<<

A SIMBÓLICA DA VIOLÊNCIA E DA TRANSGRESSÃO NO UNIVERSO DA

SULIVAN CHARLES BARROS

Resumo: este artigo parte da premissa de que o simbolismo ‘diabólico’ e transgressor dos exus e das pombas-giras – entidades espirituais que pertencem ao universo da quimbanda – constitui o cerne principal que dá sustenta- ção e legitimidade aos rituais de quimbanda que fazem uso de deter- minados símbolos de inversão e transgressão e acabam por se contrapor e subverter àqueles claramente associados ao universo cristão.

Palavras-chave: violência, transgressão, quimbanda

UMBANDA X QUIMBANDA: O ETERNO DILEMA ENTRE A ‘ESQUERDA’ E A ‘DIREITA’

questão referente ao Bem e ao Mal e aos seus limites se coloca, A conforme toda religião, de alguma forma, moralizada, como ele- mento central na . Esta não é, contudo, uma questão teologicamente equacionada, como no universo simbólico cristão, que é plenamente definida. No universo cristão, o mal está configurado na figura do diabo, personagem mítico essencial, pois sem ele a bondade divina seria sem sentido. Bem e Mal, Deus e diabo, anjos e demônios existem, opõem-se drasticamente e não comportam gradações entre si. Na umbanda, inicialmente, não é bem assim. Se o bem é inquestionável e identificado a Deus, os espíritos vistos aparente- mente como “maléficos” não são necessariamente maus, eles po- dem ser batizados, dogmatizados, doutrinados e evoluir nesta direção. 107 , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 Utilizando-se neste momento de literatura religiosa, pode-se perceber que Kardec (1999), ao empreender seu trabalho de racionalização do mundo dos espíritos, equacionou as diferenças do universo sa- grado baseado na classificação dos espíritos em relação ao seu grau de adiantamento, nas qualidades que adquiriram e nas imperfei- ções de que ainda devam se livrar. Os espíritos admitem geral- mente três categorias principais ou três grandes divisões: • Espíritos puros: anjos, arcanjos e serafins: são espíritos que passa- ram por todos os graus da escala e se libertaram de todas as impu- rezas da matéria. Possuem superioridade intelectual e moral absoluta em relação aos espíritos das outras ordens. • Espíritos de segunda ordem ou espíritos: são espíritos que têm ainda que passar por certas provas. Há a predominância do espírito sobre a matéria; desejo do bem. Suas qualidades e poder para fazer o bem estão em conformidade com o grau que alcançaram. • Espíritos imperfeitos: são espíritos caracterizados pela arrogância, orgulho e egoísmo. Há a predominância da matéria sobre o espíri- to e, geralmente, são propensos ao mal (KARDEC, 1999). O pensamento umbandista, de caráter acentuadamente dualista, estabe- leceu um corte no segundo plano, simplificando esta hierarquia mística: missionários do bem e missionários do mal. A essa divisão dicotômica entre bem e mal, reino das luzes e reino das trevas, direita e esquerda corresponde, no cosmos religioso, uma nova se- paração: umbanda, prática do bem; quimbanda, prática do mal. A umbanda se opõe desta forma à quimbanda, que opera (em princípio) exclusivamente com espíritos imperfeitos que se situam nos con- fins da escala espiritual. Entretanto, o mal é um dado da realida- de, ele representa uma dimensão importante da vida cotidiana; o pensamento umbandista deve, portanto, levá-lo em consideração. O problema que se coloca é o de como interpretá-lo no quadro religioso. Segundo Ortiz (1984; 1999), a oposição entre reino das luzes e reino das trevas vai encontrar, assim, uma solução interes- sante no seio da linguagem sagrada. Em relação ao domínio da direita (quase) não há polêmica: agrupa os orixás, guias de luz ou mentores espirituais inquestionavelmente bons, apesar de diferenciados em termos de graus quanto à evolução espiritual. Neste domínio convivem caboclos, pretos-velhos, crianças. Entidades espirituais como os boiadeiros, marinheiros, ciganos, baianos e malandros podem ser identificadas também como de direita,

, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 108 embora suas características sejam de seres pouco moralizados, im- pedindo-os de uma convivência mais estreita com caboclos, pre- tos-velhos e crianças. Em geral, dizem que estes personagens fazem parte de uma linha mista ou intermediária. Não se duvida de que estes possam praticar o bem, mas acredita-se que boiadeiros, marinheiros, ciganos, baianos e malandros devam ser doutrinados e controlados, evitando que bebam, falem palavrões etc., ao menos em excesso. Os exus e as pombas-giras, independentemente de onde possam traba- lhar, são sempre entidades de esquerda. Jamais poderiam ser de direita, embora lá possam estar; no máximo, na linha mista, inter- mediária, na meia-esquerda, pois indubitavelmente fazem ou po- dem fazer o mal (NEGRÃO, 1996). Dessa forma, a quimbanda passa a ser definida, pelos umbandistas, como a linha da umbanda que pratica a magia negra. Ela só traba- lha com exus e pombas-giras, que são representações do mundo da sombra, entidades telúricas cuja disponibilidade para o mal su- planta as intenções de auxílio fraterno. Mediante encomendas, estas entidades realizam feitiços ou contra-feitiços, visando favorecer ou prejudicar determinadas pessoas. A zona da quimbanda aparece como fonte potencial de distúrbios; os exus, agindo no mundo, ameaçam a ordem umbandista. Os pró- prios adjetivos que qualificam o substantivo exu evocam a dimen- são sinistra da magia negra: corcunda, capa, caveira, “tranca rua, come fogo, meia noite, encruza, cemitério. Uma primeira aproxi- mação dos exus ao universo do estranho, do oculto, do maléfico realiza-se, assim, no nível do semântico (ORTIZ, 1999). A quimbanda passa a ser apresentada como a dimensão oposta da umbanda. Ela é sua imagem invertida, “tudo que se passa no reino das luzes tem seu equivalente negativo no reino das trevas” (ORTIZ, 1999, p. 88). Diante da realidade insofismável do mundo dos homens, o mal é considerado um “mal necessário”, ele é a contrapartida do bem, fonte e justificação da miséria humana. Esta oposição entre luz versus trevas corresponde a domínios e situações sociais e não simplesmente um universo moral. Os pedidos para os espíritos são singulares. Por exemplo, somente os exus e as pombas- giras podem atender as necessidades conotadas como imorais ou impróprias: a morte de alguém, o desejo sexual, os pedidos finan- ceiros que impliquem na ruína de outros (fraude, roubo etc.). Isto

