RENASCER DA ESPERANÇA

Pelo Espírito lucius

Psicografia de Sandra Carneiro

vivaluz

Copyright 2004 by VIVALUZ EDITORA ESPÍRITA LTDA Av. Dona Gertrudes, 1076 - sala 02 Telefone: (Oxx11) 4402.2312 CEP: 12940-580 - Atibaia - SP. [email protected]

Lucius (Espírito) Renascer da Esperança / Lucius: psicografia de Sandra Carneiro. Atibaia, SP: Vivaluz, 2004.

ISBN 85-89202-03-8

1. Espiritismo - Obras psicografadas. I. Carneiro Sandra II Título índices para catálogo sistemático:

1. Romance espírita: Espiritismo 133.9

4a. edição Junho 2006 8.000 exemplares

Revisão de texto: Maria Helena de Mola Capa e projeto gráfico: SGuerra Design Coordenação editorial: Alexandre Marques Impressão: Lis Gráfica e Editora

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

É proibido a reprodução de parte ou totalidade dos textos sem autorização pr évia do editor

Embora este romance utilize experiências verdadeiras vividas por diversas personagens, para aprendizado de todos nós, não se propõe narrar fat os históricos, não obstante revele casos que ocorreram nos primórdios do Espiritismo.

Lucius

PREFÁCIO

O encontro da alma humana com o Criador é a experiência mais profunda e uma das mais desejadas por todos nós, quer estejamos encarnados ou fora do corpo físico. Ao vasculharmos nossos mais íntimos anseios, percebemos ess a necessidade, por vezes adormecida e até amortecida. Quando a alma se abre para a luz divina, inicia a compreensão de si mesma e do Universo à sua volta. A existência ganha novo significado e pas samos a melhor entender nosso papel no mundo; e encontrando nosso lugar, começamos a faz er real diferença. Sentimos como se o mundo, antes acinzentado e sombrio, adquirisse brilho e cor. E o princípio da jornada de autoconhecimento e de descoberta das verd ades espirituais. O homem adia essa caminhada, iludindo-se e distraindose com extrema facilidade; entretanto, a dor e o sofrimento o alcançam, levando-o a lutar p ara tirar de seu interior a angústia e o desespero. Muitos se entregam à revolta e ao desalento, desistindo da vida. Ainda assim, Deus continua esperando Sua cr iatura acordar do torpor em que está submersa e enxergar a luz mextinguível que sempre a envolveu, sem que se desse conta. A

9 Providência se faz presente de mil modos diferentes, cuidando de nós e nos guiando. A Doutrina Espírita, codificada e sintetizada pelo grande companhei ro Allan Kardec, amplia nosso entendimento do Criador e de Suas leis, desco rtinando as verdades do mundo invisível, ajudando-nos a compreender melhor nossa exist ência, nossa realidade interior e a realidade social a que estamos vincula dos. Em toda a história da Humanidade, Deus conduziu os acontecimentos e, amoroso e atuante, enviou socorro àqueles que se desviavam do caminho do bem e do amor, mas que a ele desejavam retomar. Na infância do espírito humano, os ensinos religiosos educavam com r igor, sem admitir questionamentos, pois éramos ainda limitados para realizar raciocínios complexos. No tempo em que o homem já estava mais preparado, Deus enviou Jesus, o espírito mais puro e perfeito que viveu sobre a Terra, para nos revelar as verdades espirituais e nos transmitir as lições morais de que tanto necessitávamos, e assim nos reaproximar do Pai. Todavia, o Mestre dos Mestres não podia des vendar mistérios que naquela etapa o homem seria incapaz de compreender. Quando, mais amadurecida, a Humanidade viu a ciência florescer, tra zendo o conhecimento de fatos antes encobertos pelo misticismo e pelas cren dices da ignorância, Deus enviou a Doutrina Espírita, que, penetrando o invisível, harmoniza o homem com sua essência divina. Através deste romance, desejamos convidar o leitor a testemunhar a experiência de homens e mulheres que enfrentaram seu destino e viram a espe rança renascer em seus corações, vivendo o momento histórico em que novo alento chegava à Terra: a revelação espírita acontecia por todo o mundo. Rogamos ao Pai que a mesma luz que um dia nos tocou, conscientizan do-nos de Seu amor e Sua grandeza infinitos,

10 RENASCER. DA ESPERANÇA possa alcançá-lo, amigo leitor, despertando-o para a magnitude da Vida da qual fazemos parte. Somos filhos de Deus e por isso imprescindíveis onde q uer que estejamos. Entreguemos o melhor que temos ao Criador, e seremos surpreendidos pela inesgotável fonte de bênçãos, sabedoria, luz e amor a que iremos nos c onectar.

Lucius

11 Lucius SANDRA CARNEIRO

Capítulu um

Era um dia frio. O vento gélido castigava o corpo cansado de Emilie, que ca minhava titubeante pelas estreitas vielas de Bilbao, pequena província ao n orte da Espanha. Enxugando as lágrimas que não paravam de correr por seu rosto, ela procura va desviar os olhos da indiscrição dos viandantes. Experimentava naqueles olhares fria curiosidade, pois sabia que ninguém se preocupava com ela. Não estavam i nteressados em sua dor, em seu sofrimento. Naquela hora extrema não havi a sequer um braço amigo para ampará-la. Estava cansada e absolutamente só. Enquanto andava, pensava que a vida era penosa demais para ela, oferecendo-lhe apenas ama rgura e desgosto que não compreendia. Nada fazia sentido. Seguindo com dificuldade, passou duas vezes em frente ao vendedor d e frutas; sentiu o aroma suave das maçãs frescas e quase lhe roubou uma. En tretanto, o temor de ser descoberta era maior do que a tortura da fome. Emilie se cont eve e continuou andando. Por diversas vezes parou e se virou, temendo que já estivessem atrás dela. Mas o que realmente desejava era que alguém a socorresse naquel e instante. Uma vez mais olhou para trás e se convenceu de que ninguém a perseg uia. Voltou-se devagar e retomou a marcha, ator-

13 doada. Seus pensamentos eram confusos, descontrolados, e o coração lhe bat ia freneticamente no peito arfante. Emilie estava desesperada. Continuou vagarosamente em direção aos limites da província. Ao se aproximar dos portões, as sentinelas a observaram de alto a baixo, mas nada fizeram, tomando-a por mais uma mendiga. Estava maltrapilha, vestindo restos rotos das roupas que outrora usara; tinha os cabelos despenteados e embaraçados. Irreconhe cível, era apenas uma sombra da jovem, bela e rica mulher que fora até poucos meses antes. Sem maiores dificuldades, ela transpôs os limites da província. À me dida que se afastava dos portões, olhava para trás com ansiedade. Embora des ejasse voltar, avançava. Ainda que continuasse vacilante, a decisão estava tomada. Já era noite quando se desviou da estrada, entrando na floresta em di reção ao mar. Sempre sentira medo da floresta, especialmente à noite. Mas àqu ela altura nada a deteria, estava determinada. Caminhou por entre as árvores, afastan do os galhos e o mato, quase sem enxergar nada à sua frente. As lágrimas l he caíam incessantemente pela face. Tropeçou em um toco e foi ao chão. Permaneceu ali prostrada, chorando agoniada. Quase adormeceu entre as lágrimas, mas então, como qu e movida por uma força desconhecida, lembrou-se dos acontecimentos que a haviam conduzido até ali. Levantou-se e prosseguiu. Sabia que, continuando naquela direção , chegaria ao mar. Já era noite alta quando ouviu os primeiros sons das ondas agitadas ao pé do penhasco. Embora esgotada, não parou. Fazia dias que não comia, b ebendo apenas água. As árvores altas foram diminuindo, se espaçando, e ela pôde divisar o grande penhasco de onde se avistavam os navios que partiam para o alto-m ar. Até onde a vista alcançava, estendia-se o imponente penhasco; a praia se espalhava l á embaixo, aos seus pés. Emilie

14 RENASCER DA ESPERANÇA se aproximou devagar. Seu coração batia ainda mais descompassado; a respir ação era ofegante e seu corpo tremia inteiro. Exausta, faminta e sem esper ança, mal conseguia caminhar. Cambaleante, foi chegando à borda do penhasco. Observou a magnificência do lugar: o mar ao longe, a se perder no hor izonte; as estrelas cintilantes acima de sua cabeça e o vento que bafejava o cheiro do mar em seu rosto. Ali já estivera diversas vezes e vivera momentos de e norme . Quantos sonhos, quantos momentos de alegria tivera naque le lugar! Quantas promessas, quantas juras de amor eterno... Emilie sentou-se e contemplou o cenário com ternura e saudade: era a última vez que o via. Queria afastar d a mente todas as lembranças, esquecer o quanto havia sido feliz um dia. Agora tudo lhe for a tirado. Nada lhe restava além da dor, da revolta e do absoluto desalento. Diante daquela imensidão, sentia-se entregue à própria sorte, sem força s para lutar. Havia tentado - refletia ela. Tentara de todas as formas lutar co ntra o cruel destino que a visitava. Havia buscado ajuda, pedido, implorado. Ni nguém a amparara. Lutara contra a indiferença de amigos e parentes, pois t odos lhe haviam virado as costas. Quer por medo ou por indiferença, não encontrara um omb ro amigo, nenhum auxílio. Muito chorara pedindo socorro a Deus, mas senti a que até Ele a abandonara por completo. Melhor seria que lhe tivessem tirado a vida, logo de uma vez. Assim pensava Emilie, revoltada e desiludida, à beira do penh asco. Agora, as estrelas desapareciam uma a uma, à medida que os primeiro s raios de sol despontavam no horizonte. Logo o dia nasceria e Emilie não q ueria ver o alvorecer. Levantou-se devagar e caminhou para mais perto da borda. AH, r ecuou instintivamente. A altura sempre lhe causava vertigens. Respirou en tão, profundamente, como a buscar forças. Olhava para além

15 Lucius I SANDRA CARNEIRO de seus pés e via o gigantesco paredão que terminava no mar. Aterrorizada, assistia ao espetáculo das ondas batendo nas rochas c pensava que lá estari a em alguns instantes: junto à espuma das águas do mar, esquecida para sempre. Sua dor teria fim; sua humilhação e sua vida, que nada mais valia, acabariam para sempre. Olhava para baixo hipnotizada, como se algo a chamasse para a queda. Avançou mai s e mais, com lentidão, pé ante pé. A cada passo, despedia-se mentalmente dos que lhe eram mais queridos: primeiro do marido, depois dos pais, a quem não via há ano s... Enquanto isso, mais seus pés se aproximavam da beira do penhasco. Em ilie não conseguia desgrudar os olhos das águas agitadas. Chegou enfim ao limite. Mais um pass o, só um, e estaria tudo acabado. Seria, finalmente, a libertação. Respirou fundo de novo: precisava ter coragem. Olhou mais uma vez para o horizonte. O sol estava n ascendo e o som das primeiras gaivotas espantava o silêncio da noite. Emil ie pensou na filha, e despediu-se dela. Era a última imagem que queria ter na mente, ant es da queda: Cíntia, sua filha querida. com o pensamento nela, preparou-se para o passo fatal.

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Capítulo dois

Quando Emilie ergueu o pé direito, pronta a dar o último passo, ouviu um grito abafado: - Não, mamãe! Por favor, não faça isso! Emilie desceu o pé e instantaneamente parou, assustada. Quase se de sequilibrou, porém conseguiu se sentar. Olhou em volta procurando a filha. Onde estaria? O que faria ali? Como teria chegado? Procurou, e não viu nada. Não havia ninguém, ela estava sozinha. "Deve ser coisa da minha cabeça - pensou -, estou amedrontada e procuro uma forma de fugir ao que deve ser feito". Levantou-se. Ia prosseguir, mas, antes de se pôr novamente à beira do penhasco, escutou a voz suave da filha: - Por favor, mãezinha, não desista da vida. Dessa vez Emilie se sentou, desatando dolorido pranto. Chorava sem entender o que se passava. Onde estava a filha querida, cuja voz doce ouvia tão nitidamente como há pouco ouvira o som das gaivotas? O sol subia vagarosamente. Os tons do céu azul misturavam-se ao v erde das árvores e ao esmeralda do mar. Os pássaros saudavam o amanhecer com vôos alegres. O vento gelado

17 movimentava os cabelos de Emilie, como se beijasse sua face. E ela chorava e chorava. "Será que não terei coragem, meu Deus? Preciso terminar com este sofrimento!" - angustiava-se. Continuou a chorar convulsivamente. Chorou por horas. Lembrando a voz da filha a ressoar-lhe na mente, foi incapaz de se reerguer. com aquel a voz a lhe pedir que desistisse, como continuar? A alvorada chegou majestosa, invadindo tudo com a alegria matutina. E Emilie, após horas de angústia e dor, exausta pela longa jornada empreen dida até o mar, abatida e faminta, adormeceu. Dormia profundamente quando alguém lh e tocou o rosto com delicadeza, afastando seus cabelos: - Você está bem, minha jovem? Acorde, precisa de ajuda! Insistentem ente a mão acariciava seu rosto e Emilie despertou devagar. - Quem... O quê... - O que aconteceu com você? Como está abatida, meu Deus! - Deixe-me, quero ficar sozinha - Emilie respondeu, tentando afastar com violência a mão que afagava seu rosto. - Não tenha medo, deixe que a ajude. Quem é você? - Não interessa; afaste-se, por favor, quero morrer! - Ah, então era isso que pretendia à beira do penhasco? Acabar com a v ida? - Não é da sua conta. Deixe-me, peço uma vez mais. - De forma alguma, precisa de auxílio! Não posso abandoná-la; caso con trário, acabará por fazer o que pretendia. Não lhe darei essa alternativa. Já vi outros que fizeram isso; ficam muito feios depois, pode acreditar. Por que vêm justo aqui, a este lugar lindo, para um ato tão triste? Vamos, levante-se. vou lev ar você para minha casa. Lá poderá se alimentar e receber os cuidados de que necess ita. - Não, quero ficar aqui.

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- Ora, vamos, está quase morta! - Então me deixe continuar aqui. - Como se chama? - Não interessa. - Qual é seu nome? - Como é insistente! - Meu nome é Lucrécia. Qual é o seu? Emilie, fraca e combalida, empenhava-se na tentativa de enxergar a mulher que a socorria. Olhou-a, finalmente. Grandes olhos pretos a observav am carinhosos e meigos. Lucrécia era uma mulher de pele escura, quase negra. Esgotada, E milie desfaleceu sem dizer mais nada. Lucrécia sem demora tomou-a nos braços e, num esforço tremendo, de sceu a estreita trilha que ligava o penhasco a uma pequena vila de pescado res próxima ao mar. O caminho, sinuoso e íngreme, exigia dela toda a energia. Quando che gou à praia, colocou Emilie cuidadosamente na areia, perscrutando mais um a vez seu rosto magro e sujo. Percebeu que sob aqueles traços marcados pela dor havia um semblante delicado e belo. Descansou um pouco junto de Emilie, que perm anecia desacordada. Depois, levantou-se resoluta e, carregando a moça nos braços, levou-a até sua casa e a acomodou numa cama improvisada. O marido, que à entrada lim pava os peixes que trouxera naquela madrugada, não perguntou nada. Ajudou a esposa e dep ois examinou a jovem que se debatia em pesadelos, falando coisas ininteli gíveis. Lucrécia, ao seu lado, procurava alimentála. Estava ardendo em febre. - Pobre coitada. Quem será? Veja em que estado se encontra, Jairo! -- É... Parece jovem. E está muito abatida... - Abatida e desesperada, ia fazer a besteira. Graças a Deus eu apareci.

19 Lucius l SANDRA CARNEIRO - Como assim? - Queria se matar! - Ela tentava se jogar? - Não, mas ia tentar, eu sei; e depois ela mesma disse. - Meu Deus, que tristeza pode carregar no peito a ponto de desejar t irar a própria vida? Como foi que a achou? O que deu em você para subir até o penhasco? - Senti que precisava ir e obedeci. Emilie continuava delirando. Pelo resto do dia e noite adentro, Luc récia, toda bondade, permaneceu ao lado da cama, desdobrando-se em cuidados . Preparou uma sopa forte e de quando em quando a alimentava. A noite foi longa. Emi lie pedia socorro. Seus sonhos eram tormentosos, assustadores. Lucrécia p ouco dormiu, buscando atender a pobre desconhecida. Na manhã seguinte Emilie, ainda dormindo, parecia ligeiramente mais calma. Assim que o dia nasceu, Lucrécia se dedicou aos seus afazeres e vez por outra se aproximava da cama, atenciosa, preocupada com o estado da mulher que s ocorrera. Pelo meio da manhã notou que Emilie abria os olhos. Carinhosa e solícita, procurou tranqüilizar a jovem: - Aqui está segura, não se inquiete. - Onde estou? Quem é... - Fique calma; você precisa descansar, recuperar as forças. E trazend o o pão que acabara de fazer, ajudou a jovem a se sentar na cama, insistindo que comesse. - Precisa se alimentar. - Há muito que não como... - Imaginei, pelo seu estado. Mas precisa se alimentar. - Não tenho vontade... Quero morrer... - Isso eu sei. Graças a Deus não conseguiu fazer o que pretendia. Quem é Cíntia? Emilie arregalou os olhos, dizendo:

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Como sabe de Cíntia? Quem é você? Foi enviada para me des truir, não é mesmo? Não lhe direi onde ela está. Isso jamais! Minha vida pouc o vale, pode tirá-la. Não direi onde ela está! Calma, por favor, calma. Você repetiu esse nome diversas vezes dura nte o sono. Não sei quem é, mas deve ser querida, nois fala nela com preocu pação e cuidado, como há pouco. -- Falei dormindo? .- Muito, nem imagina quanto. - Fiz algo mais, além de falar? Lucrécia olhou-a como se soubesse em que pensava e disse: - Não teve forças para mais nada, ao menos por enquanto. Agora coma, precisa se alimentar. Dessa vez Emilie ficou calada. Sentada na cama, comeu o pão embebi do em leite que Lucrécia preparara. Nem sabia quando se alimentara pela úl tima vez. Ao terminar, Lucrécia lhe perguntou: - Como se chama? - Por que quer saber? - Meu nome é Lucrécia, vivo aqui com meu marido, Jairo. Não temos f ilhos - ou melhor, eu tive, porém me foram tirados. Esta pequena casa é nos so refúgio. Apesar de não termos muito, tudo o que temos dividiremos com você. Pode f icar aqui pelo tempo que precisar. É tudo muito simples, mas não hão de f altar o alimento e o teto, até que se sinta pronta para seguir com sua vida. Lágrimas brotaram nos olhos cansados de Emilie. Sentiuse quase ente rnecida pelo carinho, tão desejado, que agora só recebia de uma estranha. E nxugando as lágrimas que lhe desciam pela face, murmurou quase sem voz: -- Meu nome é Emilie. - Emilie? Esse nome não me parece estranho... É da região ou de outra parte?

21 Lucius l SANDRA CARNEIRO - Sou estrangeira neste país, mas vivo aqui há muito tempo. - Este é um bom país, mas é preciso aprender a conviver com suas regra s... - Sim... Experimentei os seus preconceitos... Emilie não pôde continuar. Começou a chorar convulsivamente, um pr anto agoniado e dolorido. Lucrécia abraçou-a com carinho, aconchegando-a ao peito; acariciou seus cabelos, qual terna mãe abraçando a filha. Não obstante o constrangime nto de estar nos braços de uma desconhecida, Emilie não pôde mover-se. Quando percebe u que a jovem se acalmara, Lucrécia deitou-a, dizendo: - Agora descanse que tenho muitos afazeres me aguardando. O trabalh o não pode esperar e você deve descansar. Emilie não respondeu. Apenas meneou a cabeça em sinal afirmativo. Lucrécia deixou o pequeno cômodo em que instalara a jovem e se dirigiu ao balcão onde trabalhava. Ficava na área externa, em frente ao mar, e dali podia ouvir o barulho das ondas morrendo na praia. Emilie se ajeitou na cama. Embora assustada e amargurada, a cama q uente, a comida e especialmente o carinho desinteressado da desconhecida a queciam sua alma, trazendo-lhe um bem-estar que há muito não experimentava. Adormeceu env olvida por aquelas suaves sensações. Mais tarde, Lucrécia acordou-a para o almoço, quando conversaram u m pouco mais. Ao final, fez com que ela se deitasse novamente e repousasse . Sentia especial carinho por aquela jovem desconhecida. E algo de familiar nela a compelia a mais e mais se dedicar. Segredou ao marido, após assegurar-se de que a j ovem dormia: - É curioso, Jairo, sinto que conheço essa moça de algum lugar. Algo nela me parece extremamente familiar. Não sei o

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que é: se o nome, Emilie, se o rosto, ou se as duas coisas, não sei... Mas el a me parece mesmo muito familiar... - O nome dela é Emilie de quê? - Não sei. Ela não contou e eu também não perguntei. Foi um custo faz ê-la dizer o primeiro nome. - E por quê? De que será que tem medo? - Não sei... O que sei é que está assustada... - Precisa descobrir um pouco mais, Lucrécia. Temos de saber quem amparamos em nossa casa. Você sabe bem que nos dias difíceis que vivemos, de desconfiança e perseguições, todo o cuidado é pouco. - Sim, sem dúvida. Devemos manter total segredo sobre Emilie. Ning uém deve saber que está aqui, assim teremos tempo de averiguar melhor...

23 LUCIUS l SANDRA CARNEIRO CAPÍTULO TRÊS

Quando Lucrécia levou o jantar para Emilie, deparou com a jovem sentada, tentando se levantar. Ao vê-la com o prato de comida, disse: - Preciso ir embora. - Para onde? - Não sei. Para qualquer lugar. - Está muito fraca, Emilie. Fique um pouco mais conosco. - Não me sinto bem aqui parada, comendo e bebendo... Você nem sab e quem eu sou! - Sei: você é uma jovem que precisa de ajuda... Que tem uma pessoa m uito querida chamada Cíntia e que deseja muito voltar a vê-la. E sei que est á fraca, tremendamente fraca. Precisa se alimentar e descansar para recuperar as for ças. Coma e descanse esta noite. Amanhã, se estiver melhor, mais refeita e disposta, então concordo que parta. Convencida, Emilie se sentou e jantou. A comida era saborosa e com eu como há muito tempo não fazia. Lucrécia teve o cuidado de preparar alim entação substanciosa e ao mesmo tempo leve, para readaptar o organismo debilitado da recém-ch ega-

25 da. Não podia ignorar que sentia simpatia e atração por aquela estranha. D epois do jantar, Emilie procurou dormir. Demorou um pouco para se tranqüil izar, mas finalmente, vencida pela exaustão que ainda a dominava, adormeceu. O sono da jovem fo i por demais atormentado. Teve pesadelos que acordaram Jairo e Lucrécia. Esta correu a acudir a jovem, que gritava desesperada: - Não! Por favor, não mate minha filha! Meu Deus! Cíntia! - Calma, acorde, é só um sonho - acudia Lucrécia -, só um sonho. Aco rde, vamos! - Eles tiraram minha filha de mim! - Calma, já passou! - Por quê? Por que tanta maldade? Por que fizeram isso comigo? - Calma, já passou, está tudo bem. Emilie continuava chorando: - Quero minha filha! Quero minha vida! - Emilie, tente se acalmar, tudo ficará bem! - Eles tiraram minha filha, tiraram minha vida. Roubaram tudo o que eu tinha! - Calma. Quer conversar sobre o assunto, contar o que houve? - Dói demais... - Então durma, descanse. A muito custo, Lucrécia conseguiu fazê-la acalmar-se e voltar a dor mir. Então, retomou para a cama pensativa: "O que terá acontecido a essa jo vem? Quem será ela?" Foi intrigada e penalizada que Lucrécia acabou por adormecer. Enquanto dormia, seu corpo espiritual se desprendeu e caminhou até onde estava Emilie. Estacou na porta, horrorizada. Em tomo da moça havia quatro entidades espirituais em terrível estado, que sussurravam no seu ouvido. Ela tentava desvencilhar-se das criaturas, debatendo-se na cama. Eram dois homens

26 RENASCER DA ESPERANÇA duas mulheres. Ao perceberem a aproximação de Lucrécia, afastaram-se li geiramente e falaram em tom ameaçador: - Não adianta tentar ajudá-la. Ela deve morrer. Ela tem de morrer. Mere ce sofrer. Lucrécia olhou para aqueles espíritos em estado lamentável, sentindo profunda ternura por eles. Observou o rosto de cada um e depois, movida por intensa compaixão, pediu, quase suplicante: - Meus irmãos, quem são vocês? Por que perseguem essa moça? O qu e querem com ela? -- Você não sabe o que está fazendo ao acolher uma assassina em sua casa. Ela tem de pagar. Tem de morrer! - A justiça pertence a Deus. Se ela fez algo errado, não precisam se preocupar, irá colher as conseqüências. - E olhou para Emilie com carinho - P elo estado em que se encontra, acho que já está colhendo... - Pode ter certeza de que ela vai pagar. E vai pagar caro por tudo o q ue nos fez sofrer. Ela nunca vai sair dessa situação, jamais! Tem de pagar! Te m de morrer! E você está se metendo onde não deve. Está começando a atrapalha r. Nós quase conseguimos, quase! Uma outra entidade, feminina, disse: - Ela estava apenas a um passo, um passo do desastroso fracasso. Mas tiveram de ajudá-la! A outra entidade feminina disse com desdém: - Foi a filha. - Não importa. Ela não há de escapar impune. Lucrécia insistia, gene rosa, buscando demover as criaturas da intenção de perturbar Emilie: - Irmãos, de nada adianta ficarem assim, à volta dela, como moscas sobre o mel. Também precisam de ajuda. Olhem para vocês! Estão em farrapo s!

27 Lucius l SANDRA CARNEIRO Uma das mulheres afirmou: - Não importa. Enquanto ela não se juntar a nós, não desistiremos. Nem adianta você falar nada. Para o seu bem, é melhor que ponha essa mulher na rua. Caso contrário... Lucrécia enfrentou com olhar firme a criatura que lhe ameaçava a tranq üilidade do lar: - Não adianta ameaçar, minha irmã. Nesta casa, acreditamos no amor e na justiça de Deus. Acreditamos em Jesus. Ele nos ensinou que devemos a mar e fazer o bem a todos, tratando-nos como verdadeiros irmãos. E assim agimos. - Pior para você. Se insistir em ajudar essa mulher, sofrerá igualmente. Lucrécia, sentindo-se estranhamente ligada àquelas criaturas infelize s e brutalizadas, ainda tentou conversar um pouco com elas; no entanto, intui ndo que o trabalho seria demorado e árduo, voltou para seu quarto. Colocou-se ao l ado da cama, vislumbrando o corpo espiritual do esposo que, sentado, medit ava. Juntou-se a ele e permaneceram orando por longo tempo. Amanhecia quando retomaram ao corpo físico, para o novo dia que se anunciava. Ao despertar, Lucrécia se lembrou vagamente do que vira, como se f osse apenas um sonho. Mesmo assim teve a certeza de que Emilie necessitava de socorro. Seus problemas eram graves, muito mais graves do que ela própria consegui a perceber. Estava sendo perseguida por entidades espirituais que desejav am, ardentemente, prejudicá-la. Levantou-se naquela manhã pedindo ajuda a Deus para que pude sse ser realmente útil. Foi até quarto, preocupada. A jovem ardia em febre. Lucrécia correu à cozinha e preparou água fria com algumas ervas, para fazer baixar a temperatura. Colocou o emplastro na testa de Emilie e ali o deixou por algum tempo, sem obter

28 RENASCER DA ESPERANÇA qualquer resultado. Quando Jairo entrou no pequeno cômodo, ela lhe pediu:

Precisa buscar um médico. Esta jovem está muito mal. Mas não temos dinheiro, Lucrécia. Um médico vai cobrar caro! Jairo, temos de fazer algo, ou ela vai morrer! A febre está muito alta. - Então vou pedir ao Belisário que venha ajudar com suas orações. - Não! Precisamos de um médico. O caso dela é grave! Vá buscar o médico e, quando chegar, eu me entendo com ele sobre o pagamento. Compr ometo-me a fazer uns pães, a trabalhar para ele, não sei. Traga-o. Daí veremos. Jairo saiu sem dizer mais nada. Confiava na esposa e percebia a grav idade da situação. Decorrido algum tempo, voltava trazendo o doutor. Fora di fícil encontrar um que aceitasse ir até a pequena cabana que ficava um pouco distante da vila, numa região pobre, onde só viviam simples pescadores. Finalmente, f alando em nome de Miguel, um amigo que residia em Barcelona e tinha também negócios em B ilbao, Jairo alcançou seu intento. Por sorte, Miguel lhe falara desse con hecido médico de Barcelona que ultimamente vinha passando temporadas na província. Lucrécia, aflita, aguardava o marido: - Que bom que chegaram. A febre não cede, ela está piorando. - Este é o doutor Francisco. Minha esposa, Lucrécia, que encontrou a jovem no penhasco. - Senhora... - Ela está muito doente. O médico se aproximou da cama, levando pequena maleta preta e o est etoscópio. Sentou-se na beira da cama. Afastou os cabelos da jovem e ao ver seu rosto empalideceu, levantando-se assustado.

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- Não posso fazer nada. - Como não, doutor? Ela está muito mal! - Não posso. Não há nada que possa fazer para ajudá-la. Ele estava p álido e agia como se tivesse medo de alguma coisa. - Mas, doutor, esta moça precisa de ajuda ou não vai resistir. O médi co tentou sair do quarto, porém Lucrecia segurou-o pelo braço e lhe disse, se m pensar: - Não fuja do passado, enterrando o presente. Francisco olhou-a e res pondeu, espantado: - Não sei do que está falando. - Nem eu tampouco, só sei que não quer dar ajuda a alguém que precis a muito. Por quê? O senhor é médico e seu trabalho é salvar vidas, não é? Se não socorrer esta moça, ela acabará morrendo! Precisa fazer algo. Surpreso e sem saber bem o que fazer, Francisco retomou à beira da cama. Sentou-se, tirou seus equipamentos da pequena mala e começou a exam inar Emilie, sob a vigilância atenta de Lucrecia e Jairo. Por fim, fechou a maleta, dirig iu-se ao casal e entregou receita prescrevendo alguns medicamentos: - A senhora tem razão, é muito grave. Suspeito de pneumonia. Dêem a ela esses medicamentos. Deveria voltar amanhã para mais uma visita, mas não quero que ninguém saiba que estou ajudando. Jairo perguntou ao médico, hesitante: - Qual o problema, doutor? - Não sabem quem é essa jovem? - Não. Como disse meu marido, encontrei-a lá em cima, no penhasco . Acho que pretendia se matar no mar, & por algum motivo não conseguiu. - Quando foi isso? - Dois dias atrás.

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É... É o tempo que estão procurando por ela. - Quem? Familiares, médicos, policiais, entre outros. - Por quê? - Fugiu de uma clínica que trata de doentes mentais. - Doentes mentais? Ela não me parece doente - disse Lucrécia, pensativ a. - Não sabem mesmo quem é ela? - insistiu o médico. - Não! - É Emilie de Bourbon e Valença. - Emilie de Bourbon e Valença... - Jairo procurava na memória onde ouvira aquele nome. De súbito, disse - Aquela que foi acusada de tentar mat ar o marido e a filha? - Sim, isso mesmo. Tive a oportunidade de conhecê-la meses antes da t ragédia. - E é verdade tudo o que dizem sobre essa jovem? - Conhecem a história? Foi Lucrécia quem respondeu: - Ouvimos alguns comentários a respeito. Entretanto, ela não nos pare ceu doente mental. - Temo que estejam acobertando uma assassina em sua casa. Precisam a visar a polícia. Antes que ele terminasse, Lucrécia pediu energicamente: - Não, por favor, não fale nada a ninguém. Essa moça precisa de ajuda , doutor Francisco. Ela não é criminosa, tenho certeza disso. - Como pode estar tão certa se mal a conhece? - Não sei, apenas sinto que ela é inocente. Francisco hesitou e olhou para o casal, desconfiado. Todavia, intriga do, especialmente pela figura de Lucrécia, enfen respondeu: - Por enquanto não direi nada. Se alguém me perguntar se

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estive aqui, ou se sei de alguma coisa, negarei com veemência. A responsab ilidade é toda de vocês. Pode ser perigoso ajudar essa moça. Ela incomodou pessoas influentes e importantes da nossa sociedade. Lucrécia insistiu: - Estou certa de que não fez nada. - Como pode ter essa certeza? - Apenas sei. O doutor poderá vir de novo amanhã, por favor? - Só se for durante a madrugada, antes que o sol nasça. Assim será mai s difícil que me vejam. - Para nós está ótimo, aguardaremos pelo senhor ao amanhecer. Jairo foi com o médico até a porta e perguntou: - Quanto nos custarão essas visitas, doutor? - Ainda não sei. Cuidarei da moça por algum tempo para ver se ela ap resenta alguma melhora. No entanto, insisto que vocês a entreguem à polícia. Ela representa encrenca séria.

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Capítulo Quatro

Lucrécia e Jairo, à porta da pequena casa, observaram o médico desaparecer trilha acima. Os dois se entreolharam sem coragem de falar, mer gulhados em reflexões sobre o que deveriam fazer. Lucrécia, depois de prolongado silênci o, fitou o marido e disse: - Nós temos de ajudá-la. - Como poderemos? - Ainda não sei. Apenas sinto que é o que devemos fazer. Não consigo explicar. - Costumo confiar em suas intuições, Lucrécia, mas não acha que est amos nos arriscando demais? E se ela for mesmo doente? E se for perigosa e nos causar algum dano? Não sei, estou preocupado. - Confie em mim, Jairo. Não tenho dúvida de que devemos ajudá-la. Al go me diz, aqui dentro do peito, que essa jovem precisa de nós. Do jeito que está, se a desprezarmos agora, o que será dela? -- O pior é que ela fugiu de um manicômio. Tem noção do é isso? Pode ser louca! E se for? Se a polícia está à procura

33 dela, deve realmente ser perigosa. Como disse o médico, é uma fugitiva a quem estamos dando proteção. Seremos considerados cúmplices... -Jairo, pense comigo: por que o médico, reconhecendo a jovem, decidi u deixá-la conosco? Não acha estranho? Se tivesse tanta certeza de sua culpa , por que concordaria em cuidar dela, mesmo em segredo? - Não sei, pode ter ficado com pena de nós. - Por quê? Quem somos nós, simples pescadores, para que ele nos dê q ualquer tipo de importância? Não, Jairo, não creio que seja esse o motivo. E le deve ter outra razão para ajudar Emilie. De alguma forma essa história soa esquisit a, e precisamos ir com cautela. Você bem sabe que tudo o que nos acontece tem uma razão. É preciso ler nas entrelinhas. Nunca vou ao penhasco. A bem da verdade, aq uele lugar me causa calafrios. Sinto aflição assim que me aproximo. É como se ouvisse vozes, você sabe. - E por que foi até lá naquela manhã? - Não sei. Apesar da angústia que o lugar me causa, fui atraída para lá, sem razão aparente. E naquela manhã encontrei Emilie, desfalecida, quase morta de cansaço e fome. com certeza ela ia pular, Jairo, e algo a impediu. Depois e u cheguei. Para mim, diante de tudo o que temos aprendido, são sinais de qu e devemos ajudá-la. - Muito bem, você me convenceu. Vamos ajudá-la, então, mas devemo s ser muito cautelosos. Não sabemos nada sobre os fatos que envolvem a vi da dela. - Concordo plenamente. Sinto que se trata de uma situação complicad a. Primeiro quero ganhar a confiança dela compreender bem o que se passa e depois, sim, pensamos nof que fazer. - E nenhuma palavra a ninguém sobre a presença dela aqui-

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-- Claro, vamos manter isso em segredo, ninguém na vila precisa saber.

-- Agora tenho de cuidar da vida, ou não teremos o que comer. Jairo abraçou carinhosamente a esposa e a deixou com os afazeres dom ésticos. Lucrécia se desdobrou o dia todo em atenções para com Emilie, que c ontinuava delirando: dizia coisas sem sentido e por vezes Lucrécia estranho u o que ouvia. Em seus delírios, pedia: - Por favor, afastem-se de mim! Não se aproximem mais, por favor! Já me tiraram tudo! Não suporto mais. Vão embora, parem de me atormentar! Lucrécia fitava Emilie, intrigada. Sabia que ela poderia estar falando com entidades espirituais, assunto que conhecia bem. Ela própria, por diversa s vezes, já fora vítima de espíritos infelizes. Somente o estudo constante e o esforç o em compreender e aplicar as leis divinas a haviam levado a superar aquelas crises. Agora tentava ajudar a jovem, que parecia ter problemas semelhantes. Cuida va carinhosamente de Emilie, falando-lhe ao ouvido palavras de incentivo: - Eles não podem lhe fazer mal algum, Emilie. Confie em Deus, peça a juda a Ele! A jovem, inconsciente, continuava atormentada, dando a impressão de nada registrar. Entretanto, Lucrécia não se poupava. Preparou diversos chá s elaborados com ervas medicinais que a fazia ingerir a todo momento. Continuava muit o preocupada com seu estado de saúde, que parecia não melhorar. No início da tarde, foi até o quarto e conferiu suas economias, para ver se poderia dispor de algo com que comprar rnedicamento que o médico pre screvera. Procurou em vão: o que poupara era insignificante. Vasculhou os armários em busca de algo que pudesse vender, qualquer coisa. Ela sequer

35 Lucius I SANDRA CARNEIRO sabia direito o que procurava, pois o casal não dispunha de objetos valios os; viviam tão-somente do resultado da pesca,! que o marido arduamente con seguia, todos os dias, nas águasj do Atlântico. Mas Lucrécia não desistiu. Instintivamente, semi atentar para os próprios atos, revirava e remexia tudo, até que' afinal encontrou, esquecida no fundo de um baú que quase não abria, uma carta: a que receber a da mãe ao deixar sua terra natal, na esperança de uma nova vida. Lucréci a nascera em Marrocos e deixara o país, com Jairo, fugindo de sua sorte. Na partida, a m ãe colocara a carta em suas mãos, pedindo que lesse apenas quando estivess e longe. Junto lhe entregara umm moeda antiga, que estivera na família por muitas geraçõ es. A mãe queria que ela mantivesse o elo com suas raízes, mesmo vivendo distante. Lucrécia não teve dúvidas. com a moeda nas mãos, fechou o baú e se levantou, decidi da. "Por certo esta moeda deve ter algum valor! - pensou, entusiasmada - S e a vender bem, conseguirei dinheiro para comprar os remédios". Como não poderia sair enquanto o marido não chegasse, guardou a m oeda no bolso do avental e prosseguiu nas tarefas,! ao mesmo tempo em que pensava: a quem procurar para obter' um bom preço pela venda? Quando Jairo surgiu na ponta da praia arrastando a rede, Lucrécia correu até ele: -Jairo, ela não melhora. Precisa do remédio que o doutor receitou. - Mas se não temos dinheiro, como vamos pagar o remédio? - Tenho isto! - mais que depressa ek tirou a moeda do bolso. - O que é? - Lembra-se daquela moeda que minha mãe me deu quando deixamos o Marrocos? - Não, Lucrécia, isso não! É da sua família! - Não temos escolha, Jairo! A moça está piorando! Precisamos fazer a lguma coisa!

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Jairo olhou-a resignado. Sabia que nada a demoveria da idéia. Continu ando a caminhar, perguntou: -- O que faço então? Quer que venda a moeda? -- Não sei. Pensei muito, e não sei onde poderíamos obter melhor valor. Na vila, acho difícil encontrar alguém que pague. Não conh eço ninguém que mexa com isso. Na província, não saberemos a quem recorr er. Se demorarmos a obter os remédios talvez ela não sobreviva. Acho que deveria ir até o dou tor e lhe pedir que fique com a moeda, em troca do remédio. - Será que ele irá aceitar? Apesar de atender ao nosso pedido, ele me p areceu muito indiferente. - Temos de tentar. Conte a ele sobre a origem da moeda. É um homem inteligente, da cidade grande, sabe das coisas. Acho que vai apreciar uma a ntigüidade. Só precisa fazer com que se comprometa a comprar todos os remédios em tro ca da moeda. Sei que ele gosta dessas coisas, vai concordar. - Como sabe que ele gosta de antigüidades? Você pouco conhece o dou tor Francisco. - Algo me diz para tentar. Afinal, que mais poderíamos fazer? Agora vá, Jairo. Largue tudo aí, as redes, os peixes, deixe tudo! Vá depressa ou a moça pode não resistir. Sem dizer mais nada, Jairo entrou em casa e deu uma espiada em Emili e, que molhada de suor continuava delirando, febril; foi para o quarto, troc ou as roupas e partiu, não sem antes prometer a Lucrécia que faria o melhor para trazer os remédios. Ele não conseguia dizer não à esposa, mesmo nas Muitas ocasi ões em que não concordava com suas idéias. Na verdade, ele não podia reclamar, pois desde que a conhecera Ucrécia tinha premonições, intuições e pressentimentos. E os sonhos... O que ele mais temia eram os sonhos. Pelo menos agora, depois que eles havi am descoberto, através dos princípios espíritas, a relação entre o mundo ma terial e o mundo

37 LUCIUS l SANDRA CARNEIRO invisível, a mulher parecia ter mais controle e compreensão daqueles estra nhos fenômenos. Jairo foi até Bilbao procurar pelo médico. Assim que ele saiu, Emili e piorou. Debatia-se mais e mais, gritando desesperadamente: - Não! Não façam isso! Por favor, me deixem! Lucrécia tentava acalmá -la: - Sossegue, Emilie, tenha calma. Tudo vai dar certo. Subitamente, co mo que sonâmbula, Emilie abriu os olhos, fitou Lucrécia com olhar parado e d isse: - Não se meta com essa mulher! Afaste-se dela enquanto é tempo! Nã o poderá ajudá-la. Ninguém pode! Lucrécia se assustou. Até a voz parecia outra. Enchendo-se de coragem, disse: -Jesus a protege! Fiquem longe dela! Com voz estranhamente alterada, Emilie respondeu: - Nunca! - e soltou uma gargalhada aterradora. Lucrécia baixou a c abeça e começou a orar. Pediu com fervor que Deus socorresse Emilie. Lágri mas desciam pela sua face. Sem poder raciocinar, Lucrécia compreendia com o coração que a jovem estava profundamente perturbada, precisando de socorro. Sentia-se a té aliviada por entender o impulso que a movia. Estava, sem dúvida, no caminho certo. Se n ão recebesse ajuda, Emilie iria sucumbir. Ao curto diálogo seguiu-se o silêncio. Enquanto orava, crescia em L ucrécia a vontade de ajudar. E mais veemente se tomava a prece. Por fim, Em ilie se acalmou. Lucrécia, então, viu pela pequena janela que estava anoitecendo. O tempo p assara muito rápido. Ela se levantou e começou a preparar o jantar. Estava quase tudo pronto quando, finalmente, Jairo chegou. A mulher olhou para ele ansiosa: - E então? Conseguiu? Emilie está piorando.

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-- O doutor vem aqui amanhã para vê-la. -- Graças a Deus. E o remédio? Jairo sorriu. Você tinha razão. Ele gosta muito de antigüidades. Quando bateu os olhos na moeda, não conseguiu desgrudar dela. Não só saiu para comprar os remédios, como me deu comida também. Disse que ela precisa se alimentar bem, para o tratamento dar certo. Prometeu que irá providenciar todo o remédio nece ssário. Acho que a moeda é mais valiosa do que pensávamos. - Não importa, Jairo. O que interessa é que nos foi útil. - A nós, não; a essa desconhecida. - Vai salvar uma vida, Jairo! E nós estamos ajudando! - Só mais uma coisa. - O quê? - O médico realmente não quer que ninguém saiba que está cuidando de la. - Conseguiu descobrir o porquê? -- Ele afirmou que Emilie é mesmo louca e tentou matar o marido; q ue foi bem educada e é uma moça de boa família, mas enlouqueceu de uma hor a para outra. Ela tem uma filha chamada Cíntia, que está com a família do marido. Disse que formavam uma família feliz, antes que ela ficasse totalmente louca. - Louca como, Jairo? - Ele não explicou. - Mais cedo ou mais tarde, nós iremos descobrir. Agora, o importante é que está com os remédios. Tirando tudo da mão do marido, Lucrécia correu para o quarto e minis trou a dose inicial. A noite foi longa. De hora em nora, Lucrécia dava, alte rnadamente, os remédios que o médico indicara e os chás de ervas que preparava. Aos pr imeiros raios do alvorecer, Emilie estava um pouco mais tranqüila e a febr e começava a ceder.

39 Lucius I SANDRA CARNEIRO A partir daí, apesar de Emilie engolir os remédios com dificuldade, Lucrécia não desistia de dispensar-lhe cuidados cada vez mais atentos. Na pe quena casa, simples cabana de madeira, o vento penetrava pelas diminutas frestas e o fo gão que servia para aquecê-los à noite nem sempre tinha fogo. Para protegei a jovem, Lucrécia colocou algumas de suas poucas roupas de inverno sobre ela, pois sabia que o frio iria dificultar ainda mais sua recuperação. O médico retomou na madrugada seguinte; depois de demorado exame, continuava cético em relação às possibilidades de melhora: - O estado dela é muito grave, não creio que conseguirá resistir. Es tá muito fraca, o organismo não terá condição de combater a pneumonia, ainda mais nesta época do ano. E vocês se cuidem, que essa doença é contagiosa. - Não se preocupe, doutor, estamos tomando várias precauções. - É bom mesmo que se cuidem - reiterou ele, sem demonstrar maior int eresse pela saúde do casal. Lucrécia conhecia muito sobre o poder curativo das ervas. Sua mãe l he ensinara algumas receitas que ela aprimorava. com elas vinha cuidando de si e do esposo, pois já desconfiava que o problema da jovem fosse sério. Não esperou pela confirmação do médico. Antecipou-se, buscando na natureza toda a proteçã o que conhecia. Doutor Francisco terminou seu exame, deu o remédio que trouxera consigo e disse, ao sair: - Bom, é tudo que posso oferecer. Continuem tentando fazer a febre bai xar. - Vou cuidar dela, doutor, e estou certa de que irá melhorar. O médico sorriu ironicamente, sem dizer nada, e partiu. Lucrécia mostrou-se animada:

40 RENASCER. DA ESPERANÇA . -- Ela vai ficar boa, Jairo, sei que vai. -- Você está obstinada com essa idéia, não está? - É evidente que essa jovem precisa ser auxiliada. Não aprendemos que devemos ajudar aqueles que necessitam? Não estamos aprendendo que a ca ridade e a fraternidade são práticas que temos de aplicar no nosso cotidiano? Então, homem! Você é o primeiro a defender isso em nossas reuniões. E na hora em que a oportu nidade aparece, fica em dúvida? Não podemos agir assim, Jairo. Se vemos alguém sofrendo, e está ao nosso alcance algo fazer em seu socorro, por que negar? - Neste caso pode ser perigoso. -Jairo, ser cristão é de certa forma viver em perigo; e ser espírita, entã o, nem se fale! - Baixe a voz que o médico ainda pode estar por perto. - Não, ele já está longe - disse Lucrécia, olhando pela porta. Jairo pros seguiu: - Tenho conversado com algumas pessoas sobre o caso. Ela está muito encrencada. Puxando uma cadeira para junto da cama de Emilie, a mulher indagou:

- É mesmo? E o que falam sobre ela? - Foi pega tentando envenenar o marido e a filha, a única filha. - Cíntia? - Sim, parece que o nome é esse. - Mas têm certeza de que ela estava tentando envenená-los? - Ela havia colocado veneno no vinho e no prato que ia servir ao mari do e também no refresco que daria à filha. - E como descobriram? - Um pouco antes de cearem, chegaram uns parentes, junto com um méd ico... -- Com um médico?

41 Lucius l SANDRA CARNEIRO - E. - E como eles- sabiam? - Não sei. Parece que estavam desconfiados e a pegaram em flagrant e. Não havia como negar, eles tinham provas: como o marido não acreditou, levaram a bebida a um laboratório e deram a um animal de pesquisas, que morreu horas depoi s de ingerir algumas doses. Continha veneno, efetivamente. - Meu Deus, que coisa! E por que ela faria isso? - Parece que era uma pessoa estranha. Dizem que era adoentada, e que o melhor seria interná-la para tratamento. - E ela, concordou? - Não teve escolha. Coube ao marido decidir: ou a internação em clín ica para doentes mentais ou a prisão comum. - Pobre Emilie... - Pobre do marido e da filha, Lucrécia. É o que estou tentando lhe di zer. Essa jovem está doente, mas doente da cabeça, e talvez o melhor fosse le vá-la de volta ao lugar de onde saiu. Lucrécia meditou por instantes e então respondeu: -Jairo, esperemo s que melhore. Quando recobrar a consciência, estudaremos atentamente o se u comportamento; se acharmos alguma coisa inadequada, então concordo com você em levá-la de volta. Está bem assim? Não lhe parece justo darmos a ela uma chance? Jairo fitou bem os brilhantes e negros olhos da esposa e perguntou: - E se ela for realmente louca? - Está muito fraca para fazer qualquer coisa que nos prejudique. Se agirmos com atenção e cautela, dado seu estado, nada de mal poderá fazer a n enhum de nós. E não discutiremos mais esse assunto até ela melhorar. O que acha? Sem poder discordar da esposa, Jairo consentiu, afinal. A cada pequeno progresso, Lucrécia ficava satisfeita e en-

42 RENASCER DA ESPERANÇA tusiasmada. Dedicava-se agora à jovem Emilie com tanto empenho como se fo sse sua própria filha. E aos poucos, gradativamente, desfrutando seu desv elado carinho, a jovem passou a apresentar indícios de melhora. Após dias de intensos cuid ados, a febre diminuiu. Para Lucrécia aquilo era o maior sinal de que preci sava. Já não tinha dúvida de que Emilie iria se recuperar. Naquela manhã, em especial, ao verificar que a febre quase desapar ecera, animou-se ainda mais. Os remédios estavam começando a fazer efeito. Porém, acima dos medicamentos estavam o amor e a dedicação de Lucrécia, bem como a ora ção e a leitura do Novo Testamento, que ela fazia três vezes ao dia, pedi ndo a proteção de Deus para aquela vida. A fé e a determinação daquela mulher estavam se ndo fundamentais na recuperação espiritual de Emilie. Enquanto orava com carinho e desvelo, luzes suaves fluíam de seu co ração, envolvendo a mente e o corpo de Emilie, que, enredado por densas e p esadas energias, ia sendo beneficiado por aquelas emanações sutis. Embora ainda aflita e ag itada, quando Lucrécia orava a jovem experimentava alívio momentâneo, o qu e a fortalecia mais e mais.

43 LUCIUS l SANDRA CARNEIRO Capítulo Cinco

A muitos quilômetros dali, Cíntia custava a dormir, com imensa s audade da mãe. Não lhe haviam dito que Emilie fugjra da clínica e, embora c ontasse apenas doze anos, estava atenta a tudo o que se passava. Mesmo sem saber da fuga, sentia-se estranhamente preocupada. Rolou na cama e antes de o sol nascer já estava de pé. Foi com a tia que comentou, à mesa do café, a dificuldade de dormir. Filomena desconversou, autoritária: - Cíntia, sua mãe não está bem, é natural que você se preocupe. - Mas estou muito apreensiva. Gostaria de vê-la. - Nem pensar. Sabe que não pode! Não admitem crianças naquele lugar ! - Não sou mais criança, tia. E estou com saudade dela! - Sabe que seu pai não vai deixar. Sua mãe está doente, Cíntia. Quan do ela melhorar, quem sabe? - Minha mãe não está doente! - É claro que está, ora essa! Quem é você, fedelha, mal saída das fral das, para saber de alguma coisa? Seu pai jamais 45 concordaria com colocá-la no hospí... naquele lugar, se ela não precisasse de ajuda. - Tenho certeza de que ela não está doente, tia Filomena. Vocês vão v er... - Cíntia afastou-se da mesa chorando e foi para o grande pátio que cont omava a mansão. Quando saía, Fernando entrou e sentou-se, interrogando Filomena: - O que se passa? - Deixe-a. Fiquemos de olho. Precisamos saber se a filha não puxou à mãe. - Que idéia! Ela é uma menina saudável! - Todos pensávamos que Emilie também fosse, não se lembra? E olh e agora. Que vergonha! Uma louca, uma bruxa em nossa família! Precisamos manter Cíntia longe dela. Foi o que o bispo nos pediu. Mais que isso: disse que é fundamental p ara toda a família. Não devemos sequer visitá-la. Ele foi muito claro. Se d eixarmos que Cíntia a veja, sofreremos as conseqüências. Talvez tenhamos de internar as duas! Fernando aceitou o chá que a prima lhe oferecia e a repreendeu: - Parece esquecer que Ricardo é seu irmão e está sofrendo. - E daí? Ele vai encontrar outra mulher. E espero que dessa vez esc olha a pessoa certa, e não uma jovenzinha francesa com idéias extravagantes . Uma moça daqui mesmo de Barcelona, de família tradicional e com profundas convicçõ es católicas, será muito mais adequada para Ricardo. E melhor que tudo te nha acontecido agora do que mais tarde; assim ele tem tempo para reconstruir a própria vid a. E foi providencial que tivessem uma única filha. Quando se casar outra v ez, meu irmão poderá encher a casa dos filhos desse novo casamento e pronto! Não se lembr ará mais de Emilie, nem quando olhar a primeira filha - que, aliás, a cada dia se parece mais com a mãe! 46 RENASCER DA ESPERANÇA

-- Não acho as coisas tão simples. Ele tenta disfarçar, especialment e na presença da filha, mas está cada vez mais calado e amargurado. -- Melhor assim. Ricardo tem mesmo de refletir para dar mo mais acer tado à vida. Deus nos livre, Fernando, de ele criar mais problemas para noss a família! Meus pais morreriam de desgosto. Fernando sorveu já em pé o último gole de seu chá e despediu-se, apre ssado: Preciso ir, tenho muito que fazer. Volto mais tarde para conversarmos com calma. Beijou Filomena na testa e, sem esperar por qualquer comentário, saiu depressa. Após longa caminhada, Cíntia se sentou sob frondoso arvoredo. Eram oliveiras antigas que se amontoavam nos limites do jardim da mansão. Os d ias ainda estavam menos claros naquele final de inverno e, por causa dos rigores da estação, C íntia não podia se refazer ao sol como lhe dava tanto prazer. Aquela seria a primeira primavera sem a presença da mãe. A esse pensamento, a menina baixou a c abeça e chorou dolorosamente. Na mansão luxuosa e confortável, a agitação prosseguia. Filomena c omeçava a preparar a festa tradicional que a família promovia há muito tem po. Nela se congregavam e confraternizavam a poderosa família de dom Felipe e dona Isabel de Valen ça e os mais ilustres e influentes membros e autoridades da Igreja Católic a que vinham de toda a Espanha. Os fortes elos que uniam aquela família e a Igreja se for taleciam através de várias gerações e o encontro entre elas era sempre motiv o de orgulho e celebração. Mesmo parentes que haviam fixado residência em países dista ntes faziam questão absoluta de comparecer à festa, que se realizava anua lmente. Aquela era uma 47 Lucius \ SANDRA CARNEIRO oportunidade em que a força política dos Valença se legitimava Pessoas de prestígio na sociedade eram convidadas, e a Igreja aproveitava o momento p ara distribuir bênçãos e angariar a colaboração de todos. Com força política e o apoio da Igreja, a família se mantinha podero sa. Fernando, primo de Filomena e de Ricardo havia ingressado no ministério clerical e vinha rapidamente se destacando. O tio depositava nele grande expectativa . Dom Felipe desejara muito que alguém da própria família se tomasse u m servidor da Igreja. Ricardo era afeito às questões religiosas, gostava dem ais das missas, às quais comparecia invariavelmente. Fora uma surpresa quando ele aprese ntara! Emilie à família, e uma profunda decepção. Ninguém esperava! que se envolvesse com uma jovem tão diferente deles. Filomena ainda se lembrava do desconforto de todos! quando Ricardo a parecera com Emilie, por ocasião da festal anual. E para agravar ela era fra ncesa: na família era consenso! que as moças francesas eram muito progressistas. E is so não agradava de forma alguma aos pais de Ricardo, orgulhosos de sua esti rpe aristocrática e conservadora. Quando Ricardo anunciara o casamento, estavam quase acostumados co m a idéia de que ele realmente não se tomaria padre. A despeito disso, a e scolha daquela moça continuava sendo motivo de viva contrariedade. Apesar de Emilie ter boa educação e se esforçar por ser amável com todos, não confiavam nela. Tudo acontecera muito depressa e não houvera meio de impedir o cas amento. No entanto, todos observavam avidamente as atitudes da moça, sua c onduta, à procura de uma palavra, um gesto, uma frase que pudesse comprometê-la perante os rigorosos padrões da família do marido. Aparentavam tolerância, mas tan to Filomena como Isabel, ao menor deslize, prodigalizavam-lhe reprimendas e censuras.

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Filomena relembrava as inúmeras vezes em que ela e a mãe haviam c onversado sobre a cunhada, quando Isabel, descendo as escadas, a encontro u imersa em pensamentos: - Bom dia, Filomena. Ermelinda, pode servir-me o desjejum! - Mamãe, até que enfim se levantou! Estava à sua espera. Temos muito que decidir para a festa. - Conversava exatamente sobre isso com seu pai. Deveremos to mar alguns cuidados em especial, com referência à situação daquela... você sa be. - Nem precisa dizer. Algum sinal dela? - Ainda não. E Cíntia, onde está? - Caminhando lá fora. - Nesse tempo? - Sabe como é essa menina, mamãe. - Temos de ficar atentas, Filomena. Ela me parece esquisita, como a mã e. - É uma menina... - Mas é filha dela e pode ter algum traço, alguma semelhança. Filomen a fez o sinal da cruz e afirmou, dissimulando o relativo prazer que sentia ao ouvir os receios da mãe: - Deus me livre, mãe. Ricardo não poderia aceitar isso. Você sabe que e le adora a filha. - Ele sabe que está sendo punido por Deus. Jamais deveria ter desisti do de ser padre. Agora, minha filha, está sofrendo o castigo do Altíssimo, po rque se afastou do caminho. - Nossa! Também não é assim. Ricardo é um homem de bem. Talvez n ão tivesse mesmo vocação, quem sabe... - Quem sabe? Justamente. Nunca saberemos. Sem pensar duas vezes, ele escolheu outro caminho. Agora agüente. Mas vamos esquecer um pouco os pequenos dissabores. Quanto ao caso dessa moça, eu já sei que medidas tomar. - De toda forma, acho que seria bom intensificar a busca.

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- Sem dúvida. Já pedi a seu pai que ponha os empregados em alerta. Ela pode aparecer em qualquer lugar, a qualquer momento. - Cíntia falou novamente nela esta manhã. - Não se preocupe, Filomena. Se a menina nos der trabalho, vou conv encer Ricardo a enviá-la para um internato. Há ótimas opções em Madri. Vai para lá e só retoma quando moça ou... melhor ainda...nem retoma. Quem sabe se tomaria u ma boa freira... Não seria interessante? Ricardo se redime entregando a fi lha para o serviço à Igreja, o que acha? - É uma ótima idéia, mãe. Acho que Cíntia se adaptaria bem. É uma me nina sensível. - Sensível demais, talvez. Bem, isso não importa. Se convencer Ricard o, ela não terá alternativa. Quem manda, afinal? Filomena sorriu contrafeita. Ainda bem que a mãe não a obrigara ao se rviço religioso. Embora gostasse de ir à igreja e apreciasse a religião em qu e nascera, jamais desejara ser freira. Sempre pensara em se casar, ter a própria famíli a. Como a mãe era autoritária e temida, Filomena nunca se opunha a ela; ao c ontrário, buscava de todas as formas corresponder-lhe aos menores desejos. Conhece ndo bem suas reações quando contrariada, não queria de maneira alguma de safiá-la. Isabel se levantou, determinada. - Vou falar com Felipe hoje mesmo sobre esse assunto. Parece-me u m excelente modo de proteger a menina de sua possível herança. E vou enco ntrar um meio de convencer Ricardo. - E se ele não quiser ficar longe da filha? - Acharemos um jeito de dobrá-lo, não é mesmo, Filomena? Nós have remos de convencê-lo, como já o fizemos antes. - Sem dúvida... Isabel saiu da sala pouco antes de Cíntia voltar do jardim.

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--- Está frio lá fora, Cíntia? --- Está, tia Filomena. - E em que pensava? - Em minha mãe. - Ela está num bom lugar, Cíntia. Vai ser tratada e quando melhorar r etomará ao nosso convívio. Já disse isso muitas vezes. - É que eu queria tanto vê-la... Papai não permite... Ninguém me deixa ver minha mãe... - Cíntia, você sabe que deve obedecer, não sabe? A menina balançou a cabeça afirmativamente. - Sua mãe vai ficar bem. Agora esqueça um pouco dela e pense em seu pai, que também precisa de você! - Tem razão, tia. Onde ele está? - Não chegou ainda, mas por certo vai ficar triste ao vê-la assim, cho rosa. Vamos mudar essa cara! Vá se lavar e pare de chorar. Logo ele estará aqu i. Um pouco mais animada, a menina subiu as escadas para seu quarto, o bedecendo à tia. Filomena, observando-a, suspirou fundo e disse: - Pobrezinha... Ricardo finalmente chegou, trazendo correspondências e carregado de pacotes. - Já há cartas de confirmação, você acredita? - Que ótimo, Ricardo. Contudo, ainda vejo uma tristeza em seu olhar... - O que você queria? Que estivesse feliz? •- Ao menos conformado. Melhor que seja assim... - Alguma notícia de Em... Filomena antecipou-se à menção do nome da cunhada: - Nenhuma. Continuam procurando, mas até agora nada, ao menos de q ue tenhamos notícia. Ricardo suspirou tentando dissimular a aflição.

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- Ora, Ricardo, pense em sua filha. Ela precisa de você. - Eu sei. Como ela está? - Abatida também. Vejo em você o mesmo olhar magoado da menina. A cho que essa mulher enfeitiçou vocês... - Ora, Filomena, cale-se! Não sabe o que está dizendo. Emilie está.. . doente! Por causa disso Cíntia e eu fomos privados de sua companhia. Nossa família está desfeita e você ainda não compreende minha tristeza? - Mas você concordou que era melhor para ela. - E concordo. Quem está doente precisa se tratar. E ela está gravemen te doente. Jamais faria o que fez, se não estivesse Não creio que tentasse aq uilo em sã consciência. - Será que você a conhecia direito? Talvez tenha sido sempre assim. - Não acredito. Vivemos por um bom tempo com alegria e felicidade. Como poderia ser doente sem que eu percebesse algum sinal? - Vai ver então que é mesmo de família, Ricardo. Aquela avó materna. .. você a conheceu? - Não. - Vai ver o problema aparece com o tempo. Ricardo puxou pesada cadei ra, forrada de seda fina e elegante, e se sentou desolado. - Jamais imaginaria que ela pudesse fazer aquilo... Se vocês não me socorressem, teria morrido. Como poderia supor que ela fosse capaz de coloca r veneno em minha comida e na bebida de Cíntia? Jamais! Mesmo quando vocês pedir am que não comesse, gritando comigo, não pude acreditar. Só depois que o médico constatou a presença do veneno foi que admiti o que ela fez. E a reação que ela teve, e sbravejando e berrando como louca... Estava doente... ficou doente... sei lá. .. Filomena se levantou e abraçou o irmão.

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-- Vamos, Ricardo, anime-se! Ainda bem que você e Cíntia estão vi vos. E se não conseguíssemos chegar a tempo? Vocês noderiam estar mortos. Felizmente tudo acabou bem! Nem tudo, Filomena, nem tudo. Perdi minha esposa. - Antes ela do que a vida. Mulher você arranja outra; há muitas moças que o apreciam e adorariam tê-lo como esposo. Já a vida... - Ainda estou muito machucado. Não consigo pensar em ninguém. - Isso vai passar, Ricardo, não se preocupe. O importante é que ambo s queiram esquecer o passado, aceitando o que aconteceu. Melhor que ela fiqu e internada, sendo tratada. - Como, se fugiu? - Eles a encontrarão, não tenha dúvida. Sempre os encontram. Todos os loucos teimam em negar a loucura e gostam de fugir de sanatórios e casas de recuperação. Mas eles já estão acostumados e os encontram onde quer que se escondam... As fotografias dela estão espalhadas por toda parte. Não conseguirá ir mui to longe. Ricardo suspirou, pensativo. Teve a atenção atraída pela filha, que a s orrir descia a escada correndo, alegre por vê-lo: - Papito! Que bom que chegou! Estava com saudade. - Eu também, minha menina! Vim o mais depressa que pude! - Não gosto de ficar longe de você, pai! - Nem eu, minha filha, mas tinha assuntos urgentes para resolver. - E tinha de ser você? O vovô não podia ter ido? - Ele tinha outras coisas a fazer. Mas agora não importa! Estou aqui, n ão estou? Cíntia se agarrou ao pescoço do pai, que a ergueu e girou no ar. Fi lomena contemplava a cena, calada, enciumada do profundo amor que os unia.

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Capítulo Seis

ilomena se encontrava na biblioteca, distraída com o planejamento da festa, quando Fernando entrou pisando firme. Fechou a porta com força atrás de si: - Por que não fui informado da fuga daquela doida? - Calma, Fernando, está tudo certo. - Como, Filomena? Como tudo certo? Se essa mulher encontra alguém que acredite nela, nosso plano pode ficar comprometido! - Acalme-se, vamos. Sente-se. Quer beber algo? Fernando sentou-se, arrumando cuidadosamente a batina, para não amassar. Filomena finalizou o que preparava, fechou o caderno onde anotava a s providências que faltavam e calmamente dirigiu-se até o primo, servindo-l he uma xícara de chá. - Tome, relaxe. - Vocês deveriam ter me avisado antes. Eu saberia lidar com a questão.

- Não se preocupe, Fernando; papai já adotou todas as medidas cabíve is. Temos toda a polícia atrás dela. Vamos achá-la, não se preocupe.

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- Mas já faz dias que ela fugiu e até agora nada! Precisamos localiz á-la sem demora. Estou preocupado, sim, Filomena. - Já disse que não há motivo para isso. - Ela deve estar escondida em algum lugar. Deveríamos ser mais rápidos . Solta ela representa perigo... - Olhe, Fernando, já pusemos a polícia atrás dela. Todos os padres, d e todos os cantos deste país, sabem a respeito da fuga, tratamos de comunica r a todas as dioceses. Todos estão informados. - Entretanto, nem todos conhecem os detalhes... - Não importa, sabem que devem obedecer à Santa l Madre Igreja. Se a moça aparecer em qualquer lugar, seremos notificados. Além disso, Ferna ndo, ninguém lhe dará crédito. Ela não deve estar em situação de ter alguma atenção. Af inal, conseguimos dar um destaque abrangente ao ocorrido. Todos sabem. Tod os os jornais noticiaram, inclusive fora do país. Em Paris, por exemplo, sei que o caso f oi amplamente divulgado. Quem seria tolo o suficiente para acobertar uma as sassina desequilibrada, uma bruxa? Diga-me! Por aqui, todos ainda falam do caso. Ela não terá chan ce, pode sossegar. Quanto a isso, estou totalmente tranqüila. Agora, vamos a assuntos mais produtivos. Como estão os comentários sobre a festa deste ano? - Filomena, você não tem jeito. Só pensa nessa festa! - E há algo melhor para pensar? É o acontecimento do ano. Todos esta rão aqui. Além do mais, papai fica satisfeito comigo por organizar a festa c om perfeição em todos os detalhes. É bom para que ele perceba o quanto sou importante e necessária. - Você e esse ciúme do seu irmão... - Não é ciúme, não, Fernando, é apenas um desejo incontrolável de...

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-- De... -- De ser mais útil - completou ela, retomando ao caderno. -- Estão animados para o evento. -- E pensa que todos virão? -- Não sei, estou fazendo o que sempre faço: convidando com muita antecedência e insistindo para que compareçam. Mas não sei se todos virão. Possivelmente este ano muitos faltem. Filomena interrompeu suas anotações e fitou o primo: -- Por quê? Todos saem daqui tão satisfeitos! - Muitos estão preocupados com esse movimento que parece alastrar- se como uma praga. - Ora, não estão sendo tomadas medidas enérgicas? Não está sendo fe ito tudo para impedir que essa aberração ganhe mais adeptos? - E apesar disso, parece uma verdadeira praga: continua se espalhan do e conquistando novos adeptos. Especialmente as pessoas cultas estão come çando a defender essas idéias absurdas. - E acha que por causa disso alguns não virão? Ainda falta tanto tempo. .. - Alguns bispos estão extremamente apreensivos com a propagação d as novas idéias, você os conhece bem. Não vão admitir que aumente o númer o de adeptos aqui na Espanha. - E na França, como anda esse movimento? - Crescendo, também. - E as autoridades da Igreja francesa, não fazem nada? -- Lá, como aqu i, a Igreja vem se dedicando a conter as idéias espíritas; contudo, parece que lá as novidades ganham força mais depressa. - Do mesmo modo que crescem haverão de desaparecer, por certo. São idéias absurdas que não resistirão por muito tempo!

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- Não sei, Filomena. Esse movimento cresce muito rápido. Preocupo-m e com nosso povo, que é crente, porém aprecia o sobrenatural, o fantástico. .. - Provaremos que são todos do diabo, como diz Sua Eminência o bisp o dom Antônio. Vamos ajudar a Igreja a desmoralizar essa gente que gosta d e mentiras, de fanatismos... Faremos isso por bem... ou por mal! Fernando ficou quieto por alguns instantes, perdido em seus pensam entos. Filomena aproximou-se e, colocando as mãos sobre seus ombros, bateu neles com gentileza: - Vamos, Fernando, não se atormente tanto. Afinal, a Igreja é sólida e há de vencer essas aberrações sem fundamento... Fernando ergueu a cabeça e fitou a prima. Seus olhos tinham um estra nho brilho quando disse: - Uma forma de ajudar a Igreja é achar aquela maluca. Já disse e repito : temos de fazer isso! Filomena afastou-se, parecendo entediada com a insistência do rapaz: - Está bem, Fernando. vou pensar se há algo mais que possa ser feito . Papai está cuidando de todas as providências. Falou com todos que conhece para que tragam notícias dela. Não vejo por que nos inquietarmos mais com esse caso; ainda assim, se lhe agrada, vou pensar em alguma outra coisa que nos ajude a localizá-la. Filomena encarou o primo, que continuava pensativo como a buscar al ternativas, levantou-se de um salto e disse entusiasmada, abraçando-se ao p escoço dele e beijando-lhe a face: - Pronto! Já tenho uma idéia brilhante, Fernando! Ele afastou-a, segurando-lhe os ombros com as duas mãos e pediu: - Conte logo o que pensou. Sua última idéia foi bastante audaciosa!

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- Não foi só minha; foi principalmente de minha mãe. É ela que tem i déias espetaculares. Mas acho que esta poderá ajudar. - Então fale logo. Filomena soltou-se e andou vagarosamente em volta do primo, depois d isse: - E o que ganho se contribuir ainda mais? Fernando olhou-a fixamente ao afirmar: - A Igreja lhe ficará ainda mais agradecida. - Somente a Igreja? Fernando segurou delicadamente as mãos da prima. Levou uma delas à boca, beijando-a com suavidade, enquanto seus olhos faiscavam no anseio de abraçá-la e beijá-la. Porém, ele apenas a fitou e respondeu: - Uma vez mais lhe serei profundamente agradecido. Comunicarei seus esforços a titio e a dom Antônio. Filomena puxou a mão com rispidez e perguntou, irritada: - Só isso? - As coisas vão se somando, minha prima, vão se somando... Mas não d isse qual é sua idéia. Quero ouvi-la antes que tome qualquer atitude. - Vou sugerir a papai que dê uma recompensa por informações sobre o paradeiro de Emilie. Quanto mais exata a informação, maior o valor da re compensa. Assim, creio que muito em breve a levaremos de volta ao hospício. - Brilhante, priminha. Brilhante! A idéia é fantástica. Crê que tio Fel ipe verá algum problema? - Não, absolutamente. Pode ser até que já tenha ele próprio tido ess a idéia. Como disse, está empenhado em localizá-la. Caso atoda não tenha pen sado nisso, acho que gostará da sugestão. Fernando aproximou-se da prima, que agora, junto à grande janela da biblioteca, observava os extensos jardins da mansão. Abraçou-a pelas costas , dizendo:

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- Nunca irei esquecer. Você me ajudou muito hoje, obrigado. Sem sequ er dar a Filomena tempo de se virar, Fernando já abria a porta da biblioteca . - Espere, aonde vai? - Depois da sua idéia brilhante para resolvermos o problema, voltare i às minhas tarefas. Tenho muito a fazer e vou dizer ao bispo que achamos um a solução. Eles estão preocupados com outras coisas e quero estar perto para auxiliar. Antes que Filomena pudesse detê-lo, Fernando havia saído pela porta principal da mansão. Enquanto ele se despedia, Cíntia apareceu descendo as escadas. com seu entusiasmo infantil, gritou: - Tio Fernando! Ele abraçou com carinho a filha do primo. - Como vai a minha mocinha? - Estou bem. Já começaram os preparativos para a festa? - É claro que sim! Filomena alcançou os dois e perguntou, aborrecida: - Por que está interessada na festa, menina? - Ora, é uma festa importante, tia. - E quem disse que você irá participar dela? Não é festa para crianças. - Meu pai disse que posso... - Terei uma conversinha com seu pai. Não acho conveniente... Ferna ndo interrompeu-a bruscamente: - Não é hora de falarmos nisso. Ainda faltam alguns meses para a fest a. Até lá, veremos; não é, Filomena? Sem poder resistir ao olhar firme que o primo lhe dirigia, concordou: - É claro, temos tempo. Veremos. Ele se despediu e saiu apressado. Foi diretamente para a paróquia ond e trabalhava. Sua vocação religiosa fora incentivada

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desde cedo. Era uma tradição antiga da família que a cada geração um jovem fosse destinado aos serviços da Igreja. Assim, geração após geração, um d e seus jovens era preparado para isso. Fernando gostava de ir à missa e era o primeiro a estar pronto, na po rta, esperando a família. Nunca demonstrava resistência ou dificuldade para c aptar os ensinamentos que recebia. Tinha interesse genuíno pelos assuntos da religi ão. Ao chegar à adolescência, sua indicação fora natural. Todos já esperav am que se tomasse um servidor da Igreja. Mas, ao contrário do que pensavam, quando recebera a notícia do pai de Filomena ele não ficara contente. Embora o atraíssem s obremaneira os temas religiosos, não desejava ser padre. Em momento algum isso lhe passa ra pela mente. Respeitava e admirava o trabalho dos sacerdotes, apreciava -lhes a companhia e as longas conversas de que participava na casa do tio; já ser padre era o utra coisa. Assim, a indicação o deixara desesperado. Não queria de modo al gum, tinha outros planos para sua vida: desejava se casar, ter filhos - ele adorava crian ças -, pretendia formar seu próprio lar; além do mais, sentia forte e secreta paixão por Filomena, que desde adolescente lhe retribuía o afeto e as intenções. Apesar de tudo, ele não pudera recusar. A pressão da família fora in tensa demais e acabara convencido de que possuía a vocação sacerdotal. Ingre ssara no seminário e acabara envolvido por completo. Em decorrência da inclinação q ue desde cedo revelara, fora facilmente cativado pelos estudos e absorvido pelas questões da Igreja; e finalmente se entregara àquele ministério, com especial interes se pelas crianças desamparadas. Fernando era sincero, e abraçara a fé e o se rviço a Deus buscando dar o melhor de si. Ele regressava para a paróquia pensativo. Estava se preparando para re forçar as fileiras de padres que, enviados ao 61 LUCIUS I SANDRA CARNEIRO continente ameriicano, expandiam a força da Igreja no Novo Mundo. Enquan to esperava o momento de partir, Fernando se dedicava zeloso a suas funç ões, auxiliando o pároco local e o bispo de Barcelona. No caminho, não podia deixar de se lembrar de Cíntia, pulando em se us ombros. Ainda sentia o abraço apertado e que ela lhe dera. Aq uilo o incomodava. Sabia que a menina sofria com a separação da mãe. A despeito de ter decidi do colaborar com a Igreja em tudo, e de saber que o que fizera era um bem para muitos, a dor que causara à menina lhe oprimia o coração. Com a mãe não se preocup ava. Acreditava que ela constituía mesmo um perigo para o prestígio da fam ília até para a própria filha; então não o comovia saber que fora um dos responsáveis pe lo que lhe acontecera. Nem mesmo o sofrimento do primo o fazia sentir culp a. Ver Cíntia entristecida era o que mais o tocava. Fernando prosseguia meditando. Ricardo havia contribuído para aque la sjtuação. Se desse ouvidos à família e escolhesse acertadamente procura ndo uma moça com a mesma formação rigorosa, aquilo não teria acontecido. Ele não sentia pena do primo. Sua única preocupação era Cíntia. Sabia que a tia e a prim a não eram exatamente um exemplo de bondade e poderiam fazer a menina sofrer. Ao entrar na paróquia, permanecia com o pensamento em Cíntia. Ven do-o chegar, o padre interrompeu sua reflexão e perguntou: -- E então alguma notícia? -- Até o momento, não. -- Nada? Como é possível? -- Tomaremos outras providências. Essa moça há de aparecer, é só u ma questão de tempo. Filomena me garantiu que o tio está empenhado em loca lizá-la e que, de toda forma, ela 62 RENASCER DA ESPERAMÇA

irá sugerir que se pague uma recompensa a quem vier com informações. - É uma excelente idéia. - Também me pareceu boa. Fiquei mais tranqüilo. - Ainda me parece preocupado. Por quê? - Cíntia. - A menina? - É. Fico pensando no quanto deve estar sofrendo sem a mãe. Elas era m muito apegadas. - Por isso mesmo você deveria estar mais aliviado. A mãe seria, ind iscutivelmente, má influência para a menina. Não percebe, Fernando? Já conv ersamos bastante a respeito, quando decidimos agir. - Eu sei bem, e fico repetindo isso para mim mesmo toda vez que me pego perturbado por causa de Cíntia. Estou convencido de que a mãe acabaria por lhe fazer mal. No entanto, é inevitável. Vejo naqueles olhinhos a tristeza e sei que s ente muita saudade. Por diversas vezes já a vi chorando escondida de todos. Além disso, Filomena e minha tia têm afazeres demais para dar-lhe atenção. Ela fica s ozinha, sem ninguém com quem conversar. E Ricardo, embora aceite o que ho uve - não teve alternativa -, está desnorteado. Precisa de tempo para se acostumar com a no va situação. Procura estar com a filha, mas sua dor também é grande e ele se isola, viajando com freqüência. - Por que então você não se aproxima mais dela? - Como? - Leve-a para passear, conviva mais com a menina. Se está tão desej oso de vê-la receber carinho e atenção, por que não lhe dedica algum tempo extra? Além do mais, Fernando, não será sacrifício. Sei que gosta muito de crianças. - Acontece que meu tempo é muito restrito, quase nada restando para la zer e diversão.

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O padre refletiu um pouco e disse: - E por que não a leva quando for ao orfanato? Ela até poderia ajuda r. Não disse que é uma menina meiga, doce? Então, fará bem às outras criança s. E você poderá estar mais com ela. Um leve sorriso surgiu no rosto de Fernando. A idéia lhe agradava. - Acha que não haverá risco em levá-la comigo? Ela é muito jovem, menina ainda; será que não se impressionará com os problemas? Digo, crianç as doentes, sem pai, sem mãe, abandonadas... E tantas outras histórias... Fernando olhou significativamente para o padre, que lhe retrucou sem h esitar: - Ora, Fernando, das intimidades dos problemas ela não precisa parti cipar. Dos problemas em geral é até bom que participe, assim vai conhecendo a realidade da vida e aprende, desde cedo, a valorÍ2ar o que tem. - Será que Ricardo concordará? - E por que não? Você não acabou de dizer que ele passa pouco temp o com a menina? - É, mas ela fica em casa com a avó e a tia. O pároco bateu levemente em seu ombro e disse: - Se houver resistência, conversarei com ele. Encontrarei um modo de convencê-lo. Fernando apenas o fitou e se levantou, dirigindo-se ao corredor que levava aos fundos da paróquia. Sumiu corredor adentro, deixando o padre com seus fiéis; era hora de confissões e a primeira senhora chegava. Fernando continuou matutando na sugestão de levar Cíntia consigo pa ra o trabalho, no orfanato que ele montara com os recursos da herança deixa da pelo pai. Com o que recebera, conseguira comprar uma casa confortável onde recebia c rianças abandonadas pelos pais e outras que vinham de relações ilíci-

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tas, rejeitadas pela família ou pela sociedade. Assim, muitas jovens davam à luz naquele lugar, em um pequeno cômodo que ele construíra exclusivamen te para isso. Era afastado da casa, de modo a que as crianças não percebessem o momento do parto. Ali, naquela pequena sala, inúmeras mulheres de famílias influen tes traziam seus filhos ao mundo, e por força das circunstâncias ou de imposições sociais os deixavam no orfanato. A idéia de estar mais próximo da menina o alegrava. Daquela noite, r efletiu ainda uma vez sobre a solução aconselhada e, depois de decidido a ad otá-la, voltou a concentrar a atenção no novo movimento que se expandia da França e com eçava penetrar na Espanha. Leu no jornal sobre os últimos acontecimentos e em determinado momento se levantou, indignado. Pegou o jornal e foi até o quarto do pároco . Bateu na porta de leve: - Está acordado, padre? - Sim, estou acabando de preparar o sermão de amanhã - ele responde u, ao mesmo tempo em que abria a porta. - Leu esta notícia? O padre levou alguns instantes lendo o jornal, e então reagiu furioso: - Isso é um absurdo! Um verdadeiro absurdo. Temos de fazer algo, to mar providências! Esses hereges estão ficando atrevidos! - O que vamos fazer? Primeiro falar com o bispo. Tenho uma idéia, mas preciso conversar com ele. Sei que conhece bem o dono do jornal. Tem influência. Vamos ver. -- Precisamos ser cautelosos, padre. Nestes novos tempos, as pessoas es tão... - As pessoas não estão nada! O povo continua crente e fiel. São alguns hereges que vêm trazendo essas idéias, essas crendi-

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ces perigosas, divulgando-as como constatações científicas! É um absurdo ! Comopodem chamar isso de ciência? - Nem posso imaginar. Após pensar um pouco, o padre falou em tom quase cochichado: - Como diz dom Antônio, isso é mais uma investida do demônio contra nossa fé! E fitando Fernando, aduziu: - Pode deixar a notícia comigo? Quero mostrá-la ao bispo. - Claro, padre. Continuaram ponderando os perigos que o movimento espírita, que se e spalhava, representaria para eles. Já era tarde quando Fernando voltou para o quarto.

Capítulo Sete

Em Barcelona, situada a noroeste da Espanha, as opiniões eram contr aditórias. Havia os que aceitavam os conceitos espíritas e os apoiavam acal oradamente. Por causa da proximidade da fronteira com o sul da França, era fácil rece ber notícias do movimento, que então se propagava por todo o país. Muitos tentavam compreender os acontecimentos que envolviam as pesquisas espíritas, atingidos por inesp erado interesse. Os que mais prontamente, aceitavam a revelação das verdade s espirituais sentiam como se as esperassem há muito tempo. No entanto, o número de in imigos era igualmente enorme. E as discussões cresciam, fervorosas, em t omo do assunto. Miguel, um dos mais ativos e bem-sucedidos negociantes de Barcelona, era estudioso dos postulados espíritas e defensor do movimento. Para ele, o s fatos espíritas eram muito mais do que uma curiosidade ou mesmo uma nova filosofia; rec onhecera neles verdades inegáveis que respondiam aos mais profundos que stionamentos de sua alma. Vivia em Barcelona, mas viajava a Bilbao (onde possuía pequena prop riedade) com freqüência, quando cuidava dos negócios ligados à pesca e re via muitos amigos.

