Visões de Vargas: uma comparação entre as memórias de três intelectuais

Visions of Vargas: a comparison between the memories of three intellectuals Visiones de Vargas: Una comparación entre las memorias de tres intelectuales

Eduardo Gusmão de Quadros*

Resumo Os relatos autobiográficos nem sempre foram muito valorizados como fonte históri- A literatura autobiográfica é uma rica ca. Havia aquela busca de saber o que acon- fonte para o conhecimento do passado, teceu, dentro de uma perspectiva objetiva, e apesar das armadilhas que apresenta. o mais interessante do relato memorialístico Este artigo aborda três obras desse gê- é justamente o julgamento sobre o aconte- nero, publicadas por intelectuais mili- cido. É verdade que os autores costumam tantes: o católico , valorizar a objetividade de seus relatos, in- o comunista Nelson Werneck Sodré e o vocam provas e documentos como compro- liberal de direita Miguel Reale. O eixo da vantes do que escrevem. Porém, se os rela- investigação é a interpretação que estas tos ficassem apenas na descrição, por que fizeram da Revolução de 1930 e do Pre- seriam necessários tantos registros pessoais? sidente Vargas. George Duby (1990, p. 45) fala da des- confiança que aprendera a ter com esse tipo Palavras-chave: Intelectuais. Autobiogra- de fonte, individualista e subjetiva. Amplia, fia. Revolução de Trinta. Getúlio Vargas.

* Doutor em História pela Universidade de Bra- sília. Professor da Universidade Estadual de Goiás e da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

Recebido em 01/09/2012 - Aprovado em 12/01/2013 http://dx.doi.org/10.5335/hdtv.13n.2.3720

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 295-305 até, para a desconfiança com as narrativas 3 – A inscrição de uma postura dialogal em geral, sempre relatos fragmentários que em que a autodesignação conjuga-se dão a impressão de totalidade e de veraci- com o ato de apresentar-se a outrem dade. Os paradigmas mudaram, e são os as- pedindo: “confie em mim”. pectos subjetivos – totalizantes e verídicos, 4 – O pedido de crédito que pressupõe em certo sentido – que, hoje, busca-se captar uma desconfiança por parte do ou- nos processos históricos. Daí a relevância vinte/leitor. Essa atitude de suspeita que passou a ser dada aos estudos biográfi- demanda do autor a argumentação cos e da memória, feitos com maestria pelo retórica típica do espaço público; próprio Duby (1995) em sua maturidade. 5 – A dimensão ética do relato demons- Não devemos, contudo, exagerar nas trada pelo “encontro” – de natureza oposições. Seria uma armadilha epistemo- fictícia, claro – pois há uma promes- lógica optar pelo subjetivo ou pelo objetivo, sa do enunciador de ser autêntico, de pelo individual ou pelo coletivo, pelo par- expor sua individualidade, sendo ple- ticular ou pelo total. De maneira isolada, namente verdadeiro; qualquer um desses termos seria uma mera 6 – A natureza social do testemunhar, abstração, espécie de entidade metafísica. que inclusive institui os agentes so- A lembrança está exatamente no espaço in- ciais, certos hábitos de memória, re- termediário, em movimento dinâmico por gras narrativas, atitudes linguísticas, meio desses polos. enfim, uma reciprocidade fiduciária Pode-se compreender isso melhor a entre as vidas vinculadas (RICOEUR, partir da categoria de testemunho. Ela con- 2000, p. 204-208). fere ao relato um grau de autenticidade, de Pode-se perceber que os três primeiros confiabilidade, ao mesmo tempo em que exi- tópicos apontam mais para o si mesmo, para ge do leitor/ouvinte atitude de averiguação. o “auto” da autobiografia, enquanto os três Paul Ricoeur caracteriza bem, em seis pon- últimos indicam a importância social do ato tos focais, a importância e a dificuldade de de contar a vida. É com essa visão herme- trabalhar com essa forma de relato. A litera- nêutica que estudaremos as três obras sele- tura testemunhal, assim, representa: cionadas, buscando compreender melhor o 1 – A afirmação de uma realidade factual, período da Revolução de 1930 e do Estado acerca do acontecido, acoplada com a Novo. São livros autobiográficos, de autores declaração da experiência de seu au- com opções distintas em suas carreiras, ape- tor - seu “discurso” - indicando uma sar de todos serem intelectuais de renome forma possível de compreender o nacional desde aquela época. As obras se- passado; lecionadas são as Memórias improvisadas, de 2 – A centralidade da autodesignação no Alceu Amoroso Lima (1972), um pensador registro, afirmando a capacidade do católico envolvido nas questões sociais e po- sujeito de relatar, resumida pela fór- líticas e as Memórias de um soldado, redigidas mula: “eu ali estava”; pelo intelectual comunista Nelson Werneck

