UNIVERSIDADE FEEVALE

ANDRESSA THAÍS LIMA DOS SANTOS

“AGORA É A PRETA NO COMANDO, NO EMPODERAMENTO”: RAÇA, GÊNERO E REPRESENTATIVIDADE NA VOZ DE MULHERES NEGRAS NO PROGRAMA ESPELHO (12ª TEMPORADA)

Novo Hamburgo

2018 1

ANDRESSA THAÍS LIMA DOS SANTOS

“AGORA É A PRETA NO COMANDO, NO EMPODERAMENTO”: RAÇA, GÊNERO E REPRESENTATIVIDADE NA VOZ DE CANTORAS NEGRAS NO PROGRAMA ESPELHO (12º TEMPORADA)

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito à obtenção do grau de Bacharel em Jornalismo pela Universidade Feevale

Orientadora:

Profª. Drª. Ana Luiza Carvalho da Rocha

Novo Hamburgo 2018 2

ANDRESSA THAÍS LIMA DOS SANTOS

Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo, com o título “Agora é a preta no comando, no empoderamento”: raça, gênero e representatividade na voz de cantoras negras no programa Espelho (12ª Temporada), submetido ao corpo docente da Universidade Feevale, como requisito necessário para obtenção do Grau de Bacharel em Jornalismo.

Aprovado por:

______Prof.ª Dr.ª Ana Luiza Carvalho da Rocha Professora Orientadora

______Prof.ª Drª. Margarete Fagundes Nunes Banca examinadora – Universidade Feevale

______

Prof.º Me. Thiago Godolphim Mendes Banca examinadora – Universidade Feevale

Novo Hamburgo, junho de 2018.

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À Carlos Eduardo Sousa, Cleiton Corrêa, Roberto de Sousa Penha, Wesley Castro e Wilton Esteves Domingos (in memorian). Que seus nomes ecoem mais alto que os 111 tiros que os atingiram.

À toda juventude negra brasileira, pretas e pretos que tiveram seus sonhos interrompidos por uma bala disparada por quem deveria lhes proteger.

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AGRADECIMENTOS

Depois de sete anos e meio, o grande momento chegou! Conquisto este título, mas sei que não conquistei sozinha. Agradeço imensamente ao apoio da minha família que, com certeza, teve um papel importante nesta jornada. Em especial minha mãe, Jussara, que não mediu esforços para que eu chegasse até aqui. Minha psicóloga, motorista particular, conselheira, case em quase todas as disciplinas e, claro, minha melhor amiga. Um brinde ao que nós construímos e iremos construir.

À minha avó, Dona Dora, que foi a melhor entrevistada que alguém poderia ter e me confiou sua história da maneira mais linda e sincera possível. Vó, você não faz idéia, mas deu um novo significado aos meus objetivos profissionais e me mostrou o que realmente importa nesta vida: o amor de todos a minha volta.

Ao meu namorado, Genésio, porque capricorniana pode ser romântica, sim. Nossa história começou no mesmo ano em que iniciei os estudos na Universidade, porém, a graduação encerra aqui. Nossa história, não. A parceria e compreensão foram fundamentais para o início e encerramento deste ciclo. Bora iniciar os próximos!

Ao Coletivo Afro Juventude Hamburguense que deu um sentido muito especial à minha vida e me fez enxergar a alegria de ser quem eu sou. E, melhor ainda, me encorajar a continuar sendo assim. Sou grata a esta amizade e ao incrível respeito e compreensão acerca da minha saúde mental. É um passo de cada vez e sei que não os dei sozinha. “Não mexe comigo que não ando só”.

Às professoras Drª Neusa Maria Ribeiro, Me. Daniela Santos e Drª Adriana Sturmer que acreditaram em mim em momentos que não acreditei em mim mesma, e me encorajaram a seguir. Às professoras Drª Margarete Fagundes Nunes e, minha orientadora, Drª Ana Luiza Carvalho da Rocha, que desde a Iniciação Científica, em 2015, me mostraram que a universidade é meu lugar e que sou protagonista da minha própria história. É um prazer chamá-las de amigas.

Aos presentes que a Universidade Feevale me deu: Letícia, Gustavo e Morgana, que vocês continuem sendo meus raios de Sol, principalmente no litoral. Alô, Ano Novo! À amizade do geminiano, Morgan Lemes, que desde os sete anos de idade me ensina a ser um ser humano melhor todos os dias. À Tiane, que me mostrou que

5 o mundo está pequeno demais para os meus desejos e que devo construir o meu próprio.

Dedico a vocês as frases tatuadas na pele radiante de Tássia Reis: todo amor, todo poder, toda glória e toda ternura.

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“Eu me lembro de olhar no espelho quando eu era criança e olhar para todo esse cabelo e ficar tipo ‘por que isso está ali?’. Eu queria tanto que ele descesse. Eu me lembro de comprimi-lo e penteá-lo e ficar tão frustrada, pois era tão ousado e grande. Eu sentia que ocupava tanto espaço. Mas, por causa dessas mulheres [que me criaram], eu aprendi que… minha negritude não me inibe de ser linda e inteligente. Na verdade, esta é a razão de eu ser linda e inteligente. E você não pode me parar” (Amandla Stenberg, 2016)

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RESUMO

A televisão segue como meio de comunicação de massa mais acessado pelos brasileiros, que são de maioria autodeclarada preta ou parda. Porém, esta realidade não é transmitida pelos programas televisivos, que possuem uma baixa representação de personagens afrodescendentes e chegam ao ponto de reforçar estereótipos. Aplicando o estudo de caso (YIN, 2001), este trabalho tem como objetivo compreender de que forma o programa Espelho rompe com estas representações negativas sobre raça, gênero e classe social, resquícios do período escravocrata. Através da análise de conteúdo (BARDIN, 1977) das entrevistas das cantoras IZA, Liniker e Tássia Reis, na 12ª temporada do programa, mostra-se como Espelho busca inverter a ideologia do branqueamento enraizada nas produções audiovisuais brasileiras, tendo a maioria de convidados negros assim como seu apresentador e idealizador, Lázaro Ramos. Utiliza-se a figura da ialorixá, com os direcionamentos de Werneck (2007), e dos griôs para compreender como a ancestralidade auxilia no processo de empoderamento da população em questão. Com um olhar etnográfico, ocorre a construção das trajetórias sociais do apresentador e das entrevistadas, com base nos estudos de Velho (2013) e Ramos (2017), além etnografia dos episódios analisados por meio dos ensinamentos de Rocha (2010).

Palavras-chave: Comunicação; Gênero; Raça; Representatividade; Televisão.

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ABSTRACT

Television is still the most accessed mass media by the Brazilians who declared themselves as black or brown. However, this reality is not represented on TV programs, which underrepresent Afro-descendants characters and even reinforce stereotypes. Using the case study methodology (YIN, 2001), this paper aims at understanding how the TV show Espelho manages to break these negative representations about race, gender and social class, all traces of the slavery past. The aim here is to show how Espelho tries to invert the whitewashing ideology, which is deep-rooted in Brazilian audiovisual productions. In order to do so, the host, Lázaro Ramos, the black man who envisioned the show, invites mostly black guests. A content analysis (BARDIN, 1977) of the interviews given by the singers IZA, Liniker, and Tássia Reis during the 12th season of the show is carried out to understand how the program manages to succeed in its efforts. The figures of the ialorixá, with Werneck's (2007) guidance, and of the griots are used to comprehend how ancestry helps in the empowerment process of this population. With and ethnographic look, the construction of social trajectories of the host and interviewees takes place, based on the studies of Velho (2013) and Ramos (2017), besides the ethnography of the analyzed episodes guided by the teachings of Rocha (2010).

Keywords: Communication; Gender; Race; Representativity; Television

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Lázaro em peça do Bando, em 1996...... 33 Figura 2 - Lázaro Ramos no filme Madame Satã, em 2002...... 34 Figura 3 - Quadro “Me Representa” do programa Lazinho com Você...... 38 Figura 4 - Quadro Okawé do programa Espelho ...... 41 Figura 5 - Quadro “Uma Foto” programa Espelho...... 42 Figura 6 - Lázaro entrevista Drª Giovana Xavier no Espelho...... 43 Figura 7 - Tia Ciata ...... 48 Figura 8 - e ...... 50 Figura 9 - Elza Soares ...... 51 Figura 10 - Cantora IZA...... 60 Figura 11 - Cantora e compositora Tássia Reis...... 65 Figura 12 - Cantora e Compositora Liniker...... 69 Figura 13 - Fotografia da exposição Música: uma construção de gênero ...... 74 Figura 14 - Interior da Fábrica da Behring...... 83 Figura 15 - Liniker no programa Espelho...... 84 Figura 16 - Lázaro segura a câmera em Espelho ...... 84 Figura 17 - Entrevista de Lázaro com Liniker ...... 85 Figura 18 - Espelho como elemento presente ...... 86 Figura 19 - IZA segura a câmera ...... 87 Figura 20 - Os ângulos de IZA ...... 88 Figura 21 - Os ângulos de IZA...... 88 Figura 22 - Os ângulos de IZA ...... 88 Figura 23 - IZA segura o Espelho ...... 89 Figura 24 - Tássia em entrevista com Lázaro ...... 90 Figura 25 - Tássia em Espelho ...... 90 Figura 26 - Tássia segura o Espelho ...... 91 Figura 27 - Liniker e a frase: “poder ver que eu construo nas pessoas, e que junto com elas eu também me construo é o maior movimento de tudo que pode ter acontecido"...... 92 Figura 28 - IZA e a frase: “Eu sei que meu corpo te incomoda. Sinto muito, o azar é todo seu” ...... 92 Figura 29 - Tássia Reis e a frase: "existir é resistir" ...... 93

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SUMÁRIO

1INTRODUÇÃO ...... 13 2 METODOLOGIA ...... 16 3 REFERENCIAL TEÓRICO ...... 19 3.1 A ESCRAVIDÃO NO BRASIL ...... 19 3.1.1 O Brasil negro no período pós-abolição...... 20 3.2 O NEGRO EM MOVIMENTO...... 22 3.2.1 Mulheres negras e o cenário cultural: a televisão ...... 23 3.2.2 Mulheres negras e o cenário cultural: a música...... 24 3.3 A TELEVISÃO ...... 25 3.3.1 A entrevista televisiva ...... 27 4 O ESPELHO ESTÁ NO AR ...... 29 4.1 “HOJE POSSO DIZER QUE MEU LUGAR É AQUELE ONDE SONHEI ESTAR”: A TRAJETÓRIA SOCIAL DE LÁZARO RAMOS ...... 30 4.2 LÁZARO E O RELAÇÃO COM A MÍDIA: CINEMA ...... 33 4.3 LÁZARO E A RELAÇÃO COM A MÍDIA: CANAL FECHADO ...... 35 4.4 LÁZARO E A RELAÇÃO COM A MÍDIA: TELEVISÃO ABERTA E TELENOVELAS ...... 36 4.4.1 O caso da novela Lado a Lado ...... 38 4.5 “O ESPELHO DA VERDADE”: ESTUDO DE CASO DO PROGRAMA EM SUA 12ª TEMPORADA ...... 40 4.5.1 “Eu queria usar aquele espaço no Canal Brasil para propagar ideais”: a inserção de Lázaro Ramos enquanto entrevistador ...... 43 5 O PAPEL DE ANCESTRAIS NA ABERTURA DE ESPAÇO NO CENÁRIO CULTURAL PARA AS NOVAS GERAÇÕES ...... 46 5.1 TIA CIATA ...... 47 5.1.1 Clementina de Jesus ...... 49 5.1.2 Dona Ivone Lara ...... 49 5.1.3 Elza Soares ...... 50 5.2 "NOSSOS PASSOS VÊM DE LONGE" ...... 59 6 “EXISTIR NO MUNDO DE HOJE, NA SOCIEDADE DE HOJE, É RESISTIR PRA NÓS, NEGROS”: A TRAJETÓRIA SOCIAL DAS ENTREVISTADAS E AS QUESTÕES PROFISSIONAIS E DE GÊNERO EM PRIMEIRA PESSOA ...... 55 6.1 “A GENTE VAI CONSTRUINDO O QUE A GENTE REALMENTE QUER SER AO LONGO DA CAMINHADA, O IMPORTANTE MESMO É COMEÇAR”: IZA, DA ELABORAÇÃO À EXECUÇÃO ...... 59 6.2 “EU SEMPRE LEVEI A SÉRIO ESSAS PARADAS ASSIM”: TÁSSIA REIS, PROJETO E EMPODERAMENTO...... 62 6.2.1 “Aí, quer saber? Cê quer saber mesmo o que me incomoda?”: táticas de comunicabilidade e sobrevivência ...... 63 6.3 “MAS ACHO QUE DENTRO DE MIM TEM UM ÍMPETO DE FORÇA E DE CORAGEM QUE VEM DIANTE DE MIM E QUE JUNTO A ISSO SE SOMA COM A MINHA HISTÓRIA, ASSIM”: O PAPEL DAS GUARDIÃS DA MEMÓRIA E O ESPAÇO DE LIBERDADE ...... 68 6.3.1 “A partir do momento que você se lança no mundo, que você tá aberto às coisas, você vai abrindo um leque de possibilidades”: viver é melhor que sonhar .... 71

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6.4 “ACHO QUE O PRÓXIMO PASSO É CONTINUAR FAZENDO, SABE, CONTINUAR COM FORÇA, CONTINUAR TENDO CORAGEM PRA NINGUÉM ME INVISIBILIZAR E PRA NÃO ME SENTIR INVISIBILIZADA, E INCAPAZ DE FAZER O QUE EU ACREDITO, SABE”: O QUÊ SEUS PROJETOS REPRESENTAM ...... 72 7 REPRESENTATIVIDADE COMO FATOR DECISIVO ...... 75 7.1 A ESTÉTICA COMO AFIRMAÇÃO ...... 77 7.2 MODELOS DE REPRESENTATIVIDADE ...... 80 8 A NARRATIVA ETNOBIOGRÁFICA DOS EPISÓDIOS E SEUS DISPOSITIVOS CÊNICOS ...... 82 8.1 A INTIMIDADE E IDENTIDADE DE LINIKER ...... 83 8.2 A AUTONOMIA DE IZA ...... 86 8.3 A ESTÉTICA DE TÁSSIA ...... 89 8.4 MENSAGENS GRÁFICAS ...... 91 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 94 10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 95 APÊNDICES ...... 107

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1 INTRODUÇÃO

Atualmente, Espelho é o programa do formato entrevista há mais tempo no ar na televisão brasileira em canal fechado. Idealizado e apresentado pelo ator Lázaro Ramos, o conteúdo começou como uma proposta de produção cultural afirmativa e, com o passar das temporadas, os assuntos foram ampliados (RAMOS, 2017). Mesmo assim, as questões étnicorraciais mantêm-se presentes, já que os convidados são, em sua maioria, pessoas autodeclaradas pretas, cujas profissões variam de educadores a funções no meio artístico. As entrevistas selecionadas para análise foram veiculadas durante a 12ª temporada do programa, no ano de 2017, e são de três mulheres negras do campo artístico: Liniker, IZA e Tássia Reis.

O conteúdo é transmitido pela emissora Canal Brasil e disponibilizado na internet, através da plataforma de streaming Canal Brasil Play. Apesar da reprodução do programa também acontecer em outros locais, o foco deste trabalho mantém-se na televisão em canal fechado. Diante de acontecimentos e mudanças no conteúdo televisivo, artístico e cenário social, este trabalho busca compreender a relevância e influência do programa Espelho no enfrentamento ao racismo, discriminação de gênero e no rompimento de estereótipos.

A cada temporada, o programa possui um cenário específico e, a 12ª acontece na Antiga Fábrica da empresa Behring, no Rio de Janeiro, o que caracteriza uma mensagem estética. Desde a estreia de Espelho, em 2005, o país também passou por mudanças em seu próprio cenário social, no que tange relações étnicas e de gênero. No mesmo período acontece a aprovação da Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da cultura e história afrobrasileira em escolas públicas; a pioneira apresentação da política de ação afirmativa de reserva de vagas destinadas a negros e indígenas na Universidade de Brasília (UnB), em 2004, e a criação da Lei 11.340, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, em 2006.

A imagem possui um papel fundamental na sociedade brasileira, tornando a televisão um dos meios de comunicação de maior influência no país, já que no Brasil, o alcance médio diário da televisão por assinatura é de 51%, representando 17,6 milhões de pessoas no país, conforme o Kantar Ibope Media. Um dos gêneros mais consumidos pela massa são os programas de entrevistas, e dentre eles está

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Espelho. Com apresentação de Lázaro Ramos, ator e diretor autodeclarado negro e uma das personalidades mais influentes do Brasil, o conteúdo se diferencia dos demais formatos, como telenovelas, que possuem um baixo número de pessoas pretas ou pardas em suas exibições com uma proposta diferenciada ao manter a população negra em destaque em suas produções.

Tais informações denotam que a ascensão social está ligada à cor da pele, o que reflete nos meios de comunicação, principalmente, na televisão. No entanto, não representam a cor predominante da população brasileira, de acordo com dados apresentados no último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, no qual 54% da população se autodeclarou preta ou parda. Em contrapartida, o programa Espelho, somente em 2017, teve 17 convidados negros em 26 episódios veiculados.

As entrevistas descritas, a seguir, são as únicas a atender aos critérios de seleção estipulados; Liniker, IZA e Tássia Reis são três mulheres negras em ascensão no campo artístico e seus depoimentos, transmitidos durante a 12ª temporada, se interligam, pois permeiam pela falta de representatividade na televisão e por suas experiências com o racismo e discriminação de gênero. Nascidas no final da década de 1980 e início de 1990, nas regiões suburbanas dos Estados de Rio de Janeiro e São Paulo, elas enquadram-se na nova geração de cantoras brasileiras. Todas as convidadas, cujas entrevistas serão utilizadas para este trabalho, se identificam enquanto mulheres – sendo duas delas cisgênero1 e uma transexual. Busca-se mostrar como a exibição do programa e o protagonismo dado a elas são importantes, já que o Brasil possui uma das maiores taxas, em nível mundial, de feminicídios2, homicídios de pessoas negras3 e de transexuais4. A escolha dos recortes de classe social, gênero e raça5 são justificados pelo tratamento da mulher negra na sociedade brasileira, sendo o grupo social mais

1 Pessoa que se identifica com o sexo biológico (JESUS, 2012). 2 Informação retirada de: https://nacoesunidas.org/onu-feminicidio-brasil-quinto-maior-mundo- diretrizes-nacionais-buscam-solucao. Acesso em: 30 jun. 2018. 3 Segundo as Nações Unidas, sete em cada 10 pessoas assassinadas no Brasil são negras. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2018. 4 Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2018. 5 Neste trabalho, raça será trabalhada em seu aspecto sociológico, conforme Sodré (1999).

14 atingido por violências urbanas, de acordo com o Mapa da Violência de 2015. Esta pesquisa atém-se à narrativa destas mulheres, não sendo sua obra e as performances o foco deste trabalho.

Assim, este trabalho trabalha com a hipótese de que o protagonismo e a exibição do trabalho de pessoas negras em diferentes espaços, posições sociais e profissões contribuem para uma quebra no imaginário da sociedade brasileira, que vê negros sempre em funções subalternas e coadjuvantes da história no país. Principalmente, mulheres negras, constantemente configuradas como empregadas domésticas, profissão considerada subalterna, ou musas carnavalescas hiperssexualizadas. Além disso, o formato do programa contribui para que as convidadas possam falar sobre si mesmas em primeira pessoa, tornando-se protagonistas do episódio e se tornando símbolos de representatividade negra. Desta forma, dizendo que a televisão pode enraizar ou quebrar estereótipos no imaginário social. A baixa produção de trabalhos acadêmicos sobre o assunto, acrescido à militância dentro do movimento negro da autora deste Trabalho de Conclusão de Curso, também instigam esta pesquisa. Portanto, busca-se compreender as possibilidades de rompimento de estereótipos raciais e de gênero no imaginário social brasileiro, construídos pela mídia televisiva, a partir do estudo de caso do programa e da análise das três entrevistas selecionadas.

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2 METODOLOGIA

O seguinte capítulo irá discutir como se deu o processo de construção deste Trabalho de Conclusão de Curso, com estrutura baseada nos autores Prodanov e Freitas (2013). É necessário informar, inicialmente, que desde novembro de 2017 é tentado o contato com a produção do programa Espelho e não foi obtido qualquer tipo de retorno. Mesmo assim, a metodologia deste trabalho seguiu os objetivos de pesquisa traçados e foram desenvolvidos com base nas aprendizagens do Grupo de Pesquisa em Metropolização6, da Universidade Feevale, do qual a autora deste trabalho foi participante.

A partir dos estudos de Machado e Vélez (2007), focados na metodologia em televisão, são pontuadas as dificuldades de caracterização do gênero televisivo, porém sugerem que a seleção do objeto de estudo para análise deve se destacar na programação, não apenas em aspectos técnicos, “mas na relevância dos programas enquanto contribuições singulares à televisão e à cultura contemporânea” (MACHADO; VÉLEZ, 2007, p.9).

O tema deste trabalho é a relevância do programa Espelho para o enfrentamento ao racismo e sexismo na sociedade brasileira, através das entrevistas de cantoras negras em sua 12ª temporada, respondendo ao problema: como as questões de gênero e étnicorracial são abordadas nos três episódios selecionados da décima segunda temporada do Programa Espelho?

Para isso, os procedimentos técnicos utilizados foram as pesquisas bibliográfica e documental, que se deram através de exploração de diversos documentos, como depoimentos, reportagens, livros e entrevistas, digitais e em vídeos, que abordam o objeto selecionado (PRODANOV; FREITAS, 2013). O mesmo ocorreu com o levantamento do material relacionado às cantoras Clementina de Jesus, Elza Soares, Tia Ciata e Dona Ivone Lara, símbolos culturais do século XX. Na pesquisa documental, este material é chamado por Gil (2010) de

6 Bolsista de Iniciação Científica (BIC) Feevale no Projeto Memórias do Mundo do Trabalho, Práticas Sociais e Representações Simbólicas Coleções Etnográficas e Etnografia Audiovisual de bairros nas metrópoles contemporâneas, desde 2015.

16 documentos de primeira mão.

Além do levantamento bibliográfico e documental da pesquisa de caráter exploratório, foi realizado um estudo de caso, utilizando o autor Yin (2001), para a análise do programa Espelho que se deu de forma documental. Este processo surge a partir da concepção de um programa por um ator autodeclarado negro, responsável pela direção e apresentação. Esta característica contrasta com as demais propostas, de programas da mesma categoria e gênero, reflete nos convidados entrevistados e temas abordados.

A invisibilidade gerada pelo gênero e raça é mais uma dificuldade para esta pesquisa, portanto, articula-se a análise de conteúdo, que busca “evidenciar os indicadores que permitam inferir sobre outra realidade que não a da mensagem” (BARDIN, 1977, p.46). Este artifício é usado de maneira mais operacional e mescla-se à pesquisa bibliográfica.

Para uma melhor compreensão dos episódios, foi realizada a decupagem e transcrição dos três episódios, cujos conteúdos foram analisados, categorizados e, por fim, agrupados, conforme Bardin (1977) e estão localizados na íntegra nos Apêndices deste trabalho e em trechos nos capítulos, seguindo a Associação Brasileira de Normas Técnicas (NBR 10520). As categorias desenvolvidas, a partir dos objetivos, são:

 Quadros do programa;  Representatividade;  Feminismo e discriminação de gênero;  Racismo;  Trajetória social;  Mercado de trabalho;  Identidade de gênero;  Passagem de canto;  Narrativa biográfica.

Sendo raça, gênero e trajetória social os temas mais recorrentes, o objetivo geral desta pesquisa é compreender as possibilidades de rompimentos de estereótipos raciais e de gênero no imaginário social brasileiro, construídos pela 17 mídia televisiva, a partir do estudo das três entrevistas selecionadas.

Com os direcionamentos de Velho (2013), a trajetória social de cada uma dessas mulheres, assim como a de Lázaro, foi construída para que sua história pudesse ser contada em uma posição de protagonismo e por elas mesmas, compreendendo como elas vivem e sobrevivem na sociedade brasileira. Para auxiliar na resolução dos objetivos geral e específicos estipulados, a etnografia dos episódios foi realizada, através de Rocha (2010), utilizando imagens para ilustrar e situar. Os objetivos específicos deste trabalho são: analisar a forma como o programa Espelho aborda as questões relacionadas aos estereótipos produzidos no imaginário social brasileiro em relação à figura da mulher negra; descrever os dispositivos técnicos, cênicos e dramáticos que configuram a produção dos três episódios selecionados; analisar como o racismo e a discriminação de gênero são apresentados nas três entrevistas selecionadas; e pesquisar mulheres negras que foram pioneiras no cenário artístico nacional.

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3 REFERENCIAL TEÓRICO

No tópico a seguir, serão caracterizados os conceitos norteadores desta pesquisa. Neste trabalho, defende-se que acontecimentos históricos influenciaram diretamente as relações sociais e como refletiram nas experiências audiovisuais brasileiras.

3.1 A ESCRAVIDÃO NO BRASIL

Para contextualizar a situação atual do negro no Brasil, é necessário citar a história desde o descobrimento do país, em 1500. Durante o regime escravocrata, estima-se que 15 milhões de pessoas tenham sido trazidas do continente africano às Américas, entre os séculos XV e XIX. Somente ao Brasil, foram quatro milhões submetidas ao trabalho escravo (SCHUMAHER; BRAZIL, 2013). Além disso, uma rotina de castigos físicos e morada em senzalas faziam parte da vida dos negros escravizados. Por esta situação denotar uma opressão, neste trabalho é utilizado o termo escravizado, não escravo.

[...] escravizado modifica a carga semântica e denuncia o processo de violência subjacente à perda da identidade, trazendo à tona um conteúdo de caráter histórico e social atinente à luta pelo poder de pessoas sobre pessoas, além de marcar a arbitrariedade e o abuso da força dos opressores. (HARKOT-DE-LA-TAILLE; SANTOS, 2012, sem paginação).

Após a chegada dos navios negreiros, os escravizados eram leiloados e vistoriados por compradores em uma feira em que eram organizados, por idade e sexo biológico, e, assim, separados de suas famílias. Para as mulheres, então selecionadas, sobravam afazeres domésticos, além de “um futuro de exploração sexual e física”, de acordo com Schumaher e Brazil (2013, p. 23), já que muitas delas eram prostituídas por escravocratas como forma de exploração e, consequentemente, vítimas de estupro por seus compradores.

O regime, que perdurou de 1530 a 1888, era economicamente rentável para a Coroa Portuguesa. Tanto que no final do século XVIII, há o maior número de registros de comércio humano nos portos do Rio de Janeiro. No mesmo período,

19 inicia o processo de industrialização nos centros urbanos, onde são construídas calçadas, prédios, estradas e monumentos (SCHUMAHER; BRAZIL, 2013). Ao passo em que ocorriam mudanças estruturais, a sociedade também se modificou.

Em quatro de setembro de 1850, foi assinada a Lei Eusébio de Queiroz, que proibia o tráfico de africanos e, em 28 de setembro de 1871, vigora a Lei do Ventre, que garantia a liberdade dos filhos de mulheres escravizadas, ambas decretadas por Dom Pedro II. Logo após, a partir de revoltas abolicionistas em todo o país, o Brasil assinou a Lei Áurea em 13 de maio de 1888 e se torna o último país a abolir a escravidão nas Américas. Porém, a liberdade e a equiparação social não vieram junto com a assinatura (SCHUMAHER; BRAZIL, 2013).

3.1.1 O Brasil negro no período pós-abolição

Logo após a Abolição da Escravatura, não houve qualquer amparo aos ex- escravizados. Foi neste momento em que a desigualdade social foi reforçada, assim como a invisibilidade da população negra, atingindo principalmente às mulheres. Após a Abolição, era possível ver mulheres negras trabalhando como sitiantes, agricultoras, meeiras e vendedoras (NEPOMUCENO, 2013). Um dos principais reflexos da escravidão na sociedade atual é o desprezo com as profissões que exigem menos escolaridade, demais funções consideradas subalternas e os trabalhos que exijam esforço físico (SCHUMAHER; BRAZIL, 2013). Um dos exemplos é o trabalho doméstico, cuja raiz patriarcal e as características de servidão e escravocrata contribuíram para a permanência da hierarquia baseada em raça, gênero e classe social (SANCHES, 2009).

