PUBLICAÇÃO RECONHECIDA PELA SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA COMO DE INTERESSE CULTURAL E LITERÁRIO

Directora: Nassalete Miranda 13 Maio de 2020 Nº 266 | Preço: 2 euros Quinzenalmente às quartas José Rosinhas Art Gallery Wall | Hous3 Exposição de Paulo Moreira Até 5 de Junho http://joserosinhas.blogspot.com/

EM NOTÍCIA | PÁG. 23 LeV (nos) consigo em digital! A Literatura que viaja há 14 anos em Matosinhos

A VIDA DOS LIVROS | Pág. 3 D. Manuel Vieira Pinto (1923-2020)

Por Guilherme d’Oliveira Martins

ENTREVISTA | Págs. 4 e 5 O director, João Ribeiro Mendes, no terceiro ano do CEPS (UMinho)

Por Isabel Ponce de Leão

PATRIMÓNIO | Pág. 22 Museus Centenários de : O século XX.

Por Cristina Cordeiro

LETRAS ANTIVIRAIS | Págs. 24 a 26 A escrita como antídoto

Por António Ferro, Eugénio Lisboa, Filomena Fonseca, Isabel Silva Bernard; J. Alberto de Oliveira; Júlio Conrado; Luís Serrano; Maria Antónia Jardim

Ilustração inédita de Ana Biscaia 13 maio 2020 abertura AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 2

SingularPlural, Arte & Comunicação, Unipessoal Lda. Nassalete Miranda zembro para 1 de Janeiro, apetece-me dizer: Capital Social: 5.000 € directora Número de Certidão: 0232-6801-3200 “Obviamente, demito-o”! E digo. Mas não resul- Conservatória do Registo Comercial de Vila Real ta. Ele continua ímpio no número de mortos, AS ARTES ENTRE AS LETRAS de infectados, de internados, de desemprega- Praceta Eng.º Adelino Amaro da Costa, 764 - 9º Esq. 4050-012 Porto Entre Sentidos dos, de falências, de lágrimas, de fome e, de tal Telefone e Fax.: 22 606 35 56 Telemóvel.: 91 803 56 76 forma, que até o sol se esconde! Dentro e fora E-mail.: [email protected] A falta de alternativas clarifica do País. Dentro e fora da nossa rua. Publicidade maravilhosamente a nossa mente” Praceta Eng.º Adelino Amaro da Costa, 764 - 9º Esq. Henry Kissinger Na impossibilidade real de fazer parar o tem- 4050-012 Porto Telefone e Fax.: 22 606 35 56 po (até porque ele só parou nos manequins Telemóvel.: 91 803 56 76 E-mail.: [email protected] 13 de Maio é um bom dia para um manifesto das montras), de o obrigar a voltar para trás e anti Covid/19. ficha técnica de apagar estes meses no calendário, parta- Assim, “Morra” o vírus, “morra! Pim”! E já! mos, não em “busca do tempo perdido”, mas Que os cientistas, investigadores e especia- DIRECTORA: Nassalete Miranda sim do “Santo Graal” de cada um de nós e que listas em virologia e doenças infecto-conta- EDITORA: Isabel Fernandes está ao alcance das nossas memórias alegres FOTOGRAFIA: Ângela Velhote giosas façam o favor de descobrir depressa a GRAFISMO: Pedro Cunha e felizes. PAGINAÇÃO: Pedro Cunha bendita vacina, ou o medicamento eficaz pa- SITE: Criação no âmbito do projecto desenvolvido no ISLA por É aí que voltamos a sorrir, porque no passado Joaquim Jorge Santana Oliveira ra acabar de vez com o responsável por estes fomos todos corajosos. Agora é agarrar com SEDE DE EDITOR E SEDE DE REDACÇÃO dias de inquietação tamanha! CONTACTOS: Praceta Eng.º Adelino Amaro Já se sabe que não haverá regresso à “norma- força essas imagens e seremos invadidos pela da Costa, 764 - 9º Esq. | 4050-012 Porto Telefone e Fax.: 22 606 35 56 lidade” dos dias, porque depois do Coronaví- certeza de que vamos vencer. Juntos. Porque Telemóvel.: 91 803 56 76 Email.: [email protected] rus, nada voltará a ser como estávamos habi- é juntos que temos de aprender uma nova vi- REGISTO NA ERC tuados – nem o bom, nem o menos bom! 125685 vência e convivência. Porque só juntos e em IMPRESSÃO Há, sim, o recomeço em moldes diferentes, responsabilidade colectiva, cuidaremos de Selecor - Artes Gráficas, LDA com o afastamento laboral, familiar e social e Rua de Sistelo, 666 nós e dos outros. Porque só sendo disciplina- 4435-452 Rio Tinto - Telef.: 224 854 290 com o uso de máscaras que nos tiram a iden- Estatuto Editorial disponível no site tidade e o sorriso, deixando para o olhar toda dos e respeitando as regras, poderemos ter a www.artesentreasletras.com.pt PROPRIEDADE: a responsabilidade das nossas emoções. Sim, esperança de vencer o vírus cruel. Temos, ca- Singular Plural NIF conseguimos falar e até nos escutamos mais da um, de fazer a nossa parte. Não se pode fa- 509578942 uns aos outros, mas… não é a mesma coisa! TIRAGEM cilitar, porque, dizem os especialistas, corre- 1250 exemplares Estranho as ruas da minha cidade. Não encon- mos riscos de deitar a perder tudo o que já se ISSN 1647-290X tro os rostos conhecidos de um quotidiano de DL: 435812/17 conseguiu, se as pessoas começarem a pen- Interdita a reprodução, mesmo parcial, de textos, fotografias ou ilustrações sob décadas. E como me fazem falta os abraços, os quaisquer meios, e para quaisquer fins, inclusive comerciais sar que “desconfinamento” progressivo signi- beijos, os apertos de mão! fica fazer tudo o que apetece. Pois que não é! conselho editorial Contrariamente à vontade do poeta, agora di- zem que temos de adiar o coração; que é pa- Sem uma atitude responsável, as filas de Arnaldo Saraiva | António Vitorino d’Almeida ra nosso bem. Acredito que sim. Cumpro, mas quem pede pão não acabarão tão depressa. É Carlos Fiolhais | Francisco Laranjo Francisco Ribeiro da Silva | Helder Pacheco muito contrariada! preciso confiança para a economia escanca- Isabel Ponce de Leão | José Atalaya Este ano não pude levar um mimo a minha rar as portas! Já agora, peço aos “repórteres” Levi Guerra | Lídia Jorge Mãe no dia que o calendário dedica a todas que teimam em identificar os rostos de quem Mário Cláudio | Maria Luísa Malato | Miguel Cadilhe as mães. Fui impedida de atravessar a ponte Rui Nunes | Salvato Trigo pede uma sopa, que tenham VERGONHA! para ir a Gaia. Mas foi permitida a viagem en- Não vale tudo em nome do direito de infor- tre concelhos para os manifestantes/sindica- colaboradores especiais mar. Não vale tudo em nome das audiências! A. Campos Matos | Adelto Gonçalves | André Verissimo listas da CGTP no 1.º de Maio. Estas excepções António Ferro | António José Borges | António José Queiroz feitas à medida de interesses políticos, parti- Numa democracia, os cidadãos têm direito ao António Oliveira | António Simões Netto | Armando Alves dários e sindicais, entre outros, há muito que anonimato, tanto da sua alegria, como da sua Artur Serra Araújo | Diogo Alcoforado | Carlos Cabral Nunes Cristino Cortes | Domingos Lobo | Eugénio Lisboa me não espantam, pelo que também não me desgraça! Francisco d’Eulália | Francisco Simões Guilherme | d’Oliveira Martins surpreende a excepção às excepções que po- Que todos façam o favor de se proteger, e boas Gomes Fernandes | Hélder de Carvalho | Helder Pacheco derá ser a Festa do Avante! em Setembro. Diz Helena Mendes Pereira | Inácio Nuno Pignatelli | Isabel Pereira Leite leituras em artes feitas, nestes dias com Litera- o líder do PCP, Jerónimo de Sousa, que a Fes- Isabel Ponce de Leão | Jorge Castro Guedes | Jorge Sanglard tura em Viagem, o Festival Literário de Matosi- José António Gomes | J. A. Gonçalves Guimarães | J. Esteves Rei ta não é um Festival e que “os comunistas são José Carlos Seabra Pereira | Júlio Conrado | Lauro António nhos que nos entra em casa para matar o Co- muito criativos”. Não dissecando a questão se- Levi Guerra | Luís Cabral | Manuel Sobrinho Simões | Manuela Aguiar vid/19. Margarida Negrais | Maria Antónia Jardim mântica, nem lembrando que a palavra festi- Maria do Carmo Castelo Branco de Sequeira | Maria Luísa Malato val deriva da palavra festa, eu não só não du- “Morra” o vírus, “morra! Pim”! Maria Virgínia Monteiro | Paulo Ferreira da Cunha | Ramiro Teixeira Rodolfo Alonso | Rodrigo Magalhães | Rudesindo Soutelo vido da criatividade dos comunistas (po- Rui Baptista | Silvina Pereira | Vasco Rosa de ser que descubram o antícorona vírus no ERRATA meio da multidão), como até tenho curiosida- parcerias de de um dia ir à Festa do Avante!… pela músi- Por lapso, na edição 265, de 29 de Abril de ca, apenas! Mas não será este ano! 2020, foi omitida a data do poema Whan, de Como o ano 2020 não está a cumprir os dias A. Riomonte, 2020-04-03, na pág. 24. Pelo fac- felizes que estavam previstos nos votos, nos to, as nossas desculpas ao autor e aos leitores. apoios desejos e na esperança da noite de 31 de De-

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Guilherme d’Oliveira Martins Centro Nacional de Cultura D. Manuel Vieira Pinto (1923-2020)

Muitos de nós começámos a ouvir falar do Padre “Esta minha observação causou uma certa sur- ta questões ligadas a novos atentados à dignida- Manuel Vieira Pinto a propósito dos encontros do presa (disse D. Manuel). E a surpresa tornou-se es- de humana, à falta de liberdade individual e de li- Movimento por um Mundo Melhor (MMM) e da cândalo quando, na homília, afirmei, entre outras berdade religiosa, às prisões arbitrárias, aos erros sua capacidade de mobilizar os cristãos portugue- coisas, que a guerra era um mal e uma fonte de e violência do sistema. E a partir de 1980, as con- ses, desejosos de verem horizontes abertos. Era o males e que a paz jamais viria das armas”. Racis- versas do Bispo com Samora Machel incidem espírito do Concílio que estava a germinar e o ca- mo e guerra, bem como a denúncia da violência, essencialmente sobre o tema da guerra civil e a risma do Padre Manuel era capaz de tornar os si- iriam constituir pontos marcantes da missão do ameaça ditatorial do regime. Em janeiro de 1984, nais dos tempos marcas efetivas de mudança…(*). Bispo. Para D. Manuel Vieira Pinto, “a discrimina- dez anos depois da sua expulsão, D. Manuel assi- Nascido em Amarante em 1923 foi ordenado pres- ção racial, a falta de respeito pelo homem negro, a na uma nova carta pastoral intitulada “A Coragem bítero no Porto em 1949, tendo sido assistente da ausência total de convivência entre brancos e ne- da Paz”, onde pede ao Governo e à Renamo que Ação Católica, diretor espiritual do Seminário gros, a falta de diálogo do bispo com os seus cris- “se empenhem com coragem e decisão, com es- Diocesano no Porto, além de ter desempenhado tãos, em maioria negros, eram pecados que salta- pírito de serviço e bem integral do povo e da na- funções nas paróquias de Campanhã e Cedofeita. vam imediatamente à vista. Mas as tensões políti- ção, na construção da paz, hoje e aqui”. E já no fi- Envolvido no MMM, visita Roma em 1960 e na se- cas eram claras, e levaram a um ponto de rutura nal da vida, era “o próprio Presidente Machel que quência do Concílio Vaticano II, participa com o quando foi publicada a carta pastoral “Repensar lhe falava da violência e da desumanidade do sis- Padre Vítor Feytor Pinto num conjunto de ações a Guerra”, em janeiro de 1974, onde se dizia que o tema”. Em maio de 1984, o prelado solicita, em no- no sentido da renovação da Igreja. A renovação conflito em Moçambique era uma guerra não de- me do povo, ao seu Presidente o gesto de negocia- da vida cristã, a leitura dos sinais dos tempos, o sejada. E então perguntava pelas causas, falan- ções com a Renamo. “Não, não me peça uma coi- lançamento de estratégias que favorecessem a do de mentiras e violência e do legítimo direito sa dessas”. E o Bispo insistiu. “O Presidente olhou- mudança e a conversão, bem como a promoção à autodeterminação. A guerra surgira da “toma- -me, deixando transparecer a luta que lhe ia no da justiça social, a paz e a reconciliação entre os da de consciência dos povos ontem dominados espírito e perguntou-me: ‘Com quem vou falar?’. povos e nações constituíram prioridades defen- por sistemas coloniais, hoje em busca progressi- Respondi: ‘Eu não sei, presidente. Não sou políti- didas pelo Padre Riccardo Lombardi, S.J., funda- va de uma justa e efetiva emancipação”. Impor- co nem tenho meios políticos que me permitam dor em 1952 do Movimento. A teologia do Concí- taria assim dar mais atenção à ação política do saber quem são os responsáveis’”. Então ajudou lio constituiu um corolário lógico desse espírito e que à força das armas, pelo “reconhecimento ao caminho da paz e da reconciliação e discre- um exigente desafio em que o então jovem sacer- da dignidade do homem e do povo de Moçam- tamente apoiou as negociações que levariam ao dote se envolveu com muito entusiasmo e com bique e das iniciativas que (dessem) conteúdo e Acordo Geral de Paz de 1992. Houve um outro dia uma especial preocupação teológica e pastoral. E expressão real aos direitos inerentes a uma justa em que Samora Machel fez a pergunta que tem si- assim impulsionou em Portugal esse movimento e progressiva autodeterminação”. Cerca de um do tão propalada: “Por que é que você, que é bispo, e essa motivação. E muitos recordam a sua gran- mês depois, o Bispo e os Missionários Combo- quando vem falar comigo nunca me fala de Deus de capacidade mobilizadora no sentido de uma nianos, que trabalhavam na diocese, publicaram e da religião, mas do povo, da defesa dos seus di- Evangelização renovada e aprofundada, na linha uma carta, sob o título “O Imperativo de Cons- reitos e da sua dignidade?” E o homem da Igreja da “Gaudium et Spes” e da “Lumen Gentium” – em ciência”, onde se defendia a autonomização e respondeu: “Porque um deus que precisasse da iniciativas que ficaram na memória de todos no das estruturas missionárias. Em consequência, a minha defesa seria um deus que não é Deus. Deus Pavilhão dos Desportos em Lisboa e no Palácio de 10 de abril, quinze dias apenas antes da revolução não precisa que o defendam. O homem sim”. Em Cristal no Porto. O Povo de Deus não era uma abs- democrática em Portugal, D. Manuel é expulso da 1998, D. Manuel Vieira Pinto pediu ao Papa a re- tração, era um apelo concreto, para tornar o mun- diocese e quatro dias depois, o governo força-o a signação por ter chegado ao limite de idade, man- do melhor, com mais atenção e cuidado, mais jus- sair de Moçambique e a regressar a Lisboa. No en- tendo-se ainda à frente dos destinos da arquidio- tiça e paz. Em abril de 1967, o Papa Paulo VI no- tanto, no mesmo mês de abril inicia-se o processo cese até novembro de 1980, sucedendo-lhe D. To- meou-o Bispo da nova Diocese de Nampula, ten- de descolonização e D. Manuel regressa a Moçam- mé Makhweliha. Mário Soares tinha-o condeco- do recebido a ordenação episcopal no dia 29 de bique em janeiro de 1975. rado com a Ordem da Liberdade… D. Manuel dei- junho desse ano, festividade de S. Pedro. Mas o Bispo não baixa os braços no seu combate xou-nos há poucos dias. O seu exemplo perdura- Ao chegar à sua nova diocese faz questão de as- pastoral pela liberdade, pela justiça e pela eman- rá para sempre! sumir uma atitude aberta, de acordo com o espíri- cipação dos moçambicanos. O desenvolvimen- to conciliar. E assim, para escândalo de alguns, lo- to é, afinal, o outro nome da paz, que disse S. Pau- go no aeroporto, beija uma criança africana, antes lo VI. Iniciava-se um novo capítulo no seu múnus. (*) “D. Manuel Vieira Pinto Arcebispo de Nampula das autoridades civis e militares, como sinal de Samora Machel respeita o Bispo, até pelo papel – Cristianismo: Política e Mística”, de Anselmo Borges paz e da universal dignidade humana. Mas as difi- desempenhado na luta contra o racismo e o colo- (Edições Asa, 1992), é uma obra que espelha a ação de uma das maiores figuras da Igreja portuguesa culdades começam logo. Pouco depois de chegar, nialismo e na defesa da autodeterminação. Mas, contemporânea, com uma extraordinária coerência corresponde a um pedido dos comandos milita- quando D. Manuel se encontra com o Presidente entre a palavra, o espírito e a ação. res e do Movimento Nacional Feminino para pre- do país recém-chegado à independência, levanta sidir a uma celebração em memória dos milita- questões polémicas, como a dos campos de ree- res portugueses mortos em combate. Aceita, afir- ducação criados pela FRELIMO, onde não se es- NOTA mando, porém, que também devia lembrar todos tavam a respeitar os direitos elementares dos ci- Texto publicado ao abrigo da parceria estabelecida entre os mortos, uma vez que a Igreja não tem inimigos. dadãos. Em encontros e cartas, D. Manuel susci- AS ARTES ENTRE AS LETRAS e o Centro Nacional de Cultura 13 maio 2020 Entrevista AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 4

Terceiro aniversário do Centro de Ética, Política e Sociedade da Universidade do Minho

Entrevista ao diretor

João Ribeiro Mendes, diretor do Centro de Ética, Política e Sociedade (CEPS), é Professor da Universidade do Minho, doutorado pela Universidade de Santiago de Compostela, especialista em Filosofia da Tecnologia e Estudos do Antropoceno. Por altura do terceiro aniversário do CEPS, falou com a professora Isabel Ponce de Leão para o jornal As Artes entre As Letras.

