MIGUEL REALE E O INSTITUTO BRASILEIRO DE FILOSOFIA: FUNDAMENTAÇÃO IDEOLÓGICA DA DITADURA DE 1964

Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves Universidade Estadual de Goiás [email protected]

Resumo Neste artigo analisamos a atuação de Miguel Reale no golpe de 1964, tendo como fonte privilegiada a obra Imperativos da Revolução de Março. Importante salientar que a obra do jurista paulista veio a lume de forma integrada à intensa atividade intelectual orgânica realizada no Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), órgão chefiado por Reale responsável pela Revista Brasileira de Filosofia (RBF). Interessante notar que o livro sobredito, escrito em 1964, publicado em 1965, surgiu no contexto de afirmação das ideias conservadoras no Brasil. Nossa análise parte de uma problematização que tem seu fulcro nos conceitos de “aparelho de hegemonia filosófico” e “intelectuais orgânicos”. Palavras-chave: Miguel Reale, Instituto Brasileiro de Filosofia, Golpe de 1964, “Os Imperativos da Revolução de Março”

Introdução

Miguel Reale (1910-2006) é reconhecido como um importante jurista paulista. Autor de vasta obra que gerou inúmeros estudos. Muitos destes não levam em consideração sua atuação como intelectual orgânico junto do empresariado e governo paulista e do Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF). Um exemplo eloquente é a extensa bibliografia laudatória, como os livros organizados por Urbano Zilles (2000) e Shozo Motoyama (2001), que fazem homenagem aos 90 anos do jurista paulista. Reale não era apenas um intelectual de gabinete. Além disso, era militante, com ampla atuação junto do governo de São Paulo e do empresariado paulista. É no Instituto que encontramos Reale em seu todo, como intelectual orgânico, autor de extensa obra e organizador da intelectualidade da direita. E, de acordo com o que estamos propondo

(uma leitura crítica e alternativa à bibliografia laudatória), alguns autores trazem a lume o intelectual orgânico, como Rodrigo Pinho (2006 e 2008), Lucas Patschiki (2014) e Diogo Cunha (2014). Pinho integra Reale na atuação na Ação Integralista Brasileira, no Governo Vargas, no Partido Social Progressista e sua contribuição para o golpe de 1964. Patschiki demonstra como Reale busca uma ressignificação de seu passado através da publicação de suas “Memórias” nos anos 80. E Cunha vê em Reale uma das “raízes profundas” do pensamento autoritário no Brasil, particularmente na obra “Imperativos da Revolução de Março”, que analisaremos neste artigo. Nossa análise se baseia em dois conceitos fundamentais: aparelho de hegemonia filosófico1 (AHF), desenvolvido por Christine Buci-Glucksmann, e intelectuais orgânicos2, de Antonio Gramsci. A noção de autocracia burguesa, desenvolvida por Florestan Fernandes (2006), integra nosso trabalho e permite-nos problematizar os aspectos teóricos, ideológicos, políticos e sociais, em suma paradigmáticos, da classe dominante. Ademais, a noção de relações de força e poder (FERNANDES, 2006; LENIN, 1978 e 1979) aparece como pano de fundo de nosso artigo.

IBF: locus de desenvolvimento e disseminação do pensamento conservador

O IBF foi criado na cidade de São Paulo, em outubro de 1949. Desde 1951 publica a Revista Brasileira de Filosofia - Órgão oficial do Instituto Brasileiro de Filosofia (RBF), periódico trimestral de circulação nacional e internacional. O Instituto já contou com diversas seções estaduais (em 1976, chegaram a somar 13 nos estados do Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste). No Estatuto do IBF encontramos algumas das finalidades declaradas:

Art. 2º - O Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) tem por fim: a) promover o desenvolvimento da cultura filosófica em nosso país [...]

