PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Letras

Luiz Manoel Castro da Cunha

AS VEREDAS FEMININAS DO “GRANDE SERTÃO”, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA, NA TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA FOTOGRÁFICA DE MAUREEN BISILLIAT

Belo Horizonte 2014

Luiz Manoel Castro da Cunha

AS VEREDAS FEMININAS DO “GRANDE SERTÃO”, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA, NA TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA FOTOGRÁFICA DE MAUREEN BISILLIAT

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em cotutela com a Université Stendhal – Grenoble 3 (France), como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa.

Orientadores: Dra. Márcia Marques de Morais Dr. Bernard Emery

Belo Horizonte

2014

FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Cunha, Luiz Manoel Castro da C972v As veredas femininas do “Grande Sertão”, de João Guimarães Rosa, na tradução intersemiótica fotográfica de Maureen Bisilliat / Luiz Manoel Castro da , Belo Horizonte, 2014.

227 f.: il.

Orientadora: Márcia Marques de Morais Coorientador: Bernard Emery Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras.

1. Rosa, João Guimarães, 1908-1967. Grande Sertão Veredas – Crítica e interpretação. 2. . Bisilliat, Maureen, 1931- - Crítica e interpretação. 3. Fotografia. 4. Imaginário. 5. Feminismo na literatura. I. Morais, Márcia Marques de. II. Emery, Bernard. III. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título. IV. Université Stendhal- Grenoble 3. V. Título.

CDU: 869.0(81)-3

Luiz Manoel Castro da Cunha

AS VEREDAS FEMININAS DO “GRANDE SERTÃO”, DE JOÃO GUIMARÃES ROSA, NA TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA FOTOGRÁFICA DE MAUREEN BISILLIAT

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em cotutela com a Université Stendhal – Grenoble 3 (France), como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Literaturas de Língua Portuguesa.

______Prof.ª Dr.ª Márcia Marques de Morais (Orientadora) – PUC Minas

______Prof. Dr. Bernard Emery (Co-orientador) - Université Stendhal – Grenoble 3, France

______Prof.ª Dr.ª Enaura Quixabeira Rosa e Silva – Centro Universitário Cesmac

______Prof. Dr. Philippe Walter - Université Stendhal – Grenoble 3, France

______Prof. Dr. Alexandre Veloso de Abreu – PUC Minas

Belo Horizonte, 19 de novembro de 2014.

À minha mãe Aurita Castro da Cunha e ao meu pai Manoel Hortêncio da Cunha (in memoriam)

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Centro Universitário Cesmac pelo apoio do Reitor Dr. João Sampaio e do Vice-Reitor Prof. Dr. Douglas Apratto; agradeço também à Pró-reitora de Pesquisa e Pós- graduação do Cesmac, Prof.ª Ms. Claudia Medeiros, sem os quais este trabalho ficaria inviabilizado. Aos meus orientadores, por compartilharem conhecimentos: Prof.ª Dr.ª Márcia Marques de Morais, da Pontifícia Universidade Católica (PUC Minas), e também ao orientador na cotutela, Prof. Dr. Bernard Emery, da Université Stendhal – Grenoble 3, France. Meus agradecimentos também a minha coorientadora, Prof.ª Dr.ª Enaura Quixabeira. Agradeço a todos os professores e ao corpo de funcionários do Programa de Pós- graduação em Letras: Literaturas de Língua Portuguesa da PUC Minas em Belo Horizonte e aos professores de Grenoble, Prof. Dr. Philippe Walter e Prof.ª Dr.ª Maria Eva. Aos meus colegas de trabalho, Coordenação do Curso de Comunicação Social e funcionários que me ajudaram de algum modo a traçar meu caminho nessa jornada. Aos diálogos com minha amiga, Prof.ª Dr.ª Magnolia Rejane, sobre a pesquisa, bem como aos outros colegas do Campus IV – Edifício Professor Elias Passos Tenório. Às minhas amigas, pela ajuda na tradução para o inglês através da professora Tânia Marques, e ao francês com Delphine Billion e Alyshia Gomes. Ao meu amigo Luiz Lemos, pela ajuda na formatação da tese. E meus agradecimentos aos revisores Sidney Wanderley e Djalma Moraes. Aos amigos e amigas, alguns que mesmo distantes me ajudaram: Sineide Siqueira, Isaías Ferro, Ascânio Costa, Luiz Carlos e, também pelo empenho incondicional, a Maria Jeane, durante todo esse período. As minhas irmãs Teresa e Rita, que sempre me ajudaram. E a tantos outros amigos que tenho e fiz durante essa fase dos meus estudos e, em especial, àqueles pela confiança depositada e com a força positiva, acreditando nessa passagem de pós-graduação.

RESUMO

Esta tese realizou uma análise das relações existentes entre literatura e fotografia, tendo como objeto de estudo a obra literária Grande Sertão: Veredas (1956) de João Guimarães Rosa, traduzida em fotografias de Maureen Bisilliat na obra A João Guimarães Rosa (1969). Apesar de a fotografia ensaiar passos na interação com a literatura desde o seu surgimento em 1849, os movimentos de vanguarda é que propiciaram questionamentos sobre o fazer artístico não só na fotografia, bem como da própria arte em geral. O diálogo entre essas linguagens enfatizou-se sobretudo na escola surrealista, considerada como um marco de inovação e pioneirismo artístico nessa inter-relação. Essa interação propiciou um breve conhecimento de alguns nomes da literatura que dialogaram com a fotografia em suas obras, escritores amantes da fotografia, alguns considerados também fotógrafos. Neste trabalho ocorre uma tradução intersemiótica, ou ainda, uma transposição criativa. A imagem fotográfica não serve apenas para ilustrar as palavras do escritor. Ela dialoga com o texto, e essa construção não se dá de maneira aleatória nem direta. A pesquisa demonstrou que o processo criativo de ambos os artistas é o mesmo na diversidade de suas estéticas. Os dois expressam suas especificidades, mas, ao mesmo tempo, revelam equivalências, seja por convergências ou por divergências, viabilizadas por intermédio de imagens metaforizadas do ambiente sertanejo e em seus habitantes. No romance, foi necessária a fragmentação, em forma de legendas, por parte da fotógrafa para dialogar com as imagens, ao menos num primeiro momento. A feminilidade latente na obra é desvendada através da teoria literária, que apresenta um rica fortuna crítica acerca do feminino em Grande Sertão: Veredas. O ensaio fotográfico é acionado ao tempo que se percebe as personagens aflorando nas imagens literárias em suas legendas, além de diversos elementos que emergem, como as imagens relacionadas com o universo durandiano: o elemento feminino, pertencente ao regime noturno. Maureen Bisilliat faz acreditar na possibilidade de ressignificação da obra rosiana, das relações entre a realidade e a ficção, dualidade tão presente desde o surrealismo, que comunga com o Imaginário de Gilbert Durand.

Palavras-chave: João Guimarães Rosa. Maureen Bisilliat. Literatura. Fotografia. Feminino rosiano. Imaginário. Tradução Intersemiótica.

RÉSUMÉ

Cette thèse a été réalisée une analyse des relations existantes entre la littérature et la photographie, ayant pour objet d'étude l'œuvre littéraire Grande Sertão: Veredas (1956) de João Guimarães Rosa, traduit grâce à des photographies de Maureen Bisilliat aux travaux A João Guimarães Rosa (1969). Bien que la photographie ait essayé d‘interagir avec la littérature dès ses prémices en 1849, ce ne sera qu'avec l'arrivée des mouvements avant- gardistes qu'apparaîtra une plus grande interaction entre les deux arts. Ceci favorisera des questionnements sur le « travail artistique », et ce, pas uniquement pour le domaine de la photographie, mais pour l'Art, en général. L'accent est missur cette période de grande interaction, s‘appuyant surtout sur l'école surréaliste, considérée comme innovante et pionnière artistique pour son interaction entre ces deux langages. Dans le domaine littéraire, l'étude sur l'interaction avec les écrivains a favorisé une connaissance sommaire de quelques noms qui ont dialogué avec la photographie dans leurs œuvres, écrivains passionnés par la photographie, ont aussi été considérés comme photographes. Dans cet etude persiste de la traduction intersémiotique, ou une transposition créative. L'image photographique ne sert pas uniquement à illustrer les mots de l'écrivain. Elle dialogue avec le texte et cette construction n'est ni aléatoire ni directe. Le travail démontre que le processus créatif des artistes est similaire, dans la diversité de leur esthétisme. Bien que tout deux expriment leur spécificité, ils partagent des équivalences, qu'elles soient convergentes ou divergentes, transmises grâce à des images métaphoriques de l'ambiance du Sertão et ses habitants. Pour le dialogue inter- sémiotique construit dans A João Guimarães Rosa, le roman Grande Sertão: Veredas a dû être fragmenté en légendes, pour que la photographie puisse explorer à loisir l'univers féminin latent de l‘œuvre. Cette féminité est dévoilée progressivement grâce aux théories littéraires émanant de l'ensemble des critiques parues sur le roman. Le reportage-photo est entraîné à mesure que les personnages affleurent les images, grâce aux légendes, mais aussi grâce aux éléments silencieux qui jaillissent des clichés, rattachés à l'univers durandien: l'élément féminin présenté dans les images appartient au régime nocturne. Maureen Bisilliat fel croire en la possibilité d'une nouvelle signification de l'œuvre de Guimarães Rosa, des relations entre la réalité et la fiction, dualité présente depuis le surréalisme, en accord parfait avec l'Imaginaire de Gilbert Durand.

Mots-clés: João Guimarães Rosa. Maureen Bisilliat. Littérature. Photographie. Imaginaire. Féminin. Traduction Inter-sémiotique.

ABSTRACT

This thesis conducted an analysis of the relationship between literature and photography, with the object of study the work: the novel Grande Sertão: Veredas (1956) by João Guimarães Rosa, which has translated for the photography of Maureen Bisilliat in the work, A João Guimarães Rosa (1969). Since its inception, photography rehearsed some steps in the dialogue with the literature. However, were the vanguard of movements that showed greater interaction, leading questions about the artistic work not only on the picture that tried to consolidate as art as well as art by itself in general. Surrealism can be considered as a landmark dialogue, innovation, artistic pioneer among these languages. In the literature, the study of the interaction with writers provided a brief knowledge of some names in the literature that dialogued with photography in his works, lovers of the photographic medium, were also considered photographers. In this work, we treat photography as a inter-semiotic translation, or even creative transposition. The photographic image is not only meant to illustrate the words of the writer. It dialogues with the text, and this construction does not occur randomly and direct way. The research demonstrated that the creative process is similar on both artists the diversity of its aesthetic. The two express their specificities, but at the same time, they nevertheless share equivalents, either convergences or divergences, enabled through metaphorized pictures of backcountry environment and its inhabitants. In intersemiotic dialogue built on João Guimarães Rosa, it was necessary to fragment the novel Grande Sertão: Veredas in captions for the picture to explore the latent feminine in this work. This femininity has been revealed through literary theory that presents a critical rich fortune about the female in Grande Sertão: Veredas. The photographic essay is driven in that the characters perceive the images surfacing through their legends, in addition to several female members silently emerge from images which related durandiano universe belonging to the nocturnal regime. Maureen Bisilliat, makes us believe in the possibility of reframing of Rosa's work, the relationships between reality and fiction, such as duality present from the surrealism that communes with the Imaginary of Gilbert Durand.

Keywords : João Guimarães Rosa. Maureen Bisilliat. Literature. Photography. Imaginary Feminine. Intersemiotic Translation.

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 Evolução da escrita dos sumérios...... 20

FIGURA 2 A tradução do alfabeto cuneiforme, da Mesopotâmia, para o alfabeto atual, invenção atribuída aos fenícios...... 20 FIGURA 3 Ilustração do Antigo Testamento. Um anjo evita que Abraão sacrifique o seu filho, Isaac...... 25

FIGURA 4 Câmera escura...... 74

FIGURA 5 Índices da obra Primeiras Estórias...... 102

FIGURA 6 Índice referente ao conto ―As margens da alegria”, do livro Primeiras Estórias...... 103

FIGURA 7 Capa e orelhas de Grande Sertão: Veredas...... 107

FIGURA 8 ―Sem título‖ (1969). Mark Rothko...... 167

FIGURA 9 (Apêndice 1) Os quatro cavaleiros do Apocalipse, 1498. Albrecht Dürer...... 195

LISTA DE FOTOGRAFIAS

FOTOGRAFIA 1 Placa de Tell Brack Síria...... 20

FOTOGRAFIA 2 Neblina na cidade de , Brassaï, 1933...... 56

FOTOGRAFIA 3 Madame Bijou. Bar de la Lune. Montmartre, Paris. Brassaï, 1933...... 57

FOTOGRAFIA 4 Prostituta na esquina da Rue de la Reynie com a Rue Quincampoix. Brassaï, 1932...... 57

FOTOGRAFIA 5 Vitrines com manequins masculinos, Paris, Eugène Atget, 1925...... 59

FOTOGRAFIA 6 La Rue Quincampoix, Vue Prise de la rue des Lombards, 4e arrondissement, Eugène Atget, Paris, 1908...... 59

FOTOGRAFIA 7 Seus olhos de avenca...... 64

FOTOGRAFIA 8 Capa do Livro Pro eto de Maiakóvski...... 64

FOTOGRAFIA 9 Fotomontagem de Rodtchenko do poema Pro eto de Maiakóvski...... 6 4

FOTOGRAFIA 10 ―Roupas freudianas, Fortaleza‖, Mário de Andrade, 1927...... 66

FOTOGRAFIA 11 Fotomontagem – A poesia abandona a ciência à sua própria sorte. Jorge de Lima...... 69

FOTOGRAFIA 12 Fotomontagem – Julgamento do tempo. Jorge de Lima...... 70

FOTOGRAFIA 13 Impressões pré-históricas das mãos nas cavernas...... 76

FOTOGRAFIA 14 Anciã com vestes escuras. Sertão Luz e Trevas, Maureen Bisilliat...... 82

FOTOGRAFIA 15 Anciã com vestes claras, Sertão Luz e Trevas, Maureen Bisilliat...... 82 Mulher com vestes de Guerreiro, Sertão Luz e Trevas, FOTOGRAFIA 16 Maureen Bisilliat...... 83

FOTOGRAFIA 17 Imagem obscura, Sertão Luz e Trevas, Maureen Bisilliat... 84

FOTOGRAFIA 18 Menina catadora de caranguejo, O cão sem plumas, Maureen Bisilliat...... 85

FOTOGRAFIA 19 Velha catadora de caranguejo, O cão sem plumas, Maureen Bisilliat...... 85

FOTOGRAFIA 20 Fotografia de capa, A visita, face de mármore de um anjo, Maureen Bisilliat...... 88

FOTOGRAFIA 21 Pedra opala, A visita, Maureen Bisilliat...... 89

FOTOGRAFIA 22 Pedra com aparência abstrata, Maureen Bisilliat...... 89

FOTOGRAFIA 23 A jovem Tomoko Uemura banhada por sua mãe, Minamata, Japão, 1972. Eugene Smith...... 93

FOTOGRAFIA 24 Mulheres velam o corpo de Juan Larra na cidade de 93 Deleitosa, Espanha, 1950. Eugene Smith ...... FOTOGRAFIA 25 Costa leste, Sussex, Inglaterra, 1957. Bill Brandt...... 9 4

FOTOGRAFIA 26 Mineradores ingleses, 1931-35. Bill Brandt...... 94

FOTOGRAFIA 27 Estatueta de Vênus de Hohle Fels...... 11 2

FOTOGRAFIA 28 Estatueta de Vênus de Willendorf...... 112

FOTOGRAFIA 29 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 128

FOTOGRAFIA 30 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 132

FOTOGRAFIA 31 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 137

FOTOGRAFIA 32 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 140

FOTOGRAFIA 33 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 140

FOTOGRAFIA 34 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 141

FOTOGRAFIA 35 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 141

FOTOGRAFIA 36 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 143

FOTOGRAFIA 37 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 143

FOTOGRAFIA 38 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 147

FOTOGRAFIA 39 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 151

FOTOGRAFIA 40 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 152

FOTOGRAFIA 41 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 153

FOTOGRAFIA 42 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 156

FOTOGRAFIA 43 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 157

FOTOGRAFIA 44 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 157

FOTOGRAFIA 45 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 158

FOTOGRAFIA 46 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 160

FOTOGRAFIA 47 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 161

FOTOGRAFIA 48 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 163

FOTOGRAFIA 49 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 164

FOTOGRAFIA 50 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 164

FOTOGRAFIA 51 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 164

FOTOGRAFIA 52 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 165

FOTOGRAFIA 53 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 167

FOTOGRAFIA 54 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 167

FOTOGRAFIA 55 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 168

FOTOGRAFIA 56 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 168

FOTOGRAFIA 57 A João Guimarães Rosa, Maureen Bisilliat...... 172

FOTOGRAFIA 58 Comala, México. Juan Rulfo...... 200

FOTOGRAFIA 59 Tepeaca, Puebla, México. Juan Rulfo...... 200

FOTOGRAFIA 60 Fotografia de Henri Cartier-Bresson. Paredão de fuzilamento...... 201 FOTOGRAFIA 61 Fotografia de Brás Martins da Costa. Levantamento do cruzeiro; Congregação da Missão, Itabira, Minas Gerais 1904...... 205 FOTOGRAFIA 62 Evandro Teixeira – Cavalaria na Igreja da Candelária, massacrando o povo na missa do estudante Edson Luís, morto pela polícia, 1968...... 207

FOTOGRAFIA 63 Migrante nissei. São Paulo, Maureen Bisilliat...... 219

FOTOGRAFIA 64 Torso de uma mulher. Maureen Bisilliat...... 222

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...... 14

2.0 NASCIMENTO DA ESCRITA E SUAS LEITURAS...... 18 2.1 A palavra encontra a imagem...... 22 2.2 O surgimento da imprensa...... 28 2.3 A semiótica peirceana e o imaginário durandiano...... 34 2.4 Tradução intersemiótica...... 39 2.5 Imaginário...... 42 2.5.1 O imaginário e as relações icônico-verbais...... 44 2.6 Algumas considerações acerca das relações entre o verbal e o não verbal...... 45 3 LITERATURA E FOTOGRAFIA – DO CONFLITO À HARMONIA. O NASCIMENTO DE UMA RELAÇÃO...... 50 3.1 A fotografia e o movimento de vanguarda europeu: o Surrealismo. 57 3.2 O Surrealismo e o diálogo estético: literatura e fotografia...... 62 4 BISILLIAT, ROSA, PALAVRAS E VISUALIDADES...... 73 4.1 O retrato...... 73 4.2 O retrato literário maureeniano...... 80 4.3 O encontro com João Guimarães Rosa...... 91 4.4 Maureen Bisilliat: “a cigana irlandesa”...... 94 4.5 A imaginação fotográfica na literatura rosiana...... 98 4.5.1 Um exemplo do verbal e do não verbal em Primeiras Estórias...... 102 4.5.2 A imaginação fotográfica e o verbal e não verbal em Grande Sertão: Veredas...... 104

5 O IMAGINÁRIO FEMININO EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS – A GRANDE MÃE, O MITO DA CRIAÇÃO DO MUNDO EM ROSA...... 110 5.1 Os amores de Riobaldo em Grande Sertão: Veredas...... 114 5.1.1 Nhorinhá...... 115 5.1.2 Diadorim...... 118 5.1.3 Otacília...... 124 5.2 Análise da obra A JOÃO GUIMARÃES ROSA...... 126

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 178

REFERÊNCIAS...... 183

APÊNDICES...... 194

ANEXOS...... 224

GLOSSÁRIO...... 226

1 – INTRODUÇÃO

O objetivo, nesta tese, é analisar o feminino presente na transposição criativa de Grande Sertão: Veredas, decodificada em imagens fotográficas por Maureen Bisiliat, que promoveu uma leitura ressignificada da obra rosiana. O ensaio fotográfico A João Guimarães Rosa, composto de imagens fotográficas de Maureen Bisilliat e acompanhadas de fragmentos da obra Grande Sertão: Veredas, é uma justa homenagem ao escritor, roteirista e incentivador. Nosso trabalho tenta desmistificar a noção de que a imagem serve apenas como mero elemento ilustrador das palavras, embora tal procedimento também seja possível e esperado. O olhar de Maureen Bisilliat encarna um universo em que sobressai o feminino em diversos modos e formas aliadas ao seu fazer fotográfico, que remete aos movimentos de vanguarda europeus, ao surrealismo, de forma inconsciente e de maneira intuitiva, ao compor as imagens fotográficas, ao fazer cortes inusitados, ao sugerir imagens em movimento etc. A interpretação desse universo fundamentou-se também no referencial teórico, no estudo do Imaginário de Gilberto Durand, que indica o regime noturno como pertencente ao mundo feminino que se entrelaçaria com a Psicologia Analítica de Jung, contribuindo para a interpretação e compreensão das imagens relacionadas com o universo feminino. Certamente a teoria literária aliada à leitura do romance guiou a pesquisa, apontando possíveis encaminhamentos ao diálogo palavra e imagem. Acreditamos que haja crescente demanda com relação aos estudos do processo de intersemiose entre as duas linguagens – a literatura e a fotografia; no entanto, a fortuna crítica que se dedica a eles ainda é muito restrita. O romance Grande Sertão: Veredas tem proporcionado aos leitores diversas experiências de leituras imagéticas por sua força metafórica, subsidiadas pelo vasto material existente. A transposição fotográfica proporciona aos leitores mais uma possibilidade de leitura inerente a essa obra. Para este trabalho pesquisamos, primeiramente no capítulo 2, como se deram as primeiras relações entre as imagens metafóricas (palavras) e as imagens visuais, abordamos a complexidade existente entre o ato da criação das palavras e o seu registo desde a Mesopotâmia, fato que não se deu tão rapidamente, pois, para a transposição de fonemas em códigos decifráveis, foi necessário todo um esforço cognitivo e todo um contexto para a realização da palavra escrita. Os pesquisadores acreditam que a invenção da escrita ocorreu devido à finalidade de registrar as transações comerciais, como a venda de animais em um rebanho, dentre outros registros de interesses econômicos. 15

Ainda neste capítulo, enfatizamos os conteúdos teóricos utilizados nesta tese, com o objetivo de esclarecer como ocorre o processo de passagem da óptica literária à fotográfica, sendo necessário saber diferenciar as características de cada uma dessas linguagens e analisar a multiplicidade de sentidos existentes entre elas. A experimentação com a transição entre esses meios expressivos tem sido responsável pelo desenvolvimento de ambas as linguagens, ampliando o conceito de tradução, especialmente sob o crivo da semiótica, que estuda cada uma dessas linguagens e também as passagens de um meio para o outro. Esse processo é chamado por Roman Jakobson de tradução intersemiótica. O estudo do Imaginário propiciou a compreensão de Gilbert Durand, seus Regimes Diurno e Noturno, de modo a fornecer elementos para a análise da obra Grande Sertão: Veredas. Essa opção teórica deve-se à nossa passagem através da cotutela com a Université Stendhal – Grenoble 3, no programa do CRI, Centre de recherche sur l’imaginaire, quando percebemos que tal escolha comunga com os ideais do surrealismo, do universo literário e da semiótica de Charles Sanders Pierce, observando o caráter não cartesiano empregado nessas teorias. No capítulo 3, pesquisamos acerca do modernismo, dando o devido destaque à escola do surrealismo, encabeçada por André Breton, que ressalta em seus Manifestos a necessidade da criação de uma nova arte com padrões estéticos diferentes dos padrões vigentes até então. A obra Nadja, de André Breton, lançada em 1928, inaugura uma nova instância na interação intersemiótica. Dessa vez não qualquer arte, não mais a pintura, gravuras, xilogravuras ou outra representação visual, mas a arte fotográfica é introduzida no diálogo com a obra literária, com finalidade estética. O surrealismo é um componente importante na pesquisa. Através dele constatamos que, na obra de Maureen Bisilliat, mesmo sem muita formalização do conceito da escola, a fotógrafa se apropria de elementos desse movimento. No entanto, são contexto e proposta diferentes, pois o objetivo de André Breton era de ruptura radical com as normas vigentes. A intuição, no entanto, foi um elemento instigante, desencadeador da semiose empregada pela fotógrafa ao se aproximar do universo de João Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas). Intuitivamente a fotógrafa compõe o sertão feminino em sua leitura, cuja releitura resulta na tradução denominada A João Guimarães Rosa. O modo intuitivo de Maurren Bisilliat, juntamente com suas indagações em entrevistas e imagens e sua fortuna crítica, fornece elementos que justificam os conceitos do Imaginário de Gilbert Durand. Tais elementos se interligam por sua vez e contribuem para o 16 entendimento do seu imaginário, ao lado do surrealismo de André Breton e da semiótica perciana, além da crítica literária estudada. Fizemos, nesse mesmo capítulo, um breve inventário da interação entre literatura e fotografia, verificando a presença do elemento fotográfico na literatura. Escritores como Marcel Proust tinham verdadeira obsessão pelo retrato fotográfico; já o fotógrafo Brassaï acreditava em uma correspondência de sua fotografia com a obra proustiana, mesmo que jamais tenham se encontrado em vida. O mesmo ocorre com o escritor Fernando Pessoa. Seus heterônimos encarnam um olhar semelhante à visão de um fotógrafo. A escritora assimilava o seu olhar fragmentado: em flash, como diz a escritora, o tempo fragmentado, frações de segundos, é captado e percebido em sua obra. Elementos que atestam a existência do fenômeno moderno, o advento da técnica fotográfica presente na obra literária. Já o escritor Júlio Cortázar é um dos que mais acreditam no diálogo entre literatura e fotografia, promovendo uma comparação entre a fotografia e o conto. Devido à necessidade de síntese de uma realidade, a fotografia, numa espécie de metonímia, utiliza-se sempre de um recorte da parte pelo todo, do mesmo modo que o escritor, no conto, particularmente, sente a necessidade de delimitar os acontecimentos significativos em seu trabalho, para atrair a atenção de seu leitor de forma breve. Para o escritor, cada fragmento da realidade é uma redução que se amolda ao universo verbal. Essas relações entre escritores e a fotografia demonstram a presença e a influência da fotografia no meio literário; o meio tecnológico incrustado no mundo das palavras, de modo a expandir o olhar, através de múltiplas representações estéticas da realidade. Durante o desenvolvimento do trabalho, abordamos outros escritores e as suas respectivas obras que tiveram de algum modo, com a fotografia, um diálogo pertinente e um fecundo processo interativo. No capítulo 4, realizamos um estudo acerca do retrato, item relevante na obra de Maureen Bisilliat, que dedica boa parte de sua obra a esse gênero fotográfico, seu imaginário criativo, sua relação com as palavras, e o como e o porquê do encontro com o escritor João Guimarães Rosa. Ainda nesse capítulo traçamos algumas considerações acerca do universo plástico de Guimaraes Rosa, sua relação com as imagens, seus gravuristas e ilustradores que decodificavam seus pedidos de ilustrações, e, por fim, verificamos a presença da fotografia em diversas obras suas, sobretudo em Grande Sertão: Veredas. No capítulo 5, adentramos cada vez mais no universo de João Guimarães Rosa, direcionando o estudo ao elemento feminino, dado importante em nosso trabalho, pois é através dele que tecemos considerações acerca da presença significativa da mulher, 17 principalmente em Grande Sertão: Veredas. O referencial teórico nesse momento foi o literário, confirmando a presença da tríade feminina na travessia de Riobaldo. São elas: Nhorinhá, Diadorim e Otacília. Apesar de tantas outras estarem presentes na obra, essas são, no entanto, as mais estudadas e as que mais se destacam na releitura apresentada por Maureen Bisilliat. Também lançamos mão de Gustav Jung com sua psicologia analítica empregada por Erich Neumann ao se referir aos elementos que interpretam a Grande Mãe, elemento abordado por Gilberto Durand em seu trabalho Estruturas antropológicas do imaginário. A teoria literária propiciou diversos elementos que mais adiante se agregaram à análise do material fotográfico, conjugando os fragmentos de Grande Sertão: Veredas, com direcionamento ao universo feminino presente na obra. Mencionamos os principais críticos: , Walnice Nogueira Galvão e Davi Arrigucci. E enfim, ainda nesse capítulo, empreendemos nossa análise da obra resultante da tradução de Grande Sertão: Veredas em A João Guimarães Rosa, um somatório simbólico que atravessa as imagens, desde a Teoria Literária, o Imaginário, até a Semiótica da imagem como explicação do fenômeno simbólico da leitura.

2 - NASCIMENTO DA ESCRITA E SUAS LEITURAS

A escrita nasce da necessidade de registro das atividades do cotidiano. Sua utilização se deu inicialmente no comércio com finalidade de registro de valores de compra e venda das mercadorias, pois era sabido que acordo ―feito de boca‖, acordos verbais, orais, podiam ser facilmente adulterados, contestados ou esquecidos. Não é à toa que, até os dias atuais, em várias negociações e na maioria das atividades, se tem necessidade de comprovar o que foi dito ou não dito. Assim nasce a escrita, uma ―testemunha imortal‖, no dizer de Fischer (2006, p. 9). A palavra humana é transposta inicialmente em pedra, que tinha como finalidade a da leitura oral; ler tinha, como finalidade denotativa, a fala; ler naquele tempo era declamar. Definir o que é leitura não é tarefa fácil; supõe-se que o ato de leitura seja bastante relativo e variado. Em uma definição moderna mais ampla, a leitura é ―a capacidade de extrair sentido de símbolos escritos ou impressos‖, ainda segundo Fischer (2006, p. 9), envolvendo todo um processo cognitivo, entre informações, memória e a interpretação razoável de uma mensagem ou referenciação criado pelo escritor: Entretanto, nem sempre a leitura foi definida desse modo. No início, ela consistia na mera capacidade de obtenção de informações visuais com base em algum sistema, codificado, bem como na compreensão de seu significado. Mais tarde passou a significar, quase de modo exclusivo, a compreensão de um texto contínuo com sinais escritos sobre uma superfície gravada, mais recentemente, inclui também a extração de informações codificadas de uma tela de computador. E a definição de leitura continuará por certo, a se expandir no futuro porque, assim como qualquer outra aptidão, ela também é um indicador do avanço da própria humanidade (FISCHER, 2006, p. 11).

O ato da leitura envolve os sentidos da compreensão. Geralmente envolve a combinação de dois sentidos, a audição e a visão, no entanto, são vários os processos de leitura, não existindo um método fechado. Tais processos ―devem inevitavelmente se relacionar a finalidades culturais específicas e dependem dos modos contrastantes de interpretações orais institucionalizados por determinada cultura‖ (HARRIS apud FISCHER, 2009, p. 11). De modo que a leitura, esse antigo e sofisticado grau de percepção humana, de caráter ímpar, ao longo dos tempos, apresenta interpretações diferentes, de acordo com os povos. A leitura compreende, ainda, duas teorias contraditórias. Segundo os teóricos de um lado, existirá uma leitura de cunho linguístico, um processo linear fonológico, sistema sonoro que se dá através de letra a letra, acoplando elementos da linguagem de forma crescente até que se consiga obter a compreensão; de outro, defende-se a leitura como um processo semântico-visual, acreditando que palavras, sentenças e frases inteiras podem ser lidas, de uma vez só, de modo que não é necessário a separação de letras, diferentemente do processo 19 linear. As duas direções coexistem ao longo dos tempos; trata-se, portanto, da evolução de uma leitura literal, interligando o som ao sinal gráfico e, mais adiante, atribuem sentido a agrupamentos maiores de sinais. Os primeiros leitores e responsáveis pela leitura surgem na Mesopotâmia – seus textos eram bem curtos, e seu suporte podia ser o entalhe em pedra, madeira, osso ou em argila. Seus interesses eram ligados ao registro de cálculos, posse de bens, validação de contas, dívidas, contratos, cartas, hinos ou mesmo homenagens, além da preservação da memória da vasta história oral. Antes, pouquíssimas pessoas tinham interesse em aprender tal atividade, a de ler; os escribas, seus produtores e verdadeiros oradores, tornam o verbal visível, imortal. Os primeiros indícios da leitura já remetem a um período primitivo, como o homem dito das cavernas, que denominamos de Homo sapiens – eles sabiam bem o significado de suas pinturas, desenhos, entalhes feitos em diversos matérias como colares, contas, bem como a confecção de pequenas estatuetas; possivelmente talvez soubessem as marcações dos melhores dias de caça, as estações, as diferenças da lua. A chamada arte rupestre também servia como leitura, pois contava histórias visuais dotadas de significações; no entanto, é uma escrita incompleta, considerando que: Em seu sentido mais amplo, a escrita é a sequência de símbolos padronizados (caracteres, sinais ou componentes de sinais) com a finalidade de reproduzir graficamente a fala e o pensamento humanos, entre outras coisas, no todo ou em parte (FISCHER, 2006, p.14).

Os sumérios, empreendedores na arte do comércio em todo o Mediterrâneo, considerados uma das civilizações mais antigas do mundo, situados na Mesopotâmia, por volta de 4.000 a.C. ou mais, região atual do Golfo Pérsico, são os grandes responsáveis pelo feito da leitura, pois a grande ―mudança de paradigma‖1 acontece através de seus pictogramas, cuja escrita era feita por meio de uma espécie de estilete, que cunhavam em tábuas de argilas depois cozidas com fogo, com o intuito de perpetuá-las. No início da escrita, eram utilizados desenhos; depois as imagens são cada vez mais estilizadas em pequenos sinais, denominados de escrita cuneiforme, representando, então, não mais as coisas por semelhança, mesmo que esse sinal ainda remetesse a alguma coisa exterior; passam esses sinais a representar as coisas através de sons, surgindo assim palavras que remetem a esses objetos e a tudo mais que fosse possível representar.

1 ―O sinal tornou-se som – libertado de seu referencial externo – na Mesopotâmia entre 6 mil e 5.700 anos atrás. A ideia logo foi disseminada a oeste do Nilo e a leste do Platô iraniano, chegando até o Indo, onde idiomas diferentes e necessidades sociais distintas exigiam outras expressões gráficas. Em todas as partes, a escrita era reconhecida como ferramenta inestimável para o acúmulo e armazenamento de informações: facilitava a contabilidade, a guarda de materiais e o transporte, bem como conversas, nomes, datas e lugares com mais eficiência que a memória humana. Toda ―leitura‖ antiga envolvia um reconhecimento muito simples de códigos e estava invariavelmente centrada na execução de tarefas‖ (FISCHER, 2006, p. 15). 20

As imagens (Fotografia 1) e (Figuras 1, 2), com 4.000 anos, ilustram essa passagem. A primeira, confeccionada em argila, representa o número dez e, possivelmente, estava em posse de algum pecuarista, ou algum outro comerciante, para indicar ele possuía dez cabeças de cabras, ou algum outro animal semelhante. Isso era representado através de sons, mesmo que lembrasse uma cabra; já a segunda imagem mostra a evolução até chegar a sinais bem simplificados, representando o alfabeto sumério, algo que evoca a ―arbitrariedade do signo‖ (SAUSSURE, 1995, p. 81).

(Fotografia 1) Placa de Tell Brack - Síria

Disponível em: . Acesso em mar. 2013.

(Figura 1) Evolução da escrita dos sumérios

Disponível em: . Acesso em mar. 2013.

(Figura 2) A tradução do alfabeto cuneiforme, da Mesopotâmia, para o alfabeto atual, invenção atribuída aos fenícios.

Disponível em: . Acesso em mar. 2013.

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Para que ocorra o fenômeno de uma escrita completa, são exigidos três critérios importantes, segundo Fischer (2006): ter como objetivo a comunicação; consistir em sinais gráficos artificiais confeccionados em um suporte durável; e empregar sinais que se relacionem convencionalmente ao discurso articulado (organização sistemática de sons vocais significativos). O início da escrita na Mesopotâmia, no entanto, tinha também seus aspectos negativos – um dos primeiros problemas era a portabilidade e o manuseio do material cunhado em placas de argila, diferentemente da leveza e facilidade da utilização de sinais utilizados, como o foi no Egito, onde se utilizou o papiro; além de pesadas, as placas podiam ser danificadas caso ocorresse uma queda, e havia a necessidade de se ter vários volumes sobre um texto mais extenso, para se produzir uma material escrito. Apesar da invenção da escrita, a oralidade imperava, já que pouquíssimos cidadãos da Mesopotâmia tinham o direito de exercer essa atividade, seja como escriba, seja como leitor. ―Ler em sumério significava contar, calcular, ponderar, memorizar, declamar, ler em voz alta‖ (FISCHER, 2006, p. 17). Seu emprego era, portanto, relacionado ao trabalho e ao controle da população por parte de seus governantes. Com as diversas invasões ocorridas na Mesopotâmia, a escrita é então expandida para o Egito e, em seguida, amplia-se por todo o Golfo Pérsico; é difundida por todo o Oriente, depois chega à Grécia, bem como a diversos outros povos, adaptando-se a novas técnicas aplicadas a seus respectivos idiomas e preservando – com isso – todo um legado cultural da humanidade. Mais adiante, a escrita aramaica a substitui, possivelmente devido à facilidade de mobilidade e também porque o aramaico tornou-se um dos principais idiomas em voga na região: A escrita aramaica também substitui a escrita cuneiforme assíria: tinta em couro ou papiro agora era preferida no lugar de cunhas em argila mole. A era da argila estava, definitivamente chegando ao fim. A literatura aramaica, em essência, também abrangia documentos oficiais, administração geral, contas, registros contábeis, inscrições em monumentos, e outros. De importância crucial, foi a inspiração aramaica do sistema de escrita do subcontinente indiano, os primeiros documentos mais longos entre os quais estão os famosos decretos do rei Asoca, de cerca de 253- 250 a. C., entalhes em pilares de pedra ou rocha em toda região do Industão (FISCHER, 2006, p. 37).

Com a escrita, a imagem da representação da realidade se dissocia do seu referente; mais adiante, essas duas linguagens distintas vão se associar, de maneira a se complementarem. A leitura será realizada de maneira silenciosa; de outro lado, sua coadjuvante, a imagem, tem a finalidade de maior compreensão na sua totalidade, através da 22 representação do seu referente quase à sua semelhança, em iluminuras, afrescos, vitrais, mosaicos. A forma de se expressar através de imagens, como as escrituras rupestres, é considerada uma forma de comunicação bem mais antiga que a utilização da palavra escrita. Os antepassados do Homo sapiens conviveram em sociedade e tinham a intenção de transmitir informações para os seus descendentes. Num primeiro momento, tais inscrições pré-históricas eram acompanhadas de ensinamentos orais, para que fosse possível fixar tais informações. Representar um animal, como uma cabra ou um boi, através da uma representação gráfica direta, mesmo que de forma estilizada, era de um entendimento relativamente não tão fácil. No entanto, o surgimento da palavra impressa em algum suporte, como um bloco de argila ou papiro, instaura um novo marco na humanidade, uma forma de se perpetuar através do acúmulo de todos os tipos de informações e de sua transmissão. A complicada passagem da fala para a escrita, representação simbólica de sinais através de fonemas que constituem um pensamento, exige um grau de abstração cognitiva muito maior que as primeiras leituras das escrituras rupestres, desde os primeiros pictogramas, escrita cuneiforme, desenvolvidos pelos sumérios na Mesopotâmia. Os historiadores na atualidade acreditam que tal processo de assimilação da escrita tenha ocorrido de forma bastante lenta ao longo dos anos. O emprego da escrita tinha finalidades econômicas, como registrar a quantidade de escravos de um reino, a quantidade de gado, o pagamento de impostos, o armazenamento de cereais. Os processos de elaboração, codificação e decodificação ficavam restritos a seus governantes; era o rei quem ditava o que podia ser publicado ou não. Naquele tempo já se podia perceber que controlar a informação é também controlar o poder. Como apenas alguns podiam ter acesso ao entendimento desse código, os decretos eram lidos em voz alta para expandir as informações emanadas do soberano.

2.1 - A palavra encontra a imagem

À medida que aumentava significantemente o fenômeno da escrita e da leitura no Ocidente, a religião foi o principal vetor para fazer valer essa transformação, na utilização cada vez maior da linguagem visual com o uso das palavras em detrimento da oralidade: ―Ao longo da história, a religião foi um dos principais motores da alfabetização. Os padres adestrados como escribas figurariam entre os primeiros leitores da sociedade‖ (FISCHER, 23

2006, p. 37). Em seguida, vieram diversos outros eruditos que a fizeram expandir, variando cada vez mais o material de leitura e continuando a religião como o principal difusor. O objetivo não era apenas o de difundir culturas por meio da escrita, utilizando o latim como língua oficial, mas o de controlar e dirigir a sociedade através de transmissão do sagrado, sabedoria essa conivente com os dogmas da Igreja. Termos surgidos naquele período, como ―o assim estava escrito‖, davam uma credibilidade dogmática, portanto, impossível de se replicar. Esses copistas têm o mérito reconhecido, mesmo que de forma anônima, como os perpetuadores de toda a cultura escrita ocidental. Não é à toa que – em meados do século VI, período de início da Idade Média – boa parte da Europa se rende aos copistas dos mosteiros e abadias, em que boa parte da publicação é de cunho religioso. Apesar do registro escrito assegurado desde os antigos escribas, todo poder da leitura aconteceu tardiamente: ―na realidade, cerca de três mil anos após a elaboração da escrita na Mesopotâmia‖ (idem, ibidem, p. 40), de modo que a oralidade por muito tempo compartilhava com a leitura escrita, que gradualmente vai adquirindo mais autonomia. A palavra escrita, como uma dádiva da Mesopotâmia, trouxe também sua imposição, muitas vezes por parte da Igreja Romana, que conseguira fazer sucumbir diversas outros alfabetos às imposições de seu pensamento, dizimando culturas pelo próprio poder da escrita e que desapareceram sem deixar quase nenhum vestígio. Mas é inegável a perpetuação da cultura humana através da escrita, graças à Igreja:

Por consequência de uma metamorfose voluntária, os letrados perderam a memória, a cultura e a liberdade orais. Uma autonomia disfarçada, a palavra escrita, impôs-se a todos os letrados: uma tirania, criada pelo homem, a qual escravizava seus devotos súditos. Hoje, porque perdemos completamente o nosso patrimônio oral, não temos muita noção da onipresente imposição da tirania na medida em que vivemos, pensando, cremos e veneramos por meio da palavra escrita, tornando-nos incapazes de enxergar nossas possibilidades. Todos nós, sem exceção, somos súditos inconscientes da leitura. Contudo, muitos reconheceriam que esse é um pequeno preço a ser pago por uma das mais notáveis maravilhas da vida: o controle individual sobre o tempo e o espaço. Todos os idiomas e culturas conhecidos da história são preservados por meio da leitura. Dessa forma, eles continuam a fazer parte da narrativa humana visto que testemunham a glória e os conflitos de nosso passado em comum: sumério, egípcio, acádio, persa, sânscrito, chinês clássico, grego, hebraico, latim, árabe clássico e centenas de outros. Assim, terminado o milênio, a testemunha imortal finalmente tornou-se a voz da própria humanidade (FISCHER, 2006, p. 40).

Foram vários séculos percorridos pela escrita. Sua evolução ao longo dos tempos permitiu o encontro ou, poderíamos dizer, o reencontro da palavra com a imagem, visto que, inicialmente, eram as imagens que representavam o universo humano no cotidiano, quando, em seguida, a escrita obriga a sua separação. O encontro dar-se-á com uma das mais antigas 24 linguagens visuais, a pintura, ocorrendo então a confluência dessas duas linguagens, no período da Idade Média. A pintura vai trabalhar conjugada à palavra, em função da religião, devido à necessidade de transmitir ensinamentos eclesiásticos em latim para analfabetos. As pinturas serviam como decorações nos interiores das igrejas. Os padres instruem seu rebanho de peregrinos através de ensinamentos compondo a narrativa oral por meio dessas imagens; a oralidade então passa a estar mais presente nessas interpretações, pelo fato de que a grande maioria não sabia ler o latim. A utilização de imagens no mundo religioso, nas paredes, estátuas sacras, ícones ou nas imagens inseridas nos livros, denominadas iluminuras, no entanto, não ocorreu sem problemas. A grande questão se deu quando, já por volta do ano de 404, em São Nilo de Anciara (atual Ancara, capital da Turquia), um beneditino fervoroso implicou com algumas formas e temas, exercendo sobre eles certa censura; para ele, só era permitido representar cenas do Velho e do Novo Testamento, por meio das quais se ensinava a história bíblica e se incutia a crônica da misericórdia de Deus, mas condenava as cenas livres, como as de caça, e também abominava quaisquer cenas que fossem representações de animais, ―frívolas e indignas de uma alma cristã viril‖ (MANGUEL, 1997, p. 117). O Papa Gregório I2, o Grande, tentou então esclarecer e apaziguar a situação explicando a diferença entre idolatria às imagens e a possibilidade de estas ajudarem seus seguidores no entendimento dos preceitos bíblicos. Não seria o uso delas que iria obscurecer ou ameaçar os ensinamentos de Deus: ―uma coisa é adorar imagens, outra é aprender em profundidade, por meio de imagens, uma história venerável‖ (MANGUEL, 1997, p. 117). O culto de venerar as imagens, e não a sua adoração, representava o ato direcionado à lembrança e à memória, do que elas reproduzem (Figura 3).

2 ― (...), o papa Gregório, o Grande, no limiar do século VII, estava convencido de que aquilo que se ensina aos iletrados pelo texto ensina-se aos que não sabem ler pela imagem. Por último, e sobretudo, o Deus dos cristãos fez-se homem, adotou um corpo de homem, um rosto de homem. Portanto, era possível representá-lo. Sua Imagem tornou-se a partir de então mediadora, como era o próprio Deus encarnado. Esse símbolo que é a imagem passou a ser, no sentido primeiro do termo, um ―sacramento‖um vínculo entre a pessoa divina e a pessoa humana. E foi assim que, [...] a arte figurativa da Antiguidade mediterrânea sobreviveu no Oriente‖ (DUBY, 2002, p. 27). 25

(Figura 3) Ilustração do Antigo Testamento. Um anjo evita que Abraão sacrifíque o seu filho, Isaac.

Iluminura anônima da Idade Média, representando O Sacrifício de Isaac. Disponível em: . Acesso em 28 de setembro de 2013.

Paradoxalmente, a Igreja sabia que religiões de um só Deus não possuem a imagem de sua representação, basta observar a rigidez do Islã ao representar Alah; tal representação só é possível através de palavras, jamais por imagem. Assim como no Cristianismo, a Bíblia é bem clara sobre essa proibição, mas a Igreja percebia que essa forma de leitura para os que não sabiam latim era de uma utilidade indubitável.

Por natureza, as religiões monoteístas são iconófobas: não se representa o Deus único. Sua presença é marcada por sinais. Monoteísta, o cristianismo tinha, além disso, de travar uma luta sem trégua para desenraizar as religiões rivais; os bispos da alta Idade Média, que destruíam as efígies dos antigos deuses, desconfiavam das estátuas. Por fim, a cultura ―bárbara‖, que ganhava terreno incessantemente, também recusava a figuração. Portanto, durante séculos a fio desapareceu a grande escultura monumental. Contudo, nos monumentos que construíam, os dirigentes da Igreja cristã colocavam figuras de homens e de mulheres. Na verdade, tal como o império a que substituíra, a instituição eclesiástica não podia deixar de exibir seu poder às massas que pretendia submeter, e nem de fazer essas demonstração recorrendo a imagens convincentes. Também tinha de divulgar sua doutrina (DUBY, 2002, p. 25- 27).

O problema é que, de forma estratégica, de um lado a Igreja Católica via a possibilidade de congregar, unificando ou apaziguando, diversos povos de religiões diferentes, como os recém-convertidos ou não à religião católica, como árabes e judeus (oriundos respectivamente do islamismo e do judaísmo). No entanto, de outro lado, existiam também os católicos ortodoxos e os de outras religiões fundamentalistas, seguidores fiéis das palavras ditas no ―Livro Êxodo‖ do Antigo Testamento, e que, certamente, conheciam bem a passagem bíblica que descreve a proibição das imagens: 26

Não farás para ti imagens esculpidas, nem qualquer imagem do que existe no alto dos céus, ou do que existe em baixo, na terra, ou do que existe nas águas, por debaixo da terra. Não te prostrarás diante delas e não lhes prestarás culto, porque Eu, o Senhor, teu Deus, sou o Deus cioso que pune a iniquidade dos pais nos filhos, até à terceira e a quarta geração daqueles que Me ofendem (Ex 20,4-5, 1974, p. 82).

De modo que para os ortodoxos era terminantemente proibido cultuar ou adorar todo e qualquer artefato imagético confeccionado nas paredes das igrejas ou em livros. Outra possibilidade que contribuiu com a questão do iconoclasmo foi que, ―ao longo dos séculos, a iconografia foi negligenciada. Pintores tomavam liberdades maiores com imagens ortodoxas e seus respectivos significados‖ (FISCHER, 2006, p. 137). A Igreja, ao ignorar o poder das imagens, ao descuidar-se de sua construção e possibilidades interpretativas, viu-se na necessidade de um maior acompanhamento do seu processo. Apesar de a arte pertencer ao artista, este estava subordinado às leis e tradições da Igreja. A controvérsia acerca do iconoclasmo ou iconosclastia, denominação grega de ―quebrador de imagem‖, pode assim ser constatada:

A controvérsia iconoclasta que durou por volta de 120 anos se dá em duas fases. O primeiro período iniciou-se em 726 quando Leão III começou seu ataque aos ícones, e terminou em 780 quando a Imperatriz Irene suspendeu a perseguição. A posição dos defensores foi mantida pelo sétimo e último Concílio Ecumênico (787), que se reuniu (como o primeiro) em Nicéia. Ícones, o concílio proclamou, devem ser mantidos nas Igrejas e honrados com a mesma relativa veneração como outros símbolos materiais, como "a cruz preciosa e vivificante" e o Livro dos Evangelhos. Um novo ataque aos ícones começou com Leão V, o Armênio, em 815, e continuou até 843 quando os ícones foram novamente reintegrados, desta vez permanentemente por outra Imperatriz, Teodora. A vitória final das Santas Imagens em 843 é conhecida como "Triunfo da Ortodoxia‖, e é comemorado com o ofício especial celebrado no ―Domingo da Ortodoxia‖, o primeiro domingo da Grande Quaresma.3

O recurso imagético era tão importante para a Igreja Católica que, mesmo sendo proibida sua utilização, durante o período de ―inquisição das imagens‖, por seus adoradores e fabricantes, os monges copistas utilizavam um recurso singular para a representação, que eram figuras humanas com faces de animais, Manguel diz que: [...] ―em certas épocas, porém, a proibição prevalecia e os artistas [...] recorriam a meios termos inventivos, tais como dar às figuras humanas proibidas rostos de pássaros, para não representar a face humana‖ (MANGUEL, 1997, p. 118).

3 WARE, Kallistos. A IGREJA ORTODOXA. Disponível em: . Acesso em: 30 set. 2013.

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A pedagogia das escrituras foi eficiente na perpetuação dos dogmas da Igreja com relação ao pecado e cuidado com a conduta moral, mesmo se a sua representação ocorresse através de imagens de animais (com a denominação de Bestiário4, livro das bestas), ou com representações humanas, como o Livro de Horas5. Assim, ―na Antiguidade, as ilustrações desempenhavam importante papel na ‗leitura‘. Expressavam não só temas literários, mas também cenas completas, além do simbolismo da fé cristã‖ (FISCHER, 2006, p. 136). A escrita se espalha pelo mundo, e sua importância é reconhecida imediatamente por diversos povos. Aos poucos o suporte de impressão e estilo de letras vai se modificando em seu contexto. Há a necessidade de se empregar a nova linguagem de acordo com a língua falada de cada região e suporte de impressão, como papiro e, mais adiante, o papel. Na Idade Média vai surgir a preocupação em preservar avanços científicos e informações artísticas das mais diversas culturas da Antiguidade. Assim, aparecem os copistas, monges especializados nas traduções de antigos manuscritos como as obras clássicas greco-romanas; graças a eles, a humanidade foi presenteada com toda a abundância de conhecimento até então nunca visto, apesar de que, naquela época, apenas uma pequena minoria letrada tinha acesso à educação e, consequentemente, à leitura. Não demorou muito, e a palavra encontra as imagens, ainda na Idade Média, com os manuscritos, iluminuras, muitas vezes miniaturas, representações de imagens, pinturas, utilizando como suporte o pergaminho; bom exemplo é o ―Livro de Horas‖, textos bíblicos acompanhados de ilustrações sacras, para serem lidos em determinados horários do dia. Algumas edições eram feitas por encomenda e podiam levar anos para sua confecção, como o Livro de Horas do Duque de Berry. A Igreja, através desses ―manuscritos iluminados‖, simples ou ricamente adornados, ministra, de forma pedagógica, os ensinamentos cristãos, pois, como a grande maioria das pessoas na Europa não sabia latim, os padres para proferir suas pregações e ladainhas utilizavam as imagens como referências aos ensinamentos. A mobilidade dessas miniaturas

4 Texto que circulou durante a Idade Média, caracterizado pela associação de um animal (real ou fantasiado) a um significado – moral, alegórico ou espiritual – relacionado com uma característica do animal. O protótipo está numa obra grega do séc. II, o Fisiólogo, traduzida para latim no séc. IV. O texto apresenta habitualmente uma iconografia abundante e serve ao imaginário medieval particularmente na arte (escultura e iluminura). Glossário. À descoberta da Iluminura medieval. Disponível em: . Acesso em: 30 set. 2013. 5 Sem dúvida, o gênero literário mais lido na alta Idade Média, a partir do século XII, foi o livro de preces pessoal em latim: o Livro de Horas. [...] No final da Idade Média, as iluminuras em miniaturas incluídas nas páginas desses livros constituíram o principal trabalho artístico da Europa ocidental. Mais importante, o livro vinculava o leitor diretamente ao divino sem a mediação da Igreja, a qual até então havia monopolizado a escrita religiosa: com um livro desses nas mãos, a própria leitura se tornava um ato sagrado de enorme individualidade (FISCHER, 2006, p. 154). 28 também possibilitou o uso em sua leitura privada. Os manuscritos tinham a finalidade de reforçar os ideais da Igreja, e mesmo os analfabetos podiam decorar as suas passagens evangélicas, salmos, provações a que os cristãos deveriam ser submetidos em sua vida terrena para alcançar o reino dos céus ou sofrer sua condenação ao inferno. É notória a importância do casamento entre a palavra e a imagem; por caminhos diferentes, a relação entre elas enriquece a leitura, apesar dos interditos religiosos. O seu objetivo maior, além de instruir os ensinamentos divinos, era, sobretudo, obter o controle sociopolítico por meio da produção de imagens. ―De fato, essas ilustrações mantiveram-se como um poderoso meio, testemunhas eloquentes, como a famosa Tapeçaria de Bayeux6 do final do século XI – ‗história em imagens para um público iletrado‘ (embora com legendas em latim)‖ (FISCHER, 2006, p. 153). No final da Idade Média, com o aumento da alfabetização, os laicos não precisavam tanto da pedagogia imposta pela Igreja, como o ato de leitura em voz alta, surgindo assim a forma silenciosa, que é ampliada, cada vez mais, com o crescimento da produção do livro através do surgimento da imprensa.

2.2 - O surgimento da imprensa

Com as inovações tecnológicas e culturais e o surgimento da Renascença, a imprensa vai dar uma guinada significativa na produção de livros. As palavras iluminadas (palavras e iluminuras) dão lugar a outras técnicas de impressão, como a xilogravura, gravura em metal, com a prevalência ainda da temática cristã. Como diz Santaella:

No espaço de tempo de 1500 até 1675, as imagens nos tratados técnicos e nos tratados alquímicos passaram das iluminuras para as xilogravuras, até as gravuras em metal. O modo de produção da imagem traz consequências para o papel que a imagem desempenha no pensamento. De uma mera festa para os olhos e informação para aqueles que não sabiam ler nem escrever, as imagens e figuras passaram a ser, cada vez mais, peças fundamentais na transmissão de conhecimentos científicos e técnicos, na medida mesma do aprimoramento de seu modo de gravação (SANTAELLA, 2012, p. 106).

6 A Tapeçaria de Bayeux é uma obra bordada em linho entre 1070-1080, sob a encomenda do bispo Odo de Bayeux (c. 1030-1097), meio-irmão de Guilherme, o Conquistador (c. 1028-1087). Não temos uma informação segura e definitiva a respeito de sua autoria. Uma lenda atribui seu bordado a Matilde de Flandres e suas aias; há quem afirme que a Tapeçaria foi executada em Canterbury com base em desenhos de um artista associado à abadia de Santo Agostinho; por fim, é também possível que o bordado tenha sido feito por religiosas da abadia de Barking (Essex), sob a direção da abadessa Elfgiva. (...), o fato é que a Tapeçaria de Bayeux, com seus 69 metros de comprimento, cerca de 50 cm de largura e 58 cenas, narra a história da conquista normanda da Inglaterra em 1066 (sob o ponto de vista normando), e representa magnificamente muitas cenas da vida cotidiana nobre do final do século XI, além da derrota anglo-saxã das forças de Haroldo II, rei da Inglaterra (1066) na batalha de Hastings. COSTA, Ricardo da. Tapeçaria de Bayeux (c. 1070-1080) Disponível em: . Acesso em: 2 nov. 2013. 29

No final do século XV, novos personagens compõem o cenário político, com o surgimento do capitalismo, dando início à Idade Moderna. A Idade Média, no seu desenrolar em torno de 1.000 anos, teve também a sua importância, a ponto de não ser considerada unicamente com a denominação de Idade das Trevas, sendo importante enfatizar que:

Houve um pensamento estético medieval, diferente do dos séculos precedentes e dos séculos sucessivos, e para além da recorrência constante de termos e de fórmulas quase canônicas. Esse pensamento não foi monolítico e diferenciou-se no decorrer do tempo. De uma estética pitagórica do número, que regia a desordem bárbara, passa-se a uma estética humanística, atenta aos valores da arte e ao acúmulo de belezas transmitido pela antiguidade, que exprime o renascimento do mundo carolíngio (ECO, 2012, p. 301-302).

A relação do livro com a imagem, nesse momento foi aplacada, tornando-se mais escassa por ocasião da invenção da imprensa por Johannes Gutenberg, em Mainz, Alemanha, em 1450. A leitura de livros alcança níveis, por milhares de pessoas, se bem que, por muito tempo, só uma pequena maioria abastada é quem tem acesso à leitura naquele momento, como juízes, médicos, mecenas, nobres, ricos comerciantes e o clero:

A história contada com imagens foi suplantada pela história impressa; o latim substituído pelos idiomas vernaculares; a vassalagem do pensamento trocada pela independência do pensamento; a tutela pela maioridade. Isso porque com a impressão e com seus desdobramentos, os leitores europeus finalmente emanciparam-se (FISCHER, 2006, p. 190).

Com mais leitores, foi inevitável que acontecessem mudanças profundas na cultura da Europa Ocidental, o que resultou no processo de reforma protestante com Martinho Lutero e a alfabetização crescente e massificada nas principais cidades, como na Alemanha e na Suécia, além da ruptura do rei Henrique VIII com a Igreja, bem como a extinção dos títulos de terra desta. A Renascença ou Renascimento foi um dos primeiros movimentos a se beneficiar com a invenção da impressão gutenberguiana. Esse período tem início devido a diversos fatores, como o desenvolvimento artístico-cultural em determinadas cidades, algumas com maior intercâmbio de mecenas a patrocinar a arte local de seus artistas. Nessa época, prevalece um caráter idealizado pelo Humanismo, um período de descoberta do homem e do mundo. Um novo credo abala o monopólio da Igreja com relação à leitura que antes estava sob a sua tutela. ―Embora não seja de maneira nenhuma uma rejeição ao conhecimento teológico – a veneração e a simbologia cristã continuam a inspirar os artistas da Renascença, – essa abordagem estava em desacordo com os ensinamentos da Igreja Medieval‖ (FARTHING, 2010, p. 150). Grandes clássicos como Aristóteles, Platão e Homero são redescobertos e 30 valorizados, alterando radicalmente o pensamento por meio de uma visão humanística. Na Renascença, bem como mais adiante no período moderno, surgem diversos gravadores e ilustradores, que eram bancados por quem pudesse pagar mais, com diversos concursos para eleger o melhor artista a realizar esse tipo de trabalho. Como já foi dito, as ilustrações ainda tematizavam, de maneira sutil, o universo bíblico. Albrecht Dürer, dentre outros artistas, foi responsável por ilustrar algumas passagens bíblicas (Apêndice 1) - (Figura 9). Devido ao protestantismo, com a revolução religiosa provocada por Martinho Lutero, no norte da Europa, com seu Renascimento nórdico7, que mais adiante ainda trabalha com questões bíblicas, os temas religiosos e de conduta moral foram tratados discretamente. Alguns artistas preferiram retratar assuntos mais humanos, como a loucura ou outros temas ligados à mitologia greco-romana. Apesar de oferecer algumas últimas resistências, a Europa se rendia ao novo sistema. O livro é impresso, e a própria economia de mercado favorece a sua compra. Estabeleceu-se, portanto, uma diferença em relação à sociedade feudal, que manteve um oceano de iletrados à mercê de uma pequena ilha de instruídos, impossibilitados de discutir qualquer dogma religioso ou qualquer outra ideia inovadora, dentre outras informações importantes de seu contexto, sendo, pois, excluídos da comunidade da palavra escrita, marginalizados durante séculos. Por fim, com a capacidade de ler através da disseminação do livro impresso inicia-se, então, o período moderno. A palavra só vai retomar seu diálogo com a imagem entre os séculos XVII e XVIII:

Em particular, entre os séculos XVII e XVII, o status do livro passou por uma transformação significativa, observada com mais intensidade entre a nobreza da Europa. O gabinete do ―rei sol‖, em Versalhes, por exemplo, havia armazenado somente manuscritos, muitas vezes com elaboradas iluminuras. Isso porque Luís XIV (no poder desde 1643-1715) ainda considerava a impressão e a gravura apenas um modo de familiarizar seus súditos com as obras de arte com as quais se cercava e com as celebrações que promovia. Os livros, nesse caso manuscritos com iluminuras, eram somente obras de arte destinadas a impressionar e impor respeito, [...] (FARTHING, 2010, p. 232).

Esse período de transição é acompanhado de diversas técnicas de gravação, como a xilogravura, a impressão em metal e água-forte. Essas técnicas vão garantir o contato da imagem com a palavra. Até então eram poucas as técnicas de gravura que podiam se aliar ao invento de Gutenberg.

7 O Renascimento nórdico foi moldado por outros dois elementos importantes: a difusão da gravura e a Reforma Protestante. A gravação foi invenção alemã atribuída a Johannes Gutenberg e era usada em várias cidades pioneiras do país. O desenvolvimento de imagens impressas foi uma dádiva para os artistas, que agora podiam vender suas próprias gravações em mercados e feiras e, no processo, construir uma reputação. [...] Por outro lado, os artistas que não podiam garantir a disponibilidade imediata de gravuras de suas obras corriam o risco de prejudicar sua carreira (FARTHING, 2010, p. 184). 31

A palavra impressa realmente entra em voga, sendo impossível voltar atrás. Tinha a imagem como companhia, mesmo que esta fosse usada apenas como propaganda, devido à necessidade do artista em garantir o seu sustento, ao menos para melhorar a sua venda. O efeito disso era significativo, como se pode observar em Albrecht Dürer, que conseguiu ser conhecido em tão pouco tempo ao divulgar seu trabalho. ―As gravuras ajudaram a estabelecer a reputação internacional do artista e a revolucionar as ilustrações de livros. O sucesso das obras deram a Dürer uma fonte de renda que durou pelo resto de sua vida‖ (FARTHING, 2010, p. 187). Com isso, a divulgação da palavra não ficou alienada das outras artes com a visualidade das diversas técnicas de gravuras, ao menos em relação aos grandes gravuristas, já que, quanto aos pintores, ainda não era possível copiar com tamanha precisão suas obras, pois a fotografia ainda não havia sido inventada. Ainda na Renascença, temos como expoentes Sandro Botticelli, Leonardo da Vinci, Rafael Sanzio e Michelangelo Buonarroti. Naquele período, a perspectiva estava bastante desenvolvida, com o trabalho De Pictura8, publicação de Leo Battista Alberti considerada o primeiro estudo científico acerca da arte tridimensional, que também teve a contribuição do arquiteto e escultor Brunelleschi9. A primavera e O nascimento de Vênus10 tiveram como fonte obras literárias clássicas e contemporâneas do pintor, principalmente Pierfrancesco, Poliziano, bem como Horário, Ovídio. No entanto, ―Acredita-se, quase unicamente no universo de estudiosos de arte, que fontes literárias relativas aos quadros A primavera e O nascimento de Vênus11 provêm de Lorenzo Pierfrancesco‖ (MENDONÇA, 2012, p. 85). O racionalismo como a questão da perspectiva em sua obra é atenuado em detrimento ao ideal de beleza, com destaque para o retrato.

