<<

Revista Brasileira

o Fase VII JANEIRO-FEVEREIRO-MARÇO 2003 Ano IX N 34

Esta a glória que fica, eleva, honra e consola. ACADEMIA BRASILEIRA REVISTA BRASILEIRA DE LETRAS 2003

Diretoria Diretor – presidente João de Scantimburgo Ivan Junqueira – secretário-geral – primeira-secretária Conselho editorial – segundo-secretário , , Evanildo Bechara – tesoureiro , Oscar Dias Corrêa

Membros efetivos Produção editorial e Revisão Affonso Arinos de Mello Franco, Nair Dametto Alberto da Costa e Silva, Alberto Venancio Filho, Antonio Olinto, , Assistente editorial Arnaldo Niskier, Candido Mendes de Frederico de Carvalho Gomes Almeida, Carlos Heitor Cony, Carlos Nejar, , , , Projeto gráfico Evanildo Cavalcante Bechara, Victor Burton , Pe. Fernando Bastos de Ávila, Geraldo Editoração eletrônica França de Lima, Ivan Junqueira, Estúdio Castellani , João de Scantimburgo, João Ubaldo Ribeiro, José Sarney, Josué Montello, Lêdo Ivo, Dom Lucas Moreira ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS Neves, Lygia Fagundes Telles, Marcos Av. Presidente Wilson, 203 – 4o andar Almir Madeira, Marcos Vinicios Vilaça, – RJ – CEP 20030-021 Miguel Reale, Murilo Melo Filho, Nélida Telefones: Geral: (0xx21) 2524-8230 Piñon, Oscar Dias Corrêa, , Fax: (0xx21) 2220.6695 , Raymundo Faoro, E-mail: [email protected] , Sábato Magaldi, site: http://www.academia.org.br Sergio Corrêa da Costa, Sergio Paulo Rouanet, Tarcísio Padilha, As colaborações são solicitadas. Zélia Gattai Amado. Sumário

EDITORIAL A importância das revistas ...... 5 CELSO FURTADO Atividades da Academia ...... 9 MIGUEL REALE A ABL e a consciência nacional...... 11

PROSA ARNALDO NISKIER O educador Carneiro Leão ...... 15 SERGIO PAULO ROUANET A volta de Deus ...... 21 EVANILDO BECHARA Correção e exemplaridade de língua: suas repercussões no estudo e ensino da língua portuguesa ...... 31 LEODEGÁRIO A. DE AZEVEDO FILHO O caminho do filólogo Gladstone Chaves de Melo ...... 53 J.O. DE MEIRA PENNA Praxeologia da ação humana ...... 57 SÍLVIO CASTRO A tradução italiana de Os sertões ...... 77 VERA LÚCIA DE OLIVEIRA A tradução de em italiano . . . 103 PER JOHNS Dioniso crucificado ...... 125 BENEDICTO FERRI DE BARROS Os teatros clássicos do Japão ...... 143 M. PIO CORRÊA O trágico destino de duas princesas ...... 157 MAURO SALLES O centenário de Cecília Meireles ...... 161 ILDÁSIO TAVARES A espuma do fogo – A ponta do iceberg nejariano...... 191

POESIA CARLOS NEJAR Poemas ...... 197 PÉRICLES EUGÊNIO DA SILVA RAMOS Poemas...... 199 PAULO BOMFIM Sonetos e poemas ...... 213 SÍLVIO CASTRO Lua de 22 de dezembro de 1999...... 221 SERGIO DUARTE Poemas traduzidos ...... 225

GUARDADOS DA MEMÓRIA URBANO DUARTE A gruta do Inferno (crônica) ...... 229

Editorial

A importância das revistas

Editorial

o mundo inteiro, sem exceção, até mesmo nos países minús- N culos, estão à venda nas bancas de jornais as revistas de vários países. São diversas e diferentes, mas são revistas que põem o leitor infor- mado. Não precisamos contar a história dos mais diversos temas, que não cabem num jornal, enquanto cabem nas páginas mais densas de uma re- vista. Dou o meu próprio exemplo. Recebo e leio numerosas revistas mensais, bimensais, trimestrais e até algumas anuais, como a da Academia Paulista de Letras, que a publica volumosa, sempre com bons artigos. A revista é uma instituição que tende a permanecer, não obstante a televisão, com a Internet, pois, afinal de contas, o que é a Internet senão uma revista, que pode ser copiada no ato, para fornecer ele- mentos de estudo a quem deles precisa? É o que a revista nos propor- ciona. No Brasil é incontável o número de revistas que já existiram somadas às que existem, para os leitores que ou têm muito tempo para a leitura ou não o têm, e se contentam com uma rápida olhadela nos vários assuntos, detendo-se no que lhes chama mais atenção.