1 Segundo Buci-Glucksmann, o aparelho de hegemonia filosófico (AHF) “busca a difusão de uma filosofia, de uma concepção geral da vida”, é “uma organização material que visa a manter, defender, desenvolver a ‘frente teórica e ideológica’. O AHF portanto faz parte ‘do formidável complexo de trincheiras e fortificações da classe dominante’.” (BUCI-GLUCKSMANN, 1990, p. 484) 2 Segundo Gramsci, “todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político [...]”. (GRAMSCI, 2004, p. 15)

b) promover congressos regionais, nacionais e internacionais para discussão de problemas filosóficos; c) publicar uma revista trimestral de filosofia [...] e) patrocinar a publicação de obras de filosofia [...] j) colaborar com os poderes públicos, as entidades universitárias, e as associações culturais, em tudo que se refira à obra de soerguimento intelectual de nossa gente [...] (RBF, 1951-A: 562)

Logo no primeiro número da RBF (1951) encontramos uma importante “Apresentação” da autoria de Reale:

[...] O IBF inicia a publicação dessa Revista, cuja finalidade primordial é reunir, em uma obra impessoal e objetiva, os esforços criadores de quantos, em nossa terra, se dedicam aos problemas da Filosofia. Nestas páginas encontrarão acolhida todas as tendências do pensamento contemporâneo [...] Anima-nos, no entanto, uma robusta confiança em nossa capacidade de pensar ou de repensar criadoramente os grande problemas, sem nos atribuirmos a tarefa inglória de receber, da Europa ou da América do Norte, a Filosofia como pensamento pronto para ser distribuído cuidadosamente em fichas. [...] Cultores da Filosofia e da Filosofia do Direito e da Sociedade encontrarão nestas páginas uma fonte de referência e contraponto [...]. (REALE, 1951, p. 1-2)

Assim, o que se observa nos dois documentos acima é que o IBF buscava transmitir uma imagem plural aberta a todas as tendências do pensamento. Tampouco pode-se inferir, a partir destes fragmentos, uma posição política e ideológica além daquela que privilegia certa autonomia em relação à Europa e aos Estados Unidos no âmbito da filosofia. No entanto, o que se observa ao longo da história desta organização é um posicionamento definido, distante e hostil do marxismo. Neste sentido, Bruno Bontempi afirma que:

[...] entre os colaboradores efetivos da RBF não figuram filósofos reconhecidamente marxistas [...]. Além disso, embora o instituto recomende a seus membros “serena objetividade na apreciação das doutrinas de que divergem”, Marx e os marxistas sofrem restrições evidentes, quando abordados em artigos e resenhas. (BONTEMPI, 2003, p. 4)

É certo porém que, nos anos 50 e 60, não havia contribuição dos marxistas brasileiros para o campo da filosofia, com exceção de pouquíssimas obras, como os livros que Caio Prado Jr. publicou, Dialética do Conhecimento (1952) e Introdução à Lógica Dialética (1959) - embota nestas obras fosse empregado um rol relativamente pobre de categorias marxistas (COUTINHO, 1989, p. 116). Sendo assim, não havia muitas condições para que os marxistas pudessem figurar entre os autores do IBF. Mas

não se pode ignorar o fato de que o anti-marxismo representa - sem sombra de dúvidas - uma das características centrais de inúmeros artigos e resenhas da RBF. De acordo com Roland Corbisier (1978, p. 80), “Fundado e mantido pela classe patronal, o Instituto [Brasileiro de Filosofia] só poderia ter uma diretriz conservadora”. É importante salientar que em relação ao filósofo e professor da USP, João Cruz Costa (1904-1978), conhecido por suas concepções distintas dos ibeefeanos e por sua simpatia ao nacional-popular, alguns adeptos do IBF mantiveram uma relação de afastamento e até mesmo de hostilidade aberta3. Além disso, nas dezenas de fascículos da RBF, nota-se a publicação de apenas um artigo de Cruz Costa4. Não é exagero afirmar que pontos de vista - filosóficos e ideológicos - antagônicos são o pano de fundo da rivalidade. O elenco dos principais intelectuais que compunham o IBF é outra variável a ser considerada no intuito de estabelecer as tendências que dirigiram o AHF. No ano de sua fundação, o IBF congregava majoritariamente intelectuais identificados com o conservadorismo (liberal ou autoritário), o pensamento católico e uma pequena minoria de simpáticos ao fascismo. Entre outros, podemos enumerar: o líder Reale (1910-2006), Luiz Washinton Vita (1921-1968, secretário do IBF), Teófilo Cavalcanti Filho (1921- 1978), João de Scantimburgo (1915-2013), Renato Cirell Czerna (1922-2005), Vicente Ferreira da Silva (1916-1963), Hélio Jaguaribe (1923-), Cândido Motta Filho (1897- 1977) e Djacir Menezes (1907-1996). Alguns tinham vínculos com as oligarquias estaduais, como Reale, ligado à oligarquia paulista, e Armando Pereira Correia da Câmara (1898-1975), ligado à oligarquia gaúcha. Há ex-integralistas (Reale e Roland Corbisier). Além destes, é importante sublinhar a participação de intelectuais que eram conhecidos por posições não conservadoras ou de esquerda, como Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (1892-1979), Corbisier (1914-2005) e Glaucio Veiga (1923-2010). A verdade é que este rol de intelectuais tinha em Reale seu centro orbital. Portanto, nada mais significativo e emblemático que a atuação orgânica deste renomado intelectual da direita.