109 , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 mostra que as entidades sobrenaturais cultuadas na umbanda estão em consonância com a ideologia da sociedade global brasileira. Assim, para dar melhor suporte a este argumento, utilizo aqui os frag- mentos das entrevistas realizadas com dois pais-de-santo da cida- de de Codó, no Maranhão, em que eles afirmaram trabalhar, naquela época, tanto na linha da direita (magia branca) quanto na linha da esquerda (magia negra). Ambos pais-de-santo explicitam a exis- tência de uma dicotomia entre umbanda e quimbanda:

Na umbanda você só procura praticar o bem, fazer o que é bom. E na quimbanda não, você só trabalha com forças diabólicas. Cada um tem um ponto de vista. Agora só tem uma coisa, o trabalho da quimbanda também ajuda. Ele ajuda porque a gente às vezes tá com uns fluídos pesados e você na umbanda, você é difícil conseguir fazer sua ‘limpeza’. Então essa atividade é justa. Faz um despacho e aquilo alivia rapidamente. A quimbanda tem isso também. Ela prejudica e tem um fim, mas ela tem um ponto positivo também, ela tem (Pai-de-santo M., entrevista, Codó(MA), ago. 1999).

O lado da esquerda é o seguinte, pega pro bem e pega pro mal. Que se uma pessoa procura lhe atrair, pelo um progresso de sua vida, de seus trabalhos, de seus negócios. Aí a gente tem que pegar um frango preto pra cortar em cima do teu nome e do nome daquela pessoa pra cortar a intimidade dela pro teu lado. Deixar a tua vida viver em paz. E o que nós queremos é paz, sossego e tranqüilidade pelo estabelecimento da nossa vida, dos nossos trabalhos e dos nossos negócios. E é isso que pedimos pra Deus. Mas Deus deixou que essa pessoa que procura atrair, e esse não é da parte de Deus, esse é da parte do diabo. Então nós temos que entrar com a magia negra. Que é pra mode que nós podemos vencer. Porque ele pode ser cruel, porque tem gente de muita natureza. Tem uma d’uma natureza boa e tem outra da natureza miserável que procura só mesmo nos atrair. Então nós temos que fazer um corte pra cortar ele da nossa frente. É justamente isso, pois é (Pai-de-santo J. R., entrevista, Codó(MA), ago. 1999).

Segundo a fala desses dois interlocutores, a separação entre umbanda/ magia branca e quimbanda/magia negra apresenta dimensões ba- seadas geralmente na distinção entre práticas do bem e práticas do mal, da parte de Deus e da parte do diabo. Contudo, essas duas

, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 110 dimensões fazem parte de um mesmo fenômeno e estão intima- mente interligadas. Se a umbanda é sempre vista como benéfica, na ótica de seus praticantes, a quimbanda é, na maioria das vezes, condenada porque se acredita nos seus poderes maléficos. Dependendo das circunstâncias, a magia negra, mesmo relacionada a for- ças diabólicas, que na visão de outra mãe-de-santo, “é aquela que deixa Deus prum canto” (Mãe-de-santo R. F., entrevista, Codó (MA), ago. 1999), em determinadas ocasiões, pode ser vista como justa, positiva, “pega pro mal”, mas também é aquela que “pega pro bem”. Dependendo da situação, o uso da magia negra, para esses interlocutores torna-se necessário e o único meio eficaz para o restabelecimento da vida do indivíduo que necessita de seus préstimos. A grande maioria de pais e mães-de-santo entrevistados ao longo destes quase dez anos de pesquisa alega utilizar os serviços dos exus apenas para a prática do bem. No máximo, admitem apelar a essas entidades com finalidades defensivas e contra-defensivas. “Eles fa- zem, nós desfazemos”, esta é a frase mais comum ouvida por eles. Defendendo seus clientes e seus próprios terreiros dos ataques e da inveja dos demais, os exus são tidos como seus principais guardiões. Partindo para a análise e interpretação do cosmos religioso, é possível notar que às sete linhas rituais da umbanda correspondem as sete linhas rituais da quimbanda, comandadas pelos seguintes exus: Exu 7 Encruzilhadas, Exu Pomba-Gira, Exu Tiriri, Exu Gira-Mundo, Exu Tranca-Ruas, Exu Marabô, Exu Pinga Fogo. Cada Exu, no seu plano espiritual, comanda sete chefes de legiões; por outro lado, eles se comunicam com as linhas da umbanda, o que torna mais complexa a rede de mensagens divinas. A existência do mundo das trevas, habitado por exus e pombas-giras, é funda- mental para a existência do mundo das luzes. Montero (1985), ao afirmar que se esses dois universos opõem-se pela sua natureza, demonstra também que eles permanecem intimamente ligados, uma vez que um existe em função do outro: o Bem só o é à medida que tem como meta combater o Mal; este, por sua vez, só ganha sentido sendo a inversão de uma ordem definida como Bem. As representações coletivas embutidas na construção das personagens dos exus e pombas-giras explicitam o compromisso dessas entidades com a área urbana marginal. Dizem respeito à imagem social de insubmissos, criminosos e vagabundos que em vida foram seres anônimos e ao morrerem tornaram-se deuses.