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Naquele dia, Jairo lá estava a fim de tratar, com negociantes da regi ão, das condições para venda de seu pescado. Bilbao, já naquela época, era um dos mais importantes portos da Espanha, por onde se escoava o farto e abundante pr oduto da pesca nas águas do Atlântico. Dessa vez, encontrou também Miguel : - Pois é, Miguel, estou às voltas com esse problema. - Se Lucrécia tem tanta certeza, deve ter razão, Jairo. - Eu sei, mas temo por nós dois. Você sabe que precisamos ter maiore s cuidados lá na vila. As pessoas não são instruídas como as que residem nas grandes cidades. Já fomos agredidos uma vez. Chamaram Lucrécia de bruxa e atirara m pedras em nossa casa. Tivemos de ficar alguns dias fora e saímos escond idos durante a noite. Recorda-se disso? - Sim, e como esqueceria? Vocês tiveram de se esconder até que as coisas se acalmassem. Lembro que enviei um de meus colaboradores de confia nça para tomar conta das suas coisas. Foram dias difíceis. - Então! O povo de lá é muito supersticioso e não consegue enxergar a realidade. - Paciência, meu irmão. O tempo vai mostrar a verdade a todos. O p rogresso não pode ser freado. Ele é como uma grande onda que se forma aind a em mar alto, fazendo sentir seus reflexos aqui na praia. Embora a mudança e a renovaçã o assustem o homem, ele acaba percebendo que é impossível conter a verdad e. - Por acreditar nisso, buscamos apaziguar aos poucos os ânimos de n ossos agressores, demonstrando através de nossas atitudes que só queremos o bem de todos. Foi e ainda é difícil. - Houve mais ataques como aquele? - Não, graças a Deus; ataques diretos, não. Entretanto, temos de ser cautelosos o tempo todo: cuidar do que falamos, de como agimos. E Lucrécia restringiu sua ajuda com as er-

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vas ao nosso pequeno grupo de estudos. Agora, oramos reservadamente, em nosso grupo ou em casa, sempre que alguém da comunidade necessita de a juda. Precisamos estar atentos. Sentimos como se houvesse sempre gente à espreita, esperando com etermos algo de errado para nos acusar. - E há muitos à espreita, meu irmão, muitos... Além de vizinhos, há as testemunhas invisíveis; e essas, sim, fazem maior diferença. Não se esque ça nunca disso, Jairo. - Entende por que me preocupo com a situação? O que será de nós se alguém descobrir que acobertamos uma assassina? - Pelo pouco que sei, ela não matou ninguém. - É verdade; mas e se não matou só porque não houve tempo hábil? At é onde sei, foi impedida de cometer o crime. Miguel, homem ponderado, que havia apresentado a nova doutrina a Ja iro e Lucrécia, pensou por alguns instantes e, olhando nos olhos do amigo, disse: - E se essa jovem tiver sido vítima de injúria, como você e Lucrécia? E se ela for inocente? - Como, Miguel? Quem faria uma coisa dessas? Inventar uma mentira, para quê? - Não sei, Jairo. Estou apenas raciocinando sobre o que você mesmo acabou de dizer. E se essa jovem for inocente? Se estiver sendo realmente c ometida alguma injustiça contra ela, como foi cometida contra vocês? Como se sentiria? - Ia querer ajudá-la! Isso não se faz! - Então acho que, apesar do perigo a que indiscutivelmente você e Lu crécia estão expostos, é preciso tentar compreender a situação. Tenho visto muitos amigos atacados e lnjustiçados como você e Lucrécia, apenas por expressarem simp atia pelo movimento espírita. - Quer dizer que continua acontecendo também em Barcelona?

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- Continua e se acentua. Poderosos opositores têm tramado às escond idas, tentando criar todo tipo de empecilho ao crescimento e à disseminação desse abençoado movimento. Muitos têm sido discriminados e perseguidos, em pleno século da s luzes e das idéias. Portanto, tenha um pouco de paciência. O objetivo de vocês é nobre e isso contará a favor dos irmãos. Jairo não respondeu. Estava preocupado, mas a possibilidade de a jov em ser vítima de algum tipo de perseguição sensibilizou-o mais do que todas as palavras da esposa. Permaneceu calado por instantes e depois mudou de assunto, fala ndo sobre o principal motivo que o levara à província. Os dois amigos passaram a tarde em animada conversa com outros neg ociantes sobre preços e condições para a pesca, canais de escoamento e téc nicas de conservação do pescado. Ao entardecer, depois de se despedirem dos demais, Jairo come ntou: - Miguel, você acha mesmo que é possível uma cilada preparada para Emilie? - E por que não? Sabe quão poderosa é a família à qual ela pertence? - Mais ou menos. - Os pais do marido são donos de metade da Espanha. - São tão poderosos assim? - Muito. Creio que mais do que possamos imaginar. Têm muita influên cia em todos os setores de nossa economia. Trata-se de família tradicional, que enriquece mais e mais à medida que o tempo passa. Além disso, eles têm estreita liga ção com a Igreja e já são famosos pelo apoio que, incondicionalmente, têm dado ao clero. Para você ter uma idéia, são eles que realizam aquela famosa festa. - Aquela festa gigantesca, que traz bispo até de Roma? - Exatamente, meu amigo. - Meu Deus...

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Seguiam em direção à casa de Miguel, onde Jairo se hospedava sempr e que ia a Bilbao, quando o primeiro comentou: -Jairo, gostaria de passar em uma livraria; você se importaria de me acompanhar antes de irmos para casa? - De forma alguma! Miguel sorriu para o amigo de longa data e foram para a pequena e a gradável livraria. Jairo cumprimentou com cordialidade o dono da loja, que os recebeu pessoalmente, mas se manteve retraído. Sentiu-se sem jeito. Embora aprecias se os livros, não sabia ler. Lucrécia era quem, com o pouco que sabia, lia para ambos. Jairo procurou se distrair folheando alguns exemplares, enquanto Mig uel conversava com o proprietário. Por fim, ele se despediu levando alguns l ivros. Ao saírem, Miguel entregou um pacote a Jairo, dizendo: - Este é para você e Lucrécia. - Obrigado por esse e pelos outros que nos mandou. Têm sido de grande valia. - Fico satisfeito! Não imagina como fico feliz em vê-los tão bem. S ou testemunha do quanto já sofreram, por isso me alegro muito quando os vej o progredindo. Jairo sorriu, agradecido. Miguel era para eles o protetor amigo que o s acolhera em um momento difícil. Ao fugir de Marrocos, sua terra natal, traziam somente o endereço de um primo que residia em Madri e que talvez os pudesse receber. Chegando , souberam que o primo se mudara para Barcelona. com recursos mínimos, suficientes apena s para que terminaria ali, precisaram seguir muito além e econom izaram até na comida. No final, depararam com a dura realidade: o primo não estava tampouco em Barcelona. Ninguém ouvira falar dele no endereço que lhes fora dado pelo senhorio da casa em Madri.

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Sem ter o que comer e sem nenhum recurso, Lucrécia e Jairo ficaram n a rua, em pequena viela, e tentaram achar trabalho. A dificuldade se agravav a dia a dia. Buscaram ajuda nas igrejas, mas o fato de serem mulçumanos complicava t udo. Sem alimento e sem trabalho, passaram a mendigar nas esquinas. Qua ndo estavam totalmente sem forças, a ponto de desistir de tudo, encontraram Miguel. Ele se aproxi mou como que atraído pelo casal maltrapilho que pedia esmolas. Ao invés de lhes dar alguma moeda e se afastar, como fazia a grande maioria, começou a conversar com eles. Ficou profundamente sensibilizado com sua história e naquele mesmo instante os tirou da rua, alojando-os em pequeno albergue próximo de sua casa. Depois, ajudo u Jairo a arranjar trabalho e aos poucos tudo começou a melhorar. Uma sólida amizade se estabeleceu entre eles. Passados alguns mese s, Miguel tomou conhecimento de que Lucrécia enfrentava outras dificuldade s: ela freqüentemente ouvia vozes e às vezes via pessoas mortas. Miguel, então, falou-lhes da Do utrina Espírita e de como seus ensinamentos esclareciam tais fenômenos. Pa rticiparam das primeiras reuniões de estudos espíritas, onde Lucrécia começou a compreen der o que se passava com ela e como poderia utilizar aquele dom em favor de outros. Mais tarde manifestaram o desejo de sair do albergue. Miguel lhes sug eriu que fossem para uma vila, perto da praia, pois Jairo poderia continuar t rabalhando com a pesca. Mais uma vez Miguel se desdobrou em cuidados, instalando o s amigos em pequena casa nas imediações de uma vila de pescadores. Por tudo o que havia recebido de Miguel, Jairo apreciava e respeitav a o amigo. com ele aprendera a essência do Espiritismo: não apenas uma nova filosofia, uma série de fenômenos maravilhosos ou um conjunto de poderes milagrosos, mas sim o cristianismo primitivo em toda a sua simplici-

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dade. Ele mesmo havia presenciado inúmeras ocasiões em que Miguel levara pessoas desamparadas e doentes para a própria casa, provendo-lhes o neces sário para a recuperação. Aprendia muito com aquele amigo. Admirava-lhe cada vez mais as qualidades de amor e dedicação às criaturas carentes. Na manhã seguinte Jairo se despediu do amigo e voltou para casa. Ag ora, depois de tudo o que Miguel dissera, estava com o coração mais tranqüi lo.

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Capítulo Oito

Quando Jairo regressou a sua pequena casa à beira-mar, Lucrécia o e sperava com ansiedade. Assim que o avistou, largou tudo o que estava fazend o e correu-lhe ao encontro. - Que bom que chegou, querido! Jairo a abraçou com carinho. - Sentiu saudade? - Sabe que sempre sinto muito a sua falta, não importa por quanto temp o se ausente. Lucrécia caminhava de braços dados com o marido. Jairo lhe entregou o pacote, um tanto tímido, envergonhado de não saber ler. Sentia uma ponta de tristeza toda vez que via a esposa lendo. Ao receber o embrulho, ela perguntou: - O que é isso? - Um novo livro que Miguel comprou para nõs. - E que livro é? Não perguntou? - Sabe como fico sem jeito com essas coisas, Lucrécia. Ela abriu o paco te e disse, exultante: - Eu não acredito, Jairo. Que maravilha! - O que é?

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- Um novo livro de Allan Kardec. - E sobre o que é o novo livro? - Você não vai acreditar! É sobre a parte prática ritismo, sobre a medi unidade. Não é fantástico? - Como assim, parte prática? - Preciso ler com calma, mas parece elucidar muito Problemas sobre os quais ainda estamos confusos. Lucrécia abriu o livro em uma página qualquer e leu trechos. Depois disse ao marido, que aguardava curioso: - Era o que nos faltava, Jairo. Sempre desejei entender melhor o fu ncionamento da mediunidade, descortinado pelas pesquisas espíritas. Estou ce rta de que agora muitas de minhas dúvidas serão esclarecidas. Ela fechou o exemplar de O Livro dos Médiuns e voltou para o marid o os olhos molhados de lágrimas. Jairo, percebeu a emoção da esposa, pergu ntou: -- O que foi, Lucrécia? Qual é o problema? - Eu tenho uma surpresa. - O que foi? Sem dizer nada, Lucrécia puxou-o pela mão e, passando em frente à pequena casa, conduziu-o em direção ao mar. Ao chegarem mais perto da prai a, Jairo avistou Emilie sentada bem junto da água. - Ela está melhorando. Acho que os remédios estão dando resultado. - Os seus remédios, você quer dizer? - Todos eles, Jairo, especialmente o Evangelho. Jairo olhou para a esposa com ar interrogativo, e ela prosseguiu: - Venho orando e lendo trechos do Novo Testamento para Emilie des de que ela chegou. Nesses momentos, sinto intenso calor me envolver e per cebo que ela apresenta visível melhora.

76 RENASCER DA ESPERANÇA Vendo a jovem, que permanecia observando o mar, de costas para o cas al, Jairo perguntou: . - E como ela está? - É sobre isso que preciso conversar com você. Embora a febre tenha cedido e ela esteja melhorando, ainda não me parece bem de fato. Despertou e quis imediatamente se levantar; está também um pouco agressiva. - Agressiva, como? - Ela me parece assustada e angustiada. - Comentou algo sobre sua prisão, sua fuga? - Claro que não, Jairo, e eu nem permitiria. Ainda está muito fraca. Caminhei um pouco com ela, que logo se cansou e foi obrigada a parar. Assim que se sentou, começou a chorar. Tentei conversar, mas depois achei que era melhor deixá-l a só. Já faz algum tempo que está ali. - Então não disse nada? -Jairo, ela mal consegue andar e também não pode falar muito. Afina l, está se recuperando de uma doença que poderia tê-la matado. Como quer qu e já saia falando sobre o que aconteceu? - Temos de saber, Lucrécia. Precisamos entender o que realmente houv e com ela. Jairo fitou a esposa nos olhos e, limpando a garganta, fezse ainda mais sério quando disse: - Pensei muito sobre esse assunto e conversei com Miguel a respeit o. Não quero ser injusto com ninguém; portanto, concordo em que descubramo s a verdade, antes de tomar qualquer atitude. Lucrécia sorriu, abraçando o marido com evidente alegria. Antes que d issesse alguma coisa, ele a afastou ligeiramente e prosseguiu: - Não se entusiasme tanto, eu ainda não terminei. Mesmo

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ansiando ser justo, não quero nos prejudicar. Devemos descobrir o mais ráp idopossível o que houve: se ela é culpada ou não do que a acusam. Precisam os saber depressa, Lucrécia, especialmente agora que ela começa a caminhar por aí. Se descobr irem que está em nossa casa, não sei o que será de nós. - Compreendo sua preocupação, Jairo. e sei que tem razão. Por isso, estou tomando todas os cuidados. Por exemplo, depois que você partiu, notei que ela estava melhorando e decidi mandar dizer ao médico que não iríamos mais precisar dos seus serviços. Informei que a mandaríamos para algum hospital, pois n ão poderíamos continuar cuidando dela. Quando recebeu a mensagem, quis vir imediatamente, mas tiv e a pré-caução de deixar claro que ao ser entregue o recado ela já estaria bem longe. De qualquer forma, acho que ele ficou aliviado. Estava louco para se ver livre. - Por que acha isso? - Não sei, Jairo, eu pressenti algo. Alguma coisa no olhar dele, no je ito como a tratava, como a olhava, não sei dizer com precisão. - Então por que ajudou? - Não sei, talvez o dinheiro... - Não creio que seja isso. Fico muito preocupado. E se ele nos denunci ar? - Não acredito. - E por que não? O que o impediria? - Se desejasse, já o teria feito. Emilie está aqui há mais de dez dias, tempo suficiente para que nos denunciasse. Deve haver outra razão, Jairo. Lucrécia calou-se por instantes, e depois disse: - Talvez ele seja muito ambicioso. Quem sabe esperasse que de onde v eio aquela moeda saíssem outras... - Pode ser, Lucrécia. Concordo plenamente com você: ele

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ne pareceu extremamente ambicioso. Mais uma vez eu digo, temos de tomar cuidado. Lucrécia assentiu, olhando o marido com ternura. A pele queimada de sol era quase negra, como a sua; os olhos igualmente negros, profundos e s inceros, revelavam muito dele. As rugas marcavam o rosto humilde e rude, habituado à dura exp osição ao tempo. Lucrécia o acariciou com carinho e respeito ao dizer: - Obrigada por confiar em mim, Jairo. Sei que depois de tudo pelo q ue passamos não é fácil para você. Mas sei também que não se arrependerá. Ele apenas sorriu. Enquanto o sol se punha lentamente no horizonte , invadindo a paisagem com suas nuances douradas e formando um quadro de e splêndida beleza, Jairo e Lucrécia observavam a jovem que, sem se mover, parecia também in ebriada pelo encanto do entardecer. Ao longe, o som das gaivotas era com o o lamento da natureza a se despedir do dia. O sol se pôs e a escuridão aos poucos tomou conta da praia. Emilie se levantou devagar. Ao ficar de pé, sentiu forte vertigem e caiu. Lucrécia e J airo correram para socorrê-la. A mulher perguntou, enquanto a levantava: - Está se sentindo bem, Emilie? - Estou, foi apenas uma tontura. Amparando-a, Lucrécia de um lado e Jairo de outro, caminhavam de v olta à pequena cabana. Lucrécia, então, apresentou o esposo à jovem, que s em emoção disse: Como vai? Sua esposa é muito forte. Ao que Jairo respondeu sem titube ar: -- Você não imagina quanto! Seguiram devagar para o humilde casebre. Assim que entraram, Lucr écia acomodou Emilie em uma cadeira junto ao fogão. -- Aqui ficará confort ável.

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Emilie não disse nada. Seus olhos estavam vermelhos e as lágrimas a inda desciam pela face alva. Jairo ameaçou perguntar algo à jovem, porém Lu crécia fez que não com a cabeça e, levando o dedo indicador aos lábios, pediu-lhe silên cio. Enquanto Lucrécia preparava o jantar, trocando algumas palavras c om Jairo sobre a viagem, Emilie permaneceu muda. De olhar perdido, pareci a completamente distante. De vez em quando, lágrimas teimavam em descer dos seus olhos. Foi quando mencionaram o lugar onde residia Miguel que ela pareceu despe rtar de um sonho. Fitando Jairo, indagou: - Seu amigo vive em Barcelona? - Sim, ele é de lá! Fez que ia continuar, mas, como se lhe faltassem forças, silenciou out ra vez. Durante o jantar Lucrécia insistia com ela para que se alimentasse: - Preparei a sopa especialmente para você. - Não quero comer. - Ora, vamos, Emilie, precisa se alimentar. Já está fraca. Se não com er, como poderá melhorar? Alterando inesperadamente a voz, Emilie berrou: - Quem foi que disse que quero melhorar? Eu quero morrer! Foi você que se meteu na minha vida e me impediu de fazer o que devia! Queria esta r morta! - Não é verdade, Emilie - respondeu Lucrécia calmamente, pedindo com o olhar que Jairo ficasse tranqüilo. E >, continuou: - Se realmente queria morrer, por que eu a encontrei no penhasco? Po r que não se jogou? Emilie recomeçou a chorar em desespero: - Não pude. Eu queria, queria muito, e não consegui! - Então não queria de verdade morrer! Levantando a voz ainda mais, ela gritava:

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- O que você sabe de mim, da minha vida? Eu queria morrer, sim, par a isso fui até o penhasco. Fugi daquele lugar pavoroso para pôr fim ao meu sofrimento mais depressa. Você não entende? Lá dentro eu ia morrer de qualquer form a. Nem posso lembrar o que faziam comigo. Melhor morrer! Por isso fugi. Ela parou, impotente para conter as lágrimas. Depois, olhando com des espero para os dois, disse: - Eu queria morrer, entendem? E não consegui... Como Lucrécia e Jai ro se mantivessem calados, ela baixou a cabeça e se entregou a pranto convu lsivo. Lucrécia se ergueu e, abraçando-a com bondade, disse: - Algo a impediu, não foi, minha filha? Como Emilie não respondesse, a outra insistiu: - O que a impediu? O que foi maior do que seu desespero? - Mi...nha... fi...lha - respondeu Emilie, com as palavras entrecortadas pelos soluços. Lucrécia ergueu-lhe a cabeça, limpou com seu avental as lágrimas qu e desciam e disse suavemente: - Mas sua filha não estava lá... - Quando estava prestes a me atirar, bem na borda do penhasco, ouvi a voz dela me pedindo que desistisse. Ela pediu que eu não pulasse. Não pude ... - Então sua filhinha salvou sua vida. É isso? Emilie não parava de chorar. Voltando ao seu lugar e se acomodando na cadeira, Lucrécia pediu com brandura: - Então continue viva por ela, Emilie. Alimente-se, melhore e viva. Já que esta foi sua opção, por ela, lute um pouco mais. Precisará ficar forte pa ra poder vê-la de novo. Emilie puxou o prato de sopa bruscamente e, num supremo esforço p ara comer, murmurou: - Nunca mais voltarei a vê-la...

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- Não diga isso, Emilie. Se o amor que as une é forte a ponto de el a a distância salvar sua vida, tão certo como o dia vai amanhecer vocês voltar ão a se encontrar. Confie em Deus, Emilie. Ele há de ajudá-la a reencontrar sua fi lha. - Deus? Que Deus? Deus não existe, ou há muito me abandonou. - Não diga isso. Deus está sempre cuidando de nós! -Você não sabe o que é sofrimento. Não tem idéia da dor por que passei. Tiraram-me tudo! Tu do o que eu tinha e que me era mais precioso. Você não pode imaginar o que é isso! Lucrécia sorriu para ela e apertando a mão de Jairo, que se mantinha qu ieto, disse: - Sei muito bem o que é perder tudo, Emilie. Inclusive filhos. Pela p rimeira vez, Emilie olhou para Lucrécia com algum interesse e pensou: seria p ossível que aquela mulher, de sorriso tranqüilo, tivesse sofrido o que ela sofrerá? Qual seria o seu segredo? Contudo, estava cansada demais para fazer qualqu er indagação. Esforçou-se o quanto pôde para dar conta do prato de sopa e, ao acabar, re tomou abatida e em silêncio para a cama improvisada. Lucrécia, percebendo que Jairo se irritara com o comportamento da j ovem, sussurrou em seu ouvido: - Tenha paciência, ela vai melhorar. Tão logo Emilie se afastou, Jairo comentou com a esposa em tom exas perado: - Que mal-educada! Além de não agradecer pela ajuda, ainda nos agrid e! - Fale baixo, não quero que nos escute. Como Jairo insistisse, Lucrécia puxou-o pela mão e levouo para fora da casa; puseram-se a caminhar pela praia, onde fria brisa soprava. Lucrécia abraçou-se carinhosamente ao marido, procurando aquecer-se, e disse:

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- -- Entendo sua indignação, Jairo, mas ela está descontrolada e confusa ; nem sequer sabe o que diz. -- Só que isso não lhe dá o direito de falar o que bem quer... -- É claro que não dá, porém ela está muito machucada; você consegue compreender? Perdeu tudo, e sofre especialmente por causa da filha. Conheço essa dor, Jairo. Por isso não lhe podemos cobrar nada. Emi lie precisa de apoio, isso sim. Vamos dar a ela o melhor que temos. Lembre-se de que t ambém fomos muito amparados em nossos momentos difíceis... Todavia, ele continuava irritado com o comportamento de Emilie: - Admiro seus sentimentos nobres para com essa moça, o que não me impede de achá-la muito arrogante! Onde já se viu? Para receber ajuda, é n ecessário um pouco de humildade. Em nosso caso, que você acabou de citar, fomos recept ivos e agradecidos ao Miguel pelo seu auxílio e nunca o tratamos com agre ssividade por causa de nossos problemas. - Nós tínhamos uma consciência diferente, Jairo. Essa jovem ainda n ão se encontrou, sobretudo do ponto de vista espiritual. Como nos poderá da r o que não tem? Acha que alguém pode dar aquilo de que não dispõe? Jairo parou para refletir, e enfim indagou: - Então, o que faremos? Vamos deixar que nos destrate desse modo? - Vamos dar algum tempo a ela. Tenho certeza de que irá melhorar. - Como, se continuar com esse jeito arrogante de agir? Jairo, o toqu e suave de Deus no coração humano pode fansformar água em fogo, ou seja, fri eza em calor, indiferença amor. Só Deus pode dissolver ódio em perdão. Para isso nos env iou Jesus: para renovar a vida das pessoas. Sei que Emilie ainda não conhe ce a força do amor de Jesus.

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- A despeito de ser católica. Pelo que vi traz um crucifixo pendu rado ao pescoço. - Eu também notei. Mesmo assim, desconhece o poder transformador d o Cristianismo. Talvez conheça na teoria, sem ter provado na prática. Jairo seguiu ao lado da esposa, sem dizer nada. Ao retomarem, já na p orta da casinha, perguntou: - Como pode ter tanta certeza do que diz, Lucrécia? Ela sorriu e abraçou-o ao asseverar: - É que conheço na prática tudo aquilo em que acredito. Só isso. Não tendo o que acrescentar, Jairo acompanhou a esposa na arrumação dos utensílios do jantar, que permaneciam sobre a mesa. Emilie já dormia, mas seu sono era agitado. Ao terminar os afazeres, Lucrécia foi até a cama da jovem e chamou Jairo: - Veja, toda noite é igual. Ela se debate, se remexe e só se aquieta en quanto leio o Evangelho. É incrível: ela se acalma, e quando a leitura acaba vo lta a se agitar. Está perturbada... - E você não teme que traga algo de ruim para nossa casa? - Embora tenha meus receios, acima de tudo confio em Deus. Sei que estou fazendo o que Ele espera de mim; sinto que o Pai quer que a ajudemo s. Então haverá de nos dar proteção para conseguirmos cumprir nosso dever. Lucrécia pegou o Novo Testamento, como tantas vezes fazia, e antes de se deitar leu um pequeno trecho à beira da cama de Emilie. Depois de sen tida oração, também se deitou.

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Capítulo nove

A alguns quilômetros da vila, na província, Francisco pensava em Emi lie. Ficara contrariado diante do recado de Lucrécia, avisando que iriam man dá-la para longe. Tivera ímpetos de impedir que o fizessem, porém não ousara; seria mu ito arriscado. Sabia perfeitamente o perigo que o casal corria por ter dado proteção a ela e não queria o mesmo para si. No entanto, foi outra notícia recebida naquela tarde que mais o pert urbou. Logo que o mensageiro de Lucrécia partiu, sua assistente falou da rec ompensa oferecida para quem informasse sobre a jovem: - Quanto estão oferecendo? - perguntou ele a Carmem. - São duzentos pesos por informação. - Minha nossa! Por uma só? --É o que está escrito aqui: cada informação diferente dá diireito a isso. Puxa! Estão mesmo querendo pôr as mãos nela! Francisco desabou em sua cadeira, segurando o papel que Carmem lhe dera. Leu atentamente, e depois concordou: -- Tem razão. Querem pôr as mãos nela, e rápido.

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- Pobre menina - suspirou Carmem, saindo da sala do médico. - A quem você se refere? A Cíntia? - Não, estou falando de Emilie. É uma menina, perdida em tudo o que lhe aconteceu. - Por que diz isso? Ela é uma mulher, já bem crescidinha. - Era inocente demais... Será que pensou mesmo que seria aceita sem r eservas por aquela família? - Que idéia é essa, Carmem? A moça está doente, com problemas, tent ou matar o marido... - Será? - O que está insinuando? - Nada. Apenas sei que aquela família é muito poderosa. Emilie é to talmente espontânea, diz tudo o que pensa, e estava com aqueles problemas q ue você vinha tratando. Em seguida, olhando o médico, perguntou séria: - O que exatamente essa moça tinha, doutor Francisco? - Ora, Carmem, isso é segredo médico, não posso divulgar as condiçõe s de meus pacientes. Seja discreta. Ela está gravemente doente. Tinha alucin ações, visões, esses distúrbios que as doenças mentais desencadeiam. Pesquisei os anteced entes familiares, que também não são bons. Pelo que ela própria me disse, sua avó materna apresentou problemas semelhantes. Ela está doente e seria muito bom se a encontrassem depressa. - bom, com o estímulo dessa recompensa, creio que não demorarão a ac há-la. O valor é significativo. Quem não se interessará por localizá-la, pre stando um serviço à ilustre família e ao mesmo tempo recebendo uma retribuição tão v ultosa? Por certo será encontrada em breve. O médico olhou para a assistente e ficou calado. Baixou a cabeça, r emexendo os papéis em sua mesa. Depois, ao perceber que ela permanecia a ob servá-lo, disse ríspido:

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-- O que é isso, Carmem, ainda aí? Vamos, temos de trabalhar. Quem é o primeiro paciente? -- É a viscondessa Delisan, daqui a meia hora. - Então me deixe organizar meu dia. Traga minha agenda, quero conf irmar todos os compromissos. Carmem obedeceu rápido. Em alguns segundos, voltou com a agenda e seguiram trabalhando sem tocar de novo no assunto. Francisco saiu do consultório tarde da noite e preferiu voltar andando , para refletir. Estava indeciso. Não tinha dúvida de que poderia transformar o que sabia em dinheiro. Era só enviar um mensageiro a dom Felipe, que ele conhec ia tão bem, e tudo estaria resolvido. Se fosse inteligente, conseguiria inc lusive incrementar as informações, de modo a que rendessem mais. Quando entrou em casa, estava cansado de tanto pensar. Livrou-se do c asaco e dos papéis que trouxera, acendeu a lareira e se sentou em frente a el a, tendo nas mãos o folheto que fornecia detalhes sobre a recompensa. Ficou ali co ntemplando o crepitar do fogo que estalava de quando em quando. O ambiente, antes frio, tomou-se suavemente aquecido. Francisco p reparou uma bebida. O pensamento vagava, ainda indefinido: devia ou não c omunicar o que descobrira? Por outro lado, lembrava que àquela altura Lucrécia e Jairo já teriam mandado Emilie para bem longe. Sentiu forte aperto no peito: talvez não voltasse a vê-la tão cedo... Francisco se recostou no sofá e ficou a recordar a última em que a vi ra no hospício. A cena lhe veio toda à mente. Parecia escutar a voz de Emilie suplicando: -- Tire-me daqui! Você sabe que não estou doente. Eu jamais faria ta l coisa, Francisco, jamais! Você sabe que não sou agressiva. Contei-lhe minha vida inteira. Conhece tudo o que pennso; sabe que nunca, em momento algum, manifestei qual-

87 UCIUS SANDRA CARNEIRO quer tipo de pensamento ou sentimento contra meu marido ou minha filha. V ocê sabe disso, Francisco, por que não me ajuda? - Você sabe muito bem o porquê. - Não sei, não entendo a razão. Por que não me refresca a memória? - Não tenho nada mais a dizer. Ele saiu do quarto e se afastou, ouvindo-a berrar: - Pelo amor de Deus, Francisco, me ajude! Você sabe que não tenho nada! O que será de minha filha? Tem de me ajudar, pelo amor de Deus... Aqueles gritos ainda ressoavam em sua cabeça e vinham perturbando se u sono. Depois da fuga de Emilie, sentira ligeiro alívio. Ao menos estaria l ivre daqueles gritos. Só que isso não acontecera. Na noite em que Jairo o procurara, ele estava exausto das noites em que não conseguira dormir direito, despertando assustado com os gritos da moça. Atendera ao pedido - ainda que a contragosto - po rque Jairo havia buscado ajuda em nome de Miguel. Francisco não costumav a fazer nenhum tipo de concessão no valor de seus honorários médicos. Acreditava que, como es tudara muito para chegar onde estava, não deveria abrir mão dos pagamento s, nem dar descontos. Raramente, e só por solicitação de algum amigo influente, fazia um atendime nto gratuito. Ao encontrar Emilie na cama daquele casebre, quase morta, tivera di ficuldade em examiná-la, primeiro porque sabia que era uma foragida conside rada perigosa e procurada pela polícia; não queria se comprometer. Contudo, Lucrécia for a tão incisiva em sua rogativa que ele não pudera negar assistência. Perce bendo que a jovem estava gravemente enferma, sentira-se ligeiramente incomodado e ao mesmo tempo aliviado, pois se livraria dela. Depois da notícia de que a jovem t inha melhorado e ido embora, não sabia o que fazer.

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Francisco tinha vontade de denunciar Emilie, Jairo e Lucrécia e enc errar a questão, engordando um pouco mais sua conta bancária. Em contrapart ida, algo o impedia. Ele matutava e matutava diante da lareira sobre o motivo de ainda não ter enviado o mensageiro a Felipe. Deu profundo suspiro, bebeu o que restava em seu copo e se deitou c onfortavelmente no sofá. Estava quase adormecendo, e então balbuciou: - Emilie, Emilie, por que não cedeu? Por que foi tão correta, minha querida? Agora, vou denunciar você e aqueles que a ajudaram. É preciso, ente nde... Antes de terminar a frase, foi dominado pelo cansaço e adormeceu. c om menos de duas horas de sono Francisco recebeu uma visita espiritual, que lhe pedia: - Não conte nada sobre ela. Deixe-a, por favor. Ela precisa encontrar seu caminho. Era Cíntia, que sussurrava baixinho ao ouvido do médico. Parecia mai s velha e Francisco, cujo corpo espiritual também estava desperto, perguntou : - Quem é você? - Não importa. Peço apenas que a deixe livre. Já chega o que vem sofre ndo. Já é suficiente. - Não concordo. Ela merece sofrer muito mais. -- Francisco, por favor, seja piedoso, ao menos uma vez na vida! Ess e dinheiro, proveniente de algo tão aviltante, não lhe poderá fazer nenhum b em! Ora, que bobagem! Dinheiro é dinheiro, e só me fará o bem. Mas quem é você? Seu rosto me parece familiar... Sou uma amiga de Emilie. Ela me é muito querida, por isso peço que n ão lhe faça mais mal do que já fez. Ao ouvir as últimas palavras, Francisco acordou assustado. Sentou-se no sofá, atordoado, tentando compreender o que

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acontecia, pois por alguns instantes acreditou que havia alguém com ele na sala. Olhou em tomo, procurando, e não viu ninguém. Na lareira, as poucas brasas ainda acesas anunciavam que já era muito tarde. Levantou-se, apagou-as e subiu p ara o quarto, preparando-se para dormir. Ao fechar os olhos, pensou de novo emEmilie. Refletiu que talvez foss e melhor deixá-la em paz; afinal, já tinha o que merecia: estava pobre, infel iz, e perdera tudo. Virou-se de lado e pensou: "Acho que já tem o suficiente". E voltou a adormecer.

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Capítulo dez

Nos arredores de Barcelona, a noite foi longa e conturbada para Fern ando. O movimento espírita que surgia e atraía adeptos em diversas partes da Espanha o incomodava demais. Na solidão de seu quarto, na quietude da noite, Fernando perdeu por completo o sono. Levantou-se, foi até a cozinha e preparou um chá quente. Em silêncio voltou ao quarto e sentado na cama sorveu gole a gole, buscando serenar o s pensamentos. Contudo, várias perguntas insistiam em ocupar sua mente. P or que Deus permitia que uma seita como aquela surgisse? Por que admitia que pessoas fossem e nganadas daquela forma? Ao mesmo tempo, idéias contraditórias o assaltav am. E se houvesse algo de verdade naqueles ensinamentos? E se (somente "se") pudesse haver o utras verdades ainda não totalmente claras para a Igreja? E se houvesse qu estões a serem complementadas? E se houvesse outros elementos a conhecer? Fernando sabia que a Igreja, com seus preceitos doutrinários, não co nseguia resolver todas as angústias e dúvidas da alma humana. Sabia, por dol orosas experiências, que havia falhas. Mas essas eram sempre atribuídas a homens imperfeitos

91 Renascer da Esperança e infiéis a Deus; jamais se podia questionar um só dogma, um só ensinamento . Não era permitido. E ele, inquieto, continuava a refletir. E se houvesse alguma verdade naqueles princípios novos? E se eles trouxessem alguma resposta? Abruptamente se levantou, dizendo em voz alta: - Que absurdo é esse? Como é possível que esses novos conceitos tr agam algo de bom? São do demônio! Ele deve estar por aqui, querendo me ilu dir! Tentando se infiltrar em meus pensamentos! Saia daqui, não vou permitir que me enga ne! Incapaz de afastar da mente aqueles questionamentos, dirigiu-se reso luto à clausura. Subindo as escadas em passo firme, exclamava: - Não quer me deixar por bem, vai embora por mal! Haverei de chama r a atenção de nosso Senhor Jesus Cristo com minha penitência e Ele haverá de afastá-lo daqui. Abriu a porta de pequeno cômodo, acendeu a vela que ficava na mesa e trancou a porta atrás de si. Arrancou a roupa e, agarrando o chicote que ti nha pequenos pedaços de ferro nas pontas, começou a flagelar as próprias costas, em penit ência. Urrava de dor enquanto dizia: - Afaste-se de mim, que sou de Jesus! Afaste-se de mim, que sou de J esus! Sou representante de Jesus na terra! Não me tente com idéias que não s ão corretas! O sangue brotava das feridas e Fernando parecia enlouquecido, chico teando as costas e gritando. Quando suas forças se esvaíram, junto com o sa ngue que corria, ajoelhou-se e de bruços na cama desmaiou. O dia surgiu radiante e com ele o burburinho das pessoas que chegav am para a missa matinal. O pároco, impaciente, aguardava Fernando, que devi a dirigir a missa e não aparecia' Foi procurá-lo no quarto e bateu à porta: - Fernando, que se passa, meu filho? O salão está lotado-

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Como não obteve resposta, bateu novamente, e então virou a maçaneta, percebendo que estava destrancada. Entrou e viu a cama desfeita. Notou a xícara sobre a mesa. Levou-a ao nariz para identificar que tipo de bebida era aquela. P ercebeu que se tratava de um chá relaxante. Pensou um pouco mais e imagino u que o jovem tivera dificuldade para dormir. Decidiu ele mesmo cuidar da missa. Depois conversaria com Fernando sobre sua irresponsabilidade. Conduziu o ato litúrgico como de costume, mas de quando em quando pensava no rapaz. Observou ainda que faltavam alguns fiéis naquela manhã de domingo. Isso não costumava acontecer - não na missa de domingo. E assim, o padre cele brou-a entre preocupações com Fernando e com os paroquianos ausentes. No final foi abordado por vários fiéis da comunidade, que queriam sua orientação ou aprovação para um assunto ou outro. Uma jovem tímida apr oximou-se, tremendo. - O que foi, minha filha? Algum problema? - Preciso falar com o senhor, padre Enrico. - Parece assustada... - É, estou muito assustada. - Espere que falarei com você, logo que termine de conversar com os outros. Aguarde aqui ao lado. Após atender a longa fila de fiéis a desfilarem suas dificuldades e an gústias, o padre despediu o último e se virou para a jovem, perguntando: - E então, o que a aflige, filha? - E minha mãe, padre. Ela pediu que não lhe dissesse nada, mas estou tão preocupada! - O que aconteceu? - Está desertando da fé... -- Como, desertando da fé? O que me diz?

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- Ela... bem... acho melhor deixar para lá. Levantando-se, a jovem fez menção de sair; entretanto, o padre a segurou pelo braço e afirmou: - Não tenha medo, filha, estou aqui para ajudar. Pode me contar, se m temor, qual o problema. Que houve com sua mãe? A jovem ainda hesitou um pouco; depois, chorando, começou a falar: - Ela está se tomando espírita, padre, espírita! Está acreditando naq uele monte de bobagens que o senhor falou que são horrendas! Não sei o que fa zer... Ela está mudando... Chorando convulsivamente, a jovem ansiava por ser consolada. O pároc o, no entanto, ergueu-se resoluto e disse: - Vamos já à sua casa. Quero falar com ela agora mesmo! - Não, padre, por favor; ela me fez prometer que não diria nada. Não pode vir comigo! Tem de falar com ela... - Cale-se já! Está sob influência desses ensinamentos perniciosos. V amos já à sua casa, antes que o estrago se faça maior. Quem sabe consigo col ocar um pouco de juízo na cabeça de sua mãe. Desde que seu pai morreu, ela vem agindo de maneira estranha... - Não é verdade, padre. Minha mãe tem conduta impecável. Ela trabalh a, se esforça, é mãe e pai para nós! Ela é íntegra! Só que agora começou a a creditar nessas coisas... - Ora, o que sabe você, jovem como é? Sua mãe vem se comportando de forma estranha, sim, todos me dizem isso. Não é nenhuma novidade. - Quem diz? Não, não é verdade! - Menina, está se descontrolando. Vamos, acalme-se. Iremos ver sua m ãe a pretexto de sua ausência na missa hoje. Só isso. E aí conversarei com e la. Tenha calma. O sacerdote já ia saindo com a jovem, então parou e lhe pediu: - Espere aqui. vou resolver uma pequena questão e já volto.

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Enquanto a jovem, de cabeça baixa, chorava baixinho, padre Enrico en carregou um auxiliar de levar mensagem ao bispo, pedindo que o encontrasse na casa daquela família. Ao retomar deu de cara com Fernando, que abatido e ensangüentado se dirigia lentamente para o quarto. O padre sabia bem o que eram as noite s de penitência, por isso não disse nada. Passando por ele Fernando beijou-lhe a mão: - Sua bênção, padre. - Deus o abençoe, meu filho. vou visitar uma mulher que está se band eando para o lado do mal. - Como assim? - Está se tomando espírita. Bem aqui, em minha paróquia. É inacredi tável, esse movimento estende suas garras por toda parte! Temos de tomar me didas enérgicas! Se preciso for, vamos excomungá-la ainda hoje! Fernando arregalou os olhos e ia dizer algo, mas não teve tempo; o p adre reclamou impaciente, enquanto saía: - Esse movimento nos esquenta a cabeça, Fernando, esse Espiritismo... Fernando ergueu a cabeça, estufou o peito e explodiu: - Pois que a mulher seja anatematizada! Aqueles que afrontam nossos dogmas devem pagar o preço de sua infidelidade! O padre estranhou o tom de Fernando ao proferir aquelas palavras, u ma vez que o jovem era sempre o apaziguador, aquele qe pedia clemência e to lerância. Contudo, estava com muita pressa e limitou-se a dizer: Tenho de ir. Cuide de tudo por aqui. Se precisar de mim... O padre o lhou de leve para as costas do rapaz, recomendando: Cuide de você e de tudo por aqui. Já é suficiente. Encontrou a jovem sentada, aguardando. Ainda chorava e, tremendo, quis saber:

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- Padre, o que vai acontecer com minha mãe? - Nada que ela não queira. Não se preocupe, minha filha, você agiu b em. Tem irmãos, precisa zelar por sua família. Principalmente por ser a mais velha, deve cuidar deles... - Só peço que nada aconteça a ela. Desejo apenas que volte a ser como sempre foi e deixe de acreditar nessas maluquices espíritas. Sem dar maior atenção à lamúria da jovem, o padre seguiu com ela p ara a pequena casa. Lá chegando, encontraram a senhora na cozinha, em árdu a tarefa no fogão. Ermínia trabalhava em casa fazendo doces e compotas que vendia aos hotéis, r estaurantes e padarias. Esse serviço garantia o sustento da família e o estu do dos filhos. Ao avistar o padre junto com a filha, sentiu um calafrio a percorrer-lhe o c orpo. Lavou as mãos e foi recebê-los à porta da cozinha: - Padre, Mariana... Aconteceu alguma coisa? A jovem tinha os olhos vermelhos. A mãe logo imaginou o que se passa ra. Mariana era a filha más velha e a mais religiosa. -Vim visitar a família, pois senti sua falta na missa e imaginei que algo sério deveria ter ocorrido. - Pois vamos entrar, padre. A mãe endereçou olhar compreensivo à filha, como a pedir-lhe que s e acalmasse. Ofereceu a cadeira ao padre, que se acomodou, ajeitando a bat ina com cuidado. Ermínia olhou para a filha e pediu: Mariana, vá ver seus irmãos, por favor. Faz horas que estão lá dentro e receio que estejam aprontando alguma arte. -- A garota deve ficar. Por favor, padre, de minha família eu cuido. Vá, Mariana. Sem saber o que fazer, porém aliviada por poder descansar um pouco, a menina se retirou. Seguiu-se curto silêncio. O padre, limpando a gargant a, começou a falar em tom grave:

96 RENASCER. DA ESPERANÇA

-- Por que faltou à missa hoje, minha filha? - Tive muitos afazeres, padre. Sabe que sou pai e mãe para meus filhos , desde que Carlos se foi. - Pois é. Tem muitos afazeres, e dentre eles creio que assistir à missa é fundamental, não? O padre a olhava fixamente nos olhos, como a querer intimidá-la. Mas Ermínia, tranqüila, respondeu: - Deus é minha prioridade, padre. - Pois é o que digo: a missa, a igreja. - Não, padre. Deus, seus ensinamentos, a vida espiritual. Ao ouvir tais palavras, o padre se levantou e áspero disse: - Vida espiritual? O que você sabe dessas coisas? - Caso esteja mesmo interessado, padre, sente-se; vou dizer. Sem tirar os olhos da mulher, o padre sentou-se vagarosamente. Erm ínia foi até o fogão, mexendo algumas panelas e organizando rapidamente al guns vidros. Depois retomou e ocupou uma cadeira ao lado do padre. Mentalmente, prepara va-se para enfrentar a fúria que poderia surgir de suas declarações. - Bem, padre, desde que Carlos morreu, tenho arcado com tudo em ca sa. O trabalho tem sido muito duro, o senhor sabe. Não me queixo disso; tr abalhar nunca me assustou. É que no último ano vinha sofrendo terríveis dores na cabeça e também pelo corpo. À noite tinha pesadelos e muitas vezes acordava mol hada de suor. Vinha pedindo a Deus que me amparasse, porque não podia cair doente. Quem cuid aria de meus filhos? As dores foram aumentando. Consultei o médico, e de nada adiantou. Continuei rezando, intensifiquei ainda mais meus pedidos a Deus; nada acontecia, eu só piorava. Foi aí que uma amiga me convidou a ir com ela a uma... - Ermí nia hesitou um breve segundo e então prosseguiu - a uma reunião espírita. O padre se levantou novamente, bateu a mão com toda a força sobre a mesa e bradou:

97 LUCIUS l SANDRA CARNEIRO - Isso é um absurdo! Quem é esse lobo perigoso que anda entre as ove lhas do meu aprisco? - Ainda não terminei, padre. Gostaria que me escutasse. Ele sentou-se outra vez, mostrando crescente inquietação. - Pois bem, resolvi aceitar. Fui com ela a essa reunião. Não é nada de mais, padre. São reuniões que falam de Jesus e esclarecem diversas questões e spirituais, só isso. - As questões espirituais estão a cargo da Igreja, não se luda. Ningué m mais na terra tem autoridade para discuti-las; somos os únicos representante s de Deus! - A verdade, padre, é que desde que passei a freqüentar essas reuni ões descobri coisas novas, aprendi muito e percebi que os ensinamentos de J esus começaram a ficar mais claros para mim; hoje os compreendo como nunca! Tem sido ma ravilhoso, padre, como um renascer. E além disso, minhas dores desaparec eram. Sei agora que estava sob influência espiritual que me prejudicava. Minha fé em Deus cres ceu sobremaneira. - Há quanto tempo freqüenta essas reuniões? - Há uns seis meses. - Seis meses! Seis meses de traição! - Não tem nada a ver com traição. Estou apenas procurando alimentar minha alma com algo que a possa satisfazer. - Então se tomou adepta desse movimento maligno? Deixou-se enredar pelas teias dessa doutrina? Ermínia, que tentava manter-se calma, ficou séria. Não sabia ao cert o o que fazer. Se assumisse sua nova fé, as conseqüências poderiam ser desas trosas. Mas se não assumisse, que fé seria a sua? Resolveu, portanto, sustentar a verdade : - Sim. Tomei-me espírita e posso lhe dizer que é bem diferente do qu e falam por aí. Não existe nada de maligno nessa doutrina! - Chega, não quero ouvir mais nada.

98 RENASCER DA ESPERANÇA

-- Mas, padre, não quer que seus fiéis sejam felizes? Não é isso o mais importante? Certamente não vou discutir com a senhora o que é ou não é importan te, em termos de fé. Não tem a menor condição de discutir religião comigo, não percebe? - Não quero discutir religião; quero apenas que entenda que o que a conteceu em minha vida é real; os fatos não foram inventados. Aplicados, es ses novos conhecimentos só trazem o bem! Clareiam a mente, fortalecem a fé em Deus e em Jesus. Só promovem o bem de todos, padre, e nos aproximam de Deus. - Chega, já disse! Você tem uma chance: negue agora mesmo, perante mim, essa heresia. Está apostatando de sua fé e vai sofrer as conseqüências ! Negue a fé nessa doutrina e volte imediatamente ao aprisco da sagrada Igreja, refugie- se lá desses assédios do mal e perdôo seu deslize. Agora, se não concordar, será excomungada para sempre! Ermínia sentiu o sangue sumir-lhe da face. Seu corpo tremia. Sabia bem o que seria para ela, viúva, a excomunhão. Numa comunidade onde todos eram católicos fervorosos, fatalmente passaria a ter dificuldades ainda maiores. Todavia, n ão teve tempo para mais nada. O bispo entrou, ofegante e irritado: - Então, resolveram as coisas? - Não, Eminência. Ermínia confirma que aderiu à nova doutrina. Sem rodeios, o bispo perguntou à mulher: •- Diga, o que vai decidir? Se desertar, será excomungada. Ermínia, consciente de todas as implicações de sua atitude, respondeu com voz trêmula: Não posso negar o que houve comigo. São fatos, senhor, não posso neg ar a realidade. O padre a interrompeu: 99 Lucius SANDRA CARNEIRO

- A Igreja é a única que nos pode levar até Deus, o resto é mentira! Vai insis tir nessa sua decisão? - Não posso recuar. - Pois bem, então não temos nada mais a conversar, nem a fazer. A p artir de hoje, está excomungada. Nem você nem seus filhos devem pisar mais o solo santo de qualquer igreja católica. E isso, obviamente, será divulgado em todos os cantos desta cidade. O padre a fulminava com o olhar. Não aceitava que um dos membros d e sua paróquia se tomasse espírita. Era demais para ele. Além de ver o mov imento crescer e espalhar-se por sua cidade, teria agora de dar explicações aos superiores. Logo ele, que era ferrenho opositor daquele novo sistema de pensamento, se via frente a frente com uma de suas fiéis a passar para o lado deles. A idéia o enchia d e ira, que ele não disfarçava. E diante do silêncio de Ermínia, o bispo orden ou: - Chame seus filhos. Queremos que saibam o que estamos fazendo e o porquê de nossa atitude. Ermínia pediu: - Não gostaria de envolvê-los nisso, não há necessidade! - Chame-os. Eles têm o direito de saber de nossa boca o que está acont ecendo. Mariana, que do corredor ouvira tudo, entrou na cozinha: - Pode deixar que eu chamo, mãe. - Mariana, estava escutando a conversa? - Depois que verifiquei que os meninos estavam bem, vim ver se preci sava de mim, e não pude deixar de ouvir. - Então chame seus irmãos - pediu o padre. Mariana saiu e em algun s segundos retomou com os quatro irmãos. Assustados, todos aguardavam em s ilêncio, de pé um bem junto do outro. O bispo se levantou e disse solenemente:

100 RENASCER DA ESPERANÇA

-- Meus filhos, hoje aconteceu algo muito triste a esta família. A mãe de vo cês desertou da fé católica. Como todos devem saber, resolveu aderir a essa nova crença, que em breve há de se extinguir. Pois bem, assim procedendo, não nos deix ou outra escolha que não excomungar a todos vocês... - A todos não, bispo, por que isso? Deve punir somente a mim. Meus f ilhos não optaram por nada, são ainda muito jovens... Quem fez essa opção fu i eu... - Mas sabe que é chefe da família e vai influenciá-los, com certeza, se é que já não o fez; portanto, não temos alternativa. Estão todos, desde ag ora, excomungados. Diante do olhar perplexo dos cinco irmãos, e das lágrimas que vertia m dos olhos de Ermínia, o bispo ergueu-se dizendo ao padre: - Vamos, temos muito a fazer. Precisamos descobrir uma forma de fre ar a expansão desse movimento, que nos faz ver lares como este entregues ao mal... O padre seguiu o bispo e se retiraram. Ao cruzarem a porta, Mariana gr itou, indignada: - Mentiu para mim, padre Enrico, vai nos prejudicar a todos! O padre não respondeu. Apenas olhou para ela e saiu. Mariana pro rrompeu em pranto. Alberto, o menino mais velho compreendia um pouco do que se passava. Aproximou-se da mãe e a abraçou. Ermínia chorava copiosamente. Sabia o que os esperava, dali em diante. Quando a informação de sua excomunhão chegasse até aqueles que compravam seus doces, obviaarnente não iriam mais ajudá-la. -- Não chore, mãe. Vamos dar um jeito em tudo, não chore, a abraço u o rapaz, chorando em seus ombros. Mariana não se conformava: -- Está vendo, mãe, no que deu sua escolha? Só vai trazer

101 Lucius SANDRA CARNEIRO desgraça para nossa família. Devia ter dito que não acreditava mais em nad a; você teve a chance, ele avisou! Como pôde fazer isso conosco? O que vai ser de nós? E o que vai ser da nossa alma? Vamos todos para o inferno! Para sempre! - Não diga isso, minha filha, que vai assustar seus irmãos! Ninguém va i para o inferno por pensar diferente da Igreja. - Claro que vai, mãe, claro que vai! Não compreende? Vamos todos par a o inferno por sua causa. Por sua causa! Mariana saiu da cozinha, chorando. Alberto ia atrás dela, quando a mãe o deteve: - Não, Alberto, deixe que ela vá, precisa desabafar um pouco. É melhor . E olhando para os filhos menores, que nada entendiam, disse acariciand o o rosto dos três: - Não se preocupem. Vocês confiam na mamãe, não confiam? Os meninos concordaram com a cabeça. - Então, Jesus há de nos proteger, há de nos dar tudo aquilo de que necessitarmos. Ele nunca nos abandonará, ainda que todos nos abandonem. Jesu s estará sempre perto daqueles que confiam e buscam fazer o bem, conforme Ele ens inou. Sem dizer mais nada, Ermínia abraçou-se fortemente a Alberto, busca ndo energias para continuar acreditando. 102 RENASCER DA ESPERANÇA

Capítulo Onze

Dom Antônio e padre Enrico seguiram para a paróquia e se trancara m em pequena sala, onde confabulavam: - Precisamos tomar medidas eficazes contra esse movimento - afirmava o padre, enfático. - Insistimos para que os sacerdotes, em todas as missas, realcem o pe rigo que essa mentira representa. E você, na missa de hoje à tarde, deverá an unciar a excomunhão dessa família; não deixe para amanhã. Quanto mais rápida e veementemente nossas decisões forem comunicadas, mais intimidaremos poss íveis iludidos. -- Acato suas orientações, que seguiremos à risca. Entretanto, insisto que alguma atitude mais vigorosa precisa ser assumida no ao de inibir essa se ita que se alastra e - o que é pior - cresce. e um poderoso homem de negócios que se interessa por princípios, ora é um intelectual de renome e influência que a envolver por essa dita filosofia. Em outro momento, são assim, simples, que se entrega m a suas práticas bizarras... a coisa precisa ser feita, depressa... -- Não se atormente tanto, padre. Estamos falando com as 103 autoridades e com todas as famílias mais poderosas. Contamos com o apoio da grande maioria, que mantém o juízo. Brevemente iremos adotar algumas ações que por certo deterão os aventureiros. O povo tem de entender que essa é uma doutrina p erigosa e perniciosa. Faremos com que entenda. - Como se espalha tão depressa? Nunca os vejo pregando em lugar al gum, tampouco difundindo seus princípios. Apenas essas reuniões... - Mas as reuniões atraem muita gente. Alguns gostam de ver as tais mesas que giram e falam, de ouvir os barulhos que fazem e as supostas manif estações dos mortos. As pessoas, em todos os tempos, gostam do que é mágico, sobrenatura l... Acima de tudo, e mais perigosos do que os outros atrativos, estão os l ivros... - Os livros? - Sim. São os livros que vêm divulgando amplamente esses estudos dia bólicos. -Já os viu, Eminência? - Sim, tive alguns deles em mãos. São perigosíssimos. - E por que são tão ameaçadores, visto que se trata de uma doutrina c heia de misticismos, charlatanismos e mentiras? - É interessante, mas os livros apresentam tamanha lucidez e clareza filosófica tal que fazem deles um perigo, padre, um grande perigo... - E o que faremos? Como vamos combater esse movimento que penetra em todas as áreas? - Não obstante ser a disseminação dessa doutrina através dos livros sobremodo preocupante, tenha calma. Encontraremos um jeito de acabar com e les. Continue falando dos perigos crença, durante as missas. Não é possível que, diante das seqüências que atingem os que se deixam seduzir, muitos dêem um passo atrás. 104 RENASCER DA ESPERANÇA

Os dois permaneceram algum tempo imaginando alternativas a serem adotadas para precaver os fiéis dos riscos que o movimento espírita poderia acarret ar. Ao se retirar o bispo aconselhou: -- Padre, caso essa mulher se arrependa, receba-a de volta. -- Como? Depois de ser excomungada, não posso fazê-lo. -- Seja generoso. O povo gosta de demonstrações de bondade. Se ela o procurar, imponha muitas penitências e a faça falar, publicamente, do eng odo em que caiu. Que ela pinte com todas as tintas as cenas horríveis que viveu. Seu te stemunho poderá ajudar, se vier a se arrepender. - Acho difícil. Viu que está firmemente decidida. - O que acha que a faria desistir? - Não sei. - Pense, padre. Pense em como poderia ajudá-la a regressar ao aprisco.. . E assim dizendo, o bispo partiu, deixando o padre a meditar sobre suas últimas palavras. Após longa preparação para celebrar a missa da tarde, o pároco saiu de seu quarto à procura de Fernando. Verificou por toda parte e concluiu que o jovem não se encontrava na paróquia. Chamando o ajudante, perguntou: - José, onde está Fernando? Estou procurando por ele e não o acho em lugar algum. Fernando saiu logo depois do almoço e ainda não retomo u. - Disse para onde ia? -- Não, padre. Esteve a manhã inteira em seu quarto e não almoçou. P erto das duas horas, saiu e disse apenas que nao sabia quando voltaria. O padre, contrafeito, saiu resmungando: -- Assim as coisas vão mal. O que pensa Fernando? Tem obrigaçoes! Não pode abandonar seu posto e sumir pelo tempo e bem entende...

105 Lucius SANDRA CARNEIRO O rapaz ficou observando o padre, que caminhava afobado. Baixo u a cabeça e continuou preparando o material que seria utilizado nos trabalho s religiosos da tarde. Na mansão, o relógio bateu cinco horas. Fernando estava sentado per to da janela, com uma xícara de chá nas mãos. Filomena, em silêncio, bordav a delicadas toalhas para a festa. Os pensamentos do rapaz se espalhavam como as folhas que voam das árvores nas frias tardes de outono. Filomena largou o pequeno bastidor que utilizava para bordar e encaro u o primo. Sua testa franzida e seu olhar sério não a estimularam a falar; ba ixou a cabeça e retomou o bordado. De repente, a casa grande e fria se encheu de movimento e de sons. E ra Ricardo que chegava com Cíntia. Ela, alegre e ruidosa, contava ao pai o q uanto se divertira nos brinquedos, vendo as mágicas e tudo o mais. Quando entraram n a biblioteca, a menina ficou ainda mais feliz: - Tio Fernando! Estava com saudade. Cíntia correu para o primo, que, sem pensar duas vezes, colocou a xí cara de lado e se levantou para pegá-la no colo, como costumava fazer. Então lembrou-se das feridas nas costas e se deteve. - Que foi, tio? - perguntou a garota ao vê-lo descer os braços. - É que não vou poder abraçar você hoje, pequenina. Estou com muita dor nas costas! - O que houve? - perguntou ela com doçura. Quase envergonhado, Fern ando olhou-a e disse: - Bobagens de adultos, querida. Fiz alguns trabalhos mais pesados, não me cuidei adequadamente, e agora estou com dores. - Que posso fazer para ajudar, tio? - perguntou a menina ainda mais d ocemente. - Nada, apenas sente-se aqui perto de mim e me conte como foi seu dia.

106 RENASCER. DA ESPERANÇA

Filomena mal cumprimentou o irmão e a sobrinha. Continuou bordando . Alguns minutos depois, quando Cíntia, empolgada, narrava suas aventuras da tarde, a tia disse: - Já chega, Cíntia, está bom, já entendemos que se divertiu bastante. Que maravilha! Fernando reagiu: - Ora, Filomena, deixe a menina falar. Que coisa! Conte, Cíntia. O que mais? Cíntia ia prosseguir, porém de súbito seu rosto se apagou. O sorriso d esapareceu e os olhos ficaram tristes. Sobre a mesa, ao lado da xícara de chá, ela viu pequena notícia com a foto da mãe. Levantou-se e, antes que o pai pudess e impedi-la, abriu o jornal e leu a matéria. - O que é isso, pai? Estão dando dinheiro pela minha mãe? - Não é bem isso, Cíntia; nós só queremos encontrá-la. - E por que ninguém me disse que ela havia saído daquele lugar? - Ela não saiu; ela fugiu, minha cara - disparou Filomena, mal-humorad a. Ricardo aconchegou a filha nos braços e disse: - Não queríamos que você ficasse triste, Cíntia, só isso. - Não é verdade. Estão me escondendo as coisas. Onde pode estar mi nha mãe a esta hora? Como pode ter sumido? Onde ela está, pai? - Não sabemos, filha, por isso estamos pedindo a colaboração de pes soas que tenham algo a informar. Entendeu? -- Aqui diz que ela é assassina e perigosa... Não é verdade! -- Claro que é, Cíntia! Por que acha que... Chega, Filomena - interve io Fernando, com voz firme. E dirigiu-se à menina: Olhe, Cíntia, sua mãe est á doente. quando as pessoas, por alguma razão, ficam doentes, às ve-

107 Lucius SANDRA CARNEIRO zes fazem coisas que não conseguem controlar. Foi isso aconteceu à sua mãe . - Como, doente? Até o dia em que a levaram de nossa casa, estava p erfeitamente bem. Eu passava o tempo todo com ela e nunca vi nada de estra nho! Fernando olhou para Ricardo pedindo reforço, mas foi Filomena quem respondeu: - Vai ver você também precisa de ajuda, por isso não percebe... Fernando se ergueu bruscamente e pegou Cíntia pela mão. - Vamos andar um pouco. Você gosta de caminhar pelo pátio, não gost a? - Não quero, tio - disse a menina, mantendo o corpo imóvel e rijo, in conformada com a notícia. - Vamos, querida, vamos conversar um pouco. Quero lhe contar algum as coisas que você gostará da saber. Fique calma, logo encontrarão sua mãe . - Ah, isso é verdade, Cíntia, vão localizar sua mãe, custe o que custar.. . -- aduziu Filomena. Fernando puxou Cíntia e conseguiu que saísse com ele da biblioteca . Desceram as escadas imponentes da entrada da casa e ele, apertando a mão da menina, começou a conversar com ela, que agora chorava. - Não chore, Cíntia, vão achar sua mãe. - Por que, tio? Por que fizeram isso com ela? É uma pessoa boa, nunc a fez mal a ninguém! - Não estão fazendo nada... - tentava disfarçar Fernando, sentindo pr ofundo mal-estar pelas palavras da menina. - Ora, tio, por que vocês a prenderam? - Nós? - É, todos vocês. Você estava lá naquela noite horrível em que a levara m!

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-- Foi preciso, para o seu bem e o de seu pai. E também de sua mãe, que precisava de cuidados especiais. -- O que foi que ela fez, tio? - Cíntia estacou e fitou Fernando com firmeza.

-- Ela está descontrolada, com problemas emocionais, Cíntia; é difícil para você compreender. - É porque ela é diferente, não é? Porque dizia coisas estranhas, tinha aquelas visões esquisitas; não é isso? - Tudo o que se passava era sintoma da doença, dos distúrbios emoci onais que estão afetando sua mãe. Recebendo o tratamento adequado ela vai m elhorar; tudo vai ficar bem, você vai ver. - Vocês pensam que me enganam, não é? Porém a verdade é mais forte do que tudo e virá à tona. Fernando gelou ao ouvir as palavras da menina. O que significariam? - Que verdade, Cíntia? Do que está falando? - De tudo que tentam encobrir, por medo de enxergar. Cada vez mai s espantado com o que a menina dizia, bem como com o seu tom de voz, agor a alterado, Fernando sentouse em um banco a observá-la. Cíntia calou-se e baixou a cabeça, chor ando inconsolável. O jovem padre tentou de todas as formas alegrá-la, mas percebeu que a garota sofria profundamente. Veio-lhe então à mente a idéia do pároco de l evá-la ao orfanato, e sem pensar muito convidou: •- Quer auxiliar outras pessoas, que sofrem como sua mãe? Cíntia, pe la primeira vez, ergueu os olhos e enxugando as lágrimas perguntou: -- O quê? -- Quer me ajudar no orfanato? -- Posso?

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- Eu gostaria que me acompanhasse uma vez por semana e me aju dasse com as crianças. Muitas delas não têm mãe, Cíntia. - Como eu, tio. - Não, você tem sua mãe. Algumas nunca viram as mães... Seu sorr iso era terno ao comentar: - Pobrezinhas... Gostaria muito de ir, tio. Será que vou poder colabora r? - Claro. Tem doze anos e já pode cuidar de pequenas tarefas. Há muit o que fazer por lá. Só precisamos convencer seu pai, Cíntia. Ele não gosta m uito desse tipo de trabalho. Nunca foi visitar o orfanato. Temo que não concorde, nós te remos de insistir. - Deixe que falarei com ele, sei como pedir. Quantas crianças tem o or fanato? - Quase cinqüenta. - Mesmo? E você cuida de tudo sozinho? - Não conseguiria. Tenho alguns ajudantes. E como ajuda nunca é dem ais, será bem-vinda. Cíntia imediatamente envolveu-se com a idéia de acompanhar Fernan do em suas tarefas. Continuaram o passeio, lenta e pausadamente. Ao retom arem, a menina estava mais aliviada e já não falava na mãe. Quando entraram e Ricardo a o lhou, quase a perguntar como estava, a menina disse: - Pai, precisamos conversar. Puxando-o pelo braço, subiu com ele para o quarto. Fernando ainda se demorou um pouco, mas quando dom Felipe e Isabel chegaram o sobrinho estava saindo. Cumprimentou-os, já na porta: - Boa tarde, tio Felipe, tia Isabel. - O que está fazendo aqui a esta hora, Fernando? tem de celebrar a miss a das seis?

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Fernando empalideceu. Esquecera por completo o compromisso. -- Já estava de saída, tio. -- Em cima da hora. A missa começa em dez minutos! -- Já estou indo. Até logo, Filomena, até logo. E saiu em passos rápidos. Seguiu ofegante pela estrada que ligava a propriedade do tio às terras da paróquia. Quanto mais se aproximava, menos v ontade sentia de rezar a missa naquela tarde. À medida que se afastava da mansão do tio, foi desacelerando os passos até andar bem devagar. Já era noite quando chegou à igreja. A missa havia acabado e os fiéis se despediam do vigário. Fernando entrou pela porta dos fundos e foi direto para seu quarto. No caminho encontrou José, que lhe informou, quase sussurrando: - O padre está uma fera com você! Muito bravo! - Eu sei. Depois vou conversar com ele. Dirigiu-se ao seu quarto pensando que precisava achar uma boa justific ativa para dar ao clérigo. Mal o silêncio se instalara no pátio da paróquia, o uviu-o bater à porta. - Entre, padre. -- Onde esteve, meu filho? Desertou de suas tarefas? - Não, de maneira alguma. Estava tentando conversar com meu tio, p edir-lhe ajuda para impedir o avanço desse movimento que nos afronta. Padre Enrico esboçou leve contentamento e puxando uma cadeira, pró xima à cama, perguntou interessado: -- E o que conversaram? Teve ele alguma idéia? -- Conversamos longamente. Contei que pouco a pouco nossos fiéis c omeçam a aderir à nova doutrina. Nesse momento, Fernando recordou o caso que o padre lhe contara pe la manhã, e perguntou: -- E a família que foi visitar? Como ficaram as coisas?

111 Lucius I SANDRA CARNEIRO - Todos excomungados. - Todos? A família inteira? - É a família de Ermínia, lembra-se dela? Ficou viuva há dois anos. - Como não? É uma mulher dedicada... Logo ela, padre?! - Vê, meu filho, como o perigo está em toda parte? Fernando ficou pen sativo, e então arrematou: - Enfim, que sejam mesmo excomungados, pois se abandonam a f é o q ue se há de fazer? - Não se trata só de abandonar a fé; estão também dando péssimo exe mplo aos outros. Tenho de achar algum modo traze-los de volta. Precisa me a judar, Fernando. - Como? - Não sei, mas urge pensar em algo. Temos de forçar Ermínia a retoma r. É muito ruim para nossa reputação junto às autoridades eclesiásticas que f iéis sob nossa responsabilidade comecem a nos deixar, aderindo a esse movimento ef êmero. Durante a missa das seis notifiquei a comunidade de que toda a fam ília foi anatematizada. Espero que isso intimide os incautos e distraídos. - Por certo o fato causará muitas dificuldades à família perante a comu nidade. - Também penso assim; no entanto, precisamos intensificar essas difi culdades. Temos de estimular as pessoas a se posicionarem em relação a eles.

Fernando refletiu um pouco, porém estava sem nenhuma vontade de pen sar naquele assunto. Sentia as costas doloridas e o coração entristecido de ver o sofrimento de Cíntia. Desejando descansar o corpo e a alma, calou-se. O padre, ante o seu silêncio, levantou-se e quando na porta, já do lado d e fora, disse: - Pense em alguma coisa, Fernando. Sua mente é muito

112 RENASCER DA ESPERANÇA criativa, sobretudo quando se trata de proteger sua família. Use agora a mesm a criatividade para proteger a Igreja... Sem responder, Fernando fechou a porta e deitou-se de bruços. Sabia bem do que o padre falava. Tinha de pensar em algo...

113 Lucius SANDRA CARNEIRO

Capítulo Doze

Na pequena casa à beira-mar, Emilie passava os dias em silêncio, s entada na varanda, com os olhos lacrimosos e o coração amargurado. As noit es continuavam agitadas. Ainda assim, gradaüvamente ela melhorava, sem perceber. Não not ava, mas a idéia de buscar a própria morte começava a enfraquecer. Com a justificativa de que a jovem precisava se recuperar, Lucrécia a mantinha o máximo possível escondida dentro de casa, evitando que caminh asse pelos arredores. Receava que alguém a visse e os denunciasse. Naquela manhã, Jairo chegou da província ofegante. Mostrava-s e ainda mais preocupado: - Veja, Lucrécia: a situação se complica. Emilie, sentada junto ao fogão, sequer levantou a cabeça. - O que foi, Jairo? - Olhe você mesma. Jairo entregou à esposa um panfleto que recebera no empório, onde o proprietário comentara minuciosamente o assunto com ele. Lucrécia empalide ceu ao ler. Olhando de relance para Emilie, perguntou:

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- O que vamos fazer? Jairo olhou sério para a jovem, que permanecia alheia tudo, e disse: - Venho alertando que a situação é grave, Lucrécia, e você não me ouv e! Ela encarava o marido sem saber o que dizer. Fitou Emile que dessa v ez, como se retomasse distraída de algum lugar i tante, perguntou: - O que se passa? Jairo, em tom áspero, começou: - O que se passa... E antes que a mulher pudesse impedi-lo, entregou o panfleto a Emilie, q ue displicente se pôs a ler. - Calma, Jairo, vamos achar uma saída - ponderou Lucrécia, preocupa da com a reação da jovem. Emilie, ao terminar de ler, pálida e quase sem voz, balbuciou: - Esses... esses... - Por favor, tenha calma - pediu Lucrécia, quase suplicante. - Eles querem me destruir. Não me deixam em paz! Olhe para isto! Vendendo-me como se fosse uma mercadoria! Eles querem acabar comigo! Nã o poderei fugir para sempre. É melhor morrer do que voltar para aquele lugar, onde estava até e squecendo quem sou... Estava enlouquecendo de fato. Não vou voltar para lá ! Prefiro morrer! Levantou-se bruscamente, largou o papel e saiu correndo em direção à praia. Lucrécia foi atrás, mas Emilie andava tão depressa que era difícil alc ançá-la. A mulher dobrou o esforço ao vê-la entrar no mar, tentando ir para o fundo , cada vez mais para o fundo. Jairo vinha logo depois, preocupado com a es posa, que não sabia nadar. Parecendo ignorar esse fato, ela entrava cada vez mais, seguin do Emilie, que já tinha água até a cintura. Uma onda mais forte a encobriu. Emilie perdeu o equilíbrio e

116 RENASCER DA ESPERANÇA caiu sob o impacto da vaga. Lucrécia correu ainda mais quando viu a jovem desaparecer sob a onda e, sem pensar, mergulhou atrás dela. Jako assistia a tudo estarrecido. Gritava desesperado que Lucrécia r ecuasse, voltasse, e em vão procurava alcançá-la. Quase sem forças, ficou co mpletamente surpreso ao avistá-la nadando em sua direção e trazendo Emiie agarrada po r um braço, desacordada. Lucrécia nadou até quase a praia. Jairo falava com ela, que não resp ondia, como se ignorasse sua presença. Colocou Emilie com gentileza sobre a areia e verificou-lhe a respiração. Vendo que não respirava, imediatamente virou-a de bruços e começou a massagear a região do pulmão, com tal vigor que assustou Jairo. Ele não conseguia fazer nada; estava paralisado diante da precisão com que a esposa agia, esp ecialmente por saber que ela desconhecia qualquer princípio de salvamento. Após alguns fortes apertões sobre o peito, Emilie começou a tossir, expelindo a água dos pulmões, e em seguida voltou a respirar normalmente. Lucrécia pegou-a no colo, como a uma criança, e ainda sem dizer nenhuma palavra reconduziu -a para a pequena casa. Lá, vestiu-lhe roupas secas e deitou-a na cama, sob muitas ertas- Emilie, que tremia intensamente, foi aos poucos se aca mando até a dormecer. Lucrécia permaneceu ao seu lado e quando a viu dormindo sentou- se perto do fogão para também quecer. Abaixou a cabeça e começou a tremer. Só aí olhou su rpresa para Jairo, que tudo acompanhava sem dizer nada. -- O que houve, Jairo? Não estávamos atrás de Emilie? -- lndagou, o bservando a jovem que dormia. -- Você não se lembra? -- Do quê? -- De tudo o que se passou.

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- E o que se passou, afinal? - Isso que acontece às vezes com você é realmente incrível! - Aconteceu de novo? - Você correu atrás de Emilie, que entrou no mar e, perdendo o equilí brio, quase se afogou. Aliás, já estava afogada. Você mergulhou, nadou, tirou -a do mar, socorreu-a na praia com procedimentos que nem eu conhecia, e trouxe-a nos braços até aqui. Não se recorda de nada? - Não. É como se tivesse desmaiado. Lembro-me apenas de ter saído atr ás dela pela praia. Emilie balbuciou algumas palavras e Lucrécia correu até a beira da ca ma para ouvi-la: - Por que fez isso? - Não pode morrer, Emilie! Lucrécia pôs-se a acariciar os cabelos e o rosto da jovem. Lágrimas d esciam pela sua face, incontroláveis, enquanto a outra procurava consolá-la, dizendo: - Emilie, querida, tenha fé. Tudo há de se resolver. Deus não vai per mitir que seu sofrimento dure para sempre. Tenha confiança. Seja lá o que for que lhe aconteceu, tenho certeza de que há pessoas que se importam com você, que a amam! Sua filha e outras pessoas! Elas amam você! Não pode desistir ass im da vida, quando há tanto a ser realizado! - Você não entende... Eles querem me destruir - Emilie balbuciava. - Quem, Emilie? Seus familiares? - Não! Eles... - e a jovem gesticulava, apontando para o ar. Lucréci a olhou em volta e imediatamente percebeu que Emilie via entidades espiritua is que estavam ali. - Ninguém pode mais do que Deus, Emilie. Ele é soberano. Confie no P ai. Peça que a ajude! - Ele não me ajudou quando eu mais precisei...

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Como não? Ele a está ajudando a todo momento, você é que ainda não percebeu isso... Os olhos de Emilie demonstravam o terror que lhe provocavam as im agens que via. Lucrécia baixou a cabeça e começou a orar, enquanto a moça apenas chorava, assustada: -- Mestre Jesus, que nos inspiras e nos ajudas. Irmão de todas as hora s, de todas as lutas. Tu que sofreste mais do que todos nós, que conheces as d ores do abandono e da ingratidão, da rebeldia e do desprezo humanos, Tu que man tiveste Teus braços abertos e Teu amor distribuído para todos os que sofre m, para todos os que de Ti necessitam, dá-nos a bênção da Tua proteção nesta hora. Ampara esta irmã que sofre angustiosa dor. Mostra a ela, Senhor, Teu amor infinit o, e que ela possa, sob a Tua orientação, começar nova vida. Ajuda-nos, Senhor, para que possamos compreender Teus ensinamentos que são vida e luz para nossa s almas. Jairo, comovido, acompanhava a sentida oração. Ao final, lágrimas desciam pela face da mulher. Quando ergueu a cabeça, constatou que Emilie dormia sossegada. Suspirou aliviada e olhando para Jairo, que também tinha lágrimas nos olh os, estendeu as mãos para o companheiro, que a abraçou com ternura. Emilie dormiu durante toda a tarde e a noite inteira, acompanhada c onstantemente pelo carinho desvelado de Lucrécia. Na manhã seguinte, bem ce do, ao se levantar a dona da casa a encontrou sentada na cama. Assim que a viu, a jovem perg untou: - Quem mais esteve aqui ontem à noite? Aquelas pessoas horríveis, quem eram e o que queriam comigo? - Como se sente, Emilie? - Péssima! -- Mas com a graça de Deus está viva! -- Graças a você, mais uma vez! -- Não, graças aos espíritos superiores que nos amparam.

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- Que espíritos? Do que está falando? - Dos emissários de Jesus, que nos amam, nos assistem e nos protegem sempre. Emilie continuou olhando para Lucrécia e ela prosseguiu; - Eles querem o nosso bem, Emilie, somente o nosso bem. - Quem são "eles"? Aquelas pessoas que vi aqui à noite? Vieram para me buscar, não é? Para onde foram? - Além de você, Jairo e eu, não havia mais ninguém aqui ontem, Emilie . - Eu os vi! Eram quatro: dois homens e duas mulheres. Gritavam com igo dizendo que iam me levar embora, que iam me destruir. - Já disse que estávamos apenas nós três aqui. - E o que foi aquilo que vi? Estou ficando louca? Estava delirando? - Provavelmente não. - Então quem eram? - Alguns irmãos que ainda não compreenderam o amor de Deus. - O quê? - Existem muitas coisas que nos acontecem para as quais não temos explicação. Como são coisas que vão além do que conhecemos, precisamos b uscar outros conhecimentos que nos esclareçam esses fenômenos. - Que fenômenos? Jairo, que havia entrado na cozinha e acompanhava a conversa, respon deu: - Você estava se afogando, Emilie, e Lucrécia, que não sabe nadar, ent rou no mar e a salvou. - Não foi ela quem a salvou. Alguém se utilizou dela para dar socorro a você.

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-- Como assim? Do que estão falando? Lucrécia sentou-se ao lado de Emilíe e disse: -- Você acredita que existem pessoas boas querendo ajudá-la? -- Não, todos querem me destru... - Emilie interrompeuse Pela primei ra vez percebeu o quanto aquele casal a estava ajudando. Eles queriam realme nte vê-la melhor. Não pôde terminar a frase. Caiu em pranto e soluçava, sentida. - Sei que está magoada e triste. Mas se tiver fé e paciência Deus vai mostrar a você o que precisa saber e fazer para recomeçar sua vida. - Deus não se importa comigo! - os soluços da jovem aumentavam com as palavras de Lucrécia. - Claro que se importa! Ele sempre cuida de nós. - Então por que sofro tanto? Por que tanta injustiça? Por que meu mundo desmoronou e todos que eu amava me abandonaram? Explique-me, por q uê? - Não temos todas as respostas, mas Deus sempre sabe o que faz. Prest e atenção e veja como ele cuida de você! Se não fosse a intervenção divina, j á estaria morta e teria perdido a oportunidade. - Que oportunidade? De continuar sofrendo? - Da vida, Emilie, da vida! Você está aqui por alguma razão! Tudo em nossa vida tem um significado. Tudo o que está acontecendo a você tem u m motivo que, com paciência e fé, um dia entenderemos. Deus está dando chances a você, E milie, aproveite! Ela suspirou profundamente e disse: - O que posso fazer? Ele nem sequer me deixa morrer! Lucrécia percebeu o olhar de reprovação de Jairo, mas nada acresce ntou. Entregou-se aos afazeres domésticos, deixando Emilie novamente prost rada na cama. Enquanto Lucrécia se movimentava para todo lado, cuidando da casa e ajudando o marido na limpeza do pescado,

121 Lucius SANDRA CARNEIRO Emilie apenas observava, calada. No final da tarde> ela se levantou da cam a e caminhou até a porta. Lucrécia estava sozinha na pequena varanda; tra balhava Cantarolando suave melodia. EmiHe permaneceu encostada na porta. Sentiu o vento frio que vinh a do mar e por um momento experimentou pequeno alívio, em meio às Angústi as que trazia no coração. Contemplava a cena. Lucrécia, mulher simples e rude, trabalhand o alegre e calma; o emudecer lindo e luminoso; as árvores que balançavam com suavidade à brisa do mar. Tudo aquilo fazia brotar em seu coração um sentimento de pa z, de serenidade que há muito havia esquecido. Devagar, caminhou até Lucr écia, que ao vê-la sorriu sinceramente feliz: -- Sente-se aqui venha. O entardecer é maravilhoso. Gosto de assisti r ao pôr-do-sol, aqui da minha mesa de trabalho. É de uma beleza tão suave. .. Lembra minha terra... Emilie sentou-se e perguutou: - De onde você é? -- Nasci em Marrocos, amo esta terra. Só às vezes sinto saudade do ch eiro do mar que lá era diferente. -- Então também é uma estrangeira, como eu? -- Vê? Quanta coincidência, não, Emilie? Lucrécia sorriu e continuou trabalhando. Emilie ficou a olhar em sil êncio o sol que si punha lentamente. Lucrécia, de quando em quando, levanta va sorrateira os olhos do trabalho e notava satisfeita que a beleza da natureza fazia bem à jovem, alimentando-a de energia, ainda "ue ela não se desse conta disso. Finalmente o sol se escondia e Lucrécia começou a limpar todos os apetrechos que usara, Arrumando-os para serem guardados. Emilie, que obser vava sua atividade, quase sem perceber pôs-se a ajudá-la a guardar facas e outros talheres, aco mpanhando-a depois, quando iniciou a preparação do jantar.

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Capítulo Treze

Nos dias que se seguiram, Emilie passou a colaborar com Lucrécia e m pequenas tarefas domésticas. Logo que acordava, via a dona da casa chega r da praia, carregando um livro. Diariamente, no mesmo horário, ela entrava com o pequeno livro nas mãos. Então o colocava numa prateleira e começava seus afazeres. Naquela manhã, mais de um mês depois de ter sido encontrada no pen hasco, Emilie estava visivelmente mais animada. Levantou-se e já arrumou a cama, do jeito que Lucrécia fazia. Preparava-se para ajudá-la com o café quando Jairo entr ou, agitado e ofegante. Apavorado, dizia: - Temos de esconder Emilie. - Acalme-se, Jairo. O que está havendo? - Temos de escondê-la depressa. - Por quê? -- Estão vindo aí... A polícia, com aquele médico! •- O doutor Francisc o? -- Ele mesmo. Está acompanhado de um homem todo elegante, vestind o terno, e de outro com um uniforme que parece da polícia.

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Lucrécia pensou por segundos e perguntou: - A que distância estão da casa? - Ainda estão descendo a encosta, mas rapidamente nos alcançarão. Emilie chorava angustiada e já tremia, quando Lucrécia segurou suas m ãos, olhou-a nos olhos e disse: - Nada vai lhe acontecer. - Eles vão me levar de volta para aquele lugar horrível! Vão me levar...

- Ninguém vai levar você daqui. Confie em mim. Olhe em meus olhos. Vamos, olhe. Emilie fitou os olhos negros e profundos de Lucrécia e sentiu nova fo rça a envolvê-la. Sem dizer nada, secou as lágrimas e perguntou, hesitante: - O que vamos fazer? - Vou escondê-la. - Onde? Não temos lugar algum... -Temos, sim. Embora vá ser muito desconfortável para você, Emilie, é um lugar em que não acredito que irão encontrá-la. - Onde? - Lançamos os restos de peixes em um buraco mais ou menos fundo. Fi cam ali para secar e servir, depois, de adubo. Sabe onde fica o buraco? - Sim, é atrás da casa... - Então vá para lá imediatamente. O cheiro é forte, muito desagradáv el, e o lugar é apertado. Esconda-se embaixo dos restos de peixe e não faça nenhum barulho, nem para respirar. Confie em mim. Eles não a acharão ali; é o único lugar se guro. Levando a jovem até o pequeno quarto do casal, Lucrécia abriu a janela , escondida entre arbustos, e disse: - Por aqui, rápido. Saia pela janela e esconda-se. A ta- 124 RENASCER DA ESPERANÇA

bua que cobre o buraco é leve, você consegue movê-la sozinha. E não saia de lá enquanto não for buscá-la. Está certo? Compreendeu? Não chore, não tema, por favor. Tudo vai dar certo, Emilie, tenha fé. O tom de voz de Lucrécia era agora suplicante; porém seus olhos, bri lhantes e firmes, transmitiam algo a Emilie que a fazia obedecer. Ela balanç ou a cabeça e, sem dizer nada, saiu pela janela. Minutos depois, o médico estava na porta da cozinha, junto com outr os dois homens. Lucrécia e Jairo tomavam o café da manhã, aparentando absol uta tranqüilidade. Ao vê-los, Lucrécia se levantou e saudou, cordial: - Doutor Francisco, como está? Entre, por favor. - Vou direto ao assunto - disse o médico olhando ansiosamente em t omo, como à procura de alguém -, queremos saber o paradeiro de Emilie. São da família dela? - interrogou Lucrécia, encarando os outros dois, m uito interessada. Onde ela está? É verdade que foi embora? - disse o médico e fixou Luc récia, desconfiado. Esta, controlando o tom de voz, disse suavemente: -- De fato ela esteve aqui, mas já partiu. Encontrei a pobrezimha quase morta no alto do penhasco. Por certo ia atirarse de lá. Enquanto detalhava como a havia encontrado, observava atenção os estranhos que acompanhavam Francisco. Um ou vivamente interessado em su a narrativa. Contudo, o médico interveio depressa: -- Já sabemos de tudo isso, dona... Não me recordo de seu nome... -- Lucrécia, ao seu dispor - e estendeu a mão a um dos cavalheiros, q ue correspondeu, apresentando-se:

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- Sou Ricardo, marido de Emilie. Precisamos encontrá-la, ela não está bem. - Percebi logo que o senhor tinha alguma ligação com a jovem. Ricardo perguntou, intrigado: - Como assim? - Apenas uma impressão, nada mais. - E então, onde ela está? - Não está mais aqui conosco. Foi o outro homem quem falou dessa vez: - Olhe, minha senhora, não temos tempo para conversas. A senhora v ai responder pelo que fez. Recebeu em sua casa uma assassina perigosa. - Perdoe-me, senhor: até onde sei ela não matou ninguém; e mais ain da, eu a trouxe para cá desacordada, quase morta. Não a conhecia. Logo que chegou caiu doente, como o doutor Francisco sabe, e só descobrimos quem era quando e le nos contou. Ao melhorar um pouco, tencionávamos enviá-la para um hosp ital; contudo, tão logo foi capaz de se colocar de pé a moça quis partir. Não conseguimos seg urá-la nem convencê-la a procurar ajuda. - E por que não avisaram a polícia, se já sabiam que era uma pessoa pr ocurada pela justiça? - Ficamos penalizados com o estado dela; se fosse removida para u m hospício, naquelas condições, certamente morreria. No dia em que mandam os recado ao doutor informando que iria para um hospital, ela desapareceu. Naquela tarde, quan do retomamos da vila, já não estava aqui. Não sabemos para onde foi. Ainda estava muito doente e só falava da filha... Dando essas explicações, Lucrécia avaliava as mínimas reações de Ric ardo.

