HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DO NO BRASIL: A INVENÇÃO DAS TRADIÇÕES OU A TRADIÇÃO DAS INVENÇÕES?

1RODRIGO CRIBARI PRADO

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo foi constituído a partir de reflexões e questionamentos surgidos inicialmente no curso da implementação de minha dissertação de mestrado, ainda em andamento, e tem por objetivo apresentar uma proposta de pesquisa utilizando a História Oral como procedimento metodológico para a interpretação das memórias e tradições acerca do Aikido no Brasil. O Aikido é uma das mais modernas manifestações de um Budo 2 japonês, criado por (1883-1969) a partir da síntese de suas experiências com diferentes estilos e técnicas marciais, especialmente o Daito-ryu Aikijujutsu ( 植芝龍合柔気柔術) de Sokaku Takeda (1859-1943), e dos ensinamentos espirituais do líder da religião Oomoto-Kyo ( 大本 京の), Onisaburo Deguchi (1871-1948) é atualmente “[...] praticado por aproximadamente 1,2

1 Aluno do Programa de Mestrado em História e Sociologia do Esporte da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

2 A expressão “Budo” ( 武道 ) é geralmente traduzida como “caminho” ou “via marcial”. O significado do conceito de Budo transcende a mera concepção ocidental de “arte marcial”, pois trata-se principalmente de um caminho de desenvolvimento espiritual por meio de um treinamento marcial.(REID; CROUCHER, 2010)

2 milhão de pessoas em mais de 50 países ao redor do mundo.” 3 ( FOUNDATION, 2012, tradução nossa). A expressão japonesa “Aikido” é formada pelos caracteres, “Ai” ( 合) que pode ser traduzido como “harmonia” ou “amor”, “Ki” ( 気) que significa “energia”, e “Do” ( 道), uma contração do vocábulo chinês Tao, que tem o sentido de “caminho” ou “via”. Ou seja, o Aikido é o “caminho de harmonização das energias”, também conhecido como “a arte da paz” (STEVENS, 2007; PRANIN, 2010). Não obstante o Budo de Morihei Ueshiba ser chamado de “a arte da paz”, paradoxalmente no Brasil, é possível constatar uma série de disputas entre diferentes grupos e instituições de Aikido, que procuram reivindicar o monopólio sobre sua história e tradição 4, a partir das memórias 5 sobre a trajetória de vida de seus possíveis introdutores e de sua contribuição na disseminação dessa prática em terras brasileiras. Cada grupo ou instituição tem a sua “história”, cada história tem a sua “memória” e as versões divergem diametralmente e “talvez” diretamente em função das disputas e lutas concorrenciais experimentadas no interior desse campo 6. Diferentes agentes são apontados como os pioneiros do Aikido em nosso país e as instituições, direta ou indiretamente a eles ligadas, invocam como critério de legitimidade e

3 Aikido “[...] is praticed by over 1.2 million people in more than fifty countries around the world.” (AIKIKAI FOUNDATION, 2012, www.aikikai.or.jp/eng/aikikai.htm . Acesso em: 20/06/2012.

4 A expressão “tradição” está sendo aqui utilizada na acepção de Eric Hobsbawm (1997).

5 O termo “memória” está sendo empregado neste artigo a partir dos referenciais teóricos de Maurice Halbawchs (2006) e Jacques Le Goff (2003).