111 , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 Freqüentemente os exus são associados ao estereótipo do malandro (em- bora se tenha também uma categoria mítica própria para estes), tipo social que se caracteriza pela astúcia com que utiliza, em pro- veito próprio, de artimanhas mais ou menos ilícitas. Representam o avesso da civilização, das regras, da moral e dos bons costumes. Sua versão feminina, a pomba-gira, representa o estereótipo da prostituta ou de mulheres de conduta moral condenável e sua se- xualidade se manifesta, sobretudo, no nível da linguagem. Em oposição aos chamados espíritos de luz ou de direita, os exus e as pombas-giras constituem a esquerda. Isso significa que, ao contrá- rio daqueles, exus e pombas-giras são vistos como perigosos e maus ou ao menos potencialmente capazes de atuar maleficamente. Constituem a categoria mítica mais controversa para os umbandistas e a mais instigante para os pesquisadores. Exus e pombas-giras são entidades mais próximas das fraquezas humanas e as aceitam sem constrangimentos. Estes são considerados a escória da sociedade astral. De acordo com a divisão do trabalho espiritual1, quando há um pedido equívoco do ponto de vista moral a ser feito, exus e pombas-giras são os guias apropriados. Um agrado os satisfaz e amortece suas consciências em processo de formação. São problemas concretos do cotidiano que são tratados por eles. Sem terem sido doutrina- dos, isto é, carentes de consciência moral, os exus realizam o que lhes pedirem, em troca de bebidas e comidas. Nos terreiros em que existem as práticas de quimbanda se usam os exus para práticas maléficas contra desafetos, desde aquelas conside- radas mais brandas, como terem os caminhos fechados na sua vida pessoal e profissional ou prejuízos materiais, até aquelas con- sideradas mais graves, como acidentes, doenças e até mesmo a morte. Analisando os tipos de demandas que os homens endereçam aos espíri- tos, observa-se que a morte forma uma categoria à parte, podendo somente ser considerada pelos exus. Jamais um fiel ousaria pedir a morte de alguém a uma entidade de luz; ele se arriscaria certa- mente a ela se indispor e a ser punido. Ora, um exu, mediante certas oferendas e donativos, pode realizar tais desejos. Questões de amor, sexo e de amarração constituem-se, contudo, no cam- po específico de atuação das pomba-giras. Se Exu é em parte dia- bólico e animalesco, a pomba-gira, vista pelos umbandistas como

, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 112 a mulher de exu ou exu fêmea, é a estereotipia da “meretriz, mu- lher da zona, mulher do mundo, dona de mil nomes e de mil amantes” (Mãe-de-santo M. J., entrevista, Brasília(DF), set. 2000). Por ter tido uma vida passada que espelha certamente uma das mais difíceis condições humanas, a prostituição é a condição que dis- pensa à pomba-gira um total conhecimento e domínio de uma das áreas mais complicadas da vida das pessoas comuns, que é a vida sexual e o relacionamento humano fora dos padrões sociais de comportamento aceitos e recomendados. A um pedido sempre corresponde algum tipo de oferenda. Veja-se, a título de ilustração, um caso contado por uma interlocutora, de um trabalho feito por uma pomba-gira, em que um homem deseja despertar o interesse sexual de uma conhecida:

Fui no quintal, fiz o ponto da pomba-gira, chamei ela, que ela vem no redemoinho, meu filho. Eu amostro a qualquer pessoa. Eu fiz o serviço. Comprei o material do jeito que ela mandou: meio metro de pano vermelho, meio metro de pano preto, sete caixas de fósforos, sete velas vermelhas, sete velas pretas, sete velas brancas. Uma garrafa de cachaça pra banhar ele. Foi só isso que ela mandou eu fazer e chamar ela na hora (Dona M. J., entrevista, Codó(MA), ago. 1999).

Descobrir qual é a oferenda certa para agradar a exus e pombas-giras e assim conseguir os favores almejados representa sempre um gran- de desafio para pais e mães-de-santo que presidem os cultos. O prestígio de muitos deles vem da fama que alcançam por ser con- siderados por seus seguidores e clientes bons conhecedores das fórmulas corretas para esse agrado. Segundo Negrão (1996), a quase universalidade da presença dessas enti- dades deve-se a uma razão bastante simples: são eles os agentes preferenciais para desfazerem os males provocados por eles própri- os, mediante um pagamento mais compensador. Desfazer o traba- lho realizado significa reverter sobre quem os pediu os malefícios pretendidos. Apesar de ser essa reação considerada moralmente justificável, os guias de direita têm seus escrúpulos. Apela-se então aos exus e às pom- bas-giras doutrinados ou batizados para os serviços de contra-ma- gia da esquerda. Apenas os exus devem defrontar-se com os próprios exus, sobretudo quando