3 Por exemplo, Luís Washington Vita calunia Cruz Costa e afirma que ele é “filosofante extravagante e esquisito, que não se propõe nenhuma construção sistemática” (VITA, 1958, p. 337). Reale, por sua vez, agride abertamente o professor da USP, o chamando de “menino” (REALE, 1961, p. 125). 4 CRUZ COSTA, João. História das ideias e valores, Revista Brasileira de Filosofia, v. 10, n. 4, 1960, p. 527-530.

Reale foi o presidente do IBF, de 1949 até seu falecimento em 2006, seu principal líder e intelectual. É considerado um dos principais teóricos do movimento integralista5. Ocupou cargos públicos importantes, como a reitoria da USP (entre agosto de 1949 e julho de 1950 e entre 1969 e 1973); em 1943, passou a integrar o Departamento Administrativo estadonovista, em particular a Pasta do Trabalho; em 1951, foi incumbido pelo presidente Vargas para representar o Brasil na 34ª Reunião da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Há um momento da vida do jurista paulista que é particularmente revelador do conservadorismo. Nos referimos ao período anterior ao golpe, em que ele foi Secretário de Justiça do Estado de São Paulo, particularmente a novembro de 1963, quando ocorreu greve dos trabalhadores da Estrada de Ferro Sorocabana, no rescaldo da Greve dos 700 mil de outubro daquele ano, que ocorreu na cidade de São Paulo. O Secretário logo decreta categoricamente a ilegalidade da greve: “Qualquer que fosse a natureza de sua revindicação, dúvida não há quanto a impossibilidade legal de recorrerem os ferroviários à suspensão coletiva do trabalho [...]”, e afirma em seguida que a greve é subversiva: “[...] a paralisação de um serviço público não atinge diretamente a figura do empregador, mas sim a própria coletividade, com subversão da ordem social [...]” (SECRETARIA DOS TRANSPORTES, 1963, p. 23 - grifos nossos). Em sua fala, Reale não dá margem à negociação com os trabalhadores, já que salienta que a greve é subversiva e ilegal independente de suas razões. A partir da Secretaria da Justiça, Reale teria ampla participação na conspiração para derrubada do Presidente João Goulart. No momento do golpe de 1964, Reale pertencia ao grupo executivo ligado ao Banco Finasa de Investimento, que era associado à organização golpista Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) (DREIFUSS, 2006, p. 830-833). Reale não apenas participou, como foi um dos articuladores civis do golpe junto do governador de São Paulo, Adhemar de Barros, e das conexões deste com os generais golpistas Nelson de Mello, Cordeiro de Farias e o Comandante da II Região Militar (correspondente ao Estado de São Paulo), Amaury Kruel (REALE, 1987, p. 112-114). Reale afirma ainda que, junto de Adhemar, estabeleceu o Porto de Santos como canal de entrada de armas vindas dos Estados Unidos (REALE, 1987, p. 116), em caso de resistência ao golpe e deflagração de uma guerra civil.

5 No período integralista, Reale publicou obras como ABC do Integralismo(1935) e Perspectivas Integralistas (1935), entre outras.