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-- Mesmo assim, vamos revistar tudo; não estou acreditando no que me dizem - exclamou o policial, com ar autoritário. - Fiquem à vontade. Podem procurar onde quiserem; aliás a casa é peq uena, vão verificar tudo rapidamente. Sem responder, o policial foi até o quarto, abriu o único armário, es piou sob a cama; olhou para o teto, à procura de algum esconderijo, mas viam- se as telhas e as pequenas fendas no telhado. Era uma casa extremamente simples. Apesar de Ricardo guardar silêncio, Lucrécia percebia em seus olhos que el e desejava perguntar-lhe mais sobre a esposa. Francisco permanecia sentado na cadeira que puxara, próxima ao fogão. Parecia inquieto. Logo o policial reapareceu. - Aqui, nada. Vejamos do lado de fora. Pode haver um lugar onde ela e steja escondida. Jairo, calado, só observava. De súbito o policial dingiu-se a ele: - Venha comigo. Mostre-me o que tem por aí. Sem olhar para a esposa, ele saiu em companhia do policial. Começou mostrando o barco, que estava ancorado perto da praia. - É seu? - Sim. Vivo da pesca. - E por que hoje não foi pescar? - Porque íamos à vila, eu e minha esposa. - Vamos até o barco. Jairo conduziu o policial em pequeno bote até o barco. Apôs breve bu sca, retomaram. Francisco e Ricardo, agora do lado de fora da casa, esperava m pelos dois. Ao chegarem, Ricardo disse: -- Vamos, Pimentel. Ela não está mais aqui. Não há como escondê-la ne ste lugar. -- Calma, Ricardo, ainda quero examinar as imediações Pode haver a lgum pequeno esconderijo para a fugitiva...

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Ricardo não respondeu e evitava olhar para Lucrécia, que mantinha sil êncio. Ants de prosseguir, o policial disse a ela: - Devia estar mais preocupada. Está com problemas, minha senhora. Da r guarida a assassinos é crime. Vão ter de enfrentar as conseqüências. - Não fizemos nada de errado. Como já disse, nem sabíamos quem era a jovem. - E quando souberam, nada fizeram! - Não deu tempo. Ela fugiu muito mais rápido do que imaginávamos. - Nesse ponto Francisco interferiu, irritado: - Chega de conversa, Pimentel, se quer achá-la precisa procurar! Ten ho muito que fazer. Vamos logo com isso! Ricardo olhou para o médico e disse: - Se a reconheceu quando a viu, por que levou tanto tempo para me av isar? Por que não o fez de imediato? - Assim que soube me preparei para lhe escrever, Ricardo. No entan to, tive problemas sérios na província, uma epidemia de gripe se alastrou. H ouve vários óbitos, pergunte a Pimentel. Ficou difícil avisá-lo. Mas logo que pude fui vê-lo e informar onde ela estava. Tínhamos também de ser discretos, para qu e não fugisse. Seguido de Jairo, o policial procurava em todo lugar. Caminharam p ara longe do casebre e depois regressaram vasculhando os cantos em que era possível alguém se esconder. Ao se aproximarem da casa, quando o oficial já se preparava pa ra encerrar a busca, viu a tábua cobrindo o buraco e perguntou: - O que é isso? - É onde jogo os restos dos peixes que limpo. Minha esposa gosta de c ultivar plantas e prepara estéreo bem forte com as carcaças. - Abra, quero ver.

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Jairo se abaixou, fazendo muito barulho à medida que movia a tábua. O policial acercou-se do buraco, deu uma olhada rápida; como o cheiro era in suportável, afastou-se e disse: -- Feche! Não tem ninguém aí. Jairo tampou o buraco e foi atrás do oficial, que ao se acercar dos outr os admitiu: - Parece que ela não está mesmo por aqui. Ricardo falou, quase sem pe rceber: - Não, não está. Se estivesse, sentiria seu cheiro... - Então vamos - afirmou Francisco, puxando Ricardo pelo braço. - Calma, senhores, o que faremos com estes dois? Eles devem vir comi go! Olhando ironicamente para Lucrécia, Francisco opinou: - Tenho idéia melhor: coloque um guarda por aqui, bem na porta do cas al. Se ela resolver voltar, nós a pegamos. - Não posso deixar um de meus poucos homens aqui, dia e noite! vou n otificar as autoridades e venho buscá-los para serem interrogados. Dirigiu-se depois a Jairo e Lucrécia: - Vocês terão de se entender com a justiça. Estavam de partida quando Ricardo virou-se para Lucrécia e perguntou : - Ela disse alguma coisa a meu respeito? Lucrécia segurou a mão do jovem e respondeu baixinho: - Ela o ama, com certeza, e seria incapaz dos atos de que a acusam. Ricardo puxou a mão e retrucou: -- Devia ter pensado nisso antes de fazer o que fez! E dessa vez, sem o lhar para trás, subiu a encosta com os outros dois. Assim que desapareceram ao longe, Jairo seguiu-lhes o tra-

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jeto, certificando-se de que haviam partido. E foram imediatamente retirar Emilie do buraco de detritos. Puxaram a tampa e não a viram. Lucrécia cha mou: - Pode sair, Emilie, eles já foram. Do meio de uma montanha de detritos, Emilie emergiu imunda. Puxada por Jairo e Lucrécia, conseguiu sair. Estava com odor repugnante e tossia muito. Lucrécia ia preparar água para o banho, quando Jairo disse: - É melhor que tome antes um banho de mar. Lucrécia conduziu a jov em até o mar e depois a amparou no banho quente e reconfortante. Só então ela teve condição de falar: - Ricardo estava com eles, não estava? Ouvi sua voz. - Estava. E um homem muito bonito. - E igualmente cruel! Como pôde acreditar que eu queria fazer algo c ontra ele? Como pôde? - Na maioria das vezes nos deixamos convencer pela aparência das c oisas. É por isso que inumeráveis são nossos enganos. Se não procuramos a verdade, acima de tudo, podemos nos enganar com muita facilidade. Mas pelo pouco que pud e notar, ele ainda a ama. - O quê? - É verdade, ele ama você. Pude perceber nos seus olhos. Emilie, ao e ncarar Lucrécia, lembrou-se do olhar confiante que a fizera crer que poderia escapar mais uma vez, e perguntou: - Como sabia que conseguiria escapar se me escondesse? - Apenas sabia, sentia. Como se alguém me dissesse ao ouvido. Emili e continuou olhando fixamente para Lucrécia e por fim disse: - Você é uma pessoa estranha, Lucrécia. Muito estranha... Enquanto r epunha água pela quinta vez para tentar amenizar o odor forte que se impregn ara na pele de Emilie, ela respondeu:

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.- Acho que esse é o maior elogio que ouvi de você desde que chegou aqui. Estamos progredindo! E esse cheiro que não passa... Pela primeira vez em meses, Emilie abriu um largo sorriso e disse: - Acho que esse cheiro não vai passar nunca mais!

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Capítulo Quatorze

A família Valença estava reunida para a primeira refeição do dia. A primavera chegara e da janela da sala Cíntia observava om olhar melancólico as folhas verdes das árvores que balançavam ao sabor do vento. Sua mente infantil não encontrava explicação para o que ocorria co m a mãe, com sua família. Ela percebia que o pai nbém não estava feliz. Sen tia, sem compreender exatamente, que Emilie estava em perigo e precisava de ajuda. Isabel, que notara o abatimento do filho, não resistiu a comentar. -- Vejo que está acabrunhado desde ontem, Ricardo. O que aconteceu, afinal? Encontrou ou não E... Ele fez sinal para que a mãe se calasse. Não q ueria que titia sofresse; por isso pedira à família que evitasse tocar no nome de Emilie na frente dela. Isabel se conteve, visivelmente contrariada. Seguiu-se curto silêncio. Ricardo fixou a filha, que remeexia um pedaço de pão sem comê-lo, e pediu : -- Por favor, Cíntia, deve se alimentar. Há dias não come direito. Sua tia tem me falado de sua indisciplina às refeições.

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Cíntia permanecia de cabeça baixa. Ricardo, sentado ao seu lado, to cou gentilmente o queixo da menina e levantou seu rosto. Viu lágrimas em se us olhos e falou em tom suplicante: - Minha filha, que faço com você? Está chorosa há dias! - Deixe-me ir com tio Fernando ao orfanato. Sei que será bom para mim , pai, eu gostaria muito! - Já expliquei que não é coisa para você, minha filha. O lugar é muito triste, cheio de crianças infelizes! Não é lugar para a princesinha do papai! Uma mocinha como você precisa conviver com crianças de sua condição social e não ficar enfiada num orfanato! Nesse momento, Isabel, que ouvia calada, interveio: - Ora, Ricardo, se a menina tem vontade, por que não a deixa ir? Qu e mal pode haver em conhecer o orfanato? - Mas ela quer acompanhar Fernando todos os dias! - Não, pai, não todos os dias, somente uma vez por semana! - Ora, Ricardo, deixe-a ir ao menos uma vez. Quem sabe ela não tem mesmo vocação para servir... - Isso nunca, mãe! Ela é uma menina muito inteligente e haveremos de prepará-la muito bem. Terá a educação mais primorosa que eu lhe puder p roporcionar! Isabel silenciou por um breve minuto, depois insistiu delicadamente: - Ora, não vejo mal algum em conhecer o lugar. Ao menos visitar... Cíntia concordou, pedindo com voz suplicante: - Por favor, pai, isso me deixará muito feliz! Ricardo olhou para a mãe, tentando identificar-lhe as intenções ocultas, dep ois para a irmã, que se mantinha cal Examinou o pai, que parecia distante, e por fim fixou bem rosto da filha, que continuava a suplicar com os olhos. Apesar de contrafeito, respondeu:

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-- Está bem, pode conhecer o lugar. Mas quando você voltar vamos conversar sobre sua visita. E quero falar com Fernando também, conhecer me lhor as intenções dele. O assunto ainda era o mesmo quando Fernando apareceu, juntando-se aos primos e aos tios no desjejum. Assim que terminaram, Ricardo levou o p rimo até a biblioteca e ali o informou de que deixaria Cíntia acompanhá-lo naquele dia. Quis sabe r mais sobre o orfanato e sobre as atividades que desenvolvia; Fernando exp licou tudo, solícito. Ao saírem, Ricardo disse à menina: -- Muito bem, vá com Fernando, e lembre-se: logo que voltar, quero s aber tudo com detalhes. Cíntia sorriu, concordando. Beijou o pai com carinho e saiu satisfei ta em companhia de Fernando. Vendo-os afastar-se, Isabel perguntou a Ricardo : - Agora que a sua princesinha saiu, pode me contar por que está tão ca bisbaixo? Teve notícias dela? - Tive. Filomena ergueu a cabeça curiosa: - E onde está, já sabe? - Ela escapou novamente. - Como, escapou? - indagou a irmã, fitando-o. Ricardo suspirou angust iado e por fim falou: -- Esteve na casa de pescadores, porém foi embora. Parece que ficou gravemente doente e quase morreu. Filomena olhou para a mãe, que também lhe endereçou ar significati vo, compreendendo ambas que ele ainda se importava muito com a esposa. Fel ipe se interessou: -- E esses tais que a acolheram não sabem para onde foi? Disseram que ao melhorar um pouco desapareceu. Quem são essas pessoas? -- Gente simples, pai, pescadores.

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- Sabiam que ela é uma fugitiva? - Souberam quando Francisco a visitou. - Então foi Francisco que a encontrou? - Sim, foi ele quem cuidou dela e me trouxe notícias sobre seu paradeir o. Felipe sorriu irônico e disse com desdém: - Esse Francisco não perde uma chance sequer de levar alguma vantage m da situação... Ricardo ficou pensativo, e então o pai falou: - Onde essa gente vive? - À beira-mar, próximo a San Sebastian. Filomena, que atentamente ouvia a conversa, perguntou: - Quando fugiu do sanatório não conseguiu ir muito longe, não é? - Parece que não. Contudo, agora não sabemos onde está. Filomena insi stiu: - Será que não sabem de nada mesmo? Ela deve ter dito alguma coisa sobre seus planos! Para onde poderia ter ido sem dinheiro, sem nada? Estari a tentando voltar à França? - Precisamos encontrá-la - disse o pai. Nossa festa se aproxima, e s ua mãe me chamou a atenção sobre a possibilidade de Emilie resolver vir até aqui e empanar o brilho da celebração. Mais uma coisa, Ricardo: essa gente deve pagar por ter dado proteção a uma assassina. - Disseram que logo que souberam quem era, ela desapareceu. Não vej o necessidade de sofrerem represálias, pai; são pessoas simples, vamos deix á-los em paz. - De modo algum, Ricardo! Muito me surpreende você, sabendo do pe rigo que correu ao lado dessa mulher desequilibrada, ser complacente com aqueles que a acobertaram. - Eles não sabiam de nada. - Quero que sejam investigados.

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-- O Delegado estará cumprindo com todos os procedimentos legais. -- Pois muito bem, quero que me mantenha informado sobre o andamen to dessas investigações. Quero ter certeza do que realmente aconteceu. Ricardo acatou a ordem do pai e a conversa derivou para temas mais le ves.

137 Lucius SANDRA CARNEIRO Capítulo Quinze

Naquela noite, após refazer-se do susto, Lucrécia conversava com Emi lie: -- Penso que doravante precisaremos ser mais cautelosos. A jovem per guntou, irreverente: -- Está com medo, Lucrécia? A amorosa mulher sorriu e disse com suavidade e ternura: - Não é medo, e sim precaução, inteligência. Sabemos que daqui em diante estarão de olho em nós e, no mínimo, tenos de redobrar os cuidados. E precisaremos achar a melhor Baneira de esconder você. Vamos ter de encontrar depressa n a saída para protegê-la. Enulie ficou quieta; Lucrécia virou-se do labor no fogão e ferguntou: -- Embora ainda esteja triste e magoada, você me parece ligeiraramente mais disposta. - É verdade, sinto-me um pouco mais calma, em especial depois do q ue você me disse a respeito de Ricardo. Talvez ele Ltenha tanta culpa em tu do o que aconteceu. -- Gostaria que me contasse mais sobre o que houve,

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mas somente quando se sentir preparada. Dessa vez Emilie apenas sorriu. Lucrécia terminou de fazer o jantar e quando Jairo chegou sentaram-se os três à pequena mesa. Lucrécia, então, informou Emilie de que sairia naquela noite: - Desde que você chegou, doente e fraca, estive afastada de algumas tarefas importantes para mim. Agora que está melhor, posso voltar às minhas responsabilidades. - Que tipo de tarefas? - interessou-se Emilie. - Tarefas espirituais. Diante do espanto e do visível desconforto da moça, Lucrécia imediat amente procurou esclarecê-la: -- Jairo e eu fazemos parte de um grupo que estuda assuntos ligados à espiritualidade e não tem nada a ver com qualquer prática estranha ou místi ca. - O que estudam? - Estudamos muitas questões transcendentais e, mais especialmente, os ensinos de Jesus. Como Emilie se mantivesse calada e de cabeça baixa, concentrada em seu prato, Lucrécia, após breve pausa, acresceu: - Todas as semanas nos reunimos nesse pequeno grupo e temos aprend ido muito. Emilie continuou pensativa. Jairo então mudou o tema da conversa, a nunciando que precisava ir a Barcelona em breve: - Meu plano seria ir amanhã, Lucrécia. Entretanto, não rne agrada em nada largar as duas sozinhas aqui; receio que apareçam outra vez atrás de Emi lie e as peguem desprevenidas. - Estou matutando em algum modo de mantê-la a salvo - disse a mulher . - Pense também em algum modo de nos proteger. Lucrécia, meditativ a, nada respondeu. Terminou de jantar e fazia menção de se levantar quand o Emilie perguntou:

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-- O que exatamente estudam, Lucrécia? É algum tipo de sociedade científica? Não compreendo. Estudam também os ensinos de Jesus? com que intenção? Lucrécia dirigiu significativo olhar para Jairo e então esclareceu: - Estudamos fenômenos espirituais, Emilie. Você tem razão quanto a ser uma espécie de sociedade científica, porque de alguma forma também é isso, mas não só. Estudamos as relações do mundo espiritual com o mundo material, ente nde? - Não, não entendo. - Estudamos manifestações espirituais, mas não apenas para satisfazer nossa curiosidade. - O que são essas manifestações? - São espíritos que conversam conosco. Fazendo o sinal da cruz, Emilie reagiu: - Deus me livre de tais práticas! E você vem dizer que não é magia? - Não há nada de sobrenatural ou de fantástico nisso; o que acontece é que questões ainda desconhecidas para nós agora estão sendo reveladas. - Lucrécia, como pode afirmar que não há nada de sobrenatural, de m ístico em se falar com os mortos? Além de tudo é um sacrilégio! Há alguém de quem você goste muito, a quem tenha sido muito ligada, e que tenha partido deste mundo para a Pátria espiritual? -- Como assim? -- Que tenha morrido? Emilie tomou-se subitamente séria. De seus olhos brotaram lágrimas que se avolumaram e lhe desceram pela face, ela respondeu: Minha avó, Hel oise. Morreu quando eu era adolescente.

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Foi ao lado dela que passei os melhores momentos de minha vida. Era a pess oa mais doce e terna que já conheci. Um anjo. Sinto muita falta dela. - E se eu lhe disser que talvez seja possível entrar em contato com sua avó? - Isso é inadmissível. Os mortos devem descansar em paz! Não devem os, não podemos perturbar-lhes o descanso sagrado! Não, jamais participari a desse tipo de práticas... Emilie silenciou como a se lembrar de algo. Lucrécia e Jairo respeita ram-lhe o silêncio e concluíram seus afazeres. Lucrécia aprontou-se e saiu, n ão sem antes recomendar ao marido que mantivesse a porta trancada e tomasse cont a de Emilie. Jairo acompanhou a esposa até certa distância e Emilie ficou a contemp lá-los da janela, até a figura de Lucrécia se perder na praia. Não obstante se ntir repulsa por aquele tema, diversas perguntas assaltavam-lhe a mente: "E se , admitindo-se apenas como hipótese, fosse mesmo possível falar com minha avó? E se ela pudesse falar comigo?"... "O que será que estudam nesse grupo? Como acon tecem esses contatos?". Essas e outras indagações a rondavam; entretanto , buscava com vigor afastá-las e não se envolver naquele assunto. A jovem recordou o quanto lutara, toda a sua vida, para ser conside rada normal aos olhos de todos. Apesar das estranhas experiências que tinha , e sem compreender o que se passava em muitas ocasiões, tentava ignorar os fatos e agir como as pessoas normais. Guardava mágoa e ressentimento dos pais, que a recri minavam e se envergonhavam dela, procurando escondê-la da família e dos amigos. Emilie se sentou perto do fogão, que ainda tinha brasas acesas, tent ando se aquecer. Ajeitou-se na cadeira e continuou pensando: "Quanto já reze i? Quantas ave-marias, quantos pa" dre-nossos? Quantas penitências já me impus e a q uantas me

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submeti, para tentar conter essas perturbações inexplicáveis que às vezes tenho, em que perco completamente o controle sobre mim mesma?". Suas reflexões duraram longo tempo, até que o frio se intensificou e a s brasas por fim se apagaram. Jairo, ao voltar, recolhera-se. Ela se levantou lentamente e foi para o quarto, disposta a dormir. Antes, porém, assegurando-se de qu e Jairo estava mesmo deitado, procurou pelo pequeno livro que Lucrécia sem pre trazia consigo quando retomava da caminhada matinal. Era um exemplar do Novo Testament o. Abriu e folheou o volume, percebendo que havia trechos grifados. Enq uanto virava as páginas, um papel dobrado caiu de dentro do livro. Emilie abriu com cuidado a folha , já amarelada, e viu que era uma carta endereçada a Lucrécia. Num impulso leu o texto, que lhe agradecia pelos esforços em seguir os ensinamentos do Evangelho e mencionava uma importante missão que ela devia realizar; falava também q ue seus filhos estavam sendo bem cuidados, que não se preocupasse com eles. Percebeu qu e nessa altura o texto estava manchado e só com muito esforço conseguia ler, como se alguém tivesse dissipado a tinta com água. Emilie dobrou a mensagem e a recolocou no lugar. Pensou em Cíntia, sentindo a saudade inundar-lhe o coração. Ela não tinha nenhuma certeza de que sua filha estava sendo bem cuidada. Foi devagar para o quarto e ajeitou-se sob as cobertas, procurando pro teger-se do vento frio que entrava pelas frestas. ubservava as diversas fendas no teto e na parede, lembrandose de tudo o que já havia possuído. Recordou seu q uarto luxuoso na mansão em que vivera com Ricardo. Saudade, tristeza e m água misturavam-se em suas lembranças. Por mais que se reasse na cama, não conseguia dormir . Perguntava-se por que a sido vítima daquele complô para destruí-la. Re memorou

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outra vez tudo por que havia passado, sentindo dor e ressentimento intraduz íveis invadirem-lhe a alma. Só depois que Lucrécia regressou, silenciosa, foi que ela pôde finalme nte adormecer.

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Capítulo

Na manhã seguinte Emilie despertou aflita, angustiada. Assim que a viu, Lucrécia percebeu que não estava bem. Desde o café permaneceu calada, até que, pelo meio do dia, Lucrécia lhe perguntou: - O que a aflige tanto, Emilie? Ontem estava melhor, mas hoje vejo q ue pesadas energias a envolvem! Embora notasse o carinho e a preocupação daquela mulher, Emilie f alou asperamente, como que dominada por uma força desconhecida: - Ora, por que não se cala? Que pretende, afinal? Lucrécia percebeu o tom de voz alterado da jovem e cautelosamente questionou: - E por que se irrita tanto com meu interesse? Emilie começou a sentir estranho sono se apossar dela e aos poucos tu do sumiu à sua volta. Já passara por aquilo várias yezes e lutava para manter o controle; todavia, não tinha poder Para impedir nada. Respondeu, ainda mais exaspera da: -- Ora, velha, sabe muito bem do que estou falando. O que pretende , opondo-se a nós? Já avisamos que não queremos

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intromissão, que ela tem de pagar pelo que fez. Já avisamos! para se afasta r dela. Só que você insiste, não é? Continua teimando em ajudá-la. Está atr apalhando nossos planos... Lucrécia, compreendendo claramente a situação, olhou com maior ternu ra para Emilie, que se transfigurara: tinha os olhos arregalados e o rosto c ontorcido, rangendo os dentes com muita força. com suavidade na voz e profunda compa ixão por aquelas entidades espirituais perturbadas, ela respondeu: - Não percebe que me preocupo não somente com ela mas igualmente com vocês? Sei que estão sofrendo e gostaria de poder auxiliá-los. Permit am que ela me acompanhe aos estudos, e venham conosco. - Nem pense nisso! Essa mulher de aparência delicada que está diant e de seus olhos esconde um monstro de maldade sem limites... Não pense ela que nos engana, pois sabemos muito bem quem realmente é... - Meus amigos... - Não nos chame de amigos, porque não somos seus amigos... - Meus irmãos, todos nós somos doentes, necessitados de amor, com preensão e perdão. Cometemos erros, que muitas vezes não percebemos, ilud idos que somos pelo orgulho e pela vaidade... Entretanto, todos temos a possibilidade de recomeçar, de reconstruir. Assim como o sol nasce a cada manhã trazendo um novo dia, cheio de oportunidades, também a vida se renova trazendo outras chances para con sertarmos nossos erros, repararmos nossas falhas... - Chega! Já basta! Nem ela nem você se livrarão de nós facilmente. Portanto, vamos dando o último aviso: ou desiste e a manda embora, ou vamos transformar sua vida em um suplício! Em face das ameaças terríveis que recebia, Lucrécia baixou

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a cabeça e se pôs a orar, pedindo proteção a Deus, além de ajuda para Emili e e para aqueles espíritos que a perseguiam. Quando ergueu a cabeça, depois da sentida prece, Emilie a olhava assustada; a cor lhe sumira do rosto. Balbuciou, então : .- O que... o que aconteceu? Lucrécia notou a mudança na expressão da jovem e soube que ela não tinha noção do que sucedera: - Você falou algumas coisas estranhas... - O que foi que eu disse? A bondosa Lucrécia, mesmo sob a emoção do ocorrido, procurava mant er a calma e reiterou: - Algumas coisas estranhas, só isso. Contudo, vendo a expressão amedrontada que persistia na jovem, fitou -a e perguntou: - E a primeira vez que sente isso? Emilie explodiu, entre lágrimas: - Não! Isso se repete comigo desde que me conheço por gente. E horr ível! Perco o controle do que está havendo, é como se de um lugar muito di stante ouvisse o que se passa em volta de mim, e não consigo dizer nada, fico como que e m sonho. Não sei o que é, nem por que acontece, mas já atrapalhou muito m inha vida! Lucrécia se levantou e aconchegou Emilie carinhosamente nos braços ; a moça continuava em pranto angustiado: - Meus pais me mandaram para um convento, tão logo completei onze anos. Não queriam conviver comigo, por vergonha de ter uma filha doente. .. Era como diziam: que eu era doente. Foram anos de tormento. Minha mãe, a cada visita, quer ia me convencer a me tomar freira; a madre superiora um a chamou e disse que eu não poderia, que claramente não nenhuma vocação. Ao voltar para casa, o suplício aumentou. Eu completara dezoito anos e meus pais me mantinham

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presa, sem poder sair nem me divertir, por recearem o que os outros diriam se eu tivesse outra crise. Lucrécia permanecia abraçada à jovem, que prosseguiu compulsivamen te: - Tento me livrar desse fardo que me pesa na existência, mas nem seq uer sei do que se trata. Não me creio doente pois me sinto bem e normal; só quando essas coisas acontecem, quando perco totalmente o domínio sobre mim mesma, é q ue fico apavorada. Nessas ocasiões fico fora de mim, e dizem que me tomo agressiva e perigosa. Meu Deus... O que se passa comigo, Lucrécia? Estou tão cansada... Sem responder, Lucrécia abraçou-a mais fortemente e ela continuou: - Quando encontrei Ricardo, achei que finalmente seria feliz! Foi uma paixão incontrolável e recíproca - pelo menos é o que acredito - e nos casam os seis meses depois de nos conhecermos. Meus pais ficaram aliviados; mal podiam crer que um homem de família tão rica e poderosa se interessara por mim àquele ponto. Dois meses depois do casamento, fiquei grávida e minha alegria parecia não ter fim. Tudo era maravilhoso. Todavia, quando Cíntia tinha cinco anos o probl ema reapareceu. No início, era esporádico e quase sempre estávamos apenas eu e Ricardo. Ap esar de ter ficado assustado, ele não contou nada a ninguém. À medida que Cíntia crescia, o problema ia se acentuando e se tomava mais freqüente. Até que um dia tive uma crise terrível na frente de toda a família. Disseram que tentei agredi r minha própria filha, àquela altura contava quase dez anos. Quando voltei a todos se mos travam apavorados e me tratavam como doente mental. Ricardo estava lívido e seu semblante era reprovado!- Minha filha chorava, com medo. Não gosto nem de lembrar. - Daquele dia em diante, minha vida transformou-se em

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novamente. A mãe de Ricardo, que me recebera bem, mas com reservas, tom ou-se áspera e indiferente. Ricardo exigiu que eu fizesse um tratamento com médico amigo da família. Eu sentia que era minha única alternativa, já que todos estavam se afastando de mim. Ricardo evitava sair comigo e passou a não me levar mais a festas e outras reuniões em que estivessem pessoas conhecidas ou da família. Lucrécia, em silêncio, ouvia o desabafo que transbordava daquele coração desesperado. De quando em quando, Emilie enxugava as lágrimas que desciam e seguia quase indiferente, como se a outra nem estivesse ali: - O pior ainda estava por acontecer. Todo ano eles fazem uma grande f esta que reúne muitas autoridades, inclusive eclesiásticas. Emilie fechou os olhos, como se procurasse focalizar na mente todos os pormenores daquele dia, e narrou: - Eu despertei mais angustiada do que me era habitual. As consultas com o doutor Francisco não estavam ajudando, pois sentia desconforto junto dele. O médico, por sua vez, garantia a Ricardo que eu precisava continuar com as sessões e também me receitara medicamentos. A princípio parecia interessado em m eu problema e de fato desejoso de auxiliar. Até aquele dia eu não sabia ao certo o que se p assava. Ele chegou e foi conduzido a um quarto de hóspedes. Meu marido per cebeu que eu não estava bem e pediu que conversasse com Francisco ali mesmo, na casa. E u relutava, porém Ricardo insistiu e acabei indo até o quarto onde o médic o se instalara. Ele me recebeu atencioso e pediu que contasse o que sentia. Enquanto ouvi a minha resposta, aproximou-se da poltrona em que me sentara, ajoelhou-se aos us pés e tomou-me as mãos delicadamente entre as suas; em seguida disse que eu deveria deix ar Ricardo, que era infeliz no casamento e que isso estava me tomando uma pessoa doente.

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Quando me levantei, assustada, segurou-me fortemente pelos ombros e afirmo u que, apesar de não admitir, eu estava tão atraí da por ele como ele por mim; assegurou que se eu não assumisse meus sentimentos, entregando-me a ele, não poderi a experimentar alívio para meu sofrimento. Nem sei como, desvencilhei-rne horrorizada, saí batendo a porta e corri para meu quarto, trancando-me lá por algumas hora s. Chorava ainda, sem saber o que fazer, quando meu marido bateu e me cha mou. Disse que seu primo Fernando e dom Antônio queriam conversar comigo Eles entraram e puseram-se a rezar à minha volta. Depois o bispo sentou-se perto de mi m e começou a falar. Foi aí que senti tudo sumir e novamente os ouvia a distância. Lutei como nun ca. Sabia que se aquilo se repetisse estaria perdida, seria meu fim! No enta nto, não pude evitar. Quando retomei, estava deitada na cama e sozinha. A porta fora trancada e passei dois dias presa no quarto. Foi humilhante! Emilie se calou, mas continuou chorando sentida. Lucrécia a enlaçav a com carinho cada vez maior. A jovem então ergueu os olhos e indagou: - Você não teme que eu seja violenta e também a ataque? Não tem med o dessa doença, ou de sei lá que coisa é, que se apossa de mim e sobre a qu al não tenho o menor controle? Lucrécia, procurando encontrar as palavras certas para não assustá-la mais, respondeu: -Não, Emilie, não tenho medo. Conheço outros casos como o seu; você não é a única a ter esse tipo de... digamos, problema. Emilie enxugou as lágrimas e perguntou: - Quer dizer que sabe o que ocorre comigo? - Conheço inúmeros casos iguais ao seu. - E o que é isso que me arrebata de repente e me tira o controle de meus atos? Por que ajo dessa forma? Responda -me! Ajude-me, por favor! Se souber o que é, por favor, me ajude.

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A jovem ansiava por uma resposta, mas Lucrécia lhe disse: -- Emilie, querida, sabe que tenho por você um carinho de Mãe não sabe? Já percebeu o quanto tenho tentado ajudar. -- Emilie moveu a cabeça afirmativamente e ela prosseguiu:. -- Então, peço que confie em mim. Quero apenas e tão -somente o seu bem e disso já dei provas. Agora, precisa confiar em mim. Nem tudo é tão s imples de ser esclarecido. Portanto, não vou conseguir explicar exatamente o que se pass a com você de uma hora para outra; vai levar algum tempo. -- Pelo menos me diga, eu estou doente? Isso tudo que sinto é uma doença mental ou alguma coisa ruim toma conta de mim? - Nem uma coisa nem outra. Você não está doente... Não da forma c omo todos dizem. O fato é que somos todos doentes da alma, Emilie, desesp eradamente necessitados de Deus e do Seu amor, de Jesus e dos Seus ensinamentos, para curar-nos de ssas chagas que estão dentro de nós. Como Emilie a olhasse demonstrando não entender em absoluto do que ela falava e qual a relação de uma coisa com a outra, Lucrécia aduziu: - Emilie, você vai compreender tudo isso, tenha calma. Se Deus a enca minhou até nós, tenha paciência e fé que tudo se esclarecerá. Emilie segurou Lucrécia pelo braço e começou a sacudi-la freneticame nte, pedindo: -- Mas você não me responde, precisa me responder! Se souber o qu e tenho, não me negue socorro! Prove que gosta de mim de verdade, diga o que é que acontece comigo! Lucrécia orava mentalmente buscando apoio, e então disse: -- Você tem problemas espirituais, Emilie, e pode resolvêOs se realmen te quiser. Emilie soltou-a e perguntou:

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- Como, problemas espirituais? Estou possuída por alguma coisa rui m, é isso? É o que os padres diziam, é o que as freiras diziam; e eu rezo, pe ço, sem nenhum resultado! - Calma, Emilie. Existem conhecimentos novos que elucidam fatos co mo esses, que ocorrem com você, e que até agora não tinham explicação. Já presenciei a solução de casos como o seu através de tratamento espiritual sério e bem co nduzido. - Do que está falando? Que conhecimentos são esses? É o tal grupo q ue fala com mortos? Não quero saber dessas coisas! - E se eu disser que pode melhorar se me acompanhar a essas reuniões ? Que vai encontrar ajuda? Emilie gritou, indignada e rebelde: - Já disse que não Vou me envolver com essas bruxarias! Prefiro mo rrer! Você é uma bruxa, uma louca, que acha que fala com mortos! E sem dar à outra tempo para responder, saiu correndo em direção à p raia. Lucrécia ia atrás, mas de súbito pensou que talvez fosse melhor ela fi car um pouco sozinha; e permaneceu observando a jovem, pela pequena varanda da cozinha. Emilie correu pela praia até quase sumir da sua visão, e então sentou-se na areia. Depois de longo tempo se levantou e veio voltando lentamente. Lucrécia subiu a enc osta para ter certeza de que sua casa não estava sendo vigiada e retomou os afazeres domésticos, entretendo-se com eles até o sol se pôr. Já era noite quando Emilie chegou da praia, trazendo os olhos ainda vermelhos pelo choro demorado. Pouco falou durante o jantar e logo que ter minou procurou o refúgio da carna improvisada. Quando Lucrécia lhe desejou bom sono, pre parando-se para dormir, Emilie perguntou, hesitante: - Acredita mesmo que podem me ajudar nesse tal grupo de estudos?

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-- Não tenho dúvida. -- Vou considerar a possibilidade de acompanhá-la para conhecer. Ca so eu concorde em ir, se não conseguirem me ajudar e explicar claramente o que acontece comigo, nunca mais volto! Lucrécia, que parecia cansada, sorriu e disse: -- Tenho certeza de que será o primeiro passo de um novo caminho.

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Capítulo Dezesseis

Alguns dias mais tarde, Jairo partiu para Barcelona, vários metros dis tante da vila em que vivia e já àquela época importante centro comercial e in telectual. Sua proximidade fronteiras da França permitia a rápida expansão, por toda a Espanha, das novas correntes filosóficas e científicas que eclodiam inces santemente. Jairo chegou à agitada cidade e foi direto para a casa acolhedora de Miguel, levando consigo uma mensagem espiritual recebida por Lucrécia na no ite anterior, com o intuito de que o amigo e orientador a analisasse. Era sempre uma ale gria o reencontro de Jairo com aquele que era seu grande amigo e protetor. Abraçou Miguel efusivamente - Que bom vê-lo! E o abraço foi retribuído com o mesmo entusiasmo: - Eu é que fico feliz em vê-lo! Como está nossa querida Lucrécia? E Emilie, como anda? - Lucrécia está bem. Recebeu outra mensagem interessante que trouxe para sua avaliação; talvez seja uma daquelas que convenha enviar à Socied ade Espírita de Paris. Emilie ain-

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da está conosco. Parece um pouco melhor, menos agressiva Entretanto, os p erigos estão aumentando; já foram procurá-la em nossa casa. Miguel guardou silêncio por instantes, depois disse: - Apesar das dificuldades, fico satisfeito em saber que o trabalho de vo cês progride a olhos vistos. Os dois se demoraram bastante em agradável conversa Naquela noite, Jairo participou dos estudos que se realizavam semanalmente na casa de Mi guel. A reunião se desenrolou trazendo harmonia e aprendizado para todos. Na manhã seguinte, após acompanhar Miguel na resolução de questões que o haviam levado à cidade, Jairo confirmou ao amigo a intenção de regr essar o mais cedo possível, devido aos receios que tinha com a permanência de Emilie e m sua casa. Miguel lamentou a partida breve do amigo: - Você sempre tem um motivo para voltar apressado. Mesmo sendo u ma viagem longa e cansativa, vem e retoma rapidamente. Nunca temos tempo suficiente para conversar. Precisa vir com mais calma, trazer Lucrécia. Jairo sorriu e disse: - Sei que estamos devendo uma visita a você e sua irmã; assim que as coisas se acalmarem por lá, trarei Lucrécia. Será uma satisfação imensa par a nós. - Vamos ficar na expectativa dessa visita. Agora, antes de partir, gos taria que fosse comigo à livraria. Eles sempre tem alguma novidade, seja a Rev ista Espírita, seja um livro novo. Gostaria de enviar alguma coisa para Lucrécia.

Sem hesitar, Jairo o seguiu até a loja. Lá, recebidos pelo proprietá rio, amigo e simpatizante do movimento espírita, conversaram longamente sob re os últimos acontecimemtos na França. Miguel entregou ao livreiro uma carta endereçada à Sociedade Espírita de Paris, junto da qual ia a mensagem

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que Lucrécia recebera. Sua própria análise havia sido favorável ele então a encaminhava para avaliação da conceituada Instituição. Por diversas vezes o livreiro se fizera mensageiro entre os dois países. Ao solicitar novos livros para os participantes de seus estudos e tam bém para presentear à amiga, Miguel foi informado pelo livreiro: - Estão em falta, mas vai chegar uma grande remessa no mês que vem. É a maior que recebemos até agora, mais de trezentas publicações ! - - E vai conseguir entrar com tantos livros assim na fispanha, mesmo com a ferrenha oposição da Igreja? - Está tudo acertado na alfândega, acho que não haverá problema. As coisas precisam mudar, não é, Miguel? Estamos em um novo tempo: o da l iberdade de pensamento. - Que assim seja! - completou Miguel, feliz. Ao se despedirem, ele pedi u a Jairo: - Diga a Lucrécia que em breve teremos mais livros! E cuide bem del a, Jairo. Que Deus os abençoe, meu irmão! Jairo quase não pôde responder, emocionado por tanto carinho; só con seguiu balbuciar: - - Obrigado, Miguel; mais uma vez, obrigado. Após uma noite inteira de viagem, Jairo chegou à província. Caminhav a por Bilbao distraído, preparando-se para seguir viagem até a vila; pensav a na esposa e em Emilie, sozinha quando, ao se aproximar do local onde compraria o tiquete e para o trecho final da jornada, deu de cara com uma fisionomia conhecida. Era Pimentel, que sentado em um banco observava os transeuntes . Ao reconhecer Jairo, levantou-se e cumprimentou-o, seco: -- É o dono daquela cabana da praia, não é? O que anda fazendo por a qui? Pretendem viajar?

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- Não, em absoluto. Sou pescador, lembra-se? Tenho negócios aqui, e é comum vir a Bilbao para acertar detalhes. - Interessante. E sua esposa, fica sozinha durante sua ausência? - Lucrécia está acostumada a minhas pequenas viagens que nunca dur am mais do que poucos dias. - Vocês têm filhos? - Não; quero dizer, não aqui conosco. - Vocês não são da Espanha: de onde são? - De Marrocos. Lucrécia tem filhos, que ficaram por lá. - É mesmo? E por quê? Jairo, procurando encerrar logo a desagradável conversa, cortou radic almente o assunto: - Preciso ir, estou com pressa. Pimentel, porém, segurou-o firme pelo braço e disse em tom intimidado r: - Não pense que escaparam, ouviu? Estou entrando com o pedido de ab ertura de inquérito contra vocês, por darem abrigo a uma assassina, e tenha certeza de que o processo está em curso. Há grandes interessados nesse caso, pessoas muito influentes, gente muito rica. Eles querem que vocês sejam responsabi lizados pelo segundo desaparecimento dela. Nem pensem em sair daqui, ou serão perseg uidos onde estiverem. Será que me entende, senhor... como é mesmo seu n ome? Jairo respondeu, enquanto puxava o braço com força: - Meu nome é Jairo e não se preocupe, não pretendemos ir a lugar algum. Não temos culpa nenhuma, já disse. Não sabíamos quem era a jovem e quando descobrimos ela partiu, sem nos dar tempo para mais nada. Será que não entendem? - Meu senhor, o fato é que deram guarida a ela, e contra isso não há argumentos, não é? Bem, preciso continuai meu trabalho. Repito: não se ause ntem, pois logo serão con-

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convidaos a vir até a delegacia prestar maiores esclarecimentos; isso se... -- Se...? Dependerá das pressões que vierem. Tenho orientação paara dar andam ento rigoroso ao caso, conforme a lei determina em todas as suas sutilezas. .. -- E o que isso significa? -- Terão surpresas em breve. Dizendo isso, retomou ao banco e à leitura do jornal, que havia deixad o minutos antes. Jairo, aturdido, comprou o bilhete de regresso, com o coração agora tomado pela angústia. O que tanto temera estava acontecendo. Sentiu o medo crescer dentro dele e ao ter em mão o bilhete foi direto à saída das carruagens. Queria de saparecer o mais rápido possível da vista daquele homem. Entrou no carro e se acomodou, deixando-se dominar mais e mais pel a angústia e pelo medo. Refletia: "O que faremos agora? Como escapar daque la gente rica e poderosa, querendo nos prejudicar? Vão descobrir que somos adeptos da Do utrina Espírita e isso complicará ainda mais nossa situação!". A carruagem começou a andar e Jairo viu, pela janela, Pimentel na p lataforma a observá-lo. Suspirou fundo e pediu mentalmente: "Deus, por favo r, nos ajude!". Já era noite quando chegou à vila. Ao se aproximar da pequena caba na, junto ao mar, encontrou Lucrécia em animada conversa com Emilie. Pela primeira vez a via sorrir e notou, ao entrar, os traços belos e delicados que emergiam d aquele rosto marcado pela dor e pelo sofrimento. Percebeu que aos poucos o semblante de Emilie se transformava. Parecia estar mais suave, e ela, mais serena. Ach ou melhor conversar com ucrécia em particular, pois a permanência da jove m o preocupava cada vez mais.

158 Lucius SANDRA CARNEIRO Entrou, cumprimentou Emilie e beijou a esposa, que o recebeu alegre: - Como foi tudo por lá, Jairo? - Tudo certo - respondeu, saindo do quarto, onde colocara o casaco. Sentou-se à mesa, juntamente com Emilie, que acabava de auxiliar Luc récia no preparo do jantar. - E com relação à mensagem, Miguel a leu? Jairo se lembrou da alegre companhia de Miguel e suspirou fundo, ant es de responder: - Ele gostou muito da mensagem e a enviou para Paris. Emilie ouvia a conversa com curiosidade, conservando silêncio. Lucrécia olhou para o mar ido e disse: - O que há, Jairo? Algum problema sério que me esconde? Percebo qu e não está bem! - Está tudo certo, Lucrécia, sinto-me apenas cansado da viagem. Afin al, ir num dia e voltar no outro é bem cansativo; mas não podia deixá-las aq ui sozinhas por mais tempo. Tentando dissimular a profunda aflição em que se encontrava, pergunt ou: - E por aqui, como foram esses dois dias? - Tranqüilos, como havia pressentido. Nada aconteceu, Jairo, ninguém a nos vigiar. - E... por enquanto. De qualquer modo, é melhor que Emilie não colo que os pés fora da casa em hipótese alguma. - Por que diz isso? Alguma novidade da província? - Lembra-se da ameaça que nos fez aquele policial, não e. Então! Pre cisamos tomar cuidado. - Tem toda a razão. Emilie continuará aqui dentro durante o dia, até a s coisas se acalmarem. No entanto, terá de sair à noite, ao menos na próxima s exta-feira. - Por quê? - perguntou Jairo, interessado.

160 RENASCER DA ESPERANÇA -- Ela irá conosco ao grupo de estudos. Jairo não acreditou no que ouvia. A situação iria se agüvar mais! Lucr écia jamais deixaria a jovem partir. Não agora! -- é mesmo? E por quê? - ao falar ele fitava Emilie. A jovem se esquivou, mais do que depressa: . Lucrécia quer que eu vá. Estou pensando; quer dizer, estou com a inte nção, ainda não sei ao certo... Lucrécia interrompeu Emilie, afirmando ao colocar o jantar sobre a me sa: - Você vai, sim, e não se arrependerá. Tenho certeza de que se sentir á muito melhor e haverá de encontrar respostas para suas dúvidas. - Não se empolgue tanto, Lucrécia; estou pensando, e não me pressione . Emilie, voluntariosa, fez menção de se levantar; Lucrécia suavemente tocou-lhe o braço, dizendo: - Tudo bem, vai se quiser, se sentir vontade. Agora coma, que o janta r esfria em segundos nesse tempo frio. Durante o jantar, Jairo esteve calado e pensativo. Lucrécia lhe fez algumas poucas perguntas sobre Miguel e a família, ao que ele respondeu quas e com monossílabos. Emilie também permaneceu distraída. Sentia-se aflita pelo problema que a to rturava desde a adolescência, porém era intensa a sua repulsa à simples idé ia de ir a um lugar onde as pessoas acreditavam falar com os mortos. Que tipo de cois as tenebrosas poderiam suceder? A que sortilégios se entregariam aquelas pessoas? Só de Pensar nisso, Emilie sentia um calafrio descer-lhe pelas costas. Quando se preparavam para dormir, Jairo disse à esposa: -- Precisamos conversar. -- O que há com você, Jairo? Está tenso e preocupado! -- Olhe, Lucrécia, sei que está animada com as melhoras e> mas não se ria melhor ela partir, já que melhorou?

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- No momento em que ela está dando o primeiro passo para compreend er o que de fato acontece em sua vida? - Do que está falando? - Emilie tem algo a realizar e creio que será dentro desse movimento n ovo, que se espalha em toda parte. Ela tem dons especiais que irá utilizar par a contribuir na expansão e na confirmação dos conhecimentos sobre as relações do mund o material com o mundo invisível. - Acha mesmo? - Não tenho mais dúvida. Já desconfiava e tive a prova hoje. Ela ve m sendo dominada por irmãos menos felizes, que se manifestaram através dela . Jairo mostrou grande espanto, e perguntou: - E o que disseram? - O que sempre dizem nessas condições. Fizeram ameaças, gritaram q ue querem destruí-la. Coisas desse tipo, que não convém repetirmos. Jairo se calou, ainda mais aturdido. Como deveria agir? Lucrécia ach egou-se a ele e, enlaçando-o com carinho, pediu: - Agora me conte, o que o está afligindo? - Estou muito angustiado. Encontrei aquele policial que esteve aqui, junto com o médico e o marido de Emilie. Ele fez novas ameaças, Lucrécia. D isse que iremos responder pelo que fizemos, que seremos chamados à província, que há gente muito poderosa envolvida no caso e... - Calma, Jairo, assim você vai ficar doente! Acalme-se. Lembre-se de que nada acontece em nossa vida se Deus não permitir. Por mais que nos ameacem, por mais que nos queiram assustar, Deus é quem comanda todas as situações. Vo cê já provou disso, não foi? - Sim, mas precisamos ser cautelosos. Não podemos deixar de fazer a n ossa parte.

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- Eu sei, você tem toda a razão. Devemos tomar uma atitude mais fir me, e acho que tive uma idéia que vai ajudar. Temo pela segurança de Emilie , caso permaneça conosco. - E o que pensou? - Ela vai na próxima sexta-feira ao grupo de estudos. Pretendo, então , deixá-la aos cuidados de Sara, que já sabe o que aconteceu e se colocou à d isposição se precisarmos de ajuda. Penso que é melhor Emilie ficar lá por uns tempos , até decidirmos o que deve ser feito. Sara é uma amiga de total confiança e extremamente bem intuída nas questões espirituais. Estar com ela fará bem a Emilie. - E quanto a nós? E se realmente tentarem nos prejudicar pelo que fiz emos? - E o que fizemos, Jairo? Lucrécia fitava o marido com ternura. Jairo não soube o que respond er. Via que Emilie melhorava e que Lucrécia estava cada vez mais confiante quanto ao futuro da jovem. E se a esposa tivesse razão? Foi ela quem respondeu: - Não fizemos nada errado, Jairo, e você sabe disso. - Eu sei; é essa gente que não entende! - Nós apenas cuidamos de alguém que estava desistindo da vida. Foi s ó isso o que fizemos. Estamos tentando obedecer a lei eterna do Criador que nos diz para amarmos ao nosso próximo como a nós mesmos. A justiça dos homens é falha, Lucrécia, e você, mais do que ninguém, conhece sua fúria. Lucrécia encarou-o com seriedade e disse: -- Todavia, precisamos aprender a nos preocupar mais com a justiça de Deus do que com a dos homens. Por alguma razão sei que era meu dever cuidar de Emilie. Senti isso desde primeiro momento em que a vi, e mesmo antes, quando tiv e o ímpeto de subir naquela manhã até o penhasco, lugar a que

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quase nunca vou. Sei que devemos cuidar dela e dar-lhe chance, e é o que est ou tentando fazer. Se por isso tiver de pagar, que seja. Não posso desistir. Jairo olhou a mulher, com profunda admiração pela força de caráter e pela confiança que via nela. Ainda assim, disse: - Não sei, Lucrécia, fico muito preocupado. - Tomaremos todas as precauções. Agora vamos descansar, porque, a cima das preocupações, você deve estar muito cansado da viagem. - Não foi a viagem que me cansou, foi aquele policial que me infernizo u! - E é precisamente o que ele quer. Agora, vamos orar juntos. Tenho ce rteza de que a prece nos aliviará. Venha, sente-se aqui, vamos orar. Jairo se aproximou da esposa, que sentada na beira da cama segurou sua mão e elevou comovida prece a Deus, pedindo proteção e forças. Ao final da oração, Jairo se sentia mais confiante.

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Capítulo Dezoito

Na luxuosa mansão em Barcelona, Ricardo almoçava com a filha e a irm ã. Apesar de ver Cíntia mais contente, após a visita ao orfanato, ele ainda estava contrariado. A menina terminou de almoçar e levantou-se, dizendo educadamente: - Tenho aula de francês agora, com licença. - Vá, minha filha, e esforce-se para aprender! Logo que ela se afasto u, Filomena comentou: - Parece que a visita ao orfanato lhe fez bem. - Não sei. Parece mais animada, é verdade, mas não creio que voltar c om freqüência ao orfanato lhe fará bem. O lugar dela é aqui, junto de nós. - É evidente, Ricardo; só que não me parece prejudicial para ela, um a vez por semana, acompanhar Fernando. Se ela gosta... Ricardo fixou na irmã um olhar interrogativo, e disse: - Por que acha que fará bem a ela? Ora, essa menina precisa se ocupar, para ver se esquece a mãe. Sof reu um trauma muito grande. E além do mais ela me parece tão sozinha, sem irmãos ou amigos com quem'brincar...

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Estar em companhia de outras crianças lhe fará bem, mesmo que sejam crian ças carentes. -Ainda não estou convencido a deixá-la retomar ao orfanato - Ela me disse que você praticamente já autorizou. - Não foi bem assim, ela é que se empolgou demais com o que eu disse. Falei que ia pensar, só isso. - Ela já está dando a permissão como certa. Ricardo ficou calado. Filo mena se levantou e insistiu: - Bem, de qualquer maneira, acredito que fará bem a ela. vou até a cidade e passarei na paróquia para conversar com Fernando. Quer que pergunt e algo mais sobre o orfanato? - Não é necessário. Eu mesmo falarei com ele. - Alguma notícia de... - Não, nenhuma. - Diga-me uma coisa, Ricardo: você está chateado porque não consegue localizá-la ou porque gostaria de vê-la? - Ora, Filomena, não seja romântica! Quero apenas que ela volte para a clínica, evitando maiores dissabores. - É, principalmente para nossa festa. - O que teme? - E se resolver vir aqui, Ricardo? Já pensou nisso? E se vier até aqui, obcecada que é por você e por Cíntia? - Até o dia da festa já a teremos encontrado; e mesmo que isso não a conteça, teremos seguranças por toda parte. Não chegará perto da filha, de f orma alguma. Isso nunca mais! Ela pôs a menina em perigo e jamais admitirei que volte a v ê-la. Suspirou fundo, pensando em Cíntia, que amava a mãe tão profundamen te, e finalizou: - Um dia Cíntia compreenderá; ela vai aceitar que a mãe é doente e n ão uma pessoa normal. - Espero que consiga mantê-las afastadas; de fato melhor para Cíntia.

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Ricardo acabou o almoço e também se retirou. Filomena foi direto à igreja. Ali, percebeu de imediato uma movimentação diferente para aquele h orário do dia. Procurou o primo, que ao saudá-la convidou: - Olá, Filomena, vamos até o pátio interno; aqui está ffluito agitado hoj e. -- E por quê? O que se passa? Padre Enrico está conversando com negociantes da cidade, pedindo c olaboração para o caso de uma de suas ovelhas que se desgarrou do rebanho. Sentaram-se em pequeno banco, à sombra de majestosa árvore. Filome na demonstrou espanto e curiosidade: - Como, o que houve? - Ela aderiu àquele movimento que se espalha como uma praga. - É mesmo? Aqui, debaixo dos nossos olhos? Não acredito! - Parece impossível conter a expansão dessas novas idéias! - E o que o padre pensa fazer com essa mulher? Já foi excomungada, cr eio eu! - Sim, ela e toda a família. - Mas é claro! Isso precisa servir de lição para todos... E que outras providências serão tomadas, com relação ao caso? - Padre Enrico quer que ela volte, pedindo perdão à igreja. -- E como planeja fazê-lo? - Não sei bem qual o seu intento, porém o tenho visto conversando co m os donos de restaurantes, cafés e pequenas Pousadas da região. Filomena refletiu por poucos instantes e inquiriu: " • Do que vive ess a família? A mulher é viúva e trabalha em casa para sustentar os filhos; não sei ao certo o que faz. Foicomo se Filomena falasse consigo mesma:

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- Interessante, muito interessante... O que será que padre Enrico pr etende?... Bem, Fernando, vamos ao assunto que me trouxe aqui. Preciso saber de uma coisa: como foi a visita de Cíntia ao orfanato? Fernando abriu um sorriso sincero e disse: - Ela foi admirável; tem um jeito todo especial para lidar com as cr ianças. Sua habilidade me impressionou: assim que chegou começou a conversar , a brincar com elas, e se entenderam rapidamente. - Que ótimo! Pensa, então, que ela poderá auxiliá-lo? - Sem dúvida. Espero que Ricardo concorde, pois acho que seria mui to bom para ela também. Percebi que o tempo em que esteve lá a fez esquece r os próprios problemas. Ficou alegre, parecia até feliz. - É mesmo muito interessante, não acha, Fernando? Notando o tom irô nico na voz da prima, ele questionou: - Interessante como? No que está pensando, Filomena? A prima sorriu e explicou: - Ora, acho que ela será a próxima escolhida para servir à Igreja. Ma mãe já ponderou essa possibilidade e parece que a menina tem jeito. - Espere aí, uma coisa é ela ter jeito com crianças, gostar de colabor ar; outra, muito diferente, é ter vocação para servir ao Senhor. Não estão pen sando que ela possa ser... -Admita que ela está dando todos os indícios. Se quer ajudar, se go sta de se enfiar em um orfanato com uma porção de crianças estranhas, é por que tem vocação para ser freira. Não sei por que não aprecia e apoia a idéia; afinal, será sua ajudante, priminho. Fernando se levantou irritado: - Vocês não têm conserto, não é, Filomena? Sempre querendo interferi r na vida dos outros! E se ela não tiver Não podem forçá-la!

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-- Por que não? Ela vai apreciar a reclusão, tenho certeza. E vai adorar passar a vida a serviço dos pobres. -- Não acredito que Ricardo concorde com isso. Ele nem queria que a m enina visitasse o orfanato! -- Você sabe que temos nossos métodos de convencimento não é, Fer nando? A começar pelo papai. -- Ele já deu alguma opinião nesse sentido, ou a idéia é sua? -- A idéia foi de dona Isabel... Mas também considero que será bom para a menina, já que ela não pode conviver com a mãe vive chorosa pelos ca ntos e você me diz que ficou feliz junto às criancinhas do orfanato. Então penso que é lá mesmo o lugar dela! Sem dúvida mamãe está com a razão. Se já achava a idéia boa, agora a acho excelente! Afastando-se da prima, de volta à paróquia, Fernando disse nspidament e: - Pois não conte comigo para ajudá-la. E se for consultado, darei meu p arecer. Filomena segurou-o pelo braço e insistiu: - E por que não? Ora essa, por que quer atrapalhar, se você é padre? - Porque essas coisas precisam ser espontâneas, jamais impostas - res pondeu ele, fixando-a. Enlaçando os braços nos do primo, ela perguntou: Você está infeliz, Fernando? Está arrependido? O rapaz soltou-se da prima e disse: -- Não, o que defendo é que a vocação tem de ser verdadeira só assi m a entrega é total. Precisamos de gente comprometida com a Igreja, não per cebe? Estamos enfrentando ameaças a nossa fé e, se não tivermos pessoas realmente devota das, o que faremos? -- Ora,Fernando, não seja tolo! A Igreja é uma instituição firme com o uma rocha! Nada poderá abalar sua força e

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sua tradição. Fique tranqüilo! Você se impressiona sem necessidade. Fernando fitou a prima, pensando no que havia dito, e ela acrescentou: - Reavalie sua posição com referência a Cíntia. Ser freira lhe fará bem.

- Por que deseja tanto que ela se tome freira? - indagou ele, apertando o braço da jovem. Filomena se soltou e, já de saída, justificou: - Quero o melhor para ela. É filha de uma mulher totalmente doente, desequilibrada. E se tiver herdado o problema da mãe? Quer que o futuro dela seja igual ao de Emilie? - Nem pense nisso, Filomena! - Então, não se oponha a essa idéia que poderá ser a salvação da menin a! Sem saber o que argumentar, ele se calou. Filomena despediu-se com um aceno e saiu em direção à cidade. Fernando ficou pensativo, repassando a conversa. Ele gostava muito de Cíntia e queria acima de tudo que a menina fosse feliz . Ao entrar encontrou o padre Enrico, que agitado disse: - Vou sair. Fui convocado a participar de uma reunião marcada às pr essas. Quero que tome conta de tudo por aqui. - O que aconteceu, padre? - Recebi uma mensagem pedindo que fosse com urgência à residência de dom Antônio; parece que outros bispos também estarão presentes. É uma reunião de emergência para deliberar o que fazer a respeito de notícias graves que acabam de chega r. Depois de curto silêncio, Fernando perguntou: - E sobre a questão de Ermínia? - Não se preocupe, o caso está resolvido. Já tomei toda as medidas pert inentes. Tranqüilize-se. - O senhor crê que ela voltará?

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-- Se tiver juízo... -- Como achou a solução? -- Ele não terá mais nenhum comprador para seus produtos. O que ach a, então, que acontecerá? Não poderá sobreviver, e terá de voltar atrás. -- E saberá o motivo da recusa dos produtos? -- Ora, Fernando, que importa? Preciso ir agora; tome conta de tudo e atenção aos horários das missas. - Quando retoma? - Tão logo as decisões sejam tomadas. - Pode ir sossegado; cuidarei de tudo. Assim que o padre desapareceu na carruagem, Fernando entrou cabisb aixo. Sentia-se esgotado com toda aquela situação. Mal se refizera do prob lema enfrentado com Emilie e novas dificuldades com familiares pediam sua atenção. Não sab ia como agir em relação a Cíntia. Suspirou fundo e dirigiu-se ao quarto, a fim de se preparar para a missa. Em breve os fiéis estariam chegando.

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Capítulo Dezenove

Cíntia conversou com o pai, insistindo que a autorizasse a ir de no vo ao orfanato. Ricardo continuava reticente. Todavia, quando Fernando chego u, no horário combinado, ele não pôde deixar de notar o brilho dos olhos da filha e sua expectativa, conseguir negar-lhe aquele momento de alegria, Ricardo cabou cedendo. Cíntia ergueu-se exultante e, puxando o primo pelas mãos, exclamou: - Vamos, não podemos demorar! - Calma, Cíntia, temos tempo. - Vamos logo, não quero que meu pai desista! Sentindo a sincerida de da menina e sua prontidão em acompanhá-lo, Fernando partiu com ela sem demora. Ao chegarem, notaram que algo incomum acontecia no orfanato. Uma auxiliar veio encontrá-los na porta; estava angustiada e tinha a s mãos manchadas de sangue: -Padre, graças a Deus chegou! Venha depressa, duas crianças se pe garam e se machucaram. Temo que em uma delas seja grave. Sem dizer nada, Fernando correu para dentro, assustado. Cíntia seguiu logo atrás. Ele se aproximou da criança em pior

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estado, desacordada. O menino, mais velho, que a ferira mia na cama ao la do, acudido por outra ajudante. As demais crianças, em volta, olhavam pr eocupadas e uma delas pergutou, ao ver o rapaz: - Ela vai morrer? Fernando encarou o garoto que, aflito, queria saber sobr a amiga e n ão respondeu. Sentou-se ao lado da criança desa cordada e viu que era Samira , abrigada no orfanato logo no começo. Ficou paralisado, aturdido, sem saber que atit ude tomar Tentava falar com a noviça, mas sentia-se totalmente despreparad o para lidar com a ocorrência. Disse, por fim: - Assim não é possível! Vocês precisam ser mais cuidadosas; têm de p restar atenção nelas, durante minha ausência... Não houve resposta. Cíntia, que observava calada, aproximou-se de F ernando e, tocando seus ombros, falou de maneira estranha e pouco usual: - Fernando, não é momento de reprimendas. Devemos agir com sensate z e, mais tarde, aprender com o erro. E, dirigindo-se à noviça: - Por favor, tire as crianças daqui, leve-as para o pátio. A noviça o lhou para Fernando, que, surpreso, concordou com um sinal de cabeça. Cíntia então pediu ao primo: - Vá buscar o médico que eu fico com ela. Fernando fitou-a, sem sabe r o que dizer. A menina explicou: - Ela não morrerá, mas precisamos de um médico. Como Fernando conti nuasse hesitante, insistiu: - Não se preocupe com o julgamento dos outros a respeito do que ho uve; crianças são assim mesmo e essas coisas acontecem. O importante é cui darmos dela. Vá buscar ajuda, Fernando. Em seguida Cíntia se sentou ao lado da criança, que respirava com d ificuldade. Examinou seu rosto ensangüentado tocando suavemente a testa da menina, disse:

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-- Acho que quebrou o nariz. Fernando olhava perplexo para a menina. Não entendia que estava ac ontecendo, nem de onde vinha aquela atitude firrne e madura, que ele própr io não conseguia ter. Parecia Cíntia de súbito se transformara em uma outra pessoa. Raciocin ou por um instante e percebeu que ela estava certa. Sem falar, levantou-se e preparava-se para sair. Ao se aproximar da porta voltou-se e avaliou uma vez mais o comportamento de Cíntia, que agora pedia à noviça uma bacia com água, para limpar o rosto da garota ferida. Logo depois, sentou-se ao lado do menino que gemia e, ab raçando-o fortemente, disse: - Calma, ela ficará bem. Sem poder entender o que se passava, porém vendo que a menina tin ha pleno controle da situação, Fernando saiu em busca do médico. Estava a ssombrado com o que presenciara, sobretudo pelas reações da jovenzinha, que se transfigura ra, parecendo uma mulher adulta e experiente em lidar com aquele tipo de p roblema. Quase uma hora depois, ele regressou com o médico. Cíntia estava s entada ao lado da menina, segurando sua mão. Fernando percebeu que agora p arecia apenas a pequena Cíntia de sempre. Ao ver o médico e o primo, comentou: - Ela vai ficar bem - e tranqüila se afastou da cama. Fernando dividia a atenção entre o médico e Cíntia, que a distância e em silêncio assistia ao rápido exame. Depois o médico virou-se para Fernan do e disse: -- Ela vai ficar bem. Quebrou o nariz, foi bom que tivesestancado a hemorragia. Foi um procedimento adequado o tampão no nariz; devo ressaltar que é bastante delicado, as foi muito bem executado. Quem fez? O médico olhou em tomo, esperando pela resposta da nooutra auxiliar ou de Cíntia, que permaneceu calada.

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Fernando perguntou à noviça: - Foi você que fez o tampão? - Não, foi Cíntia. - Onde aprendeu isso, Cíntia? - ele indagou. - Não sei. As idéias foram surgindo, uma após a outra, e apenas fui f azendo o que me vinha à mente. Enquanto preparava os curativos adequados ao caso, o médico ouvia a conversa, curioso. Vendo o que se passava, Fernando por precaução, retom ou depressa para junto da paciente. Ao final de algumas horas, Samira estava devidamente medicada. Qua ndo se retiraram do quarto, ela dormia. Fernando, exausto, acompanhou o mé dico até a saída do orfanato e logo voltou. Sentou-se no escritório e chamou as duas auxiliare s. Sem jeito de deixar a prima do lado de fora, disse: - Venha também, Cíntia; afinal, você ajudou muito hoje. Ela, entretan to, falou com ar meigo: - Já está na hora do jantar das crianças. Poderia servi-lo enquanto conv ersam. Fernando concordou. As duas auxiliares entraram e ele, então, quis s aber o que havia causado a briga das crianças. A noviça respondeu: - Foi tudo muito rápido; nem deu tempo de ver direito. Quando me de i conta, eles já estavam brigando, com tamanho ímpeto, com tamanha raiva... - a garota desatou em pranto Não tive culpa, não deu tempo de fazer nada. Quando cheg uei para apartar os dois, ela já estava machucada e continuava a brigar, d ando pontapés e tentando puxar o cabelo dele. Não sei o que houve, qual o motivo de tanta r aiva... - São crianças carentes, principalmente de amor; qualquer coisa pode ria ter provocado a raiva entre elas. Não chore vamos. Como disse Cíntia, es sas coisas acontecem. Daqui por diante, fiquemos mais atentos para que isso nunca ma is sepi-

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ta dentro deste orfanato. Se alguma dessas criancas se machucar aqui, nao duvido que fechem nossas portas. A noviça solucava, inconsolável, e Fernando continuou orientando as duas. Quando estavam saindo a auxiliar disse, tímida: - Precisariamos ter mais gente para colaborar. O numero de crianças esta crescendo e somos somente nos duas para cuidar delas. E pouco... - Não são tantas crianças... - Eu sei; mesmo assim acho que precisaríamos de mais ajudantes. - Vamos torcer para que Cíntia venha ao menos uma vez por semana. - Como, padre, se ela própria é uma criança? Fernando encarou a auxili ar e retrucou: - É verdade, só que uma crianca que hoje nos socorreu a todos. Tamb ém não entendo, mas agiu como se nzesse esse trabalho há anos... Cíntia esperava pelo primo contando estórias para as crianças, depois de ajudar com o jantar. Fernando observou a cena por alguns instantes, enter necido pelo carinho que ela dedicava as crianças. Aproximou-se e disse: - Precisamos ir. Já é tarde e seu pai vai ficar muito bravo por nos atras armos. Fernando, segurando a mão da menina, que apertava a sua com força, tentava compreender o que se passara ali naquele dia. Perguntou, então: - O que aconteceu com você, Cíntia? Não tem medo de nada? - Tenho, sim. Tenho horror a sangue, por exemplo. - E como e que teve tanta coragem? - Não sei. Alguma coisa me fez sentir forte, determinada, e não tiv e medo. Depois os pensamentos me vinham a

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mente e eu falava, com aquele sentimento diferente, que nem parecia meu...

- Isso já lhe aconteceu antes? - Não me lembro, acho que não. Por quê? - Por nada, Cíntia. Você ajudou muito e quero lhe agradecer - Gosto de estar com as crianças; isso me faz muito bem - Eu sei, e gostaria que viesse sempre que possível, pois precisamos de ajuda. Só vou pedir uma coisa, e quero que confie em mim e concorde. - Pode pedir, Fernando. - Não conte a ninguém o que houve hoje; não com detalhes, está bem? Nem sequer a seu pai. Passa a ser nosso segredo, certo? Se acontecer novam ente, quero que me diga. Combinado? - Está certo, será nosso segredo. Cíntia sorriu e apertou com mais força a mão do primo. Fernando, con tudo, sentia o coração aflito. Sabia que não fora um evento normal. Algo de extraordinário sucedera naquela tarde e ele não sabia explicar. Em seu coração, pressenti a que Cíntia era uma criança especial. Ao mesmo tempo, temia pela menina. Se suspeitassem que apresentava qualquer traço de semelhança com a mãe, iriam afastá-la, e ncerrando-a em um convento, sem considerar a vontade dela e a do pai. Sabi a o quanto a tia era persuasiva e, ainda que Ricardo se opusesse, não teria forças contr a dom Felipe, dona Isabel e Filomena juntos. Ele não desejava ver a menina em clausura - não contra a vontade dela. Torturado pelos temores, decidiu que conversar ia com Cíntia sobre o assunto quando ficassem a sós outra vez. Ao chegarem à mansão encontraram Ricardo, que ciente aguardava a fi lha no hall de entrada. Assim que correu e abraçou-a. - Cíntia! Estava preocupado!

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- Pois não devia, se saí com Fernando! - Disse que ela não poderia chegar tão tarde, Fernando, nós combinamo s. - Tem toda a razão, não acontecerá de novo. Tivemos um problema sér io no orfanato e Cíntia nos ajudou muito. - Não quero, sob nenhuma circunstância, que ela se atrase. Quero Cín tia aqui até as cinco horas, conforme combinamos. - Está certo, Ricardo. - O que houve, afinal? Abraçada ao pai, Cíntia endereçou olhar de cumplicidade a Fernando e então começou a contar, sem dar detalhes: a briga das. crianças, o médico q ue as socorrera.. Fernando complementou com outras informações e se despediu, regressando logo à paróquia.

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Capítulo Vinte

Nos dias que antecederam aquela sexta-feira, Emilie ficou pensativa . Não podia ignorar sua curiosidade em tomo das reuniões que Lucrécia freqü entava. Imaginava se seria realmente possível receber informações sobre os que já haviam part ido, pelos portais da morte, para a vida espiritual. Ao mesmo tempo, sentia medo de participar de algo que a Igreja condenava tão veementemente. Analisava nos menores de talhes a conduta de Lucrécia e Jairo, buscando neles algo que justificasse seus temores e lhe desse motivo para não acompanhá-los naquela sexta-feira. Procurava i ndícios de que se entregavam a práticas macabras ou malignas. Entretanto, quanto mais procurava, mais se surpreendia com o comportamento ímpar daquele casal, que revelava em todos os atos do cotidiano serenidade e carinho, respeito e uma visão d iferente da vida. Ao examiná-los atentamente, deu-se conta dos constantes gestos de t ernura presentes no convívio dos dois. Emilie se surpreendia com a atmosfer a de amor que envolvia o lar singelo. E cada vez mais se deixava conquistar por aquele am biente consolador.

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Algumas vezes, quando Lucrécia não estava, ela pegava pequeno volu me do Novo Testamento, guardado entre as loura e lia alguns trechos. Era s ó perceber sua aproximação que corria e o devolvia a seu lugar. Na quinta-feira Emilie estava decidida a ir com o casal àquela reuniã o. Embora ainda abrigasse receios, refletia: "Como poderia ser algo maldito, se Lucrécia e Jairo demonstram tanto amor e tal lucidez no dia-a-dia?". Na hora do jantar, Lucrécia falou com extrema doçura: - Emilie, precisamos conversar. - Algum problema? - disse a moça, mantendo os olhos fixos na dona d a casa enquanto comia. - Vai nos acompanhar à reunião? Após curto silêncio Emilie respondeu : - Vou, sim. Quero conhecer isso de perto. - Ótimo! Fico muito feliz por sua decisão. Tenho certeza de que será muito bom para você. - Como pode estar tão convicta? - É que eu já passei por isso, e sei quanto bem me fez. Emilie tomou alguns goles de água, depois depositou o copo delicadamente sobre a mesa e disse: - Vou apenas conhecer, Lucrécia, ver como é; se não gostar, não volto mais. - Está certo. O importante é que dê o primeiro passo. O restante é com e les... - Com eles quem? Lucrécia olhou para Jairo, sem saber o que dizer, e ele, que até então se mantivera calado, respondeu: - O pessoal que estuda conosco, ora! O resto é com eles! Lucrécia sorriu discretamente, achando graça na resposta ágil do espo so; meditou por instantes e acrescentou:

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-- Háuma outra coisa que preciso lhe dizer. Estou apreenciva com o perigo que corre aqui. Pensei muito, Emilie. Não gostaria de me afas tar de você, mas creio que será melhor para todos nós. Sem compreender, Emilie olhou assustada para Lucrécia, que prossegui u: - Não se assuste. Temos amigos que também vão a essas reuniões. S ão pessoas de nossa mais alta confiança e que nos ajudaram muito quando c hegamos aqui, sem nenhum recurso. Esta casa lhes pertence e nos deixam morar nela, sem nada pedir em troca. Como vê, são amigos de verdade. Amanhã, depois da reunião, gostar ia que fosse com Sara, o esposo e a filha para a casa deles. Ali você estar á mais segura. Ninguém saberá do seu paradeiro e, como a casa fica bem retirada, será muit o difícil encontrarem você. Estará protegida. Emilie se sentiu subitamente desprotegida. Todavia, sem que ela diss esse uma só palavra, Lucrécia segurou-lhe a mão e disse: - Irei vê-la sempre que puder e você ficará na companhia de pessoas amorosas, que poderão ajudá-la tanto como eu ou mais. Sem responder, Emilie continuou comendo; Lucrécia percebeu as lágrim as brotarem nos olhos da jovem, que fazia força para se controlar, e insisti u: - O que foi, Emilie? Por que essa tristeza? - Não sei. Será melhor para você, para sua maior proteção. Eu sei; é que... não sei explicar... Eu entendo. Quando temos de nos adaptar a mudanças, e novamente nos adaptar, sofremos. Mas será muito bom para Você, não tenha medo. Sem dizer mais nada, Emilie acabou o jantar e depois de ajudar Lcré cia foi em silêncio para a cama. Sentada, abraçando os joelhos, meditou lon gamente sobre tudo o que estava 183 Lucius SANDRA CARNEIRO

acontecendo em sua vida: o desespero que quase a levara dar fim à própria e xistência; o encontro com Lucrécia e Jairo o cuidado que recebera deles; e agora aquela possibilidade de compreender o que era aquilo que a acometia desde criança Percebeu que temia afastar-se de Lucrécia. A despeito de ser ainda uma de sconhecida para ela, sentia-se ligada àquela mulher de um modo diferente, único, como jama is experimentara E sabia que Lucrécia sentia algo semelhante. Lembrou-se então da filha, de quanto a amava e de quanta saudade tinha. De olhos fechados, imaginou o que estaria fazendo naquele momento; relembrou vivamente seus olhos meigos, sua face delicada e rosada, suas mãozinhas carinhosas, que toda noite lhe afagavam os cabelos, quando a colocava na cama e se d espedia com um beijo na testa. Ao pensar em Cíntia, não pôde conter as lágrimas nem a angú stia e a aflição que a dominaram, enchendo-a de dor e de saudade; era insup ortável a ausência da menina. Recordou-se depois de Ricardo, e a dor se transformou em mágoa e ressentimento. Presa às lembranças, Emilie demorou muito a adormecer. Quando afina l caiu no sono, teve pesadelo aterrador: via-se novamente junto do precipíc io, e Cíntia a distância, presa pelas mãos de Ricardo, gritando e chamando por ela. Só q ue no sonho ela lutava para não pular e era forçada por seres que não conhe cia. Quatro pessoas a seguravam pelos braços, empurrando-a. E ameaçavam: se ela fosse àquela reunião com Lucrécia, jogariam também a filha. Emilie se debatia, gritava desesperada, implorava que a soltassemFreneticamente lutava para se desvencilhar das cri aturas, sem conseguir; por fim, quando se viu à borda do penhasco, prestes a cair, gritou ainda mais desesperada. Foi aí que viu Lucrécia aproximar-se; seu rosto res plandecia em suave luz rosada e ela sem esforço soltou das criaturas, que f icaram paralisadas à sua frente. Abriu os olhos e viu Lucrécia sentada ao seu lado, tentando

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Despertá-la. Ela se sentou na cama, quase incapaz de respirar. A amiga expl icou: -- Estava tendo mais um pesadelo, Emilie. Beba um pouco de água fres ca para se acalmar. Emilie tomou a água e procurou ficar mais tranqüila. Quando pôde falar , disse: -- Estavam me ameaçando. - Eu sei. -- Disseram que matarão a mim e a Cíntia, se eu for com vocês amanhã . - Tenha calma, Emilie; eles não farão nada contra você ou sua filha, confie em mim. - Quem são eles, afinal? - Como já lhe disse, são irmãos nossos, que ainda não aprenderam a per doar... - E o que têm eles a ver comigo? Por que me perseguem? Não os conhe ço, nunca os vi antes. - Certamente já os viu, só que no momento não se recorda disso. - Será que devo ir a essa reunião, Lucrécia? Estou com medo... - E o que eles querem, Emilie: que tenha medo e desista. E por isso te nho mais certeza de que deve ir, de que algo lá a ajudará muito! -- Por que acha que participar de uma simples reunião de estudos irá m e ajudar tanto? - É difícil explicar, mas sei por experiência. Precisa experilnentar por você mesma. Com as mãos ainda trêmulas, Emilie segurou as de Lucrécia e Pediu: -- Então me esclareça um pouco mais; diga o que se passa comigo.

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-- Não é a primeira vez que tem pesadelos, é, Emilie? - Não. Os pesadelos me acompanham de longa data. - E por certo também não é a primeira vez que sonha com esses irmão s. Você não se lembra? - Sempre sonho com pessoas à minha volta, tentando me fazer mal. De sta vez, porém, vi o olhar de raiva que me dirigiram; percebi que são dois homens e duas mulheres. É a primeira vez que os vejo tão claramente, e que consigo lembrar ao despertar. Foi terrível! - Tenha paciência, tudo vai ficar claro, confie em mim. - Quem são, Lucrécia, t o que querem de mim? - Por enquanto, só posso dizer que são irmãos nossos, precisando d e ajuda. Mais tarde você compreenderá. Agora procure dormir novamente. - Não quero, não consigo. Após pensar um pouco, Lucrécia se levantou, pegou o Novo Testament o e o entregou a Emilie: - A companhia de Jesus sempre nos auxilia, e o seu Evangelho é a m elhor forma de lhe conhecermos os ensinamentos. Leia. Tenho certeza de que se acalmará. Emilie pegou o pequeno livro, segurou-o com firmeza e disse: - Você é muito boa comigo. Contudo, acho que não devo acompanhá- los amanhã. Algo me diz que não será bom para mim. - Não percebe que é exatamente isso que eles querem? - Eles quem? Por que não me explica de uma vez? Porque não esclar ece o que se passa comigo? Acho que você não sabe, que finge saber só para me levar a essa reunião. - Emilie, se não quiser ir conosco, não precisa; levo VOCÊ diretament e para a casa de Sara. Mas é muito difícil esclarece tudo de uma só vez. Part icipar da reunião facilitará o seu eflteíl dimento. Explicar é mais complicado.

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-- Acho que não devo ir... -- Vamos ver como acorda amanhã. Tente dormir. Deixando a jovem com o Novo Testamento, Lucrécia voltou a seu quarto e, antes de se deitar, orou pedindo ajuda a Deus. Emilie acendeu a vela que ficava à sua cabeceira e depois de ler várias páginas finalmente adormeceu. Na manhã seguinte, mais aliviada, acordou com o pequeno livro entre as mã os. Assim que apareceu na cozinha, Lucrécia, com o carinho habitual, per guntou: - E então, descansou? E o Evangelho., deu para ler um pouco? - Li só alguns trechos, pois logo adormeci. Sabe, Lucrécia, não consi go compreender direito o que poucas vezes li na Bíblia; acho bonito, mas não fica claro para mim o que quer ensinar. Lucrécia sorriu, sentando-se ao lado da jovem: - É que você se atém às palavras e não à essência, ao que realmente significam. São o sentimento e o pensamento do Criador que elas querem tradu zir. Veja o Evangelho: se ficarmos presos às palavras e mesmo às histórias e parábol as, sem buscar apreender o conteúdo mais profundo das lições de Jesus, se não meditarmos no que elas têm a ver conosco e, principalmente, se não procurarmos coloc ar em prática o que Ele ensinou, dificilmente conseguiremos captar o plen o sentido da mensagem cristã. Tudo nos soará como uma bela filosofia, a fflenos que nos disponha mos a assimilar as poderosas verdades e os valores que, quando aplicados, podem transformar nossas vidas. -- Emilie olhava para Lucrécia, bebendo suas palavras. Nunca uvira ninguém falar daquele modo sobre os textos sagrados, continuou atenta, abs orvendo o que a dona da casa dizia. E Lucrécia prosseguiu: -- Os ensinos de Jesus são fonte de vida, de luz para

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nossas almas; eles nos capacitam a encontrar o caminho a seguir, a tomar as melhores e mais sábias decisões, e podem ser aplicados a tudo em nossa exi stência. Jesus foi quem nos revelou as leis imutáveis do Pai e, mais do que com as palavr as, o fez com Seus atos, Seu comportamento, Sua vida. Suas lições nos cons olam, nos esclarecem e nos fazem caminhar com equilíbrio, em todas as situações. Mas é preciso que lhes penetremos o significado, não ficando apenas na superfície da pal avra em si ou dando voltas em interpretações teóricas. Suas revelações são grandiosas dem ais para nós e por isso, se queremos compreendê-las, precisamos tentar prat icar o que Ele ensinou. Só assim se tomarão vivas dentro de nós e nos ajudarão a enten der a finalidade de nossa existência e a encontrar esperança para o futuro, quando não mais estivermos neste planeta. Emilie estava encantada com o que ouvia. Mesmo sem a compreensão ní tida do que ela queria dizer, as palavras de Lucrécia lhe traziam intenso b em-estar. Que fé sincera e maravilhosa demonstrava! Que lucidez naqueles breves coment ários! Emilie lembrou-se de que havia conhecido uma única pessoa que fal ava daquela maneira: sua avó Heloíse. Então Lucrécia se calou. Depois de demorado silêncio, Emi lie perguntou: - Onde foi que aprendeu tudo isso? Você é católica, ou tem outra religi ão? Lucrécia sorriu e disse: - Como sabe, nasci em Marrocos, onde a religião oficial e o islamism o. Recebi rígida formação religiosa; havia, entretanto, questões não respond idas que insistiam em assolar-me a rnente e sobretudo o coração. Casei-me e tive trê s filhos. Quando conheci melhor o Cristianismo, descobri nas lições do Evan gélio de Jesus aquilo que estava procurando e abandonei a religião de meus pais. Foi difíc il e muito doloroso, porém aquela luz que se

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Acendera em meu coração não podia mais ser apagada. Emilie estava atenta à narrativa das lembranças de Lucrécia: -- O sacrifício foi grande: meu marido me abandonou e meus filhos m e foram tirados. Fui parar na prisão, ignorada pela família e pelos amigos. Lá conheci Jairo. Ele, então, passou a representar tudo para mim e planejamos fugir. Conseguimos escapar e viemos para a Espanha, na esperança de encontrar a poio em um país católico. No entanto, duras lutas nos esperavam. Apesar de tudo, eu sentia Jesus perto de mim e sabia que Ele jamais me abandonaria. Lágrimas desciam pela face de Lucrécia; igualmente emocionada, Emi lie acompanhava o relato. Lucrécia enxugou as lágrimas e continuou: - Mesmo sofrendo todo tipo de privação que você possa imaginar, p ermanecemos confiantes em Deus e em Jesus. Foi aí que conhecemos Miguel. Ele nos ajudou sem perguntar sobre nossa origem, religião, nada! Levou-nos para a própria casa e nos deu tudo de que necessitávamos. Ajudou Jairo a se iniciar na pes ca e logo que nos viu mais fortes nos apresentou à família de Sara, que ofereceu esta ca bana para vivermos. Foi Miguel que nos fez conhecer esse movimento renovad or que se alastra pela Europa, difundindo a chamada Doutrina dos espíritos. A princípio fi camos receosos, como você está; na verdade tínhamos muito medo, mas Migu el foi tão bom para nos dois que acabamos tendo vontade de saber um pouco mais daquilo que el e tanto apreciava. Desde a primeira reunião de que participamos, na casa desse amigo, um espesso véu foi Retirado de nossos olhos espirituais; passamos a compreender os ensinainen tos de Jesus de forma diferente, viva e intensa, se atingissem intimamente nossas almas. Tudo adquiriu e uma nova alegria preencheu nossos corações. À medida que falava, seu rosto se iluminava. Emilie quase

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podia ver a luz que ele irradiava. Continuava embevecida por aquelas pala vras; uma nova emoção a envolvia por completo. Lucrécia então olhou mais firme para Emilie, como se despertasse de suas lembranças, e disse: - Será que consegue me entender, Emilie? É por isso que insisto qu e nos acompanhe. Se achar por bem nunca mais retomar, isso será com você. Pelo menos terá conhecido um pouco dessa doutrina libertadora e esclarecedora que é o Espi ritismo. Emilie estava confusa. Sentia-se por demais encantada com o que escu tava e, não obstante os receios que persistiam, comentou: - O que já ouvi dessa doutrina é terrível: que é do demônio, que sã o seres demoníacos que se comunicam, que seus ensinamentos vêm do mal; isso me assusta muito. Já o que você está me dizendo não combina em nada com tudo o que tenho ouvido. Você me fala de amor, de compreensão e de Jesus, de mane ira nova. Nunca pensei que essa religião tivesse algo a ver com Jesus. Quero conhecê-la de perto. Ainda tenho muito receio, mas não é possível que uma única visita possa me prejudicar. Lucrécia sorriu, aproximou-se dela e abraçou-a com imensa ternura. E milie, por sua vez, deixou-se envolver pelo gesto carinhoso. Depois, Lucréci a lhe disse: - Estou certa de que começará a compreender muitas coisas... Estou fe liz por nos acompanhar...

