Os valores em Miguel Reale

Alexandre Marques da Silva Martins

Sumário 1. Introdução. 2. O valor na teoria dos ob- jetos. 3. Características do valor. 4. Historicis- mo axiológico. 5. Personalismo axiológico. 6. Tridimensionalismo jurídico. 7. Nomogênese jurídica. 8. Conclusões.

1. Introdução O escopo do presente trabalho é o de perscrutar os valores em Miguel Reale. O falecido mestre desenvolveu a sua própria teoria dos valores, que culminou por ser a base de seu entendimento do direito, bem como – de certa maneira – de sua visão de mundo. Inicialmente, pretende-se situar os valores na teoria dos objetos e apresentar as suas principais características. Em seguida, investigar-se-á o denominado historicismo axiológico de Reale, que expõe o modo como esse jusfilósofo entendia as relações entre valores, história e cultura. Após, será analisado o personalismo axiológico, que legitima, em último plano, a teoria dos va- lores realeana, que considera a pessoa como valor fonte de todos os demais valores. Compreendido como o valor se expressava em Reale, será abordado o seu tridimen- Alexandre Marques da Silva Martins é Pro- sionalismo jurídico, que expõe como fato, curador da Fazenda Nacional lotado em Bauru/ valor e norma se correlacionam. Ato con- SP. Especialista em Direito Empresarial pela tínuo, discorrer-se-á sobre a nomogênese PUC/SP e em Integração Econômica e Direito jurídica, que é o instituto que demonstra o Internacional, Fiscal pela FGV/RJ. nascedouro de uma norma. Por fim, serão

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 263 consignadas as observações conclusivas e explicar os objetos naturais, quer físicos, deste trabalho. quer psíquicos, porque se distinguem como fenômenos que se processam, em geral, segundo nexos constantes de antecedente 2. O valor na teoria dos objetos a conseqüente. Todos os objetos nesse Antes de se estudar as características domínio são suscetíveis de verificação do valor com mais detalhes, é preciso sa- experimental, segundo pressupostos metó- ber onde se situa o valor na realidade do dicos ‘não teleológicos’, pois os processos conhecimento. Daí a importância da teoria finalísticos tornariam impossíveis a Física dos objetos. e a Psicologia como ciências positivas” É possível entender a teoria dos objetos (REALE, 2002, p. 179). como o estudo da natureza de algo que é Diferentemente dos objetos naturais, há passível de ser colocado como objeto do aqueles que não fazem referência nem a es- conhecimento. Como obtempera Reale em paço nem a tempo. São os objetos ideais. São seu Filosofia do Direito, geralmente tem-se entidades abstratas, que existem enquanto uma percepção assaz pequena da realidade pensadas pelo homem. A matemática e a humana. Muitas vezes, considera-se como lógica são as ciências que cuidam desses real somente aquilo que está imediatamen- entes formais. Um quadrado, um número te diante de nossos sentidos. Aquilo que complexo ou um silogismo são entidades pode ser alvo de conhecimento é bem mais abstratas que, para existir, independem de abrangente, contudo. duração no tempo (como um sentimento Pode-se principiar citando os objetos de frustração) ou de extensão (como uma físicos, que são aqueles que sempre fazem cadeira). Estão na mente humana. Melhor referência ao espaço e ao tempo. Imagine-se ilustrando: mesmo que um professor de um automóvel: ao se pensar, pode-se dis- matemática, por exemplo, deixe de pensar pensar algumas qualidades do automóvel, em um número de uma equação por alguns tais como cor ou resistência, mas jamais dias, quando ele voltar a pensar nessa equa- se pode evitar de pensar na sua extensão ção, o dito número lá estará, como sempre, e na sua duração. Como corpo físico que diferentemente de algum sentimento que é, o automóvel terá as suas medidas ou esse mesmo professor tenha experimentado extensão, bem como, durante a sua vida em sua mente, pois esse sentimento jamais útil, fará referência ao tempo. retornará, tendo deixado de existir simples- Por outro lado, há os objetos psíquicos. mente quando o professor o dissipou de O ser humano, por suas qualidades pró- sua consciência. Podem alguns confundir prias, possui toda uma série de sentimen- o objeto ideal com a sua representação grá- tos como paixão, raiva, amor, angústia, fica: um triângulo na mente de um físico é piedade etc. Essas sensações, que circulam representado quando este físico o utiliza no espírito humano, ao contrário dos bens num gráfico. A representação dessa figura físicos, dizem respeito tão-somente ao geométrica não é ideal, mas física. tempo. Esses sentimentos todos existem Prosseguindo na investigação da teoria apenas enquanto duram na consciência do dos objetos, o valor é tido por Reale como homem. uma realidade autônoma. E nisso consiste Os objetos físicos e os psíquicos são uma grande inovação realeana. Embora espécies dos denominados bens naturais. também seja desprovido de espacialidade e Aquilo que eles têm em comum a ponto temporalidade como o objeto ideal, o valor de serem classificados num mesmo grupo possui uma característica bem peculiar: ele é o princípio da causalidade. Com efeito, é só pode ser considerado a partir de alguma esse princípio “que nos possibilita atingir coisa existente anteriormente, qual seja, das