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 295-305 Sodré (1967). A terceira, as Memórias escritas nos debates públicos e sejam formadores de por Miguel Reale (1987), professor de direito opinião. e politicamente de direita. Com isso, vere- Daniel Pecault trabalhou com essa mos olhares distintos acerca do personagem perspectiva a respeito da história brasilei- Getúlio Vargas. ra. Ser intelectual, afirma logo de início, “é ser engajado e atuar em causas que não lhe Armadilhas intelectuais pertencem” (1990, p. 5). No entanto, esse de- sinteresse pessoal que os leva a agir sobre o O termo intelectuais utilizado para que “não lhes pertencem” torna-se bastante unificar os três autores não é tão claro quan- relativo, pois como demonstrou o próprio to parece. A figura do intelectual é relativa- autor, a relação entre a produção intelectual mente recente, podendo ser datada dos fi- e o estado brasileiro sempre foi íntima. Um nais do século XIX. Verdade que Jacques Le “lucro” pessoal sempre aparece nessas rela- Goff aplicou esse termo a um livro sobre o ções com a governabilidade. Sérgio Miceli período medieval (LE GOFF, 1988). Contu- (1979), certamente o maior estudioso brasi- do, seu estudo é voltado para os professores leiro sobre a temática, demonstra igualmente universitários e teólogos, não para os escri- essa situação de dependência ao dissecar as tores propriamente ditos. estratégias daqueles que buscaram viver “de O conceito, portanto, tem suas am- ideias” nas décadas de 1920 e 1930. Os pes- biguidades. Jean-François Sirinelli tentou quisadores trazem em comum o referencial defini-lo, afirmando sua importância para a interpretativo das teorias de Pierre Bourdieu. história política, mas conclui que os contor- O famoso sociólogo francês voltou vá- nos do grupo são demasiados vagos e im- rias vezes à temática em sua extensa obra precisos (1996, p. 233). De qualquer modo, (BOURDIEU, 2004). O pressuposto de suas existe certa sociabilidade, certos ambientes análises é exatamente este: viver pelos ide- e gostos comuns que identificam esse gru- ais, produzindo e divulgando ideias, possui po. Michel Winock (2000) teceu um amplo uma dimensão material forte, espaços cons- mapeamento dos intelectuais franceses, suas tituídos socialmente, especialmente nos últi- revistas, produções e militâncias, mas nas mos dois séculos, para a consagração desses quase mil páginas de sua obra evita dar uma “criadores de cultura”. Portanto, suas obras definição cabal. O que fica evidente é que os só podem ser plenamente compreendidas intelectuais conjugam seus dotes artísticos – dentro da produção de bens simbólicos que no caso específico, a escrita literária – com o gestam e perpetuam o próprio campo inte- engajamento em problemas sociais e políti- lectual. cos de seu tempo. Outra conclusão a que se Apesar da sofisticação das teorias pode chegar com esta ampla pesquisa é que bourdieusianas, a nosso ver, ele pouco avan- os intelectuais estão sempre em construção, çou em termos de método em relação ao que vivendo com um grau de incerteza e insta- já propunha Antonio Gramsci na primeira bilidade, mesmo que mantenham liderança metade do século passado:

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 295-305 O erro metodológico mais difundido, ao escrever são tão fundamentais quanto as im- que me parece, consiste em se ter buscado pressões que deixaram registradas e, agora, esse critério de distinção no que é intrín- podem ser lidas. seco às atividades intelectuais, ao invés de buscá-lo no conjunto do sistema de rela- ções no qual essas atividades (e, portanto, A síntese de Alceu os grupos que as personificam) se encon- tram no conjunto geral das relações sociais (GRAMSCI, s/d, p. 10). Comecemos pelo mais velho dos três. Alceu Amoroso Lima nasceu em 1893 no Rio Esse princípio nos leva a ler com certa de Janeiro, formou-se em direito, foi profes- desconfiança as narrativas autobiográficas sor e crítico literário, tornando-se famoso dos intelectuais. Afinal, elas são centradas por sua militância católica. Esse diferencial na consciência, em dados lembrados e re- religioso é destacado em suas Memórias im- constituídos em forma de uma narrativa provisadas, que retoma diversas vezes o tema coerente, e sabemos que a vida não ocorre de sua “conversão”, ocorrida em 1928. bem assim. Por outro lado, os autores que Além desse diferencial, a obra distin- se propuseram a redigir memórias buscam gue-se das outras por não ser exatamente apresentar um lado oculto de suas carreiras, uma autobiografia, mas uma série de en- aspectos subjetivos que, aos olhos dos auto- trevistas concedidas ao jornalista Medeiros res, lhes pareceram relevantes para registro. Lima por cerca de oito meses. O título pode Tal aspecto interpretativo dos fatos públi- remeter ao aspecto de memória provocada, cos, como afirma Ângela de Castro Gomes, de relato biográfico construído a partir das é o que torna “a escrita de si” tão relevante perguntas, mas, curiosamente, encontramos como fonte histórica (2004, p. 15). uma obra com título idêntico, feita por ou- Os escritores assumidos, neste artigo, tro converso ao catolicismo: Paul Claudel como fonte construíram visões interpreta- (1954). Alceu, é bom lembrar, escreveu um tivas de quem fora Vargas e comentaram pequeno ensaio em que demonstra sua ad- como conseguira permanecer por mais uma miração pelo poeta e dramaturgo francês e, década no cargo supremo da Nação. Faz- talvez, tenha sugerido esse título idêntico1. -se relevante tratar da reconstrução de si, Quando ocorreu a Revolução de 1930, da narração de suas vidas, em consonância Alceu já coordenava o Centro D. Vital, que com os fatos e personagens que vivencia- reunia intelectuais e militantes católicos. ram, sem que um nível sobreponha-se exa- Esse centro tem sido considerado um bas- tamente ao outro. Nosso olhar externo, de tião do pensamento político conservador historiador que conhece outras fontes docu- e a revista que editava, denominada A or- mentais, sobrepõe outra dimensão de aná- dem, expressava isso em seu próprio título lise ao localizar suas atividades intelectuais (DIAS, 1996). A postura predominante era dentro de uma rede maior, na sociabilidade a de lutar pela presença dos ideais católicos que demarca as lembranças que expuseram. na política, na sociedade e na cultura. Nada Essas condições do perceber, do pensar e do de conformismo, destarte, mas um trabalho

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 295-305 árduo vinha sendo feito em torno do projeto Uma comprovação dessa posição é a de neo-cristandade2 em vigor. O movimento criação da Liga Eleitoral Católica. Essa orga- político de Getúlio Vargas não seria um mo- nização deveria orientar o voto dos católicos mento propício para executá-lo? para os candidatos que seguissem os princí- Alceu lembra-se do dia 24 de outu- pios pregados pelo catolicismo. Alceu foi o bro de 1930 no qual estava indo à delegacia secretário geral da Liga e em suas memórias de polícia para interceder por uns amigos. ressalta que naquele momento “a igreja as- Sabia do movimento revolucionário pre- sumia um papel intervencionista na política, viamente, pois fora avisado pelo Cardeal embora no plano suprapartidário” (1972, p. D. Leme, arcebispo do Rio de Janeiro. Esse 309). A nosso ver, essa postura de se res- cardeal foi o negociador do afastamento de guardar, de uma posição fora dos conflitos, Washington Luis, buscando garantir tanto é típica de uma instituição que se considera os direitos do presidente derrubado quan- sagrada. É como se ela observasse a história de forma independente, ou do ponto de vis- to o não derramamento de sangue3. Ao sair ta de Deus. da delegacia, já havia um carnaval nas ruas, A postura ambígua permanece em ou- diz ele (LIMA, 1972, p. 214). A impressão tros trechos. Avaliando o Estado Novo, por transmitida é que a Revolução de 1930 fora exemplo, Amoroso Lima começa criticando: desejada pela população e pela igreja, conse- guindo a vitória sem cometer muita violên- Tendo sido contrário à revolução de 1930, cia. Entretanto, alguns parágrafos depois, o não aceitei também o golpe de 1937. Não podia concordar com a transformação do autor afirma categórico: “fui contra a revolu- estado nos termos em que era feita. Trata- ção de 1930 [...]; fiz questão de dar de públi- va-se de um retrocesso, já que substituíam co o meu testemunho de desaprovação a um as instituições livres por um sistema base- movimento que me parecia contrário aos ado no autoritarismo e no centralismo po- lítico, contrário ao espírito federativo e às interesses nacionais” (1972, p. 417). Como liberdades públicas. (1972, p. 218) entender tal divergência? Poderíamos invocar as variações cons- Contudo, algumas linhas abaixo ele pos- tantes da memória, ou o poder de reconstru- tula que: “O Estado Novo errou politicamente, ção da consciência que costuma remodelar mas acertou socialmente” (1972, p. 219). Essa e apaziguar os conflitos. Entretanto, cremos reavaliação positiva prossegue ao descrever que a ambiguidade apontada de algum modo a personalidade do presidente da República, reflete a posição oficial do catolicismo. Havia com quem teve diversos encontros: setores que apoiavam Vargas desde a cam- Foi uma pessoa afável, risonha, simpáti- panha presidencial, como D. João Becker, o ca, com grande habilidade no trato dos homens e sem nenhum sinal de arrogân- arcebispo de Porto Alegre. Por outro lado, D. cia dos caudilhos e ditadores modernos. Leme, considerado o líder da igreja brasileira [...] Foi um civil, sereno, singular, amável, e interlocutor privilegiado junto ao governo perspicaz, que soube admiravelmente revolucionário, faz questão de resguardar a compreender a psicologia do povo bra- independência da instituição eclesiástica. sileiro e pegava as ocasiões pelo cabelo (1972, p. 219).