8 Leon Battista Alberti publica em 1435, o De Pictura, tratado que sistematiza conhecimentos, modus operandi dos seus contemporâneos e enfatizando a secularidade da arte faz a apologia da proporção e harmonia (mesura). Giorgio Vasari estabelece para a arte um universo transdisciplinar formada por zelo, estudo, imitação conhecimento, ilusão e ciência. Informado pela proximidade entre ciência e técnica encetada por Filippo Brunelleschi (1377-1446), seu contemporâneo, que na exploração das leis da visão descobre o método perspéctico, ao ensaiar representar o Baptistério de San Giovanni e Palazzo della Signoria florentinos (PAIVA, 2012, p. 5). 9 Por volta de 1410, Filippo Brunelleschi aplicou a geometria à pintura, inventando a perspectiva geométrica para uso dos artífices. O afresco Trindade de Masaccio está entre os primeiros exemplos existentes [...]. Brunelleschi não era letrado, ao menos no sentido dos studia humanitatis, de modo que coube a Leon Battista Alberti sistematizar a perspectiva em seu tratado Da pintura, escrito em 1435, em latim, e traduzido por ele próprio para o italiano no ano seguinte (KICKHÖFEL, 2011, p. 8). 10 Em O nascimento de Vênus, a perspectiva é quase inexistente, uma vez que a figura da deusa está como se fosse impressa em um fundo cênico de pouca profundidade, dando a impressão de que a imagem é independente do ambiente, irradiando luz própria, como colada a um cenário (MENDONÇA, 2012, p. 83). 11 O nascimento de Vênus, por exemplo, é associado a um hino homérico à Afrodite. Poliziano pode, certamente, ter influenciado Botticelli na elaboração do concetto para o quadro, pois havia tomado o poema homérico, cujo tema era a chegada da deusa Vênus à ilha de Chipre, como referência para o seu próprio poema (MENDONÇA, 2012, p. 85). 32

Botticelli foi possivelmente um dos primeiros artistas a empreender uma tradução literária em imagens, ao trabalhar a obra de Dante Alighieri, A Divina Comédia; ao representar O inferno. Em sua interpretação, o inferno consiste em uma forma cônica, mapeando o seu trajeto semelhante à de um funil, apresentando dez fossos que correspondem à trajetória dos diversos pecadores que eram obrigados a penar e pagar os seus pecados. Botticelli traduz também, através de sua pintura, a obra de Boccaccio, Decameron. A Divina Comédia de Dante é, no entanto, a grande obra da Renascença mais traduzida. Artistas como Henry Holiday, William-Adolphe Bouguereau, Gustave Doré12 são exemplos disso e sobressai o último, ―tido como um dos maiores ilustradores d‘A Divina Comédia, dividindo o título com Sandro Botticelli‖ ( MOTA; MURRO, 2010, p. 6). A poética de Dante contribuíu para permitir sempre uma possibilidade de leitura, releitura e traduções entre linguagens, como na pintura, escultura, cinema. Como tradutores dessa obra de Dante, encontramos, ainda, ilustradores como William Blake, Helder Rocha, Jean-Auguste Dominique Ingres, Delacroix, Ary Scheffer, e escultores, como August Rodin,13Jean-Baptiste Carpeaux e, um pouco adiante, o artista surrealista Salvador Dali. Ao longo da história das artes, outros grandes ilustradores apareceram, desde a Renascença; artistas das escolas italiana, alemã, holandesa, flamenga, francesa, inglesa, espanhola e portuguesa. Entre eles, destacam-se por suas gravuras originais ―[...] autores como Piranese, Dürer, Rembrandt, Callot, Goya e Hogarth, cujas linguagens poéticas se caracterizam por seu ineditismo, sua inventividade e sua força expressiva.‖14 Artistas tão famosos quanto os pintores, durante o período em que viveram, por vezes atuando nas duas funções, gravador e pintor, e tantos outros como William Blake (1757-1827), esse já nas

12 Doré, um francês que se foi jovem e pobre deste mundo, era também pintor e escultor e ilustrou obras tão distintas quanto Gargântua e Pantagruel de Rabelais e a Bíblia Sagrada, além de poemas de Tennyson, Byron, Poe, Coleridge e Milton e contos de fadas de Perrault. CALAZANS, Ana. Gustave Doré: gravura como literatura. Disponível em: . Acesso em: 01 jul. 2013. 13 O célebre Auguste Rodin decide representar vários personagens dantescos em uma mesma obra: As portas do Inferno (1880-1890). Trata-se de duas portas em bronze, de onde saem de uma massa indefinida, diversos personagens. Entre eles, encontramos novamente Ugolino e sua prole e os amantes Francesca e Paolo, que são novamente representados na escultura O beijo. A mais conhecida das obras de Rodin, O pensador (1903), é reproduzida em miniatura na parte superior de As portas do Inferno. A obra também é frequentemente chamada de O poeta, pois representa o próprio Dante Alighieri, que medita sobre a complexidade da existência. As obras podem ser vistas no interior e nos jardins do Musée Rodin, em Paris. PASCHOLATI, Aline. Dante Alighieri, a Divina Commedia e suas influências na arte ocidental. Disponível em: . Acesso em 26 de set. 2013. 14 CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO, MESTRES DA GRAVURA. COLEÇÃO FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL. Curadoria Fernanda Terra. Disponível em: . Acesso em: 25 set. 2013. 33 proximidades da invenção da fotografia15, final da Idade Moderna e início a Idade Contemporânea, demarcada pela Revolução Francesa em 1789. Graças ao desenvolvimento tecnológico ocorrido desde a invenção da imprensa, que possibilitou a gravação de trabalhos dos ilustradores nos livros e na imprensa em geral, temos hoje tais gravuras, cujos originais são pouco exibidos por motivos de conservação. Pontuamos alguns breves casos de diálogo entre a literatura e as artes plásticas (pintura). Nesse contexto caracterizado pela produção de livros crescente e significativa, primeiramente com a Bíblia, muitos outros livros são produzidos através de diversos empreendimentos aplicados à impressão. Tendo o livro como suporte, surgem novas tentativas de diálogo entre a literatura e as artes visuais, as primeiras transposições intersemióticas entre linguagens, a pintura e a literatura na Renascença. Artistas como o pintor Sandro Botticelli e, ao longo dos tempos, Domenico di Michelino, Gustave Doré, Bouguereau, William Blake, Cristóbal Rojas, Salvador Dali, Helder Rocha e Claudio Canato interpretam A Divina Comédia de Dante Alighieri. Botticelli ainda teve como referência na execução de uma das suas obras mais famosas, O nascimento de Vênus, a obra Metamorfose, contos de Ovídio. Outros consideram que essa obra representa os ideais de beleza feminina, estando baseada nas odes do poeta renascentista florentino Poliziano ou nos sonetos de Francesco Petrarca. Surge em seguida o Humanismo, período transitório no mundo das artes na Idade Média e no Renascimento. Albrecht Dürer, gravador desse mesmo período da Renascença, utiliza-se de temáticas bíblicas para compor suas obras, como a representação do Apocalipse através da xilogravura, retratando cenas do Antigo Testamento, um forte indicativo da temática utilizada no período anterior, Idade Média, que ainda perduraria por algum tempo. A literatura e as artes visuais, de forma incipiente, começam então a ensaiar seus primeiros passos. Não só a ousadia e a perícia técnica marcam as produções interativas, bem como a palavra e a imagem por parte de seus artistas. Os diversos mecenas existentes, banqueiros, ricos comerciantes, duques, príncipes, ou mesmo os papas, ditavam o que se podia pintar ou não. Os artistas, financiados por esses investidores através de um alto custo, não podiam recusar seus pedidos, que tinham como finalidade o seu próprio prestígio social, através da produção de obras de arte. No entanto, foram esses mecenas que possibilitaram mudança significativa com seus investimentos, concedendo uma maior liberdade de criação às artes em geral, até então vinculadas ao poder ou controle da Igreja.

15 A fotografia foi inventada em torno de 1825, no entanto sua difusão pública acontece somente em 1839. 34

2.3 - A semiótica peirceana e o imaginário durandiano

A semiótica surgiu na Grécia antiga. No entanto, esse termo tem origem na medicina, segundo Nöth, aí entendida como o primeiro estudo do diagnóstico dos signos das doenças. O médico grego Galeno de Pérgamo (139 d.C - 199 d.C), por exemplo, refere-se à diagnóstica como sendo ―a parte semiótica‖ (semeiotikós meros) da medicina (Nöth, 1995, 21). Mais adiante, esse termo na medicina seria ressignificado para estudos dos sintomas ou sintomatologia. Winfried Nöth (1995), em seu trabalho Panorama da Semiótica, faz uma retrospectiva da semiótica, desde a antiga Grécia, passando pela Idade Média, Renascimento, Racionalismo, Empirismo, Iluminismo, culminando com a semiótica universal de Peirce. Com relação ao surgimento da palavra semiótica16, verifica-se variada sucessão de nomes no decorrer da história. Alguns termos análogos à denominação continuam sendo empregados em seus lugares de origem; é o caso da semântica e semasiologia, usados na linguística. Outros termos foram unificados, a exemplo do termo semiologia, acabando assim a dualidade entre este e a semiótica: A rivalidade entre esses dois termos foi oficialmente encerrada pela Associação Internacional de Semiótica que, em 1969, por iniciativa de Roman Jakobson, decidiu adotar semiótica como termo geral do território de investigações nas tradições da semiologia e da semiótica geral (NÖTH, 1995, p. 24).

Segundo Nöth, o próprio Charles Sanders Peirce, um dos fundadores da moderna semiótica, nunca usou o termo que é empregado atualmente em inglês, semiotics:

Semiotcs, na forma plural em inglês, é de origem relativamente recente. Charles Sanders Peirce (1839-1914) nunca a usou, preferindo o termo semeiotic ou, menos freqüentemente, semeiotics, semiotic ou semeiotic. Charles Morris (1901-1979) também usou a forma singular semiotic. Plural semiotcs foi adotado em analogia, como as demais formas plurais que, em inglês, denominam ciências, como linguistics, semantics, mathematics ou physics. Um dos primeiros usos dessa forma apareceu em 1964 como título de uma obra organizada por T. Sebeok et al., Aproaches to semiotics (NÖTH, 1995, p. 22).

16 A semiótica como teoria geral dos signos teve várias denominações no decorrer da história da filosofia. A etimologia do termo remete ao grego semeîon, que significa ―signo‖, e sêma, que pode ser traduzido por ―sinal‖ ou também ―signo‖. Semio -, uma transliteração latinizada da forma grega semeîo -, e os radicais parentes, sema(t) - e seman -, têm sido a base morfológica para várias derivações de vocábulos que dão nome às Ciências semióticas. Além das formas semeiotica e semeiologia, já mencionadas, houve precursores rivais terminológicos da semiótica, tais como, semiologia, semântica, sematologia, semasiologia, semologia, além dos termos usados por Lady Welby: sensifics e significs (idem, ibidem). 35

A interpretação do signo, para os antigos, não se restringia à questão de ordem médica; eles também acreditavam na linguagem como uma forma simbólica ou uma categoria sígnica. O conceito de signo se constitui, inicialmente, a partir das questões da língua trabalhadas por Saussure e, principalmente, pelos fundamentos epistemológicos de Charles Sanders Peirce, nos idos entre o final do século XIX e o início do século XX. Ferdinand de Saussure dedicou-se a estudar questões relativas à língua, levando em conta também os diferentes sistemas de signos. Saussure diz que: ―A língua é um sistema de signos que exprimem ideias, e é comparável, por isso, à escrita, ao alfabeto dos surdos e mudos, aos ritos simbólicos, às formas de polidez, aos sinais militares etc.‖ (SAUSSURE, 1995, p. 24). Entre os princípios que propôs, Saussure cria o famoso diagrama diático, entre o significado/significante; de um lado, os sons (imagem acústica); de outro, o conceito. Dessa relação significado/significante, Saussure estabelece a arbitrariedade do signo. Segundo ele, ―O laço que une o significante ao significado é arbitrário ou então, visto que entendemos por signo o total resultante da associação de um significante com um significado, podemos dizer mais simplesmente: o signo linguístico é arbitrário‖ (SAUSSURE, 1995, p. 81). Charles Sanders Peirce, ao contrário de Saussurre, não trabalhou apenas o signo verbal. Ele preocupou-se com uma teoria geral, em que a própria língua estaria contida nesta teoria. Portanto, tudo que tenha um significado pode ser um signo17; não só o contexto é importante, como também o é a leitura que faço do mundo. Charles Sanders Peirce diz que: ―Qualquer coisa que conduz alguma outra coisa (seu interpretante) a referir-se a um objeto ao qual ela mesma se refere (seu objeto), de modo idêntico, transformando-se o interpretante por sua vez, em um signo, e assim sucessivamente ad infinitum‖ (PEIRCE, 2003, p. 74). Seu conceito refere-se a toda e qualquer representação de algo, seja mental ou física, e que ocorre de forma triádica. A representação gráfica da tríade peirciana é apresentada desta forma:

17 Para Peirce, um signo ―é algo que está no lugar de alguma coisa para alguém, em alguma relação ou alguma qualidade‖. O mérito dessa definição é mostrar que um signo mantém uma relação solidária entre pelo menos três polos (e não apenas dois, como em Saussure): a face perceptível do signo, ―representamen‖, ou significante; o que ele representa, ―objeto‖ ou referente; e o que significa, ―interpretante‖ ou significado. Essa triangulação também representa bem a dinâmica de qualquer signo como processo semiótico, cuja significação depende do contexto de seu aparecimento, assim como da expectativa de seu receptor (JOLY, 1996, p. 33).

36

Signo

Objeto Interpretante

Fonte: CUNHA, L. M. C da adaptação da relação da Tríade Semiótica de Charles Sanders Pierce (PIERCE apud JOLY, 2008, p. 33).

Lúcia Santaella, em sua obra Assinatura das coisas, esclarece sobre o aspecto ontológico do signo, que seria a assinatura de todas as coisas que nos rodeiam, sejam essas abstratas ou reais, e que o signo, por não ser puro, pode variar segundo categorias de primeira, segunda e terceiridade, distribuídos em três principais tipos de signos: ícones, índices e símbolos18 . Essa classificação é importante para a interpretação do que seja imagem, sua variação e processamento. O conceito de Peirce acerca da imagem não é somente visual, mas também de um signo icônico (analógico propriamente dito), que também pode ser um signo plástico (cor, forma, fundo, textura, composição, perspectiva), ou ainda signo linguístico (linguagem verbal). Portanto, essa conceituação abrange imagens visuais, mentais, virtuais, que possuam, de alguma maneira, algo semelhante com outra coisa, uma representação, seja com muita semelhança ou não. Tal heterogeneidade sígnica da imagem deve-se ao fato de que o signo icônico também não pode fugir de uma questão intrínseca do signo, que é a sua relação triádica: signo em si, objeto e interpretante. Imagem é algo que tem semelhança com outra coisa, podendo ser uma qualidade (ícone), um traço (índice) ou ainda uma convenção (símbolo).

18 Ícones – signo que se assemelha àquilo que significa, da forma como a fotografia se assemelha ao objeto fotografado; o ícone denota, em virtude de certas características que lhe são próprias. Índices – signo cujo significado se esclarece mediante efeitos que seu objeto nele produz, como a sombra pode ser um ―indício‖ da posição do Sol; o indicador é sinal que se refere ao objeto que denota em virtude do fato de que é realmente afetado pelo objeto. Símbolos – signo que se associa a objetos graças a convenções especiais, tal como se dá com as palavras; o símbolo é o signo que se transforma em signo porque com tal é entendido (PEIRCE, 1975, p. 27).

37

O ponto de encontro entre as diversas significações do termo imagem, supomos que seja o de analogia, semelhança. Imagem é, antes de tudo, algo que tem alguma semelhança com outra coisa. Não devemos esquecer que imagem é uma representação e, como tal, se essas representações são assimiladas entre indivíduos (receptores e produtores), é porque existe certa convenção em comum entre eles. A teoria peirceana possibilita-nos apreender, através do esquema triádico, as dimensões icônica, indicial e simbólica, a complexidade e o poder de comunicação da imagem. A concepção peirceana preconiza que todo signo está apto a produzir novos signos infinitamente. Há predisposição do interpretante para gerar a ação de interpretações como algo latente do signo, algo premeditado, mesmo que este ainda não tenha alcançado o seu devir. A esse respeito, Santaella diz que:

O interpretante não é ainda o produto de uma pluralidade de atos interpretativos, ou melhor, não é uma generalização de ocorrências empíricas de interpretação, mas é um conteúdo objetivo do próprio signo. O devir do interpretante é, pois, um efeito do próprio signo como tal e, portanto, depende do ser do signo e não apenas e exclusivamente de um ato de interpretação subjetivo (SANTAELLA, 1995, p. 4).

Essa noção de interpretante faz soar como algo independente de tudo, algo com poder de autossuficiência. Porém, Santaella esclarece que o interpretante também está sujeito a interpretações variadas, como os atos interpretativos particulares. A interpretação de um signo por uma pessoa, no entanto, é primeiramente uma atitude de contemplação, alerta e observação do interpretante ou interpretantes que o signo é capaz de produzir. Santaella assim conclui sobre a natureza sígnica do interpretante:

Todo interpretante é um signo, assim como todo signo é um interpretante. Note-se, porém, que não há nenhuma circularidade nisso, uma vez que aquilo que efetivamente define o processo de representação não são os substantivos (objeto- signo-interpretante), mas as relações diferenciais de implicação e determinação entre eles. Numa semiose genuína, esses três elementos têm natureza sígnica. O primeiro se chama signo porque representa o objeto; o segundo se chama objeto porque determina o signo; o terceiro se chama interpretante porque é determinado imediatamente pelo signo e imediatamente pelo objeto (SANTAELLA, 1995, p. 4).

A tríade peirceana aplicada na análise de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, ajuda a perceber que o romance, ao ser considerado como signo em si ou o signo propriamente dito, remete para o objeto que o determinou, isto é, o sertão contendo também a representação do feminino, que está por sua vez representada na obra Grande Sertão: 38

Veredas, dentre tantos recortes possíveis de representação, gera um interpretante, que são as fotos. Vejamos:

Grande Sertão: Veredas O signo propriamente dito

Objeto Interpretante Sertão/Presença do Feminino A série fotográfica: A João Guimarães Rosa

Fonte: CUNHA, L. M. C da adaptação da relação da Tríade Semiótica de Charles Sanders Pierce (PIERCE apud JOLY, 2008, p. 33).

Porém, se deslocarmos a série fotográfica para a posição do signo em si, o romance passa a ser o objeto do signo e nossa leitura acadêmica dele toma o lugar do interpretante, como uma atualização realmente produzida. Importante observar que a ação do signo produzida é um processo contínuo e relacional, em que todos os componentes têm a natureza sígnica. Vejamos:

O ensaio fotográfico: A João Guimarães Rosa O signo propriamente dito

Objeto Interpretante O romance: Grande Sertão: Veredas A leitura acadêmica (tese)

Fonte: CUNHA, L. M. C da adaptação da relação da Tríade Semiótica de Charles Sanders Pierce (PIERCE apud JOLY, 2008, p. 33).

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Em síntese, a teoria peirceana possibilita perceber o complexo jogo comunicacional da imagem através do ciclo triádico: icônico, indicial e simbólico, ou ainda, como semelhança, traço e convenção. No que se refere ao interpretante, o entendimento desse elemento é primordial para compreender o conceito do signo em Charles S. Peirce, pois o interpretante é responsável por estabelecer a relação de terceiridade do signo, ―que caracteriza a semiose e garante a indefinição continuada desta. Embora estejam conectados por uma lógica de determinações e sucessivas substituições, o objeto, o signo e o interpretante são irredutíveis‖ (SANTOS, 2009, p. 44). A representação peirciana comunga com a noção de que todo signo tem a possibilidade de se reverberar em signo e, assim, sucessivamente. Assim como a obra rosiana, que sempre remete a novas possibilidades de leitura, constituindo um signo em constante rotação.

2.4 - Tradução intersemiótica

A fotógrafa Maureen Bisilliat expressa em seu trabalho, em linguagem não verbal, o que o romancista João Guimarães Rosa expressou em linguagem verbal. Por sua vez o leitor, analista da obra, essa terceira pessoa, tenta entender essa dinâmica sígnica, toda essa representação em uma outra representação, o que já foi esclarecido no devir interpretante do signo. Trata-se, portanto, de um trabalho de tradução entre linguagens. O linguista e ensaísta russo, naturalizado norte-americano, Roman Jakobson (1969), em seu ensaio Aspectos linguísticos da tradução, apresenta três possibilidades da tradução do signo: a primeira seria a tradução intralingual, a segunda a tradução interlingual e a terceira a tradução intersemiótica: A tradução intralingual ou reformulação (rewording) consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua. A tradução interlingual ou tradução propriamante dita consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua. A tradução intersemiótica ou transmutação consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não-verbais (JAKOBSON, 1969, p. 64-65).

Analisando as formulações dessas três espécies de tradução propostas por Jakobson, Philadelpho Menezes (s/d), em seu trabalho A tradução intersemótica na fronteira das linguagens, discute algumas questões acerca do emprego do termo ―tradução‖. Afirma que, em geral, o termo tradução encontra-se historicamente relacionado com o tipo de tradução entre línguas diferentes, denominado de ―tradução interlingual‖; no entanto, esclarece que a ―tradução intralingal‖, apresentando-se como sendo uma das traduções em Jakobson, na verdade, 40

faria parte de um pensamento e do conhecimento mais amplo sobre a linguagem e a formação do pensamento e do conhecimento. Isto porque, a rigor, não existiria um processo tradutório literal na versão intralingual, mas sim um processo de conhecimento que se dá por via da reelaboração constante do signo verbal.[...] A tradução intralingual é, dessa maneira, outro nome para uma operação comum que efetuamos todo instante na própria elaboração do pensamento conceitual e que, em proporções maiores, coincide com o próprio processo de conhecimento (MENEZES, s/d, p. 3).

No referido ensaio, Philadelpho Menezes também enfatiza que o conceito de tradução intersemiótica tem um campo demasiadamente vasto e que, devido a isso, pode até ser confundido com outros processos. O próprio Jakobson já admitia que o processo de tradução é muito problemático, pois, em certos momentos, ―a prática e a teoria da tradução abundam em problemas complexos que, de quando em quando, fazem-se tentativas de cortar o nó górdio, proclamando o dogma da impossibilidade da tradução‖ (JAKOBSON, 1969, p. 66). Menezes, em discussão preliminar sobre o exercício de transposição de uma linguagem para outra – a tradução intersemiótica –, afirma que há alguns casos de passagens de um suporte expressivo para outro. A forma, no entanto, não se modifica, isto é, a mera passagem entre os meios não garantiria o acionamento do processo de criação, que conferiria um novo status à mensagem traduzida. Uma obra literária transposta para uma linguagem como ―o vídeo [...] deixaria, segundo esse entendimento, de ser um soneto verbal para consistir em algo novo pela simples recolocação em outro meio ou veículo, ainda quando nada se modifica em sua forma‖ (MENEZES, s/d, p. 3). Julio Plaza discute inicialmente em sua obra a questão da historicidade da tradução, que ele chama história sincrônica, uma forma de transmissão da história como forma plástica mais adequada ―ao projeto artístico e, por isso mesmo, à tradução poética‖ (PLAZA, 2001, p. 2). O termo tradução traz em sua origem a ideia de traição, devido à capacidade dada ao tradutor de fazer uma nova versão através da recriação do original. Ao transpor um sistema de signos para outro, o artista deixa transparecer a sua própria visão de mundo e não pode fugir do contexto no qual está inserido. À medida que essa tradução consiga atingir mudanças significativas, trata-se de um processo de recriação e não apenas repetição, e isso se deve muito à experiência de cada artista tradutor. São essas experiências resultantes de outras anteriores e da necessidade de informações peculiares acerca das desigualdades existentes entre a linguagem verbal e a não verbal. Plaza esclarece que:

A operação tradutora como trânsito criativo de linguagens nada tem a ver com fidelidade, pois ela cria sua própria verdade e uma relação fortemente tramada entre seus diversos momentos, ou seja, entre passado-presente-futuro, lugar-tempo onde se processa o movimento de transformação de estruturas e eventos (PLAZA, 2001, p. 1). 41

Plaza adverte acerca da operação criativa, trânsito criativo entre as linguagens, e de modo algum poderia ser caracterizado como a tradução fiel do original. No entanto, admite que uma tradução poética só se realiza de forma criativa. Na passagem de um sistema de signos para outro, o artista deixa vestígios de sua visão de mundo e de seu contexto, experiência resultante de outras experiências anteriores, bem como da própria obra, na medida em que deixa resquícios seus e da obra traduzida nesse novo trabalho. O processo é caracterizado por recriação criativa, devido a conseguir obter mudanças significativas neste novo signo com relação ao anterior. Ainda nesse contexto, Décio Pignatari esclarece que: A tradução, embora seja transparente, pois que não oculta o original nem lhe rouba a luz. Não obstante, todo tradutor tem o desejo secreto de superação do original, que se manifesta em termos de complementação com ele, alargando os seus sentidos e/ou tocando o original um ponto tangencial do seu significado, para depois, de acordo com a lei de fidelidade na liberdade, continuar a seguir o seu próprio caminho, que seria o da tradução criativa (PIGNATARI apud PLAZA, 2001, p. 30).

Ainda sobre a tradução, tanto Plaza como Octavio Paz e Jakobson relativizam a questão da intraduziblidade da obra poética. Seus conceitos passam por caminhos diversos, mas acabam tangenciando em um ponto, em que só é possível a transposição criativa: ―...transposição de uma forma poética a outra – transposição interlingual – ou finalmente, transposição intersemiótica – de um sistema de signos para outro (JAKOBSON apud PLAZA, 2001, p. 26). Plaza, ao analisar a tradução intersemiótica como intercurso dos sentidos, verifica a diferenciação desta em relação às outras traduções, enfatizando a relevância dos meios, sentidos e códigos. Uma vez que a tradução intersemiótica lida com diferentes linguagens, é notório que, nessa passagem, ocorre um certo desequilíbrio dos elementos expressivos, necessitando portanto de uma nova arrumação, redefinição de especificidades inerente à demanda de cada nova linguagem. Marshall McLuhan, em seu trabalho intitulado Os meios de comunicação como extensão do homem, diz que o meio é a mensagem. Quando traduzimos de um sistema de códigos para outros, necessariamente ocorrem mudanças em nossa percepção. Como cada meio tem uma característica peculiar, existiria uma mudança da forma de leitura. Os sentidos tátil, olfativo, gustativo, auditivo e visual são ativados de maneira diferenciada para atender a cada demanda. Amplia-se um sentido em detrimento de outro. McLuhan diz que: ―O meio é a mensagem, porque é o meio que configura e controla a proporção e a forma das ações e associações humanas‖ (MCLUHAN, 1995, p. 22). 42

Contextualizando o conceito de tradução em seu trabalho, Julio Plaza (2001) afirma que: ―A arte não se produz no vazio. Nenhum artista é independente de precedentes e modelos. Na realidade, a história, mais de que simples sucessão de estados reais, é parte integrante da realidade humana‖ (PLAZA, 2001, p. 2). A tradução, por sua vez, assim como uma descoberta, está interligada às várias experiências anteriores. O passado não é uma mera lembrança, mas um dado que sobrevive na realização artística do presente. Para a semiótica peirceana, o conceito do signo da tradução, como tudo em Peirce, também está dividido em sua famosa relação triádica: ícone, índice e símbolo. Como já foi comentado, o signo não é uma entidade estática, mas um processo em constante devir, signo gerando signo. Com esse conceito da imagem como signo, alguns aspectos se destacam acerca do que Peirce concebe como tradução, segundo Julio Plaza:

Por seu caráter de transmutação de signo em signo, qualquer pensamento é necessariamente tradução. Quando pensamos, traduzimos aquilo que temos presente à consciência, sejam imagens, sentimentos ou concepções (que, aliás, já são signos ou quase signos) em outras representações que também servem como signos. Todo pensamento é tradução de outro pensamento, pois qualquer pensamento requer ter havido outro pensamento para o qual ele funciona como interpretante (PLAZA, 2001, p. 18).

Em uma época na qual as linguagens verbal e não verbal dialogam cada vez mais mediante a proliferação das novas tecnologias, gerando uma linguagem híbrida, passível de várias interpretações, as artes têm se alterado substancialmente. Para o entendimento desse fenômeno de miscigenação das linguagens, a tradução intersemiótica possibilita a compreensão dessas passagens; ao mesclar vários suportes, criam-se alternativas de expressão, complexifica-se a linguagem, geram-se múltiplos sentidos.

2.5 – O imaginário

O termo imaginário é de difícil definição, em virtude de suas múltiplas acepções, seja no senso comum ou através de alguns teóricos como Jean-Paul Sartre e Jacques Lacan. Seu emprego é bem diverso das ideias de Gilbert Durand, Gaston Bachelard, Jung, que consideramos os mais relevantes desse somatório de disciplinas quanto ao seu surgimento. Portanto, o imaginário nasce de uma interdisciplinaridade de grandes mestres. Sua riqueza de definições deve-se a esse arsenal de tantas contribuições oriundas das mais diversos universos acadêmicos que o adotaram. 43

O surgimento das ideias acerca do imaginário durandiano ocorre com o Círculo de Eranos, em torno de 1933, na cidade de Ascona, Suíça, tendo como catalizador a psicologia inerente às reminiscências arquetípicas, as imagens primeiras que povoam o pensamento humano, estudadas por Karl Gustav Jung, imagens essas denominadas de inconsciente coletivo, além da psicologia analítica de Jung. No mesmo contexto de entendimento de imaginário, destaca-se a concepção de imaginação poética e científica do filósofo e poeta Gaston Bachelard, além da sociologia de Edgar Morin e da história da religião de Mircea Eliade. De tal plêiade constam diversos outros cientistas, chegando a reunir uma média de trinta componentes que expunham diversos pontos em comum, compartilhando-os. Dentre outros temas, além da psicologia analítica, vamos encontar a biologia, a física, a religião, a arte, a fenomenologia, a mitologia, bem como os temas abordados por Gilbert Durand, relacionados à arquetipologia geral e à hermenêutica dos símbolos. Dentre tantas definições possíveis, adota-se a de imaginário como sendo ―o conjunto de relações de imagens que constituem o capital pensado do Homo sapiens – o grande denominador fundamental onde vêm se arrumar todos os precedimentos do espírito humano‖ (DURAND, 2002, p. 18). Os estudos acerca do imaginário se multiplicam e aprofundam devido à contribuição de diversos teóricos, baseados em Gilbert Durand, como Jean-Jacques Wunenburger (2007), que define pertinentemente o significado de imaginário como um conjunto de produções, mentais ou materializadas em obras com base em ―imagens visuais (quadro, desenho, fotografia) e linguísticas (metáfora, símbolo, relato), formando conjuntos coerentes e dinâmicos, referentes a uma função simbólica no sentido de um ajuste de sentidos próprios e figurados‖ (WUNENBURGER, 2007, p. 11). Com a tese As estruturas antropológicas do Imaginário, de Gilbert Durand (2002), esse autor retoma as ideias de Gaston Bachelard, demonstrando que as imagens obedecem a uma lógica, primeiramente no plano psíquico, e em seguida, no plano da cultura. A concepção de imaginário, como já foi dito, devido à plasticidade de sua interpretação ao longo da história, nem sempre converge para um mesmo significado de interpretação; pelo contrário, ―o conjunto das ciências humanas ofereceu contribuições, com frequência na desordem e na ignorância de toda complementaridade interdisciplinar‖ (WUNENBURGER, 2007, p. 27). Diversos saberes propiciaram métodos de análise muitas vezes parciais. É, portanto, com Gilbert Durand que essas concepções tendem a ter uma melhor arrumação, enfatizando-se ―que, longe de ser um conjunto anárquico, caótico, feito de 44 associações heteróclitas de imagens, obedece a uma estrutura e conhece uma história marcada por um jogo sutil de constantes e variações no tempo‖ (WUNENBURGER, 2007, p. 27). Para um melhor direcionamento das questões desta pesquisa, adentramos em algumas questões que acrescentam subsídios ao mundo das palavras e sua relação com o ao universo das imagens visuais.

2.5.1 - O imaginário e as relações icônico-verbais

Durand (2004), em suas análises, observa que a sociedade ocidental tem uma concepção de mundo em que as palavras são separadas das imagens, em oposição aos orientais, com suas escritas ideogramatizadas. Como nos chineses, japoneses, ou em culturas mais distantes como a dos egípcios, que apresentavam os hieróglifos, uma forma de escrita pictural. Devido a isso, por diversos contextos na história ocidental, as ideias do imaginário quase sempre foram negadas.

Em diversos momentos ao longo da história existiram os ―iconoclastas‖ – Durand (2004), aqueles povos que abominam as imagens, a ponto de destruí-las ou ao menos evitá-las por desconfiança, fato ocorrido principalmente pela visão unilateral e por vezes atrelada a questões de ordem religiosa, como no caso de organizações fundamentalistas que perseguiam outras com a finalidade de destruir suas imagens sacras. Esses preconceitos não são somente advindos das interpretações de livros sagrados, mas, sobretudo, da concepção cartesiana, como no Iluminismo. Muito antes, já na Grécia antiga, os filósofos como Platão temiam a utilização das imagens, condenando-as pelo aspecto da falsidade. Na Idade Média, novamente tais ideias são perpetuadas, dessa vez com o racionalismo medieval, a escolástica e com as concepções aristotélicas. É com Descartes que essa separação é ainda mais acentuada, devido à valorização dos conceitos físicos e matemáticos. Em tais teorias, o imaginário fica cada vez mais subjugado ao mundo das fantasias, sonhos e irracionalidade, só conseguindo ressurgir no Romantismo, no Simbolismo e principalmente, com as ideias acerca do inconsciente, com o Surrealismo. Em outra possibilidade de relação ou mesmo dessa difícil adequação entre palavra e imagem, há um complexo jogo de representação vinculado aos conceitos de imaginário. Acredita-se que por não estarem vinculadas aos mesmos suportes, uma pode apresentar uma ordem linguística, outras uma ordem visual, de modo a compor uma textura verbal e icônica tão tênue, mas com características particulares a cada meio, como já foi abordado pela neurociência. Wunenburger diz: 45

No plano neurobiológico, não é possível excluir certa bipolaridade na atividade mental entre as funções linguísticas, que repousam na análise abstrata (atribuída ao lado esquerdo do cérebro), e a visualidade, que abrange atividades intuitivas (sobretudo associadas ao lado direito do cérebro) (WUNENBURGER, 2007, p. 28).

Paradoxalmente, a proliferação das imagens técnicas de forma exacerbada ocorre no Ocidente através de diversos mecanismos: vídeo, holografia, e também mediante a fotografia, tida como um dos primeiros artefatos técnicos da era moderna a criar imagem com uma precisão de semelhança nunca antes vista, atuando de forma bastante ―perversa‖ (Durand, 2004); imagens que na sua maioria tendem a uma narcotização do pensamento, muito longe de se intertextualizarem com outros elementos a que estão conjugadas, destes elas se separam cada vez mais. Um dos mais fecundos caminhos de criatividade do imaginário, desde a Antiguidade grega, passa precisamente pela tradução de um registro ao outro. A fórmula de Horácio segundo a qual a poesia se assemelha à pintura (Ut pictura poesis) inspira uma tradição estética de complementaridade verbo-icônica.

2.6 - Algumas considerações acerca das relações entre o verbal e o não verbal

As imagens e as palavras possuem outras diferenças, como a questão da cognição, o ato ou processo que temos relacionado ao conhecimento. Os dois hemisférios cerebrais operam de diferentes maneiras com relação às linguagens associadas às habilidades específicas. A percepção do não verbal, como as imagens e tudo que compreende o universo da visualidade, está relacionada com o lado direito; já as habilidades específicas associadas ao verbal, à escrita e à fala, se situam no lado esquerdo.

De mesmo modo, a capacidade de memória varia no contexto das informações imagéticas ou linguísticas. As imagens são recebidas mais rapidamente do que os textos, elas possuem um maior valor de atenção, e sua informação permanece durante mais tempo no cérebro. Somos capazes de memorizar descrições de objetos a partir de imagens do que a partir de palavras. Além disso, memorizamos com mais facilidade palavras que designam objetos concretos do que palavras que designam conceitos abstratos (NÖTH apud SANTAELLA, 2012, p. 109).

Interdisciplinaridade, equilíbrio atuando de modo complementar e em conjunto, é o que sugerem os cientistas acerca dessa relação. No entanto, cada hemisfério opera de maneira 46 independente um do outro, apesar da sincronia possível, como na questão do movimento do corpo. De modo desigual, no modo como os hemisférios operam os diversos padrões de estímulos sensoriais. Com as sugestões dadas pelo semioticista alemão Winfred Nöth (2012), em face dos aspectos distintos apresentados, podemos compará-las às relações tênues entre a palavra e a imagem, quando ambos são justapostas. Segundo o neurocientista Roberto Lent (2013), com a leitura das palavras existe no cérebro uma extensão das áreas ativadas por esse processo; ―desse modo, em certo sentido, ‗melhora‘ o funcionamento do cérebro, pois especifica a rede de áreas visuais e linguísticas, habilitando-as a compreender o significado dos símbolos da escrita‖19, e outra parte cerebral envolvida, por sua vez, com outros aspectos específicos da visão. Palavras e imagens visuais possibilitam uma maior variedade de ativação em diferentes pontos dos hemisférios cerebrais, levando a crer em um uso mais expandido do funcionamento do cérebro. Ocorre então uma mudança significativa, pois o obriga a trabalhar pontos específicos até então não utilizados. A imagem pode ser complementar ao texto, ajudando a desvendar detalhes que só a própria linguagem visual pode apresentar, da mesma maneira que um texto pode desvendar quase todos os mistérios que a foto apreende. Há imagens que sobressaem em relação a um texto, da mesma maneira que muitos textos se destacam em relação às imagens. No entanto, em todos os casos, as imagens necessitam do verbo, de modo que autores questionaram a autonomia da imagem. Esse questionamento baseia-se na abertura interpretativa, que é própria da imagem. Portanto, ela precisa ser modificada, especificada, enfim explicada por uma linguagem verbal‖ (SANTAELLA, 2012, p. 110). A imagem não possui uma gramática particular para que possamos descrevê-la sem o verbal, sendo, portanto, uma característica própria da imagem a sua liberdade de interpretação. Nem sempre ―uma imagem vale mais do que mil palavras‖; isso é bastante relativo, pois tudo vai depender do contexto em que essa imagem está inserida: podemos interpretá-la como uma variedade enorme de possibilidades, noutras casos quase não temos palavras para descrevê-la.

Se comparada à língua, a semântica da imagem é, de fato, polissêmica. Ela pode ter muitos significados. Isso não significa que não existam também na língua mensagens abertas. A poesia que o diga. Por isso, em vez de postular que a imagem sempre necessita de um texto que indique a direção do seu significado, é melhor entender que a modificação de que a imagem pelo seu contexto é apenas um caso

19 LENT, Roberto. Nosso grande paradoxo. Disponível em: . Acesso em: 12 ago. 1913. 47

especial do fenômeno mais geral da dependência contextual de qualquer mensagem. Quer dizer, toda mensagem precisa de um contexto para se fazer entender (SANTAELLA, 2012, p. 110).

Dentre as relações possíveis de análise entre texto e imagem, podemos classificá-las em: relações sintáticas20, relações semânticas21 e relações pragmáticas22. As relações sintáticas podem ser por: 1) contiguidade e 2) inclusão. Por contiguidade, palavras e imagens visuais apresentam uma grande proximidade. Isso ocorre quando as imagens, como pinturas ou fotografias apresentadas nos jornais e revistas, apresentam legendas, palavras vizinhas que as acompanharam e explicam. Variam através de modalidades, como: Interferência; Correferência e Ilustração, segundo Santaella (2012). A Interferência ocorre quando as ilustrações fotográficas ou pictóricas apresentam uma separação espacial, como o texto que é acompanhado de uma imagem que o complementa, mas sua localização tem um breve distanciamento, porém na mesma página. Outro tipo de modalidade, a Contiguidade ocorre, por Correferência, quando imagem e palavra se apresentam numa mesma página, no entanto se referem a conteúdos diferentes. Ilustração é outra modalidade de sintaxe; ocorre quando a imagem vem logo depois da palavra, como os quadros bíblicos ou, ainda, quando, segundo Santaella (2012), ―o texto segue-se à imagem, por exemplo, poemas que se referem a quadros famosos. Este caso é chamado de ekphase (poema visual)‖. A inclusão de palavras em imagens pode ser de quatro tipos: representação de textos em imagens, como, por exemplo, uma foto que inclui a imagem de uma página impressa; pictoralização das palavras, quando estas perdem seu caráter verbal, ganham em visualidade e se tornam elementos da imagem; inscrição, quando a imagem serve meramente como um espaço de escrita; a palavra esta inscrita na imagem; inscrição indicial, quando as palavras estão inscritas na imagem como indicadores que se referem àquilo que a imagem descreve (SANTAELLA, 2012, p. 110)

As relações semânticas, por sua vez, segmentam-se em dominância, redundância, complementaridade, discrepância ou contradição. As relações de dominância ocorrem quando a imagem pictórica ou a palavra, uma supera a outra. A palavra pode superar uma imagem, do mesmo modo que uma imagem pode superar um texto. No entanto, tudo depende

20 As combinações sintáticas entre texto e imagem são descritas segundo relações espaciais. 21 Do ponto de vista da semântica, a relação entre texto e imagem investiga a contribuição entre elementos verbais e imagéticos para a contribuição de uma mensagem complexa. 22 Quando o texto é usado para dirigir a atenção do leitor para a imagem, especialmente para certas partes dela, ou quando as imagens são usadas para dirigir a atenção do leitor para uma mensagem verbal específica, a relação palavra e imagem é, predominantemente, pragmática. 48 da leitura de seu receptor, de seu repertório de informações em decifrar os códigos a sua frente de modo a escolher e privilegiar uma linguagem mais perceptível em detrimento da outra. Há casos em que uma pintura tem maior domínio sobre o texto, e vice-versa. A redundância ocorre quando o que está escrito é a descrição exata da representação de uma imagem. Torna-se repetitivo e óbvio, de forma denotativa acerca do que está acontecendo. Por exemplo, uma fotografia de uma criança chorando, e em sua legenda está escrito: A criança está chorando. No entanto, a redundância serve para reformar a aprendizagem, a memorização de determinadas palavras, relacionando-as com a sua representação imagética. A complementaridade ocorre quando têm o mesmo peso e a imagem está indissoluvelmente integrada ao texto: ―A vantagem da complementaridade de texto e imagem é especialmente observada no caso em que conteúdos de imagem e palavra utilizam os variados potenciais de depressão de ambas as linguagens‖ (SANTAELLA, 2012, p. 114), de modo que o que falta em uma linguagem seja suprido pela outra. O texto comenta as imagens, ao passo que as imagens ilustram as palavras. A discrepância ou contradição ocorre quando imagem e palavra não combinam; há um equívoco ou desvio nessa relação, tornando-se uma confusão entre as linguagens. O leitor não consegue fazer uma ligação entre ambas. As relações pragmáticas ocorrem “quando o texto é usado para dirigir a atenção do leitor para a imagem, especialmente para partes dela, ou quando as imagens são usadas para dirigir a atenção do leitor para uma mensagem verbal específica, a relação palavra imagem é, predominantemente, pragmática‖ (SANTAELLA, 2012, p. 117). Acerca dessa relação, Barthes estabelece dois tipos de referência entre texto e imagem: a) ancoragem e b) relais (BARTHES, 1978, p. 38-41). Existe também o vínculo entre imagem e texto, que pode ser de três maneiras: vínculo por semelhança23, vínculo indicial24e vínculo convencional25.

23 Há similaridade entre texto e imagem quando o texto consegue transmitir a mesma mensagem que a imagem (idem, p. 119). 24 a. ostensividade: quando o texto meramente nomeia a imagem, como na frase ―o novo Honda‖; b. dêixis: quando o texto aponta para a imagem, como na frase ―esse é o novo Honda‖; c. dêixis simbólicas: quando texto e imagem estão conectados por meio de outras indicações convencionais, tais como linhas e flechas; d. dêixis pictóricas não verbais: quando a imagem desenha gestos ou outros índices não verbais que apontam para um texto; e. função indicadora por contiguidade: a mera contiguidade espacial (justaposição) entre texto e imagem serve como um índice que conecta o signo verbal com o visual [...]; f. parte para um todo: a imagem representa apenas uma parte da mensagem transmitida pelo verbal ou vice-versa [...]; g. exemplificação: a imagem fornece um exemplo daquilo a que o texto refere, ou vice-versa (idem, ibidem).

25 Vínculo convencional: nessa relação, ―texto e imagem relacionam-se por hábitos interpretativos já internalizados pelo receptor, pois o vínculo convencional depende de associações habituais de ideias‖ (SANTAELLA, 2012, p. 120). 49

O vínculo de semelhança existe numa relação de redundância entre palavra e imagem; o texto por vezes torna-se muito similar à imagem ao transmitir mensagens. Já o vínculo indicial pode se dar de sete maneiras diferentes: a) ostensividade, b) dêixis, c) dêixis simbólicas, d) dêixis pictóricas não verbais, e) função indicadora por contiguidade, f) parte para o todo, g) por identificação. Existe, portanto, uma grande variedade de relações entre palavra e imagem. Cada tipo de vínculo estabelecido obedece a uma relação sintática ou semântica que impõe relações entre ambas.

Mas é inevitável que de cada procedimento técnico, exercido com amor e rigor, se desprenda uma poesia específica. Mais ainda no caso da fotografia, cujo vocabulário já participa da magia poética - a gelatina, a imagem latente, o pancromático - e cujas operações se assimilam naturalmente às da criação poética - a sensibilização pela luz, o banho revelador, o mistério da claridade implícita no opaco, da sombra representada pelo translúcido - ó Mallarmé! (ANDRADE, 2013).

3 - LITERATURA E FOTOGRAFIA — DO CONFLITO À HARMONIA. O NASCIMENTO DE UMA RELAÇÃO

A fotografia surgiu em torno de 1826, através do inventor Joseph Niépce Nicéphore, com uma primeira foto da vista da janela do primeiro andar de sua casa em Le Grass, St. Loup de Varenne, nas proximidades de sua cidade natal, Chalon-sur-Saône, França. No entanto, somente nos idos de 1950, isso é divulgado mundialmente, através de historiadores norte- americanos que descobrem essa famosa foto da tomada de sua janela. Com a morte de Niépce, em 1833, muitos anos antes de sabermos do seu verdadeiro inventor, o mundo descobre tal invento através de Louis-Jacques Mandé Daguerre, sócio de Niépce. Este usurpou o título de pai da fotografia, pois adquiriu todas as informações de como realizar tal invento de seu companheiro, obtidas através de missivas trocadas entre eles durante bastante tempo, fato este já comprovado por pesquisadores. Como qualquer descoberta quase sempre está ligada ―por uma série de experiências e conhecimentos anteriores e pelas necessidades da sociedade‖ (FREUND, 1979, p. 37), a fotografia não fugiu à regra, pois resultou de inúmeras tentativas por parte de cientistas, em diversos países, num período de plena industrialização da sociedade burguesa. Vários pesquisadores tentavam fixar as imagens em algum suporte, seja na Alemanha, França, Inglaterra e até mesmo no Brasil, através de Antoine Hercule Romuald Florence, francês naturalizado brasileiro, considerado ―o pioneiro da fotografia no Brasil‖26. Assim como Niépce, também conseguiu obter a fixação de imagens fotográficas em 1833, ao registrar algumas cópias de rótulos de remédios e um diploma de marçonaria, utilizando a urina (ácido úrico) como elemento solvente, no intuito de conseguir obter a fixação por meio da amônia presente na urina. A tese de que a fotografia teve múltiplas paternidades é hoje admitida pela comunidade científica internacional. Assim como outras descobertas da ciência e da técnica, a fotografia nasceu das investigações levadas a efeito numa época por diferentes pesquisadores em lugares diversos. Assim como outras descobertas que povoam a história das invenções, a fotografia também resultou de uma busca

26 KOSSOY, Boris. Hercules Florence, Pioneer of Photography in Brazil. In: Image, vol.20, n.1. Disponível em: . Hercules Florence, Pioneer of Photography in Brazil>. Acesso em: 23 agos. 2012. 51

solitária empreendida por pessoas determinadas e incansáveis, como Nièpce, Daguerre, Fox Talbot, Bayard e Hercule Florence (KOSSOY, 2002, p. 144).

Foi também esse mesmo inventor de origem francesa, Florence, quem primeiro utilizou o termo fotografia (photographie)27 no Brasil, quando se encontrava na Vila de São Carlos, atual Campinas. A palavra fotografia foi empregada no Brasil cinco anos antes de sua utilização na Europa, diferentemente da utilizada por Niépce, heliografia, que designava escrita com a luz do sol. Esse invento veio preencher um vazio da então sociedade burguesa, que se consolidava e que precisava de novas descobertas para prosperar e afirmar seus ideais. Esses foram então representados através do retrato fotográfico, cujas novas técnicas vieram satisfazer as exigências daquela sociedade, sendo a fotografia um reflexo das exigências dessa nova tradição e do seu gosto.

O século XIX foi o século das transformações. As cidades cresceram desordenadamente, o homem implementou mudanças em todas as esferas da sua vida. Sob a égide do sistema capitalista, a indústria e a nova economia destruíram antigos laços familiares. Toda uma população desenraizada emigrou para as cidades, procurando vender sua mão-de-obra. Novas formas de organização urbana foram criadas com a intenção de ordenar o deslocamento de pessoas e mercadorias, adaptando as cidades ao capital e às suas necessidades. Seguindo o modelo das reformas de Paris, os núcleos urbanos converteram-se em sistemas homogenizados. A lógica fria do capital passou a dar o tom dos acontecimentos e o homem, atônito, viu o mundo lhe fugir à compreensão (COSTA; SILVA, 2004, p. 15).

Através do patrocínio do governo francês juntamente com o apoio político-científico da Câmara dos Deputados e da Academia de Ciências, em 1839, após a morte de Niépce, Daguerre se apropria da descoberta e lança ao mundo o invento da fotografia, o qual naquele período era denominado de daguerriotipia, em homenagem ao próprio nome, sabendo tirar proveito da novidade tecnológica. ―Daguerre teve apurado senso comercial e parece ter se preparado para a apresentação do seu invento à sociedade, pois organizou apresentações públicas do método e escreveu manuais explicativos para venda de equipamento‖ (JUCHEM, 2011, p. 3). Desde o seu surgimento, a prática fotográfica foi acompanhada de inúmeros discursos, uns a favor, outros contra. O primeiro embate foi com relação à obra de arte versus fotografia. Críticos de arte, como o poeta e teórico Charles Baudelaire, viam a fotografia como algo

27 KOSSOY, Boris. Hercules Florence, Pioneer of Photography in Brazil. In: Image, vol.20, n.1. p.13. Disponível em: . Hercules Florence, Pioneer of Photography in Brazil>. Acesso em: 23 agost. 2012.

52 meramente mecânico, objetivo e que poderia prejudicar a pintura devido à tamanha exatidão em representar a realidade, se comparada à pintura. Diferentemente da pintura, a fotografia não precisava de destreza para se conseguir obter uma imagem, comparada à técnica empregada na pintura, além do fato de um retrato para fotografia poder ser obtido em algumas horas, enquanto uma obra de um pintor poderia levar dias, meses ou até anos para ser concluída. Essa grande interrogação por parte dos pintores com relação ao caráter artístico da fotografia, crentes de que essa descoberta traria a destruição do seu ofício, ocorreu em parte, principalmente em relação aos pintores de retratos miniaturizados a óleo. No decorrer dos anos, no entanto, o mesmo Baudelaire se rende a tal invento; suas críticas são atenuadas, pois a fotografia não causou uma catástrofe no mundo da pintura. O mundo artístico das artes plásticas, em geral, se rende, em parte, à fotografia, e é inevitável também o seu contato com a literatura. Alguns estudiosos admitem em termos históricos a relação com à fotografia, descrevendo esse primeiro momento como uma primeira fase positiva, em que a literatura recebe com certa cordialidade a invenção fotográfica em 1839. ―Both co-existed peaceably in an expanding aesthetic universe‖28 (RAAB, 1995, p. 35). A literatura, tendo então já uma sólida aceitação, não se preocupava com o surgimento da fotografia, uma vez que esse novo invento não demonstrava de modo algum ameaça.

Literature was older, firmly established, and more comprehensive; the photograph, despite its readier appeal to people of all ages, nationalities, and backgrounds, and despite its infinite documentary and imaginative possibilities, did not contest its superiority (RAAD, 1995, p. 35).29

O escritor Charles Lutwidge Dodgson, conhecido pelo pseudônimo de Lewis Carroll, que também era fotógrafo, teve essa arte bastante presente em sua vida, principalmente entre os anos de 1855 a 1880. Tal influência o ajudou a escrever o mundo de fantasias da menina Alice, personagem principal de sua principal obra, Alice no País das Maravilhas. Isso não era de surpreender, pois ele era um admirador de novas tecnologias e também fascinado pela matemática, acreditando que havia algo de misterioso na fotografia e que através dela poderia obter o desmascaramento das aparências, apesar de acreditar na captura de um real-fantasioso, aceitando a fotografia como algo pertencente ao mundo das artes. Segundo Gouridin, ―Caroll ne théorise pas sur le sens de la photographie mais fait osciller celle-ci du côté de

28 Ambas coexistiam pacificamente em um universo de expansão estética. 29 A literatura era mais velha, firmemente estabelecida e mais abrangente; a fotografia, apesar de pronta, atraía pessoas de todas as idades, nacionalidades e origens, e apesar de seu documentário infinito e possibilidades imaginativas, não contestou a sua superioridade. 53 l‘occulte... la photographie se veut dans son univers acte de capture d‘un réel fantasmé.30‖ (GOURIDIN, 2009, p. 2). Dessa relação, de algum modo, a fotografia passa a ser introduzida nas obras literárias como tema a ser explorado; não que esteja a imagem fotográfica inserida na obra, apesar de alguns fotógrafos trabalharem em parceria com alguns escritores, no entanto ela está presente, impregnada de algum modo, no contexto dos livros. Vamos encontrar a fotografia presente em outros escritores desde a segunda metade do século XIX até os dias atuais, como Edgar Alan Poe, em 1840. Ele chega a publicar um artigo sobre a invenção da fotografia, denominado de O Daguerriótipo, técnica fotográfica empregada naquela época, declarando que a precisão na representação por parte da fotografia é bem maior que em qualquer pintura. Em sua obra, podemos observar que ―o escritor americano tratou de discussões sobre o retrato, a imagem e o duplo com uma precisão reticular.‖ (OLIVEIRA, 2009, p. 85). E também em seu conto ―O retrato Ovalar‖ (1842), já demonstrava sua preocupação com a imagem. Escritores como Honoré de Balzac, apesar de acreditar que a fotografia poderia descamar sua pele, caso permitisse uma pose para um retrato. No entanto, Émile Zola, Stendhal, Gustave Flaubert, Alexandre Dumas, Roland Barthes, Marcel Proust, e fotógrafos como Eugene Atget, Walker Evans, Brassaï, além de artistas da fotografia e da escrita como a fotógrafa contemporânea Sophie Calle acreditavam, de alguma maneira, na interação da literatura com a arte fotográfica e a utilizavam. Sendo impossível negar tal relação, demonstravam que a fotografia está impregnada em suas obras. Noutros casos, nem sempre existe uma relação direta desses escritores com a fotografia. As relações entre fotógrafos e escritores eram intensas, a exemplo da amizade entre o retratista francês Nadar, no século XIX, com os escritores George Sand, Charles Baudelaire e Jules Verne, que o encorajaram a fotografar catacumbas e os esgotos utilizando flash de magnésio, e fotografias aéreas de Paris, através de um balão. ―[...] Nadar, encouraged by Charles Baudelaire, George Sand and Jules Verne, among other writer friends, experimented with cameras and lighting both underground and in the air over Paris31‖ (RABB, 1995, p. 37). Durante a última fase do romantismo na Europa, ―embora já demonstrasse sinais de declínio em diversos aspectos‖ (JUCHEM, 2011, p. 5), ocorre uma preparação para uma nova corrente literária chamada Realismo, na qual é possível presenciar uma interação maior dos

30 Carroll não teoriza sobre o significado da fotografia, mas oscila no lado do ocultismo... a fotografia vai agir no seu mundo de captura de um real-fantasioso. 31 Nadar, incentivado por Charles Baudelaire, George Sand and Jules Verne, entre outros amigos escritores, experimentou utilizar câmeras com iluminação nos subterrâneos e fotografias nos céus de Paris. 54 escritores com o mundo da imagem; devido a esse novo mass media, a fotografia experimentou em pouco tempo, graças à sua popularidade, uma evolução técnica significativa. O período condiz com uma nova realidade artística, apesar de a fotografia comumente ser considerada como uma ―cópia da realidade‖, o que é noção simplista; no entanto, foi essa uma das condições que a levou a se encaixar muito bem durante esse período, não só na literatura, como também na pintura, com a qual teve relação mais estreita. Nesse florescimento do realismo, vamos encontrar escritores fotógrafos como Émile Zola, que não só escreviam, mas também eram dedicados fotógrafos. Através dessa nova arte, podia representar em sua obra literária novos aspectos de ver e representar a realidade, até então nunca vistos a olhos desnudos. A câmera fotográfica institui um novo consenso com relação à ―veracidade‖, ao possibilitar observar a natureza de uma forma nunca antes vista — frações de segundo do movimento de tudo que nos rodeia, antes impossíveis de ser captadas com o olho humano, agora são desveladas pela fotografia.

It is not coincidental that literary realism flourished after the invention of photography, early in France than elsewhere. As Paul Valéry observed in retrospect, ―From the moment that photography appeared, the descriptive genre began to invade Letters.... In verse as in prose the decor and exterior aspects of life took an almost excessive place.‖ Indeed, many novelists, such as Champfleury and Émile Zola, may have tried emulate the camera, with its impersonal, disciplined, detailed and accurate mirroring of surface reality in their work. Photography became a metaphor for the veracity and even creativity of many nineteenth-century writers, and the supposedly objective camera became a model for ways of seeing and representing the world32 (RABB, 1995, p. 38).

Com o advento da fotografia, não se tinha como negar a forma de olhar o mundo por meio de imagens, aspecto que artistas até mesmo negavam ou odiavam, possivelmente pelo preconceito criado por alguns críticos e escritores dentre outros artistas, embora sabendo que de alguma maneira isso havia sido influenciado pelas imagens fotográficas. No entanto, Walt Whitman, que admitia em sua obra ―in these Leaves [of Grass] everything is literally

32 Não é coincidência que o realismo literário floresceu após a invenção da fotografia, no início na França, do que em outros lugares. Como observou Paul Valéry, em retrospecto, ―A partir do momento em que fotografia apareceu, o gênero descritivo começou a invadir as Letras....Tanto em prosa como em verso a decoração e os aspectos exteriores da vida tornou um lugar quase excessivo.‖ De fato, muitos romancistas, como Champfleury e Émile Zola tentaram imitar a câmera, com seu espelhamento impessoal, disciplinada, detalhada e precisa da realidade superficial em seu trabalho. Fotografia tornou-se metáfora de criatividade e veracidade até mesmo de muitos escritores do século XIX, e a câmera supostamente objetiva tornou-se um modelo para os modos de ver e representar o mundo. 55 photographed, nothing is poeticized, not a stop, not an inch, […]‖33 (RABB, 1995, p. 38). Essa mesma obra teve uma de suas edições, em 1942, em parceria com as fotografias de Edward Weston. O escritor Marcel Proust também travou intensa relação com a fotografia, como se lê na obra Proust e a Fotografia, escrita por Brassaï. O fotógrafo Brasaï era de origem húngara, e seu nome verdadeiro era Gyula Halász. Naturalizado francês em 1948, além de escritor, também se dedicou à pintura, ao desenho, à escultura e ao cinema, sendo considerado ―o fotógrafo das noites‖ ou das noites de Paris. Conhecia vários artistas frequentadores de diversos cafés, como Sartre, Henry Miller, Pablo Picasso, Giacometti, além de focar em suas fotografias personagens notívagos, prostitutas, homossexuais, atores e viciados em ópio. Brassaï interessou-se pela literatura desde a sua chegada a Paris em 1924; seu pai era professor de literatura francesa que ministrava aulas na Sorbonne. Aprendeu a língua francesa através da leitura das obras de Marcel Proust, apesar de não conhecê-lo pessoalmente, pois Proust morreu dois anos antes de sua chegada à cidade. Brassaï consegue demonstrar as interfaces da literatura proustiana com a sua arte fotográfica, como na constituição da obra Em busca do tempo perdido:

À luz da fotografia, um novo Proust me apareceu, uma espécie de fotografia mental, considerando seu próprio corpo como uma placa ultra-sensível que soube captar e armazenar em sua juventude milhares de impressões e que, a partir do tempo perdido, dedicou todo o seu tempo a revelá-las e fixá-las, tornando assim visível a imagem latente de toda a sua vida, nessa fotografia gigantesca que constitui Em busca do tempo perdido (BRASSAÏ, 2005, p. 16).

São várias as nuanças do mundo fotográfico percebido por Brassaï, desde as origens da paixão ou mesmo a obsessão de Marcel Proust pela fotografia, considerando ainda o modo de narrar fotográfico desse escritor. Brassaï consegue identificar os termos empregados pelo escritor, suas variações ―de perspectiva, de ângulo óptico‖, dentre outras características pertencentes ao universo fotográfico, como as ―numerosas metáforas fotográficas, as incessantes referências ao ‗instantâneo‘, ‗a pose‘ à impressão, o clichê, ‗a câmara escura‘, ‗a revelação‘, à fixação‖ (BRASSAÏ, 2005, p. 15). Brassaï, ao falar das possíveis origens do interesse de Proust pelas imagens, principalmente pelos retratos, as encontra possivelmente nas seções de apreciação de fotografias com seu Tio Jules Amiot ou mesmo ao fato de tê-la herdado de sua mãe: ―Assim, entre dez e doze anos de idade, Marcel e seu irmão Robert foram fotografados quatro vezes.

33 ―Nestas Folhas de Relva [Leaves of Grass] tudo é literalmente fotografado, nada é poetizado, nenhuma parada, nemhuma polegada, [...]‖. 56

Entre Paris e Illiers, a Sra. Proust parava em Chartres para uma sessão de pose.” (BRASSAÏ, 2005, p. 20). Proust tinha como hobby mostrar aos amigos a sua coleção de fotografias e mantinha também o interesse constante por troca de fotografias, principalmente de retratos. Sua obsessão em adquiri-las a qualquer custo o fazia usar como estratégia uma perseguição doentia aos donos das imagens que ele pretendia ter ou até mesmo, se preciso fosse, roubá-las. Brassaï se identificou com o universo proustiano, nas imagens noturnas, perspectivas e temas escolhidos, como as imagens noturnas, em que observa a beleza do luar em Correspondance, durante a Primeira Guerra Mundial, na qual Proust, em Paris, presenciara a escuridão das ruas, devido ao ataque eminente dos Zeppelins (Fotografias 2, 3 e 4, que compõem a série ―Paris à noite‖).

Autor de Paris à noite e de Paris secreta, sinto certa afinidade com esse Proust ―fotógrafo noturno‖. Suas imagens de Paris à noite, se realmente estivesse munido de uma câmera fotográfica, provavelmente mostrariam um parentesco com aquelas que eu próprio tirei de Paris, em tempos de paz ou durante o black-out da Segunda Guerra Mundial. Posso dizer com Proust que a Paris de 1939 a 1945, mergulhada na escuridão, ―era tão bela e tão ameaçadora‖ quanto a Paris de 1914 a 1918. (BRASSAÏ, 2005, p. 121-122).

(Fotografia 2) - Neblina na cidade de Paris, Brassaï, 1933.

Disponível em: . Acesso em: 29 jul. 2012.

57

(Fotografia 3) - Madame Bijou34. Bar de la Lune, (Fotografia 4) - Prostituta na esquina da Rue de la Montmartre, Paris. Brassaï, 1933. Reynie com a Rue Quincampoix. Brassaï35, 1932.

3.1 A fotografia e o movimento de vanguarda europeu: o Surrealismo

Com o final da Primeira Guerra Mundial, em 1918, houve o advento dos movimentos culturais das vanguardas europeias, suas escolas e estilos: o Modernismo, em suas diversas vertentes: Futurismo, Cubismo, Surrealismo, Dadaísmo. Nesse período de efervencência cultural e de rupturas, constata-se a inter-relação das diversas linguagens:

O modernismo se caracterizou pela intenção radical de fundar a arte sobre as novas bases estéticas. Pretendia-se negar a tradição pela renovação constante da expressão artística, o que consequentemente acabou por fundar uma nova tradição: a tradição do novo. O fotógrafo na ânsia de afirmar o novo manteve um diálogo tenso com o seu meio de expressão, procurando superar a perspectiva com base de reprodução da imagem (COSTA; SILVA, 2004, p. 13).

O Surrealismo36 tem seu expoente na fotografia com o parisiense Jean-Eugène- Auguste Atget, conhecido como Eugène Atget, que retratou Paris por cerca de 25 anos,

34 Madame Bijou, também conhecida como Leahanne, era uma senhora que frequentava assiduamente os cabarés nas noites de Paris, em Montemartre, mais precisamente o Bar de la Lune. Ganhava a vida lendo as mãos dos homens, em troca de alimento e dinheiro, sempre ostentando diversas joias falsas, colares, anéis, pulseiras e portando um chapéu. Por diversas vezes, foi retratada por Brassaï sempre no mesmo bar, vestindo dessa forma, acreditando sempre na vinda do seu amor perdido há muitos anos atrás. (Figura 02) Disponível em: . Acesso em: 29 jul. 2012, 35 Essa fotografia, retirada nos idos de 30, nos arredores de Les Halles, no boulevard de Sebástopol, a qual Brassaï denominou ―Venus das esquinas‖, apresenta prostitutas em seus pontos noturnos de trabalho, compondo uma espécie de guia alternativo da noite parisiense. (Figura 03) Disponível em: . Acesso em: 29 jul. 2012.