Ao criar um “ciclo de vulnerabilidade que se estende às gerações mais novas” (NEPOMUCENO, 2013, p. 389), esta atividade remunerada ainda é importante para a renda de mulheres brasileiras, principalmente negras, já que é a ocupação principal de 18% delas, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Em 2015, a Organização Mundial do Trabalho (OIT)7 constatou que 71%

7 Informações retiradas do site da Organização Mundial do Trabalho (OIT). Disponível em: Acesso em: 02 nov. 2017. 20 dessas trabalhadoras são negras, com idade entre 10 e 17, tendência definida por Sanches (2009, p.880) como a “porta de entrada” deste grupo ao mercado de trabalho.

Além do cerceamento ao mercado de trabalho, na área educacional ocorre o mesmo. A falta de acesso à educação é registrada por Domingues (2008), que descreve a criação de escolas, no Estado de São Paulo, por iniciativa de pessoas negras, que não conseguiam inserir seus descendentes em escolas já existentes, predominantemente ocupadas por pessoas brancas. Porém, estas instituições se mantiveram por pouco tempo por de falta de recursos e apoio Estatal, além da pouca qualificação pedagógica dos gestores:

Não há consenso acerca das razões que levaram os negros a criar suas próprias escolas. Uma das hipóteses é que a disputa por um “lugar ao sol” entre os vários grupos étnicos que viviam em São Paulo [...]. (DEMARTINI apud DOMINGUES, 2008, p. 52-53).

A demora desta integração reflete no século XXI, pois constatou-se, em 2015, que a população negra adulta, que possui 12 anos ou mais de estudo, passou de 3,3% para 12%, número que as pessoas brancas já haviam alcançado em 1995, conforme dados do IPEA. Esta informação constata uma desigualdade racial e social, afetando mais as mulheres já que “a escolarização, para a mulher negra, não é uma garantia automática de acesso a postos de trabalho mais valorizados ou a melhores salários” (NEPOMUCENO, 2013, p. 394), mesmo que a educação seja uma das formas para a ascensão social.

No início do século XX, no Rio de Janeiro, observou-se a proliferação de cortiços nos centros urbanos e muitos destes lares chefiados por mulheres negras sem a presença masculina e muitos com o homem negro sem renda, já que não possuía oportunidades de inserção no mercado de trabalho (NEPOMUCENO, 2013). Estas ocupações de casarões coloniais se tornaram habitações coletivas, como descreve a autora Nepomuceno (2013, p. 386). Quando foram demolidos, os moradores se mudaram para favelas ou bairros mais pobres localizados em regiões periféricas. A partir destes incidentes, podemos compreender a geografia em que o Brasil se encontra e de que forma o racismo e desigualdade social se estabeleceu na sociedade.

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3.2 O NEGRO EM MOVIMENTO

Os escravizados, vindos do continente africano, trouxeram consigo os hábitos e práticas de sua localidade, o que influenciou a construção da cultura brasileira. No entanto, alguns destes hábitos culturais foram associados ao charlatanismo, como a religião de matriz africana candomblé, o que resultou em perseguições policiais até 1940 (NEPOMUCENO, 2013). Estas ações se estenderam até a década 1960, no período da Ditadura Militar, em que se perseguia bailes culturais negros, no Rio de Janeiro, sob a justificativa de “suspeita de que um revolucionário americano estaria no Brasil recrutando militantes para implementar no país um regime de segregação racial” (OLIVEIRA, 2015, online).

Nepomuceno (2013) coloca que, desde a Abolição da Escravatura, o racismo alterou seus métodos e criaram-se formas sutis de impedir a ascensão da população negra. O que pode ser definido como racismo institucional, em que são naturalizadas e reproduzidas as formas de discriminação racial no funcionamento de instituições (LÓPEZ, 2012).

Estas ações foram determinantes para que os negros se mobilizassem contra o Estado e se organizassem em grupos. Já no século XIX é possível identificar estas articulações, como a criação de jornais impressos, e em meados de 1920, a fundação de clubes recreativos desenvolvidos por negros e demais grupos, como Centro Cívico Palmares e a Frente Negra Brasileira, em 1931. Estas organizações foram precursoras e inspiraram a criação de outras, além de eventos pelo Brasil afora, como a Convenção Nacional o Negro, em 1940. Um dos marcos foi a criação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU), em 1978. Esta organização contribuiu para a instauração da data comemorativa, reconhecida nacionalmente, em alusão ao líder abolicionista Zumbi dos Palmares, o Dia da Consciência Negra em 20 de novembro (SCHUMAHER; BRAZIL, 2013).

A partir da demanda destes movimentos, o Brasil inicia a sua reparação através de políticas públicas, ação definida por López (2012, p. 124) como forma de “evidenciar o racismo na sociedade brasileira e demandar ações governamentais [...]”. Um dos principais exemplos é a lei de reserva de vagas em universidades federais, primeiramente implementada no segundo semestre de 2004, pela 22

Universidade de Brasília (UnB).

O papel das mulheres negras é fundamental nestes movimentos, cujo legado permanece até os dias de hoje. A inserção da problemática de gênero, com a temática étnicorracial deixa um legado para o feminismo negro, cujos trabalhos pioneiros mantém-se influentes. Podemos apontar a historiadora, antropóloga e filósofa e cofundadora do MNU, Lélia González; a historiadora e cofundadora do Instituto de Pesquisas da Cultura Negra, Maria Beatriz Nascimento; e a Presidenta do Conselho Nacional de Mulheres Negras, ligado ao Teatro Experimental do Negro, a assistente social Maria Nascimento (SCHUMAHER; BRAZIL, 2013). A partir da criação e estruturação destes movimentos e organizações, observa-se a capacidade da população negra em criar táticas astutas (CERTEAU, 2014) como forma de superar o racismo institucional instaurado na sociedade brasileira, principalmente no cenário cultural.

3.3.1 Mulheres negras e o cenário cultural: a televisão

Dentre tantas iniciativas que introduziram as pessoas negras ao cenário cultural, o teatro e a música foram as principais formas. Em 1941, Abdias Nascimento cria o Teatro Experimental do Negro (TEN), grupo teatral que tem como objetivo resgatar a afirmação da negritude através das artes cênicas, além de promover aulas de alfabetização. O grupo, fundado no Rio de Janeiro, durou até 1968 em função da repressão durante a Ditadura Militar (SCHUMAHER; BRAZIL, 2013). Dentro do TEN, surgiram nomes como Ruth de Souza, a primeira atriz negra a representar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Posteriormente, ela trabalhou em emissoras de televisão, como TV Tupi, Record, TV Excelsior e a Rede Globo de Televisão, em suas produções de telenovelas.

Do teatro à televisão, a população negra começou a se inserir nos espaços, motivados pelos movimentos de décadas anteriores. Porém, as telenovelas da Rede Globo de Televisão, por exemplo, nos últimos 20 anos, apresentaram 10% de personagens interpretados por atores ou atrizes autodeclarados negros, conforme divulgado pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA).

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Desta forma, é visível a limitação de papéis, cujas interpretações circulam entre escravizados ou bandidos:

Com referência ao negro, a mídia, a indústria cultural, constroem identidades virtuais a partir, não só da negação e do recalcamento, mas também de um saber de sendo comum alimentado por uma longa tradição ocidental de preconceitos e rejeições. Da identidade virtual nascem os estereótipos e as folclorizações em torno do indivíduo de pele escura. (SODRÉ, 1999, 246).

3.2.2 Mulheres negras e o cenário cultural: a música

Quando partimos para a cena musical, temos o samba como mais uma herança dos escravizados negros, ritmo musical definido por Werneck (2009, p.160) como “principal produto afro-brasileiro à disposição da indústria cultural do século XX no Brasil e fora dele”. A primeira música gravada foi Pelo Telefone, em 1917 pelo sambista , divulgado pelas rádios nos anos 1920 e 1930, ação que ajuda na profissionalização do ritmo. Este é o momento em que vários artistas aparecem, como e (LUDWIG, 2010). Quando se fala da importância das mulheres negras para a formação do ritmo em questão, temos nomes que influenciam artistas até os dias atuais. Inseridas em um contexto em que o samba é um ritmo hegemonicamente masculino, desta época em questão, pode-se citar as cantoras Clemetina de Jesus (1901-1987), Dona Zica (1913-2003), Dona Ivone Lara (1921-2018) Jovelina Pérola Negra (1944-1998), Elza Soares (1937 - ), Leci Brandão (1944 -), Alcione (1947- ) e Tia Surica (1940 - ).

Em função de seu trabalho, o samba alavancou sua popularidade e passou a ser considerado “produto dotado de valor de venda e capaz de conferir prestígio social” (WERNECK, 2009, p. 160). Apesar de tantas figuras emblemáticas, um dos personagens populares do samba, principalmente durante o Carnaval, é a figura da mulata, estereótipo existente desde o período colonial. Esta forma de representação de dançarina feminina, oriunda do samba chegou à televisão na década de 1990, através da personagem Mulata Globeleza, criada pela Rede Globo de Televisão, que apareceu seminua até 2016. González (1984) aponta que a personagem mulata é uma mistura entre a doméstica e a mucama, assim denominada a escravizada negra que utilizada para o prazer sexual de escravocratas. Esta personagem é 24 considerada um estereótipo na sociedade brasileira, reforçada pela televisão:

Desde o período colonial, mulheres negras são estereotipadas como sendo “quentes”, naturalmente sensuais, sedutoras de homens. Essas classificações, vistas a partir do olhar do colonizador, romantizam o fato de que essas mulheres estavam na condição de escravas e, portanto, eram estupradas e violentadas, ou seja, sua vontade não existia perante seus “senhores” (RIBEIRO; RIBEIRO, 2016, online).

As autoras ainda destacam que a origem da palavra mulata é espanhola, vinda de mula, animal híbrido. Portanto, considera-se uma nomenclatura “pejorativa que indica mestiçagem, impureza”, já que era um indicativo para mulheres de tom de pele mais claro (RIBEIRO; RIBEIRO, 2016, online). Pode-se, então, perceber uma das formas que o racismo e sexismo permanecem na sociedade. A geração de artistas negras, nascidas no final dos anos 1980 e durante a década de 1990, no Brasil, sofreram a influência de cantoras que começaram sua carreira na metade do século XX. Não somente na questão rítmica, mas enquanto na condição enquanto negras e militantes. Sodré (1999, p. 246) afirma a instauração de um “racismo midiático na televisão brasileira e como gera a estigmatizarão da pele escura, que define ser o “ponto de partida para discriminação, consciente ou não”.

3.3 A TELEVISÃO

Durante o governo do presidente Getúlio Vargas (1951-1954)8, o Brasil encontrava-se em processo de industrialização e expansão econômica, o que acarretou diversas mudanças em seu contexto social (CAPUTO; MELO, 2009). O início da década 1950 é marcado pela vinda de um dos meios de comunicação de massa mais influentes, a televisão, por meio de negociatas do empresário e jornalista Francisco de Assis Chateubriand Bandeira de Melo, dono dos Diários Associados, com empresas americanas. Em 18 de setembro de 1950, inaugura a PRF-3 TV Difusora de São Paulo, posteriormente renomeada de TV Tupi Difusora de São Paulo, primeira emissora brasileira e precursora na América Latina (PATERNOSTRO, 2006). O programa, apresentado por Cassiano Gabus Mendes, TV Na Taba foi primeiro contato da população com a televisão.

8 Este trabalho detém-se a apenas um período da Era Vargas. 25

No ano seguinte, é criada a TV Tupi do Rio, no estado do Rio de Janeiro. De acordo com Paternostro (2006), em seus primórdios, o equipamento televisivo era considerado um produto das elites em função do preço de aquisição e, desta forma, era desenvolvida sua programação, que contava com teleteatros, debates, entrevistas e música clássica. A partir de 1958, o equipamento se consolida, já que se constata a aquisição de 78 mil televisores em todo o território nacional.

Em 1959, surge o videotape, o VT, que altera a dinâmica de transmissão, fazendo com que o mesmo conteúdo fosse gravado e reproduzido em demais emissoras, e em outros estados, e garantiam a qualidade dos programas de maneira mais rápida (BRASIL, 2012). Antes disso, o improviso em telenovelas ao vivo predominava na grade de programação. Durante a Ditadura Militar (1964-1985), mais precisamente em 1965, surge a Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel), estrutura para as redes nacionais de televisão responsável pela transmissão via satélite. No mesmo ano, o jornalista cria a TV Globo, das Organizações Globo. Que, então, se tornaria uma das mais importantes emissoras do mundo, com uma programação popular, que incluía programas do gênero de entrevistas de auditório e humor, além de programas de telejornalismo (PARTENOSTRO, 2006).

Em um cenário de repressão em que vigora o Ato Institucional 5 (AI-5), sob governo do presidente Emílio Garrastazu Médici, em 1972, acontece a primeira transmissão a cores: a Festa da Uva de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. O que determinou um avanço tecnológico em um cenário conservador, me que a censura prévia foi instaurada e alguns programas foram retirados do ar. A partir destas ações, podemos analisar a importância da imagem que, de acordo com Brasil (2012, p. 25), “é mais que pura referência estética ou um convite ao lúdico ao sempre bem- vindo ao ‘entretenimento”.

À imagem, enquanto nova linguagem universal, cabe à representação de um novo saber, produto de uma inteligência coletiva, interconectada pelas redes de informação, sem fronteiras, planetária, produto de um novo processo de expansão da consciência humana. (BRASIL, 2012, p. 87).

Os anos passam e a Ditadura tem seu fim decretado, em 1985, e as grandes produções, por parte de emissoras brasileiras, é a novidade da década: a inserção da literatura na televisão (BRASIL, 2012), a partir da elaboração de minisséries, 26 como o Tempo e O Vento, baseada na obra literária do escritor Érico Veríssimo. Na década de 1990, o público habitua-se a mais transmissões ao vivo de grandes eventos e à implementação da televisão por assinatura (PATERNOSTRO, 2006. p.35). De início, em função do custo considerado alto, não atrai a população, apesar da variedade de canais e o contato com emissoras estrangeiras. Atualmente, a televisão aberta continua sendo a mais acessada, correspondendo a 17,51% contra 10,89%9 da televisão por assinatura. Desde sua vinda, o equipamento faz parte da rotina dos brasileiros, já que 77% afirmam assistir televisão todos os dias10. Dentre os gêneros presentes na televisão brasileira, podemos citar os programas de auditório, humorístico, telenovela, telejornal e entrevista.

3.3.1 A entrevista televisiva

A entrevista é definida por Medina (1995, p.8) como uma “técnica de interação social, de interpenetração informativa, quebrando assim isolamentos grupais, individuais e sociais”. No jornalismo, é utilizada para obter informações e é classificada em diversos tipos, cada um especificado para cada finalidade. Usando a classificação de Morin (1966), a entrevista pode ser anedótica, utilizada em conversações fúteis; neoconfissões, uma ferramenta de manipulação sensacionalista; a entrevista-rito curta e rápida, usada em acontecimentos específicos; e a entrevista diálogo na qual as participantes da entrevista conversam com o objetivo de trazer à tona uma verdade.

Independentemente do tipo, “as entrevistas de rádio-cinemas-televisão são uma comunicação pessoal com um fim de informação pública e/ou espetacular” (MORIN, 1966, p. 59). Em meados dos anos 1950, com o país ainda sob forte influência do rádio, principal meio de comunicação da época, os profissionais

9 Informação retirada de Dados Media Brasil. Disponível em: . Acesso em 30 set. 2017. 10 Dados retirados da Pesquisa Brasileira de Mídia (PBM), de 23 de março de 2016 a 11 de abril de 2016. Disponível em: . Acesso: 09 Out. 2016.

27 selecionados para as transmissões televisivas eram personalidades radiofônicas. Uma delas era , atriz da Era de Ouro do Rádio brasileiro, nos anos 1940. Em 1955, na TV Tupi de São Paulo, ela estreou o programa O Mundo é das Mulheres11, primeiro programa da televisão com a temática feminina. Depois de um hiato, na década de 1960, Hebe retorna como apresentadora do programa que leva seu nome, entrevistando, segundo Miceli (1982. p. 230) “cabeleireiros, costureiros, tocadores de harpa, cientistas, profissionais liberais “inovadores”, autoridades, professores”. O programa passou por algumas emissoras, como Bandeirantes e Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) e foi um dos primeiros da categoria informação do gênero entrevista. Dentre tantas emissoras, o programa durou quase quatro décadas12. Um dos segredos de sucesso do programa foi a identificação do público em relação à apresentadora, que era representada em revistas da época como “mãe extremada e filha amorosa” e por sua simpatia no vídeo, que era descrita pelo público como simples, simpática e bem-humorada (MICELI, 1972. p. 52).

Outros destaques do gênero entrevista surgiram na década de 1980: os programas Roda Viva, Sem Censura e o início da carreira da jornalista e entrevistadora Marília Gabriela. Ao pontuar formatos e temas, estes programas servem de referência às produções do mesmo gênero no século XXI.

11 Informação extraída do site Portal Imprensa. Disponível em: Acesso em: 6 out 2017. 12 Classificação usada por Souza (2015).

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4 O ESPELHO ESTÁ NO AR

“Conta-se que no princípio havia uma única verdade no mundo. Entre o Orun (mundo espiritual) e o Aiyê (mundo material) havia um espelho. Daí é que tudo que se mostrava no Orun materializava-se no Aiyê. Ou seja, tudo que estava no mundo espiritual refletia exatamente no mundo material. Ninguém tinha a menor dúvida sobre os acontecimentos como verdades absolutas. Todo cuidado era pouco para não quebrar o espelho da verdade. O espelho ficava bem perto do Orun e bem perto do Aiyê. Naquele tempo, vivia no Aiyê uma jovem muito trabalhadora que se chamava Mahura. A jovem trabalhava dia e noite ajudando sua mãe a pilar inhames. Um dia, inadvertidamente, perdendo o controle do movimento ritmado da mão do pilão, tocou forte no espelho que se espatifou pelo mundo. Assustada, Mahura saiu desesperada para se desculpar com Olorum. Qual não foi a sua surpresa quando o encontrou tranquilamente deitado a sombra do Iroko (árvore considerada sagrada para os iorubanos). Depois de ouvir suas desculpas com toda a atenção, declarou que dado aquele acontecimento, daquele dia em diante não existiria mais uma única verdade e concluiu: De hoje em diante, quem encontrar um pedacinho de espelho em qualquer parte do mundo, estará encontrando apenas uma parte da verdade porque o espelho reproduz apenas a imagem do lugar onde ele se encontra” 13.

Este capítulo detém-se a relatar as percepções sobre o programa Espelho através uma perspectiva mais técnica, voltada para a comunicação e antropologia. Para isso, apresenta-se a trajetória social do idealizador de Espelho, o ator e diretor Lázaro Ramos, analisando de que forma ocorre sua inserção enquanto entrevistador e como esta prática auxilia na resolução do problema de pesquisa, o diferenciando dos demais programas televisivos do mesmo formato. Aliado a isto, aplica-se um estudo de caso sobre Espelho como método para uma maior compreensão acerca da sua produção e concepção.

13 História mítica adaptada por Vanda Machado e Carlos Petrovich para a Cartilha das religiões publicada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos em 2004, contada por Vanda em um dos episódios de Espelho. Acesso em: 28 mai. 2018.

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4.1 “HOJE POSSO DIZER QUE MEU LUGAR É AQUELE ONDE SONHEI ESTAR”: A TRAJETÓRIA SOCIAL DE LÁZARO RAMOS

Utiliza-se a autobiografia de Lázaro Ramos (RAMOS, 2017) para fundamentação e construção de sua trajetória social (VELHO, 2013). A partir da leitura do livro, buscam-se bases para perceber na trajetória profissional a importância do programa em questão.

Luís Lázaro Sacramento Ramos nasceu na Ilha do Paty, distrito de São Francisco do Conde, na cidade de Salvador, no Estado da Bahia, em 1º de novembro de 1978. A Ilha do Paty é descrita como um local com a “religiosidade como traço importante de seu cotidiano”, tendo como padroeiro São Roque, que no candomblé, é o orixá Omolu (RAMOS, 2017, p. 21). As festividades e datas comemorativas na Ilha tinham grande participação da comunidade e eram vistas uma forma de preservação do patrimônio histórico e cultural da região. Nesta localidade específica, quatro famílias residem - os Queiroz, os Amorim, os Ramos, os Sacramento, e é onde seus pais nasceram e se conheceram. Lázaro é o único filho de Célia Maria do Sacramento, empregada doméstica falecida em 1999, e Ivan Ramos, operador de máquinas aposentado de um polo petroquímico. Seus pais não mantiveram um relacionamento, assim, Lázaro conviveu com eles em momentos diferentes, mas ambos muito presentes em sua vida. Ele foi batizado em homenagem à igreja sincrética da região, São Lázaro.

Depois de residir “nos três pontos cardeais de Salvador”, aos cinco anos, Lázaro vai morar com sua tia-avó Elenita, assim como seu pai, Ivan. Dindinha, como foi apelidada, também foi empregada doméstica e é uma figura importante que criou e cuidou de 19 familiares em uma morada descrita como “um porto seguro para todos”, mesmo faltando espaço para tanta gente, onde colchões embaixo da mesa eram as opções para o descanso. Ela o marido, Dudu, apresentaram o candomblé à Lázaro e esta exposição à religião de matriz africana influenciou sua trajetória, principalmente no que tange ao campo profissional: “conhecer o candomblé me ajudou a entender uma forma de organização social que esteve muito presente na minha infância” (RAMOS, 2017, p.32). A citação refere-se à ancestralidade e “uma

30 reverência a experiência dos mais velhos”. Aliado a religiosidade, está a figura dos griôs14, que mesmo sendo presença constante na infância de Lázaro, na Bahia, este entendimento viria apenas na fase adulta. Percebe-se que esta aproximação dá a ele a sensibilidade em relação à ancestralidade, negritude e papéis de gênero, influenciando seu projeto e, consequentemente, ampliando seu campo de possibilidades (VELHO, 2013).

Além das festas comunitárias, outra forma de entretenimento da sua infância foi a televisão, mais especificamente, o programa Balão Mágico15, em que um dos atores mirins da trama era Jairzinho16, e acabou se tornando o ídolo de Lázaro pela identificação visual ao ser uma das poucas crianças negras na televisão em um programa voltado a este público. Neste mesmo período, ao testemunhar os esforços de sua família, dizia que a profissão que gostaria de seguir era a de médico, em função do retorno financeiro. A declaração, que marca as decisões profissionais e de escolaridade, é de sua geração ser a primeira da família a frequentar o ensino superior, e como a ascensão através do estudo ajudou a romper estigmas sociais presentes em sua família. Até final do ensino fundamental, estuda em escolas particulares, e percebe as mudanças nas instituições, já que na infância existia uma quantidade equilibrada entre brancos e negros, e mais tarde não teria quase nenhum aluno parecido com ele pelos corredores.

Ao completar 14 anos, Lázaro vai morar com o pai no bairro Garcia, uma localidade que descreve ser pouco iluminada e com estrada de terra batida. Considerada por ele uma “uma mudança difícil”, já que troca de escola e, consequentemente, altera sua rotina. Esta é a região onde os vizinhos se tornam amigos, cujas famílias se encontram em níveis semelhantes, como baixo grau de escolaridade, porém cada um com a sua trajetória (RAMOS, 2017). Dentro de uma sociedade complexa e heterogênea, conforme Velho (2013), ocorrem estas

14 Neste trabalho será usada a definição de Silva (2013), que define parcialmente os griôs como uma “espécie de historiador africano ou um contador de histórias de vilarejo”. 15 Programa da Rede Globo de Televisão exibido de 26 de março de 1983 a 28 de junho de 1986. Disponível em: Acesso em: 16 mai. 2018. 16 Filho do cantor , atualmente, é cantor e compositor, utilizando o nome de Jair Oliveira. Disponível em: Acesso em: 16 mai. 2018.

31 situações em que estilos de vida e visões de mundo contrastantes se cruzam, fato que marca a autopercepção de individualidade singular e, significando uma “maior elaboração de um projeto”, que segue em constante reformulação (VELHO, 2013, sem paginação).

Quase próximo do desejo da infância, na adolescência, cursa o ensino médio no Colégio Anísio Teixeira, onde se formou técnico em patologia, condição para iniciar os estudos em teatro na mesma instituição. A vontade de perder a timidez o inclina a esta área artística, não o desejo de seguir a profissão, pois, assim como sua família, não via como algo rentável. Ao participar de um workshop do Bando de Teatro Olodum, Lázaro se tornou integrante do grupo teatral aos 16 anos de idade, sendo o único da escola selecionado. Ao Bando, atribui sua formação enquanto ator e entendimento sobre sua condição enquanto negro na sociedade brasileira. O Bando de Teatro Olodum17 é grupo teatral de Salvador, Bahia, que existe há 28 anos. Formado apenas por atores negros, o Bando tem como objetivo o enfrentamento ao racismo, fazendo com que a sua história assemelhe-se ao Teatro Experimental do Negro, grupo já citado neste trabalho.

Após a conclusão dos estudos, descreve sua nova rotina como cansativa, já que inicia às cinco horas da manhã, levando 1h30min para chegar ao trabalho em uma clínica patológica em São Francisco do Conde, onde trabalhava das sete da manhã às cinco da tarde. À noite, comparecia aos ensaios do Bando e demais apresentações, até as 22 horas. A decisão para esta jornada acontece ao querer ajudar o pai nas despesas e ao mesmo tempo, se descobrir enquanto sujeito.

Em 1994, estreia na peça Bai Bai Pelô, e um ano depois, protagoniza Zumbi está vivo (1995), vivendo Zumbi dos Palmares18 e dando uma nova perspectiva a si mesmo sobre a figura, já que na escola aprendeu que Zumbi era um “rebelde”. Neste período, já havia participado de diversas peças autorais do Bando, conforme ilustrado na Figura 1. As peças Cabaré das Raças (1997), Êre pra toda vida (1996), O novo mundo (1991) e Ó Pai, Ó (1991), tinham o objetivo de “falar e descobrir com

17 Informações extraídas de: Acesso em: 27 de Mai. 2018. 18 Líder quilombola e abolicionista brasileiro (1655-1694). Disponível em: Acesso em: 26 mai. 2018

32 a própria voz” (RAMOS, 2017, p.52). Ao completar 19 anos, Lázaro se dedica exclusivamente à dramaturgia com a aprovação do pai, e larga o emprego como técnico.

Figura 1 - Lázaro em peça do Bando, em 1996.

Fonte: Outra Bahia

4.2 LÁZARO E O RELAÇÃO COM A MÍDIA: CINEMA

O primeiro nome artístico de Lázaro foi Lula Somar, significando as primeiras sílabas de seu nome (Luís Lázaro) e o sobrenome Ramos ao contrário (RAMOS, 2017). Segundo Velho (2013), esta manipulação é uma forma de marcar esta individualidade. Porém, apenas suprimiu seu nome de registro, aconselhado pelo diretor de cinema Jorge Furtado, com quem viria a trabalhar mais tarde. Ao mudar- se para o Rio de Janeiro e ver que em Salvador, havia tinha uma população negra maior do que em outros lugares, e percebe as diversas manifestações de racismo, pois em sua cidade natal, os negros quem produziam o padrão de beleza.

Em 1995, Lázaro participa de seu primeiro filme, Jenipapo19, enquanto figurante, logo após, em 1998, participa do longa-metragem Cinderela Baiana, como o melhor amigo da atriz principal, Carla Perez, o que o torna conhecido. Em 2002, protagonizou o longa-metragem Madame Satã20, que conta a história do artista transformista brasileiro João Francisco, homem negro e homossexual na década de

19 Informações disponíveis em: . Acesso em: 16 mai. 2018. 20 Informações disponíveis em: . Acesso em: 16 mai. 2018. 33

1930, apresentado na Figura 2. Após, participou do filme Carandiru21 (2003), em que interpreta o detento Ezequiel; Em 2005, fez Deco, personagem que faz transportes marítimos e aplica golpes como forma de sustento no filme Cidade Baixa22; Em 2007, interpretou o cantor Roque no filme Ó Pai, Ó (2007)23, produção do Bando de Teatro Olodum; Interpretou o funcionário de uma fotocópia em O Homem que copiava (2003); o suspeito de assassinato na comédia Meu tio matou um cara (2005).