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 295-305 O mais característico da narrativa de conservando-os “cuidadosamente guarda- Alceu está nessa busca de sínteses impos- dos e separados, conforme a procedência e o síveis, dessas avaliações nas quais ele tenta assunto”. Ele reconstitui sua vida, portanto, identificar o bem e o mal colocando-se, para mesclando as lembranças com esses “papéis ser correto, além destes. Ele chega a denomi- velhos”, e busca evitar “a deformação que nar tal capacidade de análise de “fatologia”, a distância no tempo lhes confere” (1967, invocando um princípio, para nós, da filo- p. 245). sofia positivista, mas que ele afirma perten- Outro exemplo do rigor da sua escrita cer à escolástica medieval: “Diante do fato autobiográfica advém das exigências morais não há argumento” (1972, p. 276). Então, a que expressa. Confessa, com certa discrição objetividade de suas descrições tornaria-se é certo, algumas falhas que cometeu como inquestionável, exatamente porque ele teria colar na escola (1967, p. 67), ou a punição esse afastamento crítico necessário à análise excessiva que aplicava aos negros e nordes- dos bons intelectuais. Com religião ou não, tinos no início de sua carreira militar (1967, reforça-se um mito. p. 112). Esse grau de exigência alto lhe pa- rece característico dos jovens oficiais que, A disciplina de Sodré como ele, queriam praticamente “consertar o exército” (1967, p. 104), mas nota-se na Nelson Werneck Sodré ficara conhe- narrativa que o impulso não morrera com cido pela aplicação das teorias marxistas à sua juventude. história e à literatura brasileiras4. Contudo, Um terceiro aspecto a ser destacado das páginas de seu livro de memórias emer- são as “lições” que extrai de alguns acon- ge um retrato bem diferente do dogmático, tecimentos. O texto aproxima-se de uma autoritário e pouco criativo intelectual co- crônica em seu cuidado com a cronologia e munista pintado por José Carlos Reis (1999, com a objetividade, mas uma vez ou outra o p. 145-172). Não há, aliás, corte radical entre professor Nelson, da Escola do Estado Maior, o pesquisador, o militar e o comunista na emerge fornecendo princípios gerais, como sua narrativa autobiográfica, nem existem se quisesse ensinar seus leitores como agir. grandes rupturas a exemplo da “conversão” No caso das punições, por exemplo, ele con- enfatizada por Alceu. clui que: As Memórias de um soldado seguem uma O equilíbrio de um julgamento vem com a cronologia rígida, desde o nascimento do in- experiência, nem sempre diretamente liga- telectual militar, em 1911, no Rio de Janeiro. da ao tempo, mas à capacidade em apren- der as lições da vida mais difíceis que as Existe em sua escrita um cuidado especial dos livros. É um erro supor que os subor- em não ser anacrônico e projetar opiniões dinados apreciam a cega e indiscriminada tardias em um período anterior. Com essa benevolência, que transforma a tolerância intenção enunciada, ele confere certo ar de em licença; eles são justos na avaliação da autoridade, quase sempre: o julgamento cientificidade quando confessa que não cos- dos que dependem de nós é melhor do que tuma rasgar “papéis, cartas, documentos”, o dos pares... (1967, p. 117).

