Exemplar encartado no jornal A União apenas para assinantes. Nas bancas e representantes, R$ 6,00 Jornalistas, trazem pesquisadores à eartistas tona aobra eaintimidade do gênio paraibano do Pandeiro do 100 anos 100 Jackson Jackson União A Jornal Ano LXX -Nº LXX Ano 5 Suplemento literário do literário Julho -2019 R$ 6,00 R$

6editorial

Jackson do Pandeiro faz 100 anos Em meio a resenhas de Um timaço de ta nas lembranças da viúva livros, poemas e artigos, o Neuza Flores e de músicos Correio das Artes abre pas- jornalistas, que conviveram no palco sagem para reverenciar um com ele, ou o viram de per- mestre da música, um gênio pesquisadores, to em apresentações pelo nascido no interior da Pa- Nordeste, em depoimentos raíba, alguém que sincopou historiadores e inéditos que se somam a le- certo por ritmos tortos e des- artistas compõe vantamentos biográficos e ta batida diferente saiu uma memórias que tornam este nova linguagem, reverencia- um relicário exemplar, uma fonte rica da até hoje, 100 anos depois para consulta de fãs, estu- do seu nascimento. de memórias, dantes e apreciadores do le- A edição que você tem em gado do Rei do Ritmo. Tudo mãos é especial. Por ocasião fatos e análises isso orientado pelo melhor do centenário de José Gomes guia que se pode ter na pra- Filho, o Jackson do Pandei- que tornam ça: o pesquisador e biógrafo ro, um timaço formado por do artista, Fernando Moura. jornalistas, pesquisadores, Jackson, um Para coroar o material, historiadores e artistas, que imortal uma seleção exclusiva com conheceram bem o homem e/ 20 músicas que retratam o ou sua obra, compõe um re- talento e a majestade de Jack- licário de memórias, fatos e son do Pandeiro, com comen- análises que tornam Jackson, tários faixa-a-faixa e que o um imortal. de, intrinsecamente ligada leitor poderá ouvi-la a partir Nas próximas páginas, aos batuques do quilombo do seu smartphone, através você irá mergulhar no berço Caiana dos Crioulos, à con- de um QR Code que você en- que trouxe Jackson do Pan- sagração no , contrará na página. deiro ao mundo e a estrada depois de passar por Campi- de sucesso que ele seguiu, da na Grande (PB) e (PE). O editor sua origem em Alagoa Gran- A intimidade do ritmis- [email protected]

6 índice , 38 @ 40 2 42 D 46 sarau literatura clarisser ao rés da página Levando poesia e Com misto de 'making of' e Professora Analice Pereira "O sonho é a ficção da performance aos palcos resenha, Roberto Menezes mergulha no universo memória". A partir desta de João Pessoa, grupo disseca 'Carta à Rainha do escritor Leonardo afirmação, o escritor Tiago Evocare é tema de análise Louca', novo romance da Padura a partir do seu Germano avalia o papel do do professor e poeta vencedora do Jabuti, Maria mais recente livro, 'A inconsciente na criação Expedito Ferraz Júnior. Valéria Rezende. Transparência do Tempo' literária.

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Vanderley de Brito e Ida Steinmüller Especial para o Correio das Artes

ocê bem sabe que a ema quando canta, vem trazendo no seu canto um bocado de azar, e parece que naquele dia de 31 de agosto de 1919, quando nascia o filho do oleiro José Gomes e da cantadora de coco Flora Mourão, a ema gemeu nas circun- V jacências do Engenho Tanques, município de Alagoa Gran- de, no brejo paraibano. Negro, pobre, nordestino, raquítico e da voz fina, anasa- lada, José Gomes Filho tinha tudo para não dar certo. Foi um sinal bem triste, mas parece que nesse momento nas- cituro, enquanto a ema gemia seu agouro no tronco do juremá, na Lagoa do Paó, simultaneamente, o sapo esta- va contente, alegrando o dia com sua toada improvisada em dez pés: Tião, Oi! Foste? Fui! Compraste? Comprei! Pagaste? Paguei! Me diz quanto foi? Foi quinhentos réis. Naquela palhoça, o menino brejeiro veio ao mun- do sob o signo do sincretismo sonoro da tristeza e da alegria, tomando gosto pelo ritmo para se tornar um negrinho de olhar triste, mas com uma capacidade in- to comum e inigualável de semear alegria. i Sendo supostamente neto de escravos, e certamen- te filho de cantadeira, solto de cangas pelo vale do Mamanguape, o negrinho do Engenho Tanques pas- sou sua infância entre as vocalizações da natureza brejeira misturado aos sons do bumbo, triângulo, ganzá e dos sapateios que animavam os cocos-de-

-roda e cirandas, expressões mais vivas da tradição Ilustração: Vanderley de Br musical de raiz negra escravocrata. Nesse contexto, de clima úmido e festivo, o negrinho se impregnou de sistemática musical simples, replicante, conta- giante e simbiótica com o enlevo jocoso, mordaz e sensual das danças de roda... c

| João Pessoa, julho de 2019 4 Correio das Artes – A UNIÃO arcervo Fernando Moura c Uê, uê... uê, uá..Uê, uê... uê, uá... A lua vai saí e eu vô girá/ A lua vai saí e eu vô girá. Vou caçá meu tatu, meu ta- manduá/ Vou caçá meu tatu, meu tamanduá. (Lundu de Roda - autor desco- nhecido) Sua infância foi entre o traba- lho na roça, a caieira de tijolos, as brincadeiras de criança e as rodas de coco. Entre os seus, no compasso dessas cantorias que aconteciam vinculadas ao co- tidiano do trabalho de eito e do entretenimento, aos sete anos de idade o negrinho aprendeu a tocar zabumba, iniciando-se na percussão ao substituir o zabum- beiro que acompanhava sua mãe nas apresentações. Tum-tum- -tum, tum-tum-tum... Nascia o percussionista. Talvez você já tenha entendi- do que o negrinho que estamos a falar, no futuro seria considera- do um dos maiores ritmistas da história da música popular bra- sileira. Mas para entender esse Engenho Tanques, em Alagoa fenômeno, nascido nos ermos do um dos 13 legítimos quilombos Grande: avós, supostamente brejo paraibano, é preciso, pri- brasileiros pela Fundação Cultu- escravos, de Jackson do meiro, se reportar às suas raízes ral Palmares. Essa comunidade, Pandeiro ficaram entre os que mais remotas: Pois bem, em tem- que até hoje mantém viva as tra- não foram removidos para o quilombo pos de 1872, um censo feito pelo dições herdadas de seus antepas- Império indicou que a freguesia sados, ainda se brinca e se diverte de Nossa Senhora da Conceição com o coco-de-roda e a ciranda, de Areia, que englobava a re- que aliava canto, dança e alegria gião de Alagoa Grande, com seus (veja mais na página 8). 1.424 escravos, era na Paraíba a Desde pelo menos a década de região com a maior população 1940, a comunidade também já ciaram das ações dos idealistas escravizada. era conhecida pela sua banda ca- abolicionistas e os avós escravos Nesses tempos, dois morado- baçal, que animava festas na sede do negrinho ficaram entre os que res de Areia tomaram a frente no do município de Alagoa Gran- não foram removidos para qui- processo de libertação de escra- de. Provavelmente, os pais do lombo, permaneceram, portanto, vizados: o farmacêutico Manuel menino José Gomes Filho eram no Engenho Tanques, que à épo- Silva e o bacharel Coelho Lisboa, ligados por laços familiares com ca pertencia ao político renoma- que atuaram na organização de esses quilombolas e, sem dúvi- do Apolônio Zenaide. eventos para arrecadar recursos das, muitas vezes o negrinho de Em 1888, com a Lei Áurea, que para a compra de escravizados, engenho acompanhou seus pais permitiu a liberdade de todos os acolhiam escravos fugitivos e até à comunidade, e essas visitas, escravizados, por comodismo ou mesmo incentivavam a fuga de certamente, ficaram mais cons- medo de enfrentar esse mundo cativos. tantes quando o menino passou hostil, muitos escravos se man- Nessa dinâmica idealista, nas- a acompanhar sua mãe na ani- tiveram voluntários nos afazeres ceram os quilombos que circun- mação de festas nos sítios e feiras do engenho. dam a região do brejo paraibano, dos arredores de Alagoa Grande. Em seu livro Menino de Enge- com especial destaque para a co- Ela, tocando ganzá, cantando e nho, José Lins do Rego conta a munidade quilombola de Caiana dançando cocos, e ele, na percus- forma como os negros libertos do dos Crioulos, estabelecida com são do zabumba, como já lhe ex- engenho da sua família “fizeram culturas de subsistência num ter- pomos linhas atrás. muita festa no dia 13 de maio de reno bastante elevado e aciden- É bom que você saiba que os 1888, mas no dia seguinte conti- tado a 12 quilômetros da atual Gomes não eram propriamen- nuaram a trabalhar no campo. cidade de Alagoa Grande, e reco- te quilombolas, pois nem todas Não me saiu do engenho um ne- nhecido, em maio de 2005, como as senzalas da região se benefi- gro só. Para esta gente pobre a c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 5 c abolição não serviu de nada”. Os Gomes se nar amigos e a tocar pandeiro. Todavia, é interessante que Assim, o negrinho pandeiris- você entenda que, por serem instalaram no ta, agora conhecido como Zé Jack, tecnicamente livres, desde que nome inspirado nos filmes de fa- cumprissem suas obrigações nos subúrbio, num casebre roeste que assistia nos cinemas, serviços do engenho, lhes era tomou-se de paixão pela malan- permitido visitar seus familiares dragem suburbana e as possibi- e procurar outros meios de am- às margens do Açude lidades de lazeres e alegrias de pliar a economia doméstica. Campina Grande. Assim, gerações negras pós- de Velho, onde depois -abolição viveram as margens dos engenhos, onde outrora eram viria a ser o bairro de malandro cativos, e foi nessas condições Tem muita menina pra se namo- de comodismo, dependência e José Pinheiro rar/ E se amarra na garota, não sai desesperança de seus pais que o mais de lá / Ô não sai mais de lá, menino José Gomes Filho veio ao Ô não sai mais de lá/ E se visita Zé mundo, em fins do segundo de- ca, devido o comércio algodoeiro, Pinheiro não sai mais de lá / Ô não cênio do século 20. era a Canaã das oportunidades. sai mais de lá, Ô não sai mais de lá/ Quando o negrinho estava Um lugar de muitas promessas, E se tomar cana da boa não sai mais por completar 10 ou 11 anos, seu mas também de grandes desa- de lá. pai faleceu no brejo e, conforme fios. (‘Alô Campina Grande’) o próprio Jackson revelou mui- Não temos notícia das circuns- tos anos depois, depois da morte tâncias exatas desse êxodo. Sabe- Sob a mistura das influências precoce do chefe da família, num mos, porém, que um sobrinho de inúmeras do universo suburbano desses momentos de extrema Flora que morava em Campina de Campina Grande, o negrinho, dificuldade financeira, a família Grande, chamado João Galdino, que nasceu sob o gemido da ema mudou-se de Alagoa Grande (a removeu a família de Alagoa e o coaxo da saparia, agora um pé) para Campina Grande. Grande já com um emprego as- rapazola, franzino e irrequieto, Obviamente, esperamos que segurado para o primogênito de tornara-se um típico malandro você entenda que um menino Flora na padaria São Joaquim, de cosmopolita nordestino, forja- de 11 anos não podia compreen- Jaime Brasil, no centro da cidade. do entre rinhas de galo, cabarés, der as razões intrínsecas da- Os Gomes se instalaram no su- filmes de bangue-bangue, pros- quela mudança radical, mas é búrbio, num casebre às margens titutas, rádio, cachaça, arruaças, interessante frisar que naqueles do Açude de Velho, onde depois, fuzuês e os ritmos musicais dos princípios da década de 1930, o veja você, viria a ser o bairro de repentistas e violeiros da agitada ambiente dos engenhos não es- José Pinheiro, e o pequeno José Feira Grande da Rua Maciel Pi- tava favorável à permanência de Gomes Filho, órfão de pai e com nheiro. descendentes de escravos, pois irmãos mais novos para ajudar a Campina Grande, cidade dos a Frente Negra Brasileira, umas criar, começa a trabalhar como menestréis, foi a segunda escola das entidades mais importantes entregador de pão. musical do negrinho. Campina na defesa sócio-política de afro- No caminho diário para o ser- ensinou-lhe o bê-a-bá da música descendentes, nesses tempos viço, com um enorme balaio na (A, E, I, O, U, Ypsilone) e ele, ao denunciava senhores de enge- cabeça, o menino passava pelos seu modo, adaptou as embola- nho sujeitando negros, ainda a currais do bairro das Piabas, cru- das e cantorias de repentistas de semiescravidão e, decerto, essas zava o pontilhão de Santo Antô- feira às lembranças adormecidas denúncias geravam desconfortos nio e penetrava a área da zona de seu universo infantil, onde os para a permanência de descen- de perdição para alcançar o cen- timbres onomatopeicos brejeiros dentes de escravos nos engenhos. tro da cidade. Fez tantas vezes se mesclavam às suas letras e ba- “Buraco velho tem cobra dentro”, esse itinerário que, aos 15 anos, tuques. dizia Jackson numa de suas can- nos albores da adolescência, o A música ‘Bodocongó’, com ções (‘Capoeira mata um’), por brejeirinho se torna assíduo fre- a rítmica: “Bodocongó, bodó, isso chegara o momento do que quentador da região da Manchú- bodó... congó”, parece imitar a restou da família Gomes sair da ria, zona de baixo meretrício de melodia, andamento, intervalos zona de conforto e romper seus Campina Grande, aprendendo e métrica do trinado do curió: ti laços escravocratas. as lições de amores da vida com tu-í, té té, quim quim tói, té té, Maria Pororoca, Josefa Tributino tué tué... Do mesmo modo que o canaã das e Carminha Vilar. xô, xô, xô, xô na música ‘Casaca Por esse tempo também, co- de couro’ ressalta a comparativa oportunidades meçou sua trajetória de boê- dessa simbiose ritmista entre es- Certo mesmo é que logo após mio pelos forrós da cidade, sas aves e os cantadores: “Eu nun- a morte do oleiro José Gomes, em sobretudo os de Bodocongó, ca vi desafio /Mais bonito, mais iguá/ 1932, o menino, seus irmãos e sua Alto Branco e Zé Pinheiro, Duas casacas de couro / Quando co- mãe se mudaram para a cidade onde aprendeu também a to- meça a cantar/Parece dois violeiros/ de Campina Grande, que na épo- mar cachaça, fumar, colecio- Num galope à beira-mar”. c