Como caraterizaria brevemente o Centro de Ética, Política e Sociedade? O Centro de Ética, Política e Sociedade é uma unidade de investigação da Universidade do Minho especializada nos domínios da filoso- fia política e da ética aplicada, a única no pla- no nacional, segundo julgo saber, que tem es- sa natureza. Isso mesmo, aliás, foi realçado na avaliação FCT a que fomos recentemente sub- metidos por um painel internacional de peri- tos que nos visitou. Somos um centro jovem apostado em produzir investigação e conhe- cimento de qualidade nesses dois domínios. Trabalhamos afincadamente para chegar- mos a ser um centro de referência internacio- nal, atraente para investigadores de nível e on- de se desenvolvem projetos de investigação com impacto social em filosofia política e da ética aplicada.

Disse que o CEPS é jovem. Quando foi criado? Essa mesma pergunta foi-me colocada há uns de 2017 eu e mais uma dezena de colegas in- da UMinho com maior dotação financeira por meses pela reitoria da Universidade do Mi- vestigadores fundámos o CEPS. investigador e também a terceira melhor com nho, no âmbito da preparação de um anuário esse rácio no país. Todo o grupo de investiga- da investigação científica na nossa academia E o que têm feito desde então? dores do CEPS sentiu que tinha sido um jus- e confesso que tive de ir procurar a data exa- Trabalhar loucamente. Depois daquele senti- to reconhecimento pelo enorme esforço fei- ta da criação do CEPS, ainda que não tenha si- mento inicial de termos conseguido fazer al- to ao longo de dois anos e meio de existência. do há muito tempo. 27 de março de 2017. Foi go de importante, pois não é todos os dias que Esforço de levar por diante 6 projetos de in- oficialmente constituído nessa segunda-feira. se cria um novo centro de investigação, co- vestigação, esforço de organizar quatro gran- É claro que a ideia nasceu antes, no verão de meçou a instalar-se alguma ansiedade sobre des eventos científicos anualmente, entre os 2015. Eu era na altura coordenador da linha de se éramos suficientemente bons para levar a quais o Encontro Ibero-americano de Estudos ação em filosofia e cultura no Centro de Estu- empresa por diante. Rapidamente consegui- do Antropoceno, esforço de realizar um Semi- dos Humanísticos (CEHUM), a outra unidade mos tornar-nos numa unidade de investiga- nário Permanente com periodicidade men- de investigação do Instituto de Letras e Ciên- ção registada na FCT, mas como só fomos ava- sal, esforço de editar a revista Ethics, Politics cias Humanas da UMinho. O CEHUM, original- liados pela primeira vez em 2019, consegue and Society. Tudo isto, como se compreende, mente registado como centro de estudos em imaginar a pressão que enfrentámos durante exigiu e continua a exigir muito dos membros Literatura, mas que se abriu depois aos estu- mais de dois anos. Nesse período, para além do CEPS. dos em Linguística e mais tarde aos de Filoso- de limitações decorrentes da austeridade e ri- fia, tinha acabado de ver a sua classificação gor financeiros que tivemos de enfrentar, tam- Que projetos de investigação são esses de descer de excelente para bom e ser exortado bém, por exemplo, não sei se sabia, não podía- que falou? pela FCT a reestruturar-se. Nesse verão, de- mos acolher bolseiros. Pode imaginar a felici- Refiro, muito brevemente, apenas aquele que pois de uma intensa discussão com alguns co- dade que senti quando no final do ano passa- eu próprio coordeno e que inquire sobre o legas, tornou-se claro que era o momento cer- do recebi a notícia de que a FCT nos tinha atri- que o Secretário Geral da ONU, António Gu- to para sairmos do CEHUM e nos aventurar- buído a classificação de Muito Bom e que iría- terres, apontou como “o problema que defi- mos na criação de um novo centro de inves- mos receber uma dotação financeira para o ne o nosso tempo”, o da excessiva interven- tigação. Seguiu-se um ano e meio de esforços quadriénio 2020-2023 de 750.000 euros. De ção da nossa espécie no funcionamento dos para consegui-lo, mas no início da Primavera um dia para o outro, passámos a ser o centro ecossistemas planetários que está a provocar 13 maio 2020 5 | AS ARTES ENTRE AS LETRAS entrevista

Terceiro aniversário do Centro de Ética, Política e Sociedade

o aquecimento global, outras preocupantes mar-se, atribuindo um peso cada vez maior às rem satisfazer os seus compromissos ou mes- da Universidade do Minho alterações climáticas, crises ambientais e ca- atividades de investigação em detrimento das mo perder oportunidades e, obviamente, for- tástrofes ecológicas. Tem-me permitido exa- de ensino. Várias assumem essa metamorfo- ça ao mau uso dos dinheiros públicos, uma minar os desafios filosóficos que ele coloca, se como uma condição para a sua sobrevivên- vez que essas demoras fazem aumentar des- procurando trazer à consciência pública im- cia. Isso parece inédito no nosso país. Aconte- necessariamente os gastos, como acontece plicações éticas e políticas desse novo esta- ce que as universidades não estavam nem es- quando o custo de uma passagem aérea tripli- do de coisas geocivilizacional que alguns cha- tão ainda preparadas para o boom de investi- ca em menos de um mês. Apesar dessas difi- mam Antropoceno. gadores no seu espaço. É bom ter mais inves- culdades, permaneço confiante no futuro do tigadores nas universidades, mas teremos de CEPS. Lidero uma equipa de investigadores Tem havido muitas críticas à política segui- dar-lhes melhores condições para trabalha- de elevado nível e cada vez mais internacio- da pela FCT. Que leitura faz do assunto? rem. Outro problema é, como disse, o do subfi- nalizada. Uma equipa que vai aumentar, pois É fácil e tentador juntar-me ao coro dos crí- nanciamento. No entanto, talvez um ainda só este ano vamos poder contratar mais oito ticos da FCT. Muito há por onde pegar, ainda maior esteja a ser o da dificuldade em dispor novos investigadores e aproximarmo-nos das que, pelo menos em aparência, a situação de daquele que há. Quem dirige um centro de in- duas dezenas e meia. Estamos a atrair investi- enorme tensão entre a FCT e a maioria dos in- vestigação luta hoje diariamente contra cati- gadores de todo o mundo. Depois, entre a do- vestigadores que tivemos entre 2011 e 2015, os vações de verbas e contra requintes de mal- tação orçamental da FCT que já referi e o ob- anos da Troika, tenha ficado mais atenuada vadez burocrática para retardar as transferên- tido com o financiamento de projetos vamos na atual presidência de Paulo Ferrão. Um dos cias de verbas ou o seu uso. O exemplo que lhe poder contar nos próximos quatro anos com problemas crónicos é o do desfasamento en- vou dar faz-nos balancear entre o riso e o de- quase um milhão de euros. Estou, pois, con- tre retórica e realidade, entre os anúncios de sespero. Imagine que um investigador do nos- fiante que o CEPS continuará a granjear o re- mais milhões de reforço do sistema de inves- so centro pretende dispor de uma verba desti- conhecimento alcançado dentro e fora da tigação científica nacional e o desinvestimen- nada a apoiar a sua participação num evento UMinho e a ver os seus serviços de pesquisa, to efetivamente ocorrido no mesmo, particu- científico. Coisa banal, certo!? Pois, a primeira formação e consultoria muito requeridos pe- larmente nos últimos quatro anos. A descon- coisa que há a fazer é cabimentar essa despe- la academia, pela comunidade científica e pe- fiança é grande e tem conduzido muitos- in sa. Fácil. A seguir fica-se à espera que haja pla- la sociedade. vestigadores ao desânimo. Depois, há tam- fond na empresa que vai fornecer os serviços bém um indisfarçável mal-estar em relação (passagens aéreas e hotel, por exemplo) e que Sente-se realizado como diretor do CEPS? ao centralismo da capital. Pode ser que esteja haja autorização superior para fazer a despe- Realizado não diria, mas feliz sim. Feliz por ao a ser injusto, mas veja-se, por exemplo, o que sa. Nada de especial. Acontece que, com de- fim deste tempo, ao fim de apenas estes três se passou com os últimos concursos abertos masiada frequência, cada vez mais frequên- anos, as pessoas falarem do CEPS como se ele pela FCT de estímulo ao emprego científico e cia, ou não existe esse tal plafond ou há, mas ali tenha sempre estado. Realizado ficarei, tal- para desenvolvimento de projetos científicos como a autorização demora demasiado a ser vez, se, no final do meu mandato, e cumpridos em todos os domínios. Quase todas as bolsas dada, é preciso repetir tudo várias vezes. Es- os objetivos a que me propus, constatar que atribuídas e todos os projetos financiados fi- te trabalho sisífico desmotiva o pessoal admi- os meus colegas mal deram pela minha exis- caram em Lisboa. Não é estranho!? De vez em nistrativo, desmoraliza os investigadores que tência e disserem “fomos nós mesmos que fi- quando lá nos caem umas migalhas, talvez cada vez mais se queixam de não consegui- zemos tudo”. para que nos mantenhamos calados e sosse- gados. As edições de 2020 para esses concur- sos que referi estão abertas. Veremos se é des- ta que as coisas mudam, embora um colega mais desiludido me tenha dito há dias que tu- do se irá repetir e Lisboa ficará de novo com tudo. Temo que ele tenha razão e que não ve- nhamos a ter qualquer bolsa ou projeto apro- vados no CEPS. É triste, porque estou absolu- tamente convencido que a investigação filo- sófica na UMinho, em particular no nosso cen- tro, é do que melhor se faz em Portugal. Assim, talvez seja a inveja que esteja a impedir que consigamos mais.

Deteto um certo pessimismo nas suas pala- vras. É assim? De todo. Faço parte do grupo daqueles que o Presidente da República apelidou de “irritan- tes otimistas”. Para mim o futuro tem o me- lhor. É claro que isso não significa escamotear problemas. As universidades estão a transfor- 13 maio 2020 Literatura AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 6

Cristino Cortes escritor Dois livros de auto-ajuda do século XVII

FOTO: DR Li-os nas últimas férias, e um tanto involunta- riamente no caso do segundo (uma releitura, como se verá). De há muito tinha curiosidade em conhecer o Casamento Perfeito de Diogo de Paiva de Andrada, obra que comprara há quase dez anos, numa então recente reedição da Sá da Costa. Vem ela prefaciada pelo Pro- fessor Fidelino de Figueiredo, o qual informa haver sido publicada inicialmente em 1630, e ser seu autor um sobrinho da Condessa de Li- nhares, D. Violante de Andrade, a conhecida ama, musa, protectora e porventura persegui- dora (na fase dos ciúmes), dizem que amante, na juventude de ambos, de Luís de Camões. O ilustre Professor não entra nestes amores e parentescos, antes refere que este Diogo de Paiva de Andrada era homónimo de um seu tio que este, sim, era irmão da famosa condes- sa. E assim sendo… são de todo legítimas as minhas conclusões, uma vez que este escri- tor era filho de Francisco de Andrada, irmão de Violante e de Diogo. No seu prefácio faz Fidelino de Figueiredo um paralelo entre esta obra e a Carta de Guia de Ca- sados, de D. Francisco Manuel de Melo, de 1650 Andrada diz que pouco mais fez, vivendo ele do apenas vinte anos mais tarde –, é a perfei- mas publicada no ano seguinte, de algum mo- com sua mulher tão perfeita e concertada- ta antítese desta posição. De todo dispensan- do pretendendo que ela destronou e substituiu mente, «do que ir retratando ao natural suas do a legitimação da esfera religiosa ele baseia- a primeira. Eis a razão por que logo de seguida acções e procedimentos»; D. Francisco de Me- -se, tão somente, na sua experiência e opinião. procedi à sua releitura. Devo dizer, aliás, que lo, por sua vez, preparava-se para casar. Dirige-se ao leitor como quem conversa, na- dela já bem pouco me lembrava. (Também, Os dois autores, apesar do pequeno intervalo turalmente, à lareira, numa noite de Inverno. a quase quarenta anos de distância…) Pouco com que publicaram as respectivas obras, pa- Ele quase não tem citações – e as poucas que mais na verdade do que o pormenor do seu vo- recem-me situar-se, no entanto, em posições comparecem são em castelhano, uma língua to de que Deus o livrasse de «mula que faz him quase antagónicas: enquanto um estava vira- viva e então quase comum em Portugal – e an- e de mulher que sabe latim». Reparo agora que do para o passado, o outro anunciava e vivia tes abunda em provérbios, anedotas, casos ele apenas reporta o curioso dito de um chapa- já o futuro. mais ou menos pitorescos e ilustrativos, coi- do recoveiro. De sua lavra acrescenta D. Fran- A obra de Paiva de Andrada é um produto tí- sas que a propósito lhe disseram. O seu estilo cisco Manuel: O ponto está em que o latim não pico da Contra-Reforma, um tratado quase é ágil, divertido, moderno – e não admira, sen- é o que dana; mas o que traz de outros sabere- religioso, abundando em citações de auto- do a matéria a mesma, que a sua obra tenha tes envolto aquele saber. res clássicos e católicos – felizmente fazen- de todo substituído o tratado de Paiva de An- Está pois explicada a escolha das minhas ocu- do-as acompanhar da sua tradução para por- drada. Neste ponto ajuizou bem, seguramen- pações estivais. Jamais tiveram estas obras a tuguês a partir do seu original latino, dentro te, Fidelino de Figueiredo. designação sob que agora as agrupo – a qual da mais estrita ortodoxia. Fidelino de Figuei- Ambos os autores, naturalmente, não pude- nesse tempo nem sequer existia. Mas a maté- redo diz tratar-se de um «instrumento no- ram fugir ao tempo em que viveram. O casa- ria é essa e qualquer delas visa explanar opi- bre de dignificação e cristianização do matri- mento para eles é o abençoado pela Igreja – niões e conselhos sobre a forma de levar a em- mónio, à luz das doutrinas fixadas em Tren- ainda que D. Francisco Manuel de Melo ja- presa do casamento a bom porto. Ambos os to», pertencendo mais à história das ideias mais tivesse casado, sem prejuízo de nessa al- autores se servem de um artifício semelhan- morais do que propriamente à literatura, no tura já ser pai. Nenhum deles fala de divórcios te: Diogo de Paiva de Andrada pretende que o que me parece haver algum exagero. É uma – e é óbvio que seria impensável o que decer- trabalho lhe foi encomendado por um amigo, obra teórica, sem grande proveito em termos to ambos chamariam autêntica aberração, a ao qual se pretendeu escusar por se conside- de conhecimento da realidade do seu tem- de imaginar um casamento entre pessoas do rar «casado tão imperfeito»; D. Francisco Ma- po, nessa específica atmosfera familiar. O seu mesmo sexo. E nas circunstâncias da vida fa- nuel de Melo balanceou entre o amor e a obe- estilo é rebuscado e à primeira leitura pou- miliar sobre que discorrem jamais houve um diência a um seu primo, quase homónimo, co compreensível – longuíssimos parágrafos aborto – nem nenhuma mulher do seu meio que lhe pedira idêntico feito. O primeiro, não que porventura influenciaram Saramago. terá perdido a virgindade antes do casamen- nomeado, estava casado há muito, e Paiva de D. Francisco Manuel, por seu lado – escreven- to. Paiva de Andrada acha mesmo que falar 13 maio 2020 7 | AS ARTES ENTRE AS LETRAS Literatura