113 , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 estes, ao agirem maleficamente, revelam ausência de elevação espi- ritual, sendo incompatíveis, portanto, com os guias de luz. Por outro lado, exus e pombas-giras entram em locais que, pela sua santidade, são vedados às outras entidades: cemitérios e encruzi- lhadas. E há a necessidade de adentrá-los, pois é somente ali que se pode desfazer o mal, no mesmo local engendrado. Na interação entre orixás, caboclos e exus, um ponto que reflete as dife- renças entre o culto a cada um está na relação praticante e entida- de. Enquanto se zelam pelos orixás, caboclos, pretos-velhos e demais entidades espirituais, cuidam-se dos exus e das pombas-giras. Estes comportamentos não podem ser entendidos apenas em uma pers- pectiva semântica, mas por meio da prática cotidiana de propriação religiosa. Segundo Caroso e Rodrigues (2001), para com as pri- meiras entidades citadas, pode-se manter um relacionamento di- reto e pessoal, isto é, cotidiano e amigável. O zelar, neste caso, corresponde a uma expectativa de reciprocidade positiva, paulati- namente, a uma espécie de devoção. Por outro lado, a interação entre a pessoa que cuida de um exu e a enti- dade cuidada é mediada muitas vezes de modo tenso por uma espécie de contrato. Por pertencerem ao escalão mais baixo do de- senvolvimento espiritual e, sobretudo, porque as vias de ascensão social estão para eles de antemão bloqueadas, os exus podem per- mitir-se trilhar atalhos que levem ao êxito com maior eficácia que aqueles pautados na lógica da caridade, do conformismo e da hu- mildade. O cuidado para com exus e pomba-giras talvez possa ser melhor entendido muito mais como proteção ou precaução pessoal, espiritual e social que como devoção religiosa. O caráter ambíguo de trickster e de demônio atribuídos a essas entidades é assim expresso por esta mãe-de-santo:

Eles são bem brincalhão. É por isso que a gente gosta. Mas eu acho que eles são um pouco zangado, né?. Porque se não fizer direito, eles se zangam e as coisas ficam mais pesadas. [...] Eu considero eles todos, porque eu preciso deles também. Pra mim eu considero eles também. Tá certo que eles são da parte do outro [diabo]. Mas eu também não posso dizer que eles não são da parte de Deus. Nós tamos sabendo que eles são outro povo, né? Mas tudo também é deixado por Deus, porque se Deus não querendo, nada acontece. Não é não? (Mãe-de-santo M.S., entrevista, Codó (MA), ago. 1999).

, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 114 Com o fragmento do discurso acima, é possível perceber sentimentos contraditórios dos adeptos para com essas entidades. As pessoas ligadas aos cultos afro-brasileiros expressam admiração e respeito, aliados a um certo temor a tudo que se encontra relacionado aos exus e às pombas-giras. Essas entidades invariavelmente aparecem associadas ao diabo, na acepção cristã, do qual são destacados seus aspectos negativos como divin- dades promotoras e veiculadoras do mal, daí advinda a capacidade de proporcionar ganhos para alguns às custas de perdas muito al- tas para outros, por meio dos trabalhos de magia. Se exus e pombas-giras têm o poder de interferir na vida das pessoas, tanto positiva quanto negativamente, não resta escolha àqueles que eles escolhem senão buscar obter efeitos favoráveis dessa interferência. Segundo Caroso e Rodrigues (2001, p. 354), “esta tentativa é ex- pressa no cuidado ritual para com estas entidades que significa, para os adeptos, encontrar a justa medida entre as exigências dela e as compensações materiais e simbólicas resultantes”. No mundo do santo, geralmente as pessoas têm medo dos exus ou pelo menos dizem que têm. Mesmo representando entidades de baixo nível hierárquico de religiões de baixo prestígio social, sua presen- ça no imaginário extravasa os limites de seus seguidores para se fazer representar no pensamento das mais diversas classes sociais do país. Assim, estabelecem-se as relações de reciprocidade entre exus e seus adeptos, que favorecem aos segundos com resultados proveitosos e aos primeiros com perpetuação de seu culto.

Exus e Pombas-Giras: conhecendo um pouco mais os reis e as rainhas da quimbanda

Difícil falar em exu sem comentar a controvertida face do mal que se formou no imaginário popular. Não há quem ignore a força e o perigo potencial atribuídos pela umbanda aos exus. Eles repre- sentam, antes de tudo, o outro lado da civilização, o lado mar- ginal, caótico e ambíguo, aquele que deve ser eliminado, esquecido. São cinco as características principais dos exus que aparecem nos depoi- mentos dos meus interlocutores, nos pontos de saudação a essas entidades e em suas próprias falas por intermédio de seus cavalos: para muitos, eles são vistos como perigosos e maus, são os repre- 115 , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 sentantes em potencial da esquerda. A controvérsia principal é: eles são ou não são demônios?

Os exus, a gente tem que tomar o maior cuidado com eles. Eles são bem perigosos, podem até matar alguém porque eles são da ‘esquerda’. Todo o cuidado com eles é pouco, tá entendendo? (R. N., entrevista, Brasília(DF), ago.2003). Eu tenho por mim, que eles foram espíritos muito maus, entende? E eles vem pra se vingar. Os crentes dizem que eles são os demônios, mas sobre isto eu não posso dizer nada. Mas é muito bom a gente tomar cuidado com eles, né? Damos a comidinha, a bebidinha deles e aí não carece de ter problema não (A., entrevista, Brasília(DF), ago. 2003).

Alguns de seus pontos cantados demonstram a proximidade dos exus com a figura do diabo:

Meu Santo Antonio pequenino amansador de touro bravo Quem mexer com exu Tá mexendo com o diabo.

Satanás, Satanás Lúcifer é Satanás Satanás, Satanás É um exu, é Satanás, Lúcifer é Satanás.

Em entrevista, uma entidade que se apresenta como da linha de exu faz a seguinte afirmação, quando manifestada no corpo de seu cavalo:

Eu sou ruim, eu sou maldoso. Eu quero matar, eu quero ver os outros no chão2.

Outros, entretanto, demonstram que os exus devem ser vistos como a “polícia de choque” da umbanda, isto é, são eles os responsáveis por “cobrar o que tem de ser cobrado”, não havendo nenhuma ligação dos exus com a figura do demônio. Alguns pais e mães-de- santo falam o seguinte a esse a respeito:

, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 116 Exu não é demônio. Isso de pensar que exu é demônio. Isto tudo é ignorância das pessoas. Eu não acredito nisso. Porque nós trabalhamos com exus que ajudam as pessoas, curam, abrem os caminhos, e, se fosse demônios, eles não fariam tudo isso, né verdade? (Pai-de-santo A., entrevista, Brasília(DF), ago.2003).