| João Pessoa, julho de 2019 6 Correio das Artes – A UNIÃO arcervo Fernando Moura chuá/Gosto de sambar na ponta da faca/Sou nego de raça e não quero apanhar”; de modo que em um fuzuê num cabaré, que resultou em briga com policiais apaisano, o obrigou a deixar sua querida Campina Grande na calada da noite. Foi um dia triste para a Ra- inha da Borborema, pois perdia de vez seu negrinho ritmista, que foi viver suas aventuras rítmicas em João Pessoa e no Recife, mu- dando seu o nome artístico para Jackson do Pandeiro. Fugido, em suas aventuras rítmicas em João Pessoa conhe- ceu Rosil Cavalcanti, sua cara- -metade, um branco fortemente Café com leite: em suas aventuras influenciado pela cultura negra c Nascido em universo afro- ritmicas, Jackson (E) conheceu açucareira pernambucana. For- -brasileiro, a música para o moço Rosil Cavalcanti (D), um branco maram uma dupla e, depois, em fortemente influenciado pela Zé Jack nunca foi um capricho, cultura negra açucareira Recife, ampliou seu leque musical mas um modo de vida. E nessa pernambucana e até frequentou candomblés em trajetória boêmia, entre os forrós busca de suas raízes africanas. e cabarés de Campina Grande, Até que um dia, aos 34 anos, o negrinho, com seu jeito ama- no ano de 1953, o negrinho se- tutado e mungangueiro, chega maiores sucessos: “Aí eu vou mianalfabeto, que parecia ter aos 20 anos, quando se decidiu misturar, Miami com Copacabana. tudo para não dar certo, se lan- de vez no ramo musical, mudan- Chiclete eu misturo com banana, e o çou para o país num sucesso ins- do o nome artístico para Jack do meu samba vai ficar assim: Tururu- tantâneo, soletrando o canto “A, Pandeiro e, em parceria com o rurururi bop-bebop-bebop, tururu- E, I, O, U, Ypsilone” e deixando o amigo José Lacerda, começa a fa- rurururi bop-bebop-bebop... público em êxtase com sua rítmi- zer sucesso em Campina Grande Cantando ao seu jeito estilos ca trazida de Campina Grande, com apresentações e temporadas variados, o irreverente Jack de- sua escola. na pensão de Carminha Vilar e senvolveu seu exclusivo gênero Depois da música “Sebastia- no suntuoso Cassino Eldorado musical em Campina Grande, na”, veio o rojão “Forró de Li- (chegando a integrar a orques- aliás, numa das músicas que fez moeiro” e assim se deslanchou tra exclusiva desse cabaré), onde para homenagear sua cidade es- uma extensa discografia com passou a tomar contato com ou- cola (‘Forró em Campina’), ele re- músicas de grande sucesso na- tros diversificados ritmos, como memora de modo onomatopaico o cional, como ‘Xote de Copacaba- o blues, jazz, chorinho, maxixe, tempo que aprendeu a tocar pan- na’, ‘O canto da ema’, ‘Chiclete rumba, tango e samba, que, sem deiro, numa letra de ritmo bande- com banana’, ‘Como tem Zé na reservas, adaptou com expres- jado, subindo e descendo escala Paraíba’, ‘Cabo Tenório’, ‘Um a sões rítmicas do maracatu, baião, aceleradamente, indo e voltando Um’, ‘Forró em Caruaru’, ‘Casaca coco, batuque, xote e rojão. de Lá para Mi maior e de Lá para de couro’, ‘Coco do Norte’, entre Imagine você que, sob a forte Ré maior, como estivesse a imitar muitos outros que lhe renderam influência das raízes negras na o som de um pandeiro: “Cantan- o titulo de “O Rei do Ritmo”. alma e como uma originalidade do meu forró vem à lembrança o meu Mas essa trajetória, que como inigualável, o jovem ritmista não tempo de criança que me faz chorar./ você pode ver, parecia ter tudo conseguia desempenhar esses Ó linda flor, linda morena, Campina para continuar dando certo, se novos ritmos tal qual o original: Grande, minha Borborema...” encerrou em 10 de julho de 1982. ele fazia um batuque diferente, Com apenas 52 anos, sofrendo mudava os compassos sem per- fuzuê no cabaré de embolia pulmonar, o próprio der a toada, transformava as es- Contudo, o franzino ritmista, Jackson roncava seu presságio, truturas sem quebrar a lógica. como todo bom malandro, tam- como a imitar o lúgubre cantar da Tão naturalmente desdobrava bém era dado a confusões: “Eu ema. E você bem sabe que a ema os ritmos em outros ritmos que, que sou do morro, não choro, não quando canta, vem trazendo no simplesmente, encantava. corro/Não peço socorro quando há seu canto um bocado de azar. E Sobre essa sua tendência de readaptar estilos, ele trata- ria num samba, de sua autoria, Vanderley de Brito, historiador, arqueólogo, presidente do Instituto Histórico de Campina Grande. Ida Steinmüller, parceria com Gordurinha, in- administradora, memorialista, sócia fundadora do Instituto titulado “Chiclete com bana- Histórico de Campina Grande. Ambos, membros da Antiga e na”, que se tornaria um de seus Mística Ordem Rosa Cruz-AMORC.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 7 fotos: roberto guedes 6 jackson 100 anos

Um passeio por Alagoa Grande Terra de Jackson do Pandeiro oferece memorial para visitantes e André Cananéa Editor do Correio das Artes comunidade quilombola preserva cultura de cocos, cirandas e lagoa Grande, no Brejo paraibano, parece respirar a arte e a rojões que fizeram fama de Jackson do Pandeiro. É difícil encontrar uma pou- a fama do músico sada, uma padaria, uma farmácia ou até mesmo um posto paraibano de gasolina que não faça referência ao filho mais ilustre da A cidade ou ao instrumento que marcou sua carreira: o pan- deiro. Para dar uma ideia, a entrada da cidade ostenta um pandeiro gigante e a casa de shows da cidade se chama O Pandeirão. Jackson nasceu na zona rural de Alagoa Grande em 31 de agosto de 1919. O lugar se chama “Usina Tanques” e fica dis- tante cerca de sete quilômetros do asfalto, para quem pega a rodovia PB-079 ao Noroeste do Estado em direção ao mu- nicípio de Areia e se dispõe a encarar uma estrada de terra. Esse caminho também dá acesso a conhecida Cachoeira do Quinze, mas antes de chegar lá, o visitante se depara com um vilarejo de meia-dúzia de pequenas casas, tendo ao fun- do as ruínas fantasmagóricas da usina e, junto a elas, a casa grande e uma capela. Foi nesse ambiente que Jackson nasceu, quando a Tan- ques ainda era um engenho (a usina foi ativada aproxima- damente dez anos após o nascimento do músico). Os mora- dores locais, que após a desativação da usina, nos anos 1990, passaram a viver da agricultura, não sabem precisar onde, Usina Tanques: local exatamente, ele nasceu (a casa, humilde, já teria sido demo- onde nasceu Jackson lida) e não há qualquer referência ao Rei do Ritmo no local. está em ruínas