58 ininterruptamente. Fotógrafos como Man Ray, Berenice Abbott, Walker Evans, Brassaï e Henri Cartier-Bresson, assim como um dos fundadores e o criador dos Manifestos do Surrealismo37, André Breton, viam no trabalho de Eugène Atget ―o lúdico, o maravilhoso, o desconhecido38‖. Apesar de Atget não ser um fotógrafo engajado nessa escola, pois evitava sempre ser considerado como um membro surrealista, todos o reconheciam como pai da fotografia moderna e precursor e influenciador do surrealismo fotográfico. Walter Benjamin tem como referência em seus ensaios a obra fotográfica de Eugène Atget, como em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, ao reconhecer a perda da aura39 através do incansável trabalho fotográfico de Eugène Atget. Com a produção massificada da fotografia, através do advento da cópia das imagens, ocorre a dessacralização da obra de arte. Antes, somente os iniciados podiam cultuá-la. Benjamin diz que:

Atget foi um ator que retirou a máscara, descontente com sua profissão, e tentou, igualmente, desmascarar a realidade. (...). Com efeito: as fotos parisienses de Atget são as precursoras da fotografia surrealista, a vanguarda do único destacamento verdadeiramente expressivo que o surrealismo conseguiu pôr em marcha. Foi o primeiro a desinfetar a atmosfera sufocante difundida pela fotografia convencional, especializada em retratos, durante a época da decadência. Ele saneia essa atmosfera, purifica-a: começa a libertar o objeto de sua aura, nisso consistindo o mérito mais incontestável da moderna escola fotográfica (BENJAMIN, 1996, p. 100 – 101).

As imagens surreais de Eugène Atget primam pelo estranhamento, desvelando o vazio dos lugares, ruas, vielas, esquinas e becos do centro e arredores de Paris que ele conhecia tão

36 SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico em estado puro, mediante o qual se propõe exprimir, verbalmente, por escrito, ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral (BRETON, 2001, p. 40). 37 Esse encontro com o inconsciente irá reger a primeira investida do Movimento Surrealista, que, através do seu ―Primeiro Manifesto‖, começa por fazer uma distinção bastante clara entro o que pertence à racionalidade e o que pertence ao mundo do inconsciente. Para tal, os surrealistas irão se afastar da realidade, mergulhando em um mundo até então totalmente desconhecido para o homem, no qual o fantástico e o maravilhoso se fazem presentes. Desse modo, a razão humana perde todo o seu controle, abrindo espaço para que a imaginação, sem nenhum tipo de freios, manifeste-se plenamente (BRAUNE, 2000, p. 29).

38 Idem, ibidem. 39 Com a fotografia, o valor de culto começa a recuar, em todas as frentes, diante do valor de exposição. Mas o valor de culto não se entrega sem oferecer resistência. Sua última trincheira é o rosto humano. Não é por acaso que o retrato era o principal tema das primeiras fotografias. O refúgio derradeiro valor de culto foi o culto da saudade, consagrada aos amores ausentes ou defuntos. A aura acena pela última vez na expressão fugaz de um rosto nas antigas fotos. É o que lhes dá sua beleza melancólica e incomparável. Porém, quando o homem se retira da fotografia, o valor de exposição supera pela primeira vez o valor de culto. O mérito inexcedível de Atget é ter radicalizado esse processo ao fotografar as ruas de Paris, desertas de homens, por volta de 1900. Com justiça, escreveu-se dele que fotografou as ruas como quem fotografa o local de um crime. Também esse local é deserto. É fotografado por causa dos indícios que ele contém. Com Atget, as fotos se transformam em autos no processo da história. Nisso a sua significação política latente. Essas fotos orientam a recepção num sentido predeterminado. A contemplação livre lhes é adequada. Elas inquietam o observador, que pressente que deve seguir um caminho definido para se aproximar delas (BENJAMIN, 1996, p. 174). 59 bem. Suas imagens assemelham-se quase sempre a uma cidade fantasma, pois ele fazia suas ―rondas‖ fotográficas nas madrugadas, um horário não tão convencional de registro de fotografias, evitando também as imagens idealizadas da cidade, como a representação de monumentos famosos ou o glamour das noites parisienses. Suas imagens quase nunca registram pessoas; no lugar dessas, os manequins, ou, como relata Breton, ―manequins modernos40‖, ou pessoas através das vidraças, ou bem afastadas, numa tentativa de compor o retrato urbano da cidade, denominação atual para a ―paisagem urbana‖, como se a própria cidade fosse objeto duma espécie de autorretrato41. Benjamin diz: ―E nenhum rosto é tão surrealista quanto o rosto verdadeiro de uma cidade‖ (BENJAMIN, 1996, p. 82). (Fotografias 5 e 6).

(Fotografia 5) Vitrines com manequins masculinos, (Fotografia 6) La Rue Quincampoix, Paris, Eugene Atget, 192542 Paris, Eugène Atget 190843

40 O maravilhoso não é o mesmo em todas as épocas; participa obscuramente de uma classe de revelação geral, de que só nos chega o detalhe: são as ruínas românticas, o manequim moderno ou qualquer outro símbolo próprio a comover a sensibilidade humana por algum tempo (BRETON, 2001, p. 30).

41 Nas cidades, tudo conspira contra a contemplação. A cidade exige de nós velocidade, instantaneidade, decisão. Não é por acaso que a cidade fotografada encontra sua expressão mais notória em um tipo de imagem que veio a chamar-se streetphotography, onde estes valores tornam-se aqueles que nos habituamos a esperar de uma fotografia. De fato, nesta tensão entre o hábito, e mesmo o tédio, por um lado, e a agilidade que requer ―reflexos rápidos‖, constrói-se esta ―afinidade eletiva‖ entre fotografia e cidade, que só fez crescer ao longo do século XX. A cidade tornou-se o fotografável por excelência, em uma relação similar à que ocorreu entre a xilogravura e a ruína, ou entre a aquarela e a marina.

42 Disponível em: . Acesso em 9 mar. 2013. 43 Disponível em: . Acesso em 9 mar. 2013.

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O rosto humano é suplantado pela desolação do esvaziamento da cidade, para que esta mostrasse a sua aparência. A retirada da representação humana é inevitável, possibilitando que a cidade seja vista como cidade, sem acobertamentos nem máscaras. Nesse contexto, a fotografia participou de forma intensa e importante na formação psicológica da sociedade urbana, percorrendo um mundo assombroso, revelando a face oculta dessa sociedade, procurando um mundo infiltrado por tabus, enfim, voltando-se para aqueles a quem a sociedade tinha virado as costas (BRAUNE, 2000, p. 18).

A figura humana, possuidora do valor do culto, é suprimida pelo retrato de Paris na calada das manhãs. A capital francesa é exposta como o mais importante elemento, relegando os demais a um segundo plano. A representação, não mais como valor de culto, mas como valor de exposição. A cidade assume então a função de sujeito ao mostrar o seu ―rosto‖, e não a face do elemento humano. Nas fotografias de Atget, a cidade despovoada torna-se estranha para os seus próprios habitantes, e surge uma Paris desconcertante, quase irreconhecível. Para a sensibilidade surrealista então nascente, a cidade adquire pela primeira vez o seu ―rosto verdadeiro‖. No final da sua vida, Atget foi o contemporâneo dos surrealistas, que logo perceberam, em sua produção, o teor de insólito e estranheza que eles perseguiam (PARTINI, 2010, p. 97).

A partir desses movimentos na Europa, repercutindo mundo afora, é que a fotografia vai se consolidar e obtém o caráter de arte. Em seguida, um pouco depois desse periodo surrealista, ocorre a primeira exposição fotográfica, no ano de 1938, no MoMA, com ―a exposição Americans Photographs‖44 em Nova Iorque. A fotografia passa a ser concebida com o intuito de intregrar o roteiro das grandes exposições em grandes museus, atingindo finalmente o estatuto de arte. No entanto, algumas questões ainda estavam bem imbricadas no universo fotográfico, como a noção de ―realismo fotográfico‖, ainda que fosse valorizado o seu caráter de propiciar a libertação da pintura, obrigando-a a trilhar novos caminhos e deixando o lado obsessivo de representação de semelhança das coisas que nos rodeiam. Picasso mesmo fez um paralelo da fotografia com a cópia ao exortar a pintura a deixar essa obsessão de ―cópia‖ para a fotografia. Isso, de certa forma, condenava a fotografia a algo que especificamente tinha por objetivo mostrar a ―cópia do real‖, o que lhe conferia um descrédito, devido à impossibilidade da fuga do realismo. Por mais abstrata que seja uma fotografia, por mais que ela ―minta‖, por mais que nela sejam adicionadas interferências de quaisquer categorias, por mais surreal que possa vir a ser uma fotografia, ela não deixa de estar atrelada ao referencial, àquilo

44 DOBRANSZKY, Diana. A fotografia e o Museum of Modern Art (Nova York). Disponível em: . Acesso em 25 de julho 2013.

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que, no exato momento em que o disparador da câmera foi acionado, estava lá – presença incontornável –, caso contrário não haveria algo fotografado, não haveria a fotografia. [...] Essa condição indiciária, referencial, no entanto, que é a ontologia da fotografia, por ter sido mal interpretada e pouco compreendida, acabou por levá-la à condição de mimese, de ―espelho da realidade‖. Essa condição mimética atribuída à fotografia vem do inquestionável deslocamento da realidade do objeto fotografado à película no instante em que se fotografa, de sua condição pragmática e existencial amarrada a um instrumento mecânico, que só sobrevive em simbiose com a realidade, o resto sendo retórica (BRAUNE, 2000, p. 11-12).

A fotografia, dessa forma, tem somente a incumbência da representação das coisas como realmente são, ficando o exame dos aspectos metafórico e poético a cargo de outras artes. Cabe aqui destacar, no entanto, que a fotografia sempre esteve impregnada por esse ―problema‖ desde a sua origem. Com o modernismo, tornou-se possível o levantamento de outras questões, ao ser percebido que a fotografia reproduz automaticamente a perspectiva, procedimento que foi originado no Renascimento. Nesse contexto a fotografia participa de dois períodos distintos: do mundo do Renascimento com a criação da perspectiva e da esfera cultural moderna. Na verdade o seu diálogo era com o Renascimento, enquanto proposta existencial e concepção de mundo. Esta é a realidade da fotografia moderna: tentativa de superação de impasses e contradições advindos do encontro da sensibilidade renascentista com a nossa cultura para a afirmação da estética transformadora da modernidade (COSTA; SILVA, 2004, p. 13).

Ao fazer um registro mecânico de uma imagem em condições mais ou menos semelhantes ao olhar humano, tal fenômeno revelou não o caráter real da visão tradicional, mas o contrário, seu caráter de sistema, de código. ―As fotografias são tiradas, ainda hoje, em função da visão artística clássica‖ (NEIVA; JUNIOR, 1986, p. 61). Essa visão artística clássica deve-se ao fato de a fotografia ser oriunda da perspectiva renascentista, pois seria a junção de dois acontecimentos: um de ordem física, através da óptica, princípio descrito e publicado em um de seus compêndios pelo cientista italiano Giovanni Battista Della Porta e utilizada por vários artistas, como Leonardo da Vinci e o alemão Albrecht Dürer, e também pelo famoso pintor holandês Johannes Vermeer, mas já conhecido há muito tempo pelos gregos e árabes, denominado de câmera escura; e outro de ordem química, que possibilitou a concretização da imagem fotográfica pela descoberta, por parte da química, de substâncias que reagiam à presença de luz, conhecidas como sais de prata. A descoberta da fotografia contribuiu para a democratização das artes por fazer parte das vidas de todas as classes sociais, possibilitando à maioria das pessoas a posse de imagens, como o seu próprio retrato, pois antes poucos podiam pagar pelo trabalho de um pintor. A 62 fotografia também propiciou a representação das condições subumanas de trabalho, que reclamavam por providências, já que antes do registro fotográfico elas poderiam não ser vistas. No entanto, inicialmente, se a relação da fotografia com a pintura foi difícil, é de se imaginar a sua relação com o mundo das letras, de modo que é de suma importância conhecer os precursores desse vínculo durante o modernismo europeu. O surrealismo, já pontuado anteriormente, será abordado no próximo tópico deste capítulo, no qual serão destacados os primeiros artistas que estabeleceram tal diálogo.

3.2 - O Surrealismo e o diálogo estético: literatura e fotografia

É durante esse período de avanço tecnológico, com a evolução fotográfica trabalhando em conjunto com o Surrealismo45, que a escola tem início, em torno de 1920. ―O termo ‗surrealismo‘ surgiu em 1917, quando o poeta italiano Guillaume Apollinaire usou a expressão para definir seu drama As mamas de Tirésias e sua poesia, atenta aos mínimos gestos do cotidiano46‖. Alguns estudiosos acreditam que o movimento ―distingue-se totalmente de outras escolas contemporâneas, afastando-se completamente de todas as tradições da expressão artística‖ (READ, 1978, p. 144). Influenciada pelas noções da psicanálise de Freud, a literatura vai trabalhar com a fotografia e com um grau semelhante de equivalência, a exemplo da obra Nadja, de André Breton. Enfatizamos que a fotografia em relação à literatura possuía até então um caráter geralmente ilustrativo, existindo ainda um aprisionamento, uma ligação denotativa da imagem em relação à palavra, bem diferente da proposta esboçada por Breton, na qual fica evidente a questão da independência da fotografia como arte. De modo radical, Breton escreve num catálogo da exposição de colagens fotográficas de Max Ernst: ―A invenção da fotografia deu um golpe mortal nos velhos modos de expressão, tanto na pintura como na poesia, onde a escrita automática surgida no final do

45 Movimento da literatura e das belas-artes, fundado em Paris pelo poeta e crítico André Breton em 1924, quando publicou seu Manifesto Surrealista. Foi constantemente dominado por seu criador. Cresceu fora do movimento conhecido como Dadaísmo, um movimento artístico e literário que refletiu o protesto niilista contra todos os aspectos da cultura ocidental. Assim como o Dadaísmo, enfatizou o papel do inconsciente na atividade criativa, mas empregou o inconsciente psíquico mais ordenadamente e de maneira mais séria (OLIVEIRA, 2013, p. 1). 46 AMARANTE, Dirce Waltrick do. O ―Manifesto do Surrealismo‖ completa noventa anos. Disponível em: . Acesso em 25 de março de 2014.

63 século XIX é uma verdadeira fotografia do pensamento‖ (BRETON apud SOULAGES, 2010, p. 271). No entanto, François Soulages conclui que a radicalidade empreendida por Breton não acabou com a interação entre as linguagens tradicionais, como a pintura e a poesia: ―Notemos, entretanto, que o cadáver da pintura e o da poesia ainda estão se mexendo‖ (SOULAGES, 2010, p. 271). Nadja é uma jovem que Breton encontra em 4 de outubro de 1926, numa de suas andanças por Paris, passando pela Rue Lafayette, como um flâneur na concepção de Walter Benjamim (1985), mercê do acaso, ao percorrer de forma errante diversas ruas sem paradeiro e ficar observando a vitrine da livraria L’Humanité. Adentrando esse recinto, Breton compra o último livro de Trótski; em seguida, a protagonista segue sua caminhada em direção à Opéra. Ao atravessar um cruzamento. ―De repente, ainda que tivesse a uns dez passos de mim, vindo ao sentido oposto, vejo uma moça, pobremente vestida, que também me vê, ou tinha me visto. Vai de cabeça erguida, no contrário de todos os passantes‖ (BRETON, 2007, p. 63). Nadja é uma figura enigmática, uma ―alma errante‖, de quem mesmo se sabe seu nome real. Seu nome é dito pela própria jovem, que veio de Lille, uma cidade do norte da França, para tentar a sorte em Paris:

Em Nadja de André Breton essa exposição do olhar ocorre com os protagonistas que se deixam atravessar por milhares de formas e cores. Porém eles não são os únicos a serem atravessados por essas imagens, o leitor percorre as páginas do livro como quem passeia pela cidade em uma aventura. Assim, entre uma página e outra é possível se deparar, por exemplo, com a Porta Saint-Denis, com os folhetins do Théâtre Moderne, e com a vitrine envidraçada das lojas Camées Durs cujas fotografias o escritor que é ao mesmo tempo autor, narrador e personagem se empenha em estampar sempre que possível (ALMEIDA, 2011, p. 1).

Nadja, “com seus olhos de avenca”, é personagem fictícia, de quem conhecemos somente os olhos, em palavras e foto, e cujo retrato completo não é exposto. Breton inaugura uma nova relação entre a palavra e a imagem fotográfica. Essas por vezes se complementam; imagens sendo substituídas por imagens. Breton tem consciência do uso das linguagens, ficção e realidade são entrelaçadas, num jogo de palavras e fotografias as mais variadas, descrevendo as reminiscências da cidade grande, desenhos, rabiscos e pinturas, num exercício de pura liberdade de expressão. Trata-se de uma fotomontagem em que quatro imagens do mesmo detalhe do rosto de Nadja são apresentadas uma abaixo da outra, com a forma semelhante à de uma avenca, pois seus olhos e sobrancelhas arqueados dos remetem a tal formação: folhas opostas e simétricas saindo de um caule (Fotografia 7).

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(Fotografia 7) - Seus olhos de avenca...

Disponível em: . Acesso em: 05 mai. 2012.

Ainda na Europa vamos encontrar outros artistas a participarem da inter-relação literatura e pintura, como na Rússia na pós-revolução socialista. Durante esse período, temos como um dos líderes poéticos e propagandísticos dos ideais comunistas Vladimir Maiakóvski, bem como o fotógrafo Alexander Rodtchenko. Eles trabalham em conjunto poema e imagem na obra Pro eto (Sobre Isso) (Fotografias 8 e 9).

(Fotografia 8)47 Capa do (Fotografia 9)48- Fotomontagem Livro Pro eto de Maiakóvski de Rodtchenko para o poema Pro eto de Maiakóvski

47 Desenho de capa do livro Pro eto de Maiakóvski, com o retrato de Lily Brick feito por Rodtchenko. Disponível em: . Acesso em: 25 ago. 2012. 48 Fotomontagem para o poema Pro eto, de Vladimir Mayakovsky, 1923. Disponível em:. Acesso em: 26 ago. 2012. 65

A repercussão do movimento modernista se expande mundo afora. A novidade estética chega também ao Brasil no início do século XX como marco dessa experiência, disseminadora de inovações artísticas, difundidas por alguns artistas e o pessoal do movimento dos fotoclubistas49. No entanto, esse grupo não partilha de imediato das mudanças estéticas em voga empreendidas pelos modernistas europeus. Sua preocupação por muito tempo era a elaboração de imagens pertencentes ao primeiro movimento fotográfico, denominado de pictorialismo50, iniciado no final do século XIX, cuja objetivo maior era uma imitação forçada da imagem fotográfica como uma pintura, algo já ultrapassado pelas normas mordenistas da vanguarda europeia. Mesmo que tardios, são ao menos considerados como os principais precursores das inovações do modernismo, tendo a cidade do Rio de Janeiro e São Paulo como principais vetores dessas experiências. Diferentemente da Europa, o modernismo no solo brasileiro, inaugurado em 1922, em São Paulo, excluiu por completo a participação da fotografia. Os conceitos advindos das escolas europeias, como o construtivismo, o surrealismo, com colagens e fotomontagem utilizadas com o auxílio da fotografia, só serão introduzidos nacionalmente com uma defasagem de quase trinta anos. ―É notória a ausência da fotografia (enquanto meio expressivo) do movimento modernista brasileiro. Centrado de início em manifestações de caráter literário e nas artes visuais, o modernismo passou alheio à mídia‖ (MENDES, 2013, p. 1). O movimento da Semana de 22, evento que ocorreu durante cinco dias na cidade de São Paulo, no Teatro Municipal da cidade, teve suas apresentações restritas à literatura, pintura, escultura e música, em que os modernistas mesclaram as ideias das vanguardas da Europa, aos valores culturais do Brasil, tendo como temática as questões regional e social. A fotografia, no entanto, não foi inserida no movimento da Semana de Arte Moderna, o que já era um fato consumado nas participações artísticas das vanguardas europeias. Porém, um dos

49 De caráter elitista, o fotoclubismo visava fazer da fotografia uma atividade artística. A condição do fotógrafo clubista, em termos gerais, era a do profissional liberal que, dono de uma situação financeira privilegiada, podia se dedicar à fotografia em suas horas vagas. Para essa classe média urbana em ascensão, carente de símbolos que a identificassem socialmente, o fotoclubismo veio a calhar, criando-lhe uma forte identidade cultural. O pequeno burguês agora é um artista (MAGALHAES; PEREGRINO, 2004, p. 22). 50 O movimento pictorialista eclodiu na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos a partir da década de 1890, congregando os fotógrafos que ambicionavam produzir aquilo que consideravam como fotografia artística, capaz de conferir aos seus praticantes o mesmo prestígio e respeito granjeado pelos praticantes dos processos artísticos convencionais. O problema é que essa ânsia de reconhecimento levou muito dos adeptos do pictorialismo a simplesmente tentar imitar a aparência e o acabamento de pinturas, gravuras e desenhos ao invés de tentarem explorar os novos campos estéticos oferecidos pela fotografia. Por esta razão, este movimento, que perdurou basicamente até a década de 1920, foi estigmatizado durante muito tempo, mas, felizmente, assistimos hoje a uma releitura desapaixonada do pictorialismo que certamente muito contribuirá para a correta avaliação e contextualização histórica de suas contribuições. Enciclopédia ITAÚ CULTURAL, ARTES VISUAIS. Disponível em: . Acesso em: 10 mai. 2013. 66 expoentes desse movimento, Mário de Andrade, entre os anos de 1923 até os idos de 1930, consegue produzir um material significativo, devido ao seu variado conhecimento sobre o ideário modernista, adquirido atráves de revistas especializadas em arte, vindas da Europa.

Se voltarmos o olhar para nosso país, veremos que a produção fotográfica do paulista Mário de Andrade (1893-1945) foi uma manifstação atípica e isolada do grupo de intelectuais modernistas. Entre os anos de 1923 e 1931, Mário reuniu rica documentação fotográfica e anotações, que denominou de Turista Aprendiz, procurando traçar as coordenadas de uma cultura nacional, unindo a ―pesquisa de gabinete e a vivência de vanguardista metropolitano ao encontro direto com o primitivo, o rustico e o arcaico. Sua concepç fotográfica é diversa, influência provável de leituras sobre o cinema e de revistas, como a alemã Der Querchnitt, que divulga, entre outros, os trabalhos de Moholy Nagy e Man Ray (1890-1976). Autodidata ávido por descobertas, algumas fotográfias de Mário, a exemplo de Doulor em Santa Teresa do alto (1927), feitas com sua ―codaquinha‖, espelham a influência dos futuristas italianos Balla e Artturo Bragaglia (1892- 1962), e as legendas de sus fotos reiteram o envolvimento com as questões da vangaurda européia: ―Roupas freudianas‖, Futurismo pingando‖, ―amor e psique no Solimões‖ 1927) (MAGALHAES; PEREGRINO, 2004, p. 43). (ver Figura 10)

(Fotografia 10) ―Roupas freudianas, Fortaleza‖, Mario de Andrade, 1927.

LOPEZ, Telê Ancona. Anais do Museu Paulista. v. 13. n.2. jul.-dez. 2005. Disponível em: . Acesso em: nov. 2013.

O escritor e crítico de arte Mário de Andrade não empreende grandes inovações como fotocolagem, fotogramas e inovações como as imagens de Man Ray, Lazlo Moroly Nagy, Max Ernst ou de outros artistas mais inovadores, como os fotógrafos autorais alemães, que enfatizavam cortes inusitados no close, alto contrate nas imagens em preto e branco, com as quais ele era bem familiarizado. Seu trabalho, no entanto, tem uma estética própria, aliando um olhar artístico ao documental, etnográfico, com imagens realizadas em diferentes lugares do Brasil, como o Amazonas e o Nordeste brasileiro (Fotografia 10). 67

Tadeu Chiarelli, crítico de arte e professor, em seu artigo ―A fotomontagem como introdução à arte moderna: visões modernistas sobre a fotografia e o surrealismo‖51, levanta alguns questionamentos cerca da fotografia, especialmente em relação à prática da fotomontagem, ou melhor, à não utilização de uma estética que deveria mesclar os ideais da vanguarda europeia no Brasil, culminando com a construção de um imaginário nacional que visava romper com as velhas normas da arte burguesa clássica, cuja prática em geral era realizada por pouquíssimos artistas modernistas durante o referido período. Tadeu Chiarelli52 esclarece ainda que ―a produção de fotomontagens não colou no Brasil modernista, quer como mero passatempo quer como manifestação artística autônoma‖, acreditando também que não é possível afirmar o sucesso ou não dessa prática em relação a esse período, devido à escassez de documentos sobre o assunto.

Como é do conhecimento de todos, no campo das artes visuais, a corrente hegemônica do modernismo visou constituir um imaginário nacional, pautado na glorificação do homem brasileiro1. Esta tomada de posição de caráter ético e político, imediatamente determinou um posicionamento estético que alijou do debate artístico local duas questões que marcaram as vanguardas europeias do início do século XX, retirando do modernismo brasileiro a possibilidade de ser estudado como um simples desdobramento das mesmas, aqui abaixo do Equador. Em primeiro lugar, a necessidade de constituição de um imaginário nacional, onde o ―homem brasileiro‖ fosse o protagonista, deixou imediatamente de lado toda possibilidade de ser desenvolvida no país qualquer poética que se desprendesse da necessidade de figurar esse ―homem brasileiro‖, sempre de maneira positiva. Obedecendo tal proposição, todo o desenvolvimento da produção gráfica, pictórica ou escultórica tendente à não figuração foi excluída do âmbito modernista. Entre o final da segunda década do século XX e o final dos anos 40, os raros artistas que timidamente enveredaram para a abstração – ou mesmo para poéticas figurativas pouco ou nada aderentes à figuração positiva do ―homem brasileiro‖ –, foram devidamente desencorajados ou relegados a um plano secundário dentro do panteão modernista. Em segundo lugar, nessa opção de criar tal imaginário brasileiro, não cabia o uso de modalidades artísticas ainda não consagradas. Para o artista local ser de fato reconhecido e autorizado pelo modernismo hegemônico da primeira metade do século passado, era necessário que ele, além de enaltecer a paisagem humana brasileira dentro de moldes ―aceitáveis‖ de deformação expressiva se valesse, para tanto, das modalidades tradicionais: desenho, gravura, escultura e pintura.53

Dessa forma, à arte de elaborar imagens fotográficas nunca foi dada grande importância, bem como à arte cinematográfica. A fotografia era uma arte ainda não consolidada pela burguesia brasileira; nessa tentativa de criar um imaginário brasileiro conjugado com as inovações de ruptura advindas das escolas modernistas europeias, o

51 Disponível em:. Acesso em: 15 mai. 2013. 52 As artes visuais transitavam em grupos tão restritos do corpo social brasileiro, durante o século XIX e início do seguinte que era como se elas, de fato, não existissem como questão cultural. Um dado que talvez ajude a entender melhor este problema seria a própria ação de alguns modernistas brasileiros. À suposta supremacia da arte de teor acadêmico/burguês do século XIX e início do século seguinte, os modernistas, na verdade, não propuseram nenhum rompimento estrutural, baseado na ação ligada às vertentes mais radicais da arte de vanguarda. Disponível em:. Acesso em: 15 mai. 2013. 53 Disponível em:. Acesso em: 15 mai. 2013.

68 rompimento através de propostas mais radicais como o surrealismo tendia ―a romper o estatuto da arte como representação54‖, como assinala Chiarelli. A utilização da fotomontagem na Europa foi bastante particular em relação ao seu emprego e contexto, a exemplo da usada pelos dadaístas em Berlim contra a ascensão do nazismo ou pelos construtivistas na Rússia, que tinha por finalidade explicitar o caráter político e estético, de caráter propagandístico, visando reforçar os ideais da revolução russa, conscientizando as massas com seus dilemas históricos pelo rompimento com o padrão vigente burguês. Ao contrário da utilização da fotomontagem pelos surrealistas, sua preocupação não era contra a realidade confusa e fragmentada do cotidiano, pois as obras surrealistas procuravam uma maior autonomia, enfatizando a liberdade interior do artista, um mundo inquietador, abarrotado de figuras estranhas enigmáticas, mergulhadas num ambiente de sonhos:

Se as fotomontagens dadaístas e construtivistas tinham como intuito atrair em primeiro lugar a massa de cidadãos das grandes cidades – conscientizando-a dos dilemas e circunstâncias de seu presente histórico –, as fotomontagens surrealistas parecem sempre se dirigir, antes de mais ninguém, ao próprio artista, o primeiro e principal observador de sua própria subjetividade destacada (pelo menos teoricamente) de qualquer coerção do consciente.55

No contexto brasileiro, no entanto, podemos perceber que algumas dessas fotomontagens foram impregnadas com as concepções oriundas do surrealismo, como as que eram produzidas pelo alemão Max Ernst, os artistas brasileiros Alberto da Veiga Guignard e Athos Bucão, e do escritor e pintor Jorge de Lima. Analisando a obra desse último, um dos pioneiros no movimento modernista brasileiro, o prefácio da obra Pintura em pânico foi escrito pelo poeta Murilo Mendes. Nessa obra de Jorge de Lima desvela o irracional, um estado caótico da realidade, um mundo particular e introspectivo, com a produção de espaços oníricos muitas vezes impossíveis de ser desvendados, criações de imagens bizarras.

54 Disponível em: . Acesso em: 15 mai. 2013. Chiarelli esclarece, ainda, que: Não é do conhecimento de todos que o modernismo de viés hegemônico, ao qual nos referimos, não tinha muito apreço pelo dadaísmo e pelo surrealismo. Vertentes que, para dizer o mínimo, problematizavam o antigo entendimento da arte como forma de representação realista ou idealizada do entorno, elas não podiam ser aceitas por aquele grupo que via, na produção artística modernista, o potencial resgate ou redenção de uma noção um tanto abstrata de ―realidade brasileira‖. 55 Disponível em: . Acesso em: 15 mai. 2013.

69

Em uma de suas fotomontagens analisadas, intitulada A poesia abandona a ciência à sua própria sorte (Fotografia 11), produzida nos anos 30, é notória em sua construção, com uma estátua feminina, num cais do porto, tendo ao fundo um navio, e um guindaste que faz o seu carregamento em primeiro plano, duas mãos atadas. O texto em forma de legenda que acompanha a fotomontagem sugere o abandono da racionalidade científica e a própria poesia ao deus dará, largada sem nenhuma amarra. As palavras e legendas, a princípio, não têm correspondência direta, no entanto nos proporcionam um olhar metafórico sobre ambas, numa tentativa de entender a totalidade da obra.

(Fotografia 11) Fotomontagem – A poesia abandona a ciência à sua própria sorte.

Disponível em: . Acesso em: 16 mai. 2013.

Na fotomontagem seguinte, denominada Julgamento de Tempo (Fotografia 12), também confeccionada em meados de 30 e publicada em livro em 1943, podemos visualizar à nossa direita uma possível mulher envolvida num vestido negro longo, tendo em sua cabeça uma espécie de escafandro, um capacete utilizado em explorações subaquáticas, e em suas mãos repousa, através de um suporte de metal, um rosto de uma mulher de longos cabelos, com a cabeça para baixo. Sua obra segue o estilo empreendido pela escola surrealista, que apostava na criatividade como propósito de libertação do inconsciente, mediante a apresentação de cenas insólitas, seres mutantes, por vezes centrados na figura feminina ou um misto de mulher e máquina. Assim, sua obra torna-se relevante no cenário brasileiro, fazendo com que o próprio 70

Mário de Andrade tecesse comentários positivos sobre a obra de Jorge de Lima56, acreditando que este seria o grande representante nacional com relação à fotocolagem.

(Fotografia 12) Fotomontagem – ―Julgamento do tempo‖

Disponível em: . Acesso em: 16 mai. 2013.

Mário de Andrade, apesar de reconhecer o trabalho da fotomontagem ao se pronunciar sobre a sua potencialidade criadora, quando se refere à obra de Jorge de Lima, consegue perceber o quanto a sociedade brasileira considerava essa atividade como um lazer, uma vez que consistia em se pegar diversas imagens de revistas, fotografias, recortá-las e depois fotografá-las, tendo como resultado final a fotocolagem. Logo em seguida, antes da Segunda Guerra Mundial, a fotografia trilha outros caminhos, como o movimento encabeçado pelos estadunidenses. Surge, então, a fotografia denominada de straight photography, conhecida também como sendo uma fotografia purista, na qual ―os fotógrafos deveriam se aproximar, antes de tudo, dos princípios e propriedades do processo fotográfico como condição sine qua non da aproximação com a arte‖ (MAGALHÃES; PEREGRINO, 2004, p. 22). Nesse novo período moderno, em torno da década de 1950, a fotografia moderna brasileira abandona a fotocolagem, investindo agora em imagens cujo enquadramento é

56 [...] a fotomontagem é um processo de expressão lírica. As nossas tendências mais recônditas, nossos instintos e desejos recalcados, nossos ideais, nossa cultura, tudo se revela nas fotomontagens. E é mesmo natural que seja assim. Dentro de uma centena de imagens recortadas, que estejam a nossa disposição, dois temperamentos diversos fatalmente escolherão as imagens que lhes são mais gratas, descobrirão combinações diferentes, movidos pelas suas verdades e instintos [...] (ANDRADE apud CHIARELLI, p. 76). Disponível em: . Acesso em: 15 mai. 2013. 71 caracterizado pela geometria, abstrações e outras experimentações, com o ―aparecimento do abstracionismo geométrico e do abstracionismo informal. A geometria já se havia dividido em campos opostos – concretos e neoconcretos‖ (MAGALHÃES; PEREGRINO, 2004, p. 44), tendo como destaque os fotógrafos Geraldo de Barros e José Oiticica Filho. No final da década de 1950, toda experiência moderna empreendida pelos fotoclubistas e também incrementada por raros escritores influenciados pelos movimentos de vanguarda, com a radicalização do olhar moderno, como o de Jorge de Lima ou mesmo por Mário de Andrade, é marcada por uma diluição, mesmo não atingindo a sua completude. Segundo Costa & Silva, esse declínio foi resultante do surgimento da reportagem fotográfica, liderada principalmente nos Estados Unidos e na Europa e também praticada no Brasil, a qual se apossou das intenções libertárias da modernidade.

Contudo, a partir de meados dos anos 60 o movimento fotoclubista começou a perder a sua importância social. A principal causa desse declínio foi justamente a ascensão do fotojornalismo que convocou o fotógrafo a participar de uma relação direta e imediata com o mundo, disseminando um tipo de estética com a qual o experimentalismo gratuito e diletante do fotoclubismo não se coadunava. A possibilidade de profissionalização minou as bases fotoclubistas (COSTA; SILVA, 2004, p. 108).

O declínio do movimento fotoclubista pode ser explicado pelas ideias de Walter Benjamim, ―a destruição da aura‖57. Nesse contexto brasileiro, a fotografia era praticada por um grupo muito seleto, com um grau de sofisticação elevado tecnicamente, principalmente a empreendida pelos pictorialistas, cuja prática fotográfica tornava-se inacessível às massas. As imagens eram confinadas a um circuito muito restrito em sua apresentação, totalmente elitizado. Com o fotojornalismo ocorre a massificação e a comercialização da imagem, com o seu emprego nas páginas de jornal; antes, a prática fotoclubista visava o diletantismo e a sacralização da arte, pois poucos participavam de tal movimento. O picturalismo, no entanto, não deixa de ter a sua importância no Brasil, pois influenciou bastante a cultura fotográfica nacional, mesmo nascendo com a defasagem de algumas décadas em relação aos movimentos modernistas da Europa, marcando assim o início

57 Ela deriva de duas circunstâncias, estreitamente ligadas à crescente difusão e intensidade dos movimentos de massas. Fazer as coisas ―ficarem mais próximas‖ é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, de tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução (BENJAMIN, 1994, p. 170).

72 de uma atuação retrógrada às vanguardas europeias. Ao surgir no final do século XIX, contrário aos ideais daqueles que não consideravam a fotografia como arte, vai aos poucos possibilitar a tentativa de dispor a fotografia como tal, permitindo que uma camada de aficionados burgueses tivesse acesso a essa nova expressão artística. No entanto, nomes como Jorge de Lima são raros, ao empregar as novidades de ruptura advindas das vanguardas, um artista antenado com o seu tempo; no entanto, não se tem material que possa comprovar se existiram outros mais inovadores, como disse anteriormente Tadeu Chiarelle (2013). Soulages conclui que: (...), a fotografia pode, com uma outra arte, criar uma obra que então não é mais exclusivamente da esfera da fotografia, mas também da outra parte. O confronto, por exemplo, por exemplo, da fotografia com a literatura é enriquecedor à medida que se abre para um espaço de criação, o livro; este pode revelar-se um dos lugares privilegiados ao mesmo tempo da fotoliteratura e da fotografia; então não há mais um lugar em que são simplesmente depositadas, apresentadas e publicadas fotos, mas um objeto para ser comtemplado, explorado, aproveitando e pensado enquanto tal; é um material que permite uma criação específica quando do trabalho inacabável de apresentação (SOULAGES, 2010, p. 275).

Durante o desenvolvimento do trabalho abordamos escritores e obras que tiveram, de algum modo, a presença da fotografia nesse processo de interação. Por considerarmos pertinente mencionar outros nomes de escritores que dialogam com a fotografia, apresentaremos um (Apêndice 2), com uma breve variação de possibilidades criativas ligadas a autores que promoveram a interação do seu texto com a fotografia.

4 - BISILLIAT, ROSA, PALAVRAS E VISUALIDADES

O poder da obra Grande Sertão: Veredas propiciou a Maureen Bisilliat realizar um trabalho intertextual, uma tradução em que as imagens fotográficas tentem captar o movimento do verbo, como uma troca em que se permitisse ―ler imagens e ver palavras‖, numa tentativa de se ver através de imagens fotográficas outras imagens, as imagens literárias. ―O texto rosiano solicita o leitor imagens que se desdobram, construindo outros signos/ícones, num exercício de produção de sentidos‖ CASA NOVA (2002, p. 104). Em sua análise, Casa Nova (2002) descreve o processo de criação utilizado por Maureen Bisilliat, que foi gerado a partir da obra de Guimarães Rosa. ―O sertão está em toda parte‖, é a grande solicitação; ele está no príncipio da leitura que essa fotógrafa faz de Grande Sertão: Veredas. Antes de adentrar na análise das imagens e dos fragmentos literários que acompanham as fotos, Maurren Bisilliat fixa em suas imagens passagens e leituras do texto rosiano, frases que, segundo a artista, ―toda frase já se mantém sozinha58‖ mantêm uma certa autonomia, como não carecendo do fluir de um roteiro em seu ensaio. É necessário esclarecer alguns elementos inerentes às palavras e à visualidade, pertencentes ao escritor e à fotógrafa. Como o retrato, gênero bastante utilizado por Maurren Bisilliat em seu ensaio, bem como a visualidade e a presença da fotografia no trabalho de João Guimarães Rosa.

4.1 - O retrato

O retrato é considerado como o gênero mais difundido no universo da fotografia desde a sua criação. Através dele foi possível captar instantâneos individuais ou em grupos, com fotografias de pessoas em pose ou em espontaneidade, imagens de amigos, parentes, de nossa comunidade ou de estranhos, de modo que sempre foi interesse de todos fotografar o rosto e a forma humana. A palavra retrato tem seu emprego muitas vezes incorreto em relação ao seu significado, denominando para muitos o próprio ato de fotografar, tendo em vista que muitos ainda têm o costume de dizer máquina de ―tirar retrato‖, em lugar de ―tirar uma foto‖ ou ―fotografar‖. Mesmo que essa foto seja de uma paisagem, uma casa, um carro, um

58 JUNIOR, Luiz Costa Pereira. A fotógrafa da literatura. Disponível em: . Acesso em 20 set. 2013.

74 animal, e não necessariamente de uma pessoa, como bem enfatiza Claudio Kubrusly (2007). Tal questão deve-se justamente à grande recorrência da utilização desse gênero no universo da representação fotográfica. Supõe-se ser muito significativo o uso do termo ―tirar retrato‖, ―uma indicação do que sempre foi um tema mais importante da fotografia‖ (KUBRUSLY, 2007, p. 29). A origem do termo retrato é italiana e provém do século XVII. Segundo Houaiss, ―ritratto (―surge pela primeira vez em‖ 1665), ‗imagem ou figura humana que tem semelhança com uma coisa ou uma pessoa‖59, também pode ser a ―representação da imagem de uma pessoa real, pelo desenho, pintura, gravura etc. ou pela fotografia‖ (HOLLANDA, 1986, p. 1.503). Muito tempo antes da invenção da fotografia, o homem já tentava representar o mundo através das imagens; basta que se observe a quantidade de imagens e figuras encontradas em algumas cavernas, ao redor do mundo, como as de Lascaux, na França, Altamira, na Espanha, ou mesmo na Serra da Capivara, Piauí, no Brasil. As primeiras imagens de pessoas surgem através de rabiscos nessas paredes. Coincidentemente, foram as imagens projetadas num quarto escuro que propiciaram o surgimento da fotografia, semelhantes às primeiras imagens criadas pelos homens no interior das cavernas. Tal fenômeno óptico (Figura 6), um ramo da Física que estuda a radiação da luz, intrigava os pensadores antigos, na Ásia, Oriente Médio e na Europa, técnica denominada em latim de câmera obscura (câmera escura):

Ao contrário do avião e da televisão, o advento da fotografia nunca foi previsto. Mesmo assim até povos antigos a anteciparam. Ocasionalmente quando a luz passava por um orifício minúsculo de uma parede externa, ela projetava uma imagem do mundo lá fora, de cabeça para baixo e invertida, na parede interna oposta (MARIEN, 2012, p. 8)

(Figura 4) Câmera escura

Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2013.

59 GRANDE DICIONÁRIO BETA DA LÍNGUA PORTUGUESA. Disponível em:. Acesso em: 15 out. 2013. 75

Mediante a técnica da ―câmera escura‖, muitos artistas no Renascimento obtinham suas imagens, desenhos e pinturas, ou mesmo projetos arquitetônicos, tendo em seu esquema, como base, a matemática euclidiana empregada através dessa técnica. Para Leonardo da Vinci, ―a câmera escura era como uma sala de cinema, pululando de figuras em movimento e céus ativos‖ (MARIEN, 2012, p. 8). No período de desenvolvimento artístico da Renascença, o retrato estava bem solidificado na pintura, devido principalmente à questão da perspectiva60, iniciada com as observações da ―câmera escura‖, que foi teorizada por Leon Battista Alberti. É a mesma perspectiva renascentista que vai povoar o universo da câmera fotográfica até os dias de hoje. Logo em seguida, mediante tal criação, antes mesmo da invenção da fotografia, já se utilizava, no século XVII, um aparelho denominado lanterna mágica, que tinha por finalidade o decalque ou a pintura do retrato. Através dessa invenção, mais adiante, no século XVIII, o homem inventa a máquina de retratar perfis de sombra, em que o rosto do modelo era decalcado em um material translúcido, e estes perfis em silhueta; decalcar a sombra não exigia grande destreza por parte do operador dessa máquina, por isso se tornou moda fazer uma silhueta das pessoas. Um retrato enegrecido em que são percebidos os contornos laterais do rosto de alguém. Com o advento da Revolução Industrial61, foi descoberto, em torno de 1790, que alguns elementos químicos, conhecidos como sais de prata, reagiam à presença da luz, ficando escuros. Tinha início o que faltava para a criação da fotografia, pois quanto à natureza física, já estava solucionado, com a técnica da câmera escura; faltava apenas o modo como fixar a imagem de uma forma mais precisa, através da química. Assim como desde os tempos remotos, com a confecção das escrituras rupestres, em que o homem já imprimia as suas silhuetas das mãos nas paredes, ―Nas imagens o homem põe literalmente a mão sobre o mundo‖ (OSTROWER, 1996, p. 296). Trata-se, portanto, primeiramente, de uma grande

60 Esse sistema, nascido e florescido no Renascimento, procurava obter uma sugestão ilusionista de profundidade com bases nas leis ―objetivas‖ do espaço formuladas pela geometria euclidiana (MACHADO, 1983, p. 54). 61 O período final do século XVIII, mais precisamente o ano de 1790, foi marcado por um grande momento na produção de inventos, o que posteriormente adquiriu proporções extraordinárias devido à revolução industrial. Nesse momento, também ficou comprovado que a luz provocava uma reação que escurecia os sais de prata quando eram a ela expostos. Pode-se observar que nessa época ocorreu uma intensa atividade sócio-político- econômica, tendo em vista que a Revolução Francesa se deu no ano de 1789, período em que a burguesia assumia o poder. Inicialmente, a fotografia possibilitou que apenas pessoas de alto poder aquisitivo pudessem fazer uso dela. A foto retrato assumia, neste período, um certo valor de culto. A técnica fotográfica reflete a ideologia mercantilista de um período, dito Liberalismo Clássico, que visava uma ampla liberdade de comércio interno e externo. Os empresários, aliados aos novos inventos, observavam também que a produtividade era aumentada no mesmo tempo em que fossem reduzidos os custos, o que, consequentemente, ampliava seus lucros. Com isso, a invenção fotográfica começou a aderir à linha de produção em grande escala (CUNHA, 2003, p. 74). 76 evolução biológica (Fotografia 13), um possível domínio do mundo através das mãos, ou de demonstrar a sua presença, que, consequentemente, resultou em uma revolução tecnológica com o ato de fabricar objetos para serem usados em guerras, caças e em seus rituais, semelhante à fotografia, que também é uma impressão do mundo exterior que impregna e se fixa em uma placa sensível. No entanto, tal façanha com tamanha precisão de semelhança foi levada a cabo somente durante a primeira metade do século XIX.

(Fotografia 13) Impressões pré-históricas das mãos nas cavernas62.

Inicialmente, a fotografia possibilitou que apenas pessoas de alto poder aquisitivo pudessem fazer uso dela. A foto (retrato) assumia, neste período, certo valor de culto. Os empresários capitalistas, aliados aos novos inventos, observaram também que pela lógica de mercado, a produtividade era aumentada ao mesmo tempo que fossem reduzidos os custos, o que consequentemente ampliava seus lucros. Com isso, a invenção fotográfica começou a aderir à linha de produção em grande escala. Ao longo dos anos a fotografia sofreu diversas modificações no âmbito técnico, desde a fabricação de câmeras portáteis com lentes mais eficientes para determinados tipos de fotografias, a descoberta de novos produtos químicos, até finalmente a criação dos rolos de

62 Novo estudo sugere que pinturas antigas em cavernas teriam sido feitas mais por mulheres do que por homens como se acreditava. Ao analisar a silhueta de 32 marcas de mãos encontradas perto de cavernas de 12,5 mil a 40 mil anos no sul da França e nordeste da Espanha, os pesquisadores perceberam que as mãos eram pequenas. Pensava-se que elas poderiam ser de jovens homens, mas agora o estudo publicado neste mês no jornal "American Antiquity" concluiu que 24 delas pertenciam a mulheres - baseado no tamanho das mãos e dos dedos e, também, na razão entre os tamanhos do dedo indicador, do anular e do mindinho. Das oito marcas restantes, apenas três são de homens adultos e as demais são de adolescentes. Como as cavernas são bem apertadas, acredita-se que a mesma pessoa que marcou as mãos, tenha desenhado antigos animais, como cavalos e mamutes, nas paredes. PedroSaura/AFP/GettyImages/Newscom/Science. Disponível em: . Acesso em: 15 out. 2013 (Fotografia 16).

77 filmes, aplicados sobre a base de celuloide criada pelo norte-americano George Eastman que, no ano de 1888, lançou no mercado mundial a câmera Kodak, com a finalidade de atender às massas. Seu slogan publicitário era ―Aperte o botão, nós fazemos o resto‖. A prática fotográfica foi ampliada consideravelmente, sendo propagada praticamente entre todas as classes, que buscam retratar-se mostrando o seu rosto para todos. ―Assim, o retrato fotográfico, que, sob diferentes sistemas e segundo a tecnologia de cada época, já havia então se tornado uma necessidade, mostrou ao homem uma nova possibilidade de perpetuação de sua própria imagem‖ (MAYA, 2008, p. 108). A evolução técnica da fotografia, a criação de negativo e a rapidez da exposição empregada através de lentes especiais proporcionavam uma maior velocidade na confecção dos retratos — o que antes garantia algo de sacro, ―uma figura singular [...] aparição única‖ (BENJAMIN, 1994, p. 170). Nesse momento a fotografia perde seu valor de culto, a sua aura63, ―diante do valor de exposição. Mas o valor de culto não se entrega sem oferecer resistência. Sua última trincheira é o rosto humano. Não é por acaso que o retrato era o principal tema das primeiras fotografias‖ (BENJAMIN, 1994, p. 174). A evolução do maquinário fotográfico garantiu a sobrevivência dos primeiros retratistas; ―o retrato era o ganha-pão dos primeiros fotógrafos‖ (MARIEN, 2012, p. 250). Não só garantiu a sua sobrevivência, como também poderia competir com os pintores. Os que realizavam retratos a óleo miniaturizados, fatalmente perderam essa função. Antes da invenção da fotografia, a produção de um retrato através do pintor ou de desenhista certamente dependia de sua habilidade. A aproximação da semelhança com o real, conseguida através da imagem fotográfica, era notória, um fenômeno surpreendente que fascinou a todos que viam aquelas imagens. Jamais houve tamanha exatidão sintetizada em uma única técnica, a fotográfica. A particularidade de representação à sua ―imagem semelhança‖, como a possibilidade de apresentar pormenores, nuances da face humana, fez as demais artes manuais do retrato se separarem da arte fotográfica. ―Na pintura, a identidade do retratado podia, ou não, ser o elemento predominante; na fotografia isto é inevitável, uma vez que cada rosto identifica um único indivíduo com uma mímica facial que lhe é peculiar‖ (KUBRUSLY, 1991, p. 31). Possibilitou ainda a reprodução do ser humano em movimento, nunca antes imaginada, feita por Eadweard Muybridge, além da reprodução mais fiel da realidade. Ela permitiu o registro

63 O que consideramos aurático, nessas primeiras fotos, era principalmente a não existência de negativos, sua reprodução em várias cópias. As imagens eram impressas em pesadas chapas de metal mediante exaustivos processos químicos, um verdadeiro trabalho de alquimista, que, muitas vezes, obrigava os observadores dessas primeiras impressões a verem tais fotos em lugares com pouca luminosidade, para não causar o desaparecimento destas como por encanto, devido à reação da luz com a foto (CUNHA, 2003, p. 75). 78 mecânico da ―imagem em condições mais ou menos análogas à visão – revelou não o caráter real da visão tradicional, mas ao contrário, seu caráter de sistema. As fotografias são tiradas, ainda hoje, em função da visão artística clássica‖ (NEIVA JUNIOR, 1986, p. 61). Essa visão artística clássica deve-se ao fato de a fotografia ser oriunda da perspectiva teorizada na Renascença, um princípio óptico da Física. A imagem foi criada evitando as possibilidades de aberrações, um olhar físico- matemático amparado na ilusão da terceira dimensão, resultado da perspectiva. Além do que, em determinadas circunstâncias, podemos não nos reconhecer diante de uma fotografia, mesmo sabendo que estávamos lá. Uma imagem muito desfocada, um erro na revelação, o excesso ou a escassez de luz, ou ainda o uso de lentes que possibilitem a distorção da realidade, por exemplo, impedem o nosso reconhecimento, pois não condizem com o que deveria ser ou o que se esperava. A fotografia primeiramente apenas aponta, indica algo, alguma coisa que aconteceu em frente a uma câmera fotográfica, como afirma Charles Sanders Peirce ao referir-se ao caráter indicial64 da imagem fotográfica; mas, devido às convenções e à utilização adequada do equipamento, permite a reprodução de imagens semelhantes à realidade.

Fotografias, especialmente fotografias instantâneas, são muito instrutivas porque sabemos que, sob certos aspectos, são exatamente como os objetos que representam. Esta semelhança é devida ao fato das fotografias serem produzidas em circunstâncias tais que se viram fisicamente compelidas a corresponder, ponto por ponto, à natureza. Sob esse aspecto, pertencem, pois, à segunda classe de signos, os que são por conexão física (PEIRCE, 1975, p. 118).

O rosto humano é uma espécie de identidade singular, assim como as impressões digitais, com exceção dos indivíduos gêmeos, que possuem semelhanças aproximadas ao menos nas faces. ―Reconhecemos alguém, imediatamente, pela visão de seu rosto; basta que para isso se observe a importância do ‗retrato falado‘, recurso de que lança mão a polícia na tentativa de identificar criminosos‖65. Já ―dentre as classes de animais, apenas os mamíferos ditos superiores chamados de primatas têm a capacidade de expressar por emoções e sentimentos, e esta linguagem visual atinge seu desenvolvimento máximo na espécie humana‖ (KUBRUSLY, 1991, p. 31).

64 Qualquer coisa que atraia a atenção é um indicador (índice). Qualquer coisa que nos surpreende é um indicador, na medida em que assinala a junção de duas porções de experiências. Assim, uma faísca violenta indica ter acontecido algo, embora possamos não saber precisamente qual foi o acontecido (PIERCE, 1975, p. 120). 65 (CUNHA, 1997, p. 77). 79

O rosto traduz em códigos, informando a situação emocional em que cada indivíduo se encontra, demonstrando a sua disposição, definindo seu estado de espírito e intenções, bem como toda uma carga cultural e ancestral. Essas expressões se apresentam em nossos rostos em determinadas circunstâncias, que se torna difícil, na maioria das vezes, dissimular tais emoções. Fazer uma lista precisa de como se expressa cada face não é tarefa fácil, tamanha a diversidade e as sutilezas desta maneira de se comunicar. Ao mesmo tempo, não é difícil que cada pessoa emita um parecer acerca de determinado rosto. As possibilidades de acerto podem ser fáceis à primeira vista devido às evidências das informações, mas em outros casos dependerá do contexto e do acúmulo de informações acerca deste indivíduo, num treinamento perspicaz do observador mediante as facetas que envolvem o comportamento humano. ―A significação de uma imagem permanece grandemente tributária da experiência e do saber que a pessoa que contempla adquiriu anteriormente. Nesse tocante, a imagem visual não é uma simples representação da ‗realidade‘ e sim um sistema simbólico‖ (GOMBRICH apud BARDON, 1998, p. 107). Os cientistas tentaram fazer um inventário científico acerca das aparências, desde o final do século XIX. Através do estudo das imagens de forma científica, como os empreendidos pela medicina (imagens criminais), na tentativa de provar que as aparências das pessoas poderiam indicar ―supostas disfunções psíquicas humanas basicamente enunciadas no livro do criminólogo Cesare Lombroso, O homem criminoso‖ (LOMBROSO apud JESUS, 2011, p. 8). Lombroso, médico italiano, acreditava que determinados aspectos ligados ao crime eram congênitos; por sua vez, eram apresentados mediante a nova invenção do momento, a fotografia. Através de comparações entre imagens fotográficas de criminosos e pessoas normais, podia-se deduzir que tais pessoas também apresentavam um comportamento patológico. Não só Lombroso66, mas também Aphonse Bertillon e Galton, dentre outros estudiosos. Como os estudos das imagens fotográficas das retinas das pessoas assassinadas, realizados pelo Dr. Bourion ―com o objetivo de nelas encontrar a imagem dos sujeitos assassinados‖ (DUBOIS, 1994, p. 231), ou ainda as imagens fantasmagóricas, ―fotografias das auras‖ e outros fluidos mentais, do Dr. Baraduc (1896). Esse período ―depende mais de

66 ―Trata-se da fotografia judiciária e criminal que se instala na época (Berlillon, Lombroso, Galton) da fotografia dos histéricos (serviço de Charcot na Salpétrière) ou de práticas extremas e singulares como a do chamado ―optograma‖(1868) ou a ―fotografias das auras‖ e outros fluidos mentais do Doutor Baraduc (1896)‖ (DUBOIS, 1998, p. 212).

80 saberes como a teologia, as ciências positivistas, a medicina legal ou a criminologia, bem mais do que da fotografia propriamente dita‖ (DUBOIS, 1994, p. 247). Inúmeras teses de caráter duvidoso, por vezes racistas, intentaram classificar as pessoas pela simple aparência de semelhança com outros, além da consanguinidade, em que o criminoso nasce criminoso e com cara de criminoso. Sobre a imagem de um indivíduo, ou de pessoas, no caso especial, o seu retrato, pode- se dizer que este caracteriza um somatório de acontecimentos que o indivíduo vivenciou e transmitiu num determinado contexto histórico, moldando-se conforme suas necessidades e sua interação com o meio em que vive. E que, apesar de a imagem da fotografia apontar para o seu referente, indicando que ele existiu, ou mesmo, muitas vezes representando-o de maneira análoga à realidade, seu caráter representativo, simbólico, como bem enfatiza Peirce, é inevitável; através dele podemos interpretar as imagens. Como não existem indivíduos iguais no decorrer de suas vidas, suas emoções, traumas, punições, estímulos etc. nos levam a crer que cada ser seja possuidor de um universo singular de relações, como o existente entre o fotógrafo e o fotografado, apesar das formatações sociais e persuasões midiáticas que, muitas vezes, convergem para fórmulas ditas normais ou aceitáveis.

4.2 - O retrato literário maureeniano

Houve a necessidade de se referir à questão do retrato, sobretudo porque a trajetória de Maureen Bisilliat tem como elemento de sua interação fragmentos da obra literária dos autores brasileiros, e suas imagens são quase sempre representadas através do retrato. Essa interação entre imagem e texto, essa semiose, possui um elemento agregador, tendo em vista que a fotógrafa também interage com o elemento humano, e não somente o literário, constantemente remetendo a uma cumplicidade entre ambos. O retrato requer muitas vezes ―que o modelo confie que o fotógrafo vai gerar um símbolo seu a partir da aparência‖ [...] e que esses, por sua vez, tendam a revelar ou dissimular, pois que ―Os retratos são visualmente energizados pela disputa entre revelação e ocultação‖ (MARIEN, 2012, p. 68). Assim como as palavras, as imagens, as aparências dos acontecimentos ocultam, bem mais que revelam sua verdadeira intenção, como o sertão rosiano, que ―não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena‖ (ROSA, 2001, p; 538); cabe aos leitores perceber também tais nuances de possibilidades entre o que está 81 oculto e o que foi representado. ―A gente sabe mais, de um homem, é o que ele esconde‖ (ROSA, 2001, p. 353-354). Maureen Bisilliat lança mão desde o início de sua jornada literária do tema mais difundido no universo fotográfico, como já foi dito: o retrato, iniciado em Grande Sertão: Veredas. Analisamos essa temática tendo como objeto as mulheres que habitam o universo sertanejo rosiano. A partir de A João Guimarães Rosa (1969) nosso objeto de análise, que será mais adiante trabalhado, esse elemento também possui ligações com outros trabalhos, através de outras traduções fotográficas oriundas de outras imagens literárias. Silva e Leite observam essa reverberação da obra rosiana em Os Sertões através da recorrência de elementos temáticos e enredos inerentes às duas obras.

O sertão é um referente compartilhado entre a fotógrafa e alguns enredos escolhidos para dialogarem com sua produção. O imaginário sobre ele foi, pela obra de Guimarães Rosa, seu primeiro campo de incursão na construção de suas interpretações fotográficas relacionadas às obras literárias. Tal ambiente surge, posteriormente, em Sertões, luz e trevas (1982), no qual a fotógrafa usou trechos das duas primeiras partes de Os Sertões (1902) (SILVA; LEITE, 2013, p. 7).

A obra Sertões, Luz e Trevas (1982) tem como referencial a obra Os sertões de ; as mulheres apresentadas em Os Sertões, imaginário de Maureen Bisilliat, são aquelas dos ―agrupamentos bizarros‖67 descritos pelo autor com maior intensidade, mas também algumas formosas que aparecem em sua obra. ―Há, todavia, naquele imenso deserto de beleza, um ‗rosto formosíssimo‘, aclarado por ‗uns olhos grandes e negros‘, verdadeiro oásis de graça feminina‖ (CALAZANS, 1959, p. 5). Maureen Bisilliat intercala com diversas imagens femininas, tendo o texto de Os Sertões como parâmetro: mulheres com turbantes (Fotografia 14), que remetem ao universo de Euclides da Cunha68, as beatas, mulheres religiosas de faces esquálidas devido às condições impostas pelo meio em que vivem, pois ―O

67 (CUNHA, 2004, p. 393). 68 Grenhas maltratadas de crioulas retintas; cabelos corredios e duros, de caboclas, trunfas escandalosas, de africanas; madeixas castanhas e louras de brancas legítimas embaralhavam-se, sem uma fita, sem um grampo, sem uma flor. O toucado ou a coifa mais pobre. Nos vestuários singelos, de algodão ou de chita, deselegantes e escorridos, não havia lobrigar-se a garridice menos pretensiosa: um xale de lã, uma mantilha ou um lenço de cor, atenuando a monotonia das vestes encardidas quase reduzidas a saias e camisas estraçoadas, deixando expostos os peitos cobertos de rosários, de verônicas, de cruzes, de figas, de amuletos, de dentes de animais, de bentinhos, ou de nôminas encerrando "cartas santas", únicos atavios que perdoava a ascese exigente do evangelizador. Aqui, ali, extremando-se a relanços naqueles acervos de trapos, um ou outro rosto formosíssimo, em que ressurgiam, suplantando impressionadoramente a miséria e o sombreado das outras faces rebarbativas, as linhas dessa beleza imortal que o tipo judaico conserva imutável através dos tempos. Madonas emparceiradas a fúrias, belos olhos profundos, em cujos negrumes afuzila o desvario místico; frontes adoráveis, mal escampadas sob os cabelos em desalinho, eram profanação cruel afogando-se naquela matulagem repugnante que exsudava do mesmo passo o fartum angulhento das carcaças imundas e o lento salmear dos "benditos" lúgubres como responsórios[...] (CUNHA, 2004, p. 310). 82 regime desértico ali se firmou‖69. Elas sobrevivem com as suas indumentárias, típicas da região. No entanto, ―Cunha descreve as mulheres utilizando um tom no qual não falta ironia e visível crueldade‖70: Ali estavam, gafadas de pecados velhos, serodiamente penitenciados, as beatas — êmulas das bruxas das igrejas — revestidas da capona preta lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição: as "solteiras‖, termo que nos sertões tem o pior dos significados, desenvoltas e despejadas, "soltas" na gandaíce sem freios; as "moças donzelas" ou "moças damas", recatadas e tímidas; e honestas mães de famílias; nivelando-se pelas mesmas rezas. Faces murchas de velhas — esgrouviados viragos em cuja boca deve ser um pecado mortal a prece; rostos austeros de matronas simples; fisionomias ingênuas de raparigas crédulas, misturavam-se em conjunto estranho. Todas as idades, todos os tipos, todas as cores[...] (CUNHA, 2004, p. 309 - 310).

(Fotografia 14) – (BISILLIAT, 1982, p. 91).

Mais adiante encontramos outra velha, (Fotografia 15), desta vez com uma grande capa feminina preta, ―lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição‖ (CUNHA, 2004, p. 309). A imagem em movimento realizada pela fotógrafa desfigura por completo a face da senhora; no entanto, é possível perceber os detalhes de suas vestes, uma espécie de túnica escura e, apesar da foto embaçada de seu rosto, percebe-se a sua textura envelhecida.

(Fotografia 15) (BISILLIAT, 1982, p. 133).

69 (CUNHA, 2004, p. 93). 70 (PEREIRA, 2012, p. 72). 83

Alguns estudiosos observam que Euclides da Cunha descreve os habitantes de Canudos de forma negativa, classificando-os como pertencentes a uma sub-raça, concepção naturalista de mundo: ―Tributário das teorias racistas e evolucionistas de sua época, considerava que os habitantes do sertão estavam destinados ao próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização‖ (VENTURA, 2002, p. 45). Maureen Bisilliat não só representa a figura feminina em seu trabalho, mas também nele está contida a figura do homem caracterizado de vaqueiro. No entanto, a imagem escolhida para capa e contracapa é o retrato de uma jovem que remete ao que poderíamos denominar aquelas mulheres de rosto ―formosíssimo‖71, segundo Euclides da Cunha. Trata-se de uma imagem feminina, uma personagem (Fotografia 16) que faz parte de uma dança folclórica brasileira, Guerreiro72. Por ostentar uma coroa, a jovem deve ser a rainha. Tal imagem, retrato, pode ter sido tirada em diversos locais do Nordeste73, não necessariamente em Canudos. É comum em Maureen combinar, em seu trabalho, imagens fotográficas e palavras; muitas vezes suas imagens são concebidas sem pertencer ao mesmo contexto, como quando trabalhou a concepção de O cão sem Plumas do poeta João Cabral de Melo Neto. As imagens das mulheres caranguejeiras não são as mesmas que compõem as catadoras de caranguejo às margens do Capibaribe, Recife/PE, e sim mulheres de uma aldeia de pescadores na Paraíba. A artista estabelece correlações de seus trabalhos realizados em contextos e tempos distintos. O certo é que as mulheres representam índices de importância em seu trabalho, sejam velhas, moças ou meninas. Maureen Bisilliat, em Sertão, Luz e Trevas, intercala a figura feminina da rainha com o fragmento da obra de Euclides da Cunha (Fotografia 16):

(Fotografia 16) (BISILLIAT, 1982, p. 40).