Dois livros de auto-ajuda do século XVII

de hímen, donde deriva o termo de himeneu, Uma outra foi barbaramente acusada de adul- te, a estudarão apenas por dever de ofício. E al- não é muito próprio – por honestos respeitos tério por lhe nascer um filho muito formoso, guns curiosos como eu, evidentemente.) não convém que aqui se declare, diz ele, logo sendo ela e o marido horrendamente feios. Sabendo D. Francisco Manuel de Melo que o no início. Explicou o incompreensível facto com as mui- poderiam acusar de pouco simpático para Compreende-se, assim, que os assuntos ver- tas vezes que, durante a gravidez, fixara uma com as mulheres – eivado de misoginia, diría- sados nestas duas obras não sejam muito di- imagem pintada muito perfeita que em sua mos hoje – ainda transcrevo o parágrafo, em ferentes. A esse respeito o índice de Paiva de casa havia – e com a qual o menino afinal se que ele se declara disponível para desenvol- Andrada é talvez o documento mais elucida- parecia. ver um programa semelhante, mas agora na tivo – visto que a Carta de D. Francisco o dis- Referirei apenas mais um caso: o de uma mu- óptica das mulheres: «Mas se contudo pare- pensa. Eles falam pois do que concorre para a lher alemã, muito grande herege, sempre a de- cer às mulheres excessivamente rigorosa es- felicidade do casamento: a igualdade (de for- sejar a morte aos sacerdotes católicos – e des- ta minha doutrina, certifico-lhes que meu âni- tuna e idade, sobretudo) entre os nubentes; ta veio a nascer um filho com uma coroa aber- mo não foi esse, senão encaminhar tudo à sua o amor e a confiança, que não podem ser es- ta, como se tivera ordens de missa. Aqui Pai- estimação, regalo e serviço. E porque assim cassos nem exagerados; a beleza e a moda, di- va de Andrada hesita e confunde-se: «Ainda se veja mais certamente, haja de mim quem gamos assim; os perigos do jogo, da avareza e que isto podia ser juízo divino para confusão queira outra Carta para as casadas, e então se da liberalidade; o papel da devoção e frequên- de sua heresia, também se pode atribuir a efei- verá quão bem advogo por sua parte, quanto cia das igrejas; o mal da ociosidade; a inconve- to natural para confirmação desta doutrina». ao que pelos maridos deixo dito, as mulheres niência de demasiadas conversas, amizades e De qualquer forma, oh meus amigos, era este se não dêem por satisfeitas». influências; a alegria e educação dos filhos; o o quadro mental tratado por Diogo de Paiva Não tendo, no entanto, D. Francisco concreti- desaconselhamento claro dos segundos casa- de Andrada – já bem entrado no século XVII. zado esta sua tão democrática e louvável in- mentos e das madrastas. Mas eu pela minha parte gostaria de termi- tenção não temos outro remédio, mulheres D. Francisco Manuel acrescenta-lhe ainda, co- nar com uma amostra do estilo da Carta – da- e homens – e que prazer gostoso não é! – que mo mais prático, as relações com a criadagem, do que a obra de Paiva de Andrada me parece ler a carta que efectivamente escreveu. A mi- o governo quotidiano da casa, o casamento efectivamente menos capaz de ser entendida nha edição é já muito antiga – um livro de bol- dos filhos, a existência e o tratamento dos bas- e apreciada nestes tempos que são os nossos. so da RTP, número 12 da sua colecção Biblio- tardos, a presença ou o afastamento da Cor- (Em termos de técnica literária, de evolução teca Básica Verbo (que se completaria com o te. Sempre com bom senso e moderação, ad- da língua, da lembrança do latim – a sua leitu- número 100, Os Lusíadas), publicado no já re- mitindo que os seus conselhos não são regras ra não é tempo perdido. Mas cumpre reconhe- cuado ano de 1979. Mas haverá outras edições gerais e muito menos absolutas. cer que ela não atrairá mais do que alguns es- mais recentes, certamente. É uma questão de Em termos de extensão também as duas pecialistas e professores – que, provavelmen- procurar. obras não deverão andar muito longe uma da outra. Diogo de Paiva de Andrada organizou a sua em 26 capítulos; D. Francisco Manuel de Melo dividiu a sua Carta em 56, naturalmen- te que mais curtos – e alguns mesmo muito re- duzidos, quase anotações para não se esque- cer do que queria dizer. Sintomática e sintética do estilo e da atmosfe- ra de Diogo de Paiva de Andrada é o seu últi- mo capítulo, Os proveitos que se tiram da per- feição do casamento, que eu aqui tomo co- mo exemplo. No caso dos filhos diz ele que «sabida coisa é entre os filósofos, e bem ven- tilada entre os curiosos, que costumam os fi- lhos tomar semelhança daquelas coisas em que seus pais ou mães põem eficaz imagina- ção». Refere então como Torquemada con- ta de uma mulher que, impressionada com uma máscara de diabo com que o marido vie- ra de uma certa festa, viu nascer-lhe um filho que era a cópia exacta dessa máscara – e co- mo bom diabo, como se tivera o diabo no cor- po, digo eu, logo em nascendo começou a cor- rer, e saltar, e a fazer outras obras e maravi- lhas. Que adiantamento, hein! 13 maio 2020 Literatura AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 8

Adelto Gonçalves doutor em Literatura Portuguesa (USP) Rodolfo Alonso, o fabricante de encantos como o inextinguível esplendor leproso do cogumelo de Hiroxima a primeira vez que foram me buscar no colégio um dia de chuva como um casaco para lançar-me aos ombros não tinha capa Recordo o barulho da chuva sobre o teto de um automóvel dentro do qual sou um menino que sobe pela primeira vez num carro quando havia poucos carros e descobre ambas as coisas a intimidade de um interior em movimento a intimidade da chuva a cara íntima que dá à chuva no outono o prazer de escutar chover sobre um teto Recordo a impossibilidade da prosa para contar tudo isso Recordo estas duas linhas de Rafael Alberto Arrieta DR (“Sol da manhã/ glória do inverno”) FOTO: lidas num de meus primeiros livros de leitura I. Depois de conhecer Antologia Pessoal, do poeta argentino Rodolfo Alon- nas quais sem dúvida descobri a poesia so, edição bilingue, com traduções de José Augusto Seabra (1937-2004), por experiência própria Anderson Braga Horta e José Jeronymo Rivera (Brasília, Thesaurus Edi- e de uma vez para sempre tora, 2003), o leitor brasileiro tem a oportunidade de entrar em contato Quisera vir a ler outra vez Os sete loucos (...) com Poemas Pendentes, do mesmo autor, igualmente em edição bilingue, Para o leitor brasileiro – pouco conhecedor da história argentina –, o tradu- com tradução de Anderson Braga Horta e apresentação de Lêdo Ivo (1924- tor Anderson Braga Horta lembra que a Aliança aqui citada é uma referên- 2012), que chegou ao mercado pela Editora Penalux, de Guaratinguetá-SP. cia ao violento grupo de extrema direita Alianza Libertadora Nacionalista, Um dos maiores poetas latino-americanos do nosso tempo, Rodolfo Alon- muito ativo à época do primeiro período do governo de Juan Domingo Pe- so tem tudo para ser o primeiro argentino a ganhar o Prêmio Nobel de Li- rón (1895-1974), que vai de 1946 a 1955. Acrescente-se aqui que Rafael Alber- teratura, mas, a exemplo de Jorge Luis Borges (1899-1986), Julio Cortázar to Arrieta (1889-1968) foi um professor e poeta que chegou a ocupar a presi- (1914-1984) e Ernesto Sabato (1911-2011), corre o risco de ser igualmente es- dência da Academia Argentina de Letras (1964), ligado ao modernismo do quecido pela Academia Sueca, que, na América Latina, premiou Gabrie- nicaraguense Rubén Darío (1867-1916), que nada tem a ver com o modernis- la Mistral (1945), Miguel Ángel Astúrias (1967), Pablo Neruda (1971), Gabriel mo brasileiro, mas com a tendência francesa art nouveau. García Márquez (1982), Octavio Paz (1990) e Mario Vargas Llosa (2010). Composto em parte por poemas mais antigos que não apareceram em li- vros anteriores e em parte por poemas recentes, alguns curtos, de duas li- II. Na contracapa, há um texto de Carlos Drummond de Andrade (1902- nhas, mas não hai kais, este livro traz ainda uma homenagem – a que pou- 1987) em que o poeta diz que Alonso não usa as palavras pela sensuali- dade que desprendem, mas pelo silêncio que concentram. Mais: que “sua cos poetas brasileiros fizeram – à cantora brasileira Maria Bethânia, de poesia tenta exprimir o máximo de valores no mínimo de matéria voca- 2007, em que se lê: bular, impondo-se por uma concisão que chega à mudez”. (...) Há tom, há densidade, Quer dizer, depois de uma apresentação como essa, não há muito para há gravidade, há timbre, um resenhista o que acrescentar. Mas ainda vale a pena reproduzir o que há palavra que canta Lêdo Ivo no prefácio disse dele, a quem chamou, com incontestável pre- e há música que expressa cisão, de “fabricante de encantos”: nesta coletânea, os poemas se exibem a pulsação que sentes. sempre em sua nitidez e concretude, com a rigorosa face imagística. Rege, Bethânia, ordena Lêdo Ivo, outro grande poeta esquecido pela Academia Sueca, aponta pa- a poesia do mundo, ra o pano de fundo que cerca a poesia de Rodolfo Alonso, dizendo que torna o caos em sentido, sempre aponta para “uma era de emergências e turbilhões do século XX, a altura em canto fundo, como seu extenso catálogo de colisões e mudanças”. É o que se pode ver e faz do intenso, alento (...) neste trecho do poema mais extenso desta coletânea, “Ocupem-se de Arlt”, de 1977, em que ele homenageia o romancista Roberto Arlt (1900- 1942), que, em tão pouco tempo de vida, criou obras fundamentais, como Los siete locos (1929), um romance sobre a impotência do homem diante NOTA da sociedade que o oprime e obriga a trair seus ideais e a aceitar a hipocri- Poeta, tradutor e ensaísta reconhecido internacionalmente, sia burguesa. Eis um trecho: Rodolfo Alonso (1934) foi pioneiro na tradução para o castelhano na Recordo a primeira vez que vi atuar a Aliança América Latina dos poemas de Fernando Pessoa (1888-1935). os primeiros noticiosos do pós-guerra rostos de homens mulheres meninos judeus quase sempre NOTA em ossos atrás de arame farpado Poemas Pendentes, edição bilingue. Rodolfo Alonso. Tradução e notas de Anderson Braga os campos de concentração que nunca esquecerei Horta, com apresentação de Lêdo Ivo. Guaratinguetá-SP: Editora Penalux, 2016, 198 págs. 13 maio 2020 9 | AS ARTES ENTRE AS LETRAS Literatura

Domingos Lobo escritor; programador cultural Palavras com “vísceras” num Porto a perder identidade

«[...] E o autor de Guerra e Paz assombra o francês: o gé- Mas há, no meio desse caos aparente, sinais de Escasseiam livrarias, os alfarrabistas são guar- nio e a obra de Shakespeare «são um equívoco univer- resistência a este inquietante movimento de fa- diães de tesouros à espera da reforma. Porto, ci- sal». De toda a sua obra, «ressalta um aborrecimento laz realidade: há quem arrisque escrever poe- dade esquiva, que entre os dedos, as palavras?, mortal. Mas ninguém pensa nisso e os que o poderiam mas «com vísceras»; quem, de modo compulsi- se esboroa num código indecifrável de deserda- dizer, não ousam fazê-lo.» vo, frequente alfarrabistas (em vias de morte de- dos, em busca de cais de acostagem em águas as- siludida e fruste), que nelas encontre o oxigénio sanhadas. O que nos prende à ductilidade da escrita de necessário; quem leia os velhos livros de Pavese, A escrita do autor de A Morte do Dali, balança Francisco Duarte Mangas (FDM) é a sensível inte- Trabalhar Cansa, O Ofício de Viver; um sem-abri- entre a realidade do desencanto e a ficção sem ligência do seu ordenamento discursivo, a sereni- go que aprende o significado de hidrófobo e hi- amarras, tem esse talento raro de urdir a essência dade e a contenção narrativa, o surreal que habi- drófilo, num dicionário resguardado dos humo- das palavras, o estrito fio da rarefacção ficcional. ta o subtil humor que a envolve, a pulsão poética res atmosféricos por saco de plástico; outras pa- Daí exacerbar as palavras terminadas com sufixo da linguagem a lembrar Carlos de Oliveira. Tudo lavras em desuso, ou pouco visitadas nestes dias mente. A sua ficção não se parece com o real, coli- isto e o mais que adiante se verá, fazem de FDM sem leituras, rágulo, p.ex., ou trutas gigantes que de com ele e transfigura-o, mas nãomente . Há nos um dos mais interessantes autores da sua gera- trocadas por notas compravam sapatos, os pri- subterrâneos rumores deste belo livro de FDM, «a ção, bastando-nos para tanto títulos como Jaca- meiros que se teve na vida; as viagens a penates sede dos escritores desafortunados». randá, Pavese no café Ceuta e este A Cidade das Li- de Teófilo Braga e Antero, de Coimbra às matas “Os Leitores Vivem o Tempo”, é um dos títulos de vrarias Mortas, para referir aqueles que têm o Por- do Buçaco; os gatos de Manuel António Pina; os um dos capítulos de A Cidade das Livrarias Mortas; to como paisagem sensitiva e memorialística de cafés O Piolho (e a revista homónima), O Central, “A poesia tem de intervir no seu tempo” disse Inês explanação ficcional. O Ceuta; as Conferências do Inferno, como as Con- Lourenço à revista Gazeta Literária, também ela Mangas não podia saber, no período de gestão ferências do Casino, da geração perdida de 70, com FDM ao comando. O tempo, esse enigma que de A Cidade das Livrarias Mortas, desta peste que ambas lutando contra as correntes do desvario nos vai devorando passo a passo, sobre o qual po- nos enclausura, mas dá-nos neste livro notícia de civilizacional, ambas para agitar, para «o safanão demos intervir desnudando-o, tornando-o mais uma outra «espécie de peste bubónica das livra- de que a cidade carece». lídimo, humanizando-o. Mas precisamos das pa- rias», também ela voraz e predadora, a desarmar- As personagens singulares que percorrem as pá- lavras, precisamos de poesia, música, referentes -nos de perplexidade. Fala-nos deste estranho e ginas desta cidade, o Porto dos afectos doridos identitários. O ruído submete-nos, submerge-nos. inquieto universo das palavras e da «decadência de FDM: o “engenheiro” que carrega, como Pes- Eis o que este livro, em subliminar intertextuali- de um mundo sem Pátria» ou seja, sem referentes soa, «um feixe imenso de heterónimos», que ab- dade, nos veio dizer, acrescentando que «a uto- linguísticos, sem memória, elementos identitá- jura «as barrigas de aluguer da nossa literatura», pia sobreviverá à peste», a que ameaça tomar-nos rios, sociais e históricos, que só os livros guardam. engenheiro que afinal não o é, figura enigmáti- o corpo e as liberdades e outra que lavra clandes- O Porto burguês, um povo que foi capaz de se er- ca que usa capacete para se proteger «dos excre- tina nas cidades sem livros, «a peste bubónica das guer e «dizer não às injustiças e outras tiranias», mentos das gaivotas», «zelador da cidade invisí- livrarias». está hoje, de modo suicidário, a destruir a última vel»; o neto do camaroteiro do Teatro S. João (per- Eis o Porto do escritor da serenidade e das tran- ameia de liberdade que a protegerá da barbárie: sonagem em que o autor talvez habite), em busca sumâncias, o cronista lapidar de um tempo fugi- as suas livrarias, os seus alfarrabistas, os jornais, dos escritos libertários de João Chagas; dona Etel- dio a perder-se na vazante dos nossos hodiernos as revistas, os poetas, os músicos, os actores – e os vina que deixou a sua pensão de desvalidos e ru- labirintos. cafés, espaços míticos de sociabilização e tertúlia. mou «às terras de Vila do Conde», com Américo, Mais um grande livro de Francisco Duarte Man- As livrarias que morrem uma a uma num Porto viciado em livros, de bolsa leve; Boaventura, ale- gas, o apuro de uma escrita cada vez mais sagaz que expulsa os seus residentes – os mais pobres, gado matador de porcos, leitor de Aquilino, morto e límpida, a agitar os ventos destes dias de cerco, sempre os mais pobres –, para periferias sem chão de morte matada por ser um perigoso leitor de in- sabendo que as «[...] Palavras verdadeiras, tendo referencial, em nome do turismo, essa vertigem terditos e amigo chegado de comunistas, uma bai- vísceras e afetos, são as que trazemos nos bolsos.» transumântica do nosso tempo. No espaço das li- xa a acrescentar a outras no rol de leitores perdi- vrarias instalam-se restaurantes vegan, snack’s in- dos, ou transviados, numa cidade em que la movi- distintos, papel químico, em acrílico, dos que exis- da chegou tarde mas a tomou pelos pulmões, nu- tem em todo o mundo, trapos de luxo das multi- ma espécie de ruído contínuo e desesperado que nacionais (made in China), recuerdos para turistas transfigurou em sobressalto as noites da urbe. distraídos. A noite a fazer-se dia, a desassossegar quem sem- A alma, essa aura que ressuma das cidades com pre teve por companhia o silêncio aceso das pa- história(s), de um Porto a descaracterizar-se lavras, o seu íntimo rumor plasmado nos livros e na usura, nas ilusões sem lastro, a perder o seu agora tem de coexistir com a algazarra a vazar a “cheiro”, como os odores impressivos de los oli- noite, bares, taskas (com K que é mais fino), ofici- vos que definiam a Fuente Vaqueros de Garcia nas de tatuagens bárbaras. Turba ululante, a es- Lorca, ou o cheiro das estevas e dos montados gotar-se no desvario de noites insanas, que não do Alentejo de Manuel da Fonseca, ou o Porto de irá saber que «o leitor vive mais tempo, vivendo o João Chagas que «cheirava a feno». Alguns chei- mesmo tempo». ros que persistem, que fazem a cidade e nos re- A cidade tornada lugar inóspito, sem vozes ami- NOTA tém para lhe sentirmos ainda o frágil coração an- gas, lojas de quem sabemos o nome dos donos, o A Cidade das Livrarias Mortas. Francisco Duarte Mangas. tes de um AVC fatal. café da tagarelice matinal. Edição Teodolito/2020. 13 maio 2020 História AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 10

Rui Baptista Rui Baptista, historiador Jacobeu e Cultura Portuguesa - os quadros histórico, geográfico e económico. O homem e suas estruturas socio-mentais - 9