Coco e ciranda Estima-se que Jackson do Pandeiro tenha ficado até os 10, que viriam a pavimentar o estre- 11 anos de idade em Alagoa Grande, quando então se mu- lado do Rei do Ritmo saíram da- dou para Campina Grande com a mãe e os irmãos. Antes quele lugar rico em cultura, hoje da mudança, teria frequentado a Caiana dos Crioulos, co- povoado por 130 famílias. munidade quilombola fundada por escravos no século 19 e Atualmente, Caiana dos Criou- distante 12 km da cidade, cujo acesso se dá, também, através los trabalha o resgate de sua cul- de uma estrada de barro. tura. Cada vez mais visitada por Há quem diga, até, que Jackson tenha nascido em Caiana turistas, historiadores e pesqui- (afinal, supõe-se que ele era neto de escravos), e não na Usi- sadores, a comunidade tem esti- na Tanques. Mas é fato: o coco-de-roda, a ciranda e o rojão mulado, junto às novas gerações, c

| João Pessoa, julho de 2019 8 Correio das Artes – A UNIÃO c o resgate de ritmos e danças que de Tia Edite pelos moradores, é, raíba, quanto dos quilombos já foram bem mais fortes no pas- aos 74 anos, um marco de resis- localizados no interior de Per- sado, como o Grupo de Pífanos tência da música e da dança qui- nambuco, para onde iam muitos de Caiana. “Uma turma de jovens lombola. Artista, rezadeira, me- quilombolas paraibanos a fim de montou um grupo de pífanos e rendeira e agricultora, ela é uma fechar negócio. “Lá pelos ‘Per- está voltando com o repertório fonte inesgotável de energia. nambucos’, havia muitos ciran- que era tocado no passado”, diz, Como a mãe, também foi par- deiros e cocos-de-roda e todos orgulhosa, a empreendedora Ed- teira. “Quando minha mãe dei- eles brincavam por lá. Daí, quan- nalva Rita do Nascimento, a Nal- xou de enxergar direito, ela disse do voltavam no fim de semana, va, cujo avô chegou a integrar o para mim e para minha irmã, traziam uma música de lá aqui conjunto que fez fama no lugar no Leonísia: agora, uma vai fazer o para nós”, detalha. século passado. parto da outra. E foi assim que Desse repertório, fazem parte, Eventos como ‘Vivenciando nós começamos”, recorda Edite, por exemplo, ‘Sai, piaba’, que ela Caiana’, promovido pelas famílias que tem na conta 31 partos, além chama de ‘Piaba de coco’ e faz que moram em Caiana e que che- de ter, ela mesma, engravidado questão de cantarolar: “...Bota a gou a reunir 400 pessoas na comu- 23 vezes e criado 11 filhos. mão na cabeça, outra na cintura / nidade, tem solidificado e estimu- A ciranda vem de berço. “De Dá um remelexo no corpo, Dá uma lado as manifestações de raiz. Em 15 em 15 dias, tinha uma novena umbigada no outro… Ó, piaba....”. novembro, a Secretaria de Estado e quando terminava a novena, Edite costuma subir ao pal- da Cultura dá outro reforço ao tinha um pessoal que pegava o co com seu grupo, formado, promover o 1º Festival de Quilom- triângulo, a zabumba e o ganzá e segundo ela, por amigas próxi- bolas, reunindo, em Caiana, gru- nós se punha a dançar”, comenta mas e parentes. “Eu tenho três pos de Ingá, Conde e Areia, o que a artista, que hoje não só dança, netinhas que dançam ciranda deverá trazer um novo impulso como ainda canta o mais autênti- comigo dentro de casa. Uma cultural e turístico para a região. co coco quilombola. delas, já dança fora”, revela. A A cirandeira Dona Edite, tam- O repertório dela mescla mú- tradição, portanto, está garanti- bém carinhosamente chamada sicas tradicionais, tanto da Pa- da para o futuro. c

Dona Edite (acima, sozinha e com seu grupo de ciranda) e a empreendedora Naval (ao lado): gerações se unem pela preservação da cultura de Caiana dos Crioulos

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 9 Memorial Jackson do Pandeiro

No memorial, há figurinos e objetos pessoais de Jackson do Pandeiro, além de discos; Gabrille (esquerda) afirma que o local é visitado por turistas de todo o país, com o músico paulista Alexandre Lisboa (de camisa vermelha), fã do ritmista paraibano; No memorial também encontram- se os restos mortais do músico (abaixo, à esq.)

c No Centro de Alagoa Grande, há um memorial dedicado à Jack- son do Pandeiro. Foi inaugurado em 19 de dezembro de 2009 na casa mais antiga da cidade, na rua Apolônio Zenaide, e é manti- do pela prefeitura do município. Nele, é possível encontrar figu- rinos (como alguns dos famosos Áustria… dia desses também chapéus-coco que ele utilizava), teve um americano”, completa. fotos, recortes de jornal e muitos Entre os brasileiros, há registro discos - é possível até ouví-los de mineiros, gaúchos, cariocas e em uma vitrola - e, claro, alguns amazonenses, entre outros. pandeiros. Enquanto esteve por lá, a re- Nos meses que antecedem o portagem do Correio das Artes centenário do músico, o fluxo de topou com três senhoras cario- visitantes têm aumentado, regis- cas e um casal de São Paulo. tra uma das colaboradoras do lo- “As pessoas pensam que não, cal, Gabrielle Nunes, que há seis mas o Jackson é muito conhe- anos recepciona turistas e estu- cido em São Paulo também, dantes com a biografia de Jackson principalmente nas rodas de na ponta de língua. “A gente tem samba”, atesta o músico pau- recebido um fluxo de umas mil lista Alexandre Lisboa, que pessoas por semana aqui”, afirma. havia chegado à Alagoa Gran- Em sua maioria, os visitantes de atraído pela admiração do são estudantes de várias partes da músico. Paraíba, uma vez que tanto o Esta- O Memorial Jackson do Pan- do, quanto a prefeitura de Alagoa deiro - que ainda possui o jaz- Grande, instituíram 2019 como zigo perpétuo do artista, onde o Ano Jackson do Pandeiro. Mas estão enterrados os restos mor- também há muitos fãs e músicos tais do músico - funciona todos interessados em conhecer de perto os dias da semana, das 8h às o legado do Rei do Ritmo. 17h. A entrada é gratuita. E “Recebemos fãs, historiadores e músicos de todo lugar”, aponta André Cananéa é jornalista, com mais de 20 anos de atuação na imprensa escrita. Gabrielle. “Já veio gente da Ale- Integrou os cadernos de cultura do Correio da Paraíba, O Norte e, por 15 anos, o do manha, Portugal, Dinamarca, Jornal da Paraíba. Atualmente é o editor do Correio das Artes. Mora em João Pessoa.

| João Pessoa, julho de 2019 10 Correio das Artes – A UNIÃO Acervo pessoal 6 jackson 100 anos Jarbas Mariz no palco com Jackson

André Cananéa Editor do Correio das Artes

ascido em Aimorés, Minas Gerais, e criado em João que eu era um bom ritmista”. Pessoa, Paraíba, o músico Jarbas Mariz é daqueles Nos bastidores da turnê, Jar- que viram Jackson do Pandeiro de um lugar para lá bas conta, ficavam todos em um N de privilegiado: de cima do palco. Mas até este encon- mesmo camarim, Jackson, Jar- tro, a estrada foi longa. Partiu do A-E-I-O-U-Ypsilone bas, Almira, os integrantes do das bandas bailes, onde aprendeu parte do repertório Borborema e Cátia de França. do Rei do Ritmo e teve contato com a divisão rítmica “Não tinha isso de Jackson ser que fez a fama do paraibano de Alagoa Grande. “Mas estrela não”, afirma. “Às vezes, só vim conhecê-lo pessoalmente no Pixinguinha”, depois do show, ele saia com a diz, referindo-se à turnê de 1980, que passou por oito gente pra conversar. Nessa épo- cidades do Sudeste do País. ca ele não bebia mais, mas era Recém-saído da Paraíba para encarar seu primeiro um frio danado. Todo mundo projeto nacional, integrando o grupo que acompanha- com uns casacos de lã que mais va a cantora Cátia de França, outra paraibana que des- pareciam tapetes”, recorda. pontava nacionalmente naquele 1980, Jarbas confiden- Não raro, Jackson ligava para cia que era tímido e recatado. “Eu estava ensaiando o quarto de Jarbas: “Jarrrrbas, va- com Cátia quando ele me viu, gostou do meu ritmo e mos olhar as vitrrrines”, recorda me chamou para tocar com ele”, relembra. o violonista, imitando a maneira Foi então que Jarbas se mudou, de mala e violão, do ritmista falar. “Eu descia e a para a trupe do pandeiro. Junto com a pernambuca- gente saia andando pela cidade, na Anastácia e o Conjunto Borborema (que tinha os olhando vitrines. A gente não irmãos de Jackson, Cícero, na zabumba, e Tinda, no entrava em loja para perguntar o triângulo, ganzá e agogô, além do sanfoneiro Severo preço, nem nada. Era só para dar e do violonista Passinho), Jarbas fazia uma participa- uma caminhada e jogar conversa ção especial marcando o ritmo com seu violão de 12 fora”, acrescenta. cordas. Meio sem jeito, um dia ele Com esse time, e dividindo os holofotes com Cátia tomou coragem para ir além de França, Jackson estreou aquela turnê no dia 10 de da trivialidade e ter um papo julho de 1980 no Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro. De de músico: “Perguntei pra ele: lá, a trupe seguiu para São João de Meriti (RJ), Uber- ô Jackson, como é essa histó- lândia (MG), Campinas (SP), São Bernardo do Campo ria de encaixar o pandeiro em (SP), Londrina (PR), Florianópolis (SC) e Blumenau meio a o triangulo, sanfona e (SC), fazendo uma média de dois shows por cidade. zambumba? Ele me respondeu: “Em todos os lugares por onde passamos nessa Jarrrbas, o meu forrró, é um turnê, o teatro era lotado. O pessoal aplaudia muito forrró sambado!”. e, depois do show, pedia autógrafo, ia visitar Jack- O último encontro entre os son no camarim”, recorda o músico, que depois des- dois foi justamente no show da sa temporada, ainda fez alguns shows com ele, entre Ilha do Governador, no final eles um no Maracanãzinho e outro na Ilha do Go- de 1980. “Eu já estava abrindo vernador (ambos no Rio). o show dele, cantando umas Na intimidade, Jarbas descreve Jackson do Pan- duas músicas minhas. Depois deiro como um sujeito tranquilo, que gostava de in- do show, ele agradeceu e se des- teragir, de contar piadas e falar puxando o “r”: cerrr- pediu, como fazia corriqueira- to, corrrreto, forrrrró... “Ele sempre me tratou muito mente. É a última imagem que bem, com muito respeito, me botava pra cima. Dizia eu tenho dele”, recorda. E

