UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI AFONSO FELIPE GALDINO LEITE ROMAGNA

NO RITMO DO CINEMA BRASILEIRO:

Um estudo sobre as relações entre o cinema e a música

popular no filme Cidade Mulher (1936).

SÃO PAULO 2016

AFONSO FELIPE GALDINO LEITE ROMAGNA

NO RITMO DO CINEMA BRASILEIRO:

Um estudo sobre as relações entre o cinema e a música

popular no filme Cidade Mulher (1936).

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora, como exigência para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Audiovisual da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação da Profa. Dra. Sheila Schvarzman.

SÃO PAULO 2016

AFONSO FELIPE GALDINO LEITE ROMAGNA

NO RITMO DO CINEMA BRASILEIRO:

Um estudo sobre as relações entre o cinema e a música

popular no filme Cidade Mulher (1936).

Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora, como exigência para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Audiovisual da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação da Profa. Dra. Sheila Schvarzman.

Aprovado em ----/-----/-----

Nome do orientador

Nome do convidado

Nome do convidado

À Selomite Leite, pelo ensino da vida In memoriam

À Ana Célia e Eduardo, minha inspiração

À Karol, pelos sonhos que desenhamos juntos

AGRADECIMENTOS

Inúmeras pessoas fizeram parte direta e indiretamente da construção deste trabalho, todas com contribuições significativas.

Com o desejo de ingressar na vida e pesquisa acadêmica, porém sem condições financeiras para arcar com a mensalidade de um mestrado em uma universidade como a Anhembi Morumbi, procurei ajuda da professora Laura Cánepa, então coordenadora do mestrado. Queria saber como elaborar um bom projeto de pesquisa para apresentar à FAPESP. Laura, prontamente, sem conhecimento prévio nenhum da minha pessoa e com uma enorme generosidade, deu as primeiras orientações que originaram esta pesquisa.

Foi Laura também que apresentou-me Sheila Schvarzman, que se tornou a orientadora não só da minha pesquisa, mas dos meus estudos de uma maneira geral dentro do Mestrado em Comunicação. Sem os seus questionamentos, indicações, provocações e sinceridade esta pesquisa não seria possível. A sua pessoa, a propriedade com que fala, escreve e orienta me despertam a mais profunda admiração e desejo de continuar trilhando o caminho da docência e pesquisa.

Aos professores Rogério Ferraraz e Bernadette Lyra que contribuíram com uma visão técnica e específica do cinema no meu trabalho, que até então não tinha conhecimento. Um agradecimento especial à professora Maria Ignês que, além dos vários arquivos e textos sugeridos como estudo, contagia e motiva qualquer ser humano que compartilhe do mesmo espaço e ambiente que ela se encontre.

Aos colegas de aulas do mestrado: Fabiano Pereira, Ana Carolina, Delson Matos, Fulvia Zonaro, Leandro Moura, Gabriela Moura, Leandro Souza e Fernando Birche pela companhia, amizade, dúvidas e conhecimentos compartilhados.

Aos professores Eduardo Vicente da USP, Suzana Reck Miranda da UFSCAR e Marcus Neves da UFES, pelos questionamentos e sugestões compartilhados nos congressos de cinema e música que tive oportunidade de participar.

Não posso deixar de mencionar novamente meus pais, Ana Célia Leite e Eduardo Pereira, por todo apoio que tornou possível o ingresso e continuidade dos estudos neste mestrado.

À minha esposa Flávia Romagna, pela cumplicidade, paciência no dia-a-dia árduo de estudos e pesquisas, motivação e amor que ajudaram na superação dos obstáculos que superamos nos últimos dois anos.

Por fim, à Universidade Anhembi Morumbi e ao programa de pós graduação em Comunicação, que bonificou esta pesquisa com isenção total das mensalidades do curso, e pela estrutura disponibilizada garantindo a execução e conclusão deste trabalho.

A cidade não é um lugar, é a moldura de uma vida.

RESUMO

O filme Cidade Mulher (1936), produzido pela Brasil Vita Filme, da atriz Carmen Santos, e dirigido por Humberto Mauro, possui trilha sonora composta em quase sua totalidade pelo sambista . Em face do desaparecimento de inúmeros filmes desse período, como é o caso de Cidade Mulher, esse projeto se propôs a resgatar o filme que, acreditamos, incluiu vários elementos significativos que refletem questões sociais e culturais da época: o e a obra de Noel Rosa, uma ficção sobre o a emblemática Capital Federal, o trabalho de Humberto Mauro que acabara de realizar um grande sucesso com Favela dos meus Amores (1935); e Carmen Santos, entusiasta produtora e atriz de temas nacionais e populares. O repertório musical foi imprescindível para esse resgate e para a compreensão da relação entre a imagem e o som, e o enredo em sua relação com a cultura e a sociedade no qual está imerso.

Palavras-Chave: Cidade Mulher. Noel Rosa. Música Popular. Humberto Mauro. Cinema Brasileiro.

ABSTRACT

The movie Cidade Mulher (1936), produced by Vita Filme from the actress Carmen Santos and directed by Humberto Mauro, has a soundtrack mostly composed by Noel Rosa. This project proposes to rescue this film, provided the disappearance of many films from the same period, since it includes several relevant elements that reflect social and cultural issues from that time, such as samba and Noel Rosa’s work, a fiction about Rio de Janeiro as the emblematic Federal Capital, the work from Humberto Mauro who had just accomplish considerable success with Favela dos meus Amores (1935) and Carmen Santos, enthusiastic producer and actress of national and popular works. The rescue of Cidade Mulher musical repertoire will be essential to the comprehension of the relation between image and sound and to the understanding of the connection of the plot with the cultural and social environment in which it is set.

Keywords: Cidade Mulher. Noel Rosa. Popular Music. Humberto Mauro. Brazilian Cinema.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Foto de divulgação do filme ...... 28 Figura 2 Cena "A Macumba" com Mara Costa Pereira ...... 29 Figura 3 Presentes no jantar da casa de Carmen Santos que firmaram o compromisso com a fundação da escola de cinema ...... 37 Figura 4 Trailer Cidade Mulher ...... 38 Figura 5 Fotos divulgação Carmen Santos ...... 40 Figura 6 Carmen Santos divulgação Cidade Mulher (1936)...... 41 Figura 7 Marlene Dietrich. Divulgação do filme Der Blaue Engel (1930) ...... 41 Figura 8 Marlene Dietrich. Foto divulgação do filme Der Blue Engel (1930) .... 42 Figura 9 Carmen Santos divulgação Cidade Mulher (1936) ...... 42 Figura 10 Carmen, estrela ...... 43 Figura 11 Mauro na direção de Cidade Mulher ...... 44 Figura 12 Irmãs Pagãs ...... 45 Figura 13 Atriz de Cidade Mulher ...... 45 Figura 14 Filmagem com "girls" do filme...... 46 Figura 15 Humberto Mauro e as "girls" do filme ...... 47 Figura 16 Mauro e Bandeira Duarte ...... 48 Figura 17 Heleno Cyrano, Carmen Santos e Mário Salaberry ...... 49 Figura 18 Heleno Cyrano em cena no filme Cidade Mulher ...... 50 Figura 19 ...... 58 Figura 20 Orlando Silva e as Irmãs Pagãs ...... 60 Figura 21 Número Tarzan, o filho de alfaiate. Sylvia Drummond, Mary Kler, José Vieira e Alice Figueiredo, da esquerda para direita...... 63

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 Publicidade filmes década de 1930 ...... 71 Gráfico 2 Publicidade no filme Cidade Mulher ...... 71

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

DFB – Distribuidora de Filmes Brasileiros

DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda

DN – Distribuidora Nacional S.A

IMS – Instituto Moreira Salles

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 13

1. O FILME E A DÉCADA DE 1930 ...... 21

1.1 Rio de Janeiro, a inspiração ...... 22

1.2 Governo Vargas, o Rádio e o Cinema Nacional ...... 25

1.3 Cidade Mulher e a indústria do cinema ...... 30

2. PRODUÇÃO E DIREÇÃO ...... 34

2.1 Carmen Santos: produtora ...... 34

2.2 Carmen Santos: a atriz ...... 39

2.3 O Diretor ...... 43

3. CIDADE DO SAMBA ...... 50

a) Dama do Cabaré ...... 52

b) Na Bahia ...... 55

c) Cidade Mulher ...... 58

d) Tarzan, o filho de alfaiate ...... 60

e) Outras canções ...... 64

3.1 Canção na ação ...... 67

3.2 A música como estratégia midiática ...... 69

4. CRÍTICA E RECEPÇÃO DO PÚBLICO ...... 72

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 75

APÊNDICE ...... 79

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 82

Base de dados ...... 86

Filmografia ...... 87 13

INTRODUÇÃO

O filme Cidade Mulher (1936), produzido pela Brasil Vita Filme1, da atriz Carmen Santos, foi dirigido por Humberto Mauro e possui trilha sonora composta em quase sua totalidade pelo sambista Noel Rosa. Em face do desaparecimento de inúmeros filmes desse período, como é o caso de Cidade Mulher, esse projeto se propôs a resgatar esse filme que, acreditamos, incluiu vários elementos significativos que refletem questões políticas sociais e culturais da época: o governo Vargas e a construção da nação - entre outros fatores, a partir da cultura e em especial da música popular brasileira que então se sedimentava na forma do samba; a obra de Noel Rosa; uma ficção sobre o Rio de Janeiro a emblemática Capital Federal; o trabalho de Humberto Mauro que acabara de realizar um grande sucesso com Favela dos meus Amores (1935) filmando inclusive em locação na favela e com negros, o que era inusual; e Carmen Santos entusiasta produtora e atriz dos temas nacionais e populares. O repertório musical, assim como os artigos de periódicos, foram imprescindíveis para esse resgate e para a compreensão da relação entre a imagem e o som, e entre o enredo em sua relação com a cultura e a sociedade no qual está imerso.

Além disso, este foi o único filme musicado por Noel Rosa – mesmo não sendo o único compositor do filme, a maior parte das músicas (seis) é de sua autoria -, por este motivo suas canções ganharam relevância para um resgate e análise mais completa do que foi o filme Cidade Mulher, lembrando da afinidade de Humberto Mauro com a música, e de Carmen Santos, mulher com ideais políticos e artísticos engajados no desenvolvimento do cinema nacional. Dessa maneira, buscou-se um entendimento das relações que a música brasileira estabeleceu com o cinema local.

Dentro dos estudos da história do cinema brasileiro podemos observar uma relação constante entre os filmes e a música popular mesmo antes do advento sonoro, com temáticas referentes ao carnaval e ao samba (SILVA, 2009, p. 46). Na década de 1930 no Brasil, alguns dos fatores que favoreceram essa relação podem ser identificados no contexto político - influenciados pelo governo de Getúlio Vargas que

1 Produtora fundada por Carmen Santos em 1933 com o nome de Brasil Vox Filme, tornando-se em 1935 Brasil Vita Filme, teve como principais produções Favela dos meus amores (1935), Cidade Mulher (1936), Argila (1940) e Inconfidência Mineira (1948).

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se propôs a "[...] redescobrir o Brasil e dar a ele uma identidade cultural" (LINO, 2000, p. 164) -; numa transformação social - com a afirmação de novos grupos sociais e novas formas de relação entre esses grupos principalmente na cidade do Rio de Janeiro, capital federal na década de 1930 (MONTEIRO, 2009, p. 7) -; e em meio a eles a afirmação de uma música popular - com a valorização de símbolos nacionais mestiços como o samba, eleito nesta década como ritmo nacional (VIANNA, 2012, p. 73).

Além dos aspectos políticos e sociais, o advento do som no cinema nacional a partir de 1929 desenvolveu uma relação direta com o rádio, sendo "[...] um fator indispensável e inspirador do cinema brasileiro a partir do sonoro [...]" (SCHVARZMAN, 2006, p. 2), aliado à indústria fonográfica que já movimentava o mercado musical brasileiro. O cinema sonoro, juntamente com produtores musicais estrangeiros de grandes gravadoras, impulsionou a produção dos filmes musicais nacionais na década de 1930, sendo o filme Cidade Mulher uma dessas produções que envolveu os artistas famosos do rádio, uma trilha sonora com grande apelo à música popular, além de sketches humorísticos.

Algumas das pesquisas relacionadas à música popular e cinema no Brasil da década de 1930, estudadas para este trabalho, não sugerem o enfoque que é o objetivo desta proposta de estudo. SILVA (2009) detalha o uso da canção ao longo da história do cinema brasileiro, onde o foco é claramente voltado para uma catalogação dessa forma musical presente e recorrente nos filmes nacionais. FREIRE (2009) aborda o papel da música brasileira dentro da ação do filme e como esta vai compor a sua narrativa, com um objetivo claro de uma análise audiovisual. COSTA (2006), traça um estudo sobre a transição do cinema mudo para o sonoro no Brasil, a fim de analisar as suas consequências e a forma como se estabeleceu a chegada do som ao cinema brasileiro. SCHVARZMAN (2006) observa as influências que o rádio vai exercer sobre a produção cinematográfica nacional, analisando principalmente os filmes Alô, alô Carnaval (1936) e A voz do carnaval (1933). Ressalta-se também uma pesquisa da Profa. Dra. Suzana Reck Miranda, que aborda o papel da indústria fonográfica e da música popular com considerações sobre o repertório musical do filme Coisas Nossas (1931) e que, a partir desta, procura tirar consequências sobre a imagem, abordagem que nos serviu de fundamentação e que pretendemos encetar. O que buscamos aqui foi o resgate possível do filme a partir de seu enredo e do

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repertório de canções, aprofundando a análise sobre as características musicais em sua relação possível com a narrativa. Além disso, através dos periódicos da época, em grande medida no Rio de Janeiro, podemos observar o que era a ‘propaganda’ pré-lançamento, mas também a expectativa em torno um filme Mauro/Noel, cujo lançamento tanto do filme como das músicas gravadas, habitual nos musicais brasileiros da época, obedeceu a uma estratégia até então pouco comum.

O Rio de Janeiro da década de 1930 era marcado por várias mudanças sociais e políticas, em especial o ano de 1936, momento em que surgem várias instituições no âmbito do Ministério da Cultura. Em 1935 o Carnaval já havia se institucionalizado no Distrito Federal e passava de festejo de organizações privadas como os jornais à alçada do Município sob a direção de Lourival Fontes2. As escolas de samba antes segregadas nos bairros distantes do centro são chamadas para desfilar no asfalto (SCHVARZMAN, 2006, p. 92). Nossa hipótese, diante dessas mudanças que estão se operando, é que Cidade Mulher dialogava diretamente com essa nova realidade. A busca de uma identidade nacional, como forma de coesão social em torno do governo de Vargas e de inserção no cenário internacional, tomou conta dos debates entre os principais intelectuais da época. É interessante observar que estes questionamentos tomavam conta de boa parte da América Latina, porém no Brasil, diferentemente dos seus “vizinhos”, a dificuldade em delimitar a discussão se dava por conta de seu vasto território e sua ampla mistura e miscigenação de culturas.

Getúlio editou decretos-lei, dentre os quais devemos destacar o 21.111 de 1932 que autorizava oficialmente a veiculação de anúncios em rádio - o que fez alterar radicalmente o caráter da programação para que "[...] o rádio fosse basicamente de diversão, para atrair o máximo de ouvintes" (CALDEIRA, 2007, p. 35) -, e também o decreto-lei 21.240 de 1932 que previa uma metragem obrigatória de filmes nacionais curtos nos programas das salas exibidoras da época, medidas que tiveram impacto sobre a cultura e a mídia.

A música popular ganhou mais espaço nos novos formatos de programas de rádio e nos filmes que começam a abrigar o som neste período. A exploração comercial criou uma nova relação entre o ouvinte e os autores da música, favorecendo

2 Anos depois, Lourival Fontes tornou-se o poderoso diretor da DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda.

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“a ampliação do mercado de trabalho para o músico e a expansão do número de ouvintes [...]” (FENERICK, 2002, p. 41).

A paisagem cultural do país começava a mudar. Segundo Miranda (2015), “não é difícil compreender porque o carnaval e o samba serão as estrelas máximas dos próximos sucessos de bilheteria do cinema brasileiro” (MIRANDA, 2015, p 43). O samba começou a integrar elementos sociais tanto de camadas populares – dentre eles muito timidamente negros - quanto de grupos intelectuais da cidade do Rio de Janeiro. Não foi somente o rádio veículo de influência na sociedade, pois o cinema falado passou a ser um grande aliado na divulgação e valorização da cultura musical popular, facilitando o crescimento do interesse público no Brasil como um todo, não sendo mais exclusivo da capital federal. (NAPOLITANO, 2009, p. 141).