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Capítulo Vinte e Um

Assim que anoiteceu, Jairo saiu na frente para verificar se não havia alguém à espreita. Apesar de ninguém ter sido visto, Lucrécia abraçou-se a E milie e saíram as duas cobertas pelo mesmo casaco, parecendo uma só. Caminharam rapidamente por pequena trilha que contomava a costa. A princípio não usaram luz alguma; mais distantes da casa, Jairo acendeu uma lamparina e seguiram pela trilha. Chegaram à vila e a atravessaram em passos rápidos; do outro lado, entrara m por uma ruela. Andaram quase meia hora e finalmente cruzaram o portão de uma casa, pro tegida por muitas árvores. Bateram. Um rosto alegre surgiu à porta e for am convidados a entrar. Emilie examinava tudo com desconfiança e curiosidade. Após ser apresentada, ela se ajeitou na cadeira e observou Lucrécia e Jairo, qu e tomavam lugar na pequena mesa colocada no centro da sala. O homem que ocupava a ponta da mesa pediu a Jairo que fizesse uma prece para o início da reunião. Jairo se levantou e ficou longo tempo sem dizer nada. Um silêncio profundo dominou a sala. Jairo começou então a orar:

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- Senhor, Mestre de nossas almas, de nossas vidas, vem em nosso favo r nesta hora, auxiliar-nos a entender Teus ensinamentos. Ajuda-nos a viver T uas lições. Sabemos que tudo o que nos acontece tem a permissão do Pai, pois Seu obj etivo é promover nossa evolução. Guia-nos para a compreensão dos desígni os divinos. Abençoa nossa reunião desta noite, fazendo-a de grande proveito e crescimento para todos nós. Que assim seja. Enquanto Jairo orava, Emilie experimentou forte calor tomar todo o s eu corpo. Em seguida, teve a impressão de flutuar na cadeira, como se levita sse; sentiu-se subitamente crescer, e crescer, como se sua cabeça tocasse o teto. Seu co ração disparou em batimentos descompassados e suas mãos, que estavam quen tes, suavam muito. Eram sensações absolutamente inusitadas. Pensava em se levantar e sair, qu ando percebeu que tais sensações lhe traziam bem-estar, calma e serenidade . Depois que Jairo se sentou, Emilie continuou mergulhada nas mesmas sensações. Observou o que se passava, agora com interesse redobrado. As luzes, que haviam ficado apagadas durante a oração, foram acesas e , feitos alguns comentários, iniciou-se o estudo de O Livro dos Espíritos, co m a leitura de uma das questões. Emilie ouvia com atenção. De vez em quando Lucrécia a encarava e sorria, satisfeita, como se soubesse bem o que ocorria com a jovem. Emilie recebia seu olhar carinhoso, sem retribuir-lhe o sorriso. Após o estudo e as reflexões feitas pelos sócios da pequena agremia ção, o homem sentado na ponta da mesa informou a todos que passariam à par te prática da reunião. Em oração, pediu aos espíritos benfeitores que ali se encontra vam, com o objetivo de orientar e ajudar o grupo em seu desenvolvimento es piritual, que se manifestassem através dos médiuns presentes. Antes de prosseguirem, Lu crécia cochichou algo no ouvi-

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do do esposo, que o transmitiu a Paulo, o dirigente. Este fitou Lucrécia in terrogativamente e ela, com um expressivo olhar e um menear de cabeça, pedi u que a atendesse. Paulo olhou para a audiência atenta e disse: - Emilie, por favor, venha sentar-se conosco à mesa. Ela se surpreen deu com o convite. Ia recusar, mas uma força desconhecida a fez ficar calada . Permaneceu sentada sem saber o que fazer. Novamente soou a voz firme do dirigente: - Venha juntar-se a nós, minha filha. Não tenha medo. Apenas sente-s e conosco e una-se a nós na concentração. Hesitante e temerosa, ela se levantou lentamente, relutando em aten der aquele pedido. Devagar atravessou o corredor e foi se encaminhando para a mesa. A medida que se aproximava, a emoção a envolveu por completo. Seu coração s e acelerou ainda mais e sentiu forte vertigem ao chegar à mesa. Sentou-se ao lado de Lucrécia. Tão logo se acomodou, sem controlar os próprios movimentos, pegou na mesa pena e papel. Ela própria não entendia o que estava acontecendo. Seus at os eram quase involuntários, fruto de um impulso incontrolável. Paulo, então, pediu de novo que se apagassem as luzes e orientou todo s a que se ligassem mentalmente a Deus, o Criador de todas as coisas, e a Jes us, seu mensageiro supremo. Que buscassem não Pensar em mais nada, e mantivessem a disposição de colaborar com os emissários espirituais no que deveria s er transmitido naquela noite. O pequeno grupo era coeso, revelando desejo sincero de aprender e de praticar o bem. A sala estava lotada de espíritos que ali compareciam ou pa ra ajudar ou para igualmente aprender. Paulo terrwnou de falar e algo surpreendente aconteceu: Emilie segu rou firme a pena, de um jeito que nunca fizera,

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como se segurasse um pedaço de pau qualquer, e daquela forma totalmente desconfortável começou a escrever. Sentia a mão se mover alheia à sua vontade e ficou assustada Olhou para Lucrécia como a pedir socorro e ela disse baix inho: - Não tenha medo, relaxe e confie. Sem conseguir dize r mais nada, Emilie escreveu várias páginas. Os pensamentos lhe vinham um após outro; mal ela os percebia e já os havia colocado no papel. Sua mão acompanhava o fluxo das idéias, registrando-as quase como se fos se comandada por out ra pessoa. Absoluto silêncio reinava no ambiente. Um sentimento suave e leve envolvia todos o s presentes. Lucrécia estava emocionada, mas não permitia que sua emoção interferisse no que ali ocorria. Sempre soubera que Emilie era médium, e o fato de ela est ar recebendo sua primeira mensagem a deixava inebriada de alegria. Agradec ia a Deus pela vida da jovem e por ter sido instrumento para socorrê-la Ao final de quase t rinta minutos, Emilie soltou a pena que rolou pela mesa e caiu no chão. Esta va exausta. Recostou-se na cadeira e permaneceu quieta. Outra senhora sentada à mesa recebeu uma mensagem e Paulo finaliz ou grafando mais uma, ambas curtas. Era incomum, naquela pequena sociedad e espírita, virem mensagens tão extensas como a que Emilie acabara de receber. Quando as luzes se acenderam, Paulo pediu que as comunicações fossem lidas. A senhora leu primeiro; depois de olhar para Emilie, que parecia hes itante, ele fez a sua leitura e, ao terminar, pediu que a jovem lesse. Ela o fixou: - Eu recebi uma mensagem? - Sim, você recebeu uma mensagem do mundo espiritual. - De um espírito? - Sim, de um espírito. - Meu Deus! O que vai ser de mim?

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- Agradecida ao Pai pela oportunidade desta noite, que há tanto agu ardava rogo que Ele me ajude a expressar-me conforme necessito peço a você s que tenham boa vontade em ouvir-me; estendo meu pedido muito especialmente a esta i rmã, por intermédio de quem pôs só expressarme. Todos nós, que estamos aq ui nesta noite, temos uma enorme respon sabilidade para com a vida. A cada reencarnação , chegamos na terra com uma espécie de mapa da futura existência gravad o em nossa alma em nossa consciência profunda. Temos um acordo com o Criador, pelo qual no s comprometemos a uma série de deveres, especialmente o de nos melhorar mos e resgatarmos nossos débitos, acertando as contas com aqueles que prejudicamos no passado. Ess e mapa permanece dentro de nós e se manifesta nas circunstâncias que nos vão assinalando a jornada, mesmo contra nossa vontade, já que muitas vezes foram colocada s em nosso caminho com nossa plena aquiescência. Então, frente a esses fa tos por nós próprios desejados, podemos optar por crescer e aprender, como nos propusemos antes do reencarne, ou preferir nos rebelar e ignorar as lições verdadeiras que n os cabe aprender. O materialismo nos envolve de tal maneira que, não obstante conscientes d e que todos deixam esta vida um dia, agimos como se aqui fôssemos ficar e ternamente. Não refletimos que teremos de partir um dia. E quando isso acontecer, meus ir mãos, voltaremos com nosso mapa - que tinha como destino nosso aprimorame nto interior- e prestaremos contas à nossa consciência, às leis que governam o Universo e a Deus, com quem, afinal, nos comprometemos. Nossa vida na terra é trans itória e poderemos aproveitá-la muito mais e melhor se compreendermos nosso mapa interior e, pelo bom uso da vontade, nos aproximarmos de Deus buscando fazer nos sa parte. Pensem, meus irmãos, o tempo de uma vida é curto. Breve muitos vocês estarão no mundo espiritual, conosco. Entretanto, a forma cono chegarão dependerá de como viverem seus dias. Temos grandes deveres para com as leis divinas. Nossa vida é uma oportuni dade sagrada de fazermos o que Deus espera de Seus filhos. Ele aguarda p or nossa decisão. Equando estamos na rota certa, a paz e a alegria são nossas companheiras . Omçam-me, meus irmãos, e aproveitem essa sagrada oportunidade. Que

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Deus os ampare e abençoe. Olhem para Jesus, que está sempre ao seu lado, e caminhem para a redenção de suas almas.

HELOISE DE CHEMONIS

Ao ouvir o nome, Emilie não conseguiu controlar a emoção e se ent regou a sentido pranto. Todos na sala faziam absoluto silêncio, meditando na mensagem deixada pelo espírito Heloise. Ao terminar a leitura, Paulo devolveu os papéis a Emil ie, dizendo: -- A mensagem lhe pertence, peço apenas que prepare cópia para nós. Certamente todos aqui vão querer guardá-la e lê-la de quando em quando. É um espírito esclarecido e amoroso. Conhece Heloise de Chemonis? Emilie balançou a cabeça afirmativamente, enquanto enxugava as lágr imas. - Conheço. Ela foi minha avó, morreu há muito tempo... - Morreu não, minha filha, você viu que ela continua viva; só está em o utro plano. - Éramos muito unidas... Ela faleceu quando eu era muito jovem. - Ao que parece, continuam bem próximas. Emilie não pôde dizer mais nada. As lágrimas a dominaram e longo t empo transcorreu até que conseguisse se acalmar. Lucrécia permaneceu ao se u lado, acariciando-lhe os cabelos, quando viu que Emilie conseguira se refazer, exclamou: -- Que lindo presente você recebeu hoje, Emilie! Que benção! -- Não estou compreendendo nada. O que houve aqui? Como isso foi acontecer, justo comigo? Era mesmo minha avó? -- Você não sentiu? Pode negar a experiência que vivenciou? Emilie olhou a amiga, intrigada, e perguntou: -- Como sabe o que senti? Como sabia que eu iria escrever?

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- Heloise me disse. - Falou com ela? - Ela falou comigo. - Não entendo... - Vamos, Emilie, precisam fechar a sala e Sara nos espera. Convers aremos no caminho. Teremos muito tempo para esclarecer suas dúvidas. Por o ra, conserve a sensação de paz e serenidade deste momento e aproveite o aprendizado. Calada, Emilie se levantou e saiu amparada pela amiga.

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Capítulo Vinte e Dois

A mente de Emilie transbordava de perguntas; estava totalmente confu sa quanto à experiência que acabara de ter. Pela primeira vez, porém, admiti u que algo poderoso tomava conta dela; conscientemente percebeu que era envolvida por uma força maior, que a fazia agir. Ao se aproximarem de Sara, a moça fez menção de indagar algo a Luc récia, que, parecendo adivinhar-lhe os pensamentos, antecipou-se: - Sei como se sente, Emilie. Perguntas e dúvidas inumeráveis devem e star torturando sua mente; mas tenha calma. -- Estou com medo, Lucrécia. O que se passou comigo hoje? -- O que achou da nossa reunião? -- Não sei, estou assustada, confusa e com medo; ao mesno tempo sin to uma paz, um bem-estar que não sei explicar. Está muito confuso... -- Tenha paciência e a seu tempo tudo se esclarecerá. Sara aguardava as duas, sorrindo carinhosa para a jovem que levaria consig o para casa. Lucrécia então disse a Emilie:

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- Sara poderá esclarecer suas dúvidas; conhece muito mais do que eu e tem mais experiência. Além disso, com ela ficará segura, pois sua casa é a fastada e ninguém descobrirá onde está. Como Emilie a olhasse entre assustada e ansiosa, ela a acalmou: - Não se preocupe, Emilie, vou visitá-la sempre que for possível. E caso você resolva participar de nossas reuniões nos veremos todas as semanas . Todas as dúvidas que tiver, transmita a Sara; ela poderá ajudar e explicar melhor do q ue eu. Pela primeira vez, Emilie abraçou Lucrécia fortemente, sentindo triste za em afastar-se dela, que por sua vez, ao se despedir da jovem, tinha os olho s rasos de água. Afeiçoara-se profundamente a Emilie e era como se separar de uma filha. Sara assegurou, em tom maternal: - Cuidarei bem dela, Lucrécia, pode ficar sossegada. E esta sua filha v ocê poderá ver quando quiser... - Obrigada por nos ajudar outra vez, Sara. - Sabe que não precisa agradecer. Estamos aqui para nos auxiliar un s aos outros; se não praticarmos aquilo que aprendemos, nossos conhecimento s de nada valerão. Fico feliz em poder contribuir. Despediram-se e Emilie acompanhou, atordoada, os novos amigos que acabara de encontrar. Ia hesitante, olhando seguidamente para Lucrécia e J airo, que haviam ficado para trás, ainda à porta da pequena casa que os acolhera. O coração da moça batia descompassado. Afastava-se de uma verdadei ra amiga, e somente agora se dava conta do carinho que nutria por Lucrécia . Apertou então a mensagem que trazia nas mãos e seu coração se acelerou mais. Teria mes mo sua avó Heloíse se comunicado com ela, escrevendo pela sua própria m ão? Não seria aquilo uma obra maligna, como ou-

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vira dizer tantas vezes, inclusive com referência ao que ela experimentava? O padre a orientava para que rezasse mais, tivesse mais fé em Deus e afast asse os maus pensamentos, pois o que lhe acontecia era coisa do demônio. O que acabara de ocorrer não seria também ação de enviados do mal? Emilie não sabia o que pensar. Sentiu vontade de sair correndo dali, deixando tudo aquilo para trás. Mas voltar p ara onde? Sem alternativa, acompanhou Sara e Josias até agradável casinha à beira-mar, onde residia a família. Sara acomodou Emilie em um dos quartos, junto com a filha, Suzana, não sem antes se desculpar: - Gostaríamos de instalá-la em um quarto só para você, mas temos trê s filhos e a casa não é grande; Suzana, por ser a única mulher, tem o quarto mais amplo. E uma menina doce e meiga, creio que se darão bem. Desejo que tenha o ma ior conforto possível enquanto estiver conosco. E saiba, desde já, que qu eremos que fique o tempo que for necessário. - Sinto-me muito constrangida por invadir assim a casa de pessoas q ue nada têm a ver com meus problemas. - Somos todos irmãos, filhos do mesmo Pai, que é Deus. Hoje é você que precisa de ajuda, amanhã poderei ser eu a necessitada, ou alguém de min ha família. Portanto, não estou dando a você nada além do que gostaria igualmente de re ceber. Fique à vontade, está em sua casa. Eimilie sentou-se na cama que Sara lhe oferecera. Depositou Papel d obrado que trouxera e, olhando detidamente para a mensagem, disse: --- Tenho tantas dúvidas, tantas coisas a lhe perguntar... Amanhã, Emilie. Agora descanse. Teremos muito tempo para conversar. Emilie ainda tentou estender a conversa, mas Suzana entrou no quarto e foi logo dizendo:

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- Que bom, terei companhia... Você sabe contar estórias, Emilie? - Emilie está cansada, filha. Deixe-a descansar, não a aborreça. Emilie sorriu para a menina: - Não tem importância, Sara. Você gosta de ouvir estórias, Suzana? - Adoro! - Eu costumava contar muitas à minha filha. --- Com os olhos cheios de lágrimas ao recordar a filha, ela se esforço u para continuar: - Que estória gosta de ouvir? - Qualquer uma. Emilie sentou-se na cama de Suzana e começou uma narrativa. Sara obs ervou em silêncio e por fim retirou-se, deixando as duas a sós. Na manhã seguinte, Emilie despertou ainda mais apreensiva e melancó lica. Sara notou seu estado de espírito e, logo que tomaram o café da manhã , perguntou: - Você aprecia o mar, Emilie? - Muito. - Gostaria de caminhar um pouco pela praia? Poderemos ter tranqüilid ade para conversar. Emilie animou-se e acompanhou Sara. - Penso que gostaria de falar sobre a reunião de ontem- - Ontem me sentia melhor; hoje amanheci com medo, ansiosa e aflita. - Foi a primeira vez que isso ocorreu com você? - Desse jeito, sim. Mas desde a adolescência estive às voltas com sit uações semelhantes; é como se tivesse dupla personalidade e a outra se apossa sse de mim, dizendo e fazendo o que bem quer; quando recupero o controle, nunca sei o

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que houve. Tenho sofrido muito com isso. Mais recentemente, agredi minha filha e contam que tentei matar meu marido e ela. Não me lembro de nad a. Dizem que coloquei veneno na comida deles, mas não é verdade, eu não fiz isso. O que acontec e comigo? - Emilie, você é sensitiva, é médium. - O quê? - Tem uma aptidão que lhe permite entrar em contato com os espíritos , com o mundo invisível. - Isso é coisa do diabo! É um sacrilégio! Não podemos incomodar os m ortos! - Você os chamou alguma vez? Pediu que viessem? Convidou-os a faz er essa confusão em sua vida? Emilie pensou um pouco, procurando compreender o que Sara queria d izer. Depois respondeu: - Não, claro que não. - E ontem, pediu à sua avó que escrevesse por seu intermédio? - Eu não tinha a menor idéia do que se passava... - Então, pense: como pode haver sacrilégio? Como pode estar invoca ndo os mortos, se são eles que estão provocando você, ou se manifestando p or seu intermédio? Emilie fitou Sara e disse: - E como pode ter tanta certeza de que são espíritos? --- Ontem, quando sentiu vontade de escrever, notou algo de familia r? Alguma sensação agradável ou coisa parecida? Emilie procurou recordar, depois assentiu: --- Pensando bem, tive uma sensação doce e suave, como Sempre tinh a na companhia dela... --- Percebe? Posso discorrer aqui sobre os conhecimentos que já adquiri, que para mim não deixam dúvidas quanto à autenticidade das comuni cações que acontecem por toda parte en-

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tre os vivos da terra e os vivos do plano espiritual. Os espíritos estão à n ossa volta, e nos influenciam muito mais do que podemos supor. Você pôde sen tir por si mesma, e isso é mais do que eu posso lhe explicar. Emilie ficou pensativa e caminharam por um bom tempo em silêncio. E la meditava no que Sara acabara de lhe dizer. Enfim, falou: - Que conhecimentos são esses? A que comunicações se refere? - Está nascendo uma nova era para a Humanidade. Uma era em que os homens terão acesso, através dos conhecimentos espíritas, a verdades cuja busca os aflige desde o início dos tempos. Esses conhecimentos trazem respostas para as mais profundas questões da alma humana: quem somos, de onde viemos e par a onde vamos. - E não é isso que a Igreja se propõe responder? - Só que até agora não conseguiu completamente, não é mesmo? - Mas o Espiritismo é do demônio! É isso que todos dizem... - O Espiritismo está calcado na moral cristã, em sua mais pura essênci a. E a Igreja assim o reconheceria, se estivesse atenta aos princípios ensinad os por Jesus e deles não se tivesse desviado. - Como assim? A Doutrina Espírita lança nova luz sobre os ensinos de Jesus, e é ne les alicerçada. Alguns aspectos das lições do Mestre não puderam ser inteira mente revelados por falta de maturidade dos homens de Seu tempo, e por isso foram ditos de forma velada. Tais aspectos são agora aclarados em sua totalidade por essa doutrina que, mais do que tudo, busca com seus Postulados a regeneração do homem e sua ligação mais estreita com o Criador -- não pelo medo das ameaças de co ndenação a um

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inferno interminável, e sim pela compreensão da sua essência imortal, da s ua responsabilidade na construção do próprio futuro e da presença constant e do amor divino a ampará-lo em sua trajetória. --- Então por que dizem tantas coisas terríveis sobre essas práticas? --- Porque os homens têm medo. -- Medo do quê? --- Medo de admitir que não sabem tudo, que precisam abrir a mente e o coração para buscar entender as questões espirituais em profundidade. Temem também o que é novo e desconhecido. A Igreja tem interesses a preservar, Emilie. Se os homens raciocinarem melhor sobre Deus e Sua criação, se discutirem e procurarem assimilar os ensinos de Jesus em sentido pleno e se, acima de tudo, procurarem vivê-l os, o poder e a autoridade da Igreja se enfraquecerão. Ela tem muito a perd er com a expansão da Doutrina dos Espíritos, que, repito, nada mais é do que o resgate dos valo res cristãos primitivos de amor, caridade, fraternidade desinteressada e, por conseguinte, da verdadeira espiritualidade. Esses valores, não apenas ditos, mas vividos , são poderosas forças capazes de transformar a Humanidade. O perdão das ofensas, a caridade para com os inimigos, o amor e tudo o mais que Jesus nos ensinou são atitudes contrárias aos interesses do cult o ao egoísmo e ao orgulho que se desenvolveu na Terra, sob o olhar complacente das ins tituições humanas. Jesus morreu porque ameaçou interesses fundanente arraigados nos homens daquela época; a Doutrina Espírita, junto com seus s eguidores, é perseguida e enxovalhada por razões semelhantes. Em relação a todos os assuntos, minha filha, é preciso conhecer para de pois criticar.

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Emilie ouvia atentamente as explicações de Sara, que continuou: - Você não precisa acreditar no que estou dizendo. Verifique por si mesma. Estude, leia, abra sua mente e compreenda. Você conta com o amparo de sua avó, que está ao seu lado ajudando-a a enxergar com mais clareza. - Como sabe disso? - É que posso vê-la, Emilie. - O quê? Pode vê-la? Como? - Do mesmo jeito que vejo você. Posso vê-la, e igualmente a outros espí ritos. - É mesmo? Que horror! Quando isso começou? - Desde pequena, eu tinha amigos invisíveis para os outros que con versavam comigo. De início meus pais não davam grande importância a isso, pensando que era coisa de criança fantasiosa. À medida que crescia, continuava a ver es ses amigos. Quando adolescente, costumava falar com eles, mas muitos me as sustavam, inclusive com ameaças. Meus pais ficaram preocupados e chamaram um sacerdote par a me orientar. Foram anos difíceis: consideravam-me louca ou possuída pelo mal. Somente quando conheci a doutrina trazida pelos espíritos pude entender o que se passava c omigo; daí comecei a usar essa minha capacidade especial para ajudar outras pessoas, quer de carne e osso, como eu e você, quer do mundo espiritual. Emilie ouvia estarrecida a história de Sara; era parecidíssima com a sua! Embora com situações peculiares a cada uma, suas experiências eram sim ilares. Então comentou: - Lucrécia me disse que também enfrentou problema desse tipo. Na oca sião ela não quis dar detalhes. - A história de Lucrécia é muito mais triste do que a minha. Ela perd eu tudo o que possuía, passou fome, esteve presa. Sofreu muito.

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Emilie baixou a cabeça, relembrando suas dificuldades, sua dor, sua s olidão, afastada de tudo e de todos; ia responder quando Sara falou: .- Sei que também sofreu muito, Lucrécia me contou. O caminho do d esenvolvimento nem sempre é fácil. Por que tanto sofrimento? - A razão de nossas dores, de nossos sofrimentos, também encontra exp licação lógica e racional na Doutrina Espírita. Sara fez longo silêncio, depois disse: - Acho que você já ouviu bastante, por enquanto. Agora precisamos v oltar. O sol está a pino e meus afazeres me esperam. Creio que tem muito em que pensar. Se desejar, e somente se desejar, pode conhecer mais sobre essa doutrina. - Como? - De vários modos: pode continuar participando de nossas reuniões e pode ler um livro que tenho em casa; ele lhe dará muitas das respostas que e stá procurando. Emilie retomou calada; quando chegaram, disse: - Gostaria de ler o livro de que me falou. Sara foi buscá-lo e entregou-o a Emilie, que o pegou um tanto insegur a. Espantou-se com o título - O Livro dos Espíritos e quase o devolveu a Sar a, que aconselhou: --- Não se assuste com o nome. O Espiritismo é um movimento de lá pa ra cá - ou seja, do invisível para o visível -, a mesma forma que a vinda de Jesus foi um movimento do infiniito amor de Deus para o homem. O livro foi todo dita do pelos espíritos e é fruto de anos de pesquisas e experiências por estu diosos, com metodologia científica. Não se deixe ntimidar por aparências ou preconceitos; vença tud o isso e encontrará o que está procurando. --- Você ainda não me explicou o que se passa comigo desde a adolescência, nem o que houve ontem.

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- Ao ler, você compreenderá. com relação à experiência ! de ontem, já disse que você é médium e tem possibilidade dei estar em contat o com os dois planos da vida. Isso é uma apitdão maravilhosa, Emilie. - Não compreendo. - É um presente que vem acompanhado de responsabilidades. Emilie apertou o livro nas mãos frias, esforçando-se para dissipar os receios que persistiam. Desejava descobrir a causa maior de seus sofrimentos . Então disse: - Vou tentar. Sara sorriu, satisfeita, e logo se entregou aos trabalhos domésticos.

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Capítulo Vinte e Três

Emilie, sentada à beira-mar, contemplava o horizonte, distraída com o livro entre as mãos. Seus cabelos cor de mel esvoaçavam ao vento. Ela esta va lendo a obra que Sara lhe emprestara e percebia que seus princípios eram lógicos e consistentes. Apesar de não conseguir captar-lhes toda a amplitude, recon hecia que ali havia esclarecimentos capazes de responder às questões existenciais que a a fligiam; traziam luz, notadamente sobre os últimos meses de sua vida, desco rtinando para ela um universo novo de conhecimentos. E devorava O Livro dos Espíritos, de dicando horas à leitura e suas páginas; só a interrompia para auxiliar Sar a nas tarefas da casa. Esta, por sua vez, acompanhava satisfeita, porém discreta, o grad ual envolvimento da hóspede com o conteúdo da obra. Emilie estava entregue a um desses momentos de reflecção. Lia algum as páginas, depois fechava o livro e meditava longamente acerca do que acab ara de ler. Naquele cenário de singular beleza, com o sol se pondo no horizonte, a bris a do mar insistia em alvoroçar suavemente seus cabelos e Emilie escutava o canto das gaivotas que voavam em bandos sobre a

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praia, quase hipnotizada pelo murmúrio das ondas. Não percebeu que algué m se aproximava e ficou surpresa e feliz quando uma voz familiar a cumpr imentou: - Boa tarde, Emilie. Em que tanto pensa? Ergueu-se, feliz: - Como vai, Lucrécia? Não percebi você chegar, meu pensamento estav a distante. - Deu para notar! Por duas vezes a chamei, sem resposta. Como tem p assado? Fiquei preocupada a semana toda e estou ansiosa por notícias. - Veio sozinha? - Não, Jairo está lá dentro. - Lucrécia apontou a casa de Sara, simpát ica e acolhedora, em meio à vegetação - E então? Vai esta noite à reunião? Emilie, séria, encarou a amiga e disse: - Continuo com muitas dúvidas. Estou lendo este livro que Sara me emprestou; não posso negar que ele está mexendo comigo e me fazendo avalia r mais detidamente tudo o que até hoje acreditei. Lucrécia olhou o livro nas mãos de Emilie e sorriu: - É... Esse livro realmente nos instiga; revolve o mais profundo de n ossa alma, tocando o que está enraizado em nós e que na verdade não serve par a nada, embora insista em ocupar o espaço do novo, daquilo que pode realmente nos ajudar. - É estranho... Ao mesmo tempo em que me interesso e sinto que me b eneficio com a leitura, ligeiro desconforto me acomete, fico agoniada, ansi osa. Nem por isso interrompo a leitura. Só que ainda me sinto insegura em retomar à reu nião. Temo a ocorrência de situações que fujam do meu controle- - Como passou a semana, Emilie? - A princípio, bem; mas há dois dias sofro intensa gústia, como se al go me sufocasse, e ao acordar esta manhã

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me senti profundamente triste. Pensei muito em Cíntia e uma vontade quase incontrolável de vê-la apossou-se de mim. - Você sabe que ainda não pode procurá-la, não sabe? Não a deixarão vê-la, e certamente a enviarão de novo para o sanatório. Precisa ser cautelo sa, controlando seus impulsos; aos poucos irá compreendê-los e quando os tiver sob controle estará mais preparada para ir ao encontro do seu destino. Emilie fitava Lucrécia e intimamente acatava seus conselhos; no entan to, desabafou: - Essa separação tem sido dolorosa demais; às vezes tenho medo de nu nca mais tomar a vê-la. - Eu sei muito bem o que está sentindo. Mas pense bem: se for à proc ura dela sem antes esclarecer os fatos que envolveram sua reclusão, e sem te r resolvido totalmente seus problemas com a justiça, não permitirão que se vejam e se rá ainda mais doloroso para ambas. Tenha paciência e fé, Emilie. Deus nun ca nos desampara. Por mais difíceis sejam nossas provas, nossos desafios, Ele está sempre co nosco e há de guiá-la pelo melhor caminho, se permitir que a conduza, se b uscar sinceramente compreender Sua vontade. Deus não quer que soframos; quer que encontremo s o nosso caminho e que realizemos aquilo que viemos fazer na terra. - Você diz isso com tanta convicção... Como sabe todas essas coisas? Leu muito, é isso? --- De fato leio muito; aprendi o suficiente para poder ler as revista s e livros espíritas que Miguel nos envia. Contudo, o que me traz maior convic ção é a vivência, a prática de todos esses Postulados. O que você está lendo não é apenas teoria, Emilie. verdades aí contidas tocaram minha alma, passei a compreender melhor minha existência, também cheia de percalços e difiades, e hoje tenh o muito claro para mim o sentido maior da compreensão me tem levado a acei tar os fatos e pro-

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curar descobrir o significado de tudo o que me acontece. Minha vida se enr iqueceu de tal modo que nada mais é banal e semi importância. Por exemplo: encontrar você; sabia que nunca vou ao penhasco, Emilie? - E por que foi, naquele dia? - Estava em casa, preparando os peixes que Jairo trouxera logo pe la manhã, quando uma idéia surgiu em minha mente, como uma ordem: "vá até o penhasco". A princípio não dei atenção, pois me parecia completamente fora de propósito interromper o serviço e subir ao penhasco; tinha muito o que fazer. Mas o pensamento, ao contrário de me abandonar, tomouse a tal ponto insistente que já não p odia trabalhar. Finalmente compreendi que estava recebendo um pedido de a lguém, deixei tudo e subi. Assim que a avistei, corri com medo de que não pudesse resistir; est ava abatida demais. O resto você já sabe. Emilie não dizia nada. E ela continuou: - Percebe por que tenho tanta convicção? Não é imaginação, Emilie. V ocê é prova disso. - Poderia ser coincidência... - Acha mesmo? Provavelmente não estaria aqui agora, se eu não tivess e recebido orientação para subir a encosta e obedecido. É muito verdadeiro e sério para ser apenas coincidência. - E quem acha que pediu para me ajudar? - Não sei, são muitas as possibilidades; o que sei é que tinha de obedece r e ajudar. E foi o que fiz. Lucrécia calou-se subitamente. Enquanto Emilie a observava, baixou a cabeça como se dormisse. Segundos depois, tomou a erguê-la com expressã o grave e formal, dizendo: - Não despreze a oportunidade, Emilie. Muitos esforços foram despen didos para que você chegasse até aqui; muito amigos espirituais trabalham a seu favor, para ajudá-la a cufi1 prir aquilo que se propôs antes de voltar ao planeta. M uitos

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aguardam para unir-se a você na tarefa que têm de realizar; eles dependem d e você. Deixe de lamentar o que passou. Olhe para a frente e à sua volta: v eja quanto bem e quanto amor a cercam e ponha-se em ação, minha filha. Procurar a fel icidade longe de sua missão é perder a sua vida em busca de ilusão. As cir cunstâncias se desdobram conforme planejado e tudo se esclarecerá a seu tempo; agora, mão s à obra que precisa ser iniciada. Emilie ouvia atentamente, quase sem respirar, sentindo forte emoção. Lucrécia baixou a cabeça de novo e quando a levantou disse: - Tentei ajudar e achei você... Emilie olhava surpresa para a amiga. Percebia que ela não tinha noçã o do que acabara de acontecer e interrompeu-a: - Não se lembra das coisas que acabou de me dizer? - Claro que me lembro. Estamos falando de como foi que encontrei voc ê. - Não, de repente você começou a falar sobre algo que tenho de fazer, q ue não captei direito. Lucrécia sorriu e disse: - Então recebemos uma visita inesperada, foi isso. - Como assim? - Alguém precisava transmitir-lhe alguma informação importante. Emi lie, a vida é assim: há o mundo visível e o invisível, e ambos se entrelaça m e caminham em conjunto. O que precisamos é abrir nossa mente e em especial nosso cor ação Para começar a compreender o invisível, que muitas vezes só é Perceb ido com o coração. Você entende? --- Acho que sim; quer dizer, um pouco... Não sei. Lucrécia fazia me nção de acrescentar algo, quando Sara Careceu dizendo: --- Está na hora de irmos. Vem conosco, Emilie?

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A jovem olhou para Lucrécia, hesitante; então, recordando as palavras que há pouco escutara, disse: - Vou. - Ótimo, convém nos apressarmos. Mesmo com medo e desconfiança, Emilie acompanhou Lucrécia, Jairo e a família de Sara à reunião. Desconfortável, prestou muita atenção a tudo o que diziam. Não podia negar a beleza., a pureza daquilo que estudavam. Ainda assim, ao se despedir de Lucrécia, disse: - Tenho muitas dúvidas. Não sei se aqui encontrarei o que procuro ou d e que necessito. - Tenha paciência, minha querida. Continue a ler o livro que começou . Não desanime agora, que está tão perto. - Perto de quê? - De compreender. Já caminhou até aqui; não desista! - Não sei do que está falando, Lucrécia. Além do mais, tenho tantos p roblemas para resolver... Minha vida está destruída, nada me restou, sinto-me perdida e sem esperança... Nem sempre consigo me concentrar na leitura... - Eu sei que o caminho não é fácil, mas o resultado vale as agruras e os sofrimentos do percurso. E acima de tudo, Emilie, que mais pode fazer n este momento? Muitos a procuram; recebemos ainda ontem outra visita do delegado Pimente l, que nos trouxe intimação para prestar esclarecimentos na delegacia. Es tamos sendo acusados, acho que pelo seu marido, Ricardo. É esse o nome? Emilie fitou-a, amedrontada: - E o que vai acontecer? - Por ora não sabemos. Iremos depor na próxima semana e não temos i déia do que virá depois. Você não precisa se preocupar, pois está segura co m Sara. Dificilmente a encontrarão e por nosso intermédio nada saberão. Portanto, aproveite

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o tempo e descubra a oportunidade que se esconde atrás de todos os problem as que está vivendo. - Como, Lucrécia? Como posso achar alguma coisa boa em meio a ta nta dor, tanto sofrimento injusto que apareceu em meu caminho? Lucrécia acariciou a face da jovem, dizendo: - Há tanta beleza à nossa volta, dentro de nós e naqueles que nos ci rcundam... Procure ouvir e ver com outros olhos, Emilie. Tente compreender, não com a mente, e sim com o coração. Antes que Emilie pudesse responder, Jairo aproximou-se de ambas e pe diu: - Precisamos ir, Lucrécia, está muito tarde e não podemos demorar mai s. Ela se despediu de Emilie, beijando-a na face. Depois, abraçando-se ao esposo, desapareceu na trilha que os levava de volta para casa. Emilie re tomou calada e pensativa. Nos dias que se seguiram Emilie esteve compenetrada, mais e mais en volvida com a leitura do livro que recebera de Sara. A cada página, novas i nformações a encantavam; o raciocínio límpido e claro, coerente e profundo, a fazia par ar, fechar o livro e meditar no que lera. Por outro lado, ela se preocupava com Lucrécia, e pediu notícias a Sara: - Sabe se já foram interrogados? - Não. Atendendo ao pedido de Lucrécia, temos nos mantido longe, p ara que não cheguem também até aqui. -- Por que ela está fazendo isso? Por que se coloca em perigo por mi nha causa? Ela nem sequer me conhece direito... Sara sorriu suavemente e ent ão disse: Lucrécia tem bom coração e gosta muito de você, Emilie. Eu sinto o carinho dela e não compreendo...

215 Lucius SANDRA CARNEIRO - Jesus nos ensinou a estender nossos braços e nossas mãos em socor ro a todos aqueles que necessitam. A fraternidade e o amor ao próximo são a base de todos os ensinos que Ele nos trouxe. - Seja como for, não consigo entender... Sei que ela quer me ajudar, mas está se arriscando, se expondo ao perigo por mim. - Ela também está recebendo proteção e amparo, pode ter certeza. - De quem? De Miguel, aquele amigo deles? - Não só dele. Assim como Lucrécia e Jairo, todos nós temos amigos e spirituais que estão à nossa volta, sempre nos auxiliando, ainda que não pos samos vê-los. A fé é a porta que abrimos em nossos corações, que nos permite reconhecer sua presença e sua ação, quando não os enxergamos com os olhos do corpo.

- Se é como você diz, por que não impediram que o mundo desabasse sobre mim? Onde estavam eles? Onde estava Deus, que não impediu que tant a injustiça fosse feita contra mim? Tem idéia do que passei naquele lugar para onde me man daram? Além da dor de perder tudo, de ser afastada do que mais amo, de m eu marido e minha filha, fui humilhada, chamada de assassina. E os maus tratos? Os tratament os que recebi não passaram de humilhação e agressão! Até fome eu passei... Onde eles estavam, Sara, que não me ajudaram? Emilie, com a voz embargada e lágrimas a descerem pela face, não p ôde prosseguir. Sara segurou sua mão e, igualmente emocionada, disse: - Sei que você sofreu muito e que não entende o motivo. O sofriment o faz parte de nosso mundo e acontece por todo lado. Embora sua dor seja im ensa, não esqueça que há órfãos, crianças abandonadas, doentes que sofrem em profunda solid ão; pessoas pobres, sem nenhum recurso, sem ter o que co-

216 RENASCER DA ESPERANÇA mer. A dor campeia em nosso planeta, em todos os lugares. E você me pergu nta onde está Deus? Ele está em toda parte, estendendo seu amor sobre tod os nós, em todos os momentos. Mesmo na dor, não estamos sós; legiões de espíritos enviado s por Ele nos protegem e ajudam. - Continuo a não compreender por que tanta dor. - Essa é uma das questões que os princípios espíritas vêm responder, Emilie. Esse livro que você está lendo esclarece muitas dúvidas, mostrando de maneira lógica a razão do sofrimento na Terra, o porquê de nossas mazelas e dores, além de nos fazer entender outras tantas questões que trazem profunda angús tia à alma humana - ao menos àqueles que sinceramente refletem sobre a realidade à su a volta. - O que é, afinal, essa doutrina de que você e Lucrécia tanto falam? N ão é essa nova e perigosa religião, cheia de mistérios e práticas bizarras, qu e dizem ser artimanha do demônio para nos enganar? - Dizem que é perigosa porque esclarece, porque ilumina a razão e no s estimula a pensar, a questionar, libertando-nos de crendices e mentiras qu e aprisionam. - No entanto, dizem que é do mal... - Como o mal pode vir e incentivar os homens a crer em Deus e a ac atar a lição de Jesus, fazendo aos outros aquilo que desejam para si mesmo s? Como pode estimular os homens a praticar os ensinos cristãos em sua essência, tomand o-se melhores? Como uma doutrina perniciosa pode trazer conforto, esperanç a, e levar os homens a terem mais fé em Deus? Emilie não desgrudava os olhos de Sara, encantada pelo que dizia; aind a assim, insistiu: --- Ouvi que muitos estão ganhando dinheiro com esses conhecimentos , fazendo previsões, adivinhações, lendo a sorte e coisas desse tipo. São m entirosos?

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- Muitos são; outros, entretanto, são de fato médiuns, têm contato com os espíritos, sem compreender ainda a sublimidade da nova revelação. Nã o perceberam a conseqüência moral desses conhecimentos para a alma humana e, ao invé s de usarem o dom sagrado que receberam de Deus com o objetivo de ajuda r ao próximo, usam-no para seu próprio proveito. Alguns até ajudam mas na maioria das vezes sã o comandados por espíritos menos esclarecidos a quem servem, mesmo sem s aber; iludidos, podem inclusive pensar que estão fazendo o bem. - Então é possível, realmente, o contato com espíritos? - E você ainda tem dúvida? Não recebeu a mensagem de sua avó? - Mas não entendo direito... E como posso confiar totalmente? - Você precisa estudar, Emilie. Está no rumo certo: continue lendo e abra seu coração. Busque a verdade sem outro propósito que não o de ilumina r sua alma. Muitos só se deixam levar pelos próprios interesses, e esse tem sido o mai or obstáculo à evolução da Humanidade. - Como assim? - Enquanto os homens buscarem apenas e tão-somente interesses partic ulares e não o bem geral, haverá dor, sofrimento e escuridão para a maioria deles. Jesus nos ensinou a colaborar sempre para o bem de todos, porém o sentido de Su a mensagem se perdeu ao longo dos séculos, sufocado por interpretações re ligiosas que se voltaram para a defesa dos nobres e poderosos, que impuseram seus interes ses pessoais sobre a Terra. Todavia, é chegado o momento de o homem se li bertar, é hora de os ensinos do Mestre retomarem a pureza com que foram transmitidos, sem outro interesse que não seja o de levar os homens até Deus, uni-los ao Cr iador. Emilie notou que Sara se modificara. Seus olhos brilhavam

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e seu jeito de falar era quase luminoso. A jovem tinha perguntas que desej ava fazer, mas não queria que aquele momento tão suave acabasse e não ouso u dizer nada; apenas seguiu atenta as palavras de Sara. Quando ela se calou, Emilie perm aneceu algum tempo em silêncio, e enfim disse: - Vou continuar lendo. Poderei encontrar naquele livro tudo isso de qu e você falou? --Tenho outros livros e também revistas em francês; creio que isso n ão será problema para você, não é mesmo? - Revistas? - Recebemos todos os meses, de Paris, publicações que nos trazem i nformações sobre o que acontece com a pesquisa e o desenvolvimento dos pos tulados espíritas por todo o mundo. São experiências, mensagens, e tudo o que vem sendo des coberto pelos pesquisadores. - Pesquisadores? - Exatamente. São muitos os que se dedicam, há anos, à pesquisa met ódica dos fatos que deram início a todos os conhecimentos que chegam agora até nós. - E como tudo começou? Sara se levantou, foi até o quarto e retomou com uma pilha de revistas . Entregou-as a Emilie e disse: - Está quase tudo aqui: como e por que começaram as Manifestações, estudos, reflexões, pesquisas... É melhor que conheça da fonte de onde jorr a o conhecimento. - Da fonte? - Sim, do homem que vem trabalhando arduamente para que esses con hecimentos iluminados cheguem até nós. Ele e outros que o apoiam. Emilie folheou as revistas e depois disse: vou ler, Sara, obrigada. Com as revistas nas mãos, Emilie foi até o quarto em que

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dormia. Colocou-as na cabeceira da cama, pegou O Livro dos Espíritos e foi para a praia, seu lugar preferido. Protegida do vento frio por algumas árvo res e envolvida em um grosso cobertor, Emilie abriu o livro. Queria encontrar naquelas pági nas o que Sara lhe dissera há pouco, e em que não podia parar de pensar. Fu stigada pela curiosidade, entregou-se por completo à leitura, sem temer que aqueles con hecimentos pudessem causar-lhe novas dificuldades. Ela queria descobrir, e não parou mais de ler. Os dias corriam e Emilie passava longas horas mergulhada no livro. Sempre que tinha alguma dúvida, procurava em Sara os esclarecimentos. Ao reencontrar a jovem para a próxima reunião, Lucrécia percebeu qu e alguma coisa se modificara nela. Observou-a por toda a noite e ao termina rem os estudos se sentiu satisfeita, pois compreendeu que Emilie, finalmente, estava no cam inho que tanto necessitava trilhar. Como não houvera tempo para conversarem antes, Emilie disse à amig a: - Estava aflita por notícias. Como foi? - Não foi. - Vocês não compareceram? - Comparecemos, como não? É que havia um tumulto na delegacia e adiaram por uma semana. Emilie suspirou: - Então, continuamos na expectativa. - Continuamos? Quer dizer que está preocupada? - É claro! Preocupo-me com você e Jairo. Jairo, que saíra junto, olhou-a surpreso. Lucrécia então falou: - E você? Como vai? Percebo que está diferente. - Tenho conversado muito com Sara e tenho lido também- - Continua lendo o livro que ela lhe emprestou? - Sim, além de umas revistas muito interessantes. ACho

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que são de Allan Kardec... Nome estranho, não? - Esse não é o nome verdadeiro dele. É um pseudônimo que utiliza para esse trabalho magnífico que aceitou realizar. - Tenho descoberto muitas coisas, Lucrécia. Pena que não temos tido oportunidade de conversar. - Também gostaria de estar participando das suas descobertas. E mar avilhoso quando identificamos aquilo que já estava dentro de nós, sem que o notássemos. - Mas persistem muitas dúvidas quanto ao porquê de tudo o que me a conteceu. Pelo menos já posso desconfiar de qual tenha sido a causa dos pr oblemas que me atormentaram por toda a vida; começo a entender, devagar, pouco a pouco. Por outro lado, à medida que algumas coisas se desvendam, novas questõe s aparecem. Lucrécia sorriu, satisfeita com o que ouvia, e abraçando-a ternamente d isse: - Tudo a seu tempo, querida. A verdade pode ofuscar. Por isso, deixe que sua mente e seu coração se preparem para aprender cada vez mais. Dia vi rá, acredite-me, em que não restarão dúvidas, apenas vontade de saber mais. Emilie retribuiu o abraço carinhoso da amiga e se despediram. Na volt a para casa, Jairo comentou: ---Estou perplexo com a transformação de Emilie. Devo confessar que não acreditava que isso fosse possível, mas tenho de admitir que ela está mudando. Está visivelmente mais animada, mais disposta. E seu repentino entusiasmo pelo movimento espírita é espantoso! --- Não para mim, Jairo. Eu sabia que esse era o caminho dela, e por isso a colocaram no nosso. Estou muito feliz, pois sei que cumprimos nossa p arte, fazendo aquilo que deveríamos fazer. O casal prosseguiu trocando impressões sobre a maneira como o destino os unira àquela jovem desconhecida.

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Capítulo Vinte e Quatro

Na mansão, Isabel descia as escadas. Da sala de jantar, onde Filomen a, Ricardo, Cíntia e Felipe tomavam o café da manhã, podia-se ouvir o farfal har ruidoso do vestido que ela usava. Dom Felipe apenas esperou a esposa ocupar seu lugar à mesa e pergunt ou: - Aonde vai tão cedo, Isabel? Quero falar com dom Antônio. Ouvi rumores de que ele pensa em viaja r para Madri bem no dia de nossa festa. É inaceitável! vou até a cidade te ntar convencê-lo. Não pode haver algo tão importante que o afaste de nossa tradicional fest a! Tenho de conversar com ele, quem sabe precisa de ajuda? Você deveria v ir também! Talvez esteja necessitando de sua cooperação, Felipe. - Hoje não posso, tenho outros assuntos a tratar. Vá e me traga notíci as. Diga ao bispo que se precisar de mim, seja por que motivo for, estarei tot almente disponível e pronto para atendê-lo. Isabel sorriu, satisfeita. Apressou-se a saborear o desjejum, ansiosa p or resolver a questão que a preocupava.

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Quando se levantava para sair, Filomena avisou: - Vou com você, mãe. - Ótimo. Isabel despediu-se dos outros e logo saiu com a filha. A movimentação na cidade era frenética. Viandantes cruzavam apress ados de um lado ao outro, ávidos por novidades e diversões. Barcelona abri gava inúmeros núcleos filosóficos que despontavam, assim como sociedades científicas que se dedicavam a pesquisar questões variadas. Disputas intelectuais entreti nham personalidades eminentes da sociedade espanhola que procuravam atualizar-se frente à ond a de conhecimentos e descobertas que se agigantava por todos os cantos. Filomena acelerava o passo junto da mãe, que cumprimentava uns e s e desviava de outros. Finalmente se aproximaram da igreja, onde teriam imp ortante encontro. Filomena perguntou: - Tem certeza de que ele ainda está aqui, mãe? - Claro que tenho; a reunião em sua casa terminou e ele veio para a ig reja. Informei-o de nossa visita e sei que nos aguarda. - Ele, sempre tão ocupado, às voltas com tantos problemas, terá tempo para nós? - Estou aqui a pedido de seu pai, e sei que dom Antônio nos receberá. Ao chegarem, viram que a porta estava entreaberta. Entraram devaga r e imediatamente avistaram o bispo, conversando com dois sacerdotes sob a cúpula iluminada pelos raios do sol, enriquecida por lindos afrescos que contavam a história de Cristo a caminho do monte da crucificação e de sua ressurreição glorios a. Assim que viu as senhoras, dom Antônio buscou terminar a conversa que entretinha e a s saudou. Isabel, curvando-se, beijou-lhe a mão com reverência. - Sua bênção, dom Antônio.

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Deus a abençoe. Filomena igualmente pediu a bênção do eclesiástico. Após os cumpr imentos e rápidas informações, dom Antônio perguntou: O que as traz aqui? O que tem tanta urgência? Não se trata de algo muito urgente, mas como Vossa Eminência se au senta com freqüência e deverá estar viajando breve, Felipe acreditou ser im prescindível conversarmos. Como o bispo avistasse algumas pessoas que acabavam de entrar na igr eja, levantou-se e convidou: - Acompanhem-me, senhoras. Vamos até lá dentro, onde certamente t eremos maior privacidade. Logo estavam instalados em sala ampla e agradável, com imensa biblio teca que ocupava uma parede inteira, do chão até o teto. - Pronto, podemos prosseguir. - Eminência, estamos bastante apreensivos com a festa deste ano. - Por quê? Algum problema? - Tememos que várias autoridades da Igreja não compareçam e isso s eria muito ruim. Sabemos que esse novo movimento que se alastra nos inquie ta a todos; é inadmissível que pessoas inteligentes e sensatas adiram a ele, porém é o q ue temos verificado e muito nos vem preocupando. Sei que há pouco tiveram importante reunião para discutir esse tema. - Sim, foi uma reunião extensa e cansativa; felizmente chegamos a b om termo. Quanto às pessoas que acaba de citar, só pode haver uma explicaçã o: suas mentes ficam dominadas pelas forças do mal. Filomena, até então calada, não se conteve e concordou: - É exatamente isso, Eminência. É exatamente isso! Isabel retomou a p alavra: - Sabemos que, em particular neste ano, a Igreja está por

225 Lucius SANDRA CARNEIRO demais preocupada com essa situação e muitos de seus membros ainda não confirmaram presença em nossa festa. Felipe acredita que devemos estar e streitamente unidos contra esse mal que nos ronda. Todos devem perceber que a Igreja está mai s forte do que nunca e que a elite da sociedade espanhola apoia, sem restr ições. Cremos que é fundamental a presença d todos, dom Antônio. O bispo meditou por segundos, depois assegurou: - Fique tranqüila. Estamos tomando as providências cabíveis e pode ter certeza de que a festa começará com grande celebração à nossa fé! Concordo com dom Felipe: quanto mais presti giada ela for, mais manteremos nossa coesão e nossos adversários haverão de temer essa força intacta. Conte com o apoio da Igreja, senhora. Diga a dom Felipe que conse rve a calma. Não obstante as diversas ações que muitos padres têm promovid o, tentando estancar em suas paróquias os focos de interesse por esses postulados, medidas mais severas serão adotadas. Isabel ouvia o bispo ansiosa e perguntou: - O que pretendem fazer? - É bom que dom Felipe saiba, para que se prepare, pois precisaremo s muito da intervenção dele. Diga-lhe que teremos de conversar antes de min ha viagem. Estão vindo de Paris livros que pregam esse movimento. É grande o número de exemplares, e não podemos admitir que cheguem às mãos dos leitores. Isabel e Filomena continuavam atentas, e a primeira garantiu: - Faremos tudo o que for necessário para ajudar a Igreja a conter tal her esia! - Sei que posso contar com o apoio de uma família tão respeitável! F elipe precisa intervir junto à alfândega para que esses livros sejam imediat amente encaminhados a nós, muito embora o governo já tenha oficialmente aprovado sua liberação - essas leis modernas e progressistas estão atrapalhando a Igreja!

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O bispo se levantou, andando de um lado para outro na sala visivelmen te contrariado, e continuou com irritação: -- Bons tempos aqueles em que tínhamos-- mais autoridade! Por isso valorizo tanto o apoio que recebemos de sua família! --- E sempre poderá contar conosco, Eminência! --- Estou certo disso. A alfândega autorizou a entrada dos livros ma s queremos que dom Felipe interfira para que tão logo eles cheguem os tenham os aqui, conosco. --- E o que farão então? --- Na manhã do dia da festa os queimaremos, todos de uma só vez, no local onde são executados os piores criminosos de Barcelona. Será uma fo gueira para os hereges! O povo compreenderá de imediato! Todos sabem muito bem o sig nificado de um auto-de-fé! Ficarão convencidos de uma vez por todas de q ue essa doutrina é veementemente condenada pela Santa Igreja! com essa ação, resolvemos v ários problemas: destruímos o principal veículo de divulgação desse movi mento e fazemos nossos fiéis compreenderem com clareza o que a Igreja pensa dele, além de mostrar -lhes o que espera aqueles que a ele se associarem. Estou certo de que, ao menos na Espanha, conseguiremos estancar a expansão desses postulados perniciosos! - Que idéia excelente! Isabel sorriu, satisfeita. Já se levantava quand o, dando a impressão de lembrar algo de repente, sentou-se outra vez e disse: --- Só mais um assunto, Eminência. O bispo, que começara a erguer-se, voltou a se acomodar na cadeira e aguardou. --- Estou interessada em enviar um membro de minha família para servi r à Igreja. --- bispo sorriu, satisfeito:

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- Será bem-vindo. Aliás, o último foi Fernando, não? Quem será desta vez? - e olhou para Filomena, que sem jeito disse: - Mamãe, não acha melhor conversarmos com... - Minha neta precisa muito da Igreja, Vossa Eminência sabe. A mãe e nlouqueceu e ainda está foragida, Deus sabe se ainda está viva... A pobrezi nha tem auxiliado Fernando no orfanato e acho que já demonstra vocação. Só preciso conversar com Ricardo; visto que ele não quis dedicar-se à Igreja, como era nosso d esejo, talvez resista um pouco. Mas gostaria de contar desde já com o seu apoio no sentido de convencer Felipe. Se ele concordar, tudo ficará mais fácil. Apesar de continuar a sorrir, o bispo mostrou-se um pouco entediado e disse: - Como sempre, senhora Isabel, novos e abnegados servidores são be m-vindos; entretanto, temos de assegurar-nos de que essa jovem não haverá de representar problemas. Lembrome bem da festa do ano passado e do transtomo que a mãe nos causou. Certifique-se de que a menina quer mesmo seguir esse caminh o, e terá meu apoio. Isabel ia argumentar, porém refletiu rapidamente e disse: - Claro, tem toda a razão; não queremos problemas e sim soluções. C reia que me empenharei para que tudo se resolva. - Diga a dom Felipe que necessito vê-lo o mais breve possível! - Informarei nossa conversa assim que retomar. Encerrando o encontro, o bispo se pôs em pé e se despediu das duas. Ao alcançarem a rua, Filomena, que se mantivera em silêncio, reclamou: - Mãe, como pôde levar algo tão sério direto ao bispo? É se papai não aceitar? E não esqueça que Ricardo é totalmente contra...

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--- Ora, Filomena, quanto mais ele for contra, mais terei de rne esm erar nas providências a tomar. Não podemos deixar Cíntia aos cuidados exclus ivos de Ricardo e muito menos solta, fazendo o que quiser. Precisamos conduzir-lhe os pass os, o destino, para que ela fique bem, assim como todos nós. Ricardo se ca sará novamente, sem dúvida, e é meu dever assegurar que desta vez tudo dê certo. --- Ele está envolvido com alguém? Não estou sabendo de nada! - Ainda não, mas é só questão de tempo. E eu tenho algumas estratégi as para que esse tempo seja o menor possível. - É verdade... Além do mais, ela é tão parecida com a mãe... Isabel parou perto da carruagem que as esperava e, olhando firme para a filha, disse: - Entende por que temos de tomar providências? Aquela mulher nunca mais porá os pés em nossa casa, e no entanto deixou a filha, que em tudo a lembra. Precisamos agir depressa, para garantir que não haverá mais problemas... Entraram ambas no carro e seguiram para a mansão, nas cercanias de Barcelona. Ao subirem a escadaria da entrada encontraram Fernando, que ac abara de deixar Cíntia em casa. Vendo-o apressado, Filomena segurou-o pelo braço: -- Calma, Fernando, aonde vai com tanta pressa? - Tenho muito trabalho, e também preciso escrever algumas cartas para reforçar o convite da festa. -- Não se preocupe mais com a festa. Acabamos de falar com dom Antô nio e a Igreja vai tomar medidas definitivas que nos tranqüilizarão a todos . Quanto à presença maciça do clero acho que tudo está equacionado; com relação aos demais, Papai já se encarregou pessoalmente. Portanto, prirninho, tudo ca minha bem.

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Isabel, então, perguntou: - E nossa jovem aprendiz, como se tem saído? - Tem muito jeito com crianças; surpreendo-me a cada dia. Ela é um d oce e sabe fazer a coisa certa. É muito atenciosa e as crianças não só a ado ram, como a obedecem... - Fico muito satisfeita que o esteja ajudando. - Está mesmo. Nunca pensei que ela fosse contribuir tanto. A princípi o queria apenas distraí-la, porque sempre a via triste pelos cantos. Não imag inava que pudesse me auxiliar como está fazendo. - E pena que Ricardo continue resistindo a essas visitas da menina... Fernando sorriu e disse, entusiasmado: - Felizmente acabei de resolver isso com ele. - É mesmo? E como? - perguntou a prima, interessada, depois de troca r olhares com a mãe, que deixava transparecer sua satisfação. - Tivemos uma longa conversa e convenci-o de que essas visitas sema nais de Cíntia só lhe fazem bem. Não acha, tia Isabel? Não tem notado? - Como não? Venho repetindo isso a Ricardo. Ela já acorda mais anima da, mais feliz. -É isso! Percebi que está mais entusiasmada. Conversamos muito e el e acabou por ceder. E mais: consegui que ela me acompanhe toda quarta-feira . E a cada quinzena, também na sexta. Não é ótimo? - Estou surpresa com seu poder de persuasão, Fernando. Quando quer , de verdade, consegue tudo o que pretende - comentou Filomena. Fernando, em tom de secreta cumplicidade, disse: - Acredito que é mal de família; não é, tia Isabel? Antes que ela pudes se responder, o rapaz beijou-a na

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despediu-se igualmente de Filomena e desceu as escadas, sumindo no caminh o que ligava a casa à paróquia em que servia. Fernando seguiu pensativo. Meditava nas últimas palavras que dissera à tia. Por que aquilo o incomodava? Sabia que ela est ava certa, que Emilie representava ameaça para aquela comunidade e poderia ter colocado em risco a credibilidade da família. De qualquer modo, sentia-se incomoda do. Se assim não fosse, por que de quando em quando aquele desconforto ap arecia e o enchia de pesar? Procurou dissipar tais pensamentos e focar a atenção nas atividade s que devia realizar ainda naquela noite.

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Capítulo Vinte e Cinco

Assim que terminou o jantar, Ricardo refugiou-se em seu quarto. Havi a acabado de vender a propriedade da qual fizera seu lar, junto com Emilie e Cíntia, localizada perto da mansão dos pais. Embora a princípio resistisse à idéia, Ricardo fora convencido pela mãe de que a casa trazia recordações inúteis e dolorosas; sem saber ao certo o que pensar, ele afinal cedera. Quando abria a porta do quarto, deteve-se e olhou para o aposento d e hóspedes, onde estavam as caixas com o que haviam trazido da casa vendida . Ricardo, sem conseguir desfazer-se de tudo, pedira que embalassem o que restara, par a selecionar com calma e avaliar o que desejaria conservar. Foi até lá, fechou a porta e devagar, quase receoso, abriu a primeira caixa. Retirou algumas roupas de Emilie, que ainda tinham seu perfume, e lev ou-as até o rosto, tocando-as com suavidade. Lágrimas brotaram de seus olhos. Ele r espirou fundo, procurando controlar-se, mas não pôde impedir que as lembr anças se precipitassem uma após outra em sua mente. Recordou o primeiro encontro, em Paris. Emi lie possuía uma energia e uma espontaneidade que o tinham envolvido de i me-

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diato. Além do mais, era muito bela. Lembrou-se de como ficara inebriado pelo perfume que usava, o mesmo que sentia agora em suas roupas. Aquele p rimeiro contato fora inesquecível para ele e, embora voltasse logo depois para a Espanha, não pudera mais tirá-la da cabeça. Seus olhos cor de mel o haviam acompanh ado e ele tivera de retomar para vê-la. Agora, pesadas lágrimas lhe desciam pela face. Recolocou as roupas n a caixa e então abriu outra. Tirou de dentro uma fotografia do casamento del es. Emilie estava linda e radiante, como se aquele fosse o dia mais feliz de sua vida. Olhou o próprio rosto na fotografia e relembrou a imensa felicidade que igua lmente sentia. Tal contentamento somente se repetira ao nascer Cíntia, alguns anos mais ta rde. Deixou a fotografia de lado e abriu outra caixa. Eram cartas dele pa ra Emilie, do período de namoro. Pôs-se a lê-las e a rememorar a desmedida p aixão que os unira. Em uma delas, contava à namorada que estava enfrentando algumas dificuldades para convencer a família a aceitar o casamento, assegurando q ue iria solucionar os problemas. Após ler várias páginas, já envelhecidas pelo tempo, Ricardo ergueu os olhos e suspirou fundo: como havia sido feliz! Vieram-lhe à mente os prim eiros anos do casamento, as viagens, o entusiasmo de Emilie ao conhecer os Estados Un idos; depois, o instante em que ela lhe contara que estava grávida, quando a erguera no ar, girando-a com alegria esfuziante! A gravidez, conquanto agitada, fora pa ra os dois uma fase de aventura e sonhos. No dia do nascimento de Cíntia, el e sentira como se tivesse conquistado tudo aquilo que queria ou de que precisava na v ida. A recordação dos bons momentos o fazia voltar ao passado, como se o s vivesse outra vez. Envolvido pela emoção, abriu todas as caixas, uma após outra, e em cada uma encontra-

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va pedaços de sua história, de sua vida, de sua felicidade e de seus projeto s, que agora estavam perdidos por completo. Por fim, olhou aquelas caixas abertas e remexidas> como seus sonho s e planos, e chorou amargurado pela pefda de tudo em que depositara suas esperanças. Lembrava-se de Emilie, feliz ao seu lado, mas também das crises que se tomavam cada ve z mais freqüentes, depois do nascimento da filha. No começo ele escondera da família, porém as crises se repetiam tanto que não pudera mais ocultar o que se pass ava. Veio-lhe à memória a reação da mãe quando pela primeira vez vira Emilie com aquele comportamento estranho, gargalhando pelos corredores da mansão e depois desfalecendo entregue a torpor e sonolência incontroláveis. Ricardo fechou os olhos e pôde sentir novamente o chão sumir-lhe d os pés, como em seguida àquela crise. As lembranças estavam tão vivas que era como se ainda ouvisse a voz da mãe: - Há quanto tempo isso acontece, Ricardo? - Não sei... - Vamos, conte-nos! Há quanto tempo? - Desde que Cíntia nasceu, só umas poucas vezes, agora é que está oc orrendo com maior freqüência... - Temos de fazer alguma coisa! Não podemos deixar que isso continue!

- Mãe, Emilie é minha esposa e eu a amo! Telhamos paciência, por f avor! vou encontrar uma forma de ajudá-la; deve haver um meio de ela melh orar! - Sua esposa é doente, Ricardo! Deveria interná-la já em un hospício e.. . - Nem pense nisso, mãe! Nunca mais repita isso, entendeu bem? Amo m inha esposa e vou auxiliá-la! Custe o que custar! - Você envergonha nossa família, Ricardo! Sabe que nenhum de nós jamais teve qualquer problema mental ou desse 235 Lucius SANDRA CARNEIRO

tipo; contamos com toda a consideração e o respeito da Igreja e temos sid o ao longo das gerações exemplo para toda a comunidade! E agora vem você e coloca no seio de nossa família uma mulher mentalmente desequilibrada! - Emilie não é doente! Ela está cansada, só isso. Talvez tenha sido a maternidade... É uma situação nova e pode ter influenciado, não sei. O que sei é que ela é esposa amorosa e mãe dedicada... Depois dessa conversa, Ricardo contratara doutor Francisco, conven cendo Emilie a tratar-se com um médico de confiança da família, que tinha experiência com pessoas que apresentavam desequilíbrios mentais. Francisco era adepto das c orrentes científicas que vicejavam na Europa inteira e traziam nova luz sob re esse gênero de doenças. Embora dona Isabel insistisse para que ela fosse imediatamente recolhida a um convento, Ricardo relutava; queria que antes a esposa rece besse cuidados médicos. Apesar do tratamento, os problemas haviam persistido. Na festa anua l, Emilie tivera uma crise grave e mais demorada, agredindo Cíntia diante d e convidados ilustres, como alguns membros do clero. Assustara a todos, inclusive a ele p róprio. Parecia-lhe estar diante de outra pessoa, e ficara apavorado. Abalad o e receoso, e admitindo que mesmo assistida ela não melhorava, Ricardo começara a con siderar a hipótese de enviála a um mosteiro, para tratamento em reclusão. Pouco tempo depois sobreviera a tragédia: ela tentara envenená-lo e também à filha, em sua própria casa. Fora insuportável! A evidência do perig o que a esposa representava o impedira de fazer qualquer coisa. Na manhã seguinte, após int erná-la, Isabel a acusara legalmente por tentativa de homicídio. Ricardo res istira, mas fortemente influenciado pela mãe acabara cedendo mais uma vez. Logo a not ícia se espalhara e

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no dia seguinte à internação os principais jornais da Espanha divulgavam o f ato. Abalado pelas recordações, Ricardo recolocou tudo no lugar fechou as c aixas e saiu do quarto, trancando a porta atrás de si. Foi até o quarto da fil ha e entrou, aproximando-se da cama em silêncio; observou-a a dormir com serenid ade, ajeitou as cobertas e beijou-a na testa. Cíntia era o único consolo qu e lhe restara. Ele estava confuso com o que acontecera, sem saber que rumo dar à própria v ida. Só Cíntia lhe trazia alegria e esperança. Voltou para seu quarto sentindo-se amargurado e traído pela vida; p or que se apaixonara por uma mulher que lhe trouxera tantos problemas? A mã e o acusava de envolver a família em escândalo e já não admitia que se pronunciasse o n ome de Emilie naquela casa. Por vezes ele admitia o ultraje a que expusera a família e se arrependia de a ter despresado. Muito tarde, e ainda invadido pela emoção causada por aquelas lembr anças, Ricardo adormeceu.

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Capítulo Vinte e Seis

Dias se sucediam. Emilie continuava estudando e gradualmente assimil ava as lições da nova doutrina; comparecia às reuniões do grupo espírita e, ao participar delas, presenciava fenômenos que aos poucos lhe esclareciam na prática aq uilo que estudava. À medida que se aprofundava nos conhecimentos, achava conforto, força e esperança para ir ao encontro do futuro; sentia energias antes desconhec idas lhe inundarem a alma. Novo alento crescia em seu coração e suplantava seus medos e inseguranças. Era a fé que se desenvolvia pouco a pouco. A aversão que aqu ela doutrina lhe causava foi substituída pelo interesse em conhecê-la, e e m algumas semanas Emilie tinha completado a leitura do livro que Sara lhe emprestara. Naquela tarde, conversavam animadamente quando um amigo chegou, o fegante. Sara, solícita, convidou-o a entrar e lhe deu água. Mais calmo, o rapaz começou a falar: - Eles foram presos, estão lá na província e não vão sair até, até... Sab e-se lá quando! Emilie empalideceu, adivinhando que se tratava de Lucrécia ejairo. Sar a pediu:

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- Calma, fale devagar, explique melhor. - Jairo e Lucrécia estão na prisão. Foram depor e não sei ao certo o que houve. Recebi um recado de Jairo pedindo que orássemos por eles e inf ormando que vão ficar presos. O que vamos fazer? Emilie olhou para Sara, aflita; depois se levantou e resoluta disse: - Vou até lá! Tenho de me apresentar, tenho de fazer alguma coisa para que eles sejam soltos! Sara segurou-a pelo braço e ponderou: - Calma, Emilie. Sei que deseja ajudar e nós também, mas temos de s er inteligentes: precisamos primeiro compreender melhor a situação, saber d o que estão sendo acusados. Do contrário, de que adiantará você se expor? Vamos inves tigar melhor antes de tomarmos qualquer decisão. - E como conseguiremos mais informações? - Temos alguns amigos em Bilbao; vamos buscar ajuda. Além do mais , temos Miguel. Apelaremos para ele. - Miguel é aquele amigo de Jairo e Lucrécia que vive em Barcelona? - Ele mesmo. - Já que vive em Barcelona, não é mais difícil? - Ele vive em Barcelona, mas tem também negócios em Bilbao, e per iodicamente passa algum tempo na província; tem uma casa lá. Vamos procur á-lo. Emilie permaneceu pensativa algum tempo; depois se desesperou por nã o saber o que fazer, e em prantos dizia: - Está vendo? Está tudo desabando outra vez! Bastou que eles tives sem contato comigo para ficarem em perigo! Não deviam ter me acolhido, ago ra estão sofrendo por minha causa! Sara segurou as mãos de Emilie e disse, com firmeza: - Emilie, seu pranto, conquanto denote carinho e cuidado para com ele s, não vai ajudá-los. Precisamos pedir proteção a

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Deus e aos nossos orientadores espirituais. É natural que nossas alrnas so fram pelos amigos a quem tanto queremos bem; contudo, se desejamos auxiliá -los, precisamos ser fortes e agir com inteligência, coragem e bom senso. E o primeiro passo é você não se acusar; isso será inútil. Talvez devesse me entregar logo, Sara. Quem sabe isso resolveria? - Lucrécia fez tudo para você se fortalecer e encontrar o caminho ade quado para sua vida; ela se arriscou para que você pudesse ser livre outra ve z. Como pode pensar em se entregar? Se fizer isso agora, tudo que ela enfrentou terá sido em vão. Irão prendê-la novamente, e tudo voltará a ser como antes. As suas crises, que têm diminuído, poderão retomar e você, ainda dando os primeiros passos nesse novo entendimento, não terá forças para lutar... Não, não acredito qu e seja a solução. Temos de ajudá-los, mas não por esse meio. E depois, mesmo que você se e ntregue, quem garante que isso fará com que os libertem? Vamos primeiro descobrir o que se passa, entrar em contato com Miguel. E assim, com maior segurança em noss as atitudes, tenho certeza de que encontraremos a melhor saída. - Por que isso foi acontecer? Eles nunca fazem mal a ninguém, estão sempre ajudando. Por que Deus permite que isso aconteça a pessoas tão boas ? Sara liimpou dos olhos as lágrimas que se formavam, dizendo: - Por ora, não sabemos; sem dúvida existe uma razão, pois nada acont ece sem um objetivo útil, Emilie. Por isso precisamos confiar na Providência divina, que sempre está por trás de todas as situações. - Não compreendo, Sara, não consigo aceitar! Emilie levantou-se, soltando bruscamente suas mãos das de Sara, e correu para a praia, como se lá pudesse encontrar conforto. Na co rrida desenfreada, tentava acalmar sua alma,

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aplacar sua angústia. As lembranças de Lucrécia lhe vinham à mente: seu sor riso, suas palavras de auxílio, suas mãos a cuidar dela, alimentá-la e acari ciar seu rosto; aquelas recordações torturavam seu coração. Depois de correr por mais de vinte minutos, sentou-se exausta na a reia e, abraçando os joelhos, chorou ouvindo murmúrio do mar. Chorava baix inho quando experimentou de súbito, uma sensação suave a envolvê-la e sentiu que alguém a observava . Ergueu o rosto devagar e então viu a figura familiar e querida que se ap roximava, banhada em luz. Emilie se assustou, mas antes que se levantasse, como era sua inten ção, a doce senhora lhe disse com brandura: - Não tenha medo, querida. Estou aqui apenas para ajudar. - Vovó Heloíse, é você mesma? Será que não é... - O demônio? - Sim... - Como pode desconfiar tanto de seus próprios sentimentos? Não me r econhece? - É que ainda não me convenci completamente de que isso é possível...

- Emilie, há dentro de você um grande presente de Deus, que é sua se nsibilidade, esse dom capaz de colocá-la em contato com os seres invisíveis. - Mas por que, vovó? Não quero isso que você chama de dom. Só me trouxe dor e sofrimento até hoje: meus pais sempre me acharam estranha e nunca me aceitaram; meus amigos se afastaram de mim; perdi Ricardo e quase agredi minha filhi nha... Isso que trago comigo não é bom, não me faz bem! - Minha querida, é que a luz brilha ao lado das trevas que ainda estão também dentro de você. - Que trevas? Do que está falando? - Emilie, os dois mundos, visível e invisível, material e.

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espiiritual, se entrelaçam o tempo todo; tocam-se a todo momento. Os dois p lanos da existência estão interligados, influenciando constantemente um ao outro. E tudo é parte do grande Universo criado e regido por Deus, nosso Pai. Chegouo o momento de se desvendar aos olhos dos homens que vivem na terra esse m undo invisível, com os seres que o povoam. Embora não enxerguem esse outro plano da vida, os homens lhe sentem os efeitos; e, por ignorarem o que os provoca, atribuem -lhes causas sobrenaturais e inexplicáveis. Por isso muitas vezes se desesperam. É chegado o tempo d a compreensão maior da vida; é hora de entender os sofrimentos e perceber que os homens podem vencê-los, transformando seu futuro. Venha comigo, Emilie, dê-me sua mão. A jovem olhava para a entidade espiritual, que mantinha os braços est endidos, e hesitava em aceitar o convite. Bondosamente, ela insistiu: - Dê-me sua mão, a hora da compreensão chegou também para você. Venha comigo. - Como assim, aonde vamos? - Vamos empreender pequena viagem por seu passado, para que você s aiba a origem do que se passa em seu presente. É hora de trabalho e renova ção; é hora de romper com as amarras do passado e voltar seus olhos para o futuro que a e spera; é hora de assumir seu compromisso e seguir em frente. - Que compromisso? Não entendo! -- Todos os que vivem neste planeta têm uma missão, um compromisso a cumprir; ninguém vem para a terra sem um objetivo útil e necessário para si e para outros, que muitas vezes são muitos. - Não compreendo. - Venha comigo, dê-me sua mão. Ainda vacilante, Emilie não tinha coragem de tocar aquela

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figura que estendia os braços em sua direção. Heloíse mou-se ainda mais e d isse: - Estou aqui para ajudá-la, como sempre estive ao seu lado. A decis ão é sua: se não quiser me acompanhar, não vou obrigar. O momento chegou, v ocê está preparada, mas precisa decidir. Emilie continuava olhando para Heloíse, sem saber se a atendia. Ela se calou e aguardou de olhos fechados, em silenciosa prece. Passados alguns minutos, disse: - Pois bem, se não quer me acompanhar, nada mais posso fazer. E aos poucos começou a se afastar da neta, que então gritou: - Não, por favor, não vá embora! Estou cansada de sofrer. Minha vida está destruída e agora estou destruindo a de outras pessoas queridas que es tão à minha volta; não agüento mais... Será que você poderá mesmo me ajudar? - Você pode se ajudar, Emilie, e eu estarei ao seu lado dando forças e a orientação de que necessita. Venha, dê-me sua mão: Dessa vez, ela estendeu a mão na direção daquela mão luminosa e, qu ando a tocou, sentiu enorme alegria inundar-lhe a alma. Auxiliado por Heloí se, o corpo espiritual de Emilie, já parcialmente desprendido, soltou-se por completo e ela pôde ver seu corpo físico deitado na areia, em sono profundo. Vendo-se assim, tão nitidamente, assustou-se; a avó a acalmou: - Está tudo bem; seu corpo está dormindo, tranqüilo e seguro, não se p reocupe. Emilie olhou com atenção e percebeu que um círculo de luz envolvia s eu corpo. - Como pode ser isso? - Lembra-se do que tem estudado sobre o corpo material e o espiritual?

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Emilie esforçou-se um pouco e então se lembrou do que havia lido ac erca da natureza dos corpos material e espiritual, , m como sobre o despren dimento durante o sono. Tudo lhe veio à mente com clareza. Então é verdade? É tudo verdade ou estou sonhando? não será mais u m de meus delírios? --- Você não delira, Emilie, e sim entra em contato freqüente com o mundo espiritual, do mesmo jeito que acontece agora. - Só que sempre fiz e disse coisas ruins, descontroladas ou sem sentid o. Por que nunca tive antes esta sensação tranqüila e serena? - É que agora você tem estado em contato com energias mais equilibr adas, como as de Lucrécia e de Sara. Essa convivência e os estudos que tem feito estão trazendo luz à sua mente, elevando seus pensamentos e sentimentos. Está e m contato com mais amor, mais harmonia, e foi isso que nos possibilitou a aproximação, permitindo que eu me fizesse perceptível a você. - Quer dizer que antes andava em más companhias? - Mais ou menos. - E por quê? Sempre tentei agir corretamente, nunca prejudiquei ningu ém! - É verdade que vem procurando ter uma vida reta. Ainda assim, cons erva hábitos de pensar e sentir que a mantêm ligada ao passado, Emilie, e a essas companhias. - Que passado? - Outras vidas, encarnações em que sua conduta não foi muito equilib rada, em que inimizades foram geradas. - Como não vejo essas pessoas? - Ainda bem, querida! No entanto, sente sua presença, mesmo sem o s aber. Idéias e sentimentos de destruição, imagens menos felizes, não a assa ltam muitas vezes em um único dia? 245 LUCIUS SANDRA CARNEIRO

- Sim, inúmeras vezes. Tento afastar os pensamentos ruins, que insist em em retomar. - Foram eles que a levaram até o penhasco, na intençã de tirar-lhe a vid a. - Eles queriam que eu morresse? - Queriam e quase conseguiram, Emilie. - Então somos marionetes, fantoches nas mãos de criaturas que nem se quer vemos? Isso não é justo! - Não somos marionetes, de maneira alguma. Se estivermos ligados a essas companhias, alguma razão existirá para essa ligação. Não obstante, no ssa vontade invariavelmente prevalece; ninguém nos obriga a nada. Diante da aflição nos olhos da jovem, Heloíse disse: - Não fique angustiada, tenha paciência. A compreensão vem aos pouco s, dia a dia. Pronto, aqui estamos. Emilie constatou que estavam diante da mansão em que vivia a família de Ricardo. Olhou em seguida para a avó, atônita. Ela disse: - Entremos. Muito do seu passado está dentro desta casa; venha comigo . - Não entendo... - Venha comigo e compreenderá. Sem dizer mais nada, Emilie acompanhou Heloíse portas adentro. 246 RENASCER DA ESPERANÇA

Capítulo Vinte e sete

Apreensiva, Emilie seguiu Heloise pelo interior da mansão. Aos olhos da moç a, a residência parecia mais bonita, com cores muito vibrantes; entretanto, ela percebia certas deformações nas paredes, como se fossem maleáveis. Emocionou-se ao passar pelo hall de entrada e, principalmente, ao deparar com o cabideiro na parede e as peças de roupa do marido e da filha nele penduradas. A avó advertiu:

- Não se deixe envolver pela emoção, querida. Acalme seu coração. Venha , segure minha mão e confie em mim.

Emilie, sem compreender bem o aviso, respirou fundo, procurando dissipar o nó que se formara em seu peito, e de mão dada a Heloise continuou a cam inhar. Ainda olhava para o cabideiro quando percebeu que ele se transformava lentamente e o qu e via agora já era um outro, de onde pendiam diversos hábitos de freiras. A moça fixou o olhar, supondo estar confundida no que via, mas a avó disse:

- O que vai ver aqui é seu passado, Emilie, apresentando-se aos seus olhos. O pretérito está escondido em nosso presente; todos trazemos dele a energia e as vibrações, que se ocultam

247 sob nossa própria indumentária carnal. Não se assuste pois. Os moradores de sta mansão guardam, debaixo da aparência atual, os traços e as energias de antigas experiências vividas Emilie e Heloise prosseguiram. Subiram a escada devagar e à medi da que o faziam os degraus se tomavam outros, não mais de mármore branco e sim de madeira. Ao final da escada entraram em um quarto e Emilie surpreendeu-se ao ver urna mulher ajoelhada em atitude de oração. Aproximou-se mais e percebeu que aquela mulher vestindo hábito religioso era ela mesma. Fitou Heloise e perguntou: - Como...sou eu e não sou eu?!

- Sim, é você. Observe.