5 Editorial

Uma das revistas que tiveram e têm um papel decisivo na cultura brasileira é a Revista Brasileira, fundada no século passado, com a glória única de ter sido em suas salas que foi, por sua vez, fundada a Academia Brasileira de Letras, insti- tuição, no exato sentido do vocábulo, que completou cento e cinco anos, ten- do atravessado todos os momentos graves em que a nação se debateu, do Império até os dias de hoje, com a República Federativa e um novo presidente. A revista é um fator de cultura. Uma das obsessões de Eça de Queirós era edi- tar uma revista, que publicasse estudos e comentários de Portugal e do mundo. Sua esperança era a de que, também, lhe renderia dinheiro, pois sua vida foi, não tanto quanto a de Balzac, um inferno de dívidas, sobre as quais se refere constan- temente em sua correspondência. A Revista de Portugal foi o grande acontecimento de sua vida, porém de curta duração. Nessa revista publicou seus contos e diver- sos trabalhos. Também nas suas páginas Eduardo Prado, seu amigo íntimo, pu- blicou Os fastos da ditadura militar, panfleto contra Floriano Peixoto, do qual havia escapado numa fuga aventurosa de São Paulo à Bahia, e na Bahia, como um car- regador qualquer, embarcou num navio da Mala Real Inglesa, para, no alto mar, longe do alcance de Floriano, mandar-lhe um telegrama, informando-o de que já estava sob a proteção de sua majestade britânica, no caso a rainha Vitória. Tam- bém na Ilustre Casa de Ramires, Eça fez Gonçalo redigir um capítulo da história de sua família, a terrível perseguição ao bastardo, ao qual dão morte num charco pleno de sanguessugas, que chupam o réprobo homem até a morte. Em outros países, as revistas proliferam. Na França circula até hoje a famosa Revue des Deux Mondes, onde pontificou durante anos o grande crítico de arte Brunetière. Não havia quem, tendo posses, e sendo bem alfabetizado, que não comprasse ou não assinasse esse revista, que aparecia regularmente, para gáudio dos assinantes, que de- voravam seus artigos, todos assinados pelos mais ilustres nomes da França. Outras revistas circulavam e ainda circulam. Sartre fundou uma revista para dar vazão às suas idéias, e conseguiu. Outras revistas, de escritores liberais, como Raymond Aron, também mantiveram estudos nas revistas. Isto, sem - lar nas revistas semanais, onde escreveram nomes como François Mauriac, , e outros ilustres, cada qual defendendo seus pontos de vista, a sua ideologia, a filosofia a quem eram filiadas. São, por isso, numerosas as re-