É interessante observar que a música popular brasileira, na década de 1930 reconhecida na figura exclusiva do samba, saiu de um caráter ritualístico e proibido para assumir um papel de destaque na cultura do país. Era um estilo musical do "asfalto" e do "morro" ao mesmo tempo, sendo que "essa nova forma do samba urbano - daí em diante conhecido como samba carioca - afastou-se definitivamente do velho modelo do partido alto dos baianos [...]" (TINHORÃO, 1998, p. 293). Essa transformação musical foi motivada em uma parte por uma aproximação do samba a outras classes sociais, inclusive a elite do Rio de Janeiro, e em outra pelo Estado com a valorização de símbolos mestiços. Para melhor aceitação deste público mais elitizado, as rádios e boa parte das gravadoras “suavizavam” o samba com instrumentos de corda e com arranjos mais próximos da música europeia, perdendo assim muitas características de suas raízes rítmicas como o Lundu, o Samba de Umbigada, o Partido Alto e o Jongo, por exemplo. Artistas de renome e grandes gravadoras observaram o potencial deste acontecimento e favoreceram ainda mais a difusão deste estilo. Carvalho atribui à figura de Noel Rosa um dos personagens desse processo de transformação do samba, mais conhecido como “branqueamento”:

Foram o samba e a marchinha embranquecidos de Noel Rosa (o mocinho da Vila, na ironia de Wilson Batista, que fazia a apologia do malandro) e de Lamartine Babo que começaram a formular representações do país. Mas, ao fazê-lo, transportaram para a imagem do Brasil pedaços da identidade carioca forjados nos maxixes, choros e dos crioulos da praça Onze, do Estácio e da

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Mangueira: mulata, malandro, samba, violão, pandeiro, cavaquinho. (CARVALHO, 2004, p. 29).

Foi nesse contexto que o filme Cidade Mulher (1936), hoje desaparecido, foi produzido pela Brasil Vita Filme, dirigido por Humberto Mauro e com trilha sonora criada em sua grande parte pelo compositor Noel Rosa, escrevendo seis canções que para o filme: Cidade Mulher; Dama do Cabaré; Na Bahia (Noel Rosa e José Maria de Abreu); Numa noite à beira-mar; Morena Sereia (Noel Rosa e José Maria de Abreu) e Tarzan, o filho de alfaiate (Noel Rosa e Vadico). Além destas canções, ainda constam no filme, segundo o site da Cinemateca Brasileira3, uma canção sob o título Boi- Bumbá (Valdemar Henrique), e participações musicais de Assis Valente, Muraro, Raul Roulien e Heckel Tavares.

Cidade Mulher faz parte do repertório cinematográfico que compõe os filmes musicais da década de 1930, estilo com apelo popular e de bilheteria, com grande presença da música popular brasileira. O filme também foi buscar no mercado já consolidado do teatro brasileiro atores e profissionais especializados. Dentre estes, Henrique Pongetti, jornalista e dramaturgo brasileiro, ficou responsável pelo roteiro do filme – também escreveu para a película anterior da Vita Favela dos meus amores (1935). Tinha experiência em revistas ilustradas, estreando as primeiras peças para teatro no início da década de 1930.

O diretor, Humberto Mauro, aceitou o desafio de tornar o filme um êxito de público e crítica. Seu estilo de direção aliado ao seu gosto e proximidade com a música popular de certa maneira foram um diferencial nesta produção. Gostaríamos também de destacar a figura de Carmen Santos, dona da produtora Brasil Vita Filme, que sempre declarou ser comprometida com o desenvolvimento do cinema brasileiro. Carmen se apresentava como exemplo da mulher moderna e figura constante nos jornais e revistas da época.

Esta pesquisa buscou também compreender como se estabeleceram as estratégias de divulgação do filme Cidade Mulher através das canções de Noel Rosa,

3 CINEMATECA BRASILEIRA. Disponível em: Acesso em: 08 Out. 2014.

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já que alguns dados estudados demonstraram uma abordagem diferente dos filmes da década de 1930.

Neste sentido, esta dissertação teve como objetivo geral, a partir do resgate do filme Cidade Mulher (1936), compreender as relações que se estabeleceram entre o cinema brasileiro e a música popular durante os anos 1930. Os objetivos específicos foram: compreender o papel da canção dentro da ação fílmica; analisar o papel de Noel Rosa, Humberto Mauro e Carmen Santos na produção do filme e no seu resultado; identificar as relações midiáticas estabelecidas pelo filme e pela sua trilha sonora e os fatores sociais e políticos que influenciaram ou contribuíram na produção do filme.

O interesse por essa pesquisa se deu pela minha experiência profissional e acadêmica estar ligada à música popular, tanto brasileira quanto americana (Jazz), tendo estudado de maneira prática e teórica os assuntos que foram aqui abordados e que possibilitam uma melhor compreensão da relação e interação que a música brasileira estabeleceu e estabelece de maneira interdisciplinar com outros meios artísticos como o cinema.

Apesar de existirem vários estudos referentes ao cinema brasileiro da década de 1930, existem poucas pesquisas aprofundadas que estejam relacionadas ao filme Cidade Mulher, seja com o papel de resgate desta película e do seu roteiro, ou de investigar as relações que tenha estabelecido com a música e outras produções cinematográficas, até mesmo internacionais, desta mesma década. Os estudos encontrados até o momento - as pesquisas de FREIRE (2009), SILVA (2009), COSTA (2006), por exemplo, empreendem análises audiovisuais -, e não se aprofundam especificamente no filme Cidade Mulher e nas relações que o filme estabeleceu com a música e a mídia. A necessidade de uma melhor compreensão sobre este tema nos motiva a resgatar o filme, partindo de suas canções e de trechos da película documentados em periódicos da época, para identificar: as relações entre imagem e música, procurando compreender o papel da canção na ação fílmica, ao mesmo tempo que analisamos e identificamos as influências sociais e políticas presentes no filme, na música e em suas relações midiáticas; a direção de Humberto Mauro - reconhecido no Brasil e vindo de seu maior sucesso popular -, e como este marcou a produção do filme; e o papel de Carmen Santos que, além de seu engajamento com cinema, era também entusiasta e próxima de intelectuais que comungavam com o

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ideário comunista, e que desenvolvia um papel de liderança pouco comum às mulheres daquele período.

O método aplicado nesta pesquisa foi hipotético-dedutivo com abordagem qualitativa, além da pesquisa documental. Os procedimentos de pesquisa baseiam-se no levantamento de documentação e dados sobre o filme a partir de fontes da época disponíveis no arquivo da Biblioteca Nacional4 e Cinemateca Brasileira5 - como jornais e revistas de crítica cinematográfica -, no Centro do Acervo Histórico Alex Viany6 - críticas de filmes realizadas pelo próprio Viany -, Instituto Moreira Salles7 - onde podemos encontrar diversas informações sobre produções cinematográficas brasileiras da década de 1930 e também os registros fonográficos deste período; no site da Biblioteca Digital de Artes e Espetáculos8 – revistas Cinearte e A Scena Muda -, além de artigos científicos publicados a respeito do tema proposto e preciosas gravações musicais.

Durante aproximadamente um ano, efetuamos o levantamento de artigos sobre o filme em pelo menos quinze editoriais da época, a sua maioria da cidade do Rio de Janeiro. Foi efetuado uma transcrição de todo o material encontrado com o objetivo de facilitar a localização e leitura dos mesmos. Através desses diferentes documentos, e a partir do seu cruzamento, pretendemos chegar à recuperação possível do filme, com o intuito de compreender o papel da canção dentro da ação fílmica, além de uma análise do contexto no qual o filme se insere, pois "[...] só assim se pode chegar à compreensão não apenas da obra, mas também da realidade que ela representa" (FERRO, 2010, p. 33).

Esta dissertação foi estruturada no sentido de recuperar o que foi o filme Cidade Mulher a partir de seus eixos principais: a cidade do Rio de Janeiro, a produtora Carmen Santos, o diretor Humberto Mauro e a trilha sonora composta especialmente por Noel Rosa. Como as informações encontradas não revelaram uma ordem lógica do roteiro - já que os artigos de jornais e os dados bibliográficas contam trechos e momentos específicos da película, fatos isolados -, além de muitas lacunas que ainda

4 HEMEROTECA DIGITAL. Disponível em: . 5 CINEMATECA BRASILEIRA. Disponível em: . 6 ACERVO DOCUMENTAL ALEX VIANY. Disponível em: . 7 INSTITUTO MOREIRA SALLES. Disponível em: . 8 BIBLIOTECA DIGITAL DE ARTES E ESPETÁCULOS. Disponível em: .

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existem, decidimos não recontar o filme em um capítulo específico, fazendo um resgate a partir do momento que falamos dos seus principais acontecimentos e personagens. Sendo assim, o filme foi reconstituído gradativamente, também através das músicas, sendo possível relacionar cenas e detalhes da produção com o tema de cada capítulo.

Neste sentido, o primeiro capítulo, O filme e a década de 1930, procurou mostrar como o filme se relaciona com a cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, assim como os acontecimentos políticos, sociais e culturais que envolviam o país na década em questão.

O segundo capítulo é dedicado aos principais responsáveis pelo filme: Carmem Santos e Humberto Mauro. Carmen, com grande investimento no desenvolvimento, planejamento e produção (sobretudo na divulgação e lançamento do filme Cidade Mulher). Discutimos também a direção de Humberto Mauro na produção e como o seu estilo de direção e improvisação influenciaram o filme desde a pré-produção, inclusive nos aspectos musicais.

O terceiro capítulo vai tratar da relação da música popular com o filme Cidade Mulher. Desta maneira analisamos as músicas compostas por Noel Rosa, especialmente para o filme, assim como a importância do compositor dentro do cenário musical da década de 1930. Neste capítulo também abordamos a canção na ação fílmica e a divulgação do filme que ocorreu de uma maneira pouco comum aos filmes produzidos na mesma década, utilizando a música inédita como uma das principais ferramentas de publicidade. No quarto capítulo, relatamos como foi a recepção por parte do público e da crítica especializada em cinema da década de 1930.

Finalmente, é importante salientar a escassez de documentos e pesquisas científicas sobre o filme Cidade Mulher, salvo os jornais, revistas e os registros fonográficos das canções. De qualquer forma, foi uma satisfação pessoal trazer à luz a única película com trilha sonora original de Noel Rosa, na esperança de contribuir com informações que ajudem a compreender melhor o cinema e a música do período em questão.

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1. O FILME E A DÉCADA DE 1930

No final do ano de 1935 as filmagens de Cidade Mulher foram iniciadas, gerando expectativa por parte da imprensa. A verdade é que o filme anterior da Brasil Vita Filme, - Favela dos meus amores (1935) - sendo também o primeiro da produtora, foi muito bem recebido pelo público e pela crítica especializada em cinema do Rio de Janeiro.

Este primeiro filme também foi dirigido por Humberto Mauro e teve cenas gravadas na favela carioca (Morro da Providência), pessoas comuns utilizadas como figurantes e cenas com negros, o que era incomum para a época. Esta película ganhou um destaque maior do que se esperava, gerando um grande interesse sobre o próximo filme da Vita, Cidade Mulher (1936).

A sinopse do filme, disponível no site da Cinemateca Brasileira, diz o seguinte: "Um empresário teatral está sendo perseguido por uma série de insucessos. Nem mesmo as enormes figas que manda colocar na caixa do teatro o arredam da nefasta 'macaca'. Sua filha, juntamente com o namorado, se propõe a auxiliá-lo, o que de princípio não é aceito. Afinal ele entrega os 'pontos'. Os jovens namorados recorrendo ao patrocínio de uma baronesa excêntrica e rica, fanática protetora de cães, montam uma revista que obtêm sucesso invulgar, salvando com isso a situação financeira do velho empresário. Afinal os jovens se casam e ... seis anos depois são pais de um garoto que apesar de sua pouca idade alimenta ideias de fazer concorrência ao pai e ao avô nos negócios teatrais”. 9

O roteiro foi escrito por Henrique Pongetti e a produção foi de Carmen Santos, que também atuou no filme. Noel Rosa foi o principal compositor com 6 canções. Além do poeta do samba também estão presentes: Assis Valente, José Maria de Abreu, Muraro, Raul Roulien, Hekel Tavares, Valdemar Henrique, Humberto Porto e Juracy Araújo, e Custódio Mesquita. Os principais intérpretes foram: As Irmãs Pagãs, Bibi Ferreira10, Assis Valente, Mara Costa Pereira, Orlando Silva, José e Maria Amaro, Joel

9 CINEMATECA BRASILEIRA. Disponível em: . Acesso em 14 Ago 2015. 10 Bibi Ferreira é uma das poucas participantes do filme ainda viva, porém, apesar das inúmeras tentativas, não conseguimos contato para uma entrevista que pudesse mostrar a visão da atriz e cantora sobre o filme Cidade Mulher.

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de Almeida e Bando Carioca. No decorrer deste trabalho relacionamos os números musicais com as canções e os seus intérpretes, como veremos adiante. O lançamento do filme ocorreu no cine Alhambra, Rio de Janeiro, no dia 27 de julho de 1936.

Entre os atores e atrizes, os principais foram: Jayme Costa (empresário teatral), Sarah Nobre (baronesa), Carmen Santos (Dóris, filha do empresário), Mário Salaberry (namorado de Dóris), Bibi Procópio Ferreira (Lilli), Bandeira Duarte (cabelereiro de cães), Heleno Cyrano (filho de Dóris) e Mary Kler (companheira de Tarzan)11.

1.1 Rio de Janeiro, a inspiração

Cidade de amor e aventura Que tem mais doçura Que uma ilusão

Cidade mais bela que o sorriso, Maior que o paraíso Melhor que a tentação

Cidade notável, Inimitável, Maior e mais bela que outra qualquer. Cidade sensível, Irresistível, Cidade do amor, Cidade Mulher.

Cidade de sonho e grandeza Que guarda riqueza Na terra e no mar

Cidade padrão de beleza, Foi a natureza Quem te protegeu

(Trechos da canção título do filme, Cidade Mulher, de Noel Rosa)

Inevitável que o Rio de Janeiro seja um dos aspectos importantes a serem tratados dentro da produção Cidade Mulher, afinal, o leitmotiv do filme foi a capital

11 Elaboramos uma ficha técnica do filme, disponível no apêndice desta dissertação, que resume os detalhes da produção.

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federal, sendo a película um reflexo do discurso de modernização e do ideário de cidade maravilhosa que se difundia na década de 1930.

A cultura da modernidade, das “cidades modernas”, traz justamente as dimensões de uma transformação capitalista do mundo, assim como se torna sujeito de manifestações culturais e artísticas. Nesta época, “[...] o Brasil se ligava a uma situação de subordinação à Europa e ao romantismo, na ausência de um passado clássico, compusera uma versão idealizada de um mito fundador para o país”. (PESAVENTO, 2002, p. 158).

O Rio de Janeiro, capital federal no início do século XX, ainda possuía traços e características coloniais mesmo com o crescimento acelerado por ser sede política e econômica do país. A chamada “cidade velha” era desordenada e suja, com ruas tortas e sem qualquer iluminação. Além disso, ainda pairava “[...] sobre a cidade e seus habitantes, o terrível espectro das epidemias, o fantasma da sinistra febre amarela [...]” (PESAVENTO, 2002, p. 158) afastando estrangeiros e possíveis turistas que chegavam ou passavam pelo porto da cidade. Neste sentido, tornava-se necessário transformar e modernizar a estrutura física da cidade que só era admirada pela sua beleza natural.

O processo modernizador implantado no Rio de Janeiro pelo prefeito Pereira Passos (1902 –1906) não foi democrático, excluindo boa parte dos pobres, trabalhadores, negros e mestiços que viviam no centro, surgindo assim as primeiras favelas. Um dos marcos desse processo de transformação urbanística foi a construção da avenida Central:

A partir principalmente da abertura da Avenida Central, hoje Rio Branco, com a destruição dos cortiços, o Centro foi adquirindo a característica atual de lugar de trabalho. Os pobres foram expulsos para novos bairros da Zona Norte ou para favelas espalhadas por toda a cidade. Os ricos, já contando com o túnel novo ligando Botafogo a Copacabana, começam a povoar as praias da Zona Sul. (VIANNA, 2012, p. 22).

Conforme Hermano Vianna, as intervenções no traçado e na arquitetura da cidade acomodaram no espaço as seculares divisões sociais. Assim o projeto de “cidade-ideal” aos moldes de uma elite europeia ultrapassa o primeiro sentido de modernização arquitetônica e passa a influenciar a estruturação social da cidade

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carioca. Os pobres, agora afastados do centro e separados da elite, começam a sofrer com restrições deliberadas relacionadas aos seus costumes e hábitos.

[...] cães vadios, vacas, mendigos, pessoas descalças ou sem paletó são impedidos de circular livremente pela cidade, como até então faziam. Além disso, ordena-se a destruição dos quiosques, por serem redutos de sociabilidades condenáveis. [...] buscava-se eliminar da vista a pobreza, que, por convicção da elite, era suja e perigosa. (PESAVENTO, 2002, p. 176).