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 295-305 Em 1930, Nelson era ainda estudante Essa duplicidade nos repugnava: a falsa interno do colégio militar no Rio de Janeiro. ideia de que pode haver sinceridade e pu- reza onde, por condições essenciais, tais Essas condições não o impedem, entretan- virtudes estão naturalmente excluídas, to, de exercer sua curiosidade em observar domina o ingênuo julgamento das pessoas os primeiros passos do novo regime. Um da classe média, entre as quais as dos mili- pouco antes de outubro, comenta a revolta tares destacam-se como típicas. O ideal de dos “sentimentos populares” com o resul- austeridade em que se embalam, sincero sentimento que preside a escala de valores tado forjado das eleições presidenciais. Há a que obedecem, revela, apenas, desconhe- opiniões diversas e Getúlio Vargas “fez as cimento das relações essenciais da vida em declarações ambíguas em que era mestre, sociedade, em um regime como o nosso mantendo as pontes com o Catete” (1967, (1967, p. 143). p. 47). Como se vê, ele aponta para certa Apesar da autocrítica expressa, é essa aus- base popular do movimento outubrista, sen- teridade e um alto grau de exigência moral que tido na capital federal, além de considerar o marca as reflexões de seu texto autobiográfico. A caráter negociador de Vargas como algo ne- escrita de si está marcada pela procura de coerên- gativo. Pelos dados que coloca em sua narra- cia, que ele projeta, na citação acima, ao campo tiva, essa não era somente sua opinião, mas da política. Teoricamente, sabe que isso é im- pode ser estendida a setores do exército que possível “em um regime (capitalista? corrupto?) acabaram por entregar o poder e empossar como o nosso”. Maquiavel, afinal, já demonstra- Getúlio (1967, p. 51). ra como a política não pode ser feita pela sin- As ambiguidades getulistas são reto- ceridade e pelas boas intenções, mas o pensador madas quando declara seu apoio ao movi- italiano, igualmente, ressaltava o valor da virtú. mento constitucionalista de 1932: Parece-nos que Miguel Reale soube desfrutar Confesso que minhas simpatias iam para melhor desse aspecto da ação política, buscando aqueles que se haviam levantado, pregan- seguir a fortuna5. do o restabelecimento da disciplina e o re- torno às normas constitucionais. [...] Já (es- tava) desiludido quanto às possibilidades O enigma de Reale de melhora do governo provisório, sempre fugidio e indeciso em suas atitudes... (1967, Quando eclodiu a Revolução de 1930, p. 81). Miguel era um estudante de 20 anos cursan- Claro que, Nelson, também, vê o opor- do Direito na Faculdade de São Paulo. Vivia, tunismo do presidente em algumas ocasi- ali, o clima de agitação pré-revolucionária, os ões, ao explorar principalmente o “medo debates sobre o programa político da Alian- ao comunismo” após a Intentona de 1935 e ça Liberal e a vitória não comemorada do às vésperas do Estado Novo. Já instalada a paulista Julio Prestes nas eleições presiden- ditadura, ele tece uma autocrítica de suas ciais. Aquela juventude estudantil era con- análises no período partindo, da falta de cla- tra os jogos políticos oligárquicos, apoiando reza nos rumos da política e das alianças de o movimento revolucionário que impediu a última hora comuns nesse campo: posse do presidente eleito. Ele logo ressalta