6 A palavra “campo” está sendo aqui utilizada segundo os pressupostos teóricos de Pierre Bourdieu (2003).

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“poder simbólico” (BOURDIEU, 2007) sobre a tradição desse caminho marcial, a figura de seu Sensei (Mestre) como o “verdadeiro” precursor da “arte da paz” no Brasil. Entre os nomes dos diferentes pioneiros constam Reishin Kawai, Teruo Nakatani e Ichitami Shikanai. Observando-se os referidos conflitos surgiu então o seguinte questionamento: como são estabelecidas e caracterizadas as disputas pelo poder de oficializar a(s) memória(s) entre os diferentes grupos e instituições de Aikido no Brasil? Tal indagação se fez acompanhar do objetivo estabelecido para o presente trabalho: verificar como são estabelecidas e caracterizadas as disputas pelo poder de oficializar a(s) memória(s) entre os diferentes grupos e instituições nacionais de Aikido. Tendo a memória por objeto de estudo, a História Oral de gênero “temático” foi selecionada como a técnica de pesquisa mais apropriada para a consecução desta proposta de pesquisa, pois “[...] dado o foco temático precisado no projeto, torna-se um meio de esclarecimento de situações conflitantes, polêmicas, contraditórias.” (MEIHY; HOLANDA, 2011, p.38). A contundência é uma das principais características dos projetos temáticos e, sobretudo seu caráter social, pois neles “[...] as entrevistas não se sustentam sozinhas ou em versões únicas.” ( Id.) As entrevistas a serem realizadas terão caráter semi-estruturado e o critério de seleção dos diferentes colaboradores que irão compor a amostra de pesquisa, se deu em função de sua representatividade e participação na consolidação da história do Aikido no Brasil, bem como de sua proximidade em relação ao suposto Mestre pioneiro. Corroborando com tal formato de seleção Verena Alberti (2005, p.31) esclarece que

A escolha dos entrevistados não deve ser predominantemente orientada por critérios quantitativos, por uma preocupação com amostragens, e sim a partir da posição do

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entrevistado no grupo, do significado de sua experiência. Assim, em primeiro lugar, convém selecionar os entrevistados entre aqueles que participaram, viveram, presenciaram ou se inteiraram de ocorrências ou situações ligadas ao tema e que possam fornecer depoimentos significativos.

Em relação ao processo de textualização das entrevistas, optar-se-á pelo uso da “transcriação”, pois essa forma de adaptar uma narrativa oral a um texto escrito “[...] nos aproxima do sentido e da intenção original que o colaborador quer comunicar.” (MEIHY; HOLANDA, 2011, p.133). Obviamente que há limites nas modificações que podem ser operadas na passagem do oral para o escrito, no entanto, os referidos autores afirmam enfaticamente que é necessário superar ingenuidade de que o oral tem correspondência exata com o escrito. Decorrida a etapa de transcriação e tendo por compromisso ético o retorno dos textos produzidos a partir das entrevistas aos seus respectivos narradores, serão “devolvidos” aos colaboradores os materiais de suas respectivas narrações para o reconhecimento, conferência e validação. A seguir é apresentada uma listagem contendo uma relação de “colaboradores em potencial”, cabendo esclarecer que foi arrolada uma quantidade maior de sujeitos do que o necessário, em função das alterações que poderão ocorrer de acordo com os rumos da pesquisa.

FEPAI Makoto Nishida (ACAM) (Federação Paulista José Gomes Lemos (Heywa Dojo) de Aikido) Paulo Naoki Nakamura (Shinwa Dojo) Carlos Roberto dos Santos (Associação Lenwakan) Luiz Pantaleão

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USAKS Keizen Ono (Associação Pesquisa Aikido) (União Sul-americana de Macoto Arai (Santo Amaro Nikkey Dojo) Aikido Kawai Shihan) Herbert Gomes Pizano (Federação Cearense de Aikido) Matias de Oliveira (União Sul-americana de Aikido) Cristina Okubo Kawai (Filha do Sensei Reishin Kawai) Instituto Takemussu Wagner José Bull Alexandre Sallum Bull FEBRAI Severino Sales da Silva Instituto Maruyama de Roberto Nobuhiko Maruyama Aikido Bushinkan Aikido Ricardo Leite da Silva Aizen Dojo José Maria R.S. Martins Oswaldo Simon J. F. dos Santos Adélio Andrade Nakatani Dojo – Aikido Ichitami Shikanai (Nakatani Dojo – Savassi - MG) Shikanai Minas Gerais Alberto Ferreira (Alberto Ferreira Aikido - RJ) Bento Guimarães (Tchozan Dojo - RJ) Pedro Paulo (Academia Nissei – Laranjeiras - RJ) Shimbukan Aikido Breno de Oliveira (inativo no Aikido)