Buscava-se construir uma cidade que combinasse com o imaginário de uma capital brasileira ideal, que inspirasse e fosse conhecida pela sua beleza e modernidade, mesmo que a realidade vista fosse diferente do discurso adotado. Este discurso se aprofunda nos anos 1930 com outras imagens, habitantes e manifestações, com os negros, samba e o morro. Neste caso o cinema foi um importante aliado da República para a construção no imaginário da população, de um país e de sua capital como uma cidade maravilhosa. (SALLES, 2013, p. 10). O filme Cidade Mulher foi parte da construção deste discurso propagado pelo cinema. A letra da canção de Noel Rosa, que está no início deste capítulo, corrobora com o discurso de exaltação da cidade, deste imaginário ideal onde são escondidos e ignorados os aspectos da realidade carioca. Por sinal esta é a única canção que o compositor escreveu em homenagem ao Rio de Janeiro.

Os artigos de jornais encontrados antes do lançamento do filme, com caráter publicitário, reforçam o discurso das imagens do filme, relatando que a película é um “[...] cartaz vivo, animado, fulgurante da nossa metrópole feiticeira [...]”12. A canção de Noel Rosa Cidade Mulher, que leva o título do filme, não era a única a enaltecer a cidade maravilhosa. A Gazeta de Notícias13anunciou que as Irmãs Pagãs interpretaram a canção Cidade Milagre, marcha de Humberto Porto e Juracy Araújo que também homenageia o Rio de Janeiro.

Dessa maneira, esse filme que reunia um caráter popular, musical e com os artistas mais conhecidos do grande público, de uma certa maneira, ajudou a compor

12 JORNAL A NOITE, 17 de julho de 1936. Todos os artigos de jornais citados neste trabalho, foram copiados do site da Hemeroteca Digital que pertence a Biblioteca Nacional. A maioria destas matérias não possui assinatura de um autor. 13 GAZETA DE NOTÍCIAS, 26 de janeiro de 1936.

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uma ideia de modernidade da capital federal, imersa em um contexto político movimentado, como era o da década de 1930 no Brasil e fora dele.

1.2 Governo Vargas, o Rádio e o Cinema Nacional

A década de 1930 foi marcada pelo governo autoritário de Getúlio Vargas que interferiu de forma direta na produção cultural do país. Um exemplo disso foram as mudanças no rádio após o decreto-lei 21.111 de 1932 que autorizava a veiculação de anúncios, perdendo o seu caráter educativo original e passou a ser eminentemente um veículo de massa, como convinha a uma sociedade moderna e a um regime autoritário.

[...] alterou-se radicalmente o caráter da programação. O novo objetivo das emissoras - vender publicidade e ter lucro - fez com que o caráter do rádio fosse basicamente de diversão, para atrair o máximo de ouvintes. (CALDEIRA, 2007, p. 35).

Outro exemplo é o decreto-lei 21.240 de 1932, mais precisamente no Art.13, que prevê uma metragem de filmes nacionais educativos – curtas-metragens – a serem obrigatoriamente incluídos na programação de cada mês. Estes atos, ajudaram a impulsionar a produção artística no país, em especial a cinematográfica com os filmes educativos e documentários.

Com a chegada do cinema sonoro no Brasil em 1929, os filmes musicais, como Cidade Mulher, tornaram-se sucesso no decorrer da década de 1930. O cenário político daquela época foi importante para este crescimento de popularidade do cinema nacional. Abrimos aqui um parêntese para explicar de maneira rápida os acontecimentos que marcaram o final da década de 1920 e início de 1930.

Os anos entre 1922 e 1924 assistiram à Semana da Arte Moderna, fundação do Partido Comunista, primeira rebelião tenentista, marcos importantes para definição dos acontecimentos futuros nos campos político e intelectual do país. Neste período Artur Bernardes havia sido eleito presidente, ocasionando um protesto por parte de

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jovens oficiais conhecidos como “tenentes”, rebelião que marcou o primeiro levante tenentista.

A Revolução de 1924 foi mais bem preparada, tendo como objetivo expresso derrubar o governo de Artur Bernardes. Nos anos 20, Bernardes personificou o ódio que os “tenentes” tinham da oligarquia dominante. No curso de 1923, houve uma articulação de militares em torno de Nilo Peçanha, visto como possível líder de um novo movimento rebelde. (FAUSTO, 1995, pp. 308).

Durante os anos seguintes aconteceram outras revoltas onde foram formadas alianças políticas e militares. Destacamos aqui a Coluna Prestes, formada pela “coluna paulista” e por forças rebeldes do Rio Grande do Sul sob a liderança do Capitão Luís Carlos Prestes, percorrendo várias cidades do interior do país em um movimento contra as oligarquias políticas e econômicas.

A alternância de poderes entre Minas e São Paulo se manteve ao fim do mandato de Bernardes, sendo então eleito o presidente Washington Luís, que havia sido candidato único naquelas eleições. Foi então no mandato do presidente eleito que se iniciou uma desestabilização do quadro político, quando o mesmo em 1928 indicou que apoiaria um outro candidato paulista, Júlio Prestes de Albuquerque, sendo que “[...] essa cisão acabaria por levar ao fim da Primeira República” (FAUSTO, 1995, p. 319).

Desta maneira, iniciaram-se negociações para uma candidatura que fizesse oposição ao candidato do então presidente da república e através de um acordo entre dois estados brasileiros – e Rio Grande do Sul – Getúlio Vargas torna- se candidato, iniciando sua jornada rumo à presidência da república sob a bandeira da recém-formada Aliança Liberal (LEVINE, 2001, p. 39), que defendia primordialmente a independência do Judiciário, anistia aos presos políticos de 1922 e priorizava a industrialização e medidas de proteção ao trabalhador.

Júlio Prestes venceu as eleições de março de 1930. A conspiração revolucionária perdia força até que João Pessoa (candidato a vice de Getúlio) foi assassinado em Recife dando início ao estopim da revolução. Segundo Fausto “[...] o crime combinava razões privadas e públicas [...] (FAUSTO, 1995, p. 323), mas só foi dado destaque para as questões públicas para não arranhar a figura de João Pessoa

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como mártir da revolução. Após ações militares, com confrontos e tomadas de importantes postos das forças armadas, iniciados nos estados de Minas Gerais, seguidas por estados do sul e nordeste, além de São Paulo, os revolucionários encaminharam a posse do novo presidente da república, Getúlio Vargas, em novembro de 1930.

No governo de Getúlio, a necessidade de criação de unidade nacional – ao contrário do federalismo da República Velha tomou conta dos debates que buscavam uma “[...] definição dos caminhos a serem seguidos para se alcançar a modernidade” (LINO, 2000, p.164). É interessante observar que estes questionamentos tomavam conta de uma boa parte da América Latina, porém no Brasil, diferentemente dos seus vizinhos, a dificuldade em delimitar a discussão se dava por conta de seu vasto território e sua ampla mistura e miscigenação de culturas. Neste sentido, “[...] redescobrir o Brasil e dar a ele uma identidade cultural, foi uma das tarefas a que se impôs o Estado instaurado após 1930”. (Idem, 2000, p. 164). O que é ser brasileiro? O que podemos chamar de música brasileira? E ainda, o que é o cinema brasileiro? Interessado em criar novas coesões sociais que dessem sustentação ao novo regime, o governo de Vargas tomou medidas que favoreceram o desenvolvimento da produção cultural no país, estendendo-se também ao uso da cultura de massa em especial do rádio, além da indústria fonográfica, sendo esta apenas uma das medidas que se pretendiam estabelecer para a construção de uma coesão em torno de uma ideia de nação e do nacional. Segundo Miranda (2015),

[...] podemos dizer que desde o final da década de 1910 havia, no Brasil, debates integrados a um projeto modernista que envolviam a valorização de uma cultura rural como elemento importante para a construção de uma cultura nacional e genuína. Ritmos musicais interioranos e do nordeste brasileiro (emboladas, cocos, batuques, cateretês, cururus...) são valorizados pelos intelectuais e artistas e passam a influenciar tanto as composições eruditas quanto as populares urbanas. (MIRANDA, 2015, p. 34).

A situação política brasileira na década de 1930 com valorização dos símbolos nacionais e a busca de unidade nacional estão refletidos também no filme Cidade Mulher. Nos materiais sobre o filme enviados aos jornais antes do lançamento, há uma preocupação em enaltecer o que é feito no Brasil, assim como tudo o que é produzido

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com características que possam ser entendidas como símbolos nacionais. O jornal O Radical em 3 de junho de 1936, traz uma matéria com esses aspectos:

E o resultado, onde se sente ainda a visão panorâmica de Humberto Mauro à direção, foi a vibrante brasilidade que ritma as cenas de “Cidade Mulher” – afinal de contas, um filme que falando de todo o Rio, de suas características de capital do prazer sem fadiga, de cidade única pela sua fotografia e pelas suas condições dentro do tempo e do espaço, está falando do país inteirinho, de sua alma verde- amarela, álacre, porém profunda, nas letras dos sambas e na espontaneidade de nossa civilização...14

Uma montagem de fotos no Correio Paulistano mostra um pouco dos cenários do filme, valorizando as imagens tradicionais da cidade carioca.

Figura 1 Foto de divulgação do filme Fonte: Correio Paulistano, 30 de agosto de 1936

Seguindo o mesmo discurso, a Gazeta de Notícias publicou que “[...] agora, Carmen Santos, mediante a sua Brasil Vita Filme, vai apresentar ao seu público um espetáculo eminentemente nacionalista [...]”15. O Jornal do Brasil também exibe no título da matéria: “Cidade Mulher já é um pouco do Brasil exuberante - Mara Costa

14 O RADICAL, 3 de junho 1936. 15 GAZETA DE NOTÍCIAS, 07 de junho de 1936.

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Pereira, intérprete de uma macumba genial”16. Em todo o momento estes periódicos, que recebem da produtora o material publicitário do filme, procuram reforçar o discurso de um filme que fala do Brasil e da sua cultura.

Figura 2 Cena "A Macumba" com Mara Costa Pereira Fonte: O Cruzeiro, 21 de março de 1936.

16 JORNAL DO BRASIL, 07 de junho de 1936.

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Mara interpretou o número musical A Macumba com a música Boi-Bumbá de Waldemar Henrique. Vemos uma busca pela afirmação dos símbolos da cultura afro- brasileira que começava um processo de valorização e reconhecimento. Vale ressaltar também que tanto Mara como Waldemar eram naturais do estado do Amazonas. Iremos abordar este número musical mais adiante. Na imagem acima podemos observar Mara ao centro, em um cenário onde estão representados coqueiros e uma paisagem típica e representativa do Brasil, além de músicos negros abaixados tocando instrumentos de percussão. Aliás, as músicas oriundas das tradições afro- brasileiras também estarão mais presentes nos meios de comunicação da época.

A indústria fonográfica e cinematográfica brasileira se desenvolveu rapidamente nesse período de valorização dos símbolos nacionais. A chegada de produtores de outros países, Estados Unidos e Europa ao Brasil, também foi um outro fator relevante para o desenvolvimento do mercado musical e cinematográfico, principalmente dos filmes sonoros.

1.3 Cidade Mulher e a indústria do cinema

Cidade Mulher faz parte do rol de filmes musicais produzidos no Brasil após a introdução do som, onde houve uma relação constante entre a indústria fonográfica (principalmente com a chegada de produtoras musicais dos EUA), o teatro e o rádio, fonte de profissionais e técnicos com mais experiência para a produção dos filmes locais.

A chegada do som no cinema brasileiro é marcada pelo filme Acabaram-se os otários (1929), dirigido por Luiz de Barros, que entrou para a história do cinema brasileiro como “o primeiro filme completamente sonorizado feito no país” (VIANY, 1959, p. 98), utilizando um aparelho adaptado e inventado pela própria produtora, chamado Sincrocinex. Até então os filmes sonorizados que chegavam ao Brasil eram em língua estrangeira, Barros com o seu sistema improvisado de discos de 78rpm proporcionou “[...] o primeiro contato de grande parte dos espectadores com o próprio cinema sincronizado [...]” sendo também “o primeiro falado em português (FREIRE, 2013, p. 13).

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Os principais diretores neste período que iniciaram os experimentos e produções com o cinema sonoro no Brasil foram Paulo Benedetti e Wallace Downey. Benedetti era um italiano que começou a efetuar vários experimentos sonoros desde 1912 com um processo de sincronização da imagem ao som batizado de Cinematrofonia. Por volta de 1927 produziu também curtas-metragens musicais na cidade do Rio de Janeiro. Em 1929, um destes filmes foi realizado com o Bando dos Tangarás (formado por Almirante, , Henrique Brito, Noel Rosa e Alvinho), com gravação de quatro músicas, “[...] dublando seus próprios discos para a câmera, entrando, assim, as imagens em sincronia com as músicas pré-gravadas” (COSTA, 2012, p. 4). Neste momento Noel Rosa também iniciou uma trajetória no cinema, e suas músicas estariam mais presentes nas produções seguintes.

Wallace Downey era produtor da Columbia Discos que chegou ao Brasil em 1928 para trabalhar como diretor artístico e “[...] se tornou um personagem importante na criação da indústria do rádio e do disco no país” (SILVA, 2009, p. 69). Downey foi responsável por um sucesso de público em 1931 com o filme musical Coisas Nossas, que contava com a popularidade do cantor de modinhas Paraguassú, que já estava presente também no filme Acabaram-se os otários (1929), além de outras canções de vários artistas que já faziam sucesso no rádio e que possuíam contratos com a Columbia (MIRANDA, 2015, p. 32). Coisas Nossas (1931) inaugurou um modelo de produção de filmes musicais, caracterizados por números seguidos de canções e com muita comédia. A canção de Noel Rosa São coisas nossas, foi inclusive inspirada neste filme. (SILVA, 2009, p. 66).

Adhemar Gonzaga, produtor e diretor da Cinédia, foi responsável por vários filmes no gênero musical a partir da década de 1930, como Alô alô Brasil (1935). Vários cantores e compositores participaram das produções de Downey e Gonzaga, como por exemplo: Lamartine Babo, Noel Rosa, Francisco Alves, Mário Reis, Aurora Miranda, , Almirante, Dircinha Batista, entre outros, todos estes com importância incontornável naquele período, estendiam seu sucesso às telas de cinema. (COSTA, 2012, p. 6). Segundo João Luiz Vieira, o fato de ter artistas famosos nos filmes da Cinédia era garantia de simpatia do público.

[...] a inovação do som permitiu a visualização das vozes de cantores e cantoras já populares no disco e no rádio, ao ritmo de sambas e

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marchinhas inscritos, por sua vez, no universo maior do carnaval [...] a união entre o cinema e a música brasileira, identificada para sempre com o cinema que se fez no Rio de Janeiro, possibilitou a sobrevivência e garantiu a permanência do cinema brasileiro nas telas do país. (VIEIRA, 1987, p. 141).

De fato, nos filmes nacionais produzidos nesta década, a marca maior do que pode ser chamado de cinema brasileiro “esteja mais na multiplicidade do que ouvimos do que no que vemos nas telas” (FREIRE, 2009, p. 10), principalmente com os filmes musicais produzidos nos anos seguintes ao advento sonoro do Brasil.

Outro importante diretor da época foi o próprio Humberto Mauro. Em 1933 dirigiu Ganga Bruta produzido por , porém este filme com temáticas fortes, que tinha como alvo um público de classe média letrada, não obteve sucesso gerando dívidas para a produtora de Gonzaga. Essas “[...] dificuldades com a aceitação de seus primeiros projetos sonoros, em contraposição ao sucesso do musical de Coisas Nossas, Wallace Downey, faz com que Gonzaga siga nas próximas produções o modelo musical, unindo-se ao norte-americano” (SCHVARZMAN, 2008, p. 88).

No Brasil, os produtores cinematográficos encontravam grandes obstáculos para trabalhar, seja pela dificuldade em conseguir equipamentos de qualidade, ou em achar profissionais capacitados e com experiência em cinema, tanto em aspectos técnicos de imagem quanto de som. Carmen Santos, em entrevista ao Correio da Manhã17, disse que “[...] o cinema falado não pode improvisar artistas com facilidade. Necessitamos da colaboração do teatro [...]” – apontando a dificuldade em encontrar atores com boa desenvoltura para atuar nas telas, principalmente por conta da passagem do cinema mudo para o sonoro, além dos problemas técnicos pela dificuldade em se obter os equipamentos cinematográficos de captação sonora e visual mais recentes e de melhor qualidade, como confirmado por Carmen quando afirma que em Cidade Mulher “[...] muitos dos defeitos de “Favela” já estão sendo abolidos, sobretudo quanto ao som e à difusão da luz [...]”.

Além disso, há muita ênfase no teatro, onde foram buscar profissionais com grande experiência (como já haviam feito os americanos na Broadway) como Jayme

17 CORREIO DA MANHÃ, 02 de fevereiro de 1936.

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Costa, Sarah Nobre e Mário Salaberry, além de Henrique Pongetti para o roteiro e Rosenmayer para os cenários do filme.

