Editorial ISSN 2319-0698

DIRETORIA DA ASSAN CONSELHO CONSULTIVO (2015- NO BIÊNIO 2019-2020 2019) PRESIDENTE Alex Alexandre Molinaro (Fiocruz) Eduardo de Oliveira Lima Aluf Alba Vilar Elias (UFRJ/Arquivo Nacional) Brenda Couto de Brito Rocco (UNIRIO) VICE-PRESIDENTE Biancca Scarpeline de Castro (UFRRJ) Luiz Fernando de Souza Barreto Ramos Fer- Cândida Fernanda Antunes Ribeiro (Univ. do reira Porto) SECRETÁRIO Carlos Fico da Silva Júnior (UFRJ) Bruno Duarte dos Santos Cecília Maria Bouças Coimbra (GTNM-RJ) Cibele Vasconcelos Dziekaniak (FURG) TESOUREIRO Ciro Marcondes Filho (USP) Anderson Luiz Martins Daniel Flores (UFF) SUPLENTES Dênis Roberto Villas Boas de Moraes (UFF) Francisca Valbonetti Rodrigues e Rodrigo Fábio Koifman (UFRRJ) Cavalieri Mourelli Francisca Deusa Sena da Costa (TRT 11ª Região) Heloísa Esser dos Reis (UFG) Izabel Cristina Gomes da Costa (UCAM) Jane Felipe Beltrão (UFPA) REVISTA ACESSO LIVRE José Maria Jardim (UNIRIO) Juliana Fiúza Cislaghi (UERJ) EDITOR RESPONSÁVEL Karla Guilherme Carloni (UFF) Leonardo Augusto Silva Fontes Kátia Maria Ribeiro Motta (Pedro II) Leandro José Luz Riodades de Mendonça (UFF) EDITOR EXECUTIVO Lia Ramos Jordão (Biblioteca Nacional) Thayron Rodrigues Rangel Lívio Sansone (UFBA) Lúcia de Fátima Guerra Ferreira (UFPB) CONSELHO EDITORIAL Luciana Quillet Heymann (FGV-RJ) Anderson Luiz Martins Lucília Maria Sousa Romão (USP) Arquivo Nacional Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros (UERJ) Maíra Torres Corrêa (IPHAN) Dayo de Araujo Silva Corbo Marcelo Badaró Mattos (UFF) Arquivo Nacional Mira Lini Marconsin Caetano (UFF) Diego Barbosa da Silva (Presidente) Orlando de Barros (UERJ) Arquivo Nacional Paulo Cavalcante de Oliveira Júnior (UNIRIO) Leonardo Augusto Silva Fontes Paulo Victor Leite Lopes (UFRJ) Arquivo Nacional Rafael Simone Nharreluga (Arquivo Histórico de Moçambique) Luiz Salgado Neto Rosanara Pacheco Urbanetto (UFSM) Arquivo Nacional Sylvia Debossan Moretzsohn (UFF) Rodrigo Aldeia Duarte Vera Lúcia Bogéa Borges (UNIRIO) Arquivo Nacional Victória Lavínia Grabois Olímpio (GTNM-RJ) Vinicius Mitto Navarro (SEDUC-RS) Thayron Rodrigues Rangel Viviane Gouvêa (Arquivo Nacional) Arquivo Nacional

REVISÃO Renata dos Santos Ferreira José Marcio Batista Rangel DIAGRAMAÇÃO Raphael Argento de Souza PARECERISTAS AD HOC

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APRESENTAÇÃO 5 Diego Barbosa da Silva e Leonardo Augusto Silva Fontes

O FÓRUM DA LIBERDADE E A ASCENSÃO DA EXTREMA DI- 7 REITA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Flávio Henrique Calheiros Casimiro

GOLPE DE ESTADO: O CAMINHO DA DIREITA NO BRASIL 25 Maurício Ferreira Silva e Antônio Eduardo A. Oliveira

NECROBIOPOLÍTICA DE GÊNERO NOS DISCURSOS DE JAIR 39 BOLSONARO: UM ESTUDO PRELIMINAR Fernanda Pattaro Amaral e Ana Claudia Delfini C. de Oliveira

CONSEQUÊNCIAS DO AUTORITARISMO ÀS INSTITUIÇÕES 55 MEDIADORAS DO ESTADO: BREVES APONTAMENTOS. Taiguara Villela Aldabalde

EU ME RECORDO: FELLINI, AMARCORD E FASCISMO 73 Mariana Fujikawa

ASPECTOS DE FUNCIONAMENTO E INFRAESTRUTURA DOS 85 CONSELHOS DE SAÚDE A PARTIR DO SISTEMA DE ACOM- PANHAMENTO DOS CONSELHOS DE SAÚDE (SIACS) Marcela Gomes Ferreira e Daniela Alba Nickel

4 Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019

APRESENTAÇÃO

Acompanhamos nos últimos anos a ascensão de governos e movimentos de direita, que, am- parados na internet e muitas vezes na divulgação de fake news, pregam a diminuição de medi- das de preservação ambiental, questionam o papel e a neutralidade da ciência, criticam o glo- balismo e o multilateralismo, condenam a abertura de fronteiras para imigrantes e refugiados a nível mundial e perseguem minorias (como grupos étnicos e LGBTQIA+). Alguns desses movimentos condenam a política e se apresentam como vanguardistas de um novo modelo democrático, quando na verdade cerceiam liberdades de expressão, de manifes- tação e de participação social nas decisões do Estado e pleiteiam serem os únicos combatentes da corrupção. Tais movimentos podem ser observados nos EUA, no Brasil, na Itália, na Polônia, na Hungria e nas Filipinas, por exemplo. Embora recentes, já apresentam profundas transformações em diversas áreas políticas e sociais - justamente em um momento no qual o mundo passa por intensa migração de pessoas, ampliação das comunicações e relações via internet e crescentes desafios ambientais que exigem cada vez mais uma atuação a nível global. Esse dossiê, portanto, corrobora para ampliar as reflexões sobre a nova onda direitista que parece ascender no mundo como um todo, a fim de proporcionar análises sobre as políticas implementadas por elas, seus impactos na sociedade, suas formas de chegar ao poder e sugerir alternativas aos modelos por ela propostos. Foram aceitos textos dedicados a analisar, a partir de diferentes ângulos, abordagens ou in- strumentais teóricos as políticas elaboradas e implementadas por governos de direita, seus impactos na sociedade, suas relações com o conservadorismo e outras ideologias, suas formas de chegar ao poder, de se manter nele e de mobilizar a sociedade, além sugerir alternativas aos modelos por ela propostos. O primeiro artigo, O Fórum da Liberdade e a Ascensão da Extrema Direita no Brasil con- temporâneo, de Flávio Henrique Calheiros Casimiro, analisa o funcionamento do Fórum da Liberdade, evento que ocorre anualmente em Porto Alegre (RS), desde 1988 com o objetivo de articular simpatizantes e construir uma rede de aparatos de doutrinação da direita no Brasil. O artigo defende que o ano de 2019 marca a ascensão da extrema direita ao poder no Brasil.

6 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade O segundo artigo, Golpe de Estado: o caminho da direita no Brasil, de Maurício Ferreira Silva e Antônio Eduardo A. Oliveira, analisa a deposição da presidenta Dilma Roussef e o governo de Michel Temer como uma preparação para a ascensão da direita, com a adoção de uma pauta conservadora e neoliberal. O terceiro artigo, Necrobiopolítica de gênero nos discursos de Jair Bolsonaro: um estudo pre- liminar, de Fernanda Pattaro Amaral e Ana Claudia Delfini C. de Oliveira, debruça-se nos pronunciamentos de Bolsonaro sobre povos e grupos de minorias e os analisa como um discur- so necrobiopolítico que autoriza e incentiva o estupro e a violência de gênero. O quarto artigo, Consequências do autoritarismo às instituições mediadoras do Estado: breves apontamentos, de Taiguara Villela Aldabalde, mostra como um governo de direita pode agir sobre instituições públicas de forma autoritária, desacreditando-as perante a sociedade e re- duzindo seu campo de atuação. O quinto artigo, Eu me recordo: Fellini, Amarcord e Fascismo, de Mariana Fujikawa, busca entender e analisar, a partir das memórias do diretor Federico Fellini, questões do seu filme Amarcord, os elementos contextuais e os aspectos que criticam o fascismo nesta produção. O último artigo, Aspectos de funcionamento e infraestrutura dos Conselhos de Saúde a partir do Sistema de Acompanhamento dos Conselhos de Saúde (SIACS), de Marcela Gomes Ferreira e Daniela Alba Nickel, compõe a seção livre e é um estudo de caso cujo objetivo foi verificar o registro dos dados e descrever aspectos de funcionamento e infraestrutura dos conselhos de saúde nas regiões do Brasil. Trata-se de um estudo transversal descritivo, com a utilização de dados secundários do Sistema de Acompanhamento dos Conselhos de Saúde (SIACS) de 2012 a 2017. Com esse dossiê damos continuidade às discussões iniciadas na edição nº 8 (jul-dez/2017), “Experiências das esquerdas”, dando voz a análises sobre as direitas e seus extremismos no Brasil e no mundo, que vêm pautando a política global nos últimos anos com grandes impactos políticos e sociais, agora ainda mais visíveis durante a pandemia causada pelo coronavírus – que atrasou, inclusive, essa edição. Diego Barbosa da Silva e Leonardo Augusto Silva Fontes Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 7 O Fórum da Liberdade e a ascensão da extrema direita no Brasil contemporâneo Flávio Henrique Calheiros Casimiro Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professor de História Econômica e Econo- mia Política do Instituto Federal do Sul de Minas Gerais.

Resumo O ano de 2019 marca a ascensão da extrema direita ao poder no Brasil. Diante de tal conjun- tura, a proposta deste estudo é buscar analisar alguns dos elementos que contribuíram para a construção dessa realidade. Nesse sentido, propomos uma discussão em torno da atuação do chamado “Fórum da Liberdade”. Iniciado em 1988, o fórum é realizado anualmente, em Porto Alegre, e pode ser caracterizado como o principal evento das direitas e do pensamento conservador no Brasil. Além disso, constitui palco emblemático para o lançamento e articu- lação com diferentes aparelhos de atuação política e ideológica dos segmentos liberal-conser- vadores. O objetivo é buscar compreender as estratégias de produção do consenso a partir da estruturação de uma espécie de rede direta e indireta de aparatos de doutrinação e difusão de uma cultura voltada às características mais agressivas do ultraliberalismo e ao pensamento mais reacionário. Por conseguinte, estabelecer as conexões entre essas iniciativas de segmen- tos conservadores brasileiros e a construção da alternativa de extrema direita que estrutura a candidatura e o próprio governo Bolsonaro. Palavras-chave: Extrema direita; Fórum da Liberdade; produção de consenso.

Abstract The year 2019 marks the rise of the far-right to power in . Given this conjuncture, the purpose of this study is to analyze some of the elements that contributed to the construction of this reality. In this sense, we propose a discussion around the performance of the so-called “Freedom Forum”. Started in 1988, the forum is held annually in Porto Alegre, and can be characterized as the main event of right-wing and conservative thinking in Brazil. Moreover, it constitutes an emblematic stage for the launching and articulation with different political and ideological apparatuses of the liberal-conservative segments. The aim is to understand the strategies of consensus production through the structuring of a kind of direct and indi- rect network of apparatus of indoctrination and diffusion of a culture focused on the most aggressive characteristics of ultraliberalism and the most reactionary thinking. Therefore, to establish the connections between these initiatives of Brazilian conservative segments and the construction of the far-right alternative that structure the candidacy and the Bolsonaro government itself. Keywords: Far-right; Freedom Forum; consensus production.

8 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade Aspectos conjunturais e introdutórios do. Não é nossa pretensão, portanto, trazer, nesse breve texto, respostas conclusivas e de- O ano de 2019 marca a ascensão de segmen- finitivas que possam dar conta do processo de tos da extrema direita ao poder no Brasil. reinvenção das direitas no Brasil, mas, tão Setores progressistas e defensores de direit- somente, levantar e analisar algumas car- os humanos acompanham com perplexidade acterísticas que constituem essa conjuntura o início do governo do militar reformado Jair histórica, buscando suas conexões, principal- Messias Bolsonaro, uma figura extrema- mente, no que concerne ao processo de pro- mente contraditória, polêmica e truculenta, dução do consenso. que alia certo carisma alicerçado nos seto- res mais reacionários da sociedade brasilei- Tal exercício traz certas complicações ra com a forte rejeição dos setores progres- de ordem metodológicas, uma vez que se tra- sistas e defensores da democracia. Como ta de uma história viva, onde novos elemen- compreender a vitória de um discurso mar- tos, provas, investigações surgem a cada dia, cadamente caracterizado pelo ódio e autori- em um vertiginoso processo contraditório de tarismo? Quais fatores poderiam explicar a transformações que muito diz sobre a própria ascensão do pensamento mais reacionário, inexistência de um verdadeiro projeto de Es- antiprogressista, antiliberal e anticientífico tado, com uma liderança esdrúxula e um no Brasil do século XXI? partido político que mais parece uma agre- miação de candidatos sem qualquer diretriz Diante de tais apontamentos inici- teórico-política. ais, a proposta deste estudo parte das inqui- etações do presente, para buscar alguns el- Por conseguinte, é um grande desafio ementos que possam ajudar a compreender desenvolver o conhecimento quando ele é, ao tal processo histórico de construção de um mesmo tempo, o exercício paciente e rigoroso projeto de hegemonia dos segmentos da ex- da pesquisa histórica e forma de luta. Com- trema direita, que estruturam a candidatura preender as relações do presente constitui, e o próprio governo Bolsonaro. Esse movi- portanto, um campo de luta, uma vez que mento precisa ser compreendido a partir de não é possível dissociar o pesquisador das sua complexidade de condicionantes inter- relações as quais este está inserido. O exer- nos, no plano da dominação de classe e pro- cício aqui proposto, por sua vez, é o de bus- dução de consenso, assim como externos, no car compreender as estratégias de produção âmbito das determinações da economia mun- do consenso em torno de uma concepção de

Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 9 mundo que articula as características mais campo da sociedade civil, cada vez mais oci- agressivas do ultraliberalismo no campo dentalizada. das relações econômicas e na visão glorifi- Nessa conjuntura de redefinição da cadora do mercado, com o pensamento mais estratégia de atuação de amplos setores da reacionário no âmbito dos valores morais, burguesia brasileira é que temos a constitu- tudo isso alicerçado em um discurso “nacio- ição de inúmeros aparelhos de atuação políti- nalista” (mesmo com toda subserviência aos ca e ideológica dos diferentes segmentos da EUA) e “patriótico” de cepa chauvinista. E direita brasileira, complexificando as formas para buscar a origem desses discursos e seu de relação com o poder de Estado, bem como, processo de difusão na sociedade brasileira, atuando sistematicamente para a produção é que propomos uma discussão em torno do de consenso em torno de pautas neoliberais principal evento das direitas e do pensamen- na economia e ultraconservadoras no âmbito to conservador no Brasil e suas articulações dos costumes. fundamentais, a saber: o chamado “Fórum da Liberdade”. Tais aparelhos de ação política e

O Fórum da Liberdade: palco para a ideológica, desenvolveram formas sofistica- projeção de aparelhos de doutrinação das de articulação e atuação conjunta, cri- liberal-conservadora e ativismo políti- co libertário no Brasil ando um bloco importante e consistente de estratégias variadas de difusão e ampliação Para iniciar uma discussão sobre essa de seus quadros de seguidores. Esse proces- ascensão do conservadorismo no Brasil, nos so se intensifica com os governos do PT e, a últimos anos, é preciso ter em vista o caráter partir de 2014, tais aparelhos assumem uma histórico desse processo. A construção e at- estratégia política incisiva e um discurso ualização da hegemonia dos segmentos da deliberadamente reacionário. Essa capilar- direita brasileira deve ser observada, pelo idade articulada demonstra-se como um el- menos, a partir das últimas três décadas. emento fundamental para a naturalização Desde o processo de redemocratização do de determinados discursos e a produção de Brasil, no final dos anos de 1980, segmen- espécies de “verdades socialmente aceitas”, tos conservadores e reacionários da burgue- em virtude da replicação desses conteúdos sia brasileira, insatisfeitos com os rumos da em diferentes meios. Essa articulação possi- chamada “Nova República”, com as novas bilitou tanto a atuação dessas organizações diretrizes estabelecidas nas disputas da con- em projetos em comum; o compartilhamento stituinte, passam a se organizar também no 10 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade entre elas de membros associados, que aqui O evento tem como instituição orga- chamamos de intelectuais orgânicos; a pro- nizadora o Instituto de Estudos Empresari- dução em massa de conteúdos compartilha- ais (IEE). Aparelho de proposta doutrinária, dos e replicados nos mais diferentes aparel- fundado em 1984, no Rio Grande do Sul, hos, desdobrando-se na mídia de forma geral, com fortes conexões com outra organização em blogs e, mais recentemente, redes sociais de atuação doutrinária, o chamado Institu- e aplicativos móveis. Trata-se de uma forma to Liberal (IL), precursora desse modelo de extremamente complexa, difusa e eficiente atuação no Brasil, fundado em 1983. O IEE de produção de consenso. destaca-se pelo discurso ultraliberal, de in- fluência da Escola Austríaca de Economia e a Diante de todas as conexões diretas e Escola Monetarista de Chicago, assim como, indiretas estabelecidas entre os mais diver- pelo conservadorismo ou mesmo reacionaris- sificados (tanto na quantidade como no mo- mo no que se refere às pautas de caráter mor- dus operandi) aparatos de atuação política e al. A partir dessa sintonia ideológica e pro- ideológica, com o perfil mais doutrinário, que gramática, o IEE com o apoio do IL lançaram emergem no supracitado contexto de reartic- o Fórum da Liberdade, em 1988. Essa copar- ulação das frações burguesas brasileiras, ticipação direta ou indireta do IL nos fóruns destaca-se um elemento fundamental que manteve-se constante, principalmente com interliga diretamente essas organizações de a transformação do Instituto Liberal do Rio ativismo político, a saber: o chamado Fórum Grande do Sul em Instituto Liberdade, anos da Liberdade. O Fórum representa um dos mais tarde. principais e mais divulgados eventos de di- fusão de valores conservadores e da con- Por sua vez, o Instituto de Estudos Empre- cepção de mundo neoliberal e libertária re- sariais se insere no quadro dos aparatos de alizado no Brasil. Pode ser considerado como ação política e ideológica da direita brasilei- um verdadeiro reduto das direitas e do con- ra, partilhando dos mesmos pressupostos do servadorismo não só no país, mas também, Instituto Liberal do Rio Grande do Sul, sen- internacionalmente, com certa influência nos do que grande parte de seus quadros figuram nossos países vizinhos e considerado pela Re- nas duas organizações. O IEE, entretanto, vista Forbes “o maior evento de debates da apresenta uma estrutura organizacional com América Latina” (FÓRUM DA LIBERDADE, mecanismos de atuação e formas de filiação 20 mai. 2019). institucional bastante diferentes de seu con- gênere. Primeiramente, o IEE funciona como Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 11 uma organização fechada, de acesso restrito, um dos mais importantes aparelhos de ação com critérios bastante rigorosos que objeti- política e ideológica de diferentes segmentos vam a formação de quadros de intelectuais das direitas brasileiras. Uma organização orgânicos mais homogêneos. A entidade em- que dispõe de uma impressionante capilar- presarial de caráter eminentemente classis- idade, principalmente, em virtude do seu ta organiza-se no sentido de formar/educar grande número de articulistas, especialistas seus quadros de intelectuais orgânicos, como e convidados que, juntos, somam mais de 240 um “clube” fechado dos “escolhidos”. Dentre intelectuais orgânicos, somente na relação de as várias estratégias desenvolvidas pelo IEE, 2019. Esses intelectuais produzem conteú- sem sombra de dúvidas, sua grande marca é dos difundidos pela instituição, que são rep- o Fórum da Liberdade, realizado anualmente licados e reproduzidos em uma gama variada na cidade de Porto Alegre-RS. de espaços midiáticos, blogs e redes sociais. Por conseguinte, o IMIL caracteriza-se como Sendo reconhecido como o principal um importante produtor de conteúdos para evento da agenda das direitas no Brasil, o diferentes canais da direita brasileira. Fórum foi palco para o lançamento público de alguns dos principais aparelhos da nova di- Os intelectuais ligados ao IMIL, se- reita brasileira. Entre essas organizações de jam dirigentes, articulistas e/ou convidados reconhecida atuação doutrinária liberal-con- também atuam e reproduzem os valores e servadora, destacamos quatro entidades fun- diretrizes defendidas pela instituição por damentais para a ascensão da direita mais diversos outros espaços de produção de con- reacionária no Brasil contemporâneo, são senso como organizações classistas e univer- elas: o (IMIL); o Institu- sidades. Entre estas podemos destacar: a to Mises Brasil (IMB); a vertente brasileira Universidade de São Paulo (USP), Univer- do Students for Liberty, o Estudantes pela sidade Estadual de Campinas (Unicamp), Liberdade (EPL), que se desdobrou em EPL Universidade Federal de Minas Gerais e Movimento Brasil Livre (MBL); e, por fim, (UFMG), Universidade Federal Fluminense o chamado canal Brasil Paralelo. (UFF), Universidade Federal do Rio de Ja- neiro (UFRJ), Universidade Federal do Rio Lançado no Fórum da Liberdade em Grande do Sul (UFRGS), Universidade Fed- abril de 2006, cujo tema do evento foi, O pod- eral do Paraná (UFPR), Universidade Fed- er no Brasil: quais os direitos e deveres dos eral de Pernambuco (UFPE), Universidade governos?, o Instituto Millenium tornou-se Federal de São Carlos (UFSCar), Universi- 12 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade dade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Uni- partir da trajetória e atuação de seus intelec- versidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), tuais orgânicos em outras esferas, uma vez Fundação Getúlio Vargas (FGV), Pontifícia que, o nome do Millenium muitas vezes se- Universidade Católica (PUC), entre outras quer aparece nesse processo. A capacidade de (CASIMIRO, 2018). difusão de seus pressupostos e sua concepção de mundo, a partir de aparelhos ideológicos Seus dirigentes e articulistas também como a mídia, os espaços acadêmicos e as estão ligados, de alguma forma, seja como entidades de representação setorial ou de colunista, articulista, redator ou como diri- classe, amplia a dimensão de sua atuação, gente, a outros veículos de comunicação da para muito além das ações meramente in- grande mídia brasileira. Dentre os espaços stitucionais promovidas pelo IMIL. É justa- midiáticos ocupados por integrantes do Mil- mente nessa sua capacidade de composição lenium estão as revistas Veja, Isto É, Épo- de quadros, atuantes e, no essencial, alin- ca, Exame, Revista Brasileira de Economia, hados aos seus princípios, que reside a sua Realidade, Forbes Brasil, Voto. Dos jornais principal força enquanto intelectual coletivo Folha de São Paulo, O Estado de São Pau- importante para a renovação da atuação das lo, Valor Econômico, Diário de São Paulo, O direitas no Brasil. Globo, Jornal do Brasil, Gazeta Mercantil, O Dia, Jornal da Tarde, A Tribuna, Zero Hora, A segunda organização lançada pelo Hoje em Dia, Última Hora, Brasil Econômi- Fórum da Liberdade, importante para com- co, Digesto Econômico, Jornal Imprensa, Jor- preendermos a ascensão do pensamento mais nal da Cultura, Jornal do Comércio, Jornal reacionário na atualidade é o Instituto Von da Orla, Jornal Brazilian Administration Mises Brasil (IMB). O aparelho foi apresen- Review. Assim como, em canais de televisão tado publicamente aos círculos liberais bra- como nas redes Globo, Record e Bandei- sileiros no XXIII Fórum da Liberdade, real- rantes, para citar apenas a TV aberta (CASI- izado em abril de 2010, cuja temática foi Seis MIRO, 2018). temas para entender o mundo. A entidade de ativismo político do chamado libertari- Para entender o papel desempenhado por anismo, com influência austríaca de Murray uma instituição como o IMIL, no processo Rothbard, teve como fundador o empresário de construção do consenso, é necessário ter do grupo Ultra Hélio Beltrão Filho, que tam- em mente a multiplicação das suas ações e bém está entre os fundadores do Instituto a capilaridade alcançada por seus valores, a Millenium e é filho de Hélio Beltrão, ex-min- Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 13 istro da ditadura civil-militar (das pastas de privatizador do governo Bolsonaro, indicado Planejamento, de 1967 a 1969, da Desburo- pelo próprio ministro Paulo Guedes, é o em- cratização, de 1973 a 1983). Como apresen- presário, presidente da Localiza, José Salim tado pelo The Intercept Brasil, Beltrão Filho Mattar. O empresário, que também fez par- está próximo do olavismo. “Tem orgulho em te do corpo dirigente do Instituto Liberal e dizer que foi, junto de Olavo de Carvalho, do corpo de mantenedores do Instituto Mil- um dos primeiros a confrontar o ‘marxismo lenium, agora ocupa a Secretaria Especial cultural’ no Brasil” e, mais adiante, a mes- de Desestatização e Desinvestimento do ma matéria apresenta a afirmação de que Ministério da Economia. Ou seja, o projeto de Beltrão comemorou a vitória de Bolsonaro, reconfiguração da estrutura estatal, a partir a quem considera um “político genial” (THE do projeto, em tramitação em 2019, para a INTERCEPT BRASIL, 5 mai. 2019). suposta ampliação da viabilidade da ativi- dade econômica do país, está sendo conduz- Fato é que os intelectuais “libertári- ido por elementos que, em suas vinculações os” e “anarcocapitalistas” do Instituto Mises ideológicas, defendem uma perspectiva mais Brasil agora ocupam a estrutura institucio- radical entre as concepções ultraliberais. nal do Estado, no governo Bolsonaro. Como exemplo temos o advogado e Chefe de Oper- Além da presença direta na ossatura mate- ações do IMB, Geanluca Lorenzon, que se de- rial do Estado, o Mises Brasil tem se con- fine como um anarcocapitalista e atualmente stituído como um dos principais veículos de ocupa a Diretoria de Desburocratização do formação utilizados por representantes da Ministério da Economia e foi o redator re- sociedade política, dessa nova direita. Como sponsável pela medida provisória 881, conhe- apresentado na reportagem da Gazeta do cida como MP da Liberdade Econômica, que Povo, em junho de 2019, os deputados fed- busca “diminuir a burocracia e dar mais es- erais Tiago Mitraud (Novo-MG), Filipe Bar- paço à livre iniciativa” (GAZETA DO POVO, ros (PSL-PR), Carlos Jordi (PSL-RJ) e Paula 27 ago. 2019). Ou seja, uma ocupação de um Belmonte (Cidadania-DF) estão atualmente setor-chave na institucionalidade do Estado, cursando pós-graduação em Escola Austría- por um ator político, cuja diretriz ideológica, ca organizada pelo IMB. Nessa relação ain- a partir de sua atuação ativista pelo IMB, da constam os nomes dos deputados estadu- prega o total esfacelamento do Estado. ais Rodrigo Valadares (PTB-SE) e Giuseppe Riesgo (Novo-RS). Eduardo Bolsonaro (PSL- Outro ultraliberal que compõe o programa SP) também foi aluno do mesmo programa 14 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade em turma anterior (GAZETA DO POVO, 28 ventude “antipopulista” da América Latina. ago. 2019). O empresário Alejandro A. Chafuen, presi- dente da Atlas Network, desde 1991, é o seu No que se refere ao ativismo político mentor. Sendo assim, o EPL é diretamente libertário, uma das organizações que mais vinculado, financiado e instrumentalizado se caracterizam pela sua incisiva atuação pelo Students for Liberty e a poderosa Atlas é o chamado Estudantes pela Liberdade. O Network. A Atlas Network (nome fantasia da EPL foi o terceiro aparelho de atuação políti- Atlas Economic Research Foundation desde ca e ideológica da nova direita, que destaca- 2013) é uma espécie de metathink tank, es- mos por seu lançamento público na arena do pecializada em fomentar a criação de outras Fórum da Liberdade. A organização foi apre- organizações libertaristas no mundo, com re- sentada aos segmentos da direita brasilei- cursos obtidos com fundações parceiras nos ra em 2012, em evento cujo tema foi 2037: Estados Unidos e/ou canalizados dos think que Brasil será o seu?. Sua principal forma tanks empresariais locais para a formação de de ação concentra-se no recrutamento de jovens líderes, principalmente na América jovens universitários para a composição de Latina e Europa oriental (CASIMIRO, 2018 novos quadros de intelectuais orgânicos da e APUBLICA, 14 jun. 2016). Além de sua direita libertária. Partem da suposta guerra relação com o EPL, o Atlas também finan- contra o “marxismo cultural” e da premissa cia projetos do Instituto Liberal e participa de que em todas as universidades brasileiras ativamente de diversas edições do Fórum da partidos políticos de esquerda controlam os Liberdade. organismos estudantis e a difusão do pensa- mento, monopolizando o pensamento de viés Os fundadores do EPL, Fábio Oster- “comunista” no ambiente acadêmico. mann, Anthony Ling e Juliano Torres com- põem os grupos dirigentes ou participam Como já expresso, o EPL configura-se como articulistas de vários outros aparelhos como uma versão brasileira do Students for de ação política e ideológica, tais como: o In- Liberty. Trata-se de uma organização de at- stituto Liberal, o Instituto Liberdade, o Insti- uação internacional fundada em 2008, fun- tuto Mises Brasil, o Instituto de Estudos Em- damental na articulação e ativismo políti- presariais, o Instituto Millenium o Instituto co dentre os think tanks conservadores dos Ordem Livre, o Instituto Rothbard Brasil, a EUA – especialmente no conjunto dos apa- Rede Liberdade, entre outros organismos de relhos qualificados como libertários – e a ju- ativismo político, principalmente de cepa lib- Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 15 ertária, como blogs e páginas de redes soci- pseudônimo “Mamãe Falei”), foi eleito dep- ais. Ostermann também se tornou uma das utado estadual por São Paulo pelo DEM; e principais lideranças do LIVRES, movimen- o polêmico ativista Fernando Holiday, eleito to libertário que se configura como uma cor- vereador da cidade de São Paulo também rente interna do PSL, Partido Social Liberal, pelo DEM, nas eleições municipais de 2016. ao qual Jair Bolsonaro e seus filhos saíram O último dos aparelhos de ação como candidatos, em 2018. doutrinária necessário para a compreensão Além dessa atuação doutrinária, o das novas estratégias de difusão ideológica Estudantes Pela Liberdade organiza, finan- da extrema direita brasileira na atualidade cia e estabelece diretrizes de ação, princi- é o canal Brasil Paralelo. A organização de palmente a partir de seu braço de ativismo doutrinação ideológica nesse chamado cam- político, o chamado Movimento Brasil Livre po de guerra contra o “marxismo cultural”