A partir destas considerações, percebe-se a primazia da diretriz conservadora da intelectualidade do IBF, ainda que alguns intelectuais não conservadores ou de esquerda tenham integrado o AHF. Em relação aos intentos hegemônicos do IBF, faremos uma abordagem a partir dos fragmentos a seguir. Lucas Nogueira Garcez, governador do Estado de São Paulo entre 1951 e 1955, em discurso pronunciado durante a inauguração da sede do IBF na capital paulista, em 18 de dezembro de 1952, afirma o seguinte:

São Paulo é o centro do pensamento nacional, pois revela a maturidade da nossa cultura. O que desejamos realizar no Instituto, doravante, atravessará as fronteiras, não pelo seu valor material, mas, sim, espiritual. De hoje em diante, o Instituto Brasileiro de Filosofia, graças ao auxílio que recebe do governo do Estado, e à dedicação de seus componentes, estará presente a todas realizações filosóficas mundiais, afirmando os resultados de nossa experiência mental. [...] a Filosofia é um utensílio, um instrumento, uma arma [...]. (GARCEZ, 1953, p. 170-172)

Garcez, que era um destacado membro da oligarquia paulista e do grupo executivo do Banco Mercantil de São Paulo e da Cie. Financiére Eternit (DREIFUSS, 2006, p. 830-834), ambas associadas às articulações do IPES para a tomada do Estado em 1964, reafirma dessa maneira a “centralidade” de São Paulo, cujo governo financiava o IBF, além de anunciar o uso da filosofia como uma “arma”. O IBF aparece como ponta de lança da difusão da cultura paulista. Além de Garcez, Reale provê uma importante informação em entrevista na qual justifica a fundação do IBF, de acordo com os institutos congêneres fundados por Benedetto Croce (Itália), Ortega y Gasset (Espanha) e Jean Wahl (França):

Desnecessário é dizer que vivemos em um país de reduzida elite, chamada a participar de múltiplos setores de nossa vida social e econômica. O desenvolvimento vertiginoso da vida econômica de São Paulo, não pode deixar de interferir no âmbito universitário, conclamando os seus mestres para uma contribuição positiva. É esta a missão de ordem prática que estabelece um liame muito útil e fecundo entre a Universidade e os grupos da produção econômica. (RBF, 1951-B, p. 325)

Assim, Reale conecta diretamente a filosofia ibeefeana com a oligarquia paulista (“reduzida elite”), além de conceber um papel empresarial da universidade e seus mestres quando diz que há um vínculo (“liame muito útil”) destes com o empresariado (“grupos de produção econômica”). A partir destes fragmentos que citamos, da fala de

Garcez e de Reale, percebemos os aspectos orgânicos da filosofia que tinha no IBF seu centro de desenvolvimento e difusão. E o conceito do AHF permite a seguinte problematização: a filosofia ibeefeana não era neutra, tampouco desinteressada. Ao tomar a filosofia como o seu nicho, o IBF desenvolveu um conteúdo anterior e mais profundo da atividade intelectual humana, indo aos fundamentos do conhecimento, fornecendo uma importante - e imprescindível - base para o poder intelectual como fundamento da hegemonia da autocracia burguesa (FERNANDES, 2006). Em resumo: o IBF se constiuiu em legítimo AHF da oligarquia paulista e, ao se expandir para outros Estados da Federação, de outras oligarquias estaduais e da autocracia burguesa no Brasil.

O IBF e o Golpe de 1964

O golpe de 1964 desencadeou uma onda repressiva sem precedentes na história do Brasil. A contrarrevolução buscou eliminar toda dissidência, principalmente aquela que estava ao lado das classes populares. Mesmo os intelectuais foram perseguidos. Contra as “classes perigosas” valia de tudo para a paranoia reacionária, até mesmo reprimir intelectuais ditos “subversivos”, forçosamente distanciados do povo explorado e oprimido por um precipício de analfabetismo, cujos índices eram absurdos (chegando a 39,6% da população em 1960). Casos emblemáticos são relatados por Nelson Werneck Sodré (MORAES, 2000). O golpe implementou uma onda de terrorismo cultural, realizando prisões arbitrárias de intelectuais como Astrojildo Pereira, (que escapou de uma tentativa de sequestro por agentes da repressão), Florestan Fernandes, Ênio Silveira (editor da Civilização Brasileira), Sodré, entre outros. Houve em torno de cinco mil demissões. Entre os demitidos estavam os renomados , Josué de Castro e Darci Ribeiro. O regime ditatorial estava disposto a destruir “a intelectualidade que marcou a cultura política brasileira durante quase duas décadas” (SODRÉ, 1986, p. 70). Alguns se exilaram, como Paulo Freire, que teve a seu método de alfabetização abolido. Bibliotecas foram fechadas ou expurgadas de obras acusadas de “comunismo”. A sede do ISEB foi invadida e depredada por tropa do exército poucos dias após o golpe, destruindo inclusive materiais que nem sequer haviam sido publicados (SODRÉ, 1986,

p. 122). O mesmo não ocorreu com a sede do IBF na cidade de São Paulo, doada pelo governo daquele Estado em meados dos anos 50. Junto dessa onda de forte repressão, era necessária a justificação moral e filosófica do golpe e da autocracia burguesa, levando a contrarrevolução ao plano intelectual. Aí que entra o IBF e seus intelectuais liderados por Reale.