Figura 2 - Lázaro Ramos no filme Madame Satã, em 2002.

Fonte: YouTube/Extraído pela autora

De início, recusava o uso de armas de fogo nas mãos das personagens, em função da naturalização e embrutecimento da imagem do negro em situação de violência, a não ser que fosse “num contexto ou de protagonismo, ou de inadequação em relação a esta arma, ou para discutir as violências e suas consequências” (RAMOS, 2017, p.101), uma forma de atenção para a não estereotipização através da marginalização da negritude.

21 Informações disponíveis em: Acesso em: 16 mai. 2018 22 Informações disponíveis em: . Acesso em: 16 mai. 2018. 23 Informações disponíveis em: . Acesso em: 16 mai. 2018.

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4.3 LÁZARO E A RELAÇÃO COM A MÍDIA: CANAL FECHADO

Em 2005, é convidado pela emissora Canal Brasil a apresentar um programa sobre turismo e, propõe um projeto relacionado a um programa de entrevistas com temática étnicorracial, já que em sua carreira falava pouco sobre o assunto. Destacando que Espelho apenas sairia se, em contrapartida, Lázaro dirigisse cinco curtas-metragens.

O programa estreou no mesmo ano e segue em transmissão, proposta que Ramos (2017, p.34) define como uma troca, em que ele fizesse o telespectador refletir, na medida em que ele pudesse se “capacitar intelectualmente”. Por isso, convidou o professor e historiador Ubiratan Castro para o primeiro episódio da primeira temporada que contou sobre a história do negro no Brasil, normalmente não dita nas escolas, como os Lanceiros Negros24 (RAMOS, 2017). Lázaro percebeu que em Espelho conseguiria fazer o que não conseguira, até então, em outros espaços. O programa, a partir da classificação desenvolvida por De Souza (2015), enquadra- se na categoria informação do gênero entrevista. Esta definição é feita a partir do formato, ou seja, as características que fundam cada programa. Baseando-se na identificação de Fechine (2001), Espelho se enquadra no formato fundado no diálogo:

[...] fundado essencialmente na conversação interpessoal, na exploração das situações de interlocução direta e nas suas diferentes manifestações (debates e entrevistas, entre outros), a TV vem funcionando como metáfora de um grande chat. [...]. (Fechine, 2001, p. 20).

Neste trabalho, utiliza-se como base a classificação de De Souza (2015), porém, vale citar que a partir dos anos 2000, temos uma nova ótica em que se discute a hibridização e observa-se características estruturais variadas que remetem a outros programas de gêneros televisivos. Machado (1999, p. 144), declara que “os gêneros são categorias fundamentalmente mutáveis e heterogêneas”, ou seja, a ressignificação de sua estrutura e a apropriação de características (formatos) e pode

24 Escravizados que lutaram na Revolução Farroupilha (1835-1845) em troca de liberdade. Após a vitória, foram executados no episódio conhecido como Massacre de Porongos. Disponível em: . Acesso em: 27 mai. 2018

35 ser usada como uma “estratégia de comunicabilidade” (GOMES, 2011).

4.4 LÁZARO E A RELAÇÃO COM A MÍDIA: TELEVISÃO ABERTA E TELENOVELAS

As participações no cinema fazem com que Lázaro ingresse enquanto ator na televisão aberta na Rede Globo de Televisão. Este ingresso é importante justamente pela telenovela ser um produto cultural de destaque no país, e que tem um papel fundamental na “formação do imaginário nacional, acerca dos mais variados assuntos”, conforme constata Kunz, Magalhães e Duarte (2015).

Os personagens de Lázaro trouxeram a história de Ó Pai, Ó (2009) também para televisão, enquanto série, com os atores do Bando. Destacando que esta obra passa pela televisão, cinema e teatro. O programa foi indicado ao Emmy Internacional na categoria Série de Humor25. Em 2005, se torna o primeiro galã negro em uma telenovela da Rede Globo, Insensato Coração, no horário nobre das 21 horas, como o designer carioca André Gurgel26, que mantinha relacionamentos com diversas mulheres.

No ano seguinte, Lázaro interpreta o personagem Foguinho, na telenovela das 19 horas Cobras & Lagartos (2006)27, descrito como “um tremendo vagabundo, mas tem um coração de ouro. É ignorante, mas esperto e muito carismático”, um dos papéis descritos por Araújo (2004) como um clássico direcionado para a população negra. Nesta trama, contracena com a sua futura esposa, a atriz autodeclarada preta, Taís Araújo.

Em 2007, integra o elenco da novela Duas Caras, em que interpreta o morador da favela da Portelinha, Evilásio. O personagem é alvo de racismo por

25 Informações disponíveis em: Acesso em: 27 mai. 2018. 26 Informações disponíveis em: Acesso em: 17 mai. 2018. 27 Informações disponíveis em: Acesso em: 17 mai. 2018.

36 parte da família da namorada branca e rica, Júlia, representada pela atriz Débora Falabella. Ao final, Evilásio se torna pai e vereador28. Mesmo com o campo de possibilidades ampliado, Lázaro constata ser um dos poucos negros na televisão:

Tenho na minha lista de personagens vários arquétipos que são um privilégio (e não estão na lista acima). Mas, volto a dizer, essa é uma experiência de exceção que muitas vezes só confirma a regra. Paro para pensar rapidamente com quantos atores negros compartilho esses privilégios e calculo que, no máximo, não passem de meia dúzia (RAMOS, 2017, p.85).

Sobre esta percepção, Araújo (2004) alerta sobre as narrativas que colocam os atores e atrizes negros em personagens estereotipados ou em menor participação no gênero telenovela. Esta constatação está evidente no dado em que o GEMAA analisa as 156 telenovelas da emissora Rede Globo de Televisão, “lançadas entre 1985 e 2014, que possuem, em média, 91,2% dos seus personagens centrais representados por atores e atrizes brancos” (CAMPOS; FERES JÚNIOR, 2016, p.5). Desta forma, pode-se considerar Lázaro como um dos poucos atores negros em grandes produções, em função da construção social brasileira, fundada na ideologia do branqueamento (ALMEIDA, 2016).

Lázaro conquista seu espaço aos poucos com outras participações em novelas e demais produções na televisão aberta. Atualmente, protagoniza a série semanal Mister Brau (2015)29, com Taís Araújo, em que interpretam um casal de músicos bem sucedidos, Bráulio e Michele, com a temática étnicorracial em destaque que segue em transmissão. Em 2017, apresentou o programa de entretenimento dominical Lazinho Com Você, apresentado na Figura 3, que funciona de maneira colaborativa com telespectador que envia vídeos próprios para compor o programa. Porém não alcançou o sucesso esperado, registrando baixa audiência30, e não tem previsão de retorno.

28 Informações disponíveis em: . Acesso em: 17 mai. 2018. 29 Informações disponíveis em: . Acesso em: 18 mai. 2018. 30 Informações disponíveis em: . Acesso: 17 mai. 2018. 37

Figura 3 - Quadro “Me Representa” do programa Lazinho com Você.

Fonte: Globo Play

Mesmo no cinema e na televisão, Lázaro mantém-se no teatro, onde tudo começou. Uma das produções que pode ser citada é O Topo da Montanha, dirigida por ele mesmo, em que interpreta o ativista norte-americano Martin Luther King Jr. há três anos.

4.4.1 O caso da novela Lado a Lado

Para compor sua análise, Almeida (2016) cita a novela Lado a Lado (2012)31, que foi transmitida às 18 horas, e que o número de atores autodeclarados negros ou pardos foi de 16 e de caucasianos 40. O número chama a atenção em função da temática da trama que se passa no início do século XX, em que os personagens negros são, em sua maioria, líderes e/ou os benfeitores da trama, sem estereotipização ou marginalização. Por estereótipo, entende-se como “imagens mentais criadas pelo indivíduo a partir da abstração de traços comuns a um evento previamente vivido” (MARTINO, 2009, p.25), que será construído através de experiências e permanecerá na mente deste indivíduo:

31 Informações disponíveis em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/novelas/lado-a-lado/lado-a-lado-isabel-e- ze-maria.htm> Acesso em: 17 mai.2018

38

Estereótipo é um conhecimento imediato e superficial, ganhando em tempo o que perde em profundidade. Essa representação, quando utilizada por um grande número de pessoas, tende a ganhar status de verdade (MARTINO, 2009, p.25).

Desta forma, criar personagens considerados negativos nas produções audiovisuais sobre determinado grupo, pode ser prejudicial ou danoso para o mesmo. Em Lado a Lado, Lázaro interpreta Zé Maria, barbeiro, capoeirista e morador do Morro da Providência, no Rio de Janeiro. Sua história é uma luta contra racismo institucional no período pós-abolição no Brasil, exemplificado pela reencenação da Revolta da Chibata, pelas cenas de proibição da prática da capoeira e a retirada da população negra dos grandes centros urbanos do Rio de Janeiro e envio às regiões periféricas, processo histórico já citado neste trabalho. Almeida (2016) ainda afirma que a narrativa coloca o sujeito negro em posição de resistência, exemplificando por Zé Maria, cuja trajetória relembra a de João Cândido32. Ao final, Zé se torna contador do jornal da cidade e transforma sua realidade e a da empresa, que estava prestes a falir (Kunz et. ali, 2015). Almeida (2010) enfatiza que este é um exemplo de como deveria ser assim contada a história da população negra no país em telenovelas. Segundo o autor, o elenco negro menor em relação ao restante é reflexo desta ideologia. A partir deste personagem, detecta-se uma mudança em relação aos trabalhos de Lázaro na televisão aberta, apontando para novas possibilidades de narrativas.

Com esta trajetória, percebe-se que o projeto individual de Lázaro torna-se um projeto social (VELHO, 2013), na medida em que participa e elabora trabalhos no cenário artístico nacional buscando representar negros fora de uma posição subalterna ou estereotipada, tornando-se um modelo de representatividade33 para quem o assiste. O que comprova a eficácia é a terceira edição do ranking “Os

32 João Cândido entrou para a História como líder da Revolta da Chibata, ocorrida em 1910, contra os castigos físicos impostos aos marinheiros. Por conta deste evento, foi apelidado de Almirante Negro. Disponível em: Acesso em: 18 mai. 2018. 33 “Liga-se à ideia daquele que representa politicamente os interesses de um grupo, de uma classe ou de uma nação. Ela se concretiza através da ação, adesão e participação dos representados”. Definição extraída de: Acesso em: 28 Mai. 2018. 39

Influenciadores - Quem Brilha na Tela dos Brasileiros”34, de 2017, em que Lázaro aparece na terceira posição e Taís Araújo em quarta, sendo os únicos negros dentre 20 pessoas listadas.

Deve-se considerar também que a trajetória de Lázaro ajuda na composição de suas diversas facetas e o impulsiona enquanto profissional inserido no cinema, na televisão em canal aberto e fechado, no teatro e na internet, pois os conteúdos são reproduzidos em plataformas de streaming e demais dinâmicas de programas de televisão envolvem os sites de redes sociais. Diante de sua biografia e obras, percebemos a singularidade do programa Espelho e de que forma ele quebra estereótipos.

4.5 “O ESPELHO DA VERDADE”: ESTUDO DE CASO DO PROGRAMA EM SUA 12ª TEMPORADA

O programa Espelho35 estreou na emissora Canal Brasil em 15 de julho de 2005 e foi criado por Lázaro Ramos, assim como a apresentação desde o primeiro episódio. É o programa de entrevistas mais longevo da televisão por assinatura36 e foi criado com a proposta de discutir assuntos relacionados à negritude e se expandiu para outros temas e convidados de diferentes áreas de atuação.

Quando Espelho surgiu, em 2005, pretendíamos levantar a autoestima negra e debatê-la, o que é bem diferente de reduzir a discussão ao racismo”, lembra Lázaro. “Com o passar dos anos, compreendemos que poderíamos conversar sobre qualquer tema. O tempo nos fez agregar mais gente, porém, o que nunca mudou foi a nossa procura incansável em buscar trazer convidados que tenham ideias diversas e que abordem questões urgentes para a sociedade (informação verbal)37.

A temporada analisada, a 12ª, foi transmitida na televisão de 27 de março de 2017 a 18 de setembro de 2017 e teve 26 episódios com duração de 23 a 24 minutos cada. A temporada foi gravada na Antiga Fábrica da empresa Bhering, no

34 Pesquisa elaborada pela Provokers para o Google e Meio & Mensagem. Disponível em: Acesso em: 04 mai. 2018. 35 Ficha técnica do programa e de seus quadros estão localizadas nos Apêndices. 36 Informação retirada de: Acesso em: 27 mai. 2018. 37 Lázaro Ramos em entrevista ao site Afropress. Disponível em: Acesso em: 17mar. 2018. 40

Rio de Janeiro e os episódios foram dirigidos pelo cineasta Thiago Gomes e pelo jornalista Frederico Neves, desenvolvidos pela produtora de Lázaro, a Lata Filmes. O conteúdo também é transmitido na internet, na plataforma de streaming Canal Brasil Play, cuja temporada foi disponibilizada antecipadamente no dia 20 de março de 2017 (informação verbal)38.

Na temporada em questão, o programa inicia com o quadro Uma Foto, com duração média de 50 segundos. É o momento em que Lázaro vai às ruas e pede que as pessoas mostrem uma fotografia que gostem ou representem um momento importante de sua vida. O segundo quadro, com aproximadamente a mesma duração, é chamado Okawé39, ilustrado pela Figura 4, é inserido na metade do programa.

Figura 4 - Quadro Okawé do programa Espelho

Fonte: Canal Brasil Play

Ao final das entrevistas, acontece a implementação de um momento interativo em que são lidas as perguntas dos telespectadores aos convidados. Como o programa não é ao vivo, o método de captação das perguntas ocorreu através do perfil de Lázaro Ramos no site de rede social Instagram, dizendo antecipadamente quem seria o convidado, uma estratégia para colocar assuntos mais aprofundados

38 Informação extraída da entrevista de Lázaro Ramos para o Observatório da Televisão. Disponível em: Acesso em: 06 mai. 2018. 39 O quadro está desde a primeira temporada e seu significado será aprofundado nos próximos capítulos. 41 em debate (informação verbal)40. O quadro Uma Foto, apresentado na Figura 5, e as perguntas dos telespectadores não retornaram para a 13ª temporada, que estreou em 26 de março de 2018.

Figura 5 - Quadro “Uma Foto” programa Espelho.

Fonte: Canal Brasil Play

Dos 29 convidados da 12ª temporada, 17 são autodeclarados pretos, desta forma, diferencia-se dos demais programas no mesmo formato pela quantidade de entrevistados afrodescendentes. A temporada vai contra a declaração do jornalista Augusto Nunes, apresentador do programa, também do formato entrevista, Roda Viva, da emissora de televisão TV Cultura. Nunes justifica ter poucos entrevistados negros, pois “existem poucos negros em posição de destaque” no Brasil (informação verbal)41.

Resgatando o debate da introdução deste trabalho, percebe-se que além do enfoque diferenciado à população negra, em contrapartida aos demais programas de entrevistas e telenovelas, Espelho possui um conteúdo distinto desde a produção até a sua inserção.

40 Informação extraída da entrevista de Lázaro Ramos para o Observatório da Televisão. Disponível em: Acesso em: 06 mai. 2018. 41 RODA VIVA. Roda Viva | A Questão Racial | 11/12/2017. (1h20min36seg). Disponível em: . Acesso em: 06 mai.2018 42

4.5.1 “Eu queria usar aquele espaço no Canal Brasil para propagar ideais”: a inserção de Lázaro Ramos enquanto entrevistador

Lázaro atribui ao Bando de Teatro Olodum o surgimento do programa Espelho, já que a ideia surgiu a partir da reflexão causada pelo espetáculo Cabaré das Raças (1997), criado e encenado pelo Bando. O apresentador descreve os integrantes como “aqueles que compartilhavam uma determinada visão sobre alguns aspectos da questão racial no Brasil” e o encorajou a falar sobre (RAMOS, 2017, p.12). Este período pode ser marcado como o ponto de partida para a construção da sua própria identidade e elaboração de projetos individuais, porém realizados em “um contexto em que diferentes ‘mundos’ ou esferas da vida social se interpenetram” (VELHO, 2013, sem paginação), lembrando que esta formação só é possível se há interesses em comum no grupo, como é o caso.

Na perspectiva de memória fragmentada, percebe-se que determinados fatos em sua trajetória - a entrada na companhia de teatro, a negritude e a religiosidade - influenciaram o projeto do ator (VELHO, 2013), assim como sua faceta enquanto apresentador.

Modéstia à parte, falando, eu acho que eu tive a oportunidade de estar com grupos que ampliaram uma voz que eu tenho e que não é uma voz solitária, que ela vem junto com a minha equipe do Espelho, que há 12 anos tá aí criando uma narrativa, trazendo pra televisão pessoas que não tem oportunidade de falar e, por isso, no Espelho eu silencio muito pra que a voz escutada seja do meu entrevistado e, ao mesmo tempo, consigo exercitar uma coisa popular na televisão aberta, né. Fazendo programas como Mister Brau, Lado a Lado, enfim. O próprio Foguinho, que era uma coisa mais popular, mas tinha um fator de representatividade muito forte ali. E o cinema que me abraçou de uma maneira que eu nunca achei que fosse possível. É… Então, ao mesmo tempo que dá aquela angústia, que eu falei - nessa resposta longa que eu te dei - dá, também, uma alegria de saber que tem uma utilidade nisso” (informação verbal)42.

Através deste depoimento, vê-se que Lázaro compreende seu papel enquanto comunicador e percebe-se enquanto modelo de representatividade, o que pode ser compreendido através de sua trajetória. Pode-se, então, dizer que ele dá aos entrevistados a fala, enquanto as telenovelas silenciam, uma característica presente na comunicação de massa:

42 Entrevista de Lázaro Ramos ao Nexo Jornal. Disponível em: Acesso em: 06 mai. 2018 43

Assim, no jornalismo de referência a empresa jornalística coloca-se a falar a partir de uma determinada posição social, convoca fontes localizadas em lugares privilegiados de fala e omite determinadas vozes. (AMARAL, 2005, p.110).

Amaral (2005) pontua que situações de omissão de vozes são comuns e, no caso das telenovelas, pode-se reforçar estereótipos no imaginário social. O programa inverte esta lógica e apresenta uma nova perspectiva do lugar do negro na sociedade. Ao inverter esta lógica inserida em diversos veículos de comunicação, ocorre uma autodesconstrução de estereótipos a partir de sua própria representação pois “um estereótipo não resiste ao contato com a realidade em um nível mais profundo” (MARTINO, 2009, p. 26).

Figura 6 - Lázaro entrevista a Profª Drª Giovana Xavier no Espelho.

Fonte: Canal Brasil Play/Extraído pela autora

Para a inserção do apresentador no programa (Figura 6), aplica-se a teoria de Gilberto Velho (2013), em que Lázaro se distancia do entrevistado, cuja trajetória que pode ser familiar, transformando-o em exótico, justamente para conseguir extrair outras declarações sem pré-julgamentos, pois “o conhecimento pode estar seriamente comprometido pela rotina, hábitos, estereótipos” (VELHO, 2013, sem paginação). Para saber mais sobre o convidado, Lázaro se ateve à questão familiar durante algumas temporadas. A origem do entrevistado foi uma pergunta frequente, e observado pelo apresentador como positivo.

Como é a sua família? De onde você vem? Todos os meus entrevistados, invariavelmente, ganhavam novo vigor ao falar de suas famílias. Contar sobre suas origens, eu notava, era algo perseguido e desejado por muitos negros que tinham o microfone na mão. A necessidade de contar a própria história [...]”. (RAMOS, 2017, p.63).

44

Nota-se que esta estratégia é contrária ao que se vê em outras produções em meios de comunicação de massa que “traz fatos, notícias de regiões e grupos espacialmente distantes, mas que podem se tornar familiares pela frequência e intensidade com que aparecem” (VELHO, sem paginação, 2013), reforçando posições de determinados grupos, principalmente em subalternidade. Espelho dá o Lugar de Fala (RIBEIRO, 2017) aos negros, neste caso, mostrando seu diferencial, que é um programa concebido e apresentado por um homem negro, resultando em uma maioria de entrevistados negros e os colocando em destaque, desconstruindo, aos poucos, a ideologia do branqueamento:

A gente busca sempre falar de assuntos relevantes, mas de uma maneira acolhedora, com humor, levando pessoas que, às vezes, não tão aparecendo na televisão comumente ou levando pessoas que já aparecem muito na televisão, mas pra falar de assuntos que elas geralmente não falam. (informação verbal)43.

O programa possibilita que os convidados negros falem de outros temas, além da questão étnicorracial. Como diz Velho (2013), estas percepções são importantes para que “se perceba uma mudança social, não apenas histórica, mas como resultado acumulado e progressivo de decisões e interações cotidianas”, fazendo com que se questionem os atuais modelos seguidos pelos meios de comunicação e para que se compreenda o papel de Espelho.

43 Informação extraída da entrevista de Lázaro Ramos para o Observatório da Televisão. Disponível em: Acesso em: 06 mai. 2018. 45

5 O PAPEL DE ANCESTRAIS NA ABERTURA DE ESPAÇO NO CENÁRIO CULTURAL PARA AS NOVAS GERAÇÕES

Para que as cantoras selecionadas como objeto de pesquisa neste trabalho pudessem lançar suas carreiras no cenário musical nacional, gerações anteriores abriram caminhos para que isto fosse possível. Portanto, este capítulo abordará de que maneira mulheres negras inseridas no cenário artístico nacional auxiliaram a inserção no mercado das próximas gerações e de que forma o programa colabora na quebra de estereótipos enraizados no imaginário da sociedade brasileira. Utiliza- se a definição de Moraes (2002) para uma maior compreensão acerca do termo trabalho.

O imaginário social é composto por um conjunto de relações imagéticas que atuam como memória afetivo-social de uma cultura, um substrato ideológico mantido pela comunidade. Trata-se de uma produção coletiva, já que é o depositário da memória que a família e os grupos recolhem de seus contatos com o cotidiano. (MORAES, 2002, online).

Moraes (2002) ainda indica que a existência de uma hegemonia cultural, definida como “domínio do imaginário coletivo funda-se na identidade de princípios com as comunidades de sentido, que forjam as linhas de influência em dada conjuntura”, e que perpetue este imaginário. Porém, vê-se que através de iniciativas e ações ao longo da história brasileira, personalidades vêm quebrando estigmas e perpetuando novas tradições. Em sua autobiografia, Ramos (2017) dedica parte de sua trajetória social44 aos seus ancestrais, cuja história inicia na Ilha do Paty, no Recôncavo Baiano. Partindo da importância que os griôs possuem na vida do ator, pode-se compreender o papel do quadro Okawé45, inserido no programa Espelho desde a primeira temporada. Apresentado pela professora Fernanda Felisberto da Silva46, o quadro com duração de um pouco mais de um minuto, exibe trechos de livros e

44 Utilizando a definição, conforme Gilberto Velho (2013). 45 Tradução não encontrada. 46 Professora do Departamento de Letras da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, especializada em literatura afroamericana, afrobrasileira, e nigeriana. Disponível em: Acesso em: 27 mai. 2018 46 músicas relacionados à cultura negra. O momento representa a tradição da oralidade, que Bueno define como “patrimônio da comunidade negra” (2008, p.1). Desta forma, podemos perceber o peso da ancestralidade na cultura negra.

Em sua tese, Werneck (2007) utiliza a figura das ialodês47, em que mostra de que forma sambistas quebraram estereótipos dentro do samba e narra suas trajetórias sociais no século XX. A autora ainda argumenta que a figura da mulher negra no cenário cultural brasileiro, constantemente lembrada como a mulata (GONZÁLEZ, 1983), é a que possui maior chance de sucesso, em função dos traços semelhantes aos eurocêntricos e do tom de pele mais claro. Este é o momento em que podemos perceber que a ascensão social está ligada a que chamamos de colorismo: quanto mais claro se é, mais chances de sucesso possui (SODRÉ, 1999). Neste caso, Almeida (2016) define este sistema como “ideologia do branqueamento”, teoria criada no século XIX com base em estudos europeus, cujo pensamento refletiu na construção do país como um todo desde o período da escravidão.

Mesmo relegadas à um papel secundário e de baixa expressão na construção do samba, Werneck (2009) acredita que há uma contribuição positiva das mulheres negras à cultura de massas e projetos que deram origem a este ritmo musical e sua consolidação, já que participavam das rodas como cantoras e instrumentistas (WERNECK, 2013).

5.1 TIA CIATA

Para exemplificar a trajetória destas mulheres que compunham o cenário cultural do século XX, inicia-se a contar a história de Hilária Batista de Almeida, conhecida como Tia Ciata (1854–1924), personalidade do samba carioca e ialorixá48. Nascida na Bahia, ela veio para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como quitandeira e ficou conhecida pelas rodas e samba no quintal de sua casa. Dentre os

47 Nomenclatura, em linguagem iorubá, dada a mulheres que ocupam um alto título. Ver Werneck (2007). 48 Sacerdotisa da religião candomblé, popularmente conhecida como Mãe-de-Santo. Ciata foi nomeada como Ciata de Oxum. Disponível em: Acesso em: 28 mai. 2018. 47 frequentadores estavam Pixinguinha, Heitor dos Prazeres, além de Donga e Mauro de Almeida, dupla que compôs o primeiro samba registrado, em 1916, a música Pelo Telefone (A COR DA CULTURA). Mediante este fato, compreende-se a importância de Ciata (Figura 11) para a cultura brasileira pela abertura de portas ao samba. Scheffer (2016) destaca a “ativa participação das mulheres negras e mestiças (...) chamadas de tias. Durante as festas nas casas das tias, na sala de visita era executado o choro, o samba. E, após o jantar, eram realizados o batuque e o candomblé, com os cantos dos orixás”. Figuras que posteriormente, seriam eternamente lembradas com a Ala das Baianas, momento do desfile de Carnaval em homenagem à estas mulheres (A COR DA CULTURA).

Figura 7 - Tia Ciata

Fonte: Acervo da Organização Cultural Remanescentes de Tia Ciata

48

5.1.1 Clementina de Jesus

Mais adiante, também temos a figura da cantora carioca Clementina de Jesus da Silva (1901 - 1987)49, inicialmente empregada doméstica, cuja carreira musical iniciou em 1966 (CASTRO et al., 2017). A figura de Clementina é importante para o cenário cultural justamente pela quebra de paradigmas: ao lançar o primeiro disco aos 65 anos de idade, por ser mulher, negra e “com um canto com elementos nitidamente relacionados ao canto dos escravos” (SILVA, 2016, p.2), já que em lançou o disco o Canto dos Escravos, em 1982, junto com os cantores Doca e Geraldo Filme. Suas canções evidenciam a influência da religiosidade, ancestralidade e do racismo institucional em sua vida, como Assim Não Zâmbi:

Ô Zâmbi, vê se manda parar com aquelas brigas lá no morro Quando os homens chega [sic], chutando as porta e revirando tudo Todo mundo fica assustado. E a criançada com aqueles olhos arregalados, O coração saindo pela boca. Ai! Meu Deus. A tal de lei de invasão de domicílio, lá no morro, não vale nada (JESUS; DA VILA. 1979).

Nesta parceria com o cantor , refere-se às forças de segurança pública e às favelas localizadas na periferia de metrópoles, em que há o indício de uma marginalização em função da localidade (OLIVEIRA SILVA, 2011). Sobre a religiosidade, de acordo com Castro, Marquesini, Costa, Munhoz (2017), Clementina (Figura 12) não se considerava candomblecista ou umbandista, porém na figura de sua mãe, Dona Amélia, conhecida como Rezadeira e há registros de expressões e influências africanas em todos os seus 11 álbuns lançados, como no trecho acima, a nomenclatura Zâmbi refere-se para a Divindade Suprema na Umbanda, de acordo com Matta e Silva (apud NOGUEIRA, 2013).