264 Revista de Informação Legislativa coisas valiosas. Outra diferença digna de forma de integração de ser e dever ser”. nota é que o objeto ideal pode ser quantifi- Reale aduz que tais objetos “são enquanto cável, já o valor não. Pode-se imaginar três devem ser”. Vê-se, assim, que “trata-se de circunferências, mas não se pode afirmar realidades cujo ser é entendido sempre sob que “o Davi de Miguel Ângelo valha cinco o prisma de algum valor. Por essa razão, ou dez vezes mais que o Davi de Bernini. A seu ser não é acessível apenas do plano idéia de numeração ou quantificação é com- do ser, mas do dever–ser que os julga, pletamente estranha ao elemento valorativo sempre, como objetos valiosos” (GARCÍA, ou axiológico. Não se trata, pois, de mera 1999, p. 19). Nessa linha de pensamento, a falta de temporalidade e de espacialidade, cultura integra o mundo do ser e o mundo mas, ao contrário, de uma impossibilidade do dever-ser. Ver-se-á, logo mais, que, absoluta de mensuração” (REALE, 2002, p. para Reale, a cultura é tida como forma 187). Reale admite que se possa, por meios integrativa daquilo que é natural à esfera indiretos, medir o valor quando se quer, à dos valores, de sorte que, sem a mesma, a guisa de exemplo, saber o preço de uma natureza careceria de significado e o valor estátua ou de um instrumento musical; seria inconcebível. porém, tal mensuração seria, segundo ele, Compreendido como o valor situa-se simples parâmetro para tornar nosso coti- na teoria dos objetos, cumpre passar-se à diano mais pragmático. análise das suas características, que igual- O valor, consoante Reale, é insuscetível mente receberam tratamento inovador do de definição. Isso decorre do fato de que saudoso mestre. tanto o ser como o valer são duas catego- rias fundamentais do homem perante a 3. Características do valor realidade. Se tenho um automóvel antigo cheio de defeitos, ao olhá-lo, a realidade A primeira característica básica do valor enuncia-me todas as qualidades que o meu é a bipolaridade. Isso quer dizer que todo veículo possui, principalmente os defeitos. valor tem um desvalor que lhe contrapõe. Esse é o mundo do ser. Todavia, se sonho É como se o valor fosse uma pessoa que, em ter meu automóvel repintado, com diante de um espelho, ver-se-ia de cabeça assentos novos e motor consertado, isso para baixo. O desvalor é a antítese do valor. pertence ao mundo do dever-ser. E aqui Dessa maneira, há o bom e o mau; o bonito se vislumbra a autonomia do valor como e o feio; o certo e o incerto. Disso decorre expressão do dever-ser. Ao imaginar ter um que, para que um valor possua sentido, é veículo melhor, faço um juízo de valor, ou mister que se exija, concomitantemente, seja, imagino como algo deveria ser. Disso o sentido de seu desvalor. Verificam-se, deflui que, à luz do entendimento realeano, então, valores positivos e negativos em tanto o ser como o valor são indefiníveis. O permanente conflito numa dialética de 1 máximo que se pode afirmar, como faz Rea- complementaridade . le, é que “ser é o que é” e que “valor é o que 1 Nesta quadra, insta frisar que um instituto fun- vale”. Na verdade, a realidade resume-se a damental para que se compreenda bem o pensamento juízos sobre o ser ou juízos de valor. Outras de Reale (1994), notadamente o seu tridimensionalis- alegações do tipo “o homem transforma- mo concreto e dinâmico, é a dialética de complemen- taridade. Quando se discorrer, mais adiante, como se na sociedade” sempre consistirão num se processa a nomogênese jurídica, ver-se-á que um daqueles dois juízos. “Transformar-se na complexo de valores incide sobre um complexo de sociedade” significa o ser evoluindo na fatos sociais. Na discussão legislativa, somente um ou escala temporal. alguns desses valores acabam prevalecendo. Com a dialética de complementaridade empregada por Reale, Finalmente, objetos complexos são os resta mais nítido que fato e valor estão em permanente objetos culturais, que representam “uma tensão. Ambos fazem parte da realidade jurídica,

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 265 A seara jurídica é particularmente pessoa toma partido acerca de um valor, fecunda para o estudo da bipolaridade ela está se inclinando numa dada direção dos valores. Todo o ordenamento jurídi- ou fim. Aquele valor que ela adota como co funda-se em valores que pretende ver sendo o mais apropriado em determinada tutelados, isto é, protegidos. Com efeito, situação implica um sentido, uma referên- pode-se asseverar que, para o lícito, existe cia. O valor, por assim dizer, atua como o ilícito. Essa dialeticidade está presente verdadeiro vetor, como se fosse uma bús- tanto no plano do direito material como no sola apontando para uma direção. do direito adjetivo. No Código Penal, em Outra característica do valor é a prefe- contraposição ao valor vida, há o desvalor ribilidade. Situando-se o valor no plano do morte. No processo penal, há um autor e dever-ser, ele enuncia como algo, em tese, um réu, cada qual defendendo interesses teria de ser. Por outro lado, o ser humano conflitantes: o autor pretendendo a conde- é um ser livre, ou seja, tem a possibilidade nação do réu e este a sua inocência. Reale de escolher este ou aquele caminho numa vai ainda mais longe, sustentando que o determinada situação. A liberdade do ser motivo da existência do direito repousa na humano – como bem realçado por Reale possibilidade de desrespeito aos valores na vastidão de sua obra – é fundamental que a sociedade reputa como indispensá- para o seu desenvolvimento. Nota-se, pois, veis à harmonia coletiva. a íntima relação entre valor e liberdade, Implicação recíproca é outra nota do já que, em razão de ser livre, o indivíduo valor, na medida em que nenhum valor é pode escolher aquilo que lhe mais aprou- concretizado sem ter interferência, ainda ver. Nessa quadra, importante salientar que indireta, na concretização de outros que a preferibilidade explica como uma valores. A eventual proibição do porte de sociedade, numa dada época, tem certo arma por civis, por exemplo, poderia servir entendimento do mundo e da vida, de- para assegurar o valor paz. Sucede que a pendendo do modo como os seus valores paz asseguraria, também, o valor seguran- são classificados, permitindo, assim, uma ça, e assim por diante. Destarte, pode-se hierarquia axiológica. asseverar que há verdadeira solidariedade Outro ponto digno de menção é a objeti- entre os valores. vidade dos valores. É sabido que os valores, Da bipolaridade e implicação recípro- como expressão do dever-ser, refletem o ca decorre a referibilidade. Quando uma protótipo de perfectibilidade que as coi- sas deveriam ter. A vida do ser humano, cada um exercendo seu papel. Por cumprirem papéis por seu turno, inspira-se nessa idéia de opostos, poderia haver um suposto entendimento de que fato e valor se excluiriam na trama jurídica. perfectibilidade. A conseqüência disso é Entrementes, no novo enfoque preconizado por Reale, que os valores acabam por ter reflexo em os dois elementos da relação, antes de se mutilarem, criações e concretizações da civilização implicam-se, mas sem deixar a tensão ou conflito humana. Tal se dá mediante os objetos entre ambos de lado. Consoante Miguel Reale, em se cuidando da dialética em comento, “dá-se a implica- culturais (pesquisados linhas acima). Em ção dos opostos na medida em que se desoculta e se outras palavras: os valores, realizando-se revela a aparência da contradição, sem que com este profundamente, irradiam-se no evolver do desocultamento os termos cessem de ser contrários, mundo histórico-cultural. cada qual idêntico a si mesmo e ambos em mútua e necessária correlação. É sobretudo no mundo dos Historicidade é a característica por valores e da praxis que mais se evidencia a existência excelência na teoria dos valores de Miguel de certos aspectos da realidade humana que não po- Reale. Nesse diapasão, o valor não pode dem ser determinados sem serem referidos a outros ser compreendido como uma realidade aspectos distintos, funcionais, ou até mesmo opostos, mas ainda assim essencialmente complementares” estanque, divorciada do desenrolar histó- (REALE, 1994, p. 72). rico-cultural do ser humano. Nas diversas