Ao passo que os equipamentos mais modernos como o Movietone chegavam ao Brasil e nas salas de cinema, ainda existia uma deficiência em qualificação profissional para o melhor proveito das novas tecnologias. Costa (2006) afirma que os técnicos da época não tinham experiência com o cinema, mas trabalhavam em funções da “mesma área”, “[...] se não trabalhara com cinema tinha ligação com música, o que estabelecia uma ponte possível para o trabalho com o som”. (COSTA, 2006, p. 125).

Ciente de que estamos lidando com um material publicitário relacionado ao filme Cidade Mulher, vale ressaltar que alguns cronistas publicaram, em data próxima a estreia, artigos que valorizavam também uma melhora na produção dos cenários, tendo em vista o investimento feito por Carmen nos aspectos visuais do filme, buscando “[...] cenógrafos puramente cinematográficos [...]”18 como Rosenmayer.

Os materiais encontrados também sugerem uma grande expectativa de que o cinema brasileiro como um todo pudesse estar evoluindo para fazer frente à produção hollywoodiana. Esse otimismo em torno da industrialização do cinema nacional é devido também ao fato da Brasil Vita Filme ter estreado o filme Favela dos meus amores e logo em seguida iniciado a produção do filme Cidade Mulher.

E o que já se dá, pelo menos, com a Brasil Vita Filme, a empresa que Carmen Santos fundou e preside. Faz um mês que “Favela dos meus amores” teve sua estreia na Cinelândia, e essa produtora nacional já apressa, neste momento, a filmagem de Cidade Mulher, uma revista escrita por Henrique Pongetti para ser dirigida por Humberto Mauro.19

Diante dos esforços de Carmen e Mauro, com a resolução de problemas de captação de som e imagem enfrentados em Favela dos meus amores como vimos anteriormente, acreditamos também que Cidade Mulher teve uma produção pouco comum em relação aos outros filmes musicais nacionais que foram lançados até o

18 DIÁRIO CARIOCA, 07 de junho de 1936. 19 DIÁRIO DA NOITE, 10 de dezembro de 1935.

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ano de 1936, procurando criar um repertório musical original, assim como desenvolver um elo entre a ação e a canção na película. Porém, antes de falarmos dos aspectos musicais, é necessário compreender como seu deu a produção do filme abordando as figuras de Carmen Santos e Humberto Mauro.

2. PRODUÇÃO E DIREÇÃO

Para a produção do filme Cidade Mulher consideramos três eixos principais: Carmen Santos, Humberto Mauro e a música de Noel Rosa. Neste capítulo desenvolveremos a relação que diretor e produtora estabeleceram com esse trabalho tanto sob um olhar artístico, seja pela atuação de Carmen ou do olhar cinematográfico de Mauro, quanto dos acontecimentos que envolveram a pré-produção.

A parceria entre Carmen e Mauro já vinha desde o filme Sangue Mineiro (1929), onde “[...] formavam um discreto contraponto às lideranças de Adhemar Gonzaga e da Cinédia [...]” (PESSOA, 2006, p. 5). Após romper com a produtora de Gonzaga, Mauro começou a trabalhar para Carmen na Brasil Vita Filme, onde primeiramente realizou quatro filmes curtos: As sete maravilhas do Rio de Janeiro, Inauguração da VII Feira Internacional de Amostras do Rio de Janeiro, General Osório e Pedro II, todos no ano de 1934 (SCHVARZMAN, 2000, p. 84). A parceria na Vita acabou justamente após o lançamento do filme Cidade Mulher, que sucedeu a Favela dos meus amores, maior sucesso da produtora.

2.1 Carmen Santos: produtora

Carmen Santos era atriz desde os tempos do cinema silencioso. Mulher determinada, tinha como ideal o desenvolvimento do cinema brasileiro tanto como linguagem artística como em termos de indústria.

Mesmo que na década de 1930 a autonomia feminina tenha deixado de ser uma aspiração restrita às mulheres da elite social, "[...] a pretensão era recebida com grande reserva por amplos setores da sociedade" (PESSOA, 2006, p. 11). Para

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Carmen Santos estes fatos não aparentavam ser um grande problema, e ela estava sempre em matérias de jornais onde divulgava seus trabalhos, mas também a sua personalidade, onde se definia como uma pessoa de princípios e objetivos coletivos a serem alcançados.

Carmen era apresentada como exemplo da mulher moderna; uma empreendedora que reunia os predicados femininos de beleza, bondade e abnegação ao traço de liderança, dinamismo e determinação, antes restritos aos homens (PESSOA, 2006, p. 11).

Carmen era uma imigrante portuguesa pobre, que desde os seus 20 anos se relacionava com Antônio Seabra (empresário da indústria têxtil), o que lhe garantiu estabilidade financeira e cumplicidade para dedicar-se aos projetos cinematográficos. Apesar de ser uma figura pública constante nos jornais, a sua vida particular era mantida relativamente longe da publicidade. Diante da dificuldade em legitimar o seu posto de empresária no meio cinematográfico, sempre foi levada a adotar diversas estratégias para conseguir realizar os seus projetos; por este motivo envolvia-se em eventos e tomava decisões, algumas polêmicas, além de se relacionar com pessoas influentes seja no meio artístico, publicitário ou político.

O filme Cidade Mulher foi apenas o segundo filme longo da produtora Brasil Vita Filme, e Carmen se destacou principalmente pela sua força de mulher engajada com o desenvolvimento nacional, ocupando um cargo de liderança em uma época que as mulheres não possuíam uma voz atuante perante a sociedade.

Um exemplo do seu papel nos bastidores da produção, representando bem a personalidade de Carmen, foi um jantar em sua residência que marcou e movimentou o meio cinematográfico na cidade carioca daquele ano de 1936. A produtora decidiu homenagear Conchita Montenegro e Raul Roulien, para isso convidou todos os críticos cinematográficos e colunistas dos principais jornais do Rio de Janeiro. Na noite do evento Carmen fez um discurso sobre o cinema brasileiro com uma reflexão sobre o intercambio artístico e cultural com outros povos. É interessante observar que, em um período de grande valorização e afirmação da nacionalidade brasileira, a sua fala tenha sido a favor da entrada e do intercâmbio de companhias estrangeiras no país: “[...] nacionalizar demasiado o Brasil seria despovoá-lo? É fazê-lo voltar à pré-história”,

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afirma a atriz e continua: “[...] considero, pois, inábil e deselegante a nossa desconfiança e prevenção contra as empresas estrangeiras [...]”.20 Para Carmen o cinema brasileiro deveria se basear na confraternização de todos os elementos para um melhor reconhecimento do Brasil no estrangeiro.

Nesta noite Carmen também revelou que pretendia fundar uma escola cinematográfica com o lucro do filme Cidade Mulher. Este fato foi noticiado em praticamente todos os jornais da época, e criou uma grande expectativa sobre o cumprimento da promessa da produtora, com a criação inclusive de uma comissão formada por Mário Nunes, Pedro Lima, Dr. Mario Peçanha de Carvalho e L. S. Marinho para garantir a realização dessa ideia.21 Neste mesmo evento, como relatam as matérias a seguir, foi assinada a ata de fundação, que infelizmente não chegou a existir realmente, até por quê a renda do filme, ao que parece, não foi tão grande quanto se esperava.

20 GAZETA DE NOTÍCIAS 09 de Julho de 1937. 21 GAZETA DE NOTÍCIAS 10 de Julho de 1937.

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Figura 3 Presentes no jantar da casa de Carmen Santos que firmaram o compromisso com a fundação da escola de cinema Fonte: Diário de Notícias, 09 de julho de 1936.

A escola de cinema não se tornou realidade, mas durante muitos dias foi assunto nos jornais, o que ajudou a divulgar ainda mais o filme Cidade Mulher, mostrando o idealismo de Carmen Santos, seu devotamento ao cinema brasileiro, além do viés educativo e de elevação que inspirava pessoas, como ela, próximas ao Partido Comunista. No jornal A Noite foi publicada uma entrevista sob o título “Carmen Santos e o comunismo”, em que a produtora tenta esclarecer que não pretende manter pública a sua opção política, esclarecendo que nos filmes da Vita (Favela e Cidade Mulher) apesar da admiração pessoal do roteirista Henrique Pongetti a Mussolini, não faz apologias políticas ou partidárias nas suas produções.22

Em relação ao evento na casa de Carmen, fica evidente que além das boas intenções da produtora existia uma ideia construída em torno da festa e da escola que

22 A NOITE, 13 de dezembro de 1935.

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serviria como propaganda para o filme e para a Brasil Vita Filme. Nesta noite, inclusive, foi filmado por Mauro um trailer com depoimentos dos presentes no jantar, que foi exibido no Cine Alhambra do dia 21 de julho até a estreia da película em 27 de julho de 1936.23 Todos estes esforços de Carmen enfatizam o seu papel como produtora articulando a divulgação do filme com a imprensa.

Figura 4 Trailer Cidade Mulher Fonte: Gazeta de Notícias, 22 de julho de 1936

Após o lançamento do filme, a fundação da escola foi colocada à prova em uma crítica publicada pelo jornal O Imparcial. Questionou-se a prestação de contas dos custos do filme, e se o mesmo conseguiria obter qualquer tipo de lucro, alegando que Carmen queria apenas publicidade.

Pelo que rendeu Favela dos meus amores, segundo publicação que D. Carmen Santos fez uma entrevista declarando que a renda era considerada ridícula por haver sido mal e porcamente distribuída, a ponto de levar a senhora a mudar de distribuidora.24

23 DIÁRIO CARIOCA. 08 de julho de 1936. 24 O IMPARCIAL, 28 de agosto de 1936.

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Este artigo rendeu um direito de resposta à produtora, que alegou ter muitos inimigos por conta de uma briga com a Distribuidora de Filmes Brasileiros25, e que não tinha estabelecido data fixa para a fundação da escola, dando a entender que caso não conseguisse o seu objetivo com os lucros de Cidade Mulher continuaria lutando pela criação da escola e do desenvolvimento do cinema nacional.26 A briga que Carmen travou com a Distribuidora, rendeu muitas matérias aos periódicos da época. O fato se deu após a dona da Brasil Vita Filme se recusar a deixar a cargo da D.F.B a veiculação e distribuição do filme Cidade Mulher. Carmen disse na época que a empresa

[...] se aproveita comercialmente do esforço dos produtores, sem dar a estes quaisquer vantagens, cobrando grandes porcentagens e alugando os filmes de grande metragem a qualquer preço [...]27

Em consequência deste ato, a D.F.B entrou com uma ação na justiça para proibir a veiculação do filme nos cinemas do Rio de Janeiro. O embate entre a produtora e a distribuidora gerou grande repercussão nos jornais, que publicavam as cartas de respostas, réplicas e tréplicas entre os envolvidos. No final das contas Carmen ganhou o direito de distribuir o filme Cidade Mulher e, conforme noticiado pelo Gazeta de Notícias28, confiou à D. N. Distribuição Nacional S.A fazer girar pelo Brasil a sua película.

2.2 Carmen Santos: a atriz

Em várias matérias publicadas sobre o filme observamos uma presença constante da figura de Carmen nos materiais de divulgação e também de artigos abordando a sua importância para o cinema brasileiro. Segundo Ana Pessoa:

25 Distribuidora Brasileira de Filmes, fundada em 1935, congregava os principais produtores da época, incluindo Adhemar Gonzaga, e visava evitar concorrência desleal entre estes produtores no que diz respeito à remuneração dos filmes. 26 O IMPARCIAL, 30 de agosto de 1936. 27 JORNAL A NOITE. 27 de julho de 1936. 28 GAZETA DE NOTÍCIAS, 11 de Outubro de 1936.

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[...] Carmen Santos também aprende com o cinema as artimanhas da publicidade pessoal, assumindo o comando de sua carreira. A cada filme que produz, dezenas de fotos são enviadas para as principais revistas da época. (PESSOA, 2002, p. 15).

A atriz sempre buscou vincular Cidade Mulher à sua imagem, e por este motivo os ensaios fotográficos eram frequentes tanto em revistas cinematográficas, quanto nos jornais em que Carmen mantinha contato para fazer a publicidade. No filme, Carmen é Dóris, a filha do empresário falido (Jayme Costa), que tenta reerguer o teatro do pai com ajuda do seu noivo (Mário Salaberry). Dóris tem também um filho que é interpretado pelo jovem Heleno Cyrano, que irá fazer concorrência aos negócios do avô. Conseguimos resgatar um trecho com detalhes da atuação de Carmen no filme: o número musical Cabaré da Lapa com a canção de Noel Rosa Dama do Cabaré. Se o relacionarmos com a sinopse disponível no site da Cinemateca, podemos especular que em algum momento, por motivos financeiros, a personagem encontra-se na necessidade de trabalhar em um cabaré, já que tinha o compromisso de reerguer os negócios teatrais do pai. Nas imagens a seguir vemos inclusive uma parte do cenário com os arcos da Lapa, bairro que foi representado no filme e que é retratado na letra da canção de Noel: “Foi num cabaré da Lapa que eu conheci você”.

Figura 5 Fotos divulgação Carmen Santos Fonte: Revista Cinearte, n 437, 1936

Nas fotos produzidas para divulgação nos jornais, Carmen procurou seguir o star system de Hollywood. Nessa década um dos perfis comuns dos corpos femininos

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utilizados no cinema incorporam as características da good-bad-girl: “[...] mulher chique desinibida, cantora de cabaré ou bailarina de teatro de revista [...]” (MORIN, 1989, p. 15). Como podemos observar no discurso da própria Carmen Santos o seu papel era de “[...] uma dessas mulheres amarguradas que a necessidade obriga a vender sorrisos nos cabarés [...]”.29 Observamos a vontade de transmitir através das imagens e dos personagens o caráter de “mulher moderna”, como a mesma se intitulava buscando exemplos em corpos femininos que o cinema começava a fabricar. Nas fotos a seguir podemos ver a semelhança destas imagens e corpos, utilizando como exemplo um dos maiores símbolos do cinema mundial de good-bad-girl, a atriz Marlene Dietrich, e como Carmen se utiliza destes modelos para divulgar Cidade Mulher. As fotos de Dietrich são de divulgação para o filme Der Blaue Engel (1930):

Figura 6 Carmen Santos divulgação Figura 7 Marlene Dietrich. Divulgação Cidade Mulher (1936). do filme Der Blaue Engel (1930) Fonte: Jornal do Brasil, 17 de julho de 1936 Fonte: http://www.historisches-centrum.de/

29 JORNAL DO BRASIL, 16 de fevereiro de 1936.

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Figura 9 Carmen Santos Figura 8 Marlene Dietrich. Foto divulgação Cidade Mulher (1936) divulgação do filme Der Blaue Engel Fonte: Revista Cinearte, n. 437, 1936 (1930) Fonte: http://www.historisches-centrum.de/

A Carmen atriz, durante a sua carreira, sempre alternou papeis que, ou demonstrassem a sua personalidade, ou fossem circunstanciais de acordo com a necessidade das produções. A sua primeira experiência no cinema foi com Urutau (1919), além de ter trabalhado em vários outros na década de 1920 como Sangue Mineiro (1929), Limite (1931). No entanto, nos dois primeiros filmes da Vita, coube a atriz interpretar jovens românticas coadjuvantes, o que a deixava insatisfeita sob o ponto de vista do seu empenho e da sua capacidade em desempenhar papeis mais dramáticos.

Carmen deixou claro que, em Cidade Mulher, seu papel era protocolar e tinha uma função de estrela mais nos bastidores do que como atriz, não despertando no público um entusiasmo que correspondesse à publicidade que se fez ao seu nome. 30 Segundo a atriz, sua personagem é frívola e só aceitou esta pois não queria estreantes do cinema em determinados papéis da película. A personagem Dóris aparece em um dos números musicais que por sinal possui características mais dramáticas. Mais adiante falaremos deste momento do filme pelo aspecto musical.

30 JORNAL DO BRASIL, 16 de fevereiro de 1936.

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Figura 10 Carmen, estrela Fonte: Jornal do Brasil, 16 de fevereiro de 1936

Neste sentido o protagonismo de Carmen ficou por conta mais do seu papel como produtora do que pela interpretação. A atriz declarou que a sua expectativa era a sua próxima produção, onde conseguiria colocar em prática toda a sua capacidade de atuação, desenvolvendo papeis graves e emocionais, dando amplas emoções ao seu temperamento artístico.31 Em Cidade Mulher as honras caberiam mais para a direção de Humberto Mauro e a parte musical de Noel Rosa.

2.3 O Diretor

Humberto Mauro foi um diretor disposto e engajado no desenvolvimento do cinema brasileiro, e entendia que não haveria necessidade de seguir os mesmos caminhos e fórmulas de sucesso do cinema hollywoodiano. Para Mauro, o cinema no país deveria ser realizado de uma forma que pudesse traduzir a “realidade” do país.

Qual é a imagem do Brasil, ou que imagem do Brasil se deve ou se deseja projetar no cinema? Como produzi-la com autonomia, se o público está influenciado por um tipo definido de imagem mais próxima de ideais que escapam às suas próprias possibilidades e

31 JORNAL DO BRASIL, 16 de fevereiro de 1936.

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necessidades técnicas, econômicas e culturais? (SCHVARZMAN, 2010, p. 25).