O ASPECTO MÉDICO culto fálico ou lunar: a figa, o canto do cuco, - UM LADO DA ICONOGRAFIA JACOBEIA caracteres fálicos em São Gonçalo. O asno e (parte 3) as favas. As mandrágoras. Superstições so- Nas duas publicações anteriores nomeá- breviventes de um politeísmo sideral ou mos algumas das patologias pandémicas solar, e o homem das sete dentaduras (Sol que, desde tempos bíblicos, sulcaram as so- que declina); canto do galo, lobisomem (Sol ciedades desde a alta e da baixa idade mé- que desponta), cavalo branco e cavalinhos dia até à contemporaneidade. Os testemu- fuscos. O tributo das donzelas. As entida- nhos de fontes secundárias como se cons- des mágicas e malévolas: tanglomange, tata (textos e publicações em vários supor- provinco, tanso, trasgo, tartaranho, fradi- tes) são muitos. Relativamente às fontes nho, estrugeitante, pesadelo, breca, couro, primárias ou imediatas, fixamo-nos na ico- etc., etc.. olharapos, fadas, mãe-d’água, bru- nografia românica do nosso percurso jaco- Vilar de Frades – arquivoltas portal ocidental (1) xa, anão, etc.. O pessoal mágico popular: os beu um dos mais fidedignos e pungentes esconjuradores dos espíritos. As fórmulas testemunhos dessa realidade histórica. Trata- cerimónia de imersão dos “sacra” seguida por mágicas portuguesas, os curandeiros e a me- -se duma reflexão acerca do que o povo fazia todos os povos primitivos, apresenta-se como dicina popular. Braços e pernas oferecidos a sobre os males que o atormentavam, como os banho ou seja o mergulho completo dos “sa- santos. As ervas mágicas. A cura das hérnias, sublimava e como operava os meios de ajuda cra”; como aspergir e como lavadouro. Exem- o cobro e o parto difícil. As fórmulas mágicas que impetrava às “divindades malévolas” que plo clássico do banho ou imersão total é o de para talhar cobros, fogo louro. Semeadores da procurava criando deuses, semideuses e már- Palla Athenea que os Gregos faziam no século peste em Portugal. As pessoas de virtude: os tires que suportava. III a.d. J. C. ou o que o de Vénus faziam os Ro- reis e os padres. Orações contra o quebranto As imagens rejeitam tudo que não é essencial manos pouco mais tarde, os que em diversos e para acompanhar os actos quotidianos. Os à iconografia jacobeia memorial, mesmo na lugares de França sobrevêm cristianizados bentos e os benzilhões. Os adivinhões. As pro- perspectiva dégradé ilimitada do granito de em muitos lugares. Esta imersão pode ser de fecias nacionais e a vinda do rei D. Sebastião2. desconhecidos membros e de troncos cons- cruzes processionais ou dos seus pés ou ga- Sobre a importância étnica e histórica das su- tituídos por linhas firmes e nítidas, movendo- lhos novos; de relíquias e de imagens. Na Ga- perstições populares e dos estados mentais e -se delicadamente na sua rudeza para retra- liza e em Portugal não se encontra na tradição sociais em que estas se elaboram ou persis- tarem o que nunca se alcança. Animais/ho- actual outra que não seja a imersão de ima- tem, David Hume, o historiador do empiris- mens/esboços/penumbra no voo vão subita- gens, falhando ao que cremos a de relíquias mo radical, comentado pelo positivista Tho- mente a saltar da pedra e olham-nos desafia- e de cruzes. O banho, a aspersão e o lavatório, mas Buckle, acerca do carácter supersticioso damente; uma figura vagarosa e desajeitada asseguram que estas acções têm por objec- dos povos peninsulares, diz tratar-se da coor- passeia-se por ali aos tropeções. Tudo parece, to purificar, punir ou simplesmente ameaçar, denação histórica das superstições em cultos com as devidas cautelas, como se o “cientis- sempre dentro do rito impetratório da “choi- mágicos propiciatórios segundo o tipo acádi- ta” quisesse criar uma presença espiritual tão va”1. co e cultos mágicos esconjuratórios, de tradi- próxima quanto possível de uma presença A iconografia historiada pode mostrar a con- ção egípcia. É a persistência de um fundo tra- real mas não uma presença simbólica. Trata- cepção espontânea das divindades malévo- dicional de superstições da Caldeia transmiti- -se de um efeito espantoso inquietante e má- las: a matéria em acção; as epidemias, as assu- do à Grécia, a Roma, aos Árabes e às popula- gico, terá sido invocado para lá de todos os ob- ras e os agoiros, são como que os restos destas ções da Idade Média. Nova interpretação das jectivos do eterno, simplesmente pelo seu po- concepções na linguagem usual. Dos agoiros, fórmulas marcélicas, continuadoras do histo- der de transformar o irreal e imaginário numa das pedras, das plantas, dos animais, do fogo, riador Tácito, tendo a região da Aquitânia co- imagem concreta. do tempo, do dia e da noite e das estrelas. Dos mo centro de irradiação das tradições ociden- Não se contenta o povo com impetrar por agoiros da casa, das vestimentas, das comidas tais. As vinte e oito fórmulas do palácio de Ní- meio de orações, de preces mais ou menos e bebidas. O agoiro das pessoas, do nascimen- nive coincidem ainda com as superstições ac- longas e solenes dirigidas em actos públicos to, dos namorados, das mulheres, das crian- tuais, o caldaísmo no século XI e sua dissolu- como em procissões rogativas, ofertas ou pe- ças. Os agoiros dos sonhos, dos mortos, das ção na feitiçaria e a importância da descober- nitências, se não que tem por costume em vozes, dos números e dos objectos de uso. Su- ta dos hieróglifos. muitos casos banhar as imagens dos santos perstições derivadas de uma religião ctonia- em água ou pôr as ditas imagens em contac- na, ou de prostituição sagrada: lameiros e bor- to com líquido objecto de prontidão. Se per- das de rio. O penedo dos casamentos e o filho corrermos os feitos históricos relativos a esta das ervas. O carácter ctoniano do culto de São 1 Bouza-Brey, Fermin – forma de provocar os fenómenos atmosféri- Marcos e de Santa Ana. As fontes santas e as “Ritos impetratórios da choiva en Galiza”, Porto, 1956, pp. 4. 2 BRAGA, Teófilo – “ O Povo Português nos cos desde a antiguidade, época em que já tive- montanhas sagradas. As Thiasas e o Sabbath Seus Costumes, Crenças e Tradições – Vol. II, ram lugar, encontramos a universalidade da nocturno. – Superstições provenientes de um Editora Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1994, p. 9. 13 maio 2020 11 | AS ARTES ENTRE AS LETRAS Filosofia

António Aresta professor e investigador

Macau na história das ideias Ao longo da história de Macau, e numa pers- e como é tradição, fora das instituições es- vro dos Cantares”, 1979; “Escrituras Selec- pectiva ocidental meramente sistémica, a colares ou académicas. tas”, 1980; “Quadras de Lu e Relação Auxi- Filosofia enquanto saber gerante de novos No âmbito de uma filosofia ética e moral liar”, 1981\83, 5 volumes; “Quadrivolume” de saberes e correlativas perplexidades, acom- devem ser salientadas as contribuições de Confúcio, 1984; “As Obras” de Mâncio, 1984; panhou a vida das instituições e dos sujei- José Miranda e Lima [“Máximas Morais e Ci- “O Livro das Mutações”, 1984; “O Cerimo- tos individuais. Através de Macau, o Orien- vis”, 1832], de Leôncio Alfredo Ferreira [“Me- nial”, 1986; “A Prática da Perfeição” de Lao te e o Ocidente cruzaram saberes, sabores ditações”, 1880] ou Francisco Xavier Ron- Tse, 1987]; Daniel Carlier [“Ditos de Confú- e misturaram sangues e afectos. A divulga- dina [“A Educação”, 1887]. Na epistemolo- cio”, 2008]; António Graça de Abreu [“Tao ção e o estudo das filosofias orientais, a chi- gia e na medicina é incontornável o nome Te Ching” de Lao Zi, 2014]. Esta abertura ao nesa em particular, foi feita de um modo ir- do portuense José Gomes da Silva [“Epide- mundo mental chinês é um trabalho mo- regular e descontínuo, mercê de circunstân- mia da Peste Bubónica em Macau”, 1895]. Jú- roso e difícil pelo que é estranho não dis- cias várias. É por isso útil a consulta do mo- lio Augusto Massa relançou o neotomis- por de apoios sistemáticos e institucionais. numental “Boletim Bibliográfico: 450 anos de mo [“Relações do Homem com a Sociedade. Os estudos sobre a filosofia chinesa são Relações Luso-Chinesas”, 1999. Em Portugal Fundamentos Metafísicos”, 1956]. pouco abundantes, podendo contudo in- estas miudezas historiográficas passaram Uma ruidosa polémica filosófico-teológica dicar-se os seguintes autores: Manuel completamente despercebidas. e científica sobre o darwinismo agitou Ma- da Silva Mendes [“Lao Tze e a sua doutri- Poderemos, muito rapidamente, distinguir cau e Hong Kong e teve como protagonis- na segundo o Tao-Te-King”, 1909; “Excerp- três instituições escolares onde a filosofia tas António Vasconcelos [“Sermão prega- tos de Filosofia Taoísta”, 1930]; o autor des- foi ensinada nos planos de estudos. do na Sé Catedral de Macau na primeira do- tas linhas e Rogério Beltrão Coelho reedi- A primeira, o Colégio de S. Paulo, desde minga de Quaresma, em 6 de Março de 1881, taram a Obra Completa de Manuel da Silva 1597, justamente considerado como a pri- no qual se refutam alguns pontos do sistema Mendes [“Manuel da Silva Mendes: Memó- meira universidade de raiz ocidental no darwiniano com referência ao homem e à re- ria e Pensamento”, 2017-2018, 3 volumes, extremo oriente, onde sob a orientação ligião católica”, 1881], Policarpo Costa [“Aná- 1600 páginas]; José da Costa Nunes [“Car- dos jesuítas se estudou lógica, artes, gra- lise do Sermão pregado pelo Reverendíssi- tas da China”, 1909]; J. Morais Palha [“Esbo- mática, teologia dogmática, moral e retóri- mo Senhor António Maria Augusto de Vas- ço Crítico da Civilização Chinesa”, 1912]; Jai- ca, para além das línguas orientais. concelos, bacharel formado em teologia pela me do Inso [“China”, 1938]; Ana Cristina Al- A segunda, o Real Seminário de S. José, Universidade de Coimbra, na Sé Catedral de ves [“Uma Viagem de muitos Quilómetros fundado em 1728, onde a filosofia, a lógica Macau em 6 de Março de 1881”, Hong Kong, Começa por um Passo”, 2004; “A Sabedoria e a retórica ocuparam um lugar primacial. 1881] e Lourenço Pereira Marques [“A Va- Chinesa”, 2005; “A Mulher na China”, 2007]; Francisco Xavier Rondina publica uma lidade do Darwinismo”, Hong Kong, 1882; António Aresta [“O neoconfucionismo na obra original [“Compêndio de Philosophia “Defesa do Darwinismo: refutações de um ar- educação portuguesa”, 1996; “A presença de Theorica e Pratica para uso da mocidade tigo do ‘Catholic Register’”, Hong Kong, 1889]. Confúcio na cultura portuguesa”, 2019]. De portugueza na China”, Typographia do Se- Esta polémica teve o condão de mostrar a referir o invulgar ensaio de Alexandre Car- minário de S. José, 1869-1870, 2 vols.], que enorme actualização bibliográfica por par- riço [“De cima da grande muralha: política e conheceu uma larga difusão. te de Lourenço Pereira Marques, erudito estratégia de defesa territorial da República A terceira, o Liceu de Macau, fundado em médico cirurgião formado no Reino Unido. Popular da China, 1949-2010”, 2006], dora- 1893, sendo Camilo Pessanha o seu primei- Outro movimento de ideias que gerou vante uma referência para o pensamento ro professor de filosofia. O programa para o pública controvérsia foi encabeçado por estratégico e militar. “Ensino da Philosophia Elementar” abran- Francisco Xavier Rondina [“A divindade de O estado da arte pode ser visto no Catá- gia a psicologia, a lógica, a moral e a meta- Nosso Senhor Jesus Cristo reivindicada con- logo “Portugal-China: 500 anos”, co-edita- física. O manual escolar adoptado nesses tra Ernesto Renan”, 1864]. do pela Biblioteca Nacional e Babel, em tempos fundadores era o “Compêndio de A versão portuguesa dos clássicos do pen- 2014, onde ao longo de mais de três cente- Philosophia Racional”, de P.A.Monteiro. samento chinês deve ser creditada a pou- nas de páginas se nota que os estudos li- Na actualidade, a Escola Portuguesa de cos intelectuais, os nossos verdadeiros si- terários, linguísticos, históricos, pedagógi- Macau assegura o ensino da filosofia nos nólogos: Pedro Nolasco da Silva [“Amplifi- cos, lexicográficos, religiosos, antropológi- 10.º e 11.º anos, segundo a matriz portugue- cação do Santo Decreto” do Imperador Yon- cos ou artísticos ocupam a quase totalida- sa para o ensino secundário e sem esque- gzheng, em 1903]; Luís Gonzaga Gomes [“A de do universo da investigação e da edição. cer a valência da filosofia para as crianças. Piedade Filial”, 1944; “As Quatro Obras: Dis- Os estudos filosóficos, esses estão residual- Mas, as preocupações de natureza filosófi- cursos e Diálogos, Suprema Educação, Meio mente presentes e representados, eviden- ca estiveram presentes em alguns momen- Constante”, 1945; “O Livro da Via e da Virtu- ciando também em Macau a sua vocação tos da vida cultural e intelectual de Macau, de” de Lao Tse”, 1952]; Joaquim Guerra [“Li- minoritária. 13 maio 2020 Filosofia AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 12

Os sonhos e o espírito

André Veríssimo prof. universitário

CAPÍTULO 37: Lucien Sfez: sob o signo da Comunicação

1. Tudo comunica. O universal, o global, o colectivo, o societário, o comu- 2. Ora para a informação veiculada os mass-media são vitais. Ligado ao nitário, o familiar e o singular. E a comunicação implica a acção. O que se mundo da boa informação está a má informação. Segundo Guy Debord, entende geralmente por comunicar? Recebo uma comunicação oral. Pas- um dos gurus da informação-espectáculo a má moeda da informação so uma ideia, uma palavra. Estabeleço, extingo ou perturbo comunica- que denomina como Máfia ções. Consegui ou não consegui comunicar as minhas impressões, ideias “desenvolve-se por todo o lado e ainda melhor no terreno da so- ou sentimentos ao meu parceiro, ao meu vizinho, ao público. Assim, ve- ciedade moderna. Está em crescimento tão rápido como os ou- jo e escuto, apreendo a música contemporânea que me agita ou aborre- tros produtos do trabalho pelo qual a sociedade do espectacular, ce, admiro a natureza, este mar que vejo azul, este silêncio que inunda os integrado, talha o seu mundo. A Máfia cresce com os imensos pro- céus e a mente. O que é a comunicação, o que podemos pensar sobre os gressos dos computadores e da alimentação industrial, da com- processos transaccionais de informação? O que sou? pleta reconstrução urbana e dos bairros-da-lata, dos serviços es- “Posso ainda” diz Lucien Sfez (LS) “em certos casos, comunicar peciais e do analfabetismo. A Máfia não era mais que um arcaís- com Deus ou qualquer princípio supraterrestre, e chegar ao êxta- mo transplantado, quando no princípio do século começou a ma- se comunicando com o absoluto. Pelo menos, penso que tudo isto nifestar-se nos Estados Unidos, com a imigração de trabalhado- possa acontecer... o amor promete estas comunicações fusionais, res sicilianos; na mesma altura em que apareciam na costa oeste assim como as fortes pulsões de ambição ou de poder. Uma mani- as guerras de gangs entre as sociedades secretas chinesas. (...) Pa- festação pública pode pôr-me em estado de comunicação emoti- recia condenada a desaparecer por todo o lado perante o Estado va: um meeting, o discurso de um leader faz-me vibrar com milha- moderno. (...) Em seguida encontrou um campo novo no novo obs- res de outros indivíduos. Em resumo, vivo no meio de comunica- curantismo da sociedade do espectacular difuso, depois integra- ções múltiplas que distingo umas das outras de maneira implíci- do: com a vitória total do segredo, a demissão geral dos cidadãos, a ta. Porque eu sei, sem que haja necessidade de mo explicarem de perda completa da lógica, os progressos da corrupção e da cobar- cada vez, que a comunicação científica de um dos meus colegas dia universais, todas as condições favoráveis foram reunidas pa- para este colóquio recente não é do mesmo teor da que recebi ou ra que ela chegasse a ser uma potência moderna e ofensiva” (DE- me foi transmitida pelo meu receptor de chamadas, e não possui a BORD, G., A sociedade do espectáculo),4 (e, cfr. com outros textos). mesma intensidade da que mantenho com um amigo. Um mundo 3. Depois a questão antiga da comunicação entre o que é difícil de tornar separa-as e contudo reúno-as sob o termo genérico de comunica- humano, sobre o limite do inumano e as suas aparições filosóficas trá- ção. (...) Verificamos que nenhuma destas definições coincide, que gicas de F. Nietzsche a M. Heidegger, de C. Schmitt a P. Feyerabend, de A. cada uma se refere a um universo diferente. Contudo, um largo Schopenhauer a N. Kazantzakis. O humano frui e não usa; esta distinção consenso envolve este termo, e a evidência da sua presença só é é essencial: “Fruir é ligar-se a alguma coisa por amor de si mesmo, mas ao igualada pela multiplicidade dos sentidos que abrange. (...) Comu- contrário, usar, é referir àquilo que se usa, aquilo que tu amas no sentido nicar significa colocar ou ter alguma coisa em comum, sem ques- de o obteres, caso seja digno de ser amado”. (Cfr. com Agostinho de Hipo- tionar essa qualquer coisa ou as vias que servem para a transmis- na).5 são, ou outros termos (indivíduo, grupos, objectos) que disputam Basicamente o que temos aqui é a presença do humanismo. A Carta so- a partilha”. (SFEZ, L., 1993: 147.)1 bre o Humanismo, de Martin Heidegger não teve, ainda até hoje, uma com- “A comunicação como objecto de ciência é” segundo LS “torna- preensão absoluta da sua verdadeira intenção, por dois motivos: 1) pelo da visível por dois movimentos que operam no seio do ensino e contexto político totalitário e anti-humanista em que esta obra foi escrita da pesquisa, um centrífugo (que tenta abrir-se ao exterior), o ou- (Ler em especial VERÍSSIMO, A., Ética Judaica I.)6; 2) pelo carácter crítico tro centrípeto (que busca a condução para uma ciência particular, do próprio pensamento de Heidegger face à compreensão que comum- o que pertence aos outros), a comunicação, objecto relativamen- mente se dá de humanismo e, pelo carácter negativo que este lhe subs- te novo, vem complicar o jogo. Trata-se com efeito de uma ciência creve. Actualmente a célebre e famosa frase de Sartre “o existencialismo é constituída em disciplina autónoma: que não tem história nem um humanismo” parece muito mais próxima da nossa longa tradição, do epistemologia. Tudo é possível, os acessos estão já abertos, a ciên- que a de Heidegger. Por esta razão, questionamo-nos com a doutora Ma- cia deste novo objecto é ainda virtual. ria Manuela Martins se é verdade ou não que a concepção heideggeriana Com numerosas discussões, diferentes opções se partilham num de humanismo é uma experiência para compreender a autêntica ‘huma- terreno que parece, por este momento muito vago porque eles [os nitas’, no sentido da nossa longa tradição! teóricos] não querem reconhecer a fragilidade e a inconsistência da comunicação e ambicionam fazer desta massa uma verdadei-

ra ciência, os comunicólogos buscam um núcleo, um focus que 1 SFEZ, Lucien, La Politique Symbolique, PUF, Quadrige, Paris, 1993, p. 147. serviria simultaneamente de princípio organizador e de sigla ins- 2 SFEZ, Lucien, “Interdisciplinarité et Communication” critora. Desta forma a comunicação inscrever-se-ia na informáti- in Cahiers Internationaux de Sociologie, 2001/2, (n. 111), p. 341-349 [Trad. Nossa]. 3 ILHARCO, Fernando, Filosofia da Informação, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2003. ca, na psicologia, na ciência cognitiva, etc.” [SFEZ, L., 2001/2: 341- 4 DEBORD, Guy, A sociedade do espectáculo [La Société du Spectacle, 1967, Buchet-Chastel]. 349]2 5 AUGUSTINE, De Doctrina Christiana, I.XXXIX.43.93, Corpus Christianorum. Não existe uma definição concreta que tenha sido aceite como definição Series Latina, 32; Patrologiae. Cursus Completus, Series Latina 34. The English translation On Christian Teaching by R. P. H. Green (Oxford: Oxford University, 2008). explícita da comunicação, havendo outrossim uma cada vez melhor de- 6 VERÍSSIMO, André, A Ética Judaica I. Hermenêutica Elementar, cisão lógica de informação. (Cfr. ILHARCO, F., 2003)3 1ª reimpressão, 2018, Guimarães: Magen David Enterprises, p. 101 et ss. 13 maio 2020 13 | AS ARTES ENTRE AS LETRAS pub 13 maio 2020 Conto AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 14