2. OS TRÊS MESTRES DO CAMINHO

Compreender a dinâmica das disputas em torno da(s) memória(s) e tradição(ões) sobre a introdução e difusão do Aikido no Brasil, implica obrigatoriamente no conhecimento, ainda que breve, da trajetória dos mestres japoneses apontados como os seus “verdadeiros” introdutores.

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É oportuno esclarecer, no entanto, que existem diferentes estilos de Aikido 7 que foram criados por ex-discípulos de Morihei Ueshiba, e que não estão sendo considerados na análise realizada por este artigo. O estilo dos três mestres aqui apontados como os possíveis introdutores do Aikido é o “Aikikai”, também chamado de “o original”, visto que é mantido e divulgado pela linhagem familiar de Ueshiba. Faz-se importante levar essa informação em consideração, pois outros mestres, japoneses ou não, ligados a outras “escolas” de Aikido também podem ter tido participação fundamental no processo de introdução e disseminação desse caminho marcial em nosso país. As trajetórias de vida aqui apresentadas foram retiradas de diferentes fontes, principalmente de homepages de instituições e grupos 8 de Aikido, que possuem ligação direta ou indireta com os Senseis: Reishin Kawai, Teruo Nakatani e Ichitami Shikanai. Trata-se de recortes, brevíssimos, efetuados a partir da chegada desses imigrantes japoneses ao Brasil e de sua participação na constituição do cenário marcial do Aikido. São fragmentos que obviamente não representam a integralidade das trajetórias descritas por esses sujeitos, pois certamente há inúmeros fatos e acontecimentos que não estão sendo aqui considerados e exigiriam maior aprofundamento para uma melhor compreensão. Sua ordem de apresentação foi estabelecida a partir das cronologias indicadas nas diferentes fontes consultadas.

7 Tomiki Aikido (criado por Kenji Tomiki), Yoseikan Aikido (criado por Minoru Mochizuki), Aikido (criado por Gozo Shioda), Shin Shin Toitsu Aikido (criado por Koichi Tohei), Korindo Aikido (criado por Minoru Hirai) e Ki No Michi Aikido (criado por ).

8 Estão sendo tratadas como “instituições” as confederações e federações e “grupos” os Dojo ((local onde se pratica o “caminho”) que se constituíram ao redor de um determinado Mestre pioneiro ou agente significativo na história do Aikido nacional.

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2.1 Reishin Kawai

Munenori 9 Toshio Kawai, nascido em 28 de fevereiro de 1931, na cidade de Yassugi, província de Shimane no Japão, iniciou seu treinamento marcial com um mestre chamado Saito Torataro com quem também aprendeu diferentes métodos alternativos de medicina oriental. Os estilos marciais ensinados pelo Sensei Torataro eram principalmente o Daito-ryu Aikijujutsu e o Ueshiba-ryu Aikijujutsu, os quais precederam a criação do Aikido. “Em 1957, [Kawai Sensei] transfere sua residência para o Brasil. Inicia sua peregrinação pelo interior do Brasil, levando mensagens, organizando cursos e apresentando- os em demonstrações.” (AIKIDO PARAÍBA, 2012). Por insistência de seus pacientes resolveu prolongar sua estadia no Brasil fixando residência na cidade de São Paulo. Em 1961, Kawai Sensei viajou à Europa e conheceu Aritomo Murashigue, Presidente de Honra da Federação de Aikido da Europa e um dos primeiros alunos de Morihei Ueshiba. Coincidentemente ou não, Murashigue havia sido instrutor do Mestre de Kawai Sensei, Saito Torataro, no estilo Ueshiba-ryu Jujutsu. Nesse encontro, o Mestre Murashigue, “determinou para que Reishin Kawai fosse representante do Aikido no Exterior cuidando desta arte marcial no Brasil.” (UNIÃO SUL-AMERICANA DE AIKIDO KAWAI SHIHAN, 2012). Apesar da Fundação Aikikai do Japão, mantenedora da obra de Morihei Ueshiba, já existir na época, Aritomo Murashigue havia sido incumbido pelo próprio fundador do Aikido