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 11 6 jackson 100 anos

Religiosidade “Olha, até hoje eu não sei qual era a religião dele não. Era uma Da religião coisa complexa. Ele era católico, mas não frequentava a igreja. O que eu notei nele, e cheguei a acompanhá-lo algumas ve- à política: zes, foi ao centro espírita”, conta Neuza Flores a respeito da reli- a intimidade de Jackson do Pandeiro giosidade de Jackson do Pandei- ro. Segundo ela, o Rei do Ritmo foi de tudo um pouco: católico, simpatizou com os evangélicos André Cananéa Editor do Correio das Artes e até frequentou terreiros de um- banda e centros espíritas. “Ele era um curioso”, define. As idas aos terreiros de um- uase 20 anos depois do lançamento da biografia banda, no Rio de Janeiro, tinham de Jackson do Pandeiro, O Rei do Ritmo (edito- um motivo especial: “Ele ia para ra 34), o pesquisador e um dos autores da obra, ouvir os batuques”, atesta Dona Fernando Moura, encontrou-se com Neuza Flo- Neuza. “Tinha um pai de san- Q res dos Anjos, baiana de Itororó que foi casada, to, Zé Ribeiro, que ele gostava na vida e no palco, com Jackson do Pandeiro muito. Ele havia enviado um entre 1967 até o fim da vida dele, em 1982. Era a recado a Jackson antes dele so- primeira vez que Fernando voltava a entrevis- frer o acidente (em 1968, Jackson tar Dona Neuza para uma publicação. sofreu um acidente de carro, no O papo entre esses dois profundos conhece- Rio, e quebrou os dois braços). dores da vida e da obra de Jackson foi acom- Esse recado foi enviado, através panhado pela reportagem do Correio das Ar- de Zé Ribeiro, por uma entidade tes. A conversa partiu do tema espiritualidade/ chamada Seu Sete. Ele dizia para religião e chegou até o posicionamento político Jackson ir ao terreiro, pois esta- do músico, passando pela vaidade do artista, va para acontecer algo com ele, e os discos que ouvia, os times do coração e uma ele precisava ir até lá fazer uma admiração latente pelos índios, um passeio de ‘segurança’. Mas Jackson não boas lembranças, revelações e fatos que dão ain- acreditou. Aí depois que acon- da mais corpo à biografia do Rei do Ritmo. teceu, ele procurou o candomblé de Zé Ribeiro, passou a acreditar mais”, narra a viúva. Acervo Fernando Moura O interesse musical pela reli- Procópio Ferreira gião de matriz africana era tão entre o casal Jackson grande que Jackson chegou a e Neuza, em meio regravar o cântico ‘Dá licença’ a um encontro da (“Dá licença aê, êê... dá licen- Cultura Racional: o Rei do Ritmo só não ça aê./ Licença, povo da praia. acreditava em discos Licença aê…”), que Jackson co- voadores nheceu com Neuza. “Eu cantava essa música em casa, porque a finada minha mãe era de terrei- ro e cantava. Então eu adorava essa música e quando eu fazia alguma coisa em casa, começa- va a cantarolá-la. E ele (Jackson), ao violão, de orelha em pé”, diz Neuza, lembrando que ele acres- centou alguns versos ao cântico, mantendo a cadência original, mas aplicando umas nuances rít- c

| João Pessoa, julho de 2019 12 Correio das Artes – A UNIÃO c micas na melodia, para dar sua dalhão da Cultura Racional. para onde foi levado após sentir- assinatura de mestre à canção. Neuza não lembra a razão que -se mal, a primeira pergunta que “Como ele gostava de ler sobre fez o casal desistir de frequen- ele fez à Neuza foi: Zico fez gol? candomblé, ele conhecia bem tar a religião de Manoel Coelho, “Ele nem queria saber se o os termos e as entidades e isso mas garante que a iniciativa foi Brasil tinha ganhado (o jogo con- ajudou a terminar a letra”, acres- de Jackson. “Como ele era mui- tra a Itália, durante a Copa do centa. A gravação foi lançada no to observador, ele deve ter visto Mundo de 1982), queria saber se disco Alegria Minha Gente (1978). alguma coisa que não o agradou, Zico tinha feito gol (não tinha, e Até a Cultura Racional, fun- aí ele foi se afastando devagari- o Brasil perdeu de 3 x 2). Aí eu dada na década de 1930 pelo mé- nho”, opina, recordando que a pensei: e agora, o que eu faço? Se dium carioca Manoel Jacintho ausência de Jackson foi sentida eu falar que ele não fez, ele pode Coelho, e baseada em aproxima- pelo fundador da Cultura Racio- morrer. É melhor eu falar que ele damente mil livros chamados nal. “Fala para ele que qualquer fez… e foi por isso que eu disse a “Universo em Desencanto”, ele hora eu vou”, respondia o Rei do ele que Zico tinha feito um gol”, frequentou por cerca de cinco Ritmo aos portadores da sauda- recorda. anos, entre 1973 e 1978, indo sis- de de Coelho. Foi a última “aven- Pouco afeito a ir a estádios, ele tematicamente ao templo faraô- tura” de Jackson do Pandeiro na preferia assistir aos jogos pela nico erguido em Belford Roxo, seara religiosa. televisão e sofria quando o time na Baixada Fluminense. reprodução/internet perdia. Durante a partida, vibra- Jackson e Neuza haviam sido va e até dava bronca: “‘Ô corno convidados a conhecer o templo velho’, dizia com o juiz, porque por um compositor que privava ele não falava palavrão de jeito da intimidade do casal: Sebas- nenhum”, lembra Neuza. tião Andrade. “A dinâmica era ler os livros, porque os livros tinham tudo. Aí no templo, Seu Política Manoel Coelho dava as explica- Jackson do Pandeiro era aves- ções, de onde a gente veio, para so à política, mas tinha lá seus onde a gente vai... na época eu contatos. No memorial dedicado acreditava nessas coisas, acredi- ao músico, em Alagoa Grande, é tava que nós não somos daqui, possível ver um dos violões que acreditava em disco voador…”, ele usou com uma particularida- recorda Neuza. E Jackson, tam- de: um autógrafo do ex-presiden- bém acreditava em disco voador? te Jucelino Kubitcheck. “Ali foi “Não, ele não acreditava. Quem um encontro de diversos artistas acreditava era eu”, rebate, entre com o presidente, no Palácio da risos. Guanabara (Rio), por conta da Na companhia de artistas inauguração de Brasília”, recorda como Tim Maia, Procópio Ferrei- Fernando. ra e sua jovem filha, Bibi Ferreira, Apesar de não tomar partido, o casal entrava nas caravanas da “Zico fez gol?”, foi a ele aceitava gravar jingles para c Cultura Racional para divulgar e primeira coisa que reprodução/internet vender os livros do Universo em Jackson perguntou ao Desencanto. “A gente ia todos sair do coma: músico era torcedor fervoroso do os sábados e domingos”, recor- Flamengo da Neuza. “Quando tinha que fazer a divulgação dos livros, se juntava aquela turma da cultura Futebol racional e saia para o Centro do Flamengo, no Rio; Corinthians, Rio, ou para onde nos manda- em São Paulo e Treze, na Paraíba. vam ir… sempre havia muitos Esses eram os times de coração artistas nessas ocasiões”. de Jackson do Pandeiro. No caso À exemplo de Tim Maia, Jack- do Flamengo, não era apenas do son também chegou a gravar coração, mas também da cabeça, músicas inspiradas na religião: tronco e membros, paixão que le- o supracitado Alegria Minha Gente, além da música inspira- vou o paraibano a gravar músicas da na umbanda, trazia faixas como ‘Bola de pé em pé’, exultan- cujas letras remetiam ao Uni- do o time. “Ele era doente pelo verso em Desencanto, como ‘A Flamengo”, resume Neuza Flores. luz do saber’ e ‘Alegria minha Tão doente a ponto de, no dia em que se recuperou do coma em O ex-presidente Jucelino gente’, ambas de João Lemos. Kubitcheck chegou a Na capa do LP, ainda é possível que se encontrava, na Casa de “autografar” o violão de ver Jackson ostentando um me- Saúde Santa Lúcia, em Brasília, Jackson do Pandeiro

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 13 reprodução/internet nha dimensão de sua importân- cia enquanto artista. “Uma vez, ele foi pegar os direitos autorais, aí via aquelas musicas lá do exte- rior e falava assim: ‘Nega véia, eu sabia que eu era conhecido, mas não sabia que era tão conhecido assim. Olha de onde estão vin- do essas músicas’ e apontava, no documento, versões em francês e outros idiomas”, recorda a viúva do músico. Por outro lado, ele sabia que havia inventado uma maneira de tocar e cantar. “Ele sabia que ele era bom, mas vivia dizendo que poderia ser melhor. Mas ele tinha uma consciência de que havia inventado algo novo (na música), não tinha era a noção até onde sua música chegava, o quanto ele era prestigiado”, ava- lia Neuza.