Voando sobre uma só alma

António José Borges professor e escritor A demanda ao meu bom Teixa, na nossa eternidade

Naquela tarde manifestou-lhe o seu inte- paciência. Disse-lhe que no futuro a com- resse pela fotografia, pelo que ela recorta pensaria pela falta de atenção que ela tem no campo do visível. Gostava de fixar mo- sentido da sua parte; disse-lhe que a ama - mentos num tempo irrepetível. Vivia e sen - va e que depois desta fase a amaria, acredi- tia o movimento de aproximação ao objec - ta, ainda mais. to, ao animal, como se fosse o único fito da - Preciso de tranquilidade para fazer algo in - sua vida. Afinal, só o momento tinha im - tranquilo, mas que só o pode ser – disse-lhe. portância para ele – uma qualquer sensa - Ele queria agarrar a fugacidade de um mo- ção bressoniana do instante e da eternida - mento. de. A eternização do momento. A captação Ela anuiu, arrumou algumas coisas dentro dos fenómenos da intensidade e da espon - de uma pequena mala, despediu-se apaixo- taneidade. nadamente e saiu. Dizia que o que fotografa é sempre uma es - - Saio já para não passar muito tempo sem ti colha; que a fotografia é sempre uma ficção, – afirmou ela. Quanto mais cedo for, mais ce- porque há um enquadramento do que que- do , não é? remos ver no espaço em que se insere. Tam - - Sim, minha querida. bém já pensava em usar tecnologias digi- - Até já, meu querido. tais para apagar informações das imagens, A partir desse dia ele concentrou-se em ca - transformando-as numa coreografia incom- da sopro de vento, em cada raio de luz, em pleta de gestos e situações. Uma forma de li- cada movimento involuntário das nature- dar com a ausência. Mas, para todos os efei- zas mortas, em cada gesto, surpreendente tos, motivava-o só e agora a natureza da con - ou não, dos animais. As pessoas não o inte- dição de ser espectador: o esperar, imaginar ressavam. Dizia que estão poluídas, que só e antever. Sempre num quadro do real. os animais e as outras coisas lhe poderiam Todos os dias delineava um plano de traba - dar o momento desejado. Percorreu espa - lho minucioso, esquecendo que fora de por- ços inúteis para muitos, onde se poderia es - tas o clima prega partidas aos mais incautos: conder o seu «santo Graal», o seu cálice ar - podia chover, podia escurecer, podia o astro tístico, conviveu com a natureza, porque é solar brilhar mais do que ele estaria à espe- possível conviver e dialogar com ela, aliás, ra, perturbando o ambiente em que o seu é necessário e determinante para o nosso trabalho se desenrolava. Mas esta preocu- entendimento do mundo e perfeita inclu - pação não só não o demovia dos seus inten - são nele; enfim, procurou e não encontrou. tos, como nem sequer tal cenário lhe per- Mas fotografou. Fotografou campos de se- corria o campo do pensamento. menteiras, imaginando vales, concebendo Sabendo deste seu interesse quase obses- estepes, engendrando savanas, arquitec- sivo, ela limitava-se a acompanhar, sempre tando florestas tropicais, congeminando que possível com dedicação e até admira- um deserto, simplesmente imaginando. Fo- ção, o seu trabalho. Ele, ausente dela e de to- tografou animais, afigurando os seus pen - dos, estava presente em si e no que o rodea - samentos, julgando-os percebedores do va. Um simples gato era inspirador de uma que ele queria; chegou a monologar com fotografia. Mas um simples gato talvez não um passarinho. Não, não duvidou da sua seja assim tão simples. As suas rugas invisí- saúde mental. Nem alguém o poderia, ou veis muito nos poderiam contar sobre o seu pode, julgar demente. Os animais sabem e percurso de vida, pensava ele. E ali ficava percebem mais do que julgamos. Além do parado, com os olhos no firmamento, pen- mais, ele acredita na natureza. Para ele, tu - sando na sua demanda. do faz sentido nela. Uma noite, após um jantar que roçou o ro- No final de cada dia, quando entrava no seu mantismo, ele manifestou-lhe a sua inquie- estúdio, num oitavo andar sem obstáculos tude; disse-lhe que precisava de ficar só du - defronte, dedicava-se a uma análise minu- rante algum tempo, que não se sentia reali- ciosa de cada uma das fotos, quase radio- zado com o que faz, que sentia aproximar- grafando-as, em jeito de observação do qua- -se o momento certo para tirar a fotografia dro de um pintor de nomeada do século de da sua vida, mas que com ela por perto a ouro holandês, o XVII, como Rembrandt, o mento, como Leonardo da Vinci, o primei- sua concentração dispersava-se. Pediu-lhe pintor de história; de um artista do Renasci- ro homem moderno; de um pintor do Im - 13 maio 2020 15 | AS ARTES ENTRE AS LETRAS Conto

van Gogh. Enfim, desconstruía cada fotogra- Subitamente, o céu mudou ligeiramente de fia como um puzzle a construir. cor, perdeu um pouco de azul e ganhou um Houve um dia que choveu muito e ele sen - pouco de vermelho, mantendo ambas as co- tiu falta da singular companhia dela. Pen- res bem definidas. Ele sentiu um rebuliço na sou ligar-lhe, mas achou que não seria jus - margem do rio, onde as crianças que lá se to que um contratempo na sua demanda o encontravam brincavam impávidas e sere- levasse a aproveitar-se dela. Ainda assim, li- nas, alguns cães acompanhavam-nas, cer- gou-lhe, mas não para a convidar a vir até tos peixes saltavam para fora da água, inse- sua casa. Falaram pouco. Só o necessário. rindo-se noutro meio – embora momenta- Só para a cumprimentar e perguntar-lhe se neamente –, algumas pombas surgiram no estava bem. Como se não soubesse já a res - quadro que se delineava, e, finalmente, um posta que ela lhe iria dar: um não camuflado casal de namorados com os corpos estendi- de sim. Bem camuflado. Mas também ela sa - dos na relva, abraçados, pareciam brincar e bia que ele sabe o que ela sente. São por ve- namorar no mítico Jardim do Éden (actual- zes curiosas as relações humanas: o esforço mente, um aglomerado urbano). Eis o mo- que fazemos para não magoar alguém que mento que ele esperava. Num impulso, num nos está a magoar; as conversas e respos - ápice, muniu-se da sua máquina, mexeu-se tas que as pessoas dão quando ambos sa - um pouco para a esquerda, rastejando, as- bem que as respostas às perguntas que fize- semelhando-se a um caçador, a um obser- ram não são as que foram dadas, as que se- vador de gorilas nas montanhas, ou a um tu - rão dadas – elas são por vezes inertes: nada rista na savana africana, e tirou a sua foto e do que possamos fazer pode mudar certas mais outra e mais outra. Tirou repetidas fo- respostas a certas perguntas. É o ser huma - tos até acabar o espaço no rolo, depois no no no seu estado curioso. cartão, até o momento se esvanecer. Depois, Portanto, nesse dia chuvoso, nesse dia útil, só depois, pensou e reflectiu: era, foi, é e se- pelo menos tão útil quanto um dia seco, ele rá, porque o registei, aquele o momento por observou demoradamente o mundo fora de que tanto ansiei. portas, paredes e vidraças, e aproveitou pa- Aquela conjugação de factores tornou único ra se concentrar um pouco também no ru - aquele momento. Ele extasiou e sentiu pleni- mo que a sua relação com ela estava a to- tude artística e espiritual, paz e tranquilida- mar. “Será o meu trabalho – este, extraordi- de – quadro este que se assemelha ao de Si- nário – realmente o motivo da separação?”, ddhartha, antes de se tornar Buda, sentado questionou-se, disse de si para si. Felizmen- debaixo e junto de uma árvore, quando atin- te para ele, para ambos e para estas páginas giu a plenitude da consciência e fundou uma em desenvolvimento, depois de uma atu- filosofia que se viria a tornar uma religião, pe- rada reflexão, de um exame pormenoriza- la adoração de uma estátua ou escultura, co- do do filme actual da sua vida, concluiu que mo a maior do mundo, na China, junto a um sim, que era realmente aquele o motivo. E penedo; isto, claro, em planos e circunstân- sentiu-se bem, aliviado. cias diferentes, conquanto com o mesmo fito: Nessa noite ajustou contas com o sono, pois o de uma demanda; no caso dele, do momen- nos últimos tempos dormira pouco e mal. À to perfeito, no caso de Siddhartha, da cons- luz da candeia leu um pouco antes de ador - ciência do mundo e da vida. mecer: uma história leve, que o transportou Antes de ele lhe ligar para retomar a ligação para um outro mundo e lhe afastou da men - física entre ambos, ela, pressentindo esse te os problemas do quotidiano. Só um boa passo, já estava em casa dele. Quando ele lhe leitura tem este efeito. ligou deu finalmente conta que a sua deman- Já no dia seguinte, enquanto passeava pe- da era eterna. A demanda da arte e do amor. lo parque da cidade, sob um sol abrasador, Não a imaginava tão rápida a compreendê-lo com a companhia de crianças alegres (sim, e isso alegrou-o. Percebeu que agora estavam porque há as que, sem terem culpa, não são prontos para ficarem juntos. Quando este su- alegres, e há até as que passam fome) e de biu o último lance de escadas e meteu a cha- desportistas ocasionais, cansado, estacou ve na fechadura da porta, não chegou sequer ao pé de uma árvore ali plantada proposita - a rodá-la, pois a sua namorada, como se res- damente para assistir ao seu cansaço. Sen- folegasse da corrida, esperava-o para o en- tou-se junto a ela, esticou as pernas e apete- volver nos seus braços. Como prometera à ceu-lhe dialogar com a árvore, pedir-lhe que saída, voltou depressa. Ele, realizado, sentiu lhe contasse a sua história, ou então que o amá-la ainda mais, como lhe prometera. deixasse cortar um ramo (e de imediato se A espera foi virtuosa e a persistência ven - arrependeu de ter tido semelhante pensa- ceu, pois se às vezes pode ser, também po- Ilustração de Ricardo Josué mento!) e contar os seus anéis para saber a de ser sempre. sua idade. Sentiu vontade, tão-só, de lhe per- 15 de julho de 2005 pressionismo, que no final era mais expres- guntar, à árvore, se já assistiu a mais mo- e 15 anos depois, sionista (cuja escola fundou), como Vincent mentos trágicos ou de felicidade. 15 de fevereiro de 2020 13 maio 2020 conto(s) AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 16

Margarida Negrais professora e escritora Um assalto

FOTO: DR Estrada e pinhal confundiam-se num só mar de névoa cinzento, quase impenetrável aos fa- róis do carro que avançava, hesitante. De vez em quando, um raro veículo rompia, em senti- do contrário, aquele véu de tule líquido. Foi por isso que, sendo a progressão tão difí- cil e lenta, o condutor do veículo ouviu uma voz feminina, autoritária, peremptória, que vinha do assento traseiro e que mandava vi- rar de imediato à esquerda, para uma saída secundária, que não anunciava sequer tabu- leta informativa indicativa de algum destino. Andaram alguns metros e a mulher que fala- ra ia perscrutando, com olhos ávidos, o escu- ro quase insondável, pois este adensava-se mais e mais na ausência de postes de ilumi- nação pública. Porém, de um momento pa- ra o outro, divisaram, à direita da faixa de ro- dagem, uma moradia solitária mas não aban- donada, pois, numa das janelas, bruxuleava de vocês sem para tal serem convidados e carro apreendido e todo o material rouba- uma luz fria, de reflexos coloridos, sinal ób- não foi nada de mal? do estava lá… vio de que alguém, naquele compartimento, - Saiba, Senhora Juíza, que a casa era tão jeito- - Pois, o azar foi o filho dos velhotes ter vin- via televisão. sa! E foi tão fácil! do depressa de mais da farmácia, eu bem o vi - Olha que jeitosa! Olhem que jeitosinha! – ex- - Fácil? - perguntou, a ficar perplexa, quase com um saco de plástico de remédios na mão clamou, entusiasmada, a mais velha das mu- exasperada já, a tranquila juíza diante de ta- e não nos apanhou mas viu-nos – disse uma lheres, a que dava ordens. manha desfaçatez e à vontade. das moças mais novas. Eram três as mulheres que ocupavam o assen- - Pois… A porta de entrada só estava encosta- - Eu bem disse ao António: - Dá de frosques, to traseiro, vestidas de negro, de saias compri- da… Nós as três entrámos, os velhotes estavam dá de frosques rápido, rápido, mas já não foi das, de cabelos igualmente negros presos em entretidos a ver a televisão muito alto, nós não a tempo… E tinha sido tudo tão fácil, tão limpi- puxos na nuca, que os lenços de cabeça igual- incomodámos. Nós não fazemos mal a nin- nho! Tinha corrido tudo tão bem! mente negros e amarrados debaixo dos quei- guém, nós não somos violentas… Somos todos - Senhora Olímpia, vocês apropriaram-se de xos deixavam perceber. gente de paz, não somos rapazes? coisas de valor que não eram vossas, vocês Saíram do veículo cujas portas rangeram ao - Hummm… E então o que fizeram depois? - roubaram! serem abertas, e a mais velha ordenou mais questionou a juíza. - Ó Senhora Juíza, pois se essa é a nossa vida! uma vez: - Bem… Depois, cada uma de nós as três foi ca- Mas não fazemos mal a ninguém, acredite! - Vocês dois, rapazes, fiquem aqui, abram bem da qual a um quarto da casa e despejou as ga- - Ó Senhora Olímpia, já esteve catorze anos na esses olhos para verem os andamentos! Ve- vetas de ouro e de dinheiro para os nossos sa- prisão, isso não lhe ensinou nada? jam lá, abram-me bem esses calizes! cos… Depois abalámos. Os velhotes, coitadi- - Ai a vida, ai a vida! Aprendi mas foi mais E, de imediato, esgueiraram-se pelo portão pe- nhos, continuavam a ver televisão, nem de- umas coisinhas… É mais forte do que nós! Mas queno do jardim murado da moradia, engoli- ram por nada… É que estava tanto barulho! E olhe que somos gente de paz, não fazemos das instantaneamente pela escuridão e pelo era tanta a confusão! Aquela Filomena Caute- mal a ninguém! nevoeiro. la, Senhora Juíza, é muito maluca e fala tão de- - Então, nesse caso, diga-me para que queriam Mas a coisa correu mal! pressa que eles tinham de tomar muita aten- o pé de cabra, a faca e a pistola que a GNR en- Acabaram ali a noite aventureira e foram ção para perceber o que se estava a passar no controu no vosso carro… presentes a uma juíza que inquiriu os cinco programa! Ele são tombos, ele são «pozes», ele - Ó Senhora Juíza, disso estamos inocentes! Já fulanos. são mistelas em cima dos concorrentes… deviam lá estar! - Então, Dona Olímpia, conte-me lá o que acon- - Sim, sim… Não são precisos tantos pormeno- - Ah! Então além de assaltarem a casa ainda teceu… - pediu com voz e tranquila a res… E então as senhoras? -perguntou a juíza estão a confessar que roubaram o carro… exausta jovem juíza que se preparava já pa- dirigindo-se às outras duas mulheres mais jo- - Pois… então como é que havíamos de ir de ra ir para casa, percorrer os longos e solitários vens, embiocadas nos seus lenços negros. Guimarães para Braga? Olhe que ainda é lon- quilómetros que a separavam do lar, quando - Ó Senhora Juíza, foi tal e qual como a Olím- ge! E com aquele tempo que estava… Pena foi este quinteto lhe apareceu. pia disse. É que nós não somos violentas, não o carro ser tão fraco… - Ó Senhora Juíza, não foi nada de mal… fazemos mal a ninguém. Somos gente de paz. - O quê? Ainda por cima tem o desplante de me di- - Não foi nada de mal!? Então vocês entraram - Pois, mas descobriu-se o que tinha zer isso? Ora, ora! E os senhores, então os senho- num domicílio que não pertencia a nenhum acontecido e vocês foram identificados, o res que papel é que desempenharam nisto tudo? 13 maio 2020 17 | AS ARTES ENTRE AS LETRAS conto(s)