5.1.2 Dona Ivone Lara

Um ano antes de Clementina lançar seu primeiro álbum, Yvonne Lara da Costa (1921 - 2018) compôs o samba enredo Os Cinco Bailes da História do Rio, com Silas de Oliveira e Bacalhau, enquanto participante da Ala de Compositores da

49 Neste trabalho, serão usados estes dados, pois quanto a seu nome e data de nascimento há divergências, conforme sua biografia. 49

Escola de Samba Império Serrano para o Carnaval do Rio de Janeiro. Conhecida como Dona Ivone Lara (Figura 12), a sambista é considerada “pioneira herdeira do legado ancestral da resistência das mulheres negras em suas manifestações africanas no Rio — o samba, a capoeira, as danças de roda, a religiosidade da umbanda” (SCHEFFER, 2016, p. 486).

Além desta bagagem cultural que contabiliza diversos shows e álbuns lançados, Ivone foi uma das primeiras assistentes sociais negras do Brasil e enfermeira especializada em terapia ocupacional. Antes de aposentar-se em 1977, para dedicar-se exclusivamente à carreira musical, participava de rodas de choro na casa de seu tio, com Pixinguinha e Jacob do Bandolim em seus momentos de folga50.

Figura 8 - Dona Ivone Lara e Clementina de Jesus

Fonte: Instituto Antônio Carlos Jobim

5.1.3 Elza Soares

Aproximando a questão da ancestralidade para metade do século XX, cita-se agora a cantora Elza da Conceição Soares (1948 - ). Com 34 álbuns lançados, a

50 Informações extraídas de: . Acesso em: 28 mai. 2018. 50 cantora, também carioca ainda está em atividade. Gravou seu primeiro de canções inéditas em 2015, A Mulher do Mundo, em que denuncia as agressões em relacionamentos abusivos pelos quais passou e, além disso, insere elementos do feminismo nas composições (FARIAS; ALMEIDA, 2017). De exemplo, há a canção deste mesmo disco, Maria da Vila Matilde que, além de contar a trajetória de uma mulher violentada, instrui outras a denunciar a violência sofrida:

Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180 Vou entregar teu nome e explicar meu endereço Aqui você não entra mais, eu digo que não te conheço E jogo água fervendo, se você se aventurar (SOARES, 2015).

O número descrito na composição se refere ao Ligue 180, uma linha telefônica da Central de Atendimento à Mulher, desenvolvida pelo Governo Federal, em 2005, com o objetivo de receber denúncias de violência contra as mulheres em todos os estados brasileiros51. A letra na voz de Elza, vista na Figura 13, é importante, não apenas por ter sido vítima, mas o quê ela representa, já que as mulheres negras são as mais atingidas pela violência doméstica. O Mapa da Violência, de 2015, estima que no período de 2003 a 2013, o número de homicídios de mulheres brancas caiu 9,8%, e no caso de negras, houve o aumento de 54,2%.

Ainda sobre violências, neste mesmo álbum, há a música Benedita. A letra destaca as violências sofridas por uma mulher negra transexual, e segundo Vieira e Couto (2017) este nome é, “normalmente usado para homenagear o santo católico que teria sido filho de escravos, comumente conhecido como ‘O Negro’ ou ‘O Africano’. (...) Benedito tornou-se o rei dos Pretos Velhos, uma das entidades mais significativas dos terreiros de umbanda”:

Ele que surge naquela esquina É bem mais que uma menina Benedita é sua alcunha E da muda não tem testemunha Ela leva o cartucho na teta Ela abre a navalha na boca Ela tem uma dupla caceta A traveca é tera chefona Benedito não foi encontrado Deu perdido pra tudo que é lado Esse nego que quebra o quebranto Filho certo de tudo que é santo. (SOARES, 2015).

51 Informações extraídas de: http://www.spm.gov.br/ligue-180>. Acesso em: 27 mai. 2018 51

A referência na música, interpretada por Elza, é sobre a posição que mulheres transexuais e travestis ocupam na sociedade, já que 90% estão inseridas na prostituição e sua expectativa de vida é de 35 anos, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) de 2017. Acrescido a isso, está o fato do Brasil ser o país que mais mata transexuais no mundo, um a cada dois dias. Ainda nesta linha, a Associação levantou que 80% dos assassinados são pretos ou pardos. Diante disso, percebe-se que o genocídio da população negra abrange a identidade de gênero.

Figura 9 - Elza Soares

Fonte: Blitz/Rita Carmo

5.2 “NOSSOS PASSOS VÊM DE LONGE”

Nestas trajetórias, constatam-se as táticas destas mulheres para alcançar seus objetivos. Em uma sociedade cada vez mais instável, essas táticas se proliferam e “apresentam continuidades e permanências” (CERTEAU, 2014, p. 46). Estas ações anteriores respingam na vida das próximas gerações de cantoras.

A expressão “macacas de auditório” foi o apelido dado a mulheres frequentadoras de programas de auditório do rádio nas décadas de 1940 e 1950, o quê Werneck (2013) afirma ser um termo racista e discriminatório. A palavra macaco como xingamento às pessoas negras e coloca as mulheres em papel estereotipado, referenciando que sua participação não seja importante. Mas se pegarmos o papel

52 destas três mulheres, cujas carreiras foram marcos para o cenário musical do XX, vê-se que o termo não contempla o real papel da mulher na indústria fonográfica e não define sua grandiosidade. Portanto, percebe-se que as ancestrais puderam ampliar os espaços dados à mulher negra na sociedade.

Além das cantoras negras lembradas, um caso para exemplificar de que forma a ideologia do branqueamento atingiu o país, envolveu a primeira repórter negra da Rede Globo de Televisão, Glória Maria52. Ela foi impedida de entrar pela porta da frente de um hotel ao fazer uma reportagem na década de 1970 e utilizou a Lei nº 1.390 conhecida, como Lei Afonso Arinos contra a discriminação racial a seu favor e denunciou. Em entrevista para a Revista TPM, em 2011, Glória disse que foi a primeira pessoa no país a usá-la e relembra que racismo não era considerado crime, mas sim contravenção (informação verbal)53:

[...] O que existe hoje é lei. E a lei não acaba com o racismo, que é um sentimento das pessoas. Hoje, você tem negros protagonistas de novela, como a Taís Araújo, o Lázaro Ramos. Mas mesmo hoje está tendo uma discussão enorme porque o [autor de novelas] Gilberto Braga colocou o Lázaro Ramos de galã da novela [Insensato Coração, de 2011] sem enfatizar que ele é negro. Aí disseram: ‘Mas como não vão debater a questão racial?’. Agora, gente, quando colocam um branco debatem essa questão? É a mesma coisa que eu falar: “Hoje conheci uma jornalista da Tpm, ela é branca [...].

Além disso, na mesma década, Glória foi a primeira repórter a participar do noticiário Jornal Nacional ao vivo com o novo sistema a cores. O pioneirismo da jornalista, tanto no âmbito profissional quanto ao utilizar a lei de contravenção está conectada a questão da representatividade para a população negra brasileira. Pode- se constatar isso em função de alguns fatos, principalmente sobre sua escolaridade, já que apenas 29,78% das mulheres negras eram alfabetizadas em 196054, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mesmo não citada em nenhuma das entrevistas analisadas, compreende-se a contribuição da repórter e sua trajetória exemplifica a condição de ser mulher e afrodescendente no país. Os fatores idade e área de atuação podem ter influência em sua não citação, já

52 Glória Maria Matta da Silva é jornalista formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e trabalha na Rede Globo de Televisão desde 1971. Disponível em: Acesso em: 27 mai. 2018 53 Glória Maria em entrevista para Revista TPM. Disponível em: Acesso em: 25 fev. 2018. 54 Usa-se o censo de 1960, já que no censo de 1970 não houve informação no quesito raça e cor. 53 que as entrevistadas selecionadas são cantoras e nascidas próximo ou na metade década de 1990, como informado anteriormente. Mesmo com o fato acontecido há mais de 40 anos, a falta de representatividade nos meios de comunicação é recorrente na fala das cantoras entrevistadas no ano de 2017.

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6 “EXISTIR NO MUNDO DE HOJE, NA SOCIEDADE DE HOJE, É RESISTIR PRA NÓS, NEGROS”: A TRAJETÓRIA SOCIAL DAS ENTREVISTADAS E AS QUESTÕES PROFISSIONAIS E DE GÊNERO EM PRIMEIRA PESSOA

Diante do exposto, consegue-se compreender a necessidade de programas televisivos que abordam a temática étnicorracial e a inserção de personalidades negras. Principalmente, nos quais a fala de mulheres afrodescendentes é protagonista. Os três episódios do programa Espelho selecionados para este trabalho são de cantoras negras convidadas durante a 12ª temporada em 2017. As falas perpassam pelos obstáculos criados pelo o racismo e a discriminação de gênero na sociedade brasileira.

A primeira entrevistada foi a cantora e compositora Liniker55 (nome artístico de Liniker de Barros Ferreira Campos), nascida em Araraquara, São Paulo, em 3 de julho de 1995. É cantora e compositora da banda Liniker e os Caramelows e se autoidentifica como mulher transexual. A cantora IZA56 (Isabela Lima), entrevistada por Lázaro Ramos na sequência, nasceu em três de setembro de 1991 na cidade de Olaria, no Rio de Janeiro. Suas músicas são uma mistura dos gêneros Pop e Rhythm and Blues (R&B)57. IZA é publicitária graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). A terceira entrevista selecionada para este trabalho foi da cantora e compositora Tássia Reis58 (Tássia Reis dos Santos). Nascida em 16 de agosto 1989, na periferia de Jacaraí, interior de São Paulo, é tecnóloga em Design de Moda. Suas composições misturam Hip-Hop, R&B, Pop, Jazz e samba59.

Este capítulo traz a trajetória social e a narrativa biográfica das convidadas presentes nas entrevistas selecionadas. A partir dos escritos de Gilberto Velho (sem

55 Entrevista transmitida pela primeira vez no dia 03 de abril de 2017 no Canal Brasil. Disponível em: Acesso em: 30 mai. 2018. 56 Entrevista transmitida pela primeira vez no dia 24 de abril de 2017 no Canal Brasil. Disponível em: Acesso em: 30 mai. 2018. 57 Informações extraídas do site da gravadora Warner Music. Disponível em: Acesso em: 09 nov.2017 58 Entrevista transmitida pela primeira vez no dia 31 de julho de 2017 no Canal Brasil. Disponível em: Acesso: 30 mai. 2018. 59 Informações recebidas pela assessoria de Tássia Reis por e-mail. 55 paginação, 2013) e suas ideias referentes à “sociedade moderno-contemporânea”, as próximas páginas trazem estas mulheres enquanto protagonistas de suas próprias histórias, assim como ocorre em suas canções.

Com esta base, define-se a identidade das três entrevistadas, a partir da articulação dos conceitos de projeto60 e memória61, mostrando de que forma o quê elas passaram em sua vida - até a realização das entrevistas - influenciou no que projetaram dentro de seu campo de possibilidades (VELHO, 2013). Além de verificar em que momento estas ideias se cruzam, considerando o capital cultural e intelectual (BOURDIEU, 1998) que as artistas possuem e transmitem.

6.1 “A GENTE VAI CONSTRUINDO O QUE A GENTE REALMENTE QUER SER AO LONGO DA CAMINHADA, O IMPORTANTE MESMO É COMEÇAR”: IZA, DA ELABORAÇÃO À EXECUÇÃO

Ao abordar o conceito de individualidade singular, Velho (2013) argumenta que por quanto mais experiências o ator, em questão, passa, mais marcado este indivíduo será. Esta “consciência da individualidade – fabricada dentro de uma experiência cultural específica – corresponderá uma maior elaboração de um projeto” (VELHO, não paginado, 2013). Com esta base, apresenta-se a trajetória da carioca Isabela Lima, nascida em três de setembro de 1990, no bairro periférico de Olaria, na Zona Norte do Rio de Janeiro. A entrevistada morou na capital do Rio grande do Norte, Natal (CARUSO, 2017), dos 6 aos 12 anos e, em sua entrevista para o programa Espelho, percebe-se que esta mudança foi importante para sua formação enquanto indivíduo:

Eu morava em Natal com a minha família. Meu pai, ele é militar, e antes da gente chegar na Vila Militar, que é onde a gente ia morar, a gente ficou numa casa que a estrada era de barro, era um lugar assim, muito precário ainda. E, aí, veio uma enchente, dessas chuvas de Verão que tem sempre no Nordeste, sempre em Natal, e estávamos só eu e minha mãe na casa, e aí levou tudo nosso, perdi meus brinquedos. A gente perdeu bastante coisa. E como meu pai tava viajando, tudo que era CD e disco - não tinha mp3 na época - ele carregava numa mala com ele, porque ele sempre gostou muito de escutar música. E aí eu comecei a escutar as músicas dele, porque eu

60 Neste trabalho, será utilizada a definição de Velho (2013). 61 Neste trabalho, será utilizada a definição de Velho (2013). 56

perdi todos os meus CD's, toda uma coletânea regada a Mara Maravilha e Xuxa e essas coisas, etc., eu deixei de escutar porque eu perdi. E, aí, pra me distrair comecei a escutar as coisas dele, que era Brian Mcknight, Stevie Wonder, George Benson e Donna Summer... Só coisa “ruim” (informação verbal) 62.

Compreende-se que a perda de alguns bens materiais de Isabela significou um novo rumo em sua trajetória: a troca de discos infantis protagonizados por artistas autoidentificadas enquanto caucasianas, para ouvir discos de cantores negros norte-americanos. No mesmo programa, a entrevistada ainda comenta que esses cantores são suas inspirações enquanto artista (informação verbal)63. Este processo pode ser descrito como aquisição do capital cultural (BOURDIEU, 1989) que afetará sua vida e refletirá em seu projeto, pois são os artistas em que se inspira. Ouvir os discos de cantores negros auxiliou na ampliação de seu campo de possibilidades (VELHO, 2013):

E foi ali que eu entendi que eu sabia cantar. Eu tinha uns seis anos eu acho, e aí eu comecei a ler o encarte, e eu percebi que som que tava saindo da minha boca era parecido com o que tava rolando no CD. E aí eu perguntei pra minha mãe, eu lembro que minha mãe ficou mega emocionada e ficou pedindo pra eu cantar de novo, tentando entender se era isso mesmo que tava acontecendo. É engraçado, tem tanto tempo isso, mas eu lembro perfeitamente como foi (informação verbal) 64.

De acordo com o dicionário Michaelis, empoderamento65 “é um processo pelo qual as pessoas aumentam a força espiritual, social, política ou econômica de indivíduos carentes das comunidades, a fim de promover mudanças positivas nas situações em que vivem”. Mesmo com este processo que aparentou ter um quê de empoderamento, não fez com que Isabela pudesse escapar do racismo na infância e adolescência.

É porque, acho que eu sofri muito a vida inteira porque ser negra ou pela minha aparência. Eu lembro que na quinta série foi um dos dias mais felizes do ano foi quando me incluíram naquela famigerada lista das garotas bonitas da sala. E eu fiquei em penúltimo, porque entrou uma nova categoria que era Simpatia e aí (risos) por isso eu tava na lista [sic]. E eu lembro como aquilo foi importante pra mim. Triste pra caramba pensar nisso, eu acho que nunca me senti bonita, acho que pelo contrário, eu acho que sempre me senti muito fora daquilo que era esperado como bonito, como... Hoje não. Hoje eu me amo pra caramba. Mas pra IZA, pra Isabela

62 Entrevista de IZA para o programa Espelho, em 24 de abril de 2017. 63 Informação retirada da entrevista de IZA para o programa Espelho, em 24 de abril de 2017. 64 Entrevista de IZA para o programa Espelho, em 24 de abril de 2017. 65 Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/busca?id=lnd8. Acesso em: 27 mai 2018. 57

de nove anos, foi uma época complicada. Eu cresci achando que tinha uma coisa errada comigo (informação verbal)66.

Assim, as experiências, exemplificadas acima, puderam transformar o projeto de Isabela em vontade de mudança. Após retornar para o Rio de Janeiro com a família, Isabela graduou-se em Publicidade e Propaganda pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), conseguindo um emprego nesta área de atuação. Através de sua entrevista, vê-se que o projeto de tornar-se cantora aconteceu em função de trocas em uma rede de sociabilidade, mais especificamente, em um espaço de trabalho (VELHO, 2013).

Eu trabalhava num espaço de coworking, eu sou formada em publicidade, e aí eu trabalhava com edição. Eu trabalhei com marketing, eu trabalhei com mídias sociais, eu trabalhei com um monte de coisa. Sempre nessa busca de tentar entender aquilo que alimentava minha alma [...] Eu me sentia não dando tudo aquilo que poderia dar. Sabe quando você tá no trabalho e você sente que você tá enrolando? [sic] Numa má vontade. E é complicado porque eu sentia isso quase todo dia, e eu não entendia porque, eu não sabia, porque, se eu tava feliz de ter aquele trabalho, se eu tava feliz de ter conseguido aquele emprego. Eu não entendia porque eu não conseguia me dedicar tanto. E aí foi nesse espaço de coworking que realmente mudou tudo. Todas as quintas-feiras tinha um happy hour, e aí eu cantava e eu me sentia super a vontade. As pessoas ficavam falando pra mim “cara, tu é maluca, o que quê tu tá fazendo aqui batendo ponto, mulher? Vai cantar!”. E aí, ali eu entendi que se eu não mudasse o jogo ali, eu não sei quando eu poderia fazer isso. Eu aproveitei tá com essa idade, tá morando a minha mãe, com meu pai, pra enfim, correr atrás do meu sonho. Foi assim que tudo começou (informação verbal). 67

No caso de Isabela, enquanto mulher e negra, vê-se uma mudança em seu projeto de vida, rompimento que só foi possível através do acesso à educação (SANTOS, 2015). Em 2013, com uma câmera na mão e com o sonho de se tornar cantora profissional, Isabela Lima iniciou a gravação de vídeos para em seu canal no site Youtube. Dentro de uma sociedade do consumo, a música é um bem cultural e possui um espaço de mercado, além de produzir capitais cultural e simbólico (BOURDIEU, 1998), o que podemos ver como estratégia de defesa para inserção do artista dentro do mercado de bens simbólicos:

[...] No início, eu não tinha câmera. No início, eu tive que pegar câmera emprestada. Mas eu sabia que o primeiro passo tinha que ser dado, e aí não tem perfeição, não tem... A gente tem que ter o mínimo de cuidado, mas assim, o mais importante é passar a mensagem (informação verbal)68.

66 Entrevista de IZA para o programa Espelho, em 24 de abril de 2017. 67 Entrevista de IZA para o programa Espelho, em 24 de abril de 2017. 68 Entrevista de IZA para o programa Espelho, em 24 de abril de 2017. 58

Para sua carreira artística, Isabela recorreu ao nome artístico de IZA. Não somente no caso dela, mas também de Liniker e Tássia, ocorre a “manipulação do nome ‘artístico’”, que Velho (sem paginação, 2013) considera ser uma “forma de enfatizar ou marcar a individualidade, de sublinhar a particularidade”. Em entrevista para a revista Marie Claire, em 2017, Isabela justifica sobre o nome IZA: “já que o nome é curtinho, ficava mais forte com três maiúsculas” (informação verbal)69. Utiliza-se esta entrevistada para a exemplificação deste fenômeno, pois é a única que não faz uso de seu nome de registro civil.

6.1.1 “Difícil pra caramba ser mulher na indústria musical, hein, gente”: as percepções de IZA enquanto mulher no mercado fonográfico

Eu comecei a fazer aula de canto agora, porque como as coisas estão ficando mais sérias e, realmente, agora isso é a minha profissão, eu preciso me cuidar, é um músculo, né. A gente é praticamente atleta. Eu preciso tá sempre cuidando e aprendendo as técnicas perfeitas pra eu não me machucar pra, não sei, conseguir fazer três shows num dia, fazer um show num dia e cantar no outro dia, né. Às vezes, a gente acorda meio rouca, porque isso não pode mais acontecer. Então, agora eu tô fazendo aula de canto, mas antes eu não fazia. Até porque, Lázaro, eu não achava que isso era profissão pra mim, foi realmente uma profissão pra mim também. Vocês estão me descobrindo junto de mim, gente [sic] (informação verbal)70.

No relato de IZA, apresentada na Figura 7, percebe-se que ao adentrar no meio artístico, ela se preparou para a realização deste projeto, passível de ser comunicado e realizado enquanto indivíduo (VELHO, 2013), e as aulas de canto podem ser vistas como uma passagem para a profissionalização. Porém, segundo IZA (informação verbal)71, o preparo pode não ser o suficiente para manter-se na indústria fonográfica. O que esta entrevista também evidencia, ao longo da exibição, são as dificuldades no qual ela perpassa em função do gênero:

Difícil pra caramba ser mulher na indústria musical, hein, gente. Parece que você tem que ser, não sei, mil vezes melhor, parece que você tá ali pra criar treta também. Impressionante! É impressionante como a indústria começa

69 Informações extraídas de: . Acesso em: 7 abr. 2018. 70 Entrevista de IZA para o programa Espelho, em 24 de abril de 2017. 71 Entrevista de IZA para o programa Espelho, em 24 de abril de 2017. 59

sempre a comparar você com outras cantoras e perguntar sobre outras cantoras meio que nessa coisa de criar rixa como se não pudesse ter, não sei, 82 cantoras ao mesmo tempo no Brasil, só pode ter uma, sabe. Então, eu acho que eu tô aprendendo a ser mulher, aprendendo a trabalhar nessa indústria, porque é tudo muito recente e tô aprendendo a ser mulher na indústria. Foi a maior dificuldade (informação verbal)72.

No trecho acima, temos o depoimento dela sobre a maior dificuldade ao escolher esta profissão, no qual percebe-se que ao se autoidentificar enquanto mulher, trouxe dificuldades de aceitação por parte da sociedade. Em um contexto histórico mais específico, o gênero tem um grande peso na designação de papéis de cada indivíduo. As autoras Hirata e Kergoat (2007, p. 599) definiram este processo como uma “forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos” e possui dois objetivos: hierarquia e separação. Com a base de hierarquia, no qual o trabalho do homem cisgênero vale mais do que da mulher, e como a perspectiva de separação, que tais profissões não devem ser exercidas por determinado gênero. Esta divisão norteia a sociedade como um todo, porém não é um “dado imutável” (HIRATA; KERGOAT, p.600, 2007), pois diversos pontos citados pelas autoras comprovam as alterações nestas normativas nas últimas décadas.

Figura 10 - Cantora IZA

Fonte: Guto Costa/Multishow

72 Disponível em: Acesso em: 7 abr. 2018. 60

Mesmo com estes obstáculos, IZA utiliza de sua música, do gênero Pop73, como ferramenta para a desconstrução de ideias relacionadas à mulher, como a música Quem Sabe Sou Eu, que usa de exemplo na entrevista.

Minha música Quem Sabe Sou Eu é… é uma música que foi escrita pra abraçar, realmente, o que é ser mulher. É muito complicado quando… poxa, ser mulher é difícil pra caramba, pô, a gente tem que pensar 15 vezes na roupa que vai usar antes de sair de casa, não por uma questão nossa, mas por segurança mesmo, eu não sei o quê que eu vou encontrar na rua, sabe. Tudo aquilo que eu faço, tá sempre condicionado como o outro vai reagir a mim, é muito difícil. É... A gente tem sempre que tá pensando muito, não sei, antes de falar alguma coisa, porque daí se você é uma pessoa decidida, você é mandona. Se você é chefe, pô, “minha chefe é um saco e tal”, “pode tá de TPM”. É muito difícil. A gente passa por provações o tempo inteiro e aí quando outras mulheres cantam pra outras mulheres falando sobre recalque, sobre competição, sobre inimiga e… pô, só piora, só piora. Isso eu posso assegurar. Eu tô em construção [sic], eu acho que todo artista evolui, mas isso é uma coisa que eu nunca vou cantar, porque machuca, é cruel demais. É difícil, por exemplo, quando eu posto uma foto, e vem alguma amiga minha dizer: “cara, amiga, apaga aquela foto, acho que você não viu, mas tem celulite na foto”. E aí celulite é um assunto, sabe, é uma questão, e é como se eu não pudesse ser naturalmente quem eu sou e ser lembrada disso por outras mulheres, pô, só piora as coisas. Eu não apoio esse movimento e eu não acho que deveria ser assim (informação verbal)74.

O projeto de IZA, além de manter-se no meio musical, é passar uma mensagem diferenciada ao público com o qual se comunica, simbolizando um enfrentamento ao próprio comparativo entre mulheres, que representa a competitividade socialmente imposta às mulheres. Adichie (2015, p.34) alerta que este é um ensinamento repassado por gerações: “criamos nossas filhas para enxergar as outras mulheres como rivais — não em questões de emprego ou realizações, o que, na minha opinião, poderia até ser bom — mas como rivais da atenção masculina”. A ideia apresentada pela autora aparece em mais de um depoimento dado por IZA. Em entrevista para o jornal Folha de São Paulo, quase um ano depois da participação no programa Espelho, percebe-se que houveram poucas mudanças na indústria, na qual ela está inserida. IZA declara e reforça que “ser mulher na indústria faz com que você seja alvo de eternas comparações e isso pode nos prejudicar um pouco” (Informação verbal)75.

73 Definição a partir do site AllMusic. Disponível em: Acesso em: 13 abr.2018. 74 Entrevista de IZA para o programa Espelho, em 24 de abril de 2017. 75 Informação retirada da entrevista de IZA para a jornalista Beatriz Fialho. Disponível em: Acesso em: 12 abr. 2018 61

Mesmo inserida em um contexto sexista, a cantora busca rebater estes estereótipos de gênero. No programa Espelho, ao ser questionada qual artista projeta ser, a cantora responde: “Eu acho que eu quero ser a IZA (Risos)” (Informação verbal)76, mantendo com firmeza seu projeto enquanto profissional. Vale destacar o título de seu primeiro álbum, Dona de Mim77, lançado um ano depois da entrevista, é intitulado de forma que sintetiza e corresponde a tudo que enfatiza durante a sua participação em Espelho.

6.2 “EU SEMPRE LEVEI A SÉRIO ESSAS PARADAS ASSIM”: TÁSSIA REIS, PROJETO E EMPODERAMENTO

Tássia dos Reis Santos, nascida em 16 de agosto de 1989 em Jacareí, São Paulo, é uma das convidadas das entrevistas analisadas. A partir da sua narrativa, entende-se que o contato com a cena artística começou na infância, com as danças urbanas, e declara que “quis ser uma grande dançarina (informação verbal)78”. Este trecho está ligado a um dos conceitos de projeto, que é ser “elaborado dentro de um campo de possibilidades, circunscrito histórica e culturalmente” (VELHO, 2013, sem paginação). Quando adentramos nas esferas histórica e cultural, compreendemos, não apenas o projeto de Tássia, mas seu campo de possibilidades, e sua construção enquanto mulher negra da periferia paulista.

Quando eu dançava, lá atrás, em Jacareí. Na verdade, no Vale, no Vale do Paraíba. Que é a região que fica Jacareí. Na época, tinha muitos eventos de hip hop e eles eram integrados, assim, tipo todos os elementos. Então, tinha DJ, tinha o grafite rolando, tinha sempre o rap e sempre tinha gente dançando também e também tinha uma bancada com livros de direitos civis, com filmes. Enfim, falando sobre o Malcom X, o Martin Luther King, Panteras Negras, coisas mil, assim [sic]. E aí, esse contato me impressionou muito, assim, quando eu era adolescente ainda, né, e me fortaleceu muito também. Que foi a primeira vez que eu parei pra pensar que eu não tinha… que eu não me via na TV ou, sei lá, nas revistas, na música como um todo. Comecei a refletir mais e me formou politicamente, assim. Foi o meu primeiro contato político (informação verbal)79

76 Entrevista de IZA para o programa Espelho, em 24 de abril de 2017. 77 Álbum produzido pela gravadora Warner Music lançado em 27 de abril de 2018. Disponível em: Acesso em: 27 mai. 2018. 78 Entrevista de Tássia Reis para o programa Espelho, em 31 de julho de 2017. 79 Entrevista de Tássia Reis para o programa Espelho, em 31 de julho de 2017. 62

A partir da declaração acima, entende-se que o lazer de Tássia, ao incorporar diferentes elementos das atividades locais, ampliou este campo. Por meio deste episódio, ela, apresentada na Figura 8, passa a refletir sobre sua condição em uma sociedade em que “existem tendências, áreas e domínios onde se evidencia a procura de contestar e redefinir hierarquias e a distribuição de poder” (VELHO, 2013, sem paginação). Desta reflexão, iniciam-se os questionamentos por parte de Tássia assim como à vontade de compor e falar sobre temas relacionados à raça e empoderamento. Também pode-se dizer que este contato com a história de ativistas norte-americanos deu à Tássia um projeto consistente, “que depende, fundamentalmente, da memória que fornece os indicadores básicos de um passado que produziu as circunstâncias do presente” (VELHO, 2013, sem paginação).