Perfume sob medida Neuza Flores é enfática: “Ele era muito vaidoso”. “Geralda (so- brinha de Jackson) me disse certa vez: quando eu passava a roupa de Zé, chega subia o perfume. Ô homem cheiroso!”, acrescenta Fernando Moura. Segundo Neuza, Jackson era do tipo que tomava banho de perfume: “Era um perfume que Jackson (com Neuza, à direta ele mandava fazer lá no Centro dele): ele sabia que tinha do Rio de Janeiro, tanto o dele, inventado algo, mas não tinha dimensão de sua popularidade quanto o meu. O meu era Cabo- chard. O dele, não lembro”. Também não descuidava do visual. “A barba, ele mesmo fa- c os políticos e até homenageou Moura. “Quando ele viajava sem zia, afinal parecia um índio, qua- alguns, vide ‘Ele disse’, para Ge- mim, sempre trazia um monte se não tinha pelos. Mas costu- túlio Vargas (registrada no LP de cartazes com índios. Nossa mava ir sempre ao cabeleireiro”, Forró do Jackson, de 1956) e ‘Baião casa tinha arco-e-flecha, lança… informa Neuza. mineiro’ (lançada em 1957, em se ele pudesse, decorava a casa um 78 RPM) para Jucelino Ku- inteira com artefatos indígenas”, Pandeiro bitschek. acrescenta Neuza Flores, que não Jackson tinha, claro, vários Jackson também gravou jin- sabe dizer de onde vinha essa pandeiros. O que pouca gente gles para candidatos: Osvaldo paixão. sabe é que ele próprio comprava- Diniz, postulante a deputado Neuza se recorda de ao menos -os e os montava com couro que por Sergipe, e para Aluízio Cam- de um encontro que o músico ele mesmo escolhia na feira. “Ele pos e João Agripino, ambos dis- tivera com índios autênticos: foi mesmo comprava os pandeiros putando o Senado pela Paraíba. em Brasília, com uma tribo da re- dele, no Centro do Rio, e ajeitava- Para Fernando, Jackson era da gião de Goiás. “Jackson ficou en- -os. Porquê os pandeiros vinham linha trabalhista de Getúlio Var- cantado. Naquele tempo, a gente forrados com nylon e ele não gos- gas e seguia essa linha. não tinha o costume de tirar uma tava disso, trocava-os por couro, foto, mas foi feita uma foto comi- que eu acho que ele comprava Índios go, Jackson e os índios”, lembra. na Feira de São Cristovam. Ele Outra paixão do ritmista pa- chegava em casa, botava aquele raibano eram os índios. “Ele O homem, o mito couro de molho e fazia todo o lia muito sobre os índios, tinha Na avaliação de Neuza, Jack- processo. Depois que o couro se- muitas fotos”, recorda Fernando son, em sua simplicidade, não ti- cava, ele tirava pecinha por peci- c

| João Pessoa, julho de 2019 14 Correio das Artes – A UNIÃO reprodução/internet muitos forrozeiros: Jacinto Silva, velho entre quatro irmãos, Ge- Elino Julião, Messias Holanda. raldo (Tinda), Severina (Briba) e Também Ary Lobo e o baiano Cícero, criados apenas pela mãe, Raimundo Sodré. Dona Flora, uma vez que o pai “Ele achava que Raimundo havia morrido quando eles eram Sodré seria o sucessor dele, do bem pequenos. “Eles não faziam ponto de vista musical”, pontua nada sem pedir conselhos a Jack- Fernando Moura. E tinha os ar- son. Tinham o maior respeito tistas que não gostavam dele, por ele, porque ele era o pai que mas ele gostava do artista. É o eles conheceram”. caso de Jorge Veiga. “Aquilo lá era um ciúme que ele tinha (de Jackson)”, arrisca Neuza. Encontro com Jackson também era aprecia- Gonzagão dor das big bands norte-america- Era janeiro de 1968 quando nas. Ouvia muito, por exemplo, Jackson do Pandeiro, dirigindo as orquestras de Glenn Miller e sua Rural pela av. Brás Pina, Bing Crosby. “O exercício dele no Rio, acabou batendo em um era tentar identificar o som de poste, fraturando os dois bra- cada instrumento da orquestra”, ços, o que lhe deixou longe dos comenta Fernando, antes de ar- palcos. Já em casa, recebeu inú- rematar: “Ele tinha um ouvido meras visitas, entre elas o casal privilegiado”. e Helena Caval- canti, na companhia dos filhos Festinhas em casa Gonzaguinha e Rosa. O Rei do No período em que era aves- Baião era um rival “amistoso” Baiana de Itororó, Neuza so a badalações externas, costu- do Rei do Ritmo. Flores foi casada com Jackson mava receber os amigos na casa por 15 anos e integrou o “Jackson estava na cama, de Olaria, como Genival Lacer- Conjunto Borborema todo engessado, quando eles da. “A bebida preferida dele era chegaram, sentaram, serviram- ‘aguarrás’, como ele chamava a -se de café e conversaram bas- cachaça”, revela Neuza. “Não tante. Foi uma visita tranquila. gostava de cerveja, nem de whis- key, a qual se referia como ‘bebi- Afinal, Gonzaga não era como c nha do pandeiro para colocar o da metida a besta’”, acrescenta. Jorge Veiga não, que tinha rai- couro e montava tudo de novo. va e ciúme de Jackson. Eles se reprodução/internet Ele tinha o maior prazer nisso”, enxergavam como correntes, detalha. “Ele também gostava mas não nutriam raiva um do muito de presentear esse pandei- outro. Já Jorge tinha raiva mes- ros”, acrescenta Fernando Moura mo de Jackson”, relata Neuza. “Tudo dele era muito: ele ti- nha bastante pandeiros, bastante chapéus e bastante sandálias de Sonho não couro. Tanto é que, quando ele realizado morreu, eu não calcei sapatos “Ele tinha muita vontade de nele não, eu calcei sandálias, por- ir ao exterior”, responde Neuza que ele detestava botar sapato no ao ser perguntada se Jackson pé. Aliás, eu vesti-o todo esporte do Pandeiro morreu sem que e com sandálias, que era como pudesse realizar algum sonho ele se arrumava. Afinal, porquê em particular. “Ele não chegava eu iria botar um terno nele se ele a apontar um país, especifica- não gostava?”, recorda Neuza. mente. Ele queria viajar e poder dizer que havia feito uma via- Discoteca Neuza, em julhode 2019, no gem ao exterior”, acrescenta. apartamento onde mora, em Na fase em que ficou com Neuza ainda lembra que, Dona Neuza, ela recorda que João Pessoa: viúva vive na Paraíba há mais de dez anos quando Jackson morreu, naque- ele não costumava sair de casa. le 10 de julho de 1982, ele esta- Além de ver os jogos pela TV, va se preparando para realizar também gostava de ouvir músi- esse sonho: iria para Roma, ca. Recebia muitos discos de pre- Família sente e costumava ouví-los na “Jackson, bem dizer, era o pai na Itália, onde tinha um show vitrola. Entre os artistas que fre- dos irmãos”, conceitua Neuza agendado. Seria sua primeira I quentavam o toca-discos havia Flores ao situar o papel do mais ida ao exterior.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 15 6 jackson 100 anos oura ernando m o f v Fotos: acer

Almira Castilho O alter ego artístico de Jackson do Pandeiro

Fernando Moura Especial para o Correio das Artes

| João Pessoa, julho de 2019 16 Correio das Artes – A UNIÃO c “Quando você escrever minha história, meu filho, diga que fui uma mulher feliz”. Embora já tenha dito um pouco isso, nas entrelinhas de tudo o que narrei sobre Jackson do Pandeiro, nos últimos 18 anos (artigo original- mente publicado no jornal A União, em 1º de março de 2011), reverbero sua vontade agora, ainda sob o impacto do falecimento da com- positora Almira Castilho, ocorri- do na madrugada do último sá- bado (26/2/2011), aos 87 anos, em sua casa, no bairro de Boa Vista, em Recife, onde residiu nas duas últimas décadas. Foi feliz e voou em paz. “Morreu como um pas- sarinho”, consola-nos a irmã, Maria das Mercês, que a ninava como um anjo. Acometida do Mal de Alzheimer, Almira, nos últimos três anos, já não carre- gava o mesmo vigor de antes, oc- togenária ativa, vivaz e serelepe. “Como é que você consegue tan- ta energia, Almira?”, inquiri, em 1998, em meio a uma noitada no Recife Antigo, durante um show Parceira na vida e na do Cascabulho, ao lado de Mer- arte de Jackson do cês e Silvana. “Suco de tomate”, Pandeiro entre 1955 e revela, sorridente. “Um copo an- 1967, Almira Castilho tes de sair de casa e outro depois morreu em 2011; antes do Mal de Alzheimer que volto”, reforça. Nunca testei. lhe tomar a vida, era E se não fosse isso? Descobriria, conhecida por sua acabrunhado, que ela não me re- vitalidade e energia velara tudo o que sabia da vida. que, dizia, vinha do suco de tomate Felizardo do destino, no en- tanto, compartilhei momentos inesquecíveis e revelações crí- veis ao seu lado. Volta e meia, antes de seus lapsos frequentes migraram de Recife para o Rio de memória, telefonava aos do- de Janeiro, de início durante uma mingos: “Professora Mimi?”. Ela temporada de apresentação, em já sabia quem era. Apenas os que 1954, e definitivamente, a partir a conheciam de mocinha, como de 1955, dominaram o cenário educadora, antes da rádio atriz, musical da época, levando toda a a chamaram assim. Todos ha- carga rítmica, cênica e coreográ- viam partido. Em homenagem fica amealhada em palcos, circos, à sua própria memória, passei a feiras e tablados nordestinos. Se cumprimentá-la desse modo. Ela leiro no início da era televisiva. moldaram à televisão como se ti- gostava. Talvez isso a remetesse No topo dessa casta, incrustados vessem estado lá toda a vida. a um tempo mais inocente de como pedras raras, Jackson e Al- Eram, de fato alegres e conta- sua longa e produtiva vida. Não mira – o “Jarro e a Flor”, como giantes. Irradiavam felicidade, menos feliz que outros, por certo, apelidara a dupla o próprio rei cativando audiências na mesma mas mais cândidos. do rimo, ao se referir a si e à com- proporção com que se divertiam. O show business, que vivencia- panheira. Paulo Gracindo, do “Quando sabia que eles iriam se ra nas entranhas, entre 1955 e alto da Rádio Nacional, afagava, apresentar, meu dia ficava mais 1967 – período em que esteve ca- menos jocoso que o “Jarro”: “A feliz”, costuma relembrar um dos sada com Jackson do Pandeiro – Alegria da Casa”. Mais ampla, mais prestigiados críticos mu- tratara de lhe curtir a pele macia. a imprensa chancelava: “Dupla sicais do país, Zuza Homem de Endurecera, em alguns aspectos, Infernal”. Mello, um adolescente caboman para bem sobreviver no compe- Jackson e Almira aprontaram. da extinta TV Excelsior, no início titivo universo artístico brasi- Eram mesmo infernais. Quando da década de 1960, encantado, c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 17 O Jarro e a Flor: alegres e contagiantes, c ainda hoje, com a desenvoltura em sua casa. Paupérrimo e an- Jackson e Almira musical e mungangas coreográfi- darilho, não arriscava deslocar irradiavam felicidade, cas do casal. Não se intimidaram suas joias preciosas pelo labi- cativando audiências na mesma proporção e usaram o veículo quase que rinto dos obstáculos urbanos. com que se divertiam intuitivamente, para reverberar A empreitada devia ser nos- suas canções bem-humoradas e sa – combinamos por telefone, urbanas, uma faceta emergente um orelhão próximo de onde do Brasil da era JK. Eles estavam residia, em Iputinga. Eu diri- lá e ajudaram a moldar – ou con- giria, ela guiaria. Garantia que solidar – a alegria brasileira. Fo- sabia. Já havia ido. Bastava sair juntar meninos, mulheres, deso- ram felizes, como ela diz. de Boa Vista, onde morava com cupados e alguns cachorros so- Austera e altiva, no entanto, uma irmã, Lourdes, pegar a Ca- nolentos. O anfitrião, orgulhoso manteve a postura professoral xangá, para chegar à Rua Lagoa e solícito, não conseguia enxer- por toda a vida. Passava “pitu” Vermelha. Lá, numa esquina, gar a saia justa em que colocara em qualquer um, a qualquer num barzinho com sinuca, ele a amiga fidalga. Seria impraticá- hora, com a autoridade e ma- nos esperaria para nos pajear vel a subida da visita octogená- lemolência de quem fizera isso até seu pequeno museu. ria naquelas condições. Pondero. com estilo desde o tempo do Deveria ter dito castelo. No Iria rápido enquanto ela aguar- topo, no “mais alto degrau da alto de uma sinuosa ladeira, ín- daria, com algumas senhoras re- fama”. Afagava também, quando greme e repleta de pedras, pe- comendadas e quantos meninos necessário. Uma profissional nas dregulhos e vegetação rasteira, a coubessem no barzinho-estação. engrenagens humanas, dentro casa do homem nunca havia sido Sem perigo. O semblante de des- ou fora da arena mercadológica. visitada por Almira antes. Nas consolo do colecionador, creio, Os tacapes de hoje começaram duas ou três vezes anteriores, se atiçou o âmago resoluto da anciã. com florins, lá atrás. encontraram para trocar discos, Naquele instante, alia-se à artis- Tive uma noção desse seu fotos e uns dedos de prosa no es- ta, compositora, cantora, produ- fervor e obstinação pelo que critório de seu Heleno, na sinu- tora, empresária, amiga e amante fez como artista. Um marcante ca da esquina. Ao pé da ladeira. do universo do ex-parceiro Jack- lampejo de sua múltipla faceta Se soubesse, claro, não teria se son do Pandeiro, a ternura de sua me foi revelado quase ao acaso, produzido com tanto esmero e alma aberta e generosa. Brandu- em meio a uma das incursões glamour. Blusa vermelha de ba- ra plena. O que seria uma ladei- por Recife, na caça ao tesouro bados, saia preta nos joelhos e rinha diante do enlevo daquele perdido da discografia jackso- sapato na mesma cor. Alto. Uma homem tão especial, guardião niana. Seu Heleno da Música bela e elegante estranha no ni- de suas próprias lembranças? Antiga (grafado assim mesmo, nho, indefesa em seus trajes con- Subimos, ou melhor, superamos como um majestoso selo fami- tra a geografia do lugar. Eu, de um trajeto de uns 80 metros, cen- liar), colecionador de discos chapéu, ajudava a compor o ce- tímetro a centímetro, por cerca e fã de carteirinha da dupla, nário destoante daquela comuni- de 20 minutos. Uma eternidade, mantinha um zeloso acervo dade carente e curiosa. Começa a vejo agora. c

