Os valores em Miguel Reale Alexandre Marques da Silva Martins Sumário 1. Introdução. 2. O valor na teoria dos ob- jetos. 3. Características do valor. 4. Historicis- mo axiológico. 5. Personalismo axiológico. 6. Tridimensionalismo jurídico. 7. Nomogênese jurídica. 8. Conclusões. 1. Introdução O escopo do presente trabalho é o de perscrutar os valores em Miguel Reale. O falecido mestre desenvolveu a sua própria teoria dos valores, que culminou por ser a base de seu entendimento do direito, bem como – de certa maneira – de sua visão de mundo. Inicialmente, pretende-se situar os valores na teoria dos objetos e apresentar as suas principais características. Em seguida, investigar-se-á o denominado historicismo axiológico de Reale, que expõe o modo como esse jusfilósofo entendia as relações entre valores, história e cultura. Após, será analisado o personalismo axiológico, que legitima, em último plano, a teoria dos va- lores realeana, que considera a pessoa como valor fonte de todos os demais valores. Compreendido como o valor se expressava em Reale, será abordado o seu tridimen- Alexandre Marques da Silva Martins é Pro- sionalismo jurídico, que expõe como fato, curador da Fazenda Nacional lotado em Bauru/ valor e norma se correlacionam. Ato con- SP. Especialista em Direito Empresarial pela tínuo, discorrer-se-á sobre a nomogênese PUC/SP e em Integração Econômica e Direito jurídica, que é o instituto que demonstra o Internacional, Fiscal pela FGV/RJ. nascedouro de uma norma. Por fim, serão Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 263 consignadas as observações conclusivas e explicar os objetos naturais, quer físicos, deste trabalho. quer psíquicos, porque se distinguem como fenômenos que se processam, em geral, segundo nexos constantes de antecedente 2. O valor na teoria dos objetos a conseqüente. Todos os objetos nesse Antes de se estudar as características domínio são suscetíveis de verificação do valor com mais detalhes, é preciso sa- experimental, segundo pressupostos metó- ber onde se situa o valor na realidade do dicos ‘não teleológicos’, pois os processos conhecimento. Daí a importância da teoria finalísticos tornariam impossíveis a Física dos objetos. e a Psicologia como ciências positivas” É possível entender a teoria dos objetos (REALE, 2002, p. 179). como o estudo da natureza de algo que é Diferentemente dos objetos naturais, há passível de ser colocado como objeto do aqueles que não fazem referência nem a es- conhecimento. Como obtempera Reale em paço nem a tempo. São os objetos ideais. São seu Filosofia do Direito, geralmente tem-se entidades abstratas, que existem enquanto uma percepção assaz pequena da realidade pensadas pelo homem. A matemática e a humana. Muitas vezes, considera-se como lógica são as ciências que cuidam desses real somente aquilo que está imediatamen- entes formais. Um quadrado, um número te diante de nossos sentidos. Aquilo que complexo ou um silogismo são entidades pode ser alvo de conhecimento é bem mais abstratas que, para existir, independem de abrangente, contudo. duração no tempo (como um sentimento Pode-se principiar citando os objetos de frustração) ou de extensão (como uma físicos, que são aqueles que sempre fazem cadeira). Estão na mente humana. Melhor referência ao espaço e ao tempo. Imagine-se ilustrando: mesmo que um professor de um automóvel: ao se pensar, pode-se dis- matemática, por exemplo, deixe de pensar pensar algumas qualidades do automóvel, em um número de uma equação por alguns tais como cor ou resistência, mas jamais dias, quando ele voltar a pensar nessa equa- se pode evitar de pensar na sua extensão ção, o dito número lá estará, como sempre, e na sua duração. Como corpo físico que diferentemente de algum sentimento que é, o automóvel terá as suas medidas ou esse mesmo professor tenha experimentado extensão, bem como, durante a sua vida em sua mente, pois esse sentimento jamais útil, fará referência ao tempo. retornará, tendo deixado de existir simples- Por outro lado, há os objetos psíquicos. mente quando o professor o dissipou de O ser humano, por suas qualidades pró- sua consciência. Podem alguns confundir prias, possui toda uma série de sentimen- o objeto ideal com a sua representação grá- tos como paixão, raiva, amor, angústia, fica: um triângulo na mente de um físico é piedade etc. Essas sensações, que circulam representado quando este físico o utiliza no espírito humano, ao contrário dos bens num gráfico. A representação dessa figura físicos, dizem respeito tão-somente ao geométrica não é ideal, mas física. tempo. Esses sentimentos todos existem Prosseguindo na investigação da teoria apenas enquanto duram na consciência do dos objetos, o valor é tido por Reale como homem. uma realidade autônoma. E nisso consiste Os objetos físicos e os psíquicos são uma grande inovação realeana. Embora espécies dos denominados bens naturais. também seja desprovido de