(MBL), uma organização virtual que se con- foi criada em 2016, em meio ao processo de figura como um dos principais grupos con- golpe que retirou a presidente Dilma Rous- vocadores dos protestos de rua da direita, a seff (PT) do poder. A plataforma foi lançada partir de 2014. Nesse sentido, o MBL passa no Fórum da Liberdade do ano seguinte, em a se configurar como uma espécie de - plata 2017, cujo tema foi O futuro da democracia. forma de projeção política de seus membros, A plataforma Brasil Paralelo tem como prin- para além das legendas de partidos formais. cipal escopo de atuação a ressignificação de Um dos principais representantes do MBL é processos históricos brasileiros como forma o ativista Kim Kataguiri, que foi eleito dep- de legitimação de um projeto de hegemonia utado federal no estado de São Paulo pelo da extrema direita, no presente. partido Democratas (DEM). Outros membros Essa iniciativa tem como figura cen- do movimento ativista libertário, eleitos em tral nessa perspectiva manipulatória sobre o 2018 como deputados federais foram Paulo passado o escritor reacionário Olavo de Car- Eduardo Martins, pelo Partido Social Cris- valho, guru intelectual do próprio presiden- tão (PSC), no estado do Paraná, e Jerônimo te Jair Bolsonaro e de seus filhos, além de Georgen do Partido Progressista (PP), no es- outras figuras representantes das direitas. tado do Rio Grande do Sul. Pelo menos out- Como afirma a pesquisadora Mayara Bal- ros dois membros de destaque midiático do estro dos Santos da Universidade Estadual MBL foram eleitos para cargos parlamentar- do Oeste do Paraná (Unioeste), o Brasil Para- es: Arthur Moledo do Val (conhecido por seu 16 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade lelo articula-se a um conjunto de sujeitos e – como é o caso do mais conhecido condena- entidades representativas desta nova direita do torturador do DOI-Codi, o coronel Alber- no interior de relações ampliadas do Estado, to Brilhante Ustra – ou, mais recentemente, como o IMIL, o IL, o IMB, o IEE e o próprio quando Eduardo, filho de Jair Bolsonaro, Fórum da Liberdade. Atualmente [2019] a tenta intimidar publicamente a população plataforma conta com mais de um milhão de com a ameaça de um possível “novo AI-5”. inscritos e 418 vídeos produzidos disponíveis Apesar de se autoafirmar como um es- no canal do YouTube (SANTOS, 2019). paço para a pluralidade de ideias, o Fórum Por sua vez, o Brasil Paralelo tra- da Liberdade pode ser compreendido como ta-se de um canal de difusão de conteúdos um evento catalisador da ideologia neoliber- cujo objetivo fundamental é fazer um grande al, libertária e liberal-conservadora. Assim, revisionismo histórico do Brasil. A direita apresenta propostas de políticas públicas, co- brasileira passa a disputar no campo da nar- bra e exerce pressão sobre a sociedade políti- rativa histórica, como forma de justificação ca pela aprovação de projetos e reformas, de suas pautas reacionárias, antiprogres- articula distintas frações da burguesia bra- sistas e autoritárias do presente. O tema de sileira, agrega e condiciona novos quadros maior repercussão, como não poderia ser dif- de intelectuais orgânicos. O fórum, portanto, erente, em se tratando dos interesses dessa enquanto principal evento da agenda liber- direita reacionária, é o revisionismo em tor- al no Brasil, desenvolve um papel de palco no da ditadura civil-militar instaurada com o emblemático para a produção de consen- golpe de 1964, na série “1964: O Brasil entre so e articulação no quadro de reformulação armas e livros”. O canal segue a linha discur- das direitas brasileiras. O quadro a seguir siva de Olavo de Carvalho, onde o verdadeiro apresenta um resumo de todas as edições do problema do regime militar teria sido não Fórum da Liberdade, desde sua fundação em ter travado devidamente a “luta cultural”, o 1988 até o último evento realizado em 2019. que teria permitido a reorganização dos seg- A análise do quadro de edições do Fórum mentos da esquerda com o processo de rede- da Liberdade demonstra alguns elementos mocratização. O movimento, nesse sentido, importantes para a compreensão do proces- busca revisar o passado ditatorial brasileiro, so de produção de consenso e ascensão da normalizando-o como forma de legitimação, direita mais conservadora e reacionária na inclusive dessa ideologia bolsonarista que atualidade. A extensa lista de intelectuais busca, nos porões da ditadura, os seus heróis Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 17 Fórum da Liberdade (1988-2019) ANO TEMA DESTAQUE 1988 Questões políticas, econômicas e O economista Roberto Campos. Apresentação do pré-candidato sociais do Brasil às eleições presidenciais de 1989, Fernando Collor de Melo. 1989 As propostas dos candidatos à No segundo ano do evento foram convidados os candidatos à sucessão presidencial no Brasil presidência da República, incluindo os candidatos da esquerda como Leonel Brizola e Lula da Silva. 1990 A busca da modernidade. o desa- Discussões sobre o liberalismo na América Latina. Com apre- fio latino-americano. sentação de políticos como Alvaro Alsogaray, ministro no governo de Carlos Menem, e Hernan Büchi, ex-ministro da Economia no Chile. 1991 Os caminhos para a próxima Expectativas e prognósticos para os anos 90. Destaca-se a década. as soluções liberais e participação dos filósofos Armando de La Torre (Guatemala), sociais- democrata Emílio Pacheco (EUA) e Roberto Salinas (México). 1992 Estado ou mercado: quem melhor Mercantilização dos recursos naturais, além dos PhDs em defende a ecologia? economia pela Universidade de Washington, e Omar Carneiro da Cunha, presidente da Shell no Brasil, destacamos a partici- pação do ultraliberal conservador da tradição austríaca Walter Block. 1993 O desafio da reforma constitucio- “Necessidade” de reformas constitucionais para o mercado. nal Roberto Campos, Nelson Jobim, Aloísio Mercadante (PT) e James Buchanan (George Mason University; Prêmio Nobel de Economia de 1986). 1994 A educação em crise Educação na concepção de mercado e privatização. Presença de Gary Becker (Escola de Chicago; Prêmio de Economia 1992). 1995 Globalização e livre comércio Reformulação do papel do Estado e abertura econômica: Israel internacional Kirzner (Escola Austríaca de Econômica) e Paulo Francis (Jor- nalista). 1996 Desafio brasileiro: Custo Brasil Presença de José Alexandre Scheinkman (Chefe do Dep. de Economia da Universidade de Chicago) e Lawrence W. Reed (Presidente da “The Mackinac Center For Public Policy”). 1997 O desafio de um mundo sem Reformas na legislação do trabalho (flexibilização). Presença empregos de Ruth Richardson (ex-ministra da Economia da Nova Zelân- dia), James Heckman (especialista em Economia do Trabalho, Universidade de Chicago) e Deepak Kumar Lal (consultor do Banco Mundial). 1998 Os limites do poder, poder e socie- Papel do Estado. Participação de Walter Williams (Universi- dades dade George Mason) e Jirí Kinkor (Economista da República Checa). 1999 E agora, Brasil? Caminhos para o Com mediação da jornalista e comentarista de economia Mir- desenvolvimento iam Leitão, teve a participação de Paulo Renato (ministro da Educação no governo FHC) e Emílio Pacheco Rodriguez (Liber- ty Fund). 2000 1000 anos: o Brasil em perspecti- Destaque para a presença dos políticos Ciro Gomes, José va. Onde é que esta história vai Genoíno e figuras como José Osvaldo de Meira Penna (Insti- parar? tuto Liberal e membro da Mont Pélerin Society) e do escritor reacionário, Olavo de Carvalho. 2001 A crise social brasileira: causas, Henrique Meirelles, o pensador liberal Guy Sorman (Universi- desafios e soluções dade de Paris) e Olavo de Carvalho. 2002 Os desafios da democracia no Participação de José Serra (senador da República e candidato século XXI à presidência da República pelo PSDB), Emílio Pacheco (Liber- ty Fund), Richard Pipes (historiador de Harvard) e Olavo de Carvalho. 2003 Civilização ou barbárie: em que Participações de Geraldo Brenner (estudioso das relações entre mundo vamos viver a economia e o crime), Raymond Frey (doutor em filosofia, -en saísta sobre violência, terrorismo e justiça), o médico Dráuzio Varella e Hector Babenco (cineasta, diretor do filme Carandi- ru). 2004 Desenvolvimento e liberdade Jacob Hornberger (escritor e fundador do The Future of Free- dom), o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o jornalista e escritor Eduardo Bueno e Olavo de Carvalho. 2005 A cultura do trabalho O ultraliberal e conservador cultural Walter Block (Escola Austríaca) e Olavo de Carvalho.

18 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade ANO TEMA DESTAQUE 2006 O poder no Brasil: quais os direit- O evento ficou marcado pelo lançamento oficial doInstituto os e deveres dos governos Millenium (IMIL). Paulo Guedes, Gustavo Franco, Jorge Gerdau Johannpeter. 2007 Propriedade e desenvolvimento Presença de Becky Norton Dunlop (presidente da Heritage Foundation), José Júnior (coordenador do Afro Reggae), Frei Betto (escritor e religioso dominicano-brasileiro) e o ex-presi- dente Fernando Henrique Cardoso. 2008 Agora, o mercado é o mundo Participação de Paulo Guedes, Henrique Meirelles e Rodrigo Constantino (colunista da Veja, e Valor Econômico). 2009 Cultura da liberdade Participação de Ruth Richardson (ministra das Finanças da Nova Zelândia entre 1990 e 1993) e Demétrio Magnoli (sociólo- go e geógrafo). 2010 Seis temas para entender o mun- O evento marcado pelo lançamento do Instituto Von Mises do Brasil (IMB). Com Rodrigo Constantino e Tom Woods (mem- bro sênior do Ludwig Von Mises Institute) e David Friedman (economista e escritor). 2011 Liberdade na Era Digital Presença do cantor Lobão, do humorista e membro do Instituto Millenium, Marcelo Madureira e Rodrigo Constantino. 2012 2037: que Brasil será o seu? Lançamento do Estudantes Pela Liberdade (EPL). Com participação de Hélio Beltrão (Instituto Von Mises Brasil) e Rodrigo Constantino (Millenium e Instituto Liberal). 2013 O que se vê e o que não se vê Luciano Huck como apresentador, Jorge Gerdau Johannpeter, Hélio Beltrão (presidente do IMB) e o pré-candidato à presidên- cia, Eduardo Campos. 2014 Construindo soluções Aécio Neves (presidente nacional do PSDB, senador e candi- dato à presidência da República), Luiz Felipe Pondé (colunista do jornal Folha de São Paulo e comentarista do Jornal da Cultura) e Rodrigo Constantino, Leandro Narloch autor dos Guias politicamente incorretos da História do Brasil. 2015 Caminhos para a liberdade Glória Alvarez (ativista libertária do Movimento Cívico Nacional da Guatemala); Kim Kataguiri, presidente do MBL; Rodrigo Galindo (Kroton Educacional). Premiação a William Waack, Jornalista por liberdade de imprensa. 2016 Quem move o mundo? Leandro Narloch (Guia politicamente incorreto), jornalista e escritor; Salim Mattar (Grupo Localiza), Gui Telles (Uber Brasil), Arnaldo Jabor (cineasta, roteirista, diretor de cinema e TV). 2017 O futuro da democracia Lançamento do Brasil Paralelo. Fernando Holiday (vereador de São Paulo e membro do MBL), Fabio Ostemann, membro do IMB, EPL e Presidente Estadual do PSL/RS. Tom Palmer, vice-presidente de Programas Internacionais da Atlas Net- work. 2018 A voz da mudança Presença dos presidenciáveis: Marina Silva (Rede), Ciro Gomes (PDT), João Amoêdo (Novo), Flávio Rocha (Grupo Riachuelo), Geraldo Alckmin (PSDB), Henrique Meirelles (PMDB). Mesa só para discussão do “Politicamente Incorreto”, com Leandro Narloch, (Guia politicamente incorreto). Além da presença do então juiz federal Sérgio Moro. 2019 Brasil, aberto para reformas? Equipe de Bolsonaro com Onix Lorenzoni (Casa Civil), Rober- to Campos Neto (presidente do Banco Central), Paulo Uebel (dirigente do LIDE, do IMIL, do IEE e secret. do Minist. da Economia), Salim Mattar (dirigente do IMIL e Secretário de Desestatização), Hélio Beltrão (dirigente do IMB e secret. da pasta de desburocratização do Minist. da Economia) e o guru de Bolsonaro contra o chamado “marxismo cultural”, Olavo de Carvalho. Outros destaques são a ativista do libertarianismo Glória Alvarez e Wolf Von Laer, cofundador do Students for Liberty. Elaboração própria (CASIMIRO, 2018). Atualizado: fonte: https://www.fl2019.com/ (acesso em: 4 nov. 2019).

Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 19 internacionais de diferentes cepas liberais da Hoover Institution e da Heritage Foundation (GROS, 2010, p. 193). que participam do Fórum dá mostras da

multiplicidade de temas e debates envolvi- Se em alguns momentos é possível con- dos no evento, além da variedade de posições statar no evento a presença de intelectuais e ideológicas, sem perder o horizonte pautado políticos que não se enquadram especifica- nas matrizes ultraliberais e no conservador- mente nos pressupostos centrais defendidos ismo. Além disso, apresenta a aproximação pela direita brasileira, por outro lado, podem- do IEE e do Instituto Liberal com diversas e os observar a participação frequente de per- importantes organizações liberais nacionais sonalidades representantes do pensamento e internacionais. doutrinário, ultraliberal e mais reacionário. Um desses nomes é o anarcocapitalista Wal- Através do Fórum, o IEE tem levado a ter Block, autor norte-americano de tradição Porto Alegre representantes de importantes da Escola Austríaca, autor de publicações organizações liberais e libertárias europeias, que inclusive são difundidas pelo IMB, tais dos EUA e da América Latina. Entre elas, como Por que discriminar é correto e natural merecem destaque, pela importância na rede – onde busca justificar e naturalizar formas neoliberal, a Mont Pélerin Society (Suiça), de preconceito e discriminação – e Em defesa o Atlas Network (EUA) e instituições lati- de um livre mercado para órgãos do corpo, no-americanas que têm participado constan- entre muitas outras atrocidades. temente do evento como a Fundacion Inter-

nacional para la Libertad, além de fundações Além do ícone austríaco do anarco- e institutos liberais da Argentina, do Peru, capitalismo e do próprio Olavo de Carvalho, da Guatemala, do Chile e do México. Como já apresentado como figura frequente nos afirma a pesquisadora Denise Gros: fóruns, outra presença de impacto, entre o

Além dos representantes da América público jovem e acadêmico, em, pelo menos, Latina, deve-se destacar a constante duas edições do evento (2015 e 2019), foi a presença, nos Fóruns da Liberdade, ativista libertária e show-woman Glória Ál- de palestrantes vindos da Sociedade Mont Pelerin e de importantes think varez, da Guatemala. Nas palavras da ativ- tanks liberais norte-americanos, como ista no Fórum da Liberdade de 2015, “um os já citados Atlas Economic Research direitista do século 21, que já se modernizou, Foundation e Liberty Fund, além da Foundation for Economic Education do tem de reconhecer que a sexualidade, a mor- Institute for Humane Studies, do Cato al, as drogas são um problema de cada um; Institute, do Independent Institute,

20 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade ele não é a autoridade moral do universo”, Esse alinhamento com o governo Bol- apresentando um discurso liberal também sonaro não é, obviamente, casual. Existem nos costumes, mas conclui “não há minorias, conexões importantes entre o Fórum da a menor minoria é o indivíduo, e a ele o que Liberdade e a concepção ideológica empenha- melhor serve é a meritocracia” (APUBLICA, da pelo atual governo. Primeiramente, o min- 20 mai. 2019), deixando bem claro o individ- istro Paulo Guedes, desconhecido por muitos ualismo característico que os caracteriza e os ou tratado como uma novidade nos círculos une. dos economistas liberais brasileiros, tem sua formação atrelada à Escola Econômica O elemento mais significativo para de Chicago, uma das principais referências a discussão aqui proposta é o alinhamento teóricas neoliberais do Fórum. Além disso, ideológico apresentado no Fórum da Liber- Guedes já era figura de destaque em difer- dade e os segmentos da direita mais rea- entes edições do evento, como no 19º Fórum cionária que passaram a dar substância a da Liberdade, em 2006, anunciado no ato de essa ascensão do projeto da extrema direita, sua conferência como sendo o “último econo- em torno do nome de Jair Bolsonaro. A edição mista liberal do Brasil”, e no fórum de 2008. do Fórum de 2019 demonstra forte alinham- O nome do ministro também consta entre os ento com o governo Bolsonaro, já que entre membros curadores do Instituto Millenium as atrações do evento estavam vários dos que, como já dito, foi lançado publicamente representantes do seu alto escalão, como o pelo Fórum, também em 2006. A presença ministro da Economia, Paulo Guedes (que de diversos personagens pertencentes aos aparece como convidado), o ministro-chefe da núcleos dirigentes dos aparelhos apontados Casa Civil, Onyx Lorenzoni, o secretário do neste estudo, que participam diretamente ou Ministério da Economia, Paulo Uebel, o pres- orbitam em torno da institucionalidade do idente do Banco Central do Brasil, Roberto governo Bolsonaro, caracteriza a influência Campos Neto e, por fim, mas não menos im- desse movimento de certos segmentos das di- portante, o “guru” intelectual do presidente reitas na construção dessa alternativa. da República, Olavo de Carvalho, que partic- ipou por meio de videoconferência (FÓRUM Assim como no caso de Guedes, a já DA LIBERDADE, 20 mai. 2019). O evento foi citada participação virtual do escritor Ola- patrocinado pelos grupos econômicos CMPC, vo de Carvalho na edição de 2019 é digna de Gerdau, RBS e Ipiranga. maiores avaliações. Nesse caso, é importante destacar que, para muitos analistas e comen- Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 21 tadores da atual conjuntura, o nome de Ola- Leandro Narlock, principal autor dos Guias vo de Carvalho – como sendo uma grande in- politicamente incorretos da História do Bra- fluência intelectual para uma certa fração da sil e da América Latina, obras exemplares de direita brasileira, que no caso, inclui impor- revisionismo e desonestidade intelectual, foi tantes quadros do governo e o próprio presi- figura de destaque em 2014, 2016 e 2018 do dente da República com seus filhos – repre- Fórum. Por sua vez, esses seguidores do guru senta algo que surgiu do nada, inesperado e de Bolsonaro, os chamados “olavetes”, pas- desconectado do pensamento e ação da maior sam a compor fundamentalmente e engros- parte da direita brasileira. É como se a figu- sar o conjunto dos entusiastas bolsonaristas. ra do escritor tivesse sido construída recen- Sendo assim, a imagem de Olavo de Carval- temente, principalmente pela influência que ho não foi construída por Bolsonaro e suas exerce sobre a família Bolsonaro. Entretanto, crias, como muitos críticos do autor assim é importante esclarecer que o nome de Olavo querem afirmar, mas, ao que tudo indica, foi de Carvalho já aparecia como uma das at- sua influência e conexão com esse movimen- rações de destaque nas edições de 2000, 2001, to crescente do pensamento reacionário que 2002, 2004 e 2005 do Fórum da Liberdade, ajudaram a construir o fenômeno do bolso- ou seja, antes mesmo do credenciamento de narismo. Bolsonaro à possível liderança ou “mito” da Considerações finais direita reacionária. A partir da análise do Fórum da Liber- Por conseguinte, a presença frequente dade, e suas conexões com diversos apa- de Olavo nos eventos desde o ano de 2000 relhos de atuação política e ideológica, que demonstra que o autor reacionário já rep- replicam, capilarizam e amplificam a reper- resentava uma significativa referência in- cussão dos seus discursos, é possível perce- telectual para frações consideráveis da dire- ber uma parte representativa das iniciativas ita brasileira. No mesmo sentido, passou a fundamentais para a produção do consenso e ampliar seus seguidores, principalmente a construção da hegemonia desse segmento de partir de 2016, com a repercussão do canal extrema direita entre as frações conservado- Brasil Paralelo, que ajudou a divulgar sua ras da burguesia brasileira. O movimento concepção, e que não foi a única iniciativa de no interior das frações burguesas define as revisionismo histórico destacada no Fórum, diretrizes da dominação de classe e, por sua o que demonstra essa preocupação estratégi- vez, o projeto político no qual outras frações ca de reescrever a história Brasil. O escritor 22 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade acabam se arranjando para a garantia da território, como uma espécie de “fogo amigo”, manutenção dos seus interesses. abrindo o campo para a extrema direita au- toritária e truculenta avançar. A aposta no discurso ultraliberal na economia e conservador nos costumes parece Por fim, não podemos analisar esses ter sido a junção conjuntural que melhor se aparelhos e seus intelectuais como se rep- apropriou e explorou as nuances do crescente resentassem um bloco homogêneo, todavia sentimento de antipetismo na sociedade bra- contemplam diferenças importantes e, mes- sileira e do discurso “anticorrupção”. Esse mo, conflitos interburgueses. Por outro lado, sentimento foi fortemente funcionalizado, é possível perceber muitas dessas diferenças por um lado, diante da conjuntura de crise de ordem teórico-políticas, principalmente econômica e seus efeitos sociais. Por outro no campo dos valores e da cultura, serem lado, o fortalecimento desse discurso fun- suprimidas ou subjugadas pela ascensão do dado no sentimento de aversão à política – reacionarismo que aparece como alternativa como reduto da corrupção e do atraso – e do pragmática para viabilizar as mudanças de antipetismo – como se o PT representasse ordem econômico/corporativas. O fato é que uma espécie de signo único de todos os prob- essa constituição de uma rede direta e in- lemas políticos, econômicos, sociais e morais direta de aparatos de doutrinação e difusão do país – foi funcionalizado pela própria at- de uma cultura voltada às determinações uação de segmentos conservadores, a partir do capital e ao pensamento conservador/ de iniciativas como as citadas ao longo deste reacionário, além de sua própria atuação e estudo. Mas não só os setores liberal-con- capilaridade, funcionalizam e instrumental- servadores da nova direita lançaram mão izam outras práticas e espaços de produção desses discursos. A própria direita tradi- de consenso, fundamentais no processo de cional e setores de centro-direita, inclusive construção de hegemonia. Essa estratégia, considerados progressistas – como setores todavia, deve ser compreendida como uma midiáticos, a exemplo da própria rede Globo parte do movimento maior de estruturação e –, contribuíram substancialmente para o for- articulação das classes dominantes no Brasil talecimento dessas concepções. O problema contemporâneo. parece ter sido que essa estratégia de ataque e desqualificação da política e das esquerdas de modo geral, acionada pela direita tradi- cional, acabou por respingar em seu próprio Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 23 Referências bibliográficas

CASIMIRO, Flávio Henrique Calheiros. A Nova Direita: aparelhos de ação política e ideológica no Brasil contemporâneo. São Paulo: Expressão Popular, 2018.