Olhares

- Ai, eu não fiz nada! O carro era muito velho, Luís Bento cronista e blogger estava a cair de podre, nem direcção assistida tinha, era tão difícil de manobrar… - Ah! Então o senhor era o condutor? - Era, sim, Senhora Juíza, era mesmo. - Muito bem. Senhor António, conte-me lá co- mo é que tudo aconteceu… Pelo lado de dentro - Mas eu não sei… Eu só conduzi e como esta- va mal, precisava urgentemente de me aliviar, Procuro seguir a vida pelo lado de dentro conhecer Marte, não acabar a nossa histó- não vi nada! Este aqui é que ficou de olho e de- fazendo as curvas com cuidado. O dese- ria com um substantivo concreto. No mo- ve saber como é que tudo aconteceu. jo tem sempre muita pressa e eu gosto de vimento entre o barco e o cais, não somos - Ó Senhora Juíza, tenho a dizer-lhe que foi abrandar, de ver pelo avesso, de contar pe- nós que partimos, é o mar que chega. Dis- mesmo uma azarina! O carro teimava em não los dedos as vezes que o passado nos mar- po, então, o meu melhor poema que foste pegar, nós a sairmos, a «brecage» não dava, o cou a vontade ou a falta dela, a perda, o tu a sorrir a meu lado com cheiro de ma- António teve que manobrar, manobrar, e o ho- desleixo. Fui-te remendo, pedaço, cola, no- nhã. O silêncio é a nossa deixa para seguir mem a chegar à casa dos velhotes com os re- ta de rodapé, derivação regressiva do ver- viagem. Do corpo não se guarda nada, ape- médios. Teve tempo de ver tudo: virou para bo amar... E isso já não me basta. Incomo- nas a memória que sobra do momento em nós os faróis do carro dele, que não era velho, da-me não ser eterno, não ter certezas, não que o suor foi magia. viu quantos éramos, tirou a matrícula, coscu- vilhou quanto quis! FOTO: DR - Pois, e quando entrou em casa, percebeu que vocês tinham assaltado os pais! E foi a tempo de comunicar à GNR que vos apanhou com o fruto do furto no carro furtado! Não há como negarem! Em coro, todos excepto o António, exclama- ram, convictos: - Pois não, Senhora Juíza, pois não, mas olhe, acredite, que somos gente de bem, não faze- mos mal a ninguém, somos gente de paz! - Então, disse a juíza, vocês vão recolher aos calabouços e amanhã terminaremos este as- sunto. O Senhor António, como diz que não viu nada, que não sabe de nada e eu não pos- so provar o que fez, pode ir embora. Os outros quatro olharam uns para os ou - tros, os olhos deles largavam chispas que iam incendiar o António, que foi saindo de fininho… Já a juíza dava por findo aquele dia de tra - balho e dado o adiantado da hora por cau - sa daquela diligência olhava impaciente pa- ra o relógio, quando ouviu bater ao de leve na porta do gabinete. Era um guarda da GNR que a queria ouvir sobre algo insólito: é que o Senhor António não queria ir embora! Di- zia que realmente nada fizera a não ser con - duzir, mas como não tinha transporte, esta- va esfomeado e tinha que ficar ao relento, preferia que o prendessem. Sempre ficava agasalhado, talvez alguma alma boa da GNR lhe desse uma bucha e de manhã ia embora A Árvore porque não queria encontrar-se com os pre- sos. É que as questões de honra eram para Quando deu por si era o último vestígio de permanecendo incógnito, impermeável, li- eles muito importantes! Ele realmente nada uma noite longa… vre de devassas. Só o amor podia subverter vira, estava a aliviar-se mas desconfiava do Não sabia o que seria o seu futuro, talvez ci- o desequilíbrio do seu quotidiano quando que os outros tinham feito… catrizes do acidente de ontem, resto zero de todos se tinham esquecido de resistir. Ele ti- E a juíza, diante daquele friorento e esfomea- uma equação indefinida, ele que nunca ti- nha muitos sonhos, estudou para engenhei- do impostor, mas como não fora feita prova nha tido jeito para as matemáticas. Não sa- ro, ela para enfermeira e eles acabaram o na- de que ele fizera algo de mal, nem sequer os bia como curar a ausência agora que o en- moro, ele detestava o cheiro a éter. Perdeu-a colegas o tinham acusado, lá o deixou ir dor- dereço da voz dela mudara de corpo. Desde quando foi comprar umas asas. mir na esquadra. aí adormecera por fora, o calendário passa- Só não tinha medo do precipício quem ti- Meandros que a Justiça tece! ra a ter só noites e o seu espírito fechara-se, nha aprendido a voar. 13 maio 2020 crónica(s) AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 18

A. Campos Matos arquitecto e queirosianista «O Sono da Razão»

Trabalhos acerca de António Sérgio, nes- te ano [2019] de cinquentenário da sua mor- Busto de António Sérgio do Arquivo de António Sérgio te, levaram-me casualmente à constatação estranha de que não havia ainda lido o livri- nho de Carlos Leone, de 1978, O Essencial So- bre António Sérgio, cuja leitura fiz desde logo. A primeira parte consiste no levantamento assaz completo de extractos de importantes comentadores do ensaísta. No final, com -in contido pasmo deparo com estas conclusões: (...) «O legado de António Sérgio vive sob o es- tigma intelectual do carácter de mito da razão que Eduardo Lourenço lhe atribuiu». E, pouco depois: (...) «A diminuição do estatuto intelec- tual e simbólico que a imputação de uma na- tureza mítica causou ao racionalismo de Sér- gio foi imediata, profunda e duradoura.» E, pa- ra concluir, na página seguinte: (...) «O esque- cimento de António Sérgio é devido ao fim do seu mundo político, feito pela palavra, pe- lo discurso, pela razão. Na sociedade cuja co- municação depende e decorre essencialmen- te por imagens, António Sérgio e o sergianis- mo dificilmente fazem, sequer, sentido.» Pa- ra lá destes surpreendentes e irresponsáveis dislates acríticos e dogmáticos, acresce que Leone passa ao lado do portentoso ensaísmo literário de Sérgio, autor de obras-primas so- bre Vieira, Herculano, Antero, Eça, Junqueiro e tantos outros, de indiscutível originalidade e erudição, nomeadamente os respeitantes a Antero. Ignora também totalmente que Sér- gio foi um clássico da língua, onde (Jorge Sena assinalou-o) ocupa um lugar cimeiro no pan- teão da Língua. Passa em claro a sua pedago- gia social muito actual ainda hoje e, também, o seu inovador ensaísmo histórico, de matiz económico e social, materializado na famosa História de Portugal (1941) logo apreendida pe- los esbirros de Salazar. Voltemos porém às conclusões leónicas. Elas baseiam-se sobretudo em textos onde Eduar- do Lourenço levianamente põe em causa o ensaísmo de Sérgio, sem que este «figurão de saiou em grande estilo, destronar Sérgio, exer- (p.3966). Para terminar: o «racionalismo místi- grande proa» (Eugénio Lisboa) aduza razões cício sedutor, quando o percurso o é, e que só co» de Sérgio é coisa muito séria e subtil na sua convincentes a esta hipótese de nítida brava- tem efeitos destrutivos duradouros, quando filosofia que carece de interpretação aprofun- ta, que deixa no ar. Quase simultaneamente à os destinatários dele se demitem da mínima dada e não está ao alcance da cultura de Leo- leitura de Leone acabo de ler o livro de ensaios autonomia mental atribuível a um verdadei- ne. Pode muito bem enriquecer a posição ser- de Eugénio Lisboa da IN-CM., Intitulado Uma ro clerk. Leone, sem subtileza nenhuma, tra- giana (tanto como comprometê-la) que passa Conversa Silenciosa onde o conhecido ensaís- duziu para calão grosseiro o rendilhado fino por uma preparação Fisico-Matemática fora ta nos oferece um arrazoado anti-Leone de no- do autor do Labirinto da Saudade com os pas- do alcance quer de Leone quer de Lourenço, tável repercussão, no artigo com o mesmo tí- mosos resultados que pus em gostoso itálico. É que não ousam abordá-la. tulo que escolhi para estas considerações, as- que a razão, tal como a democracia, é realmen- Faço deste texto uma introdução e um com- sim o terminando: « Lourenço, com a subtile- te uma coisa pífia – com a reserva importante plemento à Nota Preambular à 3.ª edição do za ondoyante et diverse que o caracteriza, en- de que ainda não se encontrou coisa melhor.» meu Diálogo Com António Sérgio. 13 maio 2020 19 | AS ARTES ENTRE AS LETRAS Crónica(s)

Quantos anos levará o País a inventariar critica- dade, – «Sérgio como Mito Cultural» (2008), Maria Virgínia Monteiro poetisa mente o espantoso trabalho deste homem de onde veio afirmar: «Raramente António -Sér excepção? gio abordou qualquer matéria – acontecimen- José Cardoso Pires to histórico, obra literária, publicação filosófi- ca – em primeira mão, se se prefere de face.» A Coluna da Virgínia NOTA PREAMBULAR Ora parece-me isto afirmação extraordinária DA PRESENTE EDIÇÃO e sem qualquer fundamento, havendo lugar Apontamento 32 para inquirir se ele E. Lourenço teve essa origi- Ao reler o texto da edição anterior e os inú- nalidade. Questionando se Sérgio foi um ver- meros acrescentos que agora fizemos, algum dadeiro ensaísta, deixou esta dúvida inacredi- (Ligado talvez à obra em prosa…) tempo depois de termos recebido as respec- tável em aberto, como frechada supostamen- tivas provas, a nossa primeira impressão foi a te certeira, a menos que algum póstumo a ve- do estupendo vigor da prosa sergiana, escrita nha posteriormente esclarecer. No texto de O L.E.V. – ou seja – Literatura em há mais de meio século, logo seguida da cer- 1969 (no Tempo e o Modo), não fez alusão ao, Viagem” –, de Matosinhos, rea- teza da sua incrível e utilíssima actualidade. E para muitos, o momento cultural mais impor- lizou-se, entre 8 e 10 do mês isto dá que pensar, pois não é grande, infeliz- tante do século XX – a polémica com Bento de de Maio, na Biblioteca Florbe- mente, o progresso dos portugueses quanto à Jesus Caraça. Faltaram-lhe bases elementares la Espanca, neste ano de 2015. cultura, ginástica mental, independência críti- de Física e Matemática para poder acompa- Obtidas certas informações, atra- ca e racionalidade de mente. António Sérgio nhar essa polémica difícil, que, aparentemen- vés dos jornais literários, que ha- é hoje, para a maioria dos portugueses, uma te, lhe poderia ter vindo a sabor, pois Sérgio bitualmente me vão chegando às personalidade esquecida, apenas apreciada claudicara na área da Matemática. mãos, sobre vários temas interes- por uma minoria académica e uma elite, e es- Convictamente aqui dizemos: em compara- santes debatidos nas chamadas te problema continua a pôr-se com lamentá- ção com a personalidade de Sérgio, Louren- mesas-redondas. vel persistência. ço é diminuto, o que esta obra prova à socie- - Um desses temas: - “A literatura Entre muitas outras questões, sugerimos pe- dade e o provará, igualmente, a fotobiografia é um campo de conflitos entre o la primeira vez nesta edição, uma aproxima- no prelo. bem e o mal”… ção entre Sérgio e Eduardo Lourenço, ensaís- Outro tema desenvolvemos bastante, ou seja, Houve uma resposta, do ta de mérito, quarenta anos mais novo, cuja o da posição sergiana das hipóteses mentais G.M.Tavares: - “A literatura é natu- vida contrasta singularmente com a do autor ensaísticas em detrimento da pesquisa histó- ralmente perversa, na medida em dos Ensaios. De facto, Lourenço viveu sempre rica propriamente dita, que não lhe interessa- que vai ao verso das coisas (…) e aí tranquilamente. Jamais o poder político o in- va e, igualmente, os termos do “racionalismo o mal está sempre presente (…)” comodou, jamais o prenderam, jamais o ex- místico”, área muito rica de congeminações e - Reflectindo sobre este ponto… eu pulsaram do país ou lhe apreenderam livros, decerto controversa. chego a uma conclusão mais dra- jamais sofreu dificuldades materiais, mais Terminamos com lembrar a necessidade de maticamente perversa do que é a ainda, jamais ousaram contraditá-lo! Nunca dar andamento à sua «Obra Completa», ou do G.M.Tavares… É que me parece lhe passou pela cabeça (como Sérgio fez em «edição crítica», encetada em 1971 pela desa- concluir, na posse da já idosa expe- 1928) tomar de assalto um paquete nas coló- parecida Livraria Sá da Costa Editora, às mãos riência… que ela, a literatura, reflec- nias, artilhá-lo e partir à conquista de Lisboa. de um escol de sergistas, que terá ficado por te, sim, a perversidade da acção Jamais concebeu (como Sérgio em 1931) fazer metade da sua recolha. Nela colaboraram: humana, aquela que resulta da hu- a revolução contra a ditadura, com armas na Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães mana-criatura… mão, sob a invocação do autor da Técnica do Godinho, Rui Grácio, Joel Serrão, Idalina Sá da E, assim, é ela reflectida nas coisas Golpe de Estado, de Malaparte! Tem vivido cal- Costa e Augusto Abelaira. (verso ou reverso), como queiram mamente, aplaudido, louvado, como um mito Com a Fotobiografia do ensaísta, fica-nos a -sa chamar-lhes!...). Estranhamente, ti- absoluto e radical, com duas edições das suas tisfação do dever cumprido; com termos con- ro agora esta conclusão, lendo (… obras. Que me lembre, nas páginas do Jornal seguido dar de Sérgio um retrato o mais com- relendo…) os meus velhos contos… de Artes e Letras (JL), tribuna principal dos pleto possível; e a alegria de termos contribuí- os tais, os que retratam a tal acção seus escritos, apenas Knopfli ousou beliscá-lo do para a justíssima memória do maior escri- humana… a propósito de Shakespeare, provocando nele tor de ideias português. o receio de que outros seguissem o seu exem- FOTO: DR plo, o que nunca viria a acontecer. Em 1996, E. Lourenço, no artigo «A crítica co- mo mitologia» (Revista Expresso), fez justi- ça a Sérgio ao afirmar que «mesmo contesta- do nalguma das suas propostas ou até recusa- do, exerceu sobre o discurso crítico do nosso século XX uma influência com nenhuma ou- tra comparada.» Se ouso dizer, fez uma breve referência a A. Sérgio, nas páginas da Hetero- doxia 1 (2005), afigurando-se-nos que durante anos ocultou a presença do seu rival, chaman- do-o à liça já depois da sua morte na revista O Tempo e o Modo (de Março - Abril de 1969, tex- to mais tarde recolhido em O Labirinto da Sau- 13 maio 2020 Educação AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 20

Lurdes Neves PHD, docente universitária UP A transformação da Escola Pública durante a Pandemia Covid-19 em Portugal