A mulher de olhar determinado ergueu-se e em passos firmes dirigiu-se at é ampla sala. Parecia preocupada com alguma coisa; Emilie acompanhava em silêncio, tentando compreender. Ouviu quando a mulher disse:

- Façam entrar a acusada, quero falar-lhe antes que vá a julgamento.

- Sim, senhora.

Em alguns segundos surgia na sala uma jovem senhora, assustada, abraçada a três crianças. Ao se ver diante da madre, pediu em prantos:

- Por favor, liberte meus filhos. Eles são crianças, apenas criancinhas; libert e-os, por misericórdia!

- Cala-te! Sabes que toda heresia deve ser punida, não sabes?

- Mas o que têm eles com isso?

- São teus filhos, teus herdeiros. Se te preocupas tanto com eles, deverias t er pensado melhor antes de entregar-te a práticas demoníacas.

- Madre, nada fiz. Não cometi crime algum!

- Como não? Fui informada de que foste vista falando

248 RENASCER DA ESPERANÇA

com o vento e, quando interrogada, alegaste conversar com teu pai, morto há anos.

É que... eu o via, senhora, era ele. Tem me ajudado nos momentos mais difí ceis. Acatando os conselhos que me dá, tenho podido alimentar meus filhinh os... Que mal há nisso? Nada fiz... Nem sequer contei a quem quer que fosse... Só meus fi lhos o sabem...

-- Crianças são como a voz do vento, levam os rumores a todo lado. com que então insistes em dizer que tens conversado com teu pai?

A mulher hesitou, intimidada pela figura austera à sua frente; outras freiras , sentadas de ambos os lados, assistiam à inquirição que se desenrolava. Por fim, disse:

- Bem, achei que fosse ele...

- Sabes que não se pode falar com os mortos, não sabes? Eles não nos apare cem! Deus não o permite! Isso que viste é o demônio na forma de teu pai. T ens consciência disso?

Com os olhos assustados, a mulher hesitava em concordar:

- Mas como pode ser? Como pode ter me ajudado tanto?

- És cortesã?

- Não, de modo algum. Meu marido é inconstante, vem e vai embora quando bem entende. Só tenho a presença amorosa de meu pai a me orientar.

- Insistes, então?

- Não... Quer dizer, acho que posso ter me enganado, não? O que seria, mad re? Por que tive essas visões? Não sei, estou confusa. A mulher que comand ava o interrogatório virou-se para a imagem de Cristo crucificado, colocada no centro da sala, e permaneceu algum tempo a observá-la. Depois se virou e disse:

- És herege! Negas Cristo e te afinas com o diabo.

- Não, madre, não é verdade! Jesus é minha luz! Amo-o Profundamente!

Lucius l SANDRA CARNEIRO 249 - Porém não titubeías em entregar-te a práticas ímpias!

- Jamais me entreguei a tais práticas; apenas vi... Não! Confundi-me, por c erto, madre. Tenho estado exausta. A luta tem sido árdua demais! Meus filho s precisam de mim; e ainda cuido de minha mãe, que está enferma. Cansada demais, cer ta mente, devo estar tendo alucinações.

A madre sorriu, dizendo:

- Conheço esse olhar; já vi muitos que vêm até aqui exatamente como tu, e alegam inocência por medo das conseqüências; depois que estão liber tos, retomam às antigas práticas.

Sentou-se à mesa e, pegando a pena, escreveu sua recomendação. Ao termin ar, comunicou em voz alta:

- Responderás ao Santo Ofício.

- Não, por misericórdia, não! Nada fiz, pelo amor de Deus, não!

- Enquanto aguardas, ficarás na masmorra; minha recomendação será que lá p ermaneças junto de teus filhos, todos eles, até que revejas verdadeirament e tuas crenças.

A mulher ajoelhou-se em prantos, diante da madre, suplicando por misericór dia:

- Não, por favor, não, eu nada fiz! Não me entregue ao Santo Ofício, não me mande para a masmorra, não, por favor! Tenha piedade de mim e de meus filhinhos! Eles não fizeram nada. De mais a mais - disse, de cabeça baixa, olhos na terra - , trago um bebê em meu ventre. Por misericórdia, tenha piedade de nós!

A madre, de olhar altivo, comentou:

- É pena que estejas a trazer mais um herdeiro no ventre, porque este també m deverá seguir o destino dos outros. No entanto, acredito que o bispo aten derá minhas recomendações e tua vida será poupada.

250 RENASCER DA ESPERANÇA

A mulher continuava chorando, desesperada. A madre se sentou novamente, r asgou a carta que havia preparado e a reeveu; ao encerrar, levantou-se e afirmou:

- Pois bem, tens minha misericórdia; vais ao Santo Oficio e à masmorra, pa ra que sirvas de exemplo a tantos quantos se entregam a tais crenças. Contu do, peço ao bispo que te liberte em poucos meses. Assim, poderás servir à causa do Cri sto como exemplo e em breve serás libertada com teus filhos.

- Por misericórdia, meus filhos não precisam ir comigo. Por piedade, não faç a isso!

A madre, ignorando-a, retirou-se e entregou a carta a um guarda que, do lad o de fora da sala, esperava orientação. Enquanto caminhava pelo corredor, d e volta a seu quarto, ouvia os gritos da mulher, carregada pelos guardas, e o choro das cr ianças agarradas à mãe.

Emilie assistia à cena em profunda angústia; de quando em quando lançava à avó o olhar suplicante, desesperado; não queria presenciar aquilo. Helois e pedia que se acalmasse.

Quando a madre se afastou, as duas a seguiram. A jovem então perguntou, com os olhos molhados de lágrimas:

- Sou eu mesma, vovó? Que crueldade! Que intolerância! Como fui capaz d e fazer uma coisa dessas, meu Deus?

- Acreditava estar fazendo o melhor, defendendo a Igreja. Vem, ela agora or a, pedindo a Deus que a ajude. Tem receios na alma, embora acredite fazer a coisa certa.

Emilie acompanhou a avó até o quarto da madre, que de joelhos, aos pés da imagem do Cristo crucificado, rezava insistente. - Ela tenta calar a consciência sob muitas palavras, quase como se hipnotizas se a si própria.

Emilie observou a mulher ajoelhada diante dela, que por

Lucius l SANDRA CARNEIRO 251 fim se levantou e saiu do quarto. Fez menção de segui-la e Heloise segurou- a pelo braço, dizendo:

- Já chega, viu o suficiente; prolongar a experiência será prejudicial a você.

- E o que vai acontecer à família que acabou de sai daqui?

- A mulher por ela acusada foi ao Santo Ofício e depois à masmorra. Dever ia, conforme orientação da madre, sair em três meses, mas a recomendação foi esquecida. A Inquisição ganhava cada vez mais força e se alastrava pela Espanha. A m adre dava tantas recomendações ao Santo Ofício que sequer se lembrava de todas elas. A família permaneceu na prisão. Ao dar à luz, a mulher desencarnou em condições las timáveis. Alguns dias depois o bebê também morreu. Os outros três pequeno s ficaram na prisão até quase adultos. A revolta lhes tomou o coração e acabaram condenados à morte pelo Santo Ofício.

- Chega, vovó, por favor, dói demais!

- Quando despertar não se lembrará dos detalhes; só o forte sentimento do d ever irá prevalecer. Os membros dessa família, depois de despojados do corp o físico, uniram-se a você como ferozes inimigos. Você, como madre, morreu pelas mãos da própri a Inquisição, acusada por intrigas de opositores gratuitos, instigados por essas criaturas desencarnadas.

Emilie sentou-se e, com as mãos cobrindo o rosto, chorava cheia de amargur a. Disse então:

- Como não me lembro de nada? Mesmo agora, apenas me reconheci naquela mulher; senti que era eu, conquanto em nada ela se pareça comigo.

- Percebeu pela energia dela, Emilie, que permanece registrada em sua mais profunda consciência.

- De nada mais me recordo.

- Nem pode, Emilie. O esquecimento é sua benção, e

252 RENASCER DA ESPERANÇA

E a possibilidade do recomeço. Você vagou por muito tempo, mantida prisio neira das entidades que destruiu, até que o arrendimento verdadeiro encon trou lugar em seu coração. Você havia reencarnado como freira para ajudar, Emilie, para socor rer seus irmãos em sofrimento; tinha conhecimento e preparo para isso. Não foi forte o suficiente e deixou-se envolver, cedendo à pressão da religião de seu tempo , sem questionar o fundo dos preceitos que eram totalmente contrários aos d eixados por Jesus. Depois que caiu em si e compreendeu sua real situação, foi resgatad a e sofreu amargamente o fracasso de sua encarnação. E mais: as vozes daqu eles a quem deveria auxiliar, e prejudicou, ecoavam em sua alma. Então, decidida a ressarcir aq ueles a quem muito devia, preparou-se. Estudou, progrediu e desejou reencar nar para reparar seus erros, desta vez, não só amparando os necessitados, como também prop agando a verdade libertadora. Para tanto, foi abençoada com o dom de dive rsas mediunidades, a fim de poder colaborar em tudo com o movimento espírita que ora nasce, revelação que inunda a Terra levando aos corações, de maneira esclarecida , os ensinamentos de Jesus. É a revivescência do Evangelho em sua pureza original. Comprometeu-se com sua divulgação, Emilie. Depois de breve pausa, Heloise prosseguiu:

- A mediunidade que traz consigo abriu possibilidade para que essa família que você tanto machucou a reencontrasse e continuasse a persegui-la. Comp reende a razão de seus sofrimentos, Emilie? Compreende que eles foram muito feridos por v ocê, e por isso desejam revidar?

-- Meu Deus! Tudo faz sentido. Tudo se encaixa com tanta clareza que não sei nem o que dizer. Claro que compreendo: eles foram destruídos por minh a causa; eu faria exatamente o que agora fazem.

Heloise aproximou-se da neta e lhe afagou com carinho

Lucius / SANDRA CARNEIRO 253

os cabelos cor de mel. Emilie entregou-se ao abraço, buscando consolação e conforto; depois perguntou:

- E eu vivia aqui mesmo, na Espanha?

- Sim, viveu aqui.

- Por que viemos ao casarão, por que teve de me traz aqui, Heloise?

- Quase todos viveram com você em sua última encarnação; de uma ou de out ra maneira estão ligados e seus destinos se entrelaçam.

- Quase todos?

- Sim, quase todos. Emilie ia perguntar mais, quando Heloise a enlaçou ternamente e disse:

- Agora vamos voltar. Você tem uma missão maravilhosa a cumprir e a oport unidade de resgatar os débitos sérios que contraiu. Não a desperdice, Emi lie. O momento chegou e deve abraçar sua tarefa com resignação e determinação. A paz do de ver cumprido e do resgate dos débitos a auxiliará a alçar vôo para o cresci mento espiritual. Deus é infinitamente bom e misericordioso. Embora desrespeitemos constant emente sua Lei de Amor, Ele permite a cada um reconstruir aquilo que dest ruiu. Aproveite a chance e siga adiante com firmeza, sem titubear! Não olhe para trás nem um só momento.

Emilie, que permanecia abraçada à avó, balançou a cabeça afirmativamente e depois, olhando nos olhos de Heloise, disse:

- Você vai me ajudar?

- Estarei sempre ao seu lado.

De braços dados, uma junto da outra, desceram as escadas e saíram da mans ão. Emilie fez menção de se virar, pensando em Cíntia, mas Heloise disse:

- Vocês se encontrarão outra vez, não se preocupe. Agora não olhe mais para trás, Emilie, apenas para a frente.

254 RENASCER DA ESPERANÇA

Dessa vez, sentindo-se mais forte, Emilie acompanhou a avó no rápido regr esso à praia, onde seu corpo descansava em segurança. Heloise a auxiliou a acomodar-se com suavidade ao corpo físico, que devagar despertou. Ainda sonolenta, Emílie divisou a figura terna da avó e, mesmo sem entender bem o que se passava, sorriu para a imagem que sumia lentamente.

Lucius / SANDRA CARNEIRO 255

Capítulo Vinte e oito

Enquanto a avó desaparecia, Emilie pôde perceber outras entidades, em cond ições deploráveis, que à meia distância lhe dirigiam impropérios e ameaças . Pela primeira vez, em plena consciência, via aquelas tristes figuras. Entretanto, tomada de um novo sentimento, ela pediu a Deus que a amparasse e também àquelas cr iaturas.

Sentada, fitava longamente o mar e o entardecer, que se fazia majestoso e belo. Elevou o pensamento a Deus, sentindo uma leveza interior antes desco nhecida, e agradeceu ao Criador pela vida. Deleitava-se com a beleza do mar, quando de súbito s e lembrou de Lucrécia. Levantou-se então, decidida, com forças renovadas e intensa vontade de prosseguir, de lutar, de viver.

Voltou para a casa dos amigos que a abrigavam e os encontrou reunidos na s ala. Sara abraçou-a, carinhosa:

- Estava preocupada com você, Emilie. Onde esteve?

- Algo aconteceu comigo, esta tarde: depois de caminhar até esgotar minha s energias, adormeci. Acho que sonhei com minha avó, Heloise; ela me levo u a algum lugar de que não me recordo, tenho apenas fragmentos de imagens em minha men -

257 te. Sinto que depois desse inexplicável encontro novas emoções me envol vem, como se emergissem de algum lugar dentro de mim mesma. Sei agora q ue estou onde deveria estar e tenho de prosseguir neste caminho em que a vida me colocou. Será que consegue me compreender, Sara?

- Posso compreendê-la, muito mais do que imagina. Agora sente-se aqui ao meu lado. Precisamos dizer-lhe algo. Emilie percebeu que toda a família de Sara a olhava de forma diferente - se u esposo, sua filha Suzana e seus filhos Henrique e André. Acatou o pedido da amiga e sentou-se no sofá. Notou, então, que Sara tinha os olhos vermelhos, da mes ma forma que o esposo.

- O que aconteceu? Algum problema? Sara segurou as mãos de Emilie e lhe disse:

- Há algo que precisa saber.

- O que foi? Por que estão assim tristes?

O silêncio se instalou na sala, e Sara hesitava ante a revelação que devia faze r. Foi Emilie que, ansiosa, insistiu:

- Por favor, estão me deixando angustiada. O que houve? É possível me c ontarem logo? Algum problema com Lucrécia?

Sara, olhando-a firme nos olhos, apertou mais suas mãos e disse:

- Emilie, você precisa ser forte mais uma vez. Precisa sustentar-se nessa ex periência maravilhosa que teve hoje e seguir seu caminho, haja o que houver.

Emilie não desviava de Sara os olhos imediatamente cheios de grossas lágr imas, que se precipitavam pela face e pingavam nas mãos unidas das duas.

- O que houve com Lucrécia? - perguntou poí Emilie, pressentindo a respost a. - Está doente?

- Lucrécia passou muito mal na prisão; ninguém pode

258 RENASCER. DA ESPERANÇA

Explicar o que houve. Mas nós sabemos que nada acontece sem que a Provid ência Divina permita.

_ E o que houve? Onde ela está? Onde está Jairo? __ Diante do mal-estar de Lucrécia e sem saber o que fazer eles soltaram t emporariamente a ambos.

E estão no hospital?

_ Não, Lucrécia está em casa.

Soltando-se das mãos carinhosas da amiga, Emilie se levantou dizendo:

Pois então vamos imediatamente vê-los! Precisamos ajudá-los!

- Emilie, sente-se, por favor.

- Não! Precisamos ir já!

- Há amigos nossos lá agora, e logo nos juntaremos a eles. Mas antes precis a saber que Lucrécia está realmente muito mal.

- E por que não está no hospital?

- Emilie, não há esperanças de recuperação; o médico aconselhou Jairo a dei xá-la em casa.

- Meu Deus! Não é possível! Na última vez em que a vi estava tão bem!

As lágrimas não cessavam de descer pela face de Emilie, que começava a revo ltar-se pela situação daquela que tanto a ajudara. JJe repente viu a figura doce de Lucrécia, envolvida por suave luz, entrar pela sala. Espantada, observou os outros à sua volta, buscando verificar se também a viam. Sara correspondeu com a cab eça e disse:

_ Ela veio ver-nos, em espírito.

Lucrécia, olhando melancolicamente para Emilie, falou:

_ Não se atemorize nem desanime. Nunca se esqueça de que está na terra po r uma razão; portanto, prossiga realizando e construindo, confiando em De us e apoiando aqueles que de você necessitarem. Ainda que lâminas afiadas da maldade e da inc ompreensão

Lucius | SANDRA CARNEIRO 259 a firam, lembre-se de que somos sempre testados em que já erramos. Portant o, haja o que houver, não desista. Deu a estará amparando através de muito s mensageiros. Aproveite oportunidade que Ele lhe concedeu e prossiga confiante!

Emilie chorava, profundamente comovida. Lucrécia aconselhou:

- Não chore, sinto intensa paz em meu coração. Deixo a terra consciente d e que cumpri meus deveres para com o Criador. Embora a dor me visitasse m uitas vezes, Deus, bom e misericordioso, abriu portas e mais portas de consolo e amparo, ajuda ndo-me a cruzar a jornada com êxito. Desejo agora que Ele a proteja e forta leça.

Lucrécia se dirigiu a Sara:

- Obrigada, querida amiga, por ter sido as mãos de Deus sobre a terra a me socorrer. Deus a abençoe.

Emilie tentou dizer alguma coisa, porém a imagem desapareceu em meio ao g rupo. Ela olhou desesperada para Sara, em busca de uma explicação diferen te da que já sabia. A amiga a abraçou apertado e disse:

- Lucrécia se foi, Emilie. Agora, Jairo precisa de nós, mais do que nunca; va mos nos juntar a ele depressa.

Sem dizer nada, Emilie sentou-se e aguardou os preparativos da família. De pois saiu com eles em direção à pequena casa de Jairo. Caminharam em silên cio pela trilha escura que os levava da vila até a casinha à beira-mar. Ao se aproximare m, perceberam intensa movimentação: alguns amigos chegavam e outros saía m. Quanto mais perto, mais descompassado batia o coração de Emilie. Os pensamentos se atropela vam e a emoção parecia querer engoli-la. Contudo, as palavras de Lucréci a ainda ressoavam em seus ouvidos e lhe davam forças. Quando entraram, um amigo confirmou o que já sabiam: Lucrécia não resisti ra; o coração, aparentemente fraco, não

260 RENASCER DA ESPERANÇA mais funcionava normalmente, e há cerca de duas horas havia parado por co mpleto. Ela se fora.

Emile caminhou devagar pela sala e entrou no pequeno quarto. Jairo acaric iava o rosto inerte da esposa, sem chorar. Em suas mãos, o exemplar do No vo Testamento que tantas vezes vira Lucrécia lendo. A jovem parou à porta do quarto, sem poder mover-se ou falar. Jairo, ao vê-la, caminhou em sua direção, abraça ndo-a em lágrimas comovidas. Ela permaneceu parada, sem saber o que fazer, dominada pela dor e pela emoção. Jairo então estendeu-lhe o livro:

- Ela pediu que lhe entregasse o Novo Testamento; queria que ficasse com você.

Pegando o pequeno livro, Emilie sentiu-se tomada pelo desespero. Jairo diss e:

- Ela a amou muito, Emilie, e desejou ardentemente que você encontrasse o caminho do bem e do amor.

Abraçada a ele, Emilie chorou sentida e longamente. A noite arrastou-se lent a; a manhã trouxe os primeiros raios do sol. Ao final da tarde, depois de re alizado o funeral, Jairo se despedia de Sara e do marido, que lhe pedia:

- Venha conosco, Jairo, só por alguns dias.

- Não quero me afastar daqui. Vou ficar. Este é meu lugar.

- Apenas por alguns dias, até que se recupere do choque deste momento dolo roso.

Jairo resistia. Então Emilie, pegando-o pelo braço, disse: - Não se preocupem, vou tomar conta dele.

- Você tem de voltar com Sara, precisa continuar escondida.

- Não, Jairo. vou ficar aqui e cuidar de você; não posso deixá-lo sozinho. É o mínimo que posso fazer por Lucrécia. Não importa o que disserem, vou fi car. Mas estão à sua procura, é perigoso... Vamos enfrentar com coragem o que nos está des ti-

Lucius I SANDRA CARNEIRO 261 nado, não é mesmo? Não foi isso que Lucrécia nos ensinou? Deus haverá de nos amparar. Vou ficar.

Diante da firmeza com que Emilie se dispôs a ficar, os amigos sentiram que não havia nada a fazer ou falar; conformada, Sara despediu-se dela com um longo abraço. De braço dado a Jairo, Emilie retomou silenciosa. Gostaria de dizer tantas coisas... As palavras lhe morriam na garganta e se manteve calada até regre ssarem à casinha.

Quando entraram, Jairo disse:

- Agradeço sua atenção, mas você não tem de ficar comigo; não tem nenhum a obrigação, Emilie.

- E quem disse que é por obrigação que desejo ficar? Sinto vontade de estar aqui, com você, perto de tudo que me trouxe de volta a esperança de viver, Jairo. Deixe-me ficar, por favor. Sei que tinha muitas resistências à minha presença aqui...

- Apenas receava por nossa segurança...

- Com toda a razão. Veja o que foi acontecer por minha causa, por minha cu lpa! Se não tivesse aparecido, não teria trazido meus problemas para vocês , não teriam sido presos e quem sabe Lucrécia ainda estaria aqui... - Lucrécia tinha o coração enfraquecido. Não foi a primeira vez que se sent iu mal por causa disso; as dificuldades e experiências pelas quais passou a oprimiram muitas vezes. Ultimamente ela estava feliz como há muito não a via. Não, E milie, não creio que tenha sido a prisão o problema; além do mais, ficamos lá pouco tempo e logo ela começou a se sentir mal.

- Talvez estivesse preocupada, com medo, e por isso teve a crise.

- Não sei, talvez não.

- Eles a maltrataram?

- Não desta vez; em Marrocos, sim, ela havia sofrido muito, enquanto esteve presa.

262 RENASCER DA ESPERANÇA

Em silêncio, Emilie pôs-se a organizar a casa, recolocando utensílios em ordem, exatamente como vira Lucrécia fazer. Jairo permaneceu longo tempo observando a jovem mover-se suavemente pela cozinha e pensou em como ela se modificara. Muit o pouco sobrara da jovem arredia e rebelde que Lucrécia recolhera à beira do penhasco; Emilie havia se transformado.

Na manhã seguinte, Jairo encontrou o café pronto e Emilie sentada perto d a janela lendo o pequeno volume do Novo Testamento que ganhara. Depois d e dar-lhe bom dia, ela disse, sentando-se ao seu lado na mesa:

-Jairo, não gostaria de aprender a ler? Eu poderia ensiná-lo!

Jairo a olhou surpreso, mas sem ânimo respondeu:

- Acha que depois de velho poderia aprender? Não creio.

- E por que não? Gosta dos livros espíritas, não gosta? Eles lhe serão excele nte companhia, Jairo. Sem responder, Jairo esforçou-se por se alimentar. Apesar da dor intensa que sentia pela separação da esposa, a presença de Emilie lhe trazia conforto a o coração.

Passados alguns dias, Emilie, temendo que pudessem descobri-la, foi à casa de Sara e pediu:

- Preciso de sua ajuda: quero mudar completamente minha aparência, para q ue possa permanecer em companhia de Jairo, sem despertar suspeitas. O que poderia fazer? Pensei em cortar os cabelos, mas creio que só isso não será suficiente.

Sara tocou nos cabelos de Emilie e pensou demoradamente. Depois disse:

- Acredito que, se quer esconder-se de fato, precisa de uma mudança radical . Está mesmo disposta a passar por isso?

-- Sim, o que tem em mente?

Um tanto hesitante, Sara prosseguiu:

Podemos cortar seu cabelo e pintá-lo de preto. Depois,

Lucius I SANDRA CARNEIRO 263 podemos comprar roupas e calçados masculinos, para que se vista como h omem. Acha muito complicado? - Não, acho uma ótima idéia! Embora saiba que isso não vai impedir que me encontrem, certamente vai dificultar, para todos posso fazer-me passar por um parente que veio fazer companhia a Jairo após a morte da esposa. Acho que pode funcion ar. - Então vamos imediatamente à ação! Venha. Sente-se aqui. Vou cortar seu cabelo exatamente como corto o de meu filho! Emilie, sem vacilar, sentou-se e se entregou às mãos habilidosas da amiga . Sara modelou-lhe os cabelos num corte masculino. Rapidamente estava pro nto. Emilie observava as mechas de cabelos que caíam e sentia subir-lhe um nó à garganta; porém resoluta, respirou fundo e manteve-se calma. Finalmente Sara disse:

- Pronto. Acho que ficou bom.

Foi até o quarto e retomou com um espelho redondo nas mãos; depois, coloc ando-o diante do rosto de Emilie, perguntou: - O que acha?

Emilie mirou-se no espelho e surpreendeu-se: - Ficou ótimo! Estou mesmo diferente. Depois de se observar durante algum tempo, disse:

- Bem, vamos prosseguir. Tem a tinta para mudarmos a cabelo?

- Não, isso terá de esperar. André irá à província amanhã pela manhã; pedir ei a ele que traga a tinta e também algumas roupas para você. Se quiser vir amanhã à tarde, concluiremos o que começamos hoje.

Na tarde seguinte, no horário combinado, Emilie estava novamente sentada, e ntregue às mãos de Sara, que lhe tingiu os cabelos de negro. Ao final, o ri tual do dia anterior se re-

RENASCER DA ESPERANÇA 264

petiu: Sara, com o espelho nas mãos, mostrava à jovem sua nova aparência.

Ao fitar-se, Emilie surpreendeu-se ainda mais: estava realmente mudada, co m uma nova aparência, e disse:

- Acho que gosto desta cor, Sara. Pareço mais forte.

Sara sorriu, dizendo:

- Não é o cabelo que a faz mais forte. Você está crescendo, Emilie, e reenco ntrando toda a força que já estava dentro de você. - Assim espero, Sara, pois sei que vou precisar muito disso. Quero minha fi lha de volta e vou lutar por ela. Não vou mais desistir. Os conhecimentos q ue venho adquirindo estão me esclarecendo muito e o Evangelho vem me dando força interior par a acreditar e perseverar. Não sei ainda por onde devo começar, e por ora a guardarei a orientação que, sei, chegará no momento oportuno.

- Precisa se manter firme, aberta às orientações e com o coração cheio de esperança. É isso mesmo! Viu como você está mais forte? Nada à sua volta m udou; ou melhor, ocorreram mais problemas e dificuldades, só que agora você está diferente. Com certeza irá encontrar o que procura, e com a benção de Deus alcançará seus objetivos.

Emilie concordou sorrindo e disse:

- E as roupas, conseguiram?

- Aqui estão: duas calças e duas camisas; foi o que pudemos trazer. Assim qu e for possível...

- Não é necessário mais do que isso. Já posso me virar bem, o importante é que continue oculta aos olhos daqueles que me procuram. Se me encontrarem agora, não sei o que poderei fazer... Não tenho um plano claro e ficaria tudo mais difícil . - É bom estar preparada, inclusive com mais informações sobre o que de fa to aconteceu naquela noite.

Lucius / SANDRA CARNEIRO 265

Emilie refletiu e ficou longo tempo em silêncio. Seu entristeceu-se, mas ela lutou intensamente para não desanimar e, levantando-se de um salto, disse:

- Você tem razão, há muito a ser feito. Obrigada mais uma vez, Sara, cada vez mais compreendo o grande carinho e a confiança que Lucrécia nutria por você! Agora, tenho de ir. - Pensei que fosse jantar conosco! - Não posso, Jairo está sozinho e fiquei de preparar-lh o jantar.

Sara, percebendo o carinho que Emilie manifestava pelo amigo, não insistiu mais. Emilie se despediu e, vestida com roupas masculinas, dirigiu-se à p equena casa de Jairo, à beira do mar.

Quando ele a viu entrar, espantou-se, sem reconhecê-la:

- Posso ajudá-lo em alguma coisa, rapaz?

- Não está me reconhecendo, Jairo?

- Emilie? Não reconheci você, mas a sua voz é inconfundível! O que você fe z, minha filha, o que fez com seu cabelo? E que roupas são essas?

- Ora, Jairo, preciso continuar aqui sem ser reconhecida. Achei melhor to mar algumas providências que contribuam, e me parece que funcionou. Não e stou mesmo irreconhecível?

- Olhando com atenção, e sobretudo depois de ouvir sua voz, fica mais fácil reconhecê-la.

- Mas a princípio não reconheceu.

- Não, a princípio não.

- Ótimo. Já é alguma coisa. Bem, vamos ao jantar. Jairo permaneceu longo tempo observando Emilie, que se movimentava pela cozinha, preparando o jantar. Lembrava-se dela, nos primeiros dias em sua casa, sem esperanças e totamente abatida. Não era nem a sombra da jovem que tinha diante de si. Que mudança em tão pouco tempo! Fazia mais de cinco meses que chegara e as mudanças eram notórias!

266 RENASCER DA ESPERANÇA

Acompanhada de Jairo, ela continuou participando do pequeno grupo de estud os. Ao terminar O Livro dos Espíritos, leu outro, assim como devorava as revistas espíritas que Sara lhe emprestará. Deixava-se envolver pela luz que os estudos lhe traziam, compreendendo cada vez melhor o que se passara em sua vida, até aquele momento.

Freqüentando as reuniões com sincero interesse em aprender, sentia-se m ais e mais equilibrada; à medida que se deu conta de que suas crises eram i nfluências espirituais de inimigos do pretérito, foi capaz de assimilar o fato com rap idez e, estudando mais intensamente, buscava na oração o perdão daqueles qu e a perseguiam; lia diariamente com especial carinho o Novo Testamento que a amiga lhe de ixara. Não se separava dele nunca e, a exemplo dela, o lia todas as manhãs . Emilie sentia que os ensinamentos de Jesus nunca haviam sido tão claros para ela. Nunca as lições haviam penetrado em sua alma com tal profundidade e nunca antes tivera tanta necessidade de colocá-las em prática; o Espiritismo lhe descortinava respost as para as questões que a haviam torturado por muitos anos. Isso lhe trazia paz e serenidade, e a ajudava também a compreender a doutrina de Jesus. E agora ela enxerga va que, sem praticá-la, pouco ou quase nada adiantaria tão-somente conhecê -la. Além disso, sentia lentamente brotar dentro dela novas energias que lhe traziam esperan ça para continuar procurando reconstruir sua vida.

Em muitas ocasiões sentia a presença ameaçadora dos antigos adversários es pirituais, mas aprendeu a levá-los em oração até Deus e passou a ter maior controle sobre si mesma. As crises que a dominavam passaram a acontecer somente nas reun iões, quando então ela servia de intermediária aos espíritos esclarecidos que traziam importantes conhecimentos ao grupo, contribuindo para o crescimento de todos. Desse modo se

Lucius / SANDRA CARNEIRO 267 dava utilidade àquilo que ela tanto temera e de que fugira anos seguidos.

Enquanto aprendia, ensinava Jairo a ler. Ele se desenvia rapidamente e em pouco tempo já estava lendo sozinho as primeiras páginas de O Livro dos Es píritos. Emilie ficava satisfeita quando, caminhando pela cozinha no preparo de alguma refe ição, ouvia Jairo a ler na varanda, ainda que com dificuldades, as primeira s palavras. Sabia quanto isso era importante para o amigo e se sentia feliz em ajudar.

268

RENASCER DA ESPERANÇA

Capítulo Vinte e nove

Sem dificuldade, Emilie incorporou o personagem que criara, fazendo-se pas sar por um sobrinho de Jairo, e assim o auxiliava quanto podia. Naquele di a, logo após o almoço, Jairo iria até a província negociar com compradores as condições do pescado para a temporada. Quando se sentava para almoçar, ela disse:

- Jairo, gostaria de acompanhá-lo à cidade.

- Acho muito perigoso, Emilie. Ainda há cartazes estampando seu rosto por toda parte.

- Olhe bem para mim, Jairo. Observe.

- Estou olhando.

- E não vê?

- O quê?

- Jairo, até nossos amigos demoraram a me reconhecer quando cheguei assim , de cara nova, pela primeira vez em nosso grupo de estudos. Se para eles , que convivem comigo, não foi muito simples, imagine para aqueles que não me conhecem ! Acho que eu e Sara fizemos um ótimo trabalho! Não irão me reconhecer.

269

- Emilie, realmente você está bastante diferente, mas acreditar que está irr econhecível é um exagero. - Você pensa assim porque está todo o tempo comigo e me conhece bem; já aqueles que não sabem quem sou não terão facilidade em me identificar. A lém do mais, imagine se vão pensar que uma mulher fugitiva apareça andando pela cidade? Acho q ue a imaginação das pessoas não vai tão longe. - Não sei, não. Creio que Lucrécia não aprovaria, e ela sabia das coisas.

Ao ouvir o nome da amiga, Emilie calou-se, pensativa. Depois disse:

- Sinto saudade. Gostaria de poder fazer mais por ela, retribuir de alguma f orma tanto bem que ela me fez!

Jairo permaneceu em silêncio, olhos rasos d'água, lembrando-se da esposa c om extremo carinho. Emilie insistiu:

- Vou com você!

- Por que se arriscar tanto, Emilie? Já não há risco suficiente em você fica r aqui, onde já foi procurada? O que deseja fazer na cidade? É perigoso. Dei xe que o tempo passe e que a lembrança esmaeça. Espere ao menos que não haja anún cios com sua foto pela província.

- Não creio que cessarão.

- Por quê?

- Você não conhece aquela família, Jairo. Eles nunca desistem. São tenazes em suas decisões.

Os dois terminaram o almoço calados e, no final, Jairo disse:

- Se nunca desistem é mais um motivo para que você não se arrisque. Por q ue querem tanto você de volta?

E depois de prolongado silêncio de Emilie, ele perguntou diretamente:

- Afinal, o que aconteceu naquela noite, Emilie?

- Não sei ao certo, Jairo. Ainda tenho dúvidas sobre meus

270 RENASCER DA ESPERANÇA atos. Sei que conscientemente jamais fiz qualquer mal a Ricardo ou Cíntia , a quem amo profundamente. Mas quando ficava sob influência espiritual d aqueles que me perseguem, perdia o controle sobre mim mesma e não sabia o que fazia. Em geral, eram palavras agressivas, muitas vezes acompanhadas de gestos sens uais e lascivos. Obviamente isso assustava muito meu marido. Apesar de me conhecer bem, n ão sabia qual seria minha atitude nessas circunstâncias. Uma vez, uma ún ica vez e sem dúvida a pior delas, Ricardo me disse que tentei agredir nossa filha. Foi quando fiqu ei realmente assustada e por isso penso, Jairo, que eu até possa ter feito aqu ilo de que me acusam. Todavia, o que me deixa mais confusa é que naquele dia eu não tive crise alguma. Havia passado a tarde toda com Cíntia e estávamos particularmente tranqüilas. Ricardo chegou à noite e eu supervisionei a preparação do janta r, como costumava fazer. Estávamos sentados à mesa, e Angela, nossa princip al serviçal, se preparava para nos servir o jantar. Tudo transcorrera normalmente naqu ele dia. Nada de estranho ou incomum. Foi quando eles chegaram.

Emilie se calou, visivelmente perturbada com as lembranças que lhe vinham à mente. Era a primeira vez, desde que tudo acontecera, que falava do assu nto em detalhes. Jairo arriscou perguntar:

- Quem?

- Isabel, Fernando e o doutor Francisco.

- Aquele que esteve aqui cuidando de você?

- Ele mesmo, Jairo.

- Mas que coincidência absurda!

Jairo ficou intrigado e atento, ouvindo Emilie, que continuou:

- Invadiram minha casa e me acusaram de estar tentando matar os dois. Seg uiu-se tremendo mal-estar: pediram para analisar a comida e ninguém enten dia nada. Cíntia, assustada, Permaneceu muda. Ricardo levantou-se, indignado com a in- Lucius / SANDRA CARNEIRO 271 vasão em nossa casa e querendo proteger-me, enquanto Isabel me acusava ag ressivamente; dizia que sempre soubera que eu era uma pessoa desequilibra da, doente, e que havia chegado ao extremo de tentar matar a própria família. Foi tudo muito rápido e confuso. Eu não conseguia falar; procurava me defender, aturdida, sem saber o que dizer, quando Isabel entrou na cozinha e voltou com um prato nas mãos ; nele, uma pequena porção do assado que seria servido. Colocou-o na mesa e pediu que doutor Francisco verificasse. Ele cheirou e remexeu a comida, depois tirou do bols o um pequeno saco e dele jogou um pó sobre a carne. A cor então se alterou e ele disse que esse pó identificava determinado tipo de veneno, e portanto tinha cer teza de que a comida estava envenenada. Todos me acusaram e eu não sabia o que fazer. Comecei a chorar, descontrolada, e depois me tomei agressiva, na busca desesperad a de defesa. Aí não tiveram complacência: imediatamente me prenderam. Ric ardo ficou paralisado olhando do prato (com a cor do alimento alterada pelo tal pó) para mim, t otalmente alucinada. Levaram-me à força. Acho que me doparam, porque de s úbito perdi a consciência e quando dei por mim estava presa em um quarto com grade na janela e na porta. Logo descobri que estava em um hospício. Davam-me pouca comida e os maus-tratos eram constantes. Às vezes não me deixavam dormir, torturando-me com perguntas a noite toda. Eu ficava cada vez mais fraca e confusa; esforçava-me para lembrar detalhes do ocorrido, torturando-me com a idéia de que talvez, sob os efeitos de uma crise, tivesse atentado contra a vida dos que mais amo. Só que não havia t ido nenhuma crise e ficava cada vez mais confusa. Pouco depois, doutor Francisco veio me vê e disse que eu estava muito doente, que precisava de tratamento e qu e me tomara uma pessoa perigosa. Aquele médico me causava náuseas, eu o achava desprezív el; mesmo assim, pedi

272 RENASCER DA ESPERANÇA que me ajudasse, implorei, supliquei de todas as maneiras que você possa i maginar - até o ponto de concordar em ceder naquilo que por tanto tempo el e tentara, buscando me seduzir. Mas ele estava frio e insensível e me abandonou naquele lugar r epugnante. Desesperada, concentrei as forças na idéia de fuga. Na primeira chance, fugi direto para o penhasco. Tencionava acabar com minha vida, dando fim ao so frimento.

Emilie calou-se, emocionada pelas lembranças vivas de tão grande pesadelo. Jairo acariciou seus cabelos com carinho. Ela sorriu, retribuindo a compr eensão do amigo, e depois disse:

- Como estava enganada, Jairo... Hoje, conhecendo através desta nova reve lação o que acontece após a morte, compreendo que se tivesse posto fim à minha vida muito maior seria meu sofrimento. Graças a Deus, e somente a Ele, Lucrécia me en controu a tempo. Se não fosse por ela, e pela voz de minha filha que ouvi nitidamente naquele dia, teria terminado com tudo.

- Que bom que essa desgraça não aconteceu! Você está aqui, viva, e com cert eza irá superar todas as dificuldades.

- Sim, hoje sei que existe esperança e que tudo tem um sentido, uma explica ção.

Destemida levantou-se, dizendo:

- E chega de lembranças tristes. Quero olhar para a frente, para o futuro. Encontrei alento nesses novos conhecimentos; quero aprender mais e comparti lhar com outros essas boas novas.

Jairo, satisfeito, arrematou:

E vai conseguir, minha filha, vai conseguir. Lucrécia sabia que devia ajud á-la, o que custei a compreender. Agora, constatando as transformações em sua vida, começo a enxergar o que ela já vira. Agradeço a Deus todos os dias por vocês terem me acolhido, Jairo.

Sem responder, ele tocou suavemente as mãos de Emilie,

Lucius / SANDRA CARNEIRO 273 depois se levantou e começou a se preparar para partir Ti de estar na cidade pelo meio da tarde.

Era noite alta quando retomou. Emilie, que tentava ler para se distrair da pr eocupação, pôs-se de pé assim que o viu entrar.

- Jairo, você não costuma demorar tanto!

- Não pretendia me atrasar, mas as negociações entravaram e não consegui mos chegar a bom termo, tanto em prec como em conservação do transporte. Eles querem que eu passe a me responsabilizar pelo transporte daqui até Bilbao, o que será mui to difícil.

Jairo se sentou mostrando profundo cansaço. Emilie o observava atentamente, ao lhe servir o jantar.

- Não sei o que fazer. Acabei deixando os compradores sem definição, pois não posso aceitar o que estão querendo e não consigo pensar em nada para propor-lhes. Enquanto não resolvermos o impasse, ficarei sem vender, a não ser o pouco que se consome aqui mesmo, na vila. Só que é tão insignificante que não poderem os comprar nem mesmo o básico; não sei o que fazer.

Ele permanecia cabisbaixo. Emilie ficou calada vendo-o comer, depois disse :

- Jairo, você não tem um amigo influente em Barcelona, que muitas vezes o ajudou?

- Sim, Miguel.

- Então, vamos até Barcelona! - Procurar Miguel é uma boa idéia; ele é experiente e sempre consegue as melhores negociações. Parece-me a única alternativa neste momento.

- Pois está decidido: amanhã mesmo, partimos para Barcelona!

- Mas você não pode vir comigo, Emilie, já conversando isso hoje. É muito perigoso!

274 RENASCER DA ESPERANÇA a se sentou mais perto do amigo e, tocando-lhe suaveas mãos, disse:

Aprecio seu cuidado, porém, não posso ficar aqui para resto da vida, Jairo. Há muita coisa que preciso fazer; tenho recebido muitas orientações, você bem sabe, e além do mais • sinto dentro de mim que há muito a ser feito. Devo aceitar o compromisso que me foi revelado pelos conhecimentos espíritas e colocar-me à disposiç ão para fazer o que for necessário, o que estiver ao meu alcance, enfim.

Jairo acompanhava o raciocínio da jovem com extrema atenção.

- Entretanto, para que possa contribuir de alguma forma, preciso parar de m e esconder, resolver minha vida, reconquistar minha liberdade, esclarecer t udo o que aconteceu, mesmo que para isso tenha de voltar à prisão e responder à justiça. Se realm ente causei ou tentei causar algum mal, preciso esclarecer tudo e aí então r ecomeçar minha vida, assumindo minhas responsabilidades.

- Tem certeza, Emilie?

- Absoluta. Quero acompanhá-lo a Barcelona e retomar a minha história. Sei que só enfrentando meu destino poderei superar o passado. Confio que tere i toda a ajuda de que necessito, não tenho mais dúvida quanto a isso.

- E pretende procurar seu marido? -- Ainda não. Quero voltar à cidade, ver como me sinto e retomar aos pouco s. Apesar de decidida, sei que ainda tenho muitas fragilidades, muitas rec ordações, algumas mágoas; tudo isso ainda está dentro de mim.

- Se estiver certa de que quer correr todos os riscos e er essa tentativa, c oncordo que venha comigo. Partiremos bem cedo.

Imediatamente após terminar a organização da casa, se recolheu. Estava ans iosa e custou a adormecer.

Lucius / SANDRA CARNEIRO 275

Embora desejasse rever a cidade onde vivera por anos e quem sabe até reenc ontrar a filha, um temor indefinido rondava-lhe a mente e ela chegou a pen sar se não devia aguardar mais algum tempo. Mesmo assim, ignorou seus receios e persistiu na decisão . Algo lhe dizia que deveria acompanhar Jairo e ela estava aprendendo a ou vir e respeitar seu coração, sua intuição. Finalmente adormeceu.

Antes do nascer do sol, Emilie e Jairo estavam a caminho. Ao chegarem a Bi lbao, Jairo providenciou os bilhetes para a viagem até Barcelona. Emilie, vestida com roupas masculinas acabara de subir na carruagem e mal se acomodara quando ouvi u uma voz conhecida:

- Pretende viajar, Jairo?

Jairo se virou e deparou com Pimentel; a figura do homem lhe causava descon forto. Refletiu por alguns instantes, depois disse:

-Vou a Barcelona, para resolver problemas de negócios, mas retomo brevem ente.

- Sei... Entretanto, sabe que não pode se ausentar da cidade.

- Não pretendo me ausentar. Estive aqui disponível o tempo todo; nunca me neguei a comparecer quando solicitado. Estou à inteira disposição da justi ça, delegado. A propósito, a jovem ainda está desaparecida?

- Infelizmente. A família aumentou a recompensa por informações que levem ao seu paradeiro, e até agora nenhum fato novo nos ajudou. Por acaso ela não esteve em sua casa, ao saber da morte de sua esposa?

- Como haveria de saber da morte de minha esposa. Ela foi embora logo qu e melhorou um pouco e nunca mais...

Sem esperar que Jairo terminasse, Pimentel se dirigiu à porta da carruagem e olhou para dentro. Havia duas senhoras sentadas de um lado e um jovem s ozinho do outro. Pimentel cumprimentou

276 RENASCER DA ESPERANÇA as duas senhoras, que conhecia, e percebendo que não vira o rapaz antes l he perguntou: Quem é você, rapaz? Nunca o vi por aqui. Emile com o coraçã o descompassado, permaneceu calada. Não imaginara o que fazer naquela situação. Num impuls o, fez sinal negativo com a cabeça, mostrando a boca, como a indicador qu enão podia falar. Jairo apressou-se em responder:

_ Esse é Mário, um sobrinho que veio me fazer companhia assim que Lucréci a... o senhor sabe.

_ Acho que ouvi algum comentário a respeito. E ele não fala?

_ Não. É mudo de nascença; ouve, mas não pode falar.

Veio ajudar-me com a pesca. O senhor não ignora que minha esposa, além d e ser dona de casa, ajudava-me muito com o meu trabalho.

Pimentel, desconfiado, observava Emilie. Ia fazer mais perguntas, quando s eu auxiliar chegou ofegante:

- Delegado, precisa me acompanhar. Uma briga de bar... Depressa!

Contrafeito, Pimentel argumentou com o auxiliar: - Vá à frente, depois eu vou.

- - E gente importante, senhor, é melhor vir logo. Ainda contrariado, Piment el cedeu à pressão, não sem antes perguntar a Jairo: - Quando voltam? - Em alguns dias.

_ Assim que retomar, quero falar com você. Daremos prosseguimento às inve stigações! Precisamos de alguma pista, algo que nos leve até a maluca! E depressa!

_ Estou à disposição! _ Veremos. Aguardo seu regresso. Se demorar, vou em seu encalço.

Lucius / SANDRA CARNEIRO 277

Sem dizer mais nada, Pimentel seguiu o auxiliar e desapareceu. Jairo acomo dou a mala e também subiu. A carruagem partiu para a longa viagem. Depois de se ajeitar, Jairo olhou para Emilie, que, pálida, conservava a cabeça baixa. Sabia que não poderia proferir uma só palavra ao longo de toda a viagem e espiava de canto de olho as duas senhoras, que também os examinavam. Em uma das pausas da viagem, longe delas, Jairo disse a Emilie:

- Não imaginava que ele estivesse por ali tão cedo! Que homem! Dir-se-ia qu e está em toda parte! Parece até que adivinha!

- Adivinha ou é sugestionado, Jairo.

- É verdade! Nunca podemos nos esquecer...

- Nunca!

A viagem prosseguiu tranqüila e, com exceção do desconforto causado pelo silêncio, foi uma agradável jornada. A paisagem era exuberante. Emilie contemplava os penhascos que se estendiam de Bilbao até San Sebastian. Em seguida, tomaram outra e strada que os conduziria a Barcelona. A emoção envolvia Emilie e lhe aper tava o peito. Desejava muito ver a filha e pensava no que poderia fazer para ter essa oportunidad e. Ansiosa, lembrava-se de Lucrécia e procurava serenar os pensamentos, bu scando forças para continuar.

Horas mais tarde, quando a carruagem se aproximava de Barcelona, Emilie q uase não conseguia se conter. Sentia vontade de chorar, angústia, medo... Todas as emoções se misturavam e ela até desejou não ter acompanhado Jairo, que igualmente a observava, imaginando o que poderia estar sentindo. Sutilmente Jairo seg urou sua mão, na intenção de lhe transmitir forças.

Quando a carruagem encostou, Jairo desceu primeiro e ajudou as duas senhor as. Uma delas, antes de se despedir, disse:

- Curioso, você e seu sobrinho vieram a viagem toda - e olhe que é uma lon ga viagem - sem se comunicar. Estranho...

278 RENASCER DA ESPERANÇA

_ Ele é muito quieto e eu também. Estamos acostumados ao silêncio, senhora , só isso. Não há nada estranho.

Boa estada em Barcelona.

Tão logo as duas senhoras se afastaram o suficiente, Emilie explodiu:

Nossa! Que coisa horrível ficar tantas horas sem falar! Meu Deus, pensei que fosse enlouquecer!

Jairo sorriu. Foram para a casa de Miguel, passando no caminho pela livrar ia que Jairo conhecera. Assim que entraram, Jairo reconheceu o dono; Emili e viu que havia poucos livros espíritas nas prateleiras. Jairo lembrou-se da grande remessa que já deveria estar lá e então perguntou, após cumprimentar o proprietário:

- Os livros que estavam aguardando ainda não chegaram? - Chegaram, mas foram confiscados.

- Confiscados? Por quê?

- Se souber por quem, logo imaginará por quê. Foi uma ordem do bispo dom Antônio.

- Como? As autoridades já não haviam liberado a entrada dos livros?

- Estavam liberados, porém a Igreja tem força junto a muitas pessoas influ entes. Parece que dom Felipe interferiu, atendendo ao pedido de dom Antôni o.

Emilie estremeceu ao ouvir o nome do sogro; procurou controlar-se e pergu ntou:

-- E o que vão fazer com os livros? Trancá-los a sete chaves em algum conv ento?

- Muito pior, vão queimá-los onde executam os condenados.

-- Não é possível! A Inquisição já acabou! Será que pretendem ressuscitá-la ?

-Tem razão, é preocupante. Toda vez que a intolerância ofusca a verdade, é p erigoso para a sociedade. Os livros espíritas

Lucius / SANDRA CARNEIRO 279 vêm trazendo novo conhecimento e iluminando consciência têm despertado as pessoas para a realidade espiritual e para possibilidade de melhor condu zirem suas vidas. Mas muitos e tão interessados em calar a voz da verdade e fazer que todos permaneçam em sonolência e profundo torpor - assim o domínio é mais fáci l. Os que apoiam a nova revelação estão temerosos de que uma atitude como essa fortaleça a perseguição àqueles que se interessam pelo Espiritismo.

- Perseguição? - Sim, existe uma perseguição velada empreendida pela Igreja contra aquele s que demonstram qualquer interesse pela nova doutrina.

- O senhor conhece pessoas que tenham sido perseguidas aqui em Barcelona ?

- Sei de inúmeras intrigas que já foram tramadas contra aqueles que ousara m despertar. Na maioria das vezes os adversários agem de forma sutil, para não serem acusados diretamente. Sei de pessoas que quase passam fome, desprovidas que ficam de trabalho, por interferência direta da Igreja. Outras são realmente calunia das em sua conduta e até acusadas de atos que não praticaram.

Emilie olhou significativamente para Jairo, que de imediato adivinhou-lh e os pensamentos. Continuaram por mais algum tempo conversando sobre o p erigo que rondava aqueles que se interessavam pelas descobertas espíritas. Ao se despedirem, Emilie perguntou:

- Não há nada que se possa fazer para impedir que os livros sejam destruído s?

- Há orientação vinda da Espiritualidade superior para nada fazer, apenas o rar e aguardar os acontecimentos. O próprio Allan Kardec se propôs a algo f azer, interferindo junto a justiça francesa, mas foi orientado a calar-se e esperar.

280 RENASCER DA ESPERANÇA

_ E quando pretendem cometer esse ato bárbaro? _ Amanhã pela manhã.

Ao despedir-se finalmente do livreiro, Emilie disse: _ Amanhã estaremos lá!

- Muitos espíritas e simpatizantes comparecerão, num ato de resistência e pr otesto, assim como intelectuais e artistas que não aceitam o que a Igreja es tá fazendo. Ao sair da livraria, Jairo e Emilie foram para a casa de Miguel. Depois da apresentação formal, falaram longamente sobre Lucrécia. Quando teve oport unidade, Emilie perguntou, referindo-se ao que estava para acontecer na manhã seguinte:

- Por que tanta resistência, Miguel? De que têm tanto medo?

- O Espiritismo incomoda porque leva as pessoas a tomarem posições, fazer em escolhas, e estas trazem conseqüências. As pessoas preferem não conhec er para não ter de decidir. A Igreja abandonou o verdadeiro sentido dos ensinos de Jesus tã o presentes nos primeiros séculos do Cristianismo. Os verdadeiros princípio s do Mestre foram deturpados e a eles se sobrepuseram interesses de ordem material: pod er e dinheiro.

Emilie respondeu, assustada:

- Não é possível! A Igreja sempre falou de Jesus!

- Falar é uma coisa, viver é outra bem diferente. Acho que é por isso que t emem tanto o Espiritismo, que bem entendido e, sobretudo, vivenciado leva f atalmente à mudança do homem e de toda a sociedade. À medida que a Doutrina Espírita nos esclarece a respeito da imortalidade da alma e da vida que continua s empre, leva-nos a olhar para o presente sob outro ângulo, buscando o sentido de tudo o que nos acontece. A noção da preexistência da alma e dos efeitos do passado em nossa existência atual nos faz reconhecer a necessidade de transformação de nosso espírito de modo a nos tomarmos

Lucius / SANDRA CARNEIRO 281 verdadeiros cristãos; leva-nos a amar a Deus e ao próximo traduzindo esse amor em auxílio a todos os que precisam, em perdão das ofensas, em compr eensão para com as dificuldade alheias. São tantos os ensinamentos puros que Jesus nos deix ou e dos quais nos afastamos... Agora o Espiritismo traz a luz capaz de pro mover nosso reencontro com a mensagem de Jesus e nos convida ao esforço para nos mel horarmos, para reformarmos nosso íntimo pela vivência de Suas lições. Ce rtamente há muitos na terra e no espaço que desejam que os homens permaneçam arraigados à ign orância, presos aos preconceitos que os limitam, cépticos e materialistas, impedindo a evolução e ascensão da Humanidade.

- Apesar de tudo, haverá essa queima de livros. Isso irá atrapalhar a divulga ção dos princípios espíritas, não?

- Talvez sim, talvez não. Aguardemos. O Espiritismo nasce sob a orientaç ão de Deus e o amparo de Jesus. Confiemos na Divina Providência que tudo sabe. Vamos acompanhar o evento de perto, embora seja repugnante. Gostariam de ir conosco?

Emilie antecipou-se na resposta:

- Sem dúvida.

Os três seguiram conversando por longo tempo. Miguel mostrou a Emilie o tr abalho de assistência aos aflitos e necessitados que estava desenvolvendo, o que a tocou profundamente.

282 RENASCER. DA ESPERANÇA

Capítulo trinta

O dia amanheceu frio e nublado, como a prenunciar o ato infeliz que se have ria de testemunhar.

Eram nove horas da manhã e o local já estava lotado. Havia os que ali se e ncontravam para apoiar a Igreja; entretanto, também acorriam em grande núm ero curiosos e defensores da doutrina anatematizada. Aos adeptos e simpatizantes soma vam-se os homens que, compreendendo o valor da liberdade de pensamento q ue se alastrava por toda a Europa, não aceitavam o retrocesso que aquela agressão representava. Jo rnalistas, escritores, filósofos, cientistas e outros intelectuais se uniam, r evoltados por presenciar o fato ignóbil, contrário a todos os modernos movimentos d e independência e progresso humanos.

Em meio ao povo que se aglomerava estavam também Emilie, Jairo e Miguel junto com outros amigos. Embora Jairo a tivesse alertado para o perigo d e ser reconhecida, Emilie se sentia indignada demais com o que estava para acontecer e desejav a aliar-se àqueles que tinham a coragem de manifestar sua repulsa pelo gest o arbitrário e de profunda intolerância.

283

Os livros foram atirados no centro da praça: dezenas de exemplares de O Li vro dos Espíritos, vários de O Livro dos Médiuns , além de inúmeras broch uras contendo mensagens e textos de diversos médiuns. Em minutos uma pequena montanha de livros, cerca de trezentos volumes, se formou e foi contomada pela mu ltidão, que era contida por representantes da lei.

Enquanto os livros eram jogados, diferentes manifestações se faziam ouvir: alguns gritavam, apoiando o clero, outros externavam seu repúdio àquele a to.

Miguel observava tudo, circunspeto. Em pensamento orava a Deus, pedindo proteção para a doutrina que nascia. Não permitia que nenhum sentiment o de rancor ou mágoa se instalasse em seu coração e procurava lembrar-se de quantos, entre os p rimeiros cristãos, tinham sido queimados em luta heróica pela disseminação da Boa Nova de Jesus. Pensava que mais recentemente outros crentes sinceros se haviam imolado durante os obscuros tempos da Inquisição, lutando pelos princípios do Cristianismo, sem se intimidar diante daqueles que lhe violavam a pureza. Assim refletin do, redobrava a confiança em Deus, consciente de que o Espírito de Verdade , que presidia a chegada dos conhecimentos espíritas à Terra, haveria de cuidar para que s ua difusão fosse amparada e preservada. De súbito, abriu-se um corredor em meio ao povo e dom Antônio aproximou-s e do monte de livros. Em frente a eles proferiu breve discurso, expondo a razão daquele auto-de-fé e ressaltando o perigo que tais publicações representavam. Infl amou-se em seu discurso, mas antes mesmo de terminá-lo uma vaia tímida se fez ouvir.

Sem titubear, o bispo recebeu de um dos seus auxiliares a grande tocha ace sa e colocou-a em cima dos livros, que imediatamente se incendiaram. À pro porção que as chamas se intensificavam, igualmente crescia a vaia, e tanto ela como as lab aredas

284 RENASCER DA ESPERANÇA se espalhavam por todos os lados. Os mais acanhados encheram-se de corage m e, quando o fogo era mais intenso, ruidosa vaia ecoava na praça, abafan do por completo os aplausos.

Surpreso e receoso frente ao protesto da multidão, o bispo de Barcelona par tiu em retirada. Emilie, embora comovida, buscava conter as lágrimas e refl etia sobre os efeitos da intolerância. De súbito, espantou-se ao reconhecer um rosto n a multidão: era Fernando, que estava entre os acompanhantes do bispo. Emili e, então, focalizou nele sua atenção e percebeu que parecia atordoado, o olhar vagando entre a fogueira, a reação do povo e a atitude do bispo. Mesmo depois que este de sapareceu, o jovem se manteve diante dos livros em chamas, como que hipnotizado. De qu ando em quando olhava as pessoas à sua volta, e novamente se fixava na fo gueira ardente. Despertou daquele torpor no instante em que um dos auxiliares da paróquia, temeroso da reação popular, puxou-o pela batina insistindo para que saísse dali. Ele finalmente aquiesceu, afastando-se da praça sob a vaia geral. Emilie não pôde deixar de acompanhar cada movimento de Fernando.

Logo que a maior parte das autoridades desapareceu, verificaram-se tentativa s de apagar o fogo, o que foi impedido pelos policiais presentes. Só ao vê-l o quase extinto, e praticamente todos os livros queimados, é que eles deixaram a praça. A multidão, ainda tomada por forte comoção, pôde enfim se aproximar, quando nada mais havia a ser feito. Os livros estavam destruídos, e apenas algumas páginas eram id entificadas. As cinzas voavam ao sabor do vento, levando para toda parte os sinais daquele auto-de-fé.

Após o fogo ter cessado por completo, a praça permanecia lotada e muitos ali ficaram sem saber o que fazer, inconformados com o que ocorrera. Aos poucos, porém, o local foi e esvaziando. Emilie, Miguel, Jairo e os outros amigos foram

Lucius / SANDRA CARNEIRO 285 dos últimos a abandoná-lo. Emilie estava entristecida chegou à casa de Migu el.

- Não fique triste, Emilie. - É revoltante!

- Nada poderá impedir o avanço da verdade. Deus na permitiria.

- Mas queimar os livros, ameaçando aqueles que se interessam pelos princípio s espíritas, já é demais!

- Isso não é nada comparado ao que se sofreu para disseminar o Cristianism o. Tenho certeza de que não impedirá o Espiritismo de crescer na Espanha.

Emilie meditou por algum tempo, depois disse:

- Gostaria de algo fazer para ajudar...

Miguel observou-a e não respondeu; ela, por sua vez, insistiu:

- Acha que eu poderia colaborar de alguma forma, Miguel? Miguel olhou-a com amabilidade e disse:

- Você certamente pode contribuir com o Espiritismo, acima de tudo porque tem na divulgação de seus princípios um grande compromisso. Todavia, des de já lhe advirto: não espere que seja fácil. O que presenciamos hoje foi somente uma amostr a do que muitos gostariam de fazer com aqueles que buscam a renovação em suas atitudes; ainda que os frutos do trabalho sejam compensadores, a semeadura é árdua.

Emilie, em tom grave e muito séria, afirmou:

- Estou convencida de que tenho compromissos assumidos antes de reencar nar. A vida se encarregou não só de mostrar-me um novo caminho, como de reacender a esperança dentro de mim; não posso ignorar que minha existência se renova graças ao que venho aprendendo. Se não pudesse entender a razão dos meus sofriment os, jamais me deixaria influenciar pelos ensinos amorosos de Jesus, revoltada como estava contra tudo e mesmo contra Deus.

286 RENASCER DA ESPERANÇA

-E até com certa razão. Como aceitar o que não se compreende?

-E agora que compreendo estou disposta a levar a outras pessoas em sofri mento a ajuda para também compreenderem, para poderem estender as mãos e pela fé raciocinada sentir as bênçãos do Criador.

-Fique tranqüila, a ocasião chegará.

- Acha que o que aconteceu hoje não irá intimidar as pessoas, Miguel?

- Talvez um pouco, no início, mas sei que o sofrimento continuará a movê-la s na direção do verdadeiro auxílio.

Permaneceram por longo tempo conversando sobre as possíveis conseqüência s do auto-de-fé. Ao entardecer, Emilie acompanhou os amigos nas atividad es assistenciais que Miguel desenvolvia junto à população carente da cidade, levando alimen to e remédio aos necessitados.

Ela caminhou por bairros em que jamais estivera, nos mais de quinze anos que vivera em Barcelona; sorriu e chorou com as pessoas que visitou, impr essionada com tanto sofrimento e tantas privações. Viu crianças fracas e doentes. No entanto, quem mais a comoveu dentre todos foi uma das senhoras visitadas, que em me io aos inúmeros problemas que enfrentava comentou:

- Está tudo certo, Miguel. Deus o abençoe por tanta ajuda que nos tem dado . Sei que não devo reclamar de nada, diante de quanto o Pai me tem concedi do

Baixando a cabeça, a mulher enxugou as lágrimas que desciam e acrescento u:

- Só lamento uma coisa: gostaria de poder ler para aprender mais com os li vros. Fiquei sabendo do que aconteceu hoje e achei uma estupidez. Tanto co nforto desperdiçado! Tantos querendo ler, e os que podem queimam os livros...

Lucius l SANDRA CARNEIRO 287

- Tenhamos fé na Providência que tudo transforma para nosso bem.

- Tenho presenciado isso a cada dia; apesar de toda a intolerância e da pe rseguição que venho sofrendo, Deus não me desampara...

Miguel, que notou a curiosidade de Emilie, disse:

- Nossa irmã Ermínia foi vítima da intolerância e vem lutando bravamente pa ra manter-se fiel aos princípios que abraçou.

Emilie externou sua curiosidade:

- O que aconteceu?

- Mais tarde lhe conto o ocorrido - finalizou Miguel. Assim que se despedir am de Ermínia e seus filhos, Emilie indagou:

- Como às vezes pessoas mais simples conseguem enxergar com tamanha lu cidez, Miguel? - O sentimento verdadeiro quase sempre supera as limitações intelectuais.

Emilie retomava compenetrada e envolvida na conversa que entretinha com Miguel, Jairo e os amigos que com ele seguiam todas as noites a levar al imento, medicamentos e conforto àqueles que necessitavam. A tarefa era difícil. Era preciso espalh ar o benefício sem ferir as pessoas; embora a dor e a tristeza os visitassem, muitos eram orgulhosos e resistiam a receber ajuda. Normalmente eram os estrangei ros ou expatriados - como Jairo e Lucrécia - aqueles que primeiro aceitava m apoio; os demais, desconfiados e altivos, sempre suspeitavam que houvesse outros interesses por trás da doação e muitos rejeitavam o socorro. Miguel, que compreendia e amava o seu povo, era paciente e tolerante, aguardando o momento certo para estender o auxílio.

Emilie, surpresa com essa determinação no serviço ao próximo,

288 RENASCER DA ESPERANÇA ainda não conseguia compreender os extremos cuidados Miguel. Enquanto ca minhavam, ele procurava explicar-lhe o Imperativo do amor para se poder auxiliar com eficácia.

Iam entretidos na conversa quando intensa movimentação chamou a atenção de todos. Estavam diante de largos portões abertos por onde entrava gran de número de pessoas. Jairo perguntou a Miguel:

- O que acontece aqui? Por que tanta gente?

- É a festa que os Bourbon e Valença realizam todos os anos juntamente com a Igreja. Já é uma tradição...

Emilie estacou em frente aos portões, sendo quase arrastada pelos que ent ravam. Havia muitos guardas à entrada da mansão. Ela começou a caminhar p ara a casa, como se estivesse em transe. Quando Miguel percebeu o que acontecia, correu até a jovem, agarrou-lhe o braço e puxou-a para fora, vencendo sua resistênci a. Assim que Miguel conseguiu tirá-la do meio da multidão, o grupo se apressou em afasta r-se da casa, ao passo que Emilie dizia, quase descontrolada:

- Minha filha, quero ver minha filha! Ela está tão perto! Quero vê-la, preci so vê-la, não entendem?

- Acalme-se, Emilie, tente controlar suas emoções para que elas não contr olem você! Vamos, acalme-se.

Emilie parecia não escutar e insistia:

- Eu quero vê-la! Há quanto tempo, meu Deus, tenho tanta saudade!

Miguel segurou-a pelos ombros e, olhando-a com firmeza, disse:

-- Pois bem, e o que vai fazer? Enfrentar seu marido, a família, os guardas? Você viu os guardas! E então? O que irá obter? Certamente não será sua filh a! Eles a colocarão de volta no hospício, Emilie. Você precisa resolver sua situação, a ntes que possa reencontrar sua filha.

Lucius / SANDRA CARNEIRO 289

Por fim, como se despertasse, Emilie admitiu:

- Tem razão, sei que tem razão, Miguel; é que senti urna força quase incont rolável me puxando para dentro.

- É claro, Emilie, muitos desejam que você fracasse!

A jovem olhou novamente para os portões abertos e viu ao longe as luzes da casa, que em dias de festa eram todas acesas. Então, voltando-se para Migue l, disse:

- Tem razão, não há nada que possa ser feito por agora. Vamos depressa, pre ciso sair daqui ou não poderei me conter.

Em passos rápidos e firmes, o grupo se afastou e desapareceu rumo ao cent ro da cidade. Emilie, com o coração descompassado, não mais ousou olhar p ara trás, temendo não poder controlar-se. Ela sentia como se sua mente estivesse presa àquela casa.

Na mansão, a festa seguia com relativa tranqüilidade. Alguns comentavam a reação inesperada do povo, a vaiar o bispo, que estava indignado com aqu ela manifestação. No mais, a comemoração transcorria como desejado.

No topo da escada, Isabel observava a todos. Dom Felipe conversava com o b ispo e outras autoridades vindas de Roma. A dona da casa sorria, satisfeit a. Tinha tudo sob controle, e pensava: "Que diferença do ano passado! Graças a Deus min ha família está protegida outra vez! Ainda bem que consegui tirar do cami nho o que poderia ameaçar-nos. Agora só falta Cíntia, mas com ela será muito mais fácil!".

Filomena, que animada recebia os convidados, viu a mãe e subiu ao seu enco ntro:

- Tudo a contento, mamãe?

- Sim, Filomena, tudo perfeito. Todos estão aqui, e a organização da fest a foi excelente. Meus parabéns! Ainda bem que tudo se encaminhou como dev ia e todos puderam comparecer com o que houve hoje, espero que esse mal seja estancado!

290 RENASCER DA ESPERANÇA

Sim, acho que todos entenderam a mensagem. O que me surpreendeu foram a s vaias. O que significam, mãe?

- Uns poucos simpatizantes, minha filha; nada com que devamos nos preocup ar. Afinal, todos têm o direito de se expressar, não é mesmo? Estamos em tempos de liberdade.

Isabel sorriu cinicamente para a filha que, captando o que a mãe desejava di zer, respondeu:

- Sim, tempos de liberdade... Bem, vou descendo que estão chegando convid ados. Isabel apreciava a festa, quando viu Fernando se afastar de um grupo em co nversa animada e subir as escadas. Ao passar por ela, perguntou:

- O que tem você, Fernando? Está calado o dia todo, nem parece contente co m o resultado de tudo o que foi planejado. Hoje é um dia memorável! Deveri a estar feliz! Tudo caminha bem, temos tudo novamente sob o nosso controle. O que o p reocupa?

- Não sei, tia; não me sinto muito bem, acho que estou até com febre. Talvez seja uma gripe.

Isabel ajeitou o cabelo do sobrinho e disse:

- Acho que tem trabalhado muito, Fernando, deve ser isso. Quando parte pa ra as Américas?

-- Breve.

- Quando? Tem alguma previsão?

- Não, ainda não.

- Não deveria apressar as coisas, já que esse é seu objetivo?

- Sim, mas acho que por ora sou mais útil no orfanato: muitas crianças cheg ando e poucos para ajudar.

- Não se atormente tanto. Por que as crianças precisam de muita gente para cuidar delas? Imponha rigorosa disciplina e faça com que os mais velhos a judem os mais novos.

Fernando pensou por instantes e disse:

Lucius / SANDRA CARNEIRO 291

- Parece boa idéia. Todavia, além disso precisamos de pessoas que dêem a e las atenção e carinho, como faz Cíntia. Ela tem ajudado muito.

- É pena, Fernando, que não vá poder ajudá-lo por muito tempo. - E por que não? Ricardo autorizou e a menina gosta tanto!

- Tenho outros planos para ela.

- Outros planos?

- Sim, acho que Filomena lhe contou.

- Não creio que ela tenha vocação. Apesar de nunca ter falado sobre isso, p enso que não é o que quer. De mais a mais, Ricardo não concordaria.

- Ricardo fará aquilo que lhe dissermos para fazer! Não conhece seu primo? Tenho minhas formas de convencê-lo. Sei que será difícil, mas tenho plano s para conseguir que concorde.

- E se Cíntia não quiser?

- E ela tem lá querer, Fernando? Essa menina precisa ficar sob a orientação rigorosa da Igreja, pois pode ter tendências ao desequilíbrio, como a mãe!

Fernando calou-se. Isabel fitou-o e perguntou:

- Sabe de alguma coisa? Ela não demonstrou nada estranho, enquanto esteve trabalhando com você no orfanato? Uma informação desse tipo me facilitar ia muito as coisas.

- Claro que não, tia! É uma garota adorável, carinhosa e meiga. Todas as cr ianças a adoram. E é muito responsável; tem colaborado mais do que muito ad ulto o faria.

- Vê? Você acaba de me dar motivos para reforçar minha intenção. Pelo que me diz ela será uma ótima religiosa, totalmente dedicada.

Fernando olhou-a, irritado, e disse:

- Não concordo com isso, é um abuso! Vocês querem fazer o que bem enten dem com as pessoas? E os sentimentos 292 RENASCER DA ESPERANÇA dela? Só pensa em seus interesses? Não pensa no que as pessoas querem, no que é melhor para elas, em nada!

Olhe só quem fala! Quando os interesses são seus, você não age de outro m odo, não é, Fernando?

- Era diferente, tia. Os interesses da família e da Igreja estavam em jogo.

- Os seus também, visto que é parte da família e da Igreja. Não seja hipócr ita! E não tente atrapalhar meus planos. Essa menina vai para o convento ma is rígido que eu achar. E não se fala mais no assunto!

Fernando virou-se para sair quando notou que Cíntia estava próxima a eles; pela expressão de espanto em seu rosto, percebeu que tinha ouvido a conve rsa. A menina não disse nada e correu para o seu quarto. Fernando encarou a tia, que come ntou:

- Melhor assim. Vai fazer com que tudo aconteça mais depressa.

Sem responder, Fernando correu atrás de Cíntia, porém ao chegar ao quarto encontrou a porta trancada. Foi em vão que bateu e lhe pediu que abrisse; apenas escutou o seu choro abafado.

Depois de insistir muito, sem saber o que fazer, saiu acabrunhado pelos fun dos da mansão e foi para a paróquia, abandonando a festa. Abatido e desmoti vado, dirigiu-se para seu quarto.

Atordoado, sem saber com clareza o que sentia, acomodou-se na cama e ten tou dormir. Lembrou-se em detalhes do comportamento de Cíntia em sua pri meira visita ao orfanato. Sem dúvida tinha atitudes estranhas, como a mãe, que no entanto só o havia m auxiliado. Que força seria aquela que a tomava e a fazia agir como se do minasse questões que para ela eram desconhecidas?

Fernando meditava e meditava, sem poder identificar nada de errado no que Cíntia havia feito. E se aquele fenômeno fosse

Lucius / SANDRA CARNEIRO 293 algo bom, algo que viesse para ajudar? Alguns santos não tinham visões, n ão faziam coisas estranhas também? Sem poder dormir, levantou-se e andou pela paróquia. Parou junto a uma das imagens de Jesus e perguntou a si mesmo: "E se es ses fenômeno tiverem uma explicação razoável? E se não forem maus? Meu Deus! Quanta injustiça já terá sido cometida!" Por fim ele se ajoelhou diante da imagem e pediu co m sinceridade a proteção de Jesus.

Estava amanhecendo e Fernando continuava de joelhos quando ouviu barulho . Era o pároco que regressava da mansão. Ergueu-se rápido, pois não quer ia que o vissem acordado nem que soubessem que deixara a festa tão cedo. Trancou-se em seu quarto e de novo se ajeitou na cama. Ouviu quando o padre caminhou pelo corredor e por fim se fechou no quarto.

O silêncio voltou ao templo, porém o coração do jovem padre estava pertur bado. Ele não conseguia deixar de pensar em Cíntia, e agora lembranças de Emilie lhe rondavam a mente.

294 RENASCER DA ESPERANÇA

Capítulo Trinta e um

No retomo à casa de Miguel, Emile quis saber sobre a perseguição que Ermíni a sofrera, descrente de que fosse responsabilidade da Igreja seu atual esta do de penúria. Ele contou em pormenores tudo o que sabia sobre a dura vida da mulher: sua luta corajosa após a morte do marido para suprir as necessidades materiais da família, depois a dor da excomunhão e em seguida a perda dos clientes, não restand o ninguém mais que quisesse comprar-lhe os produtos. A filha mais velha, indignada deixara a família e desaparecera. Havia muito não dava notícias e Ermínia temia que estivesse comprometendo a própria existência pela revolta que trazia dentr o de si. Apesar disso, mantinha-se fiel aos princípios espíritas que abraçara, consciente d e que não poderia mais ignorá-los.m s Miguel e outros companheiros a estava m socorrendo; na busca de alternativas para que ela pudesse continuar a viver com dignida de, tentavam enviar os doces que produzia - de excelente qualidade - para o utros países. Ernilie ouviu o relato com atenção e depois disse: - É impressionante o que fizeram a essa mulher! Nunca imaginei que as p essoas pudessem agir com tamanha crueldade.

295

~T

- Aqueles que querem a qualquer preço impor sua vontade, que se deixam d ominar pelo orgulho, acabam espalhando a dor e o sofrimento para quantos não se submetem aos seus propósitos. E contra essa conduta insana que lutamos, para que o amor triunfe sobre o egoísmo e a humildade vença o orgulho. Somente assim seremos felizes.

Emilie continuou pensativa e enfim questionou:

- Será que o que aconteceu comigo na noite em que fui presa poderia ser fru to de algo semelhante?

- Não duvido de nada, Emilie. Você presenciou o que foram capazes de fazer hoje. Sim, creio que tudo é possível.

- E como vou descobrir, Miguel? Como poderei esclarecer toda essa história e libertar-me de vez daquilo de que me acusam? Preciso fazer alguma coisa , não posso ficar apenas esperando.

Então foi Miguel quem se calou e ficou pensativo. Depois, tocando suavem ente o ombro dela, recomendou:

- Tenha fé e paciência, tudo tem seu tempo certo. Não adianta forçar as si tuações; precisamos tentar compreender o movimento natural da vida. Muitas vezes, com atitudes ansiosas, atrapalhamos planos que estão sendo muito bem conduzidos pelos n ossos orientadores espirituais, nossos protetores. Devemos confiar neles e prosseguir. Deus jamais nos desampara e, na hora certa, abre portas que pareciam defin itivamente fechadas. Tenha fé, tudo será esclarecido no momento certo.

- Contudo, há certas coisas que por mais que me esforce não consigo compr eender.

Miguel, sentado no sofá ao lado de Emilie, disse: - Muitas coisas estão além da nossa capacidade atual de compreensão, por isso precisamos desenvolver a confiança. Veja: não conseguimos entender a inda o que houve hoje. Muitos se perguntam por que a Espiritualidade superior permitiu que

296 RENASCER. DA ESPERANÇA algo assim acontecesse. Por que permitiu que a nossa doutrina de luz fosse vilipendiada dessa maneira, com seus principais instrumentos de divulgação destruídos em praça pública, condenados diante de todos num auto-de-fé? Há alguns qu e crêem que isso realmente enfraquecerá o Espiritismo e intimidará os esp íritas. O que podemos responder?

Emilie e Jairo ouviam atentamente. Miguel continuou:

- Devemos esperar com fé. Recebemos instruções para nada fazer no sentido de impedir o que a Igreja e as autoridades planejavam. Que confiássemos na Providência, pois tudo reverterá no bem de todos. E por isso creio que a Espiritualidad e encontrará alguma forma de beneficiar o Espiritismo, mesmo através desse acontecimento desagradável e negativo. O apóstolo Paulo já dizia: "Todas as coisas coop eram para o bem daqueles que amam a Deus".

- Como, Miguel? Não consigo enxergar.

- Ainda não sabemos, mas precisamos acreditar. Eles sabem melhor do que nós e enxergam mais longe. Se confiarmos e nos mantivermos firmes e fiéi s ao que nos orientam, e acima de tudo às Leis que Jesus nos revelou, as coisas serão encaminhadas para o bem de todos, inclusive o nosso.

Emilie, que estivera de corpo ereto, atenta ao que Miguel dizia, encostou-se inquieta no sofá e suspirou, dizendo: -- Ah, Miguel, quanta paciência é preci so ter! -- Sem dúvida, paciência ativa, inteligente, é fundamental. Passaram mais a lgum tempo a conversar até que todos se atiraram para o descanso necessário . Apesar de cansada, Emilie não podia conciliar o sono, ainda sob o forte i mpacto das emoções daquele dia. Pensava que devia contribuir de algum mod o. Lembrou-se de Fernando e de sua reação diante da fogueira. Pensou na filha e sentiu o p eito apertado de saudade. Recordou Ricardo também com o co-

Lucius / SANDRA CARNEIRO 297 ração doído. Desejava ardentemente esclarecer toda a situação e recuperar sua família. Se Ricardo fora enganado, com certeza quando conhecesse a ver dade a receberia de volta.

Conjeturando o que fazer para elucidar a cilada de que havia sido vítima, passou quase toda a noite acordada, só adormecendo quando já amanhecia. Ai nda sonolenta, ouviu um burburinho que parecia espalhar-se pela casa toda. Levantou-se de pressa.

Ao descer, encontrou Miguel com vários amigos na sala de estar, em conver sa animada. Sobre a mesa da sala repousavam diversos jornais, abertos nas manchetes relativas à ocorrência do dia anterior. Emilie, que descera assustada, percebeu que es tavam todos felizes:

- O que aconteceu? Pensei que houvesse algum problema e vejo que, ao contrá rio, estão felizes!

- Leia isto.

Emilie sentou-se e Miguel lhe entregou um dos jornais, o mais importante da cidade; depois ela pegou outro; a seguir jornais alternativos, de sociedades científicas e filosóficas, que expunham em edição extra sua visão indignada dos fatos de 9 de outubro em Barcelona.

Emilie mal podia crer no que lia. Alguns jornais traziam um histórico do mo vimento espírita e alertavam quanto ao perigo da intolerância religiosa, le mbrando recentes atos criminosos praticados pela Igreja. Outros apenas criticavam a atitude in tolerante, a despeito do que o Espiritismo postulava, reiterando que a liberd ade de pensamento fora uma conquista da Humanidade, que não podia agora correr r iscos de retroceder.

- Miguel! Acho que não estou entendendo direito. Estão contra o que foi fe ito? É isso mesmo?

Após terminar a leitura de todos os jornais, Miguel disse:

- Lembra-se do que conversamos ontem? Parece que os

298 RENASCER DA ESPERANÇA desdobramentos estão começando. A julgar pelo sentimento de indignação que percebo nessas páginas, não irão silenciar tão cedo. As barreiras haverão de cair, uma a uma! A verdade haverá de triunfar! Não disse que precisamos aprender a confiar, Emilie? Não estamos sós, essa é uma grande prova. Se o número de opositores aumenta, igualmente cresce o amparo que recebemos. Tudo o que vem pelas mãos do C riador é vitorioso!

- Inacreditável, Miguel, estou impressionada!

- Pelo que percebo, o que está acontecendo é o contrário do que a Igreja pret endia.

- Como assim? - perguntou Jairo.

- Eles pretendiam intimidar e atrapalhar a expansão do Espiritismo, mas co m toda essa publicidade o que fizeram foi dar-lhe maior divulgação! E que divulgação! Não deve haver uma única pessoa em toda a cidade que não esteja falando, disc utindo e, mesmo que discorde, ouvindo falar dos novos postulados. E creio que não será somente em Barcelona; a discussão deverá propagar-se pelo país. Bendita sabedoria de Kardec em obedecer aos espíritos e seguir-lhes rigorosamente as orienta ções!

Os amigos permaneceram por algum tempo conversando e celebrando as reperc ussões inesperadas que a queima dos livros espíritas suscitara.

Mais tarde, naquele mesmo dia, Emilie e Jairo iniciaram os preparativos par a regressar. Ao vê-los a organizar a partida, um dos colaboradores assíduos de Miguel perguntou a Jairo:

- Precisam voltar tão depressa?

- Consegui que Miguel me ajudasse a solucionar os problemas com o negócio do pescado. Ele preparou uma carta que levarei aos compradores e acredit o que resolverá o impasse. Temo ausentar-me por muitos dias, pois ainda respondo ao proces so em Bilbao e não quero atrair-lhes mais a atenção.

- Então continuam?

Lucius / SANDRA CARNEIRO 299

- Sim, são insistentes.

Emilie acompanhava a conversa em silêncio. Pretendiam partir na manhã seg uinte.

Na mansão, o dia também começou turbulento. Felipe, a filha e Ricardo tom avam o café da manhã quando Isabel desceu furiosa, jogando o jornal sobre a mesa:

- Já viu isso, Felipe? Quem esses jornalistas pensam que são? Ao invés de destacarem a festa, dedicam várias páginas ao ocorrido ontem pela manhã! É revoltante! Você tem de fazer alguma coisa! Precisa demitir esses jornalistas!

- Isabel, acho que você não está entendendo. Deixe-me explicar melhor: tod os os jornais se manifestaram contrários à queima dos livros espíritas. Nã o há um sequer que apoie, que traga qualquer comentário favorável! O que fazer? Demitir t odos os jornalistas de Barcelona? Amanhã saberemos o que acontece no resta nte do país, o impacto em outras províncias. Não podemos interferir no país inteiro. - É inaceitável! Precisamos fazer alguma coisa! Eles têm de se calar!

- É verdade, pai, esses atrevidos precisam de uma lição! Felipe suspirou fund o e disse:

- Temo que seja tarde. Parece que cometemos um erro: nós e a Igreja.

- Não é possível, Felipe!

- Os fatos falam por si, Isabel. Veja, leia! Temos de admitir que cometemos um erro estratégico! Precisamos agir com mais cautela. Parece que atacar f rontalmente não foi uma boa idéia! Estou falando pelos resultados, unicamente.

Isabel tomou o café calada. Ao terminar, perguntou ao marido:

300 RENASCER DA ESPERANÇA

- E vai ficar aí, sem fazer nada? Aceitando o fracasso?

- Já avisei que preparem a carruagem e mandei pedir audiência ao bispo. C ertamente devemos conversar sobre o ocorrido, para que não traga maiores conseqüências.

- Está vendo no que deu não termos tomado medidas mais enérgicas antes? Pe rde-se o controle da situação, precisamos ser mais firmes, Felipe! Sinto q ue nossa família tem sido por demais condescendente com determinadas situações perigosas.

