UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI FÁBIO DE AMORIM SANTANA

QUASE HUMANOS, QUASE MÁQUINAS

O Inumano em Metropolis, Tempos Modernos e Cosmopolis e

sua relação com a tecnologia

SÃO PAULO

2016

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FÁBIO DE AMORIM SANTANA

QUASE HUMANOS, QUASE MÁQUINAS

Dissertação de Mestrado em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. (a). Dr. (a) Laura Loguercio Cánepa

SÃO PAULO

2016

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO – quase humanos, quase máquinas 6

CAPÍTULO 1 - O futuro, o tempo, as máquinas e os humanos inumanos

1.1 - Metropolis 12 1.1.1 Roteiro e Abertura 13 1.2 - Fritz Lang 18 1.3 - Charles Chaplin e Tempos Modernos 19 1.3.1. – Carlitos 23 1.4. – Cosmopolis (2012), de David Cronenberg 27 1.4.1. – O enredo 28 1.4.2. – As cosmópolis 32 1.5 - O tempo passado, presente e futuro 38

CAPÍTULO 2 – Metropolis, Tempos Modernos, Cosmopolis: o tempo e a tecnologia

2.1 - A religião das máquinas: A excitação tecnológica, o pós-humano, tecnologia digital em

Cosmopolis, Tempos Modernos e Metropolis. 50

2.1.1. – A excitação tecnológica 51

2.1.2. – O pós-humano 53

2.1.3. – Tecnologia digital 56

2.1.4. – Os filmes: Cosmopolis 57

2.1.5. – Tempos Modernos 59

2.1.6. – Metropolis 64

2.2 - A decadência da Modernidade: Tempos Modernos e sua crise das relações de trabalho e da tecnologia 69

2.3 - A decadência da Modernidade: Metropolis e o papel da tecnologia no conflito entre

trabalhadores e patrão 73

2.4 – O contemporâneo em Cosmopolis: a cultura do produto e o tempo multiplicado: 77

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CAPÍTULO 3- O inumano e o tempo

3.1 – O inumano em Metrópolis (1927): o progresso tecnológico de Fredersen contra a pacificação

de Freder 79

3.1.1. – Um pouco de angústia 85

3.1.2. – A perseguição a Maria e o expressionismo 86

3.2 – O inumano em Tempos Modernos (1936): a magia de Carlitos contra a maquinização

fordista 98

3.3 – O inumano em Cosmopolis (2012): o capital cibernético, a fragmentação do tempo e a

ressignificação da luta de classes 102

3.3.1. - O tempo, Moloch e a relação com Metropolis e Tempos Modernos 102 3.3.2. – Cosmopolis, o tempo e a luta de classes 104

CONSIDERAÇÕES FINAIS - Sobre humanos: que futuro os filmes preveem? 119

BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 123

ANEXO 130

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RESUMO

Esta dissertação tem o objetivo de analisar o inumano (LYOTARD, 1990) em Metropolis (ALE, 1927), Tempos Modernos (EUA, 1936) e Cosmopolis (CAN, FRA, POR, ITA, 2012) e sua relação com a tecnologia. As três obras estão interligadas pelo inumano, tanto aquele que se refere ao chamado desenvolvimento (ou progresso) técnico e econômico, quanto inumano, individual, que está presente em nossa infância e nos acompanha na fase adulta pela recorrência da memória (LYOTARD, 1990). Portanto, o tempo e a tecnologia são dois fatores fundamentais na formação de nossa humanidade contemporânea, e os filmes Metropolis e Tempos Modernos, de Fritz Lang e Charles Chaplin, respectivamente, representam o marco de uma nova humanidade no século XX, cada vez mais atenta a velocidade, ao progresso tecnológico. Estes filmes criticam a chamada Modernidade e seu projeto de conforto, segurança e para todos graças à tecnologia. Cosmopolis, de David Cronenberg, atualiza a discussão mostrando onde estamos. Metropolis imagina as cidades do futuro, divididas entre os privilegiados e os operários. Tempos Modernos critica a industrialização, o fordismo numa cidade do presente, e pede outro futuro mais humano. Já Cosmopolis é o futuro realizado, agora, o caos, o momento em que o dinheiro foi tão acumulado pela ideia de “tempo é dinheiro”, que agora o capital “vende” o tempo em seus produtos tecnológicos. Afinal, pensando bem, o que um smartphone oferece para nós? Os humanos foram arrastados, desde a época dos dois primeiros filmes (período entre as guerras), para um desenvolvimento inumano, em que não há mais alternativa humana, política e econômica para este processo de aceleração do tempo. A “vida administrada” (pelos homens-corporações, pelo sistema financeiro) anula o tempo, a memória, o corpo, sempre ao tentar programá- los. Uma solução seria voltar para o outro inumano (LYOTARD, 1990), nós mesmos, nossas memórias, recuperar nossa educação não-pronta, executada na velocidade lenta que precisa ter para digerir e vivenciar experiências e emoções. As personagens destes três filmes buscam a solução para a velocidade. Querem sua inumanidade (a infância) de volta. É disso que se trata este trabalho. Uma reflexão sobre nossa quase humanidade e nossa quase “maquinicidade” nesta sociedade contemporânea.

Palavras-Chave: Cinema. Análise Fílmica. Tecnologia. Tempo. Inumano.

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ABSTRACT

The objective of this research is to analyze the inhuman (LYOTARD, 1990) in the films Metropolis (GER, 1927) Modern Times (USA, 1936) and Cosmopolis (CAN, FRA, POR, ITA, 2012) and their relationship with technology. The three works are linked by the inhuman, so that it comes to the so-called technical and economic development (or progress), as the other inhuman: individual, which is present in our childhood and follows us into adulthood by the recurrence of memory (LYOTARD, 1990). Therefore, time and technology are two key factors in shaping our contemporary humanity. The Metropolis and Modern Times films, by Fritz Lang and Charles Chaplin, respectively, represent the framework of a new humanity in century XX, more and more interested in speed and technological progress. These movies criticize the so-called modernity and its project of comfort, safety and happiness for everyone: only possible by technology. Cosmopolis, by David Cronenberg, updates the discussion. He shows where we are. Metropolis imagine the cities of the future, divided between the privileged and the workers. Modern Times criticizes the industrialization, the Fordism in the 30’s, and requests another future, much more human. While Cosmopolis is the future accomplished: the chaos, the time when the money was so accumulated by the idea of "time is money", that now the capital "sell" (or offers) the Time (itself) in technological products. After all, what a smartphone offers to us? Just time. Time layers. Humans were dragged - since the time of the first two films (the period between the World Wars) - to an inhuman development, where there is no more human alternative, political and economic too, for this time acceleration process. A "managed life" (by the men-corporations, by the financial system) annuls the time, the memory, the body, because it is always trying to program them. One solution would be to go back to the other inhuman (LYOTARD, 1990), to ourselves, to our memories, to recover our non-ready education, executed at a slow speed, that is necessary so that we can digest and live the experiences and emotions. The characters of these three films are looking for the solution for speed. They want their inhumanity (childhood) back. This is the subject of this research: just a reflection on our almost humanity, and on our almost "machinety" in this contemporary society.

Key-Words: Cinema. Film analysis. Technology. Time. Inhuman.

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INTRODUÇÃO – QUASE MÁQUINAS, QUASE HUMANOS

O objetivo nesta dissertação é analisar os filmes Metropolis (Alemanha, 1927) e Tempos Modernos (EUA, 1936), associando-os com Cosmopolis (Canadá/França/Portugal/Itália, 2012), sempre numa perspectiva de como eles estabelecem a relação indivíduos-máquinas e o Inumano (LYOTARD, 1990). Tenho a intenção de compreender: como os filmes se relacionam com sua época; identificam temas recorrentes no cinema posterior ou contemporâneo a eles; identificam inspirações literárias, filosóficas e políticas; ou, ainda, pretendo analisar como estes filmes e seus debates são atuais, através de questões recorrentes, como a tecnologia, o tempo e o inumano.

A perspectiva de inumano é a que Lyotard usa em seu livro O Inumano – considerações sobre o tempo (LYOTARD, 1990). Acredito que há uma linha ligando Metropolis (ALE, 1927), Tempos Modernos (EUA, 1936) e Cosmopolis (CAN, FRA, POR, ITA, 2012) com o inumano, tanto do ponto de vista de desenvolvimento quanto da anamnese. É a busca da nossa memória arquivada ou perdida, é uma lembrança pouco precisa. Trabalhamos nessa memória gradativamente para descobrirmos nossas verdades essenciais e latentes, que remontam a um tempo anterior ao da nossa existênccia empírica. Ou seja, perdemos tempo em busca do tempo perdido. É nossa experiência sensorial com o mundo, com nosso próprio corpo (como nos filmes de Cronenberg). Alguns chamam de contato com nossa alma. Outros chamam espírito. Não vou entrar nessa discussão.

Há ainda sua relação com a tecnologia. Lyotard tem duas hipóteses que se aproximam e interagem. Uma é sobre estarmos no caminho de nos tornarmos inumanos. Outra questiona se não é próprio do ser humano ter o inumano dentro de si. Por isso ele trabalha com dois conceitos de inumanidade que se cruzam e, eu diria, se habitam. A primeira se refere, como disse antes, ao progresso, ao avanço científico, que necessita como combustível de um tempo em constante aceleração. Sua contraindicação é que “andar depressa é esquecer depressa”, segundo Lyotard. Henry Ford (1863-1947), autor de Minha filosofia e indústria, é fundador da Ford Motor Company em Detroit, EUA. E ele criou um sistema de produção em massa, ou linha de produção, para seus automóveis em 1913. É uma forma de racionalizar o tempo, dentro de uma produção capitalista, baseada em inovações tecnológicas e de organização de trabalho. Tudo isso se articula 6 pensando em fazer mais em menos tempo com um custo menor. Ou seja, a produção é automatizada o máximo possível (máquinas trabalham, homens operam). O objetivo de Ford era criar um mercado de massa também. Para isso, era preciso vender automóveis por preços acessíveis a todos. Cada operário realizava apenas uma função simples ou uma etapa da produção na linha de montagem. Dessa forma, não era necessário qualquer qualificação específica dos trabalhadores. Qualquer “Carlitos” poderia trabalhar na fábrica. Fato que reduz os custos, por exemplo, com salários de profissionais. Ford, então, ganhou um “ismo”. Sua base de trabalho está nos filmes Tempos Modernos e Metropolis. E é criticada ou satirizada por eles. A linha em que se baseia o fordismo é a do “tempos é dinheiro”. Daí voltamos para a frase “andar depressa é esquecer depressa”, de Lyotard. Quando apressamos o tempo, matamos nossa memória. Em Cosmopollis, de Cronenberg, a aceleração do tempo passou do limite (se é que existe algum). A ponto de o tempo se transformar em produto do mercado financeiro da Era Digital.

O segundo tipo de inumanidade de Lyotard é o da busca pelo nosso passado, nossa memória, que é pessoal e também coletiva. Toda nossa experiência sensorial com o mundo, com nosso próprio corpo é inumanidade acontecendo (assim, no gerúndio mesmo). Em resumo: Lyotard diz que os humanos não nascem prontos, não nascem “humanos”, como os outros mamíferos, que já nascem prontos. Nós precisamos aprender tudo: a andar, a falar, a entender as convenções sociais e como reagir aos padrões de comportamento. Éssa segunda inumanidade de que fala Lyotard precisa de tempo para acontecer. Assim como é preciso tempo para ler um livro, nós somos um livro. Não dá para pegar o arquivo do livro e inseri-lo em nosso cérebro, para, segundos depois, já sabermos do que se trata. É preciso digerir. E digestão tem seu próprio tempo. Meu trabalho diz que a inumanidade do desenvolvimento (tecnológico, financeiro, virtual) está matando a inumanidade da aprendizagem (pessoal, social, coletiva, reflexiva). Por isso perdemos a magia, o encantamento, a tradição, nosso tempo do Sol.

Este trabalho é sobre nossa quase humanidade e nossa quase “maquinicidade”. E está dividido assim: a metodologia e a explicação dos conceitos usados. No primeiro capítulo a contextualização dos filmes e diretores e uma reflexão sobre o tempo. No segundo capítulo, o detalhamento da reflexão sobre o tempo e a tecnologia nos três filmes, com atenção para a ideia de a tecnologia ser uma espécie de religião, segundo ideias de Erick Felinto. No capítulo três, discuto e detalho a questão do inumano e do tempo nos filmes, e como seus personagens principais resolveram (ou não) suas inumanidades. Depois encerro com uma conclusão em que questiono o futuro que 7

Metropolis, Tempos Modernos e Cosmopolis enxergam para a humanidade no futuro (ou presente, como no caso de Cosmopolis). O que pretendo fazer é análise fílmica. Depois, pesquisa histórica dos filmes e dos referenciais teóricos de filósofos e artistas (escritores, especialmente) do período dos filmes. Em seguida dessa leitura - que compreende o início da Modernidade, o período entre guerras, o surgimento da Cultura Pop, o Pós- Moderno e a Era Digital – vem a reflexão, a análise, a conexão dos pontos.

Segundo Henry Jenkins, a produção coletiva de significados, na cultura popular do século XXI, está começando a mudar o funcionamento das religiões, da educação, do direito, da política, da publicidade e mesmo do setor militar (JENKINS, 2009). Fritz Lang foi um dos precursores, através do cinema, dessas discussões de mundo: máquinas a serviço da humanidade, da estética de cidades futuristas, do poder, da religião e da publicidade. Charles Chaplin, em Tempos Modernos, leva essa discussão para a desumanização das pessoas, ou sua mecanização. Mas prefiro tratar do conceito de Inumano, de Lyotard, que aplicarei às características circenses da personagem de Carlitos (explicações delhadas sobre o que é inumanidade no capítulo 3).

Pretendo mostrar que o ser humano sempre buscou, através das tecnologias e seus derivados (que incluem robôs), uma extensão dele próprio, um jeito de se perpetuar. Mas o conflito gerado por essa sua ‘extensão’ mecanizada (as máquinas) surge quando a sociedade desse indivíduo moderno - em Metropolis e Tempos Modernos - está dividida entre trabalhadores pobres e capitalistas ricos. E entre eles existem as máquinas, que ajudam a construir essa modernidade desumana ou inumana. Em Metropolis, os trabalhadores se revoltam contra as máquinas, mas depois selam a paz (há uma visão pré-fascista surgindo aí com a premissa do filme de que o coração deve unir as mãos e o cérebro). Em Tempos Modernos, o Vagabundo se acha fora do seu tempo presente, não se encaixa, não adere (AGAMBEN, 2009), mas vê com o distanciamento necessário a fratura em seu presente, ele enxerga o escuro do seu tempo. Chaplin vê uma sociedade humana se transformando em engrenagens de uma grande máquina moderna. Nosso tempo presente exige “more speed” (Tempos Modernos), e as disputas entre ricos e pobres (Metropolis) ganharam novas formas na era digital. Walter Benjamin dizia que a preocupação das massas era deixar tudo mais próximo (BENJAMIN, 1994). A era da internet e das redes sociais é o resultado desse pensamento visionário de Benjamin. Essa preocupação de deixar tudo mais próximo condizia com as premissas do Futurismo e do progresso na época de Tempos Modernos e de Metropolis. Por isso a atualidade do assunto, que recupera um período histórico importante e marcante na história do cinema, 8 e, também, na história da humanidade, que foi o período entre guerras. Momento este que ajudou a formar o século XX e influenciou a forma de ver o mundo no século XXI.

Os autores deste período, ou que estudaram este momento histórico, ou suas consequências atuais, são fundamentais para a dissertação. Bauman é um sociólogo referência, assim como Arendt é uma autoridade no que se refere ao período entre guerras. É de Bauman o conceito de mundo líquido. Weber enxerga um desencantamento do mundo, mas pretendo me aprofundar em Weber apenas na tese de doutorado, quando darei continuidade ao assunto. A magia contida no mundo, dita por Weber, não fará parte de citação ou análise nesta dissertação. Já Arendt usa a expressão esfacelamento das tradições. Com a chegada da Modernidade, o mundo passou a se explicar mais racionalmente. O mundo sólido, o mundo de tradições, o mundo ainda encantado, ganhou um defeito: estagnação. As tradições atrapalham, precisamos mudar constantemente, não podemos viver na ditadura da constância. A partir disso, a sociedade passou a viver na ditadura da inconstância, sob o pretexto de viver livremente, podendo mudar o futuro como e quando quiser. Mas essa mesma sociedade aboliu o futuro. Hoje, vivemos o presente constantemente. Somos descartados, ou descartáveis, tanto, e de tal modo, que é impraticável pensar ou planejar um futuro.

Tudo muda de um momento a outro, somos conscientes de que somos transformáveis e, portanto, temos medo de fixar qualquer coisa para sempre. Provavelmente, seu governo convoca seus cidadãos a serem flexíveis. O que significa ser flexível? Significa que você não está comprometido com nada para sempre, mas sim pronto para mudar a sintonia, a mente, em qualquer momento no qual seja requisitado. Isso cria uma situação líquida.

(BAUMAN, 2014, em entrevista à MG Magazine)

Este conceito de Bauman, aplicado à vida nas cidades globais, é o que me interessa nessa análise porque a narrativa dos filmes acontece em cidades grandes, globais (como a cidade do futuro em Metropolis, de 2026, a cidade grande americana em Tempos Modernos e a Nova York, de Cosmopolis no ano de 2012).

A modernidade apresenta conceitos diferentes, mas nesta dissertação me oriento também pela definição de Giddens. Ele afirma que a modernidade é um modo de vida e de comportamento que se estabeleceu na Europa após o declínio do feudalismo, originando uma sociedade capitalista, mergulhada num mundo crescentemente industrializado e pontuado por inventos e descobertas (GIDDENS, 2002: 21). Também há divergência entre os autores quanto às divisões em períodos ou etapas da modernidade. Santos é um dos pensadores que enxergam os dois pilares que sustentam a

9 modernidade: o da regulação e o da emancipação (SANTOS: 1997). A definição de Giddens de modernidade parece ser mais comum e por isso será usada, mas as observações de Santos sobre os pilares que sustentam esta mesma modernidade também valem para esta análise do período.

Por causa do incessante avanço tecnológico, a linha que diferencia humanos de computadores/robôs diminui pouco a pouco, tornando reais os conflitos ético-filosóficos sugeridos antes na literatura de ficção científica. As máquinas são, nesta dissertação, andróides e seus derivados com Inteligência Artificial, além das máquinas que sustentam a vida, como smartphones, notebooks e afins. Por isso também a leitura do trabalho de Erick Felinto (O Pós-Humano Incipiente: uma ficção comunicacional da Cibercultura e o livro A Religião das Máquinas, ambos de 2005).

Sobre Bauman, um dos autores neste texto: Zygmunt Bauman nasceu em Poznan, Polônia, em 1925, numa família judia. E o mundo líquido dito por ele, se refere ao atual momento da história, em que a realidade sólida dos nossos avós (carreira no trabalho, casamento para toda a vida etc) se desmanchou. Esse conceito de modernidade significa “modernização obsessiva, viciante, compulsiva. Não aceitar as coisas como elas são, e sim transformá-las em algo que consideramos que é melhor” (BAUMAN, 2014). Com essa compulsão pela modernização, as coisas não duram muito. E isso é o mundo líquido para Bauman. Ou seja, “nada tem uma forma definida que dure muito tempo”.

Sobre Hannah Arendt (1906-75), ela nasceu em Hannover, na Alemanha. É de origem judaica. Com a ascensão do nazismo em 1933, foi para Paris, onde conheceu Walter Benjamin. Na Segunda Guerra, foi mandada para um campo de concentração. Conseguiu fugir e chegou a Nova York em 1941. Perdeu a nacionalidade alemã. Somente em 1951 obteve a nacionalidade americana. Desenvolveu uma obra fundamental para a compreensão da política e da condição humana. Já sobre Sartre (1905-80), ele diz que a falta de sentido da vida está na incapacidade do ser humano de se autoconhecer e de agir como ser pensante e autônomo (assim como Arendt detectava o fim da capacidade humana de pensar-refletir). Nessas condições o indivíduo torna-se incapaz de dirigir sua própria vida. O homem moderno não tem mais responsabilidade pelo que é (“o inferno são os outros”, diz Sartre, ao definir o ser humano contemporâneo, que nunca assume a culpa de nada). Ele via “no desespero uma imagem lúcida do que era a condição humana” (SARTRE, 1980, p. 19). Os valores se relativizaram. O vazio interior e a falta de

10 sentido se tornaram parte da experiência humana. Para Sartre, a angústia surge da consciência de nossa liberdade e da responsabilidade por nossos atos.

É na angústia que o homem toma consciência de sua liberdade (...) na angústia que a liberdade está em seu ser colocando-se a si mesmo em questão.

(SARTRE, 2002, p. 72)

Falo de um mundo que tem o novo como princípio. Um mundo que estimula muito mais as pessoas e, ao mesmo tempo, oferece, mais emancipação e sua correspondente escravidão, mais individualidade (uma falsa liberdade, ou uma liberdade oferecida pela cultura pop, de mercado), além de uma impessoalidade abstrata também (SVENDSEN, 2006). Próxima do que é impessoal em um androide, ou uma inteligência artificial. A ideia de impessoalidade está no livro A Filosofia do Tédio, de Lars Svendsen. Conceito que será melhor explorado também numa futura tese de doutorado.

Defendo a possibilidade de Chaplin ter criado um personagem que, debaixo de toda sua inocência, era crítico com seu tempo presente, o suficiente para ser um contemporâneo. Walter Benjamin, com seu A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica, afirma que no cinema a reprodução é obrigatória. Chaplin não escapa disso.

A técnica, segundo Benjamin (BENJAMIN, 1991), sempre representa a natureza a partir de uma nova perspectiva. As máquinas (smartphones, internet, notebooks e afins) são a verdadeira medida de todas as coisas no mundo contemporâneo. Felinto (autor de A religião das Máquinas, 2005) cita o trabalho de Gilbert Simondon para falar do assunto: a ideia de uma terceira atitude possível da cultura. Seria aquela adotada pelos homens providos de conhecimento do objeto técnico (SIMONDON, in FELINTO, 2005, p. 117- 118). A tecnologia é elevada para a categoria do sagrado. E Erick Felinto é um dos pensadores dessa questão.

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CAPÍTULO 1 - O FUTURO, O TEMPO, AS MÁQUINAS E OS HUMANOS INUMANOS

1.1 – Metropolis (1927)

Na abertura da última edição remasterizada de Metropolis (exibida pela primeira vez em 2010), encontra-se o seguinte texto:

Pouco depois de sua estreia, o filme “Metropolis” foi severamente cortado e alterado. Desde então, mais de um quarto do filme era dado como perdido. Então, em 2008, uma versão quase completa do filme foi encontrada em Buenos Aires. O que fora preservado era, no entanto, uma cópia muito danificada que fora revelada de um negativo 16mm, sem o plano integral do aspecto original do filme. Foi possível reconstruir uma boa parte da obra e a sequência correta da edição foi estabelecida graças a este material argentino. Os intertítulos em espanhol foram traduzidos para o alemão com a ajuda das cartelas de censura da época. Para exibir corretamente as cenas cortadas, extraídas do negativo 16mm a parte faltante do plano foi marcada por preto. Os intertítulos estão com seu tratamento gráfico original. Os letreiros com fonte diferente (como os usados aqui [nesta explicação]) foram acrescidos para descrever as cenas ainda perdidas para facilitar o máximo possível a compreensão adequada do roteiro. Cenas menores estão indicadas por pequenos trechos em preto. Este filme foi produzido pela UFA e é distribuído pela Parufamet. Direção: Fritz Lang. Roteiro: Thea von Harbou. Direção de Arte Otto Hunte, Erick Kettenlhut, Karl Vollbrecht. Direção de fotografia: Karl Freund, Günther Rittau. Música: Gottfried Huppertz. Escultor: Walter Schultze-Mittendorf. “Metropolis”, um romance de Thea von Harbou, foi publicado na revista “Illustriertes Blatt”, Frankfurt, e em forma de livro pela August Scherl Verlagg G.m.b.H.

(Coleção Folha Cine Europeu, 2011, Editora Moderna)

Os personagens do filme são Joh Fredersen (Alfred Abel); Freder, filho de Joh (Gustav Fröhlich; Rotwang, o inventor (Rudolf Kelin-Rogge); o Homem-Magro, ou Thin- Man (Fritz Rasp); Josaphat, empregado de Joh e amigo de Freder (Theodor Loos); 11811, operário que troca de lugar com Freder (Erwin Biswanger); Grot, o guardião da Máquina- Coração (Heinrich George); o homem-criativo, O homem-máquina, A Morte, Os Capitais, Maria (Brigitte Helm).

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1.1.1 – Roteiro e abertura

A diferença entre tirania e governo autoritário sempre foi que o tirano governa de acordo com seu próprio arbítrio e interesse, ao passo que mesmo o mais draconiano governo autoritário é limitado por leis. (ARENDT, 2009, p. 134)

Em Metrópolis, por exemplo, existe uma tirania ou um governo autoritário? Existe um “dono” que governa segundo as regras que ele próprio criou. O roteiro não trata apenas de tirania, de poder. Porque isso pressupõe algum tipo de conflito inerente ao fato de existir um poder absoluto. Daí, o que chama a atenção ser a epígrafe (sentença, adágio, ou Sinnspruch, no original em alemão) que abre o filme: “O mediador entre a cabeça e as mãos deve ser o coração”. Uma epígrafe é um título ou frase que serve de tema ou introdução de assunto. Sua origem vem do grego epigrafhé e significa inscrição, título. Por exemplo, o início deste tópico começou com uma frase de Arendt sobre tirania e governo autoritário. O filme de Lang também começa com uma. A tradução literal do alemão para Sinnspruch, na abertura do filme, é epigrama. Palavra esta que vem do grego e significa sobre-escrever, ou escrever sobre. É um tipo de poema, curto, que expressa um único pensamento principal, festivo ou satírico, de maneira bem elaborada. É um tipo de texto que se colocava sobre uma estátua ou tumba, por exemplo. Em tumbas, os epigramas eram chamados de epitáfios. Difícil imaginar que a frase inicial de Metropolis tivesse essa intenção de sátira ou crítica. Parece mesmo uma epígrafe. Ela funciona como um resumo do que se vai ler em seguida. Ler, porque Metrópolis ainda é um filme mudo, que ainda usa textos para conectar a história.

A história se desenvolve em 2026, numa cidade-estado de enormes proporções, chamada Metrópolis. A sociedade está dividida em dois grupos antagônicos e complementares: uma elite de proprietários e pensadores, que vive na superfície, aproveitando paisagens paradisíacas. E o outro grupo, o de trabalhadores, que vive abaixo da cidade. Eles trabalham para manter o modo de vida dos de cima. O presidente- ditador-dono-criador da cidade é Joh Fredersen. Há uma figura pacificadora e religiosa, que defende os trabalhadores. É Maria. Ela busca uma saída pacífica para a exploração sofrida pelos operários, e pede que tenham paciência, que esperem um homem (o escolhido, ou o Mediador, ou o coração), que irá unir trabalhadores e o dono de Metrópolis (a união das mãos com o cérebro). O filho de Fredersen, Freder, conhece Maria e se apaixona por ela. Ele entra no mundo subterrâneo e conhece as mazelas da vida do trabalhador, e percebe o desdém dos proprietários, que preferem trazer mais

13 operários para que as máquinas não parem, do que ajudar aos que sofrem acidentes nelas. Fredersen, o pai, já conhece as atividades de Maria, ao mesmo tempo em que sabe de planos dos trabalhadores para iniciar uma rebelião. Ele decide pedir ajuda ao cientista Rotwang, que mostra sua última invenção, um robô que pode assumir a forma de qualquer humano. Fredersen tem a ideia de usar o robô para assumir a forma de Maria, para que ela promova o acirramento de ânimos entre os trabalhadores, incitando-os à rebelião.

No filme Metropolis (1927) há esse momento em que a população de trabalhadores (que vive no subterrâneo) se rebela contra a opressão do mundo de cima (os ricos da cidade de Metrópolis). Essa rebeldia escolhe agir contra as máquinas que sustentam a vida da cidade (e do mundo dos trabalhadores). O ódio foi provocado pela andróide disfarçada de sua líder espiritual (a personagem Maria). Dessa forma, Fredersen poderia lançar uma repressão violenta contra os operários e abafar qualquer sinal de descontentamento. O que Fredersen não sabe é das verdadeiras intenções de Rotwang. Os dois já se apaixonaram pela mesma mulher, Hel. Fredersen se casou com ela, que deu à luz a Freder. Mas Hel morreu no parto. E Rotwang planeja usar a androide como instrumento de vingança contra o dono de Metrópolis, contra seu filho Freder e contra toda a cidade. O cientista planejou usar a androide, incialmente, para substituir sua amada Hel. Mas aproveitou o plano de Fredersen para se vingar dele. A verdadeira Maria foi, então, sequestrada e presa no castelo medieval de Rotwang. Enquanto isso, a androide toma o lugar de Maria, se exibindo como dançarina exótica no cabaré exclusivo dos homens endinheirados, no bairro Yoshiwara (imagem 001).

Yoshiwara é multicultural, globalizado: olhos mostram desejos (imagem 001) 14

O local é globalizado. Multicultural e repleto de olhos que desejam. Seus desejos passam pelo jogo, sexo, pelo etéreo, o místico e pelo poder que o dinheiro traz. A Maria falsa, neste lugar, excita os homens e provoca a discórdia entre eles, iniciando a decadência moral dos jovens de Metrópolis. Além disso, a androide provoca os trabalhadores a iniciarem uma rebelião, que deveria começar pela a destruição das máquinas, pois são elas que oprimem os operários, segundo a falsa Maria. Mas a destruição da máquina principal provoca uma inundação na cidade subterrânea. Mas todos os filhos dos trabalhadores estão lá (eles, inclusive, podem morrer afogados). Mas Maria (que escapou de Rotwang), Freder e seu amigo Josaphat (assistente demitido por Fredersen) salvam as crianças a tempo. Ao se darem conta da bobagem que fizeram, os trabalhadores buscam vingança contra Maria (que eles ainda não sabem ter sido substituída por uma androide). Depois de algumas reviravoltas na história, a falsa Maria é queimada e se revela um robô. A verdadeira Maria é perseguida por Rotwang em cima da catedral. Freder a salva. Ele luta contra Rotwang, que cai e morre. Então, o sonho de Maria em ver trabalhadores unidos com o empresário acontece. Freder une a mão de Grot (líder dos operários) à mão de Joh Fredersen. A ingênua e perigosa premissa da roteirista Thea von Harbou se concretizou no fim do filme. (Quem vai comandar a cidade agora? Claramente é o pai de Freder, que no fim não perdeu poder nenhum. Quase provocou a morte de todos, mas além de não ser preso ou sofrer qualquer punição, continua sendo o “cérebro” que vai comandar Metrópolis. Os trabalhadores talvez sejam menos explorados, mas continuarão sendo operários e continuarão vivendo no subterrâneo. Freder será manipulado pelo pai e toda mudança, na verdade, servirá para manter as coisas do mesmo jeito) Apesar desse final tolo, cheio de pontas soltas, o filme é criador de gêneros cinematográficos e um exemplo de megaprodução.

A partir de 1920 os filmes alemães saíram do boicote estabelecido pelos Aliados da Primeira Guerra Mundial. Nesse período, até meados da década de 20, essas produções alemãs surpreenderam o mundo (KRACAUER, 1988), cujo período, na década de 20, foi considerado “mágico”. As falhas, propriamente, surgiram depois. Da bonança criativa, o cinema alemão preservou traços, mas em seguida entrou em declínio. Os tais ‘traços’ que preservaram foram definidos pelos críticos americanos e europeus. O que mais chamou atenção desses críticos foi o talento alemão para criar uma atmosfera visual impressionante. Foram cenários criativos e suntuosos, iluminação apropriada no

15 desenvolvimento da ação, técnicas novas e formas mais organizadas de produzir e conduzir filmes.

Uma das tais técnicas novas é extremamente relevante para a linguagem cinematográfica: o uso, pela primeira vez, da câmera completamente móvel. (KRACAUER, 1988). A perfeita integração de luzes, cenários, atores, requeria uma disciplina ímpar de quem trabalhava no filme. Fato que só o espírito matemático e sério dos alemães poderia proporcionar. E proporcionou. Fez tanto sucesso seu modelo organizacional que Hollywood, humildemente, copiou. Copiou do jeito mais sábio na época. Contratou quem pôde para trabalhar nos EUA. De técnicos, diretores a atores. De tudo, o que mais impressionou Hollywood foi o trabalho de câmera alemão.

A França também se rendeu ao modelo alemão de produzir filmes. E a Rússia gostou mais da técnica alemã de iluminação e tratou de copiá-la. Segundo Kracauer, admiração e imitação não se baseiam, necessariamente, em compreensão. O autor revisa as análises feitas sobre a história do cinema alemão, desse período burbulhante de ideias, e propõe outra maneira de analisar o que aconteceu. A literatura sobre o assunto preferia ver os filmes alemães sob o ponto de vista estético, tratando-os como estruturas autônomas. Ninguém se perguntou, por exemplo, por que a Alemanha foi o primeiro país a dar completa mobilidade para a câmera. Kracauer fez essa pergunta. Ele afirmou que a evolução do cinema alemão não foi compreendida. E criticou os críticos da época, que reduziam a análise dos filmes alemães a esquemas cronológicos, ou a mera divisão em grupos, sem explicar a metodologia para se chegar a tal ou tais conclusões.

Atribuindo o declínio [do cinema alemão] após 1924 ao êxodo de importantes personalidades do cinema alemão, muitos autores qualificam os filmes alemães da época de ‘americanizados’ ou de ‘produtos internacionalizados’. (...) [Mas] só se pode compreender totalmente a técnica, o conteúdo da história e a evolução dos filmes de uma nação, relacionando-os com o padrão psicológico vigente nesta nação. (KRACAUER, 1988: 16-17)

Esse é o caminho por onde anda Kracauer, em seu livro De Caligari a Hitler. Sua intenção é mostrar que os tais filmes “americanizados” pós-24 foram de fato expressões verdadeiras da vida alemã de seu tempo. Kracauer afirma:

Os filmes de uma nação refletem a mentalidade desta, de uma maneira mais direta do que qualquer outro meio artístico (...). (KRACAUER, 1988: 17)

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Para ele, a produção cinematográfica sempre tem caráter coletivo. Nunca é resultado de um só. Hollywood, em meados dos anos 20, fechou um acordo com sua rival alemã, a UFA (Universum Film AG). Por esse acordo, a empresa alemã, quase falida, recebeu 17 milhões de marcos. Em troca, a UFA concordou em reservar metade de todas as apresentações cinematográficas para filmes produzidos pela Paramount e a MGM. A UFA concedeu, também, para estas companhias americanas, os direitos dos próprios filmes. Metropolis se encaixa neste período (após 1924) em que Kracauer diz que a Alemanha realizou filmes que refletiam a mentalidade da nação. O roteiro de Metropolis, de Fritz Lang e Thea Von Harbou (sua mulher), foi escrito em 1924. As filmagens começaram em 22 de maio de 1925. E a estreia foi em janeiro de 1927, em Berlim. O acordo Hollywood/UFA, afetou diretamente Metropolis. O filme de Lang foi o último suspiro expressionista, ao mesmo tempo em que é o primeiro filme do chamado Novo Objetivismo, que surgiu no início dos anos 20 como reação ao Expressionismo, e acabou quando os nazistas chegaram ao poder, em 1933. Essa arte, aplicada no cinema, pensava, entre outras coisas, no corte realista, e em tudo que fosse oposto ao Expressinismo. Mas o filme de Lang ainda é essencialmente ornamental.

Metropolis foi afetado pelos americanos porque eles cortaram um quarto do filme depois de sua exibição em Berlim. Para levar à América, os produtores dos Estados Unidos destruíram as explicações do ódio de Rotwang a Joh Fredersen. Eliminaram boa parte da participação do segurança-espião de Fredersen, o Thin-Man. O filme foi despedaçado. E foram necessárias décadas de esforços e muita sorte para que seus pedaços fossem unidos novamente. E isso aconteceu no início dos anos 2000 quando utilizaram o roteiro original do músico Gottfried Huppertz para editar a sequência correta. Huppertz usava o roteiro para compor a trilha e, graças a isso, sabíamos o que realmente aconteceu cena a cena. O filme foi remontado e acrescentaram um texto numa tela preta para explicar o que estava acontecendo onde não havia filme. Assim, mesmo sem as cenas perdidas, foi possível ter ideia de como deveria ser a produção original. Mas, em 2008, encontraram 25 minutos que estavam perdidos há décadas. O filme todo, com esses 25 minutos, estava em Buenos Aires. Mas muitos takes eram de outro ângulo. Por isso, mesmo com a nova remontagem do filme, acrescentando os 25 minutos no lugar das telas pretas explicativas, não poderia ser considerado o filme original. Isso é impossível. Além do mais, ninguém “jogou fora” a versão argentina. Pelo contrário. Porque se acredita que – do ponto de vista puramente da crítica cinematográfica – são dois filmes, com visões de fotografia distintas. Mesmo a versão argentina sendo uma segunda escolha de

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ângulo e enquadramento do diretor, não deixa de ser uma escolha artística dele. Seria uma discussão interessante perguntar: o que fez com Lang escolhesse um take e não outro? É por isso que é melhor manter os dois, o argentino e a versão alemã (remontada com cenas do argentino). Os dois são Metropolis, de Fritz Lang.