Miguel Reale e os Imperativos da Revolução de Março (1965)

“A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. [...] a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. [...] Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. [...] Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas [...].” Ato Institucional n. 1, de 9 de abril de 1964 - grifos nossos

Em 1965 surgiu importante obra ibeefeana: Os Imperativos da Revolução de Março, de Miguel Reale. Escrita nos primeiros meses após o golpe, entre junho e outubro de 1964, a obra seria um dos primeiros esforços intelectuais dos golpistas de justificar a tomada do Estado, bem como de sistematizar alguns princípios ideológicos fundamentais para o sucesso da empreitada. Primeiramente, o que chama a atenção é que a obra sai no início da Ditadura Militar (que ainda duraria longos 21 anos), sendo possivelmente a primeira sistematização de filosofia jurídica ditatorial. Os Imperativos confirmam o autor como um dos intelectuais conservadores mais relevantes do Brasil, no século XX. De acordo com Cunha (2014), a obra é um “documento notável, pois é provavelmente a primeira tentativa, vinda dos conservadores, de fornecer uma explicação e um fundo histórico para o que chamavam de ‘Movimento de 31 de Março’”. Este documento é uma tentativa de sistematização de um programa golpista, que ainda não havia sido publicizado naquele momento. A obra em questão reúne nove textos, uma entrevista e a transcrição da “Proclamação de Primeiro de Abril” de Reale, além da introdução do autor e de nota do editor Raimundo de Menezes. Na “Proclamação”, que foi difundida por rádio, o então Secretário da Justiça do Estado de São Paulo, coloca-se como articulador do “movimento” golpista e assegura que “fora de dúvida é a vitória da causa da democracia

e da liberdade” (REALE, 1965, p. 117) - o que coloca fora de dúvida da real adesão do jurista paulista ao golpismo. O momento de publicação dos Imperativos revela um contexto histórico específico da correlação de forças políticas e sociais, nas quais as lideranças civis e intelectuais orgânicos tinham um papel importante na consecução do golpe e do regime dele oriundo. E Reale, um intelectual orgânico renomado da direita, desempenhava uma função não menos importante. Segundo David Maciel (2004, p. 42-43), as lideranças civis tiveram um papel decisivo na articulação do golpe, já que “possuíam um contato político-ideológico estreito com empresários, políticos conservadores e lideranças da sociedade civil [...]”. Portanto, as lideranças civis foram fundamentais na construção do consenso entorno da tomada do Estado e, conforme analisaremos a seguir, na articulação ideológica. Gostaríamos de salientar a construção ideológica que o líder do IBF faz na obra, dando projeção de longo curso à Ditadura que estava em processo de instauração, antecipando uma reforma moral de extensa trajetória. O autor, como abordaremos a seguir, procede duas operações: por um lado, põe em limites estreitos a revolução, concebida como reordenamento jurídico, não permitindo que avance além dos marcos burgueses rumo à revolução proletária. Por outro lado, expande a ordem jurídica por meio do aggiornamento (reformulação e atualização) jurídico da autocracia burguesa. Neste segundo momento, projeta uma reforma moral balizada por normatização autoritária, que passa a englobar o todo, visando estabelecer novas relações de força e poder mais favoráveis à classe dominante. E, como veremos, estas duas operações são unificadas pelo autor. Nos Imperativos, o jurista paulista constrói uma concepção de revolução acorde com o movimento golpista - esta é a primeira operação de sua construção6. Por duas razões isso é crucial: por um lado, a ideia e questão da revolução brasileira era decisiva na ótica dos intelectuais da esquerda (por exemplo, para Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré); por outro lado, conceber a tomada do Estado de 1964 e o regime dele