Em 1935 a Brasil Vita Filme produziu o seu primeiro longa-metragem, Favela dos meus Amores, que foi o filme de maior sucesso popular de Mauro. Segundo SCHVARZMAN, o diretor acreditava, a partir de observação de Alex Viany, que por ter filmado na favela em 1935 teria “inventado” o neorrealismo antes dos italianos, já que, além das cenas externas na favela, “[...] usou moradores como atores e figurantes, entrou em acordo com os bandidos locais para permitir que a filmagem não fosse incomodada” (SCHVARZMAN, 2006, p. 92).

Em 1936 já era conhecido e respeitado pela crítica cinematográfica brasileira, mesmo que alguns de seus filmes não tivessem obtido um grande êxito comercial. Braza Dormida (1928) e Favela dos meus amores (1935), eram seus filmes mais conhecidos. Cidade Mulher foi a sua primeira comédia musical, fato que nos faz especular sobre como foi a direção de Mauro diante de algumas características deste tipo de filme, tendo em vista que que escolhia em suas estórias triângulos amorosos, situações mais complexas que redundavam em finais menos simples.

Figura 11 Mauro na direção de Cidade Mulher Fonte: O Cruzeiro, 1 de agosto de 1936

Conforme escreveu Mário Nunes para o Jornal do Brasil, Mauro mantêm seus ideais artísticos, "valoriza a todo o instante o libreto. Afirma sem temor de contestação,

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a existência da arte cinematográfica brasileira", suas "marcas" podiam ser vistas através de cenas com panoramas do Rio de Janeiro, e elementos da cultura popular, como em uma cena chamada Macumba, por exemplo, interpretada pela cantora regional Mara da Costa Pereira e a canção Boi Bumbá de Valdemar de Henrique. A ideia era filmar o Brasil com seus regionalismos. "O Brasil está mesmo sempre à espera dos interpretes de seu espírito, da sua fisionomia racial, de sua natureza e de sua gente [...]”.32

Além das panorâmicas filmadas da cidade do Rio de Janeiro33, Mauro segue também uma abordagem de corpos sensuais que já havia utilizado em filmes anteriores, desde Brasa Dormida (1927), Lábios sem beijos (1930) e Ganga Bruta (1936). O papel interpretado por Carmen Santos, uma dama de cabaré, também demonstra sensualidade além dos tabus da figura de uma mulher excluída do ambiente social. Para fins de comparação, em Lábios sem beijos também estão presentes a representação de uma mulher moderna, com a heroína do filme exibindo sinais de despojamento e emancipação, além da representação cosmopolita da manutenção de uma moral burguesa que acompanham os percalços vividos pelo par amoroso da película (MORETIN, 2007, p. 51). Em termos de imagens podemos observar em Cidade Mulher, diante das fotografias publicadas pela revista Cinearte34, os vestidos decotados, a valorização do corpo e da sensualidade feminina.

Figura 12 Atriz de Cidade Mulher Figura 13 Irmãs Pagãs Fonte: Cinearte Ano XI, n 437 Fonte: Cinearte, Ano XI, n 437

32 JORNAL DO BRASIL, 07 de junho de 1936. 33 NOITE 17 de julho de 1936. 34 CINEARTE, Ano XI, n 437, p. 12. Disponível em: Acesso em: 18 Fev. 2016.

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Humberto Mauro conseguiu se sobrepor aos obstáculos comuns às produções cinematográficas brasileiras daquele período. Com o baixo orçamento, as "girls" do filme, responsáveis por números de bailes, não eram capazes de fazer movimentos bem sincronizados, dificuldades estas e outras que, segundo o jornal A Noite, foram vencidas pelo talento do diretor. A matéria também chama a atenção para o aspecto moral, ressaltando a produção de um filme “limpo”, onde temos as figuras de um diretor sério, com experiência cinematográfica, o que valoriza ainda mais aspectos técnicos e artísticos da película. 35 Pedro Lima, em publicação para a revista O Cruzeiro, descreveu uma cena onde relata as dificuldades técnicas das dançarinas do filme. A seguir estão imagens onde aparecem as coristas e Carmen Santos encostada ao piano.

“[...] o palco cria vida, as girls formam e começam a bailar, enquanto Mário Salaberry e Jayme Costa se movimentam. Encostada ao piano, Carmen Santos conversa com o pianista, cuja música marca os compassos do bailado. As coristas que trazem recomendação do Municipal bailam errado numa algazarra medonha. (LIMA, 1936, p. 45).

Figura 14 Filmagem com "girls" do filme. Fonte: O Cruzeiro, 1 de fevereiro de 1936.

35 A NOITE 17 de Julho de 1936.

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Diretor com grande conhecimento do cenário artístico brasileiro, declarou em uma entrevista que as estrelas do rádio, “[...] que noutros filmes seriam estrelas de improviso, em Cidade Mulher aparecem como girls, a fim de que o espetáculo mais agrade ao público [...]”36. Mauro se referia principalmente às Irmãs Pagãs, já que não queria passar a impressão de que o filme utilizaria pessoas sem experiências, como vimos, as girls indicadas pelo Municipal não agradaram ao diretor. Neste sentido utilizou as cantoras que já tinham uma grande popularidade, além de outras atrizes como Sarah Nobre, com o intuito de dar um aspecto mais profissional às cenas de dança.

Figura 15 Humberto Mauro e as "girls" do filme Fonte: Gazeta de Notícias, 23 de junho de 1936.

A liberdade na direção, o improviso, são outras características de Mauro evidenciadas no filme Cidade Mulher. Segundo os jornais, as canções interpretadas

36 DIÁRIO CARIOCA 28 de Junho de 1936.

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por Bibi Ferreira foram compostas no momento da filmagem com os músicos no estúdio o que requer certa flexibilidade por parte do roteiro e da direção de Mauro. Almirante (2013) relata também que Noel Rosa participava das filmagens, sugerindo que o diretor procurou integrar os compositores aos números musicais, existindo uma preocupação de coadunar a canção com a ação fílmica para produzir um filme musical capaz de usar os compositores como elementos da trama, montando assim um espetáculo musical.

Em uma cena interpretada por Bandeira Duarte e Sarah Nobre, Humberto Mauro retrata também aspectos da burguesia carioca. Trata-se da cena de um luxuoso salão de beleza para cães, onde Bandeira é o cabelereiro Clô-Clô, especialista em cães. Nesta parte do filme estão presentes vários figurantes, apresentados pelo jornal O Radical como “várias figuras da nossa sociedade”, que na verdade eram senhoras burguesas do Rio de Janeiro. Na imagem a seguir, Mauro dá orientações a Bandeira Duarte.

Figura 16 Mauro e Bandeira Duarte Fonte: Diário Carioca, 15 de julho de 1936.

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Em Cidade Mulher Mauro levou novamente a câmera para fora do estúdio com cenas filmadas no Morro da Glória (cena de uma fuga de cães filmada na ladeira da Glória, onde dirigia os técnicos em cima de um caminhão, conforme publicado no Correio da Manhã37), buscando nos números musicais - Macumba por exemplo, ou na escolha de Noel Rosa, sambista da nova geração e principal expoente do samba do Estácio - refletir que, apesar do apelo popular, e de um estilo não explorado pelo diretor, não haveria necessidade de se criar uma comédia musicada que falasse somente de carnaval, sendo um filme mais elaborado e que mostrasse também a diversidade cultural e étnica do país.

Mesmo com a preocupação de representar o nacional, Mauro e Henrique Pongetti também buscaram inspiração em sucessos e estrelas americanas. Diante do sucesso que a atriz mirim Shirley Temple possuía na década de 1930 era interessante incluir no cast de Cidade Mulher crianças que pudessem também ser astros do cinema brasileiro. Além de Bibi Ferreira, como citamos acima, que na verdade era mais velha que Shirley na época, existe também o garoto Heleno Cyrano, com provavelmente sete anos de idade. Cyrano não interpreta nenhum número musical e representa o filho de Dóris (Carmen Santos), e atuou, segundo a imprensa, com naturalidade em parceria com a atriz.38

Figura 17 Heleno Cyrano, Carmen Santos e Mário Salaberry Fonte: Diário da Noite, 20 de janeiro de 1936

37 CORREIO DA MANHÃ, 02 de fevereiro de 1936. 38 CORREIO PAULISTANO, 27 de agosto de 1936.

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Figura 18 Heleno Cyrano em cena no filme Cidade Mulher Fonte: Diário da Noite, 20 de janeiro de 1936

É provável que, não fosse a direção de Mauro, não estaríamos aqui especulando sobre o filme Cidade Mulher, e a relevância musical, comercial e histórica que o mesmo carrega em sua produção. No capítulo a seguir iremos desenvolver pelo aspecto musical o que foi o filme, e tudo o que ele nos conta sobre o período em que foi realizado.

3. CIDADE DO SAMBA

“[...] um filme que falando de todo o Rio, de suas características de capital do prazer sem fadiga, de cidade única pela sua fotografia e pelas suas condições dentro do tempo e do espaço, está falando do país inteirinho, de sua alma verde amarela, álacre, porém profunda, nas letras dos sambas e na espontaneidade de nossa civilização.39

Na década de 1930 a música popular se tornou um elemento fundamental de valorização do mestiço e do negro dentro do processo de construção da nação – ainda

39 O RADICAL, 3 de junho de 1936.

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que imaginária já que continuaram tendo um lugar de exclusão no cotidiano. Para Hermano Vianna, na música popular a fusão entre os estilos passou por um processo de “[...] ‘generalização’ e ‘normalização’, [...] a partir das esferas populares, rumo às camadas médias e superiores”. (VIANNA, 2012, p. 29). Antônio Cândido afirma ainda que neste movimento de valorização dos ritmos que eram exclusivos às classes mais baixas até a década de 1930, tornaram-se conhecidos em todas as classes e em diversos locais do país.

Nos anos 1930 e 1940, por exemplo, o samba e a marcha, antes praticamente confinados aos morros e subúrbios do Rio, conquistaram o País e todas as classes, tornando-se um pão nosso quotidiano de consumo cultural. Enquanto nos anos 1920 um mestre supremo como Sinhô era de atuação restrita, a partir de 1930 ganharam escala nacional nomes como Noel Rosa, , Almirante e muitos outros. Eles foram o grande estímulo para o triunfo avassalador da música popular nos anos 1960, inclusive de sua interpenetração com a poesia erudita, numa quebra de barreiras que é dos fatos mais importantes da nossa cultura contemporânea e começou a se definir nos anos 1930, com o interesse pelas coisas brasileiras que sucedeu ao movimento revolucionário (CANDIDO, 1989, p. 198).

O clima de tensão da Primeira Guerra Mundial também foi determinante para um interesse em ritmos e músicas que provocavam danças e expressões mais extravagantes. A música popular brasileira, na figura principal do carnaval, se desenvolveu no Rio de Janeiro devido a uma sincronia de acontecimentos. Os programas de rádio e a indústria fonográfica perceberam, através do sucesso de alguns grupos musicais regionais, o que era do gosto público. Aliado ao poder de influência que a mídia começa a exercer diante das massas, em criar estórias, mitos e heróis, aliam esse interesse à música brasileira. (SEVCENKO, 1998, pp. 593-594).

A maneira como cinema, música, rádio, interesses políticos e cultura de massa interagiram, provocou uma mudança na paisagem cultural do país. A música popular também ganha mais espaço nos novos formatos de programas de rádio e nos filmes que começam a abrigar o som neste período, “[...] gozava de espaço privilegiado na programação, possuindo programas próprios, além de servir como forma de preencher as pausas entre as novelas e os noticiários”. (VICENTE, 2014, p. 14).

Segundo Sandroni “a finalização desse processo de nacionalização passará pela identificação do samba ao Rio de Janeiro [...]”, sendo a primeira gravação Pelo

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Telefone um marco para a criação do “samba carioca”, que com diversas mudanças rítmicas “[...] assume da maneira mais inequívoca a condição de ritmo nacional por excelência [...]” (SANDRONI, 2001, p. 84).

Diante desta interação de diversas matrizes da cultura afro-brasileira e movimentos influenciados pela cultura europeia comumente desenvolvido pelas elites sociais, o samba, ritmo eleito como símbolo nacional, começa a fazer parte tanto de grupos sociais populares quanto de intelectuais da cidade do Rio de Janeiro. (NAPOLITANO, 2009, p. 141). O filme Cidade Mulher estava sendo realizado justamente em meio a este cenário social, político e artístico que influenciou a sua produção. Neste sentido é relevante entendermos as variações e origens desta música que se “criava” e se transformava na cidade carioca e que teve origem nos lundus, maxixes e na umbigada. Noel Rosa, nas seis canções que compôs para o filme, nos conta um pouco sobre as origens e transformações que culminaram na construção do samba carioca, sem esquecer do seu olhar irônico e crítico sobre a sociedade daquela época.

a) Dama do Cabaré

Eu não sei bem se chorei no momento em que lia A carta que recebi, [não me lembro de quem] Você nela me dizia que quem é da boemia Usa e abusa da diplomacia Mas não gosta de ninguém

(Trecho de Dama do Cabaré, Noel Rosa)

Noel Rosa, nascido no dia 11 de dezembro de 1910 em um parto complicado que lhe rendeu uma deformação no queixo, começou a escrever seus primeiros versos quando ainda era bem novo. A influência do carnaval e dos ritmos que vinham do morro, aliados à sua perspectiva crítica do mundo foram determinantes para a sua carreira no samba em sua curta trajetória de 26 anos e alguns meses de vida.

O desenvolvimento da indústria fonográfica no Brasil também está atrelado à carreira musical de Noel que em 1929 ingressou no Bando dos Tangarás, onde neste mesmo ano gravaram o primeiro o primeiro registro fonográfico do grupo. O poeta do samba, como Noel era conhecido, ainda não tinha muito interesse na música que

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movimentava o Rio de Janeiro, e a sua primeira composição foi uma embolada, voltando-se mais para os sucessos das canções regionais. Segundo Almirante, o sucesso de Na Pavuna (Homero Dornelas e Almirante), o primeiro samba gravado com percussões, influenciou as próximas gravações do estilo e também vários compositores, como Noel Rosa por exemplo, que fez um samba (Eu vou para a Vila) ao mesmo molde da música de Almirante, onde homenageava o seu bairro, a Vila Isabel. (ALMIRANTE, 2013, p. 101).

Mesmo no Bando dos Tangarás, Noel mantinha um trabalho artístico independente, e em agosto de 1930 lançou dois sambas pela Parlophon, um deles seria uma das músicas de maior sucesso na cidade do Rio de Janeiro: Com que roupa?, sendo vendida por uma quantia irrisória na época. Nesta fase de sua vida já produzia muito mais sambas do que canções regionais, demonstrando a influência do grupo dos Tangarás e das tendências musicais cariocas daquela década nesta nova direção musical que começava a trilhar.

Em 1931 abandonou a faculdade de medicina no primeiro ano e passou a viver integralmente da sua carreira de cantor e compositor. Noel Rosa “[...] foi o compositor branco da classe média que mais frequentemente fez parcerias com os compositores negros oriundos dos morros e subúrbios”. (PINTO, 2010, p. 12). Isso está relacionado com o momento histórico da música popular, principalmente do samba carioca, se constituindo como a canção popular urbana brasileira, como detalhado por Mayra Pinto:

Essa aliança se deu concretamente em parcerias nas composições de sambas e também na apropriação, por parte dos compositores brancos, de um estilo rítmico-melódico de samba que estava sendo criado naquele momento por compositores negros que ficaram conhecidos como o grupo do Estácio. (PINTO, 2010, p. 21).

Em 1934 Noel já tinha grande prestígio como compositor. Neste mesmo ano conheceu um dos amores da sua vida, a jovem Ceci, dançarina de um cabaré. Compôs então uma canção em homenagem ao seu romance: Dama do Cabaré em que relata seu primeiro encontro, e ironicamente se refere às “leis da boemia” – termo usado para falar das dançarinas dos cabarés que viviam de mesa em mesa vendendo sorrisos a todos os fregueses sem se prender a nenhum deles (MÁXIMO, 1990, p.

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430) -, por este motivo a frase “usa e abusa da diplomacia, mas não gosta de ninguém”. Quando Carmen Santos o convidou para escrever as canções do filme, decidiu então lançar esta música no número intitulado Cabaré da Lapa, interpretada pela própria Carmen, com execução musical de Joel (da dupla Joel e Gaúcho). Este número é um dos poucos descritos como dramático no filme, e teve algumas críticas negativas em relação à interpretação da atriz.