266 Revista de Informação Legislativa civilizações, o modo de percepção da vida utilizada pelo jusfilósofo italiano Luigi Ba- e dos costumes baseava-se numa tábua de golini, que traduziu para o idioma italiano valores. Sobre o que era tido como dado, o livro Filosofia do Direito de Reale em 1956, ou seja, sobre a natureza, o indivíduo para explicitar o pensamento filosófico do possuía um leque de opções valorativas. falecido mestre. Escolhendo uma delas, dirigia-se a um fim. O historicismo axiológico implica a vital Vislumbra-se, então, que os valores são his- correlação entre os institutos da axiologia, tóricos, decorrentes das diversas condutas história e cultura em termos de dialética estimativas do ser humano sobre aquilo de complementaridade. Nesse ponto, útil que era tido como já dado. Segundo Reale, consignar que cultura deve ser compreen- o liame entre história e valor é tão intenso dida como a realidade humana constituída que seus estudos acabaram por desaguar pela pessoa no transcorrer da história. no “historicismo axiológico”, que é o nome Além disso, aduza-se a forte influência da de sua teoria axiológica. história no pensamento realeano, conforme Realizabilidade e inexauribilidade são se pode observar nas palavras do grande as duas últimas principais notas dos valo- jusfilósofo: “é por essa razão que o nosso res. Por realizabilidade pode-se entender historicismo, o historicismo reclamado a concretização dos valores nas passagens pelas perplexidades e pelos desenganos do histórico-culturais. Tido como aquilo que homem contemporâneo, não se resolve nos deve ser, o valor acaba influenciando a graus sucessivos de um processo unitário, experiência humana, traduzindo-se, direta nem mesmo na ‘totalidade do processo his- ou indiretamente, em atos da atividade tórico’, mas se funda antes na historicidade histórico-cultural. Vê-se, pois, que entre originária do homem e de suas alteridades” o valor e a realidade há estreita ligação. (REALE, 1994, p. 137-138). Entrementes, quando um valor realiza-se Na análise do liame entre axiologia no evolver de um ciclo civilizatório, ele não e história, percebe-se que o valor possui se esgota. Daí advém a inexauribilidade objetividade, conforme acima menciona- axiológica. Equivale asseverar que, embora do. Manifestando-se na concretização do um valor possa se transformar em uma por- mundo histórico-cultural, os valores não ção da realidade, ele não se resume a esta, têm a sua existência voltada para si, mas tampouco pode coincidir in totum com ela. para os indivíduos. Entretanto, disso não Destarte, verifica-se que o valor atualiza-se se pode inferir que “os valores só valham constantemente, jamais se concretizando por se referirem a um sujeito concreto ou em definitivo. O valor está sempre procu- individual, posto como sua medida ou rando superar a realidade, sob pena de se razão de ser, porque, embora seja verdade tornar estático e, via de conseqüência, de- que se referem sempre à subjetividade, ela ficiente. Inevitável concluir, portanto, que deve ser entendida como a humanidade valor e realidade estão envolvidos numa em geral, ou seja, como ‘sujeito universal dialética de complementaridade. de estimativa’. Assim, não se reduz às vivências preferenciais desse ou daquele indivíduo concreto, mas às interpretações 4. Historicismo axiológico sobre a realidade que dominaram cada fase Por historicismo axiológico pode-se ou época histórica, que serão denomina- entender o modo como Reale interpretava das ‘civilizações’ com suas ‘constelações a axiologia e a cultura, que, no fundo, expli- axiológicas’ correspondentes” (GARCÍA, cam como o citado filósofo fundamentava 1999, p. 47-48). a sua conceituação de direito. A expressão Sucede que nem toda valoração ou pre- “historicismo axiológico” foi pioneiramente ferência subjetiva acaba por se transformar

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 267 no “complexo de valores” de cada civiliza- tividade, posto que, “mesmo querendo ção. Para que isso ocorra, é preciso que a que o conhecimento seja objetivo, sempre valoração em comento esteja revestida de partimos de uma ‘intuição emocional’, significação, isto é, que protagonize uma em busca de uma compreensão na esfera função de relevo na história. total da vida. Por essa razão, não se deve Fenômeno complexo é o de escolha pretender procurar a exatidão própria das axiológica, ou, em outras palavras, de como ciências físico-matemáticas, nem a pleni- é levado a cabo o procedimento de determi- tude das conexões lógico-matemáticas. O nação axiológica, já que, em certas épocas conhecimento dos valores é uma questão históricas, pode haver uma “zona nebulosa” de ‘compreensão’ própria das ciências que deixe dúvidas sobre quais valorações humanas ou espirituais” (REALE, 1977, subjetivas são as mais essenciais. p. 181-186 apud GARCÍA, 1999, p. 51). A Para explicitar como se dá o procedi- incompletitude, por sua vez, deriva do fato mento de determinação axiológica, é curial de que jamais é factível o esgotamento de trazer à baila a tríplice função do valor todas as estruturas axiológicas irradiadas à luz do entendimento realeano. Assim, nas diversas civilizações no transcorrer do uma das teses formadoras da sua teoria tempo. O valor, mesmo sendo expressão tridimensional do direito é a “conseqüente autônoma do dever–ser, está em constante reformulação do conceito de experiência mutação, eis que detém a característica da jurídica como modalidade de experiência inexauribilidade. Ilustrativo é o exemplo do histórico-cultural, no qual o valor atua valor justiça, que vem sofrendo alterações como um dos fatores constitutivos dessa periódicas desde a Grécia Antiga. realidade (função ôntica) e, concomitan- Uma última questão pertinente ao lia- temente, como prisma de compreensão me entre axiologia e história é aquilo que da realidade por ele constituída (função Reale entende por tempo histórico. Este, gnoseológica) e como razão determinante captado como o lapso temporal em que da conduta (função deontológica)” (REALE, os valores são atualizados, não se resume 1994, p. 62-63). E é justamente a função de- tão-somente ao presente. Na verdade, no ontológica que viabilizará o conhecimento bojo do tempo histórico, presente, passado racional dos fatores axiológicos, permitin- e futuro estão em verdadeira dialética de do, via de conseqüência, a sua escolha no complementaridade, conforme se pode evolver da história. concluir com as seguintes palavras: “... o Logo, fazendo a função deontológica homem é, também, a história por fazer-se. É referência a um fim, este, “a partir do mo- próprio do homem, da estrutura mesma de mento em que pode ser reconhecido como seu ser, essa ambivalência e polaridade de motivo de conduta, seja ela individual ‘ser passado’ e ‘ser futuro’, de ser mais do ou coletiva, passa a adquirir uma certa que a sua própria história. E note-se que o objetividade, porque transcende sempre futuro não se atualiza como pensamento, a mera eleição empírica, situando-se antes para inserir-se no homem como ato – caso de qualquer conduta possível. Mas, por em que deixaria de ser futuro –, mas revela- sua vez, essa objetividade e anterioridade se em nosso ser como possibilidade, tensão, à conduta empírica supõe a possibilidade abertura para o projetar-se intencional de de chegar ao conhecimento desse fim, à nossa consciência, em uma gama constitu- sua captação ontognoseológico-racional” tiva de valores” (REALE, 1994, p. 137). (GARCÍA, 1999, p. 49). A exposição do conceito de tempo his- Esse processo de escolha axiológica, tórico realça sobremaneira como Reale via consoante Reale, é revestido de relativi- as ligações entre história e cultura, de um dade e incompletitude, contudo. Rela- lado, e tempo histórico e tempo cultural, de