9 Em matéria intitulada “A arte da paz – teoria e prática” publicada na Revista Kiai, ano V, n. 34, p. 28 – o Sensei Herbert Gomes Pizzano do grupo Aikido Ceará, discípulo do Mestre Reishin Kawai explica a mudança de nome de seu Sensei: “Seu nome de nascimento é Toshio; Munenori é o nome que lhe deu seu Mestre Saito Torataro. Finalmente Reishin é seu nome espiritual dado por Kassa Sensei, hoje com 103 anos de idade e sua orientadora nos caminhos do Espírito há pelo menos 30 anos.”

8 de divulgar seu caminho marcial por toda a Europa. Essa incumbência lhe dava também o direito de realizar exames de graduação e a possibilidade de conferir títulos a diferentes mestres. Após retornar ao Brasil, Kawai Sensei abriu sua primeira academia em 09 de janeiro de 1963 no centro de São Paulo. Em 1979 juntamente com outros alunos criou a FEPAI (Federação Paulista de Aikido) da qual se afastou em 1990 em virtude de divergências internas. Posteriormente criou a União Sul-americana de Aikido Kawai Shihan, instituição que dirigiu até o seu falecimento em 26 de janeiro de 2010.

2.2 Teruo Nakatani

Nascido na ilha de Hokkaido ao norte do Japão em 31 de julho de 1932, Nakatani Sensei iniciou seus treinamentos de Aikido no Hombu Dojo 10 e teve por companheiros de treinamento mestres famosos como “[...] Hiroshi Tada, Yamada, Yasuo Kobayashi, Koichi Tohei, Tamura, Chiba, etc.” (SANTOS, 2011) Chegou ao Brasil em 1963, mais especificamente na cidade do Rio de Janeiro, após “uma viagem de cargueiro de 90 dias, [...] marcando o início do Aikido em terras cariocas, sem qualquer vínculo com o Aikido praticado em São Paulo.” (Id. ) Devido às dificuldades naturais de adaptação, lecionou em diferentes locais até conseguir estabelecer em 1969, a Associação Carioca de Aikido no bairro de Copacabana.

10 Além de ser um Dojo de treinamento de Aikido, o Hombu Dojo também é a sede da Fundação Aikikai do Japão, mantida pelo neto de Morihei Ueshiba, Moriteru Ueshiba.

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Outros locais de prática também eram mantidos no mesmo período por alunos já graduados (faixas-pretas) de Sensei Nakatani. Formado em Administração pela Universidade Meiji, Teruo Nakatani mantinha o Aikido como atividade paralela aos seus compromissos profissionais, os quais lhe exigiam “[...] constantes viagens e ausências do Dojo de Copacabana.” Nesse mesmo período 11 uma séria “[...] contusão no joelho faz com que Nakatani comece a pensar a deixar a prática do Aikido.” (BULL, 2008, p.320). O Sensei Nakatani então volta ao Japão e procura

Primeiro na Academia Central [Hombu Dojo], e depois o mestre Yasuo Kobayashi, seu colega de faculdade, para que indicasse uma pessoa para ocupar o seu lugar no Dojo do Rio. Então, em junho de 1975, chega ao Rio, acompanhado por Yasuo Kobayashi, o prof. Ichitami Shikanai, com 28 anos, terceiro grau de Aikidô, segundo grau de Jodô e primeiro grau de Iaidô. (SANTOS, 2011)

Dessa forma, fica a cargo do mestre Ichitami Shikanai a responsabilidade de dar continuidade ao trabalho iniciado por Teruo Nakatani. 2.3 Ichitami Shikanai