1.2 – Fritz Lang

Nos meses de junho, julho, agosto e setembro de 2014 houve uma mostra no Brasil chamada Fritz Lang, o horror está no horizonte. Na apresentação do catálogo do Centro Cultural Banco do Brasil, diz-se o seguinte:

“(...) A obra de Fritz Lang vai do cinema mudo ao sonoro, do preto e branco ao colorido, do expressionismo alemão à narrativa clássica e da produção europeia à americana. Há nela um certo paralelismo com a história do próprio cinema, e uma forte marca autoral. Os filmes Metrópolis e Os Nibelungos, por exemplo, são considerados ícones do expressionismo alemão. Já os títulos Fúria, Os corruptos e Almas perversas, realizados do outro lado do Atlântico, são parte de uma fase de sua produção em que o filme noir, estilo que marcou o cinema americano nas décadas de 1940 e 1950, é maioria. E em seu retorno à Alemanha, em 1960, Lang realiza sua obra derradeira, Os mil olhos do Dr. Mabuse”. (Catálogo do Centro Cultural Banco do Brasil, 2014)

O mal sempre foi o foco das lentes de Fritz Lang. De onde vem esse mal, como ele se manifesta no ser humano, sua consequência numa sociedade inumana. Uma ficha do seu histórico: Lang nasceu em 1890, em Viena. Iniciou sua carreira na Alemanha da República de Weimar. Passou pelo período expressionista, de onde tirou filmes como A morte cansada (1921) e Os Nibelungos (1924):

(...) É neste mesmo período que Lang realizará também suas duas obras mais famosas: Metrópolis (1927), então o filme mais caro da produção alemã, e M., o vampiro de Düsseldorf (1931), que se tornaria sua obra-prima obrigatória. Em 1933, com pouco mais de quarenta anos, Lang era possivelmente o cineasta mais bem reputado da Alemanha. Até que um encontro com Goebbels o leva ao exílio, primeiro na França e depois nos Estados Unidos. Em Hollywood, ele passará por todos os grandes estúdios americanos (MGM, Paramount, Fox, Warner, RKO), realizando filmes de diversos gêneros (noir, faroeste, drama, aventura, flertando por duas vezes com o musical) antes de retornar à Alemanha para suas obras derradeiras. Por trás desta trajetória ampla e diversa, é possível, contudo, entrever o homem-Lang: obstinado, perfeccionista declarado, sempre lutando para impor seu olhar pessoal em suas obras, mesmo aquelas realizadas por encomenda. Este olhar pessoal é o que distingue Lang como um “autor” no sentido mais sofisticado do termo, posto que se trata de uma autoria que deve ser buscada numa dimensão mais secreta da imagem: no olhar impiedoso do cineasta sobre os homens e as forças secretas que os 18

cercam. Em Lang, o homem é contaminado por um Mal que o ultrapassa, e que pode se revelar ora num impulso irreprimível (M [1931], ou Almas perversas [1945], ou Maldição [1952]), ora na forma de desejo sexual destrutivo (Retrato de mulher [1944], Desejo humano [1954]) ou no páthos social que impulsiona as multidões ao linchamento - M, ou Fúria (1936). (Calac Nogueira, João Gabriel Paixão, Joice Scavone curadores da mostra Fritz Lang, o horror está no horizonte, 2014)

O que Fritz Lang via, quando fazia crítica social, era um desfacelamento, uma fragmentação da humanidade. Um homem à procura de sentido na vida. Ou melhor: em Metropolis a sociedade do futuro não tem sentido porque o diretor via na humanidade a perda do sentido da vida:

(...) o homem de hoje, tal como é: ele esqueceu o sentido profundo da vida, ele só trabalha para as realidades, pelo dinheiro, não para enriquecer sua alma, mas para adquirir vantagens materiais. E, porque esqueceu o sentido da vida, ele já está morto. Ele tem medo do amor; ele quer apenas ir para a cama, fazer amor, mas não quer assumir responsabilidades. Apenas o interessa a satisfação de seu desejo. (Publicado originalmente sob o título de “Entretien avec Fritz Lang”. Cahiers du Cinéma n° 99, setembro de 1959, pp. 1-9.)

Vou me apegar a essa frase de Lang: “E porque esqueceu o sentido da vida, ele [o homem] já está morto”. Esse homem que ele via nos anos 30, 40, 50 e 60 não mudou, não alterou sua rota, mas, sim, aprimorou essa inumanidade para o que hoje vemos em Cosmopolis, de David Cronenberg. Eric também ouve essa frase (sobre “estar morto”) do seu antagonista Benno Levin. Seria isso. Eric está morto? E Carlitos? É o anti-Eric. O anti- Fredersen. Carlitos é a solução de Chaplin para o futuro.

1.3 – Charles Chaplin e Tempos Modernos (1936)

Tempos Modernos (1936) faz uma crítica à Revolução Industrial e suas conquistas. Ao mesmo tempo, o filme traça momentos metalinguísticos. Já existia o cinema falado e Chaplin lutava contra esse avanço tecnológico por razões pessoais/empresariais e artísticas. Um de seus argumentos era o de que seu personagem eterno, Carlitos, não

19 poderia falar, porque seria sua morte. Seria o fim da magia, da inocência. Mas também é fato que Carlitos falando poderia não funcionar nas bilheterias, o que daria enormes prejuízos ao diretor.

Chaplin usou o argumento de que o som mataria seu personagem para não fazer um filme “falado” em seu brilhante, Luzes da Cidade (1931). Mas, sem poder continuar sua “luta” contra o cinema falado, Chaplin resolveu fazer o último filme do personagem do Vagabundo, ou Carlitos (em Tempos Modernos). Ainda era um filme mudo, mas acrescentou elementos de som, sempre com o objetivo de crítica ou zombaria. O dono da fábrica, insensível capitalista, era o único personagem que efetivamente falava. Mas só se ouvia sua voz quando ele usava o “vídeo” interno da fábrica para pedir “more speed”, mais velocidade, em algum ponto da fábrica, ou usava o vídeo para chamar Carlitos de volta ao trabalho. O personagem tinha acabado de acender um cigarro em seu horário de folga. O momento “relax” acabou rápido. A grande questão do diretor Chaplin é se Carlitos iria falar em algum momento do filme. O diretor encontrou uma solução para resolver isso. Algo que discutirei mais detalhadamente depois. A obra é metalinguística porque, em certos momentos, Tempos Modernos é um filme mudo que brinca de ser falado. Em várias situações e cenas Chaplin remete ao ‘fazer cinema’ e critica a entrada dessa e de outras tecnologias na sétima arte e não apenas na vida das pessoas comuns.

Quando foi lançado em 1927, O Cantor de Jazz, de Alan Crosland, se tornou um marco tecnólogico na história do cinema. Era o primeiro filme em que o som estava gravado. Ou, de modo mais simples, era o primeiro filme falado. A partir disso todas as produtoras mudaram para a grande novidade que alavancou de novo as bilheterias do cinema em uma época pré-crise econômica de 1929. Charles Chaplin continuou com seus filmes mudos. Logo após O cantor de jazz ter sido feito por Crosland, Chaplin lançou O Circo (1928) e Luzes da Cidade (1931), antes de lançar Tempos Modernos (1936). Então temos filmes mudos exibidos em pleno momento em que o cinema falado se consolidava. Chaplin não abria mão por motivos financeiros e artísticos. E parece que o público ainda gostava de seus filmes assim, mudos. Mas a tecnologia pressionava o empresário e cineasta Chaplin. Fato que só o forçava a ser mais criativo em seus enredos. É famosa a história em que ele ficou 10 meses para resolver uma cena fundamental de Luzes da Cidade (1931). A cena em que a cega precisa achar que Carlitos era rico e não vagabundo. A cena seria facilmente resolvida com fala. Mas Chaplin descobriu uma saída. Ter um carro naquela época pressupunha que a pessoa tivesse dinheiro. Carlitos se despede da moça cega no exato instante em que a porta de um carro se fecha quando 20 um homem rico entra nela. A moça acredita que era Carlitos, estica o braço e grita dizendo que ele esqueceu o troco pelas flores que havia comprado. Carlitos, então, aceita o engano e sai, de mansinho, para ela acreditar mesmo que era rico. A cena é importante porque todo o enredo e levado por causa desse acontecimento.

Mas em Tempos Modernos Chaplin queria falar da sociedade moderna que não deu certo, das promessas de um mundo melhor graças à tecnologia, que também não deram certo. Pelo menos para a grande maioria. A tecnologia, que perturbava Chaplin fora das cenas, seria “persona non grata” no enredo do filme de 1936.

Tempos Modernos foi recebido em 1936 com certas reservas. Foi com esse filme que começaram os suspiros tradicionais pelo erro dos clowns em querer filosofar sobre o homem e a sociedade. (...) Criticar o reino da máquina e a divisão do trabalho, com efeito, não faz sentido algum, e, se o filme pode ser utilizado contra o capitalismo, pode também ser usado contra o stakhanovismo soviético – tendo provocado, portanto certa frieza em Moscou. (BAZIN, 2000, p. 23)

Antes de Tempos Modernos, houve A nós a liberdade (1931), de René Clair. Filme sobre dois presidiários, que planejam escapar da prisão. Eles conseguem fugir, mas um deles, Emile, é pego e acaba preso de novo. Louis consegue se livrar da cadeia e arranja um emprego como vendedor, só que depois enriquece e se torna dono de uma fábrica regida sob os princípios da linha de montagem. Um dia Emile é solto e vai até a fábrica de Louis, e lá se apaixona por uma secretária chamada Jeanne. Só que o passado volta a assombrar Louis. E ele passa a correr o risco de descobrirem que ele é fugitivo. Os dois velhos amigos somem de vez, e encontram apenas uma solução para conseguirem a liberdade absoluta: se tornam mendigos errantes. Numa cena do filme, é dito: “O trabalho é obrigatório, porque trabalho é liberdade”. O professor fala para seus alunos, que repetem em coro a frase. A relação entre prisão (penitenciária) e trabalho (‘prisão’ na fábrica) é clara. Mas os personagens principais escolhem a liberdade absoluta, real, ainda que para isso tenham de ficar sem trabalhar, ainda que tenham de viver como mendigos. Ou seja, no caso deles, trabalho não é liberdade. Muito menos no caso dos pobres operários, que vivem pelo horário de trabalho, vivem como engrenagens de um sistema social de produção em massa, um sistema baseado na linha de montagem.

Quando Tempos Modernos foi lançado em 1936, a distribuidora de A nós a Liberdade abriu um processo contra Chaplin por plágio. O diretor René Clair se recusou a participar disso, dizendo que era um elogio que Chaplin tivesse baseado seu filme no dele. Mesmo assim a distribuidora Tobis processou a United Artists e o Chaplin. O caso

21 durou 10 anos. A pedido de seus advogados, Chaplin permaneceu calado sobre o tema e nunca admitiu culpa. René Clair e Chaplin continuaram amigos esse tempo todo. André Bazin, pai da crítica moderna de cinema, era especialista em filmes de Charles Chaplin, além de ser especialista em filmes franceses, claro. Especialista sem ser acadêmico e contando com sua prodigiosa memória. Ele disse que Tempos Modernos despontava como a única fábula moderna à altura do desvario do homem do século XX diante da mecânica social e técnica. Bazin afirmou isso a despeito das grandes máquinas decorativas do expressionismo alemão, e apesar do filme de René Clair, que, segundo Bazin, tinha estilo, mas não personagens que se servissem para este exemplo de fábula moderna sobre o tema em questão. (BAZIN: 2000, p. 25). A história começa com um relógio, numa clara homenagem ao Metropolis de Fritz Lang. Em várias fusões de imagens, Chaplin mistura gado e gente da cidade. As pessoas correndo para pegar suas conduções para o trabalho e o gado sendo levado para o pasto.

A clássica cena em que o Vagabundo está nas engrenagens é a metáfora perfeita da sociedade da década de 30, absolutamente atual para o século XXI: homem e máquina são a amálgama do futuro, ou humanos quase máquinas, máquinas quase humanas. Corre óleo nas veias do homem moderno.

Em Tempos Modernos (1936), o personagem Carlitos vive as consequências da industrialização, da mecanização nas fábricas, do desemprego gerado pela crise econômica. Sua trajetória se confunde com a da Garota (vivida por Paulette Goddard), órfã, depois que seu pai morre num protesto de trabalhadores que pediam por emprego. Ela foge para não ser levada a um orfanato. É pega roubando um pão. Mas Carlitos assume a culpa e é preso em seu lugar. Carlitos queria voltar para a cadeia porque somente lá ele possuia cama e comida. Antes, quando trabalhava numa fábrica, teve uma crise de estresse, por excesso de trabalho repetitivo. Ele surtou. Depois de sair do sanatório, foi preso por engano, confundido com um comunista, agitador sindical. Na cadeia evitou que um traficante fugisse e se tornou amigo dos policiais (tipos que ele próprio sempre humilhou em outros filmes, inclusive neste). Ao virar heroi, ganhou tratamento Vip na cadeia. Mas um dia teve de sair para a vida real, mesmo a contragosto. Por isso, depois de tentar vários empregos e não conseguir se firmar, decide voltar para a cadeia. Assume a culpa da Garota pelo roubo do pão. Mas enquanto ele vai para a prisão, a Garota é pega. E, juntos, fogem da polícia. O objetivo de Carlitos passa a ser arrumar um emprego, arrumar uma casa, ter uma família tradicional, com leite tirado direto da vaca (que fica, em seus sonhos, no quintal de casa), e frutas tiradas das árvores que 22 crescem em seu jardim. Outros infortúnios acontecem, até que os dois estão num restaurante. A Garota é dançarina e arruma emprego para Carlitos. Ele é garçom, mas precisa também fazer um show musical. É o momento crucial do filme, que é mudo em essência, apesar de demonstrações sonoras, como músicas, ou a voz do dono da fábrica surgindo no videofone (no início do filme). Chaplin dizia-se sempre contra os filmes falados. Para ele seria a morte de Carlitos. Porque seu personagem não foi feito para falar. Mas depois de resistir quase uma década ao filme falado, Chaplin finalmente fez Carlitos, senão falar, ao menos cantar. Na sequência final, num idioma que parece francês com alemão, Carlitos canta (ele esqueceu a letra da música então inventou qualquer coisa) e faz mímica para interpretar o que canta. Não precisamos entender o que diz. A história da letra da música é clara. Um homem dá carona a uma mulher bonita que gostava de homens endinheirados. Ele oferece joias em troca de favores sexuais (um beijo, por exemplo). Há um conflito e tudo se resolve no fim. Carlitos é ovacionado. O público adorou. Ele cantou e, mesmo assim, a magia dita por Chaplin não se perdeu. Na sequência da história - quando parecia que a Garota e Carlitos ficariam juntos e felizes - a polícia aparece para levar a Garota para o orfanato. Eles fogem de novo. Outra vez sem nada, a menina se desespera. Carlitos diz: “Smile” (Sorria). Ela sorri e ambos caminham em direção ao pôr do sol, de costas para o espectador. Fim.

1.3.1 – Carlitos

Durante os anos que precederam a invenção do cinema falado, pessoas no mundo inteiro, principalmente escritores e intelectuais, zombavam e desdenhavam do cinema, no qual viam apenas uma atração de parque ou uma arte menor. Toleravam apenas uma exceção, Charles Chaplin (...). (TRUFFAUT, IN BAZIN, 2000, p. 8)

Essa afirmação de Fraçois Truffaut no prefácio do livro Chaplin (BAZIN, 2000), ele teve o cuidado de acrescentar depois que havia dois tipos de intelectuais na época: os que “toleravam” apenas Chaplin no cinema mudo e os que viram com atenção filmes de Griffith, Stroheim e Keaton. Truffaut aproveita para perguntar se o cinema é arte. Fato é que, segundo o crítico e cineasta francês, esse debate não dizia respeito ao público.

(...) o público fazia de Chaplin, no momento em que terminava a Primeira Guerra Mundial, o homem mais popular do mundo. (IDEM)

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Existe uma lógica nessa popularidade, segundo Truffaut. Chaplin foi abandonado pelo pai alcoólatra. A mãe, cantora, enlouqueceu e foi levada para um asilo. O garoto Charles Chaplin vivia a iminência de ser perseguido pela polícia por ser um pequeno vagabundo aos nove anos (BAZIN, 2000). Truffaut lembra essa conhecida história da infância de Chaplin porque uma coisa é falar da miséria, da fome, porque você a viu, a percebeu e, então, resolveu filmar sobre o que você sentiu ao ver aquilo. Outra coisa é filmar a miséria e a fome com o olhar de quem sentiu essa fome, de quem viveu essa miséria. É o caso de Chaplin. E o fato é que o público do mundo inteiro viu exatamente isso. O Vagabundo Carlitos encontrava eco em Charles Chaplin. André Bazin, especialista no cineasta inglês, dizia que o personagem Carlitos não era antissocial, mas associal. Carlitos age como o esquizofrênico que procura resolver seus problemas abandonando o mundo ao mesmo tempo em que age como a criança autista que busca tatear com prudência o mundo do qual estava alheia desde o início (BAZIN, 2000). Isso ajuda a entender uma das características mais clássicas do personagem: o uso fora dos padrões que faz dos objetos.

Carlitos atua sobre os objetos em cena. Ele conversa, sorri, dança, altera a lógica dos adultos humanos ao interagir com os objetos de forma lúdica e inumana. A sociedade dá um sentido para dois pães e dois garfos. Carlitos enfia os garfos nos pães e faz com que estes imitem um par de pés e pernas. E estes pés dançam (Em busca do Ouro, 1925). A criança miserável se tornou o artista mais célebre e mais rico do mundo graças ao seu personagem pobre e faminto. Quem é Carlitos? O mítico personagem tem sua simbologia, que Bazin soube decifrar como poucos:

(...) Por exemplo, a ausência completa de obstinação quando o mundo lhe opõe uma resistência grande demais. Busca então contornar a difilcudade, em lugar de resolvê- la; uma solução provisória lhe basta, como se o futuro não existisse para ele. (...) Nunca uma situação o deixa desamparado. Para ele, tudo tem solução, embora o mundo – e talvez o dos objetos ainda mais que o dos homens – não seja feito para ele. (BAZIN, 2000, p. 13-14)

Uma das técnicas de fazer rir de Chaplin com seu Carlitos tem a ver com a repetição. Algo que foi muito bem explorado em Tempos Modernos. A personagem não adere aos acontecimentos e aos fatos. Ou seja, Carlitos não cria o mesmo vínculo utilitário com os objetos como as pessoas comuns da sociedade (o homem-sociedade, segundo Bazin). E conforme o tempo passa, conforme a duração dessa relação de Carlitos + objeto aumenta, ele se atrapalha. 24

A razão disso é que, de certa forma, a mecanização é o pecado fundamental de Carlitos, a tentação permanente. Sua liberdade a respeito das coisas e dos fatos só pode se projetar na duração sob forma mecânica, como uma força de inércia que se deflagra a partir de um acionamento inicial. (BAZIN, 2000, p. 20)

O homem-da-sociedade (nós) organiza suas ações com a previsão delas, e as controla usando como referência a própria realidade que se quer modificar com essas mesmas ações. Dessa forma, qualquer ação se integra por inteiro ao acontecimento em que esteja inserido. Mas com Carlitos não funciona assim. Ao contrário:

(...) [a ação] é feita de uma sucessão de instantes: para cada um deles, um obstáculo. Mas vem a preguiça, e Carlitos reproduz nos instantes seguintes a solução que convinha em outro dado momento. O de Carlitos (...) é a projeção, no tempo, de uma forma apropriada ao instante: a ‘repetição. (IDEM)

Estes momentos são o instante em que Carlitos nos faz rir à custa dele mesmo, não dos outros. E quando isso acontece é porque ele assimilou o futuro ao presente. Ou ainda, segundo Bazin, porque acredita nas “máquinas de fabricar o futuro”: máquinas morais, religiosas, sociais, políticas (BAZIN, 2000).

Para fazer o que faz na tela, Chaplin e seu personagem não podem se ater a nenhuma convenção. Carlitos é indiferente ao sagrado. E o significado de sagrado, pela concepção de Bazin, se refere aos diversos “aspectos sociais da vida religiosa”. Comparando com a sociedade puritana americana das primeiras décadas do século XX, Carlitos é anticlerical. Chaplin já foi diminuído por críticos que diziam ser ele apenas um palhaço talentoso. Mas Bazin (e concordo completamente com ele) diz que se o cinema não existisse, Carlitos seria, com certeza um palhaço talentoso:

(...) mas o cinema permitiu-lhe alçar a comicidade do circo e do music-hall ao mais alto nível estético. Chaplin precisava dos recursos do cinema para libertar ao máximo a comicidade da servidão de espaço e tempo imposta pelo palco ou picadeiro do circo. Graças à câmera, (...) não somente era desnecessário engrossar a piada para que toda uma plateia a compreendesse, como também, ao contrário, era possível refiná-la ao extremo, limiar e lubrificar suas engrenagens imprimindo-lhes mecânica de alta precisão, capaz de responder de imediato às sensibilidades mais delicadas. (BAZIN, 2000, p. 16)

Mas, ainda sobre a questão do que é arte ou se Chaplin fazia do cinema uma arte. Os vanguardistas rebeldes do Dadaísmo consideravam arte aquilo que fugisse de seu significado original. Uma cadeira que não fosse usada para sentar, mas usada com outro objetivo e noutro contexto, poderia se tornar arte. Ora, Carlitos, a personagem de Chaplin,

25 fazia isso o tempo todo. Seu esforço constante em tentar comer de forma adequada (pela sociedade), ou de seguir algumas das mil regras, cerimônias, que a sociedade impõe, esse esforço resulta em mais gags.

Carlitos jamais consegue usar os talheres de modo conveniente. Põe sempre o cotovelo dentro dos pratos, derruba a sopa sobre a calça etc. (BAZIN, 2000, p. 22).

Em Tempos Modernos ele, de garçom, não consegue servir a comida de um cliente. Tudo isso a despeito de sua “elegância” ao andar ou quando faz cara de esnobe. Ele não nos convence. Mas é engraçado. E rimos. Talvez ele seja elegante. Mas seus movimentos não se encaixam no movimento “educado” da sociedade. E o resultado é a gag. E cada gag ganha mais do que um momento para rir. O refinamento de algumas gags sugere críticas mais ou menos diretas, ou metáforas profundas sobre a sociedade e seus problemas. A própria mecanização da sociedade fordista encontrou eco mais claro em um filme de Chaplin porque o próprio utiliza a repetição (como vimos em Bazin) como técnica para fazer rir. Por isso, sua técnica se encaixou tão bem numa comédia crítica das consequências da industrialização na sociedade moderna.

O que pensa Charles Chaplin sobre a sociedade? Podemos ver em seus filmes, especialmente a partir de Tempos Modernos. Mas foi em O Grande Ditador (1940) que ele deixou bem claro:

No décimo sétimo capítulo do Evangelho de São Lucas está escrito: ‘O reino de Deus está no próprio homem’. Não em um único homem, ou em um grupo de homens, mas em todos os homens! E vocês! Vocês, o povo, vocês têm o poder de criar máquinas. O poder de criar a felicidade. (trecho do discurso final de O grande ditador, IN BAZIN, 2000, p. 33)

Chaplin está do lado do pobre, mas acima disso, está do lado do homem (ser humano). Ou seja, se o pobre merecer críticas, elas serão feitas. É o que acontece em Tempos Modernos. Na cena em que Carlitos volta a trabalhar na fábrica acontece uma greve logo em seguida. Os operários não são mostrados de maneira simpática. A greve interrompeu os planos de Carlitos. É inoportuna. Mas não significa que ele seja a favor de como a polícia tratou a paralisação, por exemplo. A cena, aliás, é brutal para um filme da época. Uma extrema violência contra a greve. Carlitos ali, no meio daquela confusão, parece perdido. Sem consciência de classe, ele apanha igual aos outros e é um dos poucos que foram presos. 26

Outro ponto é a questão do som. Chaplin foi desafiado, por ele mesmo, talvez, a conseguir tirar graça usando o som. Sem o som ele era um gênio do humor. Mas e com o som? Em Tempos Modernos, quando espera para sair da cadeia, a mulher do pastor e sua cachorrinha esperam na mesma sala enquanto o pastor conversa com o delegado. A sequência de gags é toda baseada no som. Ambos tomam chá e o chá provoca um certo barulho desconcertante no estômago de Carlitos (e também no da mulher). Ela toma um antiácido. Já Carlitos continua bebendo o chá. E quando seu estômago faz o barulho, o cachorrinho se irrita e late para o Vagabundo. É uma cena longa, tem dois minutos e 15 segundos. Um rádio também é usado. E a voz do locutor é a do próprio Chaplin. A gag toda está no filme com o único objetivo de fazer humor a partir dos aparatos tecnológicos. Ela poderia ser retirada do filme que não mexeria no enredo. Mas Chaplin precisava dar seu recado pessoal sobre a tecnologia no cinema, especificamente a do som.

Ao mesmo tempo, os tempos modernos estariam trazendo mais velocidade, mais progresso, mas esse progresso não estaria chegando àqueles que fazem as máquinas funcionar. Há fome, desemprego, desemparo e a modernidade não trouxe conforto para todos. Chaplin pede um olhar mais humano, ao mesmo tempo em que zomba das máquinas e dos homens “maquinizados”, como o dono da fábrica onde Carlitos trabalhava. Metrópolis (1927), de Fritz Lang, e Tempos Modernos (1936), de Charles Chaplin fazem parte da época em que se consolidou a chamada crise da modernidade, abrindo caminho para a cultura pop se tornar uma cultura de produto. Até os anos 50 a palavra era a referência de realidade. Depois passou a ser a imagem. A tecnologia aparece sempre como opção para tornar a vida das pessoas mais segura. As formas tecnológicas passaram a construir – desde a Segunda Guerra – as formas indiretas de lidar com o imaginário. Com a revolução digital (internet e suas consequências), a tendência de viver dentro desse universo fechado se expandiu para um mundo virtual de relacionamento interpessoal. Como em Cosmopolis.

1.4 – Cosmopolis (2012), de David Cronenberg

David Cronenberg é um cineasta canadense nascido em 1943, dois anos antes do fim da Segunda Guerra mundial. Sua obra desperta interesse desde o final dos anos 60, mas especialmente na década de 70. Seus filmes invariavelmente propõe a discussão das relações entre corpo, imagem e tecnologia (CAPISTRANO, 2011). Entre filmes para

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TV e para o cinema, é responsável por 33 (de 1966, com Transfer, até Mapas para as Estrelas, de 2014). É um dos mais importantes cineastas do mundo.

Através de suas imagens, Cronenberg posiciona-se na vanguarda das teorizações acerca do homem-máquina contemporâneo. (...) Trouxe para a tela as imagens de uma sociedade na qual o corpo aparece cada vez mais violentado pela tecnociência com seus instrumentos e habitats: gélidas mesas de cirurgia, consultórios sombrios, laboratórios explosivos, centros de engenharia genética, empresas de telecomunicações e vigilância, corporações de mídia e espetáculo, e outros espaços ou canais para interferências corporais e intrusões psíquicas.

(CAPISTRANO, 2011, link na bibliografia)

Seus personagens costumam ser levados por impulsos mortais ou sexuais. A violência está quase sempre presente na forma urgente de agir deles. As máquinas aparecem de diversas maneiras: são carros que servem de estímulo e cenário para compulsivos sexuais, ou são, por exemplo, invenções científicas que criam aberrações. Filmicamente, há em Cronenberg o que Capistrano chama de “uma órbita de desolação”:

(...) geralmente expressa em gélidas atmosferas densificadas por fotografias compostas por tons monocromáticos. Seus enquadramentos precisos ou “cirúrgicos” apontam para uma assepsia da linguagem fílmica, que revela uma vontade de conotar certa frieza clínica ao tratamento das imagens. Esta espécie de higiene cênica também se manifesta em cenários “essenciais”, minimalistas (...)

(CAPISTRANO, 2011, link na bibliografia)

Cronenberg é apelidado de Rei do Horror Venéreo ou Barão do Sangue. Em Cosmopolis (2012), o protagonista é Eric, tão humano quanto as criaturas da filmografia do diretor. A diferença é que Eric faz o caminho contrário, por exemplo, ao do cientista em A Mosca (1986). Ele parte de um ser quase-humano (capitalista insensível, sociopata, egoísta e mimado) para um mais humano (emocional, visceral, com um passado que ele busca recordar ou reviver). E humano aqui não é ser bom ou mau. É ser completo, emocional e racional. Violento e calmo. Ou seja, uma contradição recheada de experiências sensoriais, no melhor estilo camoniano do classicismo literário.

1.4.1 – O Enredo

Eric Packer é um jovem bilionário das finanças que possui uma limusine de alta tecnologia e que decide atravessar Nova York para cortar o cabelo em seu barbeiro de

28 infância. O problema é que há manifestações nas ruas contra o capitalismo selvagem, e há uma ameaça contra a vida de Eric. Há a presença do presidente americano na região. E ainda: o enterro de um famoso cantor de rap. Mesmo assim, Eric pretende cortar o cabelo em seu barbeiro antigo. Enquanto se movimenta lentamente pela cidade, os outros personagens interagem com ele em sua limusine. A também jovem esposa de Eric, Elisa, aparece três vezes no filme interagindo com o marido. Num táxi, na porta de um teatro e numa biblioteca. Cada vez que a encontra, Eric tem um detalhe que chama a atenção de Elisa para a traição do marido (ele tinha acabado de transar com uma amante antes de cada encontro com a esposa).

É o homem-limusine, inexistente como um zumbi e perigoso como uma arma de fogo: essa duplicidade será demonstrada em muitos diálogos e poucos cenários.

(ARAÚJO, 2012, link na bibliografia)

Eric apostou contra a moeda chinesa. Ele nunca erra. É um gênio matemático e das finanças. Ele prevê as oscilações do mercado. Mas dessa vez perde, durante todo o dia, sua fortuna. Em meio a discussões filosóficas sobre o tempo, a morte, o capital, sexo, limusines e tecnologia, Eric tenta convencer sua mulher a fazer sexo, algo que ela se recusa. A alegação é de que precisa de concentração para criar seus poemas. O rapper que morre é amigo de Eric. Quando um amigo em comum vem lhe contar que o funeral nas ruas de Nova York é do rapper, Eric chora como uma criança que perdeu um bicho de estimação. A despeito de sua insensibilidade, ele, surpreendentemente, chora. Durante seu trajeto ao barbeiro Eric vê um manifestante botar fogo no próprio corpo. Também viu um homem levar uma facada no olho durante uma entrevista na televisão. Nenhum dos dois fatos provocou uma reação emotiva dele. No máximo um sorriso. Eric tem obsessão pela própria saúde. Todos os dias faz check ups. Nesse dia especificamente descobre que sua próstata é assimétrica. Fato que o intriga. Afinal, ele é obcecado pela simetria. Ele quer saber o que significa ter uma próstata assimétrica. Somente no fim do filme, quando tem um longo e arrastado diálogo com o seu antagonista, Benno Levin, é que descobre o significado da próstata assimétrica: nenhum. Não quer dizer nada. O enredo ainda tira uma lição filosófica com essa história da próstata assimétrica: Eric era tão obcecado pela simetria dos números que não percebeu que a vida é assimétrica, é imperfeita. E os próprios números (no caso o yuan chinês) poderiam enganá-lo. Mesmo nos números há a imperfeição. Por isso Eric errou nos cálculos que fez sobre a moeda chinesa. Os cálculos eram perfeitos. Mas a vida não é. 29

Antes de encontrar o seu possível assassino, Eric ainda teve tempo de atirar e matar seu chefe de segurança e não sentir nada. Talvez excitação (não a sexual). Foi ao barbeiro de infância. Ouviu histórias do passado. Experimentou ouvir as memórias do seu barbeiro e do seu motorista. Antes de terminar o corte (ficou pela metade) saiu com uma arma que o barbeiro lhe deu (Eric tinha jogado fora a arma altamente tecnológica que usou para matar seu chefe de segurança). Saiu para “fazer uma coisa”. Ele queria ver onde ficavam as limusines. Depois, acontece um tiroteio. O assassino tenta matar Eric, que revida os tiros. Ele vê de onde Levin atirou e vai até o apartamento. O que parecia ser uma típica cena de ação se transforma, num anticlímax típico do filme, em mais um diálogo. Ambos conversam. Ficamos sabendo que Levin trabalhava para Eric. Ficou paranoico. Entendeu que a única maneira de colocar ordem no mundo era matando Eric. Durante a conversa, numa última tentativa de sentir alguma emoção intensa, ou numa tentativa de se conectar com seu próprio corpo, Eric atira em sua própria mão. No fim do diálogo, Levin aponta a arma para a cabeça de Eric. A tela escurece e o filme termina. Salvo um e outro detalhe, eis tudo. Um filme sobre o novo milênio. Sobre a crise econômica mundial. Sobre todas as crises, em todos os níveis. Sobre a nova era digital e sua influência no nosso tempo. Cosmópolis. Segundo Safatle, somente um cineasta como Cronenberg seria capaz de filmar o automovimento do capital transformado em modo de funcionamento do desejo. E, também:

Cronenberg sempre foi sensível ao caráter marcial do desejo que só se manifesta quando se choca contra seu ponto de excesso. Crash – Estranhos Prazeres, Mistérios e Paixões e Videodrome são alguns dos seus filmes entre os mais relevantes dos últimos tempos por, entre outras coisas, fornecer as imagens para descrevermos a maneira com que o desejo, muitas vezes, existe apenas ao se bater contra os limites do corpo, da identidade, do real, da forma. Existe somente reduzindo todo objeto a um movimento incessante que ignora limites.

(SAFATLE, 2012, link na bibliografia)

O capital financeiro perdeu sua qualidade narrativa, como alerta Vija, teórica de Eric. “O dinheiro agora fala sozinho”. Esse é o capitalismo contemporâneo, preocupado apenas com a sua própria quantidade, sua simetria. Sem significado. Inumano. O 1% continua soberano na sociedade de Cosmópolis, mas pode ter o mesmo fim de Eric, seja pela falência ou pela pressão social (ou assassinato, como sugere o filme). O prefácio de Entre o Passado e o Futuro (ARENDT, 2009) abre com uma frase do poeta e escritor francês René Char: “Nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento”. Segundo Arendt, a frase é um resumo do que significaram os quatro anos de resistência 30 francesa contra o nazismo. Mais para frente, a pensadora cita outra frase de Char, quando ele se refere a um tesouro perdido. E é aqui que Arendt explica mais claramente sua ideia de tradição.

Seja como for, é à ausência de nome para o tesouro perdido que alude o poeta ao dizer que nossa herança foi deixada sem testamento algum. O testamento, dizendo ao herdeiro o que será seu de direito, lega posses do passado para um futuro. Sem testamento ou, resolvendo a metáfora, sem tradição – que se selecione e nomeie, que transmita e preserve, que indique onde se encontram os tesouros e qual o seu valor – parece não haver nenhuma continuidade consciente no tempo, e portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas tão-somente a sempre eterna mudança do mundo e o ciclo biológico das criaturas que nele vivem. O tesouro foi assim perdido (...) por nenhuma tradição ter previsto seu aparecimento ou sua realidade; por nenhum testamento o haver legado ao futuro.

(ARENDT, 2009, p. 31)

A partir disso, não há uma história a ser contada para alguém que passe isso adiante. A vida se fragmenta e entre o passado e o futuro cria-se uma lacuna sem memória. O terreno está pronto para o surgimento da Cultura Pop, com seu “vazio de significados” e um culto ao individualismo. É impossível sair do círculo da mesmice por causa do caráter de reciclagem da cultura pop.

Segundo a teórica de Eric em Cosmopolis, Vija: “Os manifestantes querem corrigir a aceleração do tempo e tentar trazer a natureza de volta ao normal”. O que seria esse normal? A volta para a modernidade do período entre guerras, dos filmes Metropolis e Tempos Modernos? Ou a volta para o período anterior à Revolução Industrial? É difícil conceituar o que seria o normal. Lipovetsky fala do reinado da urgência (LIPOVETSKY: 2004) em sua explicação da hipermodernidade. Nos tempos hipermodernos, a sociedade adora o novo. Mas a palavra hipermoderno será usada como contemporâneo. Não quero entrar na seara das discussões dos termos pós-modernidade, hipermodernidade e afins.