268 Revista de Informação Legislativa outro, estando todas essas ligações em per- podem marcar alguns ciclos civilizatórios, manente dialética de complementaridade. mas desaparecer em outros, ressurgindo Saliente-se, ainda, que a exata compreensão posteriormente, em caráter eventual. Isso da ligação entre tempo cultural e tempo his- demonstra como o espírito busca incessan- tórico permitirá entender as “objetivações temente superar os obstáculos que surgem axiológicas” como maneiras de enxergar o na sua existência. Com efeito, observa-se mundo e a vida que deixam marcado cada que, havendo uma tábua de valores pre- ciclo cultural, ou seja, as “constelações ponderantes em uma fase histórica, pode-se axiológicas”, e, também, a eventualidade de cogitar de uma ordenação ou hierarquia no algumas dessas objetivações protraírem-se seio dos valores, ainda que essa ordenação no tempo, de modo indefinido, assumindo possa alterar-se no porvir da história. a forma de “invariantes axiológicas”. Questão de grande magnitude é aquela Além do tempo histórico, uma outra de se saber se cada ciclo civilizatório esgota- concepção temporal igualmente desenvol- se em si mesmo ou se há herança no proces- veu-se: trata-se do tempo cultural, fruto so de seleção que se leva a cabo no transcor- do pensamento de índole filosófica a partir rer histórico. Nesse quadro, Reale sinaliza da cultura. Essa nova dimensão temporal no sentido da continuidade: “no renovado pode ser conceituada como o tempo de esforço do homem de vencer-se e de vencer “presencialidade ou atualidade das obras a natureza, na História concebida, em suma, realizadas pelo homem, seguindo linhas como a ‘autoconsciência mesma do homem’, de relevância variáveis de uma época para os valores de uma civilização podem ser outra, porém reveladoras de certa constân- assimilados ou experimentados, com ou cia ou duração, uma vez traduzidas à luz sem deturpação, por pessoas pertencentes a da consciência comum”, ou seja, o tempo outras coordenadas estimativas, e as forças cultural “manifesta o ‘valor atemporal’ dos primordiais do espírito circulam através das eventos culturais em face dos históricos, civilizações, vivificando-as, como se cada de forma tal que eles transcendem a mera uma delas fosse uma nota oportunamente historicidade e temporalidade” (REALE, inserida na orquestração sinfônica da qual 1977, p. 222 apud GARCÍA, 1999, p. 56). somos, ao mesmo tempo, compositores e Vislumbra-se, pois, que os bens culturais executores” (REALE, 2002, p. 233). estão em permanente atualização, podendo Partindo-se do pressuposto de que é daí aparecer as constantes e invariantes viável uma ordenação axiológica, resta axiológicas. saber como a mesma é efetuada. Na óptica Nas últimas décadas, o instituto da realeana, o valor mais elevado ou valor cultura tem sido alvo de importantes dis- fonte é o da pessoa humana. Todos os cussões filosóficas, em virtude de sua influ- demais valores valem em razão deste va- ência no entendimento da realidade do ser lor fundamental supremo. Em seguida, a humano. Segundo a concepção realeana, classificação oferecida por Reale procura ter tudo que o espírito concretiza no evolver da presente todas as necessidades prováveis história, em razão de criações permanentes que inquietam o ser humano. Essas neces- entre o dado (a natureza) e seus próprios sidades são representadas em cinco valores atos de valorar, pertence à esfera do cultu- fundamentais: o verdadeiro, o belo, o útil, o ral. Assim sendo, são realizações de cultura santo e o bem. Ademais, há valores subordi- tanto o ato de plantar algo como a prolação nantes e subordinados, clarificando, assim, de uma sentença. a gradação hierárquica dos valores. O processo cultural pode mostrar épo- Os valores subordinados são classifi- cas que apresentam concepções de mundo cados em obediência aos valores funda- diferentes. Em vista disso, certos valores mentais. Como acima exposto, os valores