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 295-305 o significado ambíguo do regime instituído prisão dos líderes da AIB, o estudante re- por Getúlio Vargas, já que solveu fugir clandestino para a Itália, con- [...] gerou novos problemas de cunho so- seguindo retornar cerca de um ano depois. cial e econômico; inoculou o fermento das Foi, então, que se formou e tentou começar ideologias, do Fascismo ao Comunismo; sua carreira de professor de direito mediante rompeu com as antigas oligarquias esta- duais, fazendo emergir o povo brasileiro e concurso público. Após alguns quiproquós, passando para o cenário amplo da Nação ele acabou tendo de recorrer ao presidente os problemas que eram antes previamente da República para tomar posse do cargo de resolvidos nos quadros estreitos das fron- docente. teiras dos Estados[...]. Minha geração vi- veu intensamente esses contrastes... (1987, O encontro ocorreu com bastante temor p. 58). por parte de Reale, que não sabia qual seria a reação de Vargas. O diálogo transcrito nas Tal avaliação indica a dificuldade de Memórias é deveras interessante. Depois de construir um juízo claro na época dos acon- fazer o relato do problema na audiência, “o tecimentos. Aponta, ainda, para o que irá se presidente sorriu enigmaticamente e, após seguir na narrativa, pois a autobiografia de uma baforada de charuto”, teria dito: Miguel Reale dedica boas páginas acerca de sua militância na Ação Integralista Brasileira - Pode ficar descansado. Se o Conselho Federal de Educação reconhecer seu direi- (AIB) durante os anos de 1930. Não é que se to, este será respeitado. E comentou: Pelo arrependa de ter participado do movimento, visto, a Faculdade de Direito de São Paulo bom deixar claro, pois ele assume suas ações continua sendo a fortaleza do passado. 6 e escritos de juventude . Contudo, essa opi- Entretendo conversa cordial, confiden- nião, expressa cinco décadas depois, parece ciou-me que sempre tivera atração pelos preparar o leitor para o engajamento visce- estudos de filosofia [...]; arrematou suas ral que fará naquela associação. considerações lembrando que chegara a alimentar o propósito de tornar-se pro- Plínio Salgado, o famoso líder da AIB, fessor de Filosofia do Direito, em Porto era da mesma cidade de Miguel, São Bento Alegre, mas convidado por Borges de Me- de Sapucaí, em São Paulo. O encontro entre deiros para ser deputado, sua vida tomara os dois ocorreu em outubro de 1932, haven- outros rumos. do logo grande sintonia (REALE, 1987, p. - Se perdemos um filósofo do Direito, co- 72). Graças a isso, o primeiro livro, do ainda mentei prontamente, a Nação ganhou um grande estadista (REALE, 1987, p. 152). estudante de direito, foi publicado, abor- dando as características do Estado Moderno. O diálogo é cheio de ambiguidade. O O ideal básico expresso era o do corporati- presidente Vargas exime-se de intervir, mas vismo, associado ao nacionalismo e à busca seu comentário irônico deixa transparecer da ordem. que ele apoia ao que fora requerido. Afinal, Miguel Reale chegou à direção do mo- falava o líder maior da Revolução de 1930, vimento integralista, ocupando o importan- feita em nome da mudança, do novo Brasil te cargo de secretário nacional de doutrina. e da ruptura com o passado. Seria, assim, Após o chamado putsch contra Getúlio7 e a uma referência às oligarquias paulistas en-