71 (CUNHA, 2004, p. 94) 72 Auto popular do ciclo do reisado, que figura a luta de guerreiros e caboclos e em cujo final se inclui o bailado do boi. Disponível em: Acesso em: 25 de out. 2013. 73 Estas imagens foram tiradas nos ermos, aldeias e lugares santos do nordeste brasileiro –Juazeiro do Norte, Canindé, Bom Jesus da Lapa – de 1967 a 1972, e sequenciadas sob forma de livro no ano de 1982. Vistas isoladamente, emudecem; dispostas em cadência de luz e sombra, retomam à vida, desvendando pelo olhar o coraçã (BISILLIAT, 1982, p. 13). 84

Do topo da Favela, se a prumo dardejava o Sol e a atmosfera estagnada imobilizava a natureza em torno, atentando-se para os descampados, ao longe, não se distinguia o solo. O olhar fascinado perturbava-se no desequilíbrio das camadas desigualmente aquecidas, parecendo varar através de um prisma desmedido e intáctil, e não distinguia a base das montanhas, como que suspensas. Então, ao norte da Canabrava, numa enorme expansão dos plainos perturbados, via-se um ondular estonteador; estranho palpitar de vagas longínquas; a ilusão maravilhosa de um seio de mar, largo, irisado, sobre que caísse, e refrangesse, e ressaltasse a luz esparsa em cintilações ofuscantes[...] (CUNHA, 2004, p. 108).

Assim como as mulheres, outros elementos presentes em sua obra são quase abstratos (Fotografia 17) e transitam entre imagens em cores ou em preto-e-branco. O elemento terra é recorrente na obra de Maureen Bisilliat, como na imagem abaixo, que acompanha o texto: ―Copiando o mesmo singular desequilíbrio das forças que trabalham a terra, os ventos ali chegam, em geral, turbilhonando revoltos, em rebojos largos. E, nos meses em que se acentua, o nordeste grava em tudo sinais que lhe recordam o rumo‖ (CUNHA, 2004, p. 72 ). Tal passagem faz parte exatamente da primeira parte da obra euclidiana, intitulada ―A terra‖, ao referir-se à questão climática que afeta aquela região.

(Fotografia 17) (BISILLIAT, 1982, p. 33)

Ao trabalhar O Cão sem Plumas, 1984, a fotógrafa traduz, em imagens, o poema homônimo de João Cabral de Melo Neto, tendo como objeto temático as mulheres catadoras de caranguejo em seu cotidiano de trabalho. Elas são a sua escolha temática, as mulheres 85

―caranguejeiras‖,74 publicadas na revista Realidade, em 1970. Sua narratividade é composta de uma sequência de imagens que sugerem início, meio e fim, iniciando, entretanto, com a imagem em cores de um homem, um catador de caranguejos; em seguida são apresentadas somente imagens do feminino em preto-e-branco; finalizando, novamente a imagem em cores de um catador de caranguejo. Isso é confirmado acerca de sua temática, pela própria autora das imagens (Fotografias 18 e 19), ao enfatizar que ―são as mulheres os fundamentos de nossa história [...] garças que passam gritando alto, periquitos em bandos grasnando no ar! [...] situadas em seu ‗templo’. Meninas, mulheres e velhas, [...], subitamente transformadas em divindades pela lama‖ (BISILLIAT, 1984, p.11).

(Fotografia 18) – Menina catadora de caranguejo75.

(Fotografia 19) – Anciã catadora de caranguejo76.

Seu trabalho possui marcas, resquícios da obra literária, impregnando a imagem fotográfica da artista. O feminino do poema que está presente nas entrelinhas da obra

74 ―A decisão de publicar As caranguejeiras na capa foi delicada. Em 1970, dois anos depois do AI-5, já em pleno governo Médici, pisava-se em ovos nas redações, e as figuras enlameadas das caranguejeiras encaixavam- se mal na celebração do milagre brasileiro‖ (BISILLIAT, 2009, p.222). 75 (MELO NETO, 1984, p. 15). 76 (MELO NETO, 1984, p. 23). 86 cabralina e em algumas imagens, Maureen Bisilliat soube explorar bem, como ela mesma diz acerca das mulheres, o seu eixo principal de representação:

Corri atrás delas mal conseguindo seguir o seu ruidoso rastro, cambaleando como um corpo sem alma, afundada até a cintura, para enfim chegar ao templo do seu estar. Meninas, mulheres e velhas, com vestuários de algodão ou chita, deselegantes e escorridos, subitamente transformadas em divindades pela lama – faces polidas de pedra , revestidas das pregas movediças do mar (BISILLIAT apud MELO NETO, 1984, p. 11).

Embora o poema de Cabral e as fotografias de Bisilliat tenham sido apresentados lado a lado a cada par de páginas da obra, o método de leitura das equivalências, estabelecido pela fotógrafa, não é linear. O diálogo intersemiótico, como sugere o enunciado da obra77, é estabelecido a partir de um núcleo imagético em que o poeta sugere a dimensão feminina do rio78, aquele que ―Nada sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa, da água do copo de água, da água de cântaro, dos peixes de água,‖79 [...] mas que ―Sabia dos caranguejos/de lodo e ferrugem./ Sabia da lama/ como de uma mucosa./Sabia seguramente / da mulher febril que habita as ostras‖80. Apesar de rio ser um substantivo masculino, no entanto, se assemelha ao ventre de fecundado, com seu leito possuidor de uma fecundação estagnada de terra negra, como explicita o poema: ―Liso como o ventre/ de uma cadela fecunda,/o rio cresce/sem nunca explodir./Tem, o rio, um parto fluente e invertebrado/como o de uma cadela./(...)/Em silêncio,/o rio carrega sua fecundidade pobre,/grávido de terra negra.‖ (MELO NETO, 1984, p. 20). Assim, temos que o rio-lama, o rio-mucosa, é uma mulher febril, sensual, disfarçada, escondida nas ostras, um rio que, apesar de sua pobreza ―de terra negra‖ que desemboca no mar, antes disso tem sua passagem no manguezal, onde a vida explode fervilhando em seu estuário, berçário de peixes, caranguejos e tantos outros seres aquáticos, como diz o poeta: ―Mas antes de ir ao mar/o rio se detém/em mangues de água parada./Junta-se o rio/a outros rios/numa laguna, em pântanos/onde, fria, a vida ferve/‖81. Em seus estudos acerca do

77 A imagem do poeta. A palavra do fotógrafo. Este livro sugere que existe uma linguagem da visão, rica, ampla e articulada como a voz das palavras. São dois idiomas que dialogam e se permutam, falam conosco e entre si. Nas palavras e nas imagens deste livro, carregadas de sentido no máximo grau possível, a revelação se faz através da poieses. Seu discurso é a realidade do rio Capibaribe, terra-lama, espaço primórdio onde o homem afunda e resiste, fortalecido pela luta. Cumpre-nos ver ouvir... e deixar nosso coração falar (GOMES apud MELO NETO, 1984, contracapa). 78 Conhecedor das profundezas infernais, ao mesmo tempo o rio também sabe da eroticidade implícita na mulher febril que habita as ostras, do grão de areia transformado em pérola a partir de uma gravidez dolorosa, cancerígena, que machuca a mucosa da concha antes de virar beleza leitosa e brilhante (VERNIERE, 1999, p. 93). 79 (MELO NETO, 1984, p. 16). 80 (MELO NETO, 1984, p. 18). 81 (MELO NETO, 1984, p. 46). 87 imaginário, Gaston Bachelard afirma que a ―água um leite inesgotável, o leite da natureza Mãe‖, uma ―valorização que marca a água com um cunho profundamente feminino‖ (BACHELARD, 1998, p. 131). É essa mulher que Maureen Bisilliat revela na seleção e edição das fotos que recupera no seu ensaio, em diálogo com O cão sem plumas. Com a obra A Visita82 trabalha o poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade que narra o encontro, em 1919, do modernista Mário de Andrade com o poeta simbolista que residia em Mariana, Alphonsus de Guimaraens. Para realizar tal tarefa, foi convidada pelo bibliófilo José Mindlin, esse conhecedor da obra rosiana e também do trabalho desenvolvido pela fotógrafa em Grande Sertão: Veredas, e que acreditava ser ela a pessoa certa para realizar tal trabalho. Em conversa com Drummond, Mindlin esclarece que gostaria que a obra fosse ilustrada, mas que fugisse do óbvio: ―numa fotografia onírica, que misturasse sonho e realidade, para manter uma relação com o poema, sem cair no já visto‖.83 Maureen Bisilliat parte então com Mindlin a Mariana, na tentativa de captar a atmosfera do poema na cidade onde se deu o encontro dos dois escritores, para compor imagens fotográficas: ―Maureen chegou a pensar em reproduzir o ideal de concepção de beleza feminina de Alphonsus de Guimarães‖84, o que demonstra o interesse pela temática feminina, por parte da fotógrafa. No entanto, nada na cidade lhe agradou:

Chão, terra, gente. Nada com eles. Imagens de anjos barrocos, o diabo, a morte _ Isso, sim, seria Alphonsus de Guimaraens. Mariana sobre a névoa poderia ser, talvez, uma boa imagem para definir sua visão onírica, para captar o poema de Drummond. Confesso que não consegui, até uma hora antes de tomar o ônibus de volta, achar algo nesse caminho. Havia um homem vendendo pedras na rua. Resolvi comprar algumas para minha coleção particular, sem qualquer intuito de fotografá- las. Veio-me então a ideia de fotografar as pedras.85

As ilustrações da obra são imagens ampliadas de gemas compradas a um vendedor ambulante em Mariana. José Mindlin se encarregou de organizar o planejamento editorial e gráfico das ilustrações dos minerais, que são ―a essência da mineralidade de Minas Gerais‖86,

82Em sete cantos, um eu-lírico narrador canta a visita, real ou imaginária, de Mário de Andrade a Alphonsus de Guimaraens. O poema circula por várias realidades: a poética, afinal construtora do texto; a narrativa; aquela que considera a declamação da poesia, no quinto canto; a intertextual, em vários níveis: desde excertos de The raven, de Poe, até a incorporação de versos dos dois poetas-personagens no corpo dos versos. (DUARTE, 2006, p. 111) 83 JORNAL DO BRASIL. 11 de fevereiro 1978, Livro, p. 5. Disponível em: Acesso em: 1 de nov. 2013. 84 (op. cit.) 85 (op. cit.) 86 (op. cit.)

88 juntamente com o texto de Drummond. A capa da obra A visita87, no entanto, apresenta o rosto de um anjo em mármore branco, pertencente ao diretor do Museu de Artes de São Paulo, , com um respectivo fragmento de poema em forma de legenda: ―Tens um lis de ternura, que desliza à flor da pele em mágoa suavizante‖ (ANDRADE, 1977, p. 4) (Fotografia 20). Segundo Mindlin, o trabalho de composição desta imagem e o fragmento do poema na edição da obra, bem como as demais fotografias

[...] exprimem a abstração do concreto, foi encontrado, por acaso, um momento preciso de poema para servir de legenda. A mica, que parece reproduzir o casario barroco mineiro, por exemplo, encaixa-se com esses versos: ...em minha solidão/que escorre a contemplar o deserto das cidades mortas.‖ Em outra, que lembra a montanhosa paisagem mineira, foi encaixado o seguinte momento do poema de Carlos Drummond de Andrade: ...entre montanhas outras que as montanhas/cravadas no imutável mar de Minas,/entre terra e céu e som e espaço não finito...‖ Uma pedra azul cuja macrofotografia lembra uma galáxia, tem como correspondente o verso ―... e a opala da noite em estilhaços.‖ E a última das ilustrações, talvez a mais abstrata e a mais cósmica de todas e em que – ao mesmo tempo – aparece maior mineralidade, marcou a legenda ―Há um calar entreliçado nestes ares/que só deixam fugir... o silêncio/Blocos gelados de insuportável silêncio...‖ 88

(Fotografia 20) – Fotografia da capa, A visita, face de mármore de um anjo.

(BISILLIAT apud ANDRADE, Carlos Drummond de. A visita. São Paulo: 1977).

87 No corpo deste poema o autor utilizou versos, fragmentos de versos, expressões e informações encontráveis nos livros Obra Completa de Alphonsus de Guimaraes; Poesias Completas de Mário de Andrade e Itinerários, Cartas a Alphonsus de Guimaraes e Filho (ANDRADE, 1977, 41). 88 (MIDLIN apud JORNAL DO BRASIL. 11 de fevereiro 1978, Livro, p. 5. Disponível em: . Acesso em: 1 de nov. 2013. 89

As imagens fotográficas correspondem, com algumas semelhanças, às palavras, no entanto, servindo apenas como um guia. Algumas passagens são bastante abstratas, pois se trata de fragmentos poéticos, por vezes metafóricos, e cada leitor é possuidor de sua interpretação, mesmo tendo as palavras como direcionamento. Os minerais, como a mica, associada às montanhas de Minas Gerais, enquanto ―a opala da noite em estilhaços‖89 (Fotografia 21) assemelha-se a uma galáxia, como foi sugerido no jornal; finalmente, ―e talvez a mais abstrata e a mais cósmica de todas e em que – ao mesmo tempo – aparece maior mineralidade‖, a última das ilustrações (Fotografia 22)90. Tais ilustrações, associadas às palavras, criam um imaginário num todo que possibilita o encontro com o arquétipo materno.

(Fotografia 21) – Pedra opala. (Fotografia 22) – Pedra com aparência abstrata.

(BISILLIAT apud ANDRADE, 1977, p. 14) (BISILLIAT apud ANDRADE, 1977, p. 38)

As imagens (Fotografias 21 e 22) remontam àquelas imagens primeiras, ―escondidas nas profundezas noturnas do psiquismo‖ (PITA, 2005, p. 46), que Maureen Bisilliat por vezes rememorava, e só então foram acionadas através da literatura de Grande Sertão: Veredas. É o autor dessa obra que vai apontar as origens da fótografa de ―cigana da Irlanda‖, das terras das montanhas escuras. A figura apresentada lembra um simbolismo antigo em que todo mineral se apresenta como algo vivo, que brota da terra, — ―a terra era assimilada ao Ventre da Mãe, às minas da sua matriz, e os minerais, aos «embriões»‖ (ELIADE, 1983, p. 30).

89 (ANDRADE, 1977, p. 13) Fragmento do poema que acompanha a imagem. 90 (ANDRADE, 1977, p. 38) O fragmento do poema que acompanha a imagem é: ―Há um calar entreliçado nestes ares/ que só deixam fugir... o silêncio!/Blocos gelados de insuportável silêncio...‖ 90

Como que ―Partindo da ideia de que todo reino mineral é semente‖, [...] ―o mundo subterrâneo com seus mistérios da lenta gestação mineral que se processa nas entranhas da terra-mãe‖ (READ, 1978, p. 57-61). Assim como na relação entre Maureen e a literatura rosiana, Bachelard soube valorizar a literatura, ligando-a ao imaginário, pois aquela

[...] lhe serviu, sobretudo, de fonte de documentação sobre as atividades da imaginação, sobre as atividades da imaginação, à medida que o escritor, o poeta, o ensaísta tem o dom de captar no ato ―as imagens naturais‖. A literatura é, desse ponto de vista, mais eficaz que a estética visual ou as mitologias, compiladas pelos etnógrafos ou folcloristas. O escritor sabe trabalhar para reencontrar toda sua primitividade substancial (PITA, 2005, p. 53).

A imagem da pedra opala nos remete a um torso feminino, uma marca da estética de Maureen Bisilliat, elemento que reverbera nas imagens da fotógrafa, que, por sua vez, está associado à terra, mais tarde encontrado nas terras brasileiras despertadas pelas imagens literárias rosianas. As fotografias de Maureen Bisilliat buscam a essência das coisas em suas imagens, ou como a própria fotógrafa diz: ―O meu negócio é a alma, mas ela, sábia, nem sempre e quase nunca se deixa aprisionar‖91. A fotógrafa mergulha, de corpo e alma, nas impressões que algumas obras literárias lhe causavam, o que resultou num diálogo com escritores, para o que usava a expressão ―equivalências fotográficas‖92. Trabalhava para que sua sequência de imagens fotográficas fosse ―como um livro‖93, um outro livro, que ressignificasse os personagens dispostos nas obras, ao mesmo tempo que também remetesse às obras: ―Não queria ilustrar personagens e cenas inventadas por escritores. Mas, imbuída da obra deles, ia buscar a região que lhes serviu de inspiração‖94. Maureen Bisilliat explica assim sua primeira experiência com a literatura: [...] naquela época, ainda pouco acessíveis, tendo como ponto de partida o mergulho ―nas águas daquele mar de palavras‖, como se refere à obra de Guimarães Rosa. Depois ia se haver com os autores, mas a reação era sempre positiva – e surpreendente. ―Ao voltar de cada viagem a Minas Gerais, ia visitar Rosa e mostrava pequenas cópias das fotografias. Ele olhava com muita curiosidade para todas elas, fazia anotações e dizia ter saudades dos lugares e das pessoas que via. Então, era como se minhas imagens fossem um espelho de sua escrita‖, conta a fotógrafa.95

91 Disponível em: . Acesso em: 2 de nov. 2013.

92 Disponível em: . Acesso em: 2 de nov. 2013. 93 (op. cit.)

94 (op. cit.)

95 (op. cit.)

91

Neste capítulo apontamos elementos femininos que surgiram depois de conhecer João Guimarães Rosa e sua obra Grande Sertão: Veredas, elementos importantes de nossa análise que serão aprofundados mais adiante em A João Guimarães Rosa.

4.3 - O encontro com João Guimarães Rosa

A obra fotográfica de Maureen Bisilliat relacionada com o universo literário rosiano tem início no ano de 1960, quando ela recebe a obra Grande sertão: Veredas de João Guimarães Rosa, presente de um amigo, José Olympio Borges, mineiro de Patos de Minas, certamente um conhecedor do texto rosiano. No ato da entrega do livro, o amigo diz para Maureen Bisilliat: ―não sei se você vai compreender,‖ lembra a fotógrafa, rindo. De fato, Maureen não só compreendeu, mas traduziu o livro de Rosa em imagens que resultaram em A João Guimarães Rosa, fruto das viagens por Minas Gerais em 1963‖96; nesse período, João Guimarães Rosa era diplomata no Ministério das Relações Exteriores no Itamaraty, na então capital federal, Rio de Janeiro. Maureen Bisilliat não perde tempo e trata logo de conhecê-lo, pois tinha pretensão de realizar um trabalho fotográfico tendo a literatura como um dos guias para a produção de imagens. Um caminho de inesperado se abriu na carreira de Maureen quando José Olympio Borges (conhecedor das terras e tradições mineiras, da literatura nacional e internacional) presenteou com um exemplar de Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. A leitura de uma obra que intimida até mesmo leitores supostamente mais íntimos da língua portuguesa provocou em Maureen ―um tipo de compreensão para além das palavras. Grande sertão: Veredas teve em mim o impacto de um assombro.‖ Foi uma atração forte o bastante para levá-la a procurar o escritor – então responsável pelo serviço de demarcação de Fronteiras – no Itamaraty, no Rio de Janeiro. Queria fotografar aquele sertão (GÓES, 2009, p. 220).

João Guimarães Rosa fez uma sugestão de roteiro fotográfico para Maureen Bisilliat, de modo que tal jornada se inicia partindo de sua cidade natal, Cordisburgo, cidade situada no centro-norte de Minas Gerais. Logo em seguida, vai em direção do sentido norte pela BR-135, chegando à cidade de Curvelo, Corinto, passando também por uma pequena cidade chamada de Andrequicé, pertencente ao distrito de Três Marias, terras de Manuel Nardi, mais

96 ESTEVES, Juan. A cor mais brasileira! Disponível em: . Acesso em: 9 de out. 2011.

92 conhecido por ―Manuelzão97‖, que foi o famoso vaqueiro e guia de João Guimaraes Rosa pelas brenhas adentro do alto sertão mineiro, anotando detalhes em tudo que ele achava pertinente, para em seguida utilizá-los em sua criação literária, em que se destacam as novelas Corpo de Baile e o romance Grande Sertão: Veredas, ambos lançados em 1956. Maureen Bisilliat percorre alguns outros tantos vilarejos de passagem, até a altura de Januária, região pertencente ao Polígono das Secas, divisa com a Bahia, no Alto Médio São Francisco, e tantos outros lugares:

Rosa rabiscou-lhe uma lista de lugares e pessoas, e disse que aquele era o tronco e que os galhos ela caberia encontrar sozinha. Confiava que a ascendência irlandesa a predisporia a entender Minas Gerais. As viagens – quatro, em dois anos – começaram em Cordisburgo, terra Natal do autor, e prosseguiram em direção a Curvelo, Corinto e pelos Gerais até Januária, norte de Minas. Guimarães Rosa morreu em 1967, antes do lançamento do livro, mas chegou a ver algumas fotos, ampliadas em tamanho de cartão-postal, que Maureen ia lhe mostrando ao voltar de cada viagem. Rosa crivou-a de perguntas sobre cada lugar, cada pessoa, cada situação encontrada, anotando no verso das imagens tudo que ela contou. Guardo-as e disse apenas que estava com saudade de rever sua terra. (GÓES, 2009, p. 220).

A repercussão desse trabalho sobre Guimarães Rosa foi muito importante na vida de Maureen Bisilliat. Assim que o jornalista Audálio Dantas observou tais imagens, não hesitou na indicação de Maureen Bisilliat para a Editora Abril; sua relação com a literatura era notória, o que mostrava uma perfeita adequação com a linha editorial da revista Realidade. Um dos grandes nomes da revista, José Hamilton Ribeiro, diz que ―Maureen transita entre a objetividade e a pintura. Maureen Bisilliat, inglesa, morena, pequenininha, agitada, não tinha medo de pauta e procurava, em suas fotos, dar um sentido de pintura, de quadro, ela que era, também, pintora‖ (RIBEIRO; MARÃO, 2010, p. 415). Sua técnica oriunda da pintura, como o chiaroescuro,98 refletia-se consideralvelmente em seus trabalhos. Do mesmo modo que as imagens fotográficas surpreenderam o jornalista Audálio Dantas ao ver a tradução da obra de Guimarães Rosa referente ao sertão mineiro, Grande Sertão: Veredas, isso também aconteceu com os irmãos Villas Boas, que a convidaram imediatamente para registrar ―o imáginário agonizante dos índios do terrítório Xingu” (FERNANDES JUNIOR, 2003, p. 153).

97 Existe uma novela em Corpo de Baile denominada de Manuelzão e Miguilim, em que Rosa homenageia esse seu guia ao nomear um vaqueiro em sua ficção com o seu nome.

98 Criado por Leonardo da Vinci no século XV, o efeito tem justamente a finalidade de sugerir volume na imagem por meio dos contrastes entre luz e sombra – por isso o efeito também é chamado de perspectiva tonal. Disponível em: . Acesso em: 24 de ago. de 2011.

93

Seus ensaios e modos de ver o mundo, com muita luz, pouca luz, contraluz, e muitas vezes carregado de sombras, vem possivelmente de dois grandes fotógrafos que Maureen Bisilliat admirava: de um lado, um dos primeiros fotógrafos considerados um representante do fotojornalismo expressionista, o norte-americano W. Eugene Smith, pioneiro na arte do ensaio fotográfico ao captar as imagens bem trágicas de situações de guerra, atuando em outros países. As imagens de Eugene Smith impressionam pela proximidade e envolvimento com o fato, tais os temas sociais, como seus ensaios de cunho humanista, ligados à poluição de rios por mercúrio no Japão, que causaram o nascimento de crianças deficientes (Fotografia 23). Trata-se do retrato de Tomoko Uemura, uma jovem de 17 anos, habitante de uma ilha nas proximidades da baía de Minamata, Japão, contaminada pelo mercúrio advindo de uma indústria química. Tal imagem é considerada como sendo a Pietá de Eugene Smith, com a mãe segurando Tomoko no colo, durante o banho. E também a uma das imagens mais famosas (Aldeia espanhola) (Fotografia 24), em um ensaio, ao retratar a miséria de um vilarejo espanhol em plena ditadura de Francisco Franco.

(Fotografia 23) A jovem Tomoko Uemura banhada por sua mãe, Minamata, Japão, 1972. Eugene Smith99

(Fotografia 24) Mulheres velam o corpo de Juan Larra na cidade de Deleitosa, Espanha, 1950. Eugene Smith100

Maureen Bisilliat apropria-se desse tipo de luz, a do claro e escuro; essa imagem possivelmente a impressionou. De outro lado, também assimila o estilo formal de Bill Brandt,

99 Disponível em: http://www.masters-of-photography.com/S/smith/smith_wake.html> Acesso em: 30 de abr. 2012. 100 Disponível em: . Acesso em: 30 de abr. 2012. 94 considerado um dos maiores fotógrafos ingleses de origem alemã por seus ângulos inusitados, beirando o surreal, como em alguns temas trabalhados por ele, quando apresenta uma imagem com uma orelha humana em primeiro plano e ao longe uma vasta praia, com pedras tendo ao fundo uma montanha (Fotografia 25). Da mesma forma que Smith, também atua como um fotógrafo defensor das causas humanistas, como na situação enfrentada pelos operários irlandeses (Fotografia 26), ancestrais de Maureen. As precárias condições de vida apresentadas em suas imagens são irreverentes, de uma luz sombria como em Maureen Bisilliat, incisivas ao retratar as tragédias humanas, e ao mesmo tempo destemidas em suas andanças na busca de um tema interessante como o sertão.

(Fotografia 25) Mineradores ingleses, (Fotografia 26) Costa leste, Sussex, 1931-35. Bill Brandt. Inglaterra. 1957. Bill Brandt.

Fotografias de Bill Brand: Disponível em:. Acesso em: 30 de abr. 2012.

4.4 - Maureen Bisilliat: “a cigana irlandesa”

Maureen Bisilliat ao conhecer Guimarães Rosa toma conhecimento das imagens que até então desconhecia acerca de suas origens, seu universo imaginário, que remetia ao mundo irlandês. Guimarães afirma que ela não teria problema em enveredar pelo sertão, compreender o sertão, sendo irlandesa, como não teria dificuldades também para compreender a obra Grande Sertão: Veredas. 95

É a obra literária que vai despertar em Maureen Bisilliat suas ancestralidades latentes. Em entrevista concedida a Antonio Gonçalves Filho, do jornal O Estado de São Paulo (2010), diz que: ―Guimarães Rosa não só a recebeu como disse à ‗cigana irlandesa‘ – apelido cunhado por ele – que seus ancestrais iriam ajudá-la a entender o sertão mineiro‖101. Coincidentemente, nesse mesmo ano de 1963, é naturalizada brasileira. Rosa lhe disse, acerca de ―sua ligação espiritual com o País, ―que assim como‖102‗o sertanejo brasileiro, os irlandeses vivem no essencial da terra e têm uma ligação ancestral com a palavra‘, observa Maureen Bisilliat, ―uma inglesa [...] cujos avós eram da terra de James Joyce‖ 103. A fotógrafa, apesar de ter nascido na Inglaterra, confessa que é meio britânica e meio irlandesa, pois a maioria de sua família por parte de mãe é de origem irlandesa, e explica que a linguagem poética do irlandês tem muita semelhança com a do sertanejo. Esse fato vai se tornar um referencial muito forte em sua vida. É notória, portanto, a presença de Guimarães Rosa em sua vida: é ele quem faz uma ponte entre suas origens irlandesas e o sertão brasileiro. Em entrevista concedida a Célia Demarchi (2010), Maureen Bisilliat esclarece que:

Fui somente uma vez para lá, com minha mãe, quando tinha 16 ou 17 anos. A Irlanda se firmou como referência para mim através de Guimarães Rosa. Em nosso primeiro encontro, depois que li Grande Sertão: Veredas e decidi conhecer os Gerais, ele traçou para mim um roteiro de viagem, a seu ver uma coisa simples, mas, ―sendo irlandesa‖, como ele disse então, eu iria me enfronhar lá dentro, descobrir e compreender aquelas populações. Por quê? Os irlandeses, e não só os autores irlandeses, são como são porque são irlandeses, ou seja, têm a palavra na raiz da língua, como Guimarães, sendo mineiro, tinha essa riqueza. [...] Na Inglaterra chamam os irlandeses popularmente de saints and sinners (santos e pecadores) e eles têm the gift of the gab, quer dizer, são os papas do papo, porque eles são soltos, falam, falam e falam, até o ponto de irritar. Eles nasceram com a fluência da palavra, mas uma palavra inventiva, irreverente, às vezes, e tradicionalmente criativa. Guimarães Rosa era mineiro de uma pequena cidade, mas se tornou um autor de projeção internacional. E é claro que ele conhecia bem a literatura irlandesa.104

Falar de suas raízes, sua linguagem, do falar poético do sertanejo igual ao irlandês, do seu lado cigano, de suas imagens que ela acredita resgatar, algo então constatado com a obra de Guimarães Rosa, era algo mítico e remetia ao imaginário de Gilbert Durand, devido às imagens latentes reveladas pelo escritor. E que apontava na maioria das vezes também para o

101 FILHO, Antonio Gonçalves - O Estadão de S. Paulo. Olhar de ''cigana irlandesa'' . Acesso em: 30 abr. 2012. 102 Grifo nosso. 103 (op. cit.) 104 DEMARCHI, Célia. Como espelhar o inexplicável?Jornal O Estado de São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 7 jul. 2011. 96 universo feminino. É nítida a relação do elemento imaginário hídrico, o rio, tão presente no itinerário do jagunço Riobaldo, com o elemento terra e o próprio sertão.

Para que uma obra seja consubstanciada em um dos elementos, não é suficiente sua citação, a sua simples aparição. Por exemplo, o aparecimento do rio em uma obra não é suficiente para que sua ―matéria poética‖ seja a água. A garantia só poderá ocorrer com a manifestação do elemento água sob diferentes formas, o que poderá desencadear suas manifestações cósmicas. Isso que poderíamos identificar como fatores ecoantes, Bachelard irá chamar isso ―ressoantes‖, os quais dão densidade à ―matéria poética‖ de uma obra, funcionando como dinamizadores dessa matéria. Comporta-se como ressoador de água na obra rosiana tudo aquilo que de alguma forma remete ao imaginário hídrico, por exemplo: o cavalo, o caramujo, a canoa, o buriti, a chuva, a nuvem, a vaca, a lua, o orvalho, o cágado, o jacaré, o suor, a sede, o sangue, a neblina, o feminino, etc. (SOBRINHO apud VIGGIANO, 2007, p.10)

É notória a presença desses dois elementos na obra rosiana, o que procuraremos ressaltar na obra de Bisilliat: a terra e a água, em complemento entre imagens e texto, desaguando numa terceira margem. Uma síntese do que pretendemos constatar em nossa tese: o imaginário feminino do sertão, presente em Rosa, e consequentemente em Maureen Bisilliat. Como todo fotógrafo carrega consigo alguns conceitos na construção de suas imagens, Maureen Bisilliat denominou Equivalências fotográficas a toda a sua produção imagética relacionada ao universo literário, ao trabalhar com diversos escritores brasileiros, como João Cabral de Melo Neto, , Euclides da Cunha, Adélia Prado, Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade. A proposta é então apresentada na folha de rosto, ao trabalhar com a obra cabralina, e diz: ―Um traçado de equivalências é a proposta da coleção Poemas do País, onde texto e imagem se justapõem, por consonância ou dissonância se agregam, e se encontram em equidistância de vôo‖ (MELO NETO, 1984, p. 7). O repórter do jornal O Estado de São Paulo, Antonio Gonçalves Filho (2010), esclarece que o termo equivalência é originário do fotógrafo Alfred Stieglitz:

A expressão "equivalência fotográfica" foi emprestada do fotógrafo norte-americano Alfred Stieglitz (1864-1946), visionário que introduziu a vanguarda europeia em Nova York e rejeitou, como Maureen, o uso da fotografia como ilustração. Foi por acreditar na autonomia da linguagem fotográfica que ela pegou uma Rolleiflex na mão nos anos 1950, época em que desembarcou em Nova York para estudar com Morris Kantor.105

105 FILHO, Antonio Gonçalves - O Estadão de S. Paulo. Olhar de ''cigana irlandesa'' . Acesso em: 30 abr. 2012. 97

O conceito de equivalência refere-se a possibilidades criativas de representação da imagem através do fotógrafo, de modo que a fotografia não é apenas um recorte da realidade, um mero documento da realidade. Maureen Bisilliat, ao associar uma imagem literária com sua produção fotográfica, gera uma imagem para o leitor em que nessa associação é criada uma metáfora, de modo que leitor e fotógrafo compartilham de uma mesma sensação pessoal. Lima; Silva (2001) esclarecem: ―A fotografia expressa um certo grau de Equivalência quando o espectador vê na imagem algo correspondente a uma sensação de seu interior, ou seja, os sentimentos do fotógrafo são similares ao do seu espectador, criando assim um sentimento conhecido, uma equivalência de sensações e estímulos‖ (LIMA; SILVA, 2001, p. 8). No entanto, o conceito pode ser bem mais amplo no que se refere ao fazer poético na fotografia, se compararmos a Stieglitz. Um projeto paralelo, por ela denominado ―Equivalências Fotográficas‖ – que tem semelhança no conceito de que imagens não servem como mera ilustração. ―Os Equivalentes de Alfred Stieglitz ‖106 não trabalham com a relação literatura e fotografia; esse fotógrafo vanguardista, defensor da fotografia como arte e divulgador das ideias modernistas em Nova Iorque, ao representar a imagem de nuvens entre os anos de 1925 a 1934 (cerca de 220 imagens), culmina por produzir as primeiras imagens fotográficas abstratas, creditando a autonomia destas, no mundo das artes, como sua representação própria. O crítico fotográfico Rubens Fernandes Junior (2003) nos fala também com relação às escolhas dos temas fotográficos de Maureen Bisilliat, mencionando a brasilidade e aproximando a literatura e a fotografia, desde que ficou impregnada daquele mar de palavras, quando conheceu a obra rosiana, embrenhando-se no sertão mineiro em busca de seus personagens e paisagens. Nas palavras de Fernandes Junior:

Maureen Bisilliat acredita que sua paixão pelo país a aproxima de ser ‗Oxumaré, aquele misto de arco-íris e serpente, que não é divindade, mas um ponto de ligação entre fragmentos de um mundo plural que se espelha em outros fragmentos seus equivalentes‘. Por isso sua preferência sempre foi temas esquecidos, escondidos nesse imenso país como vestígios que precisam ser elaborados cuidadosamente para serem flagrados em sua essência. Suas imagens são fantasmagóricas, realizadas nas baixas luzes, com foco crítico, buscando ora a singeleza de um povo, ora sua dignidade perdida. Ela trouxe para a fotografia a possibilidade de entendermos o país através dos clássicos da literatura, percorrendo a dimensão poética da realidade brasileira dada pelos escritores brasileiros. Maureen tem a ousadia de trabalhar a partir da ambiguidade poética e passional dos personagens para criar imagens que trazem o instante fugidio do fazer

106 ESTEVES, Juan. A cor mais brasileira! Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2012. 98

fotográfico. A transformação das cores, a imprecisão do foco, os cortes pouco convencionais, as sombras expressionistas, as imagens monocromáticas, as luminosidades exageradas, as ausências, tudo isso para elaborar um fio condutor lógico e mágico, que é a sua sintaxe, na maioria das vezes instigante, para provocar inquietações (FERNANDES JUNIOR, 2003, p. 154).

Há fotografias por vezes fantasmagóricas, com variação extrema de luzes, baixas e altas, muitas vezes imagens fora de foco, com cortes fora dos padrões convencionais, como veremos em imagens analisadas mais adiante na obra A João Guimaraes Rosa. ―Para desenvolver seu trabalho fotográfico, Maureen Bisilliat prefere a solidão e o isolamento, pois defende a ideia de que para criar é preciso sofrer um corte radical, cortar as amarras e as referências e apreender o que está a sua frente‖ (idem, ibidem). A própria fotógrafa acredita que não possui uma síntese perfeita ao enquadrar um instante, como em trabalhos de grandes fotógrafos, e talvez isto seja a sua diferença, acrescida da noção de que a fotografia é uma linha tênue de ligação com a pintura por onde começou, ao estudar luz, cor, corpos e movimento. Mais adiante enveredou pelo vídeo, pois não acredita em uma única arte, como a pintura, fotografia e vídeo, mas em uma como prolongamento da outra.

4.5 - A imaginação fotográfica na literatura rosiana

Em Sagarana, constatamos elementos que remetem à presença da fotografia. No conto ―A volta do marido pródigo‖, Lalino, conhecido como Laio, compara os retratos das mulheres bonitas vistas nos calendários com as mulheres da vida, ―gringas‖ do Rio de Janeiro, mesmo nunca tendo ido lá. Tem lugar lá, que de dia e de noite está cheio de mulheres, só de mulheres bonitas! ... Mas, bonitas de verdade, feito santa moça, feito retrato de folhinha... Tem de toda qualidade: francesa, alemanha, turca, italiana, gringa ... É só a gente chegar e escolher... Elas ficam nas janelas e nas portas, vestindo de pijama... de menos ainda ... Só vendo, seus mandioqueiros! Cambada de capiaus (ROSA, 2009, p. 63).

No conto ―Minha Gente‖, do mesmo livro Sagarana, Maria Irma, numa cena de ciúmes, percebe no olhar de narrador, o Doutor, o seu olhar de raiva, irado com o comportamento da prima, que recebe presentes e livros de rapaz da vila, pois pensava que ele era o noivo dela. Maria Irma, indignada, diz: - Por que você nunca me disse que gostava de ler, Maria Irma? ! - Pois você nunca me perguntou... - Esse rapaz é que é o seu noivo? - Não, não é este... E, também, noiva eu não sou, você bem sabe! - Não fique zangada comigo, prima... - Não estou... Mas você não deve me olhar assim... Parece que quer me fotografar... (ROSA, 2009, p. 155). 99

O sentido empregado pela protagonista para o termo fotografar sugere um misto de raiva e desejo por Maria Irma, um olhar de fotógrafo, imobilizando ―uma cena rápida em seu tempo decisivo‖ (BARTHES, 1984, p. 55), que suscita apropriar-se da coisa fotografada. Ainda, em Sagarana, no conto ―São Marcos‖, dentre tantos empregos do retrato, temos a descrição da imagem refletida em um lago que se assemelha a uma imagem fotográfica invertida:

Tiro o paletó e me recosto na coraleira. Estou entre o começo do mato e um braço da lagoa, onde, além do retrato invertido de todas as plantas tomando um banho verde no fundo, já há muita movimentação. A face da lagoa em que bate o sol, toda esfarinhenta, com uma dança de pétalas d'água, vê-se que vem avançando para a outra, a da sombra. E a lagoa parece dobrada em duas, e o diedro é perfeito. - Chuá... (ROSA, 2009, p. 181)

No mesmo conto, o retrato também é utilizado com sendo a representação de um boneco para a prática de bruxaria denominada de vodu, com uma fita nos olhos colocada por Mangolô, um ―preto velho‖ feiticeiro que habitava o arraial de Calango-Frito. O narrador José chama-o de ―cachaceiro‖, ―vagabundo‖ e ―feiticeiro‖; daí Mangolô pretende cegá-lo, através de um feitiço. José, mesmo cego, consegue ir até a casa de Mangolô, obrigando-o a desfazer o feitiço. - Pelo amor de Deus, Sinhô... Foi brincadeira... Eu costurei o retrato, p'ra explicar ao Sinhô.. . - E que mais? ! - Outro safanão, e Mangolô foi à parede e voltou de viagem, com movimentos de rotação e translação ao redor do sol, do qual recebe luz e calor. - Não quis matar, não quis ofender... Amarrei só esta tirinha de pano preto nas vistas do retrato, p'ra Sinhô passar uns tempos sem poder enxergar... Olho que deve de ficar fechado, p'ra não precisar de ver negro feio'... (ROSA, 2009, p. 187).

Em Corpo de baile, encontra-se Catraz assim como Lalino em Sagarana, muitos homens são fascinados por retratos de mulheres. Com o personagem, Seu ―Alquiste” ou ―Ouquiste”, um quase alemão, ―alemão-rana‖ de ―O recado do morro‖, uma das sete novelas que compõem o volume Corpo de Baile, de Guimarães Rosa, enquanto ele viaja ao interior do Sertão, ―transpassava a tiracol as correias da codaque [...]‖ (ROSA, 2001, p. 28) e fotografa quase tudo que vê. Ainda no mesmo conto, o personagem bocó Catraz se apaixona por um retrato de uma mulher em um calendário, ―qual era uma estampa de calendário de parede, a figura de uma moça civilizada, com um colar de sete voltas, o Catraz pelo retrato pegará paixão‖ (ROSA, 2001, p. 56). A novela ―Campo Geral” inserida na obra Manuelzão e Miguilim, conta a seguinte estória: ―Um certo Miguilim morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe muito, muito depois da Vereda-do-Frango-d‘Água e de outras veredas em nome ou pouco 100 conhecidas, em ponto remoto, no Mútum‖ (ROSA, 2001, p. 27). A obra narra o mundo através do olhar de uma criança, Miguilim. Silva (2001) afirma que nesta obra: [...] é determinante a narração rica em detalhes. O espaço – o Mutum e o mundo – assim como a apresentação das cenas, dos fatos e dos outros personagens da narrativa é revelado pelo olhar do protagonista de forma detalhada criando imagens ricas em precisão. Guimarães, graças à utilização dessa minuciosa e cuidadosa descrição, consegue produzir um efeito quase fotográfico sobre as paisagens e as cenas em Miguilim. Assim, o leitor não só consegue visualizar a narrativa mas também tem a impressão que está presente, observando as cenas e as personagens reveladas (SILVA, 2001, p. 134).

O leitor consegue perceber através da narrativa imagética da obra, nuances que remetem a uma possível realidade, ambientes onde ocorreram as ações por seus protagonistas, apesar de fictícia. Como nos fragmentos apresentados:

Tio Terêz trazia um coelho morto ensanguentado, de cabeça para baixo. A cachorrada pulava, embolatidos, tio Terêz bateu na bôca do Caráter, que ganiu, saíam correndo embora aqueles todos quatro: Caráter, Catita, Soprado e Floresto. Seu-Nome ficava em pé quase, para lamber o sangue da cara do coelho (ROSA, 2001, p. 40).

Miguilim olhava. A roça era um lugarzinho descansado bonito, cercado de varas, mò de os bichos que estragam. Mas muitas borboletas voavam. Afincada na cerca tinha uma caveira inteira de boi, os chifres grandes, branquela, por toda boa-sorte. E espetados em outros paus de cerca tinha outros chifres de boi, desemparelhados, soltos: - que ali ninguém botava mau olhado! As feições daquela caveira grande de boi eram muito sérias (ROSA, 2001, p. 81).

Do homem da canoa, do conto ―A terceira margem do rio‖, de Primeiras Estórias, os ―homens do jornal [...] tencionaram tirar retrato dele‖ (ROSA, 2009, p. 421) e não conseguiram. Esses homens fotógrafos do jornal, fotojornalistas, devido à estranheza do fato, tentam registar esse acontecimento insólito, digno de uma notícia, por remeter à solidão e à loucura de um pai que abandona a família e parte em busca de si mesmo em uma canoa, sem nunca abandoná-la em um rio. Em ―O espelho‖, também da obra Primeiras Estórias, em frente ao espelho, a lógica da veracidade não existe. Assim como uma imagem fotográfica, seu referente é ―sempre um duplo, emanação física do objeto, vestígio da luz, marca e prova do real. Entretanto, por mais fiel que a fotografia possa ser, ela não é, efetivamente, aquilo que registrou‖ (SANTAELLA, 2012, p. 78). A verdade não está no espelho, mas em seu reflexo; o que vemos é uma representação da realidade, um mundo situado num plano bidimensional, similar a uma fotografia. Não podemos determinar com exatidão a fidedignidade e os mistérios das pessoas através das aparências: 101

O espelho, são muitos, captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem fiel. Mas − que espelho? Há-os ―bons‖ e ―maus‖, os que favorecem e os que detraem; e os que são apenas honestos, pois não. E onde situar o nível e o ponto dessa honestidade ou fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, Somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o comprovam. Respondo: que, além de prevalecerem para as lentes das máquinas objeções análogas, seus resultados apóiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam superporem-se aos dados iconográficos os índices do misterioso (ROSA, 2009, p. 446).

Em Grande Sertão: Veredas, no transcorrer da obra, o narrador questiona o que realmente é a vida ou o que é a verdade dela. A imagem apresentada no espelho revela a diferença e a não aproximação, o afastamento e a revelação entre a realidade e o seu reflexo, o dentro e o fora, uma metáfora existencial, através da imagem refletida. As imagens e seus reflexos traduzem toda uma complexidade transcendental que esse conto possui. O narrador indaga ironicamente ao leitor sobre a verdade: ―O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha ideia do que seja na verdade – um espelho?‖. Existe uma tentativa por parte de narrador de eliminar o duplo, até encontrar a essência das coisas:

O senhor, mire e veja, o senhor: a verdade instantânea dum fato, a gente vai departir, e ninguém crê. Acham que é um falso narrar. Agora, eu, eu sei como tudo é: as coisas que acontecem, é porque já estavam ficadas prontas, noutro ar, no sabugo da unha; e com efeito tudo é grátis quando sucede, no reles do momento. Assim. Arte que virei chefe. Assim exato é que foi, juro ao senhor. Outros é que contam de outra maneira (ROSA, 2001, p. 625).

Em outra passagem no mesmo romance, o narrador observa as fotografias, como se estivesse vendo e reconhecendo os marginais através das imagens destes, como se fossem retratos falados. A fotografia, como enfatiza Barthes: ― ‗Olhem‘, ‗Olhe‘, ‗Eis aqui‘; ela aponta com o dedo um certo vis-à-vis [...].‖(BARTHES, 1984, p. 14). ―Vinha reolhando, historiando a papelada – uma a uma as folhas com retratos e com os pretos dos dedos de jagunços, ladrões de cavalos e criminosos de morte‖ (ROSA, 2001, p. 19). A fotografia retrato, não podendo negar as suas semelhanças, como se ―A direção do meu olhar é o seu dedo apontando‖ (PESSOA, 2010, p. 49), dá indícios das feições do pai Selorico Mendes impregnadas no suposto filho, Riobaldo. ―Mas, um dia – de tanto querer não pensar no princípio disso, acabei me esquecendo quem – me disseram que não era à-toa que minhas feições copiavam retrato de Selorico Mendes‖ (ROSA, 2001, p. 167). A imagem retrato pode apontar para uma realidade, nua e crua; e quase nunca não podemos negar que de fato existiu tal realidade, pois as indicialidades apontam para elas, devido à tamanha semelhança que a fotografia pode transmitir.

102

4.5.1 - Um exemplo do verbal e do não verbal em Primeiras Estórias

No livro Primeiras Estórias107é possível observar diversas ilustrações na capa, nas orelhas e no miolo. Ao longo dos anos, devido às publicações com diferentes edições e editores, ―encontramos variantes significativas que podem levar a leituras diferentes do texto‖ (SANVERINO, 2012, p. 2). No índice da obra, um item relevante: ocorre o encontro de duas linguagens, a verbal e a não verbal, desde o título da obra, relacionadas com as imagens, bem como o de cada conto em si. Ao analisar o conto ―Substância,‖ da mesma obra, Agustini e Rodrigues afirmam sobre essas ―duas escritas presentes em Primeiras Estórias‖ que:

[...] constituídas de materialidades distintas, de natureza verbal: as estórias em palavra, e não-verbal: as ilustrações criptográficas que indicam o volume dos 21 contos integrantes de Primeiras Estórias -, postas em relação tendem a apagar as fronteiras que supostamente as delimitam, de modo a configurar certa unidade ao volume e, assim se dando, pôr em relevo o modo singular com que o tema ali é abordado, traduzido e transcrito (AGUSTINI; RODRIGUES, 2013, p. 1-2).

(Figura 5) – Índices da obra Primeiras Estórias108

107 Na primeira edição da José Olympio, em 1961, Guimarães Rosa trabalhou junto com o editor, fez a escolha da capa e do índice ilustrado. Note-se que a capa impressa contém não apenas o título, o nome do autor, a editora, etc. Há também aí uma escolha de imagem. No caso, Rosa escolheu desenhos de feição popular (que lembram ilustrações de cordel) e que ilustram cada uma das histórias. Não se trata, no entanto, de mera redundância em relação ao texto, tornam-se uma espécie de comentário visual dos contos. O mesmo comentário pode ser feito em relação ao índice ilustrado, em que cada linha sintetiza o conto indicado com uma sequência de pequenos desenhos, que mais do que ilustração redundante, acrescentam algo que não está no conto (SANVERINO, 2012, p. 2-3) . 108 (ROSA, 2001, p. 235-36.)

103

O índice (Figura 5) aparece como um código cifrado que acompanha cada título do conto, logo abaixo, numa indicialidade visual, através de desenhos. Rosa deixa pistas acerca do que trata o livro, por meio de uma espécie de estruturação de cada conto: ―Texto e livro se correspondem. O conto a ser lido depois de o livro aberto e sua figuração ilustrada no índice contêm aproximações razoáveis‖ (SANVERINO, 2012, p. 5), ilustrações confeccionadas por sua filha, Vilma Guimarães Rosa109. Primeiramente, é apresentado o símbolo do anel de Möebius, no primeiro conto da obra, ―As margens da alegria‖, podendo ser usado para representar o infinito, símbolo recorrente na obra rosiana, como no final de Grande Sertão: Veredas. Logo em seguida, uma sucessão de três arvores em pé, estando a quarta árvore tombada. Na sequência, aparece uma ave, um peru, a figura de uma pessoa, que pode ser um menino, retornando a uma árvore tombada; em seguida, mais três arvores em pé e, por fim, um símbolo indicando um elemento feminino, signo astrológico do planeta Terra, um círculo com uma cruz acima, conforme nos mostra a figura abaixo (Figura 6):

(Figura 6) – Índice referente ao conto ―As margens da alegria‖, do livro Primeiras Estórias110

Analisando a estrutura do conto, primeiramente ocorre uma viagem de avião, a chegada ao acampamento de engenheiros que constroem a ―grande cidade, capital‖, o encontro com a ave, o peru, em seguida um passeio de jeep para onde seria o sítio do Ipê, o

109 Em muitas oportunidades, Vilma Guimarães Rosa afirma a ligação de seu pai com as imagens, fixas ou em movimento, e a fascinação dele pelos desenhos. É assim que, para as Primeiras Estórias, teria sido Rosa mesmo, segundo Vilma, quem esboçou as ilustrações que fazem parte da orelha do livro em suas primeiras edições. ―Em Primeiras Estórias, o índice é ilustrado, conto por conto, linha por linha, segundo esboços de sua mão, [a de Guimarães Rosa] habilmente redesenhados por Luís Jardim‖ (ROSA, 1983, p. 79). Há, porém, uma divergência a respeito dos desenhos-miniatura do livro, a se levar em conta certa nota editorial inserida pela José Olympio Editora em algumas edições. Diz a nota: ―Capa de Luís Jardim. Primeiras Estórias apresentam a novidade de um índice ilustrado: a pedido do autor, Jardim fez desenhos-miniatura com paciência chinesa para cada uma das estórias, compondo o conjunto de bonito índice geral‖ (SANVERINO, 2012, p. 5-6). 110 (ROSA, 2001, p. 235).

104 retorno à casa, restos mortais da ave, saída para a cidade, e finalmente o encontro com outro peru. O símbolo da fita de Möebius representa o ciclo infinito da vida – o nascer, crescer, reproduzir e morrer e os acasos da vida. A descoberta e a alegria de encontrar com uma ave, um peru imperial. As árvores poderiam ser aquelas que ele, o menino, tanto admira na sua imensidão, observando quando estava voando no avião, ou as árvores frondosas da mata fechada: ―A mata, as mais negras árvores, era um montão demais o mundo‖ (ROSA, 2009, p. 404). Tanto pode representar a simbologia da terra, como também a simbologia de Möebius na imensidão do mundo. ―Margens da alegria, a pequena luz, frágil e vacilante, circundada pelo negror do mundo. Nesse caminho, as imagens parecem comentar o conto, quando colocam o Menino e o Peru no centro‖ (SANVERINO, 2012, p. 9). Os 21 contos que compõem Primeiras estórias, em sua integralidade, demandam interpretação: ―Uma interpretação que se mantém, contudo, em aberto; constituindo lugar de ancoragem para produção de (re)leituras, ou seja, novos movimentos de deciframento-ciframento: edições de outros enigmas‖ (AGUSTINI; RODRIGUES, 2013, p. 5). Na leitura dos contos observamos a riqueza de detalhes, que dão mais sentido às imagens criadas em seu índice, às similaridades e estranhamentos que vão se entrelaçando, de modo a propiciar um sentido múltiplo a cada processo de leitura. Apesar de Guimarães Rosa não ter utilizado imagens fotográficas relacionadas à sua obra, essa análise da utilização da gravura serve para demonstrar a capacidade inventiva e contemporânea desse escritor em ativar e permitir a inclusão de outros meios conjugados ao seu texto, propiciando mecanismos diferentes de leitura.

4.5.2 - A imaginação fotográfica e o verbal e não verbal em Grande Sertão: Veredas

Em Grande Sertão: Veredas, ―o Conceiço guardava numa sacola todo retrato de mulher que ia achando, até recortado de folhinha ou de jornal (ROSA, 1967, p. 242). As imagens fotográficas exercem sobre esses personagens tamanha atração, como algo que possibilitasse uma certa posse da realidade, apropriando-se desse universo em forma de fotografias, ―pseudo-presença assim como também uma prova de ausência. [...] podem incitar o desejo da maneira mais direta e utilitária, como quando uma pessoa coleciona fotos de exemplos anônimos do desejável, como modelos nus, com o fim de ajudar a masturbação‖ (SONTAG, 2004, p. 27). 105

Sontag faz referência ao universo fotográfico como sendo uma maneira de possessão da realidade, uma sensação de poder e domínio sobre o fotografado. Apesar de o real não poder ser possuído, no entanto, através das imagens isso é possível. O momento de puro ato fotográfico acontece em pleno sertão, quando um homem tira uma fotografia de Riobaldo e Fafafa. Seria uma foto de ―lambe-lambe‖111, revelada em poucos instantes, uma fotografia 3x4 para documento, apesar de ser denominado de instantâneo: ―tirar um instantâneo‖. Diadorim firme triste, apartado da gente, naquele arraial, me lembro. Saí alegre do bordel, acinte. Depois, o Fafafa, numa venda, perguntou se não tinham chá de mate seco, comercial; e um homem tirou instantâneo nosso retrato. Se chamava o lugar: São João das Altas (ROSA, 2001, p. 267).

É que, apesar de ser uma fotografia posada, não deixa de ter uma fração de tempo congelado em um negativo nos tempos idos da fotografia analógica. Pose, atualmente, é mais uma convenção social para parecer bem na foto, do que propriamente uma dificuldade tecnológica, como nos tempos em que para se tirar uma fotografia poderia levar alguns segundos de tempo. ―Como numa fotografia, o fato, quando vira narrativa, é congelado para ser melhor apreciado‖ (REINALDO, 2008, p. 7). Em Grande sertão: Veredas o próprio interlocutor não se revela, pois o seu olhar, a maneira como o narrador se comunica com ele, poderia muito bem ser o de um fotógrafo, etnólogo ou mesmo Um turista aprendiz, como em Mário de Andrade. A presença do artefato fotográfico pode ainda ser os indícios da passagem do sertão arcaico para um sertão moderno. O romance oferece muitas possibilidades de leituras, como uma obra dantesca a oferecer um grande arsenal de metáforas e tantas outras expressivas representações narradas de uma grande geografia épica e mítica com possiblidades pictóricas de um sertão que é o mundo. Artistas outros na contemporaneidade continuaram a fazer uso dessa técnica artística denominada gravura, por meio de trabalhos inseridos nos livros, nas mais diversas formas de apresentação, como João Guimarães Rosa soube fazer uso da ilustração112 de seus trabalhos

111 Uma das primeiras referências sobre a atuação destas profissionais nos remete ao aparecimento dos fotógrafos ambulantes nas festas e feiras populares europeias, espaços onde a fotografia revelava a grande amplitude dos usos e das funções sociais da imagem técnica. Desde seus primeiros processos desenvolvidos, a fotografia sempre participou das tradicionais festas populares, transformando-se em uma atração mágica que também refletia o avanço científico de uma época. Ao lado de cinematógrafos, dioramas e estereoscópios, o retrato fotográfico produzido pelos fotógrafos ambulantes atraía a atenção do público dessas feiras (ÁGUEDA, 2008, p. 65). 112 Muitas cartas de Guimarães Rosa trazem a marca da ilustração. Elas usam o desenho como artifício expressivo de particular ―poder sugestivo‖, segundo o próprio escritor. Ao longo de contos e no grande romance do escritor, as belas paisagens literárias desenhadas em palavras envolvidas por livros singularmente ilustrados articulam o visível da letra impressa ao visual das imagens olhadas, o que faz de Rosa um escritor atento, em sua época, a seus leitores possíveis e à relação expressiva que textos e livros podem estabelecer. A ilustração que se 106 em parceria com artistas plásticos brasileiros filhos de italianos, a exemplo de Napoleon Potyguara Lazzarotto, conhecido como Poty, que trabalhava com o desenho, a gravura, o muralismo e a cerâmica.

No período histórico em que Rosa publicou existiam diversas editoras que ilustravam a capa e o miolo dos livros — por exemplo, Agir, Melhoramentos, Civilização Brasileira, Martins, José Olympio, Ler, Pongetti, Edições O Cruzeiro — além de ser um período em que se destacam ilustradores com status bastante próximo ao do autor, com direito a crédito na folha de rosto do livro e como atrações a mais do produto: é o caso de ilustradores como Luís Jardim, Tomás Santa Rosa, Percy Lau, Percy Deane, Geraldo de Castro, Bianco, Magnavita, Poty e outros (FAGUNDES, 2003, p. 2).

Poty tinha interesse em gravuras, e gostava de trabalhar em preto-e-branco, além de executar trabalhos cuja temática fosse a representação que retratasse cenas do cotidiano, tornando-se reconhecido, entretanto, quando passou a dialogar com a literatura, trabalhando com alguns escritores como Dalton Trevisan, Manuel de Barros, , Jorge Amado, Gilberto Freyre, Raul Bopp, dentre outros. Nas obras de João Guimarães Rosa ilustradas por Poty, como em Sagarana, muitas vezes o ilustrador nem sabia o seu devido significado. Rosa solicitava que ele fizesse em cada parte do livro determinadas imagens, e quando Poty o questionava sobre algumas figuras específicas, o escritor desconversava, mantendo o enigma em segredo, como nas capas e em algumas parte do miolo da obra. Poty conta que: ―Ele exigia, por exemplo, que a imagem de um sapo fosse colocada dentro de um círculo, em cima de um poste de telégrafo. Eu nunca entendi isso, mas fiz.‖113 Poty ainda ilustrou capas de outras obras de Rosa, como: Corpo de Baile, Magma, primeiro livro de poemas de Guimarães Rosa, No Urubuquaquá no Pinhém, Manuelzão e Miguilim, Noites do Sertão, Tutameia e Primeiras Estórias. O designer Ivens Fontoura afirma que ―em Grande Sertão: Veredas, Poty permaneceu por cerca de oito horas conversando com o autor, que lhe contou tudo sobre a história que inventara, permitindo ao artista penetrar a fundo no seu projeto de criação‖114. Poty conseguia interpretar, traduzindo com suas ilustrações exatamente o que o autor dizia, confeccionando desenhos de mapas, animais, árvores como o buriti, figuras de mulheres, nomes de lugares e rios por onde Riobaldo e Diadorim passaram em suas viagens pelo sertão de Minas Gerais, Bahia e Goiás. Nessa longa conversa, ―Poty foi desenhando o que Rosa lhe narrava. Ao final da história, Rosa percebeu que o desenho realizado reproduzia torna marca imperecível das primeiras edições dos livros do escritor possui um correlato ao longo de sua escrita literária. Entre palavras e imagens, Rosa dá a ler e a ver seus textos e livros (FAGUNDES, 2003, p. 2). 113 (FONTOURA. Disponível em: . Acesso em: 26 set. 2013). 114 (FONTOURA. Disponível em: . Acesso em: 26 set. 2013). 107 exatamente o que ele imaginava. Esse desenho era o mapa de onde ocorreu a história do Grande Sertão.‖115 Poty conseguia traduzir numa perfeita adequação em imagens o que o escritor narrava em palavras (Figura 7).

O narrador rosiano tem portanto uma relação ambivalente com a geografia: por um lado, apóia-se na topologia real, poroutro lado, inventa o espaço de acordo com seu projeto ficcional. Esse uso livre dos dados geográficos é plenamente confirmado pelo mapa de Poty. Trata-se de uma representação do sertão que mistura elementos da cartografia que mistura elementos da cartografia convencional (rios, montanhas, cidades) com desenhos ilustrativos (vegetação, animais, homens, edifícios, objetos) figurações de seres fabulísticos (demônios, um monstro) e emblemas esotéricos. (BOLLE, 2004, p. 54).

(Figura 7) - Capa e orelhas de Grande Sertão: Veredas116

Um estudo acerca da folha de rosto e orelhas do livro Grande Sertão: Veredas foi realizado por Marcelo Marinho (2001). Nessa análise perigráfica e paratextual, Guimarães Rosa orienta o ilustrador Poty no sentido de espalhar diversos elementos sobre a superfície da folha, elementos imagéticos que remetem ao universo da literatura. Sugerindo com isso as múltiplas possibilidades palimpsésticas de leituras da obra rosiana, leituras caracterizadas

115 (FONTOURA. Disponível em: . Acesso em: 26 set. 2013). 116 Disponível em: . Acesso em: 26 set. 2013.

108 como sendo oriundas de diversas camadas sobrepostas de significações, tais ilustrações ―orientam, sob forma de enigma, um certo percurso de leitura sobre as veredas do Sertão [...] são de fundamental importância para a leitura de palimpsestos metapoéticos do romance‖ (MARINHO, 2001, p. 18). Embora muitas edições tenham retirado tais ilustrações, o que revela um desrespeito às exigências do autor. Os elementos pictóricos apresentados em Grande Sertão: Veredas, requisitados por Guimarãs Rosa, ―trazem uma série de figuras que deixam perplexos até mesmo o mais ingênuo dos poentos caminheiros rosianos‖. Nessas versões que obedecem à proposta do escritor,

[...] imagens que remetem, em principio, a um percurso definitivamente sertanejo: rios, peixeis , canoas, ramos de plantas, palmeiras cavalos e bois, serpentes, aves, casebres e estrelas. O leitor sente-se confortado pela identificação das figuras e emite um prolongado suspiro de alívio. Entretanto cuidado, senhor: implacáveis crotalídeos e felídeos estão à espreita nessas labirínticas veredas. (MARINHO, 2001, p. 69).

O ilustrador Poty, seguindo à risca as propostas do autor, apresenta em suas orelhas um traçado com linhas em diagonais, como representando as latitudes e longitudes, assemelhando-se às antigas cartas topográficas que demonstram detalhes do relevo com seus acidentes naturais e artificiais que compõem a superfície terreste. No entanto, tais linhas enviesadas, como num tabuleiro de xadrez, sugerem um local de intensa instabilidade e conflitos; é um claro indício de que a relação do narrador rosiano com a geografia deve ser vista com um olhar oblíquo‖ (BOLLE, 2004, p. 59), como a ―advertir, brincando com os sentidos nos campos do senhor: atenção, passante; consumir este ‗mapa‘ com moderação, pois o excesso pode ser prejudicial à saúde‖ (MARINHO, 2001, p. 69). O pesquisador Marcelo Marinho (2001) observa que a sequência pictórica como as que representam os cavaleiros nas orelhas da obra Grande Sertão: Veredas parecem pinturas rupestres ou mesmo o representar de forma similar aos enigmáticos hieróglifos egípcios, ou aqueles que surgiram na Mesopotâmia, com sua escrita cuneiforme, fazendo menção ao processo de nascimento e formação gradual da escrita no Ocidente. Essas são representações utilizadas pelo escritor Guimaraes Rosa, ―por intermédio de seu pretextual paratexto sertanejo, que é o objeto de sua literatura e o próprio processo de formação de palavras, prática linguística à qual o romancista aplicou-se com afinco para o aprimoramento da expressão poética‖ (MARINHO, 2001, p. 76). 109

Com isso, o universo sertão torna-se ele mesmo o universo das letras ou o próprio nascimento da linguagem, como enfatiza Marinho (2001). Pois tais ilustrações pedidas por Guimarães Rosa a Poty apontam para o processo do surgimento e elaboração da escrita ocidental.

[...], os meus livros, em essência, são 'anti-intelectuais' – defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da inspiração sobre o bruxolear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, da megera cartesiana. Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upaxinades, com os Evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff – com Cristo, principalmente.

[...] Eu, quando escrevo um livro, vou fazendo como se o estivesse “traduzindo”, de algum alto original, existente alhures, no mundo astral ou no “plano das ideias”, dos arquétipos, por exemplo (BIZZARI, 2003, p. 90; p. 99).