Este samba de Noel tem como características musicais um grande número de percussões e uma harmonia elaborada, como podemos observar no registro fonográfico datado do mesmo ano do filme, disponível no IMS40, além de contar com uma parte instrumental. A canção também recebeu elogios no Jornal do Brasil, como sendo uma das partes mais interessantes e memoráveis do filme. O jornalista destaca desta cena o cenário de Rosenmayer “[...] sintetizando aquele trecho do Rio, pela madrugada”, além do refrão da canção de Noel que para o jornalista é um “[...] tratado de filosofia [...]”.41

Para Fenerick a canção Dama do cabaré é também uma afirmação do samba diante de outros gêneros musicais, tendo em vista a frase “dançamos um samba, trocamos um tango por uma palestra”, já que o tango era muito apreciado pelos frequentadores dos cabarés na época (FENERICK, 2002, p. 289), sem contar que a música argentina era conhecida e admirada em outros países, e o samba ainda buscava um lugar no cenário internacional e até mesmo nacional. Neste sentido é evidente neste trecho da canção de Noel uma procura em tornar o ritmo brasileiro de uma certa maneira “superior” ou mais atrativo do que outros que já estavam no gosto popular de brasileiros e estrangeiros.

Segundo Almirante (2013), Noel, após esperar e buscar Ceci no cabaré, acompanhava as filmagens realizadas no Cassino Beira-Mar “[...] conduzindo-a (Ceci) para assistir a várias tomadas das cenas”. (ALMIRANTE, 2013, p. 301). Neste sentido, como a canção já estava pronta, podemos propor que tenha trabalhado em conjunto com Humberto Mauro na construção deste número musical do filme. Dama do Cabaré, possivelmente um dos poucos números dramáticos do filme, não deixa de ter o caráter popular pretendido, explorando a relação da cidade com a sua boemia, utilizando

40 INSTITUTO MOREIRA SALLES. Disponível em: Acesso em: 03 Mar. 2016. 41 JORNAL DO BRASIL, 18 de julho de 1936.

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como cenário o bairro da Lapa, além de aspectos da vida difícil de uma mulher sofredora como a personagem interpretada por Carmen Santos.

b) Na Bahia

Todo santo dia Nasce um samba na Bahia Samba tem feitiço Todo mundo sabe disso!

A minha Bahia Forneceu a fantasia mais original Que se vê no carnaval!

(Canção Na Bahia de Noel Rosa e José Maria de Abreu)

A canção Na Bahia de Noel Rosa traz uma discussão que perdurou durante muitos anos sobre a origem do samba. Afinal, o samba é baiano ou carioca? O compositor, trabalhando sempre com o bom humor, descreve que a Bahia forneceu “a fantasia mais original que se vê no carnaval”, mas foram vários os estilos musicais, de diferentes épocas, que contribuíram para o surgimento do samba que conhecemos hoje, e muitos tiveram influência da cultura afro-brasileira, como o Lundu, a Umbigada e outros tipos de danças de roda.

Segundo Carlos Sandroni, a palavra Lundu foi designada primeiramente para o nome de uma dança popular por volta dos anos 1700, passando depois para gênero de canção de salão até ser finalmente conhecida como um tipo de canção folclórica (SANDRONI, 2001, p. 32). Essa dança, no fim do século XVIII, foi uma das primeiras manifestações consideradas como brasileiras e, apesar de ter origem africana, também sofreu influências culturais europeias. A sua instrumentação era composta por tambús, matracas, quinzegue, chocalhos e instrumentos que levavam couro.

O maxixe é outro ritmo essencial para compreender o samba. É uma dança popular, porém urbana, criada no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. Possuí uma ligação rítmica com a Polca (dança popular europeia do século XIX), e também foi chamado de “tango brasileiro”. Segundo o mesmo autor, há uma ligação no surgimento deste ritmo com o lundu, onde o “[...] maxixe tomou esse nome dum

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sujeito apelidado Maxixe que num carnaval [...] dançou o lundu duma maneira nova” (SANDRONI, 2001, p. 55). Como os outros estilos musicais populares no Rio de Janeiro, era restrito a bairros de “má fama”.

A umbigada talvez seja o parente mais próximo do que conhecemos como o samba carioca. Segundo Edson Carneiro o termo samba, corruptela de Semba que na África banto quer dizer “umbigada”, é o [...] conjunto de manifestações caracterizadas pela presença da umbigada ou a menção desse gesto, característica de danças de lúdica amorosa banto-africana” (CARNEIRO, 1961, apud SILVA, 2010, p. 148).

Esses ritmos musicais eram muitos comuns na região nordeste em especial na Bahia, e no final do século XIX ainda eram pouco conhecidos no Rio de Janeiro. Após essa migração do samba (umbigada) para as cidades, principalmente para a capital federal, é possível observar relações com o lundu e o maxixe, o que posteriormente definiu o samba e outros gêneros musicais do Brasil.

Retomando a canção Na Bahia de Noel, e analisando-a musicalmente, a mesma é composta por duas perguntas que são respondidas com a frase “Na Bahia, Na Bahia”. Este tipo de composição, com possíveis respostas em coro, é muito comum aos sambas de roda. Analisando a gravação – disponível na coletânea Noel pela primeira vez de Omar Jubran -, verificamos também que ritmicamente a canção traz vários instrumentos percussivos, além de ser mais próxima dos ritmos oriundos da Bahia. Mesmo com predominância rítmica do samba de roda, podemos perceber algumas variações na caixa de estilos como o maxixe e o choro, presentes no Rio de Janeiro.

No filme, esta canção é interpretada por Bibi Ferreira, em um número musical onde ela é uma menina que está triste por não existir teatro infantil na cidade do Rio de Janeiro. Na estória, Lilli, a personagem de Bibi, inventa no seu quarto cheio de bonecas um teatro infantil, onde ela é a estrela exclusiva que canta, dança e declama, sendo aplaudida ou vaiada por seus “bonecos de alma mecânica” segundo as suas preferências42. Ela canta três canções na sequência, em três idiomas diferentes, onde Na Bahia era uma delas. Apesar de ser um número com estilos musicais bem

42 DIÁRIO CARIOCA, 24 de julho de 1936.

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diferentes entre si – um samba, um foxtrot e um tango – e também de se tratar de um número infantil, podemos observar a relação da cidade carioca e de todos os assuntos que lhe são pertinentes na época. Nada mais justo que uma música que traz perguntas sobre a origem do samba, quase que de maneira “educativa” – Aonde é que o nosso Brasil principia? Aonde foi que Jesus pregou sua filosofia? -, seja interpretada por uma criança.

Em 1984, em entrevista ao programa Som Brasil, dirigido pelo ator , Bibi Ferreira falou sobre este número que interpretou no filme. Resumidamente Bibi disse que teve dificuldades em interpretar a canção com a síncope característica do samba, e que foi dirigida por Noel Rosa para conseguir efetuar as divisões silábicas nos tempos corretos da música. A atriz também revelou que cantava “[...] toda maquiada de baianinha branca, e depois cantava a mesma coisa de baianinha preta, a branca pintadinha de preto, e a preta vestidinha de branco [...]”.43 A única imagem remanescente de Bibi no filme não mostra detalhes do seu personagem. Este número musical pode ser um dos números da revista que é produzida no filme, tendo em vista que Mauro em uma entrevista diz que Bibi e Mara “[...] cantam coisas isoladas [...]”44, o que diverge do discurso dos produtores de um filme onde as canções entrelaçavam o enredo. De uma certa maneira estes fatos parecem evidenciar um número feito às pressas e sem planejamento, já que os produtores tinham urgência de terminar as filmagens da película.

43 Entrevista de Bibi Ferreira ao programa Som Brasil em 1984. Disponível em: Acesso em: 18 de agosto de 2015. 44 DIÁRIO CARIOCA, 28 de junho de 1936.

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Figura 19 Bibi Ferreira

Fonte: Diário Carioca, 24 de julho de 1936.

c) Cidade Mulher

Como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, a canção título do filme, Cidade Mulher, de Noel, interpretada no filme por Orlando Silva e acompanhado das Irmãs Pagãs, retrata um discurso ideal da cidade do Rio de Janeiro, onde a valorização da beleza e as virtudes da capital federal se sobrepõe aos seus aspectos negativos.

Cidade do céu sempre azulado, Teu Sol é namorado Da noite de luar

Cidade padrão de beleza, Foi a natureza Quem te protegeu

(Trecho de Cidade Mulher, Noel Rosa)

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A partir da gravação disponível no Instituto Moreira Salles (IMS)45, podemos observar que se trata de uma marcha de carnaval, estilo muito explorado pelos então produtores musicais, e com um arranjo para instrumentos de sopro. A marchinha de carnaval, com ritmo mais acelerado e marcado, era mais próxima ao samba que acontecia no bairro do Estácio. Fenerick observa que Sinhô - compositor da geração do samba das reuniões nas casas das tias baianas - questionava a rítmica do “novo” estilo, dizendo que era muito parecido com a marcha. (FENERICK, 2007, p. 6). Para Noel, só existia um tipo de samba, o do Estácio, e nunca se referia à Cidade Nova – local onde surgiram os sambistas da geração de Sinhô e –, deslocando o samba das casas das tias baianas para o morro e subúrbio carioca, onde preferencialmente passa a ter sua originalidade (idem, p. 7).

No filme, acreditamos que a música fez parte da abertura, onde seriam apresentados vários planos externos que valorizavam as belezas naturais e geográficas da cidade do Rio de Janeiro. Esta foi a única canção que Noel escreveu em homenagem a capital federal, e como Mauro valorizou as imagens externas, como já observamos, é possível que a canção tenha sido utilizada como background para estas cenas, ou seja, para Mauro, Cidade Mulher está intrinsecamente ligada ao samba e o filme será também parte dessa autenticação do samba como ritmo e expressão carioca por excelência.

45 INSTITUTO MOREIRA SALLES. Disponível em: Acesso em: 03 Mar. 2016.

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Figura 20 Orlando Silva e as Irmãs Pagãs Fonte: Jornal do Brasil, 24 de maio de 1936

É interessante também observar que diante da produção de filmes americanos e de outros países deste mesmo período, não encontramos nenhuma película que seja de valorização a uma cidade como é Cidade Mulher, apesar de existirem filmes que ambientam muito bem grandes metrópoles reconhecidas mundialmente. De qualquer forma podemos citar o filme americano San Francisco (1936) dirigido por W. S. Van Dyke, que é ambientado em um bairro portuário da cidade, e retrata um proprietário de uma casa noturna que se encontra em dificuldades financeiras devido à um incêndio na sua propriedade. O filme termina com um terremoto fazendo uma alusão ao desastre de 1906 sofrido na cidade americana. No Brasil os filmes musicais acabam por retratar mais o carnaval, nos EUA a inspiração vem da Broadway, como por exemplo: The Hollywood Revue (1929), Broadway Melody (1929) 42nd Street (1933), Broadway to Hollywood (1933) entre outros. Cabe chamar a atenção também para um filme português chamado A Canção de Lisboa (1933) que popularizou diversas canções presentes na película, e teve muito sucesso tanto do público português quanto brasileiro.

d) Tarzan, o filho de alfaiate

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O samba do Estácio tem como característica a distância em relação ao maxixe, ou ao samba amaxixado, como era conhecido. Esta modificação timbrística e rítmica também trouxe uma nova relação dos compositores no que diz respeito ao local onde o samba era praticado, além de nova temática das letras, maior uso dos meios de comunicação de massa como o rádio e a indústria fonográfica. Foi neste estilo que Noel se tornou um artista popular - inclusive desconsiderava todos os outros estilos vinculados às festas lúdico-religiosas e da “antiga geração” de Donga, Sinhô e Pixinguinha (FENERICK, 2007, p. 5) - sendo também um dos compositores que ajudou a definir o gosto musical da população carioca daquele período (VIANNA, 2012, p. 122).

A música de Noel Rosa para o filme Cidade Mulher, como temos visto até o momento, demonstra a diversidade rítmica do samba e de como os compositores mantinham uma postura crítica em relação ao movimento musical, caracterizado por um profundo conhecimento de vários ritmos e estilos daquele período.

Para Fenerick, a popularização do samba do Estácio através do rádio e da indústria fonográfica foi fundamental para que o estilo fosse o escolhido ritmo nacional, caracterizando-se como um “samba moderno”, que na verdade é muito mais próximo dos sambas realizados nos dias atuais.

No processo de associação do samba com o morro, como mito de origem, além da atuação de compositores e jornalistas como Noel e Orestes [Barbosa], um ingrediente a mais precisa ser levado em conta: o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa da época – que procuravam a todo o momento as novidades musicais do Rio de Janeiro, e dentre essas novidades acharam o samba do Estácio cuja propagação foi muito maior que o anterior, tornando-se praticamente o padrão único de samba. (FENERICK, 2007, p. 6).

Se compararmos musicalmente Cidade Mulher ao filme Alô, alô Carnaval (1936) da Cinédia, por exemplo, podemos observar que o primeiro se mantêm direcionado mais para o samba do Estácio e dos estilos que eram mais semelhantes a este. A película da Cinédia por sua vez representa mais o repertório popular dos programas de rádio apresentando tanto marchinhas de carnaval (em sua maioria), quanto canções regionais.

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A canção de Noel, no filme, que caracteriza ou se aproxima do samba do Estácio é Tarzan, o filho de alfaiate, apesar de todas as outras músicas do compositor para a película se relacionarem musicalmente com este novo samba. Nesta música, o compositor tratou de produzir uma harmonia mais elaborada com inversões do baixo nas estrofes da canção, um ritmo mais enérgico muito próximo ao que era realizado no Estácio. Além destes fatores, chama também atenção o olhar irônico do poeta em relação ao carioca.

Quem foi que disse que eu era forte? Nunca pratiquei esporte Nem conheço futebol. O meu parceiro sempre foi o travesseiro E eu passo o ano inteiro Sem ver um raio de sol. A minha força bruta reside Em um clássico cabide, Já cansado de sofrer... Minha Armadura é de casimira dura, Que me dá musculatura Mas que pesa e faz doer. (Trecho de “Tarzan, o filho de alfaiate”, Noel Rosa)

Este número cômico, foi filmado em estúdio, e o cenário retratava a praia de Copacabana. Em uma das publicações mais extensas encontradas sobre o filme, em 16 de fevereiro de 1936 o Jornal do Brasil visitou os estúdios da Brasil Vita filme e deu detalhes desta cena filmada no Teatro Casino Beira-Mar, que reproduzia a praia de Copacabana.

Estão filmando um quadro intitulado “Tarzan, filho do alfaiate”. Como em Hollywood, a praia está ali reproduzida, em miniatura, no palco. Quem armou o cenário foi Rosenmayer. [...] tudo parece perfeito: os arranha-céus, o Lido, o O.K., o posto de salvação, a areia graças a uma lâmpada de 10.000 velas. É um quadro que fará, sem dúvida, um largo sucesso. Rapazes fortes, de peito nú, fazem ginastica, Meninas bonitas (é a primeira vez que vemos corpos assim no cinema brasileiro) tomam banho de sol. E entra Tarzan, o orgulho de sua namorada, metido no seu roupão de ombros fabulosos. Para que as outras morram de inveja, ele precisa mostrar ali a musculatura. E quando não pode mais resistir, depois de alegar um resfriado enorme, e que acontece é uma gargalhada geral

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da praia inteira, porque a musculatura de Tarzan não passava de um detalhe de alfaiataria...46

Figura 21 Número Tarzan, o filho de alfaiate. Sylvia Drummond, Mary Kler, José Vieira e Alice Figueiredo, da esquerda para direita. Fonte: O Cruzeiro, 7 de março de 1936.

Observamos nesta matéria que foi utilizada uma iluminação mais forte, já que como vimos em artigos anteriores, Carmen e os técnicos procuravam corrigir erros de iluminação encontrados no filme Favela dos meus amores. Podemos observar também o caráter cômico que a cena possui, além de estar em evidência a sensualidade dos corpos. Outro ponto desta publicação, diz respeito à exibição de

46 JORNAL DO BRASIL, 16 de fevereiro de 1936.

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rapazes fortes e de peito nu, onde o jornalista enfatiza que “[...] é a primeira vez que vemos corpos assim no cinema brasileiro”.