Para fazer face ao perfil do aluno do século XXI senvolverem práticas colaborativas, para co- mo tal parecemos bem maiores do que normal e era determinante que todo o contexto educati- municarem com os alunos e os monitorizarem, passa a ser possível identificar todas as imperfei- vo fizesse ajustes em métodos, recursos,- com até mesmo para se garantir a realização das reu- ções e destacar os comportamentos dissonan- petências e estratégias pedagógicas. As mudan- niões de avaliação do final do período. Até mes- tes. A obrigatoriedade de maior consciência da ças tecnológicas já impunham há algum tempo mo se assiste a esforços para se compensarem linguagem corporal torna também a comunica- ligações fortes e mais continuadas com o siste- as diferenças na comunicação por interferên- ção menos fluída, dificultando a relação emocio- ma educativo, sendo premente a necessidade de cia dos elementos estranhos à interacção e co- nal por as partes estarem menos confortáveis. adaptação de metodologias de ensino e apren- municação entre professores e na relação peda- dizagem para se garantir as qualificações que os gógica com os alunos. • O sentimento de avaliação e julgamento estudantes necessitam no futuro e a abrir a sala Como refere Norman Friesem, um conhecido in- Destaca-se o receio de julgamento e de avaliação de aula a matérias que respondem a novas ne- vestigador na área da educação tecnológica, que dada a inexistência de uma interacção recíproca cessidades da sociedade e da economia. tem dedicado a sua vida a explorar estas dife- e natural, porque é possível o sentimento de que Mas esta mudança de forma mais profunda foi renças, em particular os problemas que surgem se está a ser controlado em todos os movimen- sendo adiada sobretudo por falta de recursos sempre que a tecnologia é introduzida no con- tos. Apesar de fingirmos que estamos a olhar pa- tecnológicos e das desigualdades sociais que texto educativo, para além das limitações da de- ra a outra pessoa, o mais provável é que durante se manifestavam das diferentes capacidades de mostração de conhecimentos, surge a necessi- as sessões de videochamadas estejamos a olhar acesso à comunicação, informação e conheci- dade de avaliar também o impacto na relação para a nossa imagem no écran, tentando deter- mento, quer de professores quer de alunos. pedagógica estabelecida ao nível do contacto minar de que forma podemos melhorar o nosso Se o que vivemos actualmente poderá constituir visual, da imagem/aparência pessoal, do senti- aspecto, ajustando ângulos, cabelos, etc. Poderá um momento na história do contexto educativo mento de avaliação pela observação direta bem criar-se o efeito de que se está a falar ao espelho marcante para a reestruturação futura de estraté- como as interferências a nível vocal. ou com o reflexo, dificultando a empatia e a co- gias pedagógicas e políticas educativas, quem sabe nexão emocional necessária a uma relação. agora que estamos sozinhos com os nossos pensa- • Ausência de contacto visual mentos que chegamos à conclusão que a hora de Uma das questões mais óbvias está relaciona- • A distorção da voz recomeçar de uma forma diferente chegou? da com uma limitação técnica que impede que A frase “estão a ouvir-me bem?” tornou-se viral Com ritmos diferentes e diferentes formas de seja possível colocar a câmara e o écran exacta- nestas últimas semanas. A verdade é que duran- gerir a pressão inerente a estas mudanças o go- mente no mesmo sítio. Ou seja, quando olhamos te uma videoconferência ou videochamada é di- verno, autarquias, escolas, pessoal docente e para a câmara estamos a dar a impressão ao ou- fícil perceber exactamente como e o que é que não docente têm agora a oportunidade de reco- tro que estamos a olhar para ele e se quisermos os outros nos estão a ouvir. Ou seja, as conse- meçar o futuro da escola de uma forma diferen- olhar para os olhos no écran iremos imediata- quências na transmissão da mensagem e do co- te. Tenho tido a oportunidade de acompanhar, mente estar a parecer olhar para outro lado e a nhecimento poderão existir nas sessões síncro- apoiar e assistir a essa mudança e os resultados evitar a pessoa. nas e o mais provável inclusive é que o nosso dis- para muitos professores que tenho observado Esta questão das reuniões por videochamada e curso seja transmitido com “cortes” e interferên- prendem-se também com o sentimento de mis- em aulas síncronas são extremamente relevan- cias que dificultam a interacção. são e de dever cumprido e a satisfação extraor- tes e ajudam a compreender o desconforto de al- Quando conversamos presencialmente somos dinária por muitos constatarem a sua própria su- gumas pessoas através deste meio de comunica- capazes de ajustar o tom da nossa voz e a entoa- peração de dificuldades inerentes ao ensino e ção. Para que uma interacção humana funcione ção, à medida que precisamos transmitir uma comunicação à distância. da melhor forma é essencial o interesse e aten- determinada informação o que se torna muito Proporcionando-se os meios tecnológicos ne- ção entre ambas as partes o que pode ser condi- mais difícil de se garantir quando existem outras cessários a alunos e professores começará uma cionado por esta forma de comunicação. interferências no som. nova era da escola Pública e do Ensino Portu- E, apesar de tudo isto, as mensagens entre pro- guês. Quem sabe que outras vantagens que tere- • Distorção da imagem fessores, entre professores e alunos e encarre- mos também junto dos alunos na sua motivação Outro aspecto de extrema importância é a fa- gados de educação exponenciaram se, os mails e definição de objetivos de vida? ce do professor que terá de estar sempre visí- multiplicaram, as chamadas intensificaram, -tu Tenho contactado diariamente com centenas vel durante toda a sessão e todos os alunos esta- do em prol da escola, do ensino, dos alunos e de de professores que se desdobram para apren- rão a olhar para si de uma forma bem mais inten- se conseguir fazer mais e melhor todos os dias, derem a usar estas ferramentas e em criarem sa do que o normal. Como estão todos perto dos às vezes mesmo sem condições físicas, mate- novas formas de comunicar entre eles, para de- écrans (sejam computadores ou telemóveis), co- riais e tecnológicas adequadas. 13 maio 2020 21 | AS ARTES ENTRE AS LETRAS Razoar

Paulo Ferreira da Cunha [email protected] Estado de Emergência e caldos de galinha...

FOTO: DR Um dia, um Prof. estrangeiro contou-nos que fo- ra convidado para empresas de sucesso e até pa- ra o governo, mas recusara: mais se deleitava no fascínio dos alunos e na fama das publicações. Grandes especialistas, alguns puxando por ga- lões académicos, vêm agora a público para reve- lar a “verdade” sobre a pandemia. Podem ser os seus 5 minutos de fama. O cidadão deve desconfiar de revelações bom- básticas em ciência, como o faria com previsões de qualquer guru esotérico. Sugerimos que, co- mo dúvida metódica, não acredite em teorias da conspiração, agora embaladas com linguagem científica e até títulos académicos. Algumas “re- velações”, a circular como pretensas verdades retumbantes, lembram perigosamente os des- vendamentos por iluminados de seitas, ou gu- rus em nome individual. Na vozearia, qual a receita para produzir maior impacto? Nada sabendo de epidemiologia, in- fetologia, medicina em geral, estatística, cálculo de probabilidades, pode-se construir discurso sa, serão as bombásticas. A mais suscetível de Entre catastrofistas e desvalorizadores, à caute- mentiroso, mas eficaz: com manipulação de es- alcançar fama é, em países como o nosso, on- la, é melhor prepararmo-nos, com esperança e tatísticas (mesmo sem dados falsos!) e uma tese de não há um poder a fazer a desvalorização da responsabilidade. Não será posição civicamen- simples e contrária ao que é em geral acreditado. pandemia (como noutros), tratar a situação co- te louvável dar palco e fama aos propagadores Se o fito for apenas audiência, ser-se falado, dir- mo uma gripezita, ou menos. de teorias da conspiração desvalorizadores da -se-á que os outros estariam a mentir, teriam in- Amanhã, quando se virem pessoas na praia, aos dimensão e gravidade da pandemia. Nada de li- teresse em esconder a verdade, e que o desven- magotes, talvez elas mostrem nos seus telemó- mitação da liberdade de expressão; mas é noci- dador representa a ciência pura, desinteressa- veis vídeos como salvo-conduto para a irrespon- va uma ingénua propagação viral de ideias que da, e irá revelar a verdade. Esta, para ter impac- sabilidade. Presume-se que as discotecas não a todos podem custar muito caro por levarem to, não pode ser o que toda a gente sabe: relati- abrirão ainda. Se não, lá teríamos tal álibi. a baixar das defesas. “Cuidados e caldos de gali- va opacidade dos números, suscetibilidade de Perante situação de perigo, dizer-se que é tudo nha nunca fizeram mal a ninguém”. O descuido, manipulação, a grande incógnita sobre o signifi- invenção, conspiração, pode ter sucesso. Alguns o baixar as guardas, sim. Pode ser fatal. cado de um dia baixarem os óbitos e no dia se- difundirão essas teses por curiosidade, mas po- Esse nosso colega nunca terá os 5 minutos de guinte poderem disparar... Todas as reticências dem ter êxito viral. fama de um especialista médico ou matemá- e reconhecimento da falibilidade humana não Atenção aos “atos falhados”! Por exemplo, se um tico. Nunca os terá dessa forma “à maneira dos vendem, não entusiasmam. É preciso (como nas texto que deveria ser estritamente científico re- gurus”. É tranquilizador, porém, como pode- práticas “mágicas”) ter total autoconfiança. Ser- petidamente veicular críticas políticas contra os mos vê-lo a utilizar o confinamento para - es -se dono da verdade. poderes que decretam estados de emergência crever mais uns livros, que não farão mal a nin- Os candidatos à fama científica à maneira dos (e denotando desconhecimento jurídico), tal po- guém e o encherão de vaidade quando, passa- gurus esotéricos têm uma receita simples: derá fazer suspeitar objetivos não científicos e da a pandemia, pelas medidas de contenção exagero, revelações contra o mainstream, teo- será caso para investigar com acrescida descon- e pelos avanços reais de uma ciência que não ria da conspiração. fiança. O que alguns reterão será que os poderes busca o protagonismo, puder voltar a fazer a Numa situação em que, justamente, as pessoas teriam respondido mal (sabe-se lá com que in- sua ronda das livrarias, e perguntar, como uma andam preocupadas e respeitam o confina- tenção: remissão para intenções ocultas e per- criança que espera um doce: “- E o livro do pro- mento, há moderado alarme social. Não é pâni- versas?) a uma gripezita, só uma gripezita. fessor Fulano? Têm?”. co ou alarmismo. Mas não é inconsciência. Os Também o catastrofismo, sanitário ou econó- “- Sim, Sr. Prof. Fulano. Tem-se vendido como Portugueses, em geral, quando começaram a mico, pode ser meio de procurar audiência. pãezinhos quentes” – responderá, faceto, o aperceber-se do perigo, tomaram precauções. Em geral, profetas da desgraça acertam. Mes- vendedor. Parece que tem resultado. mo que se pinte o monstro com cores um pou- Lemos de soslaio o título: O Estado de Emergên- Contudo, as opiniões que mais inflamarão almas co negras, o alívio relativo que possa vir a ocor- cia não suspendeu nunca a Constituição. simples, crédulas, já aborrecidas de estar em ca- rer desculpará o exagero. Estavam os dois com máscara. 13 maio 2020 Património AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 22

Cristina Cordeiro escritora; jornalista Museus Centenários de Portugal: O século XX. Com o lançamento deste segundo volume se ro da Capela de S. João Baptista. Ourivesaria, pa- gião e da Sé Catedral de Évora, para além de um conclui a publicação de ‘Museus Centenários de ramentaria, pintura, escultura, relicários e arte núcleo arqueológico. Portugal’, obra de carácter generalista, dirigida a oriental constam hoje entre os núcleos mais ex- Museu Nacional Grão Vasco – A arte sacra um vasto leque de leitores, das mais diferentes pressivos do acervo que entrelaça num só fio his- tem o papel principal neste museu fundado gerações e geografias. tória, religião, arquitectura e arte, estabelecendo em 1916. Entre a colecção de pintura, de todas a Foi um trabalho de grande fôlego, este, traduzido uma linha de continuidade através dos séculos. mais expressiva, emergem os retábulos do pin- em cerca de seiscentas páginas profusamente Museu Nacional dos Coches – Aberto ao público tor Vasco Fernandes (circa 1475 -1542), o Grão ilustradas com as fotografias de Manuel Aguiar, em Maio de 1905 no antigo Picadeiro Real do Pa- (grande) Vasco. com quem, ao longo dos últimos dois anos, per- lácio de Belém, a sua colecção reúne viaturas de Museu Bordalo Pinheiro – Em torno da figura de corri o país de lés-a-lés, continente e ilhas. aparato, atavios equestres, fardamentos, arreios Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) em Lisboa Valeu a pena. e pintura. Sediado desde 2015 num novo edifí- no ano de 1916 o primeiro museu monográfico Perseguindo a história de vinte e cinco dos mais cio, aqui se encontra aquela que é considerada a do país. O acervo tem por base a obra gráfica e ce- antigos museus portugueses, nascidos entre 1772 mais importante colecção de coches do mundo. râmica do artista. e 1918, não raro em circunstâncias adversas, mer- Museu Francisco Tavares Proença Júnior – Museu de Lamego – Fundado em 1917, foi sedia- gulhámos nesse ‘tempo sobreposto’ – as palavras Criado em 1910, meses antes da proclama- do a título provisório no antigo paço episcopal da são de Torga – descobrindo-lhe as camadas, co- ção da República, por iniciativa do arqueólo- cidade e nunca mais de lá saiu. Arte sacra, tape- mo se de uma cebola se tratasse. go que mais tarde lhe deu o nome, os núcleos çarias flamengas e arqueologia são três dos pon- Nestes museus cabe tudo: técnicas e saberes de arqueologia,de colchas históricas de Castelo tos altos de uma colecção surpreendente. muito antigos, continuamente renovados; len- Branco e o acervo artístico do Paço Episcopal, ca- Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa – Cria- das, fés e um ‘saber de experiência feito’, na ori- sa-mãe deste museu desde 1971, justificam bem do em 1918, ganhou nova vida com as escava- gem da curiosidade científica; objectos do quo- esta visita. ções da antiga cidade romana de Bracara Augus- tidiano, transfigurados no decurso dos séculos; e Museu Nacional de Arte Contemporânea – Si- ta, iniciadas em finais da década de 1970. Dotado objectos distantes, misteriosos, que exercem até tuado no Chiado, em Lisboa, foi fundado em 1911 de laboratório próprio, o novo edifício acolhe um hoje sobre nós um fascínio inexplicável. Todos e instalado provisoriamente no antigo Conven- vasto acervo centrado num arco temporal que se estes universos se cruzam e se influenciam, per- to de S. Francisco, onde permanece até hoje. De estende do Paleolítico à Idade Média. mitindo-nos tecer um quadro mais geral, com- 1850 aos nossos dias, nele se reúne a colecção plexo e inesgotável, sempre aberto a novos diálo- mais abrangente de arte contemporânea portu- O livro está escrito e publicado, já não é meu, é vosso. gos e interrogações. guesa. Se contribuir para aproximar um pouco mais Ao longo de gerações sucessivas, uma vasta ga- Museu de Aveiro – Criado em 1911 por um decre- dois mundos que não fazem sentido um sem o leria de figuras de excepcional dimensão cultu- to da República, foi sediado no antigo Convento outro – os museus e o seu público – terá cumpri- ral e humana – arqueólogos, artistas, cientistas, de Jesus da cidade. Construiu a sua identidade do o seu papel. exploradores, aventureiros, políticos, homens de em torno da figura de Santa Joana Princesa (1452- igreja, também –, personagens visionárias e per- 1490), que aí viveu e morreu, e de um espólio de sistentes, movidas por uma inquietação intelec- arte sacra, onde a talha, a pintura e a escultura se tual invulgar, contribuíram para tornar cada um assumem como principais protagonistas de uma destes sonhos realidade. Algumas custearam do colecção bem mais abrangente. seu próprio bolso os projectos culturais que ga- Museu Nacional Machado de Castro – Escultura nharam raízes e, contra ventos e marés, se afir- e ourivesaria sobressaem entre as colecções do maram ao longo das décadas seguintes. Finan- vasto acervo deste museu nascido em Coimbra ciaram terrenos, edifícios, escavações arqueoló- no ano de 1911. O magnífico criptopórtico romano gicas, viagens, colecções, fábricas, jornais, iniciati- é percurso obrigatório. Em 2019 o museu foi clas- vas do mais variado teor; outros – autarcas, minis- sificado como Património da Humanidade. tros, aristocratas, homens de igreja, republicanos, Museu Abade do Baçal – Inaugurado no ano de monarcas e presidentes – viabilizaram politica- 1915 e sediado no antigo Paço Episcopal de Bra- mente estes projectos, afirmando a riqueza e di- gança, é um verdadeiro repositório de memó- versidade do nosso património cultural, em prol rias da vasta região em que se insere: o nordeste do bem comum. transmontano. Neste segundo volume se percorrem doze insti- Museu Nacional de Évora – Foi fundado em 1915 tuições fundadas entre 1905 e 1918 que aqui apre- em torno das colecções reunidas por Frei Ma- NOTA Na próxima segunda-feira, dia 18 de Maio, sentamos: nuel do Cenáculo (1724-1814) na Biblioteca Públi- comemora-se o Dia Internacional dos Museus, Museu de S. Roque – Inaugurado em 1905, em ca da cidade, acervo ao qual veio juntar-se parte este ano sob o tema «Museus para a Igualdade: Lisboa, começou por girar em torno do Tesou- do espólio artístico de conventos extintos da re- Diversidade e Inclusão». 13 maio 2020 23 | AS ARTES ENTRE AS LETRAS emnotícia

Aulas abertas online de cultura italiana A Associazione Socio-Culturale Italiana del LeV mantém-se “vivo e activo” em forma digital Portogallo Dante Alighieri (ASCIPDA) vai de- senvolver um conjunto de aulas abertas onli- “A força de um município é proporcional à for- e 17 terão lugar sessões às 17, 18, 19, 21 e 22 horas. ne de cultura italiana. Serão oito sessões (duas ça dos seus munícipes. As câmaras municipais O evento tem como tema «Volta ao mundo em por semana), a partir das 18h30, com a duração enquanto emanação desse poder dos cidadãos 80 viagens» e conta com nomes como Isabel Al- máxima de uma hora. As aulas serão em italia- têm a obrigação de dizer presente nos momen- lende, Alexandre Quintanilha, Ana Luísa Ama- no e a participação gratuita, mas com inscrição tos mais difíceis”. As palavras de Luísa Salgueiro ral, David Machado, Gonçalo M. Tavares, Joana obrigatória. A primeira aula, dedicada a Vene- vêm a propósito da realização da 14.ª edição do Amaral Dias, José Luís Peixoto, Matilde Campi- za, será no dia 15 de Maio (sexta-feira) e a última LeV - Literatura em Viagem que se realiza online, lho, Pedro Abrunhosa e Ondjaki. Os convidados terá lugar a 8 de Junho. [Informações e inscri- de hoje, 13 (quarta-feira) a 17 de Maio. Como presi- desta edição são desafiados pela organização a ções: [email protected] / 961 954 244] dente da autarquia que organiza e dinamiza este “falar dos livros que os fazem ou fizeram viajar, festival de literatura explica a opção de não sus- bem como as viagens que mais os marcaram pender, antes adaptar: “Nestes dias de grande in- nas suas carreiras”. certeza, em que nos focamos na saúde dos mais Se para o vice-presidente da autarquia “um dos «Santo António» frágeis, na alimentação dos mais desfavorecidos, grandes desafios dos autarcas, por estes dias, de Agustina lançado este mês não podemos esquecer que o ser humano tam- passa por tentar minimizar o impacto desta pan- As circunstâncias actuais, obrigaram o Círcu- bém é espírito, inteligência e pensamento”. E re- demia junto dos seus munícipes” e reconhe- lo Literário Agustina Bessa-Luís a cancelar as vela a satisfação de manter “vivo e activo o LeV - ce que na área da Cultura “este exercício é par- actividades previstas para este ano, nomeada- Literatura em Viagem, um dos mais antigos e im- ticularmente mais complexo”, pois os espectá- mente a viagem a Itália – Roma, Assis e Pádua – portantes festivais literários portugueses, agora culos vivem da experiência do momento no lo- aos lugares Antonianos, preparada para se rea- nas plataformas digitais. Mais ainda quando se cal, Fernando Rocha realça que o LeV “este ano lizar este mês. Celebram-se os 800 anos da en- abrem possibilidades de chegar a mais gente, de perde o encanto do contacto directo com os au- trada de Santo António para a Ordem, e a via- chegar mais longe, de estender este festival a três tores, mas ganha no alargamento de fronteiras, gem faria coincidir essa celebração com a saída continentes e a muitos milhares de leitores”. quer na proveniência dos autores, quer no alar- do livro de Agustina, «Santo António», há mui- É possível acompanhar as sessões gratuitamen- gamento do público”. to esgotado, agora com um Prefácio de D. José te através das páginas de facebook da autarquia [Programa: https://www.cm-matosinhos.pt/cm- Tolentino Mendonça. Adiada a viagem, sairá o e da Biblioteca Municipal Florbela Espanca entre matosinhos/uploads/writer_file/docu- livro em final de Maio. os dias 13 e 15, às 17, 18, 19 e 22 horas e nos dias 16 ment/23215/programa_completo_lev_2020.pdf]