5 - O IMAGINÁRIO FEMININO EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS – A GRANDE MÃE, O MITO DA CRIAÇÃO DO MUNDO EM ROSA

As mulheres nas obras de Rosa são representadas dos mais diversos modos. São prostitutas, donzelas, meninas, adivinhas, feiticeiras ou bruxas, velhas, mulheres casadas, sábias, loucas, guerreiras, assassinas, santas, compondo múltiplos arquétipos do universo feminino. Todas essas representações de mulher podem ser relacionadas com o mito da criação, o mito cósmico da geração do mundo, relacionado com o mito da Grande Mãe. Este se acha situado no universo do Imaginário de Gilbert Durand, denominado de Regime Noturno da imagem117, que remete, por sua vez, às figuras femininas pertencentes ao universo terreno e ao mesmo tempo aquático: ―As águas seriam, pois, as mães do mundo, enquanto a terra seria a mãe dos seres vivos e dos homens‖ (DURAND, 2002, p. 230). As águas ainda estariam relacionadas com o início e o que diz respeito ao universo cósmico, enquanto a terra, com o início e o fim do homem e de todos os outros seres vivos. Em sua representação arquetípica, a Grande Mãe possui um caráter duplo, positivo ou negativo. Apesar de pertencer ao mundo das trevas associado ao Regime Noturno, universo da noite, das profundezas ctônicas, ela pode apresentar um caráter de conservação, proteção, nutridora de vida; no entanto, pode também ser destruidora, promover a morte, ser repulsiva. Como afirma Neumann:

O caráter elementar do Feminino estará sempre em evidência quando o ego e a consciência ainda forem infantis e não-desenvolvidos, e o inconciente for

117 O Regime Noturno ―tem a ver com a dominante postural, a tecnologia das armas, a sociologia do soberano mago e guerreiro, os rituais da elevação e da purificação subdivide-se nas dominantes digestiva e cíclica, a primeira subsumindo as técnicas do continente e do habitat, os valores alimentares e digestivos, a sociologia matriarcal e alimentadora, a segunda agrupando as técnicas do ciclo, do calendário agrícola e da indústria têxtil, os símbolos naturais ou artificiais do retorno, os mitos e os dramas astrobiológicos‖ (DURAND, 2002. p. 58). Diferentemente do Regime Diurno, considerado como o regime da antítese, dos opostos, de valores intelectuais, da razão científica, de modo que na ação ou efeito de diferenciação e análise, ―a imagem é consagrada ao fundo das trevas sobre o qual se desenha o brilho da luz‖ (DURAND, 2002, p. 68). 111

dominante. É por isso que o cárater elementar contém, quase sempre, um determinante ―maternal‖. Em relação a ele, o ego, a consciência e o indivíduo, quer sejam masculinos ou femininos, são infantis, dependentes e submissos. A característica marcante do caráter elementar de forma positiva como provedor de alimento, de proteção, e de calor e, de forma negativa, como repúdio e privação (NEUMANN, 1996, p. 36).

Essa associação de elementos demonstra o amálgama existente entre elas, água e terra: de um lado, um simbolismo aquático, de outro, um simbolismo telúrico (ctônico). ―E, como a água é a substância que melhor se oferece às misturas‖ (BACHELARD, 1998, p. 105), é, portanto, o melhor elemento para se misturar com a terra. Dessa mistura, o simbólico feminino é desvelado através da condição biológica com a fecundação, o ato de dar a vida, amparo e nutrição; sua relação é direta com as formas da natureza, com a transformação cíclica da natureza, que ocorre interligada com as fases da lua. ―O corpo da mulher é um mar sobre o qual atua o movimento lunar das ondas. Indolentes e adormecidos, seus tecidos adiposos encharcam-se de água, e depois se enxugam de repente na maré alta hormonal‖ (PAGLIA, 1992, p. 22). A enorme proximidade e a incontrolável relação entre os arquétipos femininos e a natureza são significativas, povoando a mitologia mundial. ―A tradição deles passa quase intacta dos ídolos pré-históricos, através da literatura e da arte, para o cinema moderno‖ (PAGLIA, 1992, p. 24). Em muitas culturas ancestrais é possível encontrar informações que possibilitam crer que a mulher está associada ao elemento terra e à fecundidade. Imagens, pequenos amuletos estilizados, vêm confirmar isso. As pequenas esculturas denominadas de Vênus, a primeira (Fotografia 27), Vênus de Hohle Fels (c. 35.000 a.C. ), e a segunda (Fotografia 28), Vênus de Willendorf (c. 24.000 a.C.), que muitos estudiosos acreditam tratar-se do elemento feminino. Elas não possuem face, nem pretendem representar um ―retrato falado‖ ou mesmo uma identificação realista, como as máscaras mortuárias118ou o retrato fotográfico. As Vênus, estatuetas, cabendo geralmente na palma da mão, são amuletos estilizados da imagem feminina; sua identidade não importa. ―A ausência do rosto é a impessoalidade do sexo e da religião primitivos. Ainda não há psicologia nem identidade, porque não há sociedade, coesão‖ (PAGLIA, 1998, p. 61). Elas representavam possíveis rituais relativos à mãe natureza, com a finalidade de ajudar os homens a sobreviverem na diversidade. Sua utilidade era a de invocar e garantir a

118 Os primeiros retratos nasceram do contato entre matérias, pois existia uma função ritualística de se tirar o molde em gesso do rosto do morto, que consistia no que Georges Didi-Huberman denomina ―uma imagem matriz produzida por aderência, por contato direto da matéria (o gesso) com a matéria (do rosto)‖. Fato que ex- plicita um procedimento da confecção de máscaras mortuárias (OLIVEIRA, 2009, p. 85). 112 fecundidade, num sentido mais amplo, assegurando a fartura na coleta de frutas, raízes, na pesca e caças futuras. Esses pequenos talismãs eram possivelmente carregados em cordões, durante a era do Paleolítico, período em que os homens ainda eram nômades, vivendo em pequenos grupos.

(Fotografia 27) Vênus de Hohle Fels (Fotografia 28) Vênus de Willendorf

Trata-se da representação da figura feminina em geral, com seios, barrigas, nádegas e tronco demasiadamente exagerados, numa época em que os habitantes da Terra ainda aguardavam a invenção da pecuária e agricultura. Isso só acontece no momento em que eles passam a se fixar e conviver em pequenos grupos para dar início à sociedade. Tal representação é uma ânsia pela sobrevivência. As pequenas Vênus, que podiam variar de tamanho, como a de Vênus de Hohle Fels, que possui cerca de 6 cm, enquanto a Vênus de Willendorf tem 11, 5 cm, podem ser encontradas nas mais remotas regiões e em quase todos os continentes. Confeccionadas com os mais variados materiais — madeira, osso, pedra, marfim —, constituem uma representação da natureza de forma truculenta e rude, estando o homem preso ao ventre da mãe. Há o afastamento do homem diante da natureza das imagens da Grande Mãe, como no judaísmo, em que a religião, através do Livro Sagrado, exalta o culto de Deus como criador do mundo. Em seu primeiro livro, o Gênesis, o homem foi gerado à Sua imagem e semelhança, criado do barro e ganhando vida pelo sopro divino. Todo o desenvolvimento dos conceitos do homem racionalista nega o culto da Grande Mãe. Como afirma Paglia ao se referir à Vênus de Willendorf:

No Ocidente, a arte é um apagamento dos excessos da natureza. A arte ocidental estabelece definições. Isto é, traça linhas. É este o âmago do apolinismo. Não há retas na Vênus de Willendorf, só curvas e círculos. Ela é a ausência de formas da natureza. Está atolada no pântano miasmático que identifico como Dioniso. [...] A 113

Vênus de Willendorf, curvada, desleixada, suja, está no cio, no útero da mãe natureza. Nunca mandes perguntar por quem dobra a bela. Ela dobra por ti (PAGLIA, 1992, p. 63).

Durand (2004) denomina essa arbitrariedade a ―resistência do imaginário‖, o iconoclasmo, em que as imagens são abolidas dos templos religiosos. Com a influência religiosa cristã, quando elas ressurgem, a representação da natureza feminina é excluída de seu sentido primitivo, tornando-se símbolo do grande mal. Como na figura de mulher, Eva, portadora do pecado, aquela que seduz Adão, ela é a própria encarnação do demônio. Além do monoteísmo da Bíblia, é adicionado o racionalismo aristotélico, empregado pela escolástica, à doutrina das universidades a serviço da Igreja, dando seguimento à continuidade racional cartesiana, desde Descartes até os nossos dias. O imaginário e seus regimes assemelham-se às categorias apolínea e dionisíaca de Nietzsche. O mundo apolíneo refere-se ao mundo racional, ordeiro e consciente, enquanto o dionisíaco é concebido como um mundo da desordem, do caos e do inconsciente, relacionando-se respectivamente aos regimes Diurno e Noturno. Quando analisa o feminino na narrativa rosiana, em Grande Sertão: Veredas, Karina Barsan Rocha ao estudar a relação amorosa entre Riobaldo e Diadorim, diz que a condição do feminino ―é quase sempre representada dentro da lógica racionalista, fálica e totalizante que perpassa nossa sociedade — ainda — patriarcal, que sente medo e necessidade de subjugar a mulher‖ (ROCHA, 1998, p. 8). Não é nosso objetivo discutir exaustivamente as questões femininas por esse viés, no entanto, são as mulheres que vão transformar a vida de Riobaldo, através de seus amores e suas formas de amar, o amor como um sentimento talvez pouco compreendido, e no entanto, humanizador. São as figuras femininas que, no transcorrer da obra, ―colaboram todas para a promoção ou aprimoramento do masculino, do viril representado pelo personagem Riobaldo que, seguindo a sua travessia, atinge pelas mãos dessas mulheres a transformação que o conduzirá à ascensão social e espiritual‖ (ALVES, 2010, p. 3). São elas que constituem os diversidades impostas, com as lutas sangrentas constantes entre jagunços, como assinala Wille Bolle (2004) ao analisar Grande Sertão: Veredas como ―o romance de formação do Brasil‖:

A ―constante brutalidade‖ de guerras dos jagunços, ―o dia-a-dia de violência e privações a vida rotineira no meio de homens broncos, simplórios e sem rumo, esse mundo-cão presente em todas as páginas de Grande Sertão: Veredas, seria insuportável se não passasse por elas também o sopro de um principio mais elevado e transformador: A Beleza e o Amor, [...] (BOLLE, 2004, p.195).

114

São essas questões trabalhadas no capítulo seguinte, uma reflexão sobre as nuances particulares dos amores vividos por Riobaldo, três fases amorosas representadas por personagens femininas em sua vida: Nhorinhá, Diadorim e Otacília.

5.1 - Os amores de Riobaldo em Grande Sertão: Veredas

Em Grande Sertão: Veredas, suas mulheres são diversas, no entanto, as que merecem maior realce são três, as mesmas que compõem a tríade amorosa com Riobaldo: Nhorinhá, Diadorim e Otacília, tão bem delimitadas por Benedito Nunes no ensaio ―O amor na obra de Guimarães Rosa‖ (1976). Não que as outras mulheres não sejam importantes, porém essas três atuam quase que constantemente entrelaçadas durante toda a obra, perante Riobaldo. ―São três amores, três paixões qualitativamente diversas, que chegam por vezes a interpenetrar-se.‖ (NUNES, 1976, p. 144). O amor é tema que segundo Nunes (1976) ocupa um lugar privilegiado na poética de Guimarães Rosa. Desde o encontro fortuito e as lembranças de Riobaldo com Nhorinhá, um amor carnal; em seguida, nas lutas na companhia de Diadorim, um amor caótico; e culminando com seu casamento com Otacília, um amor espiritual.

O jagunço Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas, conhece três espécies diferentes de amor: o enlevo por Otacília, moça encontrada na Fazenda Santa Catarina, a flamejante e dúbia paixão pelo amigo Diadorim, e a recordação voluptuosa de Nhorinhá, prostituta, filha daquela Ana Duzuza, versada em artes mágicas (NUNES, 1976, p. 144).

Ainda complementando a composição da obra, podemos encontrar mulheres como a Bigri, mãe de Riobaldo, Maria Mutema, Maria Leôncia, Izina Calanga, Ana Duzuza: ―dona adivinhadora da boa ou má sorte da gente‖, ―dona-joana‖, dona Próspera Blaziana, dona Adelaide, dona Dindinha, mulher de Mestre Lucas, dona Abadia, Rosa‘uarda, mocinha Miosótis, ―senhora dona‖, Maria da Cruz, dona Mogiana, Hortência, com alcunha de Ageala, Maria-da-Luz, Maria: ―dita por aceita alcunha a Maria do Padre”, dona de um seô Hermógenes, Maria Deolinda Rebelo, dentre outras.

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5.1.1 Nhorinhá

Nhorinhá é a uma das primeiras personagens. Bastante analisada por diversos teóricos, é utilizada também na representação do universo rosiano por Maureen Bisilliat. Mais adiante faremos uma análise da relação entre a imagem criada pela fotógrafa e as frases do autor escolhidas por ela para dialogar com suas imagens fotográficas. A personagem Nhorinhá119 surge, pela primeiria vez, de forma breve, na obra Corpo de Baile, e logo em seguida também aparece no romance Grande Sertão: Veredas; sua participação, no entanto, dessa vez é bastante significativa. Diferentemente da primeira, sua participação é evidente em toda a obra: basta perceber que essa personagem ―Nhorinhá‖ aparece em trinta passagens da obra. Desde o momento ―esponsal‖, no início do livro: ―Se chamava Nhorinhá. Recebeu meu carinho no cetim do pêlo – alegria que foi, feito casamento, esponsal‖ (ROSA, 2001, p. 40), até o final da obra, quando Riobaldo a relembra. O ―esponsal‖ sela um compromisso, um enlace entre duas pessoas, Riobaldo e Nhorinhá, o que descarta um encontro meramente fugaz, sem acordo nenhum. Nhorinhá faz parte do livro No Urubuquaquá, no Pinhém; mais precisamente da novela ―Cara-de-Bronze‖, em que é apresentada com as mesmas características de prostituta que serão mantidas mais adiante no romance rosiano. Sua rápida aparição diz do seu ofício:

Mesmo no caminho, meando terras de bons matos, se encontrara com a moça Nhorinhá — ela com um chapéu de palha-de-buriti, maciamente, de três tamanhos, de largura na aba, e uma fita vermelha, com laço, rodeando a copa. De harmamaxa: ela vinha sentada, num carro-de- bois puxado por duas juntas, vinha para as festas, ia se putear, conforme profissão. A moça Nhorinhá era linda – feito noiva nua, toda pratas-e-ouros – e para ele sorriu, com os olhos da vida (ROSA, 2001, p. 161-162).

Diferentemente da breve aparição em ―Cara-de-Bronze‖, em Grande Sertão: Veredas Nhorinhá assume papel importante no relacionar-se com Riobaldo. Apesar do aparente descompromisso com Riobaldo, seu amor é diferente dos ―primeiros amores, com a Miosótis e a Rosa‘uarda. Estas últimas passagens são relatadas pelo herói como se tivessem sido experiências apenas superficiais‖ (RONCARI, 2002, p. 1). Mesmo que de forma breve e fugaz, no pequeno lugarejo chamado de Aroeirinha, é um amor que ele jamais retira de sua memória, com várias aparições na obra e com diversas recordações da meretriz filha, de Ana Duzuza.

119 Nhorinhá aparece em Corpo de Baile e em Grande Sertão: Veredas. Ambas as obras são lançadas em 1956, no entanto a primeira é lançada em janeiro, e a outra em seguida, no mês de maio do mesmo ano. O próprio autor mais adiante desmembra o livro Corpo de Baile que, a partir da 3ª edição, é dividido em três tomos: o primeiro livro, denominado de Manuelzão e Miguilim, lançado em 1964, e em 1965, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão. 116

Morais (2011), em seu artigo Mulheres: a magmática pulsação da escrita, faz uma reflexão psicanalítica acerca da importância do feminino e suas nuances no conceito de travessia da obra rosiana, como podemos perceber com Angelina e Sariema, duas prostitutas disputadas num leilão como objetos de desejo em Sagarana, no conto ―A Hora e Vez de Augusto Matraga‖. Nhorinhá também faz parte ―das mulheres faladas, como se diz no sertão mineiro, objetos de troca, de comércio, de lances‖ (MORAIS, 2011, p. 202). Nhorinhá, fugacidade impregnada como uma imagem em sua parede da memória, uma imagem que não se apaga em seus pensamentos, pois Riobaldo se refere a ela de forma recorrente em toda a obra: ―Nhorinhá é a prostituta, com quem Riobaldo passa uma noite, nunca mais a encontra, mas também dela nunca mais se esquece‖ (ROCHA, 2006, p. 110). Ou ainda, como diz João Guimarães Rosa: ―Então eu entrei, tomei um café coado por mão de mulher, tomei refresco, limonada de pêra-do-campo. Se chamava Nhorinhá. Recebeu meu carinho no cetim do pêlo – alegria que foi, feito casamento, esponsal. Ah, a mangaba boa só se colhe já caída no chão, de baixo... Nhorinhá‖ (ROSA, 2001, p. 40). Essa figura feminina tem sensualidade peculiar, um amor quase que descompromissado, um relacionamento rápido de Riobaldo com a prostituta, durante uma de suas passagens pelos vilarejos. Apesar de livre, Riobaldo recorda dela durante toda a obra, demonstrando com isso a sua importância na vida dele, um amor carnal, decorrente da ordem natural das coisas, de um encontro espontâneo, instintivo e descomplicado, como bem enfatiza Benedito Nunes (1976) no seu trabalho ―O amor na obra de Guimarães Rosa‖, ao apresentar as variadas formas do pulsão erótica das personagens Diadorim, Nhorinhá e Otacília, de Grande Sertão: Veredas. Assim descreve esse amor: ―é o amor em Nhorinhá, simples e natural, que nasceu de um abraço voluptuoso e foi crescendo na memória de Riobaldo, em torno da recordação do prazer sensível que lhe proporcionara, até converter-se numa forte paixão, secretamente cultivada...‖ (NUNES, 1976, p. 144). Apesar de seu afeto por Nhorinhá, aquela que Riobaldo ―bem queria‖ (ROSA, 2001, p. 47), por vezes ele tenta negar esse amor, como ao comentar que ele foi algo bom e passageiro: ―Gosto de minha mulher, sempre gostei, e hoje mais. Quando conheci de olhos e mãos essa Nhorinhá, gostei dela só o trivial do momento‖ (ROSA, 2001, p. 133-134). Em termos arquetípicos, Nhorinhá pode assumir o caráter de Eva120, num sentido instintivo, e também devido à condição de ser a primeira mulher da tríade iniciática de

120 Eva é a Mulher, e nenhum versículo foi mais parafeaseado do que aqueles do Gênesis consagrados à primeira mulher: os que descrevem seu nascimento, sua união com Adão, sua tentação pela serpente, sua culpa, 117

Riobaldo (Nhorinhá, Diadorim e Otácilia); Nhorinhá poderia ser Afrodite121, na condição da beleza corporal e do apelo sexual, representando assim uma forma biológica e instintiva do prazer sexual, um arquétipo associado à sexualidade promíscua. A filha de Ana Dazuza será um dos estímulos primeiros na vida amorosa de Riobaldo e resultará na busca do seu verdadeiro amor. Num rito de passagem, o ato sexual com Nhorinhá poderá ser lido como um processo de experiência na busca ao longo do tempo por um amor sagrado, que culminará com o amor de Riobaldo por Otacília, ―puro, quase desencarnado beatífico, que a imagem etérea de Otacília nele produzia.‖ (idem, ibidem). ―Em Guimarães Rosa, o amor carnal gera o espiritual e nele se transforma‖ (NUNES, 1976, p. 157). O afastamento de Nhorinhá faz parte de um ritual iniciático na vida de Riobaldo, pois ―o acesso à vida espiritual implica sempre a morte para a condição profana‖ (ELIADE, 1992, p. 96). O amor de Otacília pertence então a um plano mais elevado, espiritual, sem nenhuma alusão à sexualidade; no entanto, é o lado profano que é rememorado continuadamente por Riobaldo através de suas lembranças de Nhorinhá, sendo impossível suprimi-lo por completo, mesmo estando com Otacília. Essas memórias recorrentes são sempre descritas com delicadeza por Riobaldo, e em nenhum momento é mencionado o pagamento feito a ela como prostituta; ela, ao contrário, é que oferece uma prenda a Riobaldo. Se considerarmos Nhorinhá em sua condição terrena, profana ou dionisíaca, num plano inferior, situamo-la numa espécie de Purgatório, porque, para Riobaldo alcançar outros níveis, ―é preciso que antes rasteje e se ponha em contato com variadas solicitações do mundo sensível, onde o impulso sexual recebe das coisas, e sobretudo dos corpos belos, a força de que necessita para elevar-se‖ (NUNES, 1976, p. 154). Nhorinhá remete a uma sociedade arcaica, naqueles idos em que os homens primitivos carregavam os seus amuletos como imagens femininas, como as Vênus de Willindorf e a de Hohle Fels, vistas anteriormente, num misto de arte e magia, representando ―um símbolo de abundância numa era de fome‖ (PAGLIA, 1992, p. 61). No contexto do sertão arcaico, Nhorinhá, a filha de curandeira, comporta-se como uma iniciada nos rituais de magia, e apesar sua condenação, seu nome e seu destino; três aspectos assim se acham mesclados: a mulher, a vítima, a mãe (BRUNEL, 2005, p. 300). 121 Afrodite é a deusa do amor. Mas esta resposta é um tanto inquietante, pois faz desaparecer todo elemento mítico. O nome próprio, ao ceder lugar a uma abstração, pode ser empregado como simples metonímia. ―Ele conhecia uma e outra Vênus‖, diz Ovídio de Tíresias (Metamorfoses, livro III, v. 323). Tendo sido sucessivamente homem e mulher, ele conhecia o amor como o sentem os dois sexos. [...] em o Banquete de Platão (180): Hesíodo conta que Afrodite nasceu no mar, onde caíra o sêmen do Urano quando foi castrado por seu filho; Homero ignora essa história e faz de Afrodite a filha de Zeus e Dione. Pode-se interpretar esta diferença opondo-se uma Afrodite Urânia, isto é, Celeste, a uma Afrodite Pandêmia, ou seja, Popular, sendo talvez esta tradução um contrassenso. Admitamos que por ser mais antiga a Afrodite Celeste é a mais digna de representar o amor espiritual; a Popular limita-se à obra da carne (BRUNEL, 2005, p. 20-21).

118 de prostituta, assume também uma condição hierática, como uma sacerdotisa do amor que entrega a Riobaldo um talismã; esse amuleto, diferentemente dos tempos remotos da humanidade, não garante o sustento, no entanto, vai garantir a sua sobrevivência pelo sertão adentro.

5.1.2 Diadorim

Diadorim atua de forma bem intensa em toda a obra, aparecendo cerca de 643 vezes, desde as páginas iniciais da obra, quando o narrador o evoca durante sua travessia: ―Conforme pensei em Diadorim. Só pensava era nele.‖ (ROSA, 2001, p. 23), até as páginas finais, que culminam com a sua morte e o sofrimento de Riobaldo, o amigo, o companheiro das jagunçadas sertão adentro:

E, o pobre de mim, minha tristeza me atrasava, consumido. Eu não tinha competência de querer viver, tão acabadiço, até o cumprimento de respirar me sacava. E, Diadorim, às vezes conheci que a saudade dele não me desse repouso; nem o nele imaginar. Porque eu, em tanto viver de tempo, tinha negado em mim aquele amor, e a amizade desde agora estava amarga falseada; e o amor, e a pessoa dela, mesma, ela tinha me negado. Para que eu ia conseguir viver? Mas o amor de minha Otacília também se aumentava, aos berços primeiro, esboço de devagar. Era. (ROSA, 2001, p. 621).

A morte de Diadorim revela então a sua identidade como Maria Diodorina da Fé Bettancourt Marins, que se disfarça de Diadorim e assume os trejeitos masculinos do pai, desde a infância, para poder infiltrar-se no mundo dos jagunços, protegendo a sua identidade feminina. Ele é responsável pela introdução de Riobaldo no universo do sertão, ―uma selva tenebrosa122‖, assim como quando Dante percorre o Inferno em sua jornada até o Paraíso. Sobre essa figura enigmática, Diadorim é peça-chave condutora da história de Riobaldo. Wille Bolle (2004) observa que:

É uma presença tão marcante e tão enigmática, que em todos os debates sobre o romance sempre surge alguém querendo saber sobre o seu significado. De fato essa figura, a paixão do protagonista-narrador Riobaldo é o cerne e o substrato emocional do romance. Não é por acaso que na França, onde a reflexão sobre o amor faz parte da cultura, o livro tenha sido publicado com o título Diadorim (BOLLE, 2004, p. 195).

122 DANTE, Alighieri. A divina comédia. In:Acesso em 30 de julho de 2012.

119

Se em Benedito Nunes (1976) a preocupação são as nuances do amor, para Willi Bolle, ―Diadorim é médium artístico que faz com que a historia da paixão amorosa de Riobaldo por Diadorim não seja apenas um ato de memória afetiva individual, mas também um retrato da sociedade, através de um profundo mergulho na língua (BOLLE, 2004, p. 224). Bolle faz uma breve excursão na temática amor; esse objeto, por sua vez, é conjugado em tríplice aliança com a coragem e o medo, sentimentos entrelaçados. Esses dois últimos, ―o par dialético medo e coragem, proporcionam um conhecimento- chave tanto do cárater de um indivíduo quanto de uma unidade de uma cultura de uma época. [...] Na sociedade sertaneja existe um verdadeiro culto em torno da valentia. [...] e, por fim, ―o amor, que, dos gregos a Dante, é uma força que move o universo‖ (BOLLE, 2004, p. 230). A guerreira transvestida, Diadorim, a mais valente e destemida. Filha de Joca Ramiro, que assim como o pai não tem medo de nada, torna-se uma guia inicíatica de Riobaldo, que, por não saber nadar, tinha medo de se afogar, quando os dois se conheceram pela primeira vez em uma travessia de canoa no rio São Francisco. Diadorim diz: ―Carece de ter coragem...‖; ao contrário do suposto pai de Riobaldo, seu padrinho Selorico Mendes, que era por demais medroso. E o diálogo continua entre os dois durante a travessia do rio chamado de Janeiro, rio que desemboca num outro rio, o São Francisco. Riobaldo pergunta então a Diadorim:

―Você nunca teve medo?‖ — foi o que me veio, de dizer. Ele respondeu: — ―Costumo não...‖ — e, passado o tempo dum meu suspiro: — ―Meu pai disse que não se deve de ter...‖ Ao que meio pasmei. Ainda ele terminou: — ―... Meu pai é o homem mais valente deste mundo (ROSA, 2001. p. 122).

Diadorim aparece primeiramente na vida de Riobaldo na figura de Reinaldo durante essa travessia de canoa, quando os dois eram bem jovens; esse ―Menino diferente, tem a estatura de um ser mítico, fabuloso, que parecia igualar-se ao próprio Rio em sua força, em seus segredos‖ (NUNES, 1976, p. 160). O rio, elemento mítico materno, ―Bachelard irá chamar ‗ressoadores‘, os quais dão densidade à ‗matéria poética‘ de uma obra, funcionando como dinamizadores dessa matéria‖ (BACHELARD apud VIGGIANO, 2007, p. 10). Viggiano (2007) ainda defende que a água e suas imagens são a principal matéria do sertão rosiano. Essa mesma água que emerge como de um rio subterrâneo que faz exteriorizar e faz brotar o amor entre os dois, nessa natureza líquida se faz presente desde o primeiro encontro.

A projeção de Diadorim pelo narrador, através da natureza começa desde o primeiro encontro na travessia do Rio São Francisco, que simboliza um ritual de passagem na vida do narrador, revelado por ele quando diz ―O rio Chico partiu minha vida em duas partes‖. Essa divisão da vida do narrador também se liga ao encontro com 120

Diadorim, o antes e o depois de conhecê-lo. Assim, o rio passa a ser o símbolo do amor de Riobaldo e em que ele projeta a imagem de Diadorim, relacionando-a as qualidades e peripécias do rio, deixando refletir através dele, os aspectos físicos, comportamentais e também o sentimento que surge entre os dois amigos. (ALMEIDA, 2012, p. 20-21).

A concepção hídrica, do rio e córregos, remete à figura feminina e sua sexualidade, à sinuosidade do rio, que mais parece uma cobra rastejante do sangue menstrual; ―é a marca de nascença do pecado original. [...] Ela é o jardim e a serpente. [...] o diabo é uma mulher. A natureza é serpentina, um leito de cipós entrelaçados, plantas trepadeiras e rastejantes, tateantes dedos dormentes de fétida vida orgânica‖ (PAGLIA, 1992, p. 22). Na concepção de Gaston Bachelard (1998), a água, um dos elementos mais femininos se comparado aos demais, que se amalgama com a terra, gera vida, ―a profunda maternidade das águas. A água faz incharem os vermes e jorrarem as fontes. A água é uma matéria que vemos nascer e crescer em toda parte. A fonte é um nascimento irresistível, um nascimento contínuo‖ (BACHELARD, 1998, p. 29). A água, em sua representação através do rio, pode significar a passagem para outro mundo, ―é o elemento da morte‖ (BACHELARD, 1998, p. 89); é no Paredão que tudo termina, no confronto entre Diadorim e Hermógenes, também local da morte de Medeiro Vaz, nas proximidades do rio do Sono. Não somente o rio, mas também outro elemento aquático associa-se à morte de Medeiro Vaz: a chuva, bem como na morte da mãe de Riobaldo, a Brigri. Vejamos estas passagens:

A tarde foi escurecendo. Ao menos Diadorim me chamou adeparte; ele tramava as lágrimas. – ―Amizade, Riobaldo, que eu imaginei em você esse prazo inteiro...‖ – e apertou minha mão. Avesso fiquei, meio sem jeito. Aí, chamaram: – ―Acode, que o chefe está no fatal!‖ Medeiro Vaz, arquejando, cumprindo tudo. E o queixo dele não parava de mexer; grandes momentos. Demorava. E deu a panca, troz-troz forte, como de propósito. Uma chuva de arrobas de peso. Era quase sonoite. Reunidos em volta, ajoelhados, a gente segurava uns couros abertos, para proteger a morte dele. Medeiro Vaz – o rei dos gerais ; como era que um daquele podia se acabar?! A água caía, às despejadas, escorria nas caras da gente, em fios pingos. Debruçando por debaixo dos couros, podia-se ver o fim que a alma obtém do corpo. E Medeiro Vaz, se governando mesmo no remar a agonia, travou com esforço o ronco que puxava gosma de sua goela, e gaguejou: – ―Quem vai ficar em meu lugar? Quem capitaneia?...‖ Com a estrampeação da chuva, os poucos ouviram. Ele só falava por pedacinhos de palavras. Mas eu vi que o olhar dele esbarrava em mim, e me escolhia. Ele avermelhava os olhos? Mas com o cirro e o vidrento. Coração me apertou estreito (ROSA, 2001, p. 95).

Minha mãe morreu – apenas a Bigri, era como ela se chamava. Morreu, num dezembro chovedor, aí foi grande a minha tristeza (ROSA, 2001, p. 126).

121

O termo também pode representar ―o leite da natureza Mãe, [...]. Na vida de todo homem, ou pelo menos na vida sonhada de todo homem, aparece a segunda mulher: a amante, ou a esposa. A segunda mulher vai também ser projetada sobre a natureza. Ao lado da mãe- paisagem tomará lugar a mulher-paisagem‖ ( BACHELARD, 1998, p. 135), o que remete às circunstâncias da passagem entre Nhorinhá e Otacília, já apresentada por Benedito Nunes. Essas projeções poderão ter interferência ou superposição de uma em relação à outra; apesar de Otacília se sobrepor à projeção de Nhorinhá, tais projeções são bem diferenciadas, e as poucas interferências, os resquícios deixados por Nhorinhá, é que fazem elevar a passagem do amor carnal, sensual, de Nhorinhá para o espiritual, puro, de Otacília. Já do terceiro elemento, Diadorim, suas interferências são marcantes: existe um descontrole na natureza de Riobaldo, pois não consegue negar tal desejo. Uma tensão angustiante, num jogo de identificação com Diadorim, e ao mesmo tempo, repulsa. Ódio e amor se confundem, ―como revela-se o inverso de um sentimento que normalmente nasceria de arroubos de raiva – ódio sossegado, com paciência. Da mesma forma, mesmo o descanso não aponta para outra coisa senão a continuação da guerra, da violência‖ (NOGUEIRA, 2013, p. 4). Diante dos quatro elementos, fogo, terra, água e ar, é ―somente a água que pode embalar. É ela o elemento embalador. Este é mais um traço de seu caráter feminino: ela embala como uma mãe‖ (idem, p. 140). O rio, então, representa diversas possibilidades desde o início do itinerário de Riobaldo: vida e morte, amores e as fusões destes, amante, esposa, mãe. Como na passagem analisada, através da imagem da palmeira buriti: ―Namorei uma palmeira na quadra do entardecer‖ (ROSA, 2001, p. 455). Ainda às margens do rio São Francisco, região fronteiriça entre Minas Gerais e Bahia, num lugar denominado de Guararavacã do Guaicuí, Riobaldo faz uma reflexão sobre a sua vida, sobre seus amores e interditos, sua travessia, parte importante na sua vida: ―Aqui eu podia pôr ponto. Para tirar o final, para conhecer o resto que falta, o que lhe basta, que menos mais, é pôr atenção no que contei, remexer vivo o que vim dizendo‖ (ROSA, 2001, p. 292). O primeiro encontro de Riobaldo com Diadorim o deixou perturbado: um simples toque de mãos desperta o desejo em Riobaldo, ao ajudá-lo a descer o barranco em direção ao rio, o de-Janeiro. ―Pelo fato de ter Diadorim uma ordem de atributos físicos e exteriores de que Riobaldo é carente, criou-se uma situação em que os fatores de maior força solicitadora estão investidos em Diadorim‖ (FANTINATI, 1965, p. 10). Dentre as qualidades apresentadas, além da beleza e sensualidade do amigo, Riobaldo via no ―menino‖, e mesmo mais adiante, a coragem desmedida. Ainda sobre esse encontro no rio, o de-Janeiro, Uteza compara os dois meninos, oriundos de universos opostos, dizendo: ―Riobaldo de um mundo 122 feminino, passivo, onde os problemas se resolvem mediante a reza e as esmolas; o menino, de um mundo masculino, ativo, onde é pela força física que os obstáculos são vencidos [...]‖ (UTEZA, 1994, p. 256). Diadorim representa o conflito, o diabólico. Mas também ―Diadorim não era um demônio só a ser enfrentado e derrotado; era também o espelho para onde Riobaldo olhava e reconhecia tudo o que aspirava a ser e não era‖ (RONCARI, 2004, p. 204). Outra questão que deixava Riobaldo perturbado era a sua cumplicidade com Diadorim, em saber que este conhecia quase todos os seus segredos, ao contar suas histórias com seu chefe Zé Bebelo, seus companheiros jagunços. Em especial sobre Diadorim, ele relata que:

Aí o senhor via os companheiros, um por um, prazidos, em beira do café. Assim, também, por que se aguentava aquilo, era por causa da boa camaradagem, e dessa movimentação sempre. Com todos, quase todos, eu bem combinava, não tive questões. Gente certa. E no entre esses, que eram, o senhor me ouça bem: (...); o Reinaldo — que era Diadorim: sabendo deste, o senhor sabe minha vida; [...] (ROSA, 2001, p. 334).

Nesse universo nebuloso de descoberta, Riobaldo inicia uma paixão desde cedo pelo menino Reinaldo: ―um desejo proscrito‖, como enfatiza a pesquisadora Márcia Marques de Morais (2001) em seu trabalho de tese sobre a obra rosiana, uma análise num viés psicanalítico. Esse desejo, desde a mais tenra idade, dá-se em forma de homoerotismo, que é a atração entre pessoas do mesmo sexo, no caso, dois meninos, depois jagunços; no entanto, a conjunção carnal nunca será consumada. Existe um amor casto, velado, ―amor sem gozo‖, um amor condenado, que por sua impossibilidade culmina com a morte de Diadorim, numa espécie de ―a donzela guerreira‖123. No momento em que Riobaldo é ferido, recebe os cuidados de seus amigos, em especial, o cuidado delicado de Diadorim:

A ser, porque, numa volta do Ribeirão-do-Galho-da-Vida, a gente tinha topado com turma de inimigos, retornados para lá por espiação. Aí foi curto fogo, mas eu levei uma bala, de raspaz, na carne do braço, perdi muito sangue. Raimundo Lê banhou com casca de angico, na hora melhorei; Diadorim amarrou bem, com pano duma camisa rasgada. Apreciei a delicadeza dele (ROSA, 2001, p. 337).

Tal imagem remonta àquela outra imagem, a dos heróis-guerreiros, amigos e companheiros na Ilíada de Homero – Aquiles e Pátroclo. Diadorim, apesar de jagunço vingativo, deixa transparecer sua ambiguidade andrógina, percebida nas entrelinhas da obra; no entanto, o Diadorim, Reinaldo, é uma mulher travestida de uma couraça titânica, é uma

123 Ela corta os cabelos, enverga trajes masculinos, abdica das fraquezas femininas – faceirice, esquivança, sustos –, cinge os seios e as ancas, trata seus ferimentos em segredo, assim como se banha escondido. Costuma ser descoberta quando, ferida, o corpo é desvendado; e guerreia; e morre (GALVÃO, 1998, p. 12). 123 mulher blindada, ―sem gozo‖, assumindo assim um caráter apolíneo do masculino e racional. A natureza da Grande Mãe é suprimida, o ciclo de vida uterina é exilado. ―Mesmo perto, Diadorim se põe remota, e inabordável e seu mistério maior (ser uma mulher) também fica ―en souffrance‖, à espera de ser desvendado‖ (PASSOS, 2000, p. 69-70). Diadorim é a figura enigmática, comportando o duplo jogo entre anjo e demônio, masculino e feminino, divino e diabólico: [...] a ambiguidade da personagem afasta a possibilidade de interpretá-la como um andrógino que, ao mesmo tempo homem e mulher, constitui-se de duas metades harmônicas, que se completam. Se as características mais veementes no andrógino é a totalidade, e não a pluralidade, em Diadorim, o paradoxo é indissolúvel ao justapor-se o inconciliável. Diadorim é e não é, situando-se no entre lugar (ROCHA, 1998, p. 32).

A ambiguidade andrógina aparente de Diadorim assemelha-se ao mito grego de Atena Pártenos, conhecida também como Palas Atena, em sua complexa ambiguidade sexual, gerada através da partenogênese da testa de Zeus, não possuindo mãe, pois Diadorim também não conheceu a mãe. Atena é andrógina, quase uma hermafrodita, com sua armadura masculina exibindo por vezes uma fálica lança, imbatível nas guerras, vencendo até mesmo Ares ou Marte, o deus da guerra. Atena se assemelha a Ártemis; esta, por sua vez, se utiliza de arco e flechas, arisca e selvagem; considerada como a deusa da caça e da lua, ―enconta-se distante, afastada da cidade e das terras cultivadas, em plena natureza virgem. [...] Ártemis é aquela de quem ninguém se aproxima‖ (BRUNEL, 2005, p. 96). Já Diadorim empunha com desenvoltura a espingarda e, principalmente, o punhal, em sua determinação de querer punir Hermógenes pela morte de seu pai, fazendo justiça com as próprias mãos. Da mesma maneira que preserva a sua virgindade, Atena, uma mulher sem amantes e de uma castidade perpétua, exibe ―emblemas bárbaros, notadamente a cabeça de Górgona no peito e no escudo. Freud diz que esse ‗símbolo de horror‘ a torna mulher inabordável – já que exibe os aterrorizantes órgãos genitais da Mãe‖ (FREUD apud PAGLIA, 1998, p. 87). No entanto, o meio não permite a sua transparência como mulher, pois na condição de donzela guerreira, ―virgem guerreira‖124 e do amor proscrito, desvelar sua identidade é o mesmo que se entregar à condenação de morte.

124 Nunca serão elucidados os motivos do disfarce da Virgem Guerreira – deduzindo-se disso que o escritor se recusa a dar qualquer satisfação ―realista‖, solicitando pois ao leitor que, em contrapartida, procure explicações em outro nível. Sabendo que Joca Ramiro representa a Harmonia Suprema do Pai Celeste, podemos entender por que sua filha terrestre recebe uma educação viril, num universo exclusivamente masculino: ela poderá encarnar o ideal isotérico do Andrógino, [...] Nascida do Pai Ideal. Esta nova Atena cintila igual a seu genitor nos limites da existência humana, [...] (UTEZA, 1994, p. 353). 124

5.1.3 Otacília

Otacília, na forma de uma Beatriz da Divina Comédia de Dante Alighieri, estaria situada no Paraíso e guiaria Riobaldo como uma santa: “era como se para mim ela estivesse no camarim do Santíssimo‖, como bem admitia Tartarana. Nunes afirma que em: [...] Grande Sertão: Veredas, lembremos a figura de Otacília, semelhante a uma Beatriz consoladora, cuja lembrança sossegada guia Riobaldo nas passagens sombrias de uma grande aventura e nele faz nascer a expectativa de um fim plenificador de seus desejos, [...] (NUNES, 1976, p. 156).

O retorno ao Paraíso equivale ao retorno à Grande Mãe, protetora e devoradora. ―O homem que encontrou sua verdadeira esposa, encontrou sua mãe. [...] No núcleo emocional de todo casamento há uma pietà de mãe e filho‖ (PAGLIA, 1993, p. 60). O retorno à Bigri que Riobaldo já buscava nos olhos de Diadorim, com a morte dele segue sua jornada até encontrar-se com Otacília: Os primeiros Cristos cristãos e bizantinos eram viris, mas assim que a Igreja se estabeleceu em Roma, o paganismo romano residual tomou conta. Cristo recaiu no Adônis. A Pietá de Michelangelo é uma das obras de arte mais populares do mundo em parte por sua evocação da arquetípica relação com a mãe. Maria, com seu rosto de virgem imaculada, é a Deusa Mãe sempre jovem e sempre virgem. Jesus é admiravelmente epiceno, com mãos aristocráticas e pés de mórbida delicadeza. O agonizante deus andrógino de Michelangelo funde sexo e religião à maneira pagã. Chorando em seus mantos opressivos, Maria admira a beleza sensual do filho que ela fez. Os vítreos membros escorregando para baixo no colo dela, Adônis afunda de volta a terra, a força esgotada pela mãe imortal e a ela devolvida. Freud diz: ―É destino de todos nós, talvez, dirigir nosso primeiro impulso sexual para nossa mãe‖. O incesto está no início de toda biografia e cosmogonia (PAGLIA, 1993, p. 60).

Otacília é a representação de Maria, a Grande Mãe virgem, sem os vestígios arcaicos das forças da natureza; é Maria, a dogmática imaculada, benévola, sem o lado terrível da mãe universal, criada justamente pelo cristianismo para apagar os vestígios do terror da natureza profana, que é tão violenta quanto bondosa; pode ainda ser considerada como Démeter, a deusa mãe. Otacília, encarnada em Maria que recebe o seu filho, numa relação incestuosa; Riobaldo, na figura de Édipo, que vaga em sua travessia e termina encontrando sua mãe, cumprindo dessa forma o eterno ciclo da mãe natureza. Outras mulheres também são apresentadas na obra, como Maria Mutema e Ana Duzuza, esta considerada como bruxa, feiticeira125. Maria Mutema representa uma assassina

125 O mito é uma incisão feita no tempo, na história, focalizado por cada época num de seus aspectos móveis. Corresponde então ao ―horizonte de espera‖, definido, segundo Jauss, pelo medo social de determinado presente. Os componentes míticos são assim mexidos e remexidos, como demonstra C. Lévi-Strauss, e manifestam ora facetas claras, ora ocultas pela sombra. Se a feiticeira e suas múltiplas representações aparecem daí por diante como um arquétipo de nossa cultura inscrita na literatura, na pintura, na ópera, é porque ela no início teve vida; e na qualidade de ser humano 125 perfeita: mata o marido com requintes de crueldade ao despejar um filete de chumbo derretido no ouvido dele, sem deixar vestígios; em seguida, parte para o seu segundo assassinato. Dessa vez utiliza como meio a persuasão doentia, que leva o padre Ponte ao desespero, ao acusá-lo como responsável pela morte de seu marido, em confissão na igreja. Isso culmina com a morte do padre, que definha aos poucos de tanta tristeza. Maria Mutema representa, como todas as figuras do arquétipo feminino, a dualidade da mãe protetora, sendo ao mesmo tempo a mãe que acalenta e a que destrói; no entanto, por desequilíbrio, é o seu lado destruidor que sobressai. A obra deixa transparecer universos antagônicos, como os universos dos fazendeiros e dos jagunços, das prostitutas e das mulheres honradas, das solteiras e casadas, das perversas e das santas. Bem e mal convivem numa dualidade, no entanto tal dualidade rosiana não se dá através de uma visão do universo maniqueísta. ―Ele está atento em revelar como os contrários, a dualidade, marcam o equilíbrio que move as relações sociais, culturais [...]. O que é considerado bom e ruim é relativo, varia em função de um referencial‖ (MEYER, 2008, p. 194). Estabelecer um modelo seria restringir possibilidades variadas, como a multiplicidade apresentada pelo universo feminino. É ―sempre incômodo apontar na leitura de mundo, presente nos escritos rosianos, categorias estanques, opostas e incompatíveis, bem como conflitos maniqueístas ‖ (MORAIS, 2011, p. 203). As mulheres em Grande sertão: Veredas são distintas, atuando direta ou indiretamente na travessia de Riobaldo, algumas com maior intensidade nos casos do amor, três imagens bastantes diferenciadas do arquétipo feminino, com Nhorinhá, Diadorim e Otacília; outras, atuando de formas sutis, como Miosótis e Rosa‘uarda. Ao relacionar as três espécies de amor, Benedito Nunes faz referência aos conceitos platônicos pertinentes ao amor, empregados no universo rosiano: [...], colocada, porém, numa perspectiva mística heterodoxa, que se harmoniza com a tradição hermética e alquímica, fonte de toda uma rica simbologia amorosa, que exprime, em linguagem mítico-poética, situada no extremo limite do profano com o sagrado, a conversão do amor humano em amor divino, do erótico ao místico (NUNES, 1976, p. 145).

O universo rosiano se aproxima, assim, do imaginário durandiano, com relação aos critérios míticos, como as passagens entre o O Sagrado e o Profano, como aponta Mircea Eliade (1992); da concepção do universo feminino pertencente ao Regime Noturno, segundo o imaginário de Gilbert Durand (2002); ou ainda quando Nunes se refere ao sertão mítico, suspeito ou perseguido, pertence ao registo da palavra. Especialista na arte das encantações e fórmulas mágicas, a feiticeira nasce Sibila, Cassandra pagã, e morre nas fogueiras cristãs, condenada pelas palavras que foram sua arma secreta. A feiticeira, ser dotado de palavra, vive na palavra de outros contadores de história ou inquisidores (BRUNEL, 2005, p. 348). 126

―onde se desencadeia a luta entre o Bem e o Mal, inseparável das marchas e contramarchas do amor, recebe um nome definitivo, travessia‖ (NUNES, 1976, p. 149). Ou quando o amor de uma ―Eva carnal‖ (de Nhorinhá) alcança o ―amor cósmico‖ com Otacília, passando pelo caos em Diadorim. Um amor carnal convertido num amor cósmico. O que comunga à tríade peirciana, três amores interpenetrados, indissociáveis, que fazem parte da travessia sentimental de Riobaldo as figuras femininas: Nhorinhá, Diadorim e Otacília. Como no esquema triádico abaixo apresentado: Otacília/Riobaldo (Amor elevado, espiritual)

Nhorinhá/Riobaldo Diadorim/Riobaldo (Amor terreno, carnal) (Amor conflitante, proscrito)

Fonte: CUNHA, L. M. C da adaptação da relação da Tríade Semiótica de Charles Sanders Pierce (PIERCE apud JOLY, 2008, p. 33).

O antagonismo feminino, em Durand, tende a um equilíbrio de forças, mesmo que o universo feminino esteja situado no mundo das sombras, que corresponde ao universo do Regime Noturno; no entanto, tais diferenças tendem a um equilíbrio de forças e harmonia, em que tudo se completa.

5.2 – Análise da obra A JOÃO GUIMARÃES ROSA

É notório que Grande Sertão: Veredas em sua construção possui vários elementos de uma imaginação simbólica fértil, da qual a obra rosiana está impregnada desde o seu surgimento, pois que se acha repleta de diversos elementos pertencentes a muitas categorias, como os metafísicos, geográficos, semióticos, sociológicos, metafóricos, inconscientes e do imaginário, além do fato de ser caracterizada como uma obra artística, plena de uma linguagem que emprega diversos símbolos a serem traduzidos e desvendados. João Guimarães Rosa representa o sertão, suas condições humanas – o amor, o ódio, a vida, a morte, o sofrimento, a alegria, a coragem, dúvidas e medos –, numa dimensão 127 universal através de seu idioma próprio, na extensa e labiríntica narrativa do jagunço Riobaldo. Segundo Antônio Candido126, em seu ensaio ―O homem dos avessos‖, estudo sobre a obra Grande Sertão: Veredas, ―Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício; mas em cada aspecto aparecerá o traço fundamental do autor; a absoluta confiança da liberdade de inventar‖ (CANDIDO, 2012, p. 111), o que corrobora a noção de que existem resquícios, traços do escritor que impregnam a outra obra na passagem da uma releitura, de um suporte para outro. A passagem tem, no entanto, como viés a liberdade criativa no processo denominado de tradução intersemiótica, conceito visto anteriormente neste trabalho. Em nosso caso estudado, a literatura rosiana, Grande Sertão: Veredas deixa transparecer vestígios literários em sua transposição, assim como o ensaio fotográfico A João Guimarães Rosa de Maureen Bisilliat. Ao representar o universo sertanejo rosiano, a primeira questão concerne à naturalidade da imagem, sua aparente facilidade na recepção; a outra questão é acerca do entendimento de seu conteúdo. É sabido que quase sempre somos seres capazes de identificar, ao menos tentar dar significados a objetos em qualquer lugar ou contexto histórico. No entanto, revelar o significado aproximado de uma imagem muitas vezes implica falsas interpretações, por desconhecimento da causa representada. Tudo leva a crer na imagem como algo que requer todo um aprendizado, apesar de sua naturalidade aparente. O imaginário fotográfico de Maureen Bisilliat ao representar o mundo criado por João Guimarães Rosa é resultante de uma multiplicidade de fatores gerados pelas mais variadas características peculiares e únicas do universo sertanejo. Segundo Vera Casa Nova (2002): O texto rosiano re-citado, re-escrito pela imagem fotográfica desse ensaio de Maureen se dobra e incessantemente se faz infinito no sentido de uma multiplicidade crescente. As imagens fotográficas advindas de Grande Sertão, por sua vez, apresentam essa multiplicidade como dobras que se atam e desatam e reatam na medida das forças que se conjugam no ato do olhar. Como se cada corpo ali não olhasse nada, retendo (CASA NOVA, 2002, p. 107).

O sertão de Guimarães Rosa em sua obra: Grande Sertão: Veredas (2001), objeto de estudo de vários críticos, com diversos pontos de vistas, absorve vários tipos de texto, até

126 Em entrevista ao Jornal da USP, Antonio Candido declara que: ―eu queria dizer que Grande Sertão: Veredas é desses livros inesgotáveis, que podem ser lidos como se fossem uma porção de coisas: romance de aventuras, análise da paixão amorosa, retrato original do sertão brasileiro, invenção de um espaço quase mítico, chamada à realidade, fuga da realidade, reflexão sobre o destino do homem, expressão de angústia metafísica, movimento imponderável de carretilha entre real e fantástico e assim por diante‖. O super-realismo de Guimarães Rosa. Disponível em: . Acesso em 15 de junho de 2014. 128 mesmo o fotográfico, um fenômeno sugestivo, desencadeador de representações instigadoras do imaginário de quem o contempla. A primeira imagem escolhida para análise (Fotografia 29) (BISILLIAT, 1979, p. 7) é apresentada juntamente com um fragmento do texto de (ROSA, 2001). Refere-se à imagem da personagem feminina, uma das componentes da tríade amorosa na vida de Riobaldo, chamada de Nhorinhá; ao menos é o que sugere o texto em forma de legenda, ―Nhorinhá florzinha amarela do chão, que diz: – Eu sou bonita!... Nhorinhá, gosto bom ficado em meus olhos e minha boca‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 7). A fotógrafa Maureen Bisilliat retira da obra rosiana Grande Sertão: Veredas fragmentos para agregar a sua criação. Percebe-se que eles são de partes distintas da obra, uma parte quase no final do livro: ―Nhorinhá florzinha amarela do chão, que diz: – Eu sou bonita!... (ROSA, 2001, p. 534), e outra parte, utilizada como complemento de sua fotografia, lança mão do texto rosiano retirado do início para se referir à amante de Riobaldo: ―Nhorinhá, gosto bom ficado em meus olhos e minha boca‖ (ROSA, 2001, p. 133). Tal forma de pescar tais palavras, Maureen Bisilliat denomina de ―licenças poéticas‖; sua criação ou recriação depende dessa forma para compor a obra em sua totalidade, texto e fotografia.

(Fotografia 29) (BISILLIAT, 1979, p. 7).

―Nhorinhá – florzinha amarela do chão, que diz: – Eu sou bonita!... Nhorinhá, gosto bom ficado em meus olhos e minha boca‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 7).

Percebe-se também que Maureen Bisilliat não tem uma sequência semelhante aos personagens com relação ao livro, da mesma forma que remete ao tempo psicológico, como a própria obra rosiana. Manuel Antonio de Castro diz que ―o romance em sua arquitetura é 129 circular. Há um ir e vir no plano temático, temporal, espacial e narrativo‖ (CASTRO, 1976, p. 43). As legendas, frases e parágrafos são retirados dessa forma por Maureen Bisilliat para complementar as imagens. A imagem apresentada é um retrato em close de uma jovem mulher com traços mestiços, de nariz adunco, lembrando uma ascendência indígena, ou, por que não, um verdadeiro rosto da mistura brasileira, devido à miscigenação. A fotógrafa consegue captar uma imagem com espontaneidade talvez inconsciente, não privilegiando a preparação de uma grande produção fotográfica, utilizando uma iluminação natural de modo que também consegue encorajar a modelo a mostrar-se de forma natural. A imagem fotográfica é representada nesse contexto em que tudo parece ter sido conjugado através da simplicidade e da casualidade aparente. A pessoa, ― a sua Nhorinhá‖, assume feições como estivesse sido captada ao acaso por meio de sua câmera, dando a entender isso através do aspecto simples da expressão de seu rosto. Como assinala Susan Sontag: ―Tirar uma foto é ter interesse pelas coisas como elas são, [...] é estar em cumplicidade com o que quer que torne um tema interessante e digno de se fotografar – até mesmo quando for esse o foco de interesse, com a dor e a desgraça de outra pessoa‖ (SONTAG, 2004, p. 23). A mulher, uma criação/recriação por parte de Maureen Bisilliat, tendo em vista que essa personagem Nhorinhá é uma ficção, uma releitura adaptada ao olhar da própria fotógrafa, apresenta um olhar incidente para a câmera. A cumplicidade é tamanha, que possibilita perceber suas expressões faciais, remetendo a uma mulher de olhar meigo, de uma simplicidade singular; no entanto, percebe-se a relação de uma entrega aos olhares para com a fotógrafa, no que comunga com as ideias de Carlos Silva (2007) acerca de travessia amorosa e conflituosa de Riobaldo: ―Nhorinhá, uma prostituta que foge dos arquétipos pré-concebidos e torna-se personagem no entre lugar, uma ponte entre o bem e o mal para levar Riobaldo a atingir a beatitude, que só é possível com Otacília‖ (SILVA, 2007, p. 44). A filha de Ana Duzuza é uma mulher que se oferece a todos, como na pose fotográfica; a imagem de ―Nhorinhá é a mulher amante, que representa o amor carnal, mas não é casamenteira, já que é de muitos homens e sua função é dar a eles o prazer‖ (SILVA, 2009, p. 23). Segundo as próprias palavras do autor: ―Nonada! A mais, com aquela grandeza, a singeleza: Nhorinhá puta e bela‖ (ROSA, 1967, p. 311). Nhorinhá se assemelha a uma fruta, uma mangaba, que na língua tupi-guarani significa ―uma coisa boa de se comer‖, uma fruta madura que está disposta no chão, pronta para ser comida por qualquer um que se aventure a colhê-la; uma mulher moça à disposição dos 130 homens, ―uma mulher moça, vestida de vermelho‖, mostrando todo o seu viço de mocidade em seu sorriso com dentição perfeita. Riobaldo se farta de tanta degustação, se farta de Nhorinhá. O ato fotográfico nesse caso é concebido como um ato sexual de sedução, de entrega. É importantate enfatizar tal relação texto/imagem de forma quase denotativa: reconhecemos, de imediato, que tal mulher é Nhorinhá, e toda a carga semântica conotativa é enfatizada principalmente pelo seu papel social de prostituta, mesmo que Maureen Bisilliat não empregue o termo que caracteriza a sua profissão. A fotógrafa evita colocar os nomes ―puta‖, ―meretriz‘, ―militriz‖, ―prostituta‖, ―prostitutriz‖, para não impregnar diretamente a sua outra Nhorinhá, a filha de Ana Duzuza em sua outra criação, sua ficção fotográfica; no entanto, sabemos da sua profissão, pois sua obra está impregnada do universo rosiano. ―Ah, a flor do amor tem muitos nomes. Nhorinhá prostituta, pimenta-branca, boca cheirosa, o bafo de menino-pequeno‖ (ROSA, 2001, p. 263). Maureen Bisilliat emprega as palavras do escritor e escolhe ―florzinha‖ em vez de utilizar o termo fruta mangaba, um elemento que surge ―do chão‖, que se colhe no chão, como a mangaba que se colhe madura quando caída, e que só pode ser comida dessa maneira, madura caída no pé, devido à toxidez que a fruta apresenta se for colhida ainda ―de vez‖, podendo até mesmo matar caso seja ingerida verde. Norinhá, esse amor terreno, ―do chão‖, amor telúrico, carnal, podemos identificá-la como a representação da figura bíblica Eva, a grande Mãe no sentido de que representa o lado do arquétipo feminino mãe, ou ainda, Afrodite. Segundo Fontes:

O mito cósmico da criação do mundo, em que a terra, princípio das coisas, tem o sentido de vida e fertilidade. A terra, estância universal, o caos primordial, a matéria-prima simboliza a função maternal, a Grande–Mãe, opondo-se ao céu, como o princípio passivo se opõe ao princípio ativo e o aspecto feminino ao aspecto masculino..... A personagem feminina emerge na obra de Rosa com sentido de mulher-terra, ser primordial. A simbologia constante em sua criação mostra frequentemente aspectos positivos de sensualidade, na medida em que se liga à reprodução e à origem da vida (FONTES, 1990, p. 15).

Pertencente ao grupo de mulheres ou moças da vida, Nhorinhá, que acompanha uma das etapas da travessia de Riobaldo na busca de si mesmo, evidencia a sedução e a beleza, estabelecendo um elo com Riobaldo através do prazer, da sexualidade. As três formas de erotismo: dos corpos, do coração e o erotismo sagrado correspondem aos três estágios de ascensão do homem do imanente (descontínuo) ao transcendente (contínuo). O sagrado é 131 exatamente a continuidade propriciada pela morte dos seres descontínuos (FONTES, 1990, p. 109). Fontes (1990) esclarece o sentido da prostituição com caráter de sagrado, pois num mundo anterior e exterior ao cristianismo, as prostitutas remetem ao sentido de sacerdócio, diferentemente da prostituição moderna. Para Mircea Eliade, ―As prostitutas, em contacto com o sagrado habitando locais consagrados, tinham um caráter sagrado análogo ao dos sacerdotes‖ (ELIADE, 1966, p. 85). Nhorinhá é filha de uma curandeira127 e adivinha, Ana Duzuza, que pode ser considerada como (benzedeira, rezadeira, raizeira)128, uma referência ao sagrado em João Guimarães Rosa, e como tal, a filha de uma sacerdotisa: Nhorinhá, uma possível iniciante das artes misteriosas da cura através de suas rezas, que tem a incumbência de presentear Riobaldo com um dente de jacaré, um amuleto, para protegê-lo contra picada de cobra, mas que também mostra uma imagem da santa para Riobaldo beijar.

Depois ela me deu de presente uma presa de jacaré, para traspassar no chapéu, com talento contra mordida de cobra; e me mostrou para beijar uma imagem, estampa de uma santa, dita meia milagrosa. Muito foi. Mãe dela chegou, uma velha arregalada, por nome de Ana Duzuza: falada de ser filha de ciganos, e dona adivinhadora da boa ou má sorte da gente; naquele sertão essa dispôs de muita virtude. Ela sabia que a filha era meretriz, [...] (ROSA, 2001, p. 49 ).

Nhorinhá propicia a Riobaldo um ritual de iniciação à vida e ao amor, num misto de sagrado e profano na Aroeinha. Ali mesmo em pleno sertão, este processo ritualístico tem seu começo, na ―cabana iniciática‖ de Nhorinhá. Uma das formas de erotismo, o do corpo, essencialmente protegendo-o, de modo a conduzi-lo aos enfrentamentos do mundo com segurança, garantindo uma transcedência ao casar-se com Otacília.

127Além da Ana Duzuza, existem as curandeiras Maria Leòncia e Izina Calanga, que assim como Nhorinhá demonstram que existe todo um sincretismo religioso arraigado do sertão: Olhe: tem uma preta, Maria Leôncia, longe daqui não mora, as rezas dela afamam muita virtude de poder. Pois a ela pago, todo mês — encomenda de rezar por mim um terço, todo santo dia, e, nos domingos, um rosário. Vale, se vale. Minha mulher não vê mal nisso. E estou, já mandei recado para uma outra, do Vau-Vau, uma Izina Calanga, para vir aqui, ouvi de que reza também com grandes meremerências, vou efetuar com ela trato igual. Quero punhado dessas, me defendendo em Deus, reunidas de mim em volta... Chagas de Cristo! (ROSA, 2001, p. 32). 128Rezadeiras, benzedeiras e raizeiras são portadoras de uma tradição oral antiquíssima. Segundo a crença popular, elas são protegidas pelos santos e reafirmam a presença deles na vida de todos os que as procuram. Elas nos fazem lembrar as divindades protetoras e são, sem dúvida, portadoras de uma força numinosa singular. Com mãos ágeis sustentam pequenos ramos verdes; traçam cruzes no ar sobre a cabeça do doente enquanto murmuram preces. Tecem assim um fio invisível, unindo as dores do homem com a evocação poderosa do Sagrado, na figura da Santíssima Trindade e do Espírito Santo. (ROITMAN apud JARDIM) Disponível em: . Acesso em jul. 2014. 132

A segunda imagem escolhida inicia-se com a frase, e logo abaixo, a imagem fotográfica (Fotografia 30) (BISILLIAT, 1979, p. 11). Como é de se notar, nem todas as imagens apresentadas são somente as da figura feminina em si, mas uma gama de outras possibilidades aliadas a diversos contextos, tal a da mãe e de sua família, como essa imagem fotográfica apresentada. Mesmo em fotos analisadas mais adiante, que não possuem a representação feminina explícita como no caso da imagem criada de Nhorinhá, com a ajuda da leitura do imaginário de Durand podemos desvendar essa representação latente, em suas entrelinhas. Maureen Bisilliat, com relação à utilização de trechos de Grande Sertão: Veredas, alterna a apresentação: na maioria, em primeiro lugar, vem a imagem; logo em seguida, em forma de legenda poética, um fragmento da obra de Guimarães Rosa; essa imagem, no entanto, está acompanhada do texto rosiano: ―Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 111).

(Fotografia 30)

―Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 10)

Em seu divagar com narratório, o diálogo remete à presença de Diadorim e, principalmente, à dúvida acerca da venda ou não da alma ao demo:

Meu era um alívio. Mesmo não duvidei de meu menor valer: alguém lá tem a feição do rosto igualzinha à minha? Eh, de primeiro meu coração sabia bater copiando tudo. Hoje, eu desconheço o arruído rumor das pancadas dele. Diadorim veio para perto de mim, falou coisas de admiração, muito de afeto leal. Ouvi, ouvi, aquilo, copos a fora mel de melhor. Eu precisava. Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas, e as 133

coisas, não são de verdade! E de que é que, a miúde, a gente adverte incertas saudades? Será que, nós todos, as nossas almas já vendemos! Bobéia, minha. E como é que havia de ser possível? Hem?! (ROSA, 2001, p. 100).