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 269 podem mudar de um ciclo civilizatório Ocorre que Reale vai mais longe ainda, sus- para outro, alterando, pois, a ordenação dos tentando que alguns desses valores subor- mesmos. E é justamente essa gradação hie- dinantes desgarram-se da civilização que rárquica de cada época cultural que Reale os concebeu para atingirem um patamar chama de “constelação axiológica”. Nesse mais alto, de sorte a desempenharem um diapasão, é oportuno frisar que inexiste papel de caráter universal transcendente e hierarquia entre os valores fundamentais, definitivo. São as denominadas invariantes sendo que estes se subordinam somente ao ou constantes axiológicas. Para se aperceber valor fonte, que é o da pessoa humana. Por da relevância do assunto para Reale, basta seu turno, os valores subordinados devem ler as seguintes palavras suas: “não creio fazer referência aos valores subordinantes possa haver tema mais fascinante do que ou fundamentais. este das invariantes axiológicas, isto é, da Perscrutando-se os valores subordinan- existência ou não de valores fundamentais tes, quanto ao valor do verdadeiro, pode-se e fundantes que guiem os homens, ou lhes asseverar que ele “condiciona, em geral, a sirvam de referência, em sua faina cotidia- ontognoseologia em seus diversos graus na” (REALE, 1996, p. 95). Exemplo mar- e manifestações, por ter sido entendida cante de invariante axiológica é da pessoa como a parte da filosofia que se ocupa do humana. Tal invariante, “que condiciona a acesso ao conhecimento do real, no sentido vida ética em geral – e a jurídica em parti- lato desta palavra” (GARCÍA, 1999, p. 65). cular –, transcende o processo empírico no No que se refere ao valor do belo, ele está qual e do qual emergiu para adquirir uma vinculado às artes e à estética. O valor do validade universal. Desse modo, supera- útil é aquele ligado à atividade econômica mos o transcendentalismo lógico-formal ou industrial, assim como à filosofia econô- de Kant para dar lugar a uma concepção mica. Em seguida, surge o valor do santo, transcendental ao mesmo tempo axiológi- que é aquele que engloba a religião e a ca e histórica, o que pressupõe a acolhida filosofia da religião, ou seja, neste campo, do pensamento de Husserl quando ele tenta-se explicar a contingência existencial supera o a priori formal kantiano graças ao humana na religião ou numa realidade de conceito a priori material, o qual condiciona cunho transcendente. Por fim, há o valor transcendentalmente o conteúdo do real” do bem, que se refere à esfera da ética em (REALE, 2001, p. 63). seus vários níveis: o social (o direito e os As constantes axiológicas, por seu turno, costumes) e o individual (a moral). dariam lugar ao direito natural. Na concep- Esses valores subordinantes menciona- ção realeana, “de tais paradigmas axiológicos dos sempre inspiraram a conduta individu- resultam determinadas normas que são al e coletiva nas mais variadas civilizações. consideradas idéias diretoras universais da Pode-se afirmar que são um legado para os conduta ética, costumeira e jurídica. A essas indivíduos. Embora a concepção do que é normas, que nos permitem compreender a justo, falso, milagroso, feio ou barato tenha natureza e os limites do Direito Positivo, é mudado constantemente no desenvolvi- que denomino Direito Natural, de caráter mento da história, não é menos certo que es- problemático-conjetural... há, em suma, ses valores sempre guiaram a humanidade uma idéia e não um conceito de Direito nos seus diversos ciclos culturais. Verifica- Natural, como o horizonte metafísico da po- se, então, um relativismo axiológico, que sitividade jurídica” (REALE, 2001, p. 47-48). pode ser traduzido na busca incessante Vê-se, pois, que a visão que Reale tinha do de um valor cujo entendimento altera-se direito natural é diametralmente oposta ao segundo a visão de vida e de mundo que “dogmatismo absolutista”, típico do direito predomina numa época determinada. natural racionalista ou teológico.

270 Revista de Informação Legislativa 5. Personalismo axiológico guação da essência humana. Conhecendo- se como esta é composta, concluir-se-á que Quando do estudo do historicismo axio- homem, pessoa2 e valor são fatores vitais na lógico, verificou-se que a tríade axiologia/ antropologia tida por Reale, de sorte que história/cultura era fundamental para esses fatores também estão numa relação Miguel Reale. Dessa forma, partindo-se da dialética de complementaridade. investigação desses três elementos, pode-se A primeira característica do ser humano concluir que os valores consubstanciam-se é a sua racionalidade ou, utilizando-se a ex- em parcela autônoma da realidade, não pressão empregada por Reale, o seu poder se desvinculando, contudo, da realidade nomotético, entendido esse como a faculda- histórico-cultural na qual estão mergulha- de humana “de outorgar sentido aos atos e dos. Nesse ponto, é digno frisar que, na às coisas, faculdade essa de natureza simbo- vasta obra realeana, às vezes, os institutos lizante, a começar pela instauração radical da abordados são discerníveis sem serem se- linguagem” (REALE, 2002, p. 211). De fato, parados, como se estivessem inseridos em diferencia-se o homem dos demais seres universos totalmente estanques. In casu, vivos pela sua capacidade de dar sentido axiologia, história e cultura têm, cada uma, às coisas, pela sua capacidade de síntese ou a sua conceituação própria, mas, nem por de criação. Tal poder nomotético se revela, isso, deixam de tomar parte da mesma rea- por si só, vinculado à liberdade que possui lidade na qual interagem reciprocamente. o ser humano, já que, em qualquer ato de Os valores, no âmbito de sua gradação reconhecimento por parte do homem, está e gênese, possuem como fundamento a implícita uma ação livre. pessoa humana. Todos os demais valores Nessa esteira, a liberdade revela-se fundamentais devem fazer reverência ao outra notável característica do homem. Se valor da pessoa humana. Isso restou cla- o homem não fosse um ser livre, ele não ramente demonstrado pelo historicismo seria capaz de tomar decisões a fim de dar axiológico. Apesar da forte vinculação da sentido às coisas que o circundam. O seu axiologia com a história e a cultura, nota- poder de síntese estaria irremediavelmente se que a explicação última da teoria dos mutilado. Nesse diapasão, curial obtempe- valores de Reale reside na figura da pessoa rar que “somente a dialética de implicação humana. E é essa justificação última da e polaridade poderá explicar-nos como é axiologia realeana aquilo que se chama de que o valor não se anula quando se insere personalismo axiológico. no plano do ser, por meio da liberdade, O personalismo axiológico fornece as a qual é possibilidade infinita de experi- razões de como aquilo que aparece na órbita ências axiológicas, isto é, de ações e, por da consciência individual ou social possui conseguinte, também um valor” (REALE, aptidão de fazer com que o ser humano fi- 1963, p. 42). que adstrito a guiar-se por um determinado A historicidade é a derradeira das mais caminho, isto é, para um fim tido como mo- importantes características do homem. Este tivo de conduta. Em outras palavras: o histo- não pode jamais ficar reduzido a uma vida ricismo axiológico abriu a estrada para que causal e traçada tão-somente pelos proces- o personalismo axiológico pudesse explicar sos de índole natural. Mediante a liberdade, por que o indivíduo, na sua faina histórica, o indivíduo vai selecionando aquilo que revelou-se ser extremamente valorativo, mais lhe aprouver a fim de satisfazer as bem como os motivos pelos quais o mesmo suas necessidades, construindo, assim, ver-se-ia jungido a dados valores. 2 Conforme será a seguir exposto, para Reale, há Para que o problema acima posto possa diferenciação entre as figuras do homem e da pessoa ser deslindado, é preciso ir fundo na averi- humana.