Ainda sobre o tema da “novidade”. Justamente esse novo dura pouco tempo. Um dia, uma semana no máximo. O instante do vento leve sobre os cabelos, a eternidade do beijo apaixonado, ou a fração do tempo no tempo de um abraço, parecem ser coisas esquecidas em Cosmopolis, mas não por Elise (esposa de Eric). Ela caminha pela Nova York caótica, em busca de bibliotecas, peças de teatro, por lugares onde há silêncio. Ela é o ponto fora da curva no filme. Ainda há gente assim nas cidades, tentando viver sem medo, aproveitando o tempo do sol.

O projeto moderno do final do século XIX e início do século XX não é sobre o passado, mas sobre o futuro. Uma promessa de um futuro. O objetivo era alcançar uma

31 vida recheada de “mais”. Mais ruas, mais casas, mais edificações, pessoas circulando, trabalhando, produzindo e consumindo, vendendo e comprando, contruindo e ocupando espaços. Também haveria mais riqueza. As invenções tecnológicas, a ciência em si, representam a caminho a se seguir. As invenções agilizam a produção, facilitam a vida doméstica, criam necessidades urbanas, que se transformam em produtos necessários a vida cotidiana. O trabalho no campo também precisava ser modernizado. E foi.

1.4.2 – As cosmópolis

Sobre o nome, a palavra Cosmópolis, não é algo inventado ou que tenha surgido apenas no romance de Don Dellilo. Em Washington, no condado de Grays Harbor há uma cidade Cosmopolis. No Brasil, no estado de São Paulo, há outra Cosmópolis, com pouco mais de 61 mil habitantes. Mas o nome, na literatura, está intrinsecamente ligado a megacidades como Londres, Paris, São Paulo, Nova York. Da mesma forma que já esteve ligado a Roma (na época do Império Romano) e outras cidades da Antiguidade. Na literatura há três livros com o nome Cosmópolis, com histórias diferentes. Cosmopolis, do francês Paul Bourget, publicado em 1892. O outro é Cosmopolis: the hidden agenda of modernity, de Stephe Toulmin, publicado em 1992. No livro teórico de Toulmin se fala de pós-modernidade. O autor questiona o início e o possível fim da modernidade. Para Toulmin, a modernidade é uma “coisa boa” porque trouxe prosperidade e conforto material, vindos da industrialização. Toulmin só não foi tão crítico para falar do custo para acontecer isso tudo. E o último livro com o mesmo nome, Cosmópolis (2003), do escritor Don Delillo, deu origem ao filme de David Cronenberg, Cosmópolis (2012). O filme fez algumas escolhas de roteiro que ignoram narrativas do romance original de Don DeLillo, como por exemplo a presença de Benno Levin, o personagem que quer matar Eric. No livro essa participação é maior. No filme, sua grande cena é nos 20 minutos finais. Esse é o resumo de Cosmópolis (2003), do escritor Don Delillo: aos 28 anos o empresário Eric Michael Packer fez fortuna com a especulação nas bolsas de valores de todo o mundo. Num certo dia do ano de 2000, ele acorda e contempla a cidade de seu triplex no prédio residencial mais alto do mundo, em Nova York. Decide cortar o cabelo. O presidente dos EUA está na cidade, os mercados estão nervosos, um protesto antiglobalização toma conta de Times Square e o trânsito está abarrotado. Acompanhado do motorista e de seguranças, Eric demora o dia inteiro para percorrer dez quarteirões de

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Manhattan em sua limusine equipada com bar, banheiro, monitores conectados à internet e câmeras de vídeo. Eric especula contra o iene, cuja cotação, segundo seus cálculos, deve começar a cair a qualquer momento. A moeda japonesa, iene, porém, sobe sem parar (no filme, o diretor David Cronenberg mudou para a moeda chinesa yuan). Durante , Eric encontra, várias vezes por acaso, a mulher com quem se casara poucos dias antes, a também milionária Elise. A relação deteriora a cada encontro, pois ela percebe que é traída sucessivas vezes ao longo do caminho. No decorrer do dia, as certezas e os valores de Eric se mostram vazios e sua vida entra em colapso. O empresário perde mais e mais dinheiro, – e também toda a fortuna de Elise – até que o sistema financeiro global é arrastado para uma grave crise. A história revela mais do que a falta de sentido de uma existência individual: ela aponta para o caráter perigosamente ilusório das bases que sustentam o mundo contemporâneo. No livro de Paul Bourget (1852-1935), os cosmopolitanos são diletantes, ou seja, tudo o que fazem é apenas pelo prazer e não pela obrigação. “Vossos cosmopolitas não fundam nada, não semeiam nada, não fecundam nada, apenas gozam” (CAMPIONI: 2004, 101). Eis aí uma semelhança com o personagem Eric. O diletantismo. Eric não liga para quaisquer crises mundiais, não se importa com as pessoas que protestam em Nova York e não liga para a presença do presidente americano na cidade (que ele nem diz o nome, afinal, não faz diferença para ele). Eric só quer que seu sistema de segurança seja impenetrável, que ele continue um sucesso na carreira e que possa chegar ao local onde gosta de cortar o cabelo. Tudo o que o cerca em sua limosine é para seu conforto. Desconforto é ele saber que não é o mais jovem do seu círculo. Ou seja, ele está envelhecendo para os padrões dele e da chamada hipermodernidade de Lipovetsky:

O que mais não expõe uma modernidade elevada à potência superlativa? Ao clima de epílogo, segue-se uma sensação de fuga para adiante, de modernização desenfreada, feita de mercantilização proliferativa, de desregulamentação econômica, de ímpeto técnico-científico, cujos efeitos são tão carregados de perigos quanto de promessas.

(LIPOVETSKY: 2004, 53)

O escritor, jornalista, pensador marxista e peruano, Jose Carlos Mariategui disse que a Cosmópolis moderna se nutria do seu presente, e Roma se nutria do seu passado. A frase de Mariategui foi escrita em artigo de 1925, publicada no Mundial, de Lima (http://www.patriaroja.org.pe/docs_adic/obras_mariategui/El%20Alma%20Matinal/paginas/ roma%20polis%20moderna.htm - acesso: 14/06/2014), e reflete o pensamento dos que leram Cosmópolis (1892) de Paul Bourget, ou se interessaram em analisar a Modernidade

33 do fim do século XIX e começo do século XX. Bourget era muito popular nos anos 20 na Espanha, e, por consequência, era popular entre os estudiosos da América Latina, por isso chegamos ao peruano Mariategui, citado aqui. E por que Roma entrou no assunto? Porque Roma é o pano de fundo no livro, de Paul Bourget (1852-1935), romancista e ensaísta francês. O período artístico desse livro partia do conceito formal e temático do chamado Naturalismo literário, em que o meio determina o ser humano. Mas Bourget, que iniciou como escritor do Naturalismo, abandonou esse movimento para se tornar crítico dele. Em seu Cosmópolis, o escritor entra no estudo psicológico e moral dos personagens e acaba desenvolvendo um moralismo católico reacionário. Cosmópolis é um romance psicológico, com Roma como pano de fundo. E os personagens têm problemas puramente pessoais. No romance de Bourget, não são as estruturas que devem mudar, mas sim o ser humano, demasiado fraco diante de suas paixões. Bourget se inspirou na Paris moderna, caótica, industrial, baudelairiana. Mesmo usando a Roma Antiga como pano de fundo, Bourget apresentou uma França decadente, uma modernidade decadente como sintoma das profundas mudanças provocadas na sociedade pós-revolução industrial. Para o autor, o poeta Baudelaire é o teórico por excelência da decadência. Em Cosmópolis de Bourget a sociedade não é capaz de sobreviver porque o indivíduo se fez independente do conjunto social (MATUCCI, 1960). Essas cidades (Londres, Paris ou Roma Antiga), organizadas como globais, decadentes, onde há pessoas individualistas, um capitalismo crescente, numa sociedade que valoriza o pensamento técnico-científico, essas cidades, enfim, são Cosmópolis. O relacionamento do protagonista do filme Cosmopolis (2012), Eric, com os personagens secundários pode ser considerado como de senhor e escravo. Seus empregados, sua esposa, as amantes, todos, deveriam estar ao seu dispor para ajudá-lo a acumular dinheiro ou para a sua diversão. Ou, como diria Lipovetsky:

(...) não há escolha, não há alternativa, senão evoluir, acelarar para não ser ultrapassado pela ‘evolução’: o culto da modernização técnica prevaleceu sobre a glorificação dos fins e ideais. Quanto menos o futuro é previsível, mais ele precisa ser mutável, flexível, reativo, permanentemente pronto a mudar (...). A mitologia da ruptura radical foi substituída pela cultura do mais rápido e do sempre mais: mais rentabilidade, mais desempenho, mais flexibilidade, mais inovação. Resta saber se, na realidade, isso não significa modernização cega, (...) processo que transforma a vida em algo sem propósito e sem sentido. (LIPOVETSKY: 2004, 57)

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A vida de Eric é sem propósito e sem sentido. Ele se esforça, durante o dia, em experimentar todo tipo de situação para ver se seu espírito, seu inumano, ou aquilo que lhe caracteriza humano, incendeia. Como uma criança que aprende sobre os limites de sua voz gritando, ele, entre outras coisas, atira e mata seu chefe de segurança, e atira em sua própria mão também. A velocidade da vida contemporânea esvaziou Eric. Didi Francher, amante dele, bem mais velha, diz, no livro (e no filme), que “a vida é muito contemporânea” (DELILLO: 2004, 27). A personagem pode ter lido Benedetto Croce ou Marc Ferro. O primeiro disse que a história é sempre contemporânea. O segundo reforçou: o recorte da história que fazemos sempre é com o olhar do presente (FERRO: 2010, 28). Ou talvez a personagem Francher tenha apenas dado voz ao escritor Don DeLillo. Fato é que há um pouco dessa reflexão desenvolvida por Ferro e Croce sobre a contemporaneidade. Enquanto isso, a personagem Vija prefere unir tempo e dinheiro. Ela diz que o dinheiro faz o tempo, mas que antes costumava ser o contrário. Vija completa o raciocínio: “As pessoas pararam de pensar na eternidade. Elas começaram a se concentrar nas horas, horas possíveis de serem medidas, horas de pessoas, usando o trabalho de forma mais eficiente”. (DELILLO, 2004, p. 78-79). O tempo era dinheiro na época da Modernidade, na época da sociedade da linha de montagem. Mais produção, em menos tempo, gerava mais dinheiro para o dono da empresa (fato que ocorre em Metropolis e em Tempos Modernos). No período contemporâneo de Cosmopolis, não existe mais o dinheiro-físico, o papel moeda, nem existe o espaço físico para guardar o dinheiro. Ele é virtual agora. Está nas “nuvens” (na internet). O dinheiro – centenas de milhões ou bilhões – pode ser adquirido em poucos anos, ou meses, pode ser perdido em um dia, como perdeu Eric. A fortuna ganha ou perdida é gigantesca e circula pelos bites no “w.w.w.” mundial. A relação tempo-dinheiro mudou. O primeiro não produz o segundo. Agora é o dinheiro que produz tempo. Mais dinheiro, mais tempo para ser diletante. Menos dinheiro, mais tempo gasto em horas de trabalho. O fordismo saiu das fábricas para entrar nas vidas das pessoas. Cada ser comum administra seu tempo, não seu dinheiro. Pessoas como Eric administram o dinheiro. Porque o tempo ele comercializa. Por isso ele se dá ao luxo de ficar um dia inteiro tentando rodar de carro dez quadras em Nova York somente pelo capricho de cortar o cabelo no barbeiro de sua infância. Ao mesmo tempo, ele está especulando com o iene (no livro) ou o yuan (no filme). Ou seja, está trabalhando. Se fosse um trabalhador comum, Eric teria ido a pé, ou teria cortado o cabelo em algum barbeiro do lado de sua casa, para economizar tempo. Porque para as pessoas comuns, a relação com o tempo 35 mudou para o tempo-urgência: esse termo, modificado por mim, vem de outro termo, usado por Lipovetsky, que é o reinado da urgência (LIPOVETSKY: 2004). A sociedade adora o novo. E esse novo dura pouco tempo. Um dia, uma semana no máximo. O dinheiro perdido por Eric num dia é exemplar. A reclamação de Eric sobre ele não ser mais jovem (aos 28 anos), em comparação aos outros do seu círculo social-financeiro, também é sintomático. Há outro ponto: a liberdade total (supostamente conquistada graças a tecnologia digital) é angustiante (porque teríamos de fazer escolhas o tempo todo); por isso escolhemos mecanismos que escolhem por nós. A midiatização e as redes sociais nos dão a impressão falsa de que estamos exercendo nossa plena liberdade. Mas tudo faz parte de um mesmo sistema de controle, de uma cultura de produto que fragmentou a sociedade e a individualizou ao extremo. A sociedade em si, a palavra, pressupõe grupo, comunidade. Com a individualização provocada pelo presentismo contemporâneo, a palavra sociedade perde sentido. A tecnologia amplia nossa liberdade de escolher ou apenas direciona essas escolhas para o caminho definido pelo sistema financeiro da era digital.

O espaço público atual é apenas uma camada de um espaço maior, mais globalizado e impessoal: as redes sociais. Os efeitos desse universo que às vezes é indiferente, outras tantas, insípido, podemos ver no filme Cosmopolis (2012). Os capítulos da dissertação se desdobram na análise dos três filmes, suas representações e significados temporais e atemporais. E sobre como a humanidade incorpora a tecnologia, no decorrer desse período pós-guerra até os dias atuais, em sua vida; praticamente como parte do seu corpo. Por exemplo, o personagem principal do filme Cosmopolis (2012), de Cronenberg, quer cortar o cabelo em seu barbeiro de infância. Para isso ele deverá atravessar Nova York num dia de manifestações populares nas ruas, e também num dia em que o presidente está passando pela cidade. O que poderia parecer um capricho de um jovem bilionário, na verdade, é revelador sobre o que lhe resta de humano, ou melhor, da pessoa que ainda tem um pouco de uma certa nostalgia, uma saudade de um tempo perdido.

Ainda sobre o dinheiro. O filme Cosmopolis abre com uma epígrafe, a mesma usada pelo escritor DeLillo em seu romance homônimo: “Um rato se transformou em uma unidade monetária”. A frase vem do poema Relatório de uma Cidade Sitiada, do polonês Zbigniew Herbert (o poema inteiro está em anexo), e foi publicada nos anos 80. No romance Cosmópolis, e no filme, os manifestantes que tomaram as ruas de Nova York 36 carregam ratos pretos e grandes com eles. Os ratos virando moeda no poema de Herbert tem outro contexto. As pessoas não têm o que comer (prateleiras vazias) pelo fato de a cidade estar sitiada. Mas Cosmópolis (o livro) se apropriou da frase e lhe atribuiu um novo significado. Nova York, de certa forma, também estava sitiada no filme Cosmopolis. Pelos manifestantes e pela segurança do presidente americano. Eric estava sitiado. Nas ruas não havia dinheiro, havia ratos. Vale lembrar que o romance Cosmópolis foi publicado quatro anos antes da crise econômica de 2007, e oito anos antes do Occupy Wall Street. Seu tom profético é evidente. Charles Baudelaire também é profético. Ou melhor, é visionário quando analisa a Modernidade do século XIX que ele próprio viveu:

“Descontente com todos e descontente comigo, bem gostaria de me resgatar e de me orgulhar um pouco no silêncio e na solidão da noite.

(BAUDELAIRE: 2007, 63)

Baudelaire: misantropo, artista, contemporâneo, antecipou a modernidade e foi seu crítico mais feroz. Como poucos foi um cronista do tédio de Paris. Um tédio melancólico. Seu desprezo pelas pessoas, especialmente àquelas da chamada pequena burguesia é evidente no trecho de À Uma Hora da Manhã que abre esse parágrafo. O mundo de Baudelaire mudou muito. A renovação é tão rápida que não existe mais algo verdadeiramente novo. Tudo é reciclado, tudo é retrô. Assim é construída a nossa realidade. Esse mesmo público absorve a ideia de renovação constante e “compra” essa imagem de juventude eterna. Em Cosmopolis, Eric tem 28 anos. Existe uma cena em que ele dialoga com o amigo/funcionário chamado Michael e o assunto é juventude:

- Quantos anos você tem?

- Vinte e dois

- Como?

- Vinte e dois.

- Parece mais jovem. Eu sempre era o mais jovem das pessoas que me rodeavam. Um dia isso começou a mudar. (COSMOPOLIS, 2012)

A cena é emblemática porque o tema juventude persegue Eric por todo o filme. Ele se acha velho, ou “desatual”. O amigo Michael parece ser uma renovação. Eric, inclusive dá um conselho a ele. Diz que com o seu talento, a melhor coisa a fazer, profissional e intelectualmente era algo que promovesse a interação entre tecnologia e capital. Cosmopolis revela que o tempo é, agora, produto. 37

Eric parece preocupado, angustiado durante o trajeto pela cidade. Dentro de sua limusine, sua jaula particular de trabalho, Eric faz de tudo: trabalha, investe, especula, atende funcionários, parceiros, amantes, faz sexo e recebe seu médico. Sobre este último, outra cena fundamental. Os exames de Eric são sempre completos, inclusive por um curioso exame de próstata. Ele descobre que sua próstata é assimétrica. A mensagem é simples. Eric passou sua curta vida procurando simetria nos eventos, nos negócios, mas deveria ter-se preocupado em achar a falta de simetria que é essencial à vida de todos, inclusive a dele. Eric precisa ser destruído para que o sistema volte a se equilibrar.

Bilionário, talentoso, jovem e bonito, a vida de Eric parece um eterno cansaço, um vazio sem sentido. Ele compra coisas fúteis ou inúteis porque pode, para exibir essa mensagem, para justificar o status e o poder. Mas se ele era um indivíduo vazio, significa, talvez, que houve um momento em que ele esteve “cheio”. Durante o dia sua fortuna vai sumindo. Tudo por causa da sua tentativa de especular com a moeda japonesa. Este jovem, que vive intensamente o presente, quer aproveitar o tempo que lhe resta para fazer sexo com a esposa (mas não consegue, porque ela não quer); este Eric tem, sim, um resto de “encantamento do mundo”. E isso aparece por causa da memória. Ela é o recurso de “encantamento” que resiste à fragmentação do mundo. Em Eric, a memória surge como o elo que o mantém humano, apesar de sua “maquinização”, ou desumanização, ou ainda, inumanidade. Matar Eric é matar a América (EUA). Esse seria o discurso contra-hegemônico. Um mundo que permite a alguém ganhar tanto dinheiro em questão de horas e perdê-lo num dia, não pode ser um mundo justo, não pode ser um mundo aceito pela maioria das pessoas. Em Cosmopolis, matar Eric é dizer não a esse sistema. Mas o assassinato não seria o discurso contra-hegemônico mais eficiente. Porque Eric é apenas uma peça do tabuleiro.

1.5 – O tempo passado, presente e futuro

Metropólis, a cidade de 2026 idealizada pelo diretor Fritz Lang em seu filme homônimo, é inspirada em Nova York de 1925/26. Tempos Modernos (1936), de Chaplin, tem suas cenas iniciais inspiradas em Metropolis (1927). E Cosmopolis (2012) se passa dentro de uma limusine em Nova York. A cidade americana, como parece, sempre foi o

38 símbolo de uma Cosmópolis, ou de uma cidade-universo (a palavra grega ‘Cosmópolis’ também significa cidade da ordem). Não é o único fio que une os três filmes. Metropolis sintetiza o apogeu da modernidade (SUPPIA: 2011) – e retomarei essa afirmação mais tarde. Tempos Modernos critica, usando a sátira, essa mesma modernidade e sua linha de produção. Com a diferença de que trata mais de seus efeitos nas pessoas comuns. Já Cosmopolis retrata os primeiros anos do século XXI (o filme foi lançado em 2012, o livro em 2003, mas a história é de 2000). Cosmopolis não é especulação de como será o futuro (Metropolis), ou uma crítica do modelo econômico fordista (Tempos Modernos). Cosmopolis é o contemporâneo. É o agora. É o resultado ‘real’ da modernidade, sem ficção. É a consequência da crise da modernidade (mostrada nos filmes de Chaplin e Lang) para uma hipermodernidade (LIPOVETSKY, 2004), ou mundo líquido (BAUMAN, 2014), ou contemporaneidade. Tempos Modernos e Metropolis se passavam em “cidades-universo” de um período entre guerras. Já a nova concepção de Cosmópolis está representada no filme de Cronenberg.

Os dois primeiros filmes estão encaixados no período entre guerras, em que se vê a modernidade sólida com criticidade. O último (Cosmopolis) mostra criticamente o mundo líquido, em seu provável início de decadência.

Os governos vivem presos entre duas pressões impossíveis de reconciliar: a do eleitorado e a dos mercados. Eles têm medo de que, se não agem como as bolsas e o capital móvel querem, as bolsas quebrarão e o dinheiro irá a outro país. Não se trata apenas de que possa haver corrupção e estupidez entre os nossos políticos, mas sim que essas situações os deixam impotentes. E, por isso, as pessoas buscam desesperadamente novas formas de fazer política.

(BAUMAN, 2014, em entrevista à MG Magazine)

Em Cosmópolis o modelo de mundo não funciona para a maioria. Nesta dissertação também trato de pontos de vista diferentes, mas que conversam entre si, no que se refere ao termo Modernidade ou sobre o tempo. Para Harvey, o tempo é uma doença que contraímos assim que nascemos. E, ao analisar Blade Runner (1982) como filme pós-moderno, ele afirma que as corporações são o novo poder mundial (HARVEY, 1993). São as corporações que determinam o nível da “doença” que as pessoas comuns terão. O projeto moderno, dividido em dois pilares, viu, com o surgimento e o auge do capitalismo, a vitória do pilar da regulação (Estado, Mercado e Comunidade) sobre o pilar da emancipação (racionalidade expressiva das artes, cognitiva e instrumental da ciência e da técnica, prática da ética e do direito).

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Metropolis, Tempos Modernos e Cosmopolis discutem, cada um em seu tempo e modo, as relações de trabalho, a tecnologia, o uso que fazemos do tempo, o que é mercadoria e o que não é e – também - discutem, fundamentalmente, o inumano. A “vida administrada” pelos homens-corporações, pelo sistema financeiro anula o tempo, a memória, o corpo, porque sempre está a programá-los. Uma solução seria voltar para o outro inumano (LYOTARD, 1990), nós mesmos, nossas memórias, recuperar nossa educação não-pronta, executada na velocidade lenta que precisa ter para digerir e vivenciar experiências e emoções. As personagens destes três filmes buscam a solução para a velocidade. Querem sua inumanidade de volta.

No período histórico desses três filmes aconteceram coisas importantes - além das duas grandes guerras mundiais: a confirmação cultural, econômica e tecnológica do cinema, o surgimento de uma cultura de produto (a cultura pop) e a midiatização das relações humanas graças ao período contemporâneo da internet. Diversas questões surgiram ao assistir a esses três emblemáticos filmes. Não vou tentar responder todas, mas pretendo refletir e discutir algumas. As perguntas seriam: o que é o futuro? Como será o futuro? O que é ser humano? O que nos faz humanos? Qual será nossa futura relação com o tempo? Nessas perguntas percebi uma certa unidade. Por exemplo: discutir o futuro é discutir o tempo. Além disso, o ser humano existe, portanto, há uma relação com o tempo. O que somos, como somos, o que seremos, é influenciado por isso (memória, esquecimento, tempo do sol, tempo biológico, tempo para aprender, capital financeiro, corporações, tudo gira em torno do uso que se faz do tempo).

Outro exemplo: segundo Lyotard (LYOTARD, 1990), nossa ideia de humanidade está ligada ao conceito de inumano. E nele está a ideia de que o ser humano é a única espécie que não nasce pronta, não nasce, portanto, humana. Ela precisa ser ensinada, educada como tal. “É próprio do homem sua falta de próprio, o seu nada” (LYOTARD, 1990, p. 12). Essa característica do “nada” muitas vezes é confundida com incivilidade, ou, desumanidade. Mas desumanidade seria uma escolha. Ou seja, sabemos o que é sermos humanos, mas escolhemos a desumanidade (agir contra a própria espécie propositalmente). A personagem Macunaíma (da obra de mesmo nome, de 1928), do escritor Mário de Andrade (1893-1945) - um dos ícones do nosso Modernismo literário – é a representação do brasileiro segundo esses mesmos modernistas (que buscavam uma identidade nacional). Macunaíma é o herói sem caráter, como o próprio subtítulo do livro diz. Ele é, voltando a Lyotard, inumano, alguém que precisa ser “preenchido”. Para Mário de Andrade, Macunaíma – o brasileiro em geral – é sem caráter, por isso é capaz de 40 coisas grandiosas ao mesmo tempo em que é capaz das coisas mais mesquinhas e contrárias ao próprio país. Porque o “com caráter” sabe o que é o “correto” e o “errado”, mas escolheu praticar o certo. O mau caráter, idem, só que este escolheu o “errado”. O “sem caráter” não sabe a diferença entre um e outro. Em Lyotard, o inumano ainda não sabe, não conhece, no sentido puro e filosófico destas palavras (conhecer e saber). Mas para o pensador francês, inumano também se refere ao chamado desenvolvimento (o progresso, o sistema financeiro, a máquina capitalista e seus nomes que remetem ao mesmo significado geral). Segundo Lyotard, “A consequência maior do sistema é a de fazer esquecer tudo o que lhe escapa. (...) O mal-estar aumenta com esta civilização, a exclusão com a informação” (LYOTARD, 1990, p. 10). E o tempo é fundamental para separar o inumano do desenvolvimento e o inumano da anamnese. O primeiro impõe que o tempo seja acelerado. O segundo, que envolve diretamente nossa experiência sensorial, precisa que o tempo seja aproveitado de modo mais natural, ou seja, devemos respeitar o nosso tempo biológico para aprender e apreender as coisas.

O futuro, o tempo, as máquinas e os humanos acompanham definições que se complementam e que convergem (para usar palavra da moda). Desse modo, busco o inumano nos três filmes, que é algo que os conecta. Em Metropolis, de Fritz Lang, a inumanidade está no desenvolvimento que dividiu a sociedade do futuro em duas, ou na pureza infantil de Freder. Em Tempos Modernos, de Charles Chaplin, a personagem do Vagabundo é a da criança, do pote vazio, da pureza que nos mostra nossa falta de humanidade a partir da própria inumanidade do sistema industrial e social que foi criado na chamada Modernidade (pós-Revolução Industrial). Em Cosmopolis, de David Cronenberg, as personagens agem como se fossem “robôs”, no sentido clássico, ou seja, sem emoções aparentes, movimentos inexpressivos. Seriam inumanos? O sistema, ou como chama Lyotard, o “desenvolvimento”, é inumano. Ele não tem fim (de finalidade, a não ser o de acumular capital), mas tem um limite (LYOTARD, 1990, p. 14), “o da esperança de vida do Sol”. No caso, o limite é o da aceleração do tempo, imposto pelo desenvolvimento do cibercapital financeiro. Chegou-se ao limite do suportável em Cosmópolis. “O desenvolvimento é a ideologia do tempo presente, ele realiza o essencial da metafísica, que tem sido muito mais um pensamento de forças que um pensamento do sujeito” (LYOTARD, 1990, p. 14).

Pensei diversas coisas sobre o tempo. A ponto de escrever um poema para reunir as ideias em algo lógico, mesmo o poema não tendo essa obrigação com a lógica. Alguns

41 desses apontamentos, feitos em meu poema chamado O Tempo, procuro discutir nesta dissertação:

(...) o tempo precisa de alguém para percebê-lo / se eu morrer, o tempo também se perde / se não morro, mas me trasformo, / o tempo também se altera / e se morrer é outra etapa / o fim passa a ser só um conceito / nada realmente acaba / pelo menos por enquanto / o tempo é um beijo apaixonado / em nossa fronte: / o primeiro beijo e o último / o tempo é eterna despedida /

É isso. A urgência do tempo, seu presentismo, é a conclusão inicial a que cheguei. Ou seja, o tempo sempre diz “adeus”, nunca “olá”. Faço parte de um mundo que me fez entendê-lo assim. O tempo é fora de si? Ele depende de mim? O que é morrer? Para esta última questão pode-se imaginar que a resposta passe pela ideia de corpo e mente. E passa. Lyotard diz que o corpo pode ser considerado um hardware do “complexo dispositivo técnico que é o pensamento”. E complementa:

Para pensar é preciso pelo menos respirar, comer etc. Será sempre necessário ‘ganhar a vida’.

(LYOTARD, 1990, p. 21)

Aí entraria a tecnologia: garantir ao software (o pensamento, o cérebro humano) um hardware que não dependa das condições da vida no planeta. Poderia ser um robô do tipo androide, ou um tipo de máquina menos parecido com o humano e sem uma forma definida. Nosso pensamento poderia ficar em rede, no mundo virtual, em máquinas seguras, para que pudesse, então, ser transferido para outro corpo, outro planeta com um novo Sol que durasse mais alguns bilhões de anos. A tecnologia está aí para perpetuar a raça humana.

O bilionário Eric busca se perpetuar, ou, melhor do que isso. Busca se manter jovem. O tempo para ele é sem memória. A ausência disto torna o tempo sem significado. Ele, Eric, acha isso dos outros. Sua memória dá relevância ao tempo. Mas ela surge quando chora pela morte de Brutha Fez, ou quando insiste em cortar o cabelo no velho barbeiro de sua infância. A memória de Eric é sua tentativa para sentir o significado de algo, da própria vida. Embora o dinheiro que acumulou seja responsável por satisfazer seus megalomaníacos caprichos, Eric não demonstra emoção alguma quando começa a perder tudo durante o dia. O dinheiro não tem memória. O capital se desfaz entre seus dedos ao digitar o controle do mundo em sua poltrona hightech, dentro de sua limusine altamente hightech. O dinheiro que ele acumulou (e não liga) permite que gaste em toda a tecnologia possível para fazer checkups diários, inclusive dentro da própria limusine. Mas

42 ele não pode evitar a própria morte (como seu amigo Brutha Fez não pôde). Eric acredita que tudo passa muito rápido. É preciso aproveitar. Usar, praticar o tempo disponível. E o que fazer com esse tempo? Usar o corpo. Gastar a energia sexual acumulada (sexo como instinto e desejo irrefreável sempre fez parte dos filmes de Cronenberg), transar o tempo todo, ou, mais ainda: transar com a própria jovem e linda esposa. Para isso vale a pena gastar o tempo. Mas Elisa não quer transar com Eric. Ela não tem pressa. Diz que o fará. Por enquanto precisa focar sua atenção em outra coisa. Em sua poesia. O tempo para Elisa passa diferente. Sem camadas. Uma coisa de cada vez. A tecnologia não interessa para ela. Muito menos para perpetuar a vida. Mas a tecnologia poderia fazer isso?

Como isso seria possível se a própria tecnologia também colabora – como instrumento - com os conflitos humanos, as guerras, com as divisões sociais e com a destruição do tempo como entidade que constrói um passado, vive um presente e anuncia um futuro? Enfim, a tecnologia não seria apenas um instrumento de perpetuação de um tipo de poder que está nas mãos de uma classe de humanos? Enquanto isso, os outros humanos seriam perpetuados para atuar como engrenagens desse sistema? Eu sei, essas questões soam marxistas. Mas senão, vejamos: Fritz Lang fez essa discussão de classe trabalhadora oprimida em Metropolis (1927), embora sua solução tenha sido completamente diferente da de Chaplin em Tempos Modernos (1936). Neste último, a tecnologia é criticada porque ela não veio resolver os problemas de conforto e segurança da humanidade, mas sim de alguns que detinham o poder econômico. Os outros só serviam para fazer a máquina do capital funcionar. Em Metropolis a máquina-Moloch é a metáfora do capitalismo devorador de trabalhadores. Mais marxista impossível. Já Chaplin tira sarro da teoria na cena em que o Vagabundo é confundido com um comunista por causa de uma bandeira vermelha (que todos sabem ser vermelha embora o filme seja preto e branco). Para o diretor inglês o que basta é a discussão humanista, não se o filme é marxista ou capitalista. Mas se o marxista defende o trabalhador e o mostra explorado pelo capital, Tempos Modernos faz o mesmo, mas não fica só nisso. E Cosmopolis (2012)? Cronenberg discute o capital financeiro nos novos tempos de tecnologia digital. O dinheiro não tem mais “corpo”. Ele é virtual. Assim como as pessoas. Entre as pessoas, entre o dinheiro e as pessoas, entre qualquer coisa existe um terceiro elemento que exerce a função da midiatização. Mediar é papel fundamental na contemporaneidade. No filme de Cronenberg há uma citação comunista recorrente: “um espectro assombra a humanidade”. É o espectro do capitalismo. De novo, mais marxista impossível.

43

Jean Renoir (1894-1979), ator, cineasta, ensaísta e filho do pintor Pierre-Auguste Renoir, falou sobre a modernidade numa palestra no Congresso Internacional de Pesquisa da História do Cinema, em 31 de outubro de 1957. Segundo Jean Renoir, a história poderia ser dividida em tentativas de Torre de Babel:

Espera-se, constrói-se, quase se chega ao topo e a cada vez ocorre um evento infeliz que faz com que as Torres de Babel desmoronem, que haja uma nova divisão e os povos passem a se ignorar, (...) a fazer a guerra (...). (RENOIR, 1990: 74)

Para Renoir, o mundo sempre se dividia. Roma (Antiga) era Washington. Bizâncio era Moscou. A diferença era que ele (Renoir) vivia em plena era da reprodutibilidade técnica, ou da difusão, como prefere chamar Renoir (RENOIR, 1990: 78-79). Vale lembrar que em Metropolis existe a nova Torre Babel. Walter Benjamin (1892-1940) dizia que a obra de arte sempre foi reprodutível, mas a reprodução técnica era uma novidade nas primeiras décadas do século XX. Segundo Benjamin, a modernidade começa em 1855: é o grande momento do advento da técnica, da sociedade de massas e do consumo capitalista, especialmente em Paris. E completamente relacionada com a guerra imperialista de então. A natureza foi dominada pela técnica humana. Os homens também foram dominados (BENJAMIN: 1994, p. 172- 173).

As massas têm o direito de exigir a mudança das relações de propriedade. O fascismo permite que elas se exprimam, conservando, ao mesmo tempo, essas relações. Ele desemboca na estetização da vida política. A política se deixou impregnar (...) pela decadência, (...) [ou pelo futurismo de Marinetti] e com Hitler (...). Todos os esforços para estetizar a política convergem para um ponto. Esse ponto é a guerra. A guerra e somente a guerra permite dar um objetivo aos grandes movimentos de massa, preservando as relações de produção existentes.

(BENJAMIN, 1994, p. 195)

Chaplin era pacifista. Mas não suavizava em suas críticas. Minha cena emblemática é aquela em que Carlitos entra nas engrenagens de uma das máquinas da fábrica. Porque ela sintetiza toda a moral do filme. Carlitos segue apertando parafusos enquanto a câmera dá um plano de corpo inteiro dele, como se estivesse num quadro (futurista, talvez). As peças são enormes. Carlitos é pequeno diante delas. A metáfora se impõe. Somos peças pequenas de uma engrenagem maior que nos controla. Não somos máquinas, somos parte das engrenagens que fazem as máquinas funcionar. O tempo do

44 relógio nos controla. Vivemos como gado, arrebanhados para o abatedouro das fábricas (cena inicial de Tempos Modernos é homenagem às primeiras cenas de Metropolis de Fritz Lang). Chaplin ridiculariza a tecnologia que inventa máquinas para alimentar o trabalhador (máquina recusada pelo dono da fábrica – que alimentaria o operário sem que ele parasse de trabalhar - por ser pouco prática, não maximiza o horário de comer e não é eficiente), mas a mesma tecnologia poderia ser usada para “inventar” emprego para todos, casas para todos, enfim, máquinas para uma vida mais justa, para a felicidade. A tecnologia não trouxe progresso real, mas progresso seletivo. E os selecionados são os que detêm o controle do capital, do consumo. Na cena em que Carlitos brinca com as engrenagens é o retrato satírico da industrialização que não considera o ser humano em primeiro lugar. Os números, a velocidade e a eficiência são mais importantes no mundo moderno criticado por Chaplin. Imagine um poema sem rima, um remo sem canoa, uma caminhada sem rumo. É uma definição poética sobre o tempo. Mas filosófica também, se você entender a palavra filosófica aplicada a qualquer ideia que não tenha resposta definitiva. Já uma questão resolvida é uma questão técnica (LYOTARD, 1990, p. 17). De qualquer modo, essa definição de Lyotard (filosófica x técnica) na verdade é um ato de sarcasmo do pensador quando trata de analisar o papel dos filósofos e dos “técnicos”. Quanto ao tempo, há o livro de Edward Palmer Thompson (1924-1993) chamado "Costumes em Comum: Estudos Sobre a Cultura Popular Tradicional". Nele há um diálogo da visão marxista da história e as abordagens que procuram o valor cultural na prática dos agentes históricos.