Marionetas na internet Actividades adiadas na Biblioteca da Maia O Município de Gondomar, em parceria com o ASCR - Confraria Queirosiana leva a leitura a casa Teatro e Marionetas de Mandrágora, tem vindo Nas actuais condições de confinamento, a direc- Nesta altura de confinamento, a Biblioteca Mu- a dinamizar a Casa Educativa da Marioneta na ção da associação cultural Amigos do Solar Con- nicipal da Maia leva os livros a casa dos seus lei- Casa Branca de Gramido, oferecendo um con- des de Resende - Confraria Queirosiana conti- tores, de um vasto conjunto de obras disponí- junto de actividades na área da marioneta, das nua a atender os seus associados por telefone, vel. São entregues com as necessárias medidas quais se destacam os workshops. Nestes tem- e-mail ou outros meios não presenciais, encon- de higienização obrigatórias, à porta de casa de pos em que os espaços culturais não podem trando-se a reequacionar toda a programação cada um. Os livros podem ser escolhidos na pá- receber as pessoas, o projecto vai ao encontro em curso ou previstas para 2020-2024. Como foi gina da internet da biblioteca [ttps://biblioteca. do público através da internet. Em https://www. divulgado, foi temporariamente suspensa a as- cm-maia.pt/]. youtube.com/watch?v=xB8yG_9r9ow está dis- sembleia-geral ordinária para apresentação do ponível o vídeo-workshop «História a Meias», Relatório e Contas de 2019 e Programa de Activi- produzido em parceria com o Teatro e Mario- dades e Orçamento para 2020, bem assim como netas de Mandrágora. a assembleia eleitoral para os novos corpos ge- Candidaturas ao FesTacco rentes entre 2020 e 2024, as quais serão realiza- O Círculo Católico de Operários (CCO) de Vila das logo que as condições o permitam. do Conde e o TACCO (Teatro Amador do CCO) irão promover, de 30 de Outubro a 28 de No- «Aquisições» vembro, a 5.ª edição do FesTacco - Festival de inclui compras directas Teatro Amador do CCO. As candidaturas pa- O projecto «Aquisições», que veio reacti- Luz verde à 2ª fase da ra a participação nesta mostra de teatro ama- var a Colecção Municipal de Arte no Por- requalificação da dor estão abertas até 31 de Maio. [Regulamen- to, terá na sua corrente edição a possibi- Escola Básica e Secundária to: https://www.ccoviladoconde.com/wp-con- lidade de compra directa de obras a ar- de Vila Nova de Cerveira tent/uploads/2020/05/Regulamento-FesTac- tistas da cidade, que poderão submeter A Autoridade de Gestão do Programa Nor- co-2020.pdf] uma sugestão de compra ao actual comi- te 2020 aprovou a candidatura para finan- té de aquisições, até ao valor máximo de ciar a 2ª fase da requalificação da Escola Bá- 2.000 euros, entre os dias 14 e 27 de Maio. sica e Secundária de Vila Nova de Cerveira. Escola Ciência Viva Gaia A iniciativa tem vindo a fazer crescer a Através de uma reprogramação do quadro Colecção Municipal de Arte desde 2018, Nestes dias em que é fundamental ficar comunitário, a empreitada orçamentada com os objectivos de dinamizar e valori- em casa, a Escola Ciência Viva Gaia par- em 2.3ME conta com um financiamento do zar o património artístico do Porto e do- tilha algumas sugestões de actividades FEDER (1.2ME) e do Ministério de Educação cumentar a memória da prática artísti- que os mais pequenos podem fazer em (105.882,36E), cabendo ao Município cervei- ca da cidade, através da compra regular rense investir cerca de 1ME. Autarquia vai casa e algumas curiosidades. O Origami de obras apresentadas em exposições proceder à abertura de um concurso públi- Rã e a Expansão do Universo são duas realizadas em galerias de arte da cida- co prevendo que, e após ultrapassado todo das experiências disponíveis até 31 de de. O guia para submissões pode ser con- o procedimento administrativo-burocráti- Maio [http://www.cm-gaia.pt/pt/eventos/ sultado no website da plataforma Pláka co, os trabalhos avancem até ao final do ano. no-mundo-da-ciencia/] [www.plaka.porto.pt]. 13 maio 2020 Letrasantivirais AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 24

Maria Antónia Jardim António Ferro escritora e especialista em músico Psicologia da Arte

Ruas Nuas A pandemia e as figuras de estilo!

Passo tantas vezes nas ruas... Estamos a assistir das nossas janelas e varandas ao renascer do Verde do plane- Nem sempre as mesmas, ta Terra e enquanto o Planeta respira fundo e livremente, muitos de nós, os mor- Mas sempre nuas. tais, aguardam por ventiladores! De dia, tudo vemos e nada escondemos Note-se que a primeira figura de estilo a que assistimos é aPersonificação e é À noite, “os encantos”, alguns supremos... perversa! Entretanto e porque estamos em casa, não nos mexemos muito e os prazeres As ruas testemunham os seres humanos do mundo estão a ser negados…o que fazemos? Comemos! Exageradamente… A Que correm nelas em todas as direcções, obesidade vai passar a ser gigante! Uns aflitos, outros aos gritos Esta é a segunda figura de estilo:A Hipérbole, que neste caso, vai contra os pa- Uns com certezas, outros com questões... drões de beleza sociais! E a vida corre lá fora enquanto anda muito lentamente cá dentro! A ânsia de cal- As ruas mantém-se intactas, de pedra e cal. çar os sapatos de sair à Rua é enorme e dar a volta ao quarteirão é uma viagem Sabem as histórias da vizinhança, fantástica! Mas, não lhes dão grande importância, Terceira figura de estilo:Sinédoque ! Ah, sim! Tome-se a parte pelo todo! Faça- mais tarde, tudo se sabe pelo jornal... mos de conta que ver a árvore é passear no Bosque e avistar o mar são férias de praia! Sim, sabe a pouco mas tem que ser! Assistem ao nascimento e à despedida... Porém, se a grande figura de estilo da Vida é aComparação ; agora ela assume Ao casamento e à amante escondida, um papel verdadeiramente preponderante na vida de casa e na vida televisiva! Ao mau tratamento familiar, Veja-se: Mas, nunca as ruas irão julgar... Em casa os membros do casal comparam os cozinhados, o que arruma melhor a cozinha, o que faz melhor a cama e a discussão instala-se…os irmãos têm agora Estão sempre atentas aos movimentos, mais tempo para se verem ao espelho e compararem os tamanhos, altura e ou- Assistem às manifestações pelos direitos, tros… e o pior é quando se vê com atenção o saldo das contas bancárias e se co- Pelas políticas ou pelos feitos (?) meça a comparar com o que era dantes!!!! Ou por qualquer outra razão... Já na televisão, diariamente, os jornalistas e comentadores comparam gráficos, estatísticas e orçamentos… Ruas que sabem das nossas vidas Conclusões? Poucas! Especulações? Mais do que nunca… sobretudo no que diz Das incertezas, minhas e tuas. respeito ao número de falecimentos; com este vírus à solta há muita gente a pre- No silêncio das despedidas... ferir morrer em casa; já agora, haja alguma dignidade… pois a figura de estiloEu - No silêncio das ruas nuas. femismo não faz parte da linguagem desta pandemia! Não se pode dizer o mesmo da Antítese, que é abundante entre o Antes e o Agora. Os nossos comportamentos são água do vinho! Deixei para o fim a figura de estilo de que gosto mais e que está muito presente no que apelidamos de “Expressões idiomáticas do Português”: A Metáfora. Júlio Conrado escritor E, para já, os efeitos desta pandemia são: Ficar com os cabelos em pé; os cabeleireiros e barbeiros têm estado fechados! Ficar com os nervos em franja! Não relaxamos, não podemos ir ao ginásio ou Poesia em tons vários ter um chá das Tias e ser cusca por um dia!!! O melhor é andar nas nuvens e sonhar com um mundo Novo, uma Vida nova e UM ADEUS CONFINADO uma oportunidade para MUDAR! O adeus derradeiro nunca é fácil Afinal, como dizia o poeta:O sonho comanda a vida! especialmente quando se trate de alguém extraordinário na mira de um vírus serial killer implacável, a quem foi entregue pelos donos dos piores infernos a tarefa hercúlea de dizimar da face do planeta azul tudo quanto rescendesse J. Alberto de Oliveira poeta e professor a humanidade feliz por cultivar Poesia. Equiparam-no com uma couraça à prova de emoções e sensações De relance favoráveis ao perdão dos que ousassem exprimir em verso o direito à vida. A peste não faz barulho. Avança pela calada. Escrevias um poema quando a vil criatura Muito silenciosamente apressa a vitória da morte. te cortou as palavras com que reclamavas E quanto aos humanos, só resta quotidianamente fazer os despejos do esse direito, e que com a pontaria de um profissional, presente. (M. G. Llansol) te recusou a ousadia de lhe fazeres frente com as tuas belas estrofes. Eras poeta e cientista topo de gama. Tinhas oitenta anos. Não te perdoaram seres portadora do dom de versejares em tempo de pandemia. Adeus Maria de Sousa. Deixas saudades. 13 maio 2020 25 | AS ARTES ENTRE AS LETRAS Letrasantivirais

Eugénio Lisboa escritor

Introdução aos poemas dos dias da peste

Em tempos de peste e de confinamento, tende- ventada por um povo feliz, como os gregos. Se ca- AMOR VIRTUAL mos todos à melancolia, quando não ao desespe- lhar a comédia foi congeminada por um povo infe- EM TEMPO DE PESTE ro. É nestas alturas que se recorre e se deve recor- liz, a precisar de antídoto à melancolia. Alguém per- rer ao humor (ao bom) e à faceirice, para desanu- guntou um dia a Anatole France que tal tinha sido a Usa-se o computador, viar o ambiente. Podemos então revisitar a nossa cerimónia de atribuição do Prémio Nobel. Respon- nestes dias desolados, poesia satírica ou as cantigas de escárnio e maldi- deu: “Triste como um casamento e alegre como um zer. Lembremo-nos também do célebre Decame- enterro.” Porque é um facto que há frequentemen- para fazer amor, ron, no qual um punhado de protagonistas foge te muita choradeira nos casamentos e é nos enter- mas com pífios resultados. aos horrores da peste negra, isolando-se em certo ros que se contam mais anedotas – não por falta de local, num confinamento igual ao nosso, contan- respeito para com o morto, mas antes como reacção O computador imita, do-se uns aos outros, histórias ladinas, picarescas, ao horror da morte e da perda. Cultivar a tristeza e faz só aquilo que pode: apimentadas ou francamente licenciosas, com o a melancolia, nestas ocasiões, é pouco recomendá- se o amor, com força, excita, fim de esquecerem a sinistra mortalidade que, lá vel. Quando se está triste, deve ir beber-se à boa fon- o computador implode! fora, assolava as populações. te do humor e da ladinice. Ofereço aqui uma modes- Nietzsche dizia que a tragédia só podia ter sido in- ta contribuição a esse desanuviamento necessário. Este amor só pelo éter, sem um toque na cereja, CONSELHOS AOS IDOSOS PENTASSÍLABOS PARA UMA é como apalpar o sweater DE CHRISTINE LAGARDE E OUTROS BENFEITORES VÉNUS DE MILO ABANDONADA em vez da teta que almeja!

Amar por computador, No Louvre deserto A Senhora Christine Lagarde nesta época tão triste, a Vénus de Milo, acha que os velhos vivem demais; é como fazer amor peito descoberto, p’ra que a economia se resguarde com alguém que não existe! bonito mamilo, há que apressar os ritos finais. não tendo a vê-la Eugénio Lisboa, ninguém como antes, que nada tem contra os computadores, antes pelo contrário, Um senhor da América do Norte pensou: “Minha estrela mas que não pode, em boa consciência, não lhes reconhecer os limites. pede aos idosos compreensão: não é como dantes. por favor não esperem pela morte, Antes, devoravam-me, AMOR VIRTUAL - II façam-no pela vossa própria mão. de olhos abertos, - VARIAÇÕES SOBRE UM SONETO CAMONEANO - e recomendavam-me Amor é fogo que arde só ao longe Tudo, é claro, a bem da economia, aos amigos certos. É ferida que dói e que se sente. nada a ver com qualquer heresia: Turbas assanhadas É um contentamento só de monge são, todos, religião e harmonia, com a minha nudez É promessa doce que logo mente! missa, terço e ave-maria! expunham, pasmadas, É um querer igual a não querer feroz cupidez! É um comer que come sem comer Assim visitada Mas viver não é exagerar, É um contentar-se em não colher há que cuidar sempre dos cifrões: num belo museu, É um cuidar que se ganha sem arder! p’rá economia não parar, fiquei viciada: É querer não estar preso e solitário o mundo era meu! metam os velhos à vida travões! É sonhar que é sonhando que se tem Mas a peste veio Eugénio Lisboa, É só saber aguentar o fadário e tudo roubou: que ficou muito preocupado com a economia que mundo feio Na esperança de o vírus acabar do globo, que ele tem estado, sem ser por mal, a prejudicar. É amar com as regras ao contrário aquele em que estou! É cuidar que se frui sem se roçar! Só, abandonada, pior, desprezada, Eugénio Lisboa, ninguém a sorrir-me, pedindo desculpa ao grande Vate, por se apropriar - o melhor é vestir-me!” de um seu soneto justamente célebre, para fins medi- cinais, muito necessários neste momento de grande solidão.

Eugénio Lisboa, Lamentando, polissilabicamente, os efeitos da peste no abandono e na morte de um mundo onde a beleza e a nudez eram devidamente apreciadas e até veneradas. 13 maio 2020 Letrasantivirais AS ARTES ENTRE AS LETRAS | 26

Filomena Fonseca Luís Serrano pintora; poetisa prof. universitário

TEMPOS DIFÍCEIS SE AS AVES SE ESCONDEM

Cada dia é difícil de se aguentar que esta pandemia está para durar. Aquele que testemunhou o abismo, as fundações da terra, experiente de caminhos, em tudo era sábio! Não se pode sair como antigamente Épico de Gilgamesh que o vírus é bravo e mata muita gente.

Fique resguardado em confinamento Se as aves se escondem e tente fazer algo a cada momento. a vida anoitece e o canto escreve um nome Já que não pode ir à casa da vizinha, sobre o abismo faça uma limpeza na sua cozinha. sobre as fundações da terra Pode ir à janela dar uma espreitadela, brincar com o gato ou com a cadela. nome de sílabas quebradas Pode ler um livro há muito querido no alto degelo das colinas ou fazer um doce, o seu preferido. ou mão que arde no lume na concha acesa da música E pode ver um filme em horas mortas, cuidar o seu jardim ou tratar das hortas. lá onde se escoam os sonhos Agora é moda e até muito normal ou se abrem os pórticos e as abóbadas ter aula em casa e conversa virtual. dos mosteiros mais antigos É tempo de ter máscara sempre à mão e tempo de análise e de reflexão. nada as perturba as dores dos homens Seja solidário se puder ajudar, a força do vento que há já muita gente a necessitar. a morte sempre adiada Neste isolamento pleno de cansaços, só não é tempo de beijos nem abraços! são o apelo do céu anjos experientes de caminhos lágrimas ou feridas que circulam entre Orfeu e Euridice Janeiro, 2020 Isabel Silva Bernard escritora; psicóloga A noite cai Estar fechada em casa porque lá fora o vírus está em todo o lado. Trabalhar em casa, comer em casa, ver filmes em casa. A noite cai sem medida Ler em casa, fazer ginástica em casa, tomar café em casa. sobre os ossos do medo Deambular entre a sala e a cozinha, passear no quintal, no terraço ou na varanda. o silêncio é agora Cheirar as plantas nos vasos e sonhar com bosques e florestas. uma floresta de ausências Acariciar o cão e a gata, tuas companhias felizes num mundo infeliz. um intervalo Ir ao supermercado, olhar as pessoas com um sorriso, entre nascer e morrer mas afastar-se delas com medo, e vir depressinha para a casa-abrigo. E quem não tem casa, que triste deve ser não ter casa onde se esconder do vírus… a noite Chegar a casa aliviada por ter comida para mais uns dias, pórtico do sono tirar os sapatos com medo, tirar a roupa com medo. entre colunas e capitéis Lavar as mãos, pegar nas compras com suspeita, e limpar tudo. Sim, limpar tudo, lavar, fazer muita espuma. escrita submersa O sabão destrói o vírus, por isso lavamos as mãos vezes sem conta. nas ondas do cérebro E às vezes esquecemo-nos e tememos. as lágrimas diluídas Falamos ao telefone e nas redes sociais, trocamos abraços virtuais, o rosto do riso partilhamos conselhos, transmitimos esperança. que resta Mas sempre com medo, pelos pais, irmãs, filhos, netas. Pelas amigas antigas e pelos amigos recentes. a noite Pelo futuro cujos contornos desconhecidos se ocultam atrás das bolas de sabão. as árvores silenciosas Irão as pessoas aprender a lição? - perguntamo-nos no silêncio dos pensamentos solitários. As pessoas esquecem depressa, mostra-nos a História. o vento perdido E procuramos disfarçar o medo com um sorriso, as pedras sepultadas porque há quem tenha ainda mais medo do que nós. no alto das colinas 13 maio 2020 27 | AS ARTES ENTRE AS LETRAS pub 13 maio 2020 28 | AS ARTES ENTRE AS LETRAS