Riobaldo questiona com seu interlocutor o valor das coisas e sua verdade já anteriormente discutida: ―O senhor... Mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior‖ (ROSA, 2001, p. 39). Podemos então questionar a fotografia apresentada e com isso discutir o realismo da fotografia. A imagem não é por si só portadora da verdade, por sua semelhança, mas, no entanto, seu realismo pode ser apresentado como um somatório de elementos que possibilitam a sua leitura. A verdade de uma fotografia não está contida nela mesmo, como algo transparente apontando para o seu referente, como a própria realidade, mas em todo o contexto cultural em que a fotografia foi captada pelo olhar do fotógrafo, sua intenção e diversidade de conotações, uma vez que, como diz Arlindo Machado: ―a demolição definitiva e possivelmente irreversível do mito da objetividade fotográfica, sobre o qual se fundam as teorias ingênuas da fotografia como signo da verdade ou como reprodução do real‖ (MACHADO, 1988, p. 3). Na obra literária, Riobaldo indaga sobre sua paixão perante Diadorim, como que por encanto, algum feitiço demoníaco, se sentindo embevecido por tudo que Diadorim dizia a ele; ao mesmo tempo, questiona sobre a verdade das coisas. Riobaldo imagina/deseja que tudo isso não passe de um encanto mágico, aliviando de certa maneira o tormento que o persegue, o desejo que não se concretiza, pois esse amor é proscrito, um amor homossexual em sua vida de jagunço, ou como nos diz bem mais adiante o narrador: ―O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real‖ (ROSA, 2001, p. 615). Riobaldo tem dúvidas também sobre a venda da alma, não somente a sua, mas a de todos; quiçá o olhar perdido do pai e também o da mãe na imagem indicam o questionamento que eles fazem sobre a sua sorte na vida ou o que pretende a fotógrafa. Em seu trabalho a fotógrafa sintetiza uma família nuclear ao representar a figura do pai e da mãe com seus três filhos, um plano médio, com uma luz muito forte que entra pela janela, em que o menino à direita se apresenta em contraluz. Percebe-se novamente que se trata de uma fotografia posada, no entanto, apesar de posada, existe um momento de esquecimento perante a fotógrafa: com exceção das crianças, os pais relaxam, tornando-se uma imagem quase que totalmente espontânea. 134

Ao tentar descrevê-la percebe-se que um domínio do claro e escuro invade a imagem, domínio técnico oriundo das artes plásticas que Maureen Bisilliat aprendeu antes de dedicar- se ao universo fotográfico (ver Apêndice 3). Um silêncio tenso paira no ar, como os olhares nas mais variadas direções; o pai com um olhar para o infinito, pensativo, assim como a mãe também não direciona o olhar para a fotógrafa. Essas nuances pictóricas remetem por sua vez também ao universo literário barroco. Em seu trabalho ―As dobras do sertão: palavra e imagem‖, Josina Nunes Drumond (2008) defende a tese de que a obra rosiana Grande Sertão: Veredas está impregnada de fortes indícios de elementos da estética barroca. Ela diz que:

[...] no romance, alguns aspectos característicos do Barroco, que favorecem a imprecisão, a dúvida e a oscilação bipolar, e que são responsáveis pela tensividade da obra, tais como a transgressão das normas, a manutenção das dualidades, a convivência de elementos heterogêneos, a profusão aparentemente caótica de elementos, o paradoxo, a ambiguidade, a fragmentação, o hibridismo, o hermetismo, o labirinto, a constante presença do conflito, entre outros (DRUMOND, 2008, p. 19).

Nessa mesma linha de raciocínio, Bernard Emery (1994), em seu trabalho acerca da visão do poeta e escritor francês Géo-Charles sobre o Brasil, relata que: ―ele foi capaz de descobrir o Brasil sob a dupla iluminação do modernismo e do barroco, [...]‖ (EMERY, 1994, p. 18). Considera Grande Sertão: Veredas como um dos expoente literários que compactuam com essa possibilidade estética barroca. Por meio de técnicas próprias inerentes a cada tipo de linguagem (literatura e fotografia), — apesar de a fotógrafa ser comtemporânea —, ela deixa transparecer uma luminosidade típica do barroco ao empregar um ofuscante contraste na luz, ―o claro e escuro‖129, obedecendo à característica dessa escola. Comunga, por sua vez, dentre tantos traços barrocos, das características contrastantes do universo da linguagem rosiana em Grande Sertão: Veredas, como que na tentativa de expressar as incertezas e um mundo por vezes confuso e nebuloso, apresentado por seu narrador, Riobaldo, que mesmo estando casado com Otacília, remete ao também amor do passado, na imagem de Diadorim enevoada como que pairando no ar, bem como em memórias pactárias com o demo em suas memórias:

129 Ao claro e ao escuro atribuímos significados diversos, um em função do outro. Eles não são vistos, todavia, como polaridades de um mesmo modo de ser, como pontos extremos de uma escala contínua que se estenderia do branco ao preto. Ao contrário, o significado com que relacionamos é o da contraposição, ou mesmo da oposição intrínseca. Ate mesmo lhe damos um sentido ativo, como forças antagônicas que atuam em nosso ser. Vemos a claridade como afirmação de vida, do ser e do fazer, do sol, das qualidades éticas do bem e da verdade. Inversamente, a escuridão não é tida apenas como ausência de claridade, mas como sua negação, como um contraprincípio também ativo, o não-ser, o mal, o desaparecimento, a destruição, a morte (OSTROWER, 1996, p. 225). 135

De mim, pessoa, vivo para minha mulher, que tudo modo-melhor merece, e para a devoção. Bem-querer de minha mulher foi que me auxiliou, rezas dela, graças. Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também – mas Diadorim é a minha neblina... Agora, bem: não queria tocar nisso mais – de o Tinhoso; chega. Mas tem um porém: pergunto: o senhor acredita, acha fio de verdade nessa parlanda, de com o demônio se poder tratar pacto? Não, não é não? Sei que não há. Falava das favas. Mas gosto de toda boa confirmação. Vender sua própria alma... invencionice falsa! E, alma, o que é? (ROSA, 2001, 40-41).

É também possível perceber que as ações de guerra são traçadas como sendo as de um esboço de desenho feito por Zé Bebelo. Faz ainda lembrar as nuances de claro e escuro de uma composição de quadro barroco no qual é criada uma ilusão de ótica causada pela organização dos ―drongos‖ e seus cavalos. O contraste da luz é percebido pelas nuances da cor clara dos cavalos (baio130, ruço131), um movimento gradual expressivo de deslocamento na intensidade de valores mais escuros para os mais claros na tropa. E esses aparentam ser bem maiores: Aí Zé Bebelo tinha meditado tudo como um ato, de desenho. Primeiro, João Concliz avançou, com seus quinze, iam fazendo de conta que desprevenidos. Quando os outros vieram, nós todos já estávamos bem amoitados, em pontos bons. Duma banda, então, o Fafafa recruzou, seus cavaleiros: que estavam muito juntos, embolados, do modo por que um bando de cavaleiros ou cavalos dá ar de ser muito maior do que no real é. Todos cavalos ruços ou baios – cor clara também aumenta muito a visão do tamanho deles (ROSA, 2001, p. 111).

Na fotografia avaliada mergulhamos nessa imagem na tentativa de decifrá-la, criando uma narrativa toda particular. Trata-se de uma foma intuitiva de interpretação, mas que também está carregada de todo um background cultural que possuímos: reativamos memórias passadas e todo um imaginário visual que até então estava latente e os fazemos emergir para compor no presente um entendimento plausível de tal imagem. A fotografia pertence ao domínio da cultura, principalmente as imagens no advento da arte, como as de Maureen Bisilliat; suas fotografias são autorais e sua leitura simbólica aponta para algo cujo significado é quase sempre metafórico. Quanto mais tivermos conhecimentos sobre esse objeto representado na imagem fotográfica, como as pessoas ou os lugares, supomos ter mais e mais detalhes sobre o evento disposto na imagem. Em nosso caso, no entanto, outros fatores são adicionados por Maureen Bisilliat: são os fragmentos da narrativa que compõem a obra Grande Sertão: Veredas.

130(adjetivo), que tem a cor castanha ou amarelo-torrado. Disponível em: . Acesso em 5 set. 2014. 131(adjetivo), pardo claro; pardacento. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=RU%25C3%2587O> Acesso em 5 set. 2014.

136

Ao analisar a fotografia de Maureen Bisilliat observamos que essa referência a um espaço ilusório fora do enquadramento, como assinala Arlindo Machado (1983), esse olhar que remete para algo fora do campo por vezes perturbador, um olhar extra-quadro, força o leitor a imaginar o que ele estaria olhando ou imaginando. Percebemos o corte dado no enquadramento ao lado direto do menino, e assim também como a menina de vestido branco fita diretamente a lente de Maureen Bisilliat; essa luz que incide na roupa branca, seus braços relaxados sobre o vestido branco, seus pés ligeiramente cruzados sobre o piso de pedra. É um destaque relevante aos nossos olhos, além do que a menina se apresenta quase no centro da imagem, diferentemente de seu irmão, que está em contraluz. O olhar é atraído por diversos elementos possíveis na imagem apresentada — essa subjetividade persuasiva e particular a cada observador. Sabemos que de algum modo alguma coisa chama a atenção. Devido ao enquadramento da fotógrafa, damos significados àquilo que acreditamos ser relevante na imagem, o que Barthes (1984) denomina de Puctum, aquilo que fere, que impressiona o nosso olhar de forma bem particular. Por exemplo, podemos constatar ou não a presença de uma criança por trás do pai, sentada na cama. Isso também depende da acuidade visual de cada observador. O casamento, a convivência com uma mulher ao lado de sua prole, como na representação da imagem fotográfica, significa a quebra do encanto. Ao se casar com Otacília na fazenda Santa Catarina, essa era uma realidade concreta que ele podia suportar devido a tantos interditos amorosos com relação a Diadorim, caso tivesse de viver com ela. A foto seria a realidade com Otacília, ou o desencantamento que poderia ter ocorrido se soubesse que Diadorim era mulher; infelizmente ele só descobre que ela é uma mulher na sua morte, e não antes. Sua jornada possui ―Rituais da Travessia‖, e são diversos os que o herói Riobaldo pelo sertão adentro tem de enfrentar. Ela pode ser representada como ―uma descida ao inferno e como uma exploração dos abismos da condição humana‖ (ROSENFIELD, 2008, p. 30). Como quando assume a chefia do bando, ditando ordens e assumindo um novo nome, Urutu- Branco. O caráter familiar nessa busca de sua amada é uma das confusões de Riobaldo em suas travessias. Estas estão associadas ao caos primordial em que ele vive, na busca de uma ordem. ―O sertão-mundo precisa ser conquistado; é preciso tomar conta dele adentro. É cosmos. O sertão satânico corresponde ao caos primordial. Sertão é ao mesmo tempo o caos e cosmos‖ (SPERBER, 2006, p. 149). O espaço familiar é a ―imagem santificada do cosmo‖, 137 que culmina no casamento com Otacília. De modo que na relação trinitária, segundo Santoro (2012), em todas elas existe uma relação entre o Pai e a Mãe que geram o Filho, ou a terceira pessoa da tríade. A terceira imagem escolhida (Fotografia 31), para maior variedade de possibilidades em relação ao universo feminino, representa a mulher com seu marido. Maureen Bisilliat retrata um casal com olhares dirigidos para a fotógrafa, tendo em primeiro plano a mulher; a luminosidade em contraluz fere nosso olhar devido ao grande contraste criado pela luz do sol entrando pela janela. Um detalhe curioso é que a frase que acompanha a fotografia, logo abaixo, não pertence a Grande Sertão: Veredas (2001) e sim a uma obra lançada no mesmo ano, 1956, Corpo de Baile. Mais adiante essa obra é dividida em três partes, No Urubuquaquá, no Pinhém, do qual faz parte o conto ―Cara-de-Bronze‖, em que há um parágrafo acerca do viajante e contador de histórias chamado Grivo, que diz:

De repente – a Fazenda Capitão-Mór – de repente. No acabável; fazenda de casaria. Léguas, no sussequente. A gente sabe que esses silêncios estão cheios de mais outras músicas. A Fazenda do Pau-torto. A família leprosa, na cafua seguinte. No sítio da Emendadeira, donde tinha uns santos em oratório – de longe vinha gente, para beijar, um vintém se pagava, por boca de pessoa [...] (ROSA, 2001, p. 160).

Maureen Bisilliat utilizou tal livro devido a algumas particularidades, pois no conto ―Cara-de-Bronze‖ encontramos a personagem amante de Riobaldo, Nhorinhá, personagem da primeira fotografia analisada.

(Fotografia 31)

―...a gente sabe que êsses silêncios estão cheios de outra música‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 13) 138

Novamente Maureen Bisilliat é bastante sutil ao fotografar esse casal, habitantes dos campos nas proximidades da cidade mineira de Lassance132. Mesmo se tratando de uma foto posada, ela tem paciência e destreza ao captar a imagem no momento exato em que seus personagens relaxam. Apesar de o nosso olhar ocidental ser uma leitura de visão da esquerda para a direita, a mulher possui uma grande atração visual, pois tem a pele albina, com grande contraste de luz, além da proximidade que ocorreu no ato fotográfico. O homem fica mais ao fundo. Pelas normas fotográficas da composição, existe um excesso de luminosidade na imagem; comumente se diz que a fotografia ―estourou‖ a luz, mas isso dá um caráter diferencial às imagens de Maureen Bisilliat. Muitas vezes ela publica uma imagem que poderia ser negligenciada pelas convenções, uma imagem fora dos padrões dos grandes meios de comunicação, como no fotojornalismo ao qual a própria fotógrafa pertenceu. Maureen Bisilliat é incisiva com relação ao seu próprio trabalho fotográfico, no tocante a sua composição, ao afirmar que perdeu mais imagens do que captou. Seu formalismo advém da pintura, adquirido com André Lhote, sendo expresso na noção de luz, sombras, formas; no entanto, seu rigor técnico no manuseio da máquina deixava a desejar, pois também tinha a pintura como espelho, acreditando na fotografia como uma forma mais libertária, semelhante à pintura. A fotógrafa aprendeu com o professor russo, naturalizado norte-americano, Moris Kantor, ao estudar artes plásticas com ele em Nova Iorque, que muitas vezes o erro traz consequências interessantes; talvez seja isso que se reflita em sua forma de fotografar, em sua estética. Sua autocrítica leva a crer na necessidade de não ter conciliado a técnica fotográfica e a composição, a perder muitas vezes uma imagem, pois o que os seus olhos viam, seus dedos não registravam. Como dizia Henri Cartier-Bresson acerca da técnica, tendo a máquina como ―um bloco de esboços‖ (CARTIER-BRESSON, 2004, p. 12); a técnica não seria sua preocupação maior e sim, a intuição, a espontaneidade e o instante. Algo bastante dolorido ou até mesmo doentio para alguns fotógrafos. A obsessão ou frustração na captura ou perda da imagem leva muitas vezes os fotógrafos, quando não estão

132 Acerca da cidade de Lassance, local onde habitava Diadorim com seu Tio: Aí pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menos do que eu, ou devia de regular minha idade. Ali estava, com um chapéu-de-couro, de sujigola baixada, e se ria para mim. Não se mexeu. Antes fui eu que vim para perto dele. Então ele foi me dizendo, com voz muito natural, que aquele comprador era o tio dele, e que moravam num lugar chamado Os-Porcos, meio-mundo diverso, onde não tinha nascido. Aquilo ia dizendo, e era um menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos-grandes, verdes. Muito tempo mais tarde foi que eu soube que esse lugarim Os-Porcos existe de se ver, menos longe daqui, nos gerais de Lassance (ROSA, 2001, p.118)

139 com a câmera fotográfica em mãos, a nem sair de casa, para não verem uma grande imagem em suas andanças e não poderem capturá-la, diferenciando-se bastante da forma de compor uma poesia ou de pintar uma tela. A frase sobre o silêncio representa o mistério velado das coisas, das pessoas, entre as pessoas, como na passagem da obra Grande Sertão: Veredas. ―Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais. – Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!‖ (ROSA, 2001, p. 601). O silêncio de Riobaldo é o silêncio consigo mesmo de querer se negar e não conseguir: ―Faltava era o sossego em todo silêncio, faltava rastro de fala humana. Aquilo perturbava, me sombreava. Já depois, com andada de três dias, não se percebeu mais ninguém. Isso foi até onde o morro quebrou. Nós estávamos em fundos fundos‖ (ROSA, 2001, p. 542). O silêncio sugere a dúvida de Riobaldo em querer saber se o pacto com o diabo havia sido ou não efetuado; mas suas reflexões constantes também sugerem algo além do pacto, toda uma recordação e reflexão sobre os principais acontecimentos de sua vida. Em ―O homem provisório em Grande Sertão: Veredas‖, Manuel Antonio de Castro (1976, p. 22) observa que os longos e constantes diálogos/monólogos reflexivos do ex- jagunço, bem como a forma de construção do diálogo em si pelo escritor, geram dúvidas, conflitos e inquietações reflexivas constantes que perturbam a sua mente:

O autor faz referências desde o início a um diálogo narrador/escritor com um ouvinte/leitor, sem que esse, no entanto, jamais se manifeste. O diálogo é estruturado num ir e vir de perguntas/respostas/perguntas. Vai narrando as lutas e andanças dos bandos de jagunços, pequenos acontecimentos e estórias, sendo que tudo leva a constantes reflexões/monólogos. O motivo central de toda essa narração é não só o questionamento da existência do diabo e consequentemente possibilidade de pacto, mas também dos fatos que o precedem e os acontecimentos que se seguiram.

Acontecimentos que geram mais e mais dúvidas em seus diálogos/monólogos e que conduzem a uma espécie de círculo de confusão mental pelo jagunço, tematizando toda a problemática jornada do homem através de seu sertão. As duas imagens seguintes (Fotografias 32 e 33), juntamente com o texto, indicam o momento conflitante no Paredão; a frase completa: ―Só fiz que no forte do sentir eu pudesse era este ameaço de reza: – Me dê o meu, só, e que é o que quero e quero!... – ao Demo ou a Deus... A lá eu ia‖. Riobaldo roga a Deus e ao Diabo como que para ajudá-lo nesse momento decisivo que ocorre quando se dá o grande encontro entre Riobaldo (Urutu-Branco) juntamente com Diadorim e o grupo de Hermógenes, no Paredão, em uma luta ímpar que culmina com a morte de Diadorim e Hermógenes. 140

As imagens aparentemente não encontraram vínculos diretamente com esse trágico confronto no Paredão; as fotografias têm um sentido metafórico: ambas as imagens têm uma composição com enquadramento em plano americano, esse recorte da imagem que se dá aproximadamente na altura do joelho, ou nas proximidades deste. A primeira tem uma iluminação da direita para a esquerda, enquanto a segunda tem uma iluminação em contre-plongée ou contreplongée, iluminação que ocorre de baixo para cima, sendo notório o grande contraste entre o preto e branco, o que realça ainda mais as cores brancas. As imagens são bastante dramáticas, seja pela iluminação, que torna muito expressiva a aparência das mulheres, principalmente a segunda, seja pela aparência das mulheres e pela aproximação de cada imagem.

(Fotografia 32) (Fotografia 33)

(Fotografias 32 e 33) (BISILLIAT, 1979, p. 14). ―Só fiz que no forte do sentir eu pudesse era este ameaço de reza: – Me dê o meu, só, e que é o que quero e quero‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 14)

No entanto, seu desvelamento se dá com relação ao universo mítico, ao relacionarmos tais imagens como um manifesto da vida, tendo a mulher como a Mãe, ao dar à luz uma vida, estando ligado ao conforto, alimento, acalanto, ao cuidado com a subsistência de sua prole. As próximas imagens reforçam a estética utilizada por Maureen Bisilliat ao captar interiores de vilarejos que percorreu no sertão mineiro. Ela lança mão de imagens semelhantes àquelas utilizadas por Eugène Atget, dado abordado anteriormente em nosso trabalho, em que apresentamos os primórdios do surrealismo, imagens sem a presença de pessoas, que 141 causaram certo estranhamento; devido a essa característica, Atget foi incorporado a esse movimento. Nas imagens fazemos um comparativo entre os dois artistas. Maureen Bisilliat, entretanto, acrescenta à imagem uma frase final do livro de João Guimares Rosa, Grande Sertão: Veredas.

(Fotografia 34) (Eugène Atget, Paris)133 (Fotografia 35) (BISILLIAT, 1979, p. 17)

Apesar de Maureen Bisilliat utilizar muitos retratos em seu ensaio, noutras imagens remete ao universo surreal de Eugène Atget (Fotografia 34), fotógrafo já abordado no capítulo - 3.1, que faz referência aos primórdios do Surrealismo. Ela compõe nesta imagem (Fotografia 35), sobre uma pequena mesa, dois pratos, a ausência total do elemento humano. A imagem apresentada é acompanhada de dois fragmentos da obra rosiana que estão conjugados: ―Travessia perigosa mas é a vida. É o que eu digo se for... Existe é homem humano‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 17). A fotógrafa cria/recria uma nova frase, pois as imagens fazem parte de lugares distintos na obra:

Sertão sendo do sol e os pássaros: urubu, gavião – que sempre voam, às imensidões, por sobre... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais longe. Ali envelhece vento. E os brabos bichos, do fundo dele...‖ (ROSA, 2001, p. 558). ―O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia (ROSA, 2001, p. 624).

133 Bar de Cabaret, Paris. Eugène Atget, 1910. Disponível em: . Acesso em 25 jan. 2014.

142

A escolha dessa imagem para compor a análise deve-se ao fato de ela remeter ao universo surreal de Eugène Atget, e não necessariamente ao universo feminino nesse instante, confirmando nossa suspeita da utilização por parte de Maureen Bisilliat de concepções estéticas oriundas do movimento modernista, do Surrealismo, e também devido à fotógrafa lançar mão em seu ensaio de fotografias preto e branco em todo o seu trabalho. Tal emprego, segundo Fernando Braune, faz com que Maureen Bisilliat se aproxime ainda mais do Surrealismo. Braune (2000, p.144-145) diz que:

De imediato, a fotografia em preto e branco distancia-se da realidade existente, que é colorida. [...] Uma fotografia em preto e branco, por melhor que represente a realidade, por mais que ela se aproxime, guarda consigo alguma coisa de oculto, de não revelado. Ela é uma linguagem que pressupõe algo além da mera contemplação, não há como estar realmente envolvido, ―tomado‖ por uma imagem em preto e branco com uma postura simplesmente voyeurista, pois essa implicação exige desvendar as suas entrelinhas.

O trabalho da artista, devido ao seu cunho autoral na busca de captar o universo sertanejo de João Guimarães Rosa, se encontra no universo que é denominado de Regime noturno de Gilberto Durand. Nas duas imagens seguintes, aparece um retrato de uma menina (Fotografia 36) que segura uma cuia bem arredondada, que mais parece um pequeno globo em suas mãos; na outra, uma senhora (Fotografia 37) com um possível alguidar (enorme prato de cerâmica) na cabeça, que assim como o pote, a bacia, panela, caçarola, caneco, fazem parte da herança de Riobaldo dada pela Bigri, sua mãe. As fotos apresentam um forte contraste, dando um intenso realismo semelhante às imagens barrocas de tantos mestres, como Rembrandt Harmenzoon van Rijn e Michelangelo Merisí, conhecido como Caravaggio (referente à cidade em que viveu), Arthemisia Gentileschi, que mantêm grandes áreas escuras em seus trabalhos. Desse modo é então percebido que a fotógrafa lança mão de algumas correntes artísticas em sua obra, não somente do Surrealismo já apontado, mas também do Barroco. A técnica do uso da luz e da sombra, oriunda da Renascença, em torno de um século depois e também empreendida na escola do Barroco, consistia em fazer com que as áreas fossem iluminadas exageradamente de modo que obtivessem um destaque maior, reforçando os volumes e as formas através do contraste entre luz e sombra, claro-escuro (chiaroscuro), e ressaltando os movimentos e contornos das características das expressões do elemento humano em primeiro plano. 143

A fotografia de Maureen Bisilliat, que assim como Caravaggio busca em muitos instantes a franqueza da representação da realidade e não o seu mascaramento, exibe as nuances da textura no rosto da anciã, suas rugas da velhice.

( Fotografia 36) (BISILLIAT, 1979, p. 18) ( Fotografia 37) (BISILLIAT, 1979, p. 19)

―Eu quero ver essas águas, ―Medo mistério. a lume de lua... Rendas pretas defunteiras .‖ águas para fazerem minha sede . De tristeza, tristes. águas, coração posto na beira.... ― (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 19)134

A primeira, com a jovem, é bem metafórica, em se tratando de uma tradução intersemiótica. Fica evidente que o texto rosiano é tomado de empréstimo e se refere a um universo de criação de Maureen Bisilliat. Num primeiro momento percebemos elementos arquetípicos para explicar tais relações: a menina, da primeira fotografia, poderia representar a Grande Mãe, tendo como símbolo o globo terrestre em suas mãos; ela é a mãe responsável pela criação, geradora de vida, representando um arquétipo positivo; já a segunda fotografia, uma velha, com uma sombra tenebrosa em que não identificamos a sua face, assim como a primeira imagem, também possui uma intensa iluminação, denominada de luz dura, devido à formação de intensa sombra contrastante.

134 Maureen Bisilliat recorta fragmentos do romance sem uma sequências, disponibilizados, em duas estrofes: a primeira estrofe: Eu quero ver essas águas, a lume de lua... (ROSA, 2001, p. 325)./ Águas para fazerem minha sede (ROSA, 2001, p. 174). / De tristeza, tristes. Águas, coração posto na beira.... (ROSA, 2001, p. 198). A segunda estrofe: Medo mistério (ROSA, 2001, 76)./ Rendas pretas defunteiras (ROSA, 2001, p. 113).

144

Por pouco, ficamos sem saber do que se trata. Uma anciã, talvez, pois apenas uma pequena mostra da parte do seu rosto centralizado na imagem apresentada, evidencia suas rugas, assim como a textura negra de seus braços envelhecidos pelo tempo. As imagens evidenciam, no entanto, relacões do texto rosiano com o elemento ―água‖, ao qual pertence o universo das mulheres, devido a sua condição menstrual semelhante a um rio, bem como ao elemento ―lua‖, conveniado a essa condição feminina de seus ciclos mensais de menstruação e associados às fases da lua. Já a frase ―Medos mistérios. Rendas pretas defunteiras‖ representa o lado negativo do arquétipo feminino, lado obscuro e sombrio de uma mãe bruxa. Diferentemente do aspecto positivo, que confere proteção, seu lado negativo associa-se ao perigo do ―repúdio, privação‖, segundo Neumann (1996). A Grande Mãe, da mesma forma que dá amor, calor e proteção, numa demonstração de poder, pode também resultar na prisão e na morte. Na obra as ―Rendas defunteiras‖ constam alusões aos morcegos hematófagos (comumente denominados de morcegos vampiros) que, no caso se alimentam de sangue dos bois. O local da narrativa é o Paredão, local ermo e sem vida, local de sangrenta luta entre Hermógenes e Diadorim. Esse animal como tal pertence ao regime noturno das imagens na concepção de Gilbert Durand, bem como o Paredão:

O Paredão existe lá. Senhor vá, senhor veja. É um arraial. Hoje ninguém mora mais. As casas vazias. Tem até sobrado. Deu capim no telhado da igreja, a gente escuta a qualquer entrar o borbolo rasgado dos morcegos. Bicho que guarda muitos frios no corpo. Boi vem do campo, se esfrega naquelas paredes. Deitam. Malham. De noitinha, os morcegos pegam a recobrir os bois com lencinhos pretos. Rendas pretas defunteiras (ROSA, 2001, p. 113).

Essas duas imagens também podem representar o inferno de Riobaldo em sua relação com Diadorim, na confusão de suas dúvidas com relação a esse amor velado e proscrito, que culmina com a morte de Diadorim. Riobaldo consideraria o amor essa ―bruta flor do querer135‖, como assinala o compositor em sua canção ―O quereres‖. Elementos antagônicos como os apresentados pelo narrador Riobaldo, que define o amor como sendo ―Pássaro que põe ovos de ferro‖. Estando num dos tantos acampamentos de guerra, nas proximidades de um brejo, lugar obscuro e lodoso, fluidez do desejo que remete ao universo misterioso materno durandiano, é então que surge a imagem de uma ―cabaça‖ nas maõs de seu amigo, uma cabaça sendo chacoalhada com um ferro dentro:

135 CHEDIAK, Almir. O quereres. In: SongBook Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1994. 145

Me revejo, de tudo, daquele dia a dia. Diadorim restava um tempo com uma cabaça nas duas mãos, eu olhava para ela. Mas balançou a cabaça: tinha um trem dentro, um ferro, o que me deu desgosto; taco de ferro, sem serventia, só para produzir gastura na gente. – ―Bota isso fora, Diadorim!‖ – eu disse. Ele não contestou, e me olhou de um hesitado jeito, que se eu tivesse falado causa impossível. Em tal, guardou o pedaço de ferro na algibeira. E ficava toda-a-vida com a cabaça nas mãos, era uma cabaça baiana fabricada, desenhada de capricho, mas que agora sendo para nojo (ROSA, 2001, p. 77).

Essas imagens são como um alerta para Riobaldo: o objeto de ferro dentro da cabaça, assim como o ovo136 de ferro, apontam para os seus interditos que impossibilitam essa união; ao mesmo tempo, o desejo avassalador que o consome dia após dia. O amor conciente de Riobaldo por Diadorim é gerado, mas ao mesmo tempo o seu invólucro, uma casca de ferro, impossibilita a sua procriação. O signo surge, mas é impedido de se expandir nesse contexto; seu agitar constante, como o produzido na cabaça pelas mãos de Diadorim, prenuncia um ovo gorado, ―remetendo à mesma frieza, artificialidade, bruteza, à morte, e indo além, nas mãos de Diadorim que o guarda no bolso; o balançar anterior remete à necessidade de ela relembrar as ameaças do amor que eles vivem‖ (SILVA, 2009, p. 31). Um amor abortado, que não vinga, um ovo137 sem cria, no entanto, que se agita em suas entranhas sem querer ficar aprisionado: L'amour est un oiseau rebelle / Que nul ne peut apprivoiser, que se contorce na tentativa desenfreada pelo desejo de nascer e crescer. Em sua análise ―As três cores do amor‖, acerca dos amores de Riobaldo: Nhorinhá, Diadorim e Otacília, Luiz Roncari afirma que: ―Desde o início do livro, o seu amor por Diadorim é representado como algo com um núcleo de ferro, duro e negro, impenetrável e repulsivo [...] O ovo, objeto natural e frágil, substituído na sua substância por um produto da cultura, o ferro duro‖ (RONCARI, 2004, p. 220). A cabaça por sua vez remete a outro termo peculiar, ―cabaço‖138, significando a virgindade da donzela guerreira, Diadorim, aspectos pertinentes às deusas virgens da mitologia: Ártemis, Atena e Héstia. A cabaça não tem como única função carregar água para matar a sede; serve ainda como um cofre flutuante que leva o pagamento da promessa ao Senhor Bom Jesus da Lapa. Nessa instância do romance, Riobaldo conhece o ―Menino‖ às margens do de-Janeiro. No

136 O ovo é uma espécie de objeto arquétipo, matriz e produto final, côncavo e convexo, a um só tempo um modelo de introversão (puro conteúdo oculto) e de extroversão (aparência sem sombra). Segundo as teogonias órficas, Chronos, o Tempo, ―monstro polimorfo, gera o ovo cósmico que, ao se abrir em dois, dá origem ao céu e à terra e faz aparecer Phanes, o primeiro nascido dos deuses, divindade hermafrodita na qual se anula a oposição do macho e do fêmeo‖ (WISNIK apud ROCHA, 1993, p. 287). 137 O ovo pode significar: ―Nascimento é infância . O fato de um ovo de ave ter potencial de desenvolver filhotes faz com que ele seja equiparado ao ventre humano e simbolize fertilidade, nova vida, nascimento e crianças. Animais jovens, flores de primavera e inclusive bebês,(...) representam essa fase inicial da vida‖ (GIBSON, 2012, p. 233). 138 Mulher ou homem virgem; estado ou condição da mulher ou do homem virgem; virgindade. Disponível em: < http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=CABA%25C3%2587O>. Acesso em: 15 de julho 2014. 146 mesmo contexto da obra, a cabaça também se presta ao uso como boia para dependurar anzol na pesca de peixes:

Pois tinha sido que eu acabava de sarar duma doença, e minha mãe feito promessa para eu cumprir quando ficasse bom: eu carecia de tirar esmola, até perfazer um tanto – metade para se pagar uma missa, em alguma igreja, metade para se pôr dentro duma cabaça bem tapada e breada, que se jogava no São Francisco, a fim de ir, Bahia abaixo, até esbarrar no Santuário do Santo Senhor Bom-Jesus da Lapa, que na beira do rio tudo pode (ROSA, 2001, p. 117)

De descer o barranco, me dava receio. Mas espiava as cabaças para boia de anzol, sempre dependuradas na parede do rancho (ROSA, 2001, p. 118)

Nessa passagem, Riobaldo conhece então o ―Menino mocinho‖: ―Escondido enrolei minha sacola, aí tanto, mesmo em fé de promessa, tive vergonha de estar esmolando‖ (ROSA, 2001, p. 119). A imagem da cabaça pode remeter Riobaldo a sua infância pobre na condição humilde de pedinte, naquele momente inusitado em sua vida, uma ligação perturbadora com aquele menino, o Diadorim. Outras imagens se seguem na narrativa, como aquela em que Riobaldo e Diadorim se lançam à noite em direção a um poço encoberto por densas folhagens de palmeiras nas proximidades do acampamento. Todo um erotismo na imagem que se apresenta diante de uma cavidade arredondada para se tomar água, no meio do mato. ―O poço abria redondo, quase, ou ovalado. Como no recesso do mato, ali intrim, toda luz verdeja‖ (ROSA, 2001, p. 78). Riobaldo, ao se debruçar para tomar água, vê surgir um bicho: uma rã.

O amor que é manancial da vida. Nesse caso, a rã parideira na água, que causa asco a Riobaldo e é também o prenúncio da vida, revela-se representação alegórica para o sentimento dele por Diadorim: desejo e asco. Isso fica evidente na fala dele, quando tem desejo e medo de que Diadorim se declare, a quem culpa por esse amor que ele sente recíproco (SILVA, 2009, p. 32).

A natureza é quem aponta novamente de maneira incisiva, dando as suas cartas, como se dizendo através de seus elementos ctônicos: a mesma água transparente do poço com brilho semelhante aos olhos esverdeados de Diadorim, e a mesma natureza apavorante com seus bichos repugnantes noturnos, como se pertencentes a uma dimensão inferior, e que assim como ―o ovo‖, fazem parte também dos símbolos do regime noturno apontados por Gilbert Durand.

147

(Fotografia 38) (BISILLIAT, 1979, p. 21).

―Aquele mundo de fazenda, sumido nos sussurros, os trastes grandes, o conforto das arcas de roupa, a cal nas paredes idosas, o bolor. Aí o que pasmava era a paz‖. (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 20)

Antropologicamente, essas imagens (Fotografia 38) poderiam muito bem remeter ao que chamaríamos de um universo semelhante ao primitivo da ―mulher coletora‖, muitas vezes dedicada à catação de frutas para alimentação em conjunto com outras mulheres. No momento em que seus homens partem para a caça, ela se utiliza de utensílios domésticos e cuida de sua prole. No entanto, tais utensílios destacados, esses pequenos potes, assemelham- se ao que Gilbert Durand denomina de ―taça‖, ao fazer referência às categorias na Classificação Isotópica das Imagens (ver Anexo 1). Ela está classificada como pertencente ao elemento noturno. A taça, por sua vez, está relacionada com o útero materno. Portanto, esses vasos (potes) arquetipicamente relacionam- se com o interior do corpo materno. Durand afirma que o: ―Eterno feminino e o sentimento da natureza caminham lado a lado em literatura‖ (DURAND, 2002, p. 233). Os objetos de formas côncavas herdados por Riobaldo, vistos anteriormente, fazem parte dessa representação. O texto rosiano: ―Aquele mundo de fazenda, sumido nos sussurros, os trastes grandes, o conforto das arcas de roupa, a cal nas paredes idosas, o bolor. Aí o que pasmava era a paz ‖ (ROSA, 2001, p. 339-340), ao demonstrar expressões do eufemismo compactua com os conceitos de imaginário durandiano, pois utiliza termos contrários ao tratar de lugares de calma e felicidade, lugares esses onde muitas vezes imperam a guerra e a morte, como a frase que acompanha a imagem: ―Aquele mundo de fazenda‖, local de proteção e acolhimento, onde se ―pasmava a paz‖ em casas de ―paredes idosas, o bolor‖. Esta última frase refere-se não ao eufemismo, mas sim ao poder de fecundidade terrena. Esse trecho do romance acontece em uma fazenda abandonada, onde o bando que tem como líder Zé Bebelo é tocaiado pelo bando do Hermógenes, local de grande tensão 148 claustrofóbica diante da grande matança dos cavalos139 e de muitos jagunços. No imaginário durandiano, os cavalos estão relacionados com a morte na fazenda dos Tucanos. O cavalo tem a mesma forma de representação, num ― tom catastrófico [...] das trevas e do inferno [...] o medo diante da fuga do tempo simbolizada pela mudança...‖ (DURAND, 2002, p. 75). É o mensageiro da morte, o carro que transporta até o vale das sombras da morte, expressando também a angústia diante das mudanças. De um ambiente de paz, de repente é transformado em guerra, tendo a casa140 como a única proteção:

Aquele mundo de fazenda, sumido nos sussurros, os trastes grandes, o conforto das arcas de roupa, a cal nas paredes idosas, o bolor. Aí o que pasmava era a paz. Pensei por que seria tudo alheio demais: um sujo velho respeitável, e a picumã nos altos. Pensei bobagens. Até que escutei assoviação e gritos, tropear de cavalaria. ―Ah, os cavalos na madrugada, os cavalos!...‖ – de repente me lembrei, antiquíssimo, aquilo eu carecia de rever. Afoito, corri, compareci numa janela – era o dia clareando, as barras quebradas. O pessoal chegava com os cavalos. Os cavalos enchiam o curralão, prazentes. Respirar é que era bom, tomar todos os cheiros. Respirar a alma daqueles campos e lugares. E deram um tiro. Deram um tiro, de rifle, mais longe. O que eu soube. Sempre sei quando um tiro é tiro – isto é – quando outros vão ser. Deram muitos tiros. Apertei minha correia na cintura (ROSA, 2001, p. 339-340).

Em seu trabalho dissertativo sobre a passagem, espaço de mudanças e transformações significativas na fazenda dos Tucanos, Collaço relata que:

A Fazenda representa as reminiscências do Império recém-abandonado. No pátio de fora, ou seja, naquilo que face exposta da realidade social do período, estão os elementos mais visíveis, que de forma ou de outra conseguiram certa permanência no país da primeira Republica (COLLAÇO, 2008, p. 31).

A imagem da casa-grande é representada de forma decadente e abandonada, essa mesma casa que outrora pertencia aos antigos senhores de engenho, agora hospeda e protege o bando de Riobaldo. A casa demonstra todo o poderio do modelo econômico vigente desses antigos moradores, os seus coronéis.

Nesse entremear, eu senti meu braço melhor, e estive mais disposto. Andei andando, vi aquela fazenda. Essa era enorme – o corredor de muitos grandes passos. Tinha as

139 O Dicionário de Mitos Literários (2005) descreve essa nefasta e macabra representação do cavalo: Poseidon metamorfoseado em garanhão fecunda Deméter, disfarçada de égua, que dá à luz um cavalo selvagem, Arion, ou segundo outra versão, dois demônios da morte. Quanto às éguas de Glauco, elas devoram seu dono vivo, sob a influência de Afrodite: nasce uma força ctoniana, quase infernal, que nada consegue deter, como atesta o Apocalipse, onde aparecem sucessivamente os cavalos da guerra, um branco, outro vermelho, o cavalo negro da fome e o cavalo esverdeado (ou descorado, conforme a tradução) da morte (Apocalipse 6, 2-8) (BRUNEL, 2005, p.123).

140 A casa é, portanto, sempre a imagem da intimidade repousante, quer seja templo, palácio ou cabana (DURAND, 2002, p. 244). 149

senzalas, na raia do pátio de dentro, e, na do de fora, em redor, o engenho, a casa- dos-arreios, muitas moradas de agregados e os depósitos; esse pátio de fora sendo largo, lajeado, e com um cruzeiro bem no meio. Mas o capim crescia regular, enfeite de abandono. Não de todo. Pois tinham desamparado um gato, ali esquecido, o qual veio para perto do jacaré cozinheiro, suplicar comida. Até por dentro do eirado, mansejavam uns bois e vacas, gado reboleiro. Aí João Vaqueiro viu um berrante bom, pendurado na parede da sala-grande; pegou nele, chegou na varanda, e tocou: as reses entendiam, uma ou outra respondendo, e entraram no curral, para a beira dos cochos, na esperança de sal. – ―Não faz mês que o povo daqui aqui ainda estava...‖ – João Vaqueiro declarou. E era verdade, com efeito, pois na despensa muita coisa se encontrando aproveitável. Nos Tucanos, valia a pena. Os dois dias ficaram três, que tão depressa passaram (ROSA, 2001, p. 339).

A casa, no entanto, que vai atuar como uma grande mãe protetora, como define Gilbert Durand, em seu trabalho As estruturas antropológicas do Imaginário, a moradia é o abrigo, que acolhe, mas o ventre uterino é também, ao mesmo tempo, o sepulcro, o complexo do regresso à mãe. ―A vida não é mais que a separação das entranhas da terra, a morte reduz-se a um retorno à casa‖ (ELIADE apud DURAND, 2002, p. 236). A constelação da intimidade e as imagens do espaço feliz darão importância à casa que simboliza proteção. Para Gaston Bachelard: ―a casa é um ser privilegiado, uma unidade complexa, onde devem ser consideradas as memórias, as lembranças e os sonhos; a casa é corpo e alma‖ (BACHELARD, 1988, p. 5). O refúgio eterno, o retorno à intimidade da casa ou o regresso à mãe, à mãe terra que valoriza a própria morte. Vem a partir daí a necessidade de ser enterrado em solo pátrio, o isomorfismo do retorno à casa, confirmando assim os gestos da descida, concentrando nas imagens de mistérios e de intimidade à procura de tesouros, de repouso e alimentos da terra. A casa assume uma configuração como sendo algo vivo: Um pudesse narrar – falo para o senhor crer – que a casagrande toda ressentia, rangendo queixumes, e em seus escuros paços se esquentava (ROSA, 2001, p. 360) A Casa dos Tucanos aguentava as batalhas, aquela casa tão vasta em grande, com dez janelas por banda, e aprofundada até em pedras de piçarrão a cava dos alicerces. A Casa acho que falava um falar – resposta ao assovioso – a quando um tiro estrala em dois, dois (ROSA, 2001, p. 369).

Era, no entanto, a casa-grande sem alma, ou o que restava dela, sem vida: ―não tinha almaviva de se ver‖ (ROSA, 2001, p. 338). Assim a casa da fazenda dos Tucanos parece paradoxal: a mesma casa que dá abrigo e repouso pode servir também como acolhedor túmulo de um cemitério abandonado, um espaço do bem e do mal, sangue, sofrimento, morte, como se ela mesma se antropomorfizasse. Quartos vazios: ―Cacei um catre, cama-de-vento, num quarto meio escuro; com coisa nenhuma não me importei‖ (ROSA, 2001, p. 338). O casarão da fazenda dos Tucanos se apresenta para os jagunços como um lugar macabro. Alguns jagunços, como o Simião, acreditavam que ela não era aprazível e pretendem partir, porém Riobaldo fica, por ter levado um tiro no braço. 150

A imagem da morte é então representada na casa; a fedentina que empestava o ar era o indicativo dos mortos, companheiros de Riobaldo, e com o cheiro da morte, as moscas varejeiras são então atraídas: ―A Casa estava se enchendo de moscas, dessas de enterro, as produzidas (ROSA, 2001, p. 369). Em seu contexto de abandono e de morte a casa está entregue ao deus-dará; somente sobraram os resquícios de uma sociedade decadente do velho sertão. Rosa e Silva (2004, p. 140) em seu trabalho de análise da Crônica da casa assassinada de Lúcio Cardoso diz que:

No que concerne à forma alegórica casa, no eixo espacial, significa lugar de abrigo, o domicílio, o espaço do mundo articulado por interditos, valores e ações. Também constitui espaço de efetivação do ser vivente humanamente – casa do homem –, lugar onde ele está em permanente agonia.

É ainda diante desses acontecimentos que se faz presente, como referencial, o universo mítico de uma substância primordial, o elemento água, representado através das imagens hídricas dos cursos d‘água, principal elemento defendido na percepção líquida de Viggiano (2007) em seu estudo sobre Grande Sertão: Veredas. Desde a chegada da tropa de Riobaldo à fazenda dos Tucanos, o elemento água está presente em seus variados tipos, como nos descritos a seguir: ―À Fazenda dos Tucanos chegamos, lá esbarramos – é na beira da Lagoa Raposa, passada a Vereda do Enxu. Visitamos o fazendão vazio, não tinha almaviva de se ver. E do Rio-do-Chico longe não se estava‖ (ROSA, 2001, p. 338) Monteiro relata que:

[...] a presença da água, ou seu escoamento na vastidão da paisagem – desde os brejos que se juntam, para formar os rios, à magia das veredas verdejantes de buritis até os grandes caudais: o Urucuia vindo do obscuro poente para o iluminado nascente (W-E) e o pai de todos, o São Francisco, oferecendo diferentes situações de ―travessias‖ são, ao longo da narrativa, o símbolo do incessante e perigoso fluxo da vida. E os lugares dos grandes momentos do romance estão sempre vinculados aos cursos d‘água (MONTEIRO, 2006, p. 51).

A presença dos grandes rios, lagoas e veredas é um elemento recorrente na trajetória de Riobaldo. Ao longo da narrativa, o rio pontua a travessia de Riobaldo em seus principais acontecimentos, desde quando conheceu o Menino Diadorim no rio, o de-Janeiro, e remete ao fluxo incessante do fluxo da vida e da morte, suscitando devaneios sem fim. A próxima imagem (Fotografia 39) reforça a imagem anterior, em que se apresentam utensílios domésticos. As imagens dos potes são recorrentes. Sua composição, nesse momento, aborda o gênero que, por não apresentar pessoas, denomina-se de ―natureza- morta‖. O texto caracteriza-se por exibir elementos do regime noturno; ao utilizar o termo 151

―Mar‖, elemento desencadeador de todas as vidas, tais ―águas seriam, pois, as mães do mundo‖ (DURAND, 2002, p. 230). Outro elemento é o nome ―Virgem‖, referente ao universo feminino: ―o perfume do nome da Virgem‖. É a doçura do nome da Virgem, Nossa Senhora, que é invocada por Riobaldo, no momento em que ele tem vontade de matar Constâncio Alves, mas num gesto de razão roga à Virgem para não matá-lo.

(Fotografia 39) (BISILLIAT, 1979, p. 27)

―O perfume do nome da Virgem perdura muito; às vezes dá saldos para uma vida inteira‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 26).

Esses potes assemelham-se às antigas urmas mortuárias encontradas em algumas tribos brasileiras, como as da ilha do Marajó, no Pará. Isso possibilita supor que essa cultura marajoara celebrava rituais sazonais de fertilidadede e ritos funerários. Em seu artigo ―A Senhora das Águas na Amazônia‖, Lucy Coelho Penna (2000) propõe uma interpretação junguiana da cerâmica dos indígenas construtores de aterros na ilha de Marajó. Os símbolos arquetípicos gravados na milenar arte do povo marajoara permitem supor que algum tipo de ritual em honra a uma grande deusa ―Senhora das Águas‖ teve lugar na boca do rio Amazonas, antes da colonização europeia. As urnas com cerca de um metro de altura, revestidas com símbolos, ―são verdadeiros ―livros dos mortos‖ em ideogramas. Os símbolos arquetípicos marcaram os momentos decisivos do ciclo da vida-morte-vida para esses indígenas que recriaram a paisagem numa espécie de geografia xamânica‖ (PENNA, 2000, p. 1). Considera-se nesse ritual de passagem, entre vida e morte, a ―Senhora das Águas‖ como aquela que sela o destino humano como um retorno ao útero do maior manancial de águas doces do planeta, garantindo um ciclo da vida. 152

A próxima foto (Fotografia 40) apresenta uma mulher cuidando da extração do polvilho, goma de mandioca, de forma artesanal, em uma casa de farinha, próximo à cidade de Januária. Vemos também algumas pessoas bem longe, ao fundo, que não chegam a interagir com o primeiro plano, em que a mulher cuida do amido da mandioca. Percebe-se que é uma foto espontânea, instantânea, ao captar o ―momento decisivo‖, como diz Bresson, ou então como Salgado, que enfatiza momentos decisivos de cada ato fotográfico. As linhas e formas são bastante acentuadas na imagem; percebemos linhas principalmente diagonais: essas linhas são de grande atração visual, além das sombras e do contraste geral da posição da luz do sol, quase em contraluz. Esse cocho, recipiente de madeira que parece uma canoa, é comum numa típica casa de farinha do interior do Brasil; o líquido da mandioca prensada é separado nesse coxo para a retirada da goma.

(Fotografia 40) (BISILLIAT, 1979, p. 24)

A sequência dessas três imagens (Fotografias 38, 39 e 40) aponta simbolicamente para um aspecto semelhante a um vaso. Erich Neumann enfatiza que:

O núcleo simbólico do Feminino é o vaso. Desde os primórdios da evolução até seus estágios mais recentes, encontramos esse símbolo arquétipo como a essência do feminino. A equação simbólica básica MULHER=CORPO=VASO corresponde, talvez, à experiência básica mais elementar da humanidade com relação ao Feminino, em que este além de vivenciar a si próprio, será vivenciado pelo Masculino (NEUMANN, 1996, p. 46).

Como em Gilbert Durand, tem o caráter da taça como arquétipo simbólico, recipiente da vida que, por sua vez, assemelha-se a um vaso em Neumann. Símbolos culturais que representam o ventre materno em diversas formas, como uma cabaça (Fotografia 43), um pote 153

(Fotografia 44), um cocho (fotografia 45), uma gamela, um cesto ou mesmo uma caixa. Ao abordar a sexualidade feminina nos tempos mais remotos da pré-história, a antropóloga Helen Fischer diz que: Na estrutura da sociedade da época, as mulheres eram tão poderosas quanto os homens, tão sexuais quanto os homens (ainda eram consideradas sexuais depois da menopausa), e o erotismo estava enraizado em suas vidas, em seus mitos, lendas e brincadeiras. Em seu cotidiano havia todos os tipos de simbolismo erótico. Na América do Sul, por exemplo, para as mulheres que trituram mandioca, o vaso ainda é considerado a vulva feminina, enquanto o pilão que soca a raiz representa o pênis masculino (FISCHER, 1993, p. 30).

Na próxima imagem fotográfica (Fotografia 41), apresentada em plongeé, tendo ao centro uma cruz fincada no chão, com sua lápide e dois rosários dependurados, um enrolado como um colar na parte de cima da cruz, o outro do lado direito, a imagem poderia muito bem suscitar somente um referencial ligado à morte de uma pessoa, não se sabendo se em um cemitério ou noutro lugar qualquer, além do que a cruz pode significar apenas o lugar em que alguma pessoa morreu, o local de sua morte, sem ter sido enterrada neste local. Pode também indicar a morte de tantos jagunços em suas guerras entre bandos, como os de Riobaldo ou o do Hermógenes. A morte é inevitável nesse contexto, pois o ―O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinhozinho de metal...‖ (ROSA, 2001, p. 35). Como num ecossistema em que a lei do mais forte prevalece sobre os mais fracos. Um mundo animalesco de uma terra sem ordem, onde a lei se faz pelas próprias mãos: assim é o sertão.

(Fotografia 41)

―Chapadão. Morreu o mar, que foi‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 26).

154

Na cruz também não podemos ver o que está escrito em sua lápide, pois a fotografia foi tirada com um pouco de contraluz; além disso, a imagem captada deu-se por trás da inscrição da pequena lápide de madeira dependurada, sendo impossível descobrirmos, a menos que a fotógrafa descrevesse tal fato, a quem pertencia tal cova, a data de sua morte e o motivo dela. A fotografia acompanha o texto rosiano: ―Chapadão. Morreu o mar, que foi ‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1969, p. 26), que aparece nas páginas finais em que é narrada a morte de Diadorim: ―Diadorim tinha morrido – mil-vezes-mente – para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejavam‖ (ROSA, 2001, p, 612), ou ainda, como conclui o narrador: ―Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba‖ (ROSA, 2001, p. 616). No ensaio intitulado ―O mundo misturado‖, de Davi Arrigucci Jr., ele relata que: ―Diadorim morre, é o mar que morre [...]. O sertão é um espaço tão vasto, tão vago e indeterminado quanto o mar dos narradores épicos [...]. Ora, o grande sertão é uma espécie de mar. Desde o começo, o mar se infiltra no imaginário do livro‖ (ARRIGUCCI, 1994, p. 24). Segundo Elizabeth Hazin: ―Falando sobre o Chapadão, Riobaldo informa: ‗Água ali nenhuma não tem – só a que o senhor leva‘‖ (ROSA apud HAZIN, 2007, p. 27). Chapadão é, portanto, a metáfora perfeita para o estado em que ele se encontra após a morte do amigo. Diadorim era o mar, a água, a vida‖ (HAZIN, 2007, p.144), o que conduz ao universo aquoso, referente ao universo feminino noturno duraniano. Maureen Bisilliat em seu recorte imagético (Fotografia 39) acrescenta o fragmento literário à fotografia, que diz: ―O perfume do nome da Virgem perdura muito; às vezes dá saldos para uma vida inteira‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 26). A fotografia da cruz juntamente com a frase anterior contribuem para uma leitura de um universo sagrado. A cruz é uma representação de um símbolo muito antigo, utilizada por diversas religiões, principalmente pela Igreja Católica: ―É com a ascensão da cristandade que a cruz absorve o significado de morte, de sacrifício do Deus e de caminho para a vida eterna‖ (MORETO, 2007, p. 224). No entanto, a Igreja afirma um dualismo na luta entre bem o mal, como a criação de pecado, menosprezando toda a herança pagã com relação à natureza. Nesse contexto moderno, a cruz ―É a morte das tradições culturais que estavam vinculadas ao culto da Natureza, da fertilidade da Terra, da reprodutibilidade contínua da vida, do tempo de forma circular e do feminino como elemento sagrado, tal qual o masculino‖ (MORELO, 2007, p. 230). Instaura-se uma nova convenção, ―que se funda no princípio do sofrimento como caminho para a salvação, através da adoração da cruz, o seu signo que não 155 pode traduzir a união geradora do feminino com o masculino, pois isso é significado por essa ideologia como pecado‖ (MORETO, 2007, p. 233). Para Gilbert Durand o significado da cruz é muito mais amplo que a interpretação da cruz vista no cristianismo:

[...] é a encruzilhada, a escolha e a ascensão (DURAND, 2002, p. 16-17). A cruz cristã, enquanto madeira erguida, árvore artificial, apenas drena as acepções simbólicas próprias do simbolismo vegetal. Com efeito, a cruz é muitas vezes identificada a uma árvore, tanto pela iconografia como pela lenda, tornando-se com isso escada de ascensão [...]. Na lenda da cruz enxerta-se igualmente o simbolismo da bebida de eternidade, do fruto da árvore ou da rosa que floresce na madeira morta. [...] emblema romano infante, torna-se símbolo sagrado, spes unica (DURAND, 2002, p. 328-329). A cruz, em várias culturas antigas, simboliza a união de contrários, signo de totalização do mundo: em sua forma suástica, está ligada ao devir lunar astral, equivalente esquartelado da roda (DURAND, 2002, p. 329-330).

A cruz representa desse modo uma passagem do arcaico mundo sertanejo para o mundo moderno: ―Não é à toa que esse é o lugar do atraso e do progresso imbricados, do arcaico e do moderno enredados, onde o movimento do tempo e das mudanças históricas compõe as mais peculiares combinações‖ (ARRIGUCCI, 1994, p. 17). Num misto de caos e ordem, Deus e o Diabo, arcaico e moderno, um ―mundo misturado‖ 141 . A cruz anônima em qualquer lugar do sertão, como um indigente leproso separado das demais, representa a encruzilhada pactária que Riobaldo faz com o Demo, sua escolha como a ―união dos contrários, [...] Yang e do Yin‖ (DURAND, 2002, p. 329). Riobaldo e Otacília, ao mesmo tempo que fulminam o amor proscrito e a ascensão apontada por Gilbert Durand (2002), correspondem à travessia espiritual de Riobaldo, e à amarga saudade e culpa da morte, pois a travessia tem seu preço, resultando do pacto que culmina com a morte de seu bem- querer, Diadorim.

A próxima fotografia remete quase de imediato a uma travessia, um dos elementos importantes na vida de Riobaldo. O texto que acompanha a foto (Fotografia 42) está situado aproximadamente no meio da obra A João Guimarães Rosa. A canção apresentada é a enigmática de Siruiz, e também uma visão bem particular no romance. ―E ele canta uma canção que soa estranha a Riobaldo e lhe chama a atenção, pois, na verdade, ela predizia e resumia a história da sua própria vida, que não tinha sido ainda vivida‖ (RONCARI, 2004, p. 77).

141 Arrancando do meio do sertão, a fala do Narrador se dirige para a cidade; o livro por assim dizer traz para o presente e para o mundo urbano as peculiaridades de uma região em princípio atrasada, imersa em outros tempos: esse é o movimento do mito à pergunta pelo sentido; do espaço arcaico, em múltiplas gradações, rumo ao espaço urbano e moderno do universo burguês (ARRIGUCCI, p. 20). 156

O elemento água é ressaltado nessa grande travessia que é a vida de Riobaldo, uma característica marcante na obra, pois são diversos os rios em sua travessia, como o São Francisco e o de-Janeiro, quando conhece Diadorim em sua infância.

(Fotografia 42) ( BISILLIAT, 1979, p. 29)

Urubu é vila alta,142 mais idosa do sertão: padroeira, minha vida – vim de lá, volto mais não... Vim de lá, volto mais não?...

Corro os dias nesses verdes, meu boi mocho baetão: buriti – água azulada, carnaúba – sal do chão...

Remanso de rio largo, viola da solidão: quando vou p’ra dar batalha, convido meu coração...

Elemento importante, pois remete ao universo de fecundidade associado ao rio, elemento vital, e por sua vez feminino, que remete à Grande Mãe, não só ao nascimento, mas também à morte, representados através do imaginário durandiano, agregados à imagem de suma importância para a pesquisa, cujos elementos relacionados a Riobaldo são: ―a terra e a água‖ (RONCARI, 2002, p. 92). A travessia se dá através desses dois elementos. Do mesmo modo ocorre o surgimento de Diadorim, a sua aparição com essa canção. A travessia tem o seu preço; como os rituais de passagem, não se dá impunemente, exigindo um sacrifício neste mesmo elemento rio: a sua morte. Ponto crucial da obra, essa passagem tem sido estudada por vários críticos, sendo apresentadas mudanças e revelações. Riobaldo assume a chefia do bando, incorporando tal passagem como Urutu-Branco, e assume a paixão proscrita por Diadorim. Num ritual de passagem, a travessia de Riobaldo é uma viagem sem volta, no ―meio do romance‖, como assinala Márcia Marques Morais (2001) em sua tese, em que ―parece que reinicia o romance também, com a glosa de Siruiz‖ (MORAIS, 2001, p. 65). Situados em uma das tantas paradas do bando de Riobaldo, desta vez em um sítio na Guararavacã do Guaicuí: ―Depois da Guararavacã, fecha-se um ciclo. Depois da Guararavacã,

142 A vila do Urubu só aparece na história algumas páginas depois do meio do livro, na entrada do bando na ―Tapera Nhã‖, chamada de Guararavacã do Guaicuí, quando Riobaldo diz ao seu interlocutor que já lhe contou tudo e que, para se saber do resto, bastava pôr atenção no que já havia sido narrado (RONCARI, 2002, p. 2). 157 abre-se um outro ciclo. É exatamente isso que demonstram o narrador e o autor‖ (MORAIS, 2001, p. 65). ―Aqui eu podia pôr ponto. Para tirar o final, para conhecer o resto que falta, o que lhe basta, que menos mais, é pôr atenção no que contei, remexer vivo o que vim dizendo‖ (ROSA, 2001, p. 434). Nessa imagem que Maureen Bisilliat apresenta, há utilização do recurso de contraluz, de modo que as imagens ficam enegrecidas a ponto de só percebermos os contornos dos corpos fotografados na forma de silhueta. Essas três imagens (Fotografias 43, 44 e 45) sequenciadas demonstram tal confluência de elementos da natureza, como o cavalo, em conjunto de imagens que entram em diálogo com o texto rosiano: ―Bela é a lua, lualã, que torna a se sair das nuvens, mais redondada recortada‖ (ROSA, 2001, p. 94). ―Senti meu cavalo como meu corpo‖ (ROSA, 2001, p. 342). ―E os cavalos, vagarosos; viajavam como dentro dum mar‖ (ROSA, 2001, p. 727). ―A liberdade é assim, movimentação‖ (ROSA, 2001, p. 452). Essa última passagem antecipa as mortes de diversos jagunços antes da chegada na fazenda dos Tucanos. São os cavalos que servem como índices da morte na concepção de Gilbert Durand.

(Fotografia 43) (BISILLIAT, 1979, p. 31)

(Fotografia 44)

―Bela é a lua, lualã, que torna a se sair das nuvens, mais redondada recortada‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 31). ―Senti meu cavalo como meu corpo. E os cavalos, vagarosos; viajavam como dentro dum mar

A liberdade é assim, movimentação‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 32).

158

(Fotografia 45 ) (BISILLIAT, 1979, p. 33)

Riobaldo rememorando suas aventuras diz: ―Amostro, para o senhor ver que eu me alembro. Afora algum de que eu me esqueci – isto é: mais muitos... Todos juntos, aquilo tranqüilizava os ares. A liberdade é assim, movimentação. E bastantes morreram, no final. Esse sertão, esta terra‖ (ROSA, 2001, p. 336). Trata-se da imagem de uma jovem, em primeiro plano, uma imagem em close, que poderia muito bem se tratar de Nhorinhá; não sabemos se é essa ―Bela‖, regida pela força lunar, essa bela ―recortada‖ por Maureen Bisilliat, pois se observa um trabalho de recorte na imagem: a mesma jovem é recortada na altura do rosto, e posta na horizontal; o cavaleiro não sente seu cavalo como seu corpo, mas sim o corpo da jovem como um cavalo em que ele cavalga. De modo que, como já foi dito, essa jovem poderia se assemelhar à liberdade de viver sem culpa, um amor terreno, sexual, como o de Nhorinhá. Em termos durandianos acerca do imaginário, poderíamos ainda traduzir a imagem do cavalo como algo ligado à morte que, por sua vez, remete ao símbolo do feminino, de modo que transparece que a jovem, apesar de toda a sua sensualidade e beleza, poderia caracterizar- se como signo que possui um caráter dual de sedução e destruição. No sertão rosiano é possível encontrar diversos animais presentes na obra, assim como a lua, dentre outros elementos que pertencem ao Regime Noturno da imagem, como cita Durand (2002). Essa confluência da natureza em sua obra é observada em ―Bichos, plantas e malucos no sertão rosiano‖ por Benedito Nunes:

159

Na obra de Guimarães Rosa, a Natureza é exterior e interior ao mesmo tempo, ganhando a amplitude de um todo vivo, que externaliza em formas animais e vegetais e se internaliza com a força expansiva dos mitos. Assim, os bichos e as plantas não são apenas naturais, mas seres pervasivos que a nós aderem e que em nós se instalam (NUNES apud SECCHIN, 2007, p. 19). [...] A confluência maior de plantas, de bichos e malucos na obra de Guimaraes Rosa se dá em Grande Sertão: Veredas. Animais e vegetais convergem nos momentos dramáticos do relato de Riobaldo. Hesitações, expectativas, conflitos, marcam as relações dele com Diadorim e com as peripécias do bando de que ambos participam. Sempre os circunda a natureza, que lhes é ora propícia, dadivosa, ora malévola e assustadora (NUNES apud SCCHIN, 2007, p. 25).

Dentre outros bichos além de cavalos, podemos citar alguns como: papa-mel, ariranha ou ―onça d‘água‖, lontra, lobo-guará, onça, macaco, boi, burro, cachorro, gato, rato, paca, veado, abelha, gafanhoto, calango, piranha, traíra, manuelzinho-da-croa, anu, juriti, zabelê, tiriri, saci-do-brejo, doidinha, gangorrinha, tempoquente, rola-vaqueira, graúna, fariscadeira, juriti-do peito-branco, bem-te-vi, macucu, gambá, jaratataca, diversos tipos de cobra (jararaca, jararacuçu, cascavel, araramboia); jacarés, cágados, lagartixas, morcego, sapo, rã, lesma, caramujo, bicho luís-cacheiro. Diversas aves de hábitos noturnas: acauã, coruja, suindara, caborés, curiango, bacurau, urutau, mãe-da-lua; outras aves: gavião, urubu; insetos: formigas, mutucas, borboletas, mariposas; bichos peçonhentos: aranhas-caranguejeiras, escorpião. Ainda podemos encontrar um hibridismo dos nomes das pessoas com nomes de bichos e vegetais, como Tatarana (lagarta-de-fogo), Urutu-Branco, Lacrau, Piolho-de-Cobra, o jacaré (cozinheiro), o Acauã, Federico Xexéu, Marruaz, Marimbondo, José Micuim, Zé Onça, Pau-na-Cobra, o Trigoso, o Cajueiro, o Araruta, Izina Calanga e Miosótis. Várias flores como: liroliro, casa-comigo, lírios-do-brejo, copos-de-leite, e muitas espécies de árvores, como o buriti e suas veredas. Uma quantidade enorme da fauna e flora, além dos loucos que povoam o sertão, elementos diferentes que se inter-relacionam como numa simbiose. A próxima imagem (Fotografia 46) (BISILLIAT, 1979, p. 35) apresenta uma jovem que deduzimos ser Otácilia, devido aos fragmentos que acompanham a imagem. Otacília é uma espécie de donzela à espera de seu herói, Riobaldo. É ela que dele recebe uma prenda, um presente de casamento, para selar sua relação: ―uma pedra de topázio‖ — e o que essa imagem indica. Do amor carnal com Nhorinhá, em seguida a sua grande paixão, um amor proscrito, não correspondido por Diadorim. Finalmente, seu porto seguro nos braços de Otacília: ela é a reordenação do caos, e algo mais do que um simples casamento — algo transcendental cuja representação é a ―busca da unidade perdida‖ (NEITZEL, 2004, p. 78). 160

(Fotografia 46)

―Capixum – caboclo sereno, viajado, filho dos gerais de São Felipe; Sou um homem ignorante. Gosto de ser. Não é só no escuro que a gente percebe a luzinha dividida? De Araçuaí, eu trouxe uma pedra de topázio‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 35).