6 Interessante notar as fontes que recorre o autor para fundamentar sua concepção de revolução. Ele cita Alfredo Rocco (Trasformazione dello Stato, 1927) e Plínio Salgado (Psicologia da revolução, 3. ed., 1937) (cf. REALE, 2000, p. 86). Rocco foi responsável por desenvolver a teoria do corporativismo, que fundamentou a política econômica e social do governo fascista na Itália. Salgado é amplamente conhecido como principal líder do movimento integralista. Reale diz ainda que Lênin e Trotsky são acordes com essa concepção, mas isso é jogo de pura retórica dissuasiva do autor, não condizendo com a realidade. As raízes integralistas do pensamento jurídico de Reale já foram apontadas por Athanis Rodrigues (2014).

oriundo como “revolução” permitia escamotear o fato de que se tratava de golpe e ditadura. Neste sentido, é interessante notar o fragmento a seguir:

Uma Revolução, que surge sem uma ideia diretora, deve constituí-la através de um trabalho de exegese, que desça serenamente até os refolhos da alma popular. [...] Se me perguntarem qual o sentido mais decisivo a atribuir-se a esta Revolução, direi que é o da “honestidade” ou da “seriedade”, não apenas como valor ético, como exigência moral, mas também como pressuposto de ordem intelectual, como imperativo de opção no plano político e administrativo. (REALE, 1965, p. 12 - grifos nossos)

O autor qualifica a “Revolução” de forma positiva, com o “valor da ‘seriedade’ e da ‘honestidade’” (REALE, 1965, p. 26), em contraposição à “corrupção” do “governo [de João Goulart] convertido em mestre e senhor da mazorca” (REALE, 1965, p. 95). Segundo Reale, vinha se sucedendo “a deterioração da autoridade e a subversão dos valores hierárquicos” (REALE, 1965, p. 95). Na exposição da “revolução”, o jurista paulista estabelece importante diretriz ao movimento golpista, que é a da “reforma dos costumes” até as partes mais profundas (“refolhos”) da “alma popular”, fazendo da contrarrevolução não apenas um processo político e militar, mas a elevando à totalidade quando a engloba nos aspectos social e cultural. A outra operação realizada por Reale que estamos apontando é a questão do aggiornamento jurídico (das normas e da Constituição) da autocracia burguesa. Segundo ele, diante da “solerte propaganda comuno-janguista”, diz, “o ato revolucionário por si já implica a ruptura do ordenamento jurídico vigente” (REALE, 1965, p. 99). O autor expressa a necessidade de reformular a Constituição de 1946, que teria “se mostrado incapaz de opor uma barreira ao desmando e às maquinações do comunismo internacional” (REALE, 1965, p. 99). Um dos motes principais dos estratos sociais golpistas era o anticomunismo. Segundo David Maciel (2004, p. 43), “O anticomunismo era uma noção ampla o suficiente para abarcar os setores políticos vinculados à tradição comunista ou ao marxismo, bem como toda e qualquer ação ou articulação desestabilizadora da ordem social numa perspectiva contra-hegemônica”. Assim, muito além de uma questão ética ou moral, a pregação anticomunista era um fator estratégico de desmobilização das forças contra-hegemônicas, que potencialmente poderia ser uma alternativa à autocracia burguesa, bem como de justificação dos rumos enveredados pela Ditadura logo nos primeiros meses do regime.