Ichitami Shikanai nascido em 30 de julho de 1947 na província de Aomori ao norte do Japão, chegou ao Brasil em 1975 acompanhado de seu Mestre Yasuo Kobayashi e teve por encargo o ensino e representação do Aikido na capital Carioca. Seu estilo de prática, entretanto, resultou num choque cultural, pois “Os alunos, mais acostumados ao Aikido

11 Apesar de não haver uma referência clara em relação ao período indicado, acredita-se que se trata do ano de 1975.

10 marcial, até mesmo grosseiro, do Prof. Nakatani questionam a nova forma, o que vem a se refletir na administração financeira da academia.” (BULL, 2008, p.320). Um dos principais alunos do mestre Nakatani, Adélio Andrade, percebendo os problemas de adaptação do Sensei Shikanai ajuda-o a abrir um dojo próprio em Niterói. Neste local, o mestre Ichitami forma seus primeiros faixas-pretas, alunos que o ajudarão a difundir o Aikido no Rio de Janeiro e em outros estados do Brasil. Em 1981, nasce, em Niterói, da união com Maiyumi Shimizu, “[...] a menina Minoli, filha do Prof. Shikanai, com sérios problemas locomotores. As dificuldades de realizar [o] tratamento médico na filha no próprio Dojo de Niterói [...]” (Ibid. , p.321) acabam forçando o Sensei Shikanai a se mudar para Belo Horizonte em 1985, local onde até hoje reside e ministra seus treinamentos.

3. A ARTE DA PAZ NUM “CAMPO DE GUERRA”

O cenário do Aikido no Brasil pode ser compreendido como um “campo” segundo os pressupostos teóricos de Pierre Bourdieu (2003, p.120), pois sua estrutura “[...] é um estado de relação de força entre os agentes ou as instituições envolvidas na luta ou, se se preferir, da distribuição do capital específico que, acumulado no decorrer das lutas anteriores, orienta as estratégias posteriores.” Corroborando com tal perspectiva de análise, Ortiz (1983, p.19) explica que “O campo se define como o lócus onde se trava uma luta concorrencial entre os atores em torno de interesses específicos que caracterizam a área em questão.” Tais interesses

11 específicos neste caso, têm relação com o poder de oficializar a memória de um determinado grupo em detrimento de outros para fazer valer sua tradição, ainda que esta seja supostamente “inventada” (HOBSBAWM, 1997). Entre os diferentes grupos e instituições que podem ser apontados como agentes de disputa pelo monopólio da memória e tradição do Aikido no Brasil, constam a Federação Paulista de Aikido (FEPAI), a União Sul-americana de Aikido Kawai Shihan (USAKS), o Instituto Takemussu de Aikido, o Instituto Maruyama de Aikido, a Federação Brasileira de Aikido (FEBRAI), o Aizen Dojo, o Instituto Teruo Nakatani Brasil, o Nakatani Dojo – Aikido Shikanai Minas Gerais, o Aikido Rio de Janeiro, o Bushinkan Aikido Dojo e o Shimbukan Aikido Dojo. Os grupos e instituições aqui citados, foram indicados em virtude de sua participação e representatividade na história do Aikido nacional, bem como por suas manifestações explícitas de concorrência em favor desse ou daquele Mestre como o “legítimo” precursor e difusor da arte da paz no Brasil. Alguns destaques sobre as referidas disputas podem ser feitos a partir de fontes impressas e digitais, previamente consultadas. Por exemplo, o autor Marco Natali em seu livro “Aikido: técnicas básicas” de 1985, afirma que “O professor [Reishin] Kawai é sétimo grau de faixa preta em Aikido, sendo o pioneiro no ensino dessa modalidade em nosso país e o responsável pelo estabelecimento formal dessa arte entre os brasileiros.” (NATALI, 1985, p.42). Natali ainda afirma que Kawai Sensei “Em 1963 recebeu o diploma de Shihan (mestre de artes marciais) em Aikido pelas mãos do fundador dessa arte, o mestre Morihei Uyeshiba [sic ] e principiou a árdua tarefa de trazer, pela primeira vez ao Brasil, o Aikido.” (Ibid., p. 40)