Logo, percebe-se um novo rumo nesta trajetória, que representa a ascensão de mulheres negras através da educação (NEPOMUCENO, 2013), em contrapartida aos indicadores relacionados à baixa escolaridade da população negra, como citado anteriormente. Aos 20 anos, Tássia se muda para cursar Tecnologia em Design de Moda, no Centro Universitário Sant'Anna, na capital do estado de São Paulo. Mesmo com a especialização, teve dificuldades de conseguir empregos no setor (informação verbal)80. Este fato é um exemplo dos dados amostrados pela PNAD Contínua, que revela que dois a cada três pessoas desempregadas, no Brasil, são pretas ou pardas, o que evidencia as consequências do racismo institucional.

6.2.1 “Aí, quer saber? Cê quer saber mesmo o que me incomoda?”: táticas de comunicabilidade e sobrevivência

A partir de participações em eventos da cultura hip hop, Tássia teve uma nova projeção sobre seu futuro durante estas “interações com redes de relações mais amplas e diversificadas”, que, portanto, afetaram o desempenho de seu papel social (VELHO, 2013, sem paginação). Pode-se considerar este local como um espaço de aprendizagem, propulsor e facilitador para novas oportunidades.

80 Entrevista de Tássia Reis para o programa Espelho, em 31 de julho de 2017. 63

Deve-se destacar também que a maioria dos rappers brasileiros tem sua trajetória de vida marcada pela falta de oportunidades de vida e encaram este estilo musical como um espaço para veicular suas ideias e concepções de mundo e também como um sonho de independência econômica (NASCIMENTO, 2015, sem paginação).

Nestes encontros, em que os quatro elementos do Hip Hop estão inseridos - caracterizados por Félix (2006) através da presença das figuras do DJ, MC, grafite e dos dançarinos -, Tássia começou a compor e a cantar. Em 2013, gravou sua primeira canção, Meu Rapjazz, utilizando apenas o sobrenome Reis, que fazia parte de uma mixtape produzida apenas por mulheres, que não teve um resultado positivo. Esta produção tem a cultura como matéria-prima e “tem de ‘fazer sentido’, num processo de interação com os contemporâneos, mesmo que seja rejeitado” (GOFFMAN apud VELHO, 2013). Na ocasião, a sua canção fez sucesso ao ser disponibilizada online o que fez com que ela seguisse seus projetos, e o mais recente foi o lançamento do álbum Outra Esfera81, que falam sobre relacionamentos, raça no programa Espelho fala sobre duas faixas Afrontamento e Se Avexe Não e seu processo de composição. Durante o processo de produção de ambas as canções, percebe-se como as questões de gênero afetam seu processo de trabalho. Afrontamento, composição que será discorrida mais no capítulo a seguir, foi composta por ela ao participar do evento Cypher do Vale em 3D, descrito por ela como um encontro de MC’s, foi a única mulher a participar desta edição (informação verbal)82.

Em algumas horas, eu falo comigo mesmo. Eu acho que eu desenvolvi isso, assim, sei lá. Se Avexe Não, tipo, é um papo dez comigo mesma, assim (risos). Que de tipo “Ah, lá vai eu cair naquela armadilha de novo de relacionamento, tipo onde o cara, tipo, não te valoriza, sabe, e aí cê, ao mesmo tempo cê… quer ficar triste que aquele momento, sei lá, do lado término, da brigas, alguma coisa assim” , mas ao mesmo tempo tem tanta coisa pra fazer, sabe. Eu não tenho tempo pra isso. A sociedade disse que pra mim que eu não tenho que chorar. Eu vou chorar se precisar, se precisar ficar aqui amargando essa derrota, eu vou amargar ela, depois eu vou levantar maravilhosa e ter chorado tudo que eu tiver, sabe. No processo de fazer o disco, teve um episódio que eu chorei em público. E aí, eu fiquei “Nossa...”. O dia foi terrível, assim, no show, que eu fiquei é… muito nervosa, muito irritada e eu perdi a voz por conta disso. Perdi a voz por uma questão emocional. Tava maravilhosa de tarde, cantando Rihanna nas notas altas, e a noite perdi a voz. Mas eu tinha que fazer o show, aí eu subi

81 Álbum lançado em 16 de setembro de 2016. Disponível em: Acesso em: 27 mai. 2018. 82 Entrevista de Tássia Reis para o programa Espelho, em 31 de julho de 2017. 64

pra fazer o show e aí, quando eu comecei a cantar, a música que era aguda, e aí a voz não saía, eu comecei a chorar que nem uma criança no palco. E aí a Lívia que can... meu até enche de lágrima, porque foi terrível isso. A Lívia que é minha back in vocal… foi uma cena bonita, na verdade, mas ela segurou na minha mão, e começou a cantar junto comigo, as pessoas entenderam. Que eu acho que o meu maior medo era perder a voz em público. Aí, eu comecei a chorar. Aí, os meus dois maiores medos se juntaram naquele dia e eu comecei a chorar em público porque eu não tinha voz (risos). Aí eu falei: “Meu Deus”... Justamente que eu tinha escrito na música, tava acontecendo, sabe? Que era eu me permitir desmoronar e desaguar todo o meu entristecer. Eu tava com aquilo guardado, por isso que eu perdi a voz (informação verbal)83.

Este trecho da entrevista fala sobre dificuldades sofridas durante um show e em que teve o apoio de suas companheiras de banda. Vê-se, então, a importância da sororidade84 durante sua trajetória social, até mesmo representadas por parcerias profissionais com a cantora Liniker, cuja trajetória será contada a seguir. Velho (2013, sem paginação) traz esta percepção sobre grupos que desenvolvem “uma identidade comum e solidariedade”.

Figura 11 - Cantora e compositora Tássia Reis

Fonte: Grupo Cuco/Nayara Spina

83 Entrevista de Tássia Reis para o programa Espelho, em 31 de julho de 2017. 84 Sororidade significa a união entre mulheres, definição retirada da reportagem de Prata (2016). Disponível em: Acesso em: 13 abr. 2018 65

Ainda falando sobre relações, em especial amorosas, Tássia discorre como elas fazem parte de seu processo de composição, assim como raça, sociedade e gênero. Após se empoderar através da estética e do estudo, ela conta como foi a recepção da sociedade.

Mas, em contrapartida, eu não ser obrigada a nada, não significa que a sociedade mudou. Ela continua me achando esquisita, me achando feia, continua sendo racista e isso é um choque, né, porque eu ser empoderada não me exclui da possibilidade de sofre qualquer coisa machista ou racista na rua, enfim. Pelo contrário, eu posso ser até um alvo por causa disso e... mas as coisas boas que… eu passei a me investigar. Acho que a gente volta pra autodescoberta. Eu passei a me investigar porque que as minhas relações afetivas eram tão curtas, sabe, e porque que eu não me envolvia tão profundamente com as pessoas, assim, não me permitia. Porque que eu era tão insegura nas relações, porquê que tinha tanto ciúmes, sabe, e aquele medo de perder aquilo que era tão pouco, sabe. E aí eu comecei a me investigar isso, assim, e eu descobri que várias das construções da sociedade, né, em relação às relações afetivas (risos) são mitos e são coisas que geralmente só servem pra colocar a gente pra baixo e não pra construir uma coisa bacana, né [sic] (informação verbal)85.

Enquanto mulher e negra, Tássia utiliza as situações pelas quais passou para se projetar (VELHO, 2013), apresentando estes sentimentos em suas composições. Ainda na entrevista, ela descreve um pouco sobre como a cor da pele influencia nas relações amorosas e de como a sociedade vê o corpo da mulher negra.

Uau! Perguntão! Vamo lá [sic]. Então, tanto o homem negro quanto o homem branco depreciam a mulher nas relações, porque aí tem como aliado o machismo, né, então junto do racismo. A mulher negra é… quando ela passa na rua, tipo, muitas vezes, os caras pensam nela como um pedaço de carne, as mulheres em geral, mas até a maneira do assédio é diferente pra com a mulher negra, sabe. Muitas vezes, a mulher negra é abandonada pelo seu parceiro negro quando ele consegue… quando ele avança na sociedade. Há um pensamento que diz que ele quer se inserir na sociedade que ele tá instalado e a mulher negra, que veio com ele, não se adapta àquele espaço e ele quer se parecer mais com os homens brancos. Eu acho que as pessoas são livres pra [sic] se relacionarem com quem elas quiserem, mas entendendo tudo isso que foi dito em relação às mulheres negras é importante pensar se você não tá sendo uma, como posso dizer, uma ferramenta do sistema pra depreciar mais uma mulher negra, sabe. Tipo, eu acho que as pessoas podem se perguntar: “Quantas vezes eu namorei uma mulher negra?”. Namorou. Tipo, de levar na casa, sabe. Não de pegar na balada ou de pegar de madrugada, como acontece muitas vezes. Tipo, quantas vezes eu olhei uma mulher negra e pensei: “Nossa, como ela é bonita como qualquer mulher”. Não pensar: “como ela é uma negra bonita” Como ela é bonita! E aí, eu penso que a mulher já tá com todos esses… com toda essa carga nas costas, com todas essas questões pra bater de frente, a última coisa que ela tem que pensar é na cor da pessoa que ela vai se relacionar. Pra mulher negra em específico, eu acho que ela pode ficar com quem ela quiser, desde que faça bem pra ela, sabe. É isso que eu venho pensado ultimamente. Só precisa fazer bem. Agora, a

85 Entrevista de Tássia Reis para o programa Espelho, em 31 de julho de 2017. 66

questão específica do homem negro é… eu gostaria, na verdade, que eles só pensassem nessa questão do gosto e porque que isso é tão influenciado na vida, na vida deles, assim, e tentar se enxergar com a nossa ótica um pouco, um pouco, com a ótica com essa bagagem toda que a gente tem. Porque o homem negro ele também tem essa bagagem, não a mesma, mas também tem a bagagem de toda a questão da autoestima e do racismo e do machismo também, né, acaba influenciando nas escolhas, nas questões, enfim, de tudo mais. Então, acho que nessa questão, assim, eu trago muito mais pras mulheres, porque, não sei, não tenho como resolver essa questão da sociedade. Eu só arrumei um meio de sofrer menos, que é amar, amar quem me amar da maneira certa de volta (informação verbal)86.

Quando Tássia se refere a ser vista como “pedaço de carne”, esta ideia remete à de Fernandes (2016) em relação a hiperssexualização do corpo da mulher negra e suas raízes históricas, em especial relacionadas ao período escravocrata, tema que Freyre (2006, p.72) resgata e exemplifica com o ditado popular durante a escravatura: “‘branca para casar, mulata para f...., negra para trabalhar’, ditado em que se sente, ao lado do convencionalismo social da superioridade da mulher branca e da inferioridade da preta, a preferência sexual pela mulata”. O que Tássia denuncia é que corpo da mulher negra segue na exploração, já que as mulheres negras são as maiores vítimas de violência sexual, conforme a Unicef, e a partir disso, entende-se porque estas mulheres foram introduzidas em determinados papéis e, assim, estereotipadas.

Ainda sobre os relacionamentos, a fala sobre a depreciação é confirmada pelo dado referente ao celibato definitivo das mulheres negras, já que é o grupo que menos se casa, conforme informações do IBGE, de 2012, chegando a apenas 7%. Este fenômeno que Claudete Alves elaborou em sua tese, no qual argumenta que o homem negro namora mulheres brancas por imposições sociais e como fuga do estereótipo da marginalidade e sugere uma maior reflexão por parte dos homens negros sobre a questão87.

Além das músicas produzidas, Tássia criou sua própria marca de roupas, chamada Xiu, depois de anos tentando um emprego na área da moda. A nomenclatura significa uma onomatopéia para o silêncio e a decisão para a nomeação está escrita em forma de manifesto no site da marca:

86 Entrevista de Tássia Reis para o programa Espelho, em 31 de julho de 2017. 87 Informações retiradas da entrevista com Claudete Alves para o Think Olga. Disponível em: Acesso em: 13 abr. 2018. 67

[...] Temos muito a dizer, e de várias formas, seja através da música, do nosso estilo, do nosso posicionamento. Não é uma disputa, e sim uma possibilidade de existência. O respeito à diferença pode nos unir e nos fortalecer. Não toleramos mais o seu xiu, criamos o nosso! (informação verbal). 88

Vítima do racismo institucional, assim como suas ancestrais, Tássia Reis utilizou táticas (CERTEAU, 2014) para sobreviver, comunicar e baseou-se nas suas experiências passadas para projetar seu futuro.

6.3 “MAS ACHO QUE DENTRO DE MIM TEM UM ÍMPETO DE FORÇA E DE CORAGEM QUE VEM DIANTE DE MIM E QUE JUNTO A ISSO SE SOMA COM A MINHA HISTÓRIA, ASSIM”: O PAPEL DAS GUARDIÃS DA MEMÓRIA E O ESPAÇO DE LIBERDADE

Velho (2013, sem paginação) argumenta que a memória é fragmentada e a composição da identidade depende da organização dela em através desta recomposição e organização. A partir deste pensamento, recapitulando a existência dentro de uma sociedade heterogênea e complexa em que existem “diferentes visões de mundo e estilos de vida” (VELHO, 2013, sem paginação), percebemos novas movimentações relacionadas à questão de gênero. A cantora Liniker de Barros Ferreira Campos, nasceu em três de julho de 1995, em Araraquara, São Paulo e, apesar de ser a mais jovem das entrevistadas analisadas neste trabalho, sente-se desde madura o suficiente para sua idade:

Não sei, mas eu acho que sempre fui uma criança... Eu tinha meio que as coisas das outras crianças da minha idade, mas eu tinha uma coisa que era uma alma meio velha. E as pessoas sempre me falaram isso de pequena. Tipo, “ah mas...”, ainda falavam o Liniker, “mas o Liniker não é uma criança comum, é uma criança que tem um espírito um pouco mais velho”. Eu sinto, às vezes, que tenho 21, mas é só 21 na idade porque, acho que na vida tanta coisa que a gente vai passando e a gente tem que maturar do nada, sabe? Acho que isso vai dando uma carga física, uma carga emocional de quem já viveu muita coisa (Informação verbal)89.

Pode-se atribuir essa maturação à identidade de gênero, que no início do programa Espelho é abordada. Liniker se autoidentifica como uma mulher

88 MANIFESTO. Disponível em: Acesso em: 13 abr. 2018. 89 Entrevista de Liniker para o programa Espelho, em 03 de abril de 2017. 68 transexual, definido por Jesus (2012) como “termo genérico que caracteriza a pessoa que não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento”. Neste trabalho, será utilizada esta definição, assim como a referência à cantora se dará no feminino.

Eu acho que sempre na verdade, é.. tava ali quando eu assumi meu não- binarismo, eu falava “O” Liniker, “A” Liniker, mas prefiro que me chamem no feminino. Então, acho que era uma escolha que eu tava meio que já há muito tempo entendendo como é que seria quando eu assumisse isso dentro de mim. É... Como é que seria pra mim, como é que seria socialmente, e a partir do momento que eu vejo que tudo tá em mim, tudo se pausa no que eu sinto, no que eu sou, e o que eu me definir é o que eu... é a minha verdade, então, a Liniker veio de um jeito assim que sempre teve assim, e.. E agora é a Liniker (informação verbal)90.

A sociedade, que lida com a tradição e modernidade, possui os indivíduos que se destacam, assim, se tornam cada vez mais sujeitos (VELHO, 2013). O não- binarismo, que seria o contrário a “dualidade simples e fixa entre indivíduos dos sexos feminino e masculino” (JESUS, 2012), pensamento enraizado na estrutura social.

Figura 12 - Cantora e compositora Liniker

Fonte: Notícias Magazine

Estas identidades, inseridas em uma sociedade complexa, se diversificam e, em seu depoimento, percebe-se que o grupo familiar de Liniker (Figura 9) tem um

90 Entrevista de Liniker para o programa Espelho, em 03 de abril de 2017. 69 papel a se considerar em sua trajetória social e em sua construção enquanto indivíduo, exemplificado através da figura da sua mãe, Ângela Barros.

A minha família é uma família do samba, então, cê imagina o fervo, tipo de domingo o povo cantando em casa, tocando pagode. É uma família bem unida, e... só que é uma família das mulheres que são muito fortes, assim. Da minha vó criar os filhos toda sozinha, da minha tia criar as filhas sozinha, da minha mãe criar meu irmão e eu sozinha. E é uma família que sempre desde pequena assim, sempre me deixou ser como eu queria ser, sabe. Sempre. Principalmente minha mãe. A minha mãe assim... ainda quando o povo falava “Ângela, cê não tá vendo o Liniker tá dançando É O Tchan, num aniversário de cinco anos numa roda...” - tem uma foto que eu tô assim - “...numa roda, cê não vai fazer nada?”. Minha mãe falou assim: “não. Tá dançando, deixo ele dançar. Eu gosto de dançar também, então, meu filho vai dançar do jeito que ele quiser”. Então esse espaço de liberdade foi sempre muito aberto lá na minha casa, sabe. Porque se eu sou o que eu sou, já porque eu tive uma mãe que dançava samba rock na sala e falava “vem aqui que eu vou te ensinar como é que dança” (informação verbal)91.

A representação feminina na vida Liniker é importante e sintetiza os números de mulheres que chefiam lares no país. Entre 1995 e 2015, constatou-se que 40% dos lares são comandados por mulheres, conforme o Retrato das Desigualdades, produzido pelo IPEA. Desta forma, considera-se Ângela a guardiã da memória, figura propulsora da trajetória de Liniker. Através de suas atitudes em relação à filha, vê-se a mais velha enquanto a pessoa que repassa o conhecimento adquirido às gerações mais jovens e é figura “fundamental na tarefa de mediar valores antigos e valores que incidem sobre a sociedade contemporânea” (NASCIMENTO; RAMOS, 2011, p.466). Neste caso, Ângela rompe em seu grupo familiar um estigma presente na sociedade.

O modo como criamos nossos filhos homens é nocivo: nossa definição de masculinidade é muito estreita. Abafamos a humanidade que existe nos meninos, enclausurando-os numa jaula pequena e resistente. Ensinamos que eles não podem ter medo, não podem ser fracos ou se mostrar vulneráveis, precisam esconder quem realmente são — porque eles têm que ser, como se diz na Nigéria, homens duros (ADICHIE, 2015, p. 29).

Neste contexto, há uma ampliação no campo de possibilidades de Liniker, cujos limites nunca ficam claros, através da participação e da figura de sua mãe com a ressignificação dos papéis de gênero, socialmente impostos. Pode-se acrescentar que o papel da mãe contribuiu para o acúmulo do capital cultural (BOURDIEU, 1998). Esta memória possibilitou que Liniker desenvolvesse seu projeto de maneira

91 Entrevista de Liniker para o programa Espelho, em 03 de abril de 2017. 70 consistente.

6.3.1 “A partir do momento que você se lança no mundo, que você tá aberto às coisas, você vai abrindo um leque de possibilidades”: viver é melhor que sonhar

Assim como IZA e Tássia, Liniker teve o estudo como elemento importante para sua projeção enquanto indivíduo. Com 16 anos, inicia os estudos em teatro e canta pela primeira vez em um teste de elenco para a peça Os Saltimbancos, que foi a canção “Como nossos pais”, interpretada por Elis Regina. Aos 18 anos, Liniker ingressa na Escola Livre de Teatro de Santo André, após um processo seletivo de três semanas, e acaba se mudando para a cidade paulista. Ela ainda trabalhou como assistente de telemarketing na cidade de São Caetano, São Paulo, para pagar suas despesas (informação verbal)92:

Então, porque, imagina, eu saindo de Araraquara vou morar em Santo André, fazer faculdade lá dois anos passando um perrengue danado, cercada de um monte de gente maravilhosa, de repente minha carreira ganha um... ganha não né, porque acho que tudo... eu ganho, eu ganho um lugar que já tava sendo trabalhado há um tempão, porque acho tudo... Nada vem, ninguém deu, tudo a gente que conquistou (informação verbal)93.

Mesmo com as dificuldades, foi neste espaço de sociabilidade que o projeto de Liniker mudou ao conhecer músicos na cidade de Araraquara, no período de férias escolares. A expectativa para o resultado do encontro era: “uma coisa que precisa traduzir realmente o que é da minha essência, que é essa música groovada, que é esse charme, essa Black Music, essa coisa, essa cadência toda envolvente”, o que antes era apenas ela e o violão (informação verbal)94.

Os projetos, como as pessoas, mudam. Ou as pessoas mudam através de seus projetos. A transformação individual se dá ao longo do tempo e contextualmente. A heterogeneidade, a globalização e a fragmentação da sociedade moderna introduzem novas dimensões que põem em xeque todas as concepções de identidade social e consistência existencial, em termos amplos, (VELHO, 2013, sem paginação).

92 Entrevista de Liniker para o programa Espelho, em 03 de abril de 2017. 93 Entrevista de Liniker para o programa Espelho, em 03 de abril de 2017. 94 Entrevista de Liniker para o programa Espelho, em 03 de abril de 2017. 71

Liniker pode, então, transmitir o que queria através de suas composições, cuja maioria são cartas de amor que nunca entregou. Em 2015, fundou a banda Liniker e os Caramelows e lançou o EP (Extended Play) Cru, como método de divulgação para o projeto de crowdfunding, definido por Ordanini (2009, tradução minha), como financiamento coletivo, e uma forma de transformar clientes em investidores, tática que deu certo para e que transformou as cartas em canções, adentrando o mercado de bens simbólicos (BOURDIEU, 1989). Sua canção de maior sucesso, Zero, foi escrita durante o intervalo do trabalho:

E aí andando lá, eu sempre ando com caderno e caneta, parei numa pracinha, aí veio essa história de Zero, desse amor que eu tive, dessa relação, e comecei a escrever, escrever, escrever, escrever, escrever, escrever... Aí fiz duas cópias. Do meu lado tinha uma menina sentada, aí deixei uma cópia assim no banco, saí, levei a outra, falei assim “ah gente, tomara que isso bata nela de algum jeito”. E aí bateu em várias pessoas. E foi isso... foi isso, foi isso (informação verbal)95.

Desde 2015, Liniker lançou um EP e um disco, Remonta, fazendo turnês pelo país, e Europa e nas Américas. De certa forma, ela conseguiu juntar os fragmentos da memória e se projetar em um campo de possibilidades muito maior, já que ele se amplia constantemente.

Mas acho que dentro de mim tem um ímpeto de força e de coragem que vem diante de mim e que junto a isso se soma com a minha história, assim. Então, acho que, espero poder escrever mais, espero poder chegar mais no coração das pessoas e no meu coração, pra que junto com as pessoas eu consiga entender o que eu sou também, sabe. Que não seja uma coisa só, a pessoa pensa que só porque tem visibilidade, eu me construo só a partir de mim, meu processo é muito pelo contrário assim, é muito na troca (informação verbal)96.

6.4 “ACHO QUE O PRÓXIMO PASSO É CONTINUAR FAZENDO, SABE, CONTINUAR COM FORÇA, CONTINUAR TENDO CORAGEM PRA NINGUÉM ME INVISIBILIZAR E PRA NÃO ME SENTIR INVISIBILIZADA, E INCAPAZ DE FAZER O QUE EU ACREDITO, SABE”: O QUÊ SEUS PROJETOS REPRESENTAM

Ao contar as trajetórias sociais das entrevistadas, entende-se que as questões de gênero, raça e classe estão conectadas (DAVIS, 2016). Apesar de

95 Entrevista de Liniker para o programa Espelho, em 03 de abril de 2017. 96 Entrevista de Liniker para o programa Espelho, em 03 de abril de 2017. 72 virem de diferentes locais do Brasil, a narrativa enquanto mulher, negra e periférica se cruza e simboliza os desafios de gênero e raça, e o enfrentamento aos estereótipos e estigmas em sua jornada. Velho (2013, sem paginação) destaca que os meios de comunicação de massa podem influenciar na “difusão de informações e hábitos” e, neste trabalho, procura-se compreender como o programa Espelho pode auxiliar no rompimento com esta lógica ao dar o espaço de fala para mulheres nesta condição, explorando o conceito de Lugar de Fala na comunicação trabalhado por Amaral (2005) e Ribeiro (2017).

O formato de Espelho, que é detalhado adiante, possui um potencial de comunicação e informação diferenciado, encaixando na descrição de Medina (1995) como o tipo de entrevista que busca compreender o ser humano. Além das entrevistas, estes episódios possuem momentos em que as convidadas cantam suas músicas ou canções com significados especiais, que se tornam uma forma de se afirmar e fazer com que haja o diálogo da arte com sua trajetória, cantando a sua realidade, amores e desafios enquanto mulher cisgênero e/ou transexual no mercado de trabalho formal ou no cenário musical.

O processo de discriminação de gênero das mulheres na indústria fonográfica é histórico, e suas letras têm o poder de perpetuar violências. Iniciativas como o site Música Machista Popular Brasileira97, e a exposição fotográfica Música: Uma Construção de Gênero98, ilustrada na Figura 10, denunciam o tratamento dado às mulheres na sociedade e objetivam mudanças na indústria fonográfica. IZA, Tássia e Liniker são alguns dos exemplos de mulheres negras que desconstroem narrativas oficiais e contam a história da mulher negra como protagonista, não coadjuvante, podendo se tornar modelos de representatividade para as gerações futuras. O fortalecimento a este enfrentamento pode ser atribuído ao feminismo negro (COLLINS, 2002) e à interseccionalidade, processo definido por Crenshaw (2002, sem paginação) que “visa incluir questões raciais nos debates sobre gênero e direitos humanos, e incluir questões de gênero nos debates sobre raça e direitos

97 Projeto que busca a reflexão de composições brasileiras que reforcem a depreciação da mulher. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2018. 98 Exposição desenvolvida pela Secretaria Municipal de Políticas para As Mulheres da cidade de São Leopoldo (Sepom), no Rio Grande do Sul, em 2018. Disponível em: . Acesso em: 27 mai. 2018. 73 humanos”. Estas são as bases que auxiliam estas mulheres a superar obstáculos gerados pela discriminação interseccional (CRENSHAW, 2002) - termo que abrange gênero e raça -, sofridos pelas entrevistadas em diferentes etapas da vida.

Figura 13 - Fotografia da exposição Música: uma construção de Gênero

Fonte: Facebook/Thales Ferreira

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7 REPRESENTATIVIDADE COMO FATOR DECISIVO

As entrevistas selecionadas para este trabalho, concedidas ao programa Espelho entre abril e julho de 2017, foram transcritas e são os objetos de análise neste capítulo e sua exibição mantém aceso o debate sobre representatividade no país. A partir dos depoimentos, em que se entrelaçam o racismo e a discriminação de gênero, nota-se como a questão afetou suas carreiras.

Para contextualizar, Araújo (2004) levanta que os papéis destinados à negros e negras em todas as telenovelas da Rede Globo, de 1963 a 1997, circulam entre a figura do malandro, favelada, motorista, doméstica e elenco de apoio, não tendo uma variação, muito menos destaque. Logo, na fala acima, percebe-se como estes estereótipos reproduzidos em telenovelas de certa forma influenciaram a sociedade e, logo, a vida das cantoras em questão. Principalmente, quando se refere à falta de atores negros nas produções. O depoimento da cantora IZA, abaixo, exemplifica na prática:

[...] Eu… Eu acho que… Não sei, talvez, quando eu era mais nova, se eu tivesse uma cantora jovem falando pra mim, uma cantora negra, falando pra mim, talvez eu decidisse cantar antes. Eu acho muito por não me ver na TV e não me ver em lugar nenhum [sic]. Não me ver nos brinquedos que eu comprava, não me ver nas novelas, talvez eu tenha demorado a olhar pra mim. Complicado isso. Como os meios de comunicação influenciam, né?[...] (informação verbal)99.