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 271 o edifício da sua própria história. Diante nição de pessoa a de “espírito absoluto”, o da pequenez dos motivos físico-causais que, segundo Reale, acabou por desaguar para definir a natureza do ser humano, a na outra extremidade da questão: “o que, axiologia surge para conceder lógica ao na realidade, se verificava era uma perda processo das suas opções. Portanto, “a do sentido autêntico da pessoa como ‘sin- dimensão histórico-cultural na antropolo- gularidade’, para prevalecer a pessoa como gia realeana transforma-se numa das suas simples ‘momento de um ser transpessoal’ interpretações chave, conferindo-lhe uma a que se chamou ‘sociedade’, ‘espécie’, nova dimensão dinâmica e de permanente ‘classe’, ‘raça’, ‘idéia’, ‘espírito universal’, projeção no mundo. Essa é uma das ativi- ‘consciência coletiva’ etc.” (REALE, 1994, dades primordiais, porque dela depende a p. 134). constituição da própria personalidade do Consoante Reale, tanto Kant como He- homem (no nível individual) e a do con- gel, nos seus ensinamentos, não lograram texto histórico-social que o cerca (enquanto levar a cabo o equilíbrio necessário entre, de co-participante numa comunidade de indi- um lado, a liberdade de cada ser humano e, víduos)” (GARCÍA, 1999, p. 79-80). de outro, a respectiva sociabilidade de cada Vendo-se as características acima indivíduo. É precisamente essa conciliação mencionadas, vislumbra-se a presença que Reale pretende efetuar. Com efeito, na marcante do valor. O ser humano é es- visão realeana, almeja-se “superar numa sencialmente valorativo. Todas as suas nova compreensão o valor da pessoa e o condutas são embasadas pela concretização valor da história, que é o homem enquanto de algum valor. Ademais, percebe-se que o pessoa (como revelado por Kant), com o ser humano não é como tal apenas pela sua drama histórico das pessoas coexistentes existência, mas sim em decorrência da sig- (que Hegel quis abranger numa poderosa nificação que para ele possui a sua própria unidade integrante)... pôr-se como pessoa vida. Essa significação pode ser traduzida é pôr-se como história, como alteridade, como autoconsciência da sua dignidade. como comunidade, e a redução de uma à Disso deflui o conceito de pessoa. Sendo outra romperia a unidade concreta, o mes- um ente dotado dessa autoconsciência, ela mo resultando se prevalecesse uma sobre torna-se, na óptica realeana, o valor fonte, a outra” (REALE, 1994, p. 136-137). isto é, ela vale para que todos os outros Visto como Reale entendia os valores, valores valham. cumpre verificar como o citado jusfilósofo Nos termos do personalismo apregoado compreendia a relação fato/valor/norma, por Reale, pode-se citar Kant como aquele que, em última análise, explicava como ele que pioneiramente reconheceu essa cons- concebia o direito. ciência de dignidade. No entendimento kantiano, o homem, enquanto tal, possui 6. Tridimensionalismo jurídico desde logo um valor inesgotável. Surge, pois, com Kant, a esfera ético-moral do No século XIX, o formalismo jurídico homem, que o compele a atuar em virtude ganhou muita força, acabando por prevale- de fins, distinguindo-se, por conseguinte, cer na mentalidade da maioria dos cultores dos demais seres. Todavia, Reale critica do direito. À guisa de ilustração, pode-se Kant pelo seu formalismo radical na órbita mencionar o movimento dos pandectistas prática e, também, pela falta de uma visão germânicos, que, com o seu rigorismo histórica acerca do tema. Posteriormente, científico, acabou dando nova roupagem ao outros pensadores como Hegel tentaram antigo direito romano, atualizando-lhe com suprir esse acanhamento do entendimento conceituações mais precisas e sistematiza- kantiano. Para tanto, antepuseram à defi- ções bem profundas. Entretanto, já no final

272 Revista de Informação Legislativa do século citado, começou-se a vislumbrar sucedia na realidade, no cotidiano da socie- que a realidade do cotidiano não corres- dade em geral. Entretanto, mesmo estando pondia exatamente àquela idealizada pelos intensamente à procura do concreto, não partidários do formalismo. As definições e se deve perder de vista que os papéis do sistematizações encontradas nos códigos e filósofo e do jurista permanecem diversos. leis não eram suficientes para solucionar A este último é incumbida, em síntese, a os litígios que batiam nas portas dos tribu- aplicação e interpretação da legislação. E nais. O avanço da sociedade, em especial ao filósofo cabe perquirir acerca dos moti- no campo tecnológico, deixava patente a vos universais embasadores dos modelos insuficiência do direito então vigente para correntes e possíveis, além dos porquês da dar uma resposta adequada às demandas dinâmica do operador do direito quando forenses. da interpretação da lei. Assente o desequilíbrio entre o ordena- Do exposto acima, decorre, inexoravel- mento jurídico e aquilo que se passava na mente, a complementaridade das pesquisas vida social, a então ciência do direito viu-se do filósofo, do jurista e, também, do soció­ alvo do movimento do Direito Livre (libre logo. Referida complementaridade fica recherche du droit). Tendo como fundador bem visível quando da análise da validade François Gény, esse movimento tratou de do direito, que se divide em três campos demonstrar que o formalismo tão endeusa- ou problemas de estudo: vigência, que do pelo jurista era, na verdade, pertencente equivale à obrigatoriedade formal da nor- a um plano secundário. Mediante um novo ma legal para todos os cidadãos; eficácia, debate sobre a teoria geral da interpreta- que significa a efetiva subsunção social ao ção, procurou-se enfocar o direito à luz conteúdo da lei; e fundamento, que traduz dos fatos que efetivamente ocorriam na os valores aptos a legitimar os preceitos realidade do dia-a-dia. Eram postos em jurídicos numa comunidade livre. Com dúvida conceitos outrora considerados isso, “enunciada desse modo a questão, praticamente dogmas. Destarte, viam-se parecem transparentes os nexos que ligam as preocupações e indagações de cunho entre si os três problemas numa estrutura filosófico-jurídico ingressarem no terreno tridimensional, mas, por um complexo de da ciência do direito. motivos, uns de natureza histórica, outros Notava-se, assim, uma atenção maior dependentes das inclinações intelectuais do jurista até então formalista pela filoso- dos investigadores, nem sempre prevalece fia. A par disso, igualmente é lícito afirmar a compreensão unitária dos fatores que que, com o passar dos anos, os partidários compõem a realidade jurídica: não raro da filosofia começavam a descer de seu orientam-se os espíritos no sentido do pedestal, deixando um pouco de lado seus primado ou da exclusividade de uma das “esquemas formais e abstratos para tomarem perspectivas acima discriminadas, surgin- contato cada vez mais com a positividade do do, assim, soluções unilaterais ou setorizadas” direito, aprendendo a dar valor ao particu- (REALE, 1994, p. 15). Percebe-se, pois, que lar, ao contingente e ao empírico, tal como Miguel Reale sustentava que os institutos se desenrola e se dramatiza na vida dos ad- da vigência, eficácia e fundamento fazem vogados e dos juízes, no bojo, em suma, da parte de uma estrutura perfeitamente arti- experiência jurídica” (REALE, 1994, p. 8). culada. Via de conseqüência, o direito seria, Vislumbrava-se, então, aquilo que necessariamente, tridimensional. Miguel Reale costumava chamar de busca Na sua obra, Reale procura demonstrar pelo concreto, isto é, tanto juristas como a escassez das, por ele denominadas, “teo- filósofos do direito passavam a conceder, rias tridimensionais genéricas”. Para essas nos seus estudos, mais espaço àquilo que teorias, vigência, eficácia e fundamento