Thompson diz que com o advento do capitalismo houve uma divisão cultural entre classes. O "folclore" entra em cena como a cultura tida como inferior da classe plebeia na visão de mundo da classe de patrões. Thompson propõem a ideia de "costume" como práticas vivas adotadas pelos camponeses frente à realidade que encontraram com o advento do Capitalismo no século XVIII. Seriam como práticas antigas e constantemente repensadas, pois fazem parte da realidade: são os costumes o espaço onde os camponeses agem no cotidiano (THOMPSON, 2005). Como os costumes estavam formados dentre aqueles camponeses numa realidade pré-capitalista, tais costumes se chocaram com os novos valores do trabalho disciplinado do ambiente das fábricas. Esses camponeses que migraram para a cidade em busca de emprego encontraram, então, uma nova realidade.

As diferentes mentalidades, rural e urbana, levaram a um conflito de classes (THOMPSON, 2005). Thompson afirma que a sociedade industrial instituiu uma nova 45 forma de trabalho que, consequentemente, produziu uma nova forma de entender o tempo. Para os camponeses o tempo era do sol. As coisas tinham a duração das tarefas e as tarefas dependiam da natureza, do que ela permitia fazer. Para o patrão industrial, o tempo é racionalizado pelo relógio. Objeto presente em Metropolis e Tempos Modernos. A primeira coisa que se vê no filme de Chaplin é o relógio, que é uma homenagem ao filme anterior, de Lang. No filme alemão o relógio é, metaforicamente, um torturador do operário. O próprio herói Freder tem um embate físico intenso contra o relógio. O relógio da fábrica é o primeiro passo para transformar o tempo em produto do mercado financeiro. E a escola funcionou muito bem para difundir essa nova ordem burguesa. E como somos inumanos, seres que precisam ser educados, não foi difícil acostumar a nova sociedade industrial a se comportar como “engrenagens”. E a primeira lição dessa era na Modernidade é: tempo é dinheiro. É a primeira grande pisada no acelerador do tempo. A mentalidade protestante e as novas práticas racionais burguesas propunham a boa administração do tempo. O operário exigia menos horas trabalhadas e maiores salários (THOMPSON, 2005). O professor, atualmente, recebe por hora/aula. Enfim, essa relação de trabalho medido pelo tempo, como se pode ver, evoluiu (e evolução não está dito aqui com o sentido darwiniano, de algo que progride com o tempo, que melhora, que se adapta, mas com um sentido irônico, como algo negativo).

A maioria das abordagens sobre o tempo vincula este a uma experiência vivida. A grande questão é: o tempo é algo objetivo ou subjetivo? Há defensores dos dois lados. Para Norbert Elias (1897-1990), que escreveu Sobre o Tempo, é uma referência da qual um grupo humano se serve para se orientar. É um símbolo social que resulta de um longo processo de aprendizagem. Além disso, Elias trata dos instrumentos de “medição” do tempo:

Os relógios e os instrumentos de medição do tempo em geral, sejam eles de fabricação humana ou não, reduzem-se a movimentos mecânicos de um tipo particular, que os homens colocam a serviço de seus próprios fins. (ELIAS, 1998, p. 95)

E os fins são controlar o próprio homem. Somos ensinados desde sempre a fazer algo num determinado tempo. Seja por obrigação profissional ou por lazer. Os esportes, por exemplo. Quem é o mais rápido? Temos 90 minutos para fazer mais gols do que o adversário. Todos os esportes são cronometrados. O tempo dos programas em televisão, a publicidade, as músicas são criadas, em geral, para ter um tempo médio aceitável para se tocar nas rádios. A função do tempo é nos limitar. E limite é controle. Para Elias, o

46 tempo não existe em si. “Os relógios são processos físicos que a sociedade padronizou, decompondo-os em sequências-modelo de recorrência regular, como as horas e os minutos” (ELIAS, 1998, p. 7). Uma criança precisa aprender a se disciplinar diante do tempo, caso contrário, será quase impossível viver como um adulto em sociedade. Somos criados desde nossa inumanidade a conviver, suportar e respeitar a coerção do tempo.

A experiência humana do que chamamos tempo modificou-se ao longo do passado, e continua a se modificar em nossos dias, não de um modo histórico e contingente, mas de um modo estruturado, orientado e, como tal, passível de explicação. (ELIAS, 1998, p. 34)

É o que faz Elias no livro. Ele explica a direção das mudanças e por quais vias elas são explicadas. O autor defende que toda nossa cadeia de conhecimentos e conexões estabelecidos é resultado da aprendizagem e da experiência, ou seja, o ser humano não nasce sabendo, por exemplo, sobre o tempo. Ele aprende sobre isso.

O período entre guerras até Cosmopolis é emblemático porque ali surgiu a chamada Cultura Pop, que é uma cultura de produto. E nela tudo vira produto (solidão, felicidade, tédio, medo, angústia). Vivemos em outro tipo de multidão, diferente, sim, daquela de Baudelaire. Esta é conectada, midiatizada. O espaço da praça pública morreu. Massa que vislumbramos pelas telas de smartphones, tablets, laptops. As empresas definem a duração do ciclo de um produto. Definem quando devemos desistir de um produto, descartá-lo e comprar outro. A dinâmica do mundo capitalista mudou. Os braços capitalistas alcançaram tudo, controlam tudo. E determinam como somos. A partir de meados dos anos 70 a cultura saiu de um único centro transmissor para toda uma população ligada no mesmo evento. E entrou num sistema em que cada pessoa poderia escolher o que quisesse ver. Cada pessoa ganhou seu próprio meio de compartilhar informações pessoais ou não. Nesse momento o marketing diz: mais liberdade para você. Mais poder para o indivíduo. Mas o poder esvazia os indivíduos. Eric, em Cosmopolis, era assim. Tudo isso está relacionado a essa angústia moderna.

Vou retomar o momento em que Eric finalmente chega ao barbeiro, Anthony. Este lhe diz que poderia reclamar de muitas coisas na vida, mas não reclama... porque não há tempo. Eric já havia matado o chefe da sua segurança, Torval, algumas cenas antes. E agora só tem um motorista com ele. A conversa gira em torno de Eric não ter uma arma para se proteger (ele jogou fora a que usou para matar Torval). Anthony lhe

47 oferece sua arma (segundo ele, o bairro é muito perigoso). Eric pega. E de repente sente vontade de sair da barbearia. Falta cortar um lado do cabelo. Mas ele diz que voltará. Só precisa resolver algo. Ele passeia com a limusine até a garagem onde ela deve ficar. Então se despede do motorista e caminha. Alguém atira. Eric atira de volta. É o assassino. Ele vai ao apartamento do sujeito, que se chama Benno Levin (não é seu nome verdadeiro, é mais um apelido, que parece um nome russo). Os dois conversam. Levin trabalhou para Eric. E enlouqueceu. Acha que sua vida só terá sentido se morrer ou se matar Eric. Há o momento em que Levin aponta a arma para Eric. As últimas palavras do assassino foram: “Eu queria que você me curasse, que me salvasse [uma lágrima cai do rosto de Eric] eu queria que você me salvasse”.

O filme acaba num close em Eric, sem que possamos ver o momento do disparo mortal. Cosmopolis é o desfecho de um mundo já criticado em Metrópolis e Tempos Modernos. Esses dois últimos veem a sociedade em decadência moral e social. Cada um com sua linha de pensamento, ambos criticam o chamado tempo do trabalho, que se sobrepunha ao tempo do sol. O problema, agora, é que o tempo virou produto também. Um tempo que foi hipermultiplicado. Vivemos diversos tempos ao mesmo tempo. E carregamos todos eles conosco, graças à tecnologia (smartphones, tablets, notebooks etc). Enquanto estamos nas redes sociais, caminhamos pela cidade, falamos ao telefone. Vivemos diversos tempos ao mesmo tempo.

Essa é a essência da insegurança moderna: o medo do crime ou do criminoso. O medo, sintoma dessa angústia existencial contemporânea também, é produto agora. As cidades globais são, por excelência, os centros preferenciais do capitalismo. E é ali que funcionam os mais avançados aspectos desse capitalismo: imensos fluxos de população, segmentação social, uma exacerbação de preconceitos e diferenças culturais e econômicas. É onde ainda se vê os ricos mais ricos, os pobres mais pobres, a verticalização de sua arquitetura e um tipo de política pública que não privilegia a mistura saudável dessas diferenças, mas sim a proteção delas. Especialmente a proteção da parcela mais rica em relação ao resto. Espaços segmentados são cada vez mais comuns na contemporaneidade (BAUMAN, 2005).

Metrópolis criou a cidade do futuro na Alemanha, vertical e de duas classes. Tempos Modernos criticou a cidade grande americana da época: injusta, desumana, capitalista e selvagem. Cosmopolis (2002), de David Cronenberg, transformou o tempo em produto do dinheiro. O capital virtual é que define o presente. Ele trouxe o futuro para

48 o momento e castrou o tempo, que agora é fugaz, como toda mercadoria do sistema financeiro contemporâneo. E ainda tem Nova York como cenário. Mas ela é, na verdade, uma representação das metrópoles mundiais (São Paulo, Rio de Janeiro, Pequim, Hong Kong, Tóquio, Londres, Paris, Milão ou Roma, por exemplo).

Em Tempos Modernos, o tempo e a vida do Vagabundo e dos demais personagens são de filosofia fordista. Ela é a síntese do que Bauman chama de modernidade sólida.

Nessa fábrica [fordista], o recíproco e duradouro empenho das duas partes em contraposição – capital e trabalho – tornou-as independentes. Ao mesmo tempo, permitiu que se pensasse e planejasse a longo prazo, que se empenhasse o futuro e nele se investisse.

(BAUMAN, 2005, p. 18-19)

A fábrica fordista foi um lugar de disputas que sempre foram contornadas: “Foi também um refúgio seguro para a confiança e, consequentemente, para a negociação, a busca de compromissos e de uma convivência ‘consensual’” (BAUMAN, 2005, p. 18-19). Essa convivência consensual é cada vez mais difícil nas cidades globais contemporâneas. Um dos graves problemas sociais na Europa, por exemplo, é justamente a “invasão” dos imigrantes pobres – africanos ou asiáticos. Quando a economia entra em crise nas grandes cidades, o primeiro culpado encontrado é o estrangeiro.

A xenofobia – a suspeita crescente de um complô estrangeiro e o sentimento de rancor pelos ‘estranhos’ – pode ser entendida como um reflexo perverso da tentativa desesperada de salvar o que resta da solidariedade local.

(BAUMAN, 2005, p. 21)

E quando a solidariedade é substituída pela competição, segundo Bauman, os indivíduos se sentem abandonados. Dentro desse cenário, o papel do Estado é fundamental. Quando o governo cria leis para proteger os estrangeiros da opressão dos “locais”, estes se revoltam. Quando o governo cria leis que dificultam a entrada, permanência ou a vida cotidiana do estrangeiro no país, as tensões entre as partes aumentam. Não há política pública para uma convivência consensual. Porque não há aceitação desse consensual. O individualismo do “proteja-se você mesmo, faça você mesmo”, definiu essa falta de tolerância urbana. Na sociedade contemporânea das grandes cidades, é sempre preciso criar um inimigo. E se ele existe, mas não sabe que é seu inimigo, é “bom” provocá-lo para que ele chegue a se considerar assim. Regimes totalitários se alimentam disso. Sobre essas ideias de fábrica fordista, totalitarismo e xenofobia, temos em Metrópolis (1927), todas as coisas, em estado bruto. 49

Capítulo 2 – METROPOLIS, TEMPOS MODERNOS, COSMOPOLIS: O TEMPO E A

TECNOLOGIA

2.1 – A religião das máquinas: A excitação tecnológica, o pós-humano, tecnologia

digital em Cosmopolis, Tempos Modernos e Metropolis.

A cena da máquina-Morloch em Metropolis (1927) é clara: humanos fazem rituais de sacrifício a esse deus. E a máquina-deus não se faz de rogada e devora os humanos. É a metáfora do capitalismo selvagem, que devora o tempo dos trabalhadores, se alimenta de suas vidas para continuar existindo forte e poderoso. Foi só uma visão de Freder. É o que ele imaginou ao observar o sofrimento dos operários do seu pai. Em Tempos Modernos (1936), Carlitos se funde às máquinas da fábrica. Enlouquecido, após o excesso de repetição no trabalho, ele é engolido pela máquina (mas não devorado). E a metáfora também é clara: os humanos deixaram de ser humanos e passaram a ser partes de uma engrenagem. Viraram peças. E toda peça pode ser trocada se estiver com defeito. É o que ocorre com o Vagabundo. Ele é internado e perde o emprego. Porque no sistema fordista, tempo é dinheiro. E ninguém é insusbitituível. É só uma peça. Em Cosmopolis (2012), o dinheiro é virtual. Ganha-se muito em pouco tempo e perdem-se bilhões em um dia (como ocorreu com Eric). O mundo ficou menor e cabe numa limusine, com computadores e internet, equipamentos suficientes para controlar um orçamento equivalente a de alguns países. O mundo de Eric é acelerado e jovem. De gente que vive no presente. Eric não precisa ser dono de fábricas. Só precisa ser dono da informação. Especular o dinheiro é seu emprego. Matemática é seu talento. A tecnologia foi usada para criar um mundo virtual. Não é necessário pessoas físicas. Não à toa, o filme todo se passa com a limusine no meio de um mar de gente protestando contra a aceleração do tempo e a desumanização das relações sociais e de trabalho. Ao contrário de Tempos Modernos, em que Carlitos faz parte de uma engrenagem, Eric não se encaixa na engrenagem humana das ruas de Nova York. Ele está lá, mas não está verdadeiramente. Existe uma inumanidade nas personagens dos três filmes. É uma inumanidade em relação à vida e ao tempo. Estão interligadas e misturadas. E a tecnologia é o instrumento que melhora ou piora cada uma das três. A tecnologia pode ser a resposta para nos dar

50 mais liberdade. Ou ela está sendo usada para nos tirar essa liberdade. O mesmo vale para a vida e o tempo. Os dois primeiros filmes existiram no período entre guerras (1914- 18/1938-45). E esse momento definiu o século XX e todo o posterior pensamento filosófico e político da humanidade. Como já foi dito, os dois filmes (Metropolis e Tempos Modernos) são críticos da Modernidade e do trabalho fordista. Mas encontram soluções distintas. Já Cosmopolis é praticamente distópico. E é um filme que atualiza as previsões e discussões feitas nos dois primeiros. E a conclusão é de que a tecnologia definitivamente está a serviço do homem. A questão é de que homem. Para qual homem. E com qual objetivo. Então, antes de analisar os filmes, um pouco de teorização.

2.1.1 – A excitação tecnológica

Digamos que nosso destino seja o pôr do sol. Em sua direção caminha a humanidade, mas durante a jornada vemos a mesma humanidade cada vez mais mecanizada, automatizada e “internetizada”. Nossa cultura é mediada há muito tempo. Mas desde a era da Internet (e com todas as máquinas acompanhando seu desenvolvimento), a mediação se tornou virtualizada e mais individualizada. Reescrevemos as linhas que separam o real do falso. Na verdade não imagino que estas linhas sequer tenham existido de fato. Assim como no início da Modernidade vivenciamos uma exaltação quase religiosa da ciência e suas máquinas maravilhosas. Agora compramos o simulacro do simulacro numa loja que é um simulacro de uma loja real. E usamos uma imitação nossa para conversar com pessoas reais que usam simulacros de si mesmas para falar conosco. Novamente a ideia de Benjamin: a técnica sempre representa a natureza a partir de uma nova perspectiva. Essa mesma técnica também aproxima o homem de seus afetos, temores e imagens de desejo mais originários (BENJAMIN, 1991). Há uma excitação em relação às novas tecnologias. Compreensível. Um dos principais objetivos da tecnicidade, das máquinas e seus derivados, sempre foi este: se incorporar ao cotidiano humano. Fazer parte da vida e – por que não? – do próprio corpo. Uma extensão de nós mesmos. E parece que estamos muitos próximos disso. Daí ser natural recuperarmos a famosa frase de Protágoras (480-415 a.C.), que foi essencial - e essência do Renascimento (fins do século XIV e início do século XVII):

O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são. (PROTÁGORAS) 51

Frase que agora poderia ser transformada em: “A tecnologia é a extensão do homem, que ainda é a medida de todas as coisas que são e das que não são, embora essa fronteira não importe mais”. Levamos ao limite a ideia de que somos o umbigo do mundo. Individualizamos os umbigos. Comercializamos estes umbigos. Cada pessoa pode ser dona do seu próprio universo. As máquinas nos aproximam da divindade, ou nos tornam uma. Ampliam nossas camadas de tempo, extendem nosso território, amplificam nossas ideias para o resto do mundo. As máquinas (smartphones, internet, notebooks e afins) são a verdadeira medida de todas as coisas no mundo contemporâneo. Fascínio e terror são o que as máquinas e a tecnologia sempre provocaram.

Segundo proporções do arquiteto Vitrúvio (I a.C.): - um palmo é o comprimento de quatro dedos - um pé é o comprimento de quatro palmos - um côvado é o comprimento de seis palmos - um passo são quatro côvados - a altura de um homem é quatro côvados Da Vinci foi o primeiro a encaixar as proporções do corpo humano dentro da figura de um quadrado e um círculo. O desenho ganhou inúmeras interpretações. Uma delas diz respeito ao fato de que o centro se localiza no umbigo. E se o homem é o centro do conhecimento, ou o objetivo do conhecimento, então, o homem é o próprio mundo a ser descoberto (ou o universo). Por isso a metáfora é clara: o centro do universo é o umbigo do homem. Vivemos, na Era Digital, um novo Humanismo. Só que os umbigos se individualizaram e são vendidos como produtos em série. (Homem Vitruviano, Leonardo da Vinci, 1490)

A religião teve a função simbólica de religar o cordão umbilical do homem com o divino, com seu criador. As novas tecnologias têm a função de conectar o homem a muitos outros umbigos. A religião ameniza a angústia humana da liberdade ou da solidão. A religião, durante séculos, deu respostas – ainda que insatisfatórias, incompletas ou ilusórias - aos homens. A religião também é vista como salvação. Assim como a tecnologia. A crise da modernidade (no período entre guerras) veio justamente questionar esse poder de salvação, afinal, a tecnologia criou a geladeira e a bomba

52 atômica. A religião salvou, mas também matou milhares de pessoas em suas guerras santas. A religião imiscui-se no horizonte da tecnologia, aproximando, assim, o espiritual e o material, a divindade e a máquina. (FELINTO, 2005, p. 118)

No caso de Simondon, Felinto lembra que a relação entre tecnologia e religião é de natureza genética. Mas vou insistir no aspecto religioso. Diversos pensadores já trataram da questão da transcendência. Ou seja, de como o homem busca poder e imortalidade – dentro ou fora do seu corpo. A religião dá essa transcendência. No cristianismo, por exemplo, através do Espírito Santo. Nós temos alma e é isso que nos torna imortais. Já no universo tecnológico temos nossa mente e nosso corpo para trabalhar. É nossa “igreja”.

Como disse Philippe Breton, ‘o entusiasmo pela Internet se desenrola dentro de um ambiente que parece verdadeiramente com o de uma nova religiosidade. (FELINTO, 2005, p. 8)

Criar robôs, inteligências artificiais, mundos virtualizados, avatares digitais, tudo isso serve para nos dar extensões do nosso limitado corpo humano. Resolver a putrefação do corpo é questão fundamental. Se não podemos parar a decrepitude física (somente maquiá-la), então temos de substituir esse corpo por objetos criados pela ciência. Clonar um coração para substituir o que está doente, por exemplo. É o desejo pelo pós-humano.

2.1.2 – O pós-humano

A câmera está em Fredersen. Take fechado, ou primeiro plano, a partir do ombro. Joh está de perfil, olhando sem expressão para o lado direito da tela. Na parte inferior da tela está a mão esquerda de Rotwang. Ele gesticula vigorosamente – “expressionistamente” – com a mão em postura de “garra”. O rosto de Joh é completamente imperturbável. Instantes antes estava lembrando da esposa quando olhava para o busto gigante dela, construído por Rotwang. Mas quando o próprio Rotwang viu a cena, veio correndo e fechou as cortinas que escondem o busto. Nesse momento, com o destempero do cientista-inventor, Fredersen recupera sua fleuma e se veste com a “máscara” de robô sem emoções. Como se nunca lhe tivessem ensinado a

53 ser humano. Como se ainda fosse inumano. A cena da mão esquerda humana de Rotwang vibrando é emblemática. Logo a seguir, quando Rotwang diz que havia se esquecido apenas de uma coisa em sua vida: que Hel (a mulher de Fredersen, por quem Rotwang era apaixonado) era uma mulher e Joh Fredersen era um homem. Joh suspira profundamente, enruga sua expressão e pede que o cientista deixe os mortos em paz. Essa era a deixa para introduzir outro tema. Do pós-humano. Rotwang afirma que Hel não está morta. A câmera sai de um superclose frontal em seu rosto e abre para um plano americano, mostrando Joh à direita, no canto, Rotwang à esquerda, no canto, e no meio deles o braço esticado de Rotwang. A mão direita, dessa vez, gesticulando que Hel não estava morta para ele. Era a mão mecânica. Take simbólico de Fritz Lang. A mão esquerda, humana, tinha uma reação humana diante do homem que “roubou” seu grande amor. Já a mão direita, mecânica, era a resposta para a perda física desse amor. Fredersen quer saber o que ele fez para perder a mão direita. Rotwang, orgulhoso, diz que vale a pena perder apenas a mão para recuperar sua amada. E pergunta se Joh quer vê-la. Sua criação. Sua Hel mecânica. Seu simulacro da mulher que ele amava e ainda ama. A questão do pós-humano que surgiu no século XIX era: tentar se aperfeiçoar, como ser humano, ou tentar superar a espécie humana? Nietzsche já falava da necessidade de buscar a segunda opção. Hoje temos entusiastas e apocalípticos discutindo esse tema. Max More, filósofo e especialista no pós-humanismo, é um dos simpatizantes da ideia (pensa, inclusive, que combater o envelhecimento deveria ser uma prioridade da humanidade).

Nos próximos 50 anos, a inteligência artificial, a nanotecnologia, a engenharia genética e outras tecnologias permitirão aos seres humanos transcender as limitações do corpo. O ciclo da vida ultrapassará um século. Nossos sentidos e cognição serão ampliados. Ganharemos maior controle sobre nossas emoções e memória. Nossos corpos e cerébro serão envolvidos e se fundirão com o poderio computacional. Usaremos essas tecnologias para redesenhar a nós e nossos filhos em diversas formas de pós- humanidade.

(MORE, 1994, link nas referências bibliográficas)

Os defensores do movimento pós-humanista dizem que a “pessoa” possuidora de capacidades físicas e intelectuais sem precedentes, ou a entidade possuidora dos princípios de sua autoformação e um caráter transcendente (porque é potencialmente imortal), é pós-humana, seja ciborgue ou máquina de inteligência artificial. Quem atinge esse ponto não pode mais ser chamado de humano, e é para se chegar até ele e

54 converter-se em pós-humanos que muitos crentes na tecnologia vêm se organizando desde o final do século XX. Parece coisa de ficção científica. Mas há gente que vê outros aspectos, como Paula Sibilia. Em seu livro O homem pós-orgânico (SIBILIA, 2002), ela mostra o surgimento do homem-informação. Trata-se de um sujeito condenado ao upgrade constante, de software (mente/código) como do hardware (corpo/organismo). A obra discute a ultrapassagem dos limites espaciais e temporais da condição humana. Sibilia analisa as tecnologias digitais e suas diversas aplicações, que criaram uma recomposição tecnológica que age sobre a vida e produz novos corpos e subjetividades na sociedade contemporânea. Quando temos, por exemplo, uma pessoa que morre. Sua página de facebook pode continuar ativa. Inúmeras pessoas podem continuar interagindo, comentando e compartilhando coisas por ali. O dono não responderá, e, embora isso nem possa ser considerado uma “transcendentalidade”, não deixa de ser curioso como podemos interagir com um avatar de alguém que morreu. Não seria espantoso se os avatares das redes digitais fossem, um dia, criados para ter vida própria. A empresa Google já iniciou experiências com uma proto-inteligência artificial. O pós-humano poderia ser, em longo prazo, o “pôr do sol” da humanidade contemporânea. O cinema, arte tecnológica, reproduz essas discussões. Especialmente na questão da transferência mental para os computadores, ou para uma rede mundial (internet). A humanidade avançou. Superou as etapas do aperfeiçoamento físico do nosso corpo: as pessoas podem voar ou mergulhar, lutar, correr, ou seja, fazer tudo melhor do que antes (sempre usando máquinas). Agora, todos estão em vários lugares ao mesmo tempo. Conversamos com muitos ao mesmo tempo. Administramos diversos tempos. O tempo é um produto na nova era da Cultura Pop (a cultura do produto). A tecnologia ainda só não resolveu a questão do sono humano. Precisamos dormir. Mas o sistema social que regula nossas vidas busca meios de nos manter acordados. Um próximo passo é descobrir algo que não tenha consequências para a nossa saúde. Isso seria uma atitude pós-humana. Isto é, transcender a necessidade do tempo do sono. E como vivemos um tempo hiperacelerado, transcender o próprio tempo, criando vários, consumindo todos eles, é uma alternativa. A outra é não precisar do tempo. É ser imortal. Porque desde a Idade Média esse sempre foi o desejo em relação a tecnologia: aperfeiçoar o homem a tal ponto que o aproxime de Deus. Talvez, tornando-o um, ou superando o Próprio. Rowang superou Deus ao criar um androide que simula uma mulher. Mas em Metropolis isso não é visto com bons olhos. É

55 antinatural. Ele ultrapassou o limite da ciência e da religião. Por isso há um símbolo de uma estrela de cinco pontas. Para representar um lado bruxo do próprio cientista. Um inventor atormentado pelo passado, vingativo. O típico cientista maluco da literatura e do cinema. Hayles tem uma visão mais otimista em relação às tecnologias da informação e o pós-humanismo:

Meu sonho é uma versão do pós-humano que abrace as possibilidades das tecnologias da informação sem ser seduzida por fantasias de poder ilimitado e imortalidade descorporificada; que reconheça e celebre a finitude como condição do ser humano, e que entenda a vida humana como embebida em um mundo material de grande complexidade, mundo do qual dependemos para continuar sobrevivendo. (HAYLES, 1999, p. 5)

Não sabemos qual será a resposta da humanidade. Se ela irá buscar a imortalidade fora do corpo, se vai evoluir mas aceitando o ciclo temporal natural da vida, se irá continuar com os “muitos tempos” da era digital e da Cultura Pop, ou se voltará ao tempo do sol, do relógio biológico.

2.1.3. – Tecnologia digital

No alvorecer do século XX, um dos mais importantes pensadores da tecnologia, Walter Benjamin, construiu suas teses sobre a cultura moderna (...). Para Benjamin, a tecnologia era um repositório de sonhos, anseios, mitos e imagens coletivas que expressavam um desejo utópico. Segundo Benjamin, essa proximidade entre tecnologia e imaginação era sintomática dos momentos iniciais de assimilação dos objetos tecnológicos. (FELINTO, 2005, p. 126-127)

Talvez esse “frisson” esteja se repetindo com a tecnologia digital. E ainda há mais para ser descoberto e vendido nessa área. Mais novidades surgirão. Felinto comenta que as ideias de Benjamin têm dois aspectos interessantes. Primeiro, ajudam a explicar os símbolos e mitos religiosos pré-modernos no imaginário tecnológico. Porque são resíduos de um passado. Segundo, porque as ideias de Benjamin dão conta do poder do mito e do sonho na apreensão cultural de uma nova tecnologia. Mas também faz um alerta para a possibilidade de haver uma conversão da tecnologia em fetiche. Um alerta, eu diria, visionário. A tecnologia digital já é um fetiche. Transformada assim pela cultura de produto, consequência da cultura da imagem e do consumo excessivos. Esse sistema só pôde existir por causa de uma lógica financeira que ganhou força no modo fordista de trabalho, retratado nos dois filmes discutidos nessa dissertação

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(Metropolis/1927 e Tempos Modernos/1936). Já Cosmopolis (2012) é o resultado daquela política de trabalho, que eliminou a frase “tempo é dinheiro” para “tempo é produto” (de consumo), como bem dito no filme de Cronenberg pela personagem Vija.

2.1.4. – Os filmes: Cosmopolis

O filme de David Cronenberg, Cosmopolis (CAN, FRA, POR, ITA, 2012), é a síntese dos tempos atuais. Cosmopolis é o contraponto de outros dois filmes: Metrópolis (ALE, 1927) e Tempos Modernos (EUA, 1936). Estes dois representam o período entre guerras, do auge da crítica à decadência da Modernidade, momento em que Hanna Arendt, por exemplo, identificou uma crise na sociedade, com o esfacelamento da tradição (ARENDT, 2009). Fato que culminou na sociedade contemporânea de consumo da chamada cultura pop. E toda a consequência da exploração capitalista e seu método de trabalho fordista vivem outra fase na era da internet. Tempos alternativos e concomitantes foram criados, e tudo isso está no filme de Cronenberg, na figura do personagem Eric e das tomadas de câmera do diretor, dentro e fora da limusine. O conceito de Arendt é fundamental para se entender a crise da modernidade. Ela sofreu os horrores da segunda guerra e do nazismo, fato que influênciou sua maneira de enxergar a humanidade depois disso. Esse mundo destruído apareceu em Metropolis e em Tempos Modernos. Filmes que também dão revelações sobre a nossa posterior entrada para as fases seguintes após a modernidade e para a origem da cultura pop. A resposta para o gráfico da Modernidade: capital que visa lucro, mais consumo; que resulta em produto, mais mercadoria; que resulta no que podemos chamar hoje de Cultura Pop. A cultura pop é uma cultura de produto. Na era da internet, ela é compartilhada. Vivemos em outro tipo de multidão. Esta é conectada, midiatizada. O novo espaço é virtual e individual. É um estar só em meio a uma massa atarefada. Mas uma massa que não olhamos nos olhos. A tecnologia em Cosmopolis contribui para esse clima de assepsia da maioria das personagens que Cronenberg faz questão de reproduzir. Em Metropolis a sociedade não vive nesta era de cultura pop. Mas a velocidade está lá. Os números passando pelas telas do escritório de Fredersen (mas ele tem vários funcionários anotando em papeis o que os números dizem). Já em Cosmópolis os números passam pelos dedos de Eric. Ele digita no próprio braço da poltrona inteligente. Uma coisa na mão direita. Na mão esquerda, digita outros números. Em um lado está comandando bilhões de dólares. Em outro, sua vida social. Seu

57 escritório saiu do alto da Nova Torre de Babel (em Metrópolis) para uma limusine hightech em Cosmópolis.

Somos consumidores de cultura, num mundo em profunda crise pelo esfacelamento da tradição (ARENDT, 2009). Os indivíduos tornaram-se mais isolados, ao mesmo tempo em que estão conectados com todo o mundo. Suas ações, que antes eram vistas apenas em sua comunidade local, podem alcançar milhões: basta um clique. A velocidade com que um novo-novo substitui o novo impede que nos preocupemos em apreender o velho, o tal “tradicional” de Arendt (ARENDT, 2009). Essa preocupação em “passar o bastão”, “coisa de pai para filho”, não faz mais sentido porque caiu a tradição oral. O futuro está no agora. Tudo é instantâneo e superficial. O excesso de informação impede a reflexão. Sem tempo para analisar qualquer coisa, a informação preenche a camada da superficialidade. As pessoas consomem informação rápida, que, como tal, é rasa. A tradição oral ruiu. Agora tudo é imagem. Que circula sem controle pela rede mundial. Toda a sociedade atual está organizada no espaço midiático. Nesse sistema, o novo precisa estar em constante renovação. Ou seja, tudo tem pouco tempo de vida, porque o mercado exige atualização do novo, um novo do novo (reciclagem da informação). O público perfeito para esse consumismo contemporâneo é o jovem. Assim é construída a nossa realidade. Esse mesmo público absorve a ideia de renovação constante e “compra” essa imagem de juventude eterna. Como na cena em que Eric, 28 anos, conversa com Michael, 22, sobre ser jovem:

- Eu sempre era o mais jovem das pessoas que me rodeavam. Um dia isso começou a mudar. (ERIC, em COSMOPOLIS)

O critério de juventude mudou. Tem a ver com o que é ou não descartável. Eric cultua a tecnologia e os dados. Cultuar é o termo correto. É sua religião. A tecnologia está ao seu serviço porque ele pode comprá-la. Ele cria um mundo próprio em que ele é o centro. O umbigo. Como um matemático, ele procura harmonia em meio à barbárie mercantil. A tecnologia é sua segurança. Humanos não são confiáveis. Máquinas, sim. Porque são feitas de dados. E Nova York, cenário do filme de Cronenberg, é a capital do mundo globalizado. Mas Eric é o bode expiatório do capitalismo quando alguma coisa fica fora da ordem.

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Na Cultura Pop existe a ideia de pertencer ao momento. Na Cultura Popular, o pertencimento se refere à duração. O simbólico desapareceu. O tempo passou a ser uma responsabilidade individual. A tecnologia possibilitou essa realidade. E ela integra de tal maneira o cotidiano, que parece fazer parte do corpo das pessoas. Uma extensão delas. Ouvir música, conversar pela internet usando um smartphone e ainda participar de uma aula, tudo ao mesmo tempo, é criar novas linhas de tempo e participar delas concomitantemente.

Veja aqueles números passando. O dinheiro cria o tempo. Costumava ser o oposto. O relógio acelerou a ascensão do capitalismo.

(VIJA, teórica de Eric, em Cosmopolis)

A tecnologia faz parte do fenômeno comum do mundo, está no vivido, integra esse vivido e o nosso existir. E faz isso de forma profunda. No livro Cosmopolis, de Don DeLillo, se lê:

A sua mão continha a dor de sua vida, tudo dela, emocional e outras, e fechou seus olhos mais uma vez. Isso não era o fim. Ele está morto dentro do cristal do seu relógio, mas ainda vivo no espaço original, esperando o tiro soar. (DELILLO: 2004, p. 209).

O culto a tecnologia em Cosmopolis termina com o possível assassinato (sacrifício?) do seu demônio para acalmar as turbas revoltadas que buscam uma nova Revolução Francesa. A tecnologia (braço direito do sistema financeiro) está sendo usada para ampliar as injustiças sociais. Daí a revolta não ser personalizada contra a tecnologia, mas contra quem a controla, ou a produz/vende.

2.1.5. – Tempos Modernos

Com a Modernidade, a ciência se incorporou à rotina das pessoas com seus inventos que desenharam uma nova forma de viver, sentir e pensar. Um novo sistema de produção e venda de mercadorias surgiu. O conceito do que poderia ser mercadoria se ampliou e continua se ampliando, da mesma forma que o universo não parou de se expandir. Para entender o século XX é obrigatória a leitura de Arendt. Seu conceito de política passa longe de algo que serve para gerenciamento e administração. Para ela

59 existe um caráter instrumental. A política tem “dignidade própria”, segundo análise de Pedro Duarte:

Essa dignidade reside em que é na política que experimentamos o prazer de aparecermos singularmente uns para os outros em ações e palavras dentro do âmbito público. Esse conceito de política impede que tratemos os cidadãos como simples consumidores. Nesse sentido, a política não é o que garante nossa liberdade privada, mas é, ela mesma, já uma experiência de liberdade.

(SILVA, 2010, p 26-27)

Arendt mostrou a complexidade da natureza humana e destacou a “banalidade do mal”, que surge “à medida que se encara com naturalidade aberrações como a tortura, o sofrimento e a prática do mal”. (SILVA, 2010, p. 30). E de acordo com Arendt, o fim de uma tradição não quer dizer que os conceitos tradicionais tenham perdido seu poder sobre as mentes dos homens. Ela afirma que nem as consequências do século XX nem a rebelião do século XIX contra a tradição provocaram a quebra da nossa história:

Esta brotou de um caos de perplexidades de massa no palco político e de opiniões de massa na esfera espiritual que os movimentos totalitários, através do terror e da ideologia, cristalizaram em uma nova forma de governo e dominação.