Olha, os exus são muito bons. Eles têm uma missão religiosa a cumprir. Eles são os espíritos mais próximos da gente, aqueles que sofreram muito na vida quando encarnados. Por conhecerem bastante esse lado da dor, da tristeza, das coisas ruins, eles são a nossa ‘polícia de choque’. Eles são os únicos que podem entrar em cemitérios, encruzilhadas e outros lugares de energia negativa pra desfazer o mal feito por espíritos sem luz, como é o caso dos exus pagãos e dos quiumbas, que são espíritos muito atrasados, sem nenhum tipo de luz. Estes sim, estes não têm consciência do que estão fazendo e são muito maus. Então os nossos exus, que já são batizados, evoluídos, eles já têm responsabilidade, já tem conhecimento e eles vão cobrar o que tem que ser cobrado. Porque tudo o que a gente faz aqui nessa Terra, a gente tem que pagar. E eles também são da justiça porque ninguém passa na vida por aquilo que não é de seu merecimento, não é verdade? (Mãe-de-santo C., entrevista, Brasília(DF), set. 1996).

Um cavalo incorporado com o seu exu afirma o seguinte:

Eu ajudo as pessoas boas e destruo as pessoas ruins. [...] Eu faço apenas o que tem que ser feito, sem nenhum tipo de arrependimento. Eu sou da justiça e se pra isso acontece de eu ter que matar, eu mato3.

Um ponto de saudação ao Exu Tranca Ruas, importante figura da umbanda, fala a respeito desse assunto:

Oh luar, oh luar, oh luar... Ele é dono da rua, oh luar Quem cometeu os seus pecados Peça perdão a Tranca Ruas.

É interessante notar que as duas primeiras características dos exus aca- bam por definir uma terceira, isto é, os exus não devem ser vistos nem como bons nem como maus, mas, sim, como entidades espi- rituais neutras:

117 , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 Exu não é bom e nem mal. Exu possui uma característica dupla; tanto pode ser ativado para abrir como para fechar os caminhos. O que as pessoas precisam saber é que exu é neutro, o responsável pelos atos é quem os pratica (Pai-de-santo R. N., entrevista, Brasília(DF), ago. 2003).

As pessoas é que usam os exus para praticarem o mal. Se eles pedissem o bem, com certeza os exus fariam o bem porque eles só fazem o que lhes manda. Então o povo tem que saber disso que o culpado não são os exus, mas as pessoas que pedem as coisas ruins. A maldade maior está no coração das pessoas (O. B., entrevista, Brasília(DF), ago. 2003).

As características listadas acima definem uma quarta característica: a ambigüidade moral dos exus. Um ponto cantado fala sobre essa dualidade, em que eles podem tanto fazer o bem quanto o mal, sem nenhum tipo de constrangimento:

Exu tem duas cabeças, Mas ele olha sua banda com fé Uma é Satanás no inferno, A outra é de de Nazaré.

Por causa dessa característica, os exus são vistos como bons mediadores, capazes de quebrar “qualquer galho”, além de serem excelentes “abridores de caminho”:

A gente sabe que exu tanto pode fazer o bem quanto o mal. Que eles conhecem muito bem os dois lados, né? Então se você precisa de uma coisa urgente, você tem que pedir é pra exu, porque exu faz tudo rápido e também porque eles conhecem muito bem tanto o lado da ‘direita’ quanto o lado da ‘esquerda’, né? Então se você tá passando por alguma dificuldade, você tem que se consultar é com exu, ele é que vai poder abrir o seu caminho (M. J, entrevista, Brasília(DF), ago. 2003).

Uma quinta característica se refere à proximidade dessas entidades com o mundo dos homens, justamente por serem os exus a própria re- presentação daqueles que já padeceram dos mesmos sofrimentos pelos quais os homens comuns padecem. Talvez daí venha a sua grande força e popularidade:

, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 118 Eles [exus] são muito fortes, muito poderosos. Eles sofreram muito em terra. Foram humilhados, explorados como a gente, né? E por isso eles sabem muito bem o que nós passamos. Eles podem ter acesso a domínios que as ‘entidades’ de luz não poderiam entrar (M. G., entrevista, Brasília(DF), ago. 2003).

Os exus são ‘entidades’ muito fortes, de muito poder. Só um exu consegue desmanchar um mal feito por um espírito sem luz, só eles tem esse dom. Então é muito importante o trabalho deles, porque sem eles a gente não consegue muita coisa, né? Eles sabem muito bem o que se passa na cabeça da gente, né? Afinal eles passaram por tudo isso e não condena a gente (O. B., entrevista, Brasília(DF), ago. 2003).

Os dois relatos anteriores demonstram que os exus estão mais próximos do homem, são entidades mais humanas nesse sentido. Contudo, essa maior proximidade para com as fraquezas humanas é o que os coloca numa situação de espíritos inferiores, que devem ser sub- metidos, antes de tudo, a uma doutrinação. Na versão dos exus, prevalece a imagem do subalterno, bárbaro, demô- nio e sanguinário. Aqueles que não são confiáveis e, portanto, de- vem ser evitados. Já com relação às pombas-giras, estas entidades são vistas pelos umbandistas como a mulher de Exu ou Exu fêmea. Elas se referem, antes de tudo, segundo os umbandistas, aos espíritos de prostitutas, corte- sãs, cafetinas, mulheres sem família e sem honra. Além de possuí- rem as mesmas características que seus parceiros, essas entidades carregam consigo toda a ambigüidade dos exus aliada a uma ima- gem feminina fortemente sexualizada. Augras (2000) demonstra que a umbanda deu ensejo ao surgimento da figura da pomba-gira como a representação da livre expressão da sexualidade feminina aos olhos de uma sociedade ainda dominada por valores patriarcais. Para a autora, a pomba-gira representa, no imaginário umbandista e popular, uma figura potencialmente pe- rigosa e também carregada de imenso poder, em função da própria condição em que se encontra e/ou representa:

Pomba-gira, rainha da marginália, tem sua morada no corpo das mulheres, nos lugares de passagem de um ponto para outro ou deste mundo para além. Maria Molambo, mais especificamente, assume às claras a ligação

119 , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 com aquilo que a sociedade rejeita para a periferia. Chamada também de Pomba-Gira da ‘Lixeira’, recebe despachos arriados nas bordas dos depósitos de lixo, local onde fica rondando. [...] Maria Molambo, tal como suas irmãs Rosa Caveira, Maria Padilha, Rainhas do Cruzeiro e da Calunga, reúnem em si a escuridão, a sujeira, a desagregação, a presença da morte. Seus trabalhos são de demanda, isto é, de magia destinada a fazer o mal (AUGRAS, 1000, p. 40, grifo da autora).

As pombas-giras são as figuras da umbanda que talvez mais se vinculam à fantasia, à criação e ao desejo coletivo. Ao ser indagada quem seria ela, como havia sido sua vida na Terra, uma pomba-gira in- corporada em seu cavalo faz a seguinte afirmação:

Você quer mesmo saber quem eu sou? Então eu lhe respondo: Eu sou o mistério, o segredo, eu sou o amor, sou a esperança e o desejo. Sou de ti, sou de todos. Sou pomba-gira, sou mulher!4

Em sua maioria foram consideradas como mulheres bonitas e, sobretu- do, sedutoras. Segue a fala de outra pomba-gira incorporada em seu cavalo:

Eu era muito linda, podia com o corpo conseguir tudo e tentava. [...] M5. era muito elegante, muito, muito. M. era morena, mas não era morena que nem caboclo, M. era cor de pêssego, tinha o cabelo nos ombros. M. tinha o corpo lindo, M. sempre foi bonita para os homens6.

Seus pontos de saudação fazem referências a essas características:

Quem não gosta de Pomba-Gira Tem, tem que se arrebentar Ela é bonita, Ela é formosa, Ó bela vem trabalhar.

De garfo na mão Lá vem mulher bonita Bonita e muito formosa Lá vem Pomba-Gira Lá vem Maria Padilha7.

, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 120 Contudo, a beleza da pomba-gira é também um sinal de perigo. Deve- se, portanto, tomar cuidado:

Meu caminho é de fogo No meio da encruzilhada Quem quiser me demandar Eu lhe cuspo e vou pisar Quanto inimigo na terra Querendo desafiar Sou Pomba-Gira formosa Formosa pra lhe quebrar.

Por serem consideradas também como “mulheres da noite”, as pombas- giras adoram“festas”:

Eu sou a Pomba-Gira E estou sempre presente Quem confirma é minha gente Estou sempre nas festanças Brincando com alguém Eu saravo minha rainha E o meu rei também.

Por outro lado, a figura da pomba-gira, ao mesmo tempo, que afirma a realidade da sexualidade feminina como um dos seus atributos de poder, devolve-a ao império da marginalidade: “O povo diz que eu sou puta, mas eu sou puta mesmo. [...] Mas qual é o homem, macho de verdade, que não gosta de uma puta?”8.

Eu era promíscua. Podia conseguir tudo com o meu corpo. Mas os homens me exploravam também. Eu também fui muito usada9.

São, sobretudo, as mulheres que se consultam com as pombas-giras, pro- curando solucionar seus males de amor. Como essas, as pombas- giras também foram mulheres que sofreram grandes desilusões amorosas e ninguém melhor do que estas entidades para saberem tão bem o sofrimento que um amor mal-sucedido pode desenca- dear na vida de um ser humano. Assim, uma pomba-gira incorporada discorre sobre como era a sua vida na Terra: 121 , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 M. teve nove filhos com vinte e três anos. Era um assim, assim, assim... M. foi mãe acho que com onze anos. M. nunca foi feliz com homem. Batiam em M. e eu aprendi a beber e a fumar, isto era um escape. Eu nunca descobri o que era o amor de verdade10.

Contudo, assim como os exus, as pombas-giras podem ser doutrinadas, moralizam-se. A mesma pomba-gira, incorporada na médium, continua a sua fala:

[...] Hoje eu vejo que o meu problema é o amor. E eu queria investir muito nos homens e às vezes eu vejo uma coisa que não é, como eu sempre vi, entendeu? Eu pensava assim: se você tá bem hoje, você vai ficar o amanhã e depois... E não é assim. Eu continuo pensando que o amor é o amor. Mas só que os espíritos mais evoluídos falam que eu confundo o amor com sexo. Eu gosto muito de sexo. Então eu penso que o sexo é amor e eles falam que eu tenho que conseguir definir essas coisas para eu me iluminar e eu ainda não consegui, porque eu penso que amor é transar e não é. Mas não aquele sexo promíscuo e sim aquele com prazer, aquele que você geme, que você chora. Mas eu chorava com todos...11

Em outra ocasião, esta mesma entidade, posta no corpo de seu cavalo, discute a sua posição subalterna e desabafa:

M. hoje está tão triste, porque você pensa que lá [no outro mundo], lá é pior do que aqui neste mundo. M. veio pra aproveitar a tristeza pra fazer essa entrevista. E outra coisa: tive que ter permissão! E M. fala muito e eles não gostam de M. por isso, e agora desliga... [...] Lá é muito ruim, lá exige. É tudo vigiando pra obter luz as custas do seu sofrimento. Eu sei que falando isso com você, eles vão me aprisionar. Me aprisiona! Mas que eu vou falar, eu vou. E M. tá pouco me lixando pra isso, pra eles, pra eles [‘entidades’ de nível superior]. Mas M. têm que agradecer. Mas lá é ruim sim. Eu tive uma exceção daquele espiritual [Deus], mas acho que ele pensa que eu tô falando muito e eu tô. Mas eu tô porque, porque eu nunca posso falar e hoje eu posso falar12.