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 295-305 casteladas na Faculdade? Mas peso dado ao Como se vê, o comportamento do pro- passado pode ser também uma referência à fessor é também ambíguo, semelhante ao de vida pessoal de Miguel Reale, que por cau- Getúlio. Enquanto integralista participara sa de seu envolvimento com o integralismo do golpe frustrado contra o presidente e de- fora impedido de assumir o cargo. Esse fato pois contribui integralmente para seu regime. estaria sendo colocado acima da avaliação Ainda antes do fim do Estado Novo, estará de sua competência. novamente na oposição. Ele, também, pare- Curiosamente, a conversa direciona-se ce se posicionar de acordo com as circuns- para lembranças pessoais, para o passado de tâncias, mesmo que o texto das Memórias se Vargas, e o clima parece ficar menos tenso. esforce retoricamente para demonstrar a co- Uma identificação entre ambos é logo esta- erência da vida e da obra. belecida, pois teriam o gosto pela filosofia do direito. Assim, o complemento feito pelo Considerações finais advogado é, igualmente, ambíguo, pois um grande estadista traz para a prática uma fi- As várias visões de Vargas aconte- losofia da governabilidade, tema central da cem porque Getúlio Vargas foi um político filosofia do direito. Vargas, então, seria os de muitas faces? Não necessariamente. Em dois, mesmo não tratando sistematicamen- que pese a dificuldade de interpretar esse te da reflexão acadêmica. O elogio realizado personagem histórico e sua herança política de maneira objetiva, em linguagem indireta, (CAMARGO, 1999), pode-se considerar que não envolve necessariamente o apoio pesso- as pessoas são cotidianamente plurais e no al ao regime varguista, mas deixa implícito cenário social desenvolvem muitos papéis. o reconhecimento de sua habilidade com as As avaliações expressas pelas memórias dos palavras, os gestos, as atitudes e ideias. intelectuais aqui tratados, homens hábeis na O artifício de Reale deu certo e ele reflexão e nas palavras, refletem a própria assumiu, não sem graves conflitos com os identidade e os valores que propagam. estudantes por causa do engajamento no Isso não significa que sejam sem valor integralismo, a cátedra de filosofia do di- ou que inventem Vargas infinitos. A litera- reito. A contrapartida não tardou, pois dois tura testemunhal contém descrições de ex- anos mais tarde o presidente convidou-o periências vividas pelos atores, possuindo para compor o Conselho Administrativo do tanto veracidade quanto verossimilhança. Estado de São Paulo. Esse órgão era uma Como indicou a perspectiva teórica de Ri- peça chave na organização do Estado Novo, couer, deve-se evitar os polos extremos na responsável tanto por decisões legislativas análise, rejeitando ruptura ocorrida entre os quanto executivas. Getúlio teria dito que estudos da memória e a epistemologia do precisava de “sangue novo em São Paulo” e testemunho. Miguel aceitou o convite de imediato (1987, A primeira corrente provém dos her- p. 164). deiros de Halbwachs, ressaltando o lado social da lembrança, sua (re)construção pelo

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 295-305 presente, as estratégias de manipulação pe- tes: el católico Alceu Amoros Lima, el los grupos sociais e seu caráter representa- comunista Nelson Werneck Sodré y el - cional. Um bom exemplo dela está na obra beral de derecha Miguel Reale. El eje de dirigida por Pierre Nora (1984-1987). Já, a la investigación es la interpretación que vertente voltada para o estudo do testemu- hicieron de la Revolução de Trinta y del nho, tem sido desenvolvida principalmente Presidente Vargas. no mundo anglo-saxão. Seus fundamentos Palabras-clave: Intelectuales. Autobiogra- envolvem mais a psicologia, a pragmáti- fía. Revolução de Trinta. Getúlio Vargas. ca dos discursos e a filosofia analítica, en- contrando-se uma boa síntese no artigo de Notas Jonanthan Adler (2010). Ora, os aspectos individuais e sociais estão longe de serem 1 Alceu Amoroso Lima teve encontros, na década opostos, sendo evidente que ambos consti- de cinquenta, com Claudel e nesse opúsculo de- monstra uma profunda admiração pelo teatrólo- tuem-se com base nos vínculos estabelecidos go francês (LIMA, 1959). pelas lembranças . Com as fontes históricas 2 Esse conceito tem sido trabalhado na historio- grafia de maneira ampla, lançado pelo grupo da autobiográficas, também, é assim. CEHILA no início da década de 1970 do século passado. Ele indica a busca da reconquista, da re- tomada da influência cultural e política do cato- Abstract licismo na sociedade latino-americana, inspirada pelo neo-tomismo e por uma visão idealizada da Autobiografical literature is a rich sour- cristandade medieval. 3 ce to historical knowledge, although the O relato de José Oscar Beozzo sobre essa nego- ciação beira o dramático: “As gestões de D. Leme traps in this type of text. The article ap- junto a Washignton Luis foram infrutíferas e só proaches three books of memories, pu- quando as fortalezas decidem bombardear o blished by militant intellectuals: Alceu Palácio da Guanabara, já cercado por tropas in- Amoroso Lima, a catholic leader, the surretas, consegue o Cardeal um acordo ‘in ex- tremis’ com os chefes militares, visando salvar Communist Nelson Werneck Sodré and apenas a vida do presidente e de seus auxiliares. a liberal of right Miguel Reale. The axe Este sai do Palácio, acompanhado pelo Cardeal of this inquiry are the interpretations sob o apupo e as ameaças da multidão...” (1995, p. 289). that they had made of the Revolução de 4 Curiosamente, a Historia das ideias socialistas no Trinta and of President Getúlio Vargas. Brasil de Vamireh Chacon (1981) e o estudo de Edgard Carone (1986) acerca d’O marxismo no Keywords: Intellectuals. Autobiography. Brasil deram pouquíssimo destaque às concep- ções de Sodré. Marcos Silva (2008), mais recente- Revolução de Trinta. Getúlio Vargas. mente, tem dado realce à importância da visão de Sodré sobre o Brasil e demonstra sua relevância como intelectual militante, retirando-lhe a pecha Resumen de ser um mero stalinista. 5 Referimo-nos às duas forças básicas que regem La literatura autobiográfica es una rica a história na concepção de Maquiavel (cf. SKIN- fuente para el conocimiento del pasado, NER, 1988). 6 Concordamos com Rogério L. Victor quando res- a pesar de las trampas que presenta. Ese salta a importância da Ação Integralista como o artículo aborda tres obras de este géne- primeiro movimento político de massas e de ca- ro, publicadas por intelectuales militan- ráter nacional. Posteriormente, o envolvimento