(ARENDT, 2009, p. 53-54)

Em Tempos Modernos, (1936), o personagem Carlitos vive as consequências da industrialização, da mecanização nas fábricas, do desemprego gerado pela crise econômica. O mal é o capitalista. Sua trajetória se confunde com a da Garota (vivida por Paulette Goddard), órfã, depois que seu pai morre num protesto de trabalhadores que pediam por emprego. O objetivo de Carlitos, depois que conhece a Garota, é arrumar um emprego, comprar uma casa, ter uma família tradicional, uma vida como era a vida (ou como deveria ser a vida) antes da Revolução Industrial. Chaplin dirigiu Tempos Modernos para criticar as consequências da Modernidade. Nesse contexto, voltou sua sátira para a tecnologia, que estava a serviço apenas do capitalista, do dono da fábrica. Por isso, o presidente da Steel Corporation é mal visto. Por isso é o único que fala. A tecnologia desumaniza e acaba com a magia. Ouvir a voz de Carlitos é matar a inocência da personagem (pelo menos era esse o motivo alegado por Chaplin ao negar usar o som em seus filmes). A busca pelo capital sem fim nos tira a possibilidade de desfrutar a própria vida. Aceleramos o tempo e deixamos de reparar nas coisas, com aquele olhar que só Carlitos tem no cinema. Ele vê a magia do mundo. Mas Carlitos está com fome. Ele quer trabalhar. Uma greve, que aconteceu no filme, só atrapalharia os objetivos de Carlitos

60 ganhar dinheiro e matar sua fome. Durante a greve há uma revolta. A polícia é violenta e Carlitos, no meio da confusão, é levado para a cadeia novamente (ao sair da cadeia dessa vez, vem a sequência do restaurante e do final do filme).

Tempos Modernos não passa, portanto, de uma série de situações cômicas cujo herói é Carlitos, e cujo tema comum é a vida industrial e suas consequências.

(BAZIN: 2000, 24)

Bazin lembra que o diretor era mestre em usar a técnica cômica de desconstruir o uso tradicional de um objeto para outro uso, criando assim suas gags mais famosas (a cena em que ele faz os pães, enfiados em garfos, sapatearem, no filme A , de 1925, por exemplo). Em Tempos Modernos há um resíduo dessa técnica, de acordo com Bazin. Uma cena clara é quando Carlitos voltou a trabalhar na fábrica. Está ajudando o contramestre a consertar as máquinas, que ficaram muito tempo paradas. Carlitos largou um borrifador numa delas que, quando foi ligada, esmagou o borrifador. Nesse instante, o contramestre olha estarrecido para Carlitos. Mas este sugere, com um gesto, que o objeto tenha outro uso, que vire uma pá: “Mas o filme inteiro é uma transposição desse conflito do homem com as coisas por ele criadas, levado, por meio da máquina, à escala da história e da sociedade.” (BAZIN: 2000, 25-26) De fato, a relação de Carlitos com a tecnologia mostra esse conflito cômico entre o homem e as coisas criadas por ele. O Vagabundo não se insere no sistema de trabalho fordista. Também tem um embate cômico com a máquina de alimentar operários. Cena cujo objetivo é mostrar a inutilidade de alguns inventos tecnológicos. Ou seja, só porque é moderno não quer dizer que tenha significado, um propósito. Para ele, as coisas têm essência. Vacas dão leite. Árvores dão frutas. A natureza, portanto, provém a humanidade. As máquinas não podem alimentar um ser humano, porque um ser humano pode fazer isso sozinho. Somente um capitalista ambicioso iria querer obrigar seus funcionários a comer rapidamente para seguir trabalhando. Hoje essa máquina evoluiu para outra coisa. Enquanto comemos (ainda somos nós que enfiamos o garfo com comida em nossa boca), estamos olhando notícias, compartilhando informações em redes sociais ou respondendo emails - pessoais ou de trabalho. Não estamos “parados”. Estamos multiplicando nosso tempo. Conseguiram, décadas depois, inventar máquinas mais funcionais e práticas. Exatamente a reclamação do presidente da Steel Corp. em Tempos Modernos. Por isso ele não adquiriu a máquina que alimenta funcionários. Mas

61 ainda havia a obsessão por more speed. Isso era mais do que uma ordem para aumentar a velocidade da fábrica. Era um tipo de comportamento que Chaplin estava querendo evitar, ou pelo menos queria alertar a todos sobre isso: a humanidade caminhava para uma velocidade que ela mesma, eventualmente, não conseguiria mais alcançar. Mais velocidade era, em Tempos Modernos, mais lucro. Tempo era dinheiro. Tudo isso privilegiava a máquina, os números, os resultados e levavam menos em conta o caráter humano. Chaplin não viu a que ponto chegamos. Mas intuiu. Hoje são agendas eletrônicas, despertadores digitais, redes sociais. Não somos mais as engrenagens ditas por Chaplin. Agora somos chips, ou apenas bites, de um software gigante que controla uma sociedade acelerada e contemporânea.

Tempos Modernos desponta, bem mais que as grandes máquinas decorativas nascidas do expressionismo alemão (...), como a única fábula moderna à altura do desvario do homem do século XX diante da mecânica social e técnica. (BAZIN, 2006)

Com mais ou menos um minuto e 57 segundos de filme, vemos a porta onde está escrito: presidente da Steel Corporation. E o grande capitalista está montando um quebra-cabeças. Pega um jornal. Tem uma expressão tranquila e satisfeita. A secretária chega e deixa um copo com água. Ele vai tomar um antiácido (pelo menos é o que parece). Ele liga o videofone e observa todos os setores da fábrica. Então, chama um operário forte, sem camisa, responsável por aumentar a velocidade das máquinas. E lhe dá ordens técnicas. Chaplin dá a entender que é isso o que o presidente faz o dia todo. Sem nenhum critério claro, dá ordens para aumentar a velocidade das máquinas em alguns setores da fábrica e depois continua lendo jornal e brincando com seu quebra cabeças. Quando Carlitos sai do hospital após seu surto na fábrica já transcorreram mais ou menos 18 minutos e 23 segundos de filme. Na sequência, vê uma série de imagens em fusões. São cenas da cidade grande, britadeiras, carros fazendo curvas em alta velocidade, bondes misturados a carros e muita gente nas ruas. Na sequência vemos Carlitos, passando por uma fábrica fechada. Ele para numa esquina e observa. Um caminhão passa (plano aberto). Vemos uma bandeira na caçamba. Ela está pendente em cima de uma das madeiras e cai na rua. A câmera está posicionada no veículo e o enquadramento pega a bandeira, um pedaço da madeira onde ela está, a rua e parte das pessoas nas calçadas como cenário ao fundo. Quando a bandeira cai, vemos Carlitos no canto direito superior da tela. Ele vê o objeto no chão e rapidamente se 62 prontifica a chamar pelo motorista. Ele pega a bandeira e o vemos ficar cada vez mais longe do caminhão, que se afasta sem ouvir os apelos do Vagabundo. Ele agita a bandeira, parado no meio da rua. A câmera fecha em Carlitos, que está gritando para o caminhão parar. Atrás dele surge, à direita, um grupo de operários manifestantes. Todos andando em bloco. O primeiro da direita (sempre do ponto de vista de quem vê a tela) está com um cartaz escrito Unite (unidos). Carlitos começa a caminhar sincronizado com os manifestantes – ele não percebeu que estão todos atrás dele. A cena agora parece um ato comunista de trabalhadores pedindo melhores condições de vida e criticando o capitalismo. O próprio Chaplin já foi acusado pelo macartismo paranoico americano de ser comunista. Podia ser uma piada interna. Talvez Chaplin brincasse com isso. Talvez ele dissesse: “eu não defendo o operário contra o patrão, eu defendo o ser humano contra a desumanização”. Esta gag da bandeira (que obviamente é vermelha) baseia-se na técnica da comédia de erros. O personagem se instala numa situação cômica porque ele está fazendo algo que é interpretado de outra forma sem seu conhecimento. A polícia aparece para reprimir violentamente o protesto. Carlitos está na frente, como se fora o líder. Todos correm e ele se esconde no bueiro. Quando surge, a polícia o pega. Ele é preso. A polícia afirma que ele é o líder. Mas ele nem sabia o que estava acontecendo e só queria devolver a bandeira vermelha. Esta cena é representativa de tudo o que Carlitos fez em sua trajetória no cinema, especialmente neste filme. Carlitos não está de lado nenhum. Apenas do dele. Mas ao vermos isso, vemos o lado dos outros. A ingenuidade do Vagabundo é um despertar para nossa própria ingenuidade, nossa própria inumanidade. Outros manifestantes daquela cena da bandeira carregavam cartazes em que se lia Liberdade. Operários se sentiam presos. É o recado de Chaplin. Em Tempos Modernos está bem claro que a escravidão do operário é provocada pelo ser humano, não pelas máquinas. A revolução de Carlitos é no próprio homem. Sorrir é sua revolução. Não desistir. É transformar borrifadores de óleo em pás, ou em sprays para espirrar nas pessoas. Somos humanos, não máquinas. A lógica invertida do capitalismo: uma pessoa tem um sofá e um gato. Ela pensa em se livrar do gato porque este está arranhando o sofá. Para Chaplin um produto não pode ser mais importante do que um ser vivo: livre-se do sofá, não do gato. Carlitos não se encaixa no mundo moderno. Ele é demasiado humano. Por consequência, Carlitos é inumano. Sua ingenuidade, quase infantil, contrasta com a dureza dos tempos modernos. A crise econômica de 29 destruiu empregos. As novas máquinas prometiam substituir velhas formas de produzir mercadorias. O novo invadiu o

63 mundo do velho rapidamente. O velho, quando não se adapta, é marginalizado. É substituído porque a marcha do capitalismo não pode parar. É a “evolução”. É o progresso. “O sentido da política é a liberdade” (ARENDT, 1999, p. 38). O que quer dizer que a finalidade da política é a própria política. Essa crise na tradição e na autoridade teve interferência direta na forma como as massas eram educadas. Por isso, também, o pensamento de Arendt é usado em teorias de educação. Ela viu uma crise que atingiu todas as esferas do sistema social. Culpa dos regimes totalitários. Segundo Arendt, houve uma perda de senso comum que trouxe uma falta de confiança que nos circundou, e foi realçada pelos resultados da ciência contemporânea.

O progresso da Ciência implicou numa linguagem científica cuja formalização crescente esvaziou de sentido a nossa percepção concreta (...) e diluiu-se a tradicional distinção entre natureza e cultura. E o homem, quando se confronta com a realidade objetiva, não encontra mais a natureza, mas se desencontra consigo mesmo (...). (LAFER, in ARENDT, 2009, p. 12)

Carlitos é o que restou. Sua cena (imagem 002) indo embora na direção do pôr do sol, de costas para a câmera, é emblemática. Como quem diz: “Eu vou para o tempo do sol, e vocês?”

(imagem 002) Tempos Modernos (EUA, 1936), de Charles Chaplin: cena final

2.1.6. – Metropolis

Voltamos alguns anos. 1927, ano de lançamento em Berlim. Obra-prima de Fritz Lang. Alguns takes depois da abertura vemos a cidade de Metrópolis A arquitetura ainda 64

é expressionista. Uma fusão nos leva para as máquinas que sustentam a cidade. A montagem ainda mantém a ideia de sobe e desce. Vemos três partes cilíndricas da máquina, subindo e descendo, não ao mesmo tempo. O do meio desce. E os outros sobem. E vice versa. Outros efeitos de fusão mostram outras partes das máquinas. A próxima tem uma espécie de roda gigante à esquerda, ao fundo (imagem 003). Se olharmos a imagem congelada, parece que vemos um quadro de figuras geométricas. Para Cézanne (1839-1906), a pintura deveria tratar as formas da natureza como se fossem cones, esferas e cilindros. As máquinas não são obras da natureza, foram forjadas pelas mãos do homem. Cézanne é considerado o pai dos cubistas. Cubistas tentavam representar objetos em três dimensões.

(003 – engrenagens em Metropolis)

E esse take (003), parece mesmo uma obra do Futurismo. Porque exalta o progresso, propõe uma revolução pela tecnologia. Valoriza a velocidade e a energia. Lembra, pelas linhas e escolhas, o jeito de pintar de Giacomo Balla (1871-1958), como na imagem 004.

(004 - Abstract Speed + Sound) A pintura Abstract Speed + Sound (1914), tem uns traços, riscos, semelhantes aos do take 003. Não vejo as peças de máquinas, como no filme Metropolis, mas vejo as linhas geométricas com um mesmo desenho. Ao todo, na abertura, são oito takes de partes de máquinas, até que apareça o relógio fordista. O ponteiro dos segundos se move, enquanto mais takes de partes da máquina surgem na tela. A montagem busca criar uma expectativa pelo fim de um turno.

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Os dois ponteiros principais estão quase no 10 (o relógio vai de 1-10, sendo o 10 no alto e o 5 embaixo). E os segundos se aproximam também do 10 (imagem 005).

(imagem 006) (imagem 005)

Há um relógio menor, acima deste, que vai de 1-24. Provavelmente indicando as horas do dia. O tempo do sol é controlado, então, pela hora da fábrica, o tempo fordista. Quando os três ponteiros se encontram no 10, soam os apitos da fábrica. A música acompanha a criação de expectativa. O letreiro do filme indica: Schicht - troca de turno. E aí vemos outro take que parece uma pintura. São os funcionários (take 006) em troca de turno, cabisbaixos, caminhando lentamente em fila ordenada, como gado. A tecnologia serve como instrumento de controle. Toda a cidade é controlada por Joh Fredersen. Sua sala de trabalho possui câmeras que lhe mostram tudo o que acontece em seu território. É um Big Brother , como no livro 1984, de George Orwell. A tecnologia tem o papel de serviço de segurança, de “olhos” para seu dono e faz um papel repressor para os trabalhadores. O melhor exemplo é a máquina-Moloch. Fredersen é o que mais simpatiza com a tecnologia. Mas sempre lhe vê atributos para os mais variados fins (todos os fins com o mesmo objetivo de controle e manutenção do seu próprio poder). Desde provocar e manipular uma revolta entre os trabalhadores, a destruir a imagem da líder operária. Mas não só para isso. A tecnologia está a serviço dos seus iguais. Ou seja, dos filhos dos ricos de Metrópolis. Já Rotwang é o cultuador, o “religioso” da tecnologia. Ou, em outras palavras, o bruxo tecnicista.

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(Metropolis, 1927, cena de Rotwang exibindo sua mão mecânica)

- Você acha que perder a mão foi um preço muito alto a se pagar para recriar Hel? – diz Rotwang para Fredersen

(Metropolis, 1927, cena de Rotwang apresentando sua androide a Fredersen)

- Quer vê-la? – pergunta Rotwang, que na sequência mostra a robô que ele criou para ser uma réplica de Hel, sua antiga amada, que virou esposa de Fredersen depois.

A mão de Rotwang e a sala de trabalho de Fredersen representam a relação do filme com a tecnologia. Ou seja, a tecnologia serve ao coletivo. E quem decide como deve ser usado é seu líder. O criador da tecnologia deve ter seus instintos pessoais domados. Caso contrário, o cientista arruinará o mundo (por vingança, ambição ou qualquer outro sentimento alheio ao progresso coletivo).

- Não valeu realmente a pena perder a mão para construir o ser do futuro, o homem-máquina? – pergunta Rotwang, exultante para Fredersen.

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(Metropolis, 1927, cena de Rotwang e sua mão mecânica)

A resposta, no final de Metropolis, é não. Aqui o cientista Rotwang merece uma atenção especial. Quando ele discute com Fredersen, a câmera dá destaque (tanto no plano fechado quando no plano aberto) para a mão mecânica do cientista. Ele próprio balança o braço mecânico quando fala com o empresário. Vejamos: Fredersen entra no castelo de Rotwang. Descobre um busto gigante de sua mulher, Hel, na sala do cientista. Rotwang chega. Fica irritado com a invasão do empresário. Ele discute com Joh Fredersen. Quando o cientista mostra sua indignação, a câmera dá um close lateral no rosto de Joh, com a mão esquerda de Rotwang aberta, vibrando de ódio. É a mão humana dele. O empresário pede que o cientista esqueça o que houve entre eles e Hel. Nesse momento o cientista diz que só uma vez na vida esqueceu algo: que Hel era mulher e que Joh era um homem. Close no rosto de Joh, que expressa sofrimento. Ele diz: “Deixe os mortos em paz, Rotwang... Ela está morta para nós dois...” Close no rosto do cientista. Ele diz um não veemente. E dá uma risada insana. O próximo plano tem os dois, Freder na esquerda, Rotwang na direita, plano aberto. O braço direito de Rotwang esticado. É o braço mecânico. Ele diz: “Para mim ela não está morta, Joh Fredersen – para mim ela está viva!”. Nesse instante, Joh se dá conta da mão robótica de Rotwang. Ele, enlouquecido, exibe sua mão com orgulho. “Você acha que a perda de uma mão é um preço muito grande para recriar Hel?”, pergunta ele. Rotwang mostra, então, sua androide para Joh. Nesse momento o cientista faz a pergunta-conceito de quase toda ficção científica: “Não vale a pena perder a mão para criar o ser humano do futuro, o homem-máquina?” Ele completa o raciocínio dizendo que ninguém será mais capaz de diferenciar o homem-máquina de um mortal. 68

Rotwang é na história o vilão, o cientista louco. O símbolo do cientificismo que busca o conhecimento a qualquer preço. Não existe ética, o que importa é o fim, não os meios. Não está, portanto, a serviço da humanidade, mas de seus caprichos pessoais. Em nome de uma paixão frustrada ele não se importa de perder a mão para inventar um androide, uma mulher-máquina que substitua sua amada. Os capitalistas como Joh Fredersen davam a mesma desculpa para explorar os operários: o que são algumas horas a mais de trabalho, ou receber pouco, para o progresso de toda a sociedade? É preciso destruir um pouco para construir muito. Ponto de vista que pode justificar uma série de atrocidades. Tudo depende de a quem nos referimos quando chamamos “sociedade”: se toda ela, ou se uma parte privilegiada.

2.2 - A decadência da Modernidade: Tempos Modernos e sua crise das relações de trabalho e da tecnologia

Charles Baudelaire (1821-1867) incorporou a realidade grotesca à linguagem sublimada do romantismo. A história contada por Baudelaire em seus poemas retratam discursos e práticas de uma Paris do final do século XIX. A modernidade é inevitável e inescapável. A sociedade ainda é coletiva, mas as bases para a criação do individualismo, da fragmentação social – evidente e marcante em Cosmopolis (2012) - estavam em seus versos. Baudelaire viu o acúmulo de pessoas nas grandes cidades, as chaminés das indústrias subindo, chegando mais perto das nuvens:

Quadros Parisienses

(...) É sempre doce ver que à tarde a bruma vela A estrela pelo azul e a lâmpada à janela, Os rios de carvão irem ao firmamento (...)

(BAUDELAIRE: 2005, 96)

Velhos, moradores de rua, mendigos, pobres, crianças abandonadas, prostitutas, todo tipo de marginalidade ou de desvalidos das esquinas parisienses fazem parte do olhar de Baudelaire. O poeta e ensaísta francês era vanguardista sem pertencer a nenhum grupo. Movimentos que surgiram logo depois, em fins do século XIX e início do século XX. Além do Futurismo (1909), com sua teoria da velocidade das máquinas, do progresso,

69 sua valorização das guerras como processo que renova a sociedade, outro movimento em especial interessa a essa reflexão: o Expressionismo. Em particular, o alemão. O cinema expressionista alemão participa de um vasto movimento estético que engloba artes plásticas, literatura, artes do espetáculo, arquitetura, entre 1907 e 1926. Opõe-se radicalmente ao realismo e à verossimilhança: é um cinema de ‘visões’, de ‘alucinações’, de criação de universo por exacerbação das formas. A influência dos pintores e dos arquitetos atravessa os filmes expressionistas, revelada no recurso a cenários irrealistas ou monumentais [como em Metropolis] (...).

(VANOYE: 2005, 33)

O proletário de Carlitos é um homem que ainda tem fome. E o homem com fome está um pouco abaixo da tomada de consciência política (BARTHES, 2001). Por isso, para Carlitos, a greve é uma catástrofe. Porque o impede de ganhar dinheiro e de poder comprar comida.

Carlitos atribui sempre ao proletário as características do pobre: daí a força humana de suas representações, mas também sua ambiguidade política.

(BARTHES: 2001, 31).

O olhar de Carlitos não coincide com o do trabalhador explorado. Apenas no momento em que estão sob as vistas da polícia. Quando apanham juntos. Barthes cita o “homem antes da revolução” como sendo o tipo de Carlitos. Barthes lembra que Brecht caminha para o mesmo lado. O de uma arte socialista que considera o homem como um ser solitário, ainda cego, no momento em que, pelo excesso ‘natural’ de suas misérias, se abre à luz da Revolução (BARTHES, 2001). A cegueira de Carlitos aparece de tal forma que possibilita o público ver o que o personagem não vê. E o filme cumpre, assim, sua missão de introduzir a crítica, de introduzir os preceitos da revolução. Ver alguém que não vê é a melhor maneira de ver intensamente aquilo que o personagem não vê. Segundo Barthes, a anarquia de Carlitos representa, em arte, a forma mais eficaz de revolução.

Tempos Modernos desponta, bem mais que as grandes máquinas decorativas nascidas do expressionismo alemão (...), como a única fábula moderna à altura do desvario do homem do século XX diante da mecânica social e técnica. (BAZIN, 2006)

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A revolução de Carlitos não é contra as máquinas, como acontece com os trabalhadores de Metropolis. É verdade que são induzidos a culpar as máquinas por culpa de outra máquina, a androide Maria. Mas em Tempos Modernos está bem claro que o culpado pela escravidão do operário é o ser humano, especificamente o que veste a roupa do capitalista insensível, preocupado apenas com seu lucro. Sua revolução é pegar uma bandeira vermelha (sabemos que é vermelha) caída no chão e erguê-la, para chamar a atenção de quem a perdeu. Ao mesmo tempo, policiais prenderam Carlitos como líder comunista. A sincronia é impecável: o grupo de operários que protesta nas ruas entra no quadro no exato instante em que Carlitos agita a bandeira, caminhando e gritando pelo motorista que perdeu a tal bandeira vermelha. É possível ver os olhares de todos os operários assustados de repente. Não se sabe o que é, mas já se imagina. Eles saem correndo na direção oposta à câmera. Carlitos também se assusta. Tiros. A polícia aparece em cena. Carlitos é pego e preso como líder comunista. A gag perfeita. Sua ingenuidade, quase infantil, contrasta com a dureza dos tempos modernos. Nesse mundo, não há emprego, ou quando há, é estressante, fisicamente exigente, pouco recompensador. A crise econômica de 29 destruiu empregos. As novas máquinas prometem substituir velhas formas de produzir mercadorias, talvez, com isso, tirar empregos. O novo invade o mundo do velho rapidamente. O velho, quando não se adapta, é marginalizado. É substituído porque a marcha do capitalismo não pode parar. É o progresso inumano. Após a sequência da bandeira, com a prisão de Carlitos, a Menina é apresentada. Ela “se recusa a passar fome”, como diz o letreiro do filme. Vemos sua impetuosidade para roubar bananas para seus irmãos, para ela e para o pai, vítima da crise econômica. Seu pai não trabalha. As crianças passam fome. O que a tecnologia pode fazer para resolver isso? Ao mesmo tempo vemos outra cena que demonstra a “prisão” vivida pelas pessoas: quando Carlitos está preso após o incidente da bandeira, vemos o momento de comer. Os prisioneiros caminham em fila, todos no mesmo passo mecânico. Muito parecidos com os operários de Metropolis, que caminham assim, mas cabisbaixos, quando vão trabalhar ou voltar para casa. E nos remete novamente para a cena inicial de Tempos Modernos, quando temos a imagem dos animais em fila comparada com a imagem das pessoas saindo do metrô. Carlitos é o único que sai da harmonia dos presos. Ele senta na hora errada e não segue os mesmos movimentos mecânicos dos outros. Não faz isso porque não entende. Ele não foi ensinado a saber como agir porque ainda é demasiado inumano (LYOTARD, 1990). Suas reações não são treinadas, são puras, honestas verdadeiras, sem convenções sociais. É nesta sequência em que há um

71 traficante na prisão, carregando cocaína com ele (incrível, mas é isso mesmo). Sabendo que será pego, o bandido coloca o pó no saleiro. Carlitos acha que é sal e joga em sua comida. Ao consumir uma droga que na época era de gente rica, Carlitos sente-se um super-homem. Capaz de impedir uma fuga de prisioneiros, bater em todo mundo e salvar os policiais. A cocaína lhe deu a coragem e a força para enfrentar tudo isso. Parece o espinafre do personagem Popeye. Enquanto isso, a Menina perde seu pai numa manifestação. Ele levou um tiro de um policial. As crianças serão levadas para um orfanato, algo que Charles Chaplin conhece bem do seu tempo de garoto na Inglaterra. Seus irmãos são levados mas a Menina foge. Faminta, ela rouba um pão. Ela é pega, mas esbarra em Carlitos (que já havia saído da cadeia, mas não conseguia se encaixar em nenhum emprego, mesmo tendo uma carta de recomendação do delegado). Ele assume a culpa para poder voltar para a cadeia (único lugar seguro para ele). Uma senhora denuncia que a Menina havia roubado. Então, ela é presa também. Assim, os dois se encontram novamente no camburão da polícia. Eles fogem e passam a andar juntos, se protegendo. Um encontro casual, de que sofreram com injustiças e fome. A linha de montagem não precisa de pessoas, precisa de peças que façam parte harmônica com as engrenagens das máquinas. Se em Matrix (1999) os humanos são pilhas para as máquinas, em Tempos Modernos são peças, substituíveis. Apenas isso. Em Metropolis a relação é parecida, mas a solução é de união com o dono dessas máquinas, em vez de uma revolução de fato. Freder (o filho), une a mão de seu pai, Joh Fredersen, à mão dos trabalhadores (representados pela figura de Grot). Um aperto de mãos resolveu a crise. Era possível se esperar, ao menos, algum tipo de punição a Joh Fredersen. Mas ele continuou no poder apesar de tudo o que fez (pedir que a robô assumisse a aparência de Maria para incitar uma rebelião, para que esta fosse prontamente reprimida, além de ser responsável por anos de exploração-escravidão de seus operários). Em Tempos Modernos Carlitos não quer mudar o status quo. Porque sabe que não pode e porque não tem ideia de como fazer isso. Carlitos não é político. Só quer matar sua fome, como diz Barthes. Mas aí é que está sua revolução. Ele faz com todos vejam a desumanidade por trás do sistema fordista, sistema que alimenta o capitalismo dessa modernidade, existente no período entre as duas grandes guerras. Sistema que esconde sua decadência com um progresso científico como consequência de seu avanço. A ciência a serviço do homem.

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2.3 - A decadência da Modernidade: Metropolis e o papel da tecnologia no conflito entre trabalhadores e patrão

Os operários descem as escadas para as catacumbas. Eles vão encontrar Maria e ouvir um de seus discursos. Eles caminham com o pescoço duro, esticado para frente, olhar às vezes cabisbaixo: fato que irritou profundamente Kracauer. Ele viu um ornamento excessivo aí. Por que eles andariam assim para ver Maria? Suppia (SUPPIA, 2011) viu a supressão do desejo. Por isso ainda caminhavam como zumbis. Mas a cena começa após Freder – quase exausto – ouvir o apito para a troca de turno. Então, ele acompanha os trabalhadores para as catacumbas. Seu corpo está esgotado. O que justifica a postura de zumbi de todos. E serve de contraste dramático expressionista para quando a Maria surgir. Maria é a luz. A profetisa. Suas histórias sobre a Torre de Babel eram metáfora para a Nova Torre de Babel em Metrópolis. Se a ideia original de Fredersen era criar uma cidade que alcançasse as estrelas (mais perto do céu, de Deus), ele alcançou esse desejo. Mas muitas vidas foram exploradas. O que gerou insatisfação. Revolta. Ódio. O progresso tecnológico que nos levaria ao divino só trouxe sofrimento para a maioria. Maria vê que o projeto inicial de alcançar Deus é bom. Mas a forma de fazê-lo não. Daí sua premissa ingênua da abertura do filme: o mediador entre a cabeça e as mãos deve ser o coração. É o que dá sentido a todo o enredo. E também é o que nos leva para a sua invevitável conclusão. Com esta epígrafe, a roteirista Thea von Harbou limitou a obra-prima de Lang. E como o próprio diretor permitiu que o filme se guiasse por uma frase, ele é ainda mais culpado do que ela. Um dos problemas da epígrafe é que não permite outras interpretações. O mediador é o herói Freder (o coração). A cabeça é seu pai, Joh Fredersen. As mãos, um trabalhador, no caso, Grot. Ninguém é responsabilizado por nada do que fez, ninguém assume culpa por nada. Ela não questiona a necessidade de existir mãos e cabeças, ou melhor, uma sociedade dividida. Por que trabalhadores não podem aprender a criar? Todos no fim do filme são anistiados, perdoados. Os problemas são zerados e a partir do aperto de mão, todos ficam amigos e uma nova Metrópolis será construída. Há problemas maiores, mais profundos que poderiam ser mais discutidos, mas a frase inicial do filme não permite isso. Harbou “amarrou” o roteiro. E impediu que houvesse uma revolução. Ou seja, os trabalhadores continuarão sendo trabalhadores e Fredersen vai continuar sendo líder, o dono da cidade. A diferença é que haverá mais humanidade, mais fraternidade e integração entre os trabalhadores e a cidade de cima. Adolf Hitler explorou essa imagem

73 de cabeça-mediador-mãos. Não à toa, Thea Von Harbou se integrou ao grupo de Hitler quando este assumiu o poder na Alemanha nazista. Mas vale uma consideração aqui. Ela também escreveu – sempre junto a Lang – o roteiro de M, o vampiro de Dusseldorf (1931). Neste filme, um homem sequestra e mata crianças em Dusseldorf, na Alemanha. Ele não deixa pistas e um clima de tensão cresce entre as pessoas, que ficam paranoicas, suspeitando de qualquer um. E, quando isso acontecia, as pessoas perdiam o controle. A ponto de agredir, quase linchar. Quando havia suspeita, não se levava o sujeito para a polícia para ser investigado. Culpa do desespero e da ineficiência da própria polícia. As pessoas perderam o senso de ordem. Quando culpamos alguém sem provas, estamos culpando, na verdade, nossos inimigos imaginários. Aquelas pessoas das quais não gostamos por qualquer motivo fútil ou preconceituoso: o homem que cheira mal, ou a mulher que sai com vários homens, ou o judeu. Em M, Fritz Lang e Harbou anteviram esse clima de tensão, de criação de uma cultura do ódio. Perceberam que a Alemanha caminhava para uma descrença nas instituições e uma valorização da ideia de “justiça com as próprias mãos”. A obra é uma metáfora do que se passava na Alemanha. Não dá para fazer especulações, mas no ano seguinte ao lançamento do filme, Harbou e Lang se separaram. Em 1932 ela entrou para o partido nazista. E em 33 eles se divorciaram. No ano seguinte, Lang saiu do país e foi para os EUA. A influência de Harbou no roteiro de Metropolis é mais clara e definitiva do que em M. Mas podemos concluir que há nela uma tendência a incentivar a obediência ao poder das autoridades, ou, pelo menos, uma tentativa de manutenção do status quo. Desde que esse poder estabelecido seja o do “cérebro”.

A epígrafe: “O mediador entre a cabeça e as mãos deve ser o coração” não considera a personagem Maria como mediadora, porque ela representa a esperança (na forma da religião) dos trabalhadores. Ela é que “vê” a chegada de um “escolhido”, o tal mediador. Ela é João Batista que encontra Jesus. Ela é quem acalma os operários. Que os impede de se rebelar. Mas no filme sua figura é usada para manipular a população de baixo. Daí a importância do robô criado por Rotwang. Um robô malvado, à imagem de Maria. Uma espécie de anticristo, um anjo do mal, que enganaria as pessoas de boa fé. Faria com que todos perdessem a confiança no único ser em quem acreditavam. É o sonho de Lúcifer: criar um ser que se passaria por Jesus ressucitado, e que levaria todos à guerra. Joh Fredersen não é um tirano. É o criador e presidente de um governo autoritário. Porque em Metrópolis há leis, draconianas, repressivas, mas há. Leis que

74 foram criadas de acordo com a forma de pensar de seu líder, fato que nos leva a crer que a linha entre governo autoritário e tirano é tênue.

(...) A origem da autoridade no governo autoritário é sempre uma força externa e superior a seu próprio poder; é sempre dessa fonte, dessa força externa que transcende a esfera política, que as autoridades derivam sua ‘autoridade’ – isto é, sua legitimidade – e em relação à qual seu poder pode ser confirmado. (ARENDT, 2009, p. 134)

E qual seria essa força externa de Fredersen? Como ele impõe o medo aos trabalhadores? Ele arquitetou uma cidade quase perfeita, para quem vive nela. Porque para que essa nova Babilônia pudesse existir foi preciso o trabalho quase escravo de uma parcela da população. Os trabalhadores que mantém a cidade viva e pulsante nem podem viver nela. Moram no subterrâneo, na parte de baixo. Por isso no filme, nos cortes, na montagem, há tantas referências imagéticas à parte de cima e de baixo. A força de Joh está em sua capacidade de criar uma estrutura e um sistema que funcionam graças a uma alta tecnologia. A sociedade comum foi convencida a participar disso porque teria emprego, comida, casa e roupas. Tudo em Metrópolis está conectado. Por exemplo. As máquinas sustentam a cidade, mas, ao mesmo tempo, se elas param de funcionar, as águas das barragens se desprendem e invadem a cidade dos operários, o que seria uma tragédia dupla. Portanto, os operários precisam manter as máquinas funcionando não só para a cidade de cima, mas para que suas crianças não morram afogadas e suas casas não sejam alagadas na parte de baixo. É claro que os trabalhadores só descobrem esse detalhe quando já destruíram as máquinas. Mas Grot, o guardião da máquina-coração, sabia e tentou, inicialmente, impedir a ira dos seus companheiros. Mas então, porque os trabalhadores tinham medo de Joh Fredersen? Porque trabalhavam tanto? Não sabemos a origem de Metrópolis, mas o gênio de Joh, aliado a Rotwang, foi o suficiente para convencer milhares de pessoas a construir essa cidade para que outros privilegiados a usufruíssem. Depois de construída, não havia mais o que fazer, a não ser seguir suas regras: trabalhar duro para permitir que os de cima continuassem com sua vida superior.

(007) 75

Primeiro surge a frase: o mediador entre a cabeça e as mãos deve ser o coração. Em seguida, o título, sob um efeito especial de luzes. A fonte das letras lembra a escrita antiga dos gregos (imagem 008). Especialmente as letras R e P. As luzes formam riscos atrás do nome. Os riscos são linhas triangulares que surgem da esquerda para o centro e da direita para o centro. Formando várias pirâmides inclinadas.

(008) Depois disso há uma fusão para o primeiro take. São luzes sobre um conjunto de edifícios (009 e 010) que parecem, juntos, uma gigantesca pirâmide. Atrás dessa “pirâmide”, mais prédios, aparentemente mais altos. As luzes sobem e descem como se iluminassem uma pista de dança dos anos 70 ou os cassinos de Las Vegas. Essa é a primeira imagem de Metrópolis depois de entrar o título do filme.

(009) (010)

A arquitetura ainda é expressionista. Uma nova fusão nos leva para as máquinas que sustentam a cidade. A montagem ainda mantém a ideia de sobe e desce. Vemos três partes cilíndricas da máquina, subindo e descendo, não ao mesmo tempo. O do meio desce. E os outros sobem. E vice versa. Outros efeitos de fusão mostram outras partes das máquinas. Uma delas tem uma espécie de roda gigante à esquerda e ao fundo. E assim somos introduzidos ao mundo novo, do futuro que o Expressionismo imaginava para 2026, em 1926.

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2.4 - O contemporâneo em Cosmopolis: a cultura do produto e o tempo multiplicado

Jameson falava de pós-modernidade. E dizia que era um momento histórico e econômico, mais do que uma manifestação estética, que permitia entender como o filme vê seu tempo, o do capitalismo tardio. As teorias de Jameson se encaixam em Cosmopolis, da mesma forma que a hipermodernidade de Lipovetsky. Jameson dizia que a insistência do futuro dava uma sensação do que é pós-moderno, ou seja, de que o futuro será sempre o futuro, nunca o presente. O personagem Eric não sai de seu presente. O futuro dele está sempre por vir. Jameson diz que somos incapazes de unir passado, presente e futuro.

(...) Hoje, na era do capitalismo corporativo, do assim chamado homem-da- organização, das burocracias empresariais e estatais, da explosão demográfica – hoje não mais existe o velho sujeito individual burguês. (JAMESON: 1985,19)

Eric não é um sujeito. É uma corporação. Nesse território é preciso citar a chefe- teórica (desenvolvedora de teorias) de Eric. Ela lhe dá conselhos que vão além de financeiros. São praticamente filosóficos. Seu nome é Vija Kinsky (Samantha Morton). Talvez seja o momento mais esclarecedor do filme, quando a personagem está na limusine de Eric e lhe dá um longo conselho sobre riqueza. Diz ela:

Toda riqueza se tornou um valor em si mesma. Não há outro tipo de riqueza imensa. O dinheiro perdeu sua qualidade narrativa, assim como a pintura perdeu há um tempo. O dinheiro está falando consigo mesmo.