Ela falava olhando para Ricardo, que até aquele momento esüvera calado. Fre nte à ausência de resposta do filho, prosseguiu:

- Precisamos apoiar a Igreja de forma cada vez mais ostensiva. E fazer vale r as tradições de nossa família, a fim de tomá-la totalmente invulnerável a ameaças como essa.

- Do que está falando, Isabel? - Ricardo trouxe uma mulher mentalmente perturbada para dentro de nossa f amília, pondo em risco nossos princípios, nossa imagem, nossa influência!

- Pare, mãe! - explodiu Ricardo, pronto a se levantar. Isabel deteve-o, segu rando-lhe fortemente o braço:

- Sente-se e me escute. Você trouxe uma mulher desequilibrada e envolvida com o diabo para dentro desta casa!

- Não é verdade!

- Não? Onde está sua doce Emilie?

- Por favor, mãe!

- Ela é uma mulher atormentada, e você sabe disso, pois quase morreu por su as mãos. E isso tudo é castigo, Ricardo, castigo de Deus.

- Por que castigo? O que foi que fiz de tão ruim, para meecer que Deus me c astigue assim, tirando-me a mulher que...

Diga, continue blasfemando!

- Não é verdade, mãe!

Lucius | SANDRA CARNEIRO 301

- Deus está castigando você por ter desistido de ser padre Ricardo. Essa era sua obrigação e você desistiu; agora Deus o está punindo pela desobediência .

- Isso é ridículo! Eu não tinha vocação alguma para servir à Igreja, e não c oncordar com esse absurdo foi a melhor coisa que fiz. Não me sinto...

- Cale-se, Ricardo! Veja como está sua vida: um casamento fracassado, uma mulher assassina e desaparecida e uma filha...

- O que tem minha filha?

- Também está ficando mentalmente perturbada. Ela é igual à mãe. - Não é verdade, dona Isabel, não é verdade. Cíntia é um doce de menina!

- Doçura igual à que tinha Emilie? Muito doce, tentando envenenar você e a própria filha. Preste atenção, Ricardo. Cíntia segue os passos da mãe. Está ficando cada vez mais esquisita e logo sua mente estará descontrolada, exatamente como a da mãe. E a responsabilidade será sua, toda sua.

- Pelo amor de Deus, mãe, isso não é verdade!

- Claro que é! Filomena tem acompanhado a menina e sabe que digo a verdad e. Cada vez mais quieta, mais estranha.

- Ela sente falta da mãe, é só isso.

- É muito mais do que isso, Ricardo. Só vejo um jeito de proteger sua filha.

- Qual é?

- Entregá-la a Deus, colocá-la a serviço da Igreja.

- Não, jamais!

Ricardo levantou-se, agastado; entretanto, dessa vez foi dom Felipe quem o segurou, dizendo:

- Sente-se, Ricardo. Deixe sua mãe terminar. Já chega de atos voluntarioso s que só nos trazem problemas.

302 RENASCER DA ESPERANÇA

Ricardo, conquanto profundamente irritado, obedeceu. Isabel argumentou:

Não vejo outra saída, Ricardo. Ela precisa de proteção.

- Eu a protegerei! Sempre!

- Você não entende. É preciso protegê-la de si mesma. Ela terá uma vida de serviços a Deus e à comunidade. Não lhe falta vocação. Pergunte a ela. Gost a de ir ao orfanato, de ajudar as crianças, sente-se bem naquele ambiente. Se a des viar do caminho você será duplamente responsável e culpado. Escolheu mal uma vez; agora faça a coisa certa. Deixe que a menina seja orientada e protegida.

- Entre as paredes de um convento? Longe da família, dos amigos, da vida?

- Perto de Deus!

- Prefiro-a perto de mim!

- Não poderá protegê-la, da mesma forma que não pode proteger Emilie. Ela s são iguais, Ricardo. Sua esposa tem serio desequilíbrio e a menina segu e o mesmo caminho. Não percebe? Você estará contribuindo para que ela adoeça. Não quis ouvir no caso de Emilie e sabe o que aconteceu. Preste atenção ao que está fazen do com sua filha! Ou toma uma atitude ou perderá o controle e então, a exemplo do que houve com Emilie, será muito pior!

Sem retrucar, Ricardo se levantou abruptamente e saiu da sala. Isabel dirigi u-se ao marido:

- Ricardo não quer escutar, não quer colaborar. Será pior para ele e para n ós. Quando as coisas fugirem ao controle, não poderemos reclamar. Fale com ele, Felipe. Você tem toda a autoridade, tome uma atitude. Ele precisa obedecer-nos, fa zer o que é melhor para todos!

- Você me deixou muito preocupado. Se Cíntia tem tendencias a se comport ar como a mãe, teremos realmente de fa-

LUC1US / SANDRA CARNEIRO 303

fazer algo. Vou pensar numa solução. Não quero que a se repita nesta casa.

- Nem eu. E precisamos agir rápido. A menina esta crescendo, este é o mome nto. Se a enviarmos imediatamente a aceitação será mais fácil para todos, inclusive para ela. A sociedade passa por fortes pressões. Precisamos preservar os nossos.

Levantando-se, dom Felipe disse em tom grave:

- Não me esperem para o almoço, devo demorar.

304 RENASCER DA ESPERANÇA

Capítulo Trinta e dois

Assim que o marido saiu, Isabel convidou a filha a acompanhá-la até a bibli oteca. Logo que entraram, pediu-lhe que fechasse a porta.

Ao ver Filomena encostar a porta ela insistiu, exasperada:

- Tranque a porta, Filomena, precisamos conversar.

A jovem obedeceu, depois se sentou e concentrou a atenção na mãe. A lareir a estava acesa e o silêncio na casa era total. Filomena tomava os últimos g oles de chá quente, enquanto imaginava qual seria o motivo de tal discrição. Isabel puxo u a cadeira para bem perto da filha e disse:

- Quero que essa menina seja enviada o mais rápido possível a um convento, longe, bem longe daqui. E tenho idéia de como fazê-lo.

Filomena continuava atenta.

- Seu pai vai obrigar Ricardo a atendê-lo, se pudermos comprovar que a me nina é igual à mãe, que também é mentalmente perturbada. E como vamos provar isso? Nem sabemos se ela apresenta o mesmo tipo de comportamento...

305 - Não precisamos, Filomena. É inquestionável que convento fará bem não só a ela, como à nossa posição junto a Igreja, pelo fato de colocarmos a seu serviço mais um dos nossos. Cuidaremos para que Cíntia ocupe posição de destaque na Igr eja, e no futuro, adequadamente conduzida, ela igualmente será útil aos in teresses da família; até entenderá nossa atitude nossa decisão. Se por alguma razão a mãe retoma r, ela estará protegida e um dia haverá de nos agradecer.

- E o que pretende fazer?

- Quero que converse com Fernando. Ele pode nos ajudar.

- Não creio, mãe. Já tentei convencê-lo a colaborar, mas ele não concorda.

- Disse isso?

- Praticamente. Não quer forçar a menina a nada. Acha que ela deve escolhe r o próprio destino. Não creio que possamos contar com Fernando...

Isabel sorriu, enquanto acariciava os cabelos da filha. Depois dirigiu-se até a lareira e arrumou algumas brasas, juntando-as todas. Aí se virou para a filh a e disse:

- Ele também não tem escolha, Filomena. Use seu poder de persuasão.

- Como assim, mãe?

- Diga-lhe que se não confirmar para Felipe que a menina tem problemas se melhantes aos da mãe, iremos tomar público o que houve entre vocês dois.

Filomena empalideceu e se levantou, indignada.

- Isso irá comprometer a mim também, mãe! Faz muito tempo! Éramos joven s e não sabíamos o que estávamos fazendo. Fernando apenas começava o se minário... E ele nem queria... - Fui muito compreensiva com você, não, filha?

- Sim, muito.

306 RENASCER DA ESPERANÇA

_- Então, o que está esperando? Use seu poder de persuasão. Diga a ele que estou disposta a tomar público o que houve entre vocês...

-- Mãe, por favor, são lembranças dolorosas, não quero...

-- Perdoe-me, Filomena, mas não temos escolha. Só Fernando pode nos ajuda r. Seu pai não sabe do que houve entre vocês e não precisa saber. Afinal, está tudo devidamente contomado. O orfanato esconde muitos atos ilícitos, e tenho certeza de que Fernando não há de querer ver o seu passado publicamente exposto, o orfan ato fechado e as pobres crianças na rua. Ele terá de nos ajudar. Convença-o!

- Mas, mãe...

Sem deixar que a filha terminasse, Isabel andou até a porta da biblioteca e d estrancou-a. Antes de abri-la, sentenciou:

- Você consegue, minha filha. Empenhe-se. Ele não terá alternativa senão c oncordar; não há outra opção. Ou concorda ou terá sua vida exposta.

- E eu, a minha!

- Não, querida, você saberá como impedir tamanho escândalo...

Isabel não esperou que a filha dissesse mais nada; saiu da biblioteca, fech ando a porta. Filomena, sem saber o que fazer, murmurou com os dentes cerra dos:

- Megera desalmada!

Ao sair, foi direto ao encontro do primo. Entretanto, chegando à paróquia n otou grande alvoroço. Foi informada de que o primo saíra muito cedo, para o orfanato. Não obstante a vontade que teve de segui-lo até lá, Filomena não ousava co locar os pés novamente naquele lugar. Não queria ver as crianças.

Deixou recado pedindo ao primo que fosse procurá-la o mais breve possível e voltou para casa. No caminho, seu desejo era fugir, desaparecer. Naque le momento sentia ódio da mãe,

LUCIUS / SANDRA CARNEIRO 307 que mantinha absoluto domínio sobre ela. Já a havia obrigado a tomar tantas atitudes contra sua vontade... Não conseguia libertar-se dela, de seu pode r. Ao mesmo tempo em que discordava de muitas de suas atitudes, sentia fascínio por I sabel. Dentro da carruagem que a reconduzia à mansão, baixou a cabeça e c horou amargurada, profundamente ressentida. Em tudo buscava agradar à mãe, até naquilo que r eprovava, e ela nunca ficava satisfeita. Agora, tinha de remexer o doloros o passado.

Quando chegou em casa, encontrou Cíntia tomando café. Olhou-a e nem sequ er a cumprimentou; subiu correndo para seu quarto. Trancou a porta e dei tou-se na cama, sem ânimo para nada, ansiosa e angustiada por ter de falar com Fernando sobre a lgo que, sabia, lhe desagradaria muito.

Filomena esperou o dia todo pelo primo, que não atendeu ao seu recado. No f inal da tarde, ela desceu as escadas preparada para ir de novo atrás dele. Ao passar pela mãe, sussurrou:

- Ele não estava. vou lá outra vez.

- Muito bem, aguardo boas notícias.

Dessa vez Filomena foi informada de que o primo estava em seu quarto. Bateu e virou a maçaneta, tentando entrar, mas a porta fora trancada. Ela insist iu, batendo com mais força:

- Fernando, sou eu.

- Não quero falar com ninguém, não me sinto bem.

- Por favor, preciso entrar.

- Hoje não. Vou à sua casa amanhã.

- É urgente, precisamos falar já!

O rapaz exasperou-se do lado de dentro:

-- Não posso falar agora, Filomena, você não entende?

- É problema sério, Fernando. Nosso futuro está em jogo, nosso passado...

Fernando destrancou a porta e Filomena entrou rapidamente, tomando a tran cá-la.

308 RENASCER DA ESPERANÇA

-- Está louca? Trancando a porta?

-- Precisamos conversar...

Perguntou ao ver o abatimento do primo:

- O que você tem, está doente?

- Estou doente da alma! Vamos sair daqui. Não quero comentários maldosos a nosso respeito.

Levando a prima para o pátio interno, sentou-se e disse:

- Fale, qual é o grande problema?

- Fernando, temos um grave assunto familiar a resolver. - Outro, você quer dizer? Parece que nossa família não anda muito bem, não é?

- Por que diz isso?

- Sinto que as coisas não vão tão bem como antes... Algo está mudando.

- Você está nervoso.

- Leu os jornais de hoje? Viu a tremenda repercussão que está tendo a quei ma de livros? Houve até alguns comentários menos nobres sobre a festa, nos sa tradicional festa!

Filomena baixou a cabeça e disse:

- Acho que as pessoas estão enlouquecendo! Opor-se dessa forma à Igreja e à s suas decisões... - As coisas estão mudando, Filomena, as pessoas estão mudando. Estão pensa ndo, refletindo, raciocinando... - E que tem isso? Estamos fazendo o que é certo! - Será? -- Fernando, o que há com você? - Não sei. Acho que erramos, Filomena, acho que estamos cometendo erros so bre erros. Sinto-me perdido e confuso... Já não tenho tanta certeza das de cisões que tomei nos últimos anos. Tantas coisas me atormentam... Inclusive nós... - E sobre isso que vim conversar. - E o que há para conversar?

LUCIUS / SANDRA CARNEIRO 309

- Nós precisamos colaborar com minha mãe uma vez mais.

- E o que é que dona Isabel quer desta vez?

- Ela só deseja nosso bem, como sempre.

- Será, Filomena? A mãe que induz a filha ao aborto quer mesmo o bem del a? Tenho refletido sobre isso às vezes. Você poderia ter morrido, Filome na! Como pudemos nos submeter? - Era para nosso bem, Fernando, somente para o nosso bem. E foi bom. Veja , você tem sua vida, seguindo sua vocação. E eu tenho minha vida...

Filomena não pôde continuar.

- Vê? Você também não tem tanta convicção de que fizemos o melhor.

- Éramos muito jovens, Fernando, inexperientes. O que mais poderíamos faz er? Criar um grande escândalo na família? E a Igreja, o que haveria de fa zer? Não, minha mãe estava certa, como está agora. Ela quer que Cíntia vá servir a Deus e à I greja. E pede sua ajuda.

Fernando se levantou e, andando de um lado para outro, dizia:

- De jeito nenhum, desta vez não vou me envolver! Cíntia é que deve escol her. Não, de modo algum vou participar de mais uma mentira!

- Minha mãe quer seu auxílio para que meu pai possa convencer Ricardo a a utorizar. Você tem de cooperar, Fernando.

- Não! Eu não vou colaborar com mais nenhum ato de autoritarismo de dona Isabel! Não vou! Já chega!

Sentando-se, tomou as mãos de Filomena entre as suas e disse:

- Não percebe, Filomena? Estamos nos tomando pessoas infelizes, tomando d ecisões sem amor, sem respeito, que estão nos levando à infelicidade... N ão podemos continuar com

310 RENASCER. DA ESPERANÇA isso, não podemos tomar outras pessoas infelizes também! Já chega o que fi zemos a Emilie... Temos de parar com isso!

- Você pode até estar certo, mas não podemos fugir do nosso passado! E el e nos alcançou neste momento. - O que quer dizer?

- Temos de ajudar minha mãe, Fernando, ou...

- Ou o quê?

- Ela vai tomar público nosso passado.

- Tia Isabel está blefando, Filomena, não percebe?

- Acho que não.

- Então acha que ela vai manchar a própria família?

- Embora seja minha mãe, ela é capaz de nos prejudicar, sim. É capaz de t udo para atingir seus objetivos. Não quero nem pensar em me indispor com minha mãe, Fernando.

- E ficaremos reféns dela pelo resto de nossas vidas? É isso que quer? Semp re que ela pretender algo, teremos de concordar ou então nossa vida será ex posta? Qual é o tipo de vida que vamos ter, Filomena?

Fernando baixou a cabeça, buscando esconder as lágrimas, enquanto Filome na também chorava. Ele tocou as mãos da prima com ternura e disse:

- Filomena, que tipo de vida já temos? Não somos felizes... Como poderem os ser, da maneira como estamos agindo?

- Por favor, Fernando, você precisa colaborar... Não é muito, é só dizer que de vez em quando a menina tem comportamentos estranhos, como a mãe. É só isso. O que custa?

-- Filomena, pelo amor de Deus, você não vê? Pelo que há de mais sagrado neste mundo, pelo amor que sentimos um pelo outro, não podemos continua r a mentir, a enganar! - Não acha possível que ela seja parecida com a mãe? - E se for, Filomena, e daí? Emilie não nos fez nada. Filomena se levantou, completamente atordoada, e disse: Lucius / SANDRA CARNEIRO 311

- Chega! Não quero ouvir mais nenhuma palavra! Emilie era uma ameaça, uma doente! Uma... uma... possuída! Fizemos o que devia ser feito, agimo s corretamente. Minha mãe sempre quis preservar nossa família! Ela quer o melhor para tod os nós. Se não quer ajudar, está bem! Não poderei impedir a fúria de minh a mãe! Ela é poderosa demais, você sabe! Não sei o que será de mim, e muito menos de você! Ela é influente junto à Igreja, e nem ouso imaginar as conseqüências disso para v ocê...

- Estou confuso. Veja o que está ocorrendo agora, após a queima daqueles li vros! As pessoas estão revoltadas. Fala-se do Espiritismo em toda parte, em todos os lugares. É só disso que se fala, Filomena. Estou apreensivo. Acho que as coisas n ão saíram como esperávamos... Acho que nada está saindo como desejávamos . Precisamos repensar nossas atitudes...

Ela respirou fundo e considerou:

- Fernando, você está se deixando abalar e não está raciocinando com clarez a. Nossa família apoia e serve à Igreja há séculos e continuaremos a fazê-l o, queira você ou não.

- Nós servimos à Igreja ou nos servimos dela, Filomena?

- Como assim? O que está dizendo?

- Mais nos servimos dela para nossos próprios objetivos do que servimos a e la com sinceridade.

- Não é verdade!

- Claro que é. E é isso que está acontecendo outra vez. Tia Isabel quer liv rar-se de Cíntia para livrar-se de Emilie, porque não quer ninguém ameaçand o seus planos, seu domínio, e usa a Igreja. Usa, você entende?

Fernando, que segurava firmemente os ombros da prima, agora a sacudia com o para fazê-la despertar.

- Não é verdade, não é verdade! - ela repetia.

- Você sabe que é, você sabe!

312 RENASCER DA ESPERANÇA

Filomena soltou-se do primo e correu para a saída; por um instante se viro u dizendo, enquanto enxugava as lágrimas:

Você vai se arrepender, Fernando!

Sem esperar resposta, subiu na carruagem, que imediataente partiu e desapa receu na estrada escura. Fernando não teve tempo de detê-la.

Lucius / SANDRA CARNEIRO

313

Capítulo Trinta e três

Miguel acompanhou os amigos até a carruagem e ao se despedir disse a Emil ie, com o carinho de um pai:

- Que Deus a abençoe, orientando suas decisões. Ficaremos sempre felizes em recebê-la. Envie-nos todas as mensagens que receber e as encaminharemo s a Paris. Pelo teor das que já recebeu, é fácil constatar que um trabalho sério desponta de suas mãos.

- Como estou aprendendo, Miguel, sou apenas instrumento.

- Só que um instrumento precisa estar devidamente afinado e preparado. Pel o que percebo, as vicissitudes em sua vida foram parte dessa preparação.

- Sinto que o momento do trabalho se aproxima. Como disse antes, sei que alguma tarefa me espera.

E suspirando finalizou:

- Não sei o que será de minha vida daqui para a frente. Tudo o que presenc iei aqui, as convulsões que se intensificam, transformando pensamentos e a titudes, me fazem perceber que o mundo está mudando. Não é apenas minha vida

315 que está de cabeça para baixo; tudo à minha volta parece em mutação: ver dades antes assumidas como absolutas são revistas; muitos passam a compr eender melhor o que até então era considerado diabólico; são investigados fenômenos dos quais em período recente se acreditava que todos deveriam manter distância. Indi scutivelmente, o mundo está mudando...

Miguel sorriu, apreciando o amadurecimento da jovem que começava a ent ender com mais clareza as circunstâncias que marcavam aquele momento. Depois de dar um abraço carinhoso em Jairo, Miguel tirou do bolso algumas folhas de papel dobradas e as entregou ao amigo, dizendo:

- É uma mensagem de Lucrécia que recebi ontem à noite. Tem alguns recadin hos também para Emilie. Ela está bem, Jairo, e espera que continue sendo forte.

Após abraçá-lo outra vez, Jairo entrou na carruagem e Miguel disse, antes de se afastar:

- Caso precise de ajuda em relação às investigações ou a qualquer outra que stão, não hesite em nos avisar. Estaremos aqui para o que for necessário.

Jairo sorriu, acenando para o amigo, que contemplava a carruagem a se dista nciar. Quando não pôde mais divisá-lo, Jairo abriu os papéis que recebera e pôs-se a ler a singela carta que a esposa lhe enviara, rompendo, pelas mãos de Miguel, o muro que separava as duas dimensões da vida. Conforto e alegria o envolv eram e seguiu pela estrada sentindo na alma suave confiança.

Emilie, entretanto, não se sentia tão leve. Seus pensamentos se detinham n os últimos meses de sua vida e no quanto ela havia mudado; pensava na filh a, no marido, nos pais e irmãos; lembravase de Lucrécia e se espantava com a força daqu ela mulher. Depois pensava no futuro e em como deveria conduzir sua vida: o que fazer, como resolver seus problemas. E assim, mergulhada nas

316 RENASCER DA ESPERANÇA preocupações sobre o que lhe reservava o futuro, esteve pensativa e silencio sa por toda a viagem, que durou mais de oito horas.

Já era noite quando desceram da carruagem em Bilbao. Jairo pediu a Emilie que o aguardasse enquanto comprava os tíquetes para o último trecho da v iagem. Ela procurou ocultarse dos transeuntes atrás da carruagem. Depois de algum tempo, começ ou a ficar inquieta; Jairo estava demorando demais. Ela foi ficando impaci ente, porém sabia que deveria esperar sem se expor. De onde estava podia ver fotos suas esta mpadas em cartazes colados na parede externa do prédio no qual Jairo entra ra para comprar os tíquetes. Finalmente, depois de longa espera, viu o amigo saindo em sua direção. Seu semblante era de apreensão e ansiedade. Antes que ela tivess e tempo de formular qualquer raciocínio, percebeu que logo atrás de Jairo vinha Pimentel, o de legado que investigava seu desaparecimento. Ela estremeceu e gelou, mas pr ocurou manter a calma e o controle. Jairo aproximou-se devagar, tentando dar-lhe tempo p ara se preparar. Assim que chegou bem perto, Pimentel afirmou:

- Muito bem, moço, terá de prosseguir a viagem sozinho. Seu tio vai ficar de tido. Eu avisei que não se ausentasse da cidade. Tivemos solicitação para ac elerar as investigações e Jairo é nossa principal testemunha, desde que sua esposa mo rreu. Encarregaram-me de interrogá-lo outra vez, surgiram novas questões, e ele não estava. Assim, tenho ordem de prendê-lo; deverá permanecer detido até a conclusão d as investigações afinal, deu proteção a uma fugitiva assassina e desequilib rada.

Ouvindo o delegado falar dela daquela maneira, Emilie ameaçou responder, d ando um passo à frente. Jairo, atento, impediu o que ela estava a ponto de fazer, segurando seu braço e dizendo:

-- Não se preocupe comigo, ficarei bem. Agora vá, cuide dos meus negócios enquanto estiver por aqui, pois para isto você veio: para ajudar-me com me u trabalho. Seu pai o

Lucius / SANDRA CARNEIRO 317 enviou para me auxiliar, e o que preciso agora é que cuide dos negócios por mim.

Tirando do bolso a carta que Miguel lhe entregara, colocou-a nas mãos de E milie e acrescentou:

- Aqui está o que fomos buscar em Barcelona. Entregue ao Sandoval; ele es tá esperando para fecharmos os termos da negociação nos meses de alta pro dução.

Colocando a carta nas mãos de Emilie, Jairo as apertou com muita força, co mo a pedir calma e confiança, enquanto depositava nelas os tíquetes que ac abara de comprar. Emilie ficou paralisada vendo Pimentel e Jairo descerem a rua em direção à prisão. Teve o impulso de correr até o delegado e se entregar, revelando to da a verdade; por outro lado, ainda sentia o aperto das mãos de Jairo nas suas como a orie ntá-la a nada fazer. Ela nem se deu conta do tempo que ficou ali parada, ind ecisa.

Mesmo depois de Pimentel e Jairo desaparecerem, ela continuou parada, sem ação. Só quando sentiu alguém tocá-la e falar com ela foi que despertou do entorpecimento. Era o cocheiro da carruagem que a sacudia pelo braço. - Moço, moço, a carruagem vai partir, vamos! Moço! Emilie acompanhou o homem, que guardou a pequena mala de Jairo e, assim que todos se acomod aram, partiu rumo à vila. Durante a curta viagem, ia angustiada, sem saber como deveria agir.

Ao descer da carruagem, próximo à encosta, Emilie ficou parada, observando o carro desaparecer. Virou-se então para a pequena trilha que dava na pra ia, e na casinha de Lucrécia. Sem saber o que fazer, sentou-se sob o céu estrelado e chorou sentida. Depois de algum tempo, enxugou as lágrimas e foi para o penhasco , onde meses antes Lucrécia a encontrara.

Aproximou-se da beira do penhasco, sentindo o vento gelado que vinha do oceano. Olhou o céu e o mar, bem como as

318 RENASCER DA ESPERANÇA fracas luzes ao longe, na pequena vila de pescadores. Sentou-se e ficou a co ntemplar a beleza do cenário, oprimida pela situação, entristecida pela pris ão de Jairo e sem saber o que fazer de sua vida. Entretanto, ali, diante da amplidão do céu e da beleza majestosa do mar, pensou na grandeza e na sabedoria infinita s de Deus. Mais uma vez, tudo o que tinha vivido passou pela sua mente e ela baixou a cabeça; entre lágrimas, orou agradecendo ao Criador pela oportunidade da vida e pediu que a guiasse, como o fizera até aquele momento. Novas forças brotaram em seu coração e ela se deixou envolver por elas. Levantou-se resoluta e desc eu a trilha que levava à praia.

Ao chegar na cabana, Emilie sorriu, feliz em rever a casa de Lucrécia. Guar dou as roupas que estavam na mala de Jairo e se deitou. Ao despertar pela m anhã, sabia exatamente o que deveria fazer. Lá pelo meio do dia foi para a casa de Sara . Apesar das circunstâncias, reencontrar aqueles amigos foi uma grande aleg ria. Contou-lhes, em detalhes, tudo o que se passara em Barcelona, e como o que parecia um desastre se transformava em uma grande oportunidade para o avanço do Espi ritismo. A noite acompanhou a família à reunião de estudos, e ali narrou a todos o que prese nciara em sua viagem, além de informá-los sobre a prisão de Jairo.

Ao se despedir dos amigos, Emilie abraçou-os com extremado carinho, espec ialmente Sara. Embora seu coração estivesse dolorido e seu ânimo abatido, a sensação de cumprimento do dever a mantinha firme para o que pretendia fazer.

Voltou para a pequena casa e adormeceu serenamente. Na manhã seguinte, a ntes mesmo que o sol raiasse, ela se levantou e com o Novo Testamento n as mãos, sentada diante da janela da cozinha, de onde podia ver o mar, leu, chorou e orou, pe dindo a Deus proteção e alento para o que sabia que deveria fazer. Já não ti nha dúvidas. Enquanto orava, imensa alegria invadiu seu

Lucius / SANDRA CARNEIRO 319 coração deixando-a ainda mais determinada. Quando terminou, foi até o luga r onde guardava os livros e pegou O Livro dos Espíritos depois foi ao qua rto e trocou a calça e a camisa masculinas que usava por um vestido, que pertencera a Lucrécia Ajustou-o ao corpo, pois as medidas eram bem maiores do que as suas. Colocou por fim um pesado casaco e com os dois livros nas mãos saiu, trancando a porta. Apesar de agasalhada subiu a encosta com dificuldade, sentindo o forte ven to a gelar-lhe os pés, as mãos, o rosto, o corpo inteiro. Percebeu que o ar parecia mais pe sado, como se oferecesse resistência concreta à sua caminhada.

O frio se intensificava cada vez mais no outono. E aquela manhã estava par ticularmente gélida. Sem olhar para trás, Emilie chegou ao topo da encosta e aguardou pela carruagem que por ali passava regularmente e a levaria à província; a condu ção logo apareceu e a jovem partiu.

Ao se aproximar da cidade, Emilie tinha o coração descompassado. Reconh ecia que não estava procedendo de modo racional, mas era compelida a ob edecer ao sentimento de dever para com Jairo e Lucrécia. Sabia que as conseqüências de sua dec isão eram imprevisíveis, e ao mesmo tempo pensava que nada mais a deteria .

O carro parou e a moça desceu devagar. Caminhando pela rua, notava os olha res curiosos sobre ela; lembrou-se do dia em que fugira do sanatório e for a alvo de igual curiosidade. Só que desta vez ajeitou de leve os curtos cabelos e, levantan do a cabeça com determinação, mirou a rua que a levaria à cadeia e avançou com passos firmes.

À medida que se acercava do antigo prédio que abrigava a delegacia e a cad eia, mais acelerado batia seu coração. Observava a construção e de alguma forma lhe parecia conhecê-la, muito embora nunca tivesse posto os pés naquele

320 RENASCER DA ESPERANÇA prédio. Mas a impressão de que já estivera ali crescia; era como se algo e m sua mente despertasse enquanto caminhava na direção do prédio.

Diante da porta de entrada, parou. Sentia como se tivesse vivido tudo aquil o antes e soubesse exatamente o que aconteceria a seguir - inclusive quem s eria a pessoa que a atenderia. Permanecia envolvida pelas emoções quando, subitamente, a porta se abriu. Pimentel assustou-se ao ver a jovem e indagou, reconhec endo-a como o sobrinho de Jairo:

- O que é isso? O que quer aqui? O que faz vestindo essas roupas?

Emilie, como se despertasse, entrou na delegacia dizendo:

- Preciso falar com o senhor, com licença.

Perplexo, Pimentel afastou-se para a jovem passar. Emilie entrou na sala e, olhando para o delegado, pediu:

- Se for possível, gostaria de ver Jairo, por favor. Pimentel a acompanhou cal ado até a cela. Ao vê-la, Jairo levantou-se e disse, em tom de reprovação:

- O que está fazendo aqui? Deveria estar cuidando do pescado!

Emilie sorriu, ignorando a reprimenda:

- Como está, Jairo? Eles estão cuidando bem de você?

- Estou bem, não tem com que se preocupar; volte e cuide de tudo!

O tom de voz era quase suplicante, porém Emilie estava decidida. Voltando- se para Pimentel, que observava sem nada entender, disse:

- Muito bem, senhor Pimentel, pode soltar Jairo.

- O que está acontecendo aqui? Você não era mudo? Alheia às perguntas de Pimentel, ela prosseguiu:

- Ele não precisa ficar na prisão. Não tem mais nada para responder, e o se nhor nada mais tem a investigar. Aqui estou

Lucius / SANDRA CARNEIRO 321 eu, Emilie de Bourbon e Valença, à sua disposição para ser inquirida, conta nto que solte Jairo imediatamente.

Surpreso, Pimentel pegou o papel com a fotografia e olhando para a jovem à sua frente, disse:

- Emilie?

- Estou um pouco diferente, é verdade. Minha nova vida as novas responsa bilidades e necessidades me obrigaram a mudar algumas coisas, mas sou eu mesma, pode ter certeza.

E permanecendo em pé, diante de Pimentel, aduziu:

- Solte Jairo e responderei a todas as suas perguntas. E mais, farei tudo o que quiser para cooperar. Poderá dizer que foi o senhor que me descobriu e m e prendeu.

Pimentel, compreendendo bem que Emilie falava sobre o dinheiro oferecido p ela sua captura ou por informações que levassem até ela, disse, procurando controlar o espanto:

- Por que está fazendo isso?

- Lucrécia salvou minha vida. Assim que melhorei, parti. Quando soube de sua morte, retomei preocupada com Jairo e me ofereci para ajudá-lo; é o m ínimo que devo àqueles que se arriscaram tanto por minha causa e tanto me ensinaram. É me u dever e quero cumpri-lo.

E, estendendo os braços unidos na direção do delegado:

- Aqui estou. Quer algemar-me? Pareço perigosa, senhor?

- Não creio ser necessário algemá-la. Quanto a soltar Jairo... Ele deve respo nder por dar proteção a uma...

- Ele e Lucrécia não sabiam quem eu era; souberam apenas quando o médico me atendeu; logo em seguida parti sem lhes dar tempo de tomar qualquer atitude. São pessoas simples, estrangeiros... Se o soltar, delegado, vou cooperar em tudo.

Pimentel olhou para a jovem por alguns instantes tentando perscrutar-lhe as intenções. Ela o incentivou:

- Não acha que é uma boa troca?

322 RENASCER DA ESPERANÇA pimentel refletiu andando pela sala e então, pegando na gaveta da mesa um molho de chaves, disse:

- Muito bem, vou soltá-lo; se você não cooperar, mando prendê-lo novament e. Está combinado.

Jairo ouviu a conversa. Pimentel abriu a cela, dizendo:

- Pode ir, por ora está livre, mas insisto que não se ausente da cidade.

Emilie aproximou-se e disse:

- Poderei responder a todas as perguntas, delegado; deixe Jairo sossegado, p or favor.

Jairo saiu da cela devagar e perguntou:

- Por que fez isso, Emilie?

Ela, abraçando-o carinhosamente, explicou:

- Chegou a hora. Não posso me ocultar para sempre e sinto que o momento d a verdade é agora. Preciso esclarecer os fatos que me envolveram, para po der prosseguir. Enquanto estiver escondida, não saberei exatamente para onde dirigir meus e sforços, ao passo que estando livre, com tudo claro, fico preparada para re tomar o controle de meu próprio destino. Vocês me ajudaram muito, Jairo, e jamais poderei ret ribuir tanto carinho.

Jairo tinha os olhos marejados. Emilie pediu:

- Não se preocupe, querido irmão. A verdade haverá de triunfar! Hoje, mais do que nunca, acredito nisso! Deus estará rne amparando. Estou pronta, ac redite! Ajude-me orando por mim, mas não se entristeça. Dê-me a força de que eu necessito!

Sem poder discordar, Jairo apenas respondeu: - Que Deus a abençoe, Emilie !

Abraçaram-se mais uma vez, em despedida. Pimentel devolveu a Jairo seus p oucos pertences e o acompanhou até a porta. Assim que ele saiu, o delegad o se virou para Emilie, que entrara na cela que o amigo acabara de desocupar e esperava Lucius / SANDRA CARNEIRO 323

sentada na cama, serenamente. Ele trancou a porta, dizendo:

- vou informar a seus familiares que a encontrei. Quando voltar, quero que responda a algumas perguntas.

- Conforme disse, vou cooperar em tudo, delegado. Ainda mal podendo acre ditar que tinha Emilie nas mãos, Pimentel adentrou o casarão e retomou c om um auxiliar, que foi até a cela observar a jovem recém-chegada. Depois de dar algumas orient ações, o delegado finalizou:

- Não deixe ninguém entrar aqui enquanto eu estiver fora, entendeu? Acho que todos ignoram sua presença aqui, e quero que permaneça em sigilo até minha volta. Só então vamos decidir se aguardamos os familiares ou se tomamos o fato públ ico imediatamente. Antes de qualquer coisa quero conversar com a moça, pa ra verificar até onde poderá me ajudar.

Pimentel saiu e o auxiliar se sentou na cadeira do delegado; em seguida an dou de um lado a outro da sala. Sua curiosidade era enorme. Após alguns mo mentos de indecisão, acercou-se da cela. Emilie lia o Novo Testamento. Quando o viu, levantou a cabeça e o encarou. Ele chegou mais perto e por fim, vencido pela curios idade, perguntou:

- É mesmo a tal Emilie de Bourbon e Valença? Não se parece com a foto que está por aí.

- É que cortei e tingi os cabelos; por isso estou mudada.

- Não é só isso... Seus olhos parecem diferentes dos da foto.

- Pessoalmente tudo fica diferente. Ele pensou por instantes e disse:

- Acho que sim. Por que se entregou?

- Quero minha vida de volta e não vou conseguir se continuar fugindo. - Bom, moça, suponho que saiba o que a espera. Emilie refletiu um pouco e sorriu, dizendo:

- Acho que ninguém sabe claramente o que encontrará

324 RENASCER DA ESPERANÇA no futuro, por isso estou confiante. Podem aparecer surpresas boas no camin ho.

- E ruins também! Tem gente importante procurando pela senhora. Estão fu riosos!

- Talvez estejam, mas saberão que tudo foi um grande engano e que tive me us motivos ao fugir. Aquele lugar em que me colocaram é terrível, sabe?

- Eu posso imaginar. Ninguém por aqui gosta de passar nem perto. Só que a sua fuga fez muita gente se prejudicar. Não sei como foi que conseguiu e scapar. Ninguém consegue...

- Para o senhor ver como as coisas muitas vezes acontecem de maneira ines perada.

Balançando a cabeça em sinal afirmativo, o jovem afastou-se dizendo:

- É... vamos esperar... vamos ver...

Cerca de uma hora mais tarde, Pimentel voltou satisfeito. Depois de pendurar o chapéu e a capa, virou-se para o auxiliar:

- Pronto! Enviei um mensageiro a Barcelona. Creio que amanhã, no mais tard ar, alguém da família estará aqui.

Enquanto o rapaz o observava em silêncio, Pimentel se ajeitou confortavel mente na cadeira e, pegando papel e pena, escreveu longo texto contando, a seu modo, como chegara até a fugitiva. Tão logo terminou, foi até a cela. Emilie continuava lendo. Ele entregou-lhe o papel, dizendo: - É dessa forma que quero comunicar sua captura. Emilie leu o texto, depois sorriu ligeiramente e assentiu:

- Por mim, tudo bem. Não me importo com o que está afirmando, desde que n ão prejudique Jairo. Pelo que vejo o está isentando de qualquer responsab ilidade. Por mim está ótimo. Sustento sua estória.

- Excelente. Assim, vamos nos dar muito bem. Depois passou a carta ao auxil iar e disse:

Lucius / SANDRA CARNEIRO 325

- Agora quero que vá até o jornal e entregue essas informações ao Lucas; el e está ansioso por uma grande matéria. Amanhã os principais jornais da regi ão já terão a notícia. Vá, depressa!

O assistente de Pimentel saiu e ele então, abrindo a porta da cela, pediu a Emilie que o acompanhasse a outra sala:

- Venha, preciso muito conversar com você.

Emilie seguia pouco adiante do delegado. Entraram por um longo corredor e a moça começou a se sentir angustiada. Quando chegaram a imponente por ta de madeira maciça, escura e pesada, Pimentel disse:

- É aqui.

Emilie, ao invés de abrir a porta, tocou a madeira com uma das mãos e falou :

- Que porta pesada! Parece-me tão familiar... Meu Deus... que vertigem... ac ho que vou... Pimentel segurou-a, batendo de leve em seu rosto, mas ela desmaiou. Ele a carregou para dentro e acomodou-a em uma das grandes cadeiras, igualment e de madeira maciça, ao redor de uma mesa retangular. Pegou um jarro com água que havia sobre a mesa e a despejou na cabeça de Emilie, que despertou assustada:

- O que... o que houve?

- Parece que desmaiou... Ou foi algum truque? Buscando se reequilibrar, Emi lie retrucou:

- Não há truque algum, foi uma vertigem.

Seguiu-se prolongado silêncio. Por fim, Pimentel sentou-se à cabeceira da m esa e disse:

- Muito bem, quero que me conte tudo; tudo o que aconteceu desde que fugiu do sanatório, detalhe por detalhe.

Emilie pôs-se a narrar: suas experiências no sanatório; o jeito como fugira, andando a esmo pelas estreitas ruelas de

326 RENASCER DA ESPERANÇA

Bilbao; depois a tentativa de suicídio... Emocionou-se muito ao contar com o a voz da filha a salvara, sem se estender em pormenores, temerosa de que o delegado a julgasse insana. Queria estar no controle de si mesma, tanto quanto pudesse.

Quando ela terminou, após quase duas horas de relato, Pimentel levantou-se e caminhou de um lado a outro da sala; daí retomou, sentou-se e ordenou:

- De novo, tudo outra vez, com todos os detalhes.

- Mas acabei de narrar tudo, estou cansada...

- Quero ouvir outra vez.

Emilie respirou profundamente, buscando concentrar-se, e reiniciou a narrat iva. Quase ao final da tarde, extenuada, concluiu pela segunda vez sua hist ória. Pimentel pediu que servissem algo para comerem. Enquanto comiam, Emilie examinava atentamente a sala sem janelas, escura e sombria, com uma pequena porta lateral. Afirmou então a Pimentel:

- Este lugar me parece familiar, apesar de nunca o ter visitado antes.

- Dizem que há fantasmas por aqui.

- Por quê? O que tem este lugar?

- Não sabe?

- Não.

- Era uma antiga prisão utilizada pela Igreja durante a Inquisição, para int errogar os acusados. Atrás daquela porta ficava a sala para onde eram levado s os mais relutantes...

Emilie estremeceu ao compreender que, de algum modo e por alguma razão, ela conhecia muito bem aquele prédio.

LUCIUS I SANDRA CARNEIRO 327

Capítulo Trinta e quatro

Terminmada a leve refeição, Pimentel disse, saindo da mesa:

- Por hoje chega. Creio que a senhora cooperou bastante e agora tenho todas as informações de que necessito para finalizar meu relatório e entregar o caso amanhã.

Emilie olhou-o sem entender e ele acrescentou:

- O melhor a fazer é descansar. Amanhã será um dia agitado. Creio que seus parentes virão para levá-la. Certamente será um dia estafante.

Buscando controlar-se, mas sentindo o coração acelerado, Emilie quis saber:

- O senhor me interrogou duas vezes; esteve comigo durante todo o dia. Qu al sua conclusão? Ainda acha que sou louca ou assassina?

Pimentel olhou-a e disse, sério:

- O que acho ou deixo de achar pouco importa. A família de seu marido é mu ito poderosa e conduz, junto ao poder público de Barcelona, extenso proces so contra a senhora. Minha função neste caso foi localizá-la, obedecendo a ordens de meus super iores hierárquicos. Sendo assim, minha opinião

329 sequer será ouvida. Cumpri as ordens e isso me será benéfico; infelizmente nada mais posso fazer, mesmo que o deseje.

- Seja como for, eu insisto, delegado. Qual é sua opinião pessoal? O que o senhor percebeu durante o tempo em que esteve comigo?

Sem responder, Pimentel puxou a cadeira de Emilie, ajudando-a a se levant ar, acompanhou-a até a pesada porta e a seguiu rumo à cela. Emilie igualm ente mantinha-se calada, sentindo o coração opresso e inquieto. Depois de fechar a cela quan do já passava pela porta que separava a sua sala do corredor onde se alojav am os presos, disse:

- Não notei na senhora nada que a pudesse desabonar. Antes que Emilie tivess e condição de falar qualquer coisa, ele fechou a porta atrás de si.

Emilie sentiu-se envolvida por receios e dúvidas. Ainda que ouvisse os trans euntes na rua, à medida que a noite ia chegando maior se fazia o silêncio. E la, então, foi quase subjugada pelas pesadas sensações de medo e angústia. Temia pel o dia seguinte, pois sabia que ninguém a poderia amparar naquela hora. Se us amigos não teriam poder para livrá-la. Estava só. Percebeu que os antigos receios, inseguran ças e ressentimentos começavam a querer dominá-la. Olhou, então, para o pe queno exemplar do Novo Testamento que repousava sobre a cama. Pegou-o e abriu-o ao ac aso. Leu os três últimos capítulos do Evangelho segundo Lucas, que cont avam em pormenores o martírio de Jesus, nas mãos de seu próprio povo e nas dos romanos. Comov ida, leu trecho que relata o momento de Sua morte e a gloriosa ressurreiçã o. Fechou o livro e apertou-o contra o peito, suspirando fundo. Sentiu-se fortalecida ao pens ar que o Mestre por excelência, o enviado de Deus, puro e pleno de amor, ha via sofrido todo tipo de agressões e violências. Ele havia sido realmente injustiçado pe la maldade humana. E a despeito de tudo tivera forças para

330 RENASCER DA ESPERANÇA se manter confiante no Pai, suportando o sofrimento até o final e nos legand o a maior de todas as lições. Se houvesse hesitado, se tivesse permitido que o medo e a dificuldade o impedissem de cumprir a missão para a qual fora enviado, a história humana seria outra.

Pensando em Jesus, Emilie se esticou na cama dura e desconfortável. Ajeito u-se o quanto pôde e, recordando as palavras de Pimentel sobre como seria o dia seguinte, procurou serenar as emoções e dormir. Aos poucos sua mente se acalmou e ela sentiu pesada sonolência. Estava quase adormecendo quando ouviu fort e rumor de vozes que se aproximavam da cela. Eram gargalhadas estrondosas.

Emilie sentou-se na cama, ainda meio atordoada. Viu então figuras apavoran tes junto à cela. Eram dois homens e duas mulheres, de aparência aterrador a, vestidos com farrapos que lembravam trajes antigos. Um deles balançou a porta, como se q uisesse entrar. Emilie, assustada, disse:

- A porta está trancada. Quem são vocês? Exibindo largo e tenebroso sorriso , a criatura zombou:

- Não seja idiota! Podemos entrar em quase todos os lugares. Se não consegu imos entrar em sua cela, não importa; continuaremos a nos divertir a meia d istância. Já que você, estupidamente, facilitou, concluiremos mais depressa aquilo que começamos.

- Quem são vocês? O que querem comigo? Horrorizada, Emilie se perguntav a como pessoas naquelas condições haviam podido entrar no prédio; contu do, estava incapaz de raciocinar com clareza. Uma das mulheres disse:

- Como se sente de novo neste lugar, só que desta vez ocupando o outro lad o, o de vítima? É terrível, não? Injustiçada, acusada de algo que não come teu! Vê como é desesperador? Espero que sofra muito, muito mesmo! Pensa que se tomou

Lucius /SANDRA CARNEIRO 331 melhor por ter se associado a esses que dizem querer ajudar? Você não é co mo eles, nem de longe. Seus amigos! E muitos deles se julgam melhores do q ue de fato são. De qualquer forma, não poderão ajudá-la! Não agora! Você está totalmente à nossa mercê! Finalmente faremos justiça!

Emilie, embora com os pensamentos vindo em avalanche e as emoções descon troladas, acabou por perceber o que acontecia e disse:

- Quem são vocês? Por que querem me destruir? São os espíritos que vêm me perseguindo há muito tempo, não?

Dessa vez foi a outra entidade feminina que respondeu:

- Será que enfim nos reconhece? Pensou que se escondendo nessa nova vida , nesse corpo, com esse jeito de boazinha, poderia livrar-se de nós? Sab emos muito bem quem você é e vai pagar pelos crimes que cometeu!

Emilie se calou e, num esforço imenso, pediu mentalmente a Deus que a aju dasse. Depois perguntou:

- O que querem de mim?

- Que pague pelo que fez: cada dor, cada sofrimento que causou, que pague em dobro!

Sem esperar que a mulher terminasse, um dos homens disse:

- Gosta de sua cela? Ela é bem melhor do que os lugares aos quais enviava s uas vítimas.

Emilie, em oração, pedia socorro a Deus. As quatro entidades continuava m com provocações e ameaças, dizendo como a fariam sofrer daquele momen to em diante. Lançavam-lhe todo tipo de impropérios e acusações, porém ela se mantinha quieta, fitan do-os e orando em pensamento. Incomodado com seu silêncio, o mais agressi vo disse:

- Pois bem, agora prefere calar? Não vai implorar por piedade e misericórd ia, como fizemos?

- Só posso dizer-lhe que a justiça pertence a Deus, meu ir-

RENASCER DA ESPERANÇA 332

- respondeu Emilie, lembrando-se de algumas experiências que tivera, em se u núcleo de estudos, com espíritos vingativos.

- Justiça! Não ouse pronunciar essa palavra. Que entende você de justiça? P ois vai pagar! Você nunca se livrará de nós!

E virando-se para os outros, chamou:

- Vamos, temos de concluir nossos planos em relação a Cíntia.

Ao ouvir o nome da filha Emilie estremeceu e, sem possibilidade de se contro lar, disse:

- O que querem com ela? É só uma menina. É a mim que querem destruir, n ão é?

- Dupla satisfação! Destruindo as duas temos a vingança completa! - Não, por favor! Não façam mal a minha filhinha, por favor! Vendo-a supli car, uma das mulheres disse:

- Até que enfim implora por piedade, nem que seja pela filha. Olhando para o que parecia liderar o grupo, aduziu:

- Acho que devemos incrementar nossos planos para com a menina. Isolá-la num convento é pouco... Pensemos em algo mais interessante...

Emilie caiu em pranto, não conseguindo mais se conter. Percebia o olhar de ódio e ressentimento naqueles espíritos e temeu pela filha, de quem não pod eria cuidar. Ao vê-la em desespero, o líder disse:

- Vamos, temos inúmeras providências a tomar.

E suas imagens se desfizerem diante dos olhos de Emilie, que, sentada na ca ma, chorava aflita. O guarda que ficava na outra sala entrou espantado:

- O que foi? Sente-se mal?

Emilie se limitou a menear a cabeça negativamente. Chorou oculto, na ânsi a de compreender o que aquelas entidades lhe haviam dito. Sem ter noção e xata das razões de tal perseguição, sa-

Lucius / SANDRA CARNEIRO 333 bia, pelos conhecimentos espíritas adquiridos, que as tristes criaturas lhe co bravam algo referente ao pretérito. Estava consciente disso e sentia a culpa b rotar em sua alma. Mal podia encará-los não só pelo estado em que se apresentav am, como por ter contribuído para que chegassem a ele. E apenas repetia ba ixinho:

- Meu Deus, me ajude e me perdoe! Ampare-me nesta hora em que devo passar por esta prova! Sei que no passado agi contra Suas leis perfeitas e por isso agora me encontro nesta situação. Proteja-me, eu peço, dê-me forças...

Era quase dia quando por fim adormeceu. Mal amanhecera e Filomena já descia a escadaria de mármore italiano. Anda va ansiosa de um lado para outro, sabendo que tinha de falar com a mãe, d ar-lhe uma resposta sobre o encontro com Fernando. Ela tentara evitar aquela conversa, mas a mãe insistia e cobrava uma definição, ameaçando-a e também ao primo. Filo mena foi até a cozinha, o que raramente fazia, e disse, áspera:

- Sirvam-me já o café!

Voltou à mesa e sentou-se. Estava exausta e odiava a sobrinha que a coloca ra naquela situação. Sentia-se igualmente indignada com Emilie por ter se intrometido naquela família, onde não era bem recebida! Distraiu-se com os próprios receios e ne m notou a serviçal que, postada ao seu lado, dizia:

- Senhora Filomena, o mensageiro. Senhora Filomena... Foi tirada de seus p ensamentos pela voz de Isabel, que descia as escadas:

- Pelo amor de Deus, Filomena, acorde! Se queria dormir deveria ter ficad o na cama! Olhe o mensageiro!

Filomena se levantou e arrancou a carta das mãos do rapaz. Ele disse:

334 RENASCER DA ESPERANÇA

Vim de Bilbao. Cheguei ontem à noite, com orientação de trazer a carta hoj e pela manhã. É urgente. Diz respeito à mulher desaparecida.

Quando Filomena ia abrir a carta, a mãe tirou-a de suas mãos e leu. Depois d isse, sorrindo:

- Finalmente a acharam, esses incompetentes! Demoraram quase dez meses, e enfim a encontraram!

Olhando para o mensageiro, ordenou:

- Acompanhe-me. vou escrever a resposta e você a leva imediatamente. Quer o essa mulher na prisão! Desta vez, uma prisão de fato, e não um hospício !

Foi até a biblioteca e redigiu breve carta, que entregou ao mensageiro. Ao sair, toparam com Ricardo, que ofegante perguntou:

- Ela foi localizada? Isabel respondeu:

- Está na cadeia, em Bilbao. Já escrevi uma carta ao delegado dando instru ções. Creio que devemos ir com o delegado de Barcelona, responsável pelo c aso; assim evitaremos qualquer inconveniente.

E olhando para o mensageiro, disse:

- Vá depressa! Quero que chegue antes de nós para preparar o caminho. E re force para esse tal Pimentel que não quero uma palavra na impressa. Se ele se antecipar, vai perder a recompensa - da qual, aliás, faz tanta questão. Agora vá!

O rapaz já ia sair quando Ricardo segurou-o pelo braço e perguntou:

Como ela está? Está bem? Está doente? - Eu não a vi, senhor, ninguém a viu. O delegado trancou-a na cadeia, e po r mais que pedíssemos não deixou ninguém se aproximar. Disse que a família não ia querer. Esperto esse Pimentel - disse Filomena.

Lucius / SANDRA CARNEIRO 335

- Vá depressa! - insistiu Isabel.

Ricardo, visivelmente alterado, soltou o braço do jovem que num instante se pôs a caminho. Depois sentou-se à mesa, desolado. Sentia as forças des aparecerem. A mãe terminou rápido o café e todos se dirigiram à biblioteca para definir o que fariam. Ricardo, sentado quieto, ouvia a opinião dos demais. Dom Felipe de u seu parecer e Isabel foi taxativa:

- Devemos mandá-la para uma prisão de alta segurança, assim ela não conseg uirá mais fugir. Ao que Ricardo interveio:

- Mãe, ela não cometeu nenhum crime. Está doente! Como mandá-la para uma prisão comum?

- Ela não matou você e Cíntia por um triz. Não vamos começar tudo isso out ra vez.

- Aceitei enviá-la para o sanatório porque lá poderia ter uma chance. Quan to a trancá-la numa prisão comum, não concordo!

- E se ela fugir de novo, Ricardo? O que faremos? E se atacar alguém no san atório? Poderá piorar ainda mais a própria situação!

- Não importa, não concordarei! Ela não é criminosa, é somente uma pessoa desequilibrada!

- Ricardo, talvez sua mãe tenha razão - disse dom Felipe.

- Não, pai, não vou admitir que a prendam como uma assassina qualquer!

- Mas é o que ela é! - interferiu Filomena.

- Fique quieta, Filomena, não se meta em minha vida! - Você pensa que é todo-poderoso, não é, Ricardo? Não sabe nem cuidar de s ua vida, de sua família!

- Do que está falando?

- Escolheu uma mulher amaldiçoada para ser sua esposa; tem uma filha que também é mentalmente perturbada...

- O que foi que disse?

336 RENASCER DA ESPERANÇA

Füomena ergueu ainda mais o rosto e continuou:

- Isso mesmo que ouviu! Cíntia é como a mãe, tem alucinações e sofre crise s de desequilíbrio. É igualmente amaldiçoada! - Cale-se, Filomena, você não sabe o que está dizendo!

- Não me calo coisa nenhuma! Você acha que pode ter tudo o que quer, não é? Não segue regras, não acata normas, e não pensa no bem desta família. Pois não vai mais ser assim! Vamos mandá-la para o convento!

Filomena gritava, descontrolada. Ricardo estava a ponto de estapeá-la, quand o Isabel interveio:

- Acalme-se, Filomena, e sente-se. Sei que você sofre tentando proteger noss a família.

E olhando para dom Felipe, disse:

- Bem, senhor meu marido, creio que o seu poder de chefe desta casa está se ndo contestado. Prevejo momentos difíceis para nossa família, se sua autori dade não for respeitada.

Dom Felipe, vendo sua posição ameaçada diante da esposa, que sabia autoritá ria e enérgica, disse:

- Eu quero ver quem haverá de me desafiar! Sei o que é melhor para todos. Sou responsável inclusive pelo que acontece ao povo desta cidade. Nossa fa mília sempre será referência de honra e de tradição. Iremos a Bilbao e veremos em que c ondição se encontra Emilie; dependendo de como estiver, seguirá direto par a a prisão ou a enviaremos de volta ao sanatório, com reforço da segurança. Quanto à men ina, quero saber qual a prova de que ela é como a mãe.

- Foi Fernando quem me disse, papai, que ela tem atitudes estranhas, com o a mãe. Eu mesma presenciei vários comportamentos esquisitos da menina. Acho que precisa de ajuda, e logo!

- Pois bem, ela irá para o convento.

-- Não, pai, por favor, não faça isso! - gritava Ricardo. Lucius / SANDRA CARNEIRO 337

- Vai ser bom para ela, Ricardo. Ficará lá por um tempo e avaliaremos sua con duta: se melhorar, poderá sair; caso contrário, servirá à Igreja e estará pro tegida do mal que a ronda.

- Não, pai, por favor, ela é tudo o que me resta, não faça isso!

Dom Felipe levantou-se e, abrindo a porta da biblioteca sentenciou:

- Isabel, providencie que a menina seja levada ao convento imediatamente.

- Não, pai, por favor!

- Cale-se, Ricardo! Você já nos envergonhou bastante, trazendo inúmeros p roblemas para dentro desta casa! Agora tenha juízo e obedeça!

Ricardo, aflito, seguiu a mãe, na esperança de que ela o ajudasse a demover o pai da idéia. Filomena ficou na biblioteca e depois que todos saíram foi a té a grande janela que dava para o jardim e sorriu, satisfeita e aliviada.

338 RENASCER. DA ESPERANÇA

Capítulo

Trinta e cinco

Para Emilie, extenuada pelas últimas emoções e pela noite maldormida, o di a se arrastava. Sentada na cama, aguardava ansiosa os fatos que seu retomo haveria de desencadear.

Pouco falara com o delegado, que logo pela manhã lhe trouxera o jornal, onde se estampava a fantástica atuação da polícia de Bilbao ao localizá-la. No f inal da tarde ele surgiu enfurecido, cela adentro:

- Seus familiares são gente realmente difícil! - O que houve?

- Ameaçam-me de não receber a recompensa.... Sua sogra, foi ela que mando u o mensageiro me avisar... Veja só que sovina. Não quer nenhum noticiári o! Quer tudo abafado... Por quê?

- Acho que desejam preservar o nome da família de escândalos...

- Será? E por que permitiram que sua fotografia, seu nome e especialmente sua fuga tivessem ampla divulgação? Deve haver outra razão para que busq uem ocultar seu regresso. Devem ter outros planos para você, Emilie, e acredito que não sej am nada bons.

339

Emilie suspirou:

- Deus é quem sabe, Pimentel! Só peço a Ele que me ajude, me dê forças par a suportar.

Pimentel olhou-a intrigado:

- Não está com medo?

- Claro que estou! Não obstante, o que posso fazer? Reconheço que tudo que nos acontece é conseqüência de nossos atos. Assim, que Deus me ajude a se r forte e vencer as dificuldades que, provavelmente, eu mesma ocasionei.

- Como? O que você fez?

- Não sei ao certo. O que sei é que nossas atitudes mesquinhas, aparenteme nte sem conseqüências, vão somando ao nosso redor energias densas e atraem pessoas e situações em consonância com o que projetamos.

- Que teoria complicada é essa? Do que está falando? Emilie sustentou seu o lhar por alguns instantes; depois, sem vacilar, continuou:

- São muito amplos os novos conhecimentos que estão ao nosso alcance. Isso que lhe disse é apenas um aspecto da visão que os conceitos, as pesquisas e as experiências espíritas estão trazendo para nós.

Pimentel aproximou-se da cela e baixando o tom de voz, quase num sussurro, inquiriu:

- Conhece o Espiritismo? Já participou de alguma reunião das mesas girante s? Já falou com os mortos?

Emilie esboçou leve sorriso e disse:

- Essa é a impressão que todos têm: que ser espírita e talar com os mortos; que o Espiritismo é constituído de sessões mórbidas e as pessoas que a ele s e associam são supersticiosas e ignorantes. Não é nada disso. Trata-se de conceitos ba seado em fatos comprovados. A relação com o invisível se dá, sim, acontece o tempo todo; e todas as pessoas, acreditem ou não

340 RENASCER DA ESPERANÇA estão em contato com os mortos!

Fazendo o sinal da cruz, Pimentel disse:

Deus nos livre!

- É verdade, delegado, estão sendo pesquisados e estudados centenas e cen tenas de casos, no mundo inteiro. Médiuns que nunca se encontraram, que v ivem em países diferentes, recebem mensagens semelhantes tratando de temas complexos, sobre os quais eles mesmos não têm qualquer domínio ou sequer conhecime nto. É impressionante! E muitos outros fatos estão sendo estudados por pessoas sérias - social, inte lectual e moralmente. - No entanto, o que a Igreja pensa dessa religião é terrível! Diz que é o de mônio que se comunica através das pessoas.

- E acha que a Igreja poderia dizer outra coisa? Delegado, o Espiritismo busc a, em essência, resgatar os valores cristãos, que a própria Igreja desvirtuou ao longo dos séculos. Descortina uma enormidade de explicações sobre as lutas, as d ores e os sofrimentos que fazem parte da vida de todos nós. O maior valor desse novo conjunto de ensinamentos está em levar o homem de volta a Deus, de forma raciocina da: não mais pelo medo ou pela imposição, e sim pela vontade consciente.

Pimentel ia fazer outra pergunta, interessado que estava no desenrolar da co nversa, mas o auxiliar entrou esbaforido e disse:

- Chegaram! Eles estão aqui, em sua sala.

- Os parentes de Emilie? - perguntou o delegado.

- Eles mesmos.

- Quantos são?

- Acho que cinco. E foi difícil impedir a entrada de curiosos.

- Pois reforce a vigilância. Quero todos em segurança. Olhando para Emilie, perguntou:

Está preparada? Ela respirou fundo e inclinou a cabeça afirmativamente. Sentia o coração mui to acelerado dentro do peito, o ar lhe faltava

Lucius / SANDRA CARNEIRO 341 e quase não conseguia respirar. Então, lembrou-se de Lucrécia, com seu olh ar meigo e terno, e súbita serenidade apossou-se dela. Quando o delegado s aiu com o auxiliar, ela procurou compor-se o mais que pôde. Penteou os cabelos curtos, arrumo u o vestido e acomodou-se na cama, pedindo forças a Deus. Enquanto orava, divisou as entidades que a haviam abordado na noite anterior. Vinham vorazes ao seu encontro, porém algo as impediu de continuar e se conservaram a distância. Emilie v iu uma luz aproximar-se e dentro dela desenhar-se o rosto amigo da avó, Heloise, que a tranqüilizou:

- Tenha fé, minha querida, confie. Você não está nem estará só. As lutas se mpre serão árduas. É seu destino. Mas a vitória está em suas mãos.

Emilie, sentindo paz e confiança indescritíveis, ia responder quando a imag em se desfez diante dela. Pimentel abriu a porta, seguido dos familiares da jovem. O rosto de Ricardo foi o primeiro que viu. Depois Isabel, chispando ódio em sua dir eção. Em seguida o sogro e mais duas pessoas que ela não conhecia. Ao vê-la , Isabel disse logo:

- Não é à-toa que demoraram a encontrá-la. Agora entendo. Está ridiculame nte irreconhecível. Que humilhante!

Emilie permaneceu calada, de corpo ereto e rosto sereno. Ao vê-la Ricardo sentiu o coração disparar. Achou-a ainda mais linda com os cabelos escuros e curtos. Conteve o ímpeto de entrar na cela e abraçá-la, mantendo aparente frieza. Dom Feli pe aproximou-se da grade que os separava, olhou a jovem e virou-se para o delegado, dizendo:

- É ela. Aqui está sua recompensa e uma carta autorizando o delegado de Bar celona, Endo Garcia, a transferi-la.

Sem pegar a recompensa das mãos de dom Felipe, o delegado perguntou:

- Para onde será transferida?

342 RENASCER. DA ESPERANÇA

- Para onde acharmos mais adequado. Essa moça já nos deu bastante proble ma.

Ricardo adiantou-se e, fitando a esposa, disse:

- Vamos levá-la para outro sanatório, mais perto de Barcelona. É mais segu ro e ela terá melhor tratamento. Há médicos competentes que poderão ajudá- la.

- Compreendo - respondeu o delegado, agora se apossando da vultosa quant ia que dom Felipe passava às suas mãos.

Emilie continuava quieta, surpreendentemente calma. Ricardo a observava, e sperando reação similar à que tivera quando fora levada à força para o san atório. Contudo, ela nada dizia e aparentava tranqüilidade. Ele estava intrigado. Quando dom Felipe se afastou um pouco, para cuidar dos detalhes burocráticos da trans ferência, Ricardo achegou-se sutilmente à grade e disse baixinho:

- Você está bem?

- Estou, Ricardo, não se preocupe.

Emilie acompanhava tudo como se estivesse ausente do próprio corpo, como se assistisse a um episódio do qual não fosse a principal personagem.

Dom Felipe encerrou seus acertos com Pimentel, que abriu a cela para End o Garcia, delegado de Barcelona que viera com a família. Junto estava ta mbém um médico, que pretendiam pudesse ajudá-los, sedando Emilie em caso de necessidade. End o entrou e algemou a moça, que estendera os braços calmamente. O médico seguia tudo pelo lado de fora da cela. Ao notar a serenidade da nora, Isabel se enfureceu int eriormente. Percebia que Emilie estava equilibrada e isso a incomodava ainda mais.

Quando o policial a convidou a acompanhá-lo, a jovem solicitou:

- Por favor, gostaria que o senhor levasse meus livros. Estão ali, na cama.

LUCIUS | SANDRA CARNEIRO 343

Endo Garcia pegou os livros e entregou-os a dom Felipe; depois voltou-se pa ra ela:

- Vamos. Emilie respirou fundo, buscando conservar a serenidade, e os seguiu com p assos firmes. Ao saírem do prédio, uma multidão aguardava e dela vinham o s brados:

- Herege!

- Assassina! Endo gritou:

- Deixem-nos passar! Abram espaço!

O tumulto era grande. Os guardas de Pimentel fizeram um cordão de isolam ento, possibilitando a passagem pela multidão. Ao se aproximar da carrua gem blindada por grades de proteção, Emilie avistou rostos amigos: Jairo, Sara, seu marido e filhos, e todos os companheiros do núcleo espírita que freqüentava, bem co mo Miguel, todos estavam ali. Vendo-os, emocionou-se profundamente e as lágrimas lh e desceram pela face. Chegou à carruagem e a colocaram para dentro. Rapi damente os cavalos foram postos em marcha. Ela ainda pôde ver os amigos e reconheceu a voz de Miguel, gritando em meio à multidão:

- Emilie, faremos tudo o que pudermos para ajudá-la, você não está sozinha!

Conseguiu sorrir para eles, agradecida pelo gesto de solidariedade e apoio. A carruagem partiu depressa e sumiu na estrada que a levaria de volta a Barc elona.

Na mansão era grande a movimentação dos serviçais. U bispo de Barcelona viera pessoalmente informar Cíntia de que naquele dia seria levada para o imponente convento que ficava alguns quilômetros da cidade. As freiras que a levariam chegar am logo em seguida, e esperavam na biblioteca quando o

344 RENASCER DA ESPERANÇA bispo desceu com a menina, que chorava angustiada. Ao ver Filomena ao pé d a escada, ela gritou:

- Tia Filomena, me ajude! Por favor, não quero ir a lugar nenhum!

- Calma, é para seu próprio bem. Dom Antônio não explicou tudo? Você vai f icar lá por uns tempos, para estudar, preparar-se e ver se tem o chamado d e Deus para servir à Santa Madre Igreja. É um privilégio!

- Mas eu não quero ser freira, tia!

- É ainda muito jovem para saber o que é melhor para você. Não gosta de a judar outras pessoas, como faz seu primo Fernando?

- Gosto - assentiu a garota, enxugando as lágrimas.

- Então poderá ajudar as freiras e um dia, quem sabe, até mesmo ter seu próp rio orfanato.

Cíntia calou-se. Puxada pelas mãos do bispo, foi quase arrastada para a bib lioteca. Alguns dos servidores mais antigos da casa, que nutriam simpatia p or ela, observavam penalizados. Filomena foi também até a biblioteca e ao entrar fechou a por ta. Dom Antônio apresentou Cíntia à madre superiora:

-- Aqui está a menina. Precisa ser educada com rigor, e cuidadosamente vig iada, para que não venha a ter problemas iguais aos da mãe.

Cíntia ouvia com os olhos cheios de lágrimas e o coração apertado. Queria fu gir, correr dali, mas estava presa.

A madre superiora passou a mão pela sua cabeça enquanto garantia:

- Não se preocupe, Eminência, faremos o melhor. tem sido encaminhadas a nós nos últimos anos, com problemas semelhantes. Sabemos como conduzir situações como essa. Fique tranqüilo. Além do mais, a família merece toda a consideração.

Lucius I SANDRA CARNEIRO 345 Pegou então as mãos da menina, que relutava, suplicante:

- Não quero ir! Não quero ir! Por favor, tia, me ajude!

- Já disse que é para o seu bem, Cíntia! Você é impertinente! Todos aqui es tamos tentando lhe dar ajuda, e parece que não quer recebê-la!

A madre procurou explicar:

- Esses casos são assim mesmo. Quanto mais relutam, mais estão sob as for ças malignas, precisando de cuidados! Vamos, irmãs. Quanto antes partirmo s, mais depressa essa menina será socorrida!

E agarrando as mãos de Cíntia começou a puxá-la em direção à porta da bibli oteca. Ela relutava. Enrijeceu o corpo e a madre a levava com dificuldade. O bispo foi em seu auxílio e os dois, segurando um em cada mão, arrastaram a menina pa ra fora.

Ao sair, Cíntia viu o primo, que pálido e estático assistia à cena, sem dizer n ada. Ela gritou:

- Tio Fernando, me ajude! Não quero ir, por favor! Eu não quero! Por favor, me ajude!

Fernando permanecia paralisado, e a menina continuava:

- Faça alguma coisa, tio Fernando, por favor! Eu não quero ir! Eu quero meu pai!

A madre superiora e o bispo, insensíveis à resistência e à aflição da menina, arrastaram-na até a carruagem e a puseram dentro dela, com três freiras a se gurá-la. Com a situação sob controle, o bispo despediu-se das freiras e retomou à cas a. Fernando, na porta, não sabia o que fazer.

Dom Antônio dirigiu-se a Filomena:

- Está feito. Diga a dom Felipe e especialmente a dona Isabel que seu pedid o foi atendido. A menina receberá a proteção de que necessita. Embora estej a nervosa agora, haverá de se adaptar à disciplina do convento.

346 RENASCER DA ESPERANÇA

Depois de se despedir de Filomena, virou-se para Fernando e disse, estende ndo a mão:

- Venha ver-me assim que puder. O Novo Mundo precisa de missionários!

Fernando beijou-lhe a mão e disse:

- Sim, Eminência.

O jovem quedou-se mudo à entrada da mansão até a carruagem do bispo desa parecer. Sentia-se fraco, desolado. Os gritos de Cíntia ecoavam em sua m ente e dilaceravam seu coração. Filomena estava ao seu lado. Ele, então, virou-se para ela e per guntou:

- O que foi que aconteceu, Filomena? Como convenceram Ricardo a fazer u ma barbaridade dessas?

- Ricardo pouco tem a ver com isso. Foi impotente em impedir minha mãe de fazer o que era necessário.

E notando o olhar triste do primo, disse:

- Ela vai ficar bem, Fernando; está assustada, mas ficará bem.

- Você não compreende, não é? Nada lhe importa além de você mesma. Não enxerga nada, ninguém!

- Ora, Fernando, não é verdade - ela tocava suavemente as mãos do primo, que as puxou dizendo:

- Nem a mim você respeita, não se importa com o que penso nem com o que sinto. Nunca se importou! Você só pensa em satisfazer suas vontades, exa tamente como sua mãe! - Fernando, está me ofendendo!

- Por que fizeram isso com a menina? Diga!

- Você sabe muito bem. Eu tinha de tomar alguma atitude, do contrário nós dois iríamos sofrer as conseqüências. E temos muito mais a perder do que e la, que é somente uma criança.

- Cíntia é uma criança adorável, sensível e amorosa. Ela é a filha que eu gos taria de ter tido e não pude. Vê-la sofrer me entristece e atormenta. Não vou admitir!

Lucius / SANDRA CARNEIRO 347

Filomena encarou o primo com desdém e rebateu:

- E o que acha que pode fazer? Agora que o bispo assumiu diretamente a con dução da questão, o caso fugiu da sua alçada. Nada mais lhe resta, a não s er me agradecer por poder continuar tranqüilo, tendo sua vida e seus planos preservados.

Fernando olhou demoradamente para a prima, depois disse, descendo as esc adas:

- Vou pensar em algo. Não suporto ver a menina sofrendo assim. Não é just o!

- Afinal, o que veio fazer aqui? - perguntou Filomena, ao vê-lo sair.

- Saber notícias sobre a mãe da Cíntia, mas isso já não é importante.

- Ela foi encontrada e está a caminho da prisão - gritou a prima dessa vez.

Fernando não lhe deu mais atenção. Desceu as escadas e em passos rápidos d esapareceu na trilha que levava à paróquia.

Ao perceber que não respondeu, Filomena entrou resmungando:

- Tolo! 348 RENASCER DA ESPERANÇA

Capítulo Trinta e seis

Após a partida de Emilie, seus amigos se reuniram na casa de Sara, onde o a mbiente era de preocupação; Jairo, em especial, mostrava-se triste e pensat ivo. Miguel procurou encorajá-lo:

- Vamos, Jairo, o que é isso? Anime-se!

- Não compreendo... Essa moça apareceu do nada, pondo minha vida de cabeç a para baixo; ainda assim, aos poucos fui aceitando, sobretudo porque Luc récia via algo de especial nela e até o último momento de vida me fez prometer que a apo iaria. Eu mesmo comecei a notar a transformação que se operou nela. Não h á dúvida de que os princípios espíritas tiveram profundo impacto em suas atitudes, de tal ma neira que ela se entregou à polícia por minha causa, depois de ter fugido em desespero. Contudo, não entendo o significado de tudo isso. Agora Emilie está de volta ao ponto de partida, ou seja, está presa outra vez. O que será de sua vida d aqui por diante, Miguel?

Colocando a mão no ombro do amigo, Miguel respondeu:

- Vamos nos empenhar em ajudá-la. Contratei um advogado muito competente que a defenderá. Já começou a estudar o caso e creio que em breve me tr ará notícias sobre a situação no

349 tocante aos aspectos legais. Acima de tudo, porém, precisamos continuar o rando e confiando em Deus. E não concordo com você, Jairo, quando diz que ela voltou ao ponto de partida. Ela mudou, está diferente! E isso, por si só, altera toda a si tuação.

- Será que não errou ao se entregar? E se essa decisão tiver sido uma precipi tação da parte dela?

- Não se angustie assim, Jairo. Confiemos em Deus. Lembre-se de nossa ma is recente experiência, com a queima de livros! Pensávamos que poderia i mpedir o crescimento do Espiritismo, e veja o que de fato está havendo!

Sara, então, aproximou-se de Miguel e perguntou:

- O caso continua repercutindo a nosso favor?

- Cada vez mais. Os jornais ainda o noticiam; periódicos da França també m mencionaram o ocorrido. A intolerância vem sendo combatida e reprovada . Poucos dias depois do que aconteceu, em nosso grupo de estudos já dobrara o número de intere ssados em entender melhor do que trata o Espiritismo; tenho contato com o utros grupos onde o mesmo efeito se verifica. As repercussões são sentidas até na França. No sso amigo livreiro nos disse que recebeu informações de que também lá os g rupos de estudos cresceram, e assegurou que nunca houve tantas encomendas de livros espíri tas. Parece que todos querem saber o que havia nas obras queimadas. Creio que aqueles que se deixaram dominar pela intolerância não contaram com a curiosidade das p essoas, nem com a divulgação gratuita e em grande escala que teríamos a pa rtir do evento. Eles nos prestaram um grande serviço. Por isso, Jairo, devemos orar por Em ilie e esperar pelos acontecimentos. Os enviados de Deus, que nos orientam e auxiliam, usam em nosso favor até o mal que supostos inimigos nos desejem fazer. Po rtanto, aguardemos com confiança em nossos instrutores espirituais. E vam os agir com inteligência, utilizando

350 RENASCER DA ESPERANÇA todos os recursos disponíveis para dar conta da parte que nos cabe. Enlaçando o amigo em forte abraço, completou: - Anime-se, Jairo, e lembre-s e de que ela não está sozinha! Mais aliviado, Jairo sorriu e deixou-se envo lver pela ternura dos amigos. Miguel permaneceu com eles até o fim do dia, e participou do grupo de estudos naquela noite. Na manhã seguinte, partiu para Barcelona com o firme propósito de ajudar Emilie.

A jovem estava sentada à beira da alta janela, por onde entrava o pouco de claridade que iluminava parcamente o pequeno quarto. Ela se sentia asfixiad a, oprimida naquele ambiente.

A porta se abriu e o médico que a trouxera entrou, junto com um enfermeiro , perguntando:

- Como passou de ontem?

- Dentro do possível nestas circunstâncias, passei bem - foi a resposta.

- Teve algum tipo de dificuldade para conciliar o sono?

- Muita dificuldade... Por fim, consegui cochilar e descansar um pouco.

- Sente-se fraca ou cansada agora?

- Não se preocupe, doutor, estou perfeitamente bem; dentro do possível, co mo já disse. É claro que me sinto triste e machucada com tudo o que está a contecendo, mas vou superar.

O médico, com sorriso irônico, concordou:

- Certamente que vai.

Em seguida determinou ao enfermeiro que aplicasse na paciente uma injeção calmante. Ao sair do quarto, informou:

- Seu antigo médico está aqui e quer vê-la, Emilie não respondeu. Depois que o enfermeiro deixou o quarto, levantou-s e, tomou um pouco de água e voltou a se

Lucius / SANDRA CARNEIRO 351 sentar. Não a alimentavam desde que chegara. Emilie fitou a marca deixada pela agulha em seu braço e lágrimas se formaram em seus olhos. Ela sabia que outra vez tentariam enfraquecê-la, para acentuar seu desequilíbrio. Sem comida e tom ando calmantes, ela ficaria mais e mais amortecida.

A porta se abriu novamente e Francisco entrou. Emilie não perdeu a serenida de; sentada à beira da janela, saudou:

- Como vai, doutor? Não me surpreendo em vê-lo. Na realidade já o esperav a.

O médico se colocou bem perto de Emilie, que o olhava com firmeza; acaricio u-lhe os cabelos, o rosto, e depois disse, quase sussurrando:

- O que fez com seus lindos cabelos?

- Não gosta deles escuros? Eu gostei, acho que me fazem parecer menos frág il.

Afastando-se ligeiramente, ele concordou:

- De fato, parece menos frágil. Vejo que sarou completamente da pneumonia . Você quase morreu, sabia disso?

- Obrigada por ter cuidado de mim naquela ocasião. Francisco, então, segur ou suas mãos e disse:

- Tive saudade, Emilie, muita saudade. Continuo interessado em ajudá-la.

Levando as mãos de Emilie aos lábios, beijou-as várias vezes. Depois conti nuou:

- Só insisto que você precisa cooperar. - Afinal, Francisco, o que você quer?

- O mesmo de antes: quero você.

Emilie se ergueu, caminhou até a mesa, tomou mais um pouco de água e, vol tando-se para o médico, disse:

- Você me auxiliou em um momento grave, e serei sempre agradecida, mas nada mudou em meus sentimentos, Francisco. Apesar de tudo, ainda amo meu marido.

352 RENASCER DA ESPERANÇA

O médico se aproximou de novo, quase encostando seu rosto no dela, e pro vocou:

-- Onde está seu marido agora? Já a abandonou uma vez e está repetindo isso . De que adianta sua dedicação a ele? E inútil! Ricardo não retribui seu am or...

- Não importa, Francisco, meu coração ainda é dele. Embora me sinta rea lmente magoada com tudo o que houve, continuo tentando compreender as r azões de meu marido,

Emilie se afastou do médico e voltou para junto da janela. Francisco se irri tou, dizendo rispidamente:

- Persiste em relutar, não é? Poderíamos desfrutar momentos inesquecíveis.. . Eu a ajudaria nesta clínica, com os médicos, atenuando as orientações que eles têm da parte de sua família. Poderia forçá-los a alimentá-la melhor, a levá-la para tomar sol. Você vai definhar aqui dentro, Emilie, até morrer. Não se iluda, s entindo-se forte. Sei que está diferente, contaram-me que está mais controlada e vejo q ue é verdade. Todavia, não se iluda: essa força não vai resistir por muito t empo. Em breve, sem comida e com a medicação, ficará debilitada. E aí, minha querida , não vai adiantar me pedir ajuda. Estou aqui me oferecendo para auxiliá-la . Se me recusar, será a última vez, e não mais serei piedoso.

Emilie ergueu os olhos, fitando-o, e disse intrépida: - Como já disse, Francisco, serei eternamente grata por ter me assistido. S em você talvez não estivesse aqui agora, mas nada tenho a lhe oferecer além de amizade, justamente como antes. Sinto muito.

O médico olhou para ela com desdém e disse:

- Não tanto quanto sentirá mais tarde.

Em seguida se levantou e saiu, sem olhar para trás. Emilie deitou-se na cam a e, chorando, pediu a Deus que a amparasse, dando-lhe a força necessária p ara que fosse capaz de suportar tudo o que ainda estava por vir.

Lucius / SANDRA CARNEIRO 353

Capítulo Trinta e sete

Na mansão, Fernando subiu as escadas a passos rápidos, erguendo levemente a batina para não atrapalhar. Assim que entrou, cumprimentou lacônico a prima e a tia e indagou:

- Onde está Ricardo? Preciso falar com ele. Foi Filomena quem respondeu:

- Calma, sente-se conosco e tome o dêsjejum. Papai e Ricardo estão convers ando na biblioteca e creio que vão demorar. - Não, obrigado. Vou aguardar no jardim. Filomena segurou o primo, dizend o:

- Acalme-se, Fernando, o que você tem? Isabel se levantou, olhou-o fixament e e disse:

- Sábia sua decisão de nos apoiar com o caso de Cíntia; muito inteligente.

E afastou-se sem que o sobrinho pudesse fazer a pergunta que lhe vinha à me nte. Ele então a transferiu para Filomena:

- Do que ela está falando? Eu não apoiei coisa alguma! O que você aprontou , desta vez?

- Absolutamente nada. Fiz apenas o que é certo. Não precisamos prejudicar nossa vida por causa da menina. Ela é

355 muito jovem e, de qualquer modo, acho que a situação é temporária. Ricardo não permitirá que se tome freira.

Enquanto ela falava, indignado Fernando ouvia vagamente a discussão entre Ricardo e o pai, vinda da biblioteca. O jovem padre andava de um lado pa ra outro, sem dar muita atenção à prima. Finalmente Ricardo saiu da biblioteca, abatido. Pas sou por Fernando e mal o cumprimentou; subiu depressa, sem olhar para os l ados.

Fernando se apressou em entrar na biblioteca para conversar com o tio. Ante s que o fizesse, Filomena segurou-lhe o braço com força e alertou:

- Não me contradiga, ou mais tarde se arrependerá muito. Aturdido pela amea ça, Fernando entrou. O tio estava de saída e, quando o viu, disse:

- É bom que tenha vindo, Fernando. Quero que entregue estes livros a dom Antônio, logo que o vir. Eles estavam com Emilie, na hora em que foi pres a. Um deles é um Novo Testamento e parece inofensivo. Mas este - ergueu-o e mostrou a cap a ao padre - é um dos que foram queimados. Quero que o entregue ao bispo; ele saberá o que fazer. Além do mais, parece que as nossas suspeitas sobre Emilie se confir mam. Está mesmo desequilibrada e envolvida com essa seita...

Fernando pegou os livros e ainda tentou deter o tio:

- Preciso falar com o senhor sobre Cíntia...

Dom Felipe, entretanto, já passando pela porta da biblioteca, foi taxativo:

- Esse assunto está encerrado nesta casa. Acabei de ter a última discussão sobre ele com Ricardo, e não quero mais falar nisso. Agora preciso ir, impo rtantes compromissos me aguardam.

Fernando, carregando os livros, saiu da casa aborrecido e voltou para a par óquia. Lá chegando, foi direto para o quarto e se trancou. Sentou-se na cam a com a cabeça entre as mãos,

356 RENASCER DA ESPERANÇA angustiado, quase desesperado, por não saber de que maneira defender Cínti a.

Aturdido, levantou-se e andou de um lado para outro. O Livro dos Espíritos estava sobre a mesa e o atraía. Procurava afastar a atenção dele e se conc entrar no problema que queria resolver.

Depois de algum tempo, esgotado, sentou-se outra vez na cama, olhou demo radamente para o livro e não se conteve: folheou-o, entre temeroso e curi oso. Acabou por abri-lo no início e, cedendo ao impulso, pôs-se a ler a introdução. A medid a que avançava na leitura, impressionava-se com a lucidez dos pensamentos a li expressos. Passou o dia trancado no quarto. Ao final da tarde, o auxiliar dos serviços da igreja bateu à porta:

- Padre Fernando, está quase na hora da missa. Sobressaltado, ele ergueu a cabeça e custou um pouco a responder: - Estou quase pronto.