IZA traz as situações de racismo pelas quais passou através de seu relato pessoal. Este ponto, discutido com o entrevistador, traz à tona o tratamento da sociedade:

Lázaro: E você sempre se soube bonita? IZA: Não. (Risos) Lázaro: Você fez um não tão veemente. IZA: É porque, acho que eu sofri muito, a vida inteira porque ser negra ou pela a minha aparência. [...] eu acho que nunca me senti bonita, acho que pelo contrário, eu acho que sempre me senti muito fora daquilo que era esperado como bonito, como... Hoje não. Hoje eu me amo, pra caramba. Mas pra IZA, pra Isabela de nove anos, foi uma época complicada. Eu cresci achando que tinha uma coisa errada comigo. [...] É o nosso racismo velado de todos os dias. As pessoas, elas… elas magoam sem querer magoar às vezes que é muito louco. Tem gente que é malvada assim, tem muita gente que é racista assim. Assim, tanta gente que precisa se

99 Entrevista de IZA para o programa Espelho, em 24 de abril de 2017. 75

desconstruir e que às vezes acha que tá te elogiando, mas na verdade tá só contribuindo pra um problema muito maior, sabe (informação verbal)100.

Os sofrimentos, a que a entrevistada se refere acima, são apontados como efeitos “colaterais do racismo velado”, definido como aquele preconceito que “existe, mas não é exposto” (CUSTÓDIO, 2015, online). A baixa autoestima é uma das consequências, de acordo com a pesquisa do instituto Psychology of Addictive Behaviors, que ainda detalha que os problemas de aceitação são outros sintomas.

Através do trecho da entrevista de Tássia Reis, também compreende-se a relevância do debate sobre a falta de representatividade, já que teve influência em sua trajetória social, principalmente, na aceitação da sociedade:

Sim… Eu nunca fui empoderada antes, vamos usar essa perspectiva de ser empoderada agora. Porque eu não me entendia bonita, eu não me entendia capaz. Quando eu ia procurar um emprego, seja na área de moda, ou antes mesmo de qualquer outra coisa, que não exigisse, sei lá, ensino superior, eu nunca conseguia. Tipo, eu sempre ficava com os piores empregos, né, com os piores salários. Não tinha chance pra mim! Então, isso faz a gente achar que a gente… o problema tá na gente, né. E aí, quando eu comecei a me deparar com essas coisas, eu ainda me deparo, eu ainda que é normal, a gente fala que o lacre, a gente brinca, que o lacre é um exercício diário, né. Então, tipo, tem dia que cê olha no espelho “nossa, não tá legal [sic]. que tá acontecendo… essa espinha aqui” e “ai, meu cabelo não tá bom, ai, que tá acontecendo?”. E a gente entra nessas crises, porque, tipo, não tinha referência, né, antes. Agora, a gente é a nossa própria referência e consegue se enxergar na amiga, na vizinha, na internet, no YouTube, enfim, e tá criando isso [sic] [...] (informação verbal)101.

Mediante ao depoimento, percebe-se que a falta de oportunidades no mercado de trabalho pode ser uma das consequências do racismo institucional. O número de pretos e pardos desempregados no país chega a 63,7%, e, relembrando que, a maioria das empregadas domésticas são mulheres negras, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra Domicílios (Pnad), de 2017.

Porém, outro tópico a quê Tássia se refere, especificamente em relação ao site YouTube, é a Web 2.0102, momento em que é iniciada a criação, colaboração e compartilhamento de conteúdo por parte de usuários como método de interação (PRIMO, 2007). Pode-se dizer que este momento auxiliou neste processo de

100 Entrevista de IZA para o programa Espelho, em 24 de abril de 2017. 101 Entrevista de Tássia Reis para o programa Espelho, em 31 de julho de 2017. 102 Liniker utiliza deste período para a propulsão de sua carreira, por meio do processo de financiamento coletivo e tem a arrecadação mais bem-sucedida para a música do Brasil. 76 empoderamento das mulheres negras, e pega-se o exemplo de aquisição de autoestima através da estética.

7.1 A ESTÉTICA COMO AFIRMAÇÃO

Para compreender de que forma o cabelo crespo atua na autoestima da mulher negra, pega-se a ideia de Gomes (2003), que detalha os efeitos das expressões “cabelo ruim”, designada a negros, e “bom” quando referido à pessoas brancas. A autora acredita que este conflito faz com que as mudanças capilares ocorram como “uma tentativa do negro de sair do lugar da inferioridade ou a introjeção deste. Pode ainda representar um sentimento de autonomia, expresso nas formas ousadas e criativas de usar o cabelo” (GOMES, 2003, p. 3). Na prática, compreendemos na experiência de IZA:

Eu acho que hoje, a minha relação com a beleza, também é uma missão. É dizer todo dia na internet que eu sou maravilhosa e que eu sou linda e que meu cabelo é lindo e que a minha pele é linda, que a minha boca é linda, porque eu sei que tem gente que me segue porque precisa se enxergar também e não é só vaidade, sabe, é só uma autoafirmação que precisa. (informação verbal).103

No caso de IZA, a questão estética é recorrente em sua fala. Ao comentar sobre a estética, a convidada se refere ao alisamento dos cabelos por meio de produtos químicos como uma forma de opressão, uma das estratégias de mulheres negras para manter-se inseridas no padrão social que, no Brasil, é caucasiano (GOMES, 2003):

Então, eu acho que hoje, além de fazer uma coisa que eu amo pra caramba e que realmente me alimenta, é tão legal ver como que eu fazer aquilo que eu amo influencia outras pessoas. Eu acho que eu quero ser uma cantora que fala pra quem precisa ouvir. É necessário mulheres negras falando pra outras mulheres negras. É muito importante. Muitas vezes o movimento negro é sexista, as vezes o feminismo é racista, então, eu preciso falar pras outras meninas que me procuram, porque querem se achar bonitas, por que? Porque querem se amar mais, porque querem fazer a transição. Eu tô usando as tranças porque daqui a pouco eu vou tirar e vou botar o meu [cabelo] black pra jogo’ [sic]. Eu alisei o meu cabelo a minha vida inteira por achar que tinha alguma coisa errada comigo e eu acho que é muito nessa coisa a minha relação com a minha beleza, com a forma, como eu vejo, é muito social, também. (informação verbal)104.

103 Entrevista de IZA para o programa Espelho, em 24 de abril de 2017. 104 Entrevista de IZA para o programa Espelho, em 24 de abril de 2017. 77

As experiências das entrevistadas com o racismo aconteceram e acontecem de maneiras diferenciadas e cada uma pontua situações pelas quais passaram. IZA relembra como afetou sua autoestima e Liniker relembra fatos da infância que a marcaram:

Eu sempre fui consciente. Minha mãe nunca me deixou esquecer que eu era preta. Na creche, tinha, sim, uma menina que ficava me chamando do mico preto, e eu chorava, e aí minha mãe falou assim “não chora não, fica feliz, fica feliz”, e aquilo virou chacota, todo mundo me perseguindo no corredor me chamando de mico preto, mas acho que essa foi a primeira vez que eu senti racismo assim, de sentir que as pessoas eram realmente cruéis. (informação verbal)105.

O ocorrido com Liniker se repete com muitas outras crianças negras. Em um levantamento de 2015, a Organização Não-Governamental (ONG) SOS Racismo, de Belo Horizonte, Minas Gerais, constatou que 70% das ocorrências recebidas acontecem em escolas, tanto públicas quanto privadas. No caso de Tássia Reis, o racismo relacionado ao genocídio da população negra, em que um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos no Brasil. Este dado faz parte do resultado da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) Assassinato De Jovens, do Relator Senador Lindbergh Farias (PT-RJ), de 2016. A cantora exemplifica esta situação com o caso da auxiliar de serviços gerais, Cláudia Ferreira da Silva, assassinada por Policiais Militares, em 2014, no Morro da Congonha no Rio de Janeiro. Após a morte, o corpo de Cláudia foi arrastado por 250 metros, pois ficou pendurado no porta-malas da viatura (Mulher…, 2014), fato que teve impacto na vida e carreira de Tássia:

Eu fico meio mexida nessa hora, assim. E refletindo sobre a questão do genocídio da juventude negra. Então, quando eu recebi o beat, eu fiquei, assim, na hora veio aquelas coisas, assim: “tipo, quê que eu vou falar, né?” Acho que é a pergunta a gente… que eu faço quando vou escrever. “Aí, que saber? Cê quer saber mesmo o que me incomoda?” [sic]. E aí, eu relatei essas coisas e tal. E ao mesmo tempo, eu quis trazer essa força que a gente tem, porque, apesar de tudo, apesar do Estado negligenciar ou nos exterminar, a gente ainda é uma força resistente e nós estamos vivos, como diria o KL Jay. Estamos vivos. Então, se a gente tá vivo, é afrontar real. Tipo, com a nossa existência, com nosso trabalho, com… ocupando lugares. Existir no mundo de hoje, na sociedade de hoje, é resistir pra [sic] nós negros (informação verbal)106.

105 Entrevista de Liniker para o programa Espelho, em 03 de abril de 2017. 106 Entrevista de Tássia Reis para o programa Espelho, em 31 de julho de 2017. 78

O caso de Cláudia é um exemplo do que a Agência Patrícia Galvão compilou, em 2017. De 2005 a 2015, de mulheres assassinadas pela Polícia Militar, 52% eram pretas ou pardas. O assunto é abordado no episódio em que a cantora aparece e, partir do assassinato, Tássia comenta que sua tática para expressar como o ocorrido a influenciou foi compor a música Afrontamento, faixa de seu álbum Outra Esfera, de 2017:

É difícil jogar quando as regras Servem pra decretar o meu fim Arrastam minha cara no asfalto Abusam, humilham, tiram a gente de louco Me matam todo dia mais um pouco A cada Cláudia morta, a cada Alan morto Se não bastasse essa injustiça e toda dor Transformam adolescentes em um Filho da puta de um malfeitor (REIS, 2017)

Além da música, existem outras formas de manifestação, como o movimento geração tombamento, citado por Ramos em sua autobiografia (2017) e em um dos episódios do programa Espelho. Este termo representa um novo movimento da população negra mais jovem. Duarte (2017) define esta geração como “um movimento urbano encabeçado por jovens negros que buscam recriar a própria estética e resgatar a identidade negra, tendo em vista o cenário de invisibilidade em uma sociedade racista”. O assunto é abordado na entrevista com Liniker:

Eu acho que a gente tá [sic] cada vez mais cansado de ficar calado, sabe. Não dá mais pra ficar aguentando as pessoas no metrô falando do nosso cabelo, tipo: “ai, olha aquela pessoa toda esquisita andando na rua”, porque tá cheia de cor, porque tá de turbante, porque tá com um black azul, com um black rosa. Então, a gente botar o nosso empoderamento através da estética, é uma coisa importantíssima pra gente, porque o tempo inteiro, desde de quando a gente era criança foi nos dito que era feio ser assim, e a gente mostra que não, ser preto é maravilhoso de todo o jeito que a gente puder. Então acho que a geração tombamento, é uma coisa de... A geração tombamento, a geração pela estética, a geração do empoderamento que é essa, eu acho que é necessária sabe, eu acho que isso reflete na gente, e com certeza tem uma carga histórica e somatiza coisas pro futuro assim (informação verbal)107 As falas das entrevistadas se cruzam em diversos momentos, comprovando que ser mulher negra no Brasil, é necessário passar pelo machismo, sexismo e, no caso de Liniker, transfobia.

107 Entrevista de Liniker para o programa Espelho, em 03 de abril de 2017. 79

7.2 MODELOS DE REPRESENTATIVIDADE

Sob esta perspectiva durante seus depoimentos, as convidadas passam a perceber que são os modelos de representatividade para sua geração e as próximas. Quando falamos sobre a identidade de gênero, Liniker ainda declara-se publicamente transexual pela primeira vez nesta entrevista e ainda descreve como sua identidade auxiliou no processo de empoderamento dos próprios fãs em situação semelhante:

Então, quando eu vejo que as pessoas me veem como esse símbolo de representatividade e me encontram na rua e falam assim: “Liniker, eu preciso te contar uma coisa, há duas semanas atrás [sic] eu pensei em me matar e aí...” - chegam coisas desse tipo - “há duas semanas atrás eu pensei em matar, e foi ouvindo o seu som que eu falei, ‘não, a Liniker tá aí, a Liniker tá cantando, a Liniker ainda tá na mídia, sendo uma pessoa trans, sendo uma pessoa preta’, [sic] que tá dando visibilidade agora porque preto não pode ter visibilidade né, na questão social, qualquer coisa que seja vinculado a isso o povo tenta apagar. (informação verbal)108.

A partir deste depoimento, vê-se que o que as entrevistadas representam para este grupo específico. O incidente relatado por um fã à entrevistada Liniker sobre o suicídio de pessoas transexuais e travestis, algo que é difícil de divulgar a estimar em função da exposição. Os dados que surgem são sobre homens transexuais participantes do relatório descritivo Projeto Transexualidades e Saúde Pública no Brasil, que contabiliza que 85,7% participantes do estudo tentaram ou pensaram em suicídio. A Antra (2018, p.25) acredita que transfobia seja a razão, porém não afirma “por ser um critério completamente subjetivo”. Neste mesmo trecho, a entrevistada Liniker ainda questiona a falta de reconhecimento da contribuição da população negra para diversas áreas, ato que Araújo (2004) atribui à ideologia do branqueamento e ao mito da democracia racial.

Na fala de Liniker, o tema representatividade se repete, porém, percebe-se que a figura do próprio entrevistador, Lázaro Ramos, foi importante para o seu crescimento:

[...] quando eu era criança, que você fazia o Foguinho e a Taís [Araújo] fazia a Ellen… [personagens da novela Cobras & Lagartos, da Rede Globo de Televisão] [...] aquilo era muito importante, porque, até então, eu nunca

108 Entrevista de Liniker para o programa Espelho, em 03 de abril de 2017. 80

tinha… porque vocês tinham uma ascensão no meio da novela, que vocês ficavam ricos e tals [sic]. Aquilo eu nunca tinha visto, que um preto podia ser rico, que um preto era rico, que um preto morava numa casona. Então vocês já começavam naquilo sabe, vocês já começaram trazendo pra minha geração que tá assim hoje, e a nossa poder trazer pra outras crianças pretas que vão vir depois sabe. Então, eu tava até com vergonha de te falar isso, mas é. É muito...é, representatividade importa, sim. Então, aquilo quando eu era pequena, pra mim e pra minhas primas realmente valia a pena, ver um casal de pretos sendo pretos na TV [...]. (informação verbal)109

Pode-se, então, dizer que o programa rompe estereótipos negativos, através dos depoimentos dos convidados, pois mostram situações em que o negro não se encontra em situação de marginalização ou como coadjuvantes, em contrapartida às telenovelas. Através desta narrativa alternativa, ocorre um processo de humanização da pessoa negra e é vista pela audiência. Além disso, o apresentador ajuda neste processo de construção de uma nova história para o negro na televisão, assim como para as mulheres cisgêneros e transexuais.

109 Entrevista de Liniker para o programa Espelho, em 03 de abril de 2017. 81

8 A NARRATIVA ETNOBIOGRÁFICA DOS EPISÓDIOS E SEUS DISPOSITIVOS CÊNICOS

Este capítulo coloca um olhar etnográfico sob os episódios, pois um dos objetivos desta pesquisa é confirmar se sua produção e composição cênica auxiliam na construção da narrativa. Na perspectiva da etnografia da duração (ROCHA, 2010), aborda-se como a entrevista, as condições de interação e as possibilidades instrumentais aparecem nos diálogos que se deram nos três episódios analisados. Compreende-se que o programa, apesar de se enquadrar na categoria informação do gênero entrevista, se utiliza de características de um programa da categoria informação do gênero documentário, tornando-se um diálogo etnográfico (ROCHA, 2010).

Conforme já registrado, a 12ª temporada de Espelho foi gravada na antiga sede da Fábrica da Behring (Figura 14), no Rio de Janeiro. As três entrevistas foram filmadas em pontos diferentes do espaço, assim como vinheta de abertura da temporada, estrelada pela figura do apresentador e elementos que compõem a identidade narrativa do programa, como os livros dos Orixás e a obra Grande Sertão Veredas, fazendo referência ao quadro Okawé. O local tem importância fundamental à entrevista, pois “enraízam uma coreografia de sentidos singular” (ROCHA, 2010, sem paginação).

O olhar etnográfico, presente no trabalho, amplia e aprofunda a discussão acerca do tema e aplica a sugestão de Machado e Vélez (2015, p.9), retirando a problematização dos objetos de pesquisa considerados hegemônicos em função da audiência, para que ocorra com outras “experiências de televisão mais significativas e problematizadoras”:

Refletir sobre os instrumentos audiovisuais, seus dispositivos nos permitem pensar as modulações de pontos de vistas do etnógrafo no momento do registro da palavra do outro, ou seja, as formas de disposição dos suportes técnicos durante a gravação e a confrontação com duas lógicas de ação no mundo. (ROCHA, 2010, sem paginação).

Cada entrevista tem dispositivos cênicos característicos. A diferenciação se dá em função de que a cenografia está alinhada com cada roteiro, a ação e a fala

82 dos personagens, assim mantendo um diálogo próprio (CARDOSO, 2009), como é o caso das entrevistas analisadas.

Figura 14 - Interior da Fábrica da Behring

Fonte: Diadorim Ideias/Isabela Kassow

8.1 A INTIMIDADE E IDENTIDADE DE LINIKER

Gravado em um dia ensolarado, o episódio inicia com Liniker caminhando em direção à Fábrica com uma câmera lhe esperando no lado de dentro. Na cena seguinte, ela está segurando um espelho (Figura 15) focado em seus olhos com a câmera em suas costas, imagem repetida em outros momentos do episódio. Estas captações de imagens e cortes são importantes para a composição da estrutura da narrativa, para dar ritmo a uma sequência de imagens e criar uma dinâmica interna (Rocha, 2010). No próprio episódio, imagens da infância e da família de Liniker são exibidas, acrescidas a trechos de seus shows para ambientar o telespectador sobre sua trajetória social e profissional.

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Figura 15 - Liniker no programa Espelho

Fonte: Canal Brasil Play/Extraído pela autora

No início, Lázaro e Liniker estão no elevador e sobem em direção ao local da entrevista com o apresentador segurando uma câmera (Figura 16). É neste momento que Liniker canta a sua canção, Ralador de Pia, até chegar ao destino e Lázaro a filma, e sua voz se sobrepõe ao som do elevador antigo. O apresentador com uma câmera na mão é um elemento característico do programa, que se assemelha a uma perspectiva mais antropológica do registro audiovisual (ROCHA, 2010).

Figura 16 - Lázaro segura câmera em Espelho

Fonte: Canal Brasil Play/Extraído pela autora

A entrevista acontece com ambos em pé, ao lado de uma grande janela composta por blocos de vidro, assemelhada com a abertura de um estilo basculante,

84 com apenas uma parte aberta. Nela, eles se escoram e permanecem um de frente para a outra até o final do episódio (Figura 17). A única luz presente é a do Sol, dispositivo que dá um toque intimista à conversa, construindo, assim, a identidade narrativa da entrevista (ROCHA, 2010). Conforme Kosminsky (2003, p.78), esta luz é uma tendência que estabelece relações simbólicas, reforçado pelo fato de que durante a entrevista, a convidada fala como o apresentador é um modelo de representatividade para ela.

Figura 17 - Entrevista de Lázaro com Liniker

Fonte: Canal Brasil Play/Extraído pela autora

Através das escolhas de dispositivos, assim como do roteiro de entrevista, podemos aplicar o conceito de documentos humanos, cunhado por Rocha (2010), às entrevistas. O termo se refere a “etnografias onde as pessoas narram suas vidas para que, através de suas palavras, suas formas de vida sejam compreendidas e interpretadas” (ROCHA, 2010, sem paginação).

Logo, percebe-se que ao longo de sua entrevista, as câmeras captam o diálogo de diferentes ângulos e estão posicionadas de maneira estratégica utilizando os elementos presentes no cenário. Exemplifica-se com a câmera que filma a entrevista através de um espelho posicionado nas costas de Lázaro (Figura 18). Outra característica é a aproximação da câmera ao rosto, mais próximo à boca, de Liniker em todos os momentos de canto.

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Figura 18 - Espelho como elemento presente

Fonte: Canal Brasil Play/Extraído pela autora

Nos três episódios, a trilha sonora é um componente da narrativa já que as convidadas são cantoras e as músicas tocadas são todas as compostas e interpretadas por elas durante as entrevistas. Os episódios iniciam e encerram assim, o que parece ser um método para deixar as convidadas mais a vontade e uma forma de convidar o telespectador conhecer mais sobre a obra da cantora.

8.2 A AUTONOMIA DE IZA

Seguindo a dinâmica de abertura do episódio anteriormente etnografado, IZA adentra a fábrica e vai em direção ao elevador, onde Lázaro a aguarda e começa a filmá-la. IZA canta a música Don’t Worry, Be Happy, e ao finalizar, Lázaro diz a frase que aparece em todos os episódios desta temporada: “o Espelho está no ar”, que se torna a marca de abertura da 13ª temporada. Após a vinheta de abertura, Lázaro entrega a IZA sua câmera, dinâmica associada à trajetória social da cantora, que conforme já relatado, iniciou a carreira filmando seus trabalhos e disponibilizando-os nos sites de redes sociais (Figura 19). A partir desta imagem, pode-se perceber como o roteiro está alinhado com dispositivo cênico, criando uma identidade narrativa que difere das demais entrevistas.

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Figura 19 - IZA segura a câmera.

Fonte: Canal Brasil Play/Extraído pela autora

Lázaro e IZA caminham até o local da entrevista e em pé permanecem, o que estabelece conexões com a topologias, como o local da entrevista (CARDOSO, 2009). A entrevista segue em outro local, mais ao alto do que as demais, compondo o dispositivo dramático. Percebe-se que possui a participação de diversas câmeras em que imagens aéreas são exploradas neste episódio e que vão intercalando. Esta montagem é importante para a composição de uma sequência narrativa:

O ato de corte no bom momento, de trabalhar a duração de um plano, de procurar um olhar, um gesto através do enquadramento permite que se possa contar uma estória mais justa, mais precisa em conformidade com a trama narrativa daquilo que é narrado, atribuindo a ela uma arquitetura dramática no sentido de engajar o espectador no sentido da ação que o espaço fílmico comporta. (ROCHA, 2010, sem paginação).

A autora ainda complementa que esta articulação de planos cria uma ilusão de continuidade. A afirmação é aplicada em função das imagens abaixo (Figuras 20, 21 e 22).

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Figura 20 - Os ângulos de IZA

Fonte: Canal Brasil Play/Extraído pela autora

Figura 21 - Os ângulos de IZA

Fonte: Canal Brasil Play/Extraído pela autora

Figura 22 - Os ângulos de IZA

Fonte: Canal Brasil Play/Extraído pela autora

Assim como Liniker, IZA utiliza um espelho enquanto dispositivo cênico, o que se assemelha a sua primeira ação enquanto segurava a câmera (Figura 23). Esta 88 imagem de apoio, inserida no meio do episódio, explora as possibilidades instrumentais do material audiovisual (ROCHA, 2010).

Figura 23 - IZA segura o Espelho

Fonte: Canal Brasil Play/Extraído pela autora

8.3 A ESTÉTICA DE TÁSSIA

A entrevista de Tássia inicia como as outras: caminhando pelo lado de fora, entra para a Fábrica e sobe o elevando cantando sua canção Desapegada. Porém, difere das demais por ser a única entrevistada a permanecer sentada durante o episódio em duas poltronas iguais (Figura 24). Na posição frente a frente, o apresentador pode ser considerado um observador do diálogo (CARDOSO, 2009).

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Figura 24 - Tássia em entrevista com Lázaro.

Fonte: Canal Brasil Play/Extraído pela autora

As câmeras aproximam-se do rosto dos dois atores, em primeiro plano, para dar um olhar diferenciado a transmissão. As imagens em primeiro plano alternam, dependendo do assunto, pois é momento em que o entrevistado esboça expressões ou reações (CANEVACCI, 2001). No caso de Tássia (Figura 25), ela resgata temas relacionados ao racismo e relações afetivas, por exemplo.

Figura 25 - Tássia em Espelho.

Fonte: Canal Brasil Play/Extraído pela autora

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Com a técnica do espelho em mãos usada novamente (Figura 26), com a face em foco, Canevacci (2001, p.130) afirma que “o rosto fala - através de uma linguagem não-verbal” e que possui uma sensibilidade individual, estética e comunicativa, já que a comunicação visual gira em torno do corpo (CANEVACCI, 2001, p.131). Neste caso, pode-se dizer que há uma mensagem estética enviada pelo programa Espelho em relação aos traços faciais não comumente vistos na televisão brasileira de forma positiva presentes na grade de programação.

Figura 26 - Tássia segura o Espelho

Fonte: Canal Brasil Play/Extraído pela autora

8.4 MENSAGENS GRÁFICAS

Há construções diferenciadas nas entrevistas, como e IZA e Liniker encerrando o programa com canto, menos Tássia. E há características em comum, como a utilização do grafismo visual exibidas durante os episódios:

Pode-se se dizer, portanto, que o grafismo televisual tem como base de sua constituição as imagens técnicas e, suas formas de expressão, podem se manifestar em diversos códigos, podendo ser icônicos, gráficos, fotográficos, tipográficos, além de, exercer funções específicas dentro de cada produto dos programas e se justificar por diferentes objetivos. Sua utilização se manifesta na criação de recursos gráficos ou representações gráficas em meios audiovisuais (FONTES, 2014, p.8).

Rocha (2010) argumenta que a decupagem do material tem um papel fundamental para estas escolhas, pois direciona a narrativa, assim como a construção do projeto audiovisual. Neste momento do programa, são exibidas frases das entrevistadas e projetadas ao seu lado, no exato momento da enunciação (Figuras 27, 28 e 29). Usado durante toda a temporada, este “recurso estilístico da

91 montagem [...] “evidencia momentos decisivos da ação narrada pelo personagem” (ROCHA, 2010, sem paginação), reforçando o que foi dito pelo convidado, desta forma, valorizando a sua fala. Este momento pode ser visto como uma forma de interrupções do racismo midiático (SODRÉ, 1999), pois destaca o momento de fala do entrevistado negro, colocando a si mesmo em uma posição de afirmação de sua própria narrativa.

Figura 27 – Liniker e a frase: “poder ver que eu construo nas pessoas, e que junto com elas eu também me construo é o maior movimento de tudo que pode ter acontecido".

Fonte: Canal Brasil Play/Extraído pela autora

Figura 28 – IZA e a frase: “Eu sei que meu corpo te incomoda. Sinto muito, o azar é todo seu".

Fonte: Canal Brasil Play/Extraído pela autora

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Figura 29 - Tássia Reis e a frase: "existir é resistir".

Fonte: Canal Brasil Play/Extraído pela autora

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9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde a estreia de Espelho, o país passou pela implementação das Leis de Cotas em universidades e Maria da Penha, acarretando uma alteração em seu cenário social. Pode-se dizer que estas mudanças influenciaram na permanência do programa na grade no Canal Brasil? Seguindo o pensamento dos autores Machado e Vélez, os programas televisivos “devem ser objetos permanentes de análise e crítica” (2015, p. 14), exemplificando que este Trabalho de Conclusão é importante para os futuros profissionais e espectadores. Por isso, este é o início de uma pesquisa, que será continuada na pós-graduação, destinada a compreender e explicar sobre esta representação e como programas de entrevistas podem ser um instrumento, não apenas de análise, mas para uma alteração na programação televisiva e no imaginário da sociedade.

Esta produção acadêmica comprova sua hipótese, podendo servir enquanto instrumento de reflexão da representação do negro na televisão. Resgata-se os recentes feitos da jornalista Joyce Ribeiro110 apresentadora do Jornal da Cultura, na TV Cultura, a primeira mulher negra a apresentar sozinha um jornal diário em horário nobre, e da diretora Camila de Moraes111 a segunda mulher negra a dirigir um filme no Brasil, a primeira em 34 anos, como exemplos de singularidades na televisão aberta e no cinema. Aliado aos 13 anos de transmissão de Espelho, estes acontecimentos acostumam os espectadores, aos poucos, com a presença negra representada de forma positiva no vídeo, em diferentes áreas.