Este relato é bastante sugestivo para se pensar que a representação da pomba-gira, ao manifestar no corpo de seu cavalo, parece atender a muitos aspectos reprimidos que, clamorosamente, pedem passa-

, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 122 gem e, nos terreiros de umbanda, seu comportamento permanece escandaloso. Segue o mesmo relato:

Aqui pelo menos nesta casa [terreiro] eu posso beber, eu posso fumar, eu só não posso transar... Aqui eu sou feliz, eu sou linda, que todos querem e eu quero a todos!13

Com esse fragmento é possível perceber que essa personagem, ao se mani- festar no corpo da médium, posiciona-se, num primeiro momento, como a expressão do marginal que necessita desabafar, que quer ser escutado, embora as conseqüências dessa ação possam lhe custar muito caro. Mais uma vez, aqui se demonstra a metáfora da voz subalterna que está em constante negociação para ser ouvida ... Já num segundo momento, esta mesma entidade ao possuir o corpo de seu cavalo, demonstra, em sua fala, que é possível, mediante nego- ciação, manifestar a sua verdadeira identidade ou pelo menos o que se espera que ela realmente seja. A liberdade pode ser conquis- tada, basta querer! Mas é necessário estar atento ao preço a ser pago. Contudo, na maioria das vezes, pode custar caro demais... Aqui, mais uma vez, a metáfora da prostituição pode ser utilizada como promessa de disponibilidade para o gozo! Já em outra ocasião, respectivamente, numa gira de exus, uma outra pomba-gira, C. S. E., incorporada na mãe-de-santo daquele ter- reiro visitado, dona O., ao se aproximar de mim – neste momento me encontrava filmando aqueles rituais –, discorre sobre a ima- gem que as pessoas têm do seu povo, sobre a importância da dou- trinação dessas entidades e, sobretudo, a importância do trabalho espiritual que as pombas-giras desenvolvem nos terreiros de umbanda. Segue o diálogo, gravado em fita de vídeo em 13.06.2003, na festa de encruza, em Planaltina(DF):

C.S.E. [incorporada na mãe-de-santo]: O que está fazendo aqui, moço? S: Estou filmando a festa de vocês, para uma pesquisa. C. S. E.: Pra contar a nossa vida pros outros, né? S.: Sim. C. S. E.: E você tá gostando? S.: Estou. C. S. E.: Nossa vida é assim, moço, é na rua, é sambando, é nas calungas. E nós tamos aí pra ajudar aqueles que diz que não precisa

123 , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 de nós, mas aquele grande que manda nisso tudo aí [Deus], ele dá ordem pra nós chegar a cá, entendeu? Porque sem a ordem dele, a gente não faz nada. Como vocês aqui não são nada sem ele, sem aquele grande. E nós respeita o grande. Nós não faz nada sem a ordem dele, entendeu? Tá assistindo nós, né? E Nós tamos aí. Nós somos assim, como diz assim: Dizem que nós tem chifre, que nós tem rabo. Se não fosse nós pra ‘trabalhar’, os filhos dessa terra tava tudo no buraco, sem saída. E nós não, nós abre as estradas pros filhos caminhar. Pode ter certeza que a sua estrada nós estamos seguindo. Eu sou a C. S. E., com muito prazer. Estou aqui pra ‘trabalhar’ pra que você quiser. Boa Noite! S: Boa Noite!

Como mulheres bonitas, atrevidas e impetuosas, as pombas-giras carre- gam consigo toda a idéia de ambigüidade. Elas parecem represen- tar, no contexto umbandista, uma imagem invertida da concepção que situa o espaço doméstico como o espaço feminino por excelên- cia e onde os recursos femininos estão definidos complementar- mente aos personagens masculinos. As pombas-giras, ao contrário, são percebidas como uma ameaça a esse espaço doméstico e às relações aí legitimadas. Sendo a imagem modelar da liberdade, da não padronização dos costu- mes, posturas, atitudes e da livre realização do desejo, a pomba- gira coloca-se como a mascarada, a anti-esposa, a negação da mãe de família, na medida em que sua imagem é definida na forma não complementar aos homens. A sua sexualidade, por exemplo, não está a serviço da reprodução. Ela usa a sua sexualidade em benefício próprio. Os poderes e perigos de sua imagem estão certamente associados a essa liminaridade. Em outras palavras, a imagem da pomba-gira seria a contraface de uma outra: aquela da mulher associada à casa, à família, às esferas mais controladas socialmente.