Após celebrar a missa e cumprimentar os fiéis, o que fez com muita dificul dade naquele dia, Fernando se trancou novamente no quarto e mergulhou no l ivro até altas horas. Foi só quando percebeu o cantar dos primeiros pássaros que o fechou e se deitou. Sentia-se encantado com o que acabara de ler. Entregou-se à meditação e por fim adormeceu. Logo que amanheceu, ele já estava acordado e retomava a le itura.

Assim continuou ao longo de quase duas semanas. Dividia se entre o livro, as preocupações sobre o que fazer com a situação de Cíntia e a celebração das missas para as quais estava escalado. Naquele período, passou a fugir cada vez mais de suas obrigações. Rezava tão-somente as missas que não conseguia transferi r para o encarregado da paróquia e não aceitou entrar no confessionário uma única vez. Na verdade , fugia dos fiéis.

O pároco, estranhando o comportamento do rapaz, questionou:

Lucius / SANDRA CARNEIRO 357

- Afinal, Fernando, o que acontece? Você está distante meu filho; o que o in quieta?

- Estou preocupado com Cíntia.

- Ela está sob o amparo da Igreja e não há melhor lugar para uma jovem co m os problemas que ela tem.

- A que problemas se refere, padre?

- Ora, Fernando, a mãe foi enfim reconduzida ao sanatório, e não parece e star melhorando. A menina não pode se aproximar dela. Acho que a família tomou uma sábia decisão.

Fernando suspirou, concluindo que não seria entendido pelo eminente repres entante da Igreja. Quando fez menção de se afastar, o padre o seguiu e dis se:

- Por que fica tanto em seu quarto, meu filho? O que tem você?

- Estou estudando, padre. Precisamos estudar para melhor servir a Deus, não é?

Desvencilhando-se do padre, Fernando voltou a se trancar no quarto. Estava terminando de ler O Livro dos Espíritos e vinha absorvendo o conteúdo da Doutrina Espírita com clareza extraordinária. Tudo nela fazia sentido e lhe trazia a compreen são de muitas coisas que sempre questionara inutilmente em seus estudos teo lógicos. Ali, naquele livro, as respostas às suas maiores e mais profundas dúvidas existenc iais pareciam saltar-lhe aos olhos e aliviar seu coração.

Apesar de sentir que novo horizonte se abria ao seu entendimento, Fernando estava ciente de que teria problemas sérios a enfrentar. Como poderia aceit ar aqueles princípios e continuar sendo padre? Já não teria cabimento. Percebeu que na verdade jamais tivera: ele nunca desejara ser padre, apenas se sujeitara à p ressão da família. Essa e muitas outras reflexões o entretinham naquela manhã, quan do padre Enrico o chamou para uma conversa.

358 RENASCER DA ESPERANÇA

- Fernando, o bispo quer vê-lo ainda hoje. -- Hoje? Mas o que é tão urgente?

-- Vou adiantar-lhe para que se prepare. Ele tem sua nomeação para a viag em às Américas e quer vê-lo sem demora.

Fernando sentiu o sangue sumir-lhe do rosto e o coração bater descompassa do. O pároco, percebendo a surpresa do rapaz, tocou em seu ombro de leve, dizendo:

- É melhor se distanciar um pouco daqui, para o seu próprio bem.

Fernando andava apressado pela rua, dirigindo-se à catedral. Trazia o coraçã o pesado e a mente agitada, à procura do caminho certo a trilhar. Sentia-se confuso, indeciso: já não podia prosseguir na vida que antes escolhera, porém não sab ia o que seria melhor.

Diante da imensa catedral, Fernando deteve os passos. Contemplou demorad amente a construção majestosa, a cúpula que apontava em direção aos céus . Elevou então os olhos ao firmamento e pela primeira vez pensou em Deus como um ser verda deiro, um pai generoso e bom. Baixou o olhar e observou a enorme cruz da fachada. Mentalizou a imagem de Jesus e seu coração se encheu de ternura; o Mestre nazareno nu nca lhe parecera tão real e tão próximo. Até pouco tempo atrás, Jesus era para ele alguém distante, santo e inatingível; agora o sentia muito perto e percebia que efe tivamente o amava. Seus olhos encheram-se de lágrimas e ele considerou que, a despeito de estar ainda perdido e confuso, encontrara Jesus de uma nova maneira, e aquele Jesus enchia seu coração de esperança. "Ele é o caminho que devo se guir!" - pensou, afinal.

De repente, foi como se tudo se encaixasse em sua vida. Ele não conseguia compreender os seus sentimentos, nem sa-

Lucius / SANDRA CARNEIRO 359 bia ao certo o que faria, e no entanto se descobriu inexplicavelmente confia nte. Ergueu os ombros e, determinado, entrou na catedral à procura do bispo.

Dom Antônio recebeu-o em sua sala:

- Entre e feche a porta, Fernando.

O jovem se ajeitou na cadeira, sentindo desconforto diante da autoridade máxima da Igreja em Barcelona. Dom Antônio terminou o que escrevia, desca nsou a pena e olhou diretamente para Fernando, dizendo: - Muito bem, é chegada a hora. Acho que não devemos adiar mais sua missã o nas Américas. O novo continente precisa ser evangelizado e temos de fa zê-lo com o máximo empenho.

Estendendo para ele um envelope fechado, continuou:

- Aqui tem as orientações: a quem deverá procurar tão logo esteja no Rio de Janeiro e suas primeiras obrigações e responsabilidades.

Fernando abriu o envelope devagar, leu todas as páginas da carta e, quand o acabou, dobrou-as novamente e recolocou-as no envelope. Depois, encaran do o bispo, que se mantivera calado a observá-lo, pousou o envelope sobre a mesa e disse:

- Dom Antônio, não creio que tenha realmente uma missão a ser desempenha da no Brasil. Sinto que devo continuar aqui e prosseguir com meu trabalh o no orfanato. É lá o meu lugar.

- Padre Fernando, acho que não entendeu: a questão não está em discussão. Não estou aqui perguntando sua opinião. E uma ordem, e sabe que deve obe decê-la.

Fernando se levantou lentamente e respondeu:

- Não, dom Antônio, não acho que deva obedecê-la. Não mais. Até hoje fiz tudo aquilo que a Igreja me ordenou. Obedeci a todas as orientações receb idas, mesmo quando delas discordava. Busquei respeitar e defender os interesses da

360 RENASCER DA ESPERANÇA

Igreja, crendo que assim defendia os interesses de Deus na terra. Agora per cebo que me enganei.

- Do que está falando?

- Vou prosseguir meu caminho, dom Antônio, só que o farei a meu modo.

E retirando a batina que lhe cobria todo o corpo, Fernando a depôs na cadeir a e declarou: - A partir de hoje, dom Antônio, não estou mais a serviço da Igreja.

- Você não sabe o que está fazendo, rapaz! Vai negar seus votos?

- Aqueles que fiz à Igreja, sim; não aqueles que fiz a Deus. vou continuar a servi-lo, encontrando uma outra forma de fazê-lo.

- Está cometendo um grave erro. Seus familiares nunca aceitarão! Ninguém em sua família jamais deixou o compromisso com a Igreja. Você sofrerá a s conseqüências de seu ato.

- É possível, dom Antônio.

- Vai arrepender-se. Pegue a carta, recoloque sua batina, e eu me esforça rei para esquecer o que ouvi. Vamos, ninguém mais escutou, esqueçamos tod a essa bobagem!

- Não posso, dom Antônio, não vou continuar mentindo aos outros e a mim mesmo.

- Mentindo?

- Sim, tudo tem sido mentira: a conduta de minha família e minha vocação, que nunca existiu. Além disso, há certos dogmas da Igreja com os quais não posso mais concordar...

O bispo ergueu-se enfurecido e gritou:

- Pois saia imediatamente! Não quero ouvir mais nada! Heresia! Blasfêmia! Vergonha! Você é urna vergonha para sua família! Desapareça da minha fre nte ou não sei o que farei com você! Anátema!

Lucius / SANDRA CARNEIRO 361

Capítulo trinta e oito Na paróquia, padre Enrico esperava por Fernando. Assim que o viu entrar, i ndagou:

- E então? Quando pretende partir?

- Hoje mesmo, padre.

- Hoje? Por que tão depressa? - e notando que o jovem estava sem a batina - O que aconteceu com sua batina?

Fernando, a caminho do quarto enquanto conversava, respondeu:

- No lugar para onde vou, padre, certamente não vou precisar dela..

- Não compreendo. Sei que nas Américas os sacerdotes também usam batina .

Fernando entrou no quarto, sempre seguido pelo pároco. Abaixou-se, pegou a mala guardada debaixo da cama e, colocando-a sobre a mesa, começou a arranjar seus pertences. O padre não entendeu, ao ver que Fernando não punha na mala suas batina s, que permaneciam penduradas no armário.

- O que se passa, Fernando? Está contrariado por ter de partir, é isso?

363

Ele não levou mais do que vinte minutos para jogar dentro da mala tudo o que possuía. Quando terminou, respondeu:

- Não, padre, não estou contrariado. Um pouco assustado, mas feliz.

Fechou a mala e, olhando o quarto com carinho, disse:

- Estou pronto, padre. Adeus e obrigado por tudo.

O pároco, andando ao lado do rapaz, percebia que algo estava errado, sem, n o entanto, imaginar o que seria.

- Adeus? Fernando, por favor, diga-me o que está acontecendo. Você me ass usta! Alcançaram a porta da paróquia e Fernando, carregando a mala, disse:

- Acho que ainda não compreendeu, não é mesmo, padre?

- Não.

- Estou deixando a Igreja.

- O quê? Está maluco? Não pode fazer isso, você já fez seus votos e... além do mais...

- Ninguém em minha família jamais fez isso antes... Eu sei, padre, eu sei, mas para tudo há uma primeira vez.

- Não pode partir assim; venha, sente-se, vamos conversar com calma - e o segurava pelo braço.

- Não há mais nada a ser dito. Que Deus o abençoe e ilumine, padre, que Deu s ajude a Igreja!

Sem esperar pela resposta, Fernando saiu e desapareceu na trilha que levava ao orfanato. Lá, deixou a mala no quarto e logo trancou a porta, saindo de novo. Dessa vez, procurou uma carruagem que o conduzisse até o centro da cidade. Tinh a pressa. Sentia-se quase compelido a agir daquele modo. Ele não compreen dia, mas havia enorme convicção em todos os seus atos. Enquanto a carruagem avançava, ganhando as ruas principais que desembocavam no centro, Fernando se pre parava mentalmente para o que estava prestes a fazer.

364 RENASCER DA ESPERANÇA

Quando a carruagem parou em frente à delegacia, ele saltou e entrou confia nte. Aproximou-se do atendente e disse:

- Preciso falar com o responsável pelo caso de Emilie de Bourbon e Valença . Tenho importantes revelações a fazer.

- Quem é o senhor? - perguntou o atendente. - Sou primo do marido de Emilie. Por favor, é urgente! O atendente saiu e em alguns instantes retomou com o delegado Endo Garcia, que o cumpriment ou:

- Olá, Fernando, em que posso ajudá-lo?

- Tenho algo relevante para contar sobre esse caso, delegado, que com certe za mudará o rumo de suas investigações e também a vida de Emilie... talvez de toda a família...

- Pois então me acompanhe.

- Emilie tem advogado de defesa?

- Sim, um renomado advogado de Tarragona esteve aqui assim que ela chego u e assumiu a defesa.

- Eu gostaria que ele participasse de nossa conversa.

- Não vejo necessidade alguma.

- O senhor conhece bem dom Felipe, não conhece? E também dona Isabel.

- Sem dúvida.

- Então entenderá, quando souber de tudo, que é indispensável a presença de um advogado.

Endo se levantou e caminhou pela sala, em silêncio; depois olhou para Ferna ndo, intrigado: - Mas você não tem um advogado de sua confiança? - Prefiro que seja o mesmo que cuida do processo de Emilie. - Está certo. vou tentar localizá-lo. - Temos de agir depressa, delegado, muito depressa, ou não poderei contar o que sei.

As inesperadas afirmações de Fernando atiçavam a curiosidade do delegado:

Lucius / SANDRA CARNEIRO 365 - E por quê?

- Em breve a notícia se espalhará e estarão atrás de mim.

- Quem virá atrás de você? Do que está falando?

- Acabei de abandonar os votos religiosos, delegado, e uma das razões está indiretamente ligada ao que tenho para revelar. Percebe a gravidade do que vou dizer?

Encarando Fernando com seriedade, Endo respondeu:

- Sim, e vou mandar buscar o advogado imediatamente. Sei que está hosped ado na casa de um tal Miguel.

O delegado saiu e logo retomou.

- Mandei buscá-lo. Deve chegar logo.

- Espero que venha depressa.

Não demorou muito para que um policial entrasse em companhia de um home m simpático. Feitas as apresentações, o delegado, Fernando e Vicente, o advogado, se fecharam em uma sala. Antes, Endo disse ao policial:

- Não quero ser interrompido!

O policial acatou prontamente a determinação. Tão logo se acomodaram os tr ês na sala, a portas trancadas, Endo disse:

- Pois bem, pode começar. O que há de tão grave a ser revelado sobre esse c aso?

- O que tenho a dizer, doutor - disse Fernando, olhando para o advogado - , não poderá ser provado facilmente. Mesmo assim, como estou diretamente envolvido, creio que meu depoimento tem força, tem peso. Participei do complô que foi arma do para internar Emilie. Foi tudo forjado: ela nunca tentou matar ninguém ; nunca colocou veneno na comida do marido, nem na da filha. Foi tudo uma armação. Os outros ouviam atentamente, e então o advogado perguntou:

- O fato é que foi encontrado veneno no prato que seria servido naquela noit e. É a prova principal que a acusação tem contra ela.

366 RENASCER DA ESPERANÇA

- Não foi ela quem colocou o veneno.

- Não?! Então quem foi?

- Fui eu que coloquei o veneno.

- Você? Mas...

- Foi tudo minuciosa e longamente arquitetado.

- E por quê? Qual o motivo?

- Emilie nunca foi realmente aceita pela família. Apesar disso, no início a toleravam. Só que ela começou a ter as tais crises, ficando descontrolada e como que tomada por uma força estranha, agindo como se fosse outra pessoa. Aí a p resença dela na família tomou-se uma ameaça. Imediatamente foi considera da dominada pelo demônio e desequilibrada mental. Tia Isabel estava cansada da nora, queria livrar-se dela de uma vez por todas. Contudo, afora as crises Emilie era um a mulher correta, de atitudes impecáveis. Quando o problema se agravou, minha tia pediu a Ri cardo que a internasse. Ele relutou muito, pois amava a esposa. Porém as a lterações de comportamento se repetiam. Minha tia temia que se espalhassem rumores a re speito e que a reputação da família fosse maculada. Na verdade tia Isabel não podia tolerar, em sua própria família, alguém com manifestações espirituais tão durament e condenadas à época da Inquisição. Além do mais, por alguma razão que nã o consigo entender, penso que minha tia a temia. Ela continuou insistindo, e Ricardo resistia. P ara atender a mãe e tentar demovê-la da idéia da internação, Ricardo contrat ou doutor Francisco para cuidar de Emilie; achava que se fosse algum tipo de perturb ação nervosa o médico poderia resolver. A princípio, parecia que ela melho rava, mas depois Francisco disse a Ricardo que o problema era muito sério e que ela realment e era uma ameaça para a família, em especial para a filha. Emilie começou a piorar. As crises se tomaram mais freqüentes, e as atitudes agressivas se intensificara m. Ricardo receava por ela própria e pela filha; mesmo assim,

Lucius / SANDRA CARNEIRO 367 relutava em afastá-la do convívio familiar. Percebendo que dificilmente Ric ardo cederia, tia Isabel preparou o plano, envolvendo Filomena e doutor Fra ncisco, além de mim.

Atento à narração, o advogado Vicente indagou:

- Por que aceitou participar desse plano sórdido, Fernando?

- Na ocasião também via em Emilie uma ameaça. O que acontecia com ela me cutucava por dentro. Instintivamente, suspeitava que aquilo poderia ser o indício de muitas coisas que ignorávamos, e queria que desaparecesse da minha frente. Tia I sabel e Filomena me convenceram, sem muito esforço, de que ela significav a um perigo para a família e para a Igreja. Asseguraram que tinha manifestações semelhantes às das mal-afamadas reuniões das mesas girantes. Para mim foi o suficient e. Sabia que devia proteger a Igreja e esse tal Espiritismo me assustava.

- Foi só por isso que colaborou? Fernando pensou um pouco e respondeu:

- Tive motivos pessoais também, mas de menor relevância em minha decisã o.

Como Endo Garcia indagasse com o olhar quais eram aqueles motivos, Fern ando disse:

- Poderia expô-los, delegado, pois já não tenho nada a esconder; entretanto, em nada irão contribuir para a resolução do caso. Se houver necessidade eu contarei sem problema algum. Agora, acreditem em mim, precisamos agir depressa.

O delegado então perguntou:

- Dom Felipe participou igualmente dessa armação?

- Não, tio Felipe foi enganado. Estou certo de que ele não sabe de nada. A pesar de severo e apegado às tradições e ao poder, meu tio não é um homem mau. Acredita que Emilie seja mentalmente perturbada e que tenha atentado contra a vida do filho e da neta, o que por si só já a transforma ern inimiga da família.

368 RENASCER DA ESPERANÇA

O delegado caminhou pela sala, pensativo, depois voltou se para Fernando:

- Então você não tem como provar o que acaba de relatar...

- Não.

- Pense, tente lembrar o que fez naquele dia. O advogado insistiu, por sua ve z:

- Se deseja ajudar Emilie precisa recordar alguma coisa concreta que nos aju de a indiciar os verdadeiros responsáveis, e daí poderemos libertá-la.

Fernando baixou a cabeça tentando se concentrar, e enfim disse:

- Há um detalhe que talvez possa ajudar. Comprei o veneno naquele mesmo dia, pela manhã. Pode ser que o dono da mercearia confirme o que estou d izendo. Comprei grande quantidade de veneno de rato e ele estranhou, perguntandome por que precisa va de tudo aquilo. Eu disse que a paróquia estava infestada dos detestáveis roedores, mas mesmo assim a quantidade era exagerada. E...

Fernando teve breve hesitação antes de continuar:

- Tenho também uma carta em que Filomena me lembra por que não deveria deixar de fazer o que havia combinado com minha tia. Embora seja uma ca rta muito pessoal, creio que eventualmente poderá ser útil. Gostaria de pedir que seu conteúd o fosse preservado da imprensa e das demais pessoas que não tenham ligação com o caso.

- Ótimo! - disse o delegado - Acho que já temos algo em que trabalhar.

- Poderão soltar Emilie? - perguntou Fernando.

- Não é tão simples, temos de obter alguma prova. E olhando para Fernando com firmeza, perguntou:

- Tem consciência do que acaba de fazer, Fernando? Sabe que ficará detido a partir de agora e poderá ser preso? Por que decidiu se entregar?

Lucius / SANDRA CARNEIRO 369

- Minhas crenças, meus valores estão diferentes. Não posso mais mentir, es conder a verdade ou manipulá-la para servir aos meus interesses. Estou con sciente de que sofrerei as conseqüências; contudo, tenho a atenuante de estar confessando . Não é, doutor? - perguntou ao advogado.

- Temos um longo caminho a percorrer. Vamos ver o que conseguiremos faz er em seu favor.

- Vou atrás das evidências o mais rápido possível.

Sem demora, o delegado saiu para tomar as providências necessárias.

370 RENASCER DA ESPERANÇA

Capítulo trinta e nove

Quando o delegado saiu da sala, Vicente disse: - Você foi corajoso, Fernando. Tem certeza do que está fazendo?

- Certeza absoluta. Não há mais nada que possa fazer com minha vida antes d e resolver os problemas que ajudei a criar.

- Pois bem - prosseguiu o advogado -, então preciso tomar as minhas prov idências também. Há alguém muitíssimo preocupado com este caso, que foi quem me contratou.

Fernando ergueu a cabeça e perguntou:

- Quem está pagando para defender Emile? Estou curioso.

- Chama-se Miguel, conheço-o desde a infância. Fernando pensou se o nome lhe recordava alguém, depois disse:

- Não sei de quem se trata. Mas por que ele ajuda Emilie? Que ligação tem com ela?

- Miguel é um bom homem; estende seu auxílio a todos quantos dele necessi tam. Sua generosidade tem contribuído para resgatar muitas vidas quase se m esperança.

371

Despertou em Fernando o desejo de conhecer aquele homem. O advogado c ontinuou:

- Além do mais, Miguel e Emilie são amigos. Ambos estão ligados ao Espiri tismo. Miguel é defensor e militante da nova doutrina e Emilie, mais rece ntemente, demonstrou grande interesse por seus postulados.

Fernando repetiu baixinho, como se falasse consigo mesmo:

- Então Emilie realmente se interessa pelo assunto. Depois levantou um pou co a voz e perguntou:

- E você, doutor, o que pensa dessa novidade? Fixando os olhos nos de Fern ando, o advogado sorriu, enquanto dobrava o casaco no braço, preparando-se para sair: - O mesmo que você, meu jovem.

- Como sabe o que penso?

- Por que abandonou a Igreja, Fernando? Tenho certeza de que não foi somen te para aliviar a consciência. Há algo muito mais forte que o moveu, e que você talvez ainda não tenha percebido.

Fernando retribuiu o sorriso e disse:

- Ou talvez eu tenha percebido e ainda não saiba bem o que fazer...

Já na porta, Vicente respondeu:

- Pode ser, mas indiscutivelmente deu o primeiro passo na direção certa.

O advogado deixou Fernando só, meditando no que haviam conversado sobre E milie. "com que então - pensava ele - tia Isabel não se enganou. Emilie e stá ligada de alguma forma ao Espiritismo...".

Ao receber as informações do advogado, Miguel se entusiasmou. Queria ir imediatamente ver Emilie. O advogado o conteve:

- Acho melhor aguardar um pouco mais. Precisamos

372 RENASCER DA ESPERANÇA comprovar as evidências que Fernando nos forneceu, para que o delegado tom e junto à justiça as medidas cabíveis.

- Entendo, Vicente, acredito que esse jovem não se colocaria em tal situaçã o se tudo não fosse verdade. Além disso, sei que Emilie precisa de ajuda. I magino quanto está sofrendo e, sensível como é, quanto deve ter de lutar contra as sugest ões negativas com que querem abatê-la e desanimá-la. Vicente olhava para ele, sem saber o que responder. Apesar de ser grande a dmirador dos princípios espíritas, não conseguia entender plenamente o que Miguel lhe dizia. Por fim, questionou: E se você levar a ela esperanças que não se concretizem ou que tardem a se efetivar?

- Sei que se realizarão; de qualquer modo, levarei as informações como pos sibilidade e não como fato. A esperança é uma luz que deve sempre brilhar dentro de nós. Além do mais, a Providência Divina é incansável, e nunca faltará àqueles que a Ela se confiarem sinceramente e com humildade.

Vicente não disse mais nada. Miguel agradeceu ao especialista, pedindo-lhe que o mantivesse a par de todos os acontecimentos e que pleiteasse junto à justiça autorização para visitar a jovem.

O advogado se despediu e seguiu para o fórum da cidade, disposto a resolver a questão da visita. Antes que saísse, Miguel reforçara mais uma vez:

- Estarei pronto, aguardando apenas a permissão chegar às minhas mãos.

Miguel esperou ansioso. Ao entardecer, da janela da sala contemplava o be lo quadro: com o sol se pondo no horizonte, o tom dourado impregnava toda a cidade. Ele mal conseguia ficar sentado; andava de um lado para outro, impaciente, até que viu Vicente subindo rápido as escadas. Antecipou-se abrindo a porta:

Lucius / SANDRA CARNEIRO 373

- Finalmente! Conseguiu?

- Consegui a autorização e tenho mais notícias boas. Vicente entregou o do cumento a Miguel:

- Aqui está a autorização para a visita. O delegado já tem as evidências que o jovem mencionou. O dono da mercearia onde Fernando comprou o vene no não só confirmou a venda, como tem o dia, o horário, a quantidade adquirida e o nome do c omprador, em anotações minuciosas que controlam o movimento do pequeno n egócio. O livro está com o delegado e eu tive oportunidade de ver as informações; são exatament e as que o rapaz forneceu. A carta que ele declarou ter já está igualmente nas mãos do delegado; tomei ciência de seu conteúdo.

- Não há perigo de o delegado agir em benefício da família, protegendo-a e m detrimento de Emilie?

- Desde que você me contratou, tomei minhas precauções e investiguei ante cedentes do delegado. Ele faz parte de uma família simples e humilde. Lut ou muito para vencer em seu trabalho; teve de se defrontar inclusive com figuras eminentes da cidade, que tentaram impedir seu crescimento. Conhece bem seus métodos e não os aprova, apesar de respeitar as autoridades e ser por elas respeitado. Não creio que ir á distorcer os fatos para prejudicar Emilie.

- Fico mais tranqüilo ao saber disso. Levantando-se, Vicente o apressou:

- Agora vamos. A família também já está ciente do ocorrido e não sabemos o que pode tentar.

A viagem até a clínica durava cerca de uma hora. Assim que a carruagem en costou, os dois saltaram. Já na porta, notaram que havia tumulto e muitas pessoas se aglomeravam. A custo abriram caminho e ao atingir o portão de entrada ouviram de um dos policiais que cuidavam da segurança do local:

- Ninguém pode entrar. As visitas estão suspensas por hoje.

374 RENASCER. DA ESPERANÇA

- Temos autorização judicial para entrar - Vicente tirou do bolso do paletó a autorização e a mostrou.

O policial olhou detidamente o papel, levou-o para dentro e depois retomou, dizendo:

- Somente o advogado. - Temos permissão para duas pessoas e precisamos vê-la! - Vicente objetou.

Nova verificação e veio a resposta:

- Um de cada vez. Acompanhe-me o primeiro.

Sem titubear, Miguel adiantou-se e o seguiu. Foi levado até o quarto onde a jovem fora colocada. Na porta, dois policiais faziam a vigilância. Miguel indagou ao guarda:

- Por que tantos policiais?

- O delegado pediu que se reforçasse a segurança do quarto e da clínica, pa ra impedir qualquer pessoa de vê-la, incluindo os familiares. Somente ele p róprio, o advogado dela e pessoas autorizadas judicialmente podem entrar.

Miguel entrou satisfeito. Encontrou Emilie em estado deplorável: cabelos e m desalinho, o mesmo vestido que usava ao ser presa, roupas sujas e malche irosas. Deitada no canto da cama chorava baixinho, repetindo:

- Não vou desistir. Não sou criminosa. Não sou... Miguel se aproximou dev agar, chamando-a:

- Emilie! Sou eu, Miguel.

Ao ouvir seu nome Emilie levantou a cabeça e, quando o viu, ergueu a voz, chorando:

- Miguel! Que graça dos céus é vê-lo, meu amigo!

Ele a aconchegou ao peito com o carinho de um pai, afagou-lhe os cabelos e disse:

- Se Deus permitir, Emilie, seu martírio em breve terminará.

- Como assim? - perguntou ela, afastando-se do ombro amigo. Lucius / SANDRA CARNEIRO 375

- Acalme-se, temos muito que conversar. Percebeu o tumulto na clínica hoje ?

- Notei que após o almoço todos se alvoroçaram, porém não consigo conce ntrar-me em nada por mais do que alguns instantes. Logo me sinto confus a. Acorrem-me pensamentos destrutivos e acusatórios. Quando me detenho a lhes dar atenção, percebo e ntidades assustadoras me dizendo que sou assassina e que vou morrer aqui.. . A oração tem sido meu refúgio, mas de uns dias para cá as forças estão acabando. Sinto- me sem energia para continuar. Não sei o que será de minha vida, Miguel. T ento manter vivo dentro de mim tudo o que aprendi nos últimos meses e, acima de tudo, a f é em Deus. Penso sempre em Lucrécia e no muito que ela fez por mim. Quan do cheguei aqui me sentia mais forte... Agora, tudo está ficando nebuloso. Mal consigo pensar...

- Não se aflija, Emilie. Deus está sempre conosco. Quase envergonhada por se ntir-se tão frágil, Emilie disse:

- Eu sei. Deus está sempre conosco, e no entanto somos tão fracos que não conseguimos deixar que Ele fale ao nosso coração.

Com os olhos rasos de água, Emilie ia baixando a cabeça, quando Miguel lh e tocou gentilmente o queixo e a consolou:

- Não se angustie mais. Deus nunca nos abandona; porém Ele sempre age vis ando o bem de todos e é por isso que muitas vezes as situações se resolve m de maneira mais lenta, para que as soluções tenham maior abrangência. Precisamos compreen der isso, para tomar mais intensa a chama de nossa confiança no Pai.

Vendo que Emilie se acalmara e estava atenta, ele anunciou:

- Se tudo correr bem, é provável que você deixe a clínica em breve, livre de todas as acusações.

- O que me diz, Miguel? Como?

376 RENASCER. DA ESPERANÇA

- Fernando, o primo de seu marido, entregou-se hoje à polícia, confessando ter colocado o veneno na comida naquela noite.

- Fernando? Mas... por quê? Ele sempre me pareceu uma pessoa boa...

- Não tive a oportunidade de encontrá-lo pessoalmente, mas Vicente esteve com ele. Confessou que tudo foi um plano articulado por sua sogra. Isabel contou com a ajuda da filha, de Fernando e de um médico chamado Francisco.

- Eu pressentia... Miguel, que alívio você me traz.

- Estará livre deste lugar em breve.

- Não, não é só isso. Eu tinha dúvidas de que pudesse ter feito aquilo... Ent ão, sou inocente! Graças a Deus!

Mais uma vez, Emilie abraçou Miguel, sem conseguir controlar as lágrimas de alívio que rolavam pela sua face. O amigo esperou que ela se acalmasse e continuou:

- Que Deus a fortaleça, Emilie. Siga firme em seus propósitos. Lembre-se s empre de que nada é fruto do acaso. Todas as ocorrências de nossas vidas, sejam positivas ou negativas, são efeitos de nossos atos, presentes ou pretéritos, de nossas escolhas - o que significa que para ter boa colheita precisamos cuidar do q ue semeamos. De fato, creio que tudo o que lhe aconteceu proporcionou a você a oportun idade de se encontrar consigo mesma e com o sentido maior de sua vida. Se r médium, com o seu grau de sensibilidade, é uma dádiva, que também implica sério compro misso e responsabilidade de servir a Humanidade. Os médiuns devem ser me nsageiros entre os céus e a terra e Deus concede a eles a possibilidade de servir, resgatando p esados débitos através do trabalho incessante pelo bem do próximo.

Mantendo os olhos fixos em Miguel, a jovem perguntou: - Pelo que está dizendo, também acredita que eu tenha um trabalho a ser feit o.

Lucius / SANDRA CARNEIRO 377

- O que você sente?

- Não sei. O que mais quero neste momento é resolver minha situação, sair des te lugar e voltar a ser livre.

- Muito justo seu desejo, Emilie. Entretanto, nunca se esqueça de que muito s estão cativos de suas ilusões, embora pareçam livres para a maioria das p essoas, igualmente iludidas. Só a verdade nos liberta.

E levantando-se, disse:

- Tenho de ir. Vicente precisa orientá-la quanto ao seu procedimento de ag ora em diante. Continuaremos ao seu lado, Emilie.

Ela se esforçou por sorrir, ao agradecer:

- Que Deus o abençoe, Miguel. Nunca poderei retribuir todo o bem que me fez. Obrigada, meu amigo.

- Somos apenas mensageiros a serviço do Bem. Miguel se despediu e saiu. Alguns minutos depois, Vicente entrou e demorou-se longo tempo orientand o-a e informandoa quanto às próximas ações a serem adotadas.

378 RENASCER. DA ESPERANÇA

Capítulo quarenta Assim que o advogado saiu e Emilie se viu de novo sozinha, pôs-se a reflet ir sobre a imensa misericórdia de Deus e a forma surpreendente como o Pai age muitas vezes. Ela jamais poderia imaginar que justamente Fernando seria o instrumento da Espiritualidade para libertá-la.

Naquela noite não conseguiu conciliar o sono, relembrando cada experiência que vivera, desde que a fatalidade se abatera sobre sua vida. Recordou-se de Ricardo e, com muito carinho, de Cíntia. Sobretudo, as palavras de Miguel não lhe saíam da mente. "Afinal - pensava - de que adiantaria enfrentar tanto sofrimento, tantas dificuldades, se não houvesse um objetivo?" O que deveria fazer quando tudo estivesse e sclarecido? Como, então, conduziria a própria vida? No curso da fria madr ugada, em diversos momentos a mágoa e o ressentimento por Isabel e Filomena tentaram dominá- la; todavia, inspirada no exemplo altruísta de Lucrécia, afastava-os cons cientemente e buscava emitir apenas amor, evitando pensar naqueles que lhe haviam causado tantas dores.

A partir daquela noite, Emilie concentrou-se ainda mais em si mesma. Medi tava seriamente sobre a continuidade de seu

379 aprendizado e as decisões que deveria assumir quando deixasse a clínica. A cada dia sua ansiedade aumentava. Vicente deixara claro que sua saída d ependeria do andamento das investigações. A lembrança de Cíntia a enchia de ternura e mais do que nunca desejava vê-la; a saudade da filha a torturava. Seu consolo era a idé ia de que muito em breve estaria livre.

Três dias haviam se passado desde a visita de Vicente. Naquela madrugada, enquanto seu corpo dormia, Emilie recebeu a visita inesperada da filha, tr azida pelas mãos de Heloise. Acariciando o rosto da mãe, ela dizia:

- Só mais um pouco de paciência, mamãe, e tudo se esclarecerá. Seja forte e confie em Deus. Lembre-se de que Ele nunca nos abandonou, nem por um s ó instante. Banhada em lágrimas, Emilie tentava conversar com a filha, sem conseguir . Sua emoção era enorme. Percebia que a menina, apesar de tão jovem, com preendia os acontecimentos até melhor do que ela própria. Sentindo o carinho da filha e o amparo de Heloise, deixou-se envolver pelas suaves e renovadoras energias que de am bas emanavam. Antes de se despedirem, quando já amanhecia, Heloise, com ar de extrema seriedad e, olhou Emilie nos olhos e disse:

- É hora de irmos. Hoje você deixará a clínica e estará finalmente livre des sa provação. Agora, Emilie, mais do que nunca, precisa estar atenta para não perder o ensejo que recebeu. A Providência permitiu a dor como instrumento para que você pudesse chegar à sua verdadeira missão na terra, ao motivo pelo qual aqui está. Sabe que tem débitos a reparar e que tem trabalho assumido perante a Espiritual idade superior, que, sob o comando do Espírito de Verdade, deflagrou as lu zes abençoadas da Doutrina Espírita por toda parte. Não consinta que o sofrimento tenha si do em vão, descuidando-se de cumprir aquilo que veio realizar. Devo alertá- la de que, se falhar, deverá repetir a lição,

380 RENASCER. DA ESPERANÇA seja nesta ou em outra encarnação. Não deixe que isso aconteça, querida. A proveite e oportunidade, ainda que ela traga muitos espinhos aparentes. Le mbre-se de que na vida colhemos aquilo que semeamos; portanto, Emilie, semeie sem cessa r o bem, o amor, a luz, mesmo que em alguns momentos sinta as mãos ferid as pelos espinhos. Não desista jamais; persevere e bem depressa colherá a paz do dever cumprid o. E por certo novas alegrias a esperam no futuro. Cíntia estará a seu lado ; este consolo você terá. Tenha fé e prossiga confiante.

Mais uma vez Heloise a abraçou com ternura. Emilie, fortemente envolvida pela emoção e banhada pelas lágrimas, não ti nha condição de dizer nada. Depois foi Cíntia quem a abraçou, assegurando: - Em breve estaremos juntas novamente.

Logo, ambas desapareceram em meio a luzes suaves, enquanto os primeiros r aios do sol entravam pela pequena janela. Emilie despertou com o coração acelerado, tentando rememorar o que se passara. Ainda tinha o rosto molhado de lágrimas, e comp reendeu que de fato recebera a visita da avó e da filha.

Embora estivesse cansada e quase sem se alimentar por vários dias, sentiu que novas forças a invadiam. Levantou-se e caminhou lentamente pelo pequ eno aposento, procurando reter as palavras da avó. Desejou ter papel e pena para poder registrar aqu ele importante recado; como não dispunha desses instrumentos, repetia baixi nho o que podia lembrar, para fixar a lição na memória.

Estava compenetrada no exercício quando a porta do quarto se abriu e Miguel entrou, sorridente.

- Miguel! Que faz aqui tão cedo, meu amigo?

- Vim buscá-la.

- Buscar-me?

- Sim, Emilie. Você está livre.

Lucius / SANDRA CARNEIRO 381

Emilie agarrou-se ao pescoço do amigo:

- Não sei o que dizer! Esperei tanto por este momento, Miguel!

De repente, o semblante de Emilie se fez sério. Miguel, estranhando, pergun tou:

- Que foi? Não está feliz?

- Claro que estou, como poderia não estar? Tenho desejado tanto e por tant o tempo a chegada deste momento!... É que...

Emilie calou-se. Miguel insistiu: - O que a preocupa? Se estiver com medo de retomar à mansão, tranqüilize seu coração. Por ora vamos para minha casa, onde poderá ficar pelo tempo que quiser. Diante dos fatos, e tendo em vista que seu marido vive na casa dos que são acusad os pelo que lhe aconteceu, as autoridades entendem que seria inconveniente seu retomo ao convívio da família, ao menos por enquanto.

- Realmente não gostaria de voltar àquela casa tão cedo. Não é isso que me preocupa.

Emilie sentou-se na cama, respirou fundo, procurando organizar as idéias, e depois, erguendo os olhos cor de mel que brilhavam intensamente, disse:

- Alguns meses atrás eu sabia exatamente o que me faltava e o que desejava fazer. Ansiava por recuperar o que me fora tirado. E queria, sobretudo, que aqueles que me haviam prejudicado sofressem a dor do ciúme e da inveja, vendo-me triun fante e feliz. Porém...

Miguel continuava de pé, atento.

- Agora tudo o que me parecia essencial não tem mais sentido. Chego a ter medo do que vai ser minha vida de hoje em diante...

Miguel aproximou-se dela, com carinho paternal:

382 RENASCER DA ESPERANÇA

- Emilie, não tema nada. Ao longo de minha vida venho presenciando muita s transformações e testemunhando a experiência de inúmeros amigos que pa ssaram por isso. Tenho acompanhado também aqueles que jamais se perguntam o que estão faz endo da existência, se têm ou não uma tarefa a cumprir (certamente com r eceio da resposta). E creia-me, embora os primeiros pareçam muitas vezes perdidos, sofrendo a angústia da dúvida, o temor do desconhecido, percebo que crescem dia a d ia. E à medida que se desenvolvem ficam mais felizes, mais úteis e mais firmes; diria que a s ventanias naturais da vida de todos nós os fortalecem cada vez mais. Porta nto, tranqüilize sua alma. Este é um grande momento em sua vida. Aproveite-o!

- Parece que participou da pequena reunião com Heloise e Cíntia, esta noite.

- Como?

Emilie sorriu e tocou suavemente as mãos do amigo:

- Deixe para lá, Miguel.

Compreendendo imediatamente, ele disse a sorrir:

- Muito bem, já que todos estamos em sintonia, melhor mesmo é não duvidar e seguir confiante. Pronta?

Emilie se levantou decidida:

- Vamos, estou pronta.

Miguel abriu a porta gentilmente para a moça, que sem vacilar percorreu o co rredor da clínica, diante dos olhares curiosos de funcionários e de outros i nternos. Quando se aproximavam da porta principal, Emilie notou grande tumulto do l ado de fora, que já se iniciava à porta da clínica, com a presença de muit os guardas. Instintivamente ela olhou para Miguel, que esclareceu:

- Os policiais são necessários, pois há imprensa, amigos seus e curiosos se m conta. Tomando a frente, ele segurou com força sua mão.

- Vamos.

Lucius / SANDRA CARNEIRO 383

Emilie deixou que Miguel a conduzisse e passou pelos guardas, atingindo a p orta principal. Assustou-se ao ver a multidão que ocupava a frente do prédi o, mas sentiu novamente a mão firme de Miguel na sua e prosseguiu, com o corpo ereto e a cabeça erguida. Emilie ouvia gritos no meio do povo:

- Você é que é a assassina! Nós sabemos!

- Não faça essa pose de santa, não! Você mereceu! Sem ligar às ofensas, e sem se deter, caminhou em meio ao cordão formado pelos policiais, procuran do focar a atenção em Vicente, que os esperava com a porta da carruagem aberta.

Quando Emilie conseguiu alcançar o advogado, sorriu e, auxiliada por ele, s ubiu na carruagem. Ao entrar, a surpresa: Jairo a aguardava. Sentando-se a seu lado, abraçou-o como a um pai.

- Jairo, que faz aqui? Nem posso acreditar...

- Que mais poderia fazer? Acompanho de perto o caso, pois meu maior desejo era vê-la finalmente livre.

Emilie segurou suas mãos, enrugadas e desgastadas pelo tempo e pelas lutas da vida, e beijou-as carinhosamente, dizendo:

- Obrigada por tudo, meu querido amigo, meu irmão. Vicente e Miguel junta ram-se a eles e a carruagem seguiu depressa para a casa do último, onde e ram esperados. Emilie foi recebida por Sara e sua família, bem como por outros amigos que fizera na vila. A casa estava cheia e deram a ela uma grande festa de boas- vindas.

Emilie viveu com entusiasmo cada minuto daquele dia, ao lado das pessoas que aprendera a amar. De quando em quando pensava na filha, mas logo se distraía com alguém que requeria sua atenção.

Entretanto, mesmo em meio à enorme alegria daquela hora, as palavras de He loise não se afastavam de sua mente. Ela não precisava mais de papel: traz ia-as impressas no coração.

384 RENASCER DA ESPERANÇA Capítulo

Quarenta e um

Na mansão o tumulto era absoluto. Tão logo soube que Fernando abandonara a Igreja, Isabel deduziu o que estava por vir. Preocupada em atenuar a te mpestade que inevitavelmente se abateria sobre eles, tentou envenenar o marido contra o sobrinho, afirman do que por certo perdera o juízo.

Na mesma tarde, receberam o comunicado das denúncias em que ele comprom etera a família. Filomena, chocada e apavorada com o que lhe poderia ac ontecer, imaginando seu segredo descoberto, trancou-se no quarto e lá ficou isolada e deprimida . Foi em vão que a mãe instou para que abrisse a porta. Profundamente abala da, ora chorava sem controle, ora permanecia fitando o nada. Ouvir a voz da mãe a fazia cai r em pranto desesperado; quando Isabel se afastava ela soluçava baixinho, o corpo inteiro tremendo. Não queria comer nem falar com ninguém. Isabel, tomada pela raiva, tomou-se ainda mais agressiva. Não podia suport ar o fato de o sobrinho a ter desafiado daquela maneira. Sem se conformar, pediu ao marido providências para evitar que Emilie fosse libertada. Gritava:

385

- Precisa fazer alguma coisa, Felipe. Vão soltar aquela desvairada, aquela m ulher é perigosa!

- Acalme-se, Isabel. Não há muito a fazer diante do que Fernando apresentou à justiça.

- Ele está mentindo!

- Só que existem provas do que ele diz. Apresentou provas, entende?

- Que provas, Felipe, que provas?

- Não sei, não tive acesso a elas.

- Mas precisa ter. Você deve ter acesso a tudo! Afinal, é uma autoridade nes ta cidade ou não é?

Dom Felipe, com severidade, respondeu:

- Isabel, você está sendo acusada de tentativa de assassinato, além de muita s outras coisas. Os fatos são bastante graves. Fui orientado pelos nossos ad vogados a ter muita cautela ao conduzir o processo, para não piorar ainda mais a situaç ão.

- Não acredito que irá se dobrar a esses impertinentes! Na sua posição, Fe lipe! Somos donos de metade desta cidade, inclusive das pessoas. A maioria deve algum favor à nossa família e chegou a hora de cobrar. Faça valer a sua posição! Não a dmita que nos acusem. Faça algo! Seu sobrinho está doente, não vê? Qualque r pessoa que tem esse procedimento não passa de um doente. Não pode levá-lo a sério. Fa ça o que tem de ser feito!

- Estou fazendo o que é possível.

- Não quero ver aquela mulher solta! Não vou admitir isso, Felipe!

- Isabel, a polícia é quem controla o caso. Não tenho como dar ordens nesse nível!

- Ora, Felipe, não seja tolo. Quem está conduzindo o caso?

- O delegado Endo Garcia.

386 RENASCER DA ESPERANÇA

- E qual é o interesse desse homem? Aja rapidamente para que o caso seja a bafado.

- Não é tão simples, Isabel. Garcia é um homem muito sério e competente. O s advogados já conversaram com ele, e está firme no propósito de esclarece r os fatos e descobrir toda a verdade.

Os gritos de Isabel se faziam ouvir por toda a mansão: - Ele não é ninguém, Felipe! Ninguém! Você sabe quem está acima dele; por tanto, faça o que tem de ser feito! Livrese dele! Não interessa como! O q ue não podemos é deixar que essa mulherzínha dementada desmoralize nossa família. É isso que está tentando, não percebe?

- Quem está tentando? Isabel, enfurecida, continuou:

- Essa moça. É evidente que assim que estiver livre vai querer nos prejudicar , dar o troco, se vingar. Virá retomar o que pensa que é seu de direito. Não vou admitir, Felipe, em hipótese alguma.

Dom Felipe se levantou, perturbado, e andou até a janela, observando a luz do entardecer que se espalhava pelos jardins da mansão. Depois de fundo sus piro, virou-se para a mulher e disse:

- Sei muito bem o que você fez, Isabel, mas não se preocupe, nada lhe acont ecerá. Sei que odeia a moça e quis fazer tudo o que podia para proteger nos sa família.

Isabel ergueu ainda mais a cabeça e respondeu, altiva:

- É bom que entenda meus motivos. Faço tudo para preservar e defender nos sa família.

- É claro, Isabel, fique tranqüila. Entretanto, não poderemos impedir que a m oça seja libertada.

- E por quê?

- Não há mais nada contra ela. Além das provas que incri-

Lucius / SANDRA CARNEIRO 387 minam Fernando, eles têm a sua confissão espontânea. Agora vá ver sua fil ha, e procure descansar um pouco.

- Filomena está trancada no quarto. Não adianta bater e tentar falar com ela . E não estou cansada, Felipe. Quero solucionar o problema. Dom Felipe segurou com toda a força o braço da esposa, e apertando-o disse :

- Desta vez, só desta vez, dona Isabel, deixe tudo comigo. E vá ver sua fil ha, estou ordenando! Ela não comeu nada o dia todo.

Isabel soltou-se das mãos do marido e reclamou:

- Está me machucando, meu marido! Sabe que faço tudo para o bem de nossa família.

- Estou falando sério, Isabel: não interfira mais. Seu excesso de zelo est á destruindo nossa família, não compreende? Garanto que me empenharei ao m áximo para que o caso seja abafado e resolvido. Mas por ora nada posso fazer para impedir o retomo de Emilie ao convívio da família. Ricardo está totalmente incontro lável e quer que a esposa volte.

- Ricardo é um imbecil. Fez uma péssima escolha e pretende persistir no err o. Se ele teimar em receber aquela mulher, que saia desta casa e viva com o s próprios recursos. Não admitirei que a louca ponha os pés aqui novamente. Se ele co ntinuar nos desafiando com esse casamento, quero que você o deserde, Felip e. Já que acha que sabe o que faz, que viva às próprias custas. Não lhe dê mais nada. Nem dinheiro, nem trabalho. E não o ajude com sua influência. Ele que tente obt er as coisas com seu esforço, para ver como tudo é mais difícil. Pensa que pode fazer o que quer, mas não é assim.

Exausto pela infrutífera discussão, dom Felipe comentou, em tom irônico:

- Como sempre, querida, você está sendo muito radical.

388 RENASCER DA ESPERANÇA

Se Ricardo quiser viver outra vez com Emilie, darei o suporte de que necess itar. Ele é meu filho e, apesar de não concordar em absoluto com sua escolh a, não posso admitir que perambule por aí como um qualquer. Vou ocupá-lo em trabalho q ue o afaste da cidade e de nós, porém me recuso a prejudicá-lo. O rapaz t ambém já sofreu bastante.

Isabel, subindo as escadas, dizia em tom agressivo:

- Você me desaponta muito, Felipe! Meu pai jamais concordaria com suas at itudes! Ainda bem que ele não está aqui para testemunhar suas fraquezas.

Dom Felipe não respondeu. Virou-se para a imensa janela, que tinha as cort inas abertas. Isabel subiu as escadas pisando duro. Quando chegou ao topo encontrou Ricardo, que descia apressado. Ao cruzar com ela, gritou inconformado:

- Como pôde fazer aquilo? Como foi capaz de tal armação?

- É tudo mentira, Ricardo, seu primo está louco.

- Não acredito mais em você!

Isabel deu de ombros e saiu andando, a mostrar seu azedume:

- Não me importo mais. Acredite no que quiser. Afinal, seus julgamentos n ão são mesmo confiáveis.

Sem dar resposta, Ricardo desceu as escadas rapidamente. Isabel ainda perg untou:

- Aonde vai com tanta pressa?

- Buscar Cíntia. Não quero que Emilie encontre a filha num convento. - Não ouse fazer isso, Ricardo. A menina precisa...

- A menina precisa da mãe, de mais ninguém.

- Não vão deixá-lo entrar no convento.

- Tenho a autorização de quem realmente manda nesta casa. Sem dizer mais nada, Ricardo partiu rápido em direção à pequena vila onde ficava o conve nto. A noite caía gelada sobre a cidade. Lucius / SANDRA CARNEIRO 389

Isabel tomou a postar-se à porta do quarto de Filomena, insistindo para que a abrisse. A filha se recusava a conversar; estava apavorada. Isabel acabou po r desistir. No dia seguinte, tentaram novamente. Como a moça não respondia, Isabel deu ordem para arrombarem a porta. Encontraram Filomena sentada com os olhos arregalados, vermelhos de tanto chorar. A mãe a sacudiu com força, para obrigá-la a rea gir. Não obteve resposta. Agitou-a mais rudemente, sem resultado; ela não dizia nada, em estado de choque. Isabel a sacudia mais e mais, sem dar atenção à situação l astimável da filha:

- Vamos, reaja! Filomena, reaja!

A moça continuava imóvel. Dom Felipe acorreu, atraído pela gritaria no qua rto, e indignou-se com a cena chocante:

- Pare com isso, Isabel! Pare! Está machucando a menina!

- Ela tem de reagir, Felipe!

- Ela precisa de um médico, pelo amor de Deus, Isabel! Olhe o seu estado!

Enfurecida, Isabel não parava de gritar com a filha. Com a ajuda dos servi çais, dom Felipe finalmente conseguiu afastar a esposa e, após atendimento médico, enviou a filha para uma clínica de repouso, onde pudesse ser tratada.

Na verdade, Filomena nunca mais se recuperaria do desequilíbrio que a aco metera, permanecendo internada na clínica por muitos anos.

Embora dom Felipe tivesse relativo controle da situação, proibindo jornais e outros periódicos que estavam sob sua influência de publicarem sequer uma linha relativa ao desfecho do caso de Emilie, foi impotente para conter a lamentável reper cussão e o desgosto que causara.

A notícia se espalhara pela cidade e todos comentavam o episódio. Não obst ante Isabel negasse sistematicamente, sustentando que o sobrinho era vítim a de alucinações e manten-

390 RENASCER DA ESPERANÇA do-se intocável em sua posição, o prestígio que usufruía em Barcelona foi a balado e muitos se afastaram dela.

A situação começara a fugir-lhe do controle e aos poucos desmoronava o do mínio que a família exercera por décadas.

Fernando, sentado na beira da cama, via o luar pelas grades da pequena ja nela. Pensava em Emilie, que bem pouco tempo atrás estivera em condição p arecida com aquela. Contudo, o momento complicado que vivia não lhe tirava a tranqüilidade. S abia que havia feito o que era correto e estava em paz consigo mesmo. Sua única preocupação era o orfanato, praticamente abandonado. Pensava nas crianças e temia que a paróquia não assumisse o controle, como deveria; afinal, aquele havia si do um profundo desejo seu, mas pouco apoiado pelo padre. Orava pelas crianças, pedindo q ue Deus as amparasse.

Algumas vezes pensava em Filomena e imaginava como ela o estaria odiando, àquela altura, por havê-los exposto tanto. Apesar do carinho que ainda nut ria por ela, sabia que seria muito difícil se aproximarem outra vez.

Ele aguardava pacientemente o desenrolar dos fatos, e foi com extrema alegr ia que recebeu a informação de que Emilie fora finalmente libertada. A just iça prevalecera.

Lucius / SANDRA CARNEIRO 391

Capítulo Quarenta e dois

Depois que todos se recolheram, Emilie permaneceu sentada no sofá da sala , quase sem acreditar que estava livre. Seu coração transbordava de conte ntamento. Não se cansava de relembrar o rosto alegre de Cíntia e sentia-se feliz por saber q ue se avizinhava o momento de revê-la. Aquilo que tanto desejara nos último s meses estava enfim acontecendo. Pensava em Lucrécia, em quanto ela a havia ajudado, e s entia o coração apertado de saudade da amiga e protetora.

Só após muito tempo sozinha na sala foi que subiu para o quarto. Enquanto atravessava o longo e escuro corredor, sentiu um medo estranho apoderar-se dela. Parecia que um grande perigo a esperava mais adiante. Parou, atenta, tentando capta r qualquer ruído que houvesse na casa. Nada. O silêncio era absoluto. Ainda assim, seu coração batia descompassado, como a querer sair-lhe pela boca. Pensou e m chamar alguém, mas como explicar o medo que sentia? Caminhou devagar, e à medida que avançava mais medo sentia, até o pânico se apossar dela. Ao entrar no quarto verifi cou tudo: abriu armários e portas, agachou-se e olhou debaixo da cama, pen sando que pudesse haver alguém

393 ali. Depois, foi até a janela e devagar abriu a cortina. Não havia ninguém . Quando se virou ouviu uma gargalhada ecoar em sua mente. Assustada, perg untou:

- Quem está aí?

Ela viu, então, as quatro entidades espirituais que a perseguiam. Um dos ho mens falou:

- Acha que se livrou de nós? Pensa que agora que se tomou boazinha vamos perdoar tudo o que nos fez? Nunca, está entendendo? O que você fez não tem perdão!

Emilie, apavorada, porém consciente de tudo o que ocorria, tentou conversa r com eles:

- Sou inocente, por isso me libertaram.

- Você é uma assassina! E terá de pagar pelo que nos fez!

- Mas eu não...

De súbito imagens lhe vinham à mente, cenas se sucediam, e aqueles espírit os transfigurados apareciam vestindo outras roupas, em situação completame nte diversa. Emilie se esforçava por entender o sentido daquilo quando uma das mulheres , a que parecia mais jovem, lançou sobre ela toda a sua energia transforma da em ódio e a empurrou até que caísse. Vendo-a no chão, aproximou-se com uma faca na mão e sentenciou:

- Você tem de pagar, vamos persegui-la onde quer que se encontre e acabare mos com sua alegria. Não importa quantas vezes se levante, nós a faremos c air outra vez.

Emilie, sem saber o que fazer, acuada no canto do chão do quarto, gritou em desespero. Em alguns segundos, surgiram Miguel e os que estavam mais p erto daquele quarto. Quando Miguel entrou, ela gemia de dor no antebraço direito.

- O que houve, Emilie?

- Graças a Deus vocês apareceram. Eles se foram, mas meu braço está mach ucado.

394 RENASCER DA ESPERANÇA

- Emilie, o que aconteceu? - perguntou Sara, ajudando a amiga a se sentar n a cama.

- Entidades que há muito me perseguem se mostraram outra vez. Querem me destruir e fizeram ameaças terríveis. Machucaram-me com uma faca. Isso pode acontecer, Miguel, ou estou enlouquecendo?

- Creio que seja possível. Quando o sentimento (seja de ódio ou de amor) é m uito intenso, atravessa a barreira vibratória e afeta o campo material. É ra ro, mas não impossível.

- Acho que nunca senti tanto medo em minha vida... Emilie chorava baixin ho, ainda assustada. Miguel, Sara e outros amigos a envolveram em prolon gada prece, buscando acalmar suas emoções e fortalecer sua fé. Sara se ofereceu para dormir com a amiga, que agradeceu:

- Vou aceitar de bom grado, Sara. Gostaria muito que ficasse comigo esta no ite.

Passado algum tempo o silêncio voltou à casa. Emilie, entretanto, não conse guia conciliar o sono; repetidamente revia as figuras aterradoras das entid ades e remexia na memória buscando descobrir de onde conhecia aqueles rostos.

Na manhã seguinte, bem cedo, Emilie estava na sala quando Miguel desceu para o desjejum.

- Acordada tão cedo? Conseguiu descansar?

- Não muito, Miguel. Gostaria de conversar com você.

- Claro! Já tomou seu café? -Já, obrigada. Espero na sala.

Não demorou muito e Miguel retomou, atencioso.

- Como se sente, Emilie?

-Assustada. Feliz por estar finalmente livre, mas com medo do futuro; e d epois do que houve ontem à noite, muitas dúvidas acorrem à minha mente. E stou confusa e angustiada. É como se tivesse a consciência de que sempre haverá alguma coi sa a me infelicitar!

LUCIUS | SANDRA CARNEIRO 395

Miguel se levantou silencioso, foi até a sala de jantar, onde Sara terminar a o desjejum, e pediu que ela os acompanhasse para uma conversa no jardim d e inverno. Acomodaram-se entre as folhagens fartas e, assumindo tom grave, Miguel começou:

- Emilie, precisa ter noção de algumas questões delicadas para tomar sua dec isão.

- Continue, por favor. - Você foi agraciada pela misericórdia divina com uma mediunidade muito amp la: clarividência, psicografia, clariaudiência... Analisando as dificuldade s que enfrentou até agora, concluímos que provavelmente elas são provas pelas quais você p recisava passar.

- Concordo com você, Miguel. Já pensei muito sobre isso.

- Pois bem. O que pretende fazer daqui para a frente? Perdoe-me por pergu ntar, mas é fundamental para que possamos conversar.

- Quero trabalhar por essa doutrina que tanto me beneficiou, Miguel. Somen te pelo estudo dos princípios espíritas pude começar a compreender minha s ituação e o real motivo das perturbações que sofria. Sei que sou médium e que devo utilizar minha sensibilidade em favor dos necessitados de ajuda. Quero continuar a aprender e prosseguir no caminho que encontrei.

- Fico feliz por ouvir isso e desejo que persevere em sua decisão. No enta nto, é preciso que saiba também que os médiuns, em sua grande maioria, são espíritos comprometidos com as leis divinas, que reencarnam com a responsabilidade de usar os d ons que receberam como contribuição para o progresso da Humanidade. E q uando conseguem fazê-lo com êxito, encontram o próprio progresso, resgatando dívidas e dando um pa sso adiante na jornada evolutiva.

Emilie ouvia com atenção. Sara permanecia calada. Miguel prosseguiu:

396 RENASCER DA ESPERANÇA

- O que aconteceu ontem, Emilie, e aquilo que através de nossa sensibilida de já havíamos percebido indicam que existem pesadas dívidas a serem resga tadas.

- Tentei recordar quem são aquelas entidades, de onde as conheço. Enquant o estavam diante de mim, muitas imagens me vieram à mente e sei que fazia m parte delas. Todavia, nada ficou suficientemente claro. - Não faça esforço para se lembrar do passado, Emilie. Muitas vezes ele é doloroso demais para nós. Aproveitemos a bênção do esquecimento, conscie ntes de que somos imperfeitos, com pesados fardos sobre nossos ombros. Não gaste sua energi a tentando recordar, use-a em serviço ao próximo.

Emilie balançou a cabeça, em sinal de que estava assimilando as ponderaçõ es do amigo. Ele continuou:

- Há muito trabalho a ser feito. Embora a consoladora Doutrina Espírita co mece a se propagar pelo mundo, há muito a ser feito para que seus princípi os se tomem efetivamente conhecidos. A oposição é ferrenha e as mentiras espalhadas também se avolu mam. A divulgação dos verdadeiros preceitos espíritas carece ser intensifi cada em toda parte.

- Gostaria muito de contribuir, Miguel.

- E terá oportunidade de fazê-lo. Repito: há muito trabalho. Por exemplo, p recisamos de alguém que colabore na tradução das revistas espíritas, bem co mo de outras obras, do francês para o espanhol. E isso tem de ser feito por alguém que c onheça a língua e também os princípios doutrinários, de modo a se preservar a fidelidade do conteúdo. Além disso, os núcleos espíritas estão sendo procurados por n úmero crescente de pessoas, o que implica a necessidade de mais trabalhado res conscientes e preparados, inclusive médiuns.

- Sinto-me preparada. Quero trabalhar, Miguel.

- Emilie, não creia que será fácil. Temos em nossa própria

Lucius / SANDRA CARNEIRO 397 experiência e na de muitos amigos a demonstração de que a dor é companheir a daqueles que se propõem atuar nas fileiras espíritas.

- A dor?

- Não falo somente da dor física - aliás, a mais fácil de ser cuidada. Refiro -me sobretudo à dor moral, às difíceis escolhas que têm de fazer os que quere m servir a Deus com sinceridade e dedicação. Vivemos tempos em que se dá primazia ao prazer físico e ao bem-estar material. O homem busca a satisfação dos seus desejos e a dor não faz parte de seu repertório. Entretanto, é ela que nos faz crescer , sair da acomodação, galgar degraus na caminhada evolutiva. Infelizmente, a grande maioria de nós ainda precisa da dor para crescer - em particular os médiuns, que en frentam inimigos do passado, além das resistências do presente, oriundas de suas próprias imperfeições.

Miguel fez uma pausa, dando tempo para que Emilie absorvesse as explicaçõ es. Ela se levantou e caminhou em silêncio até um dos vasos com farta fol hagem. Tirou duas ou três folhas secas e depois se virou para Miguel, perguntando:

- Então é muito difícil ser médium?

- Realmente é, Emilie. Neste momento muitos estão encantados com a possib ilidade de intermediar a comunicação entre os dois planos da vida. Acham estimulante possuir essa capacidade, antes considerada sobrenatural. Contudo, boa parte deles rapidamente se perde e confunde em seu papel, agindo segundo velhos hábi tos e buscando nas atividades mediúnicas a satisfação dos próprios interesses, ainda que camuflados por intenções aparentemente nobres. Ser médium com Jesus é esta r a serviço da Espiritualidade superior, sem vaidade, compreendendo que a submissão à v ontade de Deus é que deve prevalecer sempre.

Emilie voltou para junto dos amigos e indagou:

- Acha que não vou conseguir, Miguel? Não terei força suficiente?

398 RENASCER DA ESPERANÇA

- Você pode triunfar em suas responsabilidades, Emilie. Deus não lhe confi aria os compromissos desta encarnação se não fosse capaz de dar conta dele s. - Então, o que devo fazer?

- Não existe uma fórmula. Todavia, se colocar os preceitos da Doutrina Espír ita acima de seus interesses pessoais, se nunca a desvirtuar e, sobretudo, s e tentar sinceramente aplicar na prática de sua vida diária os ensinos de Jesus, esp ecialmente a humildade e o amor, com certeza estará no caminho.

Emilie se calou. Contemplando o céu azul através das amplas vidraças do ja rdim de inverno, deixou que as lágrimas rolassem pelo seu rosto. Sara segu rou-lhe as mãos e disse:

- Você não estará sozinha. Muitos são os que nos apoiam, tanto aqui como no plano espiritual.

- Eu sei, Sara. As últimas circunstâncias da minha vida são uma prova do a uxílio constante que recebemos. Sei que temos proteção, não é isso que tem o.

- Então o que é?

Emilie ergueu os olhos úmidos para Miguel e Sara e confessou:

- Temo a mim mesma.

Miguel tocou de leve suas mãos e disse:

- Esse é o desafio de todos nós, Emilie.

Durante todo o dia Emilie esteve amorosamente envolvida em carinho e aten ção dos amigos. No final da tarde, recebeu o aviso de que Ricardo aguarda va na entrada, pedindo para vê-la.

Lucius / SANDRA CARNEIRO 399

Capítulo

Quarenta e três

Ao ouvir o nome do marido, Emilie ficou aturdida. Sentiu uma angústia ant iga, sua velha conhecida. O medo apoderou-se dela.

- O que vou fazer? Não sei o que dizer. Esperei por este momento e agora n ão sei como agir. Antes queria que Ricardo sofresse dor igual à que amargu ei, quando acreditou em mentiras a meu respeito. Estava magoada e ofendida por não me haver compreendido. Mas, diante de tudo o que aprendi, como continuar desejan do a mesma coisa?

Miguel se levantou e estendeu-lhe o braço:

- Confie na Providência que tem guiado os seus passos até aqui e ponha em p rática o que tem aprendido, Emilie. Você precisa enfrentar seu destino.

Emilie esboçou ligeiro sorriso, e ainda com passos inseguros acompanhou Mi guel até o hall, onde Ricardo se encontrava a esperá-la. Assim que o viu f icou com as pernas bambas, e quase não continha a emoção. Queria abraçar o marido, beijá-lo, refugiar-se confortavelmente em seus braços, como costumava fazer no pas sado, mas sentia que algo indefinido os distanciava.

401

Ao vê-la, profundamente comovido, Ricardo antecipou-se e, abraçando-a co m carinho, balbuciou:

- Emilie, Emilie...

Não pôde prosseguir: a emoção era tanta que embargava sua voz. Fazia o po ssível para conter as lágrimas. Emilie deixou-se envolver pelo terno abra ço enquanto Miguel se afastou, deixando-os a sós.

Sem pensar, Emilie deixou o coração falar mais alto:

- Senti saudade.

- Eu nem posso contar o quanto sofria sua falta, Emilie. Contudo, sinto-me também envergonhado pelo que permiti que lhe fizessem, querida. Perdoe-me , por favor; fui injusto, confiando mais nos outros do que em você. - Não vamos falar disso agora, Ricardo.

- Como posso calar sobre o que aconteceu? Desde que soube da verdade, te nho me torturado a cada segundo. Admiti que você fosse acusada, envolvid a em uma trama sórdida. Não percebi, querida, não percebi.

- Como poderia, Ricardo? Todas as evidências estavam contra mim...

- Mas eu deveria ter imaginado...

- Como? Minhas crises estavam cada vez mais freqüentes. Você sabe que até eu tive dúvidas?

- Dúvidas?

- Sim, antes de ter compreensão total do que se passava comigo, do que sign ificavam aquelas atitudes anormais, julgava estar perdendo o juízo e sem co ntrole sobre mim mesma. Como saber o que poderia ter feito em tais circunstâncias?

- Vamos esquecer, querida, por favor. Vamos recomeçar nossa vida. Cíntia a espera ansiosa.

Ao ouvir o nome da filha, o rosto de Emilie iluminou-se.

- Como ela está, Ricardo?

402 RENASCER DA ESPERANÇA

- Agora está bem. Depois que soube que em breve se encontraria com você, a alegria voltou ao seu coraçãozinho. Ela sofreu demais, Emilie, nem pode imaginar quanto. Falava em você todos os dias e sei que o maior desejo dela era vê-la outra ve z.

- Imagino como deve ter sido difícil para nossa pequenina ter de enfrentar uma situação tão amarga.

- Foi difícil e sei que ela amadureceu bastante nesse período; tanto que às vezes me surpreende com uma visão da vida muito além de sua idade. - Ela sempre foi muito inteligente e sensível.

- É verdade, sempre nos surpreendeu com suas observações aguçadas da real idade.

- Quando poderei vê-la, Ricardo?

- Imediatamente. Ela nos aguarda no hotel.

- No hotel?

Segurando as mãos da esposa com firmeza, Ricardo pediu:

- Emilie, gostaria que viesse comigo já. Vamos nos instalar em um hotel, ap enas por uns dias.

- Por que um hotel?

- Tenho vivido na casa de meus pais, desde que você foi levada. Nossa casa ficou fechada por alguns meses, depois decidi vendê-la. Ela me trazia mui tas recordações e não pude continuar vivendo lá. Agora que tudo está esclarecido, quero c omprar uma casa nova, para começarmos tudo outra vez.

Apertando as mãos da esposa entre as suas e levando-as aos lábios, ele acre scentou:

- Vamos esquecer todo o mal que nos aconteceu e partir para uma nova vida . Tínhamos tantos planos, tantos sonhos... Vamos recomeçar, só que longe da minha família. Você estava com a razão ao ter reservas em relação a eles. Devia tê-la escut ado e ficado em Paris. Teríamos evitado todo esse sofrimento...

Lucius l SANDRA CARNEIRO 403

Emilie fitou o marido com olhar melancólico:

- Ricardo, Ricardo...

- O que foi? Não pode me perdoar? Por favor, perdoe-me e esqueçamos tudo . Quero você de volta, Emilie. - Não é isso, Ricardo. No início fiquei muito triste com você, devo confess ar. Mas depois de tudo o que vivi e aprendi, não posso guardar mágoa ou res sentimento, nem mesmo de sua mãe.

- Minha mãe agiu de maneira inaceitável. Ela não podia, não tinha o direito de manipular as pessoas para obter seus desejos. Isso é detestável. É inadmi ssível. Eu não posso perdoá-la!

- Concordo que a conduta de dona Isabel é absolutamente reprovável. E talve z tenha dificuldade em ficar frente a frente com ela; porém não devo e não vou odiá-la. A bem da verdade, no fundo, sua mãe me fez um grande favor.

- Agora você me assusta. Está estranha...

Ricardo se afastou um pouco e olhou-a detidamente. Emilie sorriu e disse:

- Mudei os cabelos, não percebeu?

- Percebi que estava muito diferente. Ficou bem com essa cor, e o corte tam bém me agradou. - Ricardo sorriu, acariciando os cabelos de Emilie - No ent anto, há algo mais em você que está diferente.

Emilie se levantou e caminhou em silêncio até a porta que dava para o jard im de inverno. Depois voltou-se para o marido:

- Muita coisa mudou desde que nos vimos pela última vez, Ricardo. Passei p or experiências marcantes desde então.

- Eu sei, querida, foi tudo muito intenso.

- Intenso demais, Ricardo, muito além do que qualquer um pudesse supor. Na verdade, os acontecimentos dos últimos meses transformaram minha vi da e a maneira como a enxergava. Eu mudei, Ricardo. Passei a entender melhor o que se pas-

404 RENASCER DA ESPERANÇA sava comigo. Aprendi a perceber melhor as pessoas que estão minha volta e reconhecer-lhes as necessidades e os sentimentos. Não é mais possível, par a mim, ignorar certas realidades.

- Do que está falando, Emilie?

Ela olhava o marido com ternura. Estava indecisa: continuava ou aguardav a outro momento? Disse apenas:

_ Acho que devemos conversar um pouco mais antes de eu ir com você para o hotel. Precisa saber tudo o que se passou comigo...

Ricardo colocou o dedo em seus lábios, impedindo-a de prosseguir.

- Não importa o que tenha ocorrido com você, o quanto tenha mudado, suas experiências, nada me importa. Cíntia precisa de você, e quero que venh a comigo agora mesmo. Mais tarde conversaremos sobre o que quiser... ^ Depois, Emilie. Se você me perdoa, como disse, e se não guarda ressentimento de minha mãe - o qu e me surpreende, pois eu próprioo sinto muita raiva pelo que ela nos fez sofrer -, tanto me lhor. Vamos passar uma borracha no que aconteceu e recuperar o tempo perdid o. Emile sorriu e tocou com suavidade o rosto de Ricardo:

- Também quero seguir com minha vida, mas não posso apagar o passado com o você sugere. Na verdade, o passado me ensinou multo e terei de recordá -lo por muito tempo. - Então relembre o aprendizado, não os fatos dolorosos.

Agora, Emilie, pegue suas coisas e vamos. Cíntia nos espera. Sobrepondo-se à indecisão, a expectativa de rever a filha a fazia esquecer de tudo o mais. Por fim, disse:

_ Ainda acho que deveríamos conversar uma pouco mais antes...

Não quero ficar longe de você nem mais um minuto.

Emilie, por favor, pegue as suas coisas e vamos embora. LUC1US / SANDRA CARNEIRO 405

- Calma, Ricardo, preciso falar com Miguel e com outros amigos que vieram de longe para celebrar comigo a reconquista da liberdade. Não posso simp lesmente deixá-los assim.

Ricardo calou-se, contrariado. Depois, esforçou-se para dizer, com meio sorr iso nos lábios:

- De quanto tempo precisa? Dez minutos, trinta minutos? Estarei no carro.

Diante da insistência dele, Emilie aquiesceu, puxando-o pela mão:

- Não precisa esperar no carro. Quero que conheça Miguel, Sara e todos os meus amigos.

Um tanto constrangido, Ricardo deixou-se conduzir por Emilie, que o aprese ntou a Miguel e aos outros. Depois de curta conversa ele se despediu, dize ndo à esposa que a aguardaria na carruagem.

Emilie despediu-se dos amigos com melancolia. Sentia-se dividida entre a fa mília e os companheiros de ideal. Por fim, já à porta, confidenciou a Migue l:

- Vou com o coração apertado. Estou confusa, não sei como explicar... O f ato é que sinto uma grande distância entre mim e Ricardo. Tenho medo, Mig uel.

- Não tema, Emilie. Não pode se esconder da vida. Precisa desatar cada um dos nós que a amarram ao passado e seguir com intrepidez pelo caminho qu e a conduz ao futuro luminoso. Desate os nós, um a um, com paciência e perseverança. Estarei s empre aqui, para o que for necessário. Você é querida por todos nós. Vá c om Deus, minha filha, e confie Nele.

Emilie sorriu, um pouco mais encorajada, beijou-o suavemente na face e dis se: - Obrigada por tudo, Miguel. Deus o abençoe pelo que tem feito por todos o s que sofrem. Não sei o que seria de mim sem sua ajuda. Não sei o que teri a sido de Lucrécia e Jairo sem

406 RENASCER DA ESPERANÇA seu amparo. Obrigada, Miguel, obrigada...

Ela não pôde continuar. Miguel enxugou-lhe as lágrimas e afirmou:

- Não tem de me agradecer, Emilie. Estamos todos a serviço de nosso Mestre Jesus. E é a Ele que temos tudo a agradecer.

Emilie sorriu. Sabia que seria inútil insistir no agradecimento ao amigo e ap enas disse:

- Que nosso Mestre, a quem você tanto ama, o abençoe. Desceu as escadas pr ocurando conter o pranto e entrou na carruagem ao lado do marido. O carro partiu e ela ficou a observar a figura de Miguel, que aos poucos sumiu de sua visão. Ri cardo a abraçou e beijou apaixonadamente. Entretanto, apesar da saudade e do carinho que nutria por ele, não conseguia retribuir-lhe na mesma intensidade.

Sentindo a esposa estranha, afastou-se e fitou-a, dizendo:

- Deve estar muito cansada, não, Emilie? Pobrezinha... tanto sofrimento... t anta luta... - e aconchegou-a ao peito - Venha, querida, descanse. Vou cuida r de você e encontrar um modo de compensá-la pelo que sofreu.

Emilie abrigou-se nos braços fortes de Ricardo. Entretanto, estava longe de sentir-se feliz como imaginara.

Enquanto a carruagem seguia, Emilie escutava o relato do marido acerca dos acontecimentos. Então pediu-lhe que falasse mais sobre a filha. Ricardo s e empolgou falando de Cíntia e se emocionou ao mencionar os planos que tinha para o futuro da família. Omitiu o fato de a menina ter sido enviada ao convento, ressaltand o apenas o quanto ela se sentira infeliz com a ausência da mãe. Emilie procurava acalmar a angústia que lhe tinha na alma dedicando toda a atenção às informações sobre a filha.

Quando a carruagem parou em frente ao hotel, ela quase não podia respirar, tal sua ansiedade. Com o coração acele-

LUCIUS / SANDRA CARNEIRO 407 rado e sem poder disfarçar a emoção, tinha as mãos geladas e trêmulas. Ric ardo a ajudou a descer e foi com esforço que conseguiram atravessar a mult idão e chegar à porta de entrada. Muitos curiosos, repórteres e populares se aglomeravam diante do prédio.

Entre a gritaria e o assédio do povo, Emilie e Ricardo alcançaram o saguão . Emilie, com o número do quarto onde Cíntia a aguardava, no quinto andar, não se deteve um só minuto: entregou ao marido a valise que trazia e subiu as escadas c orrendo. Assim que chegou no corredor do quinto andar, apertou ainda mais o passo. Uma porta se abriu e Cíntia correu ao encontro da mãe. As duas se abraçaram e não con trolaram as lágrimas:

- Eu sabia, mãe, eu sabia que você não tinha feito nada...

Emilie não tinha condição de responder. As lágrimas desciam-lhe pela face e , embora tentasse conter-se, a emoção a impedia de dizer à filha tudo o que pensara durante aqueles meses de exílio. Cíntia continuava:

- Senti tanto sua falta, mãe...

- Eu sei... Eu também senti - por fim Emilie balbuciou. Cíntia colocou as m ãozinhas no rosto da mãe e, limpando as lágrimas que caíam, disse:

- Você está diferente, mãe, está mais bonita do que antes... Seu cabelo ficou lindo, escuro e mais curto.

Apertando ainda mais o abraço, Emilie respondeu:

- Você gostou mesmo, filha? - Muito!

- Então vou deixá-lo assim para sempre...

- Gosto de você de qualquer jeito, mãe - afirmou a menina, sorrindo.

Emilie e Cíntia permaneceram sentadas no chão do corredor, sob os olhares pasmados de outros hóspedes, até que Ricardo subiu e as levou para o quart o.

408 RENASCER DA ESPERANÇA

Os três passaram longo tempo em alegre e descontraída conversação. Cíntia queria saber tudo o que acontecera com a mãe e, a despeito de sentir desco nforto com as minúcias das experiências vividas pela esposa, Ricardo sorria, esforçando-s e por encarar tudo com naturalidade.

Cíntia, por sua vez, também contou à mãe o que fizera em sua ausência, dem onstrando carinho especial pelas tardes em que visitara o orfanato com Fer nando. Emilie se interessou muito pelas atividades da filha no orfanato e lhe garantiu que iriam juntas ver as crianças, logo que tudo estivesse mais organizado em suas vidas.

Já era tarde da noite quando finalmente Cíntia adormeceu, vencida pelo ca nsaço. Emilie colocou-a na cama e a observava com ternura, quando Ricardo , puxando-a pelas mãos, pediu:

- Precisamos conversar, Emilie.

- Não podemos falar amanhã, Ricardo? Estou cansada...

- Acho melhor conversarmos enquanto Cintia dorme. Emilie se sentou na pol trona e, sorrindo, deixou que ele começasse:

- Querida, compreendo que passou por experiências estranhas e muito impre ssionantes. Da mesma forma, entendo que queira dedicar tempo a Cíntia e f azer tudo por ela. Sei quanto a ama. Porém há coisas que não são adequadas para nossa filha. - Por exemplo...

- Por exemplo, falar desses fenômenos sobrenaturais que você viveu. É evide nte que estava sob forte pressão emocional e tudo pode ter sido fruto desse estado.

Ele fez uma pausa e Emilie permaneceu calada, olhando séria para o marido , que prosseguiu:

- Outra coisa: não gostaria de ver as duas enfiadas no orfanato. Fernando es tá preso, e é uma fraude. Não as quero

Lucius / SANDRA CARNEIRO 409 envolvidas em nada que se relacione com ele. Esse homem prejudicou sua vid a! Acho até que deveriam fechar esse orfanato e acabar de vez com essa ini ciativa ridícula de um padre de mentira!

Emilie fitou o marido, profundamente entristecida. Ouvindo-o, percebia com nitidez o abismo que havia entre eles. Refletiu que Ricardo não poderia c ompreendê-la nem aceitá-la. Agora pertenciam a mundos diferentes. Quando ele silenciou, ela perguntou:

- E o que é que as crianças órfãs têm a ver com os desencontros de Fernan do, ou com os problemas que porventura ele tenha criado? Que culpa têm el as? Deveriam ser abandonadas por causa do erro de outrem?

Ligeiramente desconcertado, ele disse:

- Não, claro que não, acho que devem ser transferidas para outro orfanato, m ais estruturado.

- Entendo.

Ele se ajoelhou aos pés da esposa e, segurando suas mãos, disse:

- Emilie, minha doce e querida Emilie, vamos apagar tudo o que vivemos ne sses últimos e terríveis meses, vamos esquecer tudo. Comecemos de onde pa ramos, antes de...

- Antes do que, Ricardo? A que ponto de nossa vida você gostaria de retroce der?

Ele se levantou, caminhou até a janela e, virando-se, falou:

- Quero ser feliz com você, Emilie. Fizemos tantos planos... Tivemos tantos sonhos juntos... Quero que eles se realizem, só isso.

Emilie insistiu:

- Diga-me, Ricardo, a que ponto gostaria de retomar?

- Quando nos conhecemos tudo prometia ser maravilhoso.

- E foi, Ricardo. Mas não podemos interromper a vida. Ela é dinâmica e se renova todos os dias. Hoje já não somos o

410 RENASCER DA ESPERANÇA que fomos ontem e amanhã seremos diferentes. Tudo se transforma, muda - e nfim, progride. Não podemos impedir o progresso. É a lei da vida.

Ricardo estava sério e atento. Emilie continuou:

- As experiências que eu vivi transformaram minha vida, e não posso fingir que não aconteceram.

- Não peço isso. Sei que você amadureceu através delas.

- É muito mais do que isso, Ricardo, não percebe?

- Percebo que a amo, Emilie, que quero construir tudo aquilo que sonhamos e desejamos. Quero ter outros filhos com você, fortalecer nossa família...

- E a sua família?

O semblante de Ricardo se fechou, deixando transparecer a irritação que o rumo da conversa lhe causava.

- Esqueçamos minha família. Vou comprar uma casa para nós em outro lugar qualquer que você prefira. Diga-me, onde quer morar? Qual casa deseja t er? Desta vez, vamos fazer tudo como você desejar. Admito que errei ao insistir que vivêssemos perto de meus familiares. Sei que eles não a aceitaram e isso a magoou mui to, reconheço. Emilie, sei que errei, por isso peço que recomecemos. Sei que não vai mais q uerer ver minha família...

- Não é propriamente isso que me preocupa.

- Então o que é?

Ela o fitou longamente, buscando as palavras para prosseguir:

- Não sei se você vai me querer como sou, ou melhor, como me reconheci de pois de tudo o que houve. Eu mudei, Ricardo, descobri muitas coisas e fat os a meu respeito que dão novo significado e outra direção à minha vida. E não sei se você va i me aceitar como sou agora.

- Daremos um jeito, vamos encontrar a maneira...

- E concordará que eu vá com Cíntia ao orfanato?

Lucius I SANDRA CARNEIRO 411

- O que tem uma coisa a ver com a outra?

Dessa vez foi Emilie que se ergueu e suspirou fundo enquanto caminhava, d izendo:

- Vê como é difícil nos compreendermos? O que é importante para mim pod e não ter interesse algum para você. Como vamos conviver assim?

- Encontraremos um modo; mas você não precisa ir ao orfanato...

- Não é só o orfanato, é tudo. Meus hábitos agora são diferentes, minhas as pirações também.

- Não quer rnais ser minha esposa? Encontrou outra pessoa, apaixonou-se e não quer me contar, é isso? É esse tal Miguel? Vocês se envolveram? - Não é nada disso, Ricardo. Claro que quero continuar a ser sua esposa, a mo você. Quero minha família, com certeza, porém... Hoje existem outras co isas importantes para mim. Tão importantes quanto você e Cíntia.

Ricardo ameaçou responder, quando a menina apareceu na sala, pedindo:

- Vem dormir comigo, mãe? Faz tanto tempo que não dormimos juntas...

Abraçando-a com ternura, Emilie olhou para Ricardo e disse:

- Claro, querida. Seu pai e eu temos muito que conversar, mas faremos isso mais tarde; não é, Ricardo?

- Sem dúvida. Vão descansar. As duas merecem. Emilie sorriu agradecida e acompanhou a filha até a cama.

Aconchegando Cíntia em seu abraço, tentou conciliar o sono; no entanto, n ão conseguia. De quando em quando olhava o rosto tranqüilo da filha, dorm indo ao seu lado, e então repetia baixinho:

- Obrigada, meu Deus, obrigada por ter outra vez minha filha ao meu lado...