(VIJA, teórica de Eric em Cosmopolis)

O futuro se tornou chato. Insistente. Persistente. O futuro é faminto, não como Carlitos, mas como a Máquina-Moloch. Essa insistência do futuro em ser presente, em substituir o tempo presente, é o motivo oculto dos protestos em Nova York. Segundo Vija, “é por isso que vai acontecer algo logo, talvez hoje, para corrigir a aceleração do tempo, e tentar trazer a natureza de volta ao normal”. Cosmopolis vê a ciência corresponsável pela crise social. Vija - que parece ser a teórica por excelência que dá base ao discurso hipermoderno do filme - diz:

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Quanto mais visionária a ideia, mais gente fica para trás. Esse é o motivo do protesto: visões de tecnologia e riqueza. A força do capital cibernético que fará as pessoas morrerem na sarjeta. A humanidade finge não ver o horror e a morte que seus esquemas criaram. Esse é um protesto contra o futuro.

(VIJA, teórica de Eric em Cosmopolis)

Evitar que o futuro esmague o presente é o objetivo dos manifestantes. O mundo das telas globais (ou ecrã) se multiplica. Estamos, segundo Lipovetsky e Serroy, no tempo da tela-mundo, do tudo-tela. “A arte digital, a música, o jogo, a publicidade, a conversação, a fotografia, o saber, nada mais escapa às malhas digitais da nova ecranocracia” (LIPOVETSKY; SERROY: 2009, 23). Ou seja, todas as nossas relações, durante toda a nossa vida, serão midiatizadas em diversas interfaces, que vão convergir, se comunicar e se interconectar. Não estamos mais sozinhos. É a midiatização exacerbada, do capitalismo globalizado consumista, que o próprio cinema absorveu, ao usar as chamadas telas globais. Em Cosmopolis as telas, ou ecrãs, conectam Eric aos números, sua obsessão. Tudo o que ele precisa saber está em suas telas, conectadas ao mundo, dentro da sua limusine, seu pequeno mundo próprio, onde pode selecionar as pessoas com quem quer falar. Na rede virtual acontece o mesmo. As pessoas com quem se deseja falar são selecionadas. Outras são bloqueadas. A diferença é que Eric não tem interesse nas pessoas. Ele se interessa somente por suas próprias vontades. Mais uma fala de Vija é fundamental: “A tecnologia é crucial para a civilização. Por quê? Porque nos ajuda a construir nosso destino. Não precisamos de Deus nem de milagres. Mas também pode tomar qualquer direção”. E quando se toma qualquer direção, não se pode prever suas consequências, que podem ser só boas, só ruins, ou as duas coisas. As primeiras grandes descobertas tecnológicas talvez tenham sido o fogo e a roda. A partir daí deixou de ser possível parar essa limusine da tecnologia. Ela não para, se renova, se multiplica, converge e se interconecta cada vez mais rápido, sem mostrar sinal de cansaço, fundando novas Torres de Babel.

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CAPÍTULO 3 – O INUMANO E O TEMPO

3.1 – O inumano em Metrópolis (1927): o progresso tecnológico de Fredersen contra a pacificação de Freder

Metrópolis (1927)

Metropolis (1927): Maria começa a sentir medo (011) Metropolis (1927): Maria sente-se vigiada (012)

Metropolis (1927): alguém surge diante de Maria (013) Metropolis (1927): Maria procura (014)

Metropolis (1927): Maria, na gruta, procura o vilão (015) Metropolis (1927): o desconhecido assusta (016)

Metropolis (1927): Maria não percebe o perigo (017) Metropolis (1927): mão mecânica de Rotwang apaga vela (018)

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Metropolis (1927): reação após vela ter sido apagada (019) Metropolis (1927): Maria não acha o culpado (020)

Metropolis (1927): lanterna de Rotwang em Maria (021) Metropolis (1927): Rotwang mostra caveiras (022)

Metropolis (1927): início do pavor de Maria (023) Metropolis (1927): mãos sobem (024)

Metropolis (1927): mãos expressam pavor (025) Metropolis (1927): Maria vê luz da lanterna (026)

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Metropolis (1927): luz da lanterna mostra a Maria... (027) Metropolis (1927): ... um esqueleto (028)

Metropolis (1927): reação ao ver esqueleto (029)

Primeiro, provoca-se o medo. Há várias formas de fazê-lo. O cinema é pródigo nisso. O mais comum: todo ser humano se sente desconfortável na presença do desconhecido. Porque não foi preparado para isso. Sair da caverna pode ser perigoso (como mostra o final do mito da caverna, no livro VI de “A República”, de Platão). A luz traz a verdade, a luz mostra a realidade. Tanto a escuridão quanto a luz podem ser assustadoras. Depende de que lado se está vivendo por mais tempo. Maria não traz a luz do conhecimento consigo. Ela traz a esperança. E conta sobre essa esperança aos trabalhadores cansados. Quando o sermão termina, Maria se vê sozinha na escuridão da gruta. É uma escuridão metafórica. Lembra, de certa forma, a chamada Idade das Trevas na Idade Média. Em que a religião e a superstição eram as únicas fontes de explicação sobre o que era real e verdadeiro na vida humana. Mas em Metropolis a perspectiva é um pouco diferente. Afinal, Maria é a personagem que está do lado do bem. E Rotwang, que aparecerá logo em seguida, para raptá-la, está do lado do mal. Desse modo, vemos Maria (nas imagens de 011 até 017) caminhar pela gruta escura, usando uma vela. Nessa caminhada ela sente que está sendo vigiada. Ouve algo, procura, mas claro que não vê nada, afinal, a luz da vela não ilumina o suficiente.

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Rotwang, o cientista, o bruxo, o detentor do conhecimento científico (da “verdadeira” luz), estende sua mão mecânica (imagem 018) e apaga a vela de Maria. Sem a luz, e com a prova clara de que alguém a persegue, Maria se assusta. Agora o medo é real. O medo pode ser algo momentâneo, ou pode ser constante. Essa constância pode estar associada a angústia, porque este último sentimento, segundo a psicologia, se relaciona a duração: a sensação de insegurança domina a pessoa por um certo tempo, ou para sempre. A inumanidade me interessa mais agora do que o medo. O medo de Maria, nestas cenas de Metropolis, são reveladoras e metafóricas, sim, mas esse medo de Maria é contingência de sua vida estar em perigo. Já sua inumanidade é existencial. Uma pausa para comentar o uso da palavra inumanidade:

Toda educação é inumana visto que não funciona sem contrariedades e terror, e refiro-me à menos controlada, menos pedagógica, aquela que Freud chama de castradora e que o faz dizer, a propósito da ‘boa maneira’ de educar as crianças, que de qualquer forma será má (nisto próximo da melancolia kantiana).

(LYOTARD, 1990, p. 12)

Lyotard levanta duas hipóteses que podem ser convergentes: o ser humano está em vias de se tornar inumano ou é próprio do homem ser habitado pelo inumano? Por isso, para ele, existiriam dois tipos de inumanidade. A primeira, do desenvolvimento (progresso, avanço científico, aceleração do tempo). “Andar depressa é esquecer depressa”, diz Lyotard. Esta base se fundamentou e consolidou com o fordismo. Mas há coisas em nossa educação que são vagarosas necessariamente. A leitura e a escrita, por exemplo. A reflexão que leva a um maior conhecimento interior, que nos leva a descobrir nossa humanidade. O segundo tipo de inumanidade é este. O da anamnese. A busca do nosso “elo” perdido, cujo instrumento fundamental é o da memória pessoal e coletiva. Nossa experiência sensorial com o mundo, com nosso próprio corpo (como nos filmes de Cronenberg), tudo isso é inumanidade em curso. Alguns chamam de contato com nossa alma. Outros chamam espírito. Não vou entrar nessa seara. Fico com a inumanidade de Lyotard. O que diferencia os humanos de outros animais é a educação. Os gatos nascem gatos. Os pais apenas “treinam” os filhotes. Mas eles nascem prontos a seguir o exemplo. Em qualquer ambiente que cresçam, crescerão gatos. Os humanos não. Eles não estão prontos. Não podem andar. Não podem falar. Seu conhecimento do mundo é zero. Ficamos nove meses dentro de outro ser humano, sendo gestados. Mas quando saímos ainda falta muito, fisica e mentalmente. E socialmente. É dessa segunda

82 inumanidade de que fala Lyotard. E ela precisa de tempo. Mas sua “antípoda” não. O desenvolvimento acelera o tempo. Por isso perdemos a magia, a tradição, nosso tempo do Sol. Na era contemporânea o tempo é mais um produto do mercado financeiro, fruto do desenvolvimento tecnológico obsessivo. A “Máquina-Moloch” se alimenta de nossa inumanidade. Ou daquilo que nos permite tê-la: o tempo.

O que poderemos chamar de humano no homem? A miséria inicial de sua infância ou sua capacidade de adquirir uma ‘segunda’ natureza que, graças à língua, o torna apto a partilhar da vida comum, da consciência e da razão adultas?

(LYOTARD, 1990, p. 11)

O homem luta para se encaixar na vida comum, com as instituições, luta para aprender a suportar a dor (todas elas) e até a tentação de não ser adulto. Quem ainda resiste ao modelo adulto e foge das regras de um ser humano castrado são a literatura, as artes e a filosofia, segundo Lyotard. Para ele a infância persiste mesmo na idade adulta. A criança é eminentemente humana, pois a sua aflição anuncia e promete os possíveis. O seu atraso inicial sobre a humanidade, que a torna refém da comunidade adulta, é igualmente o que manifesta a esta última a falta de humanidade de que sofre e o que a chama a tornar-se mais humana.

(LYOTARD, 1990, p. 11)

O que nós aprendemos hoje? A sermos humanos? Ou a compor mais uma engrenagem da complexa máquina inventada pelo homem: a sociedade contemporânea da era Digital? Em Metropolis, a inumanidade (desenvolvimento) criou duas sociedades. Uma sustenta as máquinas que sustentam a outra. Uma é pobre e vive para trabalhar. A outra é rica e vive para desenvolver sua melhor habilidade física e mental. Uma sociedade opera as máquinas. A outra cria as máquinas. Quando Freder pergunta ao pai sobre o trabalho quase escravo dos operários, e questiona como eles podem viver no subterrâneo se foram eles que construíram a cidade imaginada pelo seu pai, Fredersen responde: “porque é o lugar deles”. Freder repete a frase do pai para tentar que essa ideia faça algum sentido para ele. Mas não faz. Freder é inumano (a criança). Seu aprendizado do que é humano (adulto) começou. E como primeiro passo, ele precisa experimentar o que sente um trabalhador do seu pai. Por isso troca de lugar com um operário. Trocam de roupa e de funções sociais. O nome do operário é um número 11811 (Georgy). Este último deveria ir para a casa de Josaphat, mas no caminho (ele

83 está na limusine de Freder) resolve ir para Yoshiwara, um bairro que é o centro do prazer mundano (jogos, permissividade, música, bebida), disponível apenas para a alta sociedade de Metrópolis. Como operário, 1181 resolve se dar ao luxo de conhecer. Enquanto isso, Freder luta contra o relógio. Literalmente, como mostra a imagem abaixo:

Freder luta contra o tempo e o trabalho fordista (Imagem 030)

Fusão de imagens, montagem simbólica. Quem controla quem? A imagem 030 é a tentativa do homem de dominar o tempo. Em vão. Quem segura os ponteiros apenas responde ao comando da máquina, que foi criada por um homem, que controla todo o sistema das máquinas, portanto, do tempo do trabalhador. Esse sistema se aperfeiçoou. O dinheiro foi acumulado nas décadas seguintes. E a inumanidade (desenvolvimento) passou para o plano virtual.

Fredersen e a androide de Rotwang (imagem 031)

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Ela (a máquina-mulher de Rotwang) vira a cabeça e encara Fredersen. Ele, surpreso, contrai os músculos do rosto. Ela estica o braço para cumprimentá-lo. Joh Fredersen hesita. Seu olhar é de quem não esperava tamanha tecnologia. Depois de segundos de hesitação, ele vê uma oportunidade para capitalizar com a invenção de Rotwang. Este toma a frente da robô e diz que Freder é filho de Fredersen e que a robô (ou Hel, para o cientista) era criação dele, por isso pertenceria a ele - Rotwang. Mas Fredersen não desiste e propõe que o cientista use a androide para substituir a Maria e propagar uma rebelião entre os operários. Rotwang tinha a intenção de usar a androide para substituir sua amada Hel, mas aceita a proposta de Fredersen. Aceita para se vingar dele e do seu filho Freder. A ciência não está a serviço da humanidade. Mas do homem, indivíduo, ou homem, corporação. Para seus caprichos e jogos de estratégia.

3.1.1. – Um pouco de angústia

Não falo de psicanálise. Falo de filosofia. E a filosofia tem suas maneiras de analisar o problema da angústia, dependendo do pensador. Schopenhauer (1788-1860), por exemplo, era extremamente pessimista em relação à vida. Para ele, viver é sofrer. Não adianta nem conferir sentido ou finalidade. Porque não havia. Tudo porque nós queremos vencer. Esse desejo, segundo ele, era a fonte do mal. Porque gera angústia e dor. E os momentos de felicidade não passavam de intervalos diante da infelicidade geral que era a vida. Acreditava no amor, mas não achava que isso tivesse relação com a felicidade. Influenciou fortemente Nietzsche (1844-1900). Este último concluiu que os gregos mostraram maior sensibilidade para compreender a existência humana do ponto de vista trágico. Ou seja, uma vida preenchida pela dor, solidão e morte. Ao mesmo tempo, como os gregos tinham obssessão pelo equilíbrio, imaginavam uma sociedade em que a arte tinha a função de catarse. Essa arte era da representação e da aparência e servia para nos colocar em contato com nossa tragicidade e angústia em relação a nossa existência. Para Nietzsche, precisamos ter consciência de que a vida é uma tragédia para que possamos desviar nossa atenção disso, para, assim, colocar mais alegria em nossas vidas. Essa seria a função da arte para ele: desviar o foco. Cito esses pensadores porque eles estão inseridos no contexto social e cultural da Modernidade. Suas ideias influenciaram artistas e outros pensadores, que formaram ou ajudaram a formar o jeito de ver o mundo no fim do século XIX e início do século XX, precisamente o período que precedeu o surgimento do cinema.

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Sartre, por exemplo, acreditava que a maior parte dos seres humanos preferia a não-liberdade. O homem não quer sentir a angústia de escolher sua própria liberdade. Alguns se prendem a riquezas, ou fama. Outros levam o peso do seu orgulho, outros ainda o peso da solidão. Há quem escolha o casamento, ou a religião. De algum modo, todos fogem da liberdade, porque ela mesma não é algo claro. E não é porque não é. Essa incerteza, ou “insegurança”, colabora para o crescimento do medo nas cidades, de modo que muitos prefiram a segurança de “se prender” a alguma coisa. Para Sartre, tudo se explica pela angústia da escolha. O homem tem medo da liberdade porque ela obriga que o ser humano viva fazendo escolhas (como na premissa de toda a trilogia de Matrix, EUA, dos irmãos Wachowski, de 1999 e 2002).

Mas para falar de angústia prefiro o filósofo Jean-Paulo Sartre (1905-1980). O motivo: Sartre viveu o período das guerras mundiais, acompanhou a crise da modernidade e, também, porque refletiu sobre esse período caótico vivido pela Europa de forma precisa. Em suas reflexões, influenciado pelas consequências das guerras, enxergou que a angústia humana aparece no instante em que homem percebe que está condenado a ser livre, ou seja, é senhor do seu destino. Mas ao perceber que sempre há uma escolha, o homem torna-se angustiado pela pressão de ter de escolher. Essa é a definição filosófica que escolhi. Ao mesmo tempo, não pretendo ignorar a palavra angústia em seu sentido de sentimento, ou seja, de carência, falta, ou estado de ansiedade e inquietude, sofrimento e tormento.

3.1.2. – A perseguição a Maria e o expressionismo

Ainda sobre as imagens 011 a 029. O medo de Maria é circunstancial. E este vem do desconhecido provocado pelo cientista. Não é à toa que Rotwang use uma lanterna (fonte moderna de luz) para assustar Maria. Nas imagens de 019 até 029 o cientista aponta a luz da lanterna para onde ele quer que Maria olhe. A sequência é uma construção clássica de filmes de terror. Ou melhor, filmes de terror aprenderam como assustar vendo filmes como Metropolis. Temos a mocinha indefesa que não sabe o que está acontecendo. Temos o vilão (um homem) que tortura sua vítima antes de realmente atacá-la. A metáfora das luzes é um exemplo de como assustar, mas também não é à toa. Toda descoberta (conhecimento, tecnologias, luzes) pode ser um prazer e um sofrimento.

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Os cenários não explicam tudo no Expressionismo do cinema alemão. A composição das imagens, dialéticas, é marcada fortemente pelo contraste luz/sombras, além de um espaço “picturalizado” ou “teatralizado”. Maquiagem, roupas e interpretação dos atores também colaboram para a mise-en-scène deste universo alucinado, perturbador, de criaturas estranhas (como o personagem Thin Man, de Metropolis, ou a própria androide). Tudo é distorcido e tem como objetivo revelar outra realidade: a que está intrínseca ao ser humano; aquilo que ele esconde nas entranhas de sua personalidade doentia, angustiada e conflituosa. Neste período pós-revolução industrial, havia motivos de sobra para angústias e desesperanças. O Expressionismo analisou esses sentimentos. Foi um movimento heterogêneo, que atravessou fronteiras e culturas e se desenvolveu de formas distintas nessas mesmas culturas. Formalmente diz-se que o primeiro exemplar de um filme alemão expressionista foi O Gabinete do Dr. Caligari (1919), de Robert Wiene. Metropolis, de Lang, foi o último respiro dessa vanguarda. Certamente há elementos do Novo Objetivismo alemão, mas Lang não se desfez do Expressionismo em seu filme, ao contrário.

A cidade construída neste filme [Metropolis] é uma espécie de super Nova York, concretizada na tela com a ajuda do chamado processo Shuftan, um engenhoso truque com espelho que permite a transformação de pequenos modelos em estruturas gigantescas. (KRACAUER: 1988. 175)

Alfredo Suppia diz que Metropolis “sintetiza o apogeu da modernidade, da linha de produção e da industrialização em larga escala. Os operários estão submetidos ao tempo da mercadoria” (SUPPIA: 2011, 32). Kracauer é crítico ao filme de Lang por achá- lo demasiado ornamental. O autor alemão diz que o ornamento atrapalha, por vezes, o andamento do filme e do próprio roteiro (KRACAUER, 2009). Ele entende, por exemplo, que os trabalhadores caminhem em grupos, de cabeça baixa (ornamentais) no caminho para o trabalho-casa-trabalho. Mas Kracauer não aceita que façam o mesmo quando vão ouvir um discurso da Maria. Por que teriam o mesmo comportamento? O diretor Fritz Lang, por outro lado, comentou sobre o livro de Caligari a Hitler, de Kracauer:

Eu conheço um homem chamado S. Kracauer que escreveu um livro, De Caligari a Hitler. Sua teoria é absolutamente falsa. Ele procurou todos os argumentos para provar a verdade de uma teoria falsa. Por este motivo, me esforcei em dissuadir a juventude de hoje de acreditar na verdade de um livro que contém tantas idiotices.

(LANG, in CAHIERS du Cinema n°99, pp. 1-9) 87

Ainda sobre ornamento, Kracauer diz: “O elemento portador do ornamento é a massa. Não o povo, pois, sempre que este forma figuras, elas não estão soltas no ar, mas surgem do seio da comunidade” (KRACAUER, 2009, p. 92). Segundo o crítico, Lang trabalha muito ornamentações geométricas de massa no filme que revelam padrões decorativos com simbologia:

Em Metrópolis, a decoração não apenas aparece como um fim em si mesmo, mas até desfigura alguns pontos colocados pelo enredo” (...). No brilhante episódio do laboratório, a criação de um robô é detalhada com uma exatidão técnica de modo algum necessária ao prosseguimento da ação. O escritório do grande patrão, a visão da Torre de Babel, a maquinaria e a arrumação das massas: tudo ilustra a inclinação de Lang por ornamentação pomposa. [...] Faz sentido o fato de, em seu caminho para e fora das máquinas, os trabalhadores formarem grupos ornamentais; mas não tem sentido forçá-los a formar tais grupos quando estão ouvindo um discurso de Maria durante sua folga. Em sua preocupação exclusiva com a ornamentação, Lang chega ao cúmulo de compor padrões decorativos das massas que tentam escapar desesperadamente da inundação da cidade baixa. Um efeito incomparável cinematograficamente, esta sequencia da inundação é, humanamente, um chocante fracasso.

(KRACAUER, 1988, p. 175).

Para além dessa discussão com Lang, pode haver um exagero ornamental em Metropolis para Kracauer. Para os Expressionistas, nem tanto. Na verdade, os trabalhadores, na cena em questão até levantam a cabeça, mas somente durante o discurso de Maria. O motivo de Lang talvez tenha sido realçar que é o discurso esperançoso de Maria que acorda os trabalhadores. Eles vão até ela ainda cansados e cabisbaixos. Mas ao ouvi-la, erguem os olhos:

(...) podemos observar que os olhos, em Metropolis, estão diretamente associados ao paradigma do desejo. (...) Os operários do início do filme, totalmente oprimidos e castrados, não olham nada ou olham apenas para o chão, pois nada podem desejar. Seus olhos só serão mostrados plenamente nas passagens de pregação da líder operária, imagem divina capaz de despertar-lhes o desejo pela liberdade. (SUPPIA: 2011, 111)

Portanto, a angustiante inumanidade dos trabalhadores é reflexo de um desejo por liberdade. Mas não é um desejo completo. Eles não querem ser senhores de seus destinos. Seria muito mais angustiante. Aceitam receber ordens, só querem ser mais bem tratados. São filhotes, não filhos. Nasceram prontos para receber ordens, mas não querem ser maltratados e não precisam aprender mais nada. Já Maria também não está preocupada em tomar todas as decisões. Afinal, ela deixa isso para Deus. E sua

88 inumanidade apenas é fruto de uma ansiedade (ou esperança), que nasce do desejo de ver os “irmãos” de cima unidos com os “irmãos” de baixo. O que faz todo sentido no universo do Expressionismo. Em 1905 foi criado o grupo Expressionista Die Brücke (A Ponte). Mas antes disso, em 1893, Edvard Münch pintou seu famoso quadro O Grito, expressionista por excelência, até a última gota de tinta, destacando aspectos mais profundos da alma humana, dando à cor uma intensa carga emocional. O Grito, Edvard Munch (1893)

“Passeava com dois amigos ao pôr-do-sol – o céu ficou de súbito vermelho-sangue – eu parei, exausto, e inclinei-me sobre a mureta– havia sangue e línguas de fogo sobre o azul- escuro do fiorde sobre a cidade – os meus amigos continuaram, mas eu fiquei ali a tremer de ansiedade – e senti o grito infinito da Natureza”.

(do diário de Edvard Munch, sobre sua inspiração para pintar O Grito)

Como se percebe em O Grito, as cores são vivas e espetaculares, agressivas, seus riscos são quase violentos, como cortar a carne com a faca da angústia. Ora, o cinema ainda não era colorido no período entre guerras, então o uso das cores não é tão determinante num filme alemão Expressionista. De qualquer modo, essa escola nunca foi um movimento verdadeiramente organizado, mas sim uma reunião de vários grupos de artistas, que influenciou e continua influenciando até hoje, inclusive no cinema. Mas o Expressinionismo está lá em Metropolis, no braço mecânico de Rotwang, na androide, na arquitetura da Nova Torre de Babel, no desenho levemente distorcido das casas dos trabalhadores, nos gestos de Freder para expressar confusão, amor, esperança; no rosto assustador de Rotwang e seus cabelos desgrenhados e seus gestos igualmente exagerados, ou na aparência tenebrosa de Thin Man, capanga de Fredersen, além da própria aparência da Máquina-Moloch. Todo o visual é angustiante, ornamental, terrível, sombrio, com o objetivo de mostrar que vivemos um sentimento de insegurança. E

89 dessa insegurança, brota o medo por algo ou alguém (contexto próximo da angústia de Schopenhauer, em que viver é sofrer). Com o medo plantado, o que cresce se transforma em angústia. Para dali ficar, para sempre. Como uma característica humana. E não há nada que a inumanidade das crianças possa fazer para remediar isso. Voltemos novamente ao início deste capítulo. Maria está segura de si até o momento em que começou a ser seguida por Rotwang. Estava tranquila, sem desconfiar de qualquer perigo. Ela nem imaginava ser um perigo para o status quo. A partir de então, perseguida, raptada, viu-se indefesa. Ela descobriu outra realidade. A luz da lanterna de Rotwang revelou uma verdade que ela desconhecia: existe o terror e ele se revelou para matá-la. O existencialismo sartreano também é resultado do mesmo caos social que explica o enredo de Metropolis. O caos da guerra. De maneira simples, para resumir o existencialismo de Sartre e o “ser” humano: para ele não existe uma natureza humana pronta, pré-definida (assim como pensa Lyotard). O homem é livre para fazer o que quiser de sua vida (assim como Carlitos). A essência do indivíduo se define por aquilo que ele faz de si mesmo, ou seja, o homem está condenado à liberdade (assim como Eric, em Cosmopolis). O homem é aquele que deseja e escolhe o que deseja (em parte como Eric e Fredersen). Para Sartre, o desespero tornou-se parte da condição humana. Tudo porque o grande problema do homem moderno era a falta de sentido na vida e o vazio de seu interior (como Eric e Freder, até conhecer Maria). Essa perspectiva vinha do pós-guerra (das duas guerras), de uma Europa devastada pela barbárie e pela desesperança. No período de Metropolis, o momento é do pós-primeira-guerra. Mas o sentimento está ali também. Dessa forma, há uma angústia que resulta da revelação da nossa própria liberdade, limitada apenas por si mesma, fonte absoluta de todo sentido (SARTRE, 2002). Mas esta liberdade...:

... só é descoberta reflexivamente, quando, engajado no mundo, em vez de realizar meus possíveis (se se quiser, meus fins ou meu futuro), eu os aprendo como meus. (SARTRE, in MOUTINHO, 2003, p.77).

Já que o homem prefere a não-liberdade em vez de (sentir a angústia de) escolher sua própria liberdade, isso significa que ele prefere ser, de alguma forma, controlado, ainda que possa escolher os líderes que o controlarão. Já no pós-humano de Cosmopolis, por exemplo, a sociedade acredita ter uma liberdade plena. Mas o 90 problema é o conceito de liberdade da sociedade contemporânea estar atrelado ao significado de “poder escolher” o que quiser. Liberdade para escolher o aparelho tecnológico que irá controlar sua vida e deixá-la mais confortável, mais fácil, menos angustiante (continuamos não escolhendo de verdade, mas deixando que a tecnologia escolha para nós). No mundo de Cosmópolis é preciso acompanhar a aceleração do tempo ou não conseguimos viver. A educação mudou. Nossa inumanidade em Metrópolis previa um mundo utópico em que só faltava um pouco de “bons tratos”. Em Cosmópolis a educação é urgente. A leitura precisa ser rápida. As imagens são mais importantes do que palavras. Tudo conspira para que aprendamos, em nossa inumanidade miserável, a agirmos com maior rapidez, a ver o tempo em várias camadas consecutivamente. Lyotard, para falar do tempo, cita o livro IV da Física, de Aristóteles, dizendo que é “impossível determinar a diferença existente entre o que aconteceu e o que está para acontecer sem situar o fluxo dos acontecimentos face a um ‘agora’, a um ‘now’” (LYOTARD, 1990, p. 33). E sobre a tecnologia, ele complementa dizendo que o capitalismo está – sempre esteve – particularmente interessado no desenvolvimento tecnológico:

(...) porque as tecnologias necessárias ao processo científico abrem caminho para a produção e distribuição de novas mercadorias, quer diretamente destinadas à pesquisa científica, quer modificadas para utilizações mais profanas. Pelo menos nesta medida, os meios de conhecimento tornam-se meios de produção e o capital aparece como o dispositivo mais potente (...). O capital não governa o conhecimento da realidade, mas dá realidade ao conhecimento.

(LYOTARD, 1990, p. 77)

O sujeito humano e sua experiência, que é individual e coletiva, se fragmentam diante dos cálculos de lucro e satisfação dos desejos realizados, ou melhor, diante do sucesso (LYOTARD, 1990). Na modernidade até a contemporaneidade, o trabalho vem se transformando em mais controle e manipulação de informações. Em Metropolis vemos uma cidade do futuro. Para Lang o controle tranformará operários em escravos consentidos. Em Cosmopolis informação é tudo. Eric é consumidor de informações. Elas trazem poder e podem mudar bilhões de dólares de um lugar para outro. De um homem para outro. A economia capitalista não admite nenhuma natureza. Ela é regulamentada a partir de uma ideia (LYOTARD, 1990). É o que insinua Vija, a teórica de Eric no filme de Cronenberg. Lyotard afirma:

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A disposição da informação torna-se o único critério da importância social. Ora, a informação é, por definição, um elemento de curta duração. A partir do momento em que ela é transmitida ou partilhada, deixa de ser uma informação, transforma-se num dado do meio ambiente, e ‘tudo está dito’: sabe-se. É colocada numa memória máquina.

(LYOTARD, 1990, p. 110)

O desejo dos trabalhadores de Metropolis pela liberdade é um desejo parcial. Não querem, na verdade, ser donos completos de seu destino. Eles não querem ter o poder de escolher o que fazer com suas vidas. Só querem uma vida menos desconfortável e mais segura. Aceitam o controle (como no final do filme) de Fredersen, mas com mais humanidade no tratamento. E a sociedade alemã descrita por Kracauer naquela época é absolutamente coletiva, não individualista, como a americana. E como o mundo passou a ser depois da globalização dos mercados e da cultura pop. Carlitos, por exemplo, em Tempos Modernos, sonha com uma vida honesta de trabalho, uma vida pequeno-burguesa, sim. Não queria fazer uma revolução. Só queria uma vida melhor para ele. Portanto, nada tem de comunista, como Chaplin fazia questão de afirmar (Chaplin se dizia humanista). No caso de Carlitos, somente o amor pela Menina é que o fez querer se adaptar a este estilo de sociedade, o mito de se tornar homem (BAZIN, 2000). Esse homem também é o humano da definição de Lyotard. Por amor, Carlitos aceita deixar sua inumanidade típica para ser “educado” de acordo com os padrões sociais vigentes. Há outra interpretação para o fato de os trabalhadores aceitarem que Fredersen continue no poder apesar do que ele fez: o próprio povo alemão é pródigo, segundo Kracauer, em se organizar. Fato que se refletiu no cinema das primeiras décadas do século XX. Os alemães são elogiados por conseguirem montar produções grandiosas, como Metropolis. Mas isso só aconteceu, segundo Kracauer, porque o alemão é um povo que sabe ser disciplinado, o que pressupõe que sabe, na verdade, ser comandado. Toda capacidade de organização pede disciplina. E toda disciplina sugere um líder no comando. Os alemães são mestres da organização porque sabem obedecer, segundo a lógica de Kracauer. Característica propícia para o surgimento de Adolf Hitler. O povo alemão, frustrado com o resultado da Primeira Guerra (não se considerava derrotado, mas enganado pelo governo que teria “desistido de lutar”), viu no nazismo uma resposta a uma crescente angústia que poderia levar a sociedada germânica ao caos (já estava mergulhada nesse caos, como sugere outro filme de Lang, M, o vampiro de Dusseldorf, de 1931). A metáfora com Metropolis é clara nesse sentido. Pelo menos foi isso o que o

92 nazismo viu no filme de Lang, ou, como preferem alguns, foi o que o nazismo viu no roteiro de Thea von Harbor. O verdadeiro responsável pela inundação da cidade dos trabalhadores é Joh Fredersen, que teve a ideia de usar a robô para incitar os trabalhadores. Estes, incitados, destruíram as máquinas. Fato que provocou a inundação e quase matou suas crianças, que foram salvas por Freder e Maria, com ajuda de Josaphat. Mas o único culpado no filme acabou sendo Rotwang, que teria feito o que fez para se vingar de Fredersen e de seu filho. Apenas vingança, porque antes – o cientista e o dono da cidade - disputaram o amor de uma mulher e Rotwang a perdeu para Fredersen. Esse problema sentimental fez com que o cientista usasse a tecnologia para o mal. Sua amada Hel morreu. Para reverenciá-la, criou um busto gigantesco. Para mantê-la viva, criou um robô, um simulacro dela. Rotwang lhe daria a imagem de Hel, mas Fredersen queria que o cientista copiasse Maria. Para criar a tecnologia da androide, Rotwang perdeu sua mão. E a substituiu por uma mecânica. É o preço pelo conhecimento, pela luz do saber científico. Um preço que ele estava disposto a pagar. Já a luz da vela de Maria, no final, que só pregava o amor e a união das classes, venceu a luz da lanterna de Rotwang, uma luz tecnicista (portanto, não-humana), anti-religiosa (tentava reproduzir a criação de Deus e era associado a bruxaria) e vingativa. Outro episódio em que uma referência religiosa “vence” a tecnologia: a cena em que a Falsa- Maria é queimada na fogueira (igual às bruxas da época da Inquisição). Essa luz do fogo termina por revelar que a Falsa-Maria era um androide. Nesse caso, queimar a “bruxa” mostrou a verdade. A inumanidade de Freder desperta a partir de quando vê Maria pela primeira vez. Completamente alheio ao resto do mundo, Freder corre pelos jardins, acompanhado de uma mulher diferente todo dia. Uma modelo que irá entreter o jovem playboy. Mas quando Maria surge com várias crianças e diz para elas que os de cima são seus irmãos, quando Freder olha em seus olhos, seu coração bate mais forte. Ele precisa revelar esse amor e precisa ser retribuído. Quando isso acontece, Freder precisa que esse amor seja aceito por seu pai. E por causa de Maria, ele desperta de sua alienação social e passa a sentir o sofrimento dos trabalhadores. A angústia de Freder será resolvida quando não houver mais ninguém sofrendo na sociedade. A inumanidade de Joh Fredersen reside no medo de perder o poder. Ele é o próprio sistema. O espírito das máquinas. Aparentemente ele sentiu muito a morte de sua mulher Hel. Em poucos momentos deixa escapar uma expressão mais comovida. Mas

93 no geral, tem o olhar frio, as reações são sem sentimentos. Ele reage como uma máquina, com objetividade.

(imagem 032 - escritório de Fredersen)

(imagem 033 – Fredersen e Josaphat ao fundo)

(imagem 034 – Fredersen e seu filho, ao fundo)

(imagem 035: a indiferença de Thin Man diante das mãos suplicantes de Josaphat)

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(imagens 036 e 037: Josaphat, cansado (talvez), olha os números da bolsa e faz anotações)

Nas imagens 032, 033 e 034 vemos cenas do escritório de Fredersen. Na primeira imagem ele dita ordens aos seus funcionários sobre números e procedimentos técnicos. É dali que ele organiza, administra e dita o ritmo de Metrópolis. Como o presidente da Steel Corporation em Tempos Modernos e Eric, na sua limusine em Cosmopolis. Na imagem 033 temos um enquadramento típico para demonstrar o poder de Joh Fredersen. Ele está à direita, quase do tamanho da porta gigante da entrada de seu escritório. Ali, perto da porta, seu secretário imediato, Josaphat. Ele, ao fundo, quase no meio da tela (mas ainda do lado direito), parece minúsculo pelo enquadramento. Fredersen está de lado para a câmera e seu poder de intimidação é inconfundível. Qualquer funcionário que for demitido perde o lugar na parte de cima de Metrópolis. Sendo obrigado, portanto, a morar na parte de baixo, no subterrâneo. Fredersen não é um inventor, mas é um gênio da matemática, da engenharia e das finanças. Ele é rigoroso e exigente ao extremo (como Eric em Cosmopolis). Na imagem 034 temos um enquadramento da enorme janela do alto da Nova Torre de Babel, que dá para toda a cidade. Freder, seu filho, fecha as cortinas para conversar com seu pai sobre o incidente na fábrica. Nas imagens 036 e 037 vemos Josaphat preocupado, cansado, de tanto olhar os números que sobem pelas telas. Tamanha tecnologia de uma cidade do futuro em 2026, mas todos anotam tudo no papel. Fritz Lang não havia pensado numa solução para isso. Em Cosmopolis, Eric tem nos dois braços de sua poltrona (em sua limusine) telas com internet. Numa das mãos ele opera bilhões de dólares de sua fortuna e da riqueza mundial. Na outra mão ele busca por informações para manipular a riqueza (dele) da melhor maneira possível. Eric não controla uma cidade, mas parte da riqueza mundial. Fredersen controla uma cidade planejada por ele e construída pelos operários que vivem no subterrâneo. A cena da janela é outra demonstração de grandiosidade e ornamento do diretor. Na imagem 28 temos o momento em que o capanga de Fredersen 95 informa que Josaphat precisa abandonar Metrópolis até o fim do dia. As mãos que aparecem no canto esquerdo são de Josaphat implorando por perdão. A expressão do Homem-Magro é impassível, imperturbável. Esta cena de mãos em destaque é mais um recurso da direção de Lang. Ele usou na sequência de Rotwang e Fredersen. Esse “exagero” dramático, teatral, se encaixa no tipo de efeito que o diretor quer provocar. As emoções mais intensas estão nas mãos e nos olhos. Por isso ele torna esses dois mais destacados nos enquadramentos. Os olhos são pintados – expressivamente – e as mãos são agitadas – dramaticamente. Os desejos, o ódio, a esperança, o amor, todos os sentimentos estão ali. E este recurso é recorrente em todo o filme. E é preciso considerar que o filme é mudo, então as emoções não poderiam ficar guardadas em palavras. As crianças – inumanas - são assim, físicas. A inumanidade diz muito do que é fisicamente, gestualmente. E muitas vezes com objetos (como em Tempos Modernos). Todo o comportamento de Fredersen gira em torno de sua cobiça pela cidade perfeita, o controle centralizador que exerce sobre Metrópolis, sua incapacidade de perceber ou de se importar com o sofrimento humano dos trabalhadores que sustentam essa vida perfeita. Ele só sente medo quando percebe a possibilidade de perder seu filho (porque ele é sua continuação, seu legado para o mundo, o que lhe resta de inumanidade). Fredersen sempre sentirá esse medo de perder o poder. Rotwang não deixa muitos rastros de inumanidade. São poucos mas claros. Ele tem um ódio por Fredersen e seu filho. Deseja vingança. Culpa o primeiro por ter roubado o amor de Hel. E culpa o segundo por ter matado a mãe no parto. Rotwang não tem medo de nada. O que tinha para perder, ele já havia perdido. Sem medo até da morte, o cientista ultrapassa o sentimento de humanidade, volta para uma inumanidade crua, sem apego à própria espécie. Rotwang é o desejo do pós-humano. Ele é quase humano, quase máquina. Do lado do “mal”, por assim dizer. Lyotard tem uma discussão interessante sobre as diferenças entre humanos e dispositivos técnicos.