A composição sugere uma imagem posada com um olhar quase sorridente, uma alegria sutil, esse close, imagem que enquadra exclusivamente o rosto do modelo, e bem atrás dela, uma sela, que poderia, no caso, sugerir algo erótico, sedução, pois a imagem de mulher, Otacília, pode também ser um somatório de figuras, como a de uma amante, paixão, esposa e da Grande Mãe; pode assumir também a figura protetora da guerra, como o mito da deusa Cibele da Antiguidade grega, que representava a fertilidade, mas também pode significar a destruição. Apesar de tamanha espiritualidade, a unidade material não se separa da alma, de modo que esse amor não tem sentido de castidade, como sugerem algumas leituras; o amor entre Otacília e Riobaldo é um amor terreno. A imaginação noturna é, assim, naturalmente levada da quietude da descida e da intimidade, que a taça simboliza, à dramatização cíclica na qual se organiza o mito do retorno, mito sempre ameaçado pelas tentações de um pensamento diurno do retorno triunfal e definitivo (DURAND, 2002, p. 279). O mito do eterno retorno: ―O homem não faz mais que repetir o ato de criação‖ (DURAND, 2002, p. 283). A fotografia que se segue sugere uma mulher enigmática, Diadorim (Diadorina) (Fotografia 47) (BISILLIAT, 1979, p. 49), que compõe com Nhorinhá e Otacília a tríade feminina que contribui na formação de Riobaldo em sua travessia. 161

Essa imagem, quase uma mesma imagem duplicada, como num díptico onde são mostradas duas imagens com temas semelhantes, são duas noivas no dia do casamento aparentemente coletivo, um duplo que remete à relação amorosa conturbada entre Riobaldo e Diadorim; na verdade, poderiam ser dois homens, no entanto Maureen Bisilliat utiliza-se de duas mulheres para representar o amor proscrito entre Diadorim e Riobaldo, amor entre dois jagunços.

(Fotografia 47)

―era mulher como o sol não acende a água do rio Urucúia... Era uma mão branca, com os dedos dela delicados. Era como se para mim ela estivesse no camarim do Santíssimo‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 49) .

Diadorim, um dos principais personagens da obra, cuja sexualidade só é desvendada na morte, como descreve a legenda utilizada pela fotógrafa. O parágrafo completo que Maureen Bisilliat utilizou referindo-se a Diadorim foi:

Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer – mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucúia, como eu solucei meu desespero. O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real. (ROSA, 2001, p. 861- 862).

162

Maureen Bisilliat ainda complementa com mais uma passagem sobre Diadorim: ―Era uma mão branca, com os dedos dela delicados‖ (ROSA, 2001, p. 123). Traços finos de beleza singular, por pouco não decifrados por completo por Riobaldo.

São inúmeras as referências que, por si, já induzem ver em Diadorim, traços femininos, quer em relação a sua descrição física – as mãos, os braços, a cintura fina, a boca, o nariz, os olhos, as pestanas –, quer em relação ao seu comportamento – o recato em esconder o corpo, o capricho em relação aos objetos pessoais, o pudor feminino que se esquiva de presenciar o amigo urinando, o instinto materno. Diadorim, cujo corpo era ―um esconderijo‖, tanto no sentimento de se estar escondendo sempre no apertado jaleco, mas, ainda e principalmente, ―escondido‖ por figurar, de modo ímpar, a anatomia do corpo feminino, ‖ [...] (MORAIS, 2001, p. 34).

Diferentemente do amor carnal, simples e sem culpa de Nhorinhá, Diadorim representa uma obscura neblina na vida de Riobaldo, e quase não existe alegria no seu olhar. O que ele persegue é um desejo de vingança desmedida: ―Diadorim sentia ódio‖. Riobaldo observa em Diadorim alguns detalhes bem femininos, como os dedos delicados, a cintura fina. Na concepção de Benedito Nunes (1976), Diadorim possui uma característica bem peculiar, a androginia. Tal transfiguração, para Walnice Galvão (1981, 1997), representa uma característica da ―donzela guerreira‖, ao se travestir como um jagunço. O personagem Diadorim tem sua construção bastante complexa: ―Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins – que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...‖ (ROSA, 2001, p. 870). A ―donzela guerreira‖, andrógina, esse poder dissimulador, enganando a todos, pode estar relacionada com algo maligno. Os olhares, de um sutil sorriso de Mona Lisa, e a outra com a cara amuada, talvez fossem essas as essências de Diadorim, sempre cuidando em não deixar transparecer as nuances que desvelassem a sua feminilidade. Maureen Bisilliat utiliza outra frase relativa a essa imagem: ―era como se para mim ela estivesse no camarim do Santíssimo‖ (ROSA, 2001, p. 437). Essa frase pertence a Otacília, de modo que poderemos ter uma leitura particular feita por Maureen Bisilliat ao fundir essas duas frases. Como o texto impregna a imagem e vice-versa, a leitura é feita como um todo, de modo que é uma nova releitura sobre esse conjunto: seria a possibilidade das duas amadas de Riobaldo, ou a passagem do mundo caótico para o divino. A próxima imagem analisada (Fotografia 48) é um dos possíveis modos de representação feminina em Rosa: o lado positivo, existindo uma associação ao mito que pertence ao cosmo em que a mulher é representada como a Grande Mãe. Neumann (1996) diz que divergindo do homem, a mulher vivencia dois momentos significativos em sua vida: uma 163

―em si‖ mesma, como na imagem abaixo, referente ao período de gestação, e outro momento ―fora de si‖, quando do trabalho de parto, de modo que essa base do feminino não muda a tendência de manter em si mesmo o que por ela foi gerado. No texto rosiano: ―Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe‖ (ROSA, 2001, p. 259). ―Indaguei o nome da flor‖ (ROSA, 2001, p. 262). O coração assume um papel de navegador das águas, riachos; assim como uma serpente vagueia ziguezagueando no solo, a imagem do rio conota a existência também do feminino, esse elemento fluido de vida, de procriação, elemento criador, amalgamando elementos em sua passagem, em sua gestação, de vida onde ―tudo cabe‖.

(Fotografia 48) (BISILLIAT, 1979, p. 53)

―Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe. Indaguei o nome da flor‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 52).

A imagem seguinte (Fotografia 49) acompanha o parágrafo/legenda e se refere ―à mulher legal do Hermógenes‖ (ROSA, 2001, p. 740), que é pega e feita refém pelo bando do Urutu-Branco, cujo nome não é dito; no entanto, são detalhados minuciosamente seus gestos e aparência: a mulher de um velho vestido preto desgastado pelo tempo, possuidora de lábios finos de poucas palavras, e mesmo quando falava parecia que assobiasse com uma rudeza e ainda uma certa beleza, como nos tempos de mocidade. 164

Riobaldo ou Urutu-Branco sente certa atração por ela, como ele diz: ―Tive um receio de vir a gostar dela como Fêmea‖ (idem, ibidem). Maureen Bisilliat opta por mostrar um tríptico (Fotografias 49, 50 e 51) com relação a essa mulher de rosto magro e ressecado pelo tempo e, quem sabe, pelo sofrimento.

(Fotografia 49) (BISILLIAT, 1979, p. 54).

―Mas eu já estava com ela – com os olhos dela, para a minha memória. Magreza, na cara fina de palidez, mas os olhos diferiam de tudo, eram pretos repentinos e duráveis, escuros secados de toda boa água. E a boca marcava velhos sofrimentos? Para mim, ela nunca teve nome. (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 54)

( Fotografia 50) (BISILLIAT, 1979, p. 55). (Fotografia 51) (BISILLIAT, 1979, p. 56).

As três imagens retratos (com rostos fora de foco) acima possibilitam a interpretação de mulheres sem nomes, sem identidades, como sendo apenas as mulheres oficiais de Hermógenes. Tal proximidade é uma característica do retrato denominado de close fotográfico, valor caracterizado pela dramaticidade que se dá a esse tipo de enquadramento, 165 devido à aproximação do rosto da pessoa fotografada e, consequentemente, à aparição de suas marcas e expressões com diversas facetas, apesar de não estarem bastante nítidas nessas imagens fotográficas. A primeira, percebe-se que é uma mulher com aliança; a segunda, uma jovem; e a última, bastante magra, esta última possivelmente poderia remeter ao estado atual da mulher de Hermógenes. É possível dizer que esse tríptico representa, primeiramente, certa languidez, na primeira imagem, a que Riobaldo tem uma atração inexplicável; a segunda imagem remete a algo ligado à morte, como a perda de sua mocidade, apontando para o passado do que foi essa mulher sem nome, e praticamente sem referência devido à opção de tornar as imagens fora de foco; a terceira representa o seu envelhecimento. A fotógrafa opta por uma desconstrução da imagem retrato, característica modernista de desconstrução da imagem, que por convenção deveria ser nítida. A obra de Guimarães abrange vários significados pertinentes ao universo sertanejo e suas mudanças. O autor se preocupa com a existência do sertão: ―Ah, tempo de jagunço tinha mesmo de acabar, cidade acaba com o sertão. Acaba?‖ (ROSA, 2001, p. 230). No período em que Maureen Bisilliat realizou as imagens do sertão, na década de 60, observam-se ainda as queimadas e a destruição do ecossistema que pertence ao semiárido brasileiro, situado no norte de Minas Gerais, sendo o único estado do Sudeste que preserva essa vegetação, de modo que essa área corresponde também ao Polígono das Secas. A imagem fotográfica (Fotografia 52) é uma paisagem contendo um grande plano geral dessa região do sertão mineiro, uma visão panorâmica em que se percebem várias carvoarias, com uma névoa branca da fumaça.

(Fotografia 52) (BISILLIAT, 1979, p. 57).

― Olhe: muito além, vi lugares de terra queimada e chão que dá som – um estranho. Mundo esquisito‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 57).

166

A João Guimarães Rosa lança mão de cortes e recortes nas imagens, como essa panorâmica, recurso herdado dos modernistas; como dos dadaístas, dos surrealistas ou mesmo do construtivismo soviético, com a técnica de fotocolagem de Alexander Ródtchenko, até mesmo utilizada pelos cubistas, como nas pinturas de Georges Braque e Pablo Picasso, com as colagens de páginas de jornal em suas obras. Na fotografia, Man Ray é um dos fotógrafos que se utilizam dessa nuance técnica, o que não deixa de ser uma manipulação da imagem fotográfica. Maureen Bisilliat, com os cortes em suas imagens, busca se adequar a essa nova composição com as ―legendas‖: os parágrafos retirados da obra rosiana. O texto rosiano contempla descrevendo as terras e seus casos, como o suicídio: É preciso de saber os trechos de se descer para Goiás: em debruçar para Goiás, o chapadão por lá vai terminando, despenha. Tem quebracangalhas e ladeiras terríveis vermelhas. Olhe: muito em além, vi lugares de terra queimada e chão que dá som – um estranho. Mundo esquisito! Brejo do Jatobazinho: de medo de nós, um homem se enforcou‖ (ROSA, 2001, p. 73).

―O chão que dá som‖ possivelmente é uma referência às rochas de origem vulcânica (basálticas) em Goiás, que produzem som metálico, semelhante ao de um sino. Acerca desses indícios João Guimaraes Rosa demonstra que o meio ambiente no contexto dos jagunços interage com estes de maneira ativa; o ambiente sertanejo não serve como mera referência de um lugar de passagem; é preciso conhecer bem os seus sinais, os perigos existem sempre à espreita e quem não os decifra corre risco de vida. Assim é o sertão. As próximas imagens (BISILLIAT, 1979, p. 58-59) são abstratas (Fotografias 53 e 54); não temos referências delas, só o indício final do texto da página anterior: ―Mundo esquisito‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 57), num dinamismo terreno. Possivelmente, imagens noturnas ou de madrugada. A primeira imagem apresenta uma faixa preta degradé, cobrindo 1/3 da obra; na parte de baixo, a parte terrena; já a outra é o inverso, 2/3 com a parte terrena, só que dessa vez com a tonalidade cinza, como se fosse a mesma imagem invertida. Essa obra no formato quadrado lembra uma composição expressionista abstrata (Figura 8), caracterizada pela arte não representacional do artista russo naturalizado norte- americano Mark Rothko, que remete ao sagrado, à verticalidade, denominados por Gilbert Durand como ―símbolos de ascensionais‖. Lescourret (2009, p. 109) afirma que ―Ces illustrations s’enrichissent d’un invariant anthropologique identifié notamment par Gilbert Durand, à la suite de Bachelard: le privilège de la verticalité, attesté tout simplement par le phénomène de la vie humaine.‖143

143 Estas ilustrações se enriquecem de uma invariante antropológica identificada notadamente por Gilbert Durand, em seguimento a Bachelard: o privilégio da verticalidade, atestado muito simplesmente pelo fenômeno da vida humana (tradução do doutorando). 167

(Fotografia 53) (Fotografia 54)

(Figura 8 )144 Mark Rothko: ―Sem título‖ (1969).

Tendo como leitura a obra nietzschiana O nascimento da tragédia, Rothko procura criar mitos, ou como ele mesmo dizia, ser ―um fazedor de mitos‖ numa sociedade em que o homem moderno produziu um vazio em sua espiritualidade. Sua preocupação se traduz em demonstrar, através de sua obra, o sentimento do sagrado. O que se ajusta à obra rosiana na tradução de Bisilliat:

O mito cósmico é o mito da criação do mundo, em que a terra, princípio das coisas, tem o sentido de vida e fertilidade. A terra é a substância universal, o caos primordial, a matéria-prima e simboliza a função maternal, a Grande – Mãe, pondo-se ao céu, como o princípio passivo se opõe ao princípio ativo, e o aspecto feminino ao aspecto masculino (FONTES, 1990, p.15).

144 . Acesso em: 25 agost. 2013. 168

Nessa fotografia de Maureen Bisilliat, a condição de personagem feminina emerge na obra de Rosa com o sentido de mulher-terra, ser primordial. A simbologia constante em sua criação mostra frequentemente aspectos positivos e negativos, à medida que esta se liga à reprodução e à origem da vida. Da mesma maneira que Rothko em suas obras, a energia inconsciente emana das imagens míticas. Nas imagens seguintes (Fotografias 55 e 56), em forma de díptico, em que as duas estão interligadas por um fragmento literário rosiano, acha-se a primeira na horizontal e a segunda na vertical. (Fotografia 55)

―O barulho de coisas rompendo e caindo, e estralando surdo, desamparadas, lá dentro. Sertão!‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 60). (Fotografia 56)

169

Afirma Boris Kossoy (2005) que as imagens fotográficas podem proporcionar uma relação com a memória das pessoas, reativando suas lembranças, sejam essas memórias individuais ou coletivas, na medida em que tais efeitos de memorização das imagens proporcionam a criação de informações visuais construídas ao longo da história dos indivíduos:

Quando apreciamos determinadas fotografias nos vemos, quase sem perceber, mergulhando no seu conteúdo e imaginando a trama dos fatos e as circunstâncias que envolveram o assunto ou a própria representação (o documento fotográfico) no contexto em que foi produzido: trata-se de um exercício mental de reconstituição quase intuitivo. Fotografia é memória e com ela se confunde. O estatuto de recorte espacial-interrupção temporal da fotografia se vê rompido na mente do receptor em função da visibilidade e ―verismo‖ dos conteúdos fotográficos. A reconstituição histórica de um tema dado, assim como a observação do indivíduo rememorando, através dos álbuns, suas próprias histórias de vida, constitui-se num fascinante exercício intelectual pelo qual podemos detectar em que medida a realidade se aproxima da ficção (KOSSOY, 1998, p. 42).

Essas fotográfias, apesar de não estarem evidenciadas no seu contexto plenamente os detalhes de como foram feitas ou onde foram realizadas com exatidão, como as demais do ensaio, foram confeccionadas no vasto sertão mineiro.

A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. [...] Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe (ROSA, 2001, p. 114-115).

Ao fazer analogias de informações visuais, como suas respectivas imagens literárias, que são as figuras de linguagem, na tentativa de descrever tal imagem, percebe-se que essas figuras atuam como indícios145. Josina Nunes Drumond (2008) defende que a obra Grande Sertão: Veredas possui resquícios que apontam a existência de traços do Barroco; ela a cita a figura de linguagem denominada de ―sinestesia‖, afirmando que com isso:

A palavra tem o poder de evocar impressões sensoriais e de estendê-las, na combinação de diferentes sensações. A visualização de imagens, cores, movimentos se dá, a todo momento, na mente interpretativa. Muitas vezes, a visualização estende-se para outros sentidos (DRUMOND, 2008, p. 179).

145 Os índices fornecidos pelo real são exemplificados por Freud como ―ruído, coito animal, etc‖. Parece-me poder-se concluir que tais índices, funcionando por contágio, por deslocamento, por contiguidade, têm efeito de metonímia, conforme se vem afirmando (LAPLANCE & PONTALIS apud MORAIS, 1983, p. 98). 170

Essa constatação do aspecto barroco apresentado por Drumond (2008) reforça nossa suposição ressaltada anteriormente ao afirmar que Maureen Bissiliat possui traços barrocos. O que possivelmente converge para um denominador comum, uma adequação entre a obra literária rosiana Grande Sertão: Veredas e suas fotografias esfumaçadas, com o forte contraste entre o claro e o escuro. Retoma-se a passagem no romance que seria a do incêndio da própria casa por Medeiro Vaz, bem como os incêndios cometidos por Riobaldo em sua vida jagunça, ao mandar incendiar as casas dos habitantes do sertão:

Medeiro Vaz, antes de sair pelos Gerais com mão de justiça, botou fogo em sua casa, nem das cinzas carecia a possessão. Casas, por ordem minha aos bradados, eu incendiei: eu ficava escutando – o barulho de coisas rompendo e caindo, e estralando surdo, desamparadas, lá dentro. Sertão! (ROSA, 2001, p. 157).

O sertão é apresentado como sendo uma terra sem lei, e sem a posse dela por seus viventes; as pessoas como Medeiro Vaz eram habitantes móveis condenados a vagar eternamente, sem poder sossegar em sua própria casa; por isso mesmo, não haveria motivo para deixar a casa intacta. Roncari (2004) diz:

O sertão não é um lugar definido, é um espaço onde se exila o homem que se autodesterrou, ―o sertão é o terreno da eternidade, da solidão... No sertão, o homem é o eu que ainda não encontrou um tu; por isso ali os anjos ou o diabo manuseiam a língua‖, a pátria do escritor, diz Guimarães numa entrevista. Nesse espaço não se permite o pouso e a morada, quem aí entra, está condenado a vagar sempre [...] Como quem incendeia a casa, seu porto seguro, Guimarães Rosa demole cada palavra ao entrar no sertão, e com ela a língua, sua cidade. Nesse especo móvel, da indefinição, ambiguidade e aventura, é preciso estar sempre acordado, dentro e fora, no pensamento e na fala, para responder aos desafios; tudo é desafio, a repetição e a resposta automática são coisas que não se conhece. Tudo é possível, um mundo sem famílias: a distância e distinção entre substantivos, adjetivos e verbos quase desapareceram, as palavras travestiram e estabeleceram relações suspeitas entre si, deixaram de ser estátuas rígidas para se agitarem na mascarada das frases: quem é quem? Quem é o quê? ―Tu é existível, Guirigó...‖ No Brasil, o sertão era o não lugar, [...] (RONCARI, 2006, p. 1).

Assim como na fazenda dos Tucanos, a casa é um lugar de conflito, vida e morte, um mundo caótico, representado através da linguagem rosiana. No primeiro momento a imagem está relacionada ao fogo, com a imagem de uma carvoaria (Fotografia 55): um menino como se suspenso no ar, levitando, mas ao mesmo tempo ―caindo‖, como fazendo menção ao texto. Já a outra imagem (Fotografia 56) sugere um mundo de abandono. Além do visual da imagem a sua legenda, como que informando: ―O sertão não chama ninguém às claras; Mais, porém, se esconde e acena‖ (ROSA, 2001, p. 538). 171

O sentido das informações apresentadas no texto é conjugado com a leitura da imagem. O sertão é então apresentado semelhantemente assim como se fosse uma imagem fotográfica, que sugere muito, mas, por vezes, não se desvenda facilmente. Tudo soa enigmático na construção desde lugar, porém ele oferece pistas; o sertão devora a todos se não o decifrá-lo, o perigo sempre a espreitar, não é à toa a necessidade obrigatória de toda tropa ter um ao menos um rastreador146:

De cada vez, o senhor vira o corpo num lado: e olha, escuta. Qualquer barulho sem tento, que se faz, verte perigo. Pássaro pousado em moita, que se assusta forte a vôo, dá aviso ao inimigo. Pior são os que têm ninho feito, às vezes esvoaçam aos gritos, no mesmo lugar – dão muito aviso. Aí quando é tempo de vaga-lume, esses são mil demais, sobre toda a parte: a gente mal chega, eles vão se esparramando de acender, na grama em redor é uma esteira de luz de fogo verde que tudo alastra – é o pior aviso. O que nós estávamos fazendo era uma razão de loucura muita, coisa que só mesmo em guerra é que se quer. O punhal travessado na boca, sabe?: sem querer, a gente rosna. Às guardas, qualquer mato ameaçava que ia bulir: com o inimigo vindo dele. [...] Árvores branquiçadas, traiçoeiramente. A gente amassa com a barriga espinhos e gravetos, é preciso de saber quando é que é melhor se calcar no estrepe firme com gosto – que é o que mais defende d‘ele não se cravar. O inimigo pode estar engatinhando também, versa por detrás, nunca se tem certeza. O cheiro de terra agoura mal (ROSA, 2001, p. 221-222).

A próxima imagem (Fotografia 57) é uma cena em contraluz, realizada na madrugada ou ao entardecer, que propicia uma silhueta com forma bem centralizada, semelhando um seio feminino; o peito e o bico do peito, de modo quase surreal, como se estivessem flutuando em nuvens; um seio em contraluz, suspenso, que flutua na escuridão. Ao contextualizarmos com outras imagens do ensaio, desvendamos que se trata de caieiras, as carvoarias, local onde é produzido o carvão vegetal. A forma é um dos elementos da composição mais importantes na fotografia, pois através dela criamos outros universos ou acentuamos determinado objeto, do jogo de luz e sombras e volume do corpo. Assim no roteiro fotográfico através das cidades indicadas pelo próprio escritor João Guimarães Rosa, como na passagem ―As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!‖ (ROSA, 2001, p. 602).

146 Repartiu os homens em quatro pelotões – três drongos de quinze, e um de vinte – em cada um ao menos um bom rastreador (ROSA, 2001, p. 108) 172

(Fotografia 57) (BISILLIAT, 1979, p. 63).

―As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!‖ (ROSA apud BISILLIAT, 1979, p. 63).

O fragmento do texto inserido em conjunto com a imagem remete a uma das travessias, a que precede ao pacto de Riobaldo, no mesmo contexto de suas conversas de ordem metafísica entre o bem e o mal, a ordem e o caos, Deus e o diabo. Reinaldo tenta dialogar com o demo e recebe o silêncio como resposta ao pacto. Como se fosse algo subjetivo ou mesmo inconsciente, pois a materialidade na narrativa não ocorre:

– ―Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!‖ Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que medeia. Como que adquirisse minhas palavras todas; fechou o arrocho do assunto. Ao que eu recebi de volta um adejo, um gozo de agarro, daí umas tranquilidades-de pancada. Lembrei dum rio que viesse adentro a casa de meu pai. Vi as asas. Arquei o puxo do poder meu, naquele átimo. Aí podia ser mais? A peta, eu querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas! (ROSA, 2001, p. 438).

É uma situação confusa entre o próprio narrador e o leitor, e não sabe se houve ou não o ritual pactário. O narrador diz: ―pacto? Não, não é não? Sei que não há. Falava das favas. Mas gosto de toda boa confirmação. Vender sua própria alma... Invencionice falsa! E, alma, o que é?‖. Como afirma Gomes:

173

Neste romance temos vários temas que são ingredientes das travessias: – geográfica do sertão; – literária do narrador; – espiritual; e travessia do leitor. Esses temas dizem respeito ao bem e ao mal; a Deus e ao diabo; ao caos e à ordem; às paixões: amor e ódio; à religiosidade; ao sertão; ao medo e à coragem; à mutabilidade das coisas, às metamorfoses. Dentre esse amálgama de temas destacamos o do bem e do mal, circunscrito à figura do diabo. Numa organização que pretende dar visibilidade aos temas mais abrangentes e reiterados na própria composição do romance, as referências ao diabo assumem lugar de destaque já pelo próprio subtítulo: ―O diabo na rua, no meio do redemoinho...‖ GOMES, Leny da Silva. Veredas do Grande Sertão: Linguagens, interação e hipertexto. Disponível em Acesso em: 20 mai.2012.

O pacto147com o diabo surge pela necessidade de se ter poder suficiente para vencer Hermógenes, considerado como a própria encarnação do mal, devido aos seus atos de crueldade e desejo de carnificina. Através dessa luta e vitória sobre o bando de Hermógenes, Riobaldo seria uma possível tentativa de selar a ordem no sertão. Matar Hermógenes Saranhó Rodrigue Felipes, possivelmente outro pactário com o diabo, também representa o mesmo desejo perseguido por Diadorim em toda a travessia, o que agradaria ao amigo, pois vingaria a morte de seu pai, Joca Ramiro. Os comentários feitos por João Bugue, que diz a Riobaldo: ―me disse, ou disse a outro, do meu lado: – ― ... O Hermógenes tem pauta... Ele se quis com o Capiroto...‖, acerca do pacto realizado por Hermógenes, instigam Riobaldo a perceber a possibilidade de adquirir poderes transcendentais pelo pactário, como ter o corpo fechado contra os males do tempo e da guerra; em troca, haveria a perda da alma. Candido diz:

Para vencer Hermógenes que encarna o aspecto tenebroso da cavalaria sertaneja — cavaleiro felão, traidor do preito e da devoção tributados do suserano —, é necessário ao paladino penetrar e dominar o reino das forças turvas. O diabo surge então, na consciência de Riobaldo, como dispensador de poderes que se devem obter; e como encarnação das forças terríveis que cultiva e represa na alma, a fim de couraçá-la na dureza que permitirá realizar a tarefa em que malogram os outros chefes (CANDIDO, 2012, p. 122).

A cena em que foi realizado o pacto por Riobaldo, isolado do seu bando, o iniciado em total solidão, efetua-se numa encruzilhada das Veredas-Mortas, nome sugestivo para um local ermo e sinistro, lugar tenebroso e estéril de veredas estagnadas. Lugares assim são

147 Sobre o pacto e o diabo, Castro descreve: O pacto: houve ou não houve? Este questionar é a força através da qual vai decorrendo toda a narração, constituindo a obra. Na sua metodologia de narrar especulando, o autor para contar os grandes fatos de sua vida parte de exemplos semelhantes que sucederam a outros, [...] No livro há a narração de dois pactos e referencias a um terceiro, que é o de Hermógenes. Afinal não se fica sabendo se Hermógenes pactuou ou não, embora, ao nível da estória, seja ele um dos pretextos que leva Tatarana a tal decisão, na sua determinação de vencê-lo (CASTRO, 1976, p. 66). 174 recorrentemente utilizados para a prática ritualística de um martírio iniciático, um cerimonial mágico-religioso de acepção mítica. Como diz Candido: ―nessa iniciação às avessas, de assimilar as potências demoníacas que abrem caminho a todas as ousadias, a situação é necessariamente marcada por uma certa atmosfera de opressivo terror, parte, aliás, de muitos ritos de passagem‖ (CANDIDO, 2012, p. 122). Nas palavras do próprio narrador:

Eu ouvi aquilo demais. O pacto! Se diz – o senhor sabe. Bobéia. Ao que a pessoa vai, em meia-noite, a uma encruzilhada, e chama fortemente o Cujo – e espera. Se sendo, há-de que vem um pé-de-vento, sem razão, e arre se comparece uma porca com ninhada de pintos, se não for uma galinha puxando barrigada de leitões. Tudo errado, remedante, sem completação... O senhor imaginalmente percebe? O crespo – a gente se retém – então dá um cheiro de breu queimado. E o dito – o Coxo – toma espécie, se forma! Carece de se conservar coragem. Se assina o pacto. Se assina com sangue de pessoa. O pagar é a alma. Muito mais depois. O senhor vê, superstição parva? Estornadas! ―... O Hermógenes tem pautas...‖ Provei. Introduzi. Com ele ninguém podia? O Hermógenes – demônio. Sim só isto. Era ele mesmo (ROSA, 2001, p. 64).

Uma vez cumprido o ritual, Riobaldo assume e enfrenta seus medos, tornando-se por fim líder do seu bando. Existe todo um processo de mudança no comportamento do narrador: Cumprido o rito, o narrador aparece marcado pelo sinal básico da teoria iniciatória: a mudança do ser. O iniciado, pela virtude das provas a que se submeteu, renasce praticamente, havendo um grande número de sociedades que fazem a iniciação consistir na simulação da morte seguida da ressurreição (CANDIDO, 2112, p. 123).

Riobaldo fica então decisivo nos seus atos arbitrários, beirando a arrogância, assumindo também um novo nome: Urutu-Branco148. É todo um processo de passagem das trevas para luz, da iniciação ao mal para se chegar ao bem, cujo nome (urutu), é bastante enigmático: uma serpente, um ―signo da união dos contrários‖:

A urutu, substantivo feminino brasileiro – é negra, marcada com uma cruz na cabeça; qualificada de ‗branco‘, esta serpente venenosa se torna simbólica, portadora das duas cores iniciais da alquimia. Se a isto acrescentamos cobra voadeira, consta- se que pertence ao mundo aéreo. Ctoniana por seu corpo, torna-se uraniana pelo alcance de sua picada. Feminino-masculino, cruz na cabeça, preto-branco, terra-céu, é a união dos contrários (UTEZA, 1994, p. 126).

A imagem fotográfica sugere que dentre tantas ambiguidade no horror da guerra e dúvidas que pontuam essas passagens iniciátivas de Riobaldo, como no contexto pactário, um detalhe sempre é percebido nesse transcorrer da narrativa: é que durante a sua jornada existiu sempre uma falha — a falta da mulher. O jagunço Riobaldo traz para o sertão a ―metáfora

148 Como sabemos, os ritos de passagem comportam muitas vezes a atribuição ou acréscimo de um nome, ou revelação do nome verdadeiro, conservado secreto (CANDIDO, 2112, p. 123). 175 materna‖ e a evocação do feminino desde a figura devotada de Nossa Senhora149 até as de outras figuras femininas, como Nhorinhá, Diadorim e Otacília: Acirrando a sensação de ser diferente, a percepção da irracionalidade mortífera, espontânea e ―inocente‖ (isto é, nunca percebida pelos próprios jagunços, mas apenas pelo observador estranho, o Riobaldo ―diferente‖) sempre trará à tona a metáfora materna – a evocação do feminino, das mães e das madrinhas etc. – como termo oposto ao excesso da violência jagunça. Rejeitando seu próprio impulso inicial de participar da sebaça proposta pelos companheiros, Riobaldo representa os habitantes desamparados como seus próximos, como filhos e madrinhas. A exclusão da feminilidade surge portanto como falha radical e simbolicamente relevante para a compreensão do romance. Nesse sentido, não pode passar desapercebido o fato de que nenhum jagunço e nenhum chefe sejam representados como ligados a uma mulher por laços efetivos ou jurídicos (ROSENFIELD, 1993, p. 82-83).

Na entrada ―Tapera Nhã‖, em Guararavacã de Guacuí, no meio do livro, ―Aqui eu podia pôr ponto. Para tirar o final, para conhecer o resto que falta, o que lhe basta, que menos mais, é pôr atenção no que contei, remexer vivo o que vim dizendo‖ (ROSA, 2001, p. 324- 325), nessa passagem da obra diversos signos são desvelados através de fatos que são rememorados por Riobaldo:

[...] ele pensa em cada um dos chefes jagunços com quem lutou, em cada um dos amores vividos, dos mais importantes aos mais passageiros da juventude, discorre sobre o pacto, sobre as dificuldades da travessia e sobre a falta de mulheres, até referir-se à masturbação, como a saída que os homens do bando encontravam muitas vezes (RONCARI, 2004, p. 80).

A Grande Mãe é o princípio que possibilitará que se instaure o equilíbrio no mundo sertanejo. O amor profano e carnal com a encantadora ―militriz‖ Nhorinhá e o amor sagrado com Otacília são as nuances de alegria e felicidade dadas a Riobaldo. Diadorim150, no entanto, aquele amor ―neblina‖ na vida de Riobaldo, não haveria de ter gozo mesmo. Daí preferir o ódio, tendo o amor somente pela guerra, um amor

149 Existem cerca de 14 instâncias na obra em que Riobaldo evoca o feminino na imagem de Nossa Senhora, Citamos apenas duas passagens: No escuro. Mas senti: me senti. Águas para fazerem minha sede. Que jurei em mim: a Nossa Senhora um dia em sonho ou sombra me aparecesse, podia ser assim – aquela cabecinha, figurinha de rosto, em cima de alguma curva no ar, que não se via. Ah, a mocidade da gente reverte em pé o impossível de qualquer coisa! Otacília. O prêmio feito esse eu merecia? (ROSA, 2001, p.174 ). E Zé Bebelo, segredando comigo, espiou para trás, observou assim, pegando na minha mão: – ―Riobaldo, escuta, botei fora minha ocasião última de engordar com o Governo e ganhar galardão na política...‖ Era verdade, e eu limpei o haver: ele estava pegando na mão do meu caráter. Aí,aclarava – era o fornido crescente – o azeite da lua. Andávamos. Saiba o senhor, pois saiba: no meio daquele luar, me lembrei de Nossa Senhora (ROSA, 2001, p. 386 ). 150 Diadorim era marcada pela figura masculina, tendo apenas o pai, não sendo mencionada a figura da mãe, exercendo, por isso, um mandado de ódio, sofrendo uma condenação à guerra e à vingança que levará à autodestruição. E, ainda, cortando todas as possibilidades de erotismo, se fecha completamente para as interações amorosas, desde o episódio do mulato no rio (em que Diadorim o corta com uma faca) até o ódio que sente por Ana Duzuza e sua filha e por Otacília, que revela não apenas o ciúme por Riobaldo, mas a inveja do exercício de uma sexualidade a ela negada (LIMA, 2008, p. 61). 176 autodestrutivo, não existindo saída a não ser um desfecho trágico, que culmina com a própria morte. Riobaldo deseja não apenas a mulher carnal, mas o feminino como o princípio capaz de manter o equilíbrio do mundo. Cansado de guerra, de amores interditos, do onanismo151 e do estupro, ele busca o feminino num sentido pleno e da alteridade: O contexto deixa claro que não se trata da satisfação superficial de veleidades eróticas, porém ―mulher‖ significa aqui um Outro, um principio que assigna à paixão mortífera e à virilidade perversa seus devidos limites [...] Ele tem saudades da mulher como principio de sua alteridade capaz de assegurar o equilíbrio, delimitando as aspirações indeterminadas (ROSENFIELD, 1993, p. 79).

Numa ―dimensão mítica da feminidade‖, como assinala, Rosenfield (1993), no particular mundo da jagunçada em que Riobaldo está inserido, apesar de Diadorim ser uma persona blindada na arte de amar, no entanto, fica subentendida no romance uma paixão recíproca entre eles. Diadorim talvez seja a personagem que mais consiga ter consciência das fraquezas, alegrias e da sensualidade do seu companheiro Riobaldo. A mulher das artes da guerra, Diadorim, tinha como ―sombra‖ uma obrigação de esconder a sua feminilidade a todo custo, de modo que projeta o seu lado feminino, ofuscado em Riobaldo; este, por sua vez, projeta o seu desejo ―sombra‖ e seus medos em Diadorim. Pois para ser um homem corajoso tinha de assumir particularidades da persona da guerreira travestida. Desse modo, os dois se complementariam, como yang ying, duas energias equilibradas. No entanto, essa relação fica somente no plano das projeções de seus desejos. Assim como Diadorim, Riobaldo consegue projetar o seu jeito diferente de ser jagunço em suas outras mulheres, fazendo aflorar o seu lado ―associado às figuras femininas virginais, maternas e telúricas‖, como afirma Kathrin Rosenfield: Nos bandos de jagunços, Riobaldo surge como o único para quem o mundo feminino tem um interesse intrínseco – um segredo e uma atração maravilhosa que conferem à mulher uma dignidade marcante e independente dos interesses jagunços. A atitude ambivalente de Riobaldo, a oscilação entre a violência viril e a ternura sensual, deixam suas marcas inclusive na estrutura narrativa (ROSENFIELD, 1993, p. 84).

151 Em dois momentos ocorre a prática de masturbação na obra, em dois casos consecutivos: Agora – e os outros? – o senhor dirá. Ah, meu senhor, homens guerreiros também têm suas francas horas, homem sozinho sem par supre seus recursos também. Surpreendi um, o Conceiço, que jazia vadio deitado, se ocultando atrás de fechadas moitas; momento que raro se vê, feito o cagar dum bicho bravo. – ―É essa natureza da gente...‖ – ele disse; eu não tinha perguntado explicação (ROSA, 2001, p. 332).

A noite que houve, em que eu, deitado, confesso, não dormia; com dura mão sofreei meus ímpetos, minha força esperdiçada; de tudo me prostrei. Ao que me veio uma ânsia. Agora eu queria lavar meu corpo debaixo da cachoeira branca dum riacho, vestir terno novo, sair de tudo o que eu era, para entrar num destino melhor. Anda que levantei, a pé caminhei em redor do arrancho, antes do romper das horas d‘alva. Saí no grande orvalho. Só os pássaros, pássaro de se ouvir sem se ver. Ali se madruga com céu esverdeado (ROSA, 2001, p. 333) 177

Sua atitude é ambivalente desde o pacto, tornando-se Urutu-Branco e, numa nova dimensão, como uma cobra voadora, assumindo ao mesmo tempo o papel terreno e aéreo, dois polos distintos do arquétipo. Como quando Zé Bebelo o chama: ―Tu é tudo, Riobaldo Tatarana! Cobra voadeira...‖ (ROSA, 2001, p. 353). Maureen Bisilliat faz emergir em sua imagem fotográfica o feminino na figura metonímica do seio, parte do corpo feminino, que se conjuga com a alimentação, o que remete também à falta diante de um sertão hostil e de virilidade jagunça. A fotógrafa, mas sobretudo o trabalho dela, aponta essa falta, pois: ―O amor vital desdobra-se nas figuras da ‗alegria‘ vivida no contato com as figuras femininas (ROSENFIELD, 1993, p. 93). Um seio telúrico suspenso no ar assim como o Urutu-Branco, ―cobra voadeira‖, é o que sugere a imagem fotográfica de Maureen Bisilliat, indicando a possibilidade de equilíbrio entre os dos arquétipos, o masculino e o feminino, uma vez que a graça da alegria, da beleza e do amor se dá com o feminino, elemento carente no sertão. A imagem, por sua vez, é inserida nas referências textuais que remetem a outras imagens de ordem feminina, ao assumirem esse contexto como o universo da Grande Mãe, que possui dois lados: um positivo e outro negativo. De um lado, a figura da mãe protetora, com a imagem reveladora do seio farto e a incumbência de nutrir, proteger; noutro, a da mãe devoradora, que repudia e priva, um lado sombrio como a imagem transparece, numa névoa escura. Portanto, uma concepção do bem e do mal, remetendo as mulheres ao regime noturno de Gilbert Durand, que conjugado ao mundo rosiano de hostilidade masculina tenta equilibrar-se.

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6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

O escritor João Guimarães Rosa empreendeu viagens, partindo de Cordisburgo, pequena cidade no centro das Gerais, por trás das montanhas. Depois dessa cidade conhece algumas outras, desde os tempos em que começou a atuar como médico na pequena Itaguara. Tantas jornadas... Talvez a mais famosa delas seja a registrada pela revista O Cruzeiro, em 1952, a que parte em direção ao sertão mineiro, acompanhando uma boiada, por dez dias, percorrendo cerca de 240 quilômetros, de Araçuaí até Três Marias, cidade margeada pelo rio São Francisco e pela presença do cerrado. Viagens que contribuíram para a literatura, como se nota no ciclo de novelas Corpo de Baile e em Grande Sertão: Veredas. Suas anotações durante essa viagem, utilizando dezenas de pequenos cadernos que dependurava ao pescoço, não deixavam escapar nada ao alcance de seus olhos e ouvidos. Tomava nota tanto dos ―causos‖ dos vaqueiros quanto também captava, através dos demais sentidos, impressões daquele mundo encantado e novo do sertão que remetia para o mundo. Já Maureen Bisilliat empreende inicialmente outras viagens. O fato de o pai ser diplomata a obriga a fazer constantes mudanças de cidades em sua vida. Ao chegar ao Brasil, concebe a possibilidade de permanecer para sempre no território brasileiro; havia um elo inconsciente até então desconhecido entre ela e o Brasil. No início da década de 60, recebe de um amigo mineiro de Patos de Minas um livro de presente, Grande Sertão: Veredas. Uma das suas primeiras jornadas em terras brasileiros é então iniciada, através da literatura, mergulhando no mundo sertanejo, recriado em palavras através do imaginário do universo rosiano. A obra causou um impacto significativo em sua vida, a ponto de querer conhecer quem era esse escritor brasileiro. Até então não sabia o motivo de tamanho encantamento. Inconscientemente, tais imagens remetiam aos valores da terra, ao homem do campo, ao sertão. João Guimarães Rosa ao conhecê-la desvenda tal impacto para a incipiente fotógrafa, ao afirmar que as origens de Maureen Bisilliat remetiam aos povos irlandeses e à terra de lá, daquele universo de que brotava não só a terra, mas o mundo das palavras e a sua linguagem. Por esse motivo, sua obra Grande Sertão: Veredas obteve tanto interesse por parte da fotógrafa. João Guimarães Rosa propôs que Maureen Bisilliat testemunhasse esse mundo elaborando um roteiro fotográfico, tendo como início a sua cidade natal, Cordisburgo, — e 179 indo até o alto sertão mineiro, que culminava na cidade de Januária, fronteira com a Bahia. São esses os rumos que fazem o encontro de João Guimarães Rosa e Maureen Bisilliat e que a levam a trilhar caminhos nunca antes imaginados. O roteiro, traçado pelo escritor, motiva ainda mais a fotógrafa a empreender uma jornada de algumas viagens ao sertão mineiro, sempre acompanhada de perto por seu roteirista em suas chegadas. João Guimarães Rosa sempre indagava a Maureen Bisilliat sobre todos os detalhes vistos por ela, queria saber minúcias de todos os lugares por onde passara e fotografara, nomes de pessoas, localidades, vegetação. Em 1967, Maureen Bisilliat não consegue dar como concluída a obra em conjunto com o escritor, e este falece. O inventário fotográfico é então organizado e publicado em 1969, dois anos após a sua morte. João Guimarães Rosa deu total liberdade de interpretação à fotógrafa. Duas linguagens aparentemente díspares, literatura e fotografia, propiciaram uma aproximação de acordo com o olhar da fotógrafa. A literatura e a fotografia são detentoras de linguagens distintas, especialidades que ao longo dos tempos se imbricam e se complementam. Por mais que se diga que uma imagem vale mil palavras, ela nunca abarca a totalidade desse universo, assim como a literatura. Ao transpor a obra Grande Sertão: Veredas para o universo físico das imagens fotográficas, pôde-se observar a existência da complementaridade entre elas. O escritor traduz uma realidade, e a fotógrafa a desvenda com outra linguagem, e estas se combinam. O resultado dessas relações entre linguagens resulta numa produção criativa. Ao adotarmos essa sugestão, pudemos viabilizar a proposta de estudar o ensaio A João Guimarães Rosa de Bisilliat como uma tradução criativa do romance Grande Sertão: Veredas, cujas fotos foram feitas mediante um roteiro livre fotográfico, com algumas sugestões de cidades nas primeiras viagens: partindo de Cordisburgo, em seguida, Curvelo, Corinto, Lassance, até o extremo norte, com a cidade de Januária. Elementos dados pelo próprio João Guimarães Rosa depois da leitura do livro pela fotógrafa. Nossa contribuição consiste em apontar que, apesar de tantas outras interpretações indicando a possibilidade da considerável presença feminina presente na obra, o ensaio fotográfico também contribui ao confirmar que é possível ter essa leitura de um sertão com a representação do universo feminino que interage com o masculino, com um olhar feminino, na tentativa de se conseguir obter um mundo equilibrado, como yang ying, forças básicas opostas e interligadas. No sertão rosiano — esse mundo hostil masculino — de tantas violências e provações —, o universo feminino de Maureen Bisilliat surge como a falta, a graça, um sopro da alegria feminina que vai suprir esse universo masculino. A relação entre 180

Nhorinhá, Diadorim e Otacília conduz a travessia de Riobaldo, elementos femininos indissociáveis na obra que demonstram essa particularidade, características do signo apontadas por Charles Sanders Pierce em sua famosa tríade. O surrealismo, de forma inconsciente, foi absorvido por Maureen Bisilliat, bem como a sua relação com o mundo literário rosiano na concretização de seu trabalho, em imagens tidas como fantasmagóricas, muitas vezes desprezando a nitidez no foco, com enquadramentos fora das convenções, com fortes sombras e, em outras vezes, um excesso de luminosidade. Verificamos que outras escolas também fazem parte de sua criação artística, como o Dadaísmo e a Arte Contempôranea, sobretudo o movimento Barroco, que possibilitou similitudes entre as linguagens de João Guimaraes Rosa e Maureen Bisilliat. Os componentes do romance parecem ter funcionado também como uma espécie de sinalizador, um roteiro traçado entre escritor e fotógrafa. Afinal, foi o próprio João Guimarães Rosa que traçou o roteiro fotográfico para Maureen Bisilliat nos anos 60. Os fragmentos do romance utilizados em suas imagens fotográficas revelam que o poema e o conto são mais propícios ao acompanhamento das imagens, funcionando como se fossem legendas em cada representação fotográfica. O roteiro descrito por Rosa aponta também para as andanças do próprio escritor em suas viagens pelo sertão mineiro, como a que realizou com o pessoal da revista O Cruzeiro, em 1952. Tais anotações feitas em seus caderninhos também impregnaram a criação de sua obra Grande Sertão: Veredas. O mapa dado por Guimarães Rosa conduz a fotógrafa à elaboração da releitura do romance, percorrendo alguns lugares do sertão mineiro. Maureen Bisilliat tem a total liberdade e traduz a obra sob o ponto de vista feminino. Com esse procedimento ela enriquece o romance, porque revela um aspecto que estava subentendido no romance: a presença feminina, principalmente no momento em que brotam em suas imagens, cheias de contrastes e subversões, que revelam o universo épico, mítico e poético descrito por João Guimarães Rosa. Dessa forma, textos e fotos se integram, complementando-se. Maureen Bisilliat revela em suas imagens o elemento feminino, nos retratos fictícios como as representações de Nhorinhá, Diadorim, Otacília e tantas outras mulheres, e elementos simbólicos femininos pertencentes ao universo do regime noturno, caracterizado principalmente pela estrutura eufemizante do Regime Noturno Místico apontado por Gilbert Durand. Seu imaginário aponta inicialmente, através da imagem fotográfica, a presença da Mulher, da Mãe, do Recipiente, da Noite, da Morada, da Taça, da Cabaça, do Pote, da Gamela, do Cocho, do Alguidar, da Moringa (jarro de barro para guardar água fresca), 181 recipientes que se assemelham a um vaso, tendo a Taça como arquétipo simbólico, e tantos outros elementos associados ao arquétipo materno, por sua vez interligados ao universo mítico da obra Grande Sertão: Veredas. O universo literário rosiano está repleto de diversos elementos míticos ancestrais femininos que dialogam e também direcionam o olhar da Maureen Bisilliat, de modo que o texto literário está indissoluvelmente ligado à sua tradução fotográfica. Dessa maneira, as imagens da fotógrafa possuem por demais índices que remetem a Grande Sertão: Veredas. A fotógrafa encontra no Brasil elementos correspondentes que a associam a sua origem e a sua ancestralidade irlandesa. As imagens até então confusas das montanhas escuras que povoam o seu imaginário são desveladas através de Grande Sertão: Veredas. Imagens reveladas mediante diversos elementos que compõem o imaginário feminino e reverberam em conjunto com a obra rosiana. Grande Sertão: Veredas é o elemento iniciador de semiose particular de Maureen Bisilliat, seu universo artístico até então latente. As imagens inconscientes femininas são, então, apresentadas intuitivamente, de um real transformado em onírico, à medida que ela mergulha no universo de João Guimarães Rosa. Tal intuição criativa possui breves resquícios do automatismo psíquico puro, defendido pelos surrealistas, e que contribui para a formação da consciência artística da fotógrafa, embora ela nunca tenha se utilizado dos termos conceituais do surrealismo. Segundo a própria fotógrafa, sua criação sempre teve um viés intuitivo, com a plasticidade e a abstração oriundas da pintura, seu primeiro ofício artístico. Os ensinamentos da pintura foram conjugados a uma força abstrativa ao se iniciar na fotografia em preto-e-branco. No entanto, não podemos esquecer que em suas jornadas de aprendizagem artística teve como professor de pintura o surrealista André Lhote, o mesmo que deu aulas ao também fotógrafo Henri Cartier-Bresson. No entanto, o contexto de Maureen Bissiliat é diferente daquele de André Breton e seus radicais Manifestos. Os estranhamentos surgidos causaram tantas perturbações inusitadas naquele período do surrealismo como a obra literária Nadja, de Breton. Do mesmo modo, também as imagens fotográficas que retratam o vazio nas esquinas da cidade, noutras os retratos dos manequins nas vitrines das lojas e os interiores dos bares e cafés sem pessoas, como as imagens fotográficas dos precursores da fotografia surrealista (Eugène Atget); além das sugestões de montagem produzidas pelo fotógrafo Man Ray, que também reverberam no trabalho de Maureen Bisilliat, ainda que ela os utilize de forma inconsciente. Enfatizamos que a radicalidade e as rupturas no contexto dos anos 20 não integram a sua proposta; ela se engaja numa possibilidade estética criativa de coexistência entre as linguagens literária e fotográfica. 182

A fotografia e suas ambiguidades transitam entre a realidade e a ficção, no entanto será sempre a nossa visão de mundo que vai interpretá-la. Mesmo assim, ainda parece que a leitura fotográfica carece de uma devida decifração, uma anomalia semelhante a um analfabetismo: nossa visão fotográfica associada ao mundo das palavras. O mundo literário é um alfabeto imagético que possibilita ampliar nossa visão de mundo conjugada ao universo da imagem fotográfica.

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REFERÊNCIAS

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APÊNDICES

(Apêndice 1) - (Figura 9)

Os quatro cavaleiros do Apocalipse, 1498. Albrecht Dürer (quarta xilogravura da série de 15 gravuras que ilustram o apocalipse) (FARTHING, 2010, p. 186.).

Esta é quarta xilogravura do conjunto de 15 gravuras feitas por Albrecht Dürer que ilustram o apocalipse do Livro da Revelação do Novo Testamento. Foi sua primeira grande série de ilustrações, e quando publicada, em 1498, teve enorme sucesso. As técnicas inovadores de Dürer usam linhas paralelas e cruzadas para criar tons de luz e sombra e volume, ao passo que a disposição em diagonal dos cavaleiros acrescenta dinamismo à obra. As gravuras ajudaram a estabelecer a reputação internacional do artista e a revolucionar as ilustrações de livros. O sucesso das obras deram a Dürer uma nova fonte de renda que durou pelo resto de sua vida. Dürer escolheu o tema com inteligência. Com a chegada de 1500, muitas pessoas acreditavam que o fim do mundo estava próximo, por isso as imagens do apocalipse estavam muito em voga. Na Bíblia, os quatro cavaleiros surgem depois que os primeiros quatro selos do Livro Sagrado, guardado pelo cordeiro de Deus, são rompidos (Apocalipse 4:1-8). A identidade dos cavaleiros varia em diferentes representações da cena: na versão de Dürer, o primeiro cavaleiro, com um arco e flecha, representa a enfermidade; o segundo ergue uma espada e representa a guerra; o terceiro, com uma balança vazia, a fome; e o quarto cavaleiro a morte, atirando as pessoas para as garras do inferno. A fonte elementar do tema provavelmente está na profecia de Zacarias, no Antigo

Testamento (Zacarias 6:1-7), que se refere a quatro carruagens, cada qual com cavalos de uma cor e que são chamados de "os quatro espíritos dos Céus" (FARTHING, 2010, p. 187).

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(Apêndice 2) - O escritor com olhar de fotógrafo e outras relações

O poeta e escritor português Fernando Pessoa escreveu o poema O guardador de rebanho, na condição de um dos seus heterônimos, Alberto Caeiro, num total de 49 estrofes que podem ser interpretadas como poemas separados, lançado em torno de 1911-1912152. Caieiro é considerado ―o poeta da Natureza: [...] só existe a realidade mesma, palpável sua preocupação é com as coisas palpáveis, visíveis, percebida pelos sentidos.‖ (PESSOA, 2010, p. 21-22) No poema VIII, o poeta apresenta claramente suas características como a de alguém que assimila o mundo que o rodeia, contentando-se com a realidade visual descrita através de uma imagem fotográfica conjugada aos outros sentidos, como ele descreve no poema IX153. A fotografia soa como um recorte da realidade sem transcendências, uma realidade nua e crua captada pela visão de um mundo inequívoco. Ele descreve com exatidão de detalhes uma cena que não pode ser lida de forma transcendental, pois abomina tal condição. O sonho é retratado como algo palpável; a fotografia é a possibilidade concreta de tornar o sonho real, algo que realmente aconteceu; ―a coisa esteve lá‖ (BARTHES, 1984, p. 115) diante dele ou de um fotógrafo que capta a imagem de Jesus Cristo que desce do céu e se transforma em Menino Jesus:

Num meio-dia de Primavera / Tive um sonho como uma fotografia. Vi Jesus Cristo descer à terra. / Veio pela encosta de um monte Tornado outra vez menino, / A correr e a rolar-se pela erva E a arrancar flores para as deitar fora / E a rir de modo a ouvir-se longe. (PESSOA, 2010, p. 21-22)

Trata-se de uma sequência de imagens a compor uma narrativa fotográfica, que foto a foto compõe a estrofe-poema: O Cristo que mais adiante, no poema VII, ―A mim ensinou-me tudo. / Ensinou-me a olhar para as coisas.‖ (PESSOA, 2010, p. 47). Um guardador de rebanhos que pensa através dos olhos mas que, com tal simplicidade, consegue captar a beleza do mundo. ―Esse ‗detalhe‘ é o punctum‖ (BARTHES, 1984, p. 68). É o que atrai os olhos para as coisas novas, porém inusitadas, que se passam ao seu redor, que bem poderia ser um olhar de um fotógrafo que captura os instantâneos poéticos através de imagens fotográficas, que

152 ―Embora O guardador de rebanhos traga datas, os poemas I, II, XXVI, XL, XLI, XLII, XLIII, XLIV, e XLVI são datados, pelo autor, de 1914.‖ TUTIKIAN, Jane. In: PESSOA, Fernando. Poemas de Alberto Caeiro (Organização, introdução e notas). Porto Alegre, RS: L&PM, 2010. 153 ―Penso com os olhos e com os ouvidos / E com as mãos e os pés / E com o nariz e a boca.‖ (PESSOA, 2010, p.31). 198 passam despercebidas para a grande maioria. ―A espantosa realidade das coisas/É a minha descoberta de todos os dias‖154, está no poema, O guardador de rebanhos.

O meu olhar é nítido como um girassol. / Tenho o costume de andar pelas estradas / Olhando para a direita e para a esquerda, / E de vez em quando olhando para trás... / E o que vejo a cada momento / É aquilo que nunca antes eu tinha visto, / E eu sei dar por isso muito bem... /Sei ter o pasmo comigo / Que tem uma criança se, ao nascer, (PESSOA, 2010, p. 34).

Na obra de Pessoa, o Livro do desassossego, de Bernardo Soares, ajudante de guarda- livros que vive na cidade de Lisboa (considerado como sendo um semi-heterônimo de Fernando Pessoa), ele narra diversos pensamentos fragmentados; entre eles está presente a fotografia. Soares demonstra com clareza a sua maneira minuciosa de observar as pessoas, semelhante ao visor de uma câmera fotográfica, ao descrever um rapaz muito gordo em uma escada: ―Vejo o gajo. Vejo-o fotograficamente. [...] — o gajo tão grosso que nem via que era de degraus a escada — talvez a escada onde a humanidade sobe aos tombos, apalpando-se e atropelando-se na falsidade regrada do declive aquém do saguão‖ (PESSOA, 2010, p. 23). Em outra passagem do livro, Soares descreve o momento em que seu colega de trabalho, que não se sabe por qual motivo, resolve tirar um retrato de todos do escritório:

O sócio capitalista aqui da firma, sempre doente em parte incerta, quis, não sei por que capricho de que intervalo de doença, ter um retrato do conjunto do pessoal do escritório. E assim, antes de ontem, alinhamos todos, por indicação do fotógrafo alegre, contra a barreira branca suja que divide, com madeira frágil, o escritório geral do gabinete do patrão Vasques. Ao centro o mesmo Vasques; nas duas alas, numa distribuição primeiro definida, depois indefinida, de categorias, as outras almas humanas que aqui se reúnem em corpo todos os dias para pequenos fins cujo último intuito só o segredo dos Deuses conhece. (PESSOA, 2010, p. 90)

Após ter se esquecido da referida foto tirada há dois dias, Bernardo Soares surpreende- se ao encontrar seu chefe Moreira e um caixeiro de praça debruçados sobre duas fotografias. Soares se surpreende com o que vê diante dos olhos, a ponto de não reconhecer a si próprio, e o pior, de não se aceitar como de fato é, um sujeito de aparência magra, angustiada, triste e também corcunda, principalmente quando estava sentado, fisionomia esta descrita por Fernando Pessoa155. No entanto, Bernardo reconhece que todos têm uma aparência expressiva e apresentável como a de seu chefe Vasques, bem como a dos demais colegas de trabalho. A fotografia, através do seu olho, a lente fotográfica denominada de objetiva, serve para Soares

154 PESSOA, Fernando. Disponível em: . Acesso em: 12 set. 2013. 155 ―Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado. Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava — parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito‖ (PESSOA, 2010, p. 41). 199 assim perceber a verdade do mundo que o rodeia, não podendo negar as suas próprias deformidades corporais, e com isso, também influenciando o seu comportamento, pois, através delas, ele se convence de sua inferioridade em relação aos demais. Vejamos a obra, no momento em que ele depara com sua imagem:

Sofri a verdade ao ver-me ali, porque, como é de supor, foi a mim mesmo que primeiro busquei. Nunca tive uma ideia nobre da minha presença física, mas nunca a senti tão nula como em comparação com as outras caras, tão minhas conhecidas, naquele alinhamento de quotidianos. Pareço um jesuíta frusto. A minha cara magra e inexpressiva nem tem inteligência, nem intensidade, nem qualquer coisa, seja o que for, que a alce da maré morta das outras caras. Da maré morta, não. Há ali rostos verdadeiramente expressivos. O patrão Vasques está tal qual é — o largo rosto prazenteiro e duro, o olhar firme, o bigode rígido completando. A energia, a esperteza, do homem — afinal tão banais, e tantas vezes repetidas por tantos milhares de homens em todo o mundo — são todavia escritas naquela fotografia como num passaporte psicológico. Os dois caixeiros viajantes estão admiráveis; o caixeiro de praça está bem, mas ficou quase por trás de um ombro do Moreira. E o Moreira! O meu chefe Moreira, essência da monotonia e da continuidade, está muito mais gente do que eu! Até o moço — reparo sem poder reprimir um sentimento que busco supor que não é inveja — tem uma certeza de cara, uma expressão direta que dista sorrisos do meu apagamento nulo de esfinge de papelaria. (PESSOA, 2010, p. 90-91)

Apesar de toda sua negatividade, a visão de mundo de Bernardo Soares se assemelha à de Alberto Caeiro, pois ele contempla as coisas como se observasse tudo pela primeira vez.

Vogo, atenção só dos sentidos, sem pensamento nem emoção. Despertei cedo; vim para a rua sem preconceitos. Examino como quem cisma. Vejo como quem pensa. E uma leve névoa de emoção se ergue absurdamente em mim; a bruma que vai saindo do exterior parece que se me infiltra lentamente. (PESSOA, 2010, p. 123)

Em alguns momentos da obra, a objetividade fotográfica é exacerbada através das palavras do autor, numa precisão minuciosa e contemplativa de Bernardo Soares, em que tudo é descrito tecnicamente. Soares torna-se fotográfico; ele fala através da fotografia, tomando o próprio corpo tamanha impregnação da fotografia sobre ele, como se estivesse impregnado de elementos químicos sensíveis à luz, como em um negativo fotográfico, tendo a capacidade então de registar momentos exatos, as frações de segundos inerentes ao clicar da câmera na captura de imagens exteriores, fixadas no corpo, uma placa sensível à luz: ―As palavras fotográficas, ao invés das palavras picturais, permitem apontar em vez de descrever, ou descrever como quem aponta. Como se o poeta tivesse palavras de dedos, ou dedos na extremidade das suas palavras.‖ (WUNDER apud FRIAS, 2007, p. 10). É percebida uma espécie de imaginação tecnológica impregnando a literatura, uma consequência da imaginação fotográfica na obra, através da visão de Soares:

200

Benditos sejam os instantes, e os milímetros, e as sombras das pequenas coisas, ainda mais humildes do que elas! Os instantes, [...] Os milímetros — que impressão de assombro e ousadia que a sua existência lado a lado e muito aproximada numa fita métrica me causa. Às vezes sofro e gozo com estas coisas. Tenho um orgulho tosco nisso. Sou uma placa fotográfica prolixamente impressionável. Todos os detalhes se me gravam desproporcionadamente [a] haver um todo. Só me ocupa de mim. O mundo exterior é me sempre evidentemente sensação. Nunca me esqueço de que sinto. (PESSOA, 2010, p. 193-194)

Noutro fragmento da obra, Soares descreve a relação do duplo fotográfico, ―ver a si mesmo (e não em um espelho). [...] Pois a fotografia é o advento de mim mesmo como outro: uma dissociação astuciosa da consciência de identidade.‖ (BARTHES, 1984, p. 25). Uma presença e ao mesmo tempo ausência, apontando para algo; trata-se da fotografia e sua relação com seu referente, ele próprio, e o olhar de Soares não se limita à possibilidade de descrever detalhes furtivos de um rosto, mas através do olhar tem a capacidade de escutar uma narrativa.

Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância — irmãos siameses que não estão pegados. (PESSOA, 2010, p. 146)

A fotografia remete à precisão, como diz Soares, utilizando o termo para designar precisamente: ―E terei dito bem; terei falado em absoluto, fotograficamente, fora da chateza, da norma, e da quotidianidade. Não terei falado: terei dito.‖ (PESSOA, 2010, p. 362). São diversas possibilidades da utilização da fotografia, como a questão da precisão minuciosa em detalhar as coisas, a questão do duplo e os instantâneos da realidade. Como pudemos verificar, as interações entre a literatura e a fotografia são variadas, apontadas na primeira parte do primeiro capítulo, desde a raridade de se encontrar escritores que também eram fotógrafos ou um poeta que trabalhou em parceria com um fotógrafo, a escritores que traduzem em palavras o ato fotográfico em minúcias. Na grande maioria, são fotógrafos que traduzem em imagens uma obra literária. Alguns produzem somente as imagens, partindo de outras imagens, as literárias; outros trabalham fragmentos de obras, mas sempre, de algum modo, existe a relação entre palavra e imagem, ambas coexistindo. O escritor e também fotógrafo Juan Rulfo, em sua obra Pedro Páramo (1955), único romance do escritor mexicano, narra a história de Juan Preciado e seus mortos na cidade de Comala, ou na própria definição do escritor, conta uma história de mortos, narrada por um morto a outro morto, numa cidadezinha morta. As imagens em seu trabalho são produzidas nos idos de 1940, antes mesmo de publicar o livro, como fruto do seu engajamento 201

(Fotografias 58 e 59) nas causas indígenas e nas questões da comunidade campesina. Sua notoriedade como fotógrafo foi reconhecida somente em torno de 1980, principalmente quando a ensaísta norte-americana Susan Sontag o destaca como um dos maiores fotógrafos latino-americanos. No entanto, Ruan Rulfo, modestamente, assim não se considerava, mesmo tendo deixado cerca de 6.500 fotografias entre impressas e negativos.

(Fotografia 58)156 – Comala, México. (Fotografia 59)157 Tepeaca, Puebla, México.

Embora Rulfo não tenha se manifestado sobre seu exercício nessa atividade, escreveu sobre a fotografia realizada pelo francês Henri Cartier-Bresson (Fotografia 60) em duas visitas que este fez a seu país, em 1934 e 1963. Seu conterrâneo Nacho Lopéz teceu comentários sobre esse relato ao afirmar: ―nos quais se pode perceber o olhar sobre a sua própria obra‖ (JIMENEZ, 2010, p. 8). Ao escrever sobre a obra de Bresson, em um catálogo de sua exposição em Paris, Rulfo assim se expressou: ―Esse México que Cartier-Bresson encontrou é o México que suas imagens expressam: pobreza, apatia e desencanto, ao lado de uma profunda solidão. O Paredão de fuzilamento permanecia ali numa testemunha do que havia sido a violência e a repressão‖ (RULFO, 2010, p. 22).

