Três Eventos Da História Brasileira Nos Romances De Coelho Neto
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View metadata, citation and similar papers at core.ac.uk brought to you by CORE Navegaçõesprovided by Directory of Open Access Journals ENSAIOS v. 4, n. 1, p. 26-39, jan./jun. 2011 “Sob o tênue véu da ficção”: três eventos da história brasileira nos romances de Coelho Neto LUCIANA MURARI UCS Resumo: Este artigo trata da representação de três grandes eventos históricos pela escrita ficcional de Coelho Neto, um dos mais prolíficos escritores brasileiros: a Abolição da Escravatura, a Proclamação da República e a Revolta da Armada. A ênfase dessa análise recai na atribuição de sentido aos grandes eventos no contexto de sua inserção ficcional. Concluímos que, para além dos grandes atores e dos fatos transformadores, o significado atribuído à dinâmica histórica deve ser buscado nas estratégias discursivas que enquadram estes fatos em um dado contexto ficcional. Palavras-chave: Literatura brasileira; História do Brasil República; História e literatura; Coelho Neto; Ficcionalização Abstract: This paper aims to analyze the representation of three main events of Brazilian history on novels by Coelho Neto, one of the most prolific Brazilian writers: the Abolition of Slavery, the Proclamation of Republic and the Armada’s rebellion. It’s emphasized the meaning of these facts on the context of their fictional inscription, being concluded that beyond great historical actors and turning-point events the sense assigned to historical dynamics depends on the discursive strategies that frame them in fiction. Keywords: Brazilian literature; Brazilian republican history; History and literature; Coelho Neto; Fictionalization Como não se há de só escrever história política, aqui está Coelho Neto, romancista, que podemos chamar historiador, no sentido de contar a vida das almas e dos costumes. (MACHADO DE ASSIS – “A semana”, Gazeta de Notícias, 1895) Acompanhar a trajetória do escritor maranhense A Conquista em que seu alter-ego é confrontado com Coelho Neto significa observar o curioso processo de os excessos de sua prosa preciosista. Apesar disto, ele conversão de um “medalhão” em um “maldito”. Não que logrou construir uma das mais prolíficas trajetórias da sua obra tenha sido unânime em seu tempo. Pelo contrário, literatura de língua portuguesa, tendo publicado em vida desde o início de sua profusa carreira, foram frequentes as cerca de 130 volumes, além de uma copiosa produção admoestações ao autor acerca do seu estilo superabundante jornalística nunca reeditada (COELHO NETTO, 1942, e imaginoso, da excentricidade de sua prosa oblíqua, p. 15). Atualmente, são poucos os trabalhos dedicados a ele, seduzida por uma imagem estetizada do Oriente, da relegado ao limbo dos escritores que, de tão expressivos Grécia Antiga, das paisagens nórdicas, por uma panóplia de uma certa historicidade, tornaram-se virtualmente de referências mitológicas, literárias, bíblicas, pelo ilegíveis no tempo atual. No entanto, dado que alguns vocabulário raro, arcaizante e lusitanizante, pelo fraseado de seus livros fogem do habitual estilo arrevesado e sinuoso, pelo descritivismo detalhista e extenuante. possuem reconhecido valor histórico – senão literário – O escritor foi, aliás, pioneiro no registro de algumas deduz-se que o esquecimento de sua obra não se deva dessas críticas, em cenas de seu romance autobiográfico apenas às suas excentricidades temáticas e estilísticas. De “Sob o tênue véu da ficção” 27 problemática inscrição no cânone literário, sua obra foi teve que conviver com a crítica à perturbação do realismo classificada na categoria pouco confortável dos escritores pelos seus excessos imaginativos e retóricos. Uma das oficialistas, alienados e politicamente alinhados aos ressonâncias desta ideia pode ser encontrada na crítica setores mais conservadores do espectro ideológico, o de Alfredo Bosi (p. 222-9), que avaliou a obra a partir que afastou muitos leitores e limitou sua difusão entre as de uma dinâmica entre a ornamentação viciosa, que o novas gerações (MURARI, 2010). incompabilizaria com o público atual, e a documentalidade Neste texto, procuramos explorar um veio da ficção virtuosa, que possibilitaria sua releitura.1 coelhonetiana que muitas vezes foi chamado pela crítica Neste artigo, exploraremos esta vertente documental e pela historiografia a revalidar sua prosa, resgatando-a da obra de Coelho Neto, fazendo um exercício de leitura da desordem de seus vícios estéticos e temáticos: a voltado para observar os modos de significação do passado documentalidade, ou seja, a função de registro histórico e as inflexões ideológicas da representação histórica pelos exercida por seus romances, contos, crônicas e peças romances do autor. Há inúmeras possibilidades neste teatrais. Esta, que seria a faceta