(...) a técnica não é uma invenção dos homens. Talvez o contrário. Tanto antropólogos como biólogos admitem que os organismos vivos, mesmo os mais simples (...) são um dispositivo técnico. É técnico qualquer sistema material que filtre informação útil à sobrevivência, que a memorize e a trate, e que induza, a partir de uma instância reguladora, determinadas condutas, ou seja, a intervir sobre o meio ambiente assegurando pelo menos a sua perpetuidade.

(LYOTARD, 1990, p. 20-21)

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Lyotard crê que o ser humano não é diferente desse tipo de definição. O corpo seria um hardware e o cérebro, ou melhor, o pensamento, o software (chamado por ele de linguagem humana). E este mecanismo é um sistema complexo de memórias que regulam todos os seres. Nesse ponto podemos entender porque Lyotard dá tanta importância à memória e ao tempo. O papel das tecnociências é garantir que o software tenha um hardware que não dependa das condições de vida terrestre (LYOTARD, 1990). Mais claro: “tornar possível um pensamento sem corpo, que persiste após a morte do corpo humano” (IDEM, p. 22). Portanto, a teoria geral do que é o ser humano não passa pela necessidade de se ter um corpo humano. Em outras palavras: nossa humanidade está em nossa linguagem, ou seja, nossa memória (genética, social, antropológica, cultural). Nossa essência humana está na inumanidade, onde o tempo é molho que dá sabor ao que somos. Mas muita experiência humana passa pelo corpo. Carne e sangue, claro. Porque fazemos isso desde sempre. Mas deixaremos de ser humanos se sairmos de nosso corpo? A Androide Maria não teve a experiência de inumanidade da verdadeira Maria. Por isso ela não é humana. Fredersen não expressa sentimentos e não considera os sentimentos dos outros. Talvez ele seja adulto demais. Fredersen criou um sistema perfeito de números e maquinaria que supera o humano em técnica e eficiência. Mas deixou pelo caminha sua memória. Sua humanidade. Talvez Fredersen esteja mais perto de ser uma máquina do que Rotwang e sua mão mecânica e visão de mundo com homens-máquinas. A angústia de Rotwang é pelo passado, não pelo presente ou pelo futuro. Para ele, todos merecem ser punidos por seu sofrimento. É o típico cientista maluco do cinema. A inumanidade em Metropolis pode ser vista como uma metáfora do povo alemão no período entre guerras. Na visão de Kracauer, os filmes são a representação da própria sociedade. E esta é coletiva e pode ser manipulada coletivamente. Como mostrado no filme. A sociedade do futuro, descrita em Metropolis, tinha seus problemas. Desejava por liberdade. Mas uma liberdade de um sistema de trabalho escravo, não uma liberdade individual. Era claro que o mundo não era perfeito. Algo funcionava mal em seu sistema. Mas não era o próprio sistema que precisava ser destruído. Era necessário apenas um ajuste. O filme critica a Modernidade em seu aspecto tecnicista e fordista. Mas não propõe que pobres deixem de ser pobres às custas do luxo dos ricos. Prega apenas união. Amor. Em torno de um único líder. Esse é o futuro apontado por Metropolis. E que foi entendido, por alguns, como o anseio do povo alemão. Por isso Metropolis tem tom profético. No fim, não é um filme utópico, nem distópico. Ou, talvez, seja os dois.

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3.2 - O Inumano em Tempos Modernos (1936): a magia de Carlitos contra a maquinização fordista

Os personagens de Tempos Modernos, assim como em Metropolis, estão divididos em trabalhadores e empregadores. O filme de Chaplin é uma homenagem ao filme de Lang. Da sequência de abertura à crítica ao sistema fordista. Mas a sociedade de Chaplin não é do futuro. É do presente. E a crítica é de todo o modelo da Modernidade.

Mas o filme inteiro é uma transposição desse conflito do homem com as coisas por ele criadas, levado, por meio da máquina, à escala da história e da sociedade.

(BAZIN: 2000, 25-26)

Bazin vê o filme como o primeiro de Chaplin que busca desenvolver uma ideia no roteiro e levar essa ideia até o fim. Até as gags trabalham para essa ideia.

Longe de lhe faltar unidade, Tempos Modernos talvez seja, ao contrário, o filme em que o estilo da interpretação se sustenta mais, comandando o estilo das gags e até do roteiro. A significação ideológica nunca inflete a linha cômica da gag a partir do exterior. Inversamente, é a imperturbável lógica desta que faz, a rigor, explodir o absurdo social.

(BAZIN, 2000, p. 55)

Bazin considerava Tempos Modernos o melhor filme de Chaplin ao lado de Luzes da Cidade. Também achava que o primeiro era um filme de tese. Na obra, Chaplin diz estar do lado do homem, contra a sociedade e suas máquinas. Mas, segundo Bazin, essa afirmação se situa no plano moral e por meio do estilo. É o individualismo de Carlitos que serve de pivô para todas as situações (BAZIN, 2000). A tese que vejo é a da inumanidade. Há um homem numa fábrica (metáfora para a criança aprendendo as regras sociais vigentes). Ele aprende a cumprir horário, a comer na hora certa. A executar sua função na fábrica num determinado tempo. Tudo gira em torno de saber administrar o tempo que lhe é conferido. Alguém é dono do tempo e esse alguém dá para Carlitos o usufruto dele. Mas sob certas regras. Este homem (Carlitos) precisa aprender que tempo é dinheiro. Mas o tempo não lhe pertence e muito menos o dinheiro. Carlitos é inumano (LYOTARD, 1990). O problema é que Carlitos-operário não sabe lidar com o tempo no tempo fordista, no tempo capitalista.

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Acelerar o relógio biológico não funciona para ele. Seu corpo não responde. Na fábrica, não é possível ir mais rápido. A velocidade com movimentos repetitivos destrói sua humanidade, destruindo sua inumanidade. Para aprender Carlitos precisa de liberdade de movimentos, de paciência. A lógica do mundo é por demais adulta para ele. E quando essa lógica pede mais velocidade, ela também inicia o processo de esfacelamento das tradições, o fim do encantamento e a aceleração do tempo. Quando ele tenta trabalhar em outros empregos e não consegue porque sempre comete algum engano infantil, conclui que não há nada a fazer a não ser voltar para a prisão. Determinado, ele entra num restaurante e come tudo o que pode. Depois, tranquilamente diz que não pode pagar. Ele próprio chama um policial. Carlitos entrega a conta no caixa. A moça diz o preço e ele faz o gesto para que o policial pague. A partir disso, o Vagabundo é levado. Mas antes de o camburão chegar, ele encontra tempo para roubar um charuto e também não pagar. É preciso deixar claro. Carlitos não é completamente desprovido de humanidade (no sentido de Lyotard, ou seja, desprovido de conhecimento sobre o funcionamento social). Ele é gentil, obedece certas regras ou convenções sociais. E elas dizem respeito ao trato com as mulheres. Quando está no camburão da polícia, chega a Menina. Carlitos levanta o chapéu coco para cumprimentar (algo que sempre faz, respeitosamente, a qualquer pessoa) se levanta e oferece o lugar. Quando Carlitos fugiu com a Menina e sentaram para descansar, viram um marido se despedir de sua esposa e esta voltar para casa, saltitante e feliz. Carlitos então perguntou se ela (a Menina) conseguia imaginar eles vivendo esta vida pequeno- burguesa numa casa como aquela. Em sua imaginação, Chaplin viu uma utopia. Da janela de sua casa ele podia esticar o braço e pegar frutas. De uma vaca em seu quintal ele tirava o leite para seu café da manhã. A conclusão da cena acontece quando Carlitos afirma que ambos terão essa vida de fartura, nem que para isso ele tenha de trabalhar. Se é preciso dentro desse sistema capitalista, ele topa seguir as regras. Ele aceita continuar seu “aprendizado” para se “humanizar”. Carlitos arruma um emprego de segurança noturno num shopping. Emprego perfeito. Ele carrega a Menina sem que ninguém veja. Mata a fome dela. Coloca a garota para dormir numa cama confortável, coberta com um casaco de peles caríssimo. Ele passeia pelo shopping de patins (Chaplin é exímio patinador). Uma das melhores cenas cômicas acontecem aí, quando ele coloca uma venda nos olhos para mostrar suas habilidade nos patins e quase despenca de um dos andares. Nesse momento,

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Carlitos oferecia uma vida de luxo para a Menina. Com objetos que não pertenciam a eles. Mais tarde, o shopping é assaltado e ele não consegue evitar. Um dos ladrões foi seu companheiro de fábrica. Eles se reconhecem e começam a beber. Pela manhã, Carlitos acorda em cima de um balcão, despertado sem querer por uma vendedora. Ele estava debaixo de várias roupas. Assim perdeu o emprego. Ficou dez dias preso. Sua natureza inumana é livre, tão livre, que não resistiu e se deixou levar pela irresponsabilidade profissional. A Menina pegou Carlitos na cadeia e o levou para o barraco que ela arrumou para eles. Quando eles caminham pela calçada, ela está do lado de fora da calçada e Carlitos está do lado de dentro. Logo ele arruma isso, em mais uma de suas regras de gentileza particular. Ele troca de posição, porque é educado um homem ficar do lado voltado para a rua (porque significa proteção para a pessoa que se está levando). E a mulher deve ficar do lado protegido. Esse pequeno detalhe de comportamento revela um Carlitos tradicional, como sempre foi em seus filmes. A sequência da cena ele bate com a cara no poste de ferro. Uma gag para comprovar a eficiência do ponto de vista dele. Tudo na barraca para onde foram morar é precário. Mas Carlitos vê sempre tudo com um sorriso e uma solução. A Menina segue seu exemplo. A cena do banho no dia seguinte é uma das mais engraçadas da história do cinema. E é também uma cena que revela a inumanidade de Carlitos. A despeito daquela situação deplorável de vida, ele acorda de manhã, se arruma para tomar um banho no lago que tem ao lado. Toda a cena foi construída como se ele fosse rico e estivesse indo para sua piscina. Ele caminha saltitante para nadar. Para, se posiciona como se estivesse numa prancha de piscina. E salta. Mas a água é rasa. Ele bate a cabeça e o corpo dá uma cambalhota, seguindo o movimento natural do corpo. Sua reação espantada é hilária. A água batia apenas até o tornozelo. Então ele se levanta atordoado e caminha constrangido para seu quartinho, do lado de fora da casa. As fábricas voltaram a funcionar. A crise econômica está diminuindo. Carlitos corre e consegue entrar numa fábrica, que está recontratando. Ele vira assistente de um mecânico. Seu trabalho é ajudar a reparar todas as máquinas que ficaram muito tempo paradas. Mas Carlitos não aprende, não sai do estágio de inumanidade. A primeira gag é quando ele aciona uma máquina (uma espécie de passador de ferro gigante) que amassa um objeto do mecânico, uma espécie de borrifador grande de óleo. Ele se irrita com Carlitos e pergunta (com gestos, não tem texto) o que ele vai fazer com aquela coisa que ficou inútil agora. Carlitos responde (com gestos), usando seu senso de

100 improviso, que aquilo poderia virar uma pá (ele faz o gesto de uso de uma pá). Os objetos não perdem valor para ele. Ganham significados diferentes daqueles estabelecidos pela sociedade. Depois de outras trapalhadas no trabalho, uma greve para tudo. Carlitos se envolve numa confusão com a polícia e – de novo, sem ter culpa – é preso. A Menina se vira ao ser descoberta como dançarina e é contratada para trabalhar num restaurante. Ela aparece bem vestida e vai buscar Carlitos na cadeia, de novo. Ela conseguiu algo, não ele. A garota diz que tem um emprego para ele de garçom e o leva até lá. O problema é que Carlitos se atrapalha todo como garçom. A cena em que ele tenta levar o pato assado para o cliente é um grande exemplo de ótima direção de Charles Chaplin. A câmera está num plano aberto do salão do restaurante. A música começa a tocar e todos dançam bem na hora em que ele vai levar a bandeja para o cliente nervoso. A câmera acompanha a bandeja, de longe. Ela está num ponto mais alto e vemos as cabeças das pessoas que dançam. A câmera está quase na mesma linha do candelabro. Num certo momento a câmera fecha numa parte da luminária, onde há um ferro. O pato se encaixa no ferro e fica por lá. Carlitos continua levando a bandeja, que finalmente chega ao cliente, mas sem o pato. O enquadramento muda para altura dos dançarinos e parece que a câmera está no meio deles. Toda a sequência é bem feita. Inclusive quando Carlitos vai cortar o pato, este escapa e vai para as mãos de um bêbado que está na pista de dança. Ele e seus amigos igualmente bêbados brincam com o pato como se fosse uma bola oval de futebol americano. Carlitos entra na brincadeira. Pega o pato e corre deles com perfeição, até o touchdown, na mesa do cliente. O gerente então ameaça Carlitos dizendo: espero que você cante melhor do que é garçom. Sim, Carlitos finalmente irá mostrar sua voz. Mas Carlitos não aprende nada, certo? A Menina o ajuda a decorar a letra, porque ele não consegue lembrar. Anota no punho da camisa. Mas na hora em que começa a apresentação, Carlitos estica os braços e perde as abotoaduras. As duas. Aí fica sem a letra. Ele não sabe o que fazer. A Menina diz para ele cantar. Apenas cantar. Eis aí a cena clássica e esperada por todos. O momento em que Carlitos, o Vagabundo, sairia do cinema mudo para o falado. A hora de perder um pouco de sua inumanidade. Ele perderia mesmo se pudesse falar. Mas há uma diferença entre falar e cantar. Este último ainda é algo mágico. Lúdico. E não precisa ser compreendido em palavras. Carlitos inventa um idioma que parece francês e conta a história da letra da música com seus gestos. No fim, Carlitos não fala, ele só produz sons e continua se comunicando do mesmo jeito. Manteve sua inumanidade. E

101 provou ser capaz de falar e contar uma história sem dizer uma palavra em idioma nenhum. É o que Chaplin fez o filme todo (uma hora e 23 minutos). Ele desdenhou da tecnologia do filme falado usando a técnica contra ela. No fim, os policiais aparecem para levar a garota para o orfanato. Os dois heróis fogem de novo. Outra vez sem trabalho, sem perspectivas. A Menina chora, sem esperanças. Carlitos a consola. Dizendo para sorrir. Ambos caminham pela estrada sem fim, sem destino certo. Vão para a direção do pôr-do-sol. Devemos voltar para nossa inumanidade inicial, devemos recuperar nossa lembrança pouco precisa, rememorar gradativamente, como o filósofo faz, para redescobrir dentro de nós as verdades essenciais e latentes que remontam a um tempo anterior ao da nossa existência empírica. Um tempo sem repetição. O homem é livre para fazer o que quiser de sua vida segundo Sartre. E, no final de Tempos Modernos, Carlitos mostra ser esse homem (imagem 002). Afinal, ele escolheu o tempo do sol, na contramão do que a sociedade dele escolheu. E o Vagabundo decidiu levar a sua vida dessa forma, ao lado da Garota. Ele aceita as tragédias da vida, mas responde com um sorriso e persistência, com o seguir-em-frente. Carlitos não segue regras sociais, ou não entende as convenções sociais. De qualquer modo, ele está fora do seu tempo. Não vejo Carlitos angustiado, à Sartre, nem à Schopenhauer, porque Carlitos ri do sofrimento e da tragédia. E nos faz rir, nos faz entrar em contato com nossas próprias tragédias. E nossa própria inumanidade.

3.3 – O Inumano em Cosmopolis (2012): o capital cibernético, a fragmentação do tempo e a ressignificação da luta de classes

3.3.1. – O tempo, Moloch e a relação com Metropolis e Tempos Modernos

Não existe tecla pausa no tempo. O tempo é um devorador que nunca sacia. Há quem seja o alimentador do tempo. Há quem seja o próprio alimento dele. Filósofos, músicos, poetas e acadêmicos já se debruçaram sobre os significados do tempo para a humanidade, para o ser humano ainda inumano. O turno está acabando. Freder está no limite físico e mental. Ele ergue os ponteiros da máquina, que parece um relógio gigante. Ergue para onde a lâmpada acende. Uma fusão dele na máquina com o relógio-ponto

102 cria a metáfora óbvia: o tempo controla as ações do homem (imagem 030). Controla o trabalho. E o homem pobre vive do trabalho, vive para o trabalho. Portanto, o tempo- capitalista, insaciável, insensível, só permite uma pausa quando acabar o turno. Freder, exausto, cede seu posto para outro trabalhador na esperada troca de turno. Freder nem é operário. É o filho do dono de Metrópolis. Mas por solidariedade resolveu trocar de lugar com outro operário (Georgy) que sofria na máquina. Assim, ele próprio, Freder, pôde sofrer as mazelas de ser explorado pelo sistema criado por seu pai Joh Fredersen, presidente da megacidade Metrópolis. Não por acaso há, em Metropolis, referência a Moloch, o deus que se alimentava de recém-nascidos, adorado pelos amonitas em 1900 a.C. No filme é a máquina-Moloch, que, de certa forma, representa a boca do Capitalismo. A boca que se alimenta da força de trabalho.

O pensamento e a ação dos séculos XIX e XX são governados pela ideia de emancipação da humanidade. Esta ideia elabora-se no final do século XVIII na filosofia das Luzes e na Revolução Francesa. O progresso das ciências, das técnicas, das artes e das liberdades políticas emancipará a humanidade inteira da ignorância, da pobreza, da incultura, do despotismo e não fará apenas homens felizes, mas nomeadamente graças à Escola, cidadãos esclarecidos, senhores do seu próprio destino.

(LYOTARD: 1987, 101)

Não foi bem isso o que aconteceu. Não foi nada disso descrito por Lyotard o que aconteceu. Joh Fredersen tem seu correspondente em Tempos Modernos (1936): é o presidente da Electro Steel Corporation, fábrica onde trabalhava Carlitos no início do filme. Ambos os personagens são frios, preocupados com eficiência, controladores do ritmo (tempo cronológico) em que vivem os trabalhadores. O presidente da Steel não interage com os operários. Não sabe o que sofrem, o que passam, ou, se sabe, não se importa. Ele apenas olha números, se a produção está baixa ou alta (imagem 032, de Metropolis). E se estiver baixa, ele pede “more speed” ao imediato (que tem função parecida com a do personagem Grot, em Metropolis). Esse imediato ouve as ordens do presidente por um “videofone” (aparelho que acrescentou uma característica futurista – de ficção científica – ao filme de Chaplin, ainda que sutil). No videofone o presidente efetivamente fala. O legítimo representante do capitalismo-Moloch é o único que efetivamente fala. O videofone, instrumento pelo qual o empresário diz algo, – e só por esse aparelho ele fala - representa uma conquista tecnológica da ciência, aplicada ao mundo corporativo. Tudo isso está dentro do pacote chamado modernidade que Tempos Modernos critica.

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3.3.2. – Cosmopolis, o tempo e a luta de classes

O lançamento de Tempos Modernos foi em 1936, embora sua produção tenha se iniciado em 1933. Já Metropolis teve seu roteiro pronto em 1924. As filmagens começaram em 1925 e terminaram em 1926. A estreia foi em janeiro de 1927. E o ano em que se passa a história de Fritz Lang é 2026. Esta dissertação é de 2015. Cosmopolis, de Cronenberg, é de 2012. A história é baseada num livro homônimo, de Don DeLillo, publicado em 2004. A história do filme acontece em 2001. A relação com o tempo, desde então, mudou. Tanto no livro Cosmópolis, quanto no filme Cosmopolis (2012), a relação com o tempo evoluiu para isso: “As pessoas pararam de pensar na eternidade. Começaram a se concentrar nas horas, horas possíveis de serem medidas, horas de pessoas usando o trabalho de forma mais eficiente”. Nada do que foi prometido aconteceu. O mundo pós-Revolução Industrial piorou. As relações se tornaram menos coletivas e mais individuais. O projeto moderno caiu.

Não foi a ausência de progresso, mas pelo contrário o desenvolvimento tecnico- científico, artístico, econômico e político que tornou possível as guerras totais, os totalitarismos, o afastamento crescente entre a riqueza do norte e a pobreza do sul, o desemprego e os ‘novos pobres’, a desculturação geral com a crise da escola, ou seja, da transmissão do saber, e o isolamento das vanguardas artísticas (e agora, durante algum tempo, a sua renegação”.

(LYOTARD: 1987, 102)

Na era digital, o tempo é uma eterna despedida. Porque, segundo Lipovetsky, não há escolha. Não há alternativa (LIPOVETSKY: 2004, p. 57). O que sobrou para a humanidade é avançar, acelerar para não ser ultrapassado pelo progresso, pelo competidor ao lado, que é mais jovem e mais “preparado”. O culto da modernização técnica, segundo ele, prevaleceu sobre a glorificação dos fins e ideais. Por isso o tempo nunca “dá um tempo”, é uma eterna despedida: nem chegou e já vai embora.

Conceitos de tempo irreversível e pseudocíclico propostos por Guy Debord: tempo irreversível porque há o tempo biológico, dos quais os operários não podem escapar, e de uma vida devotada a produção em escala industrial. Tempo pseudocíclico porque os operários de Metropolis são escravos do turno de trabalho, do relógio de dez horas que regula suas vidas. Pseudo porque simula um ciclo, mas, embora se repita indefinidamente, esse tempo tem um fim, o da própria capacidade produtiva do operário, que, logicamente, extingue com o decorrer do tempo. (SUPPIA: 2011, p. 32)

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Em Tempos Modernos o raciocínio de Suppia também se aplica (embora ele tenha analisado Blade Runner, de 1982, e Metropolis) porque Chaplin usa o mesmo princípio de linha de montagem, inspirado em Metropolis e no filme A nós a liberdade (1931), de René Clair, em que há frase: “O trabalho é obrigatório, porque trabalho é liberdade”. Já no caso de Cosmopolis, o tempo é fora de si. O relógio não importa mais. Mesmo que ele marque um turno de oito horas, as pessoas continuam seu trabalho para fora desse turno, para além dele. Ao escrever um email, ao responder uma mensagem nas redes sociais, ou quando se conectam e interagem, as pessoas seguem num turno criado pela hipermídia, que responde às necessidades do hipermercado do mundo corporativo. A mitologia ajuda a entender como a psiqué humana trata o tempo, ou como se sente em relação a ele. Na Teogonia, de Hesíodo (HESÍODO, 1995) conta-se que o deus-titã, Cronos, acatou pedido de sua mãe e castrou o pai (o tirano Céu) com uma foice. Depois disso, Cronos governou o universo com sua irmã Reia, com quem teve seis filhos. Com medo de ser destronado, Cronos (ou Saturno, na cultura romana) engolia os recém-nascidos. Reia salvou Zeus, deixando-o com sua mãe, Terra. Quando Zeus cresceu, iniciou uma rebelião contra o pai. E por causa de uma poção que bebeu, Cronos vomitou os filhos que tinha devorado. Assim, Zeus se tornou o senhor dos deuses ao banir os Titãs para o Tártaro. Cronos foi aprisionado no mundo subterrâneo. Em grego, Kronos significa Titã do tempo. Cronos é a metáfora do próprio tempo na mitologia grega, que é base para toda a forma de pensar na cultura ocidental. Ou seja, o tempo que assume o controle do mundo, castrando o próprio Céu (pai de Cronos). O tempo que devora seus filhos. O tempo que perde sua coroa e é aprisionado no subterrâneo. A relação do ser humano ocidental com o tempo sempre foi de eternidade. Como durar mais ou como estender a vida humana. O investimento histórico em tecnologia também serve para assumirmos um papel de Deus: reescrever nosso código genético, melhorar nosso desempenho como espécie, alongar a vida, torná-la mais forte, mais rápida, mais inteligente. Quando faltam pernas, a ciência cria pernas mecânicas. Quando faltam órgãos, criam-se os transplantes para órgãos naturais, ou artificiais. Quando falta comunicação mais rápida com o mundo todo, cria-se a internet. Não se fala mais de eternidade. Já há uma eternização do ser humano em andamento. O que importa agora nos tempos contemporâneos é viver o presente sempre. Ou, como diria Vija em Cosmopolis:

Eu adoro o brilho das telas. É o brilho do capital cibernético, tão radiante e sedutor. Não entendo nada disso. Ele chega a parar, ele desacelera? É

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fantástico.(...) A ideia é tempo. É viver no futuro. Veja aqueles números passando. O dinheiro cria o tempo. Costumava ser o oposto. O relógio acelerou a ascensão do capitalismo. As pessoas pararam de pensar na eternidade e pararam para se concentrar em horas, horas mensuráveis, homens-hora usando o trabalho de forma mais eficiente.

(VIJA, teórica de Eric, em Cosmopolis)

A ideia de ver os números passando está na sala de Joh Fredersen e na limusine hightech de Eric. O dinheiro cria o tempo porque ele também define o futuro. Ele traz o futuro para o presente. O dinheiro castra o passado, devora o presente e aprisiona o futuro. Na contemporaneidade de Cosmopolis, o tempo, cada vez mais fugaz, é apenas uma mercadoria do sistema financeiro. É emblemático o diálogo de Vija e Eric, na limusine, enquanto há uma manifestação contra a globalização nas ruas. É o auge teórico do filme de Cronenberg. Ela pede que Eric diga a máxima anarquista: “a ânsia de destruir é uma ânsia criativa”. Vija, então, completa: “Os capitalistas dizem o mesmo - destruição forçada, velhas indústrias devem ser eliminadas, novos mercados devem ser abertos à força: destruir o passado, fazer o futuro”. Um pouco antes, Eric fala com sua mulher (estão casados há poucas semans), Elise Shifrin. O diálogo é longo e discorre, em linhas gerais, sobre sexo (que ele quer fazer com a mulher, mas ela se recusa por causa de suas suspeitas de traição de Eric com outras mulheres). Eric quer consertar o casamento, que estava desmoronando. Eric diz que as pessoas vivem minutos. Elise reclama. Pede que ele não comece de novo a contar o tempo e fazer discussões solenes sobre o assunto. Ele diz que os dois deviam discutir isso. Elise concorda. Então ele pergunta se ela quer fazer sexo com ele, porque, segundo Eric: “Não há tempo para não fazermos sexo. O tempo fica mais curto a cada dia”. Primeiro, a dupla negativa da afirmação inicial. Ou seja, há tempo para que eles façam sexo. Porque Eric controla esse tempo. Se ele quiser, e ela também, ambos podem parar o que estão fazendo, entrar num hotel e fazer sexo. Ao mesmo tempo, na segunda afirmação, Eric diz que o tempo está ficando mais curto a cada dia. Ou seja, eles têm tempo para o sexo, mas ela precisa querer, e querer logo, porque o dia é curto, a vida é curta, a vida acaba em minutos. Eles têm esses minutos, mas precisam aproveitar (carpe diem). Afirmação curiosa. Eric é tão obcecado pelo tempo de sua própria vida, que consulta um médico todos os dias, onde estiver. Em Cosmopolis, o doutor está dentro da limusine avaliando, entre outras coisas, a próstata de Eric (o médico termina dizendo 106 que a próstata dele é assimétrica). Enquanto isso ocorre, ele está conversando com outra funcionária, que estava correndo e está suada, com roupa de corrida e uma garrafa de água ou isotônico. Mas dessa cena falarei mais adiante. A teórica Vija (Samantha Morton) pronuncia as palavras cuidadosamente, para que ninguém perca o significado delas. Segundo Vija, o capital cibernético cria o futuro:

O presente está mais difícil de se encontrar. Foi arrancado do mundo para dar lugar ao futuro de mercados sem controle e enorme potencial de investimento.

(VIJA, teórica de Eric, em Cosmopolis)

Vija afirma que é exatamente por isso que algo logo irá acontecer (em referência ao mercado e aos movimentos de revoltas populares nas ruas). Para ela, “os manifestantes querem corrigir a aceleração do tempo e tentar trazer a natureza de volta ao normal”. O que seria esse normal? A volta para a modernidade do período entre guerras, dos filmes Metropolis e Tempos Modernos? Ou a volta para o período anterior à Revolução Industrial? É difícil conceituar o que seria o normal. Lipovetsky fala do reinado da urgência (LIPOVETSKY: 2004) em sua explicação da hipermodernidade. A sociedade adora o novo. E esse novo dura pouco tempo. Um dia, uma semana no máximo. Eric argumenta com Elise sobre a fugacidade do tempo. E que por isso eles devem fazer sexo (para retomar o casamento ou para terminá-lo com algo bom). Ele diz que as manifestações tinham acontecido há algumas horas, e que já foram esquecidas, porque é assim que as coisas funcionam. Elas são logo esquecidas. O instante do vento leve sobre os cabelos, a eternidade do beijo apaixonado ou a fração do tempo no tempo de um abraço parecem ser coisas esquecidas em Cosmopolis, mas não por Elise. Ela caminha pela Nova York caótica, em busca de bibliotecas, peças de teatro, por lugares onde há silêncio. Nada daquele barulho que começou após a Revolução Industrial, identificado por Baudelaire, em seus Quadros Parisienses. Baudelaire era um vanguardista, antagônico aos vanguardistas que seguiam um projeto, que se despersonalizavam pelo projeto. Ele era um típico artista que não se adaptava ao seu presente, e se recusava a perder sua individualidade por causa de uma sociedade fragmentada, coletiva e impessoal.

(MENEZES: 2001, 96)

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Elise foge do barulho baudelairiano. Eric adora o barulho, como deixa claro neste diálogo com sua mulher: A cidade come e dorme barulho. Ela faz mais barulho a cada século. Faz o mesmo barulho que fazia no século XVII, junto com os outros ruídos que evoluíram desde então. O que importa é que a cortiça [colocada em sua lumusine para abafar o barulho da cidade. Algo que não funcionou porque a cidade é muito barulhenta] está lá. Porque [gastar tanto dinheiro para algo que não funciona] é um gesto, algo que o homem deve fazer.

(ERIC, para sua mulher Elise, em Cosmopolis)

A personagem Vija, uma das mais interessantes de Cosmopolis, entende que a vida é longa para os preguiçosos, e curta para os audaciosos. As pessoas não entendem e não aceitam gênios, visionários. A vida está na raiz, e só os visionários veem o fruto antes de florecer. Agamben lembra que o contemporâneo mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber o escuro. Todos os tempos são obscuros e ser contemporâneo é justamente saber ver essa escuridão (AGAMBEN: 2009). Algo como neutralizar as luzes que vêm da época, para descobrir suas trevas, seu escuro especial, que não é separável daquelas luzes. A executiva teórica Vija parece mais próxima de ver esse escuro especial. E como Eric é seu pupilo, é possível acreditar que ele seja mesmo um visionário, porém pouco humano ainda. Eric é uma corporação. É uma parte considerável de um sistema (desenvolvimento) que podemos chamar de inumano, segundo as ideias de Lyotard. Eric é duplamente inumano. Pelo desenvolvimento que ele representa, e pelo indivíduo não-pronto, que ele demonstra ser quando busca sua anamnese ao vivenciar tudo o que acontece no trajeto para o barbeiro. Eric quer a memória. A repetição de um tempo que não volta. O filme de Cronenberg tem 53 segundos de créditos iniciais. A última coisa é uma epígrafe do poeta e ensaísta polonês Zbigniew Herbert. A abertura de Cosmopólis (2012) foi projetada pelo designer Justin Stephenson e pelo estúdio Cuppa Coffe Animation de Toronto.

A câmera parece se deslocar da esquerda para a direita sobre uma superfície que passa, em dégradé, de marrom escuro, na parte de cima, para bege, no centro, e vai sendo salpicada de tinta preta em tons de cinza, à medida que, na metade superior do quadro, os créditos se sucedem, acompanhados pela música de Howard Shore executada pela banda de rock Metric. Sem que se vejam os gestos característicos da action painting, mantidos fora de quadro, a composição final, à maneira de Pollock, sugere a representação abstrata de uma cosmópole. (ESCOREL, 2012, Revista Piauí)

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O título do filme surge em letras pretas no fim dos créditos de abertura. Em seguida há um fade out. No fundo escuro aparece uma frase, em letras brancas. É a mesma epígrafe do romance homônimo de Don DeLillo – uma citação de Zbigniew Herbert (1924-98): “Um rato se tornou a unidade monetária”. A citação é a premissa do filme e do livro. Herbert queria dar sentido ao horror praticado pela civilização. Um sentido que não se eximia de humor. Cronenberg acolheu esse espírito do poeta polonês em seu filme. A epígrafe tem ainda mais relevância porque o poeta em questão foi membro da resistência polononesa contra os nazistas. E durante a repressão política do regime stalinista, sofreu de censura aos seus poemas. Ele é um artista do pós- guerra. O mundo que ele viu é desesperançoso e em ruínas. Depois, viu um mundo dividido entre capitalistas e socialistas. A origem da frase “Um rato...” vem do poema Relato de uma Cidade Sitiada, de 1981 (em anexo). E se trata da época da lei marcial em Varsóvia, ainda sob domínio soviético. Nele, o poeta-historiador lança uma metáfora sobre aqueles acontecimentos. Eram tempos sombrios de renovado totalitarismo. É a defesa da civilização contra a barbárie.

Crônica de uma cidade sitiada

Demasiado velho para pegar em armas e combater como os demais foi-me generosamente atribuído o cargo inferior de cronista e registro – sem saber para quem – a história do cerco

tenho de ser rigoroso mas não sei quando teve início a invasão há duzentos anos em Dezembro Setembro ontem de manhã aqui todos perdemos a noção do tempo

só nos deixaram este lugar a ligação a este lugar governamos sobre ruínas de templos de fantasmas de casas e jardins se perdêssemos as nossas ruínas ficaríamos sem nada

escrevo como posso ao ritmo de semanas sem fim Segunda-feira: as lojas estão vazias o rato converteu-se em unidade monetária Terça-feira: o presidente da câmara foi assassinado por desconhecidos Quarta-feira: rumores de armistício o inimigo pôs a ferros os nossos enviados (...) gosto ao entardecer de passear nos limites da cidade ao longo das fronteiras da nossa incerta liberdade olho de cima a multidão de soldados com as suas luzes ouço o rufar dos tambores e os gritos dos bárbaros é incrível que a cidade continue a resistir (...) olhamos para o rosto da fome o rosto do fogo o rosto da morte e o pior de todos – o rosto da traição e só os nossos sonhos nunca foram humilhados (Zbigniew HERBERT, 1981)

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No romance Cosmópolis, e no filme, os manifestantes que tomaram as ruas de Nova York carregam grandes ratos pretos com eles. Os ratos virando moeda, no poema de Herbert tem outro contexto. As pessoas não têm o que comer (prateleiras vazias) pelo fato de a cidade estar sitiada. Mas Cosmópolis se apropriou da frase e lhe atribuiu um novo significado. Nova York, de certa forma, também estava sitiada no filme. Pelos manifestantes e pela segurança do presidente americano. Eric estava sitiado. Nas ruas não havia dinheiro, havia ratos. O romance Cosmópolis foi publicado quatro anos antes da crise econômica de 2007, e oito anos antes do Occupy Wall Street. Vemos pelas janelas da limusine cenas de protestos nas ruas. Uma pessoa bota fogo no próprio corpo. A câmera passeia lentamente. Um ecrã por outro ecrã ganha força. A tela dentro da tela. Eric e Vija estão dentro da limusine e vemos, pela janela, um espetáculo, um outro cinema. Um videoclipe. A cena não é exibida em seu horror completo, como no livro. Mas Eric e Vija observam a imolação e filosofam rapidamente sobre o tema. Eric não se abala com a pessoa em chamas. Sua insensibilidade obedece a uma lógica própria: por que ele se importaria, ou se chocaria com alguém colocando fogo no próprio corpo? Mas, se há alguma emoção, ela é a da diversão. Sua “guru”, diz que a ideia da imolação não é original. E insiste nisso, como que para desdenhar do ato do manifestante. Vija fala do futuro: é o dinheiro que produz/cria/é o tempo, não mais o contrário. Porque o tempo pertence ao sistema de livre mercado. Em Cosmopolis, qual o motivo da revolta popular? Diferentemente dos motivos em Metropolis e Tempos Modernos, no filme de Cronenberg o tempo presente foi arrancado do mundo, das pessoas. Foi arrancado para dar lugar ao futuro de mercados desregulamentados.