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 273 são perscrutados abstratamente, de sorte essencial unidade e concretitude, a qual só a corresponder cada um desses fatores pode ser unidade de processo ou dialética, a áreas diferentes do saber jurídico. Por o que implica a inserção do problema parti- conseguinte, vigência estaria atrelada à cular da tridimensionalidade do direito no dogmática do direito, enquanto eficácia quadro geral de uma diversa compreensão estaria vinculada à sociologia jurídica, e o do homem, da sociedade e da história”. E fundamento, à filosofia do direito. Nesse é essa nova compreensão, baseada numa diapasão, a título de exemplo, Reale cita visão original do instituto do valor, que será , que, segundo ele, aco- o alicerce do tridimensionalismo jurídico lheria a tridimensionalidade tão-somente de Miguel Reale. com propósitos metodológicos a fim de A teoria tridimensional do direito reale- discriminar esferas de pesquisa. ana é tida como concreta e dinâmica. Quan- Com o desenvolvimento da pesquisa ju- do, linhas atrás, explicou-se que o estudo rídica, a concepção tridimensional genérica da vigência, da eficácia e do fundamento ou abstrata começou a perder fôlego. Surgi- era o divisor de águas das diversas teorias ram, então, as primeiras teorias destinadas tridimensionais, pretendeu-se deixar claro a compreender a realidade jurídica consi- que norma, fato e valor são elementos derando os elementos vigência, eficácia e essenciais da experiência jurídica. Assim fundamento de forma conjunta. sendo, na concepção realeana, “a correlação Em 1940, na Alemanha, Wilhelm Sauer entre aqueles três elementos é de natureza lança o seu “Juristiche Methodenlehre”, funcional e dialética, dada a ‘implicação- enquanto, aqui no Brasil, Reale publica polaridade’ existente entre fato e valor, de “Fundamentos de Direito”, bem como o cuja tensão resulta o momento normativo, seu “Teoria do Direito e do Estado”. Pou- como solução superadora e integrante nos cos anos depois, em 1947, Jerome Hall, no limites circunstanciais de lugar e de tempo âmbito do common , edita “Integrative (concreção histórica do processo jurídico, numa ”. Nesses trabalhos inéditos, dialética de complementaridade)” (REALE, fato, valor e norma são tratados de forma 1994, p. 57). conjunta, ou seja, são elementos sempre Feitas as explicações de como a con- ligados entre si na esfera da realidade ju- cepção realeana compreendia a correlação rídica, embora se possa, às vezes, dar um fato-valor-norma, resta ingressar no campo enfoque maior a um ou outro, mas sempre da nomogênese jurídica, ou seja, do nasci- se considerando todos os três na análise mento da norma jurídica. de investigação. Mencionadas obras, com a nova concepção que introduzem, apesar 7. Nomogênese jurídica de terem as suas diferenças, dão início, consoante Reale, à tridimencionalidade Como salientado anteriormente, a no- específica. mogênese jurídica corresponde ao processo Tanto sobre a teoria de Sauer como a de nascimento de uma norma jurídica. Não de Hall, Reale (1994, p. 50) tece os seguin- se trata aqui de analisar tecnicamente as tes comentários: “penso que só é graças à várias etapas do processo legislativo, mas compreensão dialética dos três fatores que se sim de como os políticos selecionam os torna possível atingir uma compreensão assuntos a serem objeto de deliberação no concreta da estrutura tridimensional do Congresso Nacional e como esses assuntos direito, na sua natural temporalidade. A serão colocados no papel, à luz do entendi- meu ver, com efeito, a experiência jurídica, mento realeano. articulando-se e processando-se de maneira Qualquer lei equivale ao instante culmi- tridimensional, nem por isso perde a sua nante de uma gama respeitável de fatores,

274 Revista de Informação Legislativa que podem ser agrupados em dois tipos: os ocorrendo no mundo (por exemplo: guerras de cunho axiológico e os de cunho fático. civis, fome em populações que vivem em Todavia, há de chegar um momento no qual regiões miseráveis, enchentes que causam os negociadores optem por uma das alter- milhares de desabrigados, tráfico inter- nativas que têm a seu dispor. Importante, nacional de drogas etc.), incidem outros portanto, os ensinamentos de Miguel Reale tantos complexos axiológicos, ou seja, cada (1999, p. 193): “nada mais incompatível com Estado possui a sua visão sobre cada um o direito do que a incerteza, a carência de desses acontecimentos. Exemplificando: uma diretriz insegura: o direito responde, quando da elaboração de um tratado sobre de maneira primordial, ao desejo espontâ- direitos humanos, cada país externará o seu neo que o homem tem de fugir à dúvida, próprio valor sobre o tema. Assim, países mais pungente no plano moral da ação do mais preconceituosos contra minorias ou que no plano intelectual da especulação determinados grupos religiosos tenderão a pura”. Prosseguindo, ensina o citado autor limitar o alcance das disposições do tratado. que “uma opção se impõe, e tôda vez que Nessa mesma linha de raciocínio, outros se escolhe uma via, sacrificam-se todos os Estados, ainda que internamente sejam demais caminhos possíveis. Dentre os vá- mais liberais, podem emitir uma posição rios projetos de lei em debate em um parla- mais conservadora ou retrógrada a fim de mento, por exemplo, a respeito de um dado continuarem a manter relações comerciais assunto, por mais que se procrastine, chega vantajosas com outros parceiros que igual- o momento do fiat lex, átimo culminante mente participam das tratativas. Enfim, de uma decisão. É êste o momento decisório e nota-se que cada membro do pacto a ser decisivo do Poder” (REALE, 1999, p. 194). estabelecido tem o seu próprio valor acerca Dessa forma, no plano do direito inter- dos fatos postos nas mesas de negociação. no, quando a Câmara dos Deputados, por É tão-somente a partir do momento em que exemplo, está a debater um projeto de lei o texto do acordo é redigido e aprovado ordinária sobre medicamentos gratuitos e que todos os conflitos de valores são solu- acesso à saúde, cada um dos deputados terá cionados, na exata medida em que algum um valor sobre o tema em pauta. Alguns ou alguns valores são escolhidos e, via deputados, por influência do corporativis- de conseqüência, refletidos no texto final. mo da indústria de medicamentos, talvez Enfim, pode-se aduzir que “a condiciona- tenham uma posição que favoreça mais re- lidade axiológica das tomadas de posição ferida indústria. Outros, em razão da pres- diante dos fatos tem uma objetividade que são de organizações não-governamentais, deriva do valor como um bem cultural com podem votar por uma política mais bené- suporte na realidade... Os valores referem- fica para a população carente que necessita se à realidade, mas a ela não se reduzem, de remédios. Por seu turno, outros, ainda, pois, para Reale, têm um significado que podem tomar uma ou outra posição tendo aponta para uma direção de dever-ser das em vista somente interesses particulares, condutas humanas” (LAFER, 2000, p. 99). relegando a um segundo plano o interesse público. Sucede que, por ocasião da vo- 8. Conclusões tação em plenário, apenas um valor será eleito, ficando de lado todos os demais que Nesta etapa final, cumpre sejam consig- gravitavam em torno da questão antes da nadas as principais observações conclusi- deliberação dos deputados. vas do presente trabalho. Fenômeno semelhante pode ser ob- O valor é tido por Reale como uma servado no plano externo. Com efeito, realidade autônoma. Embora também seja percebe-se que, sobre cada complexo fático desprovido de espacialidade e temporali-

Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 275 dade como o objeto ideal, o valor possui mento, há os valores fundamentais ou su- uma característica bem peculiar: ele só bordinantes (o verdadeiro, o belo, o útil, o pode ser considerado a partir de alguma santo e o bem), que devem sempre se referir coisa existente anteriormente, qual seja, ao valor fonte, que é o da pessoa humana. das coisas valiosas. Além do mais, diferen- Nessa esteira, alguns desses valores subor- temente do objeto ideal, o valor não pode dinantes desgarram-se da civilização que ser quantificável. os concebeu para atingirem um patamar Historicidade é a característica por mais alto, de sorte a desempenharem um excelência na teoria dos valores de Miguel papel de caráter universal transcendente e Reale. Nesse diapasão, o valor não pode definitivo. São as denominadas invariantes ser compreendido como uma realidade es- ou constantes axiológicas, que, por sua vez, tanque, divorciada do desenrolar histórico- poderiam dar margem ao direito natural. cultural do ser humano. Ainda na seara das A explicação última da teoria dos va- características dos valores, há a realizabili- lores de Reale reside na figura da pessoa dade e a inexauribilidade. Por realizabili- humana. E é essa justificação última da dade pode-se entender a concretização dos axiologia realeana aquilo que se chama de valores nas passagens histórico-culturais. personalismo axiológico. Daí advém a inexauribilidade axiológica, O personalismo axiológico fornece as ra- ou seja, embora um valor possa se transfor- zões de como aquilo que aparece na órbita mar em uma porção da realidade, ele não da consciência individual ou social possui se resume a esta, tampouco pode coincidir aptidão de fazer com que o ser humano in totum com ela. Destarte, verifica-se que fique adstrito a guiar-se por um determina- o valor atualiza-se constantemente, jamais do caminho, isto é, para um fim tido como se concretizando em definitivo. motivo de conduta. Nessa trilha, inevitável O historicismo axiológico implica a vital concluir que o ser humano não é como tal correlação entre os institutos da axiologia, apenas pela sua existência, mas sim em história e cultura em termos de dialética de decorrência da significação que para ele complementaridade. Para a exata compre- possui a sua própria vida. Essa significação ensão desta tríade, imperioso o emprego pode ser traduzida como autoconsciência dos conceitos de tempo cultural e de tempo da sua dignidade. Disso deflui o conceito histórico. Este, captado como o lapso tem- de pessoa humana para Reale. poral em que os valores são atualizados, A teoria tridimensional do direito reale- não se resume tão-somente ao presente. ana é tida como concreta e dinâmica. Com Na verdade, no bojo do tempo histórico, efeito, norma, fato e valor são elementos presente, passado e futuro estão em ver- essenciais da experiência jurídica. Assim dadeira dialética de complementaridade. sendo, na concepção realeana, “a correlação Por seu turno, o tempo cultural “manifesta entre aqueles três elementos é de natureza o ‘valor atemporal’ dos eventos culturais funcional e dialética, dada a ‘implicação – em face dos históricos, de forma tal que polaridade’ existente entre fato e valor, de eles transcendem a mera historicidade e cuja tensão resulta o momento normativo, temporalidade” (REALE, 1977, p. 222 apud como solução superadora e integrante nos GARCÍA, 1999, p. 56). limites circunstanciais de lugar e de tempo Os valores podem mudar de um ciclo (concreção histórica do processo jurídico, numa civilizatório para outro, alterando, pois, dialética de complementaridade)” (REALE, a ordenação dos mesmos. E é justamente 1994, p. 57). essa gradação hierárquica de cada época A nomogênese jurídica corresponde cultural que Reale chama de “constelação ao processo de nascimento de uma norma axiológica”. Ainda para o mestre em co- jurídica. Quando se debate um projeto de

276 Revista de Informação Legislativa lei no parlamento, percebe-se que sobre LAFER, Celso. A legitimidade na correlação direito e cada complexo fático incidem outros tantos poder: uma leitura do tema inspirado no tridimensio- nalismo jurídico de Miguel Reale. In: ZILLES, Urbano complexos axiológicos, ou seja, cada pessoa (Coord.). Miguel Reale: estudos em homenagem a seus (e notadamente os parlamentares) possui 90 anos. Porto Alegre: Edipucrs, 2000. a sua visão sobre cada um dos temas em REALE, Miguel. Experiência e cultura. São Paulo: discussão no Congresso Nacional. Todavia, Grijalbo-Edusp, 1977. há de chegar um momento no qual os par- lamentares optem por uma das alternativas ______. Filosofia do direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. que têm a seu dispor. A partir do momento em que uma decisão é tomada, sacrificam- ______. Nova fase do direito moderno. 2 ed. São Paulo: se todos os demais valores que gravitavam Saraiva, 2001. em torno do tema. ______. O direito como experiência. 2 ed. São Paulo: Finalmente, é correto aduzir que o Saraiva, 1999. entendimento de Miguel Reale acerca dos ______. Paradigmas da cultura contemporânea. São Paulo: valores permitiu-lhe ter uma concepção Saraiva, 1996. original do direito, que se procurava atua- ______. Pluralismo e liberdade. São Paulo: Saraiva, lizar incessantemente a fim de trazer a tão 1963. desejada harmonia no seio da sociedade. ______. Teoria tridimensional do direito. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

Referências GARCÍA, Angeles Mateos. A teoria dos valores de Miguel Reale: fundamento de seu tridimensionalismo jurídico. São Paulo: Saraiva, 1999.

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