| João Pessoa, julho de 2019 18 Correio das Artes – A UNIÃO c Concluída a visita, amealha- ambos, sendo a parte dela prin- dos os Lps e compactos faltosos cipalmente as referentes às letras na discografia, nas despedidas, e deslizes gramaticais. Como seu Heleno dispara, orgulhoso Quando você professora, mulher de um artista e solene, o veredito real sobre alfabetizado apenas aos 35 anos aquele momento, reconhecendo escrever minha de idade, chamava a si esse papel o esforço da diva, que se dispu- “ relevante e elucidativo. Assinan- sera a tal sacrifício em seu bene- do ou não. plácito: história, meu filho, Mas a partir de 1959, com – Ninguém nunca mais vai “Baião do Bambolê” (com Anto- sentar naquela cadeira – aponta diga que fui uma nio Barros), a compositora pas- o dedo batismal, em direção à saria a registrar as músicas com poltrona carcomida em que Al- mulher feliz nome próprio. São dessa leva, até mira, a musa de suas memórias, 1966, entre várias outras pouco recuperara as energias, tomara conhecidas do repertório jack-

um copo d´água e espalhara hu- Almira Castilho soniano, “Praia do Janga” (com manidade. Colocaria uma placa Heleno Clemente), “Sanfona Bra- de papel ali. cipado da criação. Como em ou- ba (com José Benício Lima), “Se- Lembra-se do acompanhante tras composições, ”Almira, sob renou” (com Lindolpho da Silva), e, complacente, arremata a de- o pseudônimo de José Gomes, “Babá de Babá” (com Waldemar cisão: “A sua também”. Declino, assumia as canções que o par- Silva e “O Velho Gagá” e “Papel preocupado com o desfalque de ceiro não podia registrar, por Crepon” (ambas com Paulo Gra- assentos que a empolgação do conflito com as sociedades ar- cindo). Ao final do período, “Ti- bondoso e humilde memorialis- recadadoras e editoras dos par- lilingo”, “Vamos Chegar Pra Lá” ta imporia aos outros habitantes ceiros. Para os efeitos jurídicos e “Forró Quentinho” levaram da choupana e – muito provavel- e formais, Jackson pertencia à apenas seu nome nos selos dos mente a partir dali – aos assíduos UBC e ela à Sbacem. Seria o alter discos. frequentadores que acorreriam ego do marido em inúmeros tra- Sim, ela era compositora, a àquele pequeno templo precioso balhos, desde “Falso Toureiro”, despeito dos amuos de uns pou- da música e do coração de uma com Heleno Clemente, em 1956. cos. Em dúvida por uns tempos, mulher brasileira. Além do que, São da safra de “José Gomes”, cioso das responsabilidades his- súditos se curvam, não se sen- entre outras, “Moxotó” (com tóricas e avesso à dúvida biográ- tam nem se igualam. Rosil Cavalcanti), “Meu Patrão” fica, consegui uma prova con- O trono da Rainha, portanto, (com Riachão), “4 X 1” (com Da- creta, sem que ela desconfiasse jamais ficará vazio. Está fincado mião Florêncio), “Meu Enxoval” do “teste”. Também compositor, no alto de uma das ladeiras de (com Gordurinha), “Boi da Cara bissexto e tacanho, arrisco uma sua vida feliz. De lá, ela só sairá Preta” (com Paquito e Romeu empreitada: “Vamos fazer juntos voando, como um passarinho, Gentil) e as solitárias “Xote de uma música em homenagem a para descortinar o que andam Copacabana” e “Lapinha de Je- Jackson? Você escreve a letra e eu fazendo com a sua e a memó- rusalém”, grafadas apenas com boto a música”. Topado o ousado ria dos que lhes foram carne e a alcunha artística. desafio, dias depois me repassa alma. Sempre foi meio confuso esse a criação, que começava com os Ave, Almira! Guardaremos, emaranhado de autorias. Tan- contornos de uma verdadeira agradecidos e embevecidos, a to Almira, como Cícero Gomes, mente inventiva: Em seu eterno faceta da mulher feliz. Nesse irmão de Jackson, assegura- trono/ No alto do Céu/ Batuca ale- caso, não misturaremos chiclete vam que o rei do ritmo abdicou gre Jackson do Pandeiro/ Ao lado de com banana. Apenas tinta com de inúmeras parcerias, mesmo Pixinguinha, Noel/ E outros artistas saudade. Com sua gargalhada quando fazia pequenas inter- brasileiros...”. rítmica ao fundo, soando como venções. Quando o trabalho era Pra mim seria suficiente. A música de primeira qualidade. maior e havia correções na es- compositora continuava ativa, Para sempre. trutura melódica ou na letra, a a despeito das teias das déca- coautoria se configurava e ora das em desalinho. Na verdade, assinavam Jackson do Pandeiro, ela é que se depararia com um “Chiclete com ora José Gomes Filho, ora José “embuste”, pois nunca consegui Banana”, o ápice da Gomes. Quando foi instigada a emoldurar aquela pintura naiff. relembrar esses momentos de Nem arrisquei, pra não ter que carreira modelagem e as devidas partici- misturar canivete com membra- Até do Japão Almira Casti- pações de cada um, Almira des- na. Ficaria apenas a prosa, em lho recebeu direitos autorais, conversava, com receio de trair a forma de poesia.E como coautora da emblemática memória. Afirmava, porém, que “Chiclete com Banana”, assina- praticamente todas as compo- da apenas por ela e Gordurinha, sições que gravaram enquanto Fernando Moura é jornalista, pesquisador em 1959, embora Jackson do e biógrafo de Jackson do Pandeiro, eram parceiros e cônjuges, cons- autor de ‘O Rei do Ritmo’ (Editora 34) em Pandeiro também tivesse parti- taram de decisivas mexidas de parceria com Antônio Vicente Filho.