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História: Debates e Tendências – v. 13, n. 2, jul./dez. 2013, p. 295-305 de muitos líderes passou a ser comentado com DUBY, Georges. Guilherme Marechal – o melhor certa vergonha e houve um processo de apaga- cavaleiro do mundo. São Paulo: Companhia mento na história política brasileira (VICTOR, das Letras, 1995. 2005). 7 Trata-se de uma tentativa de invasão do Palácio GOMES, Angela de Castro (Org.). Escrita de si, da Guanabara, onde vivia Vargas, que foi rapida- escrita da história. Rio de Janeiro: FGV Editora, mente desbaratada pelos militares. Isso motivou 2004. a prisão e o exílio de Plínio Salgado, bem como da liderança da Ação Integralista Brasileira. GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organi- zação da cultura. São Paulo: Círculo do Livro, Bibliografia s/d. LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Mé- dia. São Paulo: Brasiliense, 1988. ADLER, Jonathan. Epistemological problems of testimony. In: ZALTA, Edward N. (Ed.). The LIMA, Alceu. Memórias improvisadas. Petrópo- Stanford Encyclopedia of , 2010. Dis- lis, RJ: Editora Vozes, 1973. ponível em:. Acesso em: 25 ago. 2012. Brasil. São Paulo: Difel, 1979. BEOZZO, José Oscar. A igreja entre a Revolu- NORA, Pierre. Lieux de Mémoire. v. 3. Paris: ção de 1930, o Estado Novo e a redemocratiza- Gallimard, 1984-1987. ção. In: FAUSTO, B. (Ed.). O Brasil Republica- PECAULT, Daniel. Os intelectuais e a política no no - v. 4. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, Brasil. São Paulo: Ática, 1990. 1995, p. 272-380. REALE, Miguel. Memórias – destinos cruzados. BOURDIEU, Pierre. Campo de poder, campo in- São Paulo: Saraiva, 1986. telectual. Buenos Aires: Editorial Montesinos, 2004. RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000. CARONE, Edgard. O marxismo no Brasil. Rio de Janeiro: Contraponto, 1986. SILVA, Marcos (Ed.). Dicionário crítico Nelson Werneck Sodré. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, CHACON, Vamireh. História das ideias socialis- 2008. tas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasi- leira, 1981. SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: REMOND, R. (Org.). Por uma história política. CLAUDEL, Paul. Mémoires Improvisés. Paris: Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996, p. 231-269. Gallimard, 1954. SKINNER, Quentin. Maquiavel. São Paulo: Bra- CAMARGO, Aspásia. Carisma e personalidade siliense, 1988. política: Vargas da conciliação ao maquiavelis- mo. In: D’ARAÚJO, Maria C. (Org.). As insti- SODRÉ, Nelson Werneck. Memórias de um tuições brasileiras da Era Vargas. Rio de Janei- soldado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, ro: Editora da FGV, 1999, p. 13-35. 1967. DIAS, Romualdo. Imagens da ordem. São Paulo: WINOCK, Michel. O século dos intelectuais. Rio Editora da UNESP, 1996. de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. DUBY, Georges. A história continua. Rio de Ja- VICTOR, Rogério Lustosa. O integralismo nas neiro: Jorge Zahar Editor, 1990. águas do Lete. Goiânia: Editora da UCG, 2005.

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