412 RENASCER DA ESPERANÇA

Capítulo Quarenta e quatro

Os dias que se seguiram foram de alegria e prazer. Emilie desfrutava a com panhia doce e amorosa de Cíntia, pela qual tanto ansiara. De Ricardo receb ia cuidados constantes e mimos diários. Ele, que se sentia culpado e indiretamente responsável pel as dolorosas experiências vividas pela esposa, desdobrava-se em gentilezas. Nunca antes fora tão preocupado e dedicado para com a esposa. Encheu-a de presentes caro s: roupas, jóias, livros, quadros e outros objetos de arte; embora Emilie in sistisse que ele não lhe desse nada, intimamente apreciava o bem-estar e o estilo de vida que voltava a ter. Além do mais, ser o centro das atenções despertava nela profunda satisfação, da qual nem se dava conta. De tudo, o que mais apreciava eram as tardes frias, sentada defronte à lareira, em longas conversas com Cíntia.

Vez por outra, Emilie tentava falar com Ricardo sobre as questões que havia descoberto; entretanto, ao perceber que a conversa ia enveredar por temas espirituais, o marido logo suscitava algum assunto interessante e agradável, atraindo a atenção da esposa para a casa que estavam prestes a comprar, os detalhes da decoração que em breve começariam a escolher e outras amenidades.

413

Duas semanas já se haviam escoado desde que Emilie deixara a casa de Migue l. Este, sempre cortês, enviou pequena carta pedindo notícias da amiga, e junto a nova edição da Revista Espírita, que acabara de chegar. Quando recebeu o bilhet e, com cuidado o dobrou e colocou dentro da revista. Ricardo, ao ver a espo sa lendo o bilhete e depois folheando a revista, perguntou:

- Algum admirador?

- Claro que não. É de Miguel, que sempre se preocupa comigo.

Ricardo se aproximou e, tomando a revista das mãos da esposa, folheou-a ind iferente. Ao devolvê-la, disse:

- Não passam de bobagens, tolices! Ninguém pode falar com os mortos. Os q ue se foram jamais poderão comunicar-se. Isso tudo é mentira...

Emilie fechou a revista e, apertando-a entre as mãos, interrompeu o marido:

- Ricardo, você realmente não me escuta! Já disse que nada disso é tolice. Eu sou a prova, pois senti na pele tudo o que ensina o Espiritismo. Aliás, graç as aos ensinamentos espíritas é que hoje estou aqui. E foi unicamente pela ajuda q ue recebi através de adeptos do Espiritismo que pude permanecer viva...

Foi a vez de Ricardo a interromper: - Está bem, não vamos discutir. Não quero mais brigar com você. Se quiser continuar a ler essas coisas, não sou eu quem vai impedir. Com o tempo voc ê vai perceber que tudo isso foi apenas fruto das experiências dolorosas que passou. Tudo psicológico, Emilie, tudo de sua cabeça. Mas vou deixar que faça o que for melhor para você.

Emilie olhava firme para o esposo, buscando identificar suas reais intençõ es. Aproximou-se, beijou-lhe suavemente a face e indagou:

414 RENASCER DA ESPERANÇA

- Então não se incomoda que eu vá até a casa de Miguel, de vez em quando?

- Com que finalidade?

- Ele tem um centro de estudos do Espiritismo e sei que posso ser útil durant e essas reuniões.

- Emilie, veja bem o que está pedindo. Estamos iniciando vida nova. Você já sofreu tanto... Teve de se envolver nisso para poder sair de uma situação di fícil em que foi colocada. Agora está livre, pronta para recomeçar. Temos tudo a n osso favor. Convenci meu pai a deixar sob minha exclusiva responsabilidad e uma das empresas e, assim, não mais precisaremos nos preocupar com o futuro; mesmo o contat o com minha família ficará restrito a reuniões de negócios, até que todas as chagas cicatrizem. Agora precisa me ajudar. Se voltar a se envolver com essa... essa... essa h eresia, vai ser mais complicado! Considere que minha família é influente e, embora meu pai concorde em nos deixar seguir nosso rumo, não posso afrontá-lo a toda h ora. Temos de ser discretos, sóbrios e conscienciosos, até que toda a situa ção caia no esquecimento; e daí poderemos, afinal, ocupar de novo o lugar que nos cabe na sociedade.

- Você realmente não compreende. Ricardo pegou a mão esquerda da esposa e beijou o dedo onde estava a alian ça, dizendo:

- Não está feliz? Vejo nos seus olhos a alegria que sente por estar em paz com nossa filha, com nossos planos para o futuro. Pode negar?

- Não, Ricardo, não vou mentir para você. Estou imensamente feliz por tudo o que vem acontecendo. Ter minha vida de volta era meu maior desejo, mas. .. Não é suficiente.

Abraçando-a apertado, Ricardo encerrou o assunto:

- É claro que não é suficiente! Precisamos trazer alguns irmãos para Cíntia! É disso que você sente falta; mais crian-

Lucius / SANDRA CARNEIRO 415

ças nos trarão maior alegria e encherão nossa casa; e sua vida também!

Quando Emilie tentou esclarecer ao marido o que lhe ia na alma, Ricardo p uxou-a para a ante-sala e depositou um molho de chaves em suas mãos:

- Aqui estão, querida: as chaves de nossa casa. Surpresa, Emilie abriu largo sorriso e perguntou:

- Você conseguiu mesmo aquela casa linda e agradável, fora da cidade?

Ajoelhando-se diante da esposa, ele gracejou:

- Claro! Seu desejo, por menor que seja, é uma ordem, senhora!

Sem coragem de retomar ao assunto que a incomodava, Emilie deixou-se inv adir pela satisfação do momento.

Nas semanas que se seguiram, Ricardo manteve a esposa inteiramente ocupad a com os preparativos para a mudança, e finalmente entraram os três na ca sa nova e confortável, decorada ao gosto de Emilie.

Contudo, na primeira noite que passariam na casa, ao se deitar Emilie senti u um medo inesperado que tirou a alegria de seu coração. Ricardo notou que a esposa se revirava na cama, sem poder dormir, e perguntou:

- Não está feliz, querida?

- Claro que estou, Ricardo.

- E qual é o problema? Por que não consegue dormir? A casa não ficou com o você queria?

- Tudo está perfeito. Você sabe que sempre desejei uma casa assim, num lug ar mais tranqüilo.

- Então o que a aflige? Foram as últimas notícias sobre o processo que a p erturbaram? Pois direi ao nosso advogado que não venha mais discutir essas questões conosco. Pedirei que vá à fabrica e resolverei tudo por lá. Sei que o assunto ainda

416 RENASCER DA ESPERANÇA a aborrece; tudo é muito recente e deve causar-lhe incômodo; ainda assim, t em de entender que meu pai vai inocentar a própria família.

Emilie permaneceu em silêncio. Ricardo prosseguiu:

- Não precisa se chatear. Foi você mesma quem afirmou que não queria ving ar-se; que apesar de não poder conviver com eles, não desejava vingança.

- E não desejo. Que Deus faça a justiça conforme Ele quiser. Todos pagam pe los seus erros, Ricardo, cedo ou tarde, aqui ou na vida depois da morte, to dos...

De repente ela parou e arregalou os olhos, em pânico.

- O que foi, Emilie, o que foi? - perguntou Ricardo, espantado.

- São eles.

- Eles quem? Meus pais?

- Não. Eles. Outra vez! - Quem, Emilie? Do que está falando?

- Por favor, não!

- Emilie, o que está havendo?

Emilie encolheu-se na cama, apavorada, enquanto os inimigos espirituais q ue de há muito a perseguiam se aproximavam. O mais agressivo disse:

- Sábias palavras. Todos pagam pelos seus erros... E você não é melhor do que ninguém! Não pense que vai escapar.

Emilie baixou a cabeça e começou a orar, pedindo ajuda. Ricardo, assustad o, não tinha a menor noção do que se passava. As entidades se achegavam m ais e mais ao rosto de Emilie, uma delas empunhando um cutelo afiado. A moça, percebendo que cada vez estavam mais perto, não ousava erguer a cabeça e orava sem ces sar. De súbito, deixou de sentir a presença dos espíritos. Abriu os olhos e viu que haviam desapare cido e que Cíntia estava de pé, na porta do quarto. Ainda amedrontada, pergu ntou à filha:

Lunus | SANDRA CARNEIRO 417

- O que faz aqui, querida?

- Vim ver se precisava de mim.

Emilie notou que da menina resplandecia suave luz. Ricardo olhava para a esposa muito assustado. Ao perceber que o marido não via a filha, ela com preendeu que Cíntia não estava ali fisicamente, e sim com seu corpo espiritual. Então disse:

- Estou bem, querida, pode voltar. Você já me ajudou, obrigada.

Cíntia retirou-se, obediente, enquanto Ricardo se sentou na beira da cama, af lito:

- Meu Deus, Emilie, o que é isso? Vai começar tudo de novo? Todas aquelas crises, aquelas atitudes anormais?

Ainda sob forte impressão, Emilie procurou acalmar-se e disse: - Preciso ir às reuniões, Ricardo. Extremamente irritado, ele ergueu a voz:

- De forma alguma! Não vou permitir que faça parte desses grupos de feitiça ria! Não quero! Seu lugar é aqui, junto de mim e de Cíntia. Não admito que fique por aí! Tem responsabilidades. Tenho feito o melhor que posso, mas parece que vo cê quer sempre mais.

Emilie se calou. Ajeitou-se na cama e tentou dormir. Ricardo, sem saber o que fazer, levantou-se e andou pela casa remexendo papéis e caixas, quase até o amanhecer.

Nos dias que se seguiram Emilie passou a ter pensamentos sombrios e receio s de todo tipo. Tinha medo por tudo. Temia que a filha saísse, que o marid o sofresse algum acidente; temia até que a menina engasgasse quando se alimentava. Os med os iam surgindo do nada e logo tomavam conta da sua mente. Ricardo já se preocupava seriamente e pensava que talvez a esposa devesse voltar a consultar um médico. Quando lhe propôs isso, Emilie resistiu com vigor:

418 RENASCER DA ESPERANÇA

- Não quero nem que toque no assunto. Sei que meu problema não é médico .

- E o que é?

- É espiritual, já disse. Tenho de participar das reuniões na casa de Miguel, sei que elas me farão muito bem.

- Não, isso não se discute.

- Por quê? Estou certa de que me farão bem!

- Não, não quero você envolvida com isso outra vez. Já chega! Temos de p ensar em algo, fazer alguma coisa. Você estava bem. Todo o tempo em que nos preparávamos para vir para esta casa, esteve muito bem. O que aconteceu?

Ricardo refletia, caminhando de um lado a outro na sala. Enfim parou e diss e:

- Já sei: vamos fazer uma viagem. As coisas na fábrica estão em ordem; ten ho pessoas de minha confiança trabalhando ali. O seu depoimento no process o é só para daqui a dois meses. Portanto, podemos viajar. Mantendo a mente ocupada, sem dúv ida você irá melhorar.

- E os estudos de Cíntia?

- Esperarão, Emilie. Nossa vida e nossa felicidade são mais importantes do que tudo.

- Ricardo, querido, você tem de me ouvir. Tenho tantas coisas a compartilha r com você!...

- E por que não fala?

- Todas estão vinculadas às experiências que vivi, ao Espiritismo...

- Não, esse assunto não.

- Está vendo? Você não quer me escutar...

- Eu a amo demais e estou feliz por ver Cíntia tão alegre outra vez. Contud o, não acredito nessas baboseiras e acho que são realmente do demônio. Não ateei fogo aos livros espíritas, mas apoio incondicionalmente o que foi feito. Esses espí ritas

Lucius j SANDRA CARNEIRO 419 estão iludindo as pessoas.

- Meu Deus, não é nada disso! Levantando-se, determinado, ele disse:

- Vou tomar as providências necessárias para nossa viagem. Se tudo der cer to, partiremos amanhã.

- Amanhã? E para onde?

- Qualquer lugar, Emilie, qualquer lugar interessante. Vamos às Américas, o que acha? Uma longa viagem de navio!

- É muito distante, Ricardo.

- Então vamos à Índia! Um lugar exótico vai ser empolgante! Sem esperar res posta, beijou-a na testa e, colocando o pesado casaco, disse:

- Volto assim que resolver tudo.

Sentada no sofá, a jovem permaneceu muito tempo olhando pela vidraça que dava para o jardim de inverno. Observava Cíntia estudando com o profess or contratado. A filha estava cada vez mais linda. Emilie admirou seu entusiasmo pela nova língua que aprendia. Estava absorta em seus pensamentos, quando ouviu vo z áspera e conhecida atrás de si:

- Pensa que vai tê-la por muito tempo? Não vai, não! Muito em breve a tira remos de você.

Emilie virou-se e viu novamente as quatro entidades, que iam em sua direçã o. A mais revoltada continuou:

- Nunca a deixaremos em paz, entendeu? Nunca! Jamais a perdoaremos pelo que fez.

- Eu não entendo...

- É claro que não! Não pode se lembrar da masmorra escura em que nos lanço u a todos, pois jamais foi até lá ver nossas condições. Deixou-nos na pris ão, abandonados à dura sorte.

- Não é verdade!

- Como não, madre superiora? Superiora na maldade, na crueldade!

420 RENASCER DA ESPERANÇA

- Não sei do que vocês estão falando, eu não me lembro!

- Pois nós não esquecemos nem por um só instante! Abandonou-nos até apo drecermos naquela cela. E por quê? Apenas porque minha mãe, minha santa mãezinha, era uma mulher hábil em manipular ervas e assim ajudava a muitos. Você acreditou e m falsas acusações e nos enviou para a morte. Agora vai pagar.

Acercavam-se dela cada vez mais. O homem que falara trazia o cutelo nas m ãos.

- O que querem? Digam-me o que posso fazer!

Com gargalhada sarcástica e estridente, uma das mulheres disse:

- Queremos que sofra pela eternidade. Tiraremos tudo o que você ama, até q ue sua vida esteja destruída. Começando pela menina...

Desesperada, Emilie ajoelhou-se e em pranto implorou:

- Por favor, tenham piedade.

- Piedade? O que você sabe de piedade? Cale-se!

Lucius l SANDRA CARNEIRO 421

Capítulo quarenta e cinco

Emilie chorava angustiada, sentindo o odor fétido que se espalhava pelo ar . Num lampejo, pensou que seria para sempre perseguida por aquelas criatur as. O mais hostil chegou bem perto e, alçando o cutelo, tencionava cravá-lo no coração da j ovem. Subitamente a sala se encheu de luz e o ar inundou-se de suave perf ume. Logo uma figura feminina apareceu, falando com voz doce e firme a um só tempo:

- Por que agasalhar tanto ódio no coração, meus filhos? As quatro entidades ficaram paralisadas diante do intenso brilho que daquela mulher emanava. E milie, identificando a voz inesquecível da amiga e protetora, ergueu a cabeça e deparou com o semblante luminoso e amado de Lucrécia. Emocionada, desejava saudá-la, mas estava igualmente paralisada. Lucrécia se aproximou da entidade que portava o cutelo e o retirou de sua s mãos. Fazendo enorme esforço, o homem disse:

- O que quer aqui? Não temos nada com você. Deixe-nos ir embora! O que está fazendo conosco?

- Precisamos conversar, todos nós.

423

- Nada temos com você - insistia o espírito em tristes condições.

- Imagino que não me reconheçam, como também não os reconheci quando os encontrei, na pequena casa à beira-mar.

Emilie seguia o diálogo em silêncio.

- Entendo agora que, apesar de ligados por laços tão estreitos, era melhor não nos reconhecermos de imediato. Deus sempre sabe o que faz. No entanto, depois de já adaptada à nova vida pude relembrar o triste episódio do nosso passado, sem desequilíbrios para o presente, o que se faz imprescindível ao progresso d e todos nós.

Esforçando-se para controlar a emoção, ela prosseguiu:

- Meus filhos, aproveitemos a oportunidade que o Divino Pai nos dá.

Uma das mulheres gritou desesperada:

- Solte-nos! Nada queremos com você!

Diante do olhar estarrecido de Emilie e das quatro entidades, Lucrécia se tr ansfigurou; à sua silhueta se sobrepôs outra, de velha e sofrida senhora com longos cabelos e roupas em farrapos. Aí perguntou:

- Será que assim sabem quem sou?

A entidade masculina até então muito agressiva se ajoelhou, gritando:

- Mãe!? Não pode ser! Está havendo aqui algum truque! - Não é truque. Gostariam que eu estivesse assim, em farrapos, como vocês?

- Mãe! Você desapareceu! De repente, não a vimos mais. Ficamos presos po r tanto tempo naquela masmorra... Só muito depois descobrimos que já não fazíamos parte do mundo dos vivos. E você não estava mais lá. Para onde foi?

- Vaguei sem descanso no espaço, envolvida por dor e agonia. Queria reenc ontrar vocês, mas uma força desconhecida

424 RENASCER DA ESPERANÇA nos mantinha afastados. Muito tempo transcorreu até que sinceramente ped i socorro a Deus e o recebi através de amorosos protetores que me acompa nhavam de longa data, esperando meu despertar. Ajudaram-me a relembrar o passado distante e, c ompreendendo a imensa misericórdia do Pai, tive nova chance de colaborar na redenção das almas desviadas. Levaram-me até o abismo de dor onde se encontrava a madre superiora, que fora instrumento da justiça divina sobre nós.

Emilie acompanhava a narrativa como se assistisse a tudo, em uma grande te la mental, cena por cena. Reconhecia-se participando daquela história e se ntia-se desmoronar internamente diante da consciência do passado. Lucrécia prosseguiu:

- Vendo o estado em que ela se encontrava, e aceitando de coração as lições dos instrutores espirituais que me socorreram, finalmente percebi que era indispensável perdoá-la. E como somente o bem pode vencer o mal, eu poderia auxiliá-la a encontrar o caminho de seu dever na próxima existência. E ela, por sua ve z, repararia o mal praticado no passado através de trabalho árduo e contínuo em favor da queles que prejudicara, e em benefício de todos. Seria uma existência dedic ada a tarefas sublimes e redentoras. Amparada por amorosos trabalhadores da Iuz, ela foi r esgatada e aceitou trilhar o difícil caminho do bem, passo a passo. Instruiu -se e então, quando todos estávamos preparados, iniciamos a jornada terrena. Olhando para Emilie com desvelada ternura, Lucrécia recomendou:

- Não desperdice essa oportunidade preparada com tanto cuidado. Não esmo reça. Assuma seu dever e cumpra-o fielmente. Trabalhe intensamente para ajudar a resgatar aqueles que um dia, pela sua ignorância, perderam a fé e a confiança em De us. O serviço no bem a aguarda, exigindo renúncia e sacrifício. Mas a paz do dever cumprido igualmente a espera. Não deixe escapar

Lucius / SANDRA CARNEIRO 425 a ocasião, entregando-se outra vez ao orgulho e à vaidade. Vença a si mesm a e siga em frente. Lembre-se sempre de que tem responsabilidades assumida s antes de reencarnar, perante muitos companheiros que confiaram em você e dependem de sua tare fa começar para que possam realizar a que lhes compete. Tudo é encadeado e, se você falhar, outros terão de assumir o seu lugar, de improviso. Se isso acontecer, a perd a maior será sua, Emilie. Estupefata, Emilie recordava fatos do passado entr e lágrimas de angústia e de arrependimento. Lucrécia dirigiu-se às quatro entidades espi rituais:

- E vocês, meus filhos, perdoem também. Tenho pedido a Deus, dia e noite , que suas almas endurecidas pelo ódio sejam tocadas por Seu amor infini to. Somente com humildade conseguirão perdoar. Se abrirem mão dessa vingança que tanto buscam, ser ão livres para crescer e seguir na caminhada em direção à luz. Quando co mpreenderem que tudo tem uma razão e que apenas o bem pode vencer o mal, poderemos estar outra vez unidos. E este é o maior desejo de minha alma: estarmos todos reunid os, continuando nossa marcha eterna. Não quero mais vê-los estacionados, dominados pela d or e pelo sofrimento, perdendo tempo precioso em que já poderiam estar mu ito mais felizes, fruindo paz e alegria.

- Como pode pedir isso? Como pode perdoar e ajudar essa mulher, essa assas sina? Sabe que não só nossa família foi por ela destruída. Quantas outras?

- Foi ela quem contraiu esse débito e terá de arcar com as conseqüências d e seus atos. Vocês não imaginam o pesado fardo que ela traz sobre os ombro s. Não obstante, somos todos iguais perante Deus. E todos temos nossos fardos a carregar. P erdoe, meu filho, e sigamos em paz na bendita .

-Jamais perdoarei. Se você cometeu essa fraqueza, nada posso fazer...

426 RENASCER DA ESPERANÇA

Lucrécia parou a pequena distância das entidades sofredoras e conclamou:

- Aproveitem a oportunidade que estamos recebendo dos céus. Sempre é tem po de progresso e de crescimento. O Universo é a casa de Deus, onde todo s nos aperfeiçoamos rumo ao Criador. Deixem para trás o que no passado ficou. Olhem para o fu turo, para a nova esperança que desponta fulgurante, e marchem sem titube ar.

- Não! Não suporto mais! - gritava a outra mulher, que parecia a mais jove m de todos e conservava as mãos sobre os olhos, protegendo-se da luz que L ucrécia emitia.

Mais uma vez ela olhou para todos com imenso carinho e disse, desaparece ndo lentamente:

- Aproveitem a oportunidade, meus filhos, não a desperdicem.

Logo que a imagem de Lucrécia se desfez, as outras entidades sumiram tamb ém e Emilie por fim conseguiu se levantar e chegar ao sofá. Ainda estava ofegante quando Ricardo entrou com alguns papéis nas mãos. Vendo-a sem cor e banhada em lágrimas, apressou-se em socorrê-la:

- O que houve? Está bem? Outro mal-estar? Com dificuldade, Emilie respondeu:

- Não posso mais adiar, Ricardo. A misericórdia de Deus me alcançou e não vou mais protelar.

- Não compreendo... Sem deixá-lo continuar, ela disse:

- Infelizmente, Ricardo, não vou viajar. Vá com Cíntia, eu ficarei.

- Não tem sentido viajar sem você, Emilie. Afinal, é por sua causa que quero sair daqui.

- Mas é aqui que preciso estar, Ricardo. Tenho deveres a cumprir.

Lucius / SANDRA CARNEIRO 427

- Do que está falando? Que deveres tem, além de estar comigo e com sua fil ha?

- Tenho tarefas espirituais a executar, e não vou mais adiá-las.

- Está me assustando. Do que é que você está falando?

Emilie silenciou, refletindo. Respirou fundo, ajeitou o corpo no sofá e, depo is de manter a cabeça entre as mãos por instantes, fitou-o dizendo:

- Sei que será difícil para você aceitar, Ricardo, mas tenho de agir como manda meu coração. Preciso que compreenda e me ajude. Se realmente me ama, vai fazer isso. Não posso simplesmente esquecer o que houve comigo nos últimos meses. Is so transformou minha vida, meu interior. É impossível fingir que nada ac onteceu. Foram fatos que me colocaram diante do meu destino, das minhas responsabilidades, que agora preciso assumir definitivamente. Não será fácil para nenhum de nós.. .

- Afinal, Emilie, do que é que está falando? Será que pode ser mais clara?

Outra vez ela respirou fundo e mentalmente pediu a Deus que a sustentasse. Levantou-se e caminhou até a grande lareira. Depois foi até a vidraça e obs ervou Cíntia, que estudava compenetrada. Ricardo aguardava em ansiosa expectativa. Emil ie voltou a encará-lo e prosseguiu:

- Tenho compromisso espiritual a cumprir, e não posso mais fugir. Não posso mais ignorar minhas responsabilidades. Ou melhor, até poderia, só que jama is seria feliz. Não renasci para desfrutar benefícios e prazeres, para viver uma vida de ale gria ilusória e de satisfação do egoísmo e do orgulho. Estou aqui para traba lhar por aqueles que prejudiquei, e não posso mais me omitir.

- A quem você prejudicou, Emilie?

- Não sei os nomes, porém isso não importa. As tarefas espirituais me cham am.

428 RENASCER DA ESPERANÇA

Pálido, trêmulo e com a voz embargada, Ricardo perguntou:

- Vai se tomar freira? Emilie sorriu e exclamou:

- Não, querido, não vou ser freira. Vou servir a Deus de outra forma. Ricar do, agora sou espírita, sou médium e tenho trabalho a executar dentro desse movimento que começa a se expandir. Dentre minhas responsabilidades, devo colaborar para a difusão do Espiritismo na Terra, ajudando as almas angustiadas e so fredoras a encontrarem a luz de Jesus, através da fé raciocinada que o Espiritismo proporciona. Nã o sei ainda a que tarefa específica me dedicarei; vou procurar Miguel hoje mesmo e me oferecerei para o trabalho nas reuniões de estudo que ele promove.

- Está querendo me enganar, não é? Tem alguma coisa com esse Miguel, eu se nti desde o primeiro dia. E vem dizendo que vai trabalhar... Logo depois d e receber bilhetinho... Você não me engana. Está com saudade dele, é isso! Não vou admitir, Emilie . Se quiser ir, que vá embora de uma vez. Não vou tolerar esse tipo de con duta.

- Não é nada disso, querido. Miguel é um amigo e um orientador espiritual m ais experiente, só isso. Meu coração pertence a você; entretanto, acima de você e de tudo o que temos em comum, está o meu espírito, que necessita de trabalho e evo lução.

Sentando-se ao lado do marido, Emilie segurou suas mãos e pediu, quase sup licante:

- Venha comigo, Ricardo, acompanhe-me às reuniões e verá que se trata ape nas de estudo e trabalho. Assim, perceberá que não há motivo para desconf iar. Venha comigo, eu ficarei muito feliz!

- Está louca, Emilie? Delira? Pensa que irei freqüentar essas reuniões do demônio? Nem pensar! Jamais passarei nem

LUCIUS l SANDRA CARNEIRO 429 mesmo pela porta da casa. E não vou admitir que minha esposa seja membro dessa seita maldita!

- Não entende, Ricardo? Eu preciso do trabalho! Ele é essencial para mim!

- Você está enlouquecendo, Emilie. Sempre foi problemática, e os últimos a contecimentos a fizeram adoecer de vez. Só pode ser isso.

Emilie, com os olhos rasos de lágrimas, manteve-se calada, sem saber o que fazer. Ricardo se levantou e desabafou:

-Já basta! Estou cansado de tudo isso. Tenho ido além de minhas forças par a fazê-la feliz. Tenho feito de tudo, dado do bom e do melhor, esquecido p or completo o passado e os problemas que já tivemos. Indispus-me com minha família, qu e não vejo desde que você retomou. E o que ganho? Você quer me ridicular izar, me humilhar perante toda a sociedade, entregando-se a essas práticas satânicas; e quer q ue eu aprove, que eu concorde! Pois saiba de uma coisa, Emilie: se insistir nessa maluquice, deixarei de ser seu marido. Você terá de escolher. Ou esquece tudo e se ded ica a mim e a Cíntia, ou sai desta casa, acaba com nosso casamento e não vê Cíntia outra vez.

- Não pode me impedir de ver minha filha!

- Posso e vou. Pense bem, Emilie, pense muito bem! Tem até amanhã para re solver. Comprei as passagens e tenho tudo acertado. O navio para a Índia parte depois de amanhã à tarde e estarei nele com Cíntia. Se não nos acompanhar, considera rei que escolheu deixar-nos.

- Mas não sou eu quem está querendo deixar você, Ricardo; só quero ter a lib erdade de realizar aquilo que é necessário.

- A decisão é sua: ou essa doutrina, ou sua família. Pense bem, pois não vou voltar atrás.

Sem dizer mais nada, Ricardo saiu.

Emilie ficou sentada no sofá, meditando, sem saber o que fazer. Com a cab eça entre as mãos, chorou copiosamente.

430 RENASCER. DA ESPERANÇA

Capítulo quarenta e seis

Emilie, angustiada, passou o resto da tarde com o pensamento distante. Foi o riso alegre de Cíntia se despedindo do professor na porta de entrada que a trouxe de volta à realidade. Após fechar suavemente a porta, a menina se sentou ao la do da mãe, segurou-lhe as mãos e disse:

- Mãezinha, sabe que a amo muito, não sabe? Emilie a abraçou e respondeu:

- Seu amor é o bem mais precioso que possuo, filha.

- E vou amá-la sempre, mãe, aconteça o que acontecer. Emilie, enxugando a s lágrimas, perguntou:

- Do que está falando?

- Não sei, mãe, mas pensando em tudo o que você contou sobre suas experiê ncias, sinto muito carinho por Lucrécia, mesmo sem conhecê-la. Acredito q ue ela ficaria feliz se você também fizesse algo em favor dos outros. Estou falando no or fanato do tio Fernando. Sempre lembro das crianças, mãe, e sei que precisa m de ajuda. Acho que poderíamos fazer alguma coisa por elas. - Por que pensa isso, Cíntia?

431

- Não é certo que temos de ajudar aqueles que precisam? Pois sei que aquel as crianças precisam muito. Com o tio Fernando preso, quem vai cuidar dela s? Ele se importava, sabe? Importava-se de verdade. Ele gosta daquelas crianças. Não sei direit o o que foi que ele fez - vocês não me contam, vivem escondendo as coisas de mim -, mas imagino que tenha prejudicado você de alguma maneira; só que para mim el e sempre foi bom, mãe. E também era muito, muito bom para as crianças do orfanato. Agora estão sozinhas, sem ninguém que de fato se preocupe com elas.

- Você não devia se inquietar tanto assim com essas questões, é muito peque na...

Estendendo os braços e acariciando com suavidade o rosto da mãe, Cíntia r espondeu:

- Sinto coisas que não sei explicar, mãe.

Sem saber exatamente o que se passava, apenas supondo que a menina também tivesse sensibilidade, Emilie abraçou-a outra vez. Depois de curto silênci o, Cíntia disse, soltando-se da mãe:

- Faça o que deve fazer, mãe.

- Você não entende, Cíntia. Seu pai não quer... Ele não admite...

- Quem sabe um dia ele compreenda, mãe? Ajude-o com seu exemplo.

Emilie buscava captar o que estava além das palavras, que naquele moment o eram pobres para traduzir as profundas emoções compartilhadas por amba s. Enfim, disse:

- Sei que terei de enfrentar inúmeros sacrifícios e já me sinto preparada. Co ntudo, não consigo aceitar a idéia de me afastar de você. Não posso aceitar! - Encontraremos um jeito de evitar que isso aconteça. Emilie olhava para a menina de doze anos à sua frente e

432 RENASCER DA ESPERANÇA surpreendia-se com a força da filha. Percebia que ela sabia do seu drama in terior, e procurava auxiliá-la, mesmo sem compreender integralmente a situa ção.

Quando Ricardo chegou, bem mais tarde, encontrou Cíntia na sala, tocando piano. Pendurou o sobretudo e o chapéu, depois aproximou-se e perguntou, beijando a filha:

- Onde está sua mãe?

- Foi ao grupo de estudos espíritas na casa de Miguel.

- O quê? Ela teve essa ousadia?

- Deixe-a fazer o que precisa, pai. Ela já sofreu bastante, não a faça sofrer a inda mais.

- Você não sabe o que está dizendo, Cíntia; é uma criança e não conhece os problemas dos adultos.

- O que sei é que ela ama você, pai, e que você a ama também. Por que um de veria fazer o outro sofrer?

Sem ter o que responder, Ricardo se calou, pensativo. Não esperou pela espo sa. Jantou com a filha e informou à menina que viajariam; e que ela deveria estar preparada para ir sem a mãe, caso fosse necessário.

No centro em casa de Miguel a noite foi de proveitoso aprendizado. Diversos espíritos sofredores se comunicaram, recebendo ajuda e orientação. Benfeit ores espirituais portadores de intensa luz também se fizeram presentes e muitas orientações foram transmitidas. Emilie, que ao chegar se sentia enfraquecida, ao final das atividades estava refeita e revigorada. Por sua mediunidade muitos irmãos desencarn ados que sofriam se manifestaram e foram atendidos. Depois que todos saí ram, Miguel se acomodou em uma cadeira e disse:

- E então? Estou aqui para ouvi-la.

-Já me sinto incrivelmente melhor, Miguel. Antes parecia que estava há tem pos sem me alimentar. Agora, tendo participado das tarefas e do estudo tão construtivo, sinto-me com nova energia.

Lucius / SANDRA CARNEIRO 433

Emilie silenciou, lembrando-se dos problemas que ainda teria de enfrentar. Miguel manteve-se sereno e quieto, aguardando que ela prosseguisse.

- Não sei bem o que dizer, Miguel. Tenho tantas coisas passando pela minh a mente ao mesmo tempo... Estou confusa. Sinto-me feliz ao lado de Ricard o e Cíntia, porém isso já não me basta. Sinto que tenho de fazer mais, e não sei por onde devo começar.

Miguel, de olhar distante, como se escutasse alguém que não ela, pôs-se a fa lar:

- Posso imaginar o conflito que se estabeleceu dentro de você, Emilie, ag ora que conhece o motivo de suas crises. Ser médium é um presente de Deus , que implica também grandes responsabilidades. É compreensível que, consciente dessas respons abilidades, você não se sinta confortável em simplesmente ignorá-las. Só que ao mesmo tempo tem sua vida, seus desejos, seus entes queridos, e ainda suas necessidades pessoais, não é assim? Como lidar com tudo isso?

Emilie concordou com a cabeça e emendou:

- É precisamente esse o meu conflito. Miguel continuou:

- No entanto, Emilie, é preciso lembrar que todo fenômeno mediúnico tem u m objetivo. O magnífico trabalho de pesquisa e organização das informaçõe s e mensagens espíritas desenvolvido por Allan Kardec tem deixado isso muito claro. Em suas obras , nos textos que tem publicado, vê-se que o objetivo maior do fenômeno me diúnico é nos fazer compreender que a morte não existe, bem como explicitar que o modo como no s conduzimos na curta jornada terrena irá influenciar nosso estado na vida espiritual - que é a verdadeira. A consciência de que a vida continua e tudo o que nos acontece tem uma causa, nunca sendo mero fruto do acaso, nos faz meditar q ue a finalidade da existên-

434 RENASCER DA ESPERANÇA cia é aprimorar nosso espírito, pela aquisição de valores morais que farão de nós aliados do bem. Assim, Emilie, a mediunidade é ferramenta fundamen tal de conscientização e transformação, quando exercida segundo os valores eternos que Jesus veio nos ensinar. É preciso renovar nossa mente à luz dos princípios do Evange lho. É por essa razão que o Espiritismo assusta tanto e a tantos. Através das informações q ue os espíritos nos revelam, sob a orientação do Mestre Jesus, somos convid ados a reviver o Cristianismo primitivo, que foi esquecido e sufocado em sua essência por sistemas religiosos que no fundo defendiam seus interesses materialistas.

Emilie ouvia atenta a seqüência dos esclarecimentos de Miguel:

- Não é fácil renovar nossa mente, domar nossos pensamentos. Sem perceber , o homem é prisioneiro de crenças e valores que controlam e dominam sua vida. Só que tais crenças e valores cada vez mais são impostos ao homem por uma civilização materialista e cética, que no fundo não quer a verdade, apenas finge buscá -la. O contato conosco mesmos e a honestidade em relação ao que encontramos em nosso ínt imo tomam muito trabalhosa a renovação tão necessária. Por isso você luta tanto. É difícil libertar-se daquilo que acreditava ser bom para você. Mas não desista.

- E como poderia, Miguel? Vejo os espíritos à minha volta o tempo todo. Ag ora ainda mais do que antes. Se primeiro sentia a influência deles sobre m im, sem saber do que se tratava, hoje posso vê-los assim como vejo você. E eles me tortur am. Meu passado é delituoso, Miguel, pude vislumbrá-lo de relance e ele me assusta. -Todos temos um passado manchado pelos erros, Emilie, ou não estaríamos mais na Terra e sim usufruindo a beleza e a felicidade em mundos mais el evados. Todos nós temos de re-

LUCIUS / SANDRA CARNEIRO 435 parar enganos de outros tempos. Não se julgue sozinha nessa empreitada. A o contrário: sinta-se amparada e abençoada pela oportunidade sagrada da v ida que recebeu, quando, alcançada pela Nova Revelação, poderá permitir que a luz do conh ecimento e da consciência abra espaço nos rançosos pensamentos sedimenta dos há séculos em seu interior. A princípio a luz nos ofusca e assusta, porém à medida que a prendemos a conviver com ela já não conseguimos ignorar o bem que nos traz . Séculos de escuridão foram impostos aos homens pelos interesses dos detentores do pode r. O Cristianismo, luz soberana trazida por Jesus Cristo, poderia ter há mu ito resgatado a Humanidade da dor e do sofrimento. Ao invés disso, os cristãos, sofridos e torturados, cederam às pressões do poder material e acabaram por ele venc idos. No entanto, aquele que arquitetou o Planeta, e depois a ele desceu para ensinar diret amente aos homens o caminho para Deus, jamais nos desampara. Pacientement e continua a nos orientar e esperar. E agora nossos olhos gratos observam o nascer de uma nova esperança para os homens - ao menos para aqueles que tiverem a mente e o coração preparados para reconhecê-la. É o Consolador Prometido que chega, em nossos dias, pa ra dar nova oportunidade a todos. É por isto, Emilie, que amo profundamen te o Espiritismo: porque compreendo que ele vem resgatar o Cristianismo em sua essência, não através da crença cega, porém à luz da razão e da ciência. É maravilhoso poder participar de alguma forma deste momento de renovação.

Miguel calou-se, emocionado.

Emilie o ouvia reverente. Longo silêncio se seguiu. Por fim, erguendo-se, ela disse:

- Mais uma vez obrigada, meu amigo. Agora preciso ir. Miguel também se le vantou, sorrindo:

- Você nem conseguiu dizer nada...

436 RENASCER DA ESPERANÇA

- Mas esteja certo de que ouvi o que precisava, Miguel. Não há mais dúvida sobre o que devo fazer.

- A decisão está em suas mãos.

- Sim, o livre arbítrio.

- É isso mesmo.

Miguel acompanhou Emilie até a porta e, retirando o casaco do cabideiro, di sse:

- Vou levá-la até sua casa. Não é bom ficar pelas ruas à noite.

- Obrigada, não há necessidade, Miguel. Tenho um carro com condutor me esperando.

- Tem certeza?

- Claro.

- Aguardo notícias.

- Quando é a próxima reunião de estudos? - Depois de amanhã. - Estarei aqui.

Miguel despediu-se carinhosamente. Antes de sair, Emilie perguntou:

- Tem notícias de Jairo?

- Ele pretende ficar uns tempos em Marrocos. Recebeu notícias das filhas de Lucrécia e quer verificar pessoalmente como estão, se precisam de algo. Emilie exibiu um sorriso triste e comentou: - Gostaria muito de vê-lo antes da viagem. - Ele ficará aqui alguns dias antes de partir; poderão encontrar-se. Emilie se acomodou no banco da carruagem e disse a Miguel, enquanto ele f echava a porta: - Lucrécia está muito bem. - Recebeu alguma mensagem? - Na verdade eu a vi hoje, em minha casa. É um espírito

LUCIUS / SANDRA CARNEIRO 437 de força e valor incríveis! Nunca imaginei que alguém fosse capaz de taman ha renúncia.

Sem poder demorar-se mais, Emilie pediu que o condutor partisse. Miguel sor riu satisfeito, notando que ela estava fortalecida, e ali ficou observando até a carruagem desaparecer, ao dobrar a esquina.

Quando Emilie chegou em casa, Ricardo já se recolhera. Depois da longa e e lucidativa conversa que tivera com Miguel, ela estava decidida. Enfiou-se silenciosamente na cama, tentando não acordar o marido.

Na manhã seguinte, quando ele se sentou para o café da manhã, foi informado pela criada de que a esposa já havia saído. Contrafeito e irritado, levantou -se e saiu também.

438 RENASCER DA ESPERANÇA

Capítulo quarenta e sete

Aos primeiros raios de sol, Emilie já estava na cadeia, aguardando para c onversar com Fernando. Quando lhe anunciaram a inesperada visita, o preso sentiu ao mesmo tempo medo e inquietação. Sabia que seria difícil encarar Emilie depois de t udo que lhe fizera; ainda assim, teria certo alívio em poder pedir-lhe perdã o diretamente. Logo que a viu entrar, surpreendeu-se com a mudança em sua aparência. Emi lie estendeu-lhe a mão: - Como vai, Fernando?

Hesitante, ele retribuiu o aperto de mão e replicou:

- Creio que recebendo o que mereço.

Emilie olhou-o por alguns instantes, depois não se conteve:

- Por quê?

Fernando respondeu, emocionado:

- Achava que estava protegendo a Igreja, minha família, não sei... Emilie, perdoe-me, por favor. Sei que talvez seja pedir demais, mas me arrependo ta nto do que fiz... Pensava estar agindo corretamente; só que com o passar do tempo as coisas se aclararam aos poucos, e então comecei a compreender que estava e rrado em muitas questões. Especialmente em relação à

439 forma como encarava a Igreja. Sei que o que fiz está feito, não posso volta r atrás; todavia, daqui em diante me conduzirei conforme realmente acredita r, obedecendo à minha consciência, doa a quem doer.

- Você foi e está sendo corajoso, Fernando.

- Eu? Não, eu fui covarde.

- Pode ter sido, mas agora está sendo muito corajoso. Vejo em seus olhos ab soluta sinceridade e está procurando agir segundo pensa, mesmo que isso lhe traga tristes conseqüências. Isso é coragem.

- É o mínimo que posso fazer, depois das atitudes criminosas que tive. Por favor, perdoe-me.

Emilie puxou a cadeira e sentou-se. - Você tem a minha compreensão, Fernando, e acaba de conquistar o meu res peito. Não há nada para perdoar.

- Eu a prejudiquei, Emilie.

- Aparentemente, sim; na verdade, você me ajudou muito.

- Como? Não entendo.

- Essa situação que vocês armaram me levou a grandes sofrimentos, porém at ravés deles, pela misericórdia de Deus, pude encontrar respostas que há mu ito buscava. Hoje, depois de tudo o que aconteceu, sei quem sou, sei que sou responsável pelo meu destino, e sei que eu mesma semeei toda a dor que colhi - não nes ta vida e sim numa existência anterior. Sabe que todos vivemos muitas vidas?

- Você se tomou espírita?

- Sim, e também descobri que sou médium. Por isso os comportamentos est ranhos e as sensações perturbadoras que me acometem desde a adolescênci a.

- Médium? Então pode falar com os espíritos?

- Eles falam comigo e algumas vezes posso vê-los. Longa conversa se segui u, em que Fernando e Emilie tro-

440 RENASCER. DA ESPERANÇA caram experiências. Ele narrou em pormenores o que sentira ao ler O Livro d os Espíritos e como, após finalizar a leitura, percebera que um universo se havia descortinado para seu limitado entendimento. Ao final da longa conversa, profundamente impressionada, Emilie perguntou:

- O que pretende fazer quando sair daqui, Fernando?

- Se eu sair, você quer dizer. Minha tia certamente me odeia e fará tudo pa ra me manter preso. Por ora, minha maior preocupação é com as crianças do o rfanato. Sei que a paróquia tem dado alguma assistência, mas aquele orfanato é minha re sponsabilidade; eu o montei com meus próprios recursos. Gostaria de estar lá, pessoalmente.

- Cíntia também está preocupada com as crianças.

- É mesmo? E como ela está?

- Está bem, muito bem.

- Ela me ajudou muito com as crianças. Aliás, acho que Cíntia também pode falar com os espíritos.

Emilie sorriu, dizendo:

- Também suponho que sim.

- Foi por isso que a enviaram para o convento, para tentar silenciá-la. Ele s sabem, Emilie; sabem que é possível essa comunicação.

- Cíntia esteve no convento?

- Então não sabia? -Nem suspeitava. Ela e Ricardo não me disseram nada. Meu Deus! Ainda bem que voltei a tempo de resgatar minha filha. Seguiu-se longo silêncio em que Emilie, surpresa, avaliava os perigos que a filha correra em sua ausência. - Agora preciso ir, Fernando. - É uma pena! - O guarda já veio aqui umas três vezes. Antes de ir quero que saiba que vo u fazer tudo o que estiver ao meu alcance para

Lucius I SANDRA CARNEIRO 441 ajudar você a sair daqui. E acho que posso auxiliá-lo mesmo enquanto estive r preso. A partir de hoje, vou cuidar das crianças no orfanato. Onde fica?

Fernando se levantou trêmulo e, segurando-lhe as mãos, disse:

- Vai fazer isso por elas? Saiba, Emilie, seremos eternamente gratos a você.

- Não tem o que agradecer, Fernando. Preciso contribuir de alguma forma ; quando compreendemos a grandeza de Deus e de Seu amor para conosco, e por outro lado enxergamos nossas imperfeições e quanto temos a aprender, ficamos maravilhados com o carinho e a paciência que nos dedicam os amigos espirituais, mensageiros divinos a nos auxiliar. Diante da proteção que nos ofertam, o mínimo que podemos fazer, como atitude de reconhecimento, é nos colocarmos à disposição deles para sermos úteis de alguma forma, nesse trabalho de iluminação e regeneração da Humanidade em que eles igualmente contribuem com o Criador. Considerando o muito q ue recebemos, o que mais podemos fazer senão nos alistarmos também para o trabalho?

Fernando não pôde dizer mais nada. Abraçou Emilie, que retribuiu e despedi u-se, deixando-o perplexo, mas muito feliz.

Ela foi diretamente para o orfanato e logo ao chegar percebeu a desordem d o local: sujeira por toda parte, crianças chorando e algumas machucadas. F oi informada de que restara apenas uma ajudante, que, não conseguindo abandonar comple tamente as crianças, dedicava a elas meio período.

Assim que se inteirou das condições do orfanato, Emilie vestiu um avental e disse à jovem:

- De hoje em diante, estarei aqui todos os dias. Vamos ao trabalho! Temos muito que fazer para pôr este lugar em ordem!

442 RENASCER DA ESPERANÇA

Impressionada com aquela mulher rica e linda, que colocava a mão em todo tipo de sujeira, a auxiliar ficou animada e se empenhou ainda mais por to da a manhã. Quando se despediu, disse:

- Fico feliz que tenha vindo. Pedi muito a Deus que me ajudasse; já não podi a dar conta do trabalho e começava a faltar até alimento para as crianças. E stava trazendo alguma coisa de casa, mas meus pais logo iriam notar e talvez me impedissem até de vir.

- Fique tranqüila. Fernando tem os recursos para manter o orfanato, e enqu anto não consegue movimentá-los vou procurar colaboração em outra parte. N ão faltará o necessário, pode estar certa.

- Agora estou certa, dona Emilie.

- Por favor, me chame apenas de Emilie.

Ao final do dia, depois de localizar uma amiga de Miguel que passaria a noit e com as crianças, ela foi para casa. Embora temesse a reação do marido, tra zia tal alegria tal alma que se sentia com disposição para enfrentar tudo o que estivesse por vir.

Ricardo a esperava ansioso. Apesar do recado que ela lhe enviara sobre a vi sita ao orfanato, não esperava que se demorasse tanto. Quando a esposa cheg ou, quis conversar; Emilie pediu:

- Vamos jantar primeiro, depois conversamos. Ricardo permaneceu calado dur ante o jantar. Emilie contou à filha sobre o orfanato e as crianças, ocult ando de ambos a visita a Fernando. Cíntia reclamou com a mãe por não a ter levado, ao qu e Emilie respondeu:

- Não se preocupe, terá muitas oportunidades de vir comigo, filha. Estarei lá todos os dias e de quando em quando poderá me ajudar.

- Vai trabalhar no orfanato, mãe?

- Vou, querida.

Ricardo, que ouvira toda a conversa, jogou o guardanapo com força sobre e m esa e se levantou, irritado:

Lucius | SANDRA CARNEIRO 443

- Isso é o que você pensa! Mas vamos ao que interessa: amanhã Cíntia e eu viajamos para a Índia. Vai conosco?

Emilie suspirou fundo, buscando as palavras: - Não, Ricardo. Quero que vá com ela; eu preciso ficar.

- Você quer ficar, isso sim.

- É difícil para você entender?

- Não quero entender, Emilie.

- Por isso é difícil, Ricardo. Quanto tempo vão ficar viajando?

- Cerca de trinta dias.

- Vai ser bom para nós dois. Tudo aconteceu muito depressa e mal tivemos tempo para refletir. Agora é um bom momento.

- Pois então aproveite e pense bem. É sua última chance - Disse isso olhando para Cíntia -, quando voltarmos decidiremos nossa situ ação de uma vez por todas.

Emilie assentiu com a cabeça e Ricardo, perguntou energicamente à filha:

- Suas coisas estão prontas, mocinha?

- Pai...

- Estão prontas?

- Quase. Esperava minha mãe para terminar.

Emilie se levantou num movimento vigoroso e, demonstrando alegria e entu siasmo, disse:

- Pois então o que esperamos? Vamos já terminar de arrumar suas coisas. E dormir logo, para amanhã estar bem disposta.

444 RENASCER DA ESPERANÇA

Capítulo quarenta e oito

Ao se despedir do marido e da filha, Emilie notou no olhar de Ricardo, a des peito da frieza com que fazia questão de tratá-la, certa hesitação escondida que lhe deu um lampejo de esperança. Ricardo ameaçou a esposa mais uma vez; mesm o assim ela se desdobrou em carinho e ternura, pedindo-lhe que mandasse notícias.

Tão logo os dois partiram, Emilie seguiu para o orfanato, onde, entregue ao s cuidados constantes que as crianças requisitavam, esqueceu-se de si própr ia e de seus problemas pessoais.

Os dias correram. Emilie dividia seu tempo entre o trabalho árduo no orfanat o e a participação ativa nas reuniões de estudos espíritas na casa de Miguel , onde sua colaboração se fazia cada vez mais abrangente: recebia mensagens de espírit os sofredores, assim como transmitia instruções e palavras esclarecedoras d e espíritos evoluídos, que vinham para guiar aqueles que procuravam colocar em prática os sublimes ensinos de Jesus, elucidados pelos preceitos da Doutrina Espí rita, que mais e mais se espalhavam pela Espanha. Na verdade, desde a queima de livros, o Espiritismo crescia velozmente na

445

Península Ibérica. As reuniões públicas aumentavam. Muitos chegavam e par tiam, movidos unicamente pela curiosidade que os fatos notórios despertav am; outros, entretanto, ao tomar contato com os conhecimentos trazidos pelos espíritos, compreen diam a sua profundidade e tomavam-se trabalhadores e defensores do movim ento. Os centros de estudos espíritas também se multiplicavam rapidamente.

À medida que novos colaboradores surgiam, mais se sentia a necessidade de m ultiplicar as matérias de estudo disponíveis, e Miguel sabia que era impres cindível agilizar a tradução de obras espíritas para o espanhol; se houvesse maior quantidade de livros de estudo, muitos outros se beneficiariam.

Miguel se correspondia regularmente com a Sociedade Espírita de Paris, m antendo-a atualizada sobre o que ocorria com o movimento em Barcelona. E m uma de suas cartas informou que despontava uma nova colaboradora que talvez pudesse contribu ir na tradução das obras, acelerando o trabalho. Recebeu uma resposta que o entusiasmou: aconselharam que a pessoa citada fosse a Paris, para trabalhar junto deles , de modo a eliminar dúvidas que poderiam surgir quanto às questões mais c omplexas, no decorrer do trabalho de tradução.

Naquela noite, ao final dos estudos, Miguel comunicou a todos sua preocup ação quanto à necessidade de mais publicações espíritas traduzidas para o espanhol. Assegurou que seu desejo era ver a doutrina disseminada, esclarecendo e consolando, orientando e iluminando aqueles que estivessem prontos. Afirmou ainda a ce rteza de que, de alguma forma, os espíritos providenciariam a pessoa apropriada para ajud ar na tarefa e que já tinha as orientações para a empreitada quando essa pe ssoa se apresentasse: deveria ir a Paris para trabalhar ao lado dos companheiros iniciadores do Es piritismo.

Depois que quase todos saíram, Miguel se manteve calado,

446 RENASCER DA ESPERANÇA sentado à mesa. Emilie, que conversava alegremente com Jairo, em seus úl timos dias em Barcelona antes de retomar temporariamente a Marrocos, obs ervou que o amigo parecia bastante preocupado. Aproximou-se dele e perguntou:

- O que foi, Miguel?

- Não podemos prescindir dos livros e outros materiais que nos ajudariam e que não temos como utilizar em francês. Sei que as forças contrárias ao nos so ideal não sossegam um só instante, porém ao mesmo tempo sei que a solução virá.

Emilie olhou-o demoradamente e de repente disse:

- Você acha que poderia cuidar das crianças do orfanato para mim?

- O quê? - Se eu tivesse de me ausentar por uns meses, cuidaria delas? Miguel sorri u, contente em perceber que Emilie enxergava a oportunidade que ele realme nte acreditava destinada a ela.

- Se fosse necessário, daríamos um jeito. O trabalho que você tem feito é r espeitado e já tem diversos apoiadores em nosso meio.

- E é somente através desse apoio que tem sido possível manter o orfanato a berto.

- E recebendo novas crianças...

- É verdade, Miguel, elas não param de chegar! Emilie calou-se um instante, depois prosseguiu:

- Poderia cuidar delas, então?

- Se fosse preciso, sim, mas por que pergunta? Pretende viajar, Emilie?

- Se cuidar das crianças para mim, viajo a Paris. Como sabe, o francês é min ha língua mãe; e pelos anos que vivo neste país, além da facilidade que tive em assimilar o idioma, domino igualmente o espanhol. Há tempo espero fazer algo para c olaborar com a expansão dessa doutrina de luz que me deu tanto consolo,

LUCIUS / SANDRA CARNEIRO 447 tanto amparo, que me fez renascer, enfim. Não posso deixar de oferecer-me . Se você acha que eu posso de alguma forma contribuir, eu me coloco à di sposição. Vou para Paris, Miguel.

- E sua família? Seu marido, Cíntia?

-Ainda estão viajando; chegam em duas semanas. Conversarei com Ricardo. Talvez o convença a me acompanhar. Não sei, Miguel... De qualquer maneir a, gostaria de contribuir.

Miguel sorriu jubiloso e disse:

- Não sabe como me sinto feliz por ouvir isso, Emilie. De fato, essa tarefa l he pertence, embora eu não tivesse direito de lhe pedir tal sacrifício. Conhe ço bem as dificuldades que tem enfrentado, sei que está temerosa pelo futuro, pela decisão de Ricardo, e jamais poderia pedir que se sacrificasse. Contudo, sem pre senti que em suas mãos a missão seria bem executada.

- Pois então está decidido. Temos duas semanas para tomar todas as providên cias. Quando Ricardo chegar, preciso ter tudo definido: lugar para ficar em Paris, estrutura, suporte para as crianças - enfim, tudo tem de estar pronto.

- Está mesmo disposta a se dedicar a essa empreitada, Emilie? Tenho acomp anhado seu trabalho e vejo que progride a cada dia. Tem certeza de que é momento para mais esse esforço pessoal?

Emilie o fitou com os olhos cheios de lágrimas e, sob forte emoção, disse:

- De fato não tem sido fácil, Miguel. E só de pensar em me separar outra ve z de minha filha, por qualquer motivo que seja, fico apavorada. Por outro l ado, nada se compara à paz e ao bem-estar que sinto a cada dia, quando cumpro o meu d ever. Além do mais, estou muito mais equilibrada depois que comecei a de dicar-me novamente ao trabalho. Preciso trabalhar; só assim poderei viver em paz. Compreendo a importância dos livros e sei que muitos serão beneficiados pelas traduções . Se

448 RENASCER DA ESPERANÇA tivéssemos mais material de leitura, aqueles que vêm até nós cheios de dúv idas e incertezas teriam mais recursos para acelerar o conhecimento e a ap rendizagem. Não posso pensar no sacrifício, Miguel; devo pensar naqueles que serão favorec idos com o resultados de nossos esforços. Miguel abraçou a amiga ternameri te:

- Pois então prepararemos tudo. Quero que se concentre no seu trabalho jun to às crianças e em selecionar os voluntários que vou encaminhar a você. Q uanto à viagem e a suas condições de hospedagem e sobrevivência em Paris, deixe por minh a conta.

Após saborear suave chá em companhia de Miguel, Jairo e alguns outros amig os íntimos, Emilie regressou pensativa. Perguntava-se, pelo caminho, se de fato estaria fazendo a coisa certa.

Ao chegar em casa, uma surpresa a esperava. Assim que entrou, a governanta encontrou-a na porta e disse baixinho:

- Eu disse que a senhora iria demorar, mas ela insistiu e me ameaçou; não ti ve escolha. Ela me fez acender a lareira e servi-la, depois deu ordens como se fosse a dona da casa. Eu não sabia o que fazer...

Emilie viu Isabel sentada na poltrona da sala e disse, tocando o ombro da j ovem governanta:

- Não se preocupe, está tudo bem. Deixe que cuido disso sozinha.

- A senhora tem certeza de que não devo procurar ajuda?

- Apenas fique atenta. Se precisar de alguma coisa, eu chamo.

A governanta se afastou e Emilie, com passos firmes, entrou na sala. Isabel, que permanecia sentada, limitou-se a erguer os olhos e atacou:

- Até que enfim! Somente uma mulher sem responsa-

LUCIUS / SANDRA CARNEIRO 449 bilidade como você poderia chegar em casa, na ausência do marido, a uma h ora dessas.

Emilie aproximou-se e disse:

- Vamos direto ao assunto, dona Isabel. Qual o motivo de sua visita?

- Vim avisar-lhe que não vou desistir de provar que você não é a pessoa ce rta para viver com meu filho nem para cuidar da minha neta. Assim que Rica rdo voltar, tomarei providências para que ele decida certo desta vez. Eu vinha esperando ansi osamente uma oportunidade, que você me entregou de bandeja, com toalha br anca e prata de lei! A sua ridícula insistência em prosseguir com as idéias demoníacas que a dominaram por completo facilitou tudo. Meu filho está de novo fragiliza do, em dúvida, indeciso; e assim você, estupidamente, o devolveu a mim. Ricardo, que não falava mais comigo, uma semana depois de partir enviou-me uma carta desa bafando sua tristeza. Percebi que está arrependido de lhe ter dado outra oportunidade. Ele deveria ter aproveitado os fatos a que fui forçada para mostrar-lhe quem você é na realidade e ...

Nessa altura Emilie interrompeu a sogra, dizendo:

- E quem eu sou, Isabel? Por que me odeia tanto? Já pensou nisso?

- Você me causa repugnância!

- E já pensou no porquê? Diga-me, Isabel, por quê?

- Ora, não me obrigue a ser direta...

- Estou pedindo que seja. Quero que me diga por que eu a incomodo tanto.

- Ora, não tenho de lhe dar satisfações sobre meus sentimentos.

- Não consegue explicar, não é? De fato você não entende por que tem tanto ressentimento por mim, não consegue explicar essa repugnância. Você não s abe, Isabel, não? Pois eu

450 RENASCER DA ESPERANÇA sei e vou lhe dizer: nós duas já estivemos do mesmo lado. Já vivemos junta s em outras vidas, agindo de maneira equivocada em relação à religião que abraçamos.

- Cale-se, sua maluca! Não creio nessas coisas!

- Não acredita? Então por que o que estou dizendo mexe com você? Não pode explicar a origem desses sentimentos, mas eu sei que de alguma forma se sente traída por mim. Traída porque já não comungo com você das mesmas crenças e dos mes mos anseios. Sente como se eu fosse uma desertora. Não sou mais sua par ceira em desatinos de toda sorte contra aqueles que, mais fracos, não podem defender-se.

Isabel se levantou, visivelmente transtomada. Não conseguia compreender po r que o que Emilie dizia a tocava tão profundamente. Irada, gritou:

- Cale-se! Não quero ouvir nem mais uma palavra! Vou fazer tudo para afas tar você de meu filho e para tomar sua vida insuportável, está me ouvindo ? Vou perseguir você, não pense que estará livre de mim!

- Acalme-se, Isabel - pediu Emilie, estendendo a mão para o braço da sogra.

- Não ouse me tocar! Você não merece encostar em mim.

- Por quê? O que lhe fiz? Diga-me, o que foi que fiz a você que a deixa tão enfurecida? - dessa vez, segurou o braço de Isabel com força surpreendente .

- Solte-me! - Insistia ela.

- Somente quando me explicar por que tem essa raiva incontrolável de mim. Diga-me o que fiz a você, olhando dentro dos meus olhos.

Agora prendendo Isabel com as duas mãos, Emilie tinha os olhos fixos nos se us e ela, subitamente fragilizada, buscava soltar-se, dizendo:

- Não sei, não sei. Deixe-me! Você me assusta!

Lucius / SANDRA CARNEIRO 451

- Por que, Isabel?

- Eu não sei!

- Não percebe? Sem dúvida não é a primeira vez que nos encontramos, e cer tamente já caminhamos em outra existência. - Isso não existe! É mentira!

- Não, Isabel, é verdade! Já vivemos outras vidas, e trazemos marcas prof undas daquilo que fizemos em encarnações passadas. Somos hoje o resultado daquilo que fizemos aos outros e a nós mesmos. Seu ódio sem explicação é um claro sinal. Tudo isso é verdade, Isabel, não podemos mais negar.

- Você é louca! Está dominada!

- Se estou possuída, como explicar que esteja tão serena, tranqüila e agind o de forma construtiva? Antes de conhecer e compreender essas verdades sobr e a vida depois da morte, sobre a possibilidade do contato entre os dois mundos, minha vid a estava confusa e vazia. Não sabia ao certo quem eu era nem tinha um sent ido para minha existência. Desejava apenas ser feliz, desfrutar o maior prazer que pudesse e realizar cada um de meus desejos e caprichos. No entanto, descobri algo muito maior e mais belo: descobri a origem de meu desequilíbrio e compreendi que tudo o que sofria era resultado daquilo que fizera com minha vida, em outra enc arnação. Hoje estou no controle do meu destino e quero acertar. Quero servir a Deus, ser vindo antes de tudo aos meus semelhantes. Não sei quanto tempo vou levar p ara reparar os erros que cometi no passado, mas vou dedicar minha vida ao Bem, ao Amor e a Deus, para que possa aproveitar a oportunidade que tenho, aqui e agora . E foi você quem me ajudou, Isabel; apesar de todo o mal que pensa me ter feito, você me aj udou a me encontrar. Se me teme, é porque também está perto de descobrir a verdade. Não relute mais.

452 RENASCER DA ESPERANÇA

Isabel ouvia em silêncio. Estava alterada e visivelmente abatida. Todavia, q uando Emilie se calou e soltou seus braços, ela disse com voz trêmula:

- Você não vai me envolver em sua teia. Está sob influência maligna e não quero saber de nada que vem de você!

Sem falar mais, pegou o casaco e saiu depressa, deixando a porta aberta. Em ilie só pôde dizer em voz alta, enquanto ela se dirigia quase correndo para a carruagem:

- Pense bem, Isabel. Não tem explicação para esses sentimentos!

Isabel entrou rápido na carruagem, que imediatamente desapareceu rua afora. Emilie, intrigada, fechou a porta e voltou-se devagar. A governanta, pálid a, a aguardava:

- A senhora está bem, dona Emilie? Essa mulher é muito perigosa!

Acomodando-se no sofá, Emilie respondeu:

- Eu estou bem. Talvez neste momento dona Isabel esteja mais assustada do que nós, Ismênia.

Lucius / SANDRA CARNEIRO 453

Capítulo quarenta e nove

Fazia vinte dias que Ricardo e Cíntia estavam fora; em breve regressariam. Desde a partida de ambos, Emilie dedicava seu tempo ao orfanato, ao estud o e a longos períodos de meditação e prece, onde buscava em Deus a força e a orientação de que precisava. Sabia que em alguns dias teria de tomar uma decisão mui to difícil. Não desejava de forma alguma se afastar da filha, tampouco de Ricardo. Seu am or por eles era imenso. Contudo, sabia que não poderia mais se deter. Est ava com medo e se sentia angustiada, sem conseguir ver uma solução. Ricardo se mostrava ir redutível nas poucas cartas que enviara. A visita de Isabel poderia signifi car um agravamento na situação. Se ela decidisse interferir, as coisas se complicariam ainda ma is. E Emilie buscava na oração a energia de que necessitava. Nessas horas de recolhimento, subia ao seu quarto e, de portas fechadas, sentava-se na beira da cama e p unha-se a falar com Deus, deixando que as emoções, os medos, as angústias todas fluíssem de seu íntimo:

- Meu Deus, sei que pode me ajudar. Tudo Lhe pertence, são Seus o poder e toda a bondade. Oriente-me para que saiba

455 agir de maneira correta, conforme é Seu desejo, meu Pai. Não quero prejud icar meu lar, minha família, que são também sagrados, Senhor. Mas sinto q ue devo dedicar minha vida aos meus semelhantes, através do trabalho incessante no Bem, amparando os que necessitam, bem como contribuindo, ainda que minimame nte, para a divulgação dessa doutrina iluminada que vem reviver os princípios puros e verdadeiro s do Cristianismo. O que devo fazer, Senhor? Meu marido não aceita meus d everes. Como agir, então? Não sei, meu Pai, porém creio em Sua infinita sabedoria e sei que vê com toda a clareza aquilo que eu nem imagino que possa existir.

Em atitude interior de humildade e submissão, Emilie se emocionava intens amente. Ao final desses momentos a sós com Deus, sentia paz e consolo int raduzíveis. Seu coração se acalmava e ela saía do quarto revigorada, confiante que da infin ita sabedoria de Deus viria a orientação no momento oportuno.

Enquanto aguardava o retomo daqueles que tanto amava, entregava-se diaria mente a esses períodos de oração e meditação.

Afinal, aproximava-se o dia em que estariam de volta. Emilie não percebera , mas a dedicação amorosa às crianças, o contato freqüente com benfeitores espirituais de esferas elevadas e a oração constante conferiam-lhe uma beleza diferen te. Estava envolvida em uma aura de suavidade e ternura, que dela emanava sem que se desse conta.

Ricardo silenciara. Havia duas semanas que não recebia nenhuma carta dele e por isso temia o pior. Olhava pela vidraça da sala de estar a cada ruído q ue escutava, até as cortinas ficarem amassadas e desarrumadas. Estimara a hora em que c hegariam e esperava ansiosa. Os segundos se arrastavam, e já estavam atras ados.

Pedira para a governanta preparar o almoço mais especial que conhecia, ao g osto de Ricardo, em cada detalhe. Inquieta, num entra-e-sai pela cozinha, e la perguntava:

456 RENASCER DA

- Está tudo pronto mesmo? Tem certeza?

A governanta, achando graça da ansiedade da patroa, sorriu:

- É claro que está, dona Emilie, e já faz tempo. Vamos, fique tranqüla.

Esfregando as mãos, Emilie sorriu sem graça:

- Estou com muita saudade...

- Eu posso imaginar. Mas tenha calma. A senhora está linda, ele ficará feli z em vê-la. Além do mais, por que se preocupa tanto, se o que tem feito é s omente o bem? Quando agimos certo, podemos estar em paz. Quando temos a consciência cul pada, nos cobrando algo, é que ficamos feios e entristecidos. A senhora, não!

Emilie sentiu-se intrigada com o que Ismênia lhe dizia. Nunca havia conv ersado mais intimamente com a governanta e ela parecia compreender seus pensamentos. Foi então arrancada de suas reflexões pelo barulho da porta de entrada se abrind o e correu para a sala. Era o carregador com as malas. Logo atrás vinha Cínt ia, alegre, buscando a mãe. Emilie correu ao seu encontro e abraçou-a:

- Estava com tanta saudade, filha!

- Eu também, mamãe. Foi uma viagem linda, precisava ver os lugares que vi sitamos!

- É mesmo?

Ainda estava abraçada à filha quando Ricardo, formal e sério, entrou. Emili e se levantou limpando as lágrimas e estendeu os braços para ele, à espera do desejado abraço. Ricardo olhou-a por um instante e depois, num impulso incontroláve l, abraçou-a fortemente. Emilie chorava no ombro do marido, entre feliz e temerosa. Por fim, perguntou:

- Foi tudo bem, querido?

- Foi uma linda viagem, pena não ter nos acompanhado. Mas vejo que está muito bem.

Lucius / SANDRA CARNEIRO 457

- É verdade, mãe. O que aconteceu com você? Está linda!

Emilie sorriu feliz ao dizer:

- Não tenho feito outra coisa a não ser trabalhar no orfanato e estudar, traba lhar e estudar. E, é claro, pensar em vocês dois. Senti muita saudade.

Ricardo não respondeu. Assim que descansaram um pouco, sentaram-se para o almoço. Ele ficou surpreso com o delicado esmero da mesa, da comida. Emilie nunca fora tão atenciosa como naquele momento. Almoçaram. Cíntia falava sem parar, contando tudo que havia visto e vivido. Ricardo sorria, mas falava pouco . Quando terminaram, Emilie disse:

- Agora é bom que descansem pelo resto da tarde. A viagem foi longa.

- Cíntia precisa mesmo descansar - respondeu Ricardo -, e eu preciso ir a té a fábrica, ver como andam as coisas. Tenho me mantido informado, mas p reciso ver como estão os negócios. Volto no final da tarde e então vamos resolver nossa situ ação, Emilie.

Ricardo saiu e ela se deitou junto com a filha. Cíntia adormeceu no ombro d a mãe, que, segurando firme suas mãos, refletia longamente sobre o que teri a de enfrentar.

Ao final da tarde, Emilie aguardava o marido enquanto tocava piano com a fi lha. Ricardo entrou e sorriu ligeiramente ao ver as duas ao piano. Sentou-s e na sala, observando-as por alguns instantes, depois disse:

- Muito bem, Cíntia, agora eu e sua mãe vamos sair. Temos muito que conve rsar. Vá para seu quarto e descanse.

- Tenho uma idéia melhor, Ricardo. Combinei com alguns amigos para levare m Cíntia ao orfanato hoje. Ela quer muito rever as crianças. Assim, pod eremos conversar com tranqüilidade.

458 RENASCER DA ESPERANÇA

- Já disse um milhão de vezes que não quero Cíntia naquele lugar! Não quer o! O que tem para fazer lá?

- Ela gosta de estar com as crianças, de ajudar, de lhes dar atenção. Qual é o problema que vê nisso?

E tomando-se muito séria, acrescentou:

- Ao menos estou incentivando-a a fazer aquilo de que gosta. Não admitiria jamais que nossa filha ficasse num convento, contra sua vontade, distante d e tudo e de todos! Isso, sim, iria prejudicá-la! E você, que diz querer o melhor para ela , inclusive afastando-a de mim, permitiu que isso acontecesse!

Ricardo ficou pálido. Não tinha idéia de que a esposa soubesse do ocorrido com a filha. Cíntia, que combinara com o pai não contar o fato à mãe, olhou para ele e disse:

- Eu não falei nada, pai, juro! Nós combinamos...

- Não foi ela quem me contou, Ricardo.

Subitamente Emilie começou a narrar quase sem controle todo o drama que a filha vivera. Mencionou cada detalhe: como havia sido arrastada pelo bis po e depois pelas freiras; o horror que sentira ao ver a mansão desaparecendo de sua visão; como fora abandonada no convento, em uma cela escura, quase sem comida; as inúmeras vezes que chorara, suplicando a Deus que a tirasse daquele lugar. O relato era tã o vivo que Ricardo ficou alucinado. Nunca pensara em profundidade no que a filha havia passado. Sabia que fora uma experiência difícil, mas jamais imaginara o qu anto ela sofrerá. Enquanto Emilie narrava, era como se Ricardo vivesse tod as aquelas emoções, cada uma delas em toda a sua intensidade. Quando finalmente, exausta, Emil ie se calou, Ricardo chorava baixinho e dizia:

- Eu não queria, mas não consegui evitar, não tive forças... Emilie, surpres a com a própria narrativa, ficou quieta por algum tempo. Não sabia o que diz er. Estava igualmente chocada

Lucius / SANDRA CARNEIRO 459 com o que a filha vivera. Cíntia, olhando os dois, aproximou-se do pai e diss e:

- Pai, não fique triste assim, sei que não quis que nada de ruim me aconte cesse. Agora tudo passou. Estamos bem, juntos, não vamos mais permitir que coisa alguma atrapalhe nossa felicidade.

E puxando a mãe, colocou as mãos dela sobre as do pai. Continuou:

- Não é por não pensar de forma igual que temos de viver separados. Foi po r isso que minha avó fez o que fez comigo: porque não suporta que eu seja diferente, como não suporta que minha mãe seja diferente. Mas na realidade somos todos dif erentes, e não podemos deixar que isso nos afaste uns dos outros. Somos um a família, não somos? Por favor, pai, não mande minha mãe embora, por favor! Precisamos dela! Você não percebe, pai?

Sem conseguir controlar-se, Ricardo abraçou a filha e chorou sentido. Quand o se acalmou, olhou Cíntia e disse:

- Você tem razão, filha.

Então fitou Emilie, esperando por algum apoio. Ela o abraçou e disse:

- Deveríamos ao menos tentar, e nos esforçar de verdade! Ricardo balançou a cabeça, concordando. Cíntia agarrou- se ainda mais aos dois. 460 RENASCER DA ESPERANÇA

Capítulo cinqüenta

Alguns dias depois, abraçada à filha, Emilie contemplava o movimento do mar. Começava o verão e uma brisa morna bafejava suavemente seu rosto.

Cíntia, de quando em quando, observava a mãe e sorria. Ao perceber que lá grimas desciam pela sua face ela as enxugou, pedindo:

- Por favor, mãe, não chore. Abraçando a menina com força, Emilie respon deu:

- Não se preocupe, filha. Minhas lágrimas são de gratidão. E olhando carin hosamente a casinha onde tanto aprendera, sorriu dizendo:

- Sou muito grata por tudo o que aprendi aqui. Devo muito aos amigos que me ensinaram o verdadeiro significado da palavra amor.

Cíntia ouvia atenta e satisfeita as palavras da mãe. Estava orgulhosa e feli z por vê-la transformada e em paz. Sem dizer nada, apertou as mãos de Emilie e sorriu.

As duas continuaram observando o mar quase até o sol se pôr. Emilie queria passar naquele recanto iluminado seus

461

últimos momentos na Espanha. Quando o sol se escondeu, ela fechou as jane las da pequena casa. Nunca imaginara que teria tanto carinho por aquele r ecanto de paz.

Quando partiam, viu Lucrécia vindo em sua direção. Estava envolta em intensa luz e sorria. Emilie, feliz, escutou suas doces palavras:

- Que Deus a acompanhe e abençoe. Há muito trabalho a ser feito. Siga apre ndendo e ensinando o Evangelho de Jesus, à luz da doutrina que os espírit os esclarecidos nos legaram. O caminho é íngreme e árido. Mesmo assim, não tenha medo; muitos não a compreenderão nem a apoiarão, mas siga sempre confiante, p ois igualmente somos muitos deste outro lado, e estaremos com você. Fé, paciência e amor, que a luta está apenas começando.

Quando Lucrécia fez curta pausa, Emilie disse:

- Querida Lucrécia, quanto devo a você! Obrigada por todo o carinho que m e dedicou. Sua renúncia me inspira e foi o seu amor que me ensinou a conf iar no amor de Deus. Que o Pai a ilumine ainda mais, querida protetora!

Lucrécia aproximou-se de Cíntia e, envolvendo-a com ternura, disse:

- Desejei muito abraçá-la, pequenina.

Emilie observava Lucrécia, ignorando que Cíntia podia vê-la, e se surpree ndeu quando a menina respondeu:

- E eu queria muito abraçar você. Obrigada por cuidar de minha mãe. Que J esus a abençoe.

Surpresa, Emilie interpelou-a:

- Pode vê-la, Cíntia?

- Perfeitamente. Sorrindo, Lucrécia se despediu:

- Preciso ir e vocês também. Não devem perder o trem que parte de Barcelon a para Paris. Lembre-se, Emilie: a luta

462 RENASCER DA ESPERANÇA está apenas começando, mas se permanecer firme no bem, triunfará.

Mãe e filha sorriram olhando Lucrécia, cuja imagem se afastara e se dissipa va pouco a pouco no horizonte, sobre o mar. Resoluta, Emilie fitou carinhos amente a filha, com os olhos a brilhar muito, e disse:

- Você ouviu nossa benfeitora. Vamos, querida, temos muito a fazer.

Sem dizer nada, Cíntia seguiu a mãe. Alcançaram Ricardo, que as esperava na carruagem. Prosseguiram em direção à vila, percorrendo o mesmo camin ho que Emilie fizera na noite em que tentara pôr fim à própria vida. Ela sentia o coração feliz e agradecido a Deus pela oportunidade de uma nova vida que Ele lhe dera.

À medida que se distanciava do penhasco, pensava nas responsabilidades q ue assumira e imaginava as dificuldades mencionadas por Miguel e Lucréci a. Não obstante, estava comprometida com a expansão dos conhecimentos espíritas que a hav iam auxiliado e libertado, e que levariam esperança à Humanidade.

Finalmente o penhasco ficou para trás e Emilie, confiante, como se tivesse r enascido, seguia para a nova etapa de lutas e intenso trabalho.

Testemunhar a transformação interior que nela se processava foi penoso e m muitos momentos. As entidades espirituais que a odiavam a acompanharam por toda parte durante longo tempo, impingindo-lhe dor, angústia e medo em inúmeras ocasiões. Emil ie esteve diversas vezes a ponto de desistir de suas tarefas na divulgação dos libertadores princípios espíritas. Mas sempre que se sentia fatigada ou desmotivada rece bia novo

Lucius / SANDRA CARNEIRO 463 alento da Espiritualidade, na figura carinhosa da avó Heloise e também na d e Lucrécia, que por vários anos trabalhou, já com a ajuda consciente de Emi lie, na recuperação das entidades que a perseguiam.

Entre momentos de dificuldade, dor e renúncia, Emilie prosseguia.

Naquela noite, especialmente, sentia enorme cansaço. Depois de quase dois a nos colaborando na tradução de livros e artigos, estava exausta. Os trabalh os no orfanato exigiam cada vez mais dela, que permanecia menos tempo com a família. A lém dos problemas com Ricardo, que continuavam, e do assédio constante de entidades desencarnadas, tinha de livrar-se dos ataques diretos da Igreja e de Isabel, que se faziam m ais ásperos e freqüentes. Ela não desfrutava um só minuto de tranqüilidade.

Enquanto se dirigia à casa de Miguel, para os estudos da noite, pensava em como encontraria forças para prosseguir; indagava-se por que às vezes tudo lhe parecia tão difícil e penoso. Mesmo relembrando a revelação dolorosa que Lucrécia fizera quanto ao seu passado, sentia que às vezes as dificuldades excediam os problemas pessoais, como se algo maior do que suas mazelas particulares estivesse em questão.

Demonstrava abatimento e cansaço quando encontrou Miguel. Ele, entretanto, estava radiante. Recebeu-a à porta e disse:

- Que bom que chegou, Emilie. Esta noite será especial!

- O que houve, Miguel? - Perguntou, tentando animar-se. Olhando-a nos olho s, ele disse:

- Parece cansada... Emilie sorriu e disse:

- São as pedras do caminho, Miguel.

- Também me sinto cansado, às vezes. Mas hoje temos motivo mais do que jus to para nos alegrar, para revigorar nossas energias e renovar nossas esper anças.

464 RENASCER DA ESPERANÇA

- O que houve?

Ele passou às mãos de Emilie um pacote semi-aberto:

- Chegou hoje da Sociedade Espírita de Paris. Trata-se do mais novo livro d e Allan Kardec.

Emilie abriu o pacote e leu na capa o título: Imitação do Evangelho 1. Folhe ou o livro e, ao ler pequenos trechos, ergueu para o amigo os olhos rasos de água, dizendo:

- Que coisa maravilhosa, Miguel!

- Esta mensagem, que está contida na obra, veio em separado. Vamos lê-la na reunião de hoje. Creio que irá ajudar a todos nós.

Naquela noite os estudos se realizaram com notável leveza no ambiente. Ao final, trechos do livro recém-chegado foram lidos. No semblante dos partic ipantes, nova luz parecia se acender, como se sutil energia os acalentasse. Depois, Migu el passou às mãos de Emilie a mensagem que viera destacada e pediu, sorrin do:

- Por favor, Emilie, leia para todos nós.

Em pé, colocando-se em profunda reverência, ela começou a ler:

"Erasto, Paris, 1863

Não percebeis desde já a formação da tempestade que deve assolar o Velho Mundo, e reduzir a nada a soma das iniqüidades terrenas? Ah, bendirei o S enhor, vós que tendes fé na sua soberana justiça, e que, novos apóstolos da crença revelad a pelas vocês proféticas superiores, ides pregar o dogma novo da reencarnaç ão e da elevação dos Espíritos, segundo o bom ou mau desempenho de suas missões e a manei ra por que suportaram as suas provas terrenas.

1 Título dado ao livro O Evangelho Segundo o Espiritismo em sua primeira edição. (Obras Póstumas - Tradução de João Teixeira de Paula, Lake, p.15 1)

Lucius / SANDRA CARNEIRO 465

Deixai de temores! As línguas de fogo estão sobre vossas cabeças. Oh, verdad eiros adeptos do Espiritismo: vós sois os eleitos de Deus! Ide e pregai a pa lavra divina. E chegada a hora em que deveis sacrificar os vossos hábitos, os vossos trabal hos, as vossas utilidades, à sua propagação. Ide e pregai: os Espíritos eleva dos estão convosco. Falareis, certamente, a pessoas que não quererão escutar a palavr a de Deus, porque essa palavra os convida incessantemente ao sacrifício.

Pregareis o desinteresse aos avarentos, a abstinência aos dissolutos, a mans idão aos tiranos domésticos e aos déspotas: palavras perdidas, bem sei, mas que importa! E necessário regar com o vosso suor o terreno em que deveis semear, porque ele não frutificará, não produzirá, senão sob os esforços incessantes da en xada e da charrua evangélicas. Ide e pregai!

Sim, vós todos, homens de boa-fé, que tendes consciência de vossa inferiori dade, ao contemplar no infinito os mundos espadais, parti em cruzada contra a injustiça e a iniqüidade. Ide e aniquilai o culto do bezerro de ouro, que dia a dia m ais se expande. Ide, que Deus vos conduzi Homens simples e ignorantes, voss as línguas se soltarão, efalareis como nenhum orador sabe falar. Ide e pregai, que as p opulações atentas receberão com alegria as vossas palavras de consolação, de fraternidade, de esperança e de paz..."

Emilie não pôde continuar. Envolvida pelas energias vibrantes e renovadora s das palavras que lia, não conseguiu conter a emoção e se entregou a copi oso pranto reparador que não era de dor, e sim de profunda gratidão àqueles espíritos sábios e a morosos, que faziam chegar na hora certa tudo aquilo de que necessitavam. E la se sentia constrangida diante do amor, do carinho e do cuidado com que os benfeitore s espirituais cercavam a todos eles. Precisou de algum tempo para se recom por e só então terminou a leitura da mensagem.

Fora da casa de Miguel, a vida noturna em Barcelona prosseguia pulsante. N aquela mesma hora, inúmeros agrupamentos de artistas e intelectuais discut iam idéias revolucionárias e novos conceitos para o progresso da sociedade.

466 RENASCER DA ESPERANÇA

Do grupo reunido na casa de Miguel emanavam raios luminosos que envolvia m o ambiente e se expandiam por toda a cidade, estendendo-se ao infinito .

Nascia uma nova era de conhecimento, luz e esperança para a Humanidade.

LUCIUS / SANDRA CARNEIRO

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Belém "A Casa do Pão Entre, Descanse, e siga em paz

O Grupo Cristão Assistência! Casa do Pão XXXI é uma entidade sem fins lucr ativos, situada no bairro do Maracanã, região carente da periferia da cida de de Atibaia.

Desde 1998, temos como missão atuar na base da formação da criança e adol escente ajudando-os a descobrir e desenvolver seu potencial. Para isso bu scamos auxiliar as crianças e suas famílias através da distribuição gratuita de alimentação, roupas e xaropes fitoterápicos, além do atendimento odontológico. Para cont ribuir com o desenvolvimento do potencial das crianças, implantamos na Casa do Pão o projeto Centro da Juventude Anália Franco, que oferece apoio psicológico e educacional através das atividades de diversas oficinas, como: marcenaria, padaria, apoio escolar, entre outras.

Atualmente são cerca de 110 famílias atendidas e o projeto Centro da Juven tude trabalha com mais de 40 crianças.

Venha fazer parte desta família. Trabalhemos, que o céu nos ajudará! Unam onos e nada poderá suplantar a nossa força! E amemo-nos para que Jesus po ssa se expressar através de nós. Somente assim estaremos realmente cooperando para que a caridade suavemente caminhe estabelecendo o amor na face da Terra. Seja um apoiador da Casa do Pão ou tome-se um voluntário.

Venha nos visitar.

Rua Alberto de Almeida Brandão, 187 - Maracanã - Atibaia - SP. Fone: (1 1)4415 1500

"Faze por um dia ou por semana um horário de serviço gratuito em auxíli o aos companheiros da Humanidade"

Emmanuel

Digitalizado e corrigido na Biblioteca Braille "José Álvares de Azevedo" Goiânia Goiás - Brasil Junho de 2008