Ao mesmo tempo, estas singularidades instigam trabalhos com este conteúdo, reforçando como são necessários para a construção de uma equidade dentro do ramo. Ainda considera-se que a participação de pessoas negras em produções, não apenas enquanto convidados, mas sim, como apresentadores, produtores, diretores e em outras funções do ramo, seja uma maneira para que a discussão seja fomentada e esteja sempre presente.

110 Informações extraídas em: . Acesso em: 29 mai. 2018. 111 Informações extraídas em: . Acesso em: 29 mai. 2018. 94

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APÊNDICES

Apêndice A - Fichas técnicas dos programas e quadros Ficha técnica Espelho - 12ª temporada (2017) Concepção: Lázaro Ramos Direção: Thiago Mendonça e Frederico Neves Produção: Lata Filmes Convidados em 2017 em ordem de exibição: Leandra Leal, Liniker, José Mariano Beltrame, Jesuíta Barbosa, Iza, Ciro Gomes, Mart’nália, Giovana Xavier, Renata Codagan, Marcius Melhem, Agnaldo Rayol, Fábio Carvalho, Marcelo Tas, Antonio consciência e Sami Brasil, Rico Dalasam, Átila Roque, Bruno Garcia e Lúcio Mauro Filho, Jefferson De, Tássia Reis, Leda Maria Martins, Ailton Graça, Drica Moraes, Belisário Frannça, Leandro Firmino, , Monique Evele e Murilo Araújo.

Quadro Uma Foto ficha técnica: Direção e câmera: Lázaro Ramos Som direto: Álvaro Correa Assistente de câmera: Gabriel Fisher Edição: Fernanda

Quadro Ficha técnica: Apresentação: Fernanda Felisberto Direção: Anderson Quack Maquiagem: Marilza Xavier Edição: Fernanda Portela

107

Apêndice B - Transcrições de entrevistas Transcrição da Entrevista de IZA para o programa Espelho 00:00 - 00:55 - QUADRO “UMA FOTO”

Iza: Here's a little song I wrote, you might want to sing it note for note / Don't worry, be happy / In every life we have some trouble, but when you worry you make it double / Don't worry, be happy.

Lázaro: O Espelho está no ar.

1:38 - 2:04 - VINHETA DE ABERTURA

Lázaro: Iza, muita coisa aconteceu na sua vida quando você decidiu pegar a câmera...

Iza: É...

Lázaro: Ser dona disso aqui.

Iza: É verdade.

Lázaro: E ir pra internet né?

Iza: Nossa, mudou tudo.

Lázaro: Então, vou te dar essa câmera aqui pra você fazer a nossa chegada até o lugar da entrevista, pra você conduzir, tá?

Iza: Tá, tá certo. Bora lá, responsabilidade.

Lázaro: Mas tem que ter responsabilidade assim quando vai fazer, mesmo um vídeo pra internet?

Iza: Eu acho que no início, o importante... É começar, né. No início, eu não tinha câmera, no início eu tive que pegar câmera emprestada. Mas eu sabia que o primeiro passo tinha que ser dado, e aí não tem perfeição, não tem... A gente tem que ter o mínimo de cuidado, mas assim, o mais importante é passar a mensagem.

Lázaro: Aham.

Iza: A gente vai construindo o que a gente realmente quer ser ao longo da caminhada, o importante mesmo é começar.

Lázaro: Me conta aí agora, como é que começou essa... como foi que começou a mudança na sua vida?

Iza: Eu trabalhava num espaço de coworking, eu sou formada em publicidade, e aí

108 eu trabalhava com edição. Eu trabalhei com marketing, eu trabalhei com mídias sociais, eu trabalhei com um monte de coisa. Sempre nessa busca de tentar entender aquilo que alimentava minha alma.

Lázaro: Certo.

Iza: E eu me sentia tão incompetente. Eu acho que demorou pra entender...

Lázaro: Como assim se sentia incompetente?

Iza: Eu me sentia não dando tudo aquilo que poderia dar. Sabe quando você tá no trabalho e você sente que você tá enrolando? Numa má vontade. E é complicado porque eu sentia isso quase todo dia, e eu não entendia porque, eu não sabia porque, se eu tava feliz de ter aquele trabalho, se eu tava feliz de ter conseguido aquele emprego. Eu não entendia porque eu não conseguia me dedicar tanto. E aí foi nesse espaço de coworking que realmente mudou tudo. Todas as quintas-feiras tinha um happy hour, e aí eu cantava e eu me sentia super a vontade. As pessoas ficavam falando pra mim “cara, tu é maluca, oque que tu tá fazendo aqui batendo ponto, mulher? Vai cantar!”. E aí, ali eu entendi que se eu não mudasse o jogo ali, eu não sei quando eu poderia fazer isso. Eu aproveitei tá com essa idade, tá morando a minha mãe, com meu pai, pra enfim, correr atrás do meu sonho. Foi assim que tudo começou.

Lázaro: Olha que maravilha.

Iza: Loving you is like a battle / No one loves you more than me / And no one ever will - Deixa eu olhar pra onde eu tô indo - Is it just a silly game / That forces you to act this way / Forces you to scream my name / Then pretend that you can't stay / See I know what we've got to do / You let go and I'll let go too / Cause no one's hurt me more than you / And no one ever will.

Lázaro: Então quer dizer que saiu da publicidade, e entrou pra música.

Iza: Isso.

Lázaro: Agora que sei você apurou seu gosto musical de uma maneira curiosa, é sério que foi por causa de uma enchente que você mudou?

Iza: É verdade. Eu morava em Natal com a minha família. Meu pai, ele é militar, e antes da gente chegar na Vila Militar que é onde a gente ia morar, a gente ficou numa casa que a estrada era de barro, era um lugar assim, muito precário ainda. E aí veio uma enchente, dessas chuvas de verão que tem sempre no nordeste, sempre em Natal, e estávamos só eu e minha mãe na casa, e aí levou tudo nosso, perdi meus brinquedos, a gente perdeu bastante coisa. E como meu pai tava viajando, tudo que era CD e disco, não tinha mp3 na época, ele carregava numa mala com ele, porque ele sempre gostou muito de escutar música. E aí eu comecei a escutar as músicas dele, porque eu perdi todos os meus CD's, toda uma coletânea regada a Mara Maravilha e Xuxa e essas coisas, etc, eu deixei de escutar porque eu 109 perdi. E aí pra me distrair comecei a escutar as coisas dele, que era Brian Mcknight, Stevie Wonder, George Benson e Donna Summer... Só coisa “ruim”.

Lázaro: (Risos)

Iza: E foi ali que eu entendi que eu sabia cantar. Eu tinha uns seis anos eu acho, e aí eu comecei a ler o encarte, e eu percebi que som que tava saindo da minha boca era parecido com o que tava rolando no CD. E aí eu perguntei pra minha mãe, eu lembro que minha mãe ficou mega emocionada e ficou pedindo pra eu cantar de novo, tentando entender se era isso mesmo que tava acontecendo. É engraçado, tem tanto tempo isso, mas eu lembro perfeitamente como foi.

Lázaro: Então, quer dizer que a música já tava na alma, né, já tava no coração.

Iza: Já. Lázaro: E depois, você fez aula de canto.

Iza: Não, não fiz aula de canto (risos).

Lázaro: Não, claro que você não fez com essa voz.

Iza: Eu comecei a fazer aula de canto agora, porque como as coisas estão ficando mais sérias e, realmente, agora isso é a minha profissão, eu preciso me cuidar, é um músculo, né. A gente é praticamente atleta. Eu preciso tá sempre cuidando e aprendendo as técnicas perfeitas pra eu não me machucar pra, não sei, conseguir fazer três shows num dia, fazer um show num dia e cantar no outro dia, né. Às vezes, a gente acorda meio rouca, porque isso não pode mais acontecer. Então, agora eu tô fazendo aula de canto, mas antes eu não fazia. Até porque, Lázaro, eu não achava que isso era profissão pra mim, foi realmente uma profissão pra mim também. Vocês estão me descobrindo junto de mim, gente.

Lázaro: (Risos)

Iza: Que tá tudo acontecendo junto.

7:47- 8:16 SOBE O SOM MÚSICA QUEM SABE SOU EU

Lázaro: Tem algumas cantoras que optaram por cantar músicas que falam sobre uma disputa entre mulheres.

Iza: Sim.

Lázaro: Você ainda não tem no seu repertório uma música que fale assim.

Iza: Nem vou ter.

Lázaro: Inclusive, tem uma que fala o oposto.

Iza: É. 110

Lázaro: Queria que você falasse sobre esse assunto.

Iza: Minha música Quem Sabe Sou Eu é… é uma música que foi escrita pra abraçar, realmente, o que é ser mulher. É muito complicado quando… poxa, ser mulher é difícil pra caramba, pô, a gente tem que pensar 15 vezes na roupa que vai usar antes de sair de casa, não por uma questão nossa, mas por segurança mesmo, eu não sei o quê que eu vou encontrar na rua, sabe. Tudo aquilo que eu faço, tá sempre condicionado como o outro vai reagir a mim, é muito difícil. É…. A gente tem sempre que tá pensando muito, não sei, antes de falar alguma coisa, porque daí se você é uma pessoa decidida, você é mandona. Se você é chefe, pô, “minha chefe é um saco e tal”, “pode tá de TPM”. É muito difícil. A gente passa por provações o tempo inteiro e aí quando outras mulheres cantam pra outras mulheres falando sobre recalque, sobre competição, sobre inimiga e… pô, só piora, só piora. Isso eu posso assegurar. Eu tô em construção, eu acho que todo artista evolui, mas isso é uma coisa que eu nunca vou cantar, porque machuca, é cruel demais. É difícil, por exemplo, quando eu posto uma foto, e vem alguma amiga minha dizer: “cara, amiga, apaga aquela foto, acho que você não viu, mas tem celulite na foto”. E aí celulite é um assunto, sabe, é uma questão, e é como se eu não pudesse ser naturalmente quem eu sou e ser lembrada disso por outras mulheres, pô, só piora as coisas. Eu não apoio esse movimento e eu não acho que deveria ser assim.

Lázaro: Declama um pedaço dessa música pra mim.

Iza: “Tá reclamando da minha roupa, tá reclamando do meu beijo, cheio de água na boca Tá morrendo de desejo, eu sei que o meu corpo te incomoda, sinto muito, o azar é todo seu. Abre o olho, eu tô na moda e quem manda em mim sou eu.”

10:32 - 11:10 QUADRO OKAWÉ COM FERNANDA FELISBERTO

11:11 - 11:35 LEGENDA NA TELA: Aos 14 anos de idade, Isabela Lima, a Iza, começou a fazer shows na igreja que frequentava. Mais tarde, formada em publicidade e propaganda pela PUC-Rio, Iza chegou a trabalhar como editora de vídeos. Em 2013, criou um canal no YouTube onde fazia covers de cantores da música pop atual.

Lázaro: E você sempre se soube bonita?

Iza: Não. (Risos)

Lázaro: Você fez um não tão veemente.

Iza: É porque, acho que eu sofri muito, a vida inteira porque ser negra ou pela a minha aparência. Eu lembro que na quinta série foi um dos dias mais felizes do ano foi quando me incluíram naquela famigerada lista das garotas bonitas da sala. E eu fiquei em penúltimo, porque entrou uma nova categoria que era Simpatia e aí (risos) por isso eu tava lista. E eu lembro como aquilo foi importante pra mim. Triste pra caramba pensar nisso, eu acho que nunca me senti bonita, acho que pelo contrário, 111 eu acho que sempre me senti muito fora daquilo que era esperado como bonito, como... Hoje não. Hoje eu me amo, pra caramba. Mas pra Iza, pra Isabela de nove anos, foi uma época complicada. Eu cresci achando que tinha uma coisa errada comigo.

Lázaro: Olha que doido: a gente aqui, no Espelho, sempre fala desse assunto, a estética, a beleza, a aceitação é um assunto. E todas as vezes que alguém faz um relato como esse, eu sempre acho tão cruel.

Iza: É cruel demais.

Lázaro: E eu acho que vindo de você, inclusive, que é muito reverenciada pela sua voz e pela sua beleza também, a gente mostra um lado do Brasil muito triste, né.

Iza: É. É o lado preconceituoso, é o lado que não abraça as diferenças, é um lado racista. Quando eu entendi, quando a minha ficha caiu que eu não era bonita pro garotinho da escola que eu gostava ou pras minhas amigas por causa da minha cor ou por causa do meu cabelo foi chocante demais porque daí eu vi que o problema é muito maior. Não era só uma questão de aparência, era uma questão cultural, era coisas que esses meus amigos aprendiam em casa e levavam pra vida e foi muito difícil construir isso. Eu lembro que quando eu morava em Natal e eu e meu pai e a minha mãe, a gente frequentava lugares onde éramos os únicos negros. A minha mãe… eu perguntava pra minha mãe: “mãe, mas porque tá todo mundo olhando pra mim?”. Porque todo mundo olhava mesmo, chamava a atenção a gente ali no meio, naquele meio social. E a minha mãe falava: “Porque você é muito bonita, minha filha”. Isso eu devia ter uns seis anos, assim quando cheguei em Natal “Cê é muito bonita”. E aí teve um período dos seis aos nove que eu me achava bonita pra caramba

Lázaro: (Risos)

Iza: Porque a minha mãe me fala isso todo dia. E aí, quando eu fui criando mais consciência… a gente amadurece, né, quando a gente vai crescendo e eu fui entendo que o problema era outro, aí foi complicado. É o nosso racismo velado de todos os dias. As pessoas, elas… elas magoam sem querer magoar às vezes que é muito louco. Tem gente que é malvada assim, tem muita gente que é racista assim. Assim, tanta gente que precisa se desconstruir e que às vezes acha que tá te elogiando, mas na verdade tá só contribuindo pra um problema muito maior, sabe. Eu acho que hoje, a minha relação com a beleza, também é uma missão, é dizer todo dia na internet que eu sou maravilhosa e que eu sou linda e que meu cabelo é lindo e que a minha pele é linda, que a minha boca é linda, porque eu sei que tem gente que me segue porque precisa se enxergar também e não é só vaidade, sabe, é só uma autoafirmação que precisa.

15:05 - 15:28 “Vídeo IZA em NY”

Lázaro: Você já sabe qual artista você quer ser?

Iza: Eu acho que eu quero ser a Iza (Risos). 112

Lázaro: Olha… E o quê que é a Iza? O quê que a Iza tá trazendo rpo mundo da música?

Iza: Eu… Eu acho que… Não sei, talvez quando eu era mais nova, se eu tivesse uma cantora jovem falando pra mim, uma cantora negra, falando pra mim, talvez eu decidisse cantar antes. Eu acho muito por não me ver na TV e não me ver em lugar nenhum. Não me ver nos brinquedos que eu comprava, não me ver nas novelas, talvez eu tenha demorado a olhar pra mim. Complicado isso. Como os meios de comunicação influenciam, né. Então, eu acho que hoje, além de fazer uma coisa que eu amo pra caramba e que realmente me alimenta, é tão legal ver como que eu fazer aquilo que eu amo influencia outras pessoas. Eu acho que eu quero ser uma cantora que fala pra quem precisa ouvir. É necessários mulheres negras falando pra outras mulheres negras. É muito importante. Muitas vezes o movimento negro é sexista, as vezes o feminismo é racista, então, eu preciso falar pras outras meninas que me procuram, porque querem se achar bonitas, por que? Porque querem se amar mais, porque querem fazer a transição. Eu tô usando as tranças porque daqui a pouco eu vou tirar e vou botar o meu black pra jogo. Eu alisei o meu cabelo a minha vida inteira por achar que tinha alguma coisa errada comigo e eu acho que é muito nessa coisa a minha relação com a minha beleza, com a forma, como eu vejo, é muito social, também.

Lázaro: Música sobre esse tema. Quer cantar uma?

Iza: Música sobre esse tema… Os meus olhos coloridos…

Lázaro: Peraí… dois segundos, tchau.

Iza: Risos

Lázaro: Canta aí.

Iza: ...Me fazem refletir / Eu estou sempre na minha / E não posso mais fugir / Meu cabelo enrolado / Todos querem imitar / Eles estão baratinados / Também querem enrolar / Você ri da minha roupa / Você ri do meu cabelo / Você ri da minha pele / Você ri do meu sorriso / A verdade é que você… Todo brasileiro… Tem sangue crioulo

Lázaro: Valeu! Peraí, tô chegando. Chegou a hora de fazer as perguntas da internet.

Iza: Perguntem, galera. Perguntem.

Lázaro: eve_coco pergunta: quem e quais foram suas influências musicais?

Iza: Eu acho que o que me formou mesmo, musicalmente, foi Brian Mcknight, Stevie Wonder, George Benson, e Michael Jackson e Donna Summer, Diana Ross, porque era o que tinha em casa, né.

Lázaro: Aham

113

Iza: Quem bom que tinha em casa. Mas depois eu fui crescendo e fui gostando mais de Pop também. Então, eu escuto muito Beyoncé, muita Rihanna, muita… Lauryn Hill também que era uma coisa mais R&B, mas eu escuto isso quase todos os dias.

Lázaro: pamelactaquetome gostaria de saber qual é a maior dificuldade que você encontrou no mundo artístico até agora.

Iza: A maior dificuldade que eu encontrei no meio… cara, eu acho que é ser mulher. Difícil pra caramba ser mulher na indústria musical, hein, gente. Parece que você tem que ser, não sei, mil vezes melhor, parece que você tá ali pra criar treta também. Impressionante, é impressionante como a indústria começa sempre a comparar você com outras cantoras e perguntar sobre outras cantoras meio que nessa coisa de criar rixa como se não pudesse ter, não sei, 82 cantoras ao mesmo tempo no Brasil, só pode ter uma, sabe. Então, eu acho que eu tô aprendendo a ser mulher, aprendendo a trabalhar nessa indústria, porque é tudo muito recente e tô aprendendo a ser mulher na indústria. Foi a maior dificuldade.

Lázaro: glaubermarçal1982: “Iza, eu gostaria de saber se você tem consciência do número de pessoas que se sentem representadas por você.”

Iza: Eu acho que não tenho noção (Risos). A gente acha que tá ali só falando pras pessoas que seguem a gente nas redes sociais, mas é… é muito maior que isso, né, é como essas pessoas levam essas mensagens pra dentro de casa, é como essas pessoas se portam no trabalho, a partir do momento que são tocadas por uma mensagem sua. Eu acho que eu não tenho noção do tamanho, não. Eu sei que é bastante gente e eu me sinto muito agraciada e muito abençoada por isso. Quando eu tô andando na rua e quando vem alguém pra dizer: “poxa, essa música me emocionou”, “poxa, você cantou pra mim”, “caramba, aquela foto, aquela legenda que você colocou era exatamente aquilo que eu precisava ler”. Isso vai me dando a noção que tudo aquilo que a gente fala, tudo aquilo que eu faço, tudo aquilo que eu visto, realmente comunica. Eu tô indo / Abra a porta / Tô subindo / Não demora / Que hoje eu vou te deixar sem a-a-ar / Essa noite vai ser nossa / Bota um filme / Me namora / E faz o mundo inteiro para-a-ar / Eu te quero cada dia mais e mais / O meu corpo já conhece os teus sinais / Deu alerta, tô esperta / Então vem que a vontade já é certa / Faz um tempo que eu espero por você / Nosso caso tinha que acontecer / Deu alerta, muito esperta-a-a-ah / Eu vou te pegar / Te dominar, te dominar / Quando começar / Não pode mais pa-para-parar / Eu vou te pegar / Te dominar, te dominar / Quando começar Não pode mais pa-para-parar / Iê-ô-ô-ô-ô-ô-ô-oh / Não pode mais pa-para-parar.

Lázaro: (Palmas) Show.

Iza: Especial demais participar do programa.

Lázaro: Vamo dá tchau pro pessoal.

Iza: Tchau, gente. 114

Lázaro: Tchau, até semana que vem.

Transcrição da Entrevista de Liniker para o programa Espelho

00:00 - 00:55 QUADRO “UMA FOTO”

Liniker: A partir do momento que você se lança no mundo, que você tá aberto as coisas, você vai abrindo um leque de possibilidades, um leque de coisas que você volta, que você acredita, mas não, não é isso, você sempre pode se corrigir. Me discorre o seu dia / Como é que tá aí? / Quis te ver da minha janela / Não nega teu cheiro em mim / Quero passar por aí, de noite / Ao longo do dia, passe um café / Vou levar meu coração / Untado por sofreguidão, que é pra ver… E aí vai (Risos)

Lázaro: O Espelho está no ar.

1:49 À 2:15 VINHETA DE ABERTURA 2:23 – 2:44 SOBE O SOM TRECHO SHOW DA LINIKER MÚSICA CAEU

Liniker: Não sei, mas eu acho que sempre fui uma criança... Eu tinha meio que as coisas das outras crianças da minha idade, mas eu tinha uma coisa que era uma alma meio velha. E as pessoas sempre me falaram isso de pequena. Tipo, “ah mas...”, ainda falavam o Liniker, “Mas o Liniker não é uma criança comum, é uma criança que tem um espírito um pouco mais velho”. Eu sinto, às vezes, que tenho 21, mas é só 21 na idade porque, acho que na vida tanta coisa que a gente vai passando e a gente tem que maturar do nada, sabe? Acho que isso vai dando uma carga física, uma carga emocional de quem já viveu muita coisa.

Lázaro: Acho que a seis meses atrás eu li uma entrevista sua, onde você dizia que podiam te chamar de “O” Liniker, ou “A” Liniker, e hoje você prefere “A” Liniker. Seis meses é um tempo curto pra maturar uma coisa, as vezes uma coisa como essas né? Que hora foi que deu essa virada? Essa decisão veio como?

Liniker: Eu acho que sempre na verdade, é.. tava ali quando eu assumi meu não- binarismo, eu falava “O” Liniker, “A” Liniker, mas prefiro que me chamem no feminino. Então, acho que era uma escolha que eu tava meio que já há muito tempo entendendo como é que seria quando eu assumisse isso dentro de mim. É... Como é que seria pra mim, como é que seria socialmente, e a partir do momento que eu vejo que tudo tá em mim, tudo se pausa no que eu sinto, no que eu sou, e o que eu me definir é o que eu... é a minha verdade, então, a Liniker veio de um jeito assim que sempre teve assim, e.. E agora é a Liniker.

Lázaro: E você tá ganhando fãs por isso também, não só por essa voz linda que você tem, mas também por essa aceitação que você tem de si mesma. É… Tanto é que eu vi uma coisa linda na porta do seu show, que foi um monte de gente que tava lá falando “nossa, a voz dela é linda” tal, e muita gente também se assumindo, se aceitando, e quase, lidando com você como se fosse quase um líder religioso, ou uma líder religiosa. 115

Liniker: Isso é muito maluco né?

Lázaro: É, é muito maluco. Como é que você... bate como isso?

Liniker: Então, porque, imagina, eu saindo de Araraquara vou morar em Santo André, fazer faculdade lá dois anos passando um perrengue danado, cercada de um monte de gente maravilhosa, de repente minha carreira ganha um... ganha não né, porque acho que tudo... eu ganho, eu ganho um lugar que já tava sendo trabalhando há um tempão, porque acho tudo... Nada vem, ninguém deu, tudo a gente que conquistou. Então, quando eu vejo que as pessoas me veem como esse símbolo de representatividade e me encontram na rua e falam assim “Liniker, eu preciso te contar uma coisa, há duas semanas atrás eu pensei em me matar”, e aí.. chegam coisas desse tipo... “há duas semanas atrás eu pensei em matar, e foi ouvindo o seu som que eu falei, ‘não, a Liniker tá aí, a Liniker tá cantando, a Liniker ainda tá na mídia, sendo uma pessoa trans, sendo uma pessoa preta’, que tá dando visibilidade agora porque preto não pode ter visibilidade né, na questão social, qualquer coisa que seja vinculado a isso o povo tenta apagar. Então, quando as pessoas chegam com esse discurso pra mim e eu vejo realmente a verdade ali no olho da pessoa brilhando e falando que aquilo realmente importa, é muito, é muito real, assim. Às vezes assusta, porque ninguém me deu aquilo, uma cartilha, e falou “olha, ser uma figura pública é isso, as pessoas vão te abordar desse jeito, você vai responder desse jeito”, então é muito no aqui e agora sabe, entender como é que... como é que isso também transforma nas pessoas, por que ao mesmo eu to em processo de construção de mim o tempo inteiro, então poder ver que eu construo nas pessoas, e que junto com elas eu também me construo é o maior movimento de tudo que pode ter acontecido.

Lázaro: Você saiu de Araraquara pra fazer teatro?

Liniker: Saí, saí com 18 anos. Eu, uma mala.

Lázaro: (Risos)

Liniker: E um violão nas costas. E aí fui pra Santo André. Em Santo André tem a Escola Livre de Teatro de Santo André, que é uma escola pública, e aí várias pessoas do país e de fora vão pra lá estudar, e é uma escola que pauta o trabalho coletivo, o trabalho de grupo, trabalho ali pensado na forma de... na sala de aula, junto com a sua turma. Eu lembro que no primeiro dia que eu cheguei na escola uma pomba cagou na minha cabeça, assim, na cara, na cara, na frente da escola, “acho que é aqui que eu preciso ficar um pouco”. Aí fiz o processo, o processo seletivo de quase três semanas, aí passei. Aí minha mãe me li... minha é mãe coruja né, então ela liga tipo todos os dias “Liniker, o que você tá fazendo?”. Nessa época da escola Livre eu tava muito metido porque eu nunca tinha saído de casa. Ela esperava que eu saísse mas acho que ela não esperava que fosse tão rápido. E aí quando eu saí, passei, falei, lembro que eu chorei e falei assim “mãe, passei, vou ficar aqui”. Aí as duas chorando, uma de cada lado do telefone “mas é que você vai se cuidar aí, como é que você vai se criar, sabe que a gente tem pouca coisa, sabe que eu não vou conseguir te ajudar muito”. Eu falei assim “não, mãe, eu acho que eu tenho de 116 vontade, vou forçar na minha força de vontade e vou”.

Lázaro: Como é sua família?

Liniker: A minha família é uma família do samba, então, cê imagina o fervo, tipo de domingo o povo cantando em casa, tocando pagode. É uma família bem unida, e... só que é uma família das mulheres que são muito fortes, assim. Da minha vó criar os filhos toda sozinha, da minha tia criar as filhas sozinha, da minha mãe criar meu irmão e eu sozinha. E é uma família que sempre desde pequena assim, sempre me deixou ser como eu queria ser, sabe.

8:04 - 8:08 LEGENDA NA TELA: “Com sua mãe ngela, e suas primas Jenifer e Ludmila.”

Lázaro: Sempre?

Liniker: Sempre. Principalmente minha mãe. A minha mãe assim... ainda quando o povo falava “Angela, cê não tá vendo o Liniker tá dançando É o Tchan , num aniversário de cinco anos numa roda...” tem uma foto que eu tô assim “...numa roda, cê não vai fazer nada?”, minha mãe falou assim: “não. Tá dançando, deixo ele dançar. Eu gosto de dançar também, então, meu filho vai dançar do jeito que ele quiser”. Então esse espaço de liberdade foi sempre muito aberto lá na minha casa, sabe. Porque se eu sou o que eu sou, já porque eu tive uma mãe que dançava samba rock na sala e falava “vem aqui que eu vou te ensinar como é que dança”.

8:47 - 8:52 LEGENDA NA TELA: Liniker e sua mãe, ngela.

Lázaro: E que hora você começou a cantar?

Liniker: Eu comecei a cantar mesmo quando eu fui pro teatro. Entrei no teatro com 16 anos, e aí eu lembro do dia que eu cantei. Do dia que eu falei assim “acho que eu sei fazer isso, eu posso fazer”, que tava tendo teste de elenco pra fazer Saltimbancos. Era tipo início da turma, ela “então, o material de cena vai ser Saltimbancos, e aí a gente quer atores que cantem”, e aí eu falei “gente, eu não canto, mas sou cara de pau, eu posso tentar”, aí falei assim... depois de todo mundo pediu lá pra cantar, eu falei assim “gente, acho que eu queria”, aí cantei Elis Regina, e aí... ela falou assim “nossa, você canta faz tempo?” e eu assim “não, foi a primeira vez”.