156 Comala, México. Disponível em: . Acesso em 5 ago. 2012.

157 (idem, ibidem) 202

(Fotografia 60) Fotografia de Henri Cartier-Bresson, em agradecimento ao texto do catálogo da exposição de Bresson a Juan Rulfo, ―pour Juan Rulfo, avec toute ma reconnaissance158‖,Paredão de fuzilamento, (RULFO, 2010, p. 25)

Por não escrever sobre as suas imagens, seja por relutância em se apresentar como fotógrafo e não como literato ou, ainda, como desempenhando as duas funções, nesse percurso paralelo entre a literatura e a fotografia, talvez, por isso, não se conheça muito a respeito do seu universo fotográfico. Não por coincidência, inicia seus primeiros escritos na década de 1940, no mesmo período em que começa a fazer suas primeiras imagens fotográficas e, por volta dos anos de 1960, abandona praticamente, quase por completo, a arte de produzir imagens e obras literárias, mas ainda assim continua a contribuir com roteiros cinematográficos, em conjunto com outros escritores.

―Não sou fotógrafo‖. Frase simples, mas que, em sua aparente leveza, é de certa forma reveladora e continua a ser o ponto de partida para compreender a relação entre o artista mexicano e a fotografia. Uma declaração derivada provavelmente da modéstia e de uma integridade que o convenceram, diante daqueles que dedicavam a vida profissional a sua atividade, de que não conquistara o direito de se definir como fotógrafo. Nós, porém, que hoje podemos examinar o arquivo completo de seus negativos e neles encontramos extraordinárias homogeneidade e intencionalidade – embora seu autor tenha mantido inédita a maioria deles -, consideramos dispor de elementos suficientes para desmenti-lo. Essa certeza de que sua atividade de fotógrafo não era passatempo, não era fortuita e tampouco fruto de momentos ocasionais, exige um esforço de compreensão, a necessidade de perguntar o que levava Rulfo a fotografar, o que procurava na fotografia que sabia não poder encontrar na literatura: é preciso fazer essa pergunta baseados na certeza de que Rulfo não tinha utilizado tão ampla e sistematicamente a câmera fotográfica sem fazer a si tal indagação (LUIGI apud RULFO, 2010, p. 16).

A relação entre a literatura e a fotografia de Rulfo em seus dois únicos trabalhos literários produzidos não se dá de forma direta, seja com Pedro Páramo (1955), sua obra mais conhecida, ou ainda com o conto El llano em llamas (1953)159. A relação não ocorre de forma emparelhada entre as imagens e as fotos que compõem as suas obras, no entanto é quase

158 Tradução: Para Juan Rulfo, com todo meu reconhecimento. 159 Em Portugal, foi traduzido como A planície em chamas; no Brasil, foi denominado deChão em chamas (1953). 203 impossível não relacionar as suas imagens fotográficas ao mundo que escreve, em que o passado, a história da qual foi testemunha, está impregnado em diversos aspectos da vida mexicana com o retrato de sua variada etnia, arquitetura, e sua paisagem muitas vezes com o aspecto desértico e desolador das ruínas nos vilarejos em suas imagens fotográficas em 100 melhores fotografias (2011), que são descritas em Pedro Páramo, o que reflete muito bem a sua infância solitária, na Cidade se San Gabriel, conhecedora da morte de perto, pois aos seis anos, perde o pai, que morre assassinado e, em seguida, perto dos dez anos, a mãe falece também, ficando órfão juntamente com seus irmãos, aos cuidados da avó. Suas imagens retratam o rastro de morte e também da violência que vem desde a colonização dos espanhóis, como o extermínio das culturas pré-colombianas, as civilizações consideradas avançadas para a época. Suas pirâmides, conhecimentos matemáticos e diversas esculturas em pedra como as dos astecas e as dos maias, além de outras etnias também dizimadas, representadas pelos toltecas, olmecas e zapotecas. O povo mexicano, mais adiante, ainda se depara com a revolução em seu país, somando-se a isso a guerra civil, com diversas batalhas e repressões ditatoriais impostas à população. E ainda nesse contexto do imperialismo norte-americano, a perseguição aos comunistas que viviam na clandestinidade, com algumas mortes e outros deportados que tentaram nesse país empreender uma ação revolucionária. Outro escritor também afeiçoado à fotografia foi o argentino Julio Cortázar. Ao escrever o conto As babas do diabo (1959), narra a história de um fotógrafo amador em Paris, Robert Michael. Esse conto foi possivelmente o elemento que influenciou a criação do filme Blow-Up (Depois daquele beijo), em 1966, de Michelangelo Antonioni. Nesse conto, é notório o conhecimento técnico empreendido pelo narrador, ao utilizar uma câmara Contax, saber a importância da luz, do enquadramento, da abertura do diafragma, bem como a velocidade empreendida pelo obturador em seus instantâneos nas praças do centro de Paris. Durante a narração, se fosse possível ir beber um chope por aí e a máquina continuasse sozinha (porque escrevo à máquina), seria a perfeição. E não é uma maneira de dizer. A perfeição, sim, porque o insondável que aqui é preciso contar é também uma máquina (de outra espécie, uma Cóntax 1.1.2) e de repente pode ser que uma máquina saiba mais de outra máquina que eu, tu, ela - a mulher loura - e as nuvens (CORTÁZAR, 2009, p. 1).

O escritor compara o ato da câmera fotográfica Contax com um ato narrativo que se assemelha a um conto, o que é confirmado por Cortázar ao escrever sobre Alguns aspectos do conto160 (1970). Como sugere Davi Arrigucci: ―Contar e Contax constituem um jogo

160 [...], el fotógrafo o el cuentista se ven precisados a escoger y limitar una imagen o un acaecimiento que sean significativos, que no solamente valgan por sí mismos, sino que sean capaces de actuar en el espectador o en el 204 paronomástico que representa uma aproximação no plano sonoro, mas também uma íntima correlação, um contacto, do ponto de vista semântico‖ (ARRIGUCCI, 1995, p. 231). A fotografia requer sempre um recorte da realidade, um recorte metonímico, uma pequena parte do todo de um evento, o que depende da maestria do fotógrafo em resumir em apenas num instante a síntese de todo o clímax de ocorrências significativas, ao mesmo tempo que tudo é tão breve, numa fração ínfima de espaço e tempo, assim como em um conto, numa espécie de momento decisivo patenteado por Cartier-Bresson161. Como numa luta de boxe, o conto não pode demorar-se em vários assaltos: ―el cuento debe ganar por knock-out‖ (CORTÁZAR, 1970, p. 4). Como toda obra literária, pode ser compreendida em diversos níveis, mas só entrega os planos mais fundos, revelando a coerência da totalidade, a uma leitura atenta das particularidades, aparentemente secundárias, que integram a sua estrutura. Desde o primeiro contacto, parece exigir do leitor a mesma visão detida e minuciosa desse fotógrafo que busca a revelação do verdadeiro sentido de uma cena, a primeira vista banal e sem sentido. E, desde o princípio, convida-o a enveredar-se por meandros que parecem distanciá-lo do foco de interesse da história, encenando num labirinto de divagações, do que mesmo modo que o mundo múltiplo e caótico de divagações desafia e norteia a câmera fotográfica, a caça do retalho significativo, do fragmento que, com força de forma significante, abra para realidade mais ampla. (ARRIGUCCI, 1995, p. 227)

Já em Prosa do observatório (1972), Cortázar experimenta a criação tanto de imagens, como do texto, ambos confeccionados por ele próprio, em uma viagem à Índia em 1968, compondo desse modo uma narrativa particular — suas fotografias em conjunto com o texto. O conto refere-se à história de Jai Singh, um sultão indiano que, através de sua curiosidade em desvendar os mistérios das estrelas, constrói, no século XVII, vários observatórios astronômicos. Cortázar soube explorar possibilidades poéticas ao estabelecer relações estéticas entre o universo fotográfico e o literário, bem como alguns outros escritores e poetas brasileiros que iremos abordar a partir deste momento. ―Difícil fotografar o silêncio./ Entretanto tentei.‖ Assim inicia o seu poema O fotógrafo, que pertence à obra Ensaios fotográficos (BARROS, 2000). O poeta descreve a sua jornada numa madrugada silenciosa, saindo de uma festa por volta das quatro horas da manhã: ―Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado‖ (BARROS, 2000, p. 11). Como o silêncio estava carregando um bêbado, fotografei esse carregador, o silêncio. O poeta ainda teve outras visões naquela madrugada, como o perfume de uma flor, um jasmim, num lector como una especie de apertura, de fermento que proyecta la inteligencia y la sensibilidad hacia algo que va mucha más allá de la anécdota visual o literaria contenidas en la foto o en el cuento (CORTÁZAR, 1970, p. 4). 161Fotógrafos de la calidad de un Cartier-Bresson o de un Brasai definen su arte como una aparente paradoja: la de recortar un fragmento de la realidad, fijándolo determinados límites, pero de manera tal que ese recorte actúe como una explosión que abre de par en par una realidad mucho más amplia, como una visión dinámica que trasciende espiritualmente el campo abarcado por la cámara (CORTÁZAR, 1970, p. 4). 205 alpendre de uma casa; o poeta prepara a sua máquina e também o fotografou, não a flor do jasmim em si, mas o perfume deste. Encontra ainda com algumas criaturas, como uma lesma a deslizar numa pedra. O poeta fotografa então a sua existência, em seguida encontra o perdão no olhar de um mendigo, um azul-perdão, e registra então o perdão. Numa paisagem velha a desabar sobre uma casa, fotografa o sobre, e exalta a dificuldade de fotografá-lo. Por último, o poeta-fotógrafo observando no céu uma nuvem que mais parece uma calça, Uma nuvem de calça, fotografou não só a calça, mas o seu dono, o poeta russo Vladimir Maiakovski, o seu companheiro nessa jornada. ―Ninguém no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir a sua noiva. E a foto saiu legal.‖ (BARROS, 2000, p. 12). A fotografia de Manoel de Barros não é o fotografar o óbvio e sim a ficção, o abstrato, que vai além das palavras, algo metafisico, do visível das imagens. Suas imagens são simbólicas e remetem a metáforas, que geram outras imagens. Como a imagem fotográfica concreta do vento, pretendida pelo poeta, demostrada num poema mais adiante, O vento, Barros tenta dar ―uma forma concreta e capta a foto‖ (BARROS, 2000, p. 27). Diante de várias imagens imprecisas de ser fotografadas, na tentativa de captar o vento, no entanto, consegue, dessa vez através de outro poeta, Shakespeare. ―Estava quase a desistir quando me lembrei do menino montado no cavalo do vento – que lera em Shakespeare./ Imaginei as crinas soltas do vento a disparar pelos prados com o menino./Fotografei aquele vento de crinas soltas.‖ (BARROS, 2000, p. 12). ―Uma escrita que fotografa o inaudível e o uniforme, a imprecisão e a insustentabilidade da palavra, e que arrasta a imprecisão para longe das margens do visível‖ (WUNDER, 2013, p. 1). São os poetas Vladimir Maiakovski e Williams Shakespeare que possibilitaram, através de suas metáforas, a criação de outras imagens, as imagens abstratas da obra, como a obra Ensaios Fotográficos, de Manoel de Barros, o qual, a seu modo ―cria um poema- fotografia‖(WUNDER, 2009, p. 2). O destaque empreendido pelo ato fotográfico na atualidade, demarcado pelo signo da representação do universo que nos cerca, da mesma forma entremeia também os poemas de Carlos Drummond de Andrade, como o poema Confidência do itabirano. O poema revela as lembranças de sua terra natal, Itabira, tornando evidente o valor nostálgico, uma fixação sentimental do poeta com relação a sua cidade, a decadência da família, marcada por suas perdas econômicas, como as jazidas de ouro, a pecuária bovina e por fim a perda da terra. Itabira é uma imagem dolorosa. 206

A fotografia, apesar de ser apenas um objeto, um pedaço de papel com uma imagem dependurada na parede, é o caráter sentimental da memória que possui, que afeta o poeta: ―Tive ouro, tive gado, tive fazendas./Hoje sou funcionário público./Itabira é apenas uma fotografia na parede./Mas como dói!‖ (ANDRADE, 2012, p.10). As fotografias como as dos álbuns de família ou dependuradas na parede, apesar de lembrar as vidas que se foram, parecem querer trazê-las de volta, como se as vidas fossem veladas na impressão dos papéis fotográficos. O poema Imagem, Terra, Memória (Sobre uma coleção de velhas fotografias de Brás Martins da Costa), remete novamente às coleções antigas de imagens da família, amigos e pessoas de Itabira, e aos acontecimentos, missas e procissões registradas através do seu fotógrafo de infância, Brás Martins da Costa, que realiza um retrato do poeta até então com apenas dois anos de idade, os detalhes, ―cada barba, cada reza, cada enterro.‖ (ANDRADE, 1996, p. 63). Ou a passagem que se segue, abaixo, relacionando o poema à imagem apresentada a seguir (Fotografia 61):

(Fotografia 61) – Fotografia de Brás Martins da Costa. Levantamento do cruzeiro; Congregação da Missão, padres lazaristas, Itabira, 1904.162

É indispensável, é urgente levantar o cruzeiro, sinal de culpa e resgate sobre interesses e podres de família, sobre fazendolas hipotecadas de gado, milho, café, carrapato redoleiro, erguê-lo à altura majestática do Pico do Cauê, se não mais alto, muito mais ainda. Braços robustos tiram-no do chão e o vão alçando com fervor e suor até que ele paire sobre as consciências [arrependidas. (ANDRADE, 1996, p. 64)

Ainda podemos encontrar outro poema do mesmo autor que se relaciona com a fotografia – Diante das Fotos de Evandro Teixeira, feito em 1983. Esse poema surge quando o fotógrafo convida o poeta para escrever sobre as suas fotografias. Drummond acreditava que não teria informações suficientes para escrever sobre essa arte. Apesar de relutar um

162 Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2013. 207 pouco, Drummond termina aceitando o convite. Teixeira entrega ao poeta diversos trabalhos fotográficos seus. Ambos já eram amigos, pois trabalhavam juntos há 25 anos, desde 1962, quando os dois se conheceram no Jornal do Brasil. A sensação que temos é de que há um desvendar de informações através das lentes da câmera de Evandro Teixeira, uma ampliação de nosso olhar para perceber então o que se passa; apesar de expostos pela fotografia, poucos percebem os detalhes e o todo. Semelhante à obra de Drummond, a fotografia de Teixeira também é uma verdadeira poesia, pois recorta de forma metonimicamente com o seu enquadramento uma parte do todo da realidade, que poderia ser percebida por todos, mas que só poucos conseguem captar. No poema de Drummond, funciona o jogo de palavras, as que entram e as que são excluídas do papel, enquanto Evandro escolhe seus elementos que vão integrar na composição e que em seguida serão expostos num também papel, este fotossensível. E que elas só estão à mostra porque ele estava lá, diante dos fatos, na hora e lugar exatos. Mas, diferentemente do poema drummondiano que resultou do olhar através das imagens, a fotografia necessita do estar lá de frente para o crime. Ao deparar com tais fotografias, é possível imaginar as imagens criadas por Drummond. Logo na primeira estrofe do poema Diante das fotos de Evandro Teixeira, percebemos a sutileza do fotógrafo, que consegue captar a essência das coisas: ―A pessoa, o lugar, o objeto/estão expostos e escondidos/ao mesmo tempo sob a luz,/e dois olhos não são bastantes / para captar o que se oculta/no rápido florir de um gesto.‖ (ANDRADE, 2002, p. 60). Mais adiante, as cenas durante a ditadura como a Passeata dos 100 mil e tantas outras manifestações, como também a repressão durante a ditadura, com perseguições a estudantes (Fotografia 62). ―Das lutas de rua no Rio/em 68, que nos resta/mais positivo, mais queimante/do que as fotos acusadoras,/tão vivas hoje como então,/a lembrar como a exorcizar?‖ (ANDRADE, 2000, p. 60). Em que a cavalaria da polícia militar reprime a multidão durante a missa na igreja da Candelária da morte do estudante Edson Luís, morto pela polícia, em 1968, na cidade do Rio de Janeiro.

208

(Fotografia 62) – foto: Evandro Teixeira – Cavalaria na Igreja da Candelária, massacrando o povo na missa do estudante Edson Luís morto pela Polícia, 1968.

Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2013.

Evandro também registra as catástrofes da cidade do Rio de Janeiro com suas enchentes e favelas com o mesmo sentimento que também registra um homeless na cidade de Nova Iorque, Estados Unidos:

Marcas de enchente e do despejo,/o cadáver inseputável,/o colchão atirado ao vento,/a lodosa, podre favela,/o mendigo de Nova York/ [...] fotografa desde um gênio do futebol nacional, Mané Garrincha ao bailarino de origem russa, Rudolf Nureyev, ―Garrincha e Nureyev, dança de dois destinos, (...), a dor da América Latina, mitos não são, pois são fotos (ANDRADE, 2000, p. 60).

Mas esses objetos, fotos, podem representar e configurar elementos míticos, pois ao lermos as imagens dos fotógrafos, eles compartilham seus mitos, ―fraternizando com eles, sem acreditar inteiramente neles. Esses mitos visam evidentemente (é para isso que serve o mito) a reconciliar a Fotografia e a sociedade (é necessário? – Pois bem, é: a Foto é perigosa)‖ (BARTHES, 1984, p. 48). Como assinala, ainda, Roland Barthes, as imagens têm as ―funções: de informar, representar, surpreender, fazer significar, dar vontade‖, pois ao perceber as vontades do fotógrafo, gostando ou não de suas imagens, ―mas sempre compreendê-las, discuti-las em mim mesmo, pois, a cultura [...] é um contrato feito entre criadores e consumidores‖. A escritora Clarice Lispector também mantém um diálogo fotográfico em seu trabalho Água Viva. O grande elemento utilizado por Clarice é a questão do ―instante‖, ou do ―instante-já‖, como é denominado pela escritora: ―Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar, pois o próximo instante é o desconhecido‖ (LISPECTOR, 1998, p. 9). O medo de Clarice é o medo da morte, é o que a faz pensar: ―Fixo instantes súbitos que trazem em si a própria morte e outros nascem [...] Fotografo cada instante,‖ 209

(LISPECTOR, 1998, p. 13-14). ―A vida / a Morte: o paradigma reduz-me a um simples disparo, o que separa a pose inicial do papel final‖. Para Roland Barthes, o principal elemento empregado pelo fotógrafo ―não é o olho (...), é o dedo‖ (BARTHES, 1984, p. 30), o elemento que aciona o corte temporal, que determina em uma fração de segundos o passado, a morte na fotografia, pois todo instante disparado é um passado que não retorna mais, mortificando a imagem. A todo instante existe uma pulsão de vida, como uma luz breve de um flash da câmera. ―É sempre atual, e o fotômetro de uma máquina fotográfica se abre e imediatamente fecha, mas guardando em si o flash‖. (LISPECTOR, 1998, p. 18). Ou o último suspiro de vida, num lampejo do incerto instante futuro, representado através também dessa luz: ―Ah este flash de instantes nunca termina. Meu canto do it nunca termina? Vou acabá-lo deliberadamente por um ato voluntário. Mas ele continua constante criando sempre o presente e o futuro‖ (LISPECTOR, 1998, p. 94). A autora do romance Água Viva alterna instantes entre ficção e realidade; vida e morte se alternam também. As imagens criadas sugerem não só outras imagens mentais, mas também que essas poderiam ser imagens fotográficas, ao menos convergir para estas, dando mais uma possibilidade, ao menos é o que sugere a obra. O poeta João Cabral de Melo Neto também lança mão dessa temática fotográfica em seus poemas, como em Fotografia do engenho Timbó (feita por Ivan Granville Costa). Cabral retrata em palavras a imagem fotográfica feita por um parente de Cabral, Ivan Granville: ―Casas-grandes quase senzalas,/ como a desse Engenho Timbó/que tenho na minha parede/casa onde nasceu uma avó/ [...] O que de casa havia/nesse Timbó de um Souza- Leão?/Entre urinóis, escarradeiras,/um murcho, imperial, brasão‖ (MELO NETO, 1994, p. 423). Cabral faz uma comparação metafórica e também remete ao vínculo que outrora existiu entre a casa-grande e o senhor de engenho e a senzala dos escravos. Tal passagem evidencia a decadência na produção do referido engenho que mais se assemelha a uma senzala. Esse poema remete a todo um referencial concreto presenciado pelo poeta que morou com seus pais nos engenhos da zona canavieira de Pernambuco durante a primeira infância de sua vida. A fotografia, apesar de poder ser descritiva, mostra a relação antagônica entre ―Casas-grandes‖ e ―senzalas‖. Deduz que o momento eternizado em destaque, no entanto, não é o período de fartura e prosperidade do engenho, mas sim o momento do engenho em ruínas.

A representação estética da fotografia, símbolo da modernidade, é feita levando em conta a ação corrosiva do tempo, num sentido muito politizado, de uma época que definhou, e não da imagem do momento eternizado. Cessaram as relações de poder e 210

prestígio que perpassavam a sociabilidade e a ordem social açucareira, figuradas nos versos não apenas pela aproximação entre o brasão da família, escarradeira e urinol (os dois últimos, metáforas do envelhecimento e da destruição). Poeticamente, a fotografia é re-trabalhada e o resultado é revelador da transitoriedade da ordem social nela registrada. Fotografia de processo histórico (RAMIRES, 2009, p. 23).

Como símbolo da modernidade, a fotografia também representa uma das primeiras criações do capitalismo. Através dela é possível registrar seus resquícios ao longo dos tempos, todas as nuances da lógica de produção e estagnação, com imagens perturbadoras, ao demonstrar as imposições financeiras em que tudo que se ―constrói é construído para ser posto abaixo. [...] é feito para ser desfeito amanhã [...] a fim de que possa ser reciclado ou substituído na semana seguinte e todo o processo possa seguir adiante [...] sob formas cada vez mais lucrativas‖ (BERMAN, 1996, p. 97), de modo que a fotografia, filha genuína do capitalismo, registra as próprias nuances dos declínios do capitalismo em sua eterna renovação e destruição em busca de lucros. Em 1975, enquanto estava no Senegal, em missão diplomática, Cabral recebia fotografias de sua neta Dandara. Ao observá-las, começou a escrever sobre estas e em seguida as envia para o Brasil, conjugada com seus versos.

As imagens se sucederam e ganham mais e mais versos. Um dia, o avô zeloso acomoda carinhosamente poemas e fotos num caderno. Despachando para o Brasil, folha de rosto indica destino e origem: Ilustrações para fotografias de Dandara – Editora do Avô, 1975 (MELO NETO, 2011, contracapa).

As ―Ilustrações” para fotografias de Dandara são bem sugestivas, representam as imagens do poeta em palavras. No entanto, esse álbum ficou guardado por anos, sendo editado somente em 1911. Cabral, conhecido por seus ―poemas cerebrais‖ ou de cunho social, como Morte e Vida Severina, se rende à emoção de escrever para sua neta, como Roland Barthes (1984), o qual escreve um livro sobre a imagem de sua mãe, sem nunca mostrar a imagem dela. Talvez tenha sido isso o motivo de não publicar a obra em vida, devido à relação pessoal, o avô e sua neta, uma publicação pessoal para sua filha, a mãe de Dandara.

Dandara, alegria da rua,/que nasceu a assoviar,/quando virás por aqui/ver teus avós em Dacar?/que te olham em fotografia, a te ler e a decifrar,/para ver com quem pareces/na metade em que tu hás/De Cabral de Melo e Barbosa de Oliveira, mãe e pai: metade que te tomamos/(a do pai, ele a lerá) Se te pareces aos tios? Ou aos avós de lá e cá:/Dandara, hoje tu és índice,/na vida, serás o que farás (MELO NETO, 2011, p. 7).

O poema é bem descritivo sobre cada foto apresentada no livro. As primeiras imagens remetem a saudades do poeta em relação à neta, buscando através das imagens fotográficas observar os traços fisionômicos da neta com relação a sua família, tios e avós. O caráter 211 indicial, em apontar, deixar vestígios, ao qual pertence à fotografia, é dado a Dandara, à medida que ―serás o que farás‖. Este capítulo não tem a pretensão de pontuar todos os possíveis casos entre a literatura e a fotografia, os quais são muitos. Desde quando surgiu a fotografia no mundo, ocorreram vários casos de interações aqui no Brasil, seja entre a literatura e a fotografia, envolvendo escritores que mencionam a fotografia em seus trabalhos, seja através de fotógrafos que interpretam escritores através de imagens fotográficas. Sobre essa questão, Soulages diz que:

(...), a fotografia pode, com uma outra arte, criar uma obra que então não é mais exclusivamente da esfera da fotografia, mas também da outra parte. O confronto, por exemplo, por exemplo, da fotografia com a literatura é enriquecedor à medida que se abre para um espaço de criação, o livro; este pode revelar-se um dos lugares privilegiados ao mesmo tempo da fotoliteratura e da fotografia; então não há mais um lugar em que são simplesmente depositadas, apresentadas e publicadas fotos, mas um objeto para ser comtemplado, explorado, aproveitando e pensado enquanto tal; é um material que permite uma criação específica quando do trabalho inacabável de apresentação. (SOULAGES, 2010, p. 275)

Esses escritores criam de uma forma diferente, pela ambiguidade existente entre a literatura e a arte fotográfica, expandindo seus ―significados nessa zona fronteiriça‖ (MACIEL, 2004, p. 19). De modo que ―O objeto técnico perde sua funcionalidade e adquire significados. A técnica deixa de ser um meio para um fim e passa a nos dar as regras de formação de um imaginário, que é o modo como o ser humano lida com ela.‖ (p. 19). Como nos explica Maciel: ―quando se incita a contaminação dos campos semióticos uns pelos outros e se estruturam metáforas que rendem o leitor pelo inusitado e o libertam pela possibilidade e múltiplas representações.‖ (MACIEL, 2004, p. 19). Tais possíveis ampliações geram novas representações estéticas de significados. Este apêndice não tem a pretensão de pontuar todos os possíveis diálogos entre a literatura e a fotografia, que são muitos desde o seu surgimento, no entanto, apresentamos algumas interações estéticas ocorridas ao longo dos anos, entre a literatura e a fotografia. Apresentamos alguns exemplos no Brasil e no mundo, envolvendo escritores que mencionam a fotografia em seus trabalhos ou escritores que se utilizam de imagens fotográficas conjugadas com suas palavras.

Considerações: Literatura e fotografia: entre guerras e final da Segunda Guerra Mundial

Alguns téoricos acreditam que as mudanças estéticas ocorridas devem-se também a evolução tecnológica do aparelho fotográfico. Numa segunda fase da fotografia, no período 212 entreguerras, na interação com a literatura, o desenvolvimento tecnológico empreendido pelos aparelhos fotográficos foi relevante, como o lançamento das câmeras Ermanox e Leica, em 1925. Foi um trunfo considerável a noção da aura do retrato, de que tanto fala Walter Benjamim (1985), ao demarcar a diferença dos retratos confeccionados com longa duração de tempo, levando minutos, em seguida segundos, obrigando a que os retratos fossem então posados. As pessoas ficavam imóveis para que as imagens não saíssem borradas, tremidas, devido à grande exposição de tempo para a obtenção da fotografia. Esse fenômeno não só demarca o inventário do mundo e a perda da aura nas obras de artes, mas também desvela o ritual mágico e de angústia para tirar as primeiras fotografias, com duração de minutos, em seguida segundos, fato rapidamente ultrapassado para frações de segundos, basta lembrar o tempo necessário para conseguir obter a primeira imagem realizada por Joseph Niépce da janela de sua casa, a qual levou cerca de 8 a 10 horas. Não é à toa que nesse período de avanços no aparelho fotográfico também surge ―uma geração mítica‖ (SOUSA, 2000, p. 84) de fotógrafos, na geração de 30, como Henri Cartier-Bresson, Robert Capa, Margareth Bourke-White, André Kertz, Robert Doisneau, Carl Mydans, Bill Brandt e Brassaï. Considerando a possível existência de um terceiro momento da relação entre fotografia e literatura, no final da Segunda Guerra Mundial, surge então, durante os idos de 1960, um estilo denominado de New Journalism, de origem norte-americana, em que a fotografia passa a interagir com a literatura. Verifica-se o intuito de dar um maior valor ao jornalista diante dos fatos que este aborda, abandonando as normas vigentes do jornalismo convencional, como a neutralidade da informação, em que a narrativa é em geral na terceira pessoa. O repórter tem a possibilidade de realizar a reportagem mais criativa e bem pessoal, ousando na apresentação dos dados com riqueza de detalhes, transformando a reportagem em algo parecido a uma novela ou romance realista, tendo como primeiros ícones Truman Capote, Tom Wolf e Gay Talese, dentre outros. Segundo Lima, ―é o jornalismo literário, assim denominado pela incorporação de recursos e técnicas de captação e redação provenientes da literatura‖ (LIMA, 2003, p. 10). Esses repórteres/escritores foram buscar inspirações em Charles Dickens e Honoré de Balzac, escritores ―que inspiraram os jornalistas a aplicar ao relato da realidade as técnicas narrativas que empregaram no trabalho de ficção‖ (LIMA, 2003, p. 11). Coincidentemente, são os mesmos escritores da corrente literária do realismo que terão o primeiro contato com a fotografia em seu nascimento, embora de ser de forma acanhada nesse primeiro momento, no século XIX. É com o New Journalism, na década de 60, nessa mescla de jornalismo e 213 literatura, que a fotografia vai buscar também inspiração nesse período, o que resulta em experimentações mais ousadas. A fotografia, já consolidada, vai absorver nesse momento uma maior liberdade na forma de ver o mundo, da mesma maneira como vista através da proposta da linha editorial empreendida pelo New Journalism na sua interação da literatura com o jornalismo. O fotojornalismo, tipo de fotografia que está associado ao texto do jornal, não fica de fora, e passa a absorver a nova estética vigente, caracterizada pela ousadia da experimentação do New Journalism, que por sua vez vai se expandir e contaminar os demais gêneros empregados na fotografia em geral. Com isso, diferentemente das expedições ou da primeira leva de fotógrafos que tinham por finalidade registrar e expor o mundo exótico, os quais registravam suas imagens ao redor do mundo numa espécie de inventário fotográfico, surgem profissionais dessa área que passam a registrar as imagens de uma forma bem peculiar. Robert Frank foi um dos responsáveis por trabalhar com uma nova concepção de fotografia ao explorar o interior do país que até então habitava e não mais o mundo exterior. E essa concepção, por sua vez, é ampliada por outros fotógrafos que trabalham não mais o país, mas pequenos grupos em sua intimidade. Surge, então, a Fotografia Intimista, tendo à frente Willian Eggleston, Larry Clark e Nan Goldin. É justamente com os movimentos de contracultura que surge uma nova interação entre fotografia e literatura. Da geração beatnik, de Jack Kerouak, juntaram-se ―as pinceladas furiosas de Jackson Pollock e às escalas [...] do sax alto de Charlie Parker em uma trindade que representava o surgimento de uma nova contracultura no pós-guerra, aparentemente construída sobre suor, imediatismo e instinto [...]‖ (CUNNEL apud KEROUAK, 2009, p. 12). Como William Burroughs e tantos outros artistas como o suíço Robert Frank com sua antológica obra fotográfica Les Américains163, cujo prefácio foi escrito por Jack Kerouak.

163 Les Américains trata-se de uma obra quase mítica que causou grandes sensações,discussões e influências no amplo universo da fotografia e nos mais pequenos mundos do fotojornalismo e do fotodocumentalismo. A influência do seu autor após os anos sessenta será determinante na evolução do médium e do próprio jornalismo: fazendo com que o real fosse a mesa onde se servia a sua imaginação, Frank renuncia à objectividade do olhar, revoluciona a reportagem e, assim, pode até considerar-se um precursor do Novo Jornalismo dos anos sessenta. Les Américains não era uma reportagem clássica, uma vez que não se debruçava sobre acontecimentos. Era até uma "reportagem" sem acontecimento(s), que tornou Frank num arquétipo do fotojornalismo não centrado em acontecimentos. Também não se podia considerar um foto-ensaio nem sequer uma história em imagens. Longe de procurar registrar momentos convencionalmente significativos, Frank realizou um conjunto de imagens fotográficas que registram instantes que roçam o absurdo e que quase não têm em si um sentido que não seja aquele que o observador lhes possa dar. Um conjunto de imagens muito pessoais, subjectivas, introspectivas, instintivas, entrecortadas, enigmáticas, sensíveis, fluídas, evocativas de deambulações quotidianas de um europeu pelos Estados Unidos, quase como Sting canta na canção do englishman que é um alien em Nova Iorque. Muitas das suas fotos eram enquadradas de través,enquanto noutras Frank nem sequer olhava pelo visor. Talvez, por isso, a edição da versão americana de Les Américains foi acolhida com críticas ferozes e algum 214

Essa obra foi lançada primeiramente em Paris, por não encontrar nos Estados Unidos uma editora que quisesse bancar sua publicação. Além disso, foi mal compreendida pelos próprios estadunidenses assim que a conheceram, sendo também criticada como uma obra antipatriótica, mesmo depois de a edição ser feita em solo norte-americano, por mostrar a realidade dos excluídos, daqueles que estavam à margem da sociedade. Durante a terceira fase da fotografia, no pós Segunda Guerra, em tempo de paz, ocorre o aparecimento da televisão que vai diminuir a busca de informações através da imagem. É, em geral, a fotografia e a literatura que vão caminhar num sentido mais intimista, como já apontado pela geração depois do fotógrafo Robert Frank:

Writers and photographers then turned to representing postwar realities in new but unexpectedly similar ways. Previous systems and beliefs had once again failed, leading to further economic chaos, military devastations and spiritual quandary. The only visions and artist could really comprehend and convey were the ones in his own mind. Accordingly, literature and photography became more abstract or self- referencial164 (RAAB, 1995, p. 46).

Philippe Ortel (2002) acredita que a fotografia constitui uma ruptura com a história contemporânea, o que os historiadores e especialistas da comunicação denominam de uma cultura da imagem. Mas, em geral, a cultura de massa estava ligada ao mundo pertencente ao realismo fotográfico, com a noção de ver para crer, sem entender as relações entre os suportes, como quando o artista René Magritte pintou um cachimbo e logo abaixo escreveu: Ceci n’est pas une pipe, frase que serve muito bem para ser empregada no universo da imagem fotográfica. Apesar de ser uma pintura, Magritte diz claramente que isto (a pintura em si) não é um cachimbo: isto é uma pintura, uma representação. Nossa cultura imagética, paradoxalmente, está por vezes ainda associada à noção do retrato falado, que identifica, que aponta para um indivíduo exatamente como ele é, ou quanto mais exato melhor. Ainda se diz que ―uma imagem vale por mil palavas‖, não se percebendo que a imagem fotográfica pode até não precisar de palavras para se expressar quando se conhece o seu contexto.

sarcasmo. Aliás, excluindo a comunidade acadêmica e artística. Um estudo de 1984 de Alexander Nesterenko e de C. Zoe Smith revelava que nos Estados Unidos continuava a não existir grande aceitação da obra de Frank e menor ainda era a identificação dos americanos que faziam parte da amostra com as fotos de LesAméricains (SOUSA, 2000, p. 148). 164 Escritores e fotógrafos, em seguida, retornam a representar realidades do pós-guerra em novas formas, mas inesperadamente similares. Sistemas e crenças anteriores mais uma vez falharam, levando ainda mais ao caos econômico, devastações militares e dilema espiritual. A única visão que o artista poderia realmente compreender e transmitir era a de sua própria mente. Assim, a literatura e a fotografia se tornaram mais abstratas ou autorreferenciais.

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A fotografia é sempre muito mais aberta, pois geralmente possui infinitas possibilidades de explicação. Nossa facilidade de leitura visual é realmente muito mais rápida do que a do mundo das palavras; no entanto, dependemos delas para sua interpretação, ao menos para sua descrição e narratividade. Como assinala Santaella: ―A imagem pode ilustar um texto verbal ou o texto pode esclarecer a imagem na forma de um comentário. Em ambos os casos, a imagem parece não ser suficiente sem o texto.‖ (SANTAELLA, 2012, p. 53). O preconceito que quase sempre existe no tocante a esse aspecto pode ser observado em alguns críticos que consideram essa relação como algum tipo de piada, ou também da indiferença ou ignorância de biógrafos que insistem em negar, de alguma maneira, a utilização da fotografia pelos escritores em seus trabalhos. ―As the century ends, literature and photography are closer than ever before engaged by many shared concerns‖165(RAAB, 1995, p. 46). Outros reconhecem, no entanto, que ambas são importantes para a compreensão do mundo, desde quando foi anunciada a sua existência, em 1839.

165 Com o final do século, literatura e fotografia estão mais próximas que nunca, engajadas por muitas preocupações em comum. 216

(Apêndice 3) - Maureen Bisilliat: “a beat woman"

A fotógrafa Maureen Bisilliat166 (Sheila Maureen Bisilliat) nasceu em 16 de fevereiro de 1931 na cidade de Englefield Green, região fronteiriça à grande Londres, pertencente ao condado de Surrey, sudeste da Inglaterra; era filha de diplomata argentino Adolfo Scilingo e mãe pintora de origem irlandesa, Sheila Brannigan. A biógrafa Marta Góes (2004) relata que Maureen Bisilliat teve uma infância bastante errante, em virtude de várias mudanças em função do trabalho diplomático de seu pai; dessa primeira infância não se tem sequer uma imagem. Esteve em vários lugares: da Inglaterra para a Dinamarca, em seguida para a Colômbia; depois embarca para os Estados Unidos, logo em seguida, para a Suíça e, finalmente, para o Brasil, país em que fixa moradia até os dias atuais. Essas mudanças também a obrigam a conhecer diversas línguas, falando português, francês, espanhol, suíço-alemão, denominado de schwiizerdütsch, mas é em inglês que se sente segura para empreendimentos mais exigentes – como traduzir trechos de Jorge Amado‖ (GÓES, 2009, p. 215). As mudanças de cidades também lhe custaram caro; a adaptação a uma nova cultura e língua desconhecida não era fácil, principalmente nos primeiros dias de aula, e as zombarias das outras crianças: o bullying enfrentado por ela era constante, levando Maureen Bisilliat a ser afastada da escola para assistir a aulas particulares por não suportar mais tais insultos, por ser uma criança em um país estranho e com dificuldades de assimilar essa nova cultura.

166 É autora de livros de fotografia inspirados em obras de grandes escritores brasileiros: A João Guimarães Rosa, 1969; A Visita, 1977, sobre o poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987); Sertão, Luz e Trevas, 1983, no clássico de Euclides da Cunha (1866 - 1909); O Cão sem Plumas, 1984, poema de mesmo título de João Cabral de Melo Neto (1920 - 1999); Chorinho Doce, 1995, com poemas de Adélia Prado (1935); e Bahia Amada Amado, 1996, com seleção de textos de Jorge Amado (1912 - 2001). Em 1985 expõe em sala especial na 18ª Bienal Internacional de São Paulo um ensaio fotográfico inspirado no livro O Turista Aprendiz, de Mário de Andrade (1893 - 1945). Merecem ainda menção as obras de sua autoria: Xingu Território Tribal, 1979, e Terras do Rio São Francisco, 1985. A partir da década de 1980, dedica-se ao trabalho em vídeo, com destaque para Xingu/Terra, documentário de longa-metragem rodado com Lúcio Kodato na aldeia mehinaku, Alto Xingu. Em 1988, é convidada pelo antropólogo (1922 - 1997), com Jacques Bisilliat (seu segundo marido) e Antônio Marcos Silva (seu sócio), a levantar um acervo de arte popular latino- americano para a Fundação Memorial da América Latina. Viaja com Jacques para o México, Guatemala, Equador, Peru e Paraguai para recolher peças para a coleção permanente do Pavilhão da Criatividade, do qual é curadora. ENCICLOPEDIA ITAU CULTURAL – ARTES VISUAIS. MaureenBisilliat. Disponível em: . Acesso em: 3 de julho de 2011.

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Maureen Bisilliat em 1952 viaja pela primeira vez ao Brasil para se encontrar com seu namorado, catalão, apelidado de Jepton, cujo nome verdadeiro era José Antonio Carbonell. Nesse período na América do Sul, faz uma visita ao seu pai, Adolfo Scilingo, que se encontrava na Argentina. Nesse momento de crise existencial, Maureen Bisilliat enfrentava ―uma perda territorial por não saber o que fazer na vida‖ (GÓES, 2009, p. 215). Em suas andanças pela cidade de Buenos Aires, descobre por acaso o interesse pela pintura ao ver uma aula de desenho com um modelo vivo em uma escola de arte portenha. Mesmo antes de casar, no início de sua vida adulta, Maureen Bisilliat já demonstrava certo descontentamento por não saber qual rumo tomar na vida. De forma crítica, sem se lamentar, segundo suas próprias palavras: — ―Tinha chegado o fim da adolescência sem conseguir formular nenhum projeto e vivia, com grande angústia, essa indefinição: até para poder se libertar é preciso existir, e eu não existia. Eu não servia para nada‖. Nesse mesmo ano casa-se com Jepton, em Buenos Aires.

A palavra escrita e as imagens em Maureen Bisilliat

A obsessão e o interesse pelas palavras e imagens surgem muito cedo, ainda na infância de Maureen Bisilliat. Ela sabia da importância e da necessidade de escrever corretamente, devido aos constantes estranhamentos que a língua lhe impusera. As imagens de paisagens inconscientes das rochas que faziam parte de sua ancestralidade, imagens monolíticas de pedras reencontradas em diversos locais como em museus ou em praias brasileiras, perseguiam-na; no entanto, só seriam desvendadas mais tarde, em conversa com o escritor brasileiro João Guimarães Rosa sobre Grande Sertão: Veredas. Vejamos com sua biógrafa:

Os embates com a palavra escrita começaram cedo. ―Lembro de minha ansiedade aos cinco anos de idade, num pequeno apartamento em Londres – onde estávamos com minha avó -, para que minha mãe viesse corrigir algo que escrevi‖, relata. Numa vida escolar tão acidentada, saber escrever foi sempre sua principal ferramenta para a aprovação, mas seus olhos já fixavam algumas das imagens que iriam acompanhá-la por toda a vida. A ideia de plenitude, por exemplo, ficou associada às rochas negras de uma praia de Cardiff, no País de Gales, onde esteve com os pais...Mais tarde, ela encontraria associações mais remotas com as rochas. ―Parte de minha mãe vinha do oeste da Irlanda, uma região marcada por enormes extensões de pedras escuras.‖ Reencontrou essas formas ora em museus, nos volumes monolíticos da antiquíssima arte suméria que a hipnotizavam, ora em paisagens amenas como o mar de Salvador (GÓES, 2009, p. 215).

O alumbramento com a descoberta da pintura, em Buenos Aires, levou-a a dedicar cerca de sete anos de estudos consecutivos a essa arte. Em 1955, aos 24 anos de idade, 218

Maureen Bisilliat parte para Paris com a finalidade de estudar pintura no ateliê do pintor e escultor cubista André Lhote: ―foi pintor e teórico, sua prática artística foi permeada pelos textos onde elaborava suas teorias sobre a pintura... dois textos fundamentais produzidos pelo artista: De la Composicion Classique (1917) e De la Nécessité des Théories (1919)‖ (LINO, 2004, p. 22). Considerado uma influente personalidade no mundo das artes, atuando também como professor e crítico de arte, coincidentemente foi o mesmo pintor que ensinou os primeiros passos da pintura ao francês Henri Cartier-Bresson. Juntamente com sua amiga Ann Bagley, cujo nome artístico é Henrietta Montooth, Maureen Bisilliat realiza essa viagem a França, com intuito de ampliar seus conhecimentos artísticos. No depoimento a Marta Góes, ela relata que:

[...] passaram três meses em Paris de 1955, estudando na academia de André Lhote, pintor cubista, que teve, entre seus alunos brasileiros, Tarsila do Amaral e Iberê Camargo, e, entre os franceses, o futuro fotógrafo Henri Cartier-Bresson. Lá, as duas frequentaram museus, livrarias e bares, respirando o mesmo ar enfumaçado que os ídolos do momento. ― Se você fosse ao café Les Deux Magots, poderia ver Juliette Greco numa mesa próxima, se subisse ao primeiro andar de um pequeno bar na rue Jacob, podia ouvir Georges Brassens tocando e cantando chansons da época‖ (GÓES, 2009, p. 217).

Retornando a São Paulo em 1956, e atuando como artista ainda de forma amadora, Maureen Bisilliat começa a frequentar galerias de estudantes, como a Galeria Prestes Maia, por sugestão de seu marido, Jepton. A fotógrafa, ao voltar a São Paulo, estuda com o artista plástico Karl Plattne. Em suas contínuas andanças artísticas, ela embarca em seguida com sua fiel companheira Bagley aos Estados Unidos, num momento de grandes experiências artísticas naquele país, como os movimentos de contracultura da geração beatnik, de Jack Kerouac, e na fotografia de Robert Frank, como já foi abordado no primeiro capítulo. Sobre a viagem de Maureen Bisilliat aos Estados Unidos, Góes relata:

Em 1957, novamente em companhia de Ann, Maureen viajou a Nova York para estudar na Art Students League, com Morris Kantor. Maureen recorda...Anos de tremendo rigor em que nós jovens principiantes, espiávamos De Kooning num boteco na Terceira Avenida, Thelonious Monk num bar, ao piano, sem alarde, sem mistificação, tocando pelo simples prazer de tocar. O que tipifica esse tempo é a sensação de primeira vez, de primeiro encontro, de primeira viagem, num mundo aberto à descoberta. Um tempo no qual as mudanças de comportamento foram provocadas pelos jovens – pela beat generation e pelos hippies, que acreditavam numa maneira de viver autêntica, sem a intenção de influenciar ou serem influenciados, mas simplesmente por acharem essa maneira boa de viver (GÓES, 2009, p. 217).

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No final da década de 50, mesmo com uma bagagem de aprendizagem artística oriunda da arte do desenho e da pintura, certa angústia continua a perseguir a artista, um vazio inquietante em sua vida. Ela ainda não havia encontrado seu verdadeiro ofício, o de fotografar. Foi com seu primeiro marido, Jepton, que ela se iniciou na arte fotográfica, de forma bem insegura nos primeiros dias, até mesmo ao apertar o botão disparador, o obturador167. Maureen Bisilliat muitas vezes enquadrava o motivo que ela queria fotografar e logo em seguida chamava seu marido para apertar o botão disparador da câmera fotográfica. Maureen Bisilliat aos poucos assimila a técnica do ato fotográfico. Apesar de sua resistência e insegurança ao trabalhar com equipamentos mecânicos, em pouco tempo consegue realizar também as revelações dos negativos em preto-e-branco e ampliações de suas próprias fotos nas dependências de sua casa, utilizando-se do próprio banheiro como laboratório fotográfico. Apesar das dificuldades técnicas no manuseio da câmera fotográfica, uma das suas primeiras imagens aconteceu, em 1953, numa viagem com o marido ao interior de São Paulo, em que realizou uma foto de uma família de descendentes de japoneses, o que já demonstrava o seu interesse pela imagem fotográfica mesmo antes da pintura, como ela relata: ―Primeira ―foto‖168 (Fotografia 63): Um dia, nos anos 1950, numa viagem ao interior de São Paulo, beirando o Estado do Paraná, fiz essa foto de uma família nissei de plantadores de algodão, intuindo nela o que significaria, para mim, o ato de fotografar‖ (BISILLIAT, 2009, p. 6) Seu interesse pelo universo feminino, objeto de estudo de nosso trabalho, será demonstrado em Grande Sertão: Veredas, sua primeira tradução literária em imagens fotográficas. No entanto, algumas imagens já são apresentadas em seus primeiros trabalhos, como o retrato de um universo singular do arquétipo feminino, a figura da mãe, uma jovem nissei, com seu filho na cozinha (Fotografia 63). É que, em suas traduções que reverberam o feminino, deve haver ligação com a palavra, saber compreendê-la: ―a palavra pertence a outras esferas, você simplesmente compreende, simplesmente ‗sabe‘. Eu compreendi instantaneamente, e aí pensei que gostaria de ver aqueles lugares, de andar por aqueles Gerais de Guimarães‖.169 A literatura rosiana foi um ponto de partida em sua jornada, uma ligação

167 Dispositivo destinado a realizar a exposição da emulsão à imagem óptica formada pela objetiva durante o tempo de exposição necessário (EHRLICH, 1986, p. 193). 168 A primeira de suas fotos ainda é mais importante. Com ela, Maureen Bisilliat diz ter compreendido o ato de fotografar. A imagem foi feita em preto e branco nos anos 50, entre nisseis plantadores de algodão. Na humilde cozinha campesina, a mãe usa a faca diante da janela aberta à luz. Um menino cujo rosto não vemos deitado parcialmente o corpo sobre a bancada em direção à mulher com a faca, como se a ela se entregasse, em sacrifício. 169 DEMARCHI, Célia. Como espelhar o inexplicável? Disponível em: . Acesso em: 6 jul. 2011. 220 espiritual com o Brasil e com a sua arte. Numa ligação entre ―pontos de interesses: desenho com fotografia, através do corpo humano; e intimidade do corpo com a palavra, através da literatura. [...] Grande Sertão: Veredas teve em mim o impacto de um assombro‖ (BISILLIAT, 2009, p. 219-220).

(Fotografia 63) – Migrante nissei. São Paulo, Maureen Bisilliat170

O interesse pela fotografia é notório, pois Maurren Bisilliat, com resistência a operar um meio mecanizado, o aparelho fotográfico, através do assessoramento do marido e devido à sua inquietação, continua a estudar artes plásticas, mas começa aos poucos a abandoná-la. Segundo o fotógrafo e colunista da Folha de São Paulo, Juan Esteves, foi devido a sua angústia diante de uma tela branca, da mesma forma que um poeta diante de uma folha de papel em branco, que Maureen abandonou a pintura e converteu-se em fotógrafa:

Ela justifica o abandono da pintura e o início de um trabalho fotográfico que a tornaria reconhecida no Brasil e no exterior: ―Fiquei sem saber o que dizer a uma tela branca!‖. Perdeu a arte, ganhou a fotografia? Difícil afirmar. Seu documentarismo tem muito de artístico e seu fotojornalismo não era apenas informativo. Suas reportagens instigavam, provocavam estese através de um viés até o momento muito pouco explorado: aquele cuja cor é uma forma e um conceito. Também o inusitado de suas pesquisas e suas explorações cromáticas ainda hoje desconcerta os menos familiarizados com seu poderoso vocabulário imagético.171

170 (BISILLIAT, 2011, p. 7) 171 ESTEVES, Juan. A cor mais brasileira! Disponível em:. Acesso em: 9 de outubro de 2011. 221

Em 1957, decide se fixar no Brasil definitivamente, obtendo visto permanente em 1963. Em entrevista a Federico Mengozzi (2004): ―o Brasil foi uma procura de raízes, que eu não tive quando criança. Nasci na Inglaterra, sim, mas vivi em muitos lugares. Meu pai era diplomata, o que me obrigou a uma vida meio camaleônica. O destino me amarrou ao Brasil. Foi um ficar querendo.‖172 O ano seguinte, 1958, foi um ano conturbado para Maureen Bisilliat, que culmina com sua separação. Neste mesmo ano parte para os Estados Unidos, permanecendo meses em Nova Iorque, cidade em que tentou algumas profissões sem muito sucesso, como ser atriz na Broadway. Já em território brasileiro pensava também em ser escultora, o que leva a crer, pela afirmação de sua filha Kyra, que estava sempre on the road, com o pé na estrada ou pela estrada afora. Kerouac explica sua história: ―[é] sobre dois caras que pegam carona... em busca de algo que eles não conseguem realmente encontrar, e assim se perdem na estrada e fazem todo o caminho de volta na esperança de encontrar alguma coisa‖ (CUNNEL apud KEROUAC, 2009, p. 12). Maureen Bisilliat tinha essa necessidade de pegar a estrada, de liberdade em uma sociedade preconceituosa com uma geração marginal, subterrânea, como dizia Kerouac, em busca de novas experiências. No entanto, com essa nova descoberta, a fotografia surge como um verdadeiro antídoto para sua monotonia, aflições e inquietudes. Maureen Bisilliat se sente mais segura e dedica-se plenamente ao universo fotográfico, chegando mesmo a abandonar a pintura nos idos de 1962.

Depois de seis anos de casamento, quando Kyra tinha dois anos, Maureen e Jepton se separam. Ele levou a filha à Espanha e ela embarcou para New York. Meu pai era um businessman de terno e de gravata e minha mãe, a beat woman que é até hoje‖ comenta Kyra, que vive em Barcelona e é produtora musical de bandas famosas, como Buena Vista Social Club. ―Só consegui acreditar que aquela família de fato existiu quando recuperei, recentemente, uma foto de nós três.‖ (GÓES, 2009, p. 218)

O universo do fotojornalismo de Maureen Bisilliat

As primeiras experiências profissionais de Maureen Bisilliat se deram no universo do fotojornalismo. Ainda nos Estados Unidos, realiza trabalhos nos idos de 1960 para uma

172 MENGOZZI, Federico. Entrevista: conversa com Maureen Bisilliat. Disponível em: . Acesso em: 10 de out. 2011. 222 agência, The New York Times, como freelance. Por acaso ela encontra alguns amigos que estiveram hospedados em sua casa em São Paulo. Marta Góes explica que: Eles conheciam um agente que, naquele momento, procurava um fotógrafo para cobrir a destruição causada por um violento terremoto no Chile. A encomenda era da revista do The New York Times, e Maureen aceitou-a de imediato, embora timidamente. Esse trabalho iria se tornar um pesadelo em sua vida, mas não pelas previsíveis dificuldades de uma fotojornalista inexperiente num cenário de destroços, que ela enfrentou, mas porque, inexplicavelmente, os rolos de filme que ela despachou por via aérea extraviaram-se e só chegaram a sede do jornal, em nova York, 15 anos depois!! Mas o desastre voltaria, de tempos em tempos, a assombrá- la: perder filmes, atrapalhar-se com equipamentos, esquecer sua filmadora no metrô de Paris, deixar num táxi os cromos selecionados para um livro sobre a Bahia. (GÓES, 2009, p. 219)

De volta ao Brasil, no início dos anos 60, em um evento social, Maureen Bisilliat se encontra novamente com o francês Jacques Bisilliat. Na primeira vez que se conheceram Maureen Bisilliat ainda era casada com o espanhol Jepton, assim como Jacques também era casado. Nesse segundo momento, os dois então separados; logo se casam e resolvem morar em São Paulo. Com a presença de Jacques, aos poucos a paisagem brumosa em que Maureen Bisilliat se sentia imersa começa a se dissipar; a firmeza de Jacques a induzia a seguir seu próprio caminho, a enfrentar os seus próprios demônios e temores, descobrindo as próprias potencialidades criativas. Começa a fazer ligação dos pontos de interesse entre a pintura e a fotografia e sua aplicação profissional. Marta Góes relata essa passagem em uma entrevista:

Mas, como sempre digo, ao enfrentar o desconhecido, você vai aprendendo a ter autonomia, vai vencendo as complicações e o caos, vai adquirindo consciência de que você também precisa se conscientizar. Jacques era uma pessoa carinhosa, envolvente, meio urso; falava pouco e percebia tudo. Levava você a andar nos trilhos. (GÓES, idem, ibidem)

Maureen Bisilliat passa a se dedicar intensamente ao ato fotográfico, tanto que em pouco tempo, em 1966, consegue realizar sua primeira exposição fotográfica individual, denominada ―Pele Preta‖. O trabalho, que resultou numa exposição no MAM-SP em 1966, já prenunciava o olhar anticonvencional de Maureen Bisilliat. ―Naquela época, fotografar uma modelo negra era uma inovação‖, diz a psicóloga Eda Tassara, amiga e parceira de trabalho (GÓES, 2009, p. 220). A temática explorada por Maureen Bisilliat, como afirma a amiga Tassara, é bastante ousada e novamente apresenta como uma das principais modelos uma mulher negra, sendo ressaltados vários recortes do torso nu. Uma série de trinta imagens que estão bastante caracterizadas pelo academicismo de leituras de anatomia, iluminação e movimento com modelo vivo, quando estudava em ateliês e começou a estudar artes plásticas (Fotografia 64). 223

(Fotografia 64) Do ensaio fotográfico Pele preta, Maureen Bisilliat.

Maureen Bisilliat transita simultaneamente nesse período no fotojornalismo e na fotografia autoral com seus ensaios, e muitos desses trabalhos foram utilizados no fotojornalismo. Em seguida, a artista é convidada pela Editora Abril para trabalhar como fotojornalista de uma revista chamada Realidade e na revista Quatro Rodas. Sobretudo na revista Realidade, Maureen Bisilliat se destacará, aplacando enfim as suas angústias. ―E ela agora exercia um ofício com esmero e pertencia a um universo profissional bem configurado‖ (GÓES, 2009, p. 220). Além da postura editorial da revista, como temas polêmicos, e uma relação direta com o jornalismo literário, algo que se tornou uma constante na obra da fotógrafa, havia a sua relação com a literatura: ―Maureen Bisilliat trouxe para a fotografia a possibilidade de entender nossa cultura a partir da perspectiva da literatura‖ (FERNANDES JUNIOR, 2003, p. 153). Das tímidas primeiras fotografias nos idos de 1950 às 16.251173 imagens que foram incorporadas ao Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro, foi longo o percurso.

173O acervo de Maureen Bisilliat foi incorporado ao Instituto Moreira Salles em dezembro de 2003 e tem 16. 251 imagens. Além de ceder seus negativos em preto-e-branco e cromos, a fotógrafa tem participado da curadoria e arranjos do conjunto. Disponível em: . Acesso em 20 de jul. 2011.

ANEXOS

(Anexo 1) CLASSIFICAÇÃO ISOTÓPICA DAS IMAGENS (G. DURAND)

REGIMES OU DIURNO NOTURNO POLARIDADES

ESQUIZOMÓRFICAS SINTÉTICAS MÍSTICAS (ou heroicas) (dramáticas) (ou antifrásicas)

Estruturas 1ª idealização e ―recuo‖ autístico. 1ª consciência (oppositorum) e 1ª redobramento e 2ª diairetismo (Spaltung). sistematização. perseveração. 3ª geometrismo, simetria, 2ª dialética dos antagonistas, 2ª viscosidade, adesividade gigantismo. dramatização. antifrásica. 4ª antítese polêmica. 3ª historização. 3ª realismo sensorial 4ª progressismo parcial (ciclo) ou 4ª miniaturização (Gulliver) total.

Princípios de Representação objetivamente Representação diacrônica Representação objetivamente explicação e de heterogeneizante (antítese) e que liga as contradições pelo homogeneizante (preservação) justificação ou subjetivamente homogeneizante fator tempo. Princípio de e subjetivamente lógicas. (autismo). Os Princípios de CAUSALIDADE, sob todas as suas heterogeneizante (esforço EXCLUSÃO, de CONTRADIÇÃO, formas (espec. FINAL e antifrásico). Os Princípios de de EFICIENTE), funciona plenamente. ANALOGIA, SIMILITUDE IDENTIDADE funcionam funcionam plenamente. Plenamente.

Reflexos dominantes Dominante POSTURAL com os Dominante COPULATIVA com Dominante DIGESTIVA com seus derivados manuais e o os seus derivados motores os adjuvante das sensações à rítmicos e os seus adjuvantes seus adjuvantes cenestésicos, distância (vista, audiofonação). sensoriais (quinésicos, músico- térmicos e os seus derivados rítmicos, etc). táteis, olfativos e gustativos.

DISTINGUIR LIGAR CONFUNDIR

Esquemas ―verbais‖ Separar ≠ Subir ≠ Amadurecer Voltar Descer, Possuir, Penetrar Misturar Cair Progredir Recensear

Arquétipos Puro ≠ Alto ≠ baixo Para a frente, Recensear, Profundo, Calmo, Quente, ―atributos‖ Manchado Futuro Passado Íntimo, Escondido Claro ≠ Escuro

Situação das O GLÁDIO (O CETRO) O PAU O DENÁRIO A TAÇA ―categorias‖ do jogo de Tarô

Arquétipos A Luz ≠ As O Cume ≠ O Fogo – chama. A Roda. O Micro- A Morada. substantivos Trevas O Abismo. O Filho. A Cruz. cosmo. O Centro. O Ar ≠ O O Céu ≠ O A Árvore. A Lua. A criança, A Flor. Miasma. Inferno. O Germe. O Andrógino. o Polegar. O A Mulher. A Arma Heroica O Herói ≠ O O Deus plural. Animal O ≠ A Atadura. Monstro. gigogne. Alimento. O Batismo ≠ A O Anjo ≠ O A Cor. A Mancha. Animal. A Noite. Substância. A Asa ≠ O A Mãe. Réptil. O Recipiente. O sol, O azul A escada de O Ventre, O Túmulo, celeste, O Olho mão, O Calendário, A Aritmologia, a Engolidores e O Berço, do Pai, As A escala, Tríade, a Tétrade, a Astrologia engolidos, A Crsalida, Dos símbolos aos Runas, O O Bétilo, kobolds, A Ilha, sistemas Mantra, O Campanário, A iniciação, O dáctilos, osíris, A As armas, O Zigurate, ―Duas- vezes O sacrifício As Tintas, Cavernas, A Vedação, A Águia, nascido‖, A O Dragão As Pedras O A Circuncisão, A Calhandra, Orgia, O A espiral, Preciosas, Mandala, A Tonsura, etc. A Pomba, Messias, A Pedra O caracol, O Melusinas, O A Barca, Júpiter, etc. Filosofal, A urso, Véu, O Manto, O saco, O Música, etc. O Cordeiro, A A taça, O Ovo, Lebra, A Roda Caldeirão, etc. O Leite, de fiar, O Mel, O Isqueiro, A O Vinho, Baratte, etc. O Ouro, etc Fonte: (DURAND, 2002, p. 441- 443)

GLOSSÁRIO

Câmera obscura (câmera escura) - Do latim ―camera obscura‖: sala ou caixa mantida na obscuridade e com uma pequena abertura num dos lados. A luz que entra por esta abertua forma na parede oposta uma imagem invertida dos objetos exteriores (EHRLICH, 1986, p. 46).

Chiaroscuro - it. chiaroscuro (a1519 chiaro scuro), (1550) 'procedimento pictórico que reproduz a passagem da luz à sombra', form. chiaro 'claro' + scuro 'escuro'. In: Grande Dicionário Houaiss Beta da Língua Portuguesa. Disponível em: . Acesso 25 de maio 2014.

Claro-escuro - substantivo masculino ( 1875) 1 art.plást em pintura, desenho ou gravura, impressão que o contraste dos claros com os escuros causa no observador. 2 art.plást fot em pintura, desenho, fotografia etc., imitação dos efeitos de contraste produzidos sempre que certas partes de um lugar, pessoa ou objeto recebem luz, ao passo que outras permanecem mais ou menos na sombra. 3 art.plást processo de pintar ou desenhar em que os efeitos se produzem unicamente com os diversos tons de preto e branco ou de branco e outra cor escura, sem mistura das demais cores. 4 art.plást estilo em que predominam tais efeitos ‹ Rembrandt foi um mestre do c. ›. 5 claridade atenuada, luz sombreada, lusco-fusco ‹ o c. do anoitecer ›. In: Grande Dicionário Houaiss Beta da Língua Portuguesa. Disponível em: . Acesso 25 de maio 2014.

Close - Tomada em que a câmera, quer distante ou próxima do assunto, focaliza apenas uma parte dele (p.ex., enquadra apenas o rosto de um personagem, ou somente parte de um objeto etc.); close, close shot, primeiro plano, grande plano. In: Grande Dicionário Houaiss Beta da Língua Portuguesa. Disponível em: . Acesso 25 de maio 2014.

Contraluz (Iluminação a Contraluz) – Técnica e feito de se dar luz ao assunto de tal modo que este fique colocador entre a fonte de iluminação e a máquina fotográfica. Salienta os contornos mas dá contraste e sombras fortes (EHRLICH, 1986, p. 135).

Contre-plongée ou contreplongée - Tomada de câmara efetuada de baixo para cima; câmara baixa. In: Grande Dicionário Houaiss Beta da Língua Portuguesa. Disponível em:. Acesso 25 de maio 2014.

Díptico - Conjunto de duas obras congêneres, do mesmo autor, que se completam. In: Grande Dicionário Houaiss Beta da Língua Portuguesa. Disponível em: . Acesso 25 de maio 2014.

Extraquadro - As teorias sobre a fotografia discutem com freqüência o espaço representado no extra-quadro, aquilo que se faz presente na interpretação da imagem. A fotografia e as representações do tempo, excluído pelo corte do enquadramento (MACHADO, 1983, p. 76- 90). 227

Plongée, que significa mergulho em francês, é também conhecido como Câmera Alta, é o termo usado para definir um tipo de enquadramento em que a câmera filma o foco principal da cena de cima para baixo, situando o espectador em uma posição mais acima do objeto, olhamos a imagem como se estivéssemos mais altos, olhando de cima. Disponível em: . Acesso em 19 de nov. 2013. Tomada de câmara efetuada de cima para baixo; câmara alta. In: Grande Dicionário Houaiss Beta da Língua Portuguesa. Disponível em: . Acesso 25 de maio 2014.