6 A importância das revistas vistas na França. Com elas, são alimentados os cérebros, com artigos de alto padrão e interesse permanente. Umas vivem, e outras desaparecem, por falta de público e de recursos. Mais por este motivo do que por aquele. Nos Estados Unidos, cada instituição universitária tem sua revista. Eu, mes- mo, sou assinante da revista da Associação Filosófica Católica, cujos artigos me interessam. Ainda no último número de sua edição especial veio um extenso e profundo estudo da “Opção”, segundo Maurice Blondel, que já duas vezes e já registrei o que me interessa nos comentários do autor. Na Inglaterra uma revista que fez sucesso foi a de Gilbert K. Chesterton, onde ele extravasava a sua verve incomparável, com seu também incomparável estilo literário. Outras revistas, como The , conquistaram milhões de leitores no mundo. The Economist é uma revista liberal, lida no mundo inteiro, sem exceção, e citada por autores que escrevem para o grande público livros sobre os mais variados temas. Foi com esse espírito que a Revista Brasileira foi fundada no século XIX. Teve vá- rias fases a revista. Durante o período de 34 anos do “reinado” de Austregésilo de Athayde a revista não circulou, pois Athayde era o que Chateaubriand chamava o forreta. Seguro, como poucos, e seguro é o termo usado no interior do país sobre quem não gasta de seu o menos possível, como fazia Athayde. A revista era consi- derada um luxo, e não saiu, pois Athayde queria economizar para a construção do Centro Cultural do Brasil, hoje o Palácio Austregésilo de Athayde. Fora essa revis- ta, há numerosas, algumas editadas pela Imprensa Oficial de quase todos os Esta- dos. A de São Paulo edita duas revistas, muito bem feitas, com boas colaborações e bem ilustradas. A Associação Comercial de São Paulo edita há 58 anos, uma das mais importantes revistas do Brasil, pela altíssima qualidade de suas colaborações e dos artigos transcritos, com a devida vênia, dos órgãos que as acolheram primeiro. ÉoDigesto Econômico. Quem compulsar sua coleção, verá que suas páginas contêm estudos sobre o Brasil, como nenhuma outra revista do país. Circulam também re- vistas semanais de grande tiragem e muito lidas, mas não são revistas literárias ou de pensamento, como as citadas, Digesto Econômico e as de Imprensas Oficiais. O que temos a informar a nossos leitores sobre revistas e, principalmente, sobre a Revista Brasileira, é o que contém, sumariamente, neste número, como editorial, o editorial com que abrimos cada uma de nossas edições.

7 ABL – Centro Cultural do Brasil Aqui estão localizados o Arquivo e o Centro de Memória, o Teatro R. Magalhães Júnior, os setores de Publicações e Lexicografia e a parte administrativa da Academia. Atividades da Academia

Celso Furtado

ivemos uma época marcada por mutações em escala plane- Palavras tária que afetam o acontecer de todos nós, pessoas ordiná- proferidas na V sessão da rias. Explica-se assim que tenhamos perdido o senso de orientação Academia histórica. A noção de progresso que, a partir do Renascimento, fez Brasileira de com que emprestássemos um sentido positivo ao esforço criativo Letras de 1o de do homem, tornou-se anacrônica. Mas não nos escapa que esta- agosto de 2002. mos imersos em um processo evolutivo que gravita em torno de dois eixos: a globalização dos negócios, alimentada pela ação de agentes políticos, e a revolução na tecnologia da informação e da comunicação. Como evitar que o processo de globalização nos transforme em agentes alienados incapazes de auto-orientar-se e, portanto, inaptos para gerar novos valores? Meu propósito é chamar a atenção para o fato de que nem sempre se percebe a natureza dos grupos sociais que comandam as transfor- mações que forjam nosso perfil histórico. Foi somente no século

9 Celso Furtado

XIX que se começou a atribuir especificidade à atividade de pessoas dedicadas a produzir conhecimentos, capazes portanto de ampliar o horizonte de possi- bilidades que temos para agir. Esse grupo de agentes mereceu o título de Intelli- gentsia de uma sociedade. Quem primeiro teorizou de forma sistemática sobre essa matéria foi o pen- sador alemão, criador da sociologia do conhecimento, Karl Mannheim. A nossa época se caracteriza pela concentração crescente das atividades cria- tivas e inovadoras. Este é sem dúvida o elemento determinante das enormes desigualdades sociais que conhecemos. A Academia Brasileira de Letras já exerce a importante função de preserva- dora da memória de parte significativa de nosso patrimônio cultural. Mas não podemos ignorar o processo de geração de novos valores. Todos reconhece- mos que, nas circunstâncias atuais, a área das atividades criativas, em seu senti- do amplo, cresce desordenadamente. Portanto, a preservação dessa memória requer o fortalecimento de instituições como esta Casa. Há um desafio a en- frentar: preservar a memória das atividades culturais contemporâneas, abrindo espaço para áreas que, como o cinema, a chamada literatura eletrônica e outras, apoiam-se cada vez mais nos avanços da tecnologia. E não percamos de vista que nada é tão eficaz para preservar a memória de autênticos valores como o estímulo à criatividade de vanguarda.