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em Uiraúna (PB), minha remota cidade Campina em natal. Eu era pré-adolescente e ele já ti- nha sido muito famoso, mas não era mais. Foi o show mais simples que vi pela vida toda afora. O salão paroquial Monsenhor Constantino, da paróquia de Jesus, Ma- ria, José, tinha um público que só podia Jackson ser classificado de constrangedor: alguns gatos-pingados espalhados pelas cadeiras mal ajambradas do local, que servia para José Nêumanne Especial para o Correio das Artes reuniões de casais católicos, exibições de cinema e montagens da Paixão de Cristo na festa de padroeira. Mas do ponto de vista meramente ar- uando morei em Campina Grande, Jackson já tístico, aquele público acanhado, a ser tinha passado por lá, mas até hoje encontro contado em dezenas, não mais do que rastros da cidade na obra e no jeito do gênio isso, teve à sua disposição um momen- do ritmo e da divisão, que se imita, mas não to histórico: a presença de um gênio da Q se repete música popular brasileira no auge de A única vez que vi Jackson do Pandeiro foi sua forma como intérprete. O local era apropriado para lembrar a sentença bí- blica de que “ninguém é profeta em sua terra”. Mas, acompanhado da mulher, o i que não me lembro se era a jeitosa olin- dense Almira Castilho, ou não, fazen- do playback do som acanhado de uma vitrola, que seria mais apropriadamente lustração: ton i chamada de radiola, o moleque atrevido de Alagoa Nova se comportou como se estivesse apresentando suas obras-pri- mas no Maracanã. O artista esbanjou simpatia, vitalidade e cumplicidade com seu público pequeno, mas entusiástico. E não se acanhou em exibir cada um de seus dotes de príncipe da música regional nordestina com um repertório capaz de se equiparar ao de seu amigo, padrinho e rival Luiz Gonza- ga, o Rei do Baião. Um show de decência, humildade e carisma. Gonzaga, inventor da música regio- nal do Nordeste, xote, maracatu e baião, era rei cioso de sua majestade. Em torno do moço de Januário e Santana, do Exu, Pernambuco, com seus gibões elegantes de couro bordado e seu porte de maioral, havia uma corte da diáspora, a perma- nente reverência ao criador de um ritmo, o baião, fundador de um gênero, a música nordestina, e mestre do marketing de um negócio rendoso, a festa junina, que pro- duz ídolos de sucesso e faz circular muito dinheiro. Seu Luiz reuniu as modas que apren- deu com a mãe e as amoldou às letras produzidas para ele cantar por letristas de talento à sua altura, como Humberto Teixeira e Zé Dantas principalmente, e, c

| João Pessoa, julho de 2019 20 Correio das Artes – A UNIÃO foto: reprodução internet Maria Garrafada e Ritinha Vilar, imortalizadas na canção-tema do programa de rádio de maior sucesso do alto da Serra da Bor- borema e vizinhanças, ‘O Forró de Zé Lagoa’, figuram em minha lembrança como outras perso- nagens que Jackson não cantou, mas com quem ele certamente se encantaria, como as ceguinhas Imortais: Jackson do Pandeiro emboladoras da calçada da Li- e Luiz Gonzaga se encontram nas ruas de Campina Grande vraria Pedrosa e o cantador de coco Toinho de Mulatinha, imba- tível improvisador de versos no c às vezes, canções a quem autores Em voz e sanfona, Gonzaga vaivém da feira que, sem dúvida, isolados lhe davam parceria. levou o Rio Pajeú aos mares do ele frequentara um pouco antes. José Gomes Filho atravessou Brasil inteiro, o som dos violei- Braulio Tavares, gênio do tex- o século 20 como um foguete de ros do sertão com o trio que in- to em teatro, música e televisão, artifício das festas de São João. ventou de acordeon, zabumba já introduziu Jackson na versão Foi súdito do rei, em cuja casa e triângulo. Zé do Norte teve o que fez do clássico de Bob Dy- na Ilha do Governador chegou topete de repetir os malandros lan, Mr. ‘Tambourine Man’ (veja a morar, mas nunca seu áulico, geniais do samba carioca dos texto na pág. 30), na verdade, ho- apesar de ter sido também seu anos 30, fazendo os pássaros menagem a um traficante de co- protegido. Sua genialidade na canoros de sua região cantarem caína no Village dos anos 1960. divisão e no ritmo, única e ini- em sua gaiola de direitos auto- E até hoje, podem crer, me ar- mitável, fê-lo atravessar as fron- rais rendosos. repio todo ao ouvir o verso defi- teiras do som regional. E quem Do muito amor que, desde nitivo de Maciel Melo na voz do duvidar ouça bem a obra-prima muito pequeno, antes até de craque Flávio José num melhor que o mineiro João Bosco produ- conhecer Jackson no salão pa- São João do mundo remoto no ziu em homenagem ao mestre do roquial em que também me Parque do Povo: “Tum-tum-tum ritmo e que marcou seu estilo de encantei com Roy Rogers, Buck bate, bate meu coração/ Dá-lhe virtuose ao violão. Jones e Hopalong Cassidy, de- zabumba/ E Jackson no pandei- Não disponho de conheci- voto a Campina Grande tirei a ro é ás/ Tum-tum-tum bate, bate mentos de técnica musical ou rít- conclusão arriscada e afetuosa meu coração/ Se essa morena mica, mas apenas de memória, de que a Rainha da Borborema não me quer/ Não quero mais”. sentimento e imaginação para moldou o estilo de Zé Jack, que Essa estrofe resume tudo o que concluir que Jackson passou por virou Jackson. é possível dizer sobre Campi- Campina Grande e Campina Campina estava presente nas na Grande em Jackson, já que Grande nunca saiu de Jackson. letras do pernambucano Rosil me seria impossível, apesar de A primeira herança musical do Cavalcanti, classificador de algo- toda a imaginação, lembrar-me gênio de Alagoa Grande deve dão na Sanbra, perto do Açude de Jackson em Campina numa mesmo ter-se originado dos co- Velho, como o ‘Forró de Zé La- época em que nem sequer vivia. cos que ouvia sua mãe cantar. goa’, sucesso interpretado pelo Mas desafio os incréus a me Assim como as raízes do baião moleque do Brejo. E sinto a am- contestarem: em que outro lu- eram as cantigas que Gonzaga biência do Cassino na rua Ma- gar deste mundo velho de meu aprendeu com a sua e depois as nuel Pereira de Araújo, a “Rua Deus um mulato brejeiro, pe- elaborou com a luxuosa ajuda Boa”, da feira livre e do cabaré queno e desenxabido, batizado do advogado cearense Humber- mais livre ainda, na malícia com com o nome do pai, José Gomes, to Teixeira e do médico pernam- que Jackson se apresentava com poderia arrumar um apelido de bucano Zé Dantas. Almira Castilho e seu pandeiro Zé Jack, que depois virou Jack- Lembro-me ainda, a propósi- de embolador de coco e transfor- son, ao qual acrescentou o to, de outro paraibano célebre, mou em sucesso radiofônico nas pandeiro à mão, que não fos- Alfredo Ricardo do Nascimen- emissoras de rádio do Recife e se a Vila Nova da Rainha, que to que, com a marca registrada de televisão do Rio, de São Paulo abrigou o negativo dele, Rosil de Zé do Norte, adotou como e, daí, de todo o Brasil. Cavalcanti, o Zé Lagoa? E “se seus alguns clássicos do cancio- Um verdadeiro precursor dos você não viu vá ver que coi- neiro de nosso sertão do Rio do sucessos de segunda intenção de sa boa, em Campina Grande o Peixe (ele era de Cajazeiras) para Genival Lacerda, seu Vavá, o se- forró de Zé Lagoa”. E vou parar conquistar o público internacio- nador do Rojão, outro súdito de por aqui, senão vou chorar feito nal com toadas usadas na trilha Gonzaga e parceiro de Marinês, bode velho com cangalha.I sonora do filme O Cangaceiro, de a voz mais afinada que conheci Lima Barreto, e entoadas pela na vida. garota de Ipanema que vivia em Personagens da noite cam- José Nêumanne é jornalista, poeta e Paris, Vanja Orico. pinense, como Zefa Tiburtina, escritor

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 21 6 jackson 100 anos oura ernando m o f v Fotos: acer

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sonk e a estrada que o Jackson se tornou levou do Recife ao Rio conhecido no Rio sem conhecer o Rio. Algo que ainda não José Teles Especial para o Correio das Artes foi repetido na MPB, excetuando-se um sucesso do primeiro 78 rotações gravado por Jackson do Pan- deiro foi fulminante. Sobretudo para um artista nordestino, ou outro fenômeno contratado de uma emissora do Recife (PE), que nunca fizera isolado, mas sem o O uma apresentação fora da região. Jackson se tornou conheci- do no Rio sem conhecer o Rio. Algo que ainda não foi repe- tido na MPB, excetuando-se um ou outro fenômeno isolado, mesmo impacto. mas sem o mesmo impacto. O bolachão com ‘Sebastiana’ e ‘Forró em Limoeiro’, respectivamente de Rosil Cavalcanti e Edgar Ferreira, mal chegou às lojas e às rádios e estourou na então capital do país, tanto da República, quanto da cultura. Do Rio para o restante do país. c