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Já na homepage do Nakatani Dojo, Santos (2011) referindo-se ao Mestre Teruo Nakatani afirma que “Depois de uma viagem de 90 dias em navio cargueiro, chegou ao Brasil, no Rio de Janeiro, em 06 de novembro de 1960, o introdutor, oficial, do Aikidô no Brasil.” Bueno e Torres (2010, p.09) por sua vez, apontam na obra “Grandes Mestres das Artes Marciais”, Ichitami Shikanai como

[...] a primeira pessoa que mostrou aos aikidoistas [sic ] brasileiros o que estava sendo praticado na metade da década de 70 no Aikikai Hombu Dojo do Japão e sem dúvida alguma, portanto, Shikanai Sensei é considerado pelos aikidoistas [sic ] históricos o “Pai do Aikido moderno no Brasil”.

Em outra obra denominada “Aikido – o caminho da sabedoria”, o autor Wagner Bull (2004, p.334) versando sobre a introdução do Aikido no Brasil explica que

[...] apesar do Aikido ter se iniciado em São Paulo [com Reishin Kawai], foram os cariocas que, primeiramente, receberam um professor [Teruo Nakatani] que havia treinado regularmente na arte do Aikido, diretamente no Hombu Dojo, e que possuía nível técnico compatível ao seu grau na minha opinião e pesquisa. Na fase inicial em São Paulo, entretanto, havia pessoas que não pensavam assim, e achavam que o Prof. Kawai tinha iguais ou superiores habilidades técnicas aos melhores mestres do Japão.

Bull (2004, p.333) ainda afirma que “Nakatani era efetivamente um Sandan 12 competente e seu grau não era apenas honorífico ou por ter mais responsabilidades como dirigente, pois ele havia treinado Aikido no Japão como companheiro de Yamada e Tamura Sensei.”

12 Faixa-preta com graduação de 3º grau.

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Na página virtual da mais antiga instituição de Aikido do Brasil a FEPAI 13 (Federação Paulista de Aikido) que foi “[...] criada em 1978, sendo a primeira entidade oficialmente reconhecida pela prática e difusão do Aikido no país, graças aos esforços de Reichin Kawai Sensei e de alguns de seus alunos [...]” (Ibid. 322), sequer consta a história do Aikido no Brasil ou de qualquer um dos mestres pioneiros já mencionados. Pode-se perceber por meio das informações aqui apresentadas uma disputa expressa pela oficialidade de uma memória em detrimento de outras possíveis versões, pois “[...] todas as pessoas que estão cometidas num campo têm em comum um certo número de interesses fundamentais, a saber tudo o que está ligado à própria existência do campo: daí uma cumplicidade objectiva que está subjacente a todos os antagonismos.” (BOURDIEU, 2003, p.121). Cumpre então compreender, em que termos exatamente se dão esses conflitos no campo do Aikido brasileiro e o que essas disputas encerram. Tal compreensão demanda obrigatoriamente o entendimento sobre as relações da tríade “memória, História e tradição”.

4. MEMÓRIA, HISTÓRIA E TRADIÇÃO

Na antiguidade clássica, os gregos sabiamente já tinham a compreensão que a História era fruto da memória. Não é à toa que representavam a memória como uma deusa (Mnemosine ) e a história ( Clio ) como uma de suas filhas, concebida em uma das nove noites

13 http://www.fepai.org.br

14 passadas com o deus Zeus. A memória é um dos fundamentos da História e faz parte do que Barros (2010) denomina de “matriz interdisciplinar”, ou seja, pertence a um conjunto básico de conhecimentos e princípios