Um indício de inumanidade em Cosmopolis: os amantes falam com frieza e deslocamento. Homens de negócio falam a linguagem da teoria crítica universitária. Seguranças conversam com a objetividade de máquinas. Estes elementos de linguagem, por exemplo, compõe o visual asséptico do filme de Cronenberg. Que é assim porque o diretor quis, e ele quis assim porque é a essência do livro de DeLillo, porque essa é a mensagem: a da assepsia do mundo, da falta de significados da vida atual, que nos transforma em máquinas que falam e pensam sem refletir, pior, sem sentir. O empirismo nos abandonou, ou nós que o expulsamos de nossa humanidade. Justo isso, a experiência pelos sentidos, que exige tempo, calma e processo, justo isso nos dava a inumanidade necessária para chegarmos a nossa humanidade fundamental.

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A parte interna da limusine de Eric aponta para o isolamento digital e para o isolamento dos ricos (como apontado por BAUMAN, 2005). É um isolamento emocional e uma posição alienante de controle sobre o mundo. Da mesma forma que o gamer controla seus heróis, seus jogadores e todo o mundo virtual daquele jogo, o rico de Cosmópolis quer controlar o sistema financeiro mundial. Eric imaginava que a simetria, encontrada na matemática seria suficiente para controlar o mundo. Um número pode ser perfeito na matemática, mas a vida não tem essa perfeita simetria (como sua próstata não a tem). Aqui, Cronenberg atua sobre o corpo novamente, como em seus filmes anteriores. Mas dessa vez, a imperfeição do corpo surge como algo positivo. É um símbolo do que não controlamos, do que não devemos controlar. A próstata é assimétrica. A vida também. Eric sente que perde o controle de tudo e ainda não entende por quê.

Ainda sobre a epígrafe de Herbert, o montador brasileiro e professor de cinema, Eduardo Escorel aponta um uso indevido do verso do poeta polonês em Cosmopolis (livro e filme):

O corte feito na epígrafe não é gratuito. E indica a contradição que afeta o romance e vulgariza o filme. O que atrai DeLillo é a imagem explícita da degradação da moeda e do mundo – ratos, transformados em unidade monetária, em arma por dois jovens manifestantes numa lanchonete e em fantasia numa demonstração de protesto.

(ESCOREL, 2012, Revista Piauí)

Os personagens, todos eles, são caçambas para transportar teorias. Os manifestantes gritam que há um espectro que assombra o mundo. Da mesma forma que os comunistas disseram décadas atrás a mesma coisa, esse espectro é o do capitalismo. Mas é preciso justificar a epígrafe. Então, Eric Packer, 28 anos, bilionário, colecionador de pintura abstrata, leitor de poesia quando está insone, morador de um triplex de 48 quartos, na mais alta torre residencial do mundo, este Eric, conversa com Michael Chin, garoto de 22 anos graduado em economia e matemática, sobre como seria o mundo financeiro se o rato fosse uma unidade monetária. E os dois deliram sobre o tema. Escorel (ESCOREL, 2012) crê que Cronenberg acentua o que o autor do livro, DeLillo, tem de pior: “Fora isso, Cronenberg cria um universo paralelo, habitado por robôs que recitam enunciados vazios”. Escorel vê nisso como fator negativo para o filme. Ele diz que o diretor busca status cultural do chamado cinema independente, e que pretende situar Cosmopolis acima do comercialismo dominante. Mas, para Escorel,

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Cronenberg consegue mesmo é iludir o espectador e trair o poeta (Herbert, da epígrafe do filme). Mas vejo de outra forma. Os enunciados vazios ditos por robôs são o ponto fundamental do filme. Personagens que vomitam teorias, sem realmente sentir o que dizem, explica a atual inumanização vivida pela sociedade contemporânea da era digital. O que é dito, ainda que seja profundo, é dito sem profundidade. É apenas a reprodução do que outro disse. As redes sociais comprovam a teoria com uma enxurrada de frases de escritores (muitas vezes frases que não são deles), frases que são usadas em contextos os mais diversos, como se fossem de auto ajuda. São as epígrafes digitais. A frase original tinha um contexto, uma história, muito mais rica, talvez. Mas é repetida e usada de forma recortada, descontextualizada, e para fins pessoais. (explicar problemas amorosos, políticos, humanos ou sociais). Esse é o copo meio vazio. Se ele for meio cheio, podemos dizer que as frases de escritores – inventadas ou não – jogadas em contextos pessoais nas redes sociais revelam o poder da convergência dita por Jenkins (JENKINS, 2009). Um escritor ganha vida em outras mídias e sua mensagem se transforma, ganha novos contextos e se revitaliza.

Já sobre o tal “status” que Cronenberg poderia querer para seu filme, dito por Escorel, isso é irrelevante. Pelo menos para uma análise desapaixonada do filme. Além do mais, todo filme é comercial e está inserido implacavelmente na cultura pop. Quanto a epígrafe, Cosmopolis fez o recorte que lhe interessava. E não interessava contar a vida e obra de Zbigniew Herbert. De qualquer forma, o que importa da análise de Escorel neste texto é sua aguçada e experiente visão técnica do filme, além de seu vasto conhecimento sobre as referências do filme e do livro.

A primeira imagem de Cosmopolis está fechada na frente da limusine. Ela quase preenche toda a tela. A câmara viaja da esquerda para a direita, e caminha, à altura da cintura dos motoristas e das janelas. Pelo caminho, uma fila de limusines brancas. A câmera para entre dois carros. Ao fundo, Eric e seu chefe de segurança (parecem personagens de Matrix (1999), com seus paletós escuros e óculos escuros e fala dura e matemática). E a primeira fala: Para onde? Quero cortar o cabelo, diz Eric, com seus óculos escuros, cabelo impecável, e visual que lembra o dos personagens principais do filme MIB, Homens de Preto (1997), mas a seriedade de Matrix, como se fosse um dos agentes deste filme. E a epígrafe de Cosmopolis nem é tão fundamental para o roteiro, como é para Metropolis. Em Cosmópolis, ela é só uma linha de pensamento. O que interessa mesmo para o roteiro é outra coisa. Onde mais vemos a inumanidade no

112 filme? Ela conduz as ações dos seguranças de Eric. A inumanidade do desenvolvimento. É preciso manter o atual estado de poder. Por isso há o receio quase paranoico de um atentado. Por quê? Porque Eric (representante simbólico do sistema financeiro) é odiado por representar algo que destrói empregos, enriquece poucos, empobrece muitos e aniquila o tempo. O trajeto da limusine mostra a reação de todos (dentro e fora da limusine) diante das consequências da perda de sentido das coisas, fruto do colapso social.

O “espectro do capitalismo”, frase que aparece algumas vezes em Cosmopolis, e que é usada pelos manifestantes antiglobalização, é uma adaptação da famosa frase de abertura do Manifesto Comunista, de Marx e Engels: “Um espectro está rondando a Europa – o espectro do comunismo”. Este aviso foi dado como um bom agouro. No filme, o aviso de que o espectro do capitalismo ronda o mundo tem sentido oposto. Esse capitalismo alterou a noção de tempo das pessoas, porque se apropriou desse tempo. O relógio que surge em Metropolis e em Tempos Modernos é de turnos. É a vida dividida em módulos de tempo-trabalho. Em Cosmopolis, o tempo se percebe diferente. Lento e veloz. Devagar passa o dia para Eric. Ele se concentra em conversar com as pessoas que cruzam seu caminho até o barbeiro. Eric não tem pressa para chegar. As janelas do carro parecem telas de cinema. A energia das personagens é oposta ao que ocorre fora, provocando uma dialética intensa, que reforça a assepsia do filme. Vija e Eric teorizam sobre dinheiro enquanto há uma revolta popular nas ruas. Torval protege a limusine, luta com alguns manifestantes, e vemos fragmentos disso pela janela do carro. Quando uma pessoa bota fogo em si mesma, o carro, lentamente roda para a esquerda da tela. Vemos por alguns instantes um manifestante pegando fogo. E Eric, se divertindo com aquilo, acha que o manifestante teve coragem. Vija diz que a cena não é original, por isso perde seu valor. Nenhum deles demonstra qualquer atitude de emoção, horror ou sentimento por aquilo: afinal, alguém tinha se imolado ali, ao lado deles. Em outra cena, Eric é avisado de que realmente precisa reforçar sua segurança porque o chefe do FMI foi morto ao vivo, quando dava uma entrevista na televisão, falando sobre a moeda japonesa. Estava na internet o vídeo do ataque. Eric assiste ao homem que fura o olho do dirigente, com a entrevistadora, ao lado, horrorizada. Mas Eric não estava horrorizado. Ele sorri, como se tivesse visto um vídeo de humor no Youtube. Não deixa de ser curioso que Vija e Eric nada tenham se horrorizado com o homem que botou fogo em si mesmo. Naquele momento estava ela, Vija, falando justamente sobre isso. Que os capitalistas (como Eric, e, por que não, ela própria) eram 113 odiados porque perderam a capacidade de se horrorizar com as mazelas que eles mesmos provocaram com seu sistema financeiro. Quando finalmente Eric chega ao local para cortar o cabelo, Anthony, o barbeiro, já havia fechado a loja. Mesmo assim recebe Eric por ser um velho conhecido. O jovem empresário busca motivação. Questiona sua vida. A cena: Eric cortando o cabelo, Anthony falando sobre o passado de Eric, histórias do pai de Eric, ou sobre a própria vida dele, Anthony; o motorista da limusine também conta histórias de seu passado. E nesse contexto de memórias, Eric sente-se aliviado. Há na barbearia um cenário de coisas velhas (desgastadas pelo tempo) e antigas (com histórias, com encantamento). Era tudo isso o que Eric buscava. Um retorno à memória. Era sua anamnese. Cronenberg fez o filme na maior parte das vezes em interiores: dentro da limusine (claustrofóbica), dentro da lanchonete (suja, impessoal), dentro da biblioteca (limpa, asséptica), dentro de um quarto de hotel barato (ninho sexual), no apartamento de Benno Levin, o antagonista (desorganizado, pouco iluminado), o banco de trás de um táxi (primeira conversa com sua mulher Elise). Poucas vezes vemos exteriores, como no enterro do rapper. O filme é todo “interior”. É todo “corpo”. A barbearia é o corpo da memória. O local para onde Eric queria retornar. Num momento da cena, Eric pergunta a um de seus seguranças se ele já matou alguém. Em outro, Eric é avisado que uma pessoa tentará matá-lo nesse dia. Em nova cena, seu ídolo musical falece e ele chora. Também há o momento em que sua bilionária mulher quer o fim do casamento, que mal tinha começado. Eric, sem dinheiro, sem esposa, sem o amigo rapper, com seu carro destruído por fora pelos manifestantes, sendo perseguido por um assassino, ainda assim, não sabe qual o sentido de sua própria vida. Ele não se importa. Pega a arma de seu chefe de segurança, Torval, e o mata sem mais nem menos. Aparentemente, Eric pensava nisso porque fazia sexo com a namorada de Torval e temia que o segurança o matasse por isso, caso descobrisse. Ou ele fez para sentir algo, alguma coisa. Ele foi desumano? Ou ele estava tentando descobrir sua humanidade perdida? Ao sair da barbearia, ele finalmente encontrou seu assassino. Na casa de Benno Levin, Eric tentou mais um ato de insanidade. Atirou em sua própria mão. Dor (que revelasse ter algo dentro dele), angústia, crueldade. Nada sentiu além da dor física. Só restava então uma coisa. Aceitar a morte. Morrer era o fim do relógio, era o fim do tempo acelerado, do tempo da urgência. Morrer poderia ser a tecla que ele deveria ter apertado há muito tempo. O assassino aponta a arma para a cabeça de Eric. Ele está de olhos

114 fechados. Abre-os. O filme acaba. Nem ouvimos o tiro. Eric morreu? Ele já estava morto, sempre esteve. Por isso queria sentir algo estimulante, provocante. Humano. Eric tinha completado seu “treinamento” para ser humano, mas não tinha se tornado um. Ainda era inevitavelmente inumano. Porque lhe faltava aprender sem urgência, sem presentismo. Faltava para ele valorizar o passado. A memória. O tempo não pode ser comprado, ele precisa ser sentido. Eric quis controlar o tempo e se perdeu. O ponto de vista da câmera, algumas vezes, é de Eric. E mesmo quando não é, diretamente, o é, indiretamente. Porque toda a história é do ponto de vista de Eric. A cena da biblioteca, a câmera é subjetiva. Ela se movimenta no ritmo dele, na altura de Eric. A câmera procura, ainda não sabemos quem, até que ao sair de uma estante, vemos Elise. Quando confessou para a sua mulher Elise que estava perdendo todo o dinheiro e que estava sendo ameaçado de morte, ela achou um absurdo ele não se importar. “Não se importa em ficar pobre e morrer?” Elise é poetiza. Sua função na história é sentir. Ao mesmo tempo, ela vive alheia ao mundo caótico contemporâneo. Parece tão asséptica quanto Eric. Para alguns ela seria uma jovem esnobe e rica. Mas talvez ela seja um tipo de ser contemporâneo, dentro da concepção de Agamben. Embora Nietzche visse os contemporâneos como intempestivos (AGAMBEN: 2009, 58), Elise é calma. Foge de assuntos que não lhe interessam. Parece viver em outro ritmo, outro fluxo de tempo. Mas sabe que é traída, por causa do cheiro de sexo em Eric. Mas não sabia que os olhos de seu marido são azuis. Ela sabe que Eric precisa viver inflamado (em combustão, estimulado). Cada vez que se encontram, Eric havia perdido alguma peça de roupa (fruto de suas aventuras sexuais com as amantes). Quando sai de casa, no início do filme, ele está de paletó, gravata, óculos escuros. Na segunda vez que vê Elise já está sem gravata. Quando a vê de novo, está sem paletó. E ela sempre repara e pergunta onde está a gravata, onde está o paletó etc.

Um homem inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe, em todo caso, que lhe pertence irrevogavelmente, sabe que não pode fugir ao seu tempo. A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias;(...) Aqueles que coincidem muito plenamente com a época (...) não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela. (AGAMBEN: 2009, 59)

Se Elise não é contemporânea, ela é, pelo menos, nostálgica, de um tempo em que não havia preocupação com o tempo. Elise não sabe ser indiferente. E a indiferença é uma das características da sociedade em Cosmopolis. Sim, ela vive em seu próprio

115 mundo, é individualista, fragmentária como todos da era digital. Mas na era da urgência, os jovens procuram um milhão de amigos virtuais. Elise não procura ninguém. Ela parece estar em permanente estado de anamnese. As possibilidades do silêncio (tanto apreciado por Elise), a longevidade inesperada de um sorriso (quando Eric lhe conta algo pessoal, de sua infância), tudo isso está perdido no caos da cosmópolis que é Nova York. Elise é poetiza, mas não recitou poema algum no filme. Nem quando Eric pediu na cena da biblioteca. A falta de rima num poema é considerado sinal de liberdade para o poeta. Liberdade é uma palavra que Eric usa. Ele diz que se sente liberto por estar perdendo todo seu dinheiro e por estar sendo ameaçado de morte. O tempo é um poema sem rima. Mas Elise é pragmática. Como ele poderia estar feliz em ficar pobre e morrer? O tempo não pode ser um remo sem canoa, ou uma caminhada sem rumo. Talvez fosse para Eric. Ele não sabe para onde vai (além do barbeiro) ou o que quer. Apenas, quando quer, compra. O dinheiro é o seu tempo. Elise diz que por não ser indiferente (às traições sexuais de Eric) está suscetível à dor. Eric acha que isso não é um problema. É bom (sentir dor). Eric não sente dor de verdade, mas busca isso durante sua ida ao barbeiro. A personagem Didi Francher (de 41 anos) tem uma opinião diferente sobre Elise. No início do filme, está falando de Elise com Eric, depois de terem feito sexo. Falam da juventude e da falta de interesse por sexo que Elise demonstra ter. Didi afirma saber qual o verdadeiro problema de Elise, e sentencia: “a vida é contemporânea demais”. Elise seria, então, demasiado contemporânea? Benjamin falou do tema:

O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo. (BENJAMIN: 1996, 192)

O filme Cosmopolis é contemporâneo. A Torre de Babel de Metropolis também está no filme de Cronenberg, sob outra forma, não de um edifício, mas com seus personagens de vários países. Em Cosmopolis os seguranças têm sotaques diferentes. Um deles é africano. Outro parece ser russo. O próprio Eric é “cidadão do mundo com coragem novaiorquina” (o ator Robert Pattinson é inglês). Didi é francesa. Sua executiva teórica (interpretada por Samantha Morton, inglesa), Vija, parece ser do leste europeu. O homem que joga torta no rosto de Eric é francês com sotaque carregado no filme. Metropolis era uma visão de futuro da humanidade. Uma Cosmópolis de 2026. As

116 semelhanças são muitas. Cosmopolis amplificou a fragmentação da sociedade. Ressignificou a luta de classes entre trabalhadores e empresários, para corporações versus humanidade. Cosmopolis eliminou a coletividade. As afetividades se diluíram numa rede virtual conectada a tudo e a todos. As pessoas estão isoladas e conectadas ao mesmo tempo. O filme de Cronenberg vive das conversas de Eric com os outros. O cenário é o interior da limusine. Há momentos de quebra de ritmo com sobe-sons da trilha (de Howard Shore). O momento em que Eric, personagem indiferente a sentimentos, realmente parece sofrer por alguém, é na cena em que um rapper (Brutha Fez), amigo e vizinho dele, morre. Na verdade, uma das várias coisas que atrapalham o trânsito em Nova York é o funeral, justamente do rapper. Kosmo Thomas, um amigo – negro, gordo, forte, com roupa e apetrecos de rappers, fora do padrão de amizades elitizadas de Eric – entra na limusine para contar da morte do rapper Brutha Fez. Kosmo fala que o funeral nas ruas é para durar o dia todo. Eric verdadeiramente sofre com a notícia. Ele adora a música de Fez. Em seguida, são mostradas cenas do caixão com Brutha Fez dentro dele, durante o funeral, (“a Morte, onde quer que você vá, irá pegar você”, é um trecho da letra da música que acompanha a cena). Eles contam histórias do amigo. No final da conversa, abraça o grande (literalmente) amigo Kosmo. Ambos se emocionam, pode-se dizer até que choram (pelo menos Kosmo Thomas chora). E como se fosse um videoclipe, ouve-se a música Mecca, cantada por K’Naan (é o ator que interpreta Brutha Fez). O futuro chegou em Cosmopolis. E não parece ser feliz. Vija sabe o motivo:

Estamos todos altivos e felizes no futuro. É por isso que o futuro fracassa. Não pode ser o lugar cruel e feliz que queremos que seja.

(VIJA, teórica de Eric, em Cosmopolis)

Eric recebe Jane Melman. Ela estava de folga e praticava corrida por Nova York. Ela veio para contar que a moeda chinesa não está caindo, continua subindo, o que significa que Eric continua perdendo dinheiro. Muito dinheiro. Ao mesmo tempo, Eric está sendo atendido pelo médico. Ele faz exames rotineiros todos os dias. Todos os dias. Quando o médico faz um exame de sua próstata, Eric conversa normalmente com Jane, que parece ficar constrangida em ver Eric nu na maca, olhando seu rosto, se contorcendo por causa do exame. Enquanto o médico examina a próstata, Eric fala, faz caretas e fala com dificuldade. A cena mostra Jane com a garrafa de água entre as

117 pernas. Ela aperta a garrafa, cada fez mais, entre suas pernas. Obviamente a cena tem conteúdo sexual. O próprio Eric toca no assunto. Diz que existe tensão sexual ali entre eles. Ela está claramente excitada de ver o rosto de Eric enquanto alguém (o médico) coloca o dedo no ânus dele. Há uma sugestão de que Eric e Jane fizeram sexo, porque logo depois ele encontra sua esposa e ela diz que Eric está com cheiro de sexo. Eric não tem reações normais, ou melhor, respostas emocionais, comuns a qualquer pessoa. Por isso suas cenas cômicas não soam tão cômicas. As dramáticas também não. Tudo é meio sem sabor. A interpretação do ator Robert Pattinson colabora para isso. Quando faz sexo com suas amantes, ele não para de falar sobre coisas que tiram o conteúdo de excitação das cenas. Cronenberg trabalhou o anticlimático o tempo todo. As cenas eróticas, ou sensuais, se tornam assépticas. A direção de Cronenberg privilegia o ponto de vista (direto ou indireto) do personagem, que é asséptico. O segurança de Eric, Torval, lhe deu a notícia de que havia uma ameaça real a sua segurança e sugeriu, novamente, que desistisse de querer cruzar a cidade naquele dia tão tumultuado. Mas Eric disse: “Ainda queremos o que queremos: cortar o cabelo”. Eric é plural, na primeira pessoa. Obviamente ele não é um só. É um conglomerado. No mundo globalizado e midiatizado não importa mais ser um rei, ou imperador. O que interessa é ser muitos ao mesmo tempo. Eric é o presidente da Steel Corporation, de Tempos Modernos. É Joh Fredersen, de Metropolis. Agora, esse tipo de capitalista é mais jovem, mais egoísta, mimado como Kane, em Cidadão Kane (1941). Os humanos-engrenagens, de Tempos Modernos, não existem em Cosmopolis. O princípio sim. A sociedade conectada segue o padrão de pertencer a um sistema que rege sua vida. Mas as pessoas não são engrenagens de uma máquina fordista. Agora são bites, conectadas aos aplicativos, aos tablets, celulares e redes sociais. Se Eric fosse um poema de Elise, ele não teria regras, não haveria rimas, nem métrica. Seu estilo seria o da vontade, o desejo de possuir, de consumir, como uma gigantesca boca da Máquina-Moloch, mas não para devorar trabalhadores. Eric devora seu presente, neófilo por excelência, é um consumidor de tempo, dos outros principalmente. Todos com o tempo a sua disposição. Eric é o novo Cronos, sem filhos que lhe destronem. É um titã que fala muitas vezes na primeira pessoa do plural. Ele, que consome o tempo dos outros, acaba por consumir a si mesmo. Por isso a morte não faz diferença. E a lágrima no final do filme é apenas uma despedida simbólica. Ele sabe que será esquecido pouco tempo depois, como tudo é nesses tempos de alta velocidade, nesses tempos contemporâneos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sobre humanos: que futuro os filmes preveem?

Chaplin não prevê um futuro, mas sugere que ele não seja tecnicista. E sugere que se olhe primeiro para o presente, antes de inventar o futuro desumano. Ele sugere que comecemos de novo inumanos, como Carlitos. Já Lang imaginou um futuro dividido, injusto. Mas que seria resolvido se um líder interligasse as duas partes. O cientista tecnicista não-cristão é o culpado. Não o criador do sistema (Fredersen). Lang viu o futuro baseado na coletividade, comandada por um líder progressista, quase humano, quase máquina. E Cronenberg não viu o futuro. Viu o presente porque o futuro já aconteceu. O futuro é Cosmopolis. E o que será daqui para frente? Tanto Chaplin quanto Lang retrataram, cada um a seu modo e estilo, as consequências da industrialização, da mecanização do trabalho, da desumanização da sociedade. Metropolis dá o primeiro suspiro ao fascismo que viria depois. Tempos Modernos não se envolve diretamente em política, mas dá um chute no traseiro da Revolução Industrial e seu tecnicismo. Carlitos certamente não daria um braço direito em nome do progresso, como Rotwang. Mas talvez aceitasse perder um braço se tivesse comida no prato todos os dias de sua vida. A hipotética cena dele perdendo o braço por uma comida seria hilária, porque certamente outros objetos seriam destruídos até que isso terminasse. Rotwang disse que ninguém seria mais capaz de diferenciar o homem-máquina de um mortal. Realmente, qual seria a diferença? O estado de inumanidade poderia ser atingido pelos dois. O vazio de significados (presença marcante na era digital) poderia estar nos dois também. Se retirássemos dos robôs sua vida eterna e déssemos a eles o tempo que temos? Sim, o tempo e a memória experimentada. Essas são coisas irremediavelmente humanas. Para o presidente da fábrica onde Carlitos trabalhava, para Rotwang, ou Fredersen, ou Eric, é preciso destruir um pouco para construir muito. Filosofia parecida com a dos artistas do Manifesto Futurista. Ponto de vista que pode justificar uma série de atrocidades. Tudo depende de como o argumento é usado. Rotwang perdeu o braço direito. Mas ganhou um braço mecânico. Mais forte e menos humano. As intenções acerca dos avanços tecnológicos contam, sim. Avançar, progredir, criar é sempre bom para a humanidade. Mas as intenções do avanço, do 119 progresso, da criação de algo, elas devem ser levadas em conta. Quem está ganhando com esse progresso? Qual parte da humanidade está perdendo? É justo? Abaixo da cidade superior, com degraus de acesso, existe a área das máquinas, incluindo a Máquina-Moloch, a Máquina do Pai-Nosso e a Máquina Principal, centro de energia da cidade. E muito, muito abaixo da superfície, fica a Cidade dos Trabalhadores. Com este ‘desenho’ temos a visão marxista (embora o filme não faça isso intencionalmente) de luta de classes: ricos em cima, trabalhadores embaixo. Eu acrescentaria ainda as máquinas entre eles. A metáfora é direta. As máquinas (ou tecnologia, ou ciência) têm dois papéis. Um para os controladores/financiadores destas máquinas. E outro para os que trabalham nelas. Em Metropolis, a ciência (máquinas, tecnologia) não está a serviço de toda a humanidade. Gramsci (1891-1937) admite que o proletariado poderia ser cooptado pelo sistema (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007: 58). Ele parte de algumas contradições do marxismo sobre a identidade do proletariado. Por exemplo: tal identidade é criada pelo próprio sistema, que definiu o trabalhador de forma fixa. Desse modo o proletariado não poderia mudar o sistema porque ele próprio era um sistema fechado. E se o proletariado se altera o tempo todo, como poderia fundar a história, se estava em mutação histórica? Gramsci admite que o trabalhador poderia não cumprir sua tarefa e ser engolido pelo sistema que o oprime. Essa e outras leituras afastaram Gramsci do marxismo clássico, cujo pressuposto era a revolução. Marx dicotomiza o poder. Já Foucault (FOUCAULT, 1984) considera que todo poder implica em resistências. Ele entende que o poder permeia toda a sociedade e existe no próprio corpo do indivíduo, que é o micropoder. Esse micropoder não é criação do Estado, podendo estar ou não ligado a ele. Toda dominação é um efeito de obediência. E ele é facilmente aceito porque somente exercendo parte de si mesmo é que o poder é tolerado (FOUCAULT, 1984). Dito isso, o filme Metropolis tem o poder definido assim: o cientista Rotwang controla o conhecimento da tecnologia. Fredersen controla a cidade e, portanto, tem poder sobre Rotwang. Maria é a líder espiritual dos trabalhadores. Grot se torna líder sindical dos trabalhadores somente na sequência final do filme. Maria tem poder – não intencional - sobre o filho de Fredersen porque o jovem se apaixonou por ela. As máquinas e a androide do filme são transformadas em grandes responsáveis pelos males de todos, porque os trabalhadores se voltam contra elas, como se fossem as máquinas as reais culpadas por sua opressão.

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Freder tem uma visão em que uma das máquinas se transforma no rosto de Moloch. Ele é um deus que se alimentava de recém-nascidos e era adorado pelos amonitas, uma etnia de Canaã, no Oriente Médio, por volta de 1900 a.C. A metáfora é óbvia. Gerações são sacrificadas ao deus Capitalismo, que se alimenta de pobres e de todos os que vivem da força do seu trabalho. O novo Moloch tem obsessão pelo lucro. Em Levítico, capítulo 20, versículos 2-5, Deus manda um recado aos judeus e aos estrangeiros das terras de Israel: que parem de fazer sacrifícios a Moloch ou sofrerão punições severas, que vão de apedrejamentos, expulsão da comunidade até a morte. O mesmo vale para quem acorbertar os adoradores de Moloch. Essa é a visão de Lang em Metropolis. As máquinas sugam a vida dos trabalhadores, que são diariamente sacrificados à Máquina-Moloch. E Joh está sendo anticristão. Vale ressaltar que o empresário e mentor desta realidade futurística é Jon Fredersen. Ele é o ‘cérebro’ da cidade. E, na visão de Joh, para que a sociedade moderna tenha progresso, conforto e segurança, deve ela perder um braço (ter suas vidas humanas exploradas ou escravizadas). Ou seja, os operários seriam, metaforicamente, o braço direito perdido de Rotwang? Aquele braço que vale a pena perder em nome da ciência e do progresso? Creio que sim. Em Tempos Modernos, Carlitos tenta mas não consegue fazer parte do sistema moderno. Já Eric se rebela (inconscientemente) contra o mundo que o criou e lhe deu poder. Fredersen dá a mão para o operário (que ele explorava em nome do progresso). Eric, Fredersen, Freder e Carlitos. São todos inumanos. Por motivos diferentes, são quase humanos. A trajetória de Eric é a de volta ao tempo. Um reboot em sua vida incompleta. A trajetória de Fredersen é a do empresário que abandonou seus sentimentos (se ele já os teve mesmo) após a morte de sua mulher. Ele reencontrou um pouco disso quando viu seu filho em perigo. Seu filho é uma parte sua, é a continuidade, é a perpetuação. A inumanidade de Fredersen ainda é a do desenvolvimento que não quer perder seu poder. Fredersen, individualmente, é adulto. Aprendeu tudo o que podia para viver no mundo. Na verdade, ele criou esse mundo. Fredersen é a própria referência. Já Freder fez uma trajetória de herói. Saiu da alienação total em que vivia para a paixão por uma mulher do mundo oposto ao seu. Sentiu as dores do povo de baixo e se rebelou contra esse sofrimento social. Freder viveu a trajetória da inumanidade individual. Ele aprendeu a sentir, a ter senso coletivo e humano. E terminou unindo seu pai (capitalista insensível) ao povo (trabalhador explorado). Mas ele ainda é ingênuo. Carlitos é a essência do inumano individual. Ele precisa de tempo para

121 aprender. Precisa da lentidão porque a velocidade lhe faz mal. Carlitos é a trajetória do homem que recusa o modelo de modernidade e retorna para o tempo do sol. Os três filmes (Metropolis, Tempos Modernos e Cosmopolis) possuem personagens-heróis, ou anti-heróis, inumanos. Com trajetórias de luta contra o tempo acelerado ou de luta contra a perda da memória. Nos três filmes a tecnologia assume papel relevante. Ela assume o papel de transmitir nossa hereditariedade e de contar nossa história. A vaca que aparece em Tempos Modernos não é mais a mesma. Hoje ela é outro animal, praticamente produzido em laboratório. Um ser que consome alimentos geneticamente modificados. E seu leite nem é mais natural como no sonho de Carlitos. Já sai modificado. E vai para a fábrica ser ainda mais modificado. Nossa vida é um produto midiatizado. E essa trajetória começou com o sonho de usar a tecnologia para acelerar o tempo e proporcionar mais felicidade para a humanidade. Mas felicidade é assunto complexo que poderá ser explorado em uma futura tese. E o que será daqui para frente? Os manifestantes conseguirão corrigir a aceleração do tempo? O sistema financeiro (Moloch) continuará engolindo nosso tempo, nossa vida? É possivel que a banalização da imagem no mundo digital globalizado venha a cristalizar nossa indiferença diante de tudo. Seria uma boa hora para rezar, uma boa hora para devorar o tempo? E a passagem do tempo naquele dia esculpido pelo vento, em que se sussurra lento em latim vulgar. É hora de refazer, é uma boa hora pra ser sobre-humano (pós-humano?). É hora de ser sublime como o frio varrido pelo ar em movimento, quase sobrenatural (religião das máquinas). Como erguer as mãos para o céu para receber de cima (Maria em Metropolis) a graça que poderia vir de dentro. É hora de . É uma boa hora para ser humano (inumano?). É possível que fiquemos permanentemente entre o estado de inumanidade e o de humanidade asséptica. É possível que fiquemos sem memória (como os androides de Blade Runner). Mas há algo em nós. Algo que provoca uma reação, ainda que pequena, ou imperceptível. Essa reação ao vazio de sentidos e significados pode despertar em nós o desejo de seguir uma trajetória (de limusine para o barbeiro, de elevador ou pelas escadas, para o mundo subterrâneo, ou a pé, pela estrada, em direção ao pôr-do-sol). Essa caminhada que é na verdade para dentro de nós mesmos. Eu acredito em pequenas reações e grandes consequências.

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ANEXOS

Crônica de uma cidade sitiada

Demasiado velho para pegar em armas e combater como os demais foi-me generosamente atribuído o cargo inferior de cronista e registro – sem saber para quem – a história do cerco tenho de ser rigoroso mas não sei quando teve início a invasão há duzentos anos em Dezembro Setembro ontem de manhã aqui todos perdemos a noção do tempo só nos deixaram este lugar a ligação a este lugar governamos sobre ruínas de templos de fantasmas de casas e jardins se perdêssemos as nossas ruínas ficaríamos sem nada escrevo como posso ao ritmo de semanas sem fim Segunda-feira: as lojas estão vazias o rato converteu-se em unidade monetária Terça-feira: o presidente da câmara foi assassinado por desconhecidos Quarta-feira: rumores de armistício o inimigo pôs a ferros os nossos enviados não sabemos onde eles os têm presos isto é onde os mataram Quinta-feira: após uma assembleia tempestuosa a maioria votou contra a proposta de rendição incondicional apresentada pelos mercadores Sexta-feira: a investida da peste Sábado: suicidou-se N. N. o valoroso guerreiro Domingo: não há água repelimos o ataque até à porta oriental chamada a Porta da Aliança eu sei que é monótono tudo isto não vai comover ninguém evito comentários mantenho sob controle as emoções descrevo fatos parece que só os fatos têm valor nos mercados estrangeiros com uma espécie de orgulho quero dizer ao mundo que graças à guerra criamos uma nova raça de crianças as nossas crianças não gostam de contos de fadas brincam aos tiros dia e noite sonham com sopa pão ossos tal como os cães e os gatos gosto ao entardecer de passear nos limites da cidade ao longo das fronteiras da nossa incerta liberdade olho de cima a multidão de soldados com as suas luzes ouço o rufar dos tambores e os gritos dos bárbaros é incrível que a cidade continue a resistir o cerco dura há muito os inimigos atacam-nos à vez nada os une a não ser a vontade de nos destruírem os Godos os Tártaros os Suecos as tropas do Imperador regimentos da Transfiguração do Senhor

130 quem os pode enumerar as cores dos estandartes mudam como as duma floresta ao longe de um delicado amarelo de ave na primavera até ao preto invernal passando pelo verde e assim à noitinha libertado dos fatos posso meditar em longínquos assuntos passados por exemplo nos nossos aliados de além-mar cuja compaixão é sincera eu sei enviam-nos sacos de farinha conforto toucinho e bons conselhos sem sequer se aperceberem que foram os seus pais quem nos traiu os nossos antigos aliados do tempo do segundo Apocalipse mas os filhos não têm culpa merecem a nossa gratidão e por isso agradecemos eles nunca passaram pela eternidade de um cerco as pessoas marcadas pelo infortúnio estão sempre sozinhas defensores do Dalai Lama dos Curdos e dos afegãos no momento em que escrevo estas palavras os partidários do compromisso ganham uma ligeira vantagem sobre a facção dos destemidos habituais são as oscilações de ânimo o nosso destino está ainda a ser pesado os cemitérios tornam-se maiores diminui o número dos defensores mas a defesa continua e continuará até ao final e se a Cidade cair e apenas um de nós sobreviver esse levará dentro de si a Cidade pela estrada do exílio será ele a Cidade olhamos para o rosto da fome o rosto do fogo o rosto da morte e o pior de todos – o rosto da traição e só os nossos sonhos nunca foram humilhados

(ZBIGNIEW HERBERT)

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