O Ato Institucional n. 1 (AI-1) é fundamental na construção do jurista paulista. Segundo Reale (1965, p. 101), “O Ato Institucional foi [...] o caminho certo encontrado pela revolução”. Afirma ainda que “toda revolução, como escrevi em meu livro Teoria do Direito e do Estado, alberga uma ordem jurídica potencial, por ser a ruptura de uma ordem jurídica tendo em vista a instauração de um sistema novo, acompanhado necessariamente de correlativa mudança espiritual do povo” (REALE, 1965, p. 101- 102), e que “toda revolução assinala o início de uma nova fase na vida do direito, possuindo valores que justificam a emanação de normas de caráter excepcional, [...] para prevenir outros atentados ao regime que se quer preservar e aperfeiçoar” (REALE, 1965, p. 105-106). O autor concebe a revolução truncada de forma unificada com a expansão da ordem jurídica, visando a reforma moral. Seguindo a indicação que o autor fornece nos Imperativos (REALE, 1965, p. 101), na obra Teoria do Direito e do Estado (1940), ele afirma que revolução “é sempre ruptura de uma ordem jurídica tendo em vista uma ordem jurídica nova” (REALE, 2000, p. 86), o que implica em um limite estreito ao que venha ser uma revolução, evitando que esta se identifique com a ruptura do sistema capitalista, mas, antes disso, que implique não mais do que o aggiornamento dos aspectos jurídicos da autocracia burguesa. Além desse limite que trunca a revolução, que enquadra nos marcos da autocracia burguesa, Reale coloca a questão da Ditadura em termos de quebra da velha ordem jurídica e da necessária e subsequente reforma jurídica do Estado, com a construção de nova ordem jurídica. Isso permite ao regime a fórmula a “miragem jurídica” (PACHUKANIS, cit. epígrafe) que visa escamotear o domínio burguês, sob o manto de um “necessário” reordenamento jurídico articulado por normas apresentadas como objetivas e impessoais. A partir da contribuição de Pachukanis (1988), é possível problematizar teoricamente o autoritarismo dos juristas burgueses. O jurista paulista reafirma o AI-1 (cit. epígrafe) e coloca da forma mais acabada o autoritarismo dos juristas burgueses quando propõe uma reforma moral, colocada em termos da “reforma dos costumes” e da “mudança espiritual do povo” (REALE, cit. supra). Além disso, os representantes da “revolução” são apresentados como “a autoridade suprema” que “formula as normas e engloba o todo” (PACHUKANIS, 1988, p. 19), fazendo da norma uma “prescrição imperativa” (PACHUKANIS, 1988, p. 60) para reforma da moral. Desta forma, Reale

acaba por conceber a “norma como regra de conduta, formulada autoritariamente” (PACHUKANIS, 1988, p. 51). Por fim, não podemos ignorar o fato de que por trás da reforma moral que deveria descer “até os refolhos da alma popular” (REALE, cit. supra), havia o AHF/IBF, que, conforme a definição, “busca a difusão de uma filosofia, de uma concepção geral da vida” (cit. supra). Tal projeto veio em acorde com a função orgânica do AHF/IBF, que visa orientar os fundamentos da civilização burguesa, os colocando sob o influxo da autocracia burguesa e dando um fôlego de duas décadas à Ditadura.

Conclusão

A autocracia burguesa é incapaz de sustentar-se pelo uso da força sem o respaldo fundamental do consenso. Neste sentido, a construção da hegemonia (GRAMSCI, 2002, p. 95)7 e do consenso não pode prescindir de intelectuais orgânicos que dão à classe dominante consciência da própria função no campo econômico, social e político. Ou, como diz Gramsci: “Os intelectuais são os ‘prepostos’ do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político” (GRAMSCI, 2004, p. 21). No entanto, a atuação orgânica dos intelectuais não é obra individual de intelectuais isolados, ela se consolida em estruturas orgânicas do poder burguês, dando-lhe homogeneidade, desenvolvimento e difusão. Neste sentido, cumpriu papel fundamental o IBF, que desenvolveu fundamentos e pressupostos no plano da ideologia e da filosofia indispensáveis à direção moral e intelectual da autocracia burguesa. Dessa maneira, identificamos no Instituto um verdadeiro aparelho de hegemonia filosófico. Portanto, o IBF e sua intelectualidade cumpriam uma importante função para a autocracia: elaborar a consciência conservadora, capaz de justificar nos planos moral, intelectual e ideológico a ditadura de classe, que uma vez naturalizada pela tradição conservadora remendada pelos ibeefeanos, reforçou o consenso que criou entorno de si. O IBF e seus intelectuais foram um dos responsáveis pela expansão autocrática nos planos intelectual, moral e espiritual. Reale, por sua vez, camufla o autoritarismo em formulações jurídicas que aparecem sob a roupagem de

7 Gramsci define que “O exercício ‘normal’ da hegemonia, no terreno tornado clássico pelo regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública - jornais e associações -, os quais, por isso, em certas situações, são artificialmente multiplicados [...]”.

normas objetivas e imparciais, uma vez que a subordinação da classe trabalhadora ao capital e sua coação não podem “surgir sob forma não camuflada” (PACHUKANIS, 1988, p. 98). Vê-se por parte desse intelectual conservador a projeção de longo curso da autocracia, mirando passado, presente e futuro.

Referências Bibliográficas

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