Lázaro: Você cantou Elis Regina?

Liniker: Cantei. Cantei Como Nossos Pais.

Lázaro: Vou ter que pedir pra você cantar um taquinho.

Liniker: Não quero lhe falar / Meu grande amor / Das coisas que aprendi / Nos discos / Quero lhe contar como eu vivi / E tudo o que aconteceu comigo / Viver é melhor que sonhar. 117

10:03- 11:01 QUADRO OKAWÉ COM FERNANDA FELISBERTO

Liniker: Eu sempre escrevi do amor né, sempre fui uma pessoa muito apaixonada.

Lázaro: Sempre foi uma pessoa apaixonada, não dá pra dizer isso se eu perguntar, mas aí sofria por amor? Mandava carta?

Liniker: As minhas músicas são cartas que eu não entreguei. Todas. A maioria.

Lázaro: É?

Linker: É.

Lázaro: Zero é isso?

Liniker: É isso. Quando eu me descobri apaixonada pela primeira vez, e vi que aquela paixão me dava uma vontade tremenda de escrever tudo, de botar tudo no papel e poder gritar. “Ai, gente, não vou conseguir falar pra ele que eu gosto dele então preciso transformar isso de um outro jeito”. E aí foi cantando e fazendo as músicas. E aí isso começou, eu lembro que eu escrevia tipo músicas o dia inteiro, de ficar fazendo umas cinco por dia, quatro músicas por dia, porque foi um momento muito forte de encontro comigo.

Lázaro: Você lembra qual foi sua primeira carta, composição?

Liniker: Eu lembro, era... como é, gente, era… O seu olhar não sai da minha memória / Nem teu sorriso que me faz tão bem / É impossível não pensar agora / Que os sentimentos vão além… Aí, tinha o refrão… E quando eu te vejo / Me vem um desejo / De ficar com você … Gente (Risos) … Te quero, te espero / Você é o que eu quero / Deixa eu te dar meu amor / E quando chegar, quero te abraçar / Porque você é o que eu quero pra mim. E aí terminava. Tipo, essa foi a primeira. E... muito assim, do que eu sentia, aquele amor que me consumia de tudo, que era como se eu não vivesse longe, como se aquilo fosse a única coisa que tivesse sido me dado na vida.

Lázaro: Coisa linda. Como é que veio a banda? Como é que você juntou essa turma? Aí já em São Paulo ou em Santo André?

Liniker: Eu tava de férias em Araraquara, aí encontrei os meninos e falei “tô querendo fazer um projeto pessoal, é... botar minhas músicas mas eu preciso de uma banda. Eu acho que por mais que eu toque violão, acho que eu sinto que uma coisa que precisa traduzir realmente o que é da minha essência, que é essa música groovada, que é esse charme, essa Black Music, essa coisa, essa cadência toda envolvente. E preciso de parceiros, vocês topam?”, “Ah, a gente topa Liniker, cola em casa aí semana que vem, a gente pira um pouquinho, toca um pouco”. Aí, chegamos, a primeira música que eu mostrei foi Louise... Louise du Brésil. E aí mostramos e todo mundo ficou se olhando, assim: “que coisa...vamos fazer alguma coisa além?”. 118

10:47 - 11:11 SOBE O SOM LOUISE DU BRÉSIL

Liniker: Aí, a gente decidiu gravar o EP. Isso já era 2015. Aí, gravamos o EP em 2015, lançamos dia 16 de outubro. E aí, a partir do momento, que eu lanço foi uma coisa assim, surreal, de ter cinco milhões de visualizações numa semana. E aí, foi doido assim, porque ninguém esperava.

Lázaro: Vocês não esperavam? Quando eu ouvi esse material eu achei que vocês já eram uma banda que existia a muito tempo, que já tinham gravadora, que já tavam circulando o país e eu não conhecia.

Liniker: Não...

Lázaro: Porque eu achei um trabalho tão sólido, que eu disse: “nossa, como eu sou ignorante”.

Liniker: Não tinha, não tinha. A gente fazia o quê? Quatro meses, cinco que tava tocando juntos.

Lázaro: E você já sabia que o Zero ia ser a música de maior impacto?

Liniker: Quando eu lancei Zero, quando eu escrevi Zero, eu senti uma coisa muito forte, porque trabalhava no telemarketing, tava em Santo André, e eu trabalhava no telemarketing cobrando as pessoas que deviam pra uma determinada loja. E aí, um dia eles deram um break pra gente, tipo “vai, vamos descansar uma hora”... descansar, deu um piripaque lá no sistema do telemarketing e eu fui andar em São Caetano, que é do lado de Santo André, onde era o telemarketing. E aí andando lá, eu sempre ando com caderno e caneta, parei numa pracinha, aí veio essa história de Zero, desse amor que eu tive, dessa relação, e comecei a escrever, escrever, escrever, escrever, escrever, escrever... Aí fiz duas cópias. Do meu lado tinha uma menina sentada, aí deixei uma cópia assim no banco, saí, levei a outra, falei assim “ah gente, tomara que isso bata nela de algum jeito”. E aí bateu em várias pessoas. E foi isso... foi isso, foi isso.

Lázaro: Música maravilhosa. Eu sei que vocês tão querendo ouvir ela agora, mas vai ser a última música que vai cantar no programa, vai ser o crédito.

Liniker: (Risos)

Lázaro: Fazer as perguntas da internet aqui: brunamagalhãeszero. Ó!

Liniker: Ah!

Lázaro: brunamagalhãeszero: “Liniker, qual foi o momento que você teve consciência da sua negritude, e que você teve consciência do racismo, ou você foi sempre consciente? Um abraço pra você.”

Liniker: Eu sempre fui consciente. Minha mãe nunca me deixou esquecer que eu era 119 preta. Na creche, tinha, sim, uma menina que ficava me chamando do mico preto, e eu chorava, e aí minha mãe falou assim “não chora não, fica feliz, fica feliz”, e aquilo virou chacota, todo mundo me perseguindo no corredor me chamando de mico preto, mas acho que essa foi a primeira vez que eu senti racismo assim, de sentir que as pessoas eram realmente cruéis.

Lázaro: Isso me faz pensar um pouco na “geração tombamento”, que eu não sei se você se sente parte, se acha que você participa de algum movimento, tem gente que tem denominado um movimento que tá acontecendo com jovens negros e negras, onde a representatividade importa sim. “Empoderamento” é uma palavra muito dita, e tão dizendo que é “geração tombamento”. Eu não sei exatamente se já dá pra gente classificar assim, e não sei quê que cê pensa disso, mas como é que você identifica essa geração da qual você faz parte? Essa geração empoderada e que sente no direito de ter sua representatividade.

Liniker: Eu acho que a gente tá cada vez mais cansado de ficar calado, sabe. Não dá mais pra ficar aguentando as pessoas no metrô falando do nosso cabelo, tipo: “ai, olha aquela pessoa toda esquisita andando na rua” porque tá cheia de cor, porque tá de turbante, porque tá com um black azul, com um black rosa. Então, a gente botar o nosso empoderamento através da estética, é uma coisa importantíssima pra gente, porque o tempo inteiro, desde de quando a gente era criança foi nos dito que era feio ser assim, e a gente mostra que não, ser preto é maravilhoso de todo o jeito que a gente puder. Então acho que a geração tombamento, é uma coisa de... A geração tombamento, a geração pela estética, a geração do empoderamento que é essa, eu acho que é necessária sabe, eu acho que isso reflete na gente, e com certeza tem uma carga histórica e somatiza coisas pro futuro assim. Pra… quando eu era criança que você fazia o Foguinho e a Taís fazia a Ellen… [personagens da novela Cobras & Lagartos - 2004]

Lázaro: Tá me fazendo sentir velho de novo...

Liniker: ...Aquilo era muito importante, porque até então eu nunca tinha... porque vocês tinham uma ascensão no meio da novela, que vocês ficavam ricos e tals. Aquilo eu nunca tinha visto, que um preto podia ser rico, que um preto era rico, que um preto morava numa casona. Então vocês já começavam naquilo sabe, vocês já começaram trazendo pra minha geração que tá assim hoje, e a nossa poder trazer pra outras crianças pretas que vão vir depois sabe. Então, eu tava até com vergonha de te falar isso, mas é. É muito...é, representatividade importa, sim, então aquilo quando eu era pequena, pra mim e pra minhas primas realmente valia a pena, ver um casal de pretos sendo pretos na TV.

Lázaro: Vou ler então essa última mensagem aqui da sabrina.maharis: “Em 21 anos de vida terrena, Liniker marcou nossa história e cultura com sua luz, sua ancestralidade, e originalidade. São realmente impressionantes. Meu corpo e alma respondem quando o ouço. Eu queria saber quais são os próximos passos desse ser iluminado nesse processo de reprogramação dos negros do nosso país, para que se sintam fortes e empoderados como deveriam. Bom papo”. E aí, quais os próximos passos?

120

Liniker: Nossa... Acho que o próximo passo é continuar fazendo sabe, continuar com força, continuar tendo coragem pra ninguém me invisibilizar e pra não me sentir invisibilizada e incapaz de fazer o que eu acredito, sabe. Porque às vezes é muita coisa né, muita coisa acontecendo, muita coisa atravessando, então, você fala “Gente, meu Deus do céu, até quando eu vou conseguir?”. Mas acho que dentro de mim tem um ímpeto de força e de coragem que vem diante de mim e que junto a isso se soma com a minha história, assim. Então, acho que, espero poder escrever mais, espero poder chegar mais no coração das pessoas e no meu coração, pra que junto com as pessoas eu consiga entender o que eu sou também, sabe. Que não seja uma coisa só, a pessoa pensa que só porque tem visibilidade, eu me construo só a partir de mim, meu processo é muito pelo contrário assim, é muito na troca. Acho que eu continuo com o coração cheio de amor querendo trocar com as pessoas.

Lázaro: Então, obrigado por você existir, obrigado pela sua coragem, obrigado por fazer com que um monte de gente não se sinta só.

Liniker: Eu que agradeço mesmo. Obrigado a você por toda a representatividade

Lázaro: Não vamos falar de mim não...

SOBE O SOM MÚSICA ZERO

Lázaro: Agora é hora de cantar Zero. Chorando, mas tem que cantar.

Liniker: A gente fica mordido, não fica? / Dente, lábio, teu jeito de olhar / Me lembro do beijo em teu pescoço / Do meu toque grosso, com medo de te transpassar / A gente fica mordido, não fica? / Dente, lábio, teu jeito de olhar / Me lembro do beijo em teu pescoço / Do meu toque grosso, com medo de te transpassar / E transpassei / A gente fica mordido, não fica? / Dente, lábio, teu jeito de olhar / Me lembro do beijo em teu pescoço / Do meu toque grosso, com medo de te transpassar / E transpassei / Peguei até o que era mais normal de nós / E coube tudo na malinha de mão do meu coração / Peguei até o que era mais normal de nós / E coube tudo na malinha de mão do meu coração / Deixa eu bagunçar você, deixa eu bagunçar você / Deixa eu bagunçar você, deixa eu bagunçar você / Deixa eu bagunçar você, deixa eu bagunçar você.

Transcrição da Entrevista de Tássia Reis para o programa Espelho 00:00 - 00:55 - QUADRO “UMA FOTO”

Lázaro: Tássia!

Tássia: (Risos)

Lázaro: Canta pra mim.

Tássia: Tão solta quanto o vento indica / Voando por onde se quer e vai querer / Ninguém manda na sua vida / Ela criou um jeito novo de viver. 121

SOBE O SOM MÚSICA DESAPEGADA

Lázaro: O Espelho está no ar.

1:43 À 2:09 VINHETA DE ABERTURA

Lázaro: Tássia! Você, hoje, é cantora e compositora, né? Mas o foco inicial da vida não era esse.

Tássia: Não

Lázaro: O que você queria ser?

Tássia: Eu já quis ser muita coisa de criança, assim, mas quando eu conheci a dança, né. As danças urbanas, eu quis ser uma grande dançarina.

Lázaro: Sim, e foi o que você foi procurar?

Tássia: Foi o que eu fui procurar. E eu acho que eu fui uma grande dançarina. Até porque eu tenho um e oitenta de altura, né (Risos).

Lázaro: Você é enorme (Risos).

Tássia: E, não, eu fui procurar. Eu sempre levei a sério essas paradas assim. Eu joguei vôlei na minha infância. Eu até achava que eu ia... eu ia jogar vôlei, assim, profissionalmente, né, e tal, mas quando eu conheci a dança, meu olho brilhou e eu nunca tinha pensado nisso, assim, profissionalmente e tudo mais.

Lázaro: E como é que começou o seu contato com o hip hop?

Tássia: Então, foi através das danças urbanas. Quando eu dançava, lá atrás, em Jacareí. Na verdade, no Vale, no Vale do Paraíba. Que é a região que fica Jacareí. Na época, tinha muitos eventos de hip hop e eles eram integrados, assim, tipo todos os elementos. Então, tinha DJ, tinha o grafite rolando, tinha sempre o rap e sempre tinha gente dançando também e também tinha uma bancada com livros de direitos civis, com filmes. Enfim, falando sobre o Malcom X, o Martin Luther King, Panteras Negras, coisas mil, assim. E aí, esse contato me impressionou muito, assim, quando eu era adolescente ainda, né, e me fortaleceu muito também. Que foi a primeira vez que eu parei pra pensar que eu não tinha… que eu não me via na TV ou, sei lá, nas revistas, na música como um todo. Comecei a refletir mais e me formou politicamente, assim. Foi o meu primeiro contato político.

Lázaro: Primeiro contato político, né?

Tássia: É, foi o hip hop.

Lázaro: E qual foi a sua primeira gravação?

122

Tássia: Foi o Meu Rapjazz. Que foi… a gente gravou, acho que finalzinho de 2012 pra 2013, se não me engano. Foi a primeira grav… Eu gravei no homestudio do Diamante, do Dia, que produziu meu disco novo. Ele tinha o homestudio. Alguém indicou, que eu não manjava, assim, que fazia isso em São Paulo. Aí me indicaram ele e a gente ficou melhores amigos, inclusive, (Risos) depois do dia que eu fui lá gravar, e foi muito legal, porque eu queria botar várias vozes e tal, e eu não sabia como. Ele me direcionou nesse sentido, assim. E foi muito especial.

Lázaro: E teve um bom resultado, né, o Rapjazz. As pessoas, até hoje, de vez em quando, quando eu recebo “Olha, você conhece a Tássia Reis? Olha o clipe do Rapjazz” 5:00 - 5:27 Clipe Trecho Meu Rapjazz

Tássia: Todo mundo tá fazendo o seu corre de alguma maneira. Todo mundo tá querendo se adiantar, mas todo mundo se coloca numa posição que certas coisas não é pra gente, sabe?

Lázaro: Sim.

Tássia: Mas todo mundo quer, ao mesmo tempo. Então, eu acho que eu falei, assim, é… como eu posso dizer? O que eu sempre quis falar, acho, na cara das pessoas. (Risos)

Lázaro: Aham.

Tássia: Que todo mundo quer brilhar, cês ficam fingindo que não e a verdade é essa. Todo mundo quer brilhar. (Risos)

Lázaro: (Risos) Eu queria falar de uma música sua: Afrontamento

Tássia: Afrontamento.

Lázaro: Fala um pouquinho dessa música.

Tássia: Afrontamento eu escrevi pra cypher do Vale Em 3D, que é uma cypher… o cypher é tipo um, hoje em dia, dos MC’s, é tipo um encontro de MC’s que é filmado e cada um manda suas ideias, né?

Lázaro: Sim.

Tássia: E aí, o DJ 3D, que é o DJ que me acompanha, inclusive, me convidou pra participar, acho que foi do terceiro episódio da série dele. E aí ele escolheu um beat e mandou pra vários… pra quatro, cinco MC’s pra participarem. Eu era uma das MC’s, né. A única mulher dessa, desse episódio. E tinha… eu tava assim, muito incomodada com várias coisas que tinham acontecido. Uma delas é...é, era a morte da Cláudia.

7:01 - 7:11 LEGENDA NA TELA: “Em março de 2014, no Rio de Janeiro, a auxiliar de limpeza Claudia Silvia Ferreira, sob custódia da polícia militar, após ser baleada 123 acidentalmente em um tiroteio, teve seu corpo pendurado a um carro da PM e arrastado por vários metros.”

Tássia: Eu fico meio mexida nessa hora, assim. E refletindo sobre a questão do genocídio da juventude negra. Então, quando eu recebi o beat, eu fiquei, assim, na hora veio aquelas coisas, assim: “tipo, quê que eu vou falar, né?” Acho que é a pergunta a gent… que eu faço quando vou escrever. “Aí, que saber? Cê quer saber mesmo o que me incomoda?”. E aí, eu relatei essas coisas e tal. E ao mesmo tempo, eu quis trazer essa força que a gente tem, porque, apesar de tudo, apesar do Estado negligenciar ou nos exterminar, a gente ainda é uma força resistente e nós estamos vivos, como diria o KL Jay. Estamos vivos. Então, se a gente tá vivo, é afrontar real. Tipo, com a nossa existência, com nosso trabalho, com… ocupando lugares. Existir no mundo de hoje, na sociedade de hoje, é resistir pra nós negros.

8:01 - 7:11 LEGENDA NA TELA: “Existir no mundo de hoje é resistir”

Tássia: Então, afrontamento é isso, assim.

Lázaro: Cê quer falar um pedacinho dele pra mim?

Tássia: É assim: quer saber o que me incomoda, sincero / É ver que pra noiz a chance nunca sai do zero / Que se eu me destacar é pura sorte jão / Se eu fugir da pobreza, eu não escapo da depressão / Um quadro triste e realista, na sociedade machista, as oportunidades são racistas / São dois pontos a menos pra mim / É difícil jogar quando as regras / Servem pra decretar o meu fim / Arrastam minha cara no asfalto / Abusam, humilham, tiram a gente de louco / Me matam todo dia mais um pouco / A cada Claudia morta, a cada Alan morto / Se não bastasse essa injustiça e toda dor / Transformam adolescentes em um / Filho da puta de um malfeitor / É complicado essa anedota, não acha? / Mas hoje ouvirão verdades vinda dessa racha / No rap, ego inflado, os cara se acha Mano, ninguém se encontra e geral arrasta / À margem de tudo a gente marcha / Pra manter-se vivo respirando nessa caixa / Eu quero mais, eu vou no desdobramento / Nem que pra isso eu tenha que / Formar um movimento / Agora é a preta no comando, no empoderamento / E eu vim logo de bando, vai vendo / Com o afro alaranjado, chegando no talento / Gritando mãos ao alto / E atirando argumento, pow! /Da zona de conforto pra zona de confronto / Vai vendo / Sumemo, me chame de afrontamento!

Lázaro: (Palmas)

9:46- 10:55 QUADRO “OKAWÉ” COM FERNANDA FELISBERTO

10:56-11:28 SOBE O SOM AFRONTAMENTO

Lázaro: Empoderamento, né?

Tássia: É.

Lázaro: É uma palavra que tá sendo muito falada ultimamente. Você sempre foi 124 empoderada?

Tássia: Olha, não. (Risos)

Lázaro: (Risos) E você… E aí, já vou...

Tássia: Não sei.

Lázaro: Ó, e aí já vou te dizer. Duas perguntas: cê sempre foi empoderada e, se não, o quê que você enfrentou quando se tornou empoderada?

Tássia: Sim… Eu nunca fui empoderada antes, vamos usar essa perspectiva de ser empoderada agora. Porque eu não me entendia bonita, eu não me entendia capaz. Quando eu ia procurar um emprego, seja na área de moda, ou antes mesmo de qualquer outra coisa, que não exigisse, sei lá, ensino superior, eu nunca conseguia. Tipo, eu sempre ficava com os piores empregos, né, com os piores salários. Não tinha chance pra mim! Então, isso faz a gente achar que a gente… o problema tá na gente, né. E aí, quando eu comecei a me deparar com essas coisas, eu ainda me deparo, eu ainda que é normal, a gente fala que o lacre, a gente brinca, que o lacre é um exercício diário, né. Então, tipo, tem dia que cê olha no espelho “nossa, não tá legal. que tá acontecendo… essa espinha aqui” e “ai, meu cabelo não tá bom, ai que tá acontecendo?”. E a gente entra nessas crises, porque, tipo, não tinha referência, né, antes. Agora, a gente é a nossa própria referência e consegue se enxergar na amiga, na vizinha, na internet, no YouTube, enfim, e tá criando isso. Acho que, quando eu comecei a entender que eu não era obrigada a nada (risos), as coisas começaram a ficar melhores, na minha cabeça.

Lázaro: Sim.

Tássia: Mas, em contrapartida, eu não ser obrigada a nada, não significa que a sociedade mudou. Ela continua me achando esquisita, me achando feia, continua sendo racista e isso é um choque, né, porque eu ser empoderada não me exclui da possibilidade de sofre qualquer coisa machista ou racista na rua, enfim. Pelo contrário, eu posso ser até um alvo por causa disso e... mas as coisas boas que… eu passei a me investigar. Acho que a gente volta pra autodescoberta. Eu passei a me investigar porque que as minhas relações afetivas eram tão curtas, sabe, e porque que eu não me envolvia tão profundamente com as pessoas, assim, não me permitia. Porque que eu era tão insegura nas relações, porquê que tinha tanto ciúmes, sabe, e aquele medo de perder aquilo que era tão pouco, sabe. E aí eu comecei a me investigar isso, assim, e eu descobri que várias das construções da sociedade, né, em relação às relações afetivas (risos) são mitos e são coisas que geralmente só servem pra colocar a gente pra baixo e não pra construir uma coisa bacana, né.

Lázaro: E toda essa construção que você falou, tá na sua música? E como é que ela se apresenta? Esses dois lados.

Tássia: Em algumas horas, eu falo comigo mesmo. Eu acho que eu desenvolvi isso, assim, sei lá. Se Avexe Não, tipo, é um papo dez comigo mesma, assim (risos). Que 125 de tipo “Ah, lá vai eu cair naquela armadilha de novo de relacionamento, tipo onde o cara, tipo, não te valoriza, sabe, e aí cê, ao mesmo tempo cê… quer ficar triste que aquele momento, sei lá, do lado término, da brigas, alguma coisa assim” , mas ao mesmo tempo tem tanta coisa pra fazer, sabe. Eu não tenho tempo pra isso. A sociedade disse que pra mim que eu não tenho que chorar.

15:24 - 15:47 SOBRE O SOM CLIPE SE AVEXE NÃO

Tássia: Eu vou chorar se precisar, se precisar ficar aqui amargando essa derrota, eu vou amargar ela, depois eu vou levantar maravilhosa e ter chorado tudo que eu tiver, sabe. No processo de fazer o disco, teve um episódio que eu chorei em público. E aí, eu fiquei “Nossa...”. O dia foi terrível, assim, no show, que eu fiquei é… muito nervosa, muito irritada e eu perdi a voz por conta disso. Perdi a voz por uma questão emocional. Tava maravilhosa de tarde, cantando Rihanna nas notas altas, e a noite perdi a voz. Mas eu tinha que fazer o show, aí eu subi pra fazer o show e aí, quando eu comecei a cantar, a música que era aguda, e aí a voz não saía, eu comecei a chorar que nem uma criança no palco. E aí a Lívia que can... meu até enche de lágrima, porque foi terrível isso. A Lívia que é minha back in vocal… foi uma cena bonita, na verdade, mas ela segurou na minha mão, e começou a cantar junto comigo, as pessoas entenderam. Que eu acho que o meu maior medo era perder a voz em público. Aí, eu comecei a chorar. Aí, o meus dois maiores medos se juntaram naquele dia e eu comecei a chorar em público porque eu não tinha voz (risos). Aí eu falei: “Meu Deus”... Justamente que eu tinha escrito na música, tava acontecendo, sabe? Que era eu me permitir desmoronar e desaguar todo o meu entristecer. Eu tava com aquilo guardado, por isso que eu perdi a voz.

Lázaro: Deixa eu ver aqui as perguntas da internet. Tulani fala assim “Eu sou bem fã dela. Quero saber o que a Tássia Reis acha sobre relacionamento interraciais e como e se isso se relaciona com a solidão da mulher negra”.

Tássia: Uau! Perguntão! Vamo lá. Então, tanto o homem negro quanto o homem branco depreciam a mulher nas relações, porque aí tem como aliado o machismo, né, então junto do racismo. A mulher negra é… quando ela passa na rua, tipo, muitas vezes, os caras pensam nela como um pedaço de carne, as mulheres em geral, mas até a maneira do assédio é diferente pra com a mulher negra, sabe. Muitas vezes, a mulher negra é abandonada pelo seu parceiro negro quando ele consegue… quando ele avança na sociedade. Há um pensamento que diz que ele quer se inserir na sociedade que ele tá instalado e a mulher negra, que veio com ele, não se adapta àquele espaço e ele quer se parecer mais com os homens brancos. Eu acho que as pessoas são livreS pra se relacionarem com quem elas quiserem, mas entendendo tudo isso que foi dito em relação as mulheres negras é importante pensar se você não tá sendo uma, como posso dizer, uma ferramenta do sistema pra depreciar mais uma mulher negra, sabe. Tipo, eu acho que as pessoas podem se perguntar: “Quantas vezes eu namorei uma mulher negra?”. Namorou. Tipo, de levar na casa, sabe. Não de pegar na balada ou de pegar de madrugada, como acontece muitas vezes. Tipo, quantas vezes eu olhei uma mulher negra e pensei: “Nossa, como ela é bonita como qualquer mulher”. Não pensar: “como ela é uma negra bonita” Como ela é bonita! E aí, eu penso que a mulher já tá com todos esses… com toda essa carga nas costas, com todas essas questões pra bater de 126 frente, a última coisa que ela tem que pensar é na cor da pessoa que ela vai se relacionar. Pra mulher negra em específico, eu acho que ela pode ficar com quem ela quiser, desde que faça bem pra ela, sabe. É isso que eu venho pensado ultimamente. Só precisa fazer bem. Agora, a questão específica do homem negro é… eu gostaria, na verdade, que eles só pensassem nessa questão do gosto e porque que isso é tão influenciado na vida, na vida deles, assim, e tentar se enxergar com a nossa ótica um pouco, um pouco, com a ótica com essa bagagem toda que a gente tem. Porque o homem negro ele também tem essa bagagem, não a mesma, mas também tem a bagagem de toda a questão da autoestima e do racismo e do machismo também, né, acaba influenciando nas escolhas, nas questões, enfim, de tudo mais. Então, acho que nessa questão, assim, eu trago muito mais pras mulheres, porque, não sei, não tenho como resolver essa questão da sociedade. Eu só arrumei um meio de sofrer menos, que é amar, amar quem me amar da maneira certa de volta.

Lázaro: São as escolhas, né.

Tássia: É.

Lázaro: E você escolheu tatuar em você quatro palavras, né?

Tássia: É. São quatro frases, na verdade. Lázaro: Quatro frases?

Tássia: Aham.

Lázaro: Quais são?

Tássia: Todo amor, todo poder, toda glória e toda a ternura.

Lázaro: Por que?

Tássia: Olha, eu acho essas palavras muito fortes. Foi a minha primeira tatuagem. Eu tenho duas. Uma aqui e uma na barriga. E eu vi elas numa camiseta gospel que uma amiga tinha, a Fabi, que morava comigo, veio de Minas Gerais. Maravilhosa! Beijo Fabi! E falei: “Um dia vou tatuar isso”. Aí, quando eu fui fazer um show em Porto Alegre, 2014, eu ganhei uma tatuagem, eu falei “ah, minha hora chegou”. E a gente fez essa tatoo. Que eu acredito que são coisas muito importantes na vida.

Lázaro: Então, Tássia. Eu tenho que te desejar todo amor, todo poder, toda glória e toda a ternura.

Tássia: Pra nós todos (risos)

Lázaro: Brigado, viu?

Tássia: Brigada eu.

Lázaro: Me dá um beijo. 127

Tássia: (risos) Brigadão.

Lázaro: Até semana que vem, meus lindos.

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