| João Pessoa, julho de 2019 22 Correio das Artes – A UNIÃO Almira e Jackson no palco c A Rádio Jornal do Commer- olhos verdes, muito mais alta que da Rádio Nacional: dupla cio, inaugurada em 1948, trazia, o parceiro. que primava pelo contraste semanalmente, astros do rádio Uma das primeiras vezes, se- carioca para se apresentarem em não a primeira, que o nome do seu auditório. Estes voltavam en- cantor foi publicado na imprensa cantados com os rojões cantados carioca deu-se em 26 de dezem- por aquele paraibano magrinho, bro de 1953: “Jackson do Pandei- baixinho, mas com uma divisão ro é cantor da Rádio Jornal do de frases originalíssima. Commercio do Recife. Gravou o No palco, “pulava que nem rojão pernambucano ‘Forró em Limoeiro’ e está obtendo êxito. uma guariba”, para usar os ver- Agora vem ao Rio. Tudo indica sos de Rosil em ‘Sebastiana’. que depois do Carnaval esta- Inicialmente sozinho, logo com rá numa emissora carioca, in- Almira Castilho, com quem se Recorte da primeira terpretando música do folclore casaria. Uma dupla que primava notícia sobre Jackson do pernambucano. Nem seu nome Pandeiro na imprensa é Jackson, nem ele é pandeirista. pelo contraste, o caboclo, traqui- pernambucana: “De saida, nas feito personagem de folheto Jackson do Pandeiro é o tipo Ignoro, porém, a razão porque o de feira, e a morena simpática, de de artista modesto”, cravava jovem, que é de cor, adotou como o Jornal do Commercio pseudônimo o nome de Jackson (André), estadista americano, para cantar rojões”. A nota está na coluna Rádio & TV assinada por Nestor de Holanda, jornalista, radialista, compositor, escritor, pernambu- cano, de bastante destaque na imprensa do Rio nos anos 1950. O estadista a que se refere é An- drew Jackson, sétimo presidente americano (1767/1845). Jackson realmente não era um nome comum no Brasil. O pró- prio Jackson explicava que vinha do ator Jack Perry, e lhe foi dado como gozação pelos amigos. Po- rém tem poucos atores assim chamados no cinema americano das primeiras décadas do século 20. Há um Jack Perry, nascido na Itália, em 1895 (falecido em 1971), que foi boxeador nos EUA e atuou c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 23 c em alguns filmes nos anos 1920 da carreira da Jackson do Pan- e 1930, porém sempre em papéis deiro, claro, não tem intenção de menores. O Jack virou Jackson mensurar quem é melhor, se ele quando foi contratado pela Rá- ou Luiz Gonzaga. Os dois foram dio Jornal do Commercio. Nes- geniais, de estilos distintos, pes- tor de Holanda sabia pouco de soais e intransferíveis. Apenas Jackson, como de resto, a maioria procura acentuar o impacto pro- dos jornalistas do Rio. O paraiba- vocado pelo surgimento de Jack- no realmente tocava pandeiro, e son, aceito pelas mais diversas muito bem. camadas sociais e respeitado pela Quando gravou o 78 rotações elitista crítica musical da épo- que inauguraria sua discografia, ca, preconceituosa em relação a Jackson do Pandeiro já era imen- nordestinos ou caipiras. Somente samente popular em Pernambu- quando os tropicalistas passaram co, particularmente no Recife. A a louvar suas qualidades foi que princípio foi ritmista, acompa- Luiz Gonzaga teve o valor de sua nhava cantores e cantoras nos obra reconhecida pela elite (em- programa da emissora de F. Pes- Cópia do contrato com a bora já totalmente consagrado soa de Queiroz. Rádio Jornal do Commercio: pelo povo). Como ritmista, integrou a Or- foi lá que Jack virou questra Paraguary, ao lado de, Jackson, nome que se tornaria bastante popular Jackson no frevo entre outros, Luperce Miranda e no Recife O que os jornalistas percebe- Sivuca. O maestro da Paraguary, ram no paraibano foi que o Nor- Clóvis Pereira, escreveu os arran- deste, nele, ia além do folclore. jos dos discos que Jackson gra- Nada de seca, tristeza, toadas me- vou no auditório da Rádio Jornal. lancólicas. Tinha algo de jazz na O compositor paraibano Ge- Ou seja, Jackson já surgiu im- interpretação. Ele nunca repetia nival Macedo, representante da pondo uma nova vertente, sobre- o fraseado. Tinha muito de frevo Copacabana no Recife, mandou tudo de canto. Sem se restringir na sua interpretação. É como se o acetato para a matriz da grava- ao regional. Ainda quando gra- Jackson do Pandeiro imprimisse dora. Foi, como já se assinalou, vava no auditório da Jornal do andamento de frevo a qualquer um sucesso imediato e estrondo- Commercio ele começou a can- gênero que cantasse. so. Até difícil de explicar, apesar tar samba, o que fez no último As síncopas com que ele sai do imenso talento de Jackson do 78 rpm gravado no Recife, ‘Vou quebrando o compasso da mú- Pandeiro. Gargalhar’, do recifense Edgar sica é puro frevo. A maneira de Ferreira. Aliás, Jackson do Pan- dançar dele com Almira também Gonzagão: deiro entrou em cena reforçado tem inspiração no passo, a dança diferenças por dois grandes fornecedores do frevo. Cantando frevos, Jack- Vale comparações com Luiz de composições, o citado Edgar son foi insuperável, e inovou ace- Gonzaga. Na época em que Jack- Ferreira, recifense, e Rosil Caval- lerando o andamento. Tornou um son surgiu, Lua era uma máqui- canti, de Macaparana, interior clássico o primeiro que gravou, na de vender discos. A RCA, pela pernambucano, mas com car- uma composição que transgride qual lançou quase toda sua longa reira artística estabelecida em regras do gênero, ‘Micróbio do discografia, chegava a reservar as Campina Grande. Os dois faziam Frevo’, de Genival Macedo. prensas para os lançamentos de música apropriada às divisões de Todas as qualidades e novida- Gonzaga. Autores consagrados Jackson do Pandeiro. des fizeram com que Jackson do do Sudeste passaram a compor Rosil, principal autor na obra Pandeiro, com Almira Castilho, música nordestina a fim de suprir de Jackson, teve algumas com- levassem rojões, cocos e embola- não apenas o Rei do Baião, como posições gravadas por Luiz Gon- das aos clubes e casas noturnas outros intérpretes que embarca- zaga, mas poucas. Edgar Fer- chiques do Rio e São Paulo, como ram no trem do forró do exuense. reira, injustamente esquecido, a Vogue carioca, e frequentassem No entanto, Jackson do Pandei- nenhuma. Por sua vez, Jackson os programas mais refinados do ro entrou em cena com um rojão e do Pandeiro, dos fornecedores de rádio e TV. Forrozeiro nordestino um coco meio samba, cujos anda- Gonzagão, só gravou Zé Dantas, só chegaram à Zona Sul nos anos mentos não reportavam ao balaio e uma única vez, ‘Forró em Ca- 70. Com Orlando Silva e João Gil- de estilos musicais estilizados ruaru’. E Dantas claramente ins- berto, Jackson do Pandeiro foi por Luiz Gonzaga. O paraibano pirou-se no ‘Forró em Limoeiro’. uma das vozes guia do canto po- E tampouco se vestia de cangaceiro Esta análise da início triunfal pular brasileiro. estilizado, característica de Gon- zaga, copiada por quase todos os que foram influenciados por ele. É só lembrar Marinês, ou Zito José Teles, paraibano de Campina Grande, é crítico de música do Jornal do Borborema no início de carreira. Commercio do Recife, escritor e pesquisador de música popular.

| João Pessoa, julho de 2019 24 Correio das Artes – A UNIÃO 6 jackson 100 anos

foto: evandro pereira Jackson no ritmo de Biliu de Campina

André Cananéa Editor do Correio das Artes

iliu de Campina ainda usava calças curtas quando se deparou com Jackson do Pandeiro pela primeira vez, no início dos anos 1960. À noite, o garoto com “mais de 10 e menos de 12 anos” de idade costumava ir até B os estúdios da Rádio Borborema, em Campina Gran- de, a fim de participar de um programa chamado A Cidade Se Diverte, que distribuía muitos prêmios para a garotada. tinta no quadro, ajeitava os deta- Durante o dia, driblava a fiscalização na ‘Cova da lhes… ele era muito detalhista. Onça’, uma área próxima à Feira de Campina Gran- Isso tudo, de maneira espontâ- de, localizada entre a chamada “Rua Boa” e o Canal nea. Jackson parecia que tinha Piabas, para poder vender amendoins e cigarros e uma esfera na ponta da língua. descolar alguns trocados. Certo dia, avistou um rapaz Não era especial só pela manei- magro e muito expansivo, entabulando uma conversa ra de cantar, era especial porque com os habitués do local. ele era diferente mesmo, fazia a “À noite, no programa A Cidade Se Diverte, subiu diferença”. aquele caboclinho, deslanchando, cantando coco, can- Biliu também destaca a capa- tando rojão e, pela voz, eu percebi que era aquela figu- cidade de improvisar do Rei do ra que eu tinha visto na feira”, relembra Biliu, antes de Ritmo, afirmando que dificil- arrematar: “Foi a primeira vez que eu vi Jackson do mente ele interpretava a mesma Pandeiro”. música de forma igual. “Se ele Foi a materialização visual de uma voz que há mui- cantava uma música dez vezes, to ele ouvia, junto com as músicas de Jararaca e Rati- ela era diferente nas dez vezes”, nho, Venâncio, Zé do Norte, Manezinho Araújo, nas crava. “Ele tinha essa habilida- difusoras da cidade. “Sempre me perguntavam: você de rítmica, tinha dicção e pro- viu muitos shows dele? E eu respondia: não, eu escutei nuncia… ele limpava a música, muito. Shows, vi, mas ainda não tinha ideia formada como se diz. Mais: ele mixava de que iria cantar. Estava numa fase embrionária”. ao vivo, e naturalmente, sem Biliu prossegue: “Um negócio que sempre despertou saber que estava fazendo isso. a criançada - porque menino tem uma mania danada Outra coisa: a voz dele, mesmo de gostar das coisas difíceis - foi aquela impostação de um pouco limitada, dava gra- Jackson, cantando aqueles cocos. Fiquei logo admirado; ve, médio e agudo! Tinha um Jackson era cobra-criada, madeira de dar em doido na domínio absoluto e todo show mão de um sem juízo!”, comenta o músico, cujo reper- dele era diferente, um do outro, tório abraça muitas das canções eternizadas por Jack- principalmente em repertório son e por seguidores “que ornamentavam o nome dele”, e tom. Ele era afinadíssimo! como Zito Borborema, Manelzinho Silva. Quando ele dava um agudo, eu Para o forrozeiro campinense, Jackson era bastante já sabia que ele iria para o gra- criterioso na hora de gravar uma canção ou incluí-la ve. Quando ele estava no grave, em seu repertório. “Ele fazia o arranjo oral (da canção), já via que ele iria para um agu- que é coisa dificílima. E ele recebia o negócio pronto, do! Era um cara muito manei- como se diz, e ainda dava uma ‘bulida’, botava mais ro”, conclui.E

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 25 6 jackson 100 anos Jackson do Pandeiro e a MPB o Rei do Ritmo se torna um Mestre da Tradição

Cláudio Campos Especial para o Correio das Artes

m 1972, retornava ao Brasil, após três anos de exílio na Europa, forçado pelo regime di- tatorial que então governava o país. Durante o pe- ríodo, teve passagens por Lisboa (Portugal) e Paris E (França), mas estabeleceu-se em Londres (Inglater- ra), onde teve contato direto com a cultura mundia- lizada de uma das cidades mais cosmopolitas do planeta. Desde o período da Tropicália, Gil já trazia em sua música a característica de fundir elementos da cultura brasileira aos de culturas estrangeiras, misturando baião, samba, toada, rock, pop, entre outros gêneros musicais. No primeiro LP (Long Play) que gravou poucos meses depois de voltar, intitulado Expresso 2222, in- cluiu duas músicas que faziam parte do repertório de um artista que já havia feito enorme sucesso nos anos 1950 e 1960, mas que andava em baixa na car- reira fazia algum tempo. As músicas eram ‘O canto da ema’ (de Alventino Cavalcante, Ayres Viana e João do Vale) e ‘Chiclete com banana’ (registrada como de autoria de Gordurinha e Almira Castilho), ambas lançadas por Jackson do Pandeiro, respecti- vamente, nos anos de 1956 e 1959. Quando Jackson gravou estas canções, era então uma estre- la da música popular brasileira, com forte presença nos princi- pais meios de comunicação social do país. Seus discos alcançavam grande número de vendas, era presença constante nos principais programas de rádio, atuava em filmes para o cinema e até coman- dava seus próprios programas na recente televisão brasileira, como c

| João Pessoa, julho de 2019 26 Correio das Artes – A UNIÃO Fotos: reprodução internet c o Forró do Jackson, que ia ao ar pela TV Tupi. Mas, em 1972, seu prestígio já não era o mesmo no mercado de entretenimento brasileiro. Depois da onda do rock, especialmente com o fenômeno da Jovem Guar- da, e a estética intimista adota- da pela bossa nova, uma parcela significativa do público, especial- mente entre as novas gerações, passou a buscar formas novas de identificação com a arte, a cultura e a sociedade. Muitos dos artistas que haviam se destