um obser- abraço. Mas para seu desespero, aquelas fria do vidro — jaz no chão da varanda. vador e tanto!, aliviava-se a professo- pálpebras fatigadas se fecharam antes do Num ímpeto semicontido, ele abre a por- ra ao contrastar os trabalhos do garoto ciclo para o qual devotava toda uma vida. ta. Está decidido a destruir a pipa e assim com os borrões desleixados dos demais. Ao contrário dos desenhos de outrora, o expurgar seu repúdio à contingência. Reproduzido com raro detalhamento mundo não era feito de formas acaba- Como emulasse maturidade, o — desde a tímida convexidade superior das. Alguns voos, na tentativa de desfilar garoto do 101 pergunta ao outro se não do para-choque dianteiro, de onde saía suas cores em camadas mais remotas, só tem mais nada de inteligente a fazer no o delgado e prateado friso lateral, até foram possíveis graças à rija linha que o mundo a não ser soltar pipa, principal- a complexa sobreposição de linhas das conduzia desde o chão. Rodopios e arre- mente ali no meio de tantos prédios e rodas de liga leve —, o carro vultoso era metidas improváveis eram também obra fios de alta tensão! Mas o outro — obs- posicionado diagonalmente na gara- da linha. Que se rompeu. g

Wilker Sousa nasceu em São José dos Campos (SP), em 1981. Como jornalista, foi editor de literatura da revista Cult. Atualmente é mestrando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP. “A pipa” integra seu primeiro livro de contos, ainda sem editora. Rita Solieri | Raquel Dzierva Ilustração Vive em São Paulo. 34 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná eNSAIO | JULIANA STEIN

CLIQUEMES CURITI BA A fotógrafa Juliana Stein nasceu em Passo Fundo, em 1970. Formada em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), viveu em Veneza e Florença por dois anos, onde estudou história da arte, desenho e técnica de aquarela. Começou a fotogra- far no final dos anos 1990. Desde então, já expôs seu trabalho em países como Alemanha, Portugal e Uruguai. A série sobre o petit pavé de Curitiba é publicada com exclusividade no Cândido. 35 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 36 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

CONTO | GIOVANA MADALOSSO

u não lembro bem de quem foi a ideia. Minha, com certeza, não foi. Eu era só uma menina de seis anos. EEu acho que a ideia foi da minha Quem precisa mãe, porque o meu pai podia passar a vida inteira consertando coisas e dando comida para os passarinhos no quintal que estava tudo bem, mas a minha mãe não, a minha mãe vivia lambendo os de- de Bariloche? dos e folheando páginas de revistas e di- zendo: era isso que a gente devia fazer. A página ficou colada um tempo na geladeira. Era um morro coberto de neve, um homenzinho lá no alto des- cendo com um esqui. No começo mi- nha mãe disse que íamos andar em te- leféricos e deslizar em montanhas como aquela, depois passou a dizer apenas que iríamos ver a neve. O plano tinha uma logística com- plexa que eu, pequena, não conseguia en- tender. Durante quase um mês ficamos com as malas prontas à espera de um chamado. Algo como uma corneta que soaria através da boca da minha mãe, fa- zendo com que nos vestíssemos em tem- po recorde e nos apresentássemos com as malas junto ao carro, soldados alista- dos para guerra. Enquanto a corneta não soava, esperávamos, as malas debaixo da cama, enquanto minha mãe checava as notícias em algum lugar longe dali. Eu estava na escola quando a mi- nha mãe apareceu. O gorro de pele de coelho se projetando para dentro da porta. Eu lembro que alguém deu risa- da, porque não era um dia frio, estáva- mos de camiseta de manga. Saí andando atrás dela. O gorro tinha um rabo pen- durado na parte de trás, um rabo que sacudia no ritmo dos passos dela. En-

Nina Moraes Ilustração 37 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

tramos no carro. Meu pai e minha irmã ta, do quarto cheirando a mofo e chu- gorros e luvas foram emprestados de vidro de um souvenir. Mas claro que, estavam nos esperando. Ele na direção, crute (o dono do hotel era alemão). Mas parentes para aquela viagem. Era tudo como as calçadas e telhados já anuncia- ela no banco de trás mascando chiclete na época, o meu olhar era outro, e eu me justo ou solto demais. Meu pai, coita- vam, isso não aconteceu. (ela sempre estava mascando chiclete). encantei com o corredor estreito e es- do, estava usando um poncho com dois O sol chegou antes de nós e der- Saímos em direção ao Sul, nome curo, com a porta que não era a nossa pompons que batiam nos seus joelhos. reteu quase toda a neve de São Joaquim. que julguei, por uma boa parte da via- porta, com o quarto cheirando a alguma Mas nem tivemos tempo de nos olhar Só sobraram alguns montinhos, sobre- gem, ser o nome da cidade para onde coisa que eu não sabia o que era. E tam- no espelho, de nos admirar com aque- vivendo tímidos pelos cantos. De res- estávamos indo. A cada cidadezinha bém tinha a janela, virada para um esta- les trajes exóticos, porque a minha mãe to, era só uma aguarada suja e cinza es- que surgia, eu esperava ver as três letras cionamento grande e vazio, coberto por já estava na porta chamando pela gente. correndo pelos galhos, calhas e bueiros. grandes de concreto enfileiradas sobre a um céu estalando de limpo. Acho que o dono do hotel acor- Num canto da praça, ainda tinha a cabe- grama, mas os nomes, que eu sempre lia A minha mãe nem chegou até a dou com o barulho, porque de repente ça de um boneco, com dois botões e uma em voz alta, eram muito mais compri- janela. Tirou rápido a roupa e já se en- apareceu, com cara de sono, de cerou- cenoura, mas já tão disforme, tão lique- dos, coisas feias como Papanduva, Uru- fiou debaixo da coberta, recomendando la e chinelos e, depois de pegar a cha- feita, que mais parecia um encontro aci- pema e Sepultura. Acho que foi nessa que fizéssemos o mesmo, porque dali a ve do quarto, disse que tinha uma boa dental entre dois objetos e um legume. última que dormimos. Ou em alguma cinco horas, e nem um minuto a mais, notícia. Que, durante a madrugada, um Depois de andar em volta da outra perto dela. estaríamos pegando a estrada de novo. caminhoneiro que tinha chegado no igreja, procurando, em vão, algum res- Minha mãe não queria parar. Ela A minha irmã também deitou-se, com hotel, vindo lá de baixo, contou que es- quício de neve decente para fotogra- queria que meu pai tocasse direto até o a roupa que estava, deixando o chiclete tava tudo branquinho. Lembro que nos far, minha mãe começou a gritar com destino. Ela trouxe uma garrafa térmi- grudado no encosto da cama. Ficamos entreolhamos, como quatro colegas da o meu pai, a dizer que a culpa era dele, ca e, durante a viagem, ficava o tempo eu e meu pai, olhando para fora. Como mesma idade. Depois demos tchau para que se não tivessemos parado para dor- todo oferecendo café pra ele, mas teve eu disse, o céu estava estalando de lim- o alemão e pegamos a estrada. mir, se tivessemos chegado antes do sol, uma hora que ele disse: chega, eu pre- po e, fora ele, fora a sua coleção infinita Não sei bem quanto tempo le- a neve ainda estaria lá. Meu pai disse ciso fechar os olhos. Lembro que ela fi- de estrelas, não tinha muito o que se ver. vamos para chegar. Fui eu que apon- para ela se acalmar, quem sabe nevaria cou nervosa. Disse que não podíamos Mesmo assim, ficamos um tempo ob- tei para a arvorezinha coberta de neve, de novo, mas todos nós sabíamos que parar. Que, se era assim, ele que saísse servando o estacionamento, a paisagem a sombra do portal da cidade. Lem- isso era improvável. Estávamos num do volante, ela mesma dirigiria, mas to- imóvel em volta dele, até que meu pai bro que minha mãe olhou para a árvo- país tropical e a pequena São Joaquim dos nós sabíamos que ela estava blefan- pôs a mão no meu ombro e disse: vâmo, re e disse: quem precisa de Bariloche?. só dava a sorte de ter neve uma ou duas do, porque uma vez ela tinha entrado a gente precisa descansar. Depois abriu a janela e tirou uma foto. vezes por ano. numa auto-escola e brigado com a ins- Acordei com a voz da minha Meu pai perguntou se queríamos des- Sentamos numa mureta. Fica- trutora logo na primeira aula. Tudo que mãe, com ela botando o braço para fora cer, se queríamos fazer uma foto na fren- mos quietos, olhando os moradores ela sabia fazer era andar reto engatando da janela e dizendo pra gente levantar te da árvore, mas a minha a mãe disse que e turistas passarem, imagino que com até a segunda. Então ela não teve outra que estava tudo ótimo, tudo correndo não, que era para ele seguir reto, até a praça uma vontade secreta de roubar deles a opção senão ficar quieta e procurar um como o esperado. Minha irmã pegou o central, onde tinha uma igreja e um jardim lembrança do que só eles tinham vis- hotel com a gente. chiclete que estava grudado no encosto que, como ela viu no site da prefeitura, fi- to. Um tempo depois, uma mulher pas- Paramos no primeiro que apare- da cama e pôs na boca (segundo ela o cavam espetaculares vestidos de branco. sou por nós e, apontando para a câme- ceu. Ficava junto a um posto de gasoli- movimento do maxilar ajudava a aque- Não sei se eles perceberam no ra que estava no colo da minha mãe, na e tinha uma estrela que ficaria mui- cer o corpo). Vestimos as nossas roupas. caminho. Eu, na minha inocência de perguntou se queríamos que ela tirasse to mais adequada no céu do que na sua Era engraçado porque nada servia di- criança, não percebi. Eu fiquei achan- uma foto. Minha mãe entregou a câ- fachada. Isso é o que eu penso hoje, ao reito. Morávamos em uma cidade quen- do que a praça ia surgir de repente, sob mera para ela. Meu pai tirou o poncho lembrar do corredor estreito e escuro, da te, onde era verão o ano inteiro, e não uma chuva de flocos cintilantes, como correndo. Demos risada e nos juntamos porta que quase despencou ao ser aber- tínhamos roupa de frio. Nossos casacos, aquelas miniaturas dentro do globo de para a foto. g

Giovana Madalosso nasceu em Curitiba e mora em São Paulo. É roteirista de TV, redatora e escritora. 38 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

MEMÓRIA LITERÁRIA Uma farsa sobre a província

Lançado há 20 anos, Como eu se fiz por si mesmo, de Foto: Daniel Snege Jamil Snege, mistura memória e ficção para falar sobre o tempo e a geração da qual o autor fez parte

Luiz Rebinski 39 jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido

uito antes do termo auto-ficção Por isso, conta Fábio Campa- À prosa extremamente clara e por Campana da Biblioteca Pública do se tornar tão presente na litera- na, foi tão difícil convencer Jamil a pu- econômica, Jamil acrescenta doses ge- Paraná, Dalton daria um de seus livros tura brasileira, o escritor Jamil blicar Como eu se fiz por si mesmo. O li- nerosas de um humor ácido, corrosi- mais recentes autografado. “Tudo men- MSnege cometeu uma obra que, vro, que Campana classifica como uma vo, que não poupa nada nem ninguém, tira do Turco”, diz Campana. “Por conta em muitos aspectos, antecipou recursos “ficção de memória”, saiu pela Travessa onde, claro, não há espaço para autoco- dessas e de outras histórias, muita gente que seriam usados à exaustão por escri- dos Editores depois de quase dez anos miseração. Assim ele vai narrando a in- ficou na bronca com ele, mas isso tudo tores brasileiros contemporâneos. Tra- de trabalho. “Essa narrativa foi escrita fância de classe média baixa, o primeiro vai pra conta da ficção.” ta-se de Como eu se fiz por si mesmo, um uma década antes. Eu vivia insistindo emprego na “baiúca” do pai (uma con- Como eu se fiz por si mesmo — ain- livro tão interessante quanto de difí- para que a publicássemos, o Jamil relu- fecção de blocos para jogo-do-bicho), da que a ficção prevaleça — é também cil classificação. Memória, ensaio, auto- tou muito, mas em 1994 o convenci. O os anos no exército, as experiências no o retrato de uma época. “Esse livro foi -narrativa, poesia em prosa, há de tudo Turco era extremamente perfeccionis- jornalismo e o circuito quase amador escrito no tempo do face a face. O Ja- um pouco no oitavo título do escritor ta, sempre tentando encontrar a melhor da propaganda profissional da Curitiba mil é um escritor do contato com o real. paranaense, lançado em 1994. forma para o texto.” dos anos 1970. Hoje os escritores escrevem a partir do Assim como os livros anterio- Mas o que faz de um livro autor- Em meio à invenção do persona- que leem. Ou seja, estão reescrevendo a res de Jamil, Como eu se fiz por si mesmo referente, quase memorialístico, escrito gem, é possível identificar traços da per- literatura”, diz Fábio Campana. não reverberou para além de um círcu- por um autor ainda obscuro ser relevan- sonalidade do autor, segundo as lendas Sobre a opção de não subme- lo restrito de leitores de Curitiba. Mas te hoje? Como eu se fiz por si mesmo é uma que ainda correm em Curitiba após dez ter seus escritos ao crivo de editoras, há fez a cabeça daqueles que o leram. Co- prosa anárquica em muitos sentidos. As anos de sua morte. “Desde cedo desen- um trecho em que Jamil conta sobre uma nhecido pela ojeriza ao esquema edito- lembranças do autor, da tenra idade até volvi o humor, a ironia, o cinismo e pas- oferta de Domingos Pellegrini, que teria rial, Jamil fez da auto-publicação um a vida profissional, são submetidas a uma sei a usá-los sem piedade. Ainda que de se prontificado a intermediar, junto à edi- ato admirável. O que não é pouco, pois calculada bagunça literária, onde remi- forma intuitiva, aprendi a identificar as tora Civilização Brasileira, a publicação a prática costuma ser mal vista até por niscências da adolescência são permeadas instâncias na qual se manifestava a ideo- dos livros do amigo. “Mando não, Pelle- leitores. O escritor deveria ter lá suas por espasmos de prosa poética e flashs logia dominante”, diz um dos trechos re- grini. Estou cada vez mais provinciano. razões para preterir o mercado (o pró- oníricos. O que afasta o livro de qualquer veladores de Como eu se fiz por si mesmo. Ainda vou escrever um livro para ser lido prio título do livro já é bastante revela- onanismo literário ou algo como “lamen- A oração acima seria seguida à só por quem frequenta minha cama.” dor), mas certamente a qualidade de sua tações de um autor que não teve o talento risca na vida e na literatura do autor. O Mesmo desconhecido fora de prosa garantia seu desdém às editoras. reconhecido”. que quer dizer que o tratamento aos ou- Curitiba, há ecos de Como eu se fiz por si tros personagens do livro se manteve o mesmo em duas obras que repercutiram Personagem e inconfidências mesmo: ninguém foi poupado. Sobre o nacionalmente: O filho eterno, de Cristo- Certo dia o tradutor e escritor hoje consagrado autor de O filho eter- vão Tezza, e Chove sobre minha infância, Ernani Ssó recebeu em casa Como eu no, com quem Jamil teve grande inter- de Miguel Sanches Neto. Não por acaso, se fiz por mim mesmo. O livro foi en- locução e foi tratado como guru, escre- dois autores que tiveram, em algum mo- viado pelo próprio Jamil por sugestão veu: “Cristovão Tezza é um adolescente mento da vida, interlocução com Jamil. do poeta e crítico Paulo Hecker Fi- pentelho, gravidozinho de literatura, Campana, que também editou lho. Ssó até então não conhecia a obra em busca de um guru”. E confessava, Os verões da grande leitoa branca, uma do escritor curitibano. Hoje, mais de com o ego inflado, que gostava de exer- coletânea de contos de Jamil, lembra 20 anos depois daquela leitura, o livro cer o guruato. “As conversas com o dis- que Como eu se fiz por si mesmo é a úni- ainda parece bastante fresco na me- cípulo instigavam-me.” ca narrativa longa do escritor e assim mória do escritor gaúcho. “Conhecer Como Tezza, muitas outras figu- como seus textos curtos, a motivação um escritor, num mundo cheio de re- ras que conviveram com o Turco viraram do autor para escrevê-lo não estava na datores, não é moleza, não. Fiquei im- personagens do livro. O próprio Fábio linguagem literária, mas em uma von- pressionado com o Jamil, a fluência Campana aparece em um dos capítu- tade de se manifestar de forma sarcás- dele, a ironia, o bom humor, a gran- los. Segundo Jamil, o editor da Traves- tica e com humor. “É um livro funda- de naturalidade. Mas, acima de tudo, sa teria feito um pacto com Dalton Tre- mental para conhecer a obra do Jamil e o que marcou foi a criação do perso- visan envolvendo o livro Sonata ao luar, ele mesmo como personagem. Um fal- nagem Jamil Snege”, diz o tradutor de que o Vampiro escreveu e renegou ainda so relato memorialístico, uma verdadei- Dom Quixote. nos anos 1940: a cada exemplar furtado ra farsa sobre a província.” g 40 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

REtrato de um artista | j. g. BALLARD

O autor inglês J.G. Ballard escre- veu uma obra tão singular que seu nome virou adjetivo. O termo “ballardiano” costuma ser empregado para definir o fragmentado mundo pós-moderno. Ballard iniciou a carreira como escritor de ficção científica, mas logo deturpou as convenções que movem o subgênero literário ao escrever romances em que as catástrofes dão o tom, como nos livros The drought e O mundo de cristal. O salto de Ballard como escritor veio com The atrocity exhibition, um instigante catálo- go experimental de atrocidades patoló- gicas do capitalismo tardio. Mas é Crash — estranhos prazeres o maior êxito do escritor. Nele, Ballard emprega um dis- curso ainda mais radical sobre a psique humana, criando uma galeria de perso- nagens atormentados por um fetichis- mo que relaciona sexo e acidentes de trânsito. Quando Ballard apresentou o romance para publicação, o editor teria se saído com essa: “No autor desse livro, nem psiquiatra dá jeito”. O que soou como elogio para Ballard. Em 1996, o romance ganhou uma adaptação cine- matográfica memorável feita por Da- vid Cronenberg. A partir de 1990, o autor escreveu uma série de romances que subvertem a noção clássica de co- munidade — Cocaine nights e O reino do amanhã, entre outros. J.G. Ballard fale- ceu em 2009, em Londres.

Heitor Yida é ilustrador e artista gráfico. Vive em São Paulo (SP).