CONCLUSÃO

Para se compreender a quimbanda é preciso entender de que maneira ela opera com as representações simbólicas da violência e da trans- gressão que estão contidas em seu universo. Se, de um lado, a umbanda busca se posicionar como uma forma de suavidade, com- portada, filtrada da cultura brasileira, a quimbanda, por outro lado,

, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 124 afirma-se como uma contracultura reprimida, que em seus rituais busca exprimir sempre o desejo total de libertação. Os representantes da quimbanda são os exus e as pombas-giras, referidos habitualmente, nos terreiros afro-brasileiros, como o povo da rua. Esses personagens representam facilmente a massa anônima que circula pelas cidades, os trabalhadores, os vagabundos, os malan- dros, os gigolôs, as prostitutas etc. enfim, as pessoas comuns que ocupam o espaço público nas suas idas e vindas. Eles são, sobretu- do, as marcas da marginalidade, do anonimato e das relações im- pessoais que permeiam o cotidiano urbano. A rua apresenta igualmente um valor de metáfora: significa o que se põe à margem dos valores familiares, mas do quais também dependem para que possam subsistir com firmeza e vitalidade (a sexualidade, por exem- plo). São acusados, sobretudo, de ser espíritos violentos e transgressores, visto que expressam as vontades e os anseios de seus clientes, tornan- do possíveis os desejos mais ilícitos mediante oferendas rituais. Talvez venha daí, segundo os adeptos dos cultos afro-brasileiros, a fonte maior dos poderes dessas entidades. Esta condição implica em perigo e poder, conforme assinala Douglas (1976, p. 20): “ter estado nas margens é ter estado em contato com o perigo e ter ido à fonte de poder”. As margens são, assim, perpetuamente o santuário dos conflitos sociais e também o lugar do trânsito. É evidente que essas duas lógicas se cruzam, interpenetram-se, chocam-se. É esse sugestivo poder simbólico das margens que é tão plenamente exer- citado pelos que participam dos rituais de quimbanda. Exus e pombas-giras convidam ao público à diluição das regras, da or- dem e à entrega total aos desejos emocionais e à sexualidade de- senfreada numa forma simbólica.

Notas

1 Baseando-se em Durkheim (1996), na sua obra Da divisão do trabalho social, vemos que a “divisão do trabalho espiritual” existente no imaginário umbandista apre- senta características em comum com aquela estudada por Durkheim em nossa sociedade. A “divisão do trabalho espiritual” na umbanda é vista também como fonte de coesão entre espíritos de diferentes categorias, dando origem a um certo tipo de solidariedade que produz, ao mesmo tempo, uma moral, onde cada divin- dade, ao desempenhar um determinado papel, marca o seu lugar dentro da hierar- quia espiritual. 2 Exu N., “incorporado”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M. R. femi- nino. 125 , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 3 Exu P. P, “incorporado”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium R., mascu- lino). 4 Pomba-Gira da P., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), ago. 2003, Médium L., feminino). 5 Embora pareça estar falando de uma terceira “pessoa”, a pomba-gira M., “incor- porada” em seu “cavalo”, faz menções a acontecimentos que teriam sido de sua suposta vida terrena. 6 Pomba-gira M., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M. R., feminino). 7 Para uma versão individualizada do mito de Maria Padilha e sua configuração como pomba-gira da umbanda, consultar: Meyer (1993). 8 Pomba-gira C., “incorporada”, entrevista, Brasília/DF, set. 2003, Médium O., feminino. 9 Pomba-gira M., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M. R., feminino. 10 Pomba-Gira M., “incorporada”, em entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M. R., feminino. 11 Pomba-Gira M., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M. R., feminino. 12 Pomba-Gira M., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M. R., feminino. 13 Pomba-Gira M., “incorporada”, entrevista, Brasília(DF), mar. 2003, Médium M. R., feminino.

Referências

AUGRAS, M. De Iyá Mi a pomba-gira: transformações e símbolos da libido. In: MOURA, C. E. M. de (Org.). Candomblé, religião do corpo e da alma: tipos psicológicos nas religiões afro-brasileiras. : Pallas, 2000. BARROS, S. C. Brasil imaginario: umbanda, poder, marginalidade social e possessão. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de Brasília, Brasília, 2004. BARROS, S. C. Encantaria de Bárbara Soeira: a construção do imaginário do medo em Codó/MA. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade de Brasília, Brasília, 2000. BARROS, S. C. Urbanização e umbanda: o espaço dos homens e o espaço dos deuses. Monografia (Graduação em Geografia) – Universidade de Brasília, Brasília, 1997. CAROSO, C.; RODRIGUES, N. Exus no candomblé de caboclo. In: PRANDI, R. (Org.). Encantarias brasileiras: o livro dos mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.

, Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007 126 CARVALHO, J. J. de. Violência e caos na experiência religiosa. In: MOURA, C. E. M. de. As senhoras do pássaro da noite: escritos sobre a religião dos orixás. : Edusp; Axis Mundi, 1994. DOUGLAS, M. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976. DURKHEIM, É. Da divisão do trabalho social. São Paulo: M. Fontes, 1995. KARDEC, A. O livro dos espíritos. São Paulo: Petit, 1999. ORTIZ, R. A morte branca do feiticeiro negro: umbanda e sociedade brasileira. São Paulo: Ática, 1999. ORTIZ, R. Ética, poder e política: umbanda um mito-ideologia. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, 1984. MEYER, M. Maria Padilha e toda a sua quadrilha: de amante de um rei de Castela a pomba-gira de umbanda. São Paulo: Duas Cidades, 1993. MONTEIRO, P. Da doença a desordem: a magia na umbanda. Rio de Janeiro: Graal, 1985. NEGRÃO, L. N. A construção sincrética de uma identidade. Ciências hoje, São Paulo, 1991.

Abstract: the article part of the premise of that all known symbolic ‘devilish’ and the transgressor of exus and the dove-turns – entities that belong to the universe of quimbanda – constitute main essence that it gives to sustenance and legitimacy to the of quimbanda that they make use of definitive symbols of inversion and transgression that finish for if opposing and subverted the those that they are clearly associates the universe christian.

Key words: violence, transgression, quimbanda

SULIVAN CHARLES BARROS Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília. Especialista em Antropologia e Mundos Contemporâneos pela UCB-DF. Professor no Centro Universitário Unieuro e nas Faculdades Espam. 127 , Goiânia, v. 5, n. 1, p. 107-127, jan./jun. 2007