GROS, Denise Barbosa. Novas formas de ação política do empresariado gaúcho nas últimas décadas. Revista A Evolução Social – Três décadas de economia gaúcha, v. 3, 2010.

SANTOS, Mayara Aparecida Balestro dos. “Brasil Paralelo”: um (perverso) canal de poder e hegemonia da “nova direita” no Brasil contemporâneo. Anais IX Congresso Internacional de História. Universidade Estadual de Maringá (UEM), outubro de 2019.

Fontes

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APUBLICA. Disponível em: https://apublica.org/2015/06/a-nova-roupa-da-direita/. Acesso em: 20 mai. 2019.

FÓRUM DA LIBERDADE. Disponível em: https://www.fl2019.com/programacao. Acesso em: 20 mai. 2019.

GAZETA DO POVO. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/estado-e-in- util-e-imposto-e-roubo-saiba-o-que-pensam-anarcocapitalistas/. Acesso em: 27 ago. 2019.

THE INTERCEPT BRASIL. Disponível em: https://theintercept.com/2019/05/05/anarcocapi- talismo-bolsonaro-folha-ancaps/. Acesso em: 27 ago. 2019.

24 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 25 Golpe de Estado: o caminho da direita no Brasil Maurício Ferreira Silva Antônio Eduardo A. Oliveira Cientista político. Doutor em Ciências Sociais pela Cientista político. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos. Professor asso- Universidade Federal da Bahia. Professor adjunto da ciado da Universidade Federal do Recôncavo da Ba- Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Atua hia. Atua na graduação e nos programas de Pós-Grad- na graduação e no Programa de Pós-Graduação em uação em Ciências Sociais (PPGCS) e Política Social e Ciências Sociais (PPGCS). Território (POSTERR).

Resumo A deposição de em 2016 interrompeu um período de exercício político de gov- ernos progressistas e abriu espaço para a ascensão de governos conservadores, adeptos da ideologia político-econômica neoliberal e de premissas reacionárias em torno das questões so- ciais no Brasil. Este artigo tem o objetivo de mostrar que a ascensão desse segmento da direita política se deu através de um golpe de Estado, mesmo que tenha sido justificada através da lei de impeachment. Este processo, que interrompeu a normalidade democrática, proporcionou a instauração de um governo interino de perfil conservador e contribuiu para criar as condições políticas ao êxito eleitoral da extrema direita em 2018. A premissa de golpe de Estado se justi- fica a partir de dois movimentos interligados: a publicação feita pelo PMDB, que era presidido por Michel Temer, do manifesto “Uma Ponte para o Futuro”, que evidenciou a disposição pela troca de governo com a posterior implementação de uma agenda neoliberal e a votação de aceitação da denúncia na Câmara dos Deputados, que demonstrou, a partir das declarações dos votos, a não aderência dos parlamentares à tese do crime de responsabilidade. Palavras-chave: Golpe de Estado; Neoliberalismo; Direita.

COUP D’ÉTAT: THE RIGHT WAY IN BRAZIL Abstract Dilma Rousseff’s deposition in 2016 interrupted a period of political exercise by progressive governments and opened the way for conservative governments to embrace neoliberal polit- ical-economic ideology and reactionary premises around social issues in Brazil. This article aims to show that the rise of this segment of the political right came through a coup, even though it was justified by the impeachment law. This process, which disrupted democratic normality, led to the establishment of a conservative interim government and helped to cre- ate the political conditions for the extreme right’s electoral success in 2018. The coup d’état premise is based on two interconnected movements: PMDB’s publication, which was chaired by Michel Temer, of the manifesto “A Bridge to the Future”, which evidenced the willingness to change government with the subsequent implementation of a neoliberal agenda and the vote of acceptance of the denunciation in the Chamber of Deputies, which demonstrated from the declarations of votes, the non-adherence of parliamentarians to the thesis of the crime of responsibility. Keywords: Coup d’etat; Neoliberalism; Right. 26 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade Introdução neoliberalismo a partir da década de 1990 e as políticas públicas de inclusão social. Durante muito tempo vigorou na América Latina a ideia de que um golpe de estado não Os golpes cumprem, assim, uma agen- seria mais possível na região depois do fim da de retomada do neoliberalismo, que se das ditaduras e da pretendida consolidação traduz na destruição da economia nacional, democrática a partir dos anos 1980, princi- na promoção de intensivos ataques aos dire- palmente após a integração dos partidos de itos populares e na prática aberta de rapina esquerda no sistema político institucional, dos recursos econômicos e energéticos dos incluindo a ocupação de governos. Nota-se at- países. Neste sentido, por mais que existam ualmente, contudo, que tais preceitos precis- motivações domésticas para os golpes de es- am ser relativizados. Isso porque o regresso tado, em decorrência dos interesses e das cor- de segmentos do conservadorismo histórico relações de forças entre as classes no interi- à cena política através de mecanismos para- or dos países, o estimulo fundamental para lelos ao que prevê a competição democráti- a derrubada dos governos eleitos, mais uma ca acende o alerta de revisão da literatura vez, é imperialista. política que salientava a consolidação do Es- No caso do Brasil, o golpe de 2016 in- tado de Direito. terferiu numa agenda democrática que, mes-

Iniciativas exitosas no sentido da sub- mo restrita, limitada e marcada por prob- stituição de governos por meio de mecanis- lemas de representação política, garantia o mos externos à arena democrática foram exercício de formas de participação popular verificadas no Brasil, Paraguai e Honduras. e programas sociais que beneficiavam seto- Forças reacionárias atuaram e continuam at- res mais pauperizados. Esta realidade está uando em outros países do continente, orien- paulatinamente sendo substituída pelo tadas por premissas neocoloniais de estímulo ataque a direitos, por iniciativas de restrição à quebra da ordem política. Em linhas gerais à liberdade acadêmica e cultural, pela re- possuem os objetivos de revisão de aspectos estruturação das funções do Estado e pelo desenvolvimentistas implantados por gover- estímulo a premissas reacionárias em torno nos progressistas e de retorno a um realin- dos costumes. hamento econômico e político com os Estados Neste sentido, o presente artigo tem o Unidos. Pesa contra os interesses deste seg- objetivo de investigar o impacto do golpe de mento o forte discurso que surgiu contra o 2016 na realidade política e social do país. Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 27 Para tanto, está estruturado em três seções eram nomeados trabalhistas e social- istas, era a porta de entrada para o interligadas: a primeira aborda o golpe como totalitarismo comunista, cabendo ao instrumento de disputa com foco no deter- Estado defender os valores ‘cristãos minante papel exercido pelo parlamento e ocidentais’. É claro, também dar uma ajudinha para o capital multinacional, pelo grupo político do vice-presidente na de- elo material do Brasil com o ‘Ocidente’ posição de Dilma Rousseff. As duas últimas (NAPOLITANO, 2014, p. 48). seções são dedicadas às consequências deste O regime autoritário se desenrolou processo político a partir da materialização tendo como norte a forte repressão política de pautas conservadoras nos governos de Mi- e o estímulo a um modelo de desenvolvimen- chel Temer e Jair Bolsonaro. to dependente. O forte investimento público O golpe como estratégia de poder em infraestrutura, que impulsionou a in- dústria nacional, o desenvolvimento regional O Brasil integra o conjunto de países e o comércio internacional vigorou paralela- latino-americanos assolados pela implan- mente ao aumento da concentração de renda, tação forçada de regimes políticos militares proporcionando, por sua vez, o significativo a partir da década de 1960. Abrigados sob o aumento das desigualdades sociais. discurso de combate ao “risco comunista” du-

rante a chamada guerra fria, lideranças mili- O esgotamento do modelo econômico, tares e civis implantaram regimes de exceção atrelado ao desgaste político do regime ori- que interromperam a ainda incipiente cultu- undo dos conflitos internos nas Forças Ar- ra democrática no continente. Essas elites madas e do aumento dos movimentos reivin- nacionais, com o apoio logístico e ideológico dicatórios por liberdades políticas, culminou norte-americano, promoveram golpes de es- numa conjuntura favorável à retomada da tado que possibilitaram a imposição de nova democracia, que se concretizou de forma ordem política que, no caso do Brasil, perdur- paulatina, por etapas, a partir da efetivação ou por mais de vinte anos. da Lei de Anistia em 1979. Nesse sentido, as

Para as elites civis e militares que elab- décadas de 1980 e 1990 constituem referên- oravam o discurso para a classe média cias em termos de redemocratização no país, reproduzir, o Brasil tinha um destino sobretudo a partir da promulgação da Con- histórico, era uma espécie de último ‘baluarte do Ocidente’, como queria o stituição Federal de 1988. general Golbery do Couto e Silva, seja lá o que isso significasse realmente. O retorno das disputas eleitorais cris- O reformismo dos ‘demagogos’, como 28 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade talizou a polarização entre dois campos no mentos. Se por um lado os programas sociais contexto nacional, isso porque, com exceção estimularam a diminuição das desigualdades do pleito de 1989, os demais apresentaram sociais, por outro cristalizaram os progressis- ampla disputa entre o campo liberal, capi- tas do ponto de vista da aceitação da opinião taneado pelo Partido da Social Democracia pública, garantindo quatro mandatos consec- Brasileira (PSDB) e o campo progressista, utivos. liderado pelo Partido dos Trabalhadores Desde o início, Lula havia se compro- (PT). Enquanto o primeiro esteve à frente metido a ajudar os pobres, de onde ele viera. Um acordo com os ricos e poder- do Executivo nacional entre 1994 e 2001, o osos seria necessário, mas a miséria segundo ocupou a Presidência da República tinha que ser tratada de modo mais entre 2002 e 2015. E é exatamente no decor- sério do que no passado [...] Lula lançou o programa que está agora indelevel- rer do segundo mandato de Dilma Rousseff mente associado a ele, o Bolsa Família que mais uma vez a normalidade democráti- [...] O custo efetivo do programa é uma ca é interrompida. E mais uma vez, como ninharia, mas seu impacto politico tem sido enorme. Não apenas porque tem veremos, através de um golpe. Tal premissa ajudado, ainda que modestamente, se evidencia, no nosso entendimento, a partir a reduzir a pobreza e a estimular a da análise do papel desempenhado pelo gru- demanda nas regiões mais carentes do país. Mas também devido à men- po político do vice-presidente da República e sagem simbólica contida no programa: da votação de aceitação da denúncia e con- a de que o Estado se preocupa com as sequente abertura do processo de impeach- condições de todos os brasileiros, não importa o quão miseráveis ou oprimi- ment na Câmara dos Deputados. dos, como cidadãos com direitos sociais

O processo de deposição de Rousseff em seu país. A identificação popular de Lula com essa mudança tornou‑se o tem seu foco no modelo desenvolvimentista mais inabalável de seus trunfos políti- de proteção social instaurado pelos governos cos (ANDERSON, 2011, p. 28-29). progressistas após o “esgotamento” da fase A aliança gerada entre partidos e seg- neoliberal presente nos dois mandatos de mentos sociais a partir do capital político de Fernando Henrique Cardoso. O pacto estabe- Lula começa a sofrer percalços em função lecido entre setores dos movimentos sociais de conflitos internos nos grupos de apoio, e da burguesia industrial culminou em um por denúncias de corrupção – sobretudo da modelo de intervenção pública de maior par- denominada “Operação Lava-Jato” –, pelos ticipação estatal, sobretudo no campo da as- índices econômicos negativos, pelos desar- sistência, da garantia de direitos e de investi- Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 29 ranjos estruturais orçamentários e, prin- muito elevados, desemprego crescente, paralisação dos investimentos produti- cipalmente, pelas manifestações de rua de vos e a completa ausência de horizon- alguns movimentos sociais a partir de junho tes estão obrigando a sociedade a en- de 2013. Soma-se a isso o conflito advindo do carar de frente o seu destino (PMDB, 2015, p. 2). triunfo eleitoral que garantiu a reeleição de

Rousseff em 2014, já que a acirrada dispu- Ora, o diagnóstico aponta para uma ta estimulou contestações públicas de fraude crise econômica oriunda dos governos dos eleitoral e processos jurídicos na justiça quais o PMDB participou de alguma manei- eleitoral por parte da coligação encabeçada ra, tendo seu ápice a partir de 2010 com a por Aécio Neves. Esses elementos congrega- chegada de Temer à vice-presidência e a pos- dos serviram de munição à desestabilização terior reeleição, em 2014, na mesma chapa do que Boito Jr. (2018) denomina como bloco com Dilma Rousseff. O documento denota o de poder, ou seja, a aliança governista mon- entendimento de um grupo político suposta- tada em torno do Partido dos Trabalhadores. mente externo ao governo. Nesta mesma perspectiva, indica como prognóstico à crise As teses em torno da efetiva partici- a formação de um pacto que agregue forças pação do então vice-presidente na deposição de campos políticos distintos para a “[...] for- de Rousseff extrapolam o campo das especu- mação de uma maioria política, mesmo que lações quando se traz à tela o manifesto in- transitória ou circunstancial, capaz, de num titulado “Uma Ponte para o Futuro” (PMDB, prazo curto, produzir todas estas decisões na 2015), publicado pelo Partido do Movimen- sociedade e no Congresso Nacional” (PMDB, to Democrático Brasileiro (PMDB), do qual 2015, p. 2). Em outras palavras, sugere a Michel Temer era presidente nacional. Este criação de uma maioria em oposição ao gov- documento aponta o descompasso existente erno. entre boa parte do conjunto de medidas pop-

ulares provenientes dos governos progressis- No âmbito da administração pública, tas. o documento aponta mudanças na gestão fis-

Todas as iniciativas aqui expostas con- cal. A denominada crise fiscal surge como re- stituem uma necessidade, e quase um sultado de iniciativas políticas equivocadas, consenso, no país. A inércia e a imobi- ressaltando os gastos públicos com políticas lidade política têm impedido que elas se concretizem. A presente crise fis- sociais e a ausência de reformas estruturais, cal e, principalmente econômica, com como a da previdência. O combate à crise fis- retração do PIB, alta inflação, juros

30 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade cal passa por conter os gastos públicos que, seff, a partir da formação dessa nova maio- segundo o manifesto, foram excessivos e ria, possibilitou o surgimento de um governo desequilibrados. Esta batalha deve ser tra- transitório sob comando de Temer a partir de vada, como apontado, na reestruturação das 2016 e a garantia de pouco mais de dois anos diretrizes e na mudança legislativa através para a aplicação das novas orientações. das indexações previstas na Constituição Em outro sentido, naquilo que con- Federal. cerne à participação do parlamento no pro- Sem um ajuste de caráter permanente cesso de impeachment, o próprio rito de que sinalize um equilíbrio duradouro votação na Câmara dos Deputados nos serve das contas públicas, a economia não vai retomar seu crescimento e a crise como indicativo do conluio estabelecido em deve se agravar ainda mais [...] Para torno dos acertos políticos para a deposição enfrentá-lo teremos que mudar leis e de Rousseff. Segundo as prerrogativas in- até mesmo normas constitucionais, sem o que a crise fiscal voltará sempre, stitucionais, esse rito prevê que a denúncia e cada vez mais intratável, até chegar- apresentada, após aceita pela presidência mos finalmente a uma espécie de co- da casa, passe por apreciação do plenário. lapso [...] Para isso é necessário em pri- meiro lugar acabar com as vinculações A manifestação dos parlamentares é livre e constitucionais estabelecidas, como no pública no sentido da justificativa de seus vo- caso dos gastos com saúde e com edu- tos. A apuração das motivações, contudo, nos cação [...] (PMDB, 2015, p. 5-9). traz à tona, como demonstra o quadro abaixo, O fato de que o prognóstico aponta a o fato de que uma minoria justificou seu voto mudança de governo como medida necessária a partir do objeto em pauta, ou seja, o crime ao enfrentamento da crise é emblemático. E de responsabilidade da presidente. isto se comprova a partir da exposição dos supostos excessos cometidos pelo Governo Federal, “[...]seja criando novos programas, seja ampliando os antigos, ou mesmo ad- Tabela 1: Motivação de voto e número de votantes mitindo novos servidores ou assumindo in- MOTIVAÇÃO NÚMERO DE TOTAL EM DE VOTO VOTANTES/ PORCENTA- vestimentos acima da capacidade fiscal do TOTAL GEM PÁTRIA 319/367 86,9% Estado” (PMDB, 2015, p. 5). Logo, a solução FAMÍLIA 155/367 42,2% RELIGIÃO 62/367 16,9% não passa pela manutenção do governo, já CRIME DE RE- 30/367 8,2% SPONSABILI- que “a situação hoje poderia certamente estar DADE FISCAL menos crítica” (Idem). A deposição de Rous- Fonte: SILVA; MARTINS; PASSOS, 2017, p. 16

Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 31 Nota-se, a partir da tabela acima, que as citado como motivo do voto por apenas 30 parlamentares. Ou seja, apenas motivações dos votos expressas pelos par- 8,2% justificaram seus votos pautados lamentares que aceitaram a denúncia dire- no verdadeiro motivo da ação (SILVA;

cionam-se para linhas argumentativas dis- MARTINS; PASSOS, 2017, p. 23). tintas da que motivou o pedido de abertura O que temos aqui é o que podemos de processo: o crime de responsabilidade. definir como dupla exaustão. De um lado, o Nesse sentido, 86,9% das motivações citam esgotamento da combinação política que per- fatores relacionados à Pátria (município, es- mitiu a manutenção de uma estrutura gov- tado, região e país), enquanto 42,2% focam ernista progressista e, de outro, a supressão a família como motivação e 16,9% justificam de um modelo econômico desenvolvimentista seus votos entoando motivações de ordem re- e o retorno a premissas neoliberais de uma ligiosa. Com isso, apenas 8,2% dos parlam- parte do bloco de apoio. O fato de o golpe de entares em algum momento afirmaram que 2016 apresentar uma forma parlamentar in- votavam a favor da abertura de processo de dica certa conjunção de fatores na correlação impeachment por acreditar no cometimento de forças, o que não significa que, em essên- de crime de responsabilidade por parte da cia, o resultado da quebra da democracia seja presidente Dilma Rousseff. Fundamentar o diferente de outras formas de golpe. Da mes- posicionamento baseado em fatores externos ma maneira que não devemos reduzir as con- ao objeto em apreciação denota motivações sequências do golpe de 1964 à queda de João tendenciosas de cunho meramente políti- Goulart, ignorando o sistema de exceção im- co, contribuindo para evidenciar a premissa plantado a partir daí, é incorreto sintetizar os aqui apresentada da vertente legislativa do objetivos dos atores que atuaram pelo golpe golpe de 2016. de 2016 apenas à deposição de Dilma Rous- O processo de impeachment que depôs seff. No nosso entendimento os propósitos Rousseff pauta-se em outra vertente denunciatória, a das chamadas “peda- são mais amplos. Trata-se, como podemos ladas fiscais” que, em linhas gerais, constatar a partir das medidas adotadas no representam a utilização de emprésti- governo interino de Michel Temer e no início mos de bancos estatais para cobrir rom- bos das contas públicas [...] A análise do governo de Jair Bolsonaro, de proporcio- dos discursos durante a votação na nar transformações estruturais neoliberais e Câmara dos Deputados expôs a ver- reacionárias. tente ideológica que corroborou a tom- ada de decisão. O crime de responsab- ilidade, que determina o processo, foi 32 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade O espólio do golpe: Governo Temer Diferentemente de quase todos os de- mais países do mundo, nós tornamos As proposições em torno da mudança norma constitucional a maioria das de rumo na condução política apresentadas regras de acesso e gozo dos benefícios previdenciários, tornando muito difí- no manifesto “Uma Ponte para o Futuro” cil a sua adaptação às mudanças de- (PMDB, 2015) convergem com as posteriores mográficas. Nós deixamos de fazer as medidas restritivas, sobretudo em torno da reformas necessárias decorrentes do envelhecimento da população nos anos questão fiscal, que marcaram o governo in- 1990 e 2000, ao contrário de muitos terino de Michel Temer. Neste sentido de- países, e hoje pagamos o preço de uma stacam-se a proposta de reforma da previ- grave crise fiscal [...] As causas destes problemas são simples: as pessoas es- dência, a reforma trabalhista e a medida de tão vivendo mais e as taxas de novos contenção de gastos públicos. entrantes na população ativa são cada vez menores. A solução parece simples, Já no início do governo, Temer enviou do ponto de vista puramente técnico: é medida de reforma da previdência social ao preciso ampliar a idade mínima para a aposentadoria, de sorte que as pessoas Congresso Nacional através da Proposta de passem mais tempo de suas vidas tra- Emenda Constitucional 287 (PEC 287/2016). balhando e contribuindo, e menos tem- A proposta não conseguiu tramitar a con- po aposentados. Não é uma escolha, mas um ditame da evolução demográfi- tento no Legislativo por dois principais mo- ca e do limite de impostos que a socie- tivos: a crise política abrigada nas diversas dade concorda em pagar (PMDB, 2015, denúncias de corrupção que alcançaram p. 7-11). membros do alto escalão do governo, inclu- Compondo o conjunto de propostas de indo o próprio Temer, e a intervenção federal mudanças estruturais, a reforma trabalhis- no estado do Rio de Janeiro que, por prerrog- ta foi apresentada através de projeto de lei ativas legais, impedia qualquer modificação em 2017, tendo sido transformada na lei nº constitucional. Apesar do fracasso no Legis- 13.467/2017. O trâmite legislativo durou cer- lativo, cabe destacar que as propostas inseri- ca de sete meses e marcou o empenho do gov- das na PEC, como a determinação de idade erno em servir aos novos ditames do mercado mínima e aumento do tempo de contribuição, de trabalho sob a ótica do empregador. Isto estavam expostas no manifesto do PMDB e porque, em seu bojo, a nova lei prevê a flex- cumpriram o papel de abrir o debate nacion- ibilização do contrato de trabalho e o enfra- al sobre o controle dos gastos públicos a par- quecimento dos mecanismos de fiscalização tir da mudança de direitos sociais. e controle, sobretudo em torno do papel me- Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 33 diador exercido pela Justiça do Trabalho. A tornou, para muitos analistas, a essência reforma ainda investe contra a organização da ação conservadora em favor do merca- sindical ao determinar que os acordos coleti- do encabeçada pelo governo transitório. A vos possam prevalecer sobre a legislação es- emenda constitucional nº 95 (EC 95/2016), pecífica e ao retirar a obrigatoriedade da Con- oriunda do projeto de emenda constitucional tribuição Sindical. A nova postura do “capital nº 241 (PEC 241) garante alteração em pre- produtivo” representado na lei abriga, ainda, ceitos constitucionais focados na área social. uma maior permissibilidade à terceirização Assim, altera dispositivo constitucional que de setores antes protegidos pela legislação, o indexava o fundo público a investimentos que contribui para a precarização do trabalho na área de segurança pública, assistência e consequente aumento da lucratividade do social, saúde e educação, proporcionando, empregador. além do congelamento por vinte anos, alter-

Com o impeachment, diversos setores ação na forma de correção a partir do Índice empresariais passaram a defender Nacional de Preços ao Consumidor Amplo com maior ênfase uma pauta de flexi- (IPCA). bilização das relações de trabalho [...]