espacialidade e Aquilo que eles têm em comum a ponto temporalidade como o objeto ideal, o valor de serem classificados num mesmo grupo possui uma característica bem peculiar: ele é o princípio da causalidade. Com efeito, é só pode ser considerado a partir de alguma esse princípio “que nos possibilita atingir coisa existente anteriormente, qual seja, das 264 Revista de Informação Legislativa coisas valiosas. Outra diferença digna de forma de integração de ser e dever ser”. nota é que o objeto ideal pode ser quantifi- Reale aduz que tais objetos “são enquanto cável, já o valor não. Pode-se imaginar três devem ser”. Vê-se, assim, que “trata-se de circunferências, mas não se pode afirmar realidades cujo ser é entendido sempre sob que “o Davi de Miguel Ângelo valha cinco o prisma de algum valor. Por essa razão, ou dez vezes mais que o Davi de Bernini. A seu ser não é acessível apenas do plano idéia de numeração ou quantificação é com- do ser, mas do dever–ser que os julga, pletamente estranha ao elemento valorativo sempre, como objetos valiosos” (GARCÍA, ou axiológico. Não se trata, pois, de mera 1999, p. 19). Nessa linha de pensamento, a falta de temporalidade e de espacialidade, cultura integra o mundo do ser e o mundo mas, ao contrário, de uma impossibilidade do dever-ser. Ver-se-á, logo mais, que, absoluta de mensuração” (REALE, 2002, p. para Reale, a cultura é tida como forma 187). Reale admite que se possa, por meios integrativa daquilo que é natural à esfera indiretos, medir o valor quando se quer, à dos valores, de sorte que, sem a mesma, a guisa de exemplo, saber o preço de uma natureza careceria de significado e o valor estátua ou de um instrumento musical; seria inconcebível. porém, tal mensuração seria, segundo ele, Compreendido como o valor situa-se simples parâmetro para tornar nosso coti- na teoria dos objetos, cumpre passar-se à diano mais pragmático. análise das suas características, que igual- O valor, consoante Reale, é insuscetível mente receberam tratamento inovador do de definição. Isso decorre do fato de que saudoso mestre. tanto o ser como o valer são duas catego- rias fundamentais do homem perante a 3. Características do valor realidade. Se tenho um automóvel antigo cheio de defeitos, ao olhá-lo, a realidade A primeira característica básica do valor enuncia-me todas as qualidades que o meu é a bipolaridade. Isso quer dizer que todo veículo possui, principalmente os defeitos. valor tem um desvalor que lhe contrapõe. Esse é o mundo do ser. Todavia, se sonho É como se o valor fosse uma pessoa que, em ter meu automóvel repintado, com diante de um espelho, ver-se-ia de cabeça assentos novos e motor consertado, isso para baixo. O desvalor é a antítese do valor. pertence ao mundo do dever-ser. E aqui Dessa maneira, há o bom e o mau; o bonito se vislumbra a autonomia do valor como e o feio; o certo e o incerto. Disso decorre expressão do dever-ser. Ao imaginar ter um que, para que um valor possua sentido, é veículo melhor, faço um juízo de valor, ou mister que se exija, concomitantemente, seja, imagino como algo deveria ser. Disso o sentido de seu desvalor. Verificam-se, deflui que, à luz do entendimento realeano, então, valores positivos e negativos em tanto o ser como o valor são indefiníveis. O permanente conflito numa dialética de 1 máximo que se pode afirmar, como faz Rea- complementaridade . le, é que “ser é o que é” e que “valor é o que 1 Nesta quadra, insta frisar que um instituto fun- vale”. Na verdade, a realidade resume-se a damental para que se compreenda bem o pensamento juízos sobre o ser ou juízos de valor. Outras de Reale (1994), notadamente o seu tridimensionalis- alegações do tipo “o homem transforma- mo concreto e dinâmico, é a dialética de complemen- taridade. Quando se discorrer, mais adiante, como se na sociedade” sempre consistirão num se processa a nomogênese jurídica, ver-se-á que um daqueles dois juízos. “Transformar-se na complexo de valores incide sobre um complexo de sociedade” significa o ser evoluindo na fatos sociais. Na discussão legislativa, somente um ou escala temporal. alguns desses valores acabam prevalecendo. Com a dialética de complementaridade empregada por Reale, Finalmente, objetos complexos são os resta mais nítido que fato e valor estão em permanente objetos culturais, que representam “uma tensão. Ambos fazem parte da realidade jurídica, Brasília a. 45 n. 180 out./dez. 2008 265 A seara jurídica é particularmente pessoa toma partido acerca de um valor, fecunda para o estudo da bipolaridade ela está se inclinando numa dada direção dos valores. Todo o ordenamento jurídi- ou fim. Aquele valor que ela adota como co funda-se em valores que pretende ver sendo o mais apropriado em determinada tutelados, isto é, protegidos. Com efeito, situação implica um sentido, uma referên- pode-se asseverar que, para o lícito, existe cia.
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