[...] que dificilmente seria colocado em questionamento pela maioria dos historiadores – tal como necessidade de uma referência à base documental, aspecto sem o qual a própria disciplina perderia sua identidade nos moldes como hoje a conhecemos. (BARROS, 2010, p.12). A imbricação entre memória e História faz com que ambas se confundam, sendo possível perceber porque a memória é ao mesmo tempo “um instrumento e um objeto de poder” (LE GOFF, 2003, p.470). No entanto, apesar de sua indissociabilidade, é necessário estabelecer uma distinção conceitual entre essas duas expressões, principalmente para que se compreenda como a memória pode afetar os quadros da História , especialmente no que diz respeito à análise ora realizada sobre o processo de introdução e difusão do Aikido no Brasil. Para Maurice Halbwachs (2006) memória e História não se confundem, pois a memória segundo o autor não se apóia numa História esquemática, mas nas experiências efetivamente vividas pelos indivíduos.

Tanto é verdade, que os quadros coletivos da memória não conduzem a datas, a nomes e a fórmulas – eles representam correntes de pensamento e de experiência em que reencontramos nosso passado apenas porque ele foi atravessado por tudo isso. (HALBWACHS, 2006, p.86)

Ou seja, memória e História se opõem em termos de “presença” e “distanciamento”, mas também se complementam, pois a memória pode preencher os moldes da História com base no vivido, ao passo que a História estabelece pontos de referência factuais na memória. Faz-se importante esclarecer ainda, que Halbwachs preconiza a existência de muitas

15 memórias, enquanto admite a existência de uma única História. Obviamente que essa compreensão não tem correspondência, especialmente com o objeto de estudo aqui apresentado, pois as diferentes memórias e histórias previamente citadas são informações de conhecimento público. Jacques Le Goff (2003, p.32) por sua vez, evidencia outra concepção sobre a diferença entre memória e História, segundo o autor, “Se a memória faz parte do jogo do poder, se autoriza manipulações conscientes ou inconscientes, se obedece aos interesses individuais ou coletivos, a história, como todas as ciências, tem como norma a verdade.” Ou seja, para Le Goff, o historiador tem um compromisso com a verdade e por isso “A história deve esclarecer a memória e ajudá-la a retificar os seus erros.” (Ibid ., 29) No que tange aos abusos da História o autor aponta que esses só ocorrem quando o historiador se partidariza ou se torna um “lacaio do poder político” ( Ibid ., p.32). Para completar a análise proposta, ainda resta analisar o papel da tradição e sua relação com a memória e a História. Percebe-se claramente no caso dos embates entre diferentes grupos e instituições de Aikido no Brasil, uma concorrência pela hegemonia nesse campo por meio da tentativa de estabelecimento de uma tradição em detrimento das memórias e histórias de outros grupos e agentes. A tradição neste caso, “[...] seria uma forma de dominação legítima, uma maneira de se influenciar o comportamento de outros homens sem o uso da força.” (SILVA, K. V.; SILVA, M. H., 2009, p.405). Eric Hobsbawm (1997, p.10) esclarece que “O objetivo e a característica das ‘tradições’ [...] é a invariabilidade. O passado real ou forjado a que elas se referem impõe práticas fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição.” As tradições segundo o historiador inglês, cumprem um papel simbólico e ritual importante e

16 podem ser diferenciadas entre aquelas “naturalmente” constituídas 14 e as intencionalmente “inventadas”.

Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. (HOBSBAWM, 1997, p.9)

No que diz respeito ao Aikido em nosso país, é possível verificar que diferentes elementos são utilizados nos discursos dos grupos e instituições para justificar o monopólio sobre a tradição dessa via marcial. Entre esses elementos alguns se destacam de forma evidente, como por exemplo, a data de chegada do(s) mestre(s) pioneiro(s) ao Brasil; a proximidade ou o contato (direto) com o fundador, Morihei Ueshiba; o fato de ter treinado no Hombu Dojo, sede da Fundação Aikikai do Japão; ter chegado ao nosso país com uma graduação superior aos outros supostos Mestres pioneiros; e também portar certificados e diplomas ditos “oficiais”, ou seja, emitidos diretamente pela central do Aikido no Japão. É oportuno esclarecer, no entanto, que os próprios mestres apontados como os pioneiros não se manifestam ou se manifestaram, ao menos diretamente, nas disputas travadas pela hegemonia e controle da história e tradição do Aikido em território brasileiro. Os conflitos são de ordem institucional, porém a figura dos mestres é sempre evocada nas memórias e histórias divulgadas pelos diferentes grupos e instituições, como um recurso para atestar a tradição e a legitimidade sobre a história da arte a paz.

14 É possível questionar o conceito de “tradição naturalmente constituída” de Hobsbawm, pois todas as tradições foram inventadas em algum momento histórico.

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Observando-se o caráter inextrincável das relações entre memória, História e tradição, é imprescindível frisar o papel da História Oral como possibilidade metodológica para acessar a memória de diferentes agentes ligados à história do Aikido nacional. Obviamente que mesmo lançando mão dos recursos disponibilizados pela História Oral, especialmente de gênero temático, é importante levar em conta a complexidade e a dinâmica das relações no campo do Aikido brasileiro e o risco de ser enredado pela versão de um ou de outro grupo. Mesmo assim entende-se que este é um trabalho que pode de alguma forma contribuir para uma visão mais plural sobre o processo de constituição da cultura marcial do “caminho da harmonização das energias” em nosso país.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vários livros e publicações acerca do Aikido nos fazem crer que Morihei Ueshiba ao criar o seu Budo infundiu em seus pressupostos um forte apelo à paz e ao respeito por todas as formas de vida. Por vezes, Ueshiba ou “O-Sensei” como também era chamado, chegou a afirmar que o Aikido era uma “manifestação do amor” (UESHIBA, 2006). No Brasil, no entanto, o que se percebe é uma disputa institucional pelo monopólio da memória, história e tradição dessa modalidade, que ocorre principalmente em torno da figura de um de seus possíveis mestres pioneiros. Os discursos de embate perpassam diferentes meios de divulgação como, livros, revistas de artes marciais e homepages de grupos e instituições. Não há espaço para a pluralidade de vozes, de memórias, histórias e tradições no campo do Aikido

18 brasileiro. As narrativas institucionais têm como tônica a sobrepujança e a exclusividade de uma versão em detrimento de outras possíveis. Nesse sentido, a História Oral pode prestar contributo valioso ao ampliar o conhecimento sobre contextos e situações do passado, representadas nas diferentes visões de sujeitos e grupos, transformando narrativas em dados objetivos, passíveis de análise e compreensão. Obviamente que uso da História Oral, especialmente do seu gênero temático, demanda cuidado e sensibilidade, principalmente no que diz respeito ao confronto entre as diferentes versões de agentes e grupos envolvidos nas disputas citadas. Qualquer ingenuidade deve ser enfaticamente refutada, visto que o Aikido no Brasil é ao mesmo tempo um campo de conflitos e de interesses diversos, o que implica numa atenção constante para não ser seduzido por uma ou outra versão, o que certamente seria desconsiderar tanto as outras memórias envolvidas nesse processo, quanto a objetividade a que se propõe este trabalho. A chegada e o desenvolvimento do caminho de Morihei Ueshiba em solo brasileiro, ainda é um processo envolto em brumas que não permitem divisar com clareza o papel e a contribuição dos imigrantes japoneses Reichin Kawai, Teruo Nakatani e Ichitami Shikanai na constituição do cenário marcial do Aikido no Brasil. Por isso, compreender suas trajetórias de vida desde sua chegada ao nosso país e seus desafios na disseminação da arte da paz, bem como verificar como e por que se iniciaram as disputas de memórias e tradições em torno de seus nomes é certamente contribuir para o registro e documentação de uma história que merece ser “contada”.

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