Segundo João Máximo e Carlos Didier, em Tarzan, o filho de alfaiate, a ideia de projetar "tipos" da cidade vem da inspiração dos heróis projetados pelo cinema americano - ombros largos, bíceps avantajados, corpos musculosos. Os rapazes da burguesia carioca, que antes se inspiravam em galãs menos robustos, como Rodolfo Valentino, passam a ter como inspiração Johnny Weissmuller, protagonista do filme Tarzan, The Ape Man (1932). Porém muitos destes, desprovidos de um rigor físico, não conseguiam obter resultados musculares que pudessem ser comparados ao do protagonista de Tarzan, e acabam recorrendo aos alfaiates. Torna-se então moda na cidade o uso de paletó com ombreiras, que aproximavam os franzinos rapazes a Johnny Weissmuller. (MÁXIMO, 1990, p. 425). Noel faz esse registro no samba Tarzan. Na letra observamos o tom de ironia tanto em relação às influências que os filmes americanos exerciam na sociedade, e também da figura do malandro ressaltando a preguiça e a indolência. O autor traçava "[...] a trajetória de um universo em que habitam diversos personagens, comuns nos morros e subúrbios cariocas, e que se tornarão conhecidos nacionalmente por intermédio do samba da década de 30" (PINTO, 2010, p. 12).

e) Outras canções

Ainda existem mais duas canções de Noel no filme. Morena Sereia, marcha composta em parceria com José Maria de Abreu, foi uma delas. A letra da canção é uma exaltação as praias brasileiras:

Morena sereia, Que à beira-mar não passeia Que senta na praia e deixa a praia cheia De lindos castelos de areia (Trecho de Morena Sereia, J. Maria de Abreu e Noel Rosa)

A outra canção é Numa noite à beira mar, a única música de que não encontramos qualquer registro fonográfico. Segundo Almirante (2013), essa canção-

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valsa de Noel Rosa nunca foi gravada (ALMIRANTE, 2013, p. 240). Conforme A Noite, os cantores líricos José e Maria Amaro fazem parte de um número musical onde “[...] cantam ao luar em Copacabana”47, música composta por Noel Rosa.

Podemos sugerir que a canção interpretada seja Numa noite à beira mar. Almirante classifica a música como “canção-valsa”, um ritmo mais lento, com uma harmonia mais melancólica em tons menores. Com essas características, esse poderia ser mais um número dramático do filme ou uma parte romântica:

Juro pela lua cheia Que ilumina a branca areia Que jamais posso olvidar As palavras que disseste Quando teu amor me deste Numa noite à beira-mar (Trecho de Numa noite à beira-mar, Noel Rosa)48

O número musical Bazar dos bonecos49 interpretado por Bibi, relatado anteriormente, diz respeito à revolta da menina por não haver teatro infantil no Rio de Janeiro. Apesar da pouca experiência e idade ela se apresentou cantando um número com três canções em três idiomas diferentes ao lado da sua mãe Aida Izquierdo Ferreira. Este número revela-nos um pouco sobre a relação da canção com a ação fílmica pois duas das canções que Bibi interpretou foram compostas de improviso durante a gravação deste número musical:

[...] Assim é que nessa produção colaboram Noel Rosa, Waldemar Henrique, José Maria de Abreu, Assis Valente, Muraro e até o querido astro patrício Raul Roulien, que com o seu “panache” habitual, tendo ido visitar, certa vez, o set de Cidade Mulher, compôs de improviso um “fox” do outro mundo – “Come on, Baby” – para Bibi Procópio Ferreira, a jovem filha do maior ator brasileiro, desse glorioso Procópio conhecido até além-fronteiras, apresentar em Cidade Mulher, continuando desse modo as brilhantes qualidades de sua família de artistas, uma atuação de elástico e expressivo mérito artístico: o seu “sketch”, onde também aparece a senhora Aida Izquierdo Ferreira, que gentilmente prestou esse favor à Vita, e um conjunto de dança, comédia e canto, no qual Bibi interpreta um tango de Muraro, também

47 A NOITE, 21 de março de 1936 48 ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Sonora Editora, 2013. pp. 236-241 49 A NOITE, 17 de julho de 1936.

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composto de improviso, no mesmo dia em que o foi o de Roulien; um samba a caráter, “Bahia” e o referido “fox”.50

Mais precisamente, as canções são Na Bahia (Noel Rosa), já relatada nesta pesquisa, Come on Baby (Raul Roulien) e Bafa (Muraro). Da mesma maneira que podemos presumir uma preocupação em estabelecer um diálogo entre o que se vê e o que se ouve, podemos especular também uma certa liberdade em relação ao roteiro do filme, já que as canções foram criadas de improviso. Neste mesmo número, conforme a matéria publicada no Diário Carioca51, Bibi interpreta um samba de Noel, um tango de Muraro e um fox de Roulien. As diversidades rítmicas e estilísticas podem se contradizer e criar um número musical tão interessante quanto confuso.

Além das composições de Noel, o filme, sendo uma grande produção, contou ainda com vários artistas consagrados da década de 1930. Assis Valente, com a canção Adeus Cidade Gostosa, sendo o compositor o próprio intérprete; José Maria de Abreu – que possui duas músicas no filme em parceria com Noel Rosa: Na Bahia e Morena Sereia -; Muraro, que compôs um tango chamado Bafa interpretado por Bibi Ferreira; Heckel Tavares; Valdemar Henrique, com a canção Boi-Bumbá, que faz parte do número musical Macumba interpretado por sua irmã Mara Costa Pereira; Humberto Porto e Juracy Araújo, com a música Cidade Milagre, interpretada pelas Irmãs Pagãs; e Custódio Mesquita que compôs uma marchinha juntamente com Muraro, porém não encontramos registro do nome desta canção. A maioria dos artistas, pertencentes ao star system radiofônico brasileiro da época, reforçam a ideia sobre o grande investimento feito por Carmen Santos nesta produção, em consequência do sucesso de seu filme anterior Favela dos meus amores. O repertório de orquestra foi concebido pelo Maestro Bernardo Vivas sob a regência do maestro Bichara Jorge, porém não encontramos os registros destas músicas que provavelmente eram responsáveis pelos interlúdios. Apesar de existirem um tango e um fox, estilos de sucesso na época e que vinham também pelo cinema argentino e americano, Cidade Mulher tem na música popular brasileira a sua principal fonte para o repertório da trilha sonora, principalmente sambas.

50 DIÁRIO CARIOCA. 18 de julho de 1936. 51 DIÁRIO CARIOCA, 18 de julho de 1936.

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3.1 Canção na ação

Alguns filmes musicais realizados antes de Cidade Mulher, como por exemplo, Coisas Nossas (1931), receberam diversas críticas da imprensa especializada justamente por não ter uma preocupação de ligar os números musicais com o “fio narrativo” da história. Talvez seja por este motivo que os jornais e até mesmo a produtora Brasil Vita Filme queriam destacar a preocupação em se diferenciar das produções realizadas até então. Não queremos aqui afirmar que a película da Vita tenha sido a pioneira, mas sim que se distanciava dos “filmes revista” que eram mais comuns na década de 1930 no Brasil.

Sobre essa ligação entre a canção e ação fílmica, é possível que os produtores tenham procurado criar um roteiro em que os números se relacionassem com as cenas do filme. O próprio fato das canções serem inéditas nos faz presumir essa característica, assim como em algumas matérias encontradas que relataram que o filme possuía “[...] uma história a entrelaçar os seus quadros de música, de dança e de diálogos [...]”52 e também não davam a “[...] impressão de ser uma colcha de retalhos, mas uma verdadeira comedia musicada, com princípio, meio e fim [...]”.53

Além das matérias encontradas, Almirante afirma que Noel participava das filmagens (ALMIRANTE, 2013, p. 301) - inclusive chegou a ensaiar com os atores Mary Kler e José Vieira, nos bastidores, a cena que seria da canção Tarzan54. Considerando também que Mauro demonstrava afinidade com a cultura popular, “era um frequentador dos bares da Lapa, conhecia sambistas, gostava de sua música (SCHVARZMAN, 2004, p. 89), acreditamos que houve uma preocupação em criar uma relação entre o que se via e ouvia. Por este motivo, se torna importante citarmos alguns filmes produzidos próximos ao Cidade Mulher e relacionarmos com as informações encontradas nesta pesquisa.

Alô, alô Carnaval! (1936), produzido pela Cinédia e lançado antes de Cidade Mulher em 20 de janeiro de 1936, traz a história de dois autores que tentam patrocínio de um empresário para uma revista. Os números musicais aparecem sem uma

52 GAZETA DE NOTÍCIAS 23 de junho de 1936. 53 DIÁRIO CARIOCA, 28 de junho de 1936. 54 O CRUZEIRO, 15 de fevereiro de 1936.

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preparação do enredo ou narrativa, ou seja, as canções não se relacionam com o que acontece na cena. Apesar do gênero musical presumir um roteiro basicamente fixo, na produção da Cinédia as cenas são alternadas com números musicais de maneira aleatória, onde não há na maioria das vezes uma relação das canções com o assunto que está sendo desenvolvido pelo enredo do filme. Além destes fatores, o filme também é inspirado no carnaval, fato de que Mauro e Pongetti, em Cidade Mulher, faziam questão de se desvincular.

Já Bonequinha de Seda (1936), da Cinédia, com trilha sonora composta por Francisco Mignone, tem uma ideia clara do que é música diegética e não diegética, com marcações que reforçam, inclusive, movimentos nas cenas, lembrando a técnica de mickeymousing, onde os passos da atriz principal, Gilda de Abreu, são acompanhados pela música quando ela sobe ou desce a escada, e também em uma das primeiras cenas do filme, quando os violinos fazem uma melodia ascendente em meio tom para acompanhar o elevador subindo ao oitavo andar. Nas cenas de canções, percebemos que existe uma preocupação de contextualizar o que está acontecendo, ora existe uma música de fundo diegética em uma recepção, ora a música de um espetáculo que é interpretado em um teatro pela atriz principal do filme. Não existe um número musical que aparece subitamente interrompendo ou finalizando uma sequência do filme.

Pela documentação disponível sobre Cidade Mulher, observamos uma proximidade maior com Bonequinha de Seda (lançado em outubro de 1936). As canções de Noel Rosa, em sua maioria apresentam uma relação com as cenas.

O número musical Cabaré da Lapa, com a canção de Noel Dama do Cabaré, representa bem o que queremos propor, onde a canção compõe a cena, dialogando com o enredo neste número que é mais dramático. Analisando o material encontrado nos jornais da época é possível admitir uma preocupação em estabelecer uma relação entre ação e canção no filme, mesmo que a estória e o enredo sejam comuns às comédias musicadas (a produção de um musical é em geral a base dos filmes musicais). Pongetti declarou em uma entrevista ao Diário Carioca que um dos objetivos principais era se distanciar do tema carnaval, o que tornaria Cidade Mulher uma película mais atrativa se comparada com as produções pré-carnavalescas:

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Escrevendo Cidade-Mulher, Carmen Santos, Humberto Mauro e eu quisemos fazer uma tentativa: superar o gênero "music-hall" exploradíssimo nos nossos filmes pré-carnavalescos, afrontando as dificuldades seríssimas da revista numa cidade sem girls aprovadas pela tela... Posso garantir-lhe que conseguimos o máximo possível: em Cidade-Mulher, a comédia e os quadros de revista formam um espetáculo divertido, higiênico, honesto, que agrada aos fãs do cinema brasileiro porque marca uma etapa de progresso artístico e técnico indiscutível entre os filmes ligeiros produzidos no país.55

A preocupação dos produtores é compreensível tendo em vista que a maioria dos filmes musicais, principalmente as comédias, produzidos no Brasil nesta década eram pré-carnavalescos e tinham o tema do carnaval como inspiração (A Voz do Carnaval 1933; Alô, alô Brasil 1935; e Alô, alô carnaval 1936; por exemplo). Nestas produções é evidente que os produtores musicais criavam filmes para divulgar os “seus” artistas e suas músicas, como por exemplo em Coisas Nossas (1931). Em Cidade Mulher, como não existe um produtor musical à frente da produção, podemos sugerir que o filme não se limitou a um meio de divulgação de artistas da indústria fonográfica brasileira daquele período, até mesmo porque a maioria das canções eram inéditas.

3.2 A música como estratégia midiática

Ao longo desta pesquisa verificamos que a produção de Cidade Mulher teve uma relação muito ativa com a mídia, seja pelo papel exercido por Carmen Santos, ou por procedimentos que julgamos pouco comuns aos filmes musicais do mesmo período. O fato das canções serem inéditas permitiu que só fossem conhecidas através e depois do lançamento do filme, conforme ressaltam os artigos de jornais. Segundo A Noite:

Quando Favela dos meus amores foi estreada no Alhambra, as canções de e de outros autores famosos, que Sylvio Caldas canta no filme de Carmen Santos, já tinham sido, todas elas, divulgadas em discos e através do rádio, ficando assim o povo com a impressão de que não eram inéditas.

55 DIÁRIO CARIOCA, 28 de junho de 1936.

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Agora, com Cidade-Mulher, a Brasil Vita Filme adotou critério diferente. Nenhuma das melodias que marcam os momentos mais interessantes da comedia será gravada ou dada ao rádio antes do lançamento do filme na Cinelândia, porque elas são realmente bonitas, e por isso, ao filme é que deverá caber as honras de sua popularização.56

Por ser uma comédia musical, as canções têm um caráter protagonista na produção, e é interessante observar a preocupação da Brasil Vita Filme para que esse ineditismo não se perdesse com a veiculação das músicas antes da estreia do filme. A proposta era deixar que o público descobrisse as músicas de Noel através do filme, levando os fãs do compositor ao cinema ao invés do rádio. As músicas de Noel tornaram-se "as canções do filme". Pelo fato de ser um procedimento arriscado – caso o filme não tivesse sucesso provavelmente as músicas também não teriam – fica visível a confiança dos produtores que Cidade Mulher fosse um sucesso de público semelhante ao filme Favela dos meus amores.

Nos filmes americanos, a tendência de utilizar canções, por mais antiga que seja, expandiu-se principalmente nos anos 50 e 60, pois foi neste momento que estas se tornaram de fato um “modo de capitalizar o potencial de divulgação do filme” (BERCHMANS, 2012, p. 128), como no caso das canções, compostas por Henry Mancini, Moon River para o filme Breakfest at Tiffany’s (1961) ou Days of Wine and para o filme de mesmo título lançado em 1962 e regravada até hoje por centenas de artistas, sendo que a partir das canções destes filmes é que foram elaboradas as estratégias midiáticas para a exploração comercial destes.

Não é o objetivo aqui abordar se esta estratégia utilizada em Cidade Mulher, anterior a esse tipo de exploração mais genérico no cinema americano teve êxito, mas sim a sua intenção, a estratégia que procurou unir e utilizar os meios de comunicação não como uma “consequência” da divulgação, ou até mesmo se beneficiando de determinados sucessos e artistas para uma produção cinematográfica. Em Cidade Mulher, a ideia era fazer justamente o processo inverso do que era comum à época no Brasil. Criou-se um filme inédito, com canções inéditas, onde a película serviu como alavanca da música para outros mercados midiáticos, estabelecendo uma comunicação entre a indústria fonográfica, o rádio e o cinema, criando produtos

56 A NOITE, 21 de março de 1936.

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distintos que circularam em diversos meios, e estimularam o “comportamento migratório” do público através de todas as plataformas existentes na década de 1930, convergindo para o filme e para a sua música, como podemos observar nos gráficos abaixo:

Gráfico 1 Publicidade filmes década de 1930

Gráfico 2 Publicidade no filme Cidade Mulher

Em outra matéria podemos observar também outra estratégia de divulgar o filme através das partituras de suas canções:

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A casa editora E.S. Mangione, à rua da Liberdade, São Paulo, teve a gentileza de oferecer à Noite exemplares de belas músicas do filme Cidade Mulher, que acaba de lançar. São: “Cidade Mulher”, marcha; “Dama do Cabaré”, samba; “Morena Sereia”, marcha; “Na Bahia”, samba; “Tarzan, o filho alfaiate”, samba. Gratos.57

Podemos perceber através desta publicação que as canções de Noel Rosa já estariam gravadas e prontas para veiculação, o que reforça a intenção de utilizar a música inédita como um atrativo a mais para a película. A casa editora E. S. Mangione 58, ao “presentear” o jornal, não rompe o ineditismo das canções, sugerindo na verdade uma ideia calculada da Brasil Vita Filme para divulgar o filme gerando uma expectativa maior do público para a estreia de Cidade Mulher.

4. CRÍTICA E RECEPÇÃO DO PÚBLICO

De uma maneira geral, a recepção do público e da crítica foi positiva, embora não se possa considerá-lo um grande êxito, tendo em vista o sucesso do filme anterior, Favela, e a expectativa criada a partir das matérias que envolviam a publicidade da película. Percebe-se nas críticas a seguir que Cidade Mulher teve um lugar comum aos filmes musicais produzidos neste mesmo período. É possível que os críticos, principalmente, esperassem um ganho de qualidade mais significativo que pudesse encantar e surpreender o público e especialistas do cinema brasileiro, visto as novidades implementadas no filme Bonequinha de Seda (1936).

No dia seguinte à estreia em 27 de julho de 1926, o jornal A Gazeta de Notícias publicou uma crítica, assinada por Faustus. Com vários comentários irônicos, o crítico demonstra não ter gostado do filme de uma maneira geral:

A Brasil Vita Filme desta vez fez um filme revista. É verdade que o sr. Henrique Pongetti estava logo à entrada do Alhambra, junto ao

57 A NOITE, 24 de julho de 1936. 58 A casa editora E. S. Mangione era especializada em efetuar o registro e produções de partituras musicais.