mais profícua de sua obra, sentido, mas nos limitaremos a observar a revelação foi uma das dimensões privilegiadas pelos críticos que da historicidade a partir da forma como determinados a valorizaram desde sua contemporaneidade, entre eles eventos políticos de capital importância na trajetória Adolfo Caminha, Nestor Victor e Machado de Assis. Mais brasileira são representados na trama de alguns de seus recentemente, Mary L. Daniel propôs uma perspectiva romances. Neste sentido, a posição crítica assumida por em que a obra de Coelho Neto fosse valorizada por sua Machado de Assis é singularmente expressiva: ao avaliar capacidade de representar o cotidiano do Rio de Janeiro o romance Miragem, Machado deixou em segundo a partir do final do século XIX, reconstituindo o cenário, plano a concepção da história baseada na narrativa dos a vida material, as práticas e os costumes populares, acontecimentos transformadores, nas inflexões violentas em especial por sua aguçada consciência do espaço e súbitas, na ação dos grandes sujeitos da história, nos urbano e de suas transformações. Da mesma forma, seus marcos decisivos que inauguram uma nova fase no curso romances familiares fariam um desenho detalhista da de uma trajetória histórica. Para além desta concepção vida doméstica da classe média carioca, abarcando os de história, expressão do padrão positivista que buscava problemas da condição feminina, as relações de trabalho garantir a cientificidade deste domínio do conhecimento, e pessoais, dentro de uma atmosfera pessimista em que ele escreveu, em seguida a um comentário sobre Um as mudanças modernizadoras desnorteiam e acenam estadista do Império, de Joaquim Nabuco: “Como não para a decadência moral. Na visão da autora, a pretensa se há de só escrever história política, aqui está Coelho superficialidade dramática, o caráter unidimensional e a Neto, romancista, que podemos chamar historiador, no ausência de profundidade psicológica de seus personagens sentido de contar a vida das almas e dos costumes.” 2 são frutos, justamente, da dimensão panorâmica de Ao privilegiar a faceta anônima, subjetiva e cotidiana da sua obra. A riqueza dos textos de Coelho Neto estaria, experiência coletiva como objeto alternativo e igualmente justamente, na natureza simplória e monocórdia das válido da percepção da evolução social, Machado de vidas de suas personagens, submetidas às determinações Assis demonstra uma visão ampla da história, não apenas incertas de um meio social em que os papeis eram revistos como uma sucessão de fatos, sobretudo políticos, mas e às atribulações de um cotidiano inseguro e contrário à também como a dimensão do conhecimento e da arte liberdade. Esta inquietação teria permitido que sua obra, que representa a variedade da vivência humana no segundo a autora, se tornasse um documento de interesse tempo. Curiosamente, como veremos, é neste romance sociológico e historiográfico (DANIEL, 1993). que a percepção histórica de Coelho Neto converge mais Por outro lado, este valor documental da obra de decisivamente com a história factual de cunho político. Coelho Neto foi também colocado sob desconfiança, uma Desta forma, embora o cerne deste artigo seja vez que suas idiossincrasias foram por vezes traduzidas justamente a história lida a partir de grandes eventos como uma forma de alienação em face da realidade local, transformadores, interessa-nos, sobretudo, a forma como e que um estilo demasiadamente imaginoso não parecia estes eventos foram inseridos na narrativa ficcional, ou ser o mais apropriado ao registro verista que se esperaria seja, os significados impressos aos fatos que o escritor, de uma literatura autenticada por seu valor de testemunho, que se pretendia testemunha da história, intentava impor ou favorável à mirada crítica que converteria o escritor como expressão da verdade. No entanto, sabemos que, em consciência social vigilante (BARRETO, 2004). Em como forma de representação, a história atente, sobretudo, função do estabelecimento de um padrão de valoração da aos estatutos da verossimilhança e da credibilidade, mas obra literária baseado em sua capacidade de observação e 1 Para uma síntese da fortuna crítica de Coelho Neto, ver LOPES, 1997. interpretação da realidade social, a apreciação dos livros de 2 Artigo originalmente publicado na coluna “A Semana”, na Gazeta de Coelho Neto como potenciais documentos de uma época Notícias, em 11 de agosto de 1895. Navegações, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 26-39, jan./jun. 2011 28 Murari, L. não da veracidade. Como Jacques Leenhardt e Sandra Como atentou Helena Bomeny, (1990) o memo- Pesavento, não entendemos o verossímil como algo rialismo implica na percepção de que há uma dinâmica localizado no campo da verdade, mas como uma categoria conflituosa entre o particular e o universal: por um lado imaginária do fato,