Em síntese, a reforma provoca um pro- Para além das questões fiscais, o que cesso de fragmentação da base de rep- se evidencia com a aprovação da EC 95/2016 resentação sindical, impõe uma pauta patronal para as negociações, esvazia é a bruta inversão de valores em torno das o papel dos sindicatos em alguns as- questões sociais estabelecidas na Constitu- pectos, admite a negociação individu- ição Federal para uma perspectiva merca- al, o que impõe um imenso desafio aos sindicatos para enfrentar a nova real- dológica. Cria-se a noção de que as áreas idade, desafio que somente poderá ser de assistência social são responsáveis pelo analisado no futuro [...] A contrarrefor- desarranjo fiscal no país. Ao impor um novo ma reforça a ideia de que os interesses privados prevalecem sobre direitos con- comportamento para os gastos públicos, a sagrados e a própria noção de justiça, nova lei reduz, como afirma Vazquez (2016, o que é visto, muitas vezes, como um p. 7), “as possibilidades de atuação do Esta- sinal evidente da inadequação da legis- lação. A posição vencedora, de raiz lib- do na área social. Trata-se de um duro golpe eral, tenta desqualificar as resistências que quebra a espinha dorsal da Proteção ao processo de “modernização” guiado Social no Brasil, estabelecida na Constitu- pelo mercado [...] (KREIN, 2018, p. 86- ição de 1988 e ainda em consolidação”. Por 99). se tratar de emenda constitucional, opera no Por fim, cabe referência àquilo que se sentido do estabelecimento de “freio” às pos- 34 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade síveis investidas de futuros governos no orça- bilhões de pessoas estão sendo salvas da miséria em todo o mundo. Mesmo mento. Em outras palavras, o governo tran- assim, o Brasil NUNCA adotou em sua sitório, além de investir contra as políticas História Republicana os princípios lib- sociais, procura garantir que o retrocesso se erais. Ideias obscuras, como o dirigis- mo, resultaram em inflação, recessão, mantenha numa eventual configuração gov- desemprego e corrupção. O Liberalis- ernista de outro espectro político, sobretudo mo reduz a inflação, baixa os juros, ele- progressista. va a confiança e os investimentos, gera crescimento, emprego e oportunidades A extrema-direita eleita: Governo Bol- (BOLSONARO, 2018, p. 13). sonaro

Os primeiros meses de governo ratific- As iniciativas de reformas neoliberais aram em boa medida o que se aventava no se acentuaram no início do novo governo, de- plano de governo. A promulgação da medida sta feita sob um viés de maior conservadoris- provisória nº 870, de 1º de janeiro de 2019, mo. Definindo-se como “conservador liberal”, está entre os primeiros atos do governo. Nela, elegeu-se através de uma plataforma conser- Bolsonaro reestrutura o governo de acordo vadora de confronto com diversas iniciativas com as novas premissas: cria novos ministéri- políticas e econômicas encampadas pelos os e oficializa fusões, extinções e transferên- governos anteriores, sobretudo os petistas. cias de órgãos. Nesta reestruturação admin- Muitas dessas iniciativas foram embasadas istrativa duas pastas desaparecem: uma pelo programa “O caminho da prosperidade: ligada à previdência social (seguindo o já proposta de plano de governo” (BOLSONA- estabelecido pelo seu antecessor) e a outra RO, 2018), divulgado pelo então candidato. responsável pela condução da política de as- O programa expõe a crença de que o país foi sistência social. A área da saúde permanece afetado nos últimos trinta anos pelo predomí- com ministério específico, entretanto, verifi- nio do “marxismo cultural e suas derivações ca-se nítida desestruturação da organização como o gramscismo”. Além disso, exalta o anterior, como o ataque à parceria brasileira Liberalismo, premissa político-econômica com Cuba em torno do programa “Mais Médi- que, segundo exposto, o Brasil jamais conhe- cos”, que gera natural e imediato prejuízo ao ceu. atendimento à população mais carente. As economias de mercado são historica-

mente o maior instrumento de geração As investidas contra a estrutura de proteção de renda, emprego, prosperidade e in- social criada anteriormente culminaram com clusão social. Graças ao Liberalismo,

Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 35 a proposta de transferência da Fundação vinculados à proteção social deixaram de ter Nacional do Índio (Funai) do Ministério da prerrogativa organizativa diferenciada, per- Justiça para o recém-criado Ministério da dendo seu status anterior. É possível aferir Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, que a gestão atual compreende a proteção so- direcionando para o Ministério da Agricul- cial dentro de uma bolha de significado úni- tura, Pecuária e Abastecimento a respons- co, ignorando especificidades fundamentais abilidade pelas demarcações, delimitações e de cada área. registros de terras indígenas. Em tramitação Ao redimensionamento da estrutura admin- da MP no Congresso Nacional a Funai e suas istrativa agregaram-se iniciativas de aus- atribuições foram realocadas no Ministério teridade junto às políticas sociais existentes da Justiça, com a decisão sendo ratificada e, dentro destas, a indicação da reforma da através da publicação da lei nº 13.844, de previdência como “carro chefe” do necessário junho de 2019. Contudo, em nova investida, equilíbrio econômico. Em pouco tempo e com o governo publica nova medida provisória – o nítido objetivo de diálogo com a iniciativa nº 886, de 18 de junho de 2019 – direcionan- privada, enviou proposta que altera signifi- do a atribuição de demarcação, delimitação cativamente as já precárias condições neste e registros para o Ministério da Agricultura, campo. Pode-se afirmar que esta é uma das Pecuária e Abastecimento. Por fim, esta MP mais graves ofensivas políticas nesse campo foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal porque visa “mudar profundamente o siste- (STF) em 24 de junho de 2019. ma previdenciário brasileiro, segregando a Ainda no âmbito da organização político-ad- Previdência do sistema de Seguridade Social. ministrativa, cabe referência às seguintes A mudança afetará o financiamento e o orça- modificações: os antigos ministérios do Desen- mento, tanto da Previdência, como da saúde volvimento Social, da Cultura e do Esporte e da assistência social” (ANDES, 2019). foram fundidos no Ministério da Cidadania; Em suma, cabe ressaltar que governo a pasta dos Direitos Humanos foi alocada no Bolsonaro mantém ameaças e incertezas no Ministério das Mulheres, da Família e dos campo das políticas sociais. Como tem sido Direitos Humanos; o Ministério do Desen- indicado insistentemente, o projeto neolib- volvimento Regional recebeu as pastas da In- eral no qual se filia pretende transferir o tegração Nacional e das Cidades e, por fim, os peso da crise nacional de acumulação para ministérios da Justiça e da Segurança Públi- os ombros dos trabalhadores. Para isso, re- ca foram fundidos. Constata-se que os temas 36 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade toma mecanismos radicais de exclusão e de contraditória e evidentemente conduzida por marginalização social, materializados em interesses meramente políticos, o que colo- propostas que reduzem direitos (reforma da ca em questão a tese do crime de respons- previdência e apoio ao teto de gastos com abilidade. O artigo tentou mostrar que o saúde e educação por vinte anos), ampliam conteúdo do manifesto “Uma Ponte para o a precarização e a flexibilização das relações Futuro” já prenunciava as ações políticas e de trabalho (reforma trabalhista e mudança sugeria a mudança de governo. Além disso, nas regras de reajuste do salário mínimo) e a votação que ratificou a aceitação da denún- induzem investimentos privados em setores cia na Câmara dos Deputados evidenciou, estratégicos. com base na declaração das motivações, que o crime de responsabilidade não subsidiou a Considerações finais decisão. Logo, a interrupção da normalidade A crise politica que desembocou no democrática e a consequente ascensão de Te- impedimento de Dilma Rousself representou mer ao Poder Executivo ocorreram como re- o desmantelamento do bloco de poder firma- sultado de um golpe. do entre o campo progressista e setores da Por fim, cabe ressaltar que, apesar de burguesia interna. Isso proporcionou o surgi- todas as manipulações, fraudes e manobras mento de um novo bloco afinado com o modelo políticas conduzidas durante o período relat- político-econômico neoliberal e com reformas ado, a situação política não foi estabilizada. estruturais de perfil reacionário. Nesse bloco E isso, principalmente, em função das pautas incluem-se os governos de Michel Temer e de reacionárias que confrontam conquistas so- Jair Bolsonaro. Sob tal orientação ideológi- ciais recentes, como os combates ao racismo ca, apresentaram o desmonte do Estado e a e a LGBTfobia. Existe ainda a expectativa liquidação dos direitos sociais das camadas de que a sociedade conviva com incertezas populares como aspectos positivos de uma em torno da política externa, que coloca em risco físico e econômico toda a população, “gestão austera e responsável”. Contudo, as como nos casos das violações da soberania de medidas de contenção dos gastos públicos outros povos e de deliberações da ONU, da atingem de forma mais direta o seguimento interferência em conflitos entre países com mais vulnerável da população, como demon- relação diplomática com o Brasil, da tenta- stra o impacto do contingenciamento de ver- tiva de revisão conceitual de acontecimentos bas para os programas sociais. históricos e da adesão exacerbada ao neocolo- nialismo estadunidense. A deposição de Rousseff, contudo, foi Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 37 Referências bibliográficas

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38 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 39 Necrobiopolítica de gênero nos discursos de Jair Bol- sonaro: um estudo preliminar Fernanda Pattaro Amaral Ana Claudia Delfini C. de Oliveira Mestre, Corporación Universitária Americana Doutora, Universidade do Vale do Itajaí

Resumo Desde o impeachment de Dilma Rousseff, do partido de esquerda PT – Partido dos Tra- balhadores - ocorrido em 31 de agosto de 2016 sob a acusação de pedaladas fiscais e esquemas de corrupção em seu governo, o Brasil vive fortes fraturas democráticas. Com a ascensão de seu vice, Michel Temer, do partido Movimento Democrático Brasileiro – MDB, à Presidência da República, o panorama político brasileiro deu uma guinada à direita. Este artigo analisa alguns discursos de Bolsonaro sobre mulheres a partir do conceito de necrobiopolítica aplicado ao campo das relações de gênero. O debate aqui proposto parte das reflexões sobre necropolítica e gênero no contexto da ascensão do político de extrema direita, o presidente da República Jair Messias Bolsonaro, integrante do Partido Social Liberal (PSL). Suas declarações produzem discursos necrobiopolíticos de gênero com enunciados que reforçam a apologia ao estupro de mulheres, ao extermínio de homossexuais, à despolitização e reprivatização das mulheres, e o elogio da morte a comunistas, feministas, indígenas cujo cenário antidemocrático fortalece o desmantelamento das políticas públicas de gênero, assim como das secretarias e comitês de gênero. Palavras-chave: necrobiopolítica; gênero; Bolsonaro.

Abstract Since the impeachment of Dilma Rousseff of the left-wing PT on August 31, 2016 on charges of corruption schemes in her government, Brazil has experienced strong democratic fractures. The rise of its deputy Michel Temer, from the Brazilian Democratic Movement party to the Presidency of the Republic, the Brazilian political landscape has turned to the right/conserva- tive-wing. This article analyzes some of Bolsonaro’s discourses on women from the concept of necrobiopolitics applied to the field of gender relations. The debate proposed here starts from the reflections on necropolitics and gender in the context of the rise of the far right politician, the president of Republic Jair Messias Bolsonaro, member of the Liberal Social Party (PSL). Their statements produce gender necrobiopolitical discourses with statements that reinforce the apology for the rape of women, the extermination of homosexuals, the depoliticization and reprivatization of women´s body, the commendation of death to communists, feminists, indig- enous peoples whose undemocratic scenario strengthens the dismantling of gender policies, gender secretariats and gender committees. Keywords: necrobiopolitics; gender; Bolsonaro.

40 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade Introdução heres, que ganhou especial relevância com a ascensão do político de extrema direita, o Com a ascensão do governo autoritário, na- presidente Jair Messias Bolsonaro. Este ar- cionalista e patriarcal do atual presidente da tigo analisa alguns discursos de Bolsonaro República do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, sobre mulheres a partir do conceito de necro- vive-se a morte da democracia pelos própri- biopolítica aplicado ao campo das relações de os procedimentos democráticos. Enquanto as gênero. ditaduras fascistas ou comunistas ficaram no século passado, as urnas eleitorais estão A necrobiopolítica de gênero nos dis- matando a democracia em nome da própria cursos de Bolsonaro democracia. O pensamento crítico do século XX tem como

No Brasil, não estamos vivendo oficialmente um de seus componentes teóricos a crítica do uma ditadura ou um regime totalitário, no sistema totalitário, incluindo a parte estética entanto estamos convivendo diariamente do terror e do espetáculo (GREGOR, 2013). com a banalização do mal e do gozo sádico Esta estética do terror é um elemento que, contra determinados grupos sociais. Maria quando estimulado por instituições como Rita Kehl (2016) chama a atenção para um o Estado, a Igreja, a Educação, etc., serve tipo de banalidade do mal ao se referir à para reforçar a construção de um quadro paixão da instrumentalidade e ao gozo sádi- de obediência, por meio da prática do exer- co refletido no prazer em submeter o outro a cício diário e sistemático do medo fomentado partir de determinados dispositivos em que pela mídia educacional, mídia televisiva, e sujeitos comuns tornam-se torturadores, re- as relações sociais (virtuais ou face a face), forçando o gozo sádico do poder sobre o cor- que alude a uma preocupação constante em po do outro, ou sobre o outro, numa situação se adaptar às regras. em que o crime é a norma e não a exceção, O uso de práticas de extermínio pelo Estado em que é possível deixar morrer. Trazendo (como massacres, por exemplo) encoraja que essa discussão para o terreno das questões essas vidas subvalorizadas e descartadas de gênero atuais no Brasil, percebemos que sejam tomadas como exemplo de comporta- existe um “deixar morrer” e um gozo sádico mento populacional ou social reprovado por pela morte de certos grupos sociais, como os esse sistema opressivo. Embora claramente negros, os moradores de favelas, as pessoas da comunidade LGBTQIA+1 , pobres e mul- 1 Lésbicas, Gays, Bi, Travestis/Transgênero, Queer, Inter- sexo, Assexuais/Agênero.

Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 41 as cartas constitucionais dos Estados reite- BE, 2011, p. 146) rem que seus cidadãos são portadores de di- Berenice Bento (2018, p.01) também argu- reitos (um deles é o direito à vida), na prática menta que o Estado “distribui o reconhe- nem todos os seres humanos são consider- cimento da humanidade de maneira não ados dignos do direito à vida. Os negros nas igualitária”, o que implicaria no não–recon- favelas brasileiras, para citar um único ex- hecimento do outro como humano, sempre emplo, têm outra identificação para o Esta- que esse outro não reproduza as característi- do, especialmente um estado marcadamente cas que esse estado reconheça como válidas conservador ou ultradireitista. Para esse tipo desde seus próprios valores. de Estado, essa população é descartável. Através dessa perspectiva, é o Estado o agen- A política é também um instrumento de reg- te responsabilizante e responsabilizador pela ulação da vida e administrador da morte, ou distribuição do direito à vida, do direito de como argumenta Achille Mbembe, a sobera- viver, e, portanto, implica que o próprio Es- nia como possibilidade do direito de matar. tado seja o agente responsável pela seleção Essa possibilidade se exercita nas formas de nada natural de seus sobreviventes. Essa um “estado de exceção e a relação de inimi- narrativa é justificada pela ideia de sobera- zade”, que são as bases no que tange às nor- nia e governamentalidade, tal como discutia mativas que permitem o desenvolvimento do Michel Foucault sobre as técnicas orienta- exercício da morte como política de Estado. das pelo Estado Moderno para o cuidado e Nesse ponto, as reflexões desenvolvidas pelo controle da vida da população. O conceito de pensador camaronês Mbembe situam a ne- necrobiopolítica, em Bento, refere-se à união cropolítica nas discussões sobre as relações de dois conceitos já estabelecidos como a de saber-poder a partir de uma óptica ra- biopolítica de Foucault e a necropolítica de cializada. Mbembe inquieta-nos e amplia as Mbembe, elaborando assim um conceito novo reflexões quando nos sugere que os regimes que visa elucidar tais atos através do nome políticos atuais obedecem ao esquema de de necrobiopoder: “fazer morrer, deixar viver”. Nas palavras de Necropoder e biopoder são termos in- Mbembe, a necropolítica representa: “mun- dissociáveis para se pensar a relação dos de morte, formas novas e únicas da ex- do Estado com os grupos humanos istência social, nas quais vastas populações que habitaram e habitam os marcos do Estado-nação. Vida vivível e vida são submetidas a condições de vida que lhes matável, para utilizar os termos de Gi- conferem o status de ‘mortos-vivos’” (MBEM- 42 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade orgio Agamben, são formas de gestão istrava a morte, impondo leis e regulamentos da população e não podem ser postas para tal, levando à condenação os que o se- em uma perspectiva cronológica, em que o necropoder (ou poder soberano) guiam (súditos ou mesmo povo) com o lema teria sido ultrapassado pelo biopoder. “faça viver, deixe morrer”. Após a queda da (BENTO,2018,s/p.) figura dos monarcas soberanos, emerge outra representatividade simbólica com o poder de O conceito de necrobiopolítica trabalha- regular a sociedade: o Estado. Esse, ao regu- do por Bento (2018) traduz uma amálgama lamentar a vida, implanta nova estratégia e sistemática racional entre as regras e as cau- mecanismos com a finalidade de tornar essa sas de mortalidade dos que são descartáveis política mais eficiente, modificando o lema para o Estado, recordando a famosa obra de anterior para sua atualização de “para viver, Goya sobre Saturno devorando o filho, no sé- vamos morrer”. culo XIX, uma vez que esses corpos são filhos oriundos desse mesmo Estado. Desta forma, Foucault argumenta que existem dois mod- a necrobiopolítica assenta-se nos conceitos elos estruturados de poder: o primeiro, que foucaultianos de biopoder e biopolítica, sem conceitua a guerra e a repressão como mod- os quais não se pode compreender a gover- elos e formas de um ato primário de política; e namentalidade. (FOUCAULT, 1992; 2000; o segundo, que incita que a violência é a base 2006; 2012) formativa da própria sociedade moderna por meio do recurso do contrato. Assim, existe O biopoder é exercido por meio de dois me- uma relação muito próxima e profunda entre canismos regulatórios: 1) o adestramento in- o poder político e a violência, recordando que dividual dos corpos, com vistas a fortalecer o próprio Estado, por exemplo, detém o uso o sistema capitalista, criando um exército legitimado da força, e, portanto, da violência. personalizado de forma coletiva que atenda No Brasil, o período da ditadura civil-militar às necessidades próprias do capital; 2) o ade- (1964-1985) trouxe figuras que se apoderam stramento coletivo desses corpos através das dessa legitimação do poder e da própria uti- políticas de saúde, do controle de natalidade, lização da violência como um instrumento da regulamentação da sexualidade dessa eficaz para se atingir objetivos pré-estabele- população. Por sua vez, a biopolítica trabalha cidos, de modo a favorecer um grupo concen- com estratégias, mecanismos e ferramentas trado que atua à margem da Constituição. do Estado para gerenciar a vida, recordan- Esse grupo, em nome de “um bem maior”, do o século XVIII quando o soberano admin- utilizou-se de uma paixão da instrumental- Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 43 idade que gera um gozo sádico (Kehl e Tibu- As falas seguintes demonstram, já em 1999 ri, 2016) pela violência para a obtenção e a (portanto, longe da Era PT), um pensamento manutenção do poder. Para Kehl (2016), a de ruptura violenta com o regime democráti- ditadura instituiu determinados dispositivos co. Algo que um de seus filhos, Carlos Bol- em que sujeitos comuns tornam-se tortura- sonaro, resgata em pleno governo de 2019, dores, reforçando essa paixão da instrumen- afirmando que “Brasil não mudará por vias talidade que desemboca nesse gozo sádico do democráticas” (Albuquerque, 2019), A frase poder sobre o corpo do outro, ou sobre o outro, abaixo também é um reflexo das ideias anti- no qual o crime é a norma e não a exceção. democráticas, ao considerar a possibilidade de intervenção militar: Algumas frases proferidas por Bolsonaro em sua vida pública evidenciam o elogio das Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente práticas ditatoriais durante o regime militar nada! Só vai mudar, infelizmente, se brasileiro: “O erro da ditadura foi torturar um dia nós partirmos para uma guerra e não matar” (Carta Capital, 2018d). Nessa civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matan- frase, nota-se o radicalismo do pensamento do uns 30 mil, começando com o FHC, de Bolsonaro, quando evidencia um desejo não deixar para fora não, matando! Se de implementar uma política de morte mais vai morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente. efetiva no país, e já sinalizando para uma (1999) (...) A atual Constituição garan- possível política de Estado: “Pela memória te a intervenção das Forças Armadas do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, para a manutenção da lei e da ordem. Sou a favor, sim, de uma ditadura, de o pavor de Dilma Rousseff […] o meu voto um regime de exceção, desde que este é sim” (2016), “Ele merecia isso: pau-de-ar- Congresso dê mais um passo rumo ara. Funciona. Eu sou favorável à tortura. Tu ao abismo, que no meu entender está muito próximo (1999), (Carta Capital, sabe disso. E o povo é favorável a isso tam- 2018d). bém” (1999). (Carta Capital, 2018d). A fala a seguir ilustra melhor a questão da Nessa fala, Bolsonaro ilustra uma vez mais necrobiopolítica como política de Estado, sua aproximação com um pensamento au- quando reforça que a morte é a resposta para toritário, reiterando seu desejo de utilizar resolver os problemas de falta de segurança a violência como forma de obtenção de con- para um país, e dividindo a população em fissões e provas, outra das táticas utilizadas duas categorias: ser humano normal e ser durante a Ditadura pelos militares no país. humano não normal. E instaurando uma

44 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade política de premiação ao corpo policial que partido de esquerda PT – Partido dos Tra- mais matar esse outro que não tem a quali- balhadores –, ocorrido, em 31 de agosto de ficação de “ser humano”, segundo Bolsonaro: 2016, sob a acusação de “pedaladas” fiscais

[O policial] entra, resolve o problema e esquemas de corrupção em seu governo, o e, se matar 10, 15 ou 20, com 10 ou 30 Brasil vive fortes fraturas democráticas. A tiros cada um, ele tem que ser condec- ascensão de seu vice, Michel Temer, do par- orado, e não processado (2018) (...). Em entrevista ao Jornal Nacional, da TV tido Movimento Democrático Brasileiro, à Globo, em agosto, o então candidato re- Presidência da República fez com que o pan- forçou seu entendimento, declarado di- orama político brasileiro desse uma guinada versas vezes, de que “violência se com- bate com mais violência”, justificando à direita sem que se pudesse imaginar que, que criminoso “não é ser humano nor- em 2018, iria alinhar-se à extrema direita mal”. Em declarações anteriores, ele já com a eleição de Bolsonaro. havia dito que “policial que não mata

não é policial” e que a “polícia brasile- O declínio do principal partido de esquerda ira tinha que matar é mais” (Carta no país pode ser analisado sob diversos fa- Capital, 2018d). tores. Como exemplo de alguns deles, cita- A menina Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 mos as acusações de casos de corrupção, que anos, morta no dia 20 de setembro de 2019, já vinham desde o primeiro governo de Lula foi a mais nova vítima dessa necrobiopolítica (2003-2006). Somam-se a isso as alianças fi- que corooa a morte como finalidade da ação siológicas feitas com partidos de direita, como policial nas favelas. Ágatha foi morta quando a aliança do PT com o Partido do Movimento voltava para casa, no Complexo do Alemão, Democrático Brasileiro – PMDB (atual MDB) na Zona Norte do Rio de Janeiro. Ela estava na chapa Dilma-Temer, por ocasião da candi- dentro de uma Kombi quando foi baleada nas datura de Dilma à presidência em 2010. costas. De acordo com um tio de Ágatha, a Kombi em que a menina estava parou na rua As manifestações de rua deflagradas com os para desembarcar passageiros com sacolas protestos de 2013, 2015 e 2016 (cujos desdo- de compras na comunidade, policiais mili- bramentos impactaram as redes sociais com tares atiraram contra uma moto que passava as hashtags “#mudabrasil”, “#vemprarua” e pelo local, e o tiro atingiu a criança. Os famil- “#giganteacordou”) fortaleceram grupos de iares alegam que não houve confronto, e um extrema direita (como o movimento MBL – único tiro matou a menina. Movimento Brasil Livre, principal opositor do PT), resultando em uma das peças chaves Desde o impeachment de Dilma Rousseff, do Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 45 para o impeachment de Dilma, juntamente como na França, onde o Partido Social- ista praticamente colapsou, e no Rei- com o PMDB e o Partido da Social Democra- no Unido, cuja saída da Comunidade cia Brasileira – PSDB. Os militares e a ban- Europeia (o Brexit) foi um fechamento cada evangélica do Congresso Nacional con- protecionista contra, sobretudo, a che- gada de imigrantes europeus e não eu- struíram um repertório discursivo composto ropeus. Sem falar dos Estados Unidos do incentivo ao patriotismo, da moralidade e da eleição de Donald Trump, com seu da família e dos costumes cristãos ancorados discurso antiglobalista e pós-fascista. (ALMEIDA, 2019, p.186) na defesa de um salvacionismo nacionalista

de extrema direita. Tais fatores também de- O ambiente de instabilidade política e vem ser associados à ascensão de governos de econômica gerado após o impeachment con- direita ou extrema direita em alguns países solidou o conservadorismo do tipo nacionalis- europeus e latino-americanos: ta que se traduziu numa ampla perseguição

Cabe destacar também a própria der- política contra o PT, tendo como alvo princi- rocada dos governos de esquerda e cen- pal o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, tro-esquerda na América Latina, onde, condenado a 12 anos e 11 meses de prisão durante os anos 2000, alguns países, agindo em bloco e com relativa lider- pela Operação Lava Jato – nome dado a um ança do Brasil, procuraram construir conjunto de investigações feitas pela Polí- uma posição menos alinhada com a cia Federal do Brasil sobre esquemas de la- política externa dos Estados Unidos. (...) Os governos à esquerda, que dom- vagem de dinheiro, coordenado pelo juiz e at- inaram a cena política sul-americana, ual Ministro da Justiça e Segurança Pública começaram a declinar nos anos 2010, Sérgio Moro. pela corrupção e também como conse- quência de rupturas com o status quo A prisão de Lula coroou o repertório nacio- social, econômico e cultural por meio de políticas inclusivas e de diversi- nalista de extrema direita de ódio ao PT, dade. Isso gerou reações regressivas e aos seus militantes, cujos dispositivos são de distinção social, sobretudo entre as acionados por agressões nas ruas e nas re- classes médias, como encontrado em outros países. Segundo Kurlantzick des sociais contra todos/as que se alinham (2013), em análise do contexto mundi- ao pensamento de esquerda, além do culto al, as políticas de proteção social ten- ao hasteamento da bandeira nacional nas deram a empoderar os mais pobres, gerando pressão e revolta das classes ruas e residências, o uso de camisetas com as médias. (....) nos países europeus, se cores da bandeira e o simbólico ato de bater não chegaram a vencer os pleitos, ti- panelas com qualquer artefato nas janelas veram um bom desempenho nas urnas,

46 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade de suas casas, para demonstrar repúdio ao listou “gritos de ordem contra a cor- rupção, o PT, a inflação, em defesa do PT e adesão ao projeto de sanear o Brasil dos juiz federal Sérgio Moro, pelas inves- corruptos – projeto alicerçado na figura sal- tigações do Petrolão e a favor da PM”. vacionista do jurista Sergio Moro. (...) Nas faixas, a crítica se afunilou no impeachment de Dilma, e emergiu Nesse contexto, produziu-se discursiva- líder alternativo à política profissional: mente uma faxina pretensamente ética, lar- “Somos todos Sérgio Moro”. (...) Mas o efeito colateral de ciclos consecutivos gamente difundida nas redes sociais e nos de confronto é que o governo pós-im- principais veículos de informação, ecoada em peachment nasceu em terreno move- diversos discursos de Bolsonaro durante sua diço: Havia mobilização na sociedade para derrubar o PT. Não há gente nas campanha presidencial: “A faxina agora será ruas para sustentar Temer. E em con- muito mais ampla. Esses marginais vermel- juntura política fluida qualquer faísca hos serão banidos de nossa pátria”, afirmou pode virar incêndio. (ALONSO,2017, p.54) o capitão reformado. (....) “Seu Lula da Sil- va, (....) você vai apodrecer na cadeia. Será No que tange ao gênero, podemos ver diver- uma limpeza nunca vista na história (….) pe- sas faces da necrobiopolítica sempre que o tralhada, vocês não terão mais vez em nossa Estado viola as mulheres, negando-lhes o di- pátria”. (Revista VEJA, 2018). reito ao aborto. Uma mulher morre a cada dois dias por procedimentos de aborto inse- Tal faxina fundamenta-se nas diferentes guro em um país que naturaliza a cultura do formas de violência legitimamente aceita e estupro. Os feminicídios situam o país com perpetrada aos cidadãos que não fazem par- a quinta maior taxa entre 84 países com te do imperativo ético desse grupo, balizado mais de 4 mil mulheres assassinadas anual- pela defesa da pena de morte aos “perverti- mente por seus parceiros. A cada duas horas, dos” sexuais, estrangeiros vindos de países uma mulher é assassinada no Brasil. O país socialistas, e feministas. Para o êxito dessa apresenta índices alarmantes de violências faxina, não basta matar mulheres e homos- contra as mulheres e feminicídio. Segundo sexuais. É preciso propagar a morte de um pesquisas realizadas pelo Fórum de Segu- tipo de mulher que seja uma ameaça à defesa rança Pública – FSP, em 2018, houve uma da família brasileira nuclear, cristã, heteros- alta de 4% em relação ao ano anterior, um sexual e branca. total de 66 mil notificações que equivale a O Reaçonaria, autoapresentado como uma média de 180 estupros por dia – o maior “o maior portal conservador do Brasil”, índice desde 2007. A maioria são meninas de Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 47 10 a 13 anos de idade; a cada dez mulheres a política eugênica, aplicada pelo governo do mortas, seis eram negras; 96,3% dos autores Rio de Janeiro, que comprovava o aumento do crime de estupro são do sexo masculino, e de mortes dessa população, sobretudo de- que em 75,9% dos casos eles são conhecidos pois da intervenção federal no estado no que

das vítimas2. tange ao policiamento, nomeando um inter- ventor militar (General do Exército Walter Num país historicamente constituído sob Braga Netto) para sanar o problema da inse- os pilares do patriarcado, matar mulheres gurança no Rio. não é nenhuma novidade, especialmente se elas forem de origem pobre, negras, lésbi- Marielle era parte dessa população com um cas e feministas, como era Marielle Franco. “agravante”, ela era lésbica. Ela era negra, A vereadora foi uma das vítimas mais em- feminista, homossexual e favelada. Ela era blemáticas dessa necrobiopolítica de gênero e ainda é parte da estatística da morte no no Brasil, quando foi morta a tiros por agen- Brasil, uma estatística fomentada pelo Esta- tes estatais no dia 14 de março de 2018, em do através de suas políticas. A voz de Mari- uma emboscada política3. Marielle era uma elle foi calada pela necrobiopolítica. Marielle das mulheres políticas mais atuantes da era aquele corpo indesejado, e marcado para Câmara do Rio de Janeiro, tendo apresenta- ser descartável. A pergunta derivada dessa do 16 projetos de políticas públicas em ape- necrobiopolítica é: “Quem mandou matar nas um ano, com temas que versavam sobre Marielle? ”, uma vez que, de acordo com as o racismo, a homossexualidade e a misogin- investigações policiais, se descobriu o autor ia. Franco denunciou a violência sistemática dos disparos contra o carro que levava Mari- da polícia do Rio de Janeiro em relação aos elle e seu motorista, Anderson, naquela noi- moradores das favelas – a maioria, negros. te, e que ele é somente uma pequena peça Ela havia elaborado um dossiê que detalhava desse quebra-cabeças. A vereadora afirma-

2 Práticas homofóbicas também necrosam diariamente cor- va que “a gente tem lado, tem classe e tem pos considerados matáveis, e a necrobiopolítica estatal lem- bra, a todo instante, que a vida dos homens e dos heteros- sexuais têm mais valor do que a vida das mulheres e dos identificação de gênero” numa alusão a suas grupos não-binários. Atualmente, o Brasil revela uma morte de gay a cada 23 horas, segundo relatório do Grupo Gay da pautas de luta, e em relação às origens de Bahia (Souza e Arcoverde, 2019). De fato, seria interessante um novo estudo somente sobre a comunidade LGBTQI+ e a necrobiopolítica. Neste nosso trabalho, apenas informamos Marielle, que era oriunda da favela, negra e que essas políticas também afetam a comunidade mencio- nada. lésbica. E suas pautas eram: a defesa dos Di- 3 Seus assassinos planejaram, de acordo com as investi- gações policiais, o crime durante três meses; são eles dois reitos Humanos, os feminismos, o racismo e policiais militares: Ronnie Lessa (vizinho do atual presiden- te Jair Bolsonaro) e Élcio Vieira de Queiróz. O Coaf (Con- selho de Controle de Atividades Financeiras) identificou um a homofobia, temas atualmente caros para a valor de 100 mil reais, depositados na boca do caixa, na con- ta de Lessa (Carta Capital, 2018c) sociedade brasileira de forma geral. 48 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade À época de seu assassinato, Marielle fiscal- racia são desprezados cada qual a seu modo e tempo. Por fim, capitulam di- izava a atuação das polícias cariocas e abu- ante do exercício da morte. (SEMER, so cometidos em Acari pelo 41º Batalhão da 2019, p. 22) Polícia Militar no Rio de Janeiro durante o A necrobiopolítica de gênero, portanto, tam- governo Temer. Ela foi nomeada para ser a bém é identificada nos discursos promovidos relatora da Comissão de Representação da contra as mulheres cada vez que se utili- Câmara do Rio de Janeiro, e sua luta deu za das diferenças biológicas para marcar a origem à lei Marielle Franco, proposta pela qualidade das vidas de homens e mulheres. deputada Renata Souza, do Partido Social- A delimitação da existência (no sentido beau- ismo e Liberdade – PSOL, que institui o dia voiariano4) de homens e mulheres é marcada 14 de março como o Dia Estadual das Defen- pela reprodução de seus papeis sociais an- soras e dos Defensores de Direitos Humanos. corados em suas diferenças sexuais. Assim, Seu nome ainda inspira diferentes movimen- a violência praticada contra as mulheres era, tos sociais, políticos em prol das lutas pelos até pouco tempo atrás, justificada e, às vezes, direitos das mulheres em diversos países. exigidas pela sociedade (como nos casos de Os movimentos feministas e de mulheres adultérios das mulheres, por exemplo). Pági- afirmam que sua morte não foi em vão, uma nas policiais falavam, até poucos anos atrás, Marielle morreu para centenas de outras de crimes passionais para justificar a morte marielles nascerem; e as palavras de ordem de mulheres a mando de seus (ex) parceiros são “Marielle, presente!”. sentimentais, utilizando o ciúme – a posse Nas palavras de Semer: – como elemento chave para o entendimen-

O assassinato de Marielle põe a nu a to daquela violência. Ou seja, o discurso já é força da ideia da morte como políti- um elemento que pode conter, em si, práticas ca; da violência como silenciamento; da necrobiopolítica, uma vez que dimensio- da imbricação partidária com milí- cias, poder paralelo financiador das na os atos ou feitos aos corpos diferenciados campanhas políticas.(...) A morte de entre os sexos, e incita ao cuidado de um ou Marielle é um encontro do Brasil com outro. Como exemplo, temos a necessidade o país que ele está se tornando. Um país no qual a violência é o padrão de 4 Simone de Beauvoir (2015) faz uma diferenciação entre a linguagem; a paranoia, o condimento vida e a existência. Ela afirma que viver, todos os animais o fazem. Mas existir é algo que cabe aos seres humanos, de gestão; e o cerco ao conhecimento, posto que é transcendência e experiência. A autora também explicita a condição de alteridade à qual a mulher foi his- a interdição ao debate e a repulsa à toricamente condicionada pelo olhar do sujeito (neste caso, política completam o ciclo destrutivo. o homem), e assim se torna o outro, aquilo que não me rep- resenta, que não me identifica. Aquilo que me é diferente e Instrumentos tradicionais de democ- que não reconheço como igual. Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 49 de construção das políticas públicas volta- Direitos Humanos6. Desta forma, seu gover- das ao público feminino para salvaguardar a no era constituído de apenas duas mulheres vida. A ênfase em tentar frenar os avanços como ministras ou similar, no caso de Fátima das reivindicações das mulheres por parte de Pelaes. determinados políticos conservadores ganha Bolsonaro deu prosseguimento a esse esva- um episódio especial após o processo de im- ziamento das mulheres na política, associan- peachment de Rousseff5. do-as ao mundo privado da família por meio

Após a posse, o então vice de Dilma à Presidên- da defesa moral que recuperasse “a inocên- cia da criança em sala de aula, em defesa da cia da República, Michel Temer, proferiu dis- liberdade das religiões, contrário ao aborto, cursos sobre a necessidade da retomada da contrário à legalização das drogas7” . Duran- “normalidade” masculina no campo da políti- te uma palestra no Clube Hebraica no Rio ca. Esta parte, podemos identificar em suas de Janeiro, em abril de 2017, proferiu uma palavras: “os governos precisam ter marido, das falas mais polêmicas quando ainda era daí não quebram”. Outra de suas frases sobre deputado e pré-candidato à presidência pelo o tema foi: “se a sociedade, de alguma ma- Partido Social Liberal – PSL: “Eu tenho cin- neira vai bem e os filhos crescem, é porque co filhos. Foram quatro homens, aí no quinto tiveram uma adequada formação em suas eu dei uma fraquejada e veio uma mulher”

casas, e, seguramente, isso quem faz não é 6 Devido à recusa de várias mulheres que haviam sido con- vidadas a compor a equipe ministerial de Temer, contrárias o homem, é a mulher”. Durante seu gover- ao impeachment, apenas duas participaram do alto escalão: ministra Luislinda Valois (em junho de 2016), Ministério de Direitos Humanos, e Grace Maria Fernandes Mendonça (em no, houve o imediato corte de cargos ocupa- setembro de 2016), a primeira mulher na chefia da Advoca- cia Geral da União. Durante o governo Dilma (2011-2016), dos por mulheres (em torno de 12,13% para foram 14 ministras. Em números absolutos, foram cortados 1.104 cargos ocupados por mulheres e 1.039 ocupados por homens. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ as mulheres e 8,46% para os homens) e a ultimas-noticias/2017/03/03/corte-de-cargos-anunciado-por- temer-atingiu-mais-mulheres-que-homens.htm. não-inclusão das mulheres em cargo de min- 7 O Brasil vive um grave retrocesso de gênero na atual agen- da política, especialmente no campo dos direitos sexuais/ istras, com exceção, inicialmente, de Fátima reprodutivos, com a tramitação de diversos Projetos de Lei (PLs) que criminalizam condutas abortivas e reforçam práti- Pelaes no comando da Secretaria de Políti- cas violentadoras e ameaçadoras aos direitos das mulheres e a uma vida sem violência. Além desses PLs, há diversas ações contra as discussões de gênero nas escolas como par- cas para as Mulheres (nomeada ao cago em te desse desmonte que ameaça a democracia escolar com a atuação do Movimento Escola sem Partido, que defende junho de 2016), e Luislinda Valois (nomeada a aprovação de projetos de lei para censurar e coibir dis- cussões de gênero e sexualidade.. Há mais de 60 projetos de lei em tramitação no país para proibir a discussão de gêne- também em junho de 2016), no Ministério de ro nas escolas que resultaram em vetos aos termos gênero, identidade de gênero e orientação sexual nos planos de edu- cação estaduais e municipais. Em abril de 2017, o Ministério 5 Que, vale lembrar, foi um teatro, com deputados pedindo da Educação – MEC retirou as expressões “identidade de a volta da ditadura; e Bolsonaro, homenageando o Coronel gênero” e “orientação sexual” da nova versão da Base Na- Brilhante Ustra, que foi carrasco de Rousseff em seu período cional Comum Curricular, que normatiza as competências como presa política, no qual foi torturada fisicamente nos escolares na educação básica nas escolas públicas e privadas anos 1970. do país. 50 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade foi uma. Questionado se ele aumentaria a quel Dodge, e funcionárias dos palácios do participação feminina no cenário político Planalto, da Alvorada e da Granja do Torto), caso saísse vitorioso nas urnas, disse: “Res- ao dizer que “pela primeira vez o número de peito as mulheres, mas alguém aqui quer a ministros e ministras está equilibrado num volta da Dilma [Rousseff] por acaso? Não é governo (....) cada uma das duas mulheres questão de gênero. Tem que botar quem dê equivale a dez homens”. (Carta Capital, conta do recado. Se botar as mulheres, vou 2018b). ter que indicar quantos afrodescendentes?”. (Carta Capital, 2018b). Durante sua campanha à presidência do Bra- sil, Bolsonaro já sinalizava seu entendimento Em uma narrativa de cunho religioso, no dia sobre os corpos femininos como descartáveis, 8 de março de 2019, Bolsonaro defendeu a matáveis, em seu novo projeto de Estado. Seu valorização da família como o mais sagrado discurso é um discurso baseado em um ódio em uma pátria, citando versículos bíblicos irracional por tudo aquilo que é diferente a sobre a edificação da família. A indicação de seu pensamento ou comportamento de vida. uma mulher que possui um discurso evan- E tudo aquilo que é diferente a seu pensa- gélico bastante marcado com a linha intelec- mento ou comportamento de vida deve ser tual do Chefe de Estado para o Ministério da excluído. O debate aqui proposto refere-se a Mulher, Família e Direitos Humanos8 (cria- um grupo em particular que tem sido alvo di- do neste governo), corrobora a linha políti- reto e indireto desse conjunto de repertórios ca extremamente conservadora desse gov- encampados pela extrema direita, que não erno. A Ministra Damares Alves, do citado apenas incentiva mas executa a morte de ministério, manifestou que: “Este Estado é mulheres e meninas9. laico, mas esta ministra é terrivelmente cris- tã”, fala que enuncia um dispositivo funda- Está em curso no Brasil um processo de necro- mentalista e profundamente patriarcal. biopolítica de gênero cujos dispositivos são discursivamente atrelados à despolitização e Bolsonaro ironizou a composição de seu gov- reprivatização das mulheres, à apologia e ao erno, composto por 20 homens e duas mul- 9 Essa prática discursiva da necrobiopolítica também está heres (além de Damares Alves, temos a Min- presente nas falas icônicas de Bolsonaro sobre a apologia ao estupro de mulheres: “Eu jamais ia estuprar você porque istra da Agricultura, Tereza Cristina, assim você não merece (...) porque é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria”, a frase foi dirigida à deputada Maria do Rosário (PT-RS), em duas ocasiões: a primeira, durante como a Procuradora-Geral da República, Ra- uma discussão nos corredores da Câmara dos Deputados em 2003, diante de vários jornalistas; depois repetida em 2014, dessa vez na tribuna da Casa. Em 2015, o então deputado 8 Note-se a palavra “família” como uma extensão da ativi- foi condenado a pagar uma indenização de 10 mil reais à dade do ser mulher na sociedade. parlamentar petista por danos morais. Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 51 elogio da morte, associados ao desmantela- suas falas, o bolsonarismo exerce uma agen- mento das políticas públicas de gênero, bem da necrobiopolítica. A eliminação daquele como das secretarias e comitês de gênero10. outro indesejável, igualmente justificando Desmantelar políticas que garantam direit- essa política de extermínio do diferente por os às mulheres é uma forma de lhes negar meio do discurso de combate aos supostos a vida vivível; não implementar uma agenda ataques do perigo comunista, instaura assim de gênero que produza vidas vivíveis, sem vi- uma necrobiopolítica com o poder de selecio- olências, feminicídios, estupros e homofobia, nar aqueles que podem viver daqueles que é uma forma de morte anunciada. podem morrer, porque são corpos inertes ao próprio Estado, através da condenação bi- Considerações finais ológico-social. Com a eleição, em 2018, do político de extrema A apologia ao rearmamento da população, a direita Jair Messias Bolsonaro, integrante do cultura da arma e o incentivo à prática da Partido Social Liberal (PSL), cujo apoio dos morte pelos policiais conferem uma agenda militares e dos partidos da bancada evangéli- governamental necrobiopolítica. Os discur- ca do Congresso Nacional foi decisivo para a sos de Bolsonaro exalam mundos de morte sua eleição, o caráter patriarcal, misógino e para as populações às quais o Estado decide sexista contra as mulheres é reforçado em que não pertencem à humanidade, à nor- uma estratégia de ganhar a simpatia de seto- malidade, populações para as quais o Estado res contrários aos avanços dos direitos das nega o direito à vida. Em um país que tende mulheres. Suas declarações de campanha e a naturalizar a morte de uma mulher (“ela durante seu primeiro mandato centravam-se provocava”, “ela mereceu”, “foi crime pas- na preservação de uma ordem sócio-política sional”, etc), inclusive a sua dimensão, essa masculina moralmente consolidada pela def- agenda pró-armamento e a apologia ao exter- esa dos chamados bons costumes do cidadão mínio potencializam mecanismos discursivos de bem e da família brasileira. que nos levam a olhar a necrobiopolítica No entanto, mais do que classificar a presença também nos campos das relações de gênero. de dispositivos misóginos e machistas em

10 Esse desmonte já pode ser observado desde 2016, com a aprovação, pela Câmara dos Deputados, da extinção do ter- mo “incorporação da perspectiva de gênero” no texto base da Medida Provisória 696/15, que regulamenta as atribuições do Ministério das Mulheres por meio das secretarias espe- ciais de Políticas para as Mulheres, de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e de Direitos Humanos. 52 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade Referências

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54 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 55 Consequências do autoritarismo às instituições media- doras do Estado: breves apontamentos. Taiguara Villela Aldabalde Doutor, Professor Adjunto da Universidade Federal do Espírito Santo, Departamento de Arquivologia, Vitória, Brasil

Resumo Objetiva refletir sobre as consequências do autoritarismo para as instituições mediadoras do Estado a partir da análise das circunstâncias atuais e pretéritas. Encaminha os apontamentos sobre a contextualização atual e acerca de aspectos sociais no panorama nacional, em paralelo a outros países no passado e no presente. Aponta que as circunstâncias para a ascensão do autoritarismo se referem não apenas à configuração tradicional de tirania, mas atualmente se refere ao ataque ao Estado e suas instituições, notadamente aquelas que possuem como função mediar informações à população, inclusive os arquivos. Conclui que o autoritarismo tenciona as seguintes consequências para as instituições mediadoras do Estado: a desregulamentação, a desconsideração técnica, a falta de compromisso com projetos de longo prazo, o abuso de im- agens institucionais para propaganda e a imposição de um ritmo anti-mediato, ou imediatista incompatível com a razão de ser dessas instituições. Palavras-chave: Autoritarismo. Mediação. Instituições. Estado. Práticas autoritárias.

CONSEQUENCES OF AUTHORITARIANISM ON THE STATE’S MEDI- ATING INSTITUTIONS: BRIEF NOTES. Abstract It aims to reflect on the consequences of authoritarianism for the mediating institutions of the state from the analysis of current and past circumstances. Forwards the notes about the current contextualization and about socials aspects in the national panorama. It points out that the circumstances for the rise of authoritarianism refer not only to the traditional config- uration of tyranny, but nowadays to the attack on the state and its institutions, notably those whose function is to mediate information to the people, including the Archives. It concludes that the authoritarianism strains the following consequences for the mediating institutions of the state: deregulation, technical disregard, lack of commitment to long-term projects, and the imposition of an anti-mediate, or immediate, rhythm incompatible with the raison d’être of these institutions. Keywords: Authoritarianism. Mediation. Institutions. State. Authoritarian practices.

56 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade 1 Introdução Na mesma direção, encontrava-se a Ale-

Eles trituraram, dissolveram ou manha Oriental (1949-1990), oficialmente queimaram um grande número de autodenominada com o título de “República documentos, mas a fumaça revelou Democrática Alemã” (RDA). Portanto, para suas tentativas. Ativistas dos direitos civis ocuparam os edifícios da Stasi e além dos termos autodesignados, cabe obser- impediram a destruição. Esses esforços var que a identidade dos regimes autoritários salvaram imensas montanhas de reg- está vinculada ao modus operandi das ativi- istros, documentos soltos e confusos, quilômetros de prateleiras cheias de dades criminosas lesa-humanidade, particu- arquivos [...] Os arquivistas também larmente crimes imprescritíveis, tais como a devem reconstituir as intrincadas con- tortura sistêmica contra uma população étni- exões dos documentos e seus vínculos entre si. Acerca disto, ocorreu uma ca ou oposição política; assassinato planejado grande conquista quando, em 1998, os de determinados grupos sociais considerados arquivistas conseguiram reconstituir a indesejados ou odiados; perseguição por mo- estrutura de dados do projeto Sistema de Informação [...] Essa reconstituição tivos políticos, religiosos ou raciais associada permitiu especificar todos os documen- à crimes bélicos, dentre outros. tos que um agente forneceu para a Stasi (JEDLITSCHKA, 2012, grifos do A partir de quais referências é possível iden- autor, p.86-97). tificar os regimes autoritários ou práticas

O termo “autoritarismo” possui como refer- autoritaristas? Ora, a fonte primária a ser encial o conceito de autocracia e está em con- recorrida é o arquivo. Nessa direção, os ar- traposição à autonomia democrática, na qual quivos da Segurança do Estado da RDA (Sta- o povo participa da criação e da execução das si) refletem as atividades da polícia secreta leis que serão vividas em sociedade. Apesar alemã submetida aos soviéticos, e constituem da oposição conceitual entre um regime au- a fonte mais relevante para identificar práti- toritário e um regime democrático, o autori- cas autoritárias, porque, por meio dos docu- tarismo não tem se apresentado como aquilo mentos, comprova-se a atuação criminosa e que é, sendo costumeiramente associado às autoritarista da Stasi, o órgão de repressão designações democráticas para encobrir dit- do regime. No rol das práticas encontradas aduras modernas das extremas direitas e nos arquivos, acha-se a vigilância policiales- esquerdas. O Estado Fascista da Itália, por ca sobre a vida privada da população para as- exemplo, se autodesignava como um Esta- sassinar reputações (MATA e ESPÍNDOLA, do popular e democrático (WIATR, 2019). 2015) e impor determinadas políticas, ate- stando o desprezo pelas instituições e rejeit- Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 57 ando os direitos individuais sob a alegação departamento para destruir seus adversári- de um suposto bem comum (KELLY, 2014). os por meio da exploração de rachas entre os Ocorre que a liberdade hoje acha-se sob risco, oponentes e as suas elites ou superiores que pois já são notórias e conhecidas as denúncias os mantinham, tornando assim a sociedade do portal WikiLeaks, de Julian Assange, de artificialmente polarizada por classes. O au- que o globo está submetido a uma vigilância tor parte dos métodos da Stasi para registrar similar, em termos de desrespeito, à esfera que seu próprio país, a Holanda, nos dias de privada, porém muito mais poderosa em sua hoje, sofre ataque da dita dezinformatsiya, estrutura. Isso porque a espionagem, a cole- ou seja, uma campanha russa anti-União ta de dados não autorizada, a destruição de Europeia por meio de mídias digitais. reputações, a identificação e a classificação Assim, a difusão massiva de informações pe- dos indivíduos em relação às suas preferên- las redes sociais e nas plataformas de com- cias políticas, dentre outras operações, eram partilhamento de vídeos tem buscado facili- antes reservadas aos serviços de inteligência tar as atividades propagandísticas a favor de e atualmente são ampliadas, com as tecno- regimes autoritários como práticas discursi- logias da informação, para vigiar todas as vas coercivas, com raízes na lógica with us, populações conectadas via web (RAMONET, or against us. Essa postura tem sido propa- 2015). gandeada pelos Estados Unidos após o “11 de Para realizar ações de espionagem e vigilân- Setembro” e a partir da gestão Bush (2001- cia é necessário o controle das informações 2009), e é propícia aos chamados “autocratas públicas e, privadas. Como parte do controle da União Europeia” da Polônia, Hungria e do ambiente informacional, acha-se na linha Romênia (KELEMEN, 2020), pela ideia di- de ação das práticas autoritárias a promoção cotômica “ameaça versus solução”. de campanhas de desinformação e de propa- Explica-se isso na tática blackmail adotada gandas de fake news. Isso não apenas ocorreu a partir do fim da Guerra Fria (1947-1991) no passado, como ainda ocorre em países con- por estados considerados secundários no siderados neoautoritaristas1, nomeadamente plano da hegemonia global, sendo que essa a Rússia e a Hungria (WIATR, 2019). Verstee- consiste em apresentar uma suposta ameaça gden (2018) nota que a Stasi mantinha um com consequências malquistas à hegemonia 1 A base do novo autoritarismo assenta-se em definir quais direitos serão dados ao povo a partir de um liberalismo que não aceita a legitimidade de outros campos políticos contro- norte-americana, buscando-se obter con- lando elites de experts para ditar o que é aceitável ou não (BABONES, 2018). Na Hungria e Rússia, o judiciário é in- cessões (KUNZ, 2014). Ocorre que conceder strumentalizado conforme será exposto mais adiante. 58 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade poder aos chantageadores pode significar patível com blackmail, já que a chamada um aumento de suas autoridades nos seus “ameaça comunista”2 era o objeto indese- respectivos países, de modo que o capital jável para a hegemonia dos Estados Unidos 3 político proveniente desse poder possa ser na América Latina no período de Guerra Fria transferido para a criação de partidos de ex- (1946-1991). trema-direita, como o polonês Lei e Justiça/ Também não é por mero acaso que as insti- Prawo i Sprawiedliwość, que parecem repro- tuições mediadoras de informações públicas duzir a lógica coerciva do “conosco ou contra são, no contexto permissivo para as práti- nós” na condução de políticas internas. cas autoritárias, um dos principais alvos de Não é imediata a compreensão de que o mod- ataques ou manipulações, já que podem des- elo difusor tem se sobreposto à ideia de medi- mentir, com dados qualificados4, os boatos e ar informações. Isso não é mero acaso, pois o manter um ambiente de diálogo. Entende-se conceito de mediação está ligado ao diálogo e que as instituições mediadoras são aquelas à aproximação, sendo esses um perigo para o constitutivas ao funcionamento do Estado estratagema dos agentes de fake news e tam- no poder de produzir, gerir e mediar dados, bém aos grupos autoritaristas que adotam informações, conhecimentos, entendimentos, extorsões políticas, como a tática blackmail processos e outros bens permanentemente es- com ameaças fake. tratégicos à nação que carecem de mediação, porque não são passíveis de uma apropriação Um exemplo da adoção de fake news e black- imediata. mail encontra-se em a mal lograda detonação do gasômetro do Rio de Janeiro em 1968. Na A concepção de instituições públicas re- ocasião, objetivaram desmoralizar a oposição sponsáveis por mediar informações para para então assassinar pessoas opostas ao os diversos públicos encontra-se tanto na 2 “Castelo Branco criaria os primeiros esquadrões da morte regime (ROCHA, 2018). Portanto trata- da América Latina, ou bandos da política secreta que caça- vam ‘comunistas’ para tortura, interrogatório e assassinato. va-se de terrorismo de Estado que buscava Quando tais ‘comunistas’ eram ainda mais do que opositores políticos de Branco” (KANGAS, 2019, p.6). causar uma tragédia de grandes proporções 3“Os americanos queriam fortalecer o aparato policial na América Latina, a fim de conter o ‘avanço comunista’ e de para atribuir as responsabilidades pelo es- fortalecer a ligação de tais países com o bloco que lideravam. Por sua vez, a polícia brasileira desejava equipamentos. [...] trago pretendido aos opositores da Ditadura era constrangedora a divulgação de um acordo com os EUA.” (FRANÇA, 2009, p.22) Militar (1964-1985) por fake news a serem 4 O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais mantém um software de dados com base nas séries temporais estatísti- produzidas a posteriori (ROCHA, 2018). Es- cas, a fim de cumprir o monitoramento do desmatamento no Brasil, inclusive na Amazônia. O endereço do fornecimento tima-se que havia um cálculo político com- de dados é o seguinte: .

Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 59 vertente da Ciência da Informação em Des- mediação da informação pública no contex- champs (2019), quanto na área do Patrimô- to das instituições mediadoras do Estado? nio em Saou-Dufrêne e Ihadjadene (2013). Objetiva-se, assim, pensar as circunstâncias Ademais a ideia acha-se também em autores do panorama nacional contemporâneo e sua das ciências sociais, tais como Beem (1999), relação com a mediação informacional, par- Panfichi (2011), Black (2017) e Slater (2008). ticularmente tendo em vista as redes sociais e as instituições mediadoras do Estado, a fim Dentre tais instituições, acham-se, por exem- de compreender as possíveis consequências plo, agências, arquivos, bibliotecas, centros do autoritarismo para essas instituições de culturais, centros de pesquisa, controladorias, mediação. emissoras públicas, fundações, institutos, 2 Consequências do autoritarismo às in- museus, observatórios, parques tecnológicos, stituições mediadoras do Estado: breves apontamentos a partir das circunstân- sistemas e universidades. Cabe salientar cias atuais. que as instituições mediadoras se referem apenas àquelas responsáveis por mediar in- O autoritarismo é, ao mesmo tempo, um formações públicas passíveis de serem dis- fenômeno sócio-econômico e psico-subjetivo. seminadas (DESCHAMPS, 2019) e democra- Esse último tem sido explorado desde que tizadas no sentido da apropriação ostensiva Theodor Adorno, Else Frenkel-Brunswik, (SAOU-DUFRÊNE e IHADJADENE, 2013). Daniel Levinson e Nevitt Sanford publicar- Portanto, a abrangência dessas é demarcada am a obra “The Authoritarian Personality” por aquelas instituições de Estado que delib- em Nova York, no ano de 1950 (NORRIS, eram e respondem por mediar informações 2005). Estudos mais atuais aprofundam-se públicas, desde que não sejam sigilosas, sob em procedimentos específicos, como a coop- pena de incidência das devidas responsabili- tação ou o recrutamento de jovens homens dades legais. para movimentos de extrema-direita realiza- dos com base na exploração da vulnerabili- Dado isso, busca-se desenvolver uma reflex- dade de indivíduos com lacunas psicológicas ão por apontamentos, sem a pretensão de es- na sua masculinidade na América, Europa, gotar o tema, dada a profundidade que pode Oriente Médio e parte da Ásia (KIMMEL, ser alcançada em um debate ou discussão 2018). por vieses mais explicativos, a partir da se- guinte questão: quais são as circunstâncias Não será a subjetividade o objeto a ser e as consequências do autoritarismo para a discutido. Para explicar o modo de oper-

60 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade ar autoritário ou as práticas autoritárias, das dívidas alheias (DOWBOR, 2017). Não recorre-se a autores das ciências sociais, no- sem motivo, aponta-se que tais agendas são meadamente Dowbor (2017), Veblen (2001), constituídas para atender às expectativas Teruelle (2012) e Gilligan (2017). Isso devi- de maximização dos lucros de certos agentes do a uma ligação político-econômica entre a do mercado financeiro, identificados com os ascensão de práticas autoritárias, a insatis- capitães das finanças de Veblen (2001). fação das classes médias e baixas com o mod- Ocorre que o modo de operar desses agentes elo representativo, e a influência de parte do tende a divergir da ideia de mediação, pois setor financeiro com os altos lucros obtido às essa requer um tempo particular para re- custas do endividamento alheio. Soma-se a sponder a determinadas políticas, um tempo isso o contexto sócio-informacional favorável próprio da democracia, e o mercado finan- a propagandas extremistas por meio de fake ceiro, principalmente o nicho especulati- news. É possível observar, nas redes soci- vo, possui senso de urgência nas operações ais, que os usuários são conduzidos por al- financeiras e, assim, se distancia das for- goritmos de autorreferenciação, favorecendo mas de mediação, aproximando-se da lógica a permissividade com a violência e a intol- imediatista do autoritarismo. Neste âmbito, erância em ambientes virtuais. Observam-se fazer política, notadamente a agenda políti- alguns aspectos comportamentais imbrica- co-econômica, torna-se, ao menos neste con- dos na adesão à campanha propagandísti- texto no qual práticas autoritárias compõem ca da extrema-direita, como a atração pela o regime político, um exercício de arbitrarie- violência por parte de homens com lacunas dades motivadas pelo comportamento pre- identitárias em sua masculinidade, e de um datório notado por Veblen (2001). público sugestionável ao ódio e ao medo nos países muçulmanos, nos Estados Unidos e no Deste jeito, os chamados “capitães das fi- continente europeu (KIMMEL, 2018). nanças” são referidos, em Veblen (2001), como uma alusão à prática de pilhagem na Assim, entende-se que o novo autoritarismo é pirataria, e também chefes dos navios da civi- um fenômeno social-econômico indissociável lização bárbara que praticavam o latrocínio e do autoritarismo das finanças ou da ditadu- a pilhagem. Logo, é possível entender que es- ra financeira, pois as agendas de salteamen- ses capitães comandam seus empreendimen- tos contra aos marcos regulatórios e direit- tos financeiros dispostos a agir de qualquer os instituídos das populações assalariadas forma inescrupulosa para obter conquistas. eleva os lucros pecuniosos obtidos a partir Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 61 Correspondem, desse modo, não à totalidade ROUX, 2014 apud TERUELLE, 2016). Esse absoluta, mas a uma parte dos agentes finan- regime parece estar orientado para reduzir ceiros que são capazes de realizar manobras ao máximo quaisquer tipos de interferência como a sabotagem; a manipulação de preços; nos negócios previstos nas agendas com in- a maquiagem de dividendos; o monopólio da teresses particulares, favorecendo um gru- concessão de créditos; o agenciamento dos po minoritário, ainda que isso possa trazer interesses comerciais; a montagem de oper- prejuízos às instituições permanentes do Es- ações para desvalorização de empresas a fim tado, inclusive aquelas que são mediadoras, de obter vantagens no preço no momento de dentre as quais estão as associadas ao direito sua compra planejada; a promoção de greves informacional, e aos direitos civis, sociais e de investidores e/ou de fugas de capitais; e culturais conquistados pelos cidadãos. as paralisações de investimento, dentre out- É notável, como dito, que tais agendas pare- ros artifícios. Não pode ser generalizado a to- cem ser contrárias a toda forma de mediação, dos os agentes do sistema financeiro e nem pois sobrevivem somente no conflito, sem a todos os seus operadores, porém é possível buscar uma efetiva solução para o mesmo. identificar que tais práticas são característi- Portanto, o processo de manipular dados faz cas do autoritarismo das finanças. parte do modo de operar, ou, de práticas au-

Dado isso, há no campo real uma efetiva “dit- toritaristas. Um exemplo disso é ocultar as adura dos capitães das finanças” (VEBLEN, fontes primárias e desacreditar as institu- tradução do autor, 2001, p.51), que pressiona ições mediadoras do Estado. Recentemente, os agentes políticos por mais lucro. Assim, ocorreu um caso no Instituto Nacional de tais agentes subalternos podem ser reduzidos Pesquisas Espaciais (INPE) em que o dire- a meros objetos de cena ou marionetes usa- tor foi exonerado por cumprir seu trabalho das para causar impressões e sentimentos na e publicar séries temporais. Isso não é com- população, de acordo com a configuração da patível em uma sociedade com a democracia agenda mais pecuniosa a ser executada. consolidada, pois os dados devem contribuir para a gestão do Estado e, nesse episódio, Algumas das principais linhas de ação do au- para a gestão do meio ambiente da nação toritarismo são a desregulamentação, as pri- brasileira. Cabe reforçar que é próprio do vatizações, as desapropriações e a descartabi- autoritarismo desacreditar as instituições de lização de grupos hipossuficientes como a mediação, tais como os órgãos de imprensa, juventude de baixa renda, dentre outros (GI- os institutos de pesquisa e outras. 62 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade Por isso, a exoneração de um funcionário cessões como um benefício conquistado por sem justificativa devida e o descrédito de um governo nacionalista para a nação. Aliás, estatísticas oficiais produzidas por institu- os praticantes de blackmail localizam-se em ições permanentes e mediadoras do Estado áreas estratégicas para a manutenção da são a expressão de uma das consequências hegemonia geopolítica dos Estados Unidos, do autoritarismo para tais instituições. Isso estando entre a abordagem institucional neo- porque há pressão para atingir resultados liberal (neutralidade) e a chantagista (resis- por parte dos patrocinadores, de maneira tente), portanto não são, de nenhuma forma, que os dados liberados pelo INPE poderiam o campo da oposição (KUNZ, 2014). pesar contra o governo, sendo indesejáveis. Consequentemente, o novo autoritarismo No caso do INPE, tratou-se de desconsider- pode ser considerado antinacionalista ou, ação técnica e, informalmente por meio de ao menos, portador de um falso nacionalis- redes sociais, buscou-se desacreditar os da- mo, não raramente mimetizado de naciona- dos e, consequentemente, o ataque contra a lista. Esse mimetismo é necessário para se instituição. Esse modo de operar é tradicio- criar uma aparência longe de suspeitas em nalmente associado ao novo autoritarismo, relação à real identificação com a agenda de baseado menos em ditaduras violentas de ataques às instituições nacionais, vide o caso Estado e mais no chamado “legalismo au- da ascensão da extrema-direita na Hungria, tocrático” (KELEMEN, 2020). Não parece inspirada no putinismo da Rússia (WIATR, ser incorreto apontar que a ascensão dos 2019). Um exemplo concreto dessa inspiração regimes autoritários mais conhecidos no sé- é o enfraquecimento do sistema judicial hún- culo XX ocorreu após a crise de 1929, e que garo, aproximando-se do sistema judiciário a crise global instaurada desde 2008 pode russo, notoriamente dependente e submisso criar condições para uma nova escalada au- às intervenções de políticos e/ou empresários toritária. (GILLIGAN, 2017).

Em termos práticos, cabe observar que as Cabe salientar que tais agendas podem ser agendas se camuflam de nacionalistas, a consideradas biônicas, pois estão em um con- fim encobrir a tática blackmail, a condição texto bastante particular, caracterizado pela de países secundários e as concessões da he- expressiva perda de vitalidade do atual mod- gemonia como produto de chantagem para elo representativo, por erros em políticas de benefício próprio, apresentando tais con- conciliação entre as classes, e também pela

Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 63 incompatibilidade dos interesses pecuniários to, assemelham-se ao modo de operar da Sta- imediatistas com as políticas dos partidos so- si. ciais-democratas. Com o ataque aos mediadores instituciona- Esse desgaste da social-democracia deve-se, is por parte do trumpismo, por meio de fake dentre outras razões, a uma frustação das news, completa-se o ciclo desumanizador de classes populares, pois as classes baixas e ofensiva autoritária que vai da investida médias notaram-se enganadas sucessiva- contra a instituição, nesse caso da embaixa- mente, ao passo que os capitães de finanças da, para a investida contra a pessoa que se constataram que as medidas de austeridade, arrisca para defender uma agenda a favor da somadas à desregulamentação, surtiram o segurança nacional e da mediação pautada efeito de elevar seus lucros. Isso tornou o es- pelo diálogo, ou seja, a embaixatriz. Deste tado de crise financeira não em um momento modo, os novos autoritaristas são caracteri-

a ser superado, mas em um modelo lucrativo zados por seu caráter anti-mediatista e man- de negócio de curto prazo. têm características dos regimes autoritários tradicionais. Por esse motivo, ainda sobre-existe o trump- ism, que parece ser influenciado pelo putinis- Porém não se sustenta uma agenda trumpis- mo russo. Também é por isso que, ao invés ta ou putinista apenas com representantes, de buscar a retomada de projetos de bem-es- pois é preciso base de apoio e de eleitores tar social para erradicar a crise, assumindo, para legitimar os encaminhamentos com vo- por exemplo, uma nova configuração do New tos, dando sustentação ao capital político em Deal, como o Green New Deal aventado pe- jogo. Em vista disso, o sucesso desse tipo de los Democratas dos Estados Unidos, man- investimento pecuniário depende de um com- tém-se o trumpismo. É possível atentar para portamento tribal agressivo, a fim de que os o aspecto predatório desse modelo de negócio cidadãos não se comportem como membros político-econômico, porque é esgotável e in- de uma sociedade civilizada, ou seja, que co- sustentável. Vale lembrar que, nestes dias, o bram as promessas de campanha daqueles presidente Donald Trump sofreu um proces- que foram eleitos. É necessário aos autori- so de impeachment, sendo acusado de traição, taristas formar os públicos seguidores e difu- suborno e outros crimes, além de perseguir e sores incapazes de reconhecer os seus inter- difamar a embaixatriz Marie Yovanovitch. esses coletivos. Assim como há a tendência Tais táticas persecutórias, como já foi expos- para obliterar a mediação, os próprios medi-

64 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade adores também podem ser propositalmente ais particulares. desconsiderados e substituídos por difusores Cabe, ainda, observar que, embora as in- ou replicadores informacionais. stituições mediadoras do Estado existam, As instituições estatais de mediação sus- isso não significa automaticamente que a tentam a democracia por representarem o mediação ocorra, pois tais instituições po- Estado Democrático de Direito e suas políti- dem ser afetadas por regimes ou agentes cas, bem como por fornecerem os dados, doc- autoritários que manipulam informações e umentos e informações oficiais nas mídias desfalcam os dados oficiais considerados não ou meios institucionais. Deste modo, tais desejáveis. Portanto não há mediação sem a instituições cumprem o papel de mediar os manutenção da ordem democrática, porque a anseios e as demandas da população pela mediação carece de um cenário democrático fruição de direitos informacionais, culturais, favorável no qual as instituições mediadoras educativos e outros direitos civis salutares sejam acreditadas e recorridas como parte do para a participação das pessoas na vida so- exercício da democracia participativa. Assim, cial-democrática. é possível afirmar que não há mediação sem democracia, e também não há democracia Para que possam cumprir devidamente ou plena sem mediação. efetivamente seu papel de mediação, essas instituições necessitam que as instituições Soma-se ao quadro com tendência au- garantidoras do mais alto escalão dos pode- toritária, a contínua diminuição dessas insti- res da República estejam, de fato, compro- tuições, como estratégia para manter e mol- metidas com a defesa da democracia e com dar cidadãos que não exercem de fato a sua o progresso no campo da democratização dos cidadania. Explica-se isso de modo simples: serviços do Estado. Um exemplo é o caso das sem usufruírem dos benefícios dessas insti- agências que devem regular e informar a tuições mediadoras do Estado, os nacionais população sobre determinadas matérias nas não exercem os direitos mais elementares da quais são especializadas. Porém, para tanto, vida civil; direitos que desconhecem ter, uma necessitam de um desenvolvimento insti- vez que não há acesso às informações conti- tucional democrático em direção de sua sol- das nesses locais, o que, consequentemente, idez, fortaleza, independência e autonomia, os leva a não conhecer a relevância dessas a fim de que não estejam à mercê das inter- instituições para sua vida cotidiana. ferências dos interesses político-empresari- Como podem os concidadãos fiscalizar seus Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 65 representantes sem competências informa- possuam algum conhecimento5 ou cultura

cionais e culturais mínimas? Como podem arquivística mínima, inclusive sobre o pro-

os brasileiros verificar se as promessas de cesso de eliminação de documentos públicos.

campanha foram cumpridas se ignoram os Na ausência de indicadores produzidos por

arquivos públicos onde estão depositadas as pesquisas dirigidas aos cidadãos leigos, por

provas das ações prometidas? Dentre as in- consequência, não há divulgação, nem re-

stituições permanentes e mediadoras do Es- positórios a serem acessados.

tado, acham-se os arquivos; esses estão entre Aliás, apesar da legislação para fundamen- as mais relevantes e, apensar disso, as menos tar legalmente as políticas públicas arquiv- populares, sendo possível afirmar que: arqui- ísticas, nota-se que a execução das normas vos têm sido ocultados. Isso propicia um con- e das leis relacionadas aos arquivos não texto favorável aos ataques à civilidade, pois tem sido levada a cabo pelo Estado, sendo o total desconhecimento dos arquivos pode os arquivos paulatinamente colocados para significar um mundo sem referenciais. Vale longe do centro das políticas de informação salientar que justapostos estão os arquivos, (JARDIM, 2008). Somado a isso, as próprias as bibliotecas e os museus, já que o objetivo políticas relacionadas ao governo eletrônico comum é proteger e preservar, sob custódia têm marginalizado os arquivos, visto que: legal permanente, o patrimônio da nação. A condição periférica dos arquivos pú- Ora, a desconsideração dos arquivos pode im- blicos no Estado e na sociedade bra- sileiros foi sempre uma questão […] É plicar a banalização da produção, da repro- importante notar ainda que boa parte dução, da destruição e do envio de documen- da informação que “irriga” o Governo tos com fins imediatos. Atualmente, milhões Eletrônico é informação arquivística, embora dentro e fora do Brasil essa de brasileiros que possuem telefones móveis e questão não seja nítida para os for- microcomputadores produzem inúmeros reg- muladores e gestores de programas de Governo Eletrônico. (JARDIM, 2006, istros, porém não possuem consciência sobre p.10-11). as qualidades desses documentos, tais como:

autenticidade, integridade e imparcialidade. Um dos impactos negativos da periferização dos arquivos é sua existência legal não acom- Além disso, não há indicadores qualitativos 5 O termo “algum conhecimento” indica qualquer resultado ou quantitativos (ou ainda quali-quantita- maior do que zero obtido pela aferição do conhecimento por meio de instrumentos de coleta de dados em pesquisas. Dev- tivos) que demonstrem que os brasileiros ido a isso, entende-se que a ausência de coleta de dados cor- responde ao total de zero indicadores sobre o conhecimento sobre os arquivos por parte dos leigos. 66 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade panhar a execução daquilo que deve realizar. forma irreversível o cumprimento da missão institucional. Cabe ressaltar Um exemplo disso trata dos arquivos, pois a que o anúncio das medidas se dá num Lei nº 8.159/1991 e o decreto nº 4.073/2002 ambiente de ausência de diálogo com não instituem um plano de execução de me- o corpo técnico e de justificativas em- basadas em critérios técnicos, legais e tas. Assim, apesar da 1ª Conferência Nacio- administrativos. As medidas em curso 6 nal de Arquivos (I CNARQ) propor demo- não denotam objetivos claros e coer- craticamente um plano aos arquivos no país, entes, pois contrariam as boas práti- cas da área de arquivo, as pesquisas ainda inexiste o Plano Nacional de Arquivos realizadas pelas áreas técnicas e as com dotações orçamentárias compatíveis. recomendações e orientações emana- Há casos de má formulação na legislação, das da própria instituição, muitas das quais adotadas pelo Conselho Nacional visto que, por exemplo, o Sistema de Arqui- de Arquivos (CONARQ). São exemplos: vo do Município de Vitória (Lei Ordinária 1. a implantação do Sistema Eletrônico 4248/1995) não indica o que compete aos in- de Informações (SEI) no Arquivo Na- cional não considera as recomendações tegrantes desse sistema. Nesse panorama emanadas da própria instituição em desafiador, há o que avançar para fortalecer documentos publicados em seu portal; os arquivos, pois, em texto circulado na web, 2. os projetos das áreas finalísticas não contam com a participação dos técnic- os órgãos centrais do Sistema Nacional de os das áreas pertinentes; 3. a propos- Arquivos (SINAR) e do Conselho Nacional de ta de revisão da Lei de Arquivos (lei Arquivos (CONARQ) estiveram sob desmon- nº 8.159, de 08/01/1981) e do decreto que a regulamenta (decreto nº 4.073, te nos seguintes termos segundo a Associação de 03/01/2002) retira do Arquivo Na- de Arquivistas de São Paulo (ARQ-SP): cional a competência de aprovação das listagens de eliminação de documentos Em 2016, entretanto, iniciou-se um dos órgãos e entidades do Poder Exec- processo de desmobilização que se utivo federal, que passam a ter autono- acelerou nos últimos meses. Recen- mia para tal; 4. a transferência do Rio temente, a Direção-Geral informou de Janeiro para Brasília da Coorde- aos servidores do Arquivo Nacion- nação Geral de Gestão de Documentos al que o órgão está sob a intervenção e da coordenação do Sistema de Gestão do Ministério da Justiça e Segurança de Documentos de Arquivo (SIGA) da Pública. A par disso, vêm sendo anun- administração pública federal acarre- ciadas medidas que representam um tará a dissociação entre as atividades retrocesso nas conquistas alcança- de gestão e as atividades de arquivo das nas últimas décadas e que, uma permanente, fragilizando a instituição vez concretizadas, comprometerão de ao restringir a atribuição de sua sede, 6 A Portaria nº 227 de 4 de março de 2011, cria Comitê de no Rio de Janeiro, à guarda de arquiv- Elaboração do Projeto para realização da Primeira Con- ferência Nacional de Arquivos. os históricos – retrocesso inconcebível, Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 67 tendo em vista que os arquivos devem pertinentes ao campo de atuação, o poder servir à administração pública, con- de fiscalização de arquivos com fontes de forme estabeleceu em 1974 o Conselho Internacional de Arquivos; 5. a out- dados, o poder de perícia, o dever-poder de orga ao CONARQ do poder de decidir preservação do patrimônio documental, o sobre o ingresso de arquivos privados dever-poder de prestação de informações, o na instituição interfere de forma ina- ceitável na sua autonomia técnica e poder de custódia legal ao depósito de fun- administrativa. A quem pode interes- dos, e o poder de autorização de acesso ou de sar um Arquivo Nacional descarac- franqueamento de consulta. terizado de sua missão e incapaz de

exercer as atividades que lhe foram O bom uso dos arquivos pode corresponder estabelecidas na Constituição Federal a benefícios do SINAR para as populações, e nos atos legais correlatos? Segura- mente não a uma administração públi- considerando inter-relações das políticas ca democrática nem a uma sociedade públicas arquivísticas com outras políticas que, de posse de seu patrimônio docu- públicas. Pode-se dizer, por exemplo, que o mental arquivístico, deseja exercer sua cidadania e acompanhar a ação do Es- SINAR pode integrar os arquivos de polí- tado. (ASSOCIAÇÃO DOS ARQUIVIS- cias, dos ministérios públicos, dentre outras TAS DE SÃO PAULO, grifos do autor, instituições com poder de polícia e de inves- 2019, p.1-2) tigação, beneficiando a pauta da segurança No sentido de defender o SINAR, o Arqui- pública. Do ponto de vista técnico, o SINAR vo Nacional e o CONARQ desse desmonte deve integrar seus componentes, inclusive suposto ou comprovado, para o bem dos ar- na gestão de documentos dos arquivos, e quivos da nação, cabe um Plano Nacional isso abarca a produção documental de iden- de Arquivos com orçamento definido, pois o tidades emitidas por polícias locais, quando fortalecimento das instituições arquivísticas deveriam, ao menos tecnicamente e para o deve significar necessariamente o reconhe- bem da segurança pública, constituir um cimento dos arquivos como autoridades ar- único documento de identidade para todo o quivísticas nas suas respectivas jurisdições. território nacional. Além do orçamento, isso inclui conceder po- deres cabíveis aos arquivos, tais como os se- No campo de colaboração dos arquivos com as guintes: o poder de auditoria arquivística, o políticas educacionais, as instituições arquiv- poder de intervenção arquivística, o poder de ísticas podem manter programas e serviços normatividade, o poder de participação nas junto às escolas e às universidades, sendo tomadas de decisão sobre políticas públicas um exemplo de ação construtiva registrada

68 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade no século XIX, quando ocorreu em 1881, na nar um país mais vulnerável à promoção Bélgica, uma manifestação ordenadora por de campanhas de fake news. No intento de parte de um ministério do Estado que emitiu compreender a desinformação por meio fake ordens para que as escolas visitassem os ar- news nas redes, os estudos militares de Ver- quivos (FRANZ, 1986). steegden (2018) apontam que uma das vias de solução para os ataques que sofre a sua Para que tais colaborações sejam efetivas nação por campanhas de fake news é o letra- e ocorra o funcionamento regular das insti- mento de mídia (media literacy). Sabe-se que tuições mediadoras do Estado, necessita-se tal letramento passa necessariamente pela que tomadores de decisão estejam, de fato, educação, pela competência informacional comprometidos com a verdade e com a def- e pelo entendimento das distinções entre a esa do patrimônio nacional. Um exemplo de mediação e a difusão. Ness,e sentido ampli- gestor com esse perfil é o professor Ricardo am-se as possibilidades de parcerias do setor Galvão (USP). Esse, quando então diretor educativo público com determinadas institu- do INPE, manteve comprometimento com a ições mediadoras, tais como: os arquivos, os verdade das fontes de dados relacionados à institutos de estatística, os museus, os cen- preservação do patrimônio nacional relativo tros de documentação, as fundações, os cen- à Amazônia Brasileira. Por isso, o ex-diretor tros de memória, e outros órgãos cuja missão do INPE foi reconhecido pela revista Nature é preservar documentos de valor probatório como um dos dez cientistas mais destacados pelo prazo máximo, isto é, permanentemente e influentes do mundo em 2019. para uso mediato. Nessa conjuntura, vive-se em um mundo em Cabe destacar que a lógica da permanência que a verdade é produzida como uma peça não possui correspondência na lógica au- ficcional ou infoproduto sob encomenda. Em toritária advinda dos capitães de finanças, sequência, as fake news são difundidas nas pois esses operam por investimentos de um redes sociais e outros territórios digitais sem ciclo de curto prazo, o que faz com que se im- contato direto com as provas dos acontec- ponha um ritmo imediatista para instituições imentos passados que definem o presente, cuja razão de ser é mediar, e seu patrimônio isto é, com os documentos arquivísticos, e é, como foi explicitado antes, de uso mediato. sem estímulos à mediação. Contudo, se a lógica autoritária encontra Com isso, há perda de referenciais, e esse correspondência na intermediação por tecno- prejuízo para as fontes da verdade pode tor- Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 69 logias da informação, a literatura tem abor- 3 Considerações finais dado continuamente a Sociedade da Infor- Conclui-se que as instituições permanentes mação, de maneira que a dita “Sociedade dos e mediadoras do Estado sofrem e podem sof- Arquivos” (NESMITH, 2010) significaria um rer impactos, enquanto vigorarem as práti- amadurecimento de compreensão sobre as cas autoritaristas ou autoritárias, tais como fontes de informação. Assim, uma vez que a a imposição da diminuição das instituições, sociedade mantenha relações de fruição com a tentativa de desqualificação de instituições o patrimônio das instituições de mediação, há mediadoras e a imposição de um ritmo típico formação de cidadãos capazes de trabalhar dos investimentos pecuniosos, notadamente com os dados ou as informações que recebem, o imediatismo que ameaça os planos nacio- discernindo entre o que é proveniente de uma nais e os projetos de longo prazo. fonte falsa ou verdadeira, ou ainda o cidadão será capaz de determinar as qualidades de Dentre as instituições mais ameaçadas, sua fonte. acham-se aquelas que possuem um papel mediador de produção e preservação de da- Buscou-se, em resumo, apontar determina- dos, pois o autoritarismo tende a eliminar das circunstâncias a serem observadas no todas as formas de mediação e de referenci- contexto da ascensão de modos de operar ais que possam significar um perigo para as próximos ao autoritarismo ou de práticas mentiras fabricadas que sustentam os agen- autoritaristas, principalmente aquelas que tes do autoritarismo no poder. indicam o inter-relacionamento de aconte- cimentos, de táticas e modos de operar que Além disso, foi possível abordar algumas acarretem o enfraquecimento das instituições das consequências desse autoritarismo para mediadoras do Estado. Dessa forma, no arro- tais instituições, de modo a apontar os se- lar dos apontamentos, tentou-se apresentar guintes efeitos deletérios: o descompromisso as circunstâncias atuais, valendo-se de cir- com projetos duradouros ou de longuíssimo cunstâncias do passado, tendo em vista os prazo, a submissão aos ditames pecuniosos, possíveis desdobramentos ou consequências a desconsideração técnica ou desrespeito às do novo autoritarismo para as instituições instituições, o reducionismo de entendimen- permanentes do Estado, particularmente tos sobre os padrões de comunicação com ên- as instituições mediadoras das informações fase na difusão e depreciação da mediação, públicas no país. o ataque aos valores institucionais, a fraude e o ocultamento de dados, a desacreditação 70 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade de dados oficiais, e, por fim, a imposição de um ritmo imediatista para instituições cuja razão de ser é permanente, vide o caso dos arquivos, bibliotecas e museus, cuja missão é proteger os patrimônios para o uso mediato.

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Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 73 Eu me recordo: Fellini, Amarcord e fascismo. Mariana Fujikawa Mestranda em História pela Universidade Federal do Paraná. Bolsista CNPq.

Resumo O objetivo deste artigo, resultante de um trabalho realizado para a disciplina História e Cin- ema, é entender, a partir das memórias do diretor Federico Fellini, questões do seu filmeAm - arcord, os elementos contextuais e os aspectos que criticam o fascismo nesta produção, pois entendemos que, ainda que este afirmasse não se interessar fortemente por assuntos políticos, vê-se que suas obras não estão alheias de posicionamentos e críticas. Nesse sentido, o artigo se estrutura da seguinte forma: iniciamos trazendo aspectos como a inserção do cinema como uma fonte histórica e a importância de novas abordagens para que os filmes fossem consid- erados como documentação, seguindo para apresentarmos questões sobre aspectos da vida de Federico Fellini. Posteriormente analisamos o filme Amarcord, foco de nosso artigo, e sua relação com o fascismo. Por fim, apresentamos nossas considerações finais sobre as relações entre Fellini e sua crítica ao totalitarismo. Palavras-chave: Amarcord; cinema; fascismo.

I REMEMBER: FELLINI, AMARCORD AND FASCISM Abstract The objective of this paper, which is the result of a paper written to a class of History and Cinema, is to understand, from the memories of the director Federico Felline, questions about the movie Amarcord, the contextual elements and the aspects which criticize the fascism in this production, directed and written by Fellini in 1973, because we understand that – even though he said that he wasn’t really into politics – we can see that his work is not away from positions and critics. Considering this, this paper is structured in this manner: firstly we be- gan by showing the inclusion of the cinema as an historic document and the importance of the new approaches in this transformation, afterwards we present questions about the life of Federico Fellini. Then we analyze the movie Amarcord, object of our paper, and its relation with fascism. In conclusion, we present the relation between Fellini and his criticism towards totalitarism. Keywords: Amarcord; cinema; fascism.

74 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade Cinema como fonte histórica em meados de 1970 grande parte dos tra- balhos de história utilizavam as imagens e o No século XIX, a história tradicional buscava cinema apenas como um anexo da bibliogra- relatar os fatos como eles ocorreram, acredi- fia (SORLIN, 1977, p. 39). Ademais, inicial- tava na neutralidade do historiador, buscava mente entendia-se que o valor do cinema, as origens, buscava entender o passado tal enquanto documentação, existiria somente qual ele foi, se ligava à ideia de continuidade se houvesse a identificação dos filmes com a e progresso e procurava alcançar a verdade verdade, com a realidade tal qual (KORNIS, dos acontecimentos (FOUCAULT, 1998). 1992). Esta verdade seria encontrada somente nos documentos tidos como oficiais. Essas fon- Porém, novas defesas da utilização tes seriam escritas, e só seriam confiáveis se do cinema foram feitas, considerando que é fossem de autoria de pessoas relevantes. Os preciso enfatizar que o cinema, assim como únicos acontecimentos levados em consider- a história, é uma construção, e não retrata ação eram os fatos políticos. Tudo o que se e nem sempre busca retratar a verdade dos afastava desse perfil era excluído. acontecimentos. E, acima de tudo, como afir- ma Marcos Napolitano, não importa se o filme No século XX, com as críticas a essas foi fiel ou não aos diálogos e ocorridos. O que concepções historiográficas, com mudanças o olhar do historiador deve buscar entender é na historiografia e o surgimento da Nova o porquê das adaptações e falsificações apre- História, a história não busca mais a ver- sentadas no filme (NAPOLITANO, 2006). dade. Ela irá estudar os homens no tempo Nesse mesmo sentido, Marc Ferro afirma (BLOCH, 2002). O historiador percebe que que “o filme, imagem ou não da realidade, entende o passado a partir do seu presente, documento ou ficção, intriga autêntica ou compreende que não consegue ser neutro e pura invenção, é História. [...] As crenças, as passa a considerar importantes outros aspec- intenções, o imaginário do homem, são tão tos da sociedade, buscando entender o passa- História quanto a História” (FERRO, 1992, do além dos acontecimentos políticos. Há a p. 86). É nesse contexto que procuramos es- possibilidade de estudar outros documentos, tudar Amarcord, dirigido por Federico Felli- não somente os escritos ou os ditos oficiais. ni. Assim, o cinema passou a ser consid- Federico Fellini erado como um documento histórico. Porém, ressaltamos que, como afirma Sorlin, ainda Fellini nasceu em 1920, em uma Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 75 pequena cidade chamada Rimini, na Itália. lembranças que me agarrei para criar coragem (FELLINI, 2000, p. 78). Ele afirmou que até o ensino médio não con-

seguia se projetar no futuro, pensando que Rossellini era classificado como um nunca iria crescer: “não tinha a impressão de neorrealista1 e Fellini, apesar de ser influ- que um dia cresceria e, no fundo, não estava enciado por ele e por outros diretores desta errado” (FELLINI, 2000, p. 71). mesma corrente, principalmente na primeira fase de suas obras, não pode ser considerado Fellini viveu imerso no contexto dos como pertencente a este movimento. Ele não regimes totalitários. Viveu em Rimini até os pertencia a uma corrente específica e afir- 17 anos, quando se mudou para Florença e, mava: “Recuso-me a pertencer a um clã: eti- um ano depois, para Roma. Em Roma, Fellini quetas devem ser coladas apenas em malas” se torna repórter, cronista e desenhista, e é (FELLINI, 1973, p. 2).2 nela que tem contato com a arte que definiria

sua vida: o cinema. Nesse mundo do cinema, Esse afastamento dos ideais neorre- conhece um ator, Aldo Fabrizi, e o diretor alistas foi criticado por diretores e cineastas Roberto Rossellini, com quem trabalhou em do período. Fellini, porém, acreditava que algumas obras, como Roma, cidade aberta o que deve ser real não é o que está sendo (Roma, città aperta, 1945), em que ambos mostrado, mas o sentimento experimentado escrevem o script, e O amor (L’amore,1948) ao assistir os filmes. Ele não utilizava o pla- dirigido por Rossellini, em que Fellini atua. no-sequência de forma regular e, assim, por Ele escreve conjuntamente com o Rossellini o não buscar retratar a realidade, misturava script de O milagre (Il miracolo,1948), a pri- o que estava vivendo com os sonhos. Como meira parte do filme. Com Rossellini cresce o afirma Calligaris3, para este diretor “o son- interesse de Fellini pelo cinema. Ele afirma: ho era, propriamente, o estilo da realidade”

Rossellini auxiliou na passagem de (CALLIGARIS, 2011, p. 1). A partir dessa um período nebuloso, abúlico, circular, ideia, Fellini via no sonho a criação de sím- para o estágio do cinema. Foi um en- bolos e imagens que sobrevivem no inconsci- contro importante, foram importantes os filmes que fiz com ele, mas como cois- ente coletivo. Por meio dessas imagens e sím-

as do destino, sem que de minha parte 1 Silvia Schwarzböck (2009) afirma que os filmes neorrealis- tas, por renunciarem à intensidade, renunciam a serem de houvesse vontade ou lucidez. Eu estava massa e populares. Federico Fellini, não seguindo essa cor- disponível para qualquer empreendi- rente, foi conhecido e aclamado. mento, e ele estava ali. Se depois tive 2Trecho de entrevista a Claude Baignères. Le Figaro Lit- téraire, 10 mar. 1973. dúvidas, problemas para aceitar a di- 3 reção do primeiro filme, foram àquelas Escritor, psicanalista e dramaturgo italiano radicado no Brasil. 76 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade bolos, cria modos de materializar a psicologia dolce vita, 1960), Oito e meio (Otto e mezo, coletiva e mostra os contextos e realidades 1963), A estrada da vida (La strada, 1954) e que ocorrem no período vivido por ele, mes- Amarcord (1973). mo que, às vezes, isso ocorra de forma indi- Amarcord reta. Este fenômeno pode ser percebido no filme Amarcord, em que Fellini critica o fas- Amarcord é um filme de 1973, dirigi- cismo. Dessa forma, aquele que seria o mais do por Federico Fellini. O título do filme é surreal diretor italiano apresenta também a uma expressão que se escreve Am’arcord e oportunidade para que olhemos para a nossa é traduzida como “eu me recordo”, a partir realidade. do dialeto da Romagna. Ainda assim, Fellini afirma que o filme não significa somente “eu Além disso, Fellini era um diretor que me recordo”, mas mais: “é uma espécie de fór- via o filme como um álbum, como se nele se mula cabalística, um chamariz, uma marca observassem várias imagens e instantes. de aperitivo” (FELLINI, 1973, p. 1) Apesar Esse diretor não acreditava que o filme de- de que a crítica considerou esse filme como via ser fiel ao roteiro: “Um filme é como uma autobiográfico, Fellini afirmou que não era viagem. Ela pode ser planejada, mas os lu- disso que se tratava. Em uma entrevista com gares só se descobrem mesmo no decorrer Valério Riva, para L’Espresso, em 1973, afir- da viagem” (FELLINI, 1973, p. 3). A contra- ma que: gosto escrevia roteiros, pois acreditava que Sempre fico um pouco magoado quan- era penoso ter que transformar em palavras do alguém diz que meus filmes são “au- o que, na verdade, deveria ser transportado tobiográficos”; isso sempre me parece diretamente da sua imaginação para o filme. uma redução, sobretudo quando auto- biográfico é compreendido no sentido A partir dessas ideias, Fellini cria de “anedótico”, que é mais frequente, como se alguém estivesse contando seus filmes. Este diretor dirigiu por um lon- suas recordações da escola (FELLINI, go período de tempo: desde 1950, dirigindo o 1973, p. 2). filme Mulheres e luzes (Luci del varietà), até Amarcord retrata a vida de pessoas 1990, dirigindo o filmeA voz da Lua (La voce que habitam uma pequena cidade provinci- della Luna). Três anos após esta produção, ana no interior da Itália. Essa cidade seria Federico Fellini falece. Ele foi um diretor a representação da cidade natal de Fellini: consagrado pela crítica, e alguns de seus Rimini. Sobre isso, ele afirma que já desejava filmes mais conhecidos são: A doce vida (La

Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 77 fazer um filme sobre sua cidade natal, e Am- panorama desta vida provinciana. Mesmo arcord seria a despedida de Rimini do dire- assim, as diferenças não são ignoradas, e po- tor. dem ser percebidos vários comportamentos heterogêneos, o que faz com que uma única “Rimini: o que é?”, pergunta Felli- identidade coletiva pareça dissonante. ni (1973). E ele responde: “Uma dimensão da memória (uma memória, diga-se de pas- Fellini não focou, em Amarcord, na sagem, inventada, adulterada, violada), so- criação de um enredo. Prosseguindo de for- bre a qual tanto especulei que nasceu uma es- ma parecida como no filme Roma (1972), ele pécie de embaraço” (FELLINI, 1973). Dessa opta por colocar, em sequência, uma série de forma, Fellini afirma que não lê a cidade de episódios. Isso possibilita a visão de um am- Rimini como um elemento objetivo e neutro, plo painel da vida provinciana, e não de uma mas sim como uma dimensão da memória. história particular. Dessa forma, retrata a

sexualidade, a religião, a educação e outros Esse filme, que retrata Rimini, é con- aspectos da vida dos provincianos. Ainda as- siderado por esse diretor como um tributo à sim, a narrativa não se esgota nesta cidade. infância, como um compilado de recordações. Ela retrata também questões mais amplas, Não somente um compilado de recordações como o fascismo na Itália. individuais, mas daquelas que se misturam com a dos outros e de todos e que não é pur- O dia a dia nessa cidade é apresen- amente verdade, mas também é inventada. tado pelos olhos de diversas personagens, Sobre a questão de memórias inventadas, como Titta, um adolescente; por um padre Fellini afirma que para ele não faz diferença que escuta confissões e incita pensamentos se as memórias são reais ou inventadas, o não convencionais; por mulheres que são fe- que importa é o sentimento expressado por tiches dos adolescentes – como Gradisca, a elas. cabeleireira da cidade; a dona da tabacaria e muitas outras personagens que também são O diretor não foca somente em uma apresentadas nesta obra. personagem principal. O que é retratada é

a vida das diferentes pessoas. Dessa forma, Amarcord e fascismo Fellini não se aprofunda psicologicamente Como afirma Robert Paxton, o fascis- em uma personagem, mas apresenta carica- mo foi a grande novidade política do século turas de diferentes pessoas, mostrando uma XX. Oficialmente, ressalta o autor, a pala- coletividade. E, dessa forma, Fellini faz um 78 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade vra fascismo nasceu em 1919, em Milão, in- do herói, 1936), produzido pelo Istituto Nazi- dicando ser uma “fraternidade de combate”. onale Luce, e dirigido por Corrado D’Errico, Aspectos de violência, nesse sentido, estão que trata a conquista da Etiópia como resul- presentes até mesmo na origem da palavra. tado de uma “missão civilizadora” empreen- O nome foi cunhado e os primeiros passos do dida pelos fascistas. fascismo foram dados na Itália. Ainda assim, Fellini não se considerava uma pessoa alega Paxton, outros movimentos semelhan- muito interessada em assuntos sobre políti- tes vinham surgindo na Europa pós-guerra ca, mas entendia também que o cinema pos- (PAXTON, 2004). O diretor italiano Federico sui um grande poder de influência sobre as Fellini, sobre essa temática afirma que: massas: O fascismo, ao menos no interior, era O cinema é um rito ao qual grandes no fundo muito bocó, bem idiota. Mes- massas se submetem de maneira servil, mo a sua prepotência era obtusa, uma portanto, quem faz cinema de consumo espécie de delírio carnavalesco, feito de determina o rumo da mentalidade e do insígnias, de pompa e de retórica, com costume, da atmosfera psíquica de popu- referências de todo improváveis, ao lações inteiras que todos os dias são visit- menos para nós, meninotes, à história adas por avalanches de imagens mostra- romana, aos imperadores romanos, às das nas telas (FELLINI, 1993, p. 2). legiões quadradas de César (FELLINI, 1984). Ele criticava os filmes feitos pelos re-

Susan Buck-Morss (2009) afirma que gimes fascistas, pois eram políticos e Fellini há um uso político do cinema. Ela, nesse entendia a influência de um filme fascista de sentido, comenta que o cinema, por ser uma massa. Sobre a relação entre filmes políticos, arte de massa, causa um grande impacto nas afirma: “não há nada mais feio e soturno – populações, podendo manipulá-las e aliená- apenas por ser ineficaz e inútil – do que um las. Isso pode ser percebido com o uso dos mau filme político” (BONDANELLA, 2002, p. filmes pelos regimes fascistas. Esses regimes 118). investiram fortemente nos meios de comuni- Fellini criticava os filmes políticos por cação de massas.4 Um exemplo de cinema estes não apresentarem a menor possibili- que mostrava as ideias fascistas é o filme dade de mudança, de intervenção. Ele apon- italiano Il cammino degli eroi (O caminho ta, porém, que

4 Um exemplo disso é o investimento fascista no cinema neorrealista, pois acreditavam que esses diretores mostrar- Se, ao contrário, por política en- iam o fascínio e beleza do fascismo. O que aconteceu foi algo oposto, pois os neorrealistas mostravam uma realidade tende-se a possibilidade de viver junto, miserável da Itália. Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 79 de agir em uma sociedade de indivídu- pouco humanas demais. A província de os que tenham respeito por si mesmos Amarcord é uma província na qual todos e que saibam que a própria liberdade nós precisamos reconhecer a nos mes- termina onde começa a dos outros, me mos na ignorância que nos ofuscou, uma parece que meus filmes são políticos, já grande ignorância e confusão de conceitos que falam destas coisas, talvez denun- (FELLINI, 1984, p. 186). ciando sua ausência, representando um mundo que lhe é próprio. Acredito Amarcord é representação de um tem- que todos eles tentam desmascarar o po em que todos se reconhecem, afirma Felli- preconceito, a retórica, o esquema, as ni, na ignorância, na confusão. Dessa forma, maneiras aberrantes de um certo tipo de educação e do mundo que ela produ- a partir de Amarcord, o fascismo mostra-se ziu (FELLINI, 1984, p. 184). sobrevivente como a maneira de se ver a vida a partir de um ponto coletivo. Fellini aborda Assim, Fellini demonstra aconteci- o fascismo de uma perspectiva nativa, explo- mentos históricos em seus filmes. Em Ama- rando os efeitos deste regime no interior de rcord, Fellini não trata do fascismo a partir uma pequena cidade provinciana: de eventos históricos em si, mas opera com

diversos signos que se referem a ele, não bus- A cidadezinha que eu inventei rep- resenta a eterna província da alma, o lu- cando ver os acontecimentos fascistas com gar em que a ausência da cultura faz a um olhar externo. ligação entre todos os defeitos coletivos. O provinciano crê na autoridade e a busca; Federico Fellini acreditava que teria deseja para si a figura do protetor; o pai, o vivido de forma mais adequada se tivesse partido, o ministro. O provinciano nunca vivido em eras diferentes, onde ele teria cresce, sua ambição é permanecer na in- fantilidade (FELLINI, 1984, p. 191). achado apoio para sua arte sem ter que se preocupar com a ideologia. Amarcord, um Fellini associa o fascismo como um es- filme que critica abertamente o fascismo, tágio de minoridade, de algo que não dese- pôde ser produzido em 1973, uma época já ja crescer. Assim como os humanos passam distante desses regimes totalitários. Ainda pela adolescência na vida pessoal, o fascis- assim, este diretor afirma que: mo seria a adolescência da vida nacional. Isso implicava em um desejo de não querer Não se deve encarar o fascismo com uma certa pretensão de direito, ou seja, de assumir responsabilidades e, como era um fora, como acontece na maioria dos filmes estado reprimido, repressor e confuso, se tor- políticos hoje em dia. Julgamentos distan- nava, por isso, extremamente agressivo. ciados, diagnósticos assépticos, fórmulas sintéticas e cabais me parecem sempre Em Amarcord podem ser percebidos 80 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade diversos signos que criticam o fascismo: a a espera de algo. Fellini não explica do que partir dos quarenta minutos do filme até os se trata, e somente quando um enorme navio 46 minutos há a apresentação de um desfile (Rex) aparece que se percebe o que está acon- feito por Mussolini nessa pequena cidade tecendo. Esse navio representaria a Marinha, provincial. Juntamente com o aparecimen- da qual se orgulhava a Itália fascista. Essa to desta figura totalitária, há a presença de passagem ajusta-se ao comentário de Ador- uma forte fumaça. Essa fumaça é a fuma- no: “Não há nada de novo na descoberta de ça da ignorância, que encobria os italianos que o sublime recobre algo baixo. É assim neste período. que vítimas potenciais são mantidas em or- dem” (ADORNO apud MARTINS, 1993, p. Outro aspecto de crítica ao fascismo 113). Desta forma, Fellini exprime, através seria em relação à repressão sexual deste re- da admiração do Rex, a forma que o fascismo gime. Isso é demonstrado quando Titta, um utilizava para o controle: o fascínio. adolescente que deseja diversas mulheres, após uma cômica cena de relação com a dona Federico Fellini era contrário aos re- da tabacaria (1 hora e 39 minutos – 1 hora gimes totalitários e afirma que “não se pode e 42 minutos), fica tão chocado e aterroriza- lutar contra o fascismo sem identificá-lo com do que fica doente. Essa seria uma forma de tudo aquilo que há em nós de estúpido, sub- Fellini afirmar que esta repressão sexual de- misso e arbitrário” (FELLINI, 1973, p. 4). strói a sanidade da pessoa. Considerações finais Outro exemplo disso seria com o tio de Como apresentado, Fellini, um autor Titta, Teo, que possui problemas mentais e que não se considerava como uma pessoa que, em uma cena (1 hora e 14 minutos), sobe política, mostra perspectivas e contextos em uma árvore e grita desesperadamente históricos em seus filmes. A partir do cinema “Voglio una donna!” (“Eu quero uma mul- pode-se observar a opinião de pessoas que, her!”). Ele se recusa a descer e só conseguem apesar de terem vivido em um período de ex- retirá-lo da árvore após chamarem os médi- trema direita, ainda assim possuíam opiniões cos. Uma enfermeira anã, então, faz com que totalmente diferentes das que eram estabele- Teo desça. cidas. Fellini, por meio desta arte, ainda que

Um outro momento que mostra a coletivi- em um período posterior, pôde externar sua dade e a referência ao fascismo é quando a contestação e críticas a tal regime totalitário. população se dirige ao mar, no meio da noite, Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 81 Como afirma Lina Wertmüller:5 venenar e que, por isso mesmo, deve ser liberado das sombras, intrigas, dos Federico proveu os mais significantes vínculos ainda operantes, um passado traços da nossa história nos últimos que deve ser conservado como a mais vinte anos. Ele declara que não está clara noção de nós mesmos, de nossa preocupado com política e não está in- história, que deve ser assimilado para teressado em tempos fixos e disposições que vivamos o presente com mais con- ideológicas. Mas ele, eu acredito, é o sciência (FELLINI, 1984, p. 112). mais político e sociológico dos diretores. (WERTMÜLLER apud BONDANEL- Assim, Fellini afirma a importância de não LA, 2002, p. 118). se esquecer do passado, do fascismo, desse

Amarcord é um filme que traz diver- período considerado como um período de sos aspectos da vida em uma pequena cidade ignorância, de confusão. É importante ter provinciana. O cotidiano, os gestos simples e noção desse passado, para assim refletir no

as crenças mais ingênuas de uma população, presente. vistas em coletivo, não ficam alheios ao con- Se observássemos somente os docu- texto universal do fascismo e da repressão. mentos ditos como verdadeiros e oficiais, não A suposta identidade coletiva e única apre- se imaginaria a possibilidade de um pensa- sentada pelo fascismo, para Fellini, é disso- mento oposto à ordem estabelecida. Desta nante, pois para ele ainda que a coletividade forma reafirmamos a importância, para a exista, as diferenças não conseguem ser apa- história, do estudo de outros tipos de docu- gadas. O fascismo apresenta a ideia de uma mentos e a importância do estudo histórico nação com um cidadão modelo, em que todos do cinema de Fellini, que possuía e expressa- deveriam ser iguais. Fellini, porém, apresen- va posicionamentos e críticas em seus filmes ta justamente o oposto. que, além disso, mostram aspectos culturais

Fellini, sobre Amarcord e sobre o fas- e sociais do período por ele retratado. cismo, afirma que esse filme mostrava a

Necessidade da separação de alguma coisa que pertenceu a nós, na qual nascemos, e vivemos, que nos condi- cionou, adoentou, que nos deixou de cama, em que, de forma perigosa, tudo se confunde do ponto de vista emocio- nal, um passado que não deve nos en-

5 Cineasta italiana nascida em 1928. 82 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade Referências bibliográficas

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84 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 85 Aspectos de funcionamento e infraestrutura dos Con- selhos de Saúde a partir do Sistema de Acompanham- ento dos Conselhos de Saúde (SIACS) Marcela Gomes Ferreira Daniela Alba Nickel Pós-graduada em Fisioterapia em Terapia Intensiva, Doutora em Saúde Coletiva, Docente no Programa de Mestranda no Programa de Pós-graduação em Saúde Pós-graduação em Saúde Coletiva na Universidade Fed- Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina. eral de Santa Catarina. Contato: [email protected]. Contato: [email protected].

Resumo O objetivo do estudo foi verificar o registro dos dados e descrever aspectos de funcionamento e infraestrutura dos conselhos de saúde nas regiões do Brasil. Trata-se de um estudo transversal descritivo, com a utilização de dados secundários do Sistema de Acompanhamento dos Consel- hos de Saúde (SIACS) de 2012 a 2017. Foi realizada uma análise descritiva quanto à situação paritária, existência de sede própria, dotação orçamentária, capacitação dos conselheiros e tipo de acesso à internet dos conselhos municipais e estaduais de saúde. Para organização dos dados, utilizou-se o Microsoft Excel. O total de conselhos de saúde é de 5.631, desses 82,7% es- tão cadastrados no sistema. Quanto à infraestrutura e funcionamento dos conselhos de saúde, a maioria não possui sede própria e dotação orçamentária, o que traz preocupação quanto à sua autonomia. Em todas as regiões, aproximadamente 38% dos conselhos municipais relatam não realizar a capacitação de seus conselheiros. 74% dos conselhos municipais têm acesso à internet banda larga. Existem desafios relacionados a esse sistema de informação, como a ne- cessidade de incentivo para o cadastramento e atualização dos dados dos conselhos, bem como o formato de extração das informações. Palavras-chave: Conselhos de Saúde. Sistemas de informação em saúde. Acesso à Infor- mação.

ORGANIZATIONAL AND INFRASTRUCTURE OF HEALTH COUNCILS THROUGH THE HEALTH COUNCIL FOLLOW-UP SYSTEM DATA (SIACS) Abstract The aim of the study was to verify the data records and to describe aspects of the functioning and infrastructure of health councils in the regions of Brazil. This is a cross-sectional descrip- tive study, using secondary data from the Health Council Follow-up System (SIACS) from 2012 to 2017. A descriptive analysis was carried out regarding the parity situation, existence of workplace, budget allocation, counselors training, and type of internet access by municipal and state health councils. Microsoft Excel was used to organize the data. The total number of health councils is 5.631, of which 82,7% are registered in the system. Regarding the infra- structure and functioning of health councils, the vast majority do not have a workplace and budget allocation, which raises concerns about their autonomy. In all regions, approximately 38% of municipal councils do not train their councilors. A percentage of 74% of municipal health councils have access to broadband internet. There are challenges related to this infor- mation system, such as the need to encourage the registration and updating of council data, as well as the format for extracting information. Keywords: Health Councils. Health information systems. Access to information. 86 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade Introdução conselhos de saúde (RICARDI; SHIMIZU; SANTOS, 2017). A 8a Conferência Nacional de Saúde, real- izada em 1986, é considerada um momento Essas instâncias se constituem como espaços histórico para a democratização, pois a partir públicos de deliberação coletiva sobre as di- dela houve maior visibilidade da discussão retrizes, estrutura, organização e ações rel- sobre a concepção ampliada da saúde, sendo acionadas ao sistema de saúde. Os conselhos a saúde compreendida como resultante das de saúde têm caráter permanente e deliber- condições sociais e como direito da população. ativo, e devem ter composição paritária com Foi a primeira conferência na qual houve ab- representação de 50% de usuários, 25% de ertura para participação da comunidade, re- trabalhadores da saúde e 25% de gestores e fletindo o momento de intensa batalha políti- prestadores de serviços (VILAÇA; CAVAL- ca pela democratização da saúde, na qual o CANTE; MOURA, 2019). O seu campo de movimento de reforma sanitária brasileiro atuação inclui a formulação de estratégias e trouxe à tona seus ideais para a reestru- o controle da execução da política de saúde, turação da saúde, e foram estabelecidas as inclusive nos aspectos financeiros, sendo as bases para o Sistema Único de Saúde (SUS) decisões homologadas pelo poder legalmente (ORTIZ; LEVITTE, 2017). constituído na esfera correspondente (BRA- SIL, 1990). O controle social, no sentido de a sociedade civil exercer controle sobre as ações do Esta- A paridade é essencial na composição dos do e a participação da comunidade nas políti- conselhos para garantir a sua representativ- cas públicas, esteve presente como preceito idade. No entanto, ela não vinha sendo cum- fundamental para um Estado democrático prida, e foi necessário recorrer à expedição que estava sendo gestado naquele momento de legislações para a sua aplicação (CRUZ, (BITENCOURT; BEBER, 2015). 2011). No “Acórdão nº. 1660/2011”, o Tribu- nal de Contas da União (TCU) determinou Posteriormente à Constituição de 1988, a que o Ministério da Saúde em articulação participação da comunidade foi definida com o Conselho Nacional de Saúde (CNS) de- como uma das diretrizes do Sistema Único veriam estabelecer formas de identificar os de Saúde (SUS), sendo assegurada pela Lei municípios que não cumpriam as disposições Federal nº 8.142/90. A legislação assegura legais quanto à paridade. O repasse de recur- duas formas institucionalizadas de partic- sos financeiros foi condicionado àqueles es- ipação da comunidade: as conferências e os Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 87 tados e municípios cujos conselhos de saúde al., 2018). possuíssem o caráter paritário conforme a Com a finalidade de identificar o cumprimen- Resolução nº 333/2003 (retificada pela Res- to das disposições normativas de paridade olução CNS nº 453/ 2012) (BRASIL, 2013, nos conselhos de saúde, foi criado o Siste- p.4). ma de Acompanhamento dos Conselhos de Dessa forma, há necessidade de meios para Saúde (SIACS) no ano de 2012. A ferramen- acompanhar e monitorar o funcionamento ta serviria para apurar o cumprimento das desses espaços de participação da comuni- diretrizes estabelecidas para os Conselhos de dade, buscando maior transparência de in- Saúde, além de facilitar o acesso a documen- formações. A transparência é considerada tos normativos, como leis, decretos e portar- fundamental para o controle social, pois ias dos conselhos, e de dados relacionados à quanto mais informações a comunidade têm dotação orçamentária (BRASIL, 2014).

sobre os órgãos públicos, mais facilitado se O SIACS é um sistema de informação dos torna o seu exercício (ROSA et al., 2016). órgãos de controle social da saúde. Tem por Um dos critérios da administração pública objetivo agregar informações e dados dos con- é a publicidade de informações, que busca a selhos municipais e estaduais de saúde. Os transparência nos atos do governo, visando membros dos conselhos são os responsáveis maior controle e fiscalização das instâncias pelo preenchimento dos dados e pela atual- públicas, sendo o direito de acesso à infor- ização periódica deles (BRASIL, 2013). mação assegurado pela Lei Federal nº 12.527, Apesar de a implementação do SIACS não de 2011 (OLIVEIRA et al., 2018). Com isso, ser recente, há escassez de estudos relaciona- a utilização de sistemas de informação em dos a esse sistema, o que restringe também saúde (SIS) vem sendo incentivada, porque o conhecimento da situação dos conselhos de contribui para a melhoria da qualidade das saúde no Brasil. O objetivo do presente arti- ações em saúde e a sua transparência. At- go é verificar o registro dos dados e descrever ravés desses sistemas ocorrem a coleta, pro- os aspectos de funcionamento e infraestrutu- cessamento, armazenamento e distribuição ra dos conselhos municipais e estaduais de informações para a tomada de decisões. Fa- saúde nas regiões do Brasil, a partir do SI- cilitando, dessa maneira, o planejamento, a ACS. coordenação de ações, o monitoramento e a avaliação do sistema de saúde (BITTAR et

88 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade Metodologia dos os dados da situação paritária dos CMS e CES, segundo as regiões do Brasil. Os itens Trata-se de um estudo transversal descri- de funcionamento e infraestrutura (Quadro tivo, com a utilização de dados secundários 1) foram analisados por tipo de conselho do SIACS. Os estudos transversais descre- (CMS ou CES) e regiões do Brasil. A orga- vem uma situação ou fenômeno em um de- nização, o processamento dos dados e a sua terminado momento do tempo, sendo um apresentação descritiva em tabelas ocorre- corte instantâneo que se faz em relação às ram no software Microsoft Excel® 2007. Os variáveis que se deseja estudar (HOCHMAN itens II, V e VI da categoria Funcionamento et al.,2005). Quanto aos estudos descritivos, e infraestrutura não aparecem na tabela di- são aqueles em que o pesquisador apenas sponível para download no sistema. Os de- registra e descreve os fatos observados, sem mais itens têm os valores apresentados nas interferir neles (PRODANOV; FREITAS, tabelas dos resultados. 2013).

Quadro 1- Variáveis da categoria Funcionamen- O acesso ao sistema se deu pela página to e infraestrutura, SIACS, Brasil, 2012-2017. “http://conselho.saude.gov.br/web_siacs/in- Variáveis do item Funcionamento e in- fraestrutura dex.html”, clicando posteriormente em “de- I – Existência de sede própria monstrativo” e “Clique para acessar em ar- II– Instalações do Conselho de Saúde perten- centes ao governo municipal/ estadual quivo Excel”. O banco de dados obtido nesse III– Existência de dotação orçamentária própria procedimento aparece em forma de planilhas IV – Realização de capacitação para os consel- heiros do Microsoft Office Excel®, com todos os da- V– Itens presentes no Conselho de Saúde: Sec- dos reunidos, sem opção de refinamento de retaria executiva estruturada, transporte para o conselho de saúde, computadores, impresso- ra, máquina fotográfica, filmadora, televisão, informações. O sistema possui informações datashow, tela de projeção e acesso à internet divididas em cinco categorias: (a) dados do VI – Número de computadores instalados no Conselho de Saúde Conselho; (b) composição atual; (c) presi- VII– Tipo de acesso à internet dente e secretário; (d) funcionamento e in- Fonte: SIACS, coletado em 05/06/2018. fraestrutura; e (e) outros dados. Resultados

Foram utilizadas as informações da catego- Segundo o SIACS, havia, até o período da ria (b) composição atual e (d) funcionamen- última atualização (27/11/2017), 5569 CMS, to e infraestrutura no período de 2012-2017 26 CES e 1 conselho do DF, neste estudo (data da última atualização: 27/11/2017). Na considerado como um CES. Destes, estão ca- categoria composição atual foram analisa- Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 89 dastrados no sistema 4.630 CMS (83%) e 27 (22,7%). CES (100%). A região norte possui 450 mu- Quanto ao caráter paritário de conselheiros nicípios, destes 103 (22,8%) não estão regis- conforme a legislação atual (Resolução CNS trados no sistema; a região nordeste possui nº 453/ 2012), com 50% representativos de 1794 municípios, destes 365 (20,3%) não es- usuários, 25% dos trabalhadores da área tão registrados; a região sudeste possui 1668 de saúde e 25% do governo e prestadores de municípios e 477 (28,6%) não registrados; a serviços, 21 (78%) dos CES e 3464 (75%) dos região sul possui 1161 municípios e 64 (5,5%) CMS declaram estar de acordo com a norma- não registrados; e a região centro-oeste pos- tiva (Tabela 1). sui 467 municípios e 106 não registrados

Tabela 1- Situação paritária dos conselhos de saúde, segundo tipo de conselho e região do Brasil, 2012 a 2017.

Fonte: Autoras, SIACS, coletado em 05/06/2018, última atualização: 27/11/2017.

Em relação à sede própria, aproximadamente a região Sul e a Sudeste apresentam o maior 70% dos CMS e 37% dos CES de saúde no percentual (78%; 50%) de CMS e CES sem Brasil não possuem sede própria, sendo que sede própria, respectivamente (Tabela 2).

90 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade Tabela 2- Percentual de conselhos de saúde que possuem sede própria, segundo as regiões do Brasil e nível de gestão, 2012 a 2017.

Fonte: Autoras, SIACS, coletado em 05/06/2018, última atualização: 27/11/2017.

Para a dotação orçamentária, as regiões que apresenta os menores percentuais de con- possuem maiores percentuais de conselhos selhos de saúde com dotação orçamentária de saúde com orçamento próprio são a região própria é a região Sul, tanto para os CMS Norte, no caso dos CMS (53%), e a região (30%) quanto para os CES (33%) (Tabela 3). Nordeste, para os CES (90%). E a região que

Tabela 3 - Percentual de conselhos de saúde com dotação orçamentária própria, segundo as regiões do Brasil e nível de gestão, 2012 a 2017.

Fonte: Autoras, SIACS, coletado em 05/06/2018, última atualização: 27/11/2017.

Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 91 Na análise da capacitação de conselheiros, os locais que apresentam maior percentual em todo Brasil, em torno de 40% dos CMS e de conselhos que não realizam capacitação 15% de CES registram não realizar capaci- são o Nordeste, que apresenta 45% para os tação dos conselheiros. Na divisão regional, CMS, e o Sul com 33% de CES (Tabela 4).

Tabela 4 - Percentual de conselhos de saúde que realizam capacitação de conselheiros, segundo as regiões do Brasil e nível de gestão, 2012 a 2017.

Fonte: Autoras, SIACS, coletado em 05/06/2018, última atualização: 27/11/2017.

Já em relação ao tipo de acesso à internet, a net banda larga, sendo no total 74% para os maior parte dos conselhos têm acesso à inter- CMS e 96% para os CES (Tabela 5).

Tabela 5 - Tipo de acesso à internet dos conselhos de saúde, segundo as regiões do Brasil e nível de gestão, 2012 a 2017.

Fonte: Autoras, SIACS, coletado em 05/06/2018, última atualização: 27/11/2017.

92 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade Discussão mas de acesso, também devem ser averigua- dos (PINHEIRO, 2014). O CNS conclamou todos os conselhos de saúde a estarem cadastrados no SIACS até Outra hipótese para o não cadastramento é a junho de 2012, no intuito de realizar uma sensação de que o esforço de incluir os dados análise da composição e do cumprimento das no sistema de informação não trará um retor- normativas. Contudo, mesmo após cinco anos no ou benefício para os conselhos. O conhec- de existência do sistema, ainda há 17% de imento é alimentado pelo acúmulo de infor- conselhos não cadastrados. Investigar os mo- mações, e o valor da informação é intrínseco tivos da ausência de cadastramento desses à capacidade que ela tem de alterar o estado conselhos possibilitaria tanto traçar estraté- do conhecimento (BRASIL, 2001). Por isso, o gias para aumentar a adesão ao sistema de processamento e o estímulo à utilização dos informação quanto qualificar as informações dados deve ser uma ferramenta de incentivo em relação à sua atualização e sensibilidade. à adesão aos sistemas de informação.

Um motivo possível para o percentual de Os sistemas de informação são também me- conselhos não cadastrados é o acesso aos re- canismos para uma maior transparência cursos digitais. Apesar de 74% dos conselhos de informação. Conforme a Lei Federal Nº possuírem acesso à internet banda larga, 12.527 de 2011, a transparência da infor- ainda existe exclusão digital por limitações mação é obrigatória em todos os órgãos e en- de acesso. A exclusão digital não ocorre so- tidades públicas, sendo assegurados o amplo mente pela falta de recursos físicos de tec- acesso e a divulgação. nologia, mas também pela ausência de ca- Para Bittencourt e Reck (2018), o controle so- pacitação das pessoas para utilização dos cial só é possível quando há disponibilidade recursos disponíveis. Carvalho (2010) afirma de informação e comunicação efetiva da so- que a inclusão digital significa a apropriação ciedade civil com a esfera pública. No caso de novas tecnologias e, sobretudo, condições dos conselhos, a transparência na informação sociais para o seu uso. Portanto, verificar a facilita o controle social quando a sociedade exclusão digital através de número de com- civil tem acesso aos dados e os utiliza para putadores ou pessoas com acesso à internet é acompanhar e participar das decisões públi- insuficiente, pois outros fatores como o tempo cas. Ainda, podem facilitar a organização dos disponível para uso, a qualidade do acesso, a conselhos através do acompanhamento da atualização de hardwares, softwares e siste- sua implantação, formas de funcionamento, Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 93 ações realizadas, averiguação da paridade, para os conselhos de saúde, principalmente acesso a recursos, entre outros. A paridade porque podem ocorrer desvios políticos na assegura a participação do usuário nas de- escolha de conselheiros que representam cisões dos conselhos de saúde. Segundo os os usuários e, desta forma, acabam por não dados apresentados, 75% dos conselhos afir- ser verdadeiramente representativos (MAR- mam estar com o caráter paritário recomen- TINS et al., 2008). Labra e Figueiredo (2002) dado pela Resolução do CNS nº 453 de 2012 também argumentam que a denominação (50% de usuários, 25% de trabalhadores de “usuário” é vaga, sendo possível encontrar saúde e 25% de prestadores de serviços). A “falsificações” na representação, trazendo existência de conselhos com caráter paritário efeitos indesejados para a legitimidade do diferente do proposto pode ocorrer diante da conselho. dificuldade de participação dos segmentos. Há dificuldades quanto à participação dos Outro fator que pode influenciar a não ade- conselheiros nas reuniões. No estudo de quação dos conselhos é a falta de especificação Gomes et al. (2018), das reuniões analisa- numérica quanto à paridade na Lei federal das em um CMS, apenas 29% apresentaram 8.142 de 1990. A quantificação explícita está quórum suficiente. As ausências foram prin- apresentada em resoluções subsequentes cipalmente de representantes de entidades do CNS, publicadas em 1992, 2003 e 2012 da sociedade civil, sendo relatada pelos par- (Resolução CNS nº 33/1992; nº 333/2003; nº ticipantes a necessidade de escolha de rep- 453/2012). resentantes com disponibilidade para ir às

O fato de a paridade ser obrigatória não tem reuniões. Igualmente, os representantes dos garantido o seu cumprimento. A paridade usuários, mesmo presentes nas reuniões, está condicionada à disponibilização de re- manifestaram falta de conhecimento e de in- cursos para os conselhos. Pode-se pressupor formações, o que prejudicou sua capacidade que a não disponibilização de recursos para de participar das discussões. os conselhos que estivessem fora do estabe- Considerando-se que os dados dos sistemas lecido acabaria favorecendo a adequação. No de informação podem auxiliar na gestão, entanto, 10% dos conselhos municipais ainda transparência e direcionamento de políti- apresentam caráter não paritário, segundo cas públicas, alguns países investem recur- os dados do SIACS. sos relevantes em atividades para garantir

Esse tema apresenta-se como um dos desafios a qualidade dos dados, como a capacitação

94 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade periódica dos profissionais e o monitoramen- seleção e preparação de material e a identifi- to dos dados disponibilizados nos sistemas cação de técnicos e parceiros (universidades, (LIMA et al., 2009). Segundo Gouveia e Rani- núcleos de Saúde, escolas de Saúde Pública), to (2004), o valor da informação depende da que terão o papel de agentes transmissores sua utilização, exatidão e detalhamento. Des- de informações e facilitadores das discussões sa forma, nem toda informação tem o mesmo sobre os temas. A garantia de uma carga valor e por isso devem ser apresentadas as horária que possibilite a ampla discussão dos prioridades para o seu tratamento, comuni- temas também é importante (BRASIL, 2002). cação e armazenamento. A informação dá Segundo os resultados da presente pesqui- suporte à decisão na medida em que as ativi- sa, 58% dos conselhos municipais afirmam dades rotineiras passam a utilizar os dados e realizar capacitação, já nos conselhos estad- informações disponíveis e gerar novos dados. uais esse número chega a 85%. No caso dos

A utilização de informações em saúde pelos CMS, o percentual dos que não realizam ca- diversos atores é essencial para a construção pacitação é 40%, o que gera dificuldades na do conhecimento e para a elaboração de es- atuação efetiva dos conselhos. Estudos têm tratégias de enfrentamento dos problemas. apontado o desconhecimento dos conselheiros Nesse sentido, uma fragilidade encontrada sobre seu papel, sobre o Regimento Interno, por Pinheiro et al. (2016) é a falta ou o núme- Plano Municipal de Saúde, além da dificul- ro reduzido de qualificações para profission- dade de compreender o Relatório de Gestão ais de saúde para a utilização dos sistemas de e realização de fiscalização financeira, sendo informação. Os autores refletem a importân- estes, grandes desafios para o funcionamento cia da formação tecnológica que permita o dos conselhos de saúde. Considerando-se que acesso e fortaleça as competências para o uso só se pode controlar aquilo que se conhece, criativo e inovador das informações. torna-se necessário investir em capacitação e educação continuada (COTTA et al., 2009; A qualidade da participação perpassa pela LISBOA et al., 2016). capacitação de conselheiros, sendo impor- tante também que se discutam as melhores Dessa forma, não basta apenas a presença formas de realização dessas capacitações. O física de usuários, mas fornecer informações Ministério da Saúde sugere que a capacitação e conhecimentos sobre o funcionamento das seja realizada por meio de programas de ed- estruturas estatais, e, no caso dos consel- ucação continuada, devendo-se considerar a hos, a compreensão sobre suas funções como

Acesso livre n.11 | Julho - Dezembro de 2019 95 conselheiros e o saber necessário para real- precisam, por exemplo, de lugar para se es- izá-las. Somente assim, se poderá partici- tabelecer, funcionários para estruturar seus par de forma a exercer uma cidadania ativa, trabalhos e organizar documentos, recursos e não uma cidadania controlada e apática para gastos cotidianos, entre outros. Ess- (GOHN, 2006). es elementos são importantes para o bom funcionamento dos conselhos, cabendo-lhes Souza (2012) comparou dados encontrados tarefas estratégicas como a apreciação inicial no SIACS sobre capacitação de conselheiros e a triagem de assuntos que serão debatidos, com os de uma pesquisa realizada pelo for- a elaboração de pareceres e a tomada de de- mulário do SUS, efetuada pela Coordenação cisões administrativas e normativas. Silva et do Programa de Inclusão Digital (PID) no al. (2012) destacam que a disponibilização de ano de 2011. No SIACS 93% dos Conselhos estrutura física, salas para reuniões, equi- Estaduais de Saúde referiam realizar capac- pamentos, mobiliário, transporte, bem como itação de conselheiros, enquanto na pesquisa recurso financeiro para manutenção e ações do PID 41% apresentaram um Programa de do conselho, auxiliam na sua organização e Educação Continuada para os conselheiros. funcionamento, favorecendo assim a tomada No estudo do PID, levou-se em conta se ess- de decisão para a participação social. es conselhos haviam estruturado e planejado as suas formas de educação continuada, me- Quanto ao manuseio do sistema, algumas di- diante apresentação desses planejamentos, ficuldades foram encontradas durante esta diferentemente do SIACS, no qual o critério pesquisa. Silva Junior (2016) relata a dificul- de avaliação de realização de capacitação dade de obtenção de dados no SIACS, onde acaba sendo pautado na opinião de cada con- não foi possível realizar extração de todos selho. Uma sugestão é que se elabore no SI- os dados existentes no sistema. Houve lim- ACS uma forma de comprovar como são real- itações de informações prestadas em campos izadas as capacitações. como a existência de comissões, a periodici- dade das informações e os equipamentos que A grande maioria dos conselhos cadastrados o conselho possui, corroborando nesse último no SIACS não possui sede ou dotação orça- quesito com a dificuldade encontrada no pre- mentária próprias. Moreira e Escorel (2009) sente artigo. discutem que o grau de autonomia das in- stâncias está refletido na sua organização, Encontrou-se também incompletude no principalmente nas instâncias internas, que preenchimento de dados, falta de dados na

96 Autoritarismos, nacionalismos e a ascenção das direitas na atualidade tabela disponível para download, impossib- possui sede própria e dotação orçamentária, ilidade de selecionar informações específicas o que traz preocupação quanto à sua autono- para mais de um conselho ou por temporal- mia. A educação continuada parece já estar idade. Os dados são apresentados em uma sendo realizada pelos conselhos, o que é de única tabela, o que dificulta a análise e o cru- fundamental importância para que os consel- zamento de informações, onde o usuário do heiros entendam o seu papel, conheçam a bu- sistema precisa fazer todas as divisões e es- rocracia e o funcionamento dos órgãos e das pecificações manualmente, divergindo do que políticas públicas, para que, assim, saibam acontece em outros sistemas de informação como realizar bem sua função. do Ministério da Saúde como os do departa- O formato de extração das informações no mento de informática do SUS (DATASUS) SIACS pode ser melhorado, à exemplo do que têm uma plataforma de acesso mais fa- DATASUS, onde o usuário do sistema de in- cilitada. formação pode criar sua tabela com os dados

Considerações finais desejados. Por fim, apesar de terem sido en- contradas dificuldades no manuseio do siste- O sistema de informação apresenta desafios ma, há que se reconhecer o mérito do SIACS, a serem superados. Há necessidade de in- visto que é um importante avanço no sentido centivo para o cadastramento e atualização da transparência e difusão das informações das informações. O adequado processamento dos conselhos de saúde. das informações é um ponto para que elas se convertam em recurso na tomada de decisão, Financiamento: “O presente trabalho foi ações de políticas públicas e transparência realizado com apoio da Coordenação de Aper- das atividades. feiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento Quanto à infraestrutura e funcionamento 001.” dos conselhos de saúde, a grande maioria não

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