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recebedor de bilhetes... Era a hora da exibição.... quando saímos o sr. Pongetti continuava no mesmo lugar. Naturalmente ele não viu o filme.... Fez bem!...59

Em seguida elogia a canção Cidade Mulher de Noel Rosa, mas faz críticas à interpretação de Orlando Silva. Sendo assim, podemos concluir que a gravação desta música que consta nos acervos do Instituto Moreira Sales pode ser similar à que foi utilizada no filme. Poderia se tratar de um número com música sincronizada e de fundo, onde a canção teria sido utilizada enquanto eram apresentados planos da cidade do Rio de Janeiro. Faustus porém critica a interpretação de Orlando Silva em relação possivelmente ao seu sotaque: “Gostamos da marcha Cidade Mulher, de Noel Rosa, até o Orlando Silva soltar um “resiste” que teve o efeito de uma bomba”.60

Outro número comentado no texto foi da cena Macumba que Mara Costa interpreta: “Coitadinha da macumba de Mara; que frio! Mara parecia uma boneca de carne espetada, parada, um tan-tan fantástico”. Carmen Santos também foi criticada pela sua interpretação, e segundo o crítico prejudicada também por uma falha de sincronismo da película:

Mary Kler, Sylvinha Drumond, Carmen e Alice Figueiredo, que exibiram curvas ao invés de vozes, foram sacrificadas por uma justaposição malfeita do celuloide. Essas não cantaram... A declamação de “Dama do Cabaret”, por Carmen Santos, “ninguém não viram”. Em tempo: Carmen Santos não cantou....61

De uma maneira geral os números musicais interpretados por Bibi Procópio Ferreira, Irmãos Amaro e Irmãs Pagãs foram elogiados. O crítico levanta também que o interprete da música Dama do Cabaré de Noel Rosa, Joel, não consta no elenco do filme. O Joel que a matéria se refere era o radialista e cantor Joel de Almeida, que no início de carreira fez dupla com outro artista conhecido por Gaúcho.

59 GAZETA DE NOTÍCIAS, 28 de julho de 1936. 60 Idem. 61 Idem.

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Já Viriato Correia, jornalista e crítico do Jornal do Brasil, chama atenção sobre o que considera má interpretação de Bandeira Duarte como um cabelereiro de cães chamado Clô-Clô, que a princípio “[...] sem a mais vaga veia de jocosidade, apela até para o triste recurso de efeminar a voz e os trejeitos”. 62

Em contrapartida, o mesmo Bandeira Duarte foi elogiado pelo espectador Renato Freitas em O imparcial. Nesta matéria Renato aborda desde a melhora nos equipamentos de filmagem como também de projeção como sendo um dos motivos de “evolução” técnica do cinema brasileiro. Da mesma forma que outros textos publicados após o lançamento do filme, a atuação de Carmen Santos também foi criticada, ao lado de Mario Salaberry, por parecer “deslocada”. O texto termina elogiando o trabalho de direção de Humberto Mauro e as músicas de Noel Rosa, além de dizer que o filme Cidade Mulher é inferior ao anterior Favela dos meus Amores e que agradará ao público “[...] sempre condescendente para com o cinema nacional”. 63

Esta pesquisa não se aprofundou nas informações que dizem respeito à bilheteria e valores arrecadados com o filme pois seria necessário ampliar a investigação para editoriais de outros estados e regiões do Brasil. Se levarmos em conta somente os jornais citados aqui neste trabalho, podemos observar que Cidade Mulher continuou em cartaz pelo menos até Janeiro de 193764, com exibição no cinema Floriano, localizado no centro do Rio de Janeiro. O fato é que o filme a princípio não teve o sucesso que se esperava, levando-o assim para o esquecimento em um curto espaço de tempo. Mesmo Mauro e Carmen falam pouco do filme durante a sua carreira. Apesar do grande investimento, Cidade Mulher foi considerado, por parte da crítica especializada, um filme mediano que enfrentou as dificuldades técnicas da época com problemas de sincronismo, dançarinas sem desenvoltura e habilidade para encenação, não conseguindo despertar no público grande entusiasmo.

62 JORNAL DO BRASIL, 31 de julho de 1936. 63 O IMPARCIAL, 06 de agosto de 1936. 64 Jorna do Brasil, 01 de Janeiro de 1937.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho em torno do filme Cidade Mulher permitiu observar não só a relação constante entre a música popular e o cinema brasileiro na década de 1930, mas também trouxe uma perspectiva dos principais acontecimentos deste período no Brasil. Mesmo sem poder reconstituir o que mostravam as imagens, a música, os relatos e documentos da época (como as matérias jornalísticas e fotos) permitiram tornar mais próximas as intenções, o enredo, o uso da música e em alguns casos, o seu papel na diegese, além dos seus traços diferenciais em relação a outros filmes da mesma década, mesmo na constituição do repertório, e no divórcio inabitual em relação ao carnaval. Neste sentido, falar da Capital Federal, ter o samba do Estácio como centro, foram algumas de suas estratégias inovadoras.

O fato de as músicas serem originais, compostas em especial por Noel Rosa, e do seu lançamento no rádio e em disco só ocorrer após a estreia da película, mostram um aspecto pouco comum aos filmes musicais deste período, que trabalhavam no sentido inverso com músicas que o público já conhecia. A possibilidade de existir uma “canção do filme”, ou seja, uma música tema, é uma ideia que só será comum no cinema, podemos dizer até mundial, por volta dos anos 1950. Neste sentido, a estratégia publicitária foi inovadora uma vez que o cinema brasileiro juntava-se aos outros meios para o lançamento de novas músicas de cantores e compositores populares então consagrados. Havia aí não só uma importante estratégia de lançamento do filme, mas agora também das músicas e discos. Uma operação que no entanto não foi suficiente para um interesse maior do público pelo filme, tendo em vista que, segundo alguns críticos, Cidade Mulher não foi um sucesso de bilheteria como Favela dos meus amores (1935). De qualquer forma houve um grande investimento na divulgação, principalmente por parte de Carmen Santos que se utilizou de sua imagem na imprensa, e da reputação de Humberto Mauro como diretor recém saído de um grande sucesso popular. Do jantar realizado em homenagem aos artistas na casa de Carmen, ao embate com a D.F.B, Cidade Mulher mantinha-se com frequência nos artigos de jornais desde dezembro de 1935 (quando iniciaram as filmagens) até o lançamento do filme em julho de 1936.

Apesar de utilizar o star system radiofônico da década de 1930, ou seja, boa parte dos artistas mais expressivos do meio musical daquele momento, a imprensa

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não menciona nos jornais e revistas pesquisados neste trabalho, registros que permitam fazer a relação entre o filme e a divulgação de artistas com contratos nas grandes produtoras fonográficas da época, provavelmente por não ter nenhum produtor musical trabalhando para o filme, como acontecia frequentemente nas produções do mesmo gênero. Ainda assim o filme traz alguns estilos musicais frequentes dos programas de rádio e cinema da época, como o foxtrot americano e o tango argentino, absorvendo também a música popular de outros países, mesmo que somente em uma única cena, já que boa parte das canções faziam parte do cenário musical carioca daquele período.

Neste sentido, o filme valorizou símbolos que se tornavam nacionais, como o samba e a cultura afro-brasileira, de acordo com as construções da nacionalidade que se desenvolviam no Brasil pós revolução de 1930, e nesse caso específico, no Rio de Janeiro. Verificamos que, no intuito de falar da música urbana carioca, a conjunção entre Humberto Mauro e Noel Rosa levou o filme a priorizar o samba do Estácio ao invés das marchinhas ou canções regionais como se pode ver em filmes como Alô, alô Carnaval (1936) e Coisas Nossas (1931), por exemplo, desvinculando-se assim do carnaval. Além disso, o filme parece contar o processo de surgimento deste samba moderno que nascia na capital federal, sem esquecer que, ao ter Noel compondo a maioria das canções, este processo de identificação a determinado estilo musical ficou mais evidente. As músicas de Noel Rosa apontam variações rítmicas que representavam os vários momentos do samba carioca, seja com marcha, samba- valsa, músicas com instrumentos percussivos que ainda traziam a influência dos sambas de roda, quase sempre com foco principal no Estácio, que passava a ser mais explorado pela indústria fonográfica daquele período. O compositor era um grande defensor deste estilo e trabalhou diretamente com Mauro na montagem dos números musicais presentes no filme.

Justamente por esta parceria Mauro/Noel, quando analisamos a relação entre a canção e ação fílmica, fica claro que houve um fio condutor entre o que se via e ouvia, ou seja, as músicas estavam entrelaçadas ao enredo do filme, buscando não ser uma “colcha de retalhos” de números musicais e piadas como uma revista era, apesar da presença de um enredo. Cidade Mulher se manteve próximo da comédia musical, principalmente no que se refere ao seu enredo. A única diferença está em não ter uma ligação ao carnaval, o que foi bem desenvolvido, mas não trouxe maior

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repercussão de público, crítica e renda, tendo em vista que o filme Alô, alô Carnaval, por exemplo, com seus vinte e dois números musicais (boa parte marchinhas de carnaval) que aparecem sem preparação nenhuma na ação, além de canções com presença frequente nos programas de rádio, obteve um sucesso superior ao de Cidade Mulher que gerou mais expectativas do que resultados.

Ainda que falando do Rio de Janeiro e de sua população, a nossa hipótese é que, ao criar uma comédia mais elaborada – Mauro dirigia filmes com enredos mais complexos -, com um repertório musical mais centrado em um estilo, e canções que ainda não pertenciam ao cotidiano dos programas de rádio, (o que era até então diferencial) o filme atingiu possivelmente um público mais instruído, afetando o alcance de plateias mais diversas e maiores bilheterias.

Por parte da crítica especializada, os problemas técnicos de sincronismo, atuações consideradas ruins de atores (no caso Carmen Santos), além de dançarinas com pouca experiência no cinema, foram os problemas da película não ser um sucesso. As músicas, segundo estes críticos, foram o maior acerto da produção – mesmo não estando presentes dois dos maiores ícones do rádio na época, Carmen Miranda e Francisco Alves -, além de belas filmagens da cidade em externas e cenários que valorizavam a geografia da cidade, refletindo o esforço técnico e cinematográfico de Mauro que, ao contrário de Alô, alô carnaval onde a câmera é em geral estática, procurou dar mais dinamismo às cenas do filme.

O título Cidade Mulher revela a sensualidade e beleza da capital federal ao mesmo tempo que mostra nos bastidores a figura de uma mulher sonhadora e que luta pelo cinema nacional, Carmen Santos. As imagens, pela câmera de Humberto Mauro, valorizam a cidade da geografia privilegiada, sem deixar de mostrar a realidade, com uma cena filmada no Morro da Glória, ou a boemia carioca nos cabarés da Lapa. A música, cercada do bom humor e ironia do poeta do samba, ajudam a compor as imagens do filme. Em vários momentos temos canções que falam da beleza e modernidade da cidade, da figura do malandro, da vida noturna e boemia, de questões culturais (como a origem do samba), compondo dessa maneira um retrato musical de uma parte da sociedade carioca e da cidade do Rio de Janeiro.

Por fim, a música, aqui utilizada como documento, foi um dos principais elementos para a recuperação do filme. Poucas imagens, recuperadas através de fotos nos jornais, contam sobre a ação das cenas, sendo em sua maioria produzidas

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como material de divulgação. Mesmo que em algumas matérias de jornais existam descrições e detalhes de trechos da produção, para “ver” as cenas desta película em ação temos que primeiramente ouvir as suas canções, pois são estas que contam através das letras e ritmos o que está perdido.

Os resultados da pesquisa indicam que essa forma de aproximação é muito rica e permite o aprofundamento sobre este período do cinema brasileiro de uma forma geral e em especial sobre a sua relação então intrínseca com a música brasileira sobretudo, tendo em vista o desaparecimento da grande maioria das produções, como aconteceu com Cidade Mulher. Por este motivo, temos a expectativa que esta pesquisa seja um ponto de partida para outros trabalhos.

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APÊNDICE

FICHA TÉCNICA DO FILME CIDADE MULHER (1936)

Categorias Longa-metragem / Sonoro / Ficção

Material original 35mm, BP, 80min, 2.550m, 24q

Data e local de produção Ano: 1936, País: BR, Cidade Rio de Janeiro, Estado DF

Certificados Censurado entre 16 e 31.07.1936.

Data: 27/07/1936, Rio de Janeiro Data e local de lançamento Cine Alhambra

Locação Teatro Casino Beira-Mar

Exibido em São Paulo de 31.08 a 06.09.1936, no Alhambra; de 07 a 09.09.1936, no República; de 14 a 16.09.1936, no Lux e no Paulista; de 21 a 23.09.1936, no Capitólio; de 24 a 27.09.1936, Circuito exibidor no Mafalda; de 28 a 30.09.1936, no América e no São Caetano; de 01 a 04.10.1936, no São Pedro; de 12 a 14.10.1936, no Recreio e de 02 a 04.11.1936, no Cambuci. Exibido em Curitiba a 06/09/1937, no República.

Gênero Comédia; Musical

Produção Brasil Vita Filme S/A

Produtora Carmen Santos

Distribuição Companhia(s) distribuidora(s): Brasil Vita Filmes S.A.

Argumento: Henrique Pongetti

Roteiro: Humberto Mauro

Direção Humberto Mauro

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Câmera: Ribeiro, Manoel; Nunes, Osvaldo

Assistência de câmera: Antônio Quaresma

Cenografia: Ribeiro, Jeronimo; Palmeira, Renato; Rosenmayer, Arnaldo

Música

Número Compositores Música Intérprete Musical

Cidade Mulher Orlando Silva Abertura

Bazar dos Na Bahia Bibi Ferreira Bonecos

Numa noite à beira- José e Maria Amaro Luar em mar (Provavelmente) Copacabana Noel Rosa

Cabaré da Dama do Cabaré Joel de Almeida Lapa

Morena Sereia (com José Maria de Abreu)

Tarzan, o filho de Tarzan, o José Alfaiate filho de Vieira (com Vadico) Alfaiate

Adeus, Cidade Assis Valente Assis Valente Gostosa

José Maria de Abreu

Bazar dos Muraro Bafa - Tango Bibi Ferreira Bonecos

Come on, baby - Bazar dos Raul Roulien Bibi Ferreira Fox Bonecos

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Hekel Tavares

Valdemar Henrique Boi-bumbá Mara Costa Pereira Macumba

Bando Carioca: Irmãs Assis Valente Blues “Adeus, Rio” Pagãs; Irmãs Abissínias e Assis Valente

Humberto Porto e Juracy Cidade Milagre Irmãs Pagãs Araujo

Custódio Mesquita e "Marchinha" Mauro

Elenco Ator Personagem

Carmen Santos Dóris (Filha do empresário)

Jaime Costa Empresário Teatral

Sarah Nobre Baronesa

Bandeira Duarte Cabelereiro Clô-clô

Mario Salaberry Namorado de Dóris

Bibi Ferreira Lilli. Menina que deseja teatro infantil

Mary Kler Companheira do Tarzan

Heleno Cyrano Filho de Carmen

Elenco (sem descrição) Procópio Ferreira; Ferreira Maia; Aida Ferreira; Zilka Salaberry; Carmen Figueiredo; Lola Silva; Alice Figueiredo; Silvia Drumond; Isaura Seramota; Zenaide Andrea; Aida Conceição; Aida Pongettti; Hortensia Lisboa; Esmeralda Monteiro; Dalila Rossi; Margarida Bandeira Duarte; Joel; João Petra de Brasil; Maria Amaro; Lourdinha Bittencourt; Assis Valente; Orlando Silva; José Amaro; Irmãs Pagãs; Irmãs Abssínias; Bando Carioca; Mara Costa Pereira.

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1936. Alô, alô Carnaval. Longa-Metragem. Ficção. Companhia Produtora: Cinédia e Waldow Filmes. Produção: Wallace Downey e Adhemar Gonzaga. Música de: Nássara, Antonio e Frazão, Erastótenes; Ribeiro, Alberto; Barro, João de e Ribeiro, Alberto; Babo, Lamartine; Babo, Lamartine e Ribeiro, Alberto; Fragoso, Ary de Calazões; Ribeiro, Alberto; Barro, João de e Ribeiro, Alberto; Barro, João de e Ribeiro,

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Alberto; Marinho, Getúlio e Vasconcelos, Cândido; Barro, João de e Ribeiro, Alberto; Decourt, Geraldo; Rosa, Noel e Cordovil, Hervê; Valente, Assis e Cordovil, Hervê; Rosa, Noel e Prazeres, Heitor dos; Barro, João de e Ribeiro, Alberto; Lacerda, Benedito e Santiago, Osvaldo; Barro, João de e Ribeiro, Alberto; Vitor, A.; Helena, Heloísa e Barro, João de; Martinez, Carlos A.; Barro, João de e Ribeiro, Alberto; Travesti, Jayme Costa de; Barro, João de; Babo, Lamartine e Ribeiro, Alberto. Fonte: Cinemateca Brasileira.

1936. San Francisco. Longa-Metragem. Ficção. Companhia Produtora: Metro Goldwyn Mayer. Direção: W. S. Van Dyke. Gênero: Drama Musical. Fonte: IMDB.