10 A ABL e a consciência nacional

Miguel Reale

s pronunciamentos dos ilustres confrades Celso Furtado e Miguel Reale Tarcisio Padilha* sobre a atualização da posição da Aca- escreve para O O Estado de demia Brasileira de Letras perante a sociedade brasileira animam-me S. Paulo, onde a focalizar uma questão que me parece essencial. saiu publicado Refiro-me à “consciência nacional”, que é bem mais do que o co- o presente artigo. nhecimento integral dos problemas brasileiros, sobretudo se e quan- do não vinculados uns aos outros.

* Na sessão de 4/10/2001, o então presidente Tarcísio Padilha falou sobre questões cruciais da contemporaneidade, tema sobre o qual se pronunciou também o Acadêmico Celso Furtado. Na sessão de 1o/8/2002, Tarcísio Padilha reafirmou a necessidade de uma reflexão sobre a situação peculiar da pessoa humana, em sua individualidade e subjetividade, e os fatos sociais presentes na urdidura da trama histórica atual. Subscreveu as palavras do Acadêmico Celso Furtado (cf. págs. 9-10) e propôs a realização, na Academia, de debates sobre os temas abordados.

11 Miguel Reale

Há muito tempo tenho dado especial atenção a esse problema, que não se reduz a imperativos éticos ou econômicos, mas abrange, em totalidade orgâni- ca, a todos os assuntos dos quais depende a formação de uma consciência na- cional. Em meu livro Pluralismo e liberdade, publicado em 1963, com 2a edição em 1998, penso ter demonstrado que a Filosofia é um fator primordial para a compreensão da identidade nacional, a qual tem-se revelado mais no campo das letras e das artes. Não ignoro que a ABL muito tem feito para equacionar na literatura a uni- dade da gente brasileira, mas ela não tem dado a necessária atenção à proble- mática filosófica, sem a qual um povo não adquire plena consciência de si mes- mo, ou seja, de seu destino histórico-cultural. Do mencionado livro consta pequeno ensaio intitulado “A filosofia como autoconsciência de um povo”, o qual deu lugar a uma crise na Pontifícia Uni- versidade Católica do Rio de Janeiro (PUC) quando um grupo de professores de formação marxista, que dominava aquela instituição, vetou o estudo do re- ferido ensaio pela professora Ana Maria Moog Rodrigues, provocando a reti- rada de vários mestres que não concordaram com essa interferência arbitrária. (Para maiores esclarecimentos, vide Antonio Paim, A liberdade acadêmica e a opção totalitária, Rio de Janeiro, 1979.) O que então dizia, e ora reitero, é que uma nação somente completa a sua própria imagem quando suas atividades nos domínios das letras, das ciências, das artes, da economia e da política se integram em uma unidade orgânica, se- gundo uma própria escala hierárquica de valores e preferências que não se atin- ge sem filosofia. Nessa ordem de idéias, não me parece que a ABL tenha realizado tudo o que estava e está a seu alcance, reconhecendo o íntimo liame que une a língua às demais operações sociais, e que, como proclama Heidegger, a língua é o solo comum da cultura, o que legitima a posição central da Academia Brasileira de Letras no cenário cultural do País.

12 A ABL e a consciência nacional

Longe de mim a idéia de transformar a ABL em uma Academia de Filosofia, muito embora dela tenha feito parte a maioria dos pensadores brasileiros, pois a sua grande missão é o desenvolvimento e a defesa de nosso significativo patri- mônio lingüístico. O que desejo é que ela não só preste mais atenção à Filosofia, mas situe também no campo filosófico os seus renovadores planos de ação, a fim de que se realize concretamente a díade “língua-sociedade nacional”. Desse desiderato já estão conscientes os pensadores brasileiros e portugue- ses que, há dez anos, fundaram o Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, com sede em Lisboa, o qual promove anualmente Colóquios denominados “Ante- ro de Quental”, quando se realizam no Brasil, e “” quando ocorrem em Portugal. Reconhecido o idioma como raiz da cultura, não estará a ABL abdicando de sua missão literária essencial, mas, ao contrário, estará lhe dando um senti- do transcendental que a tornará talvez fator decisivo na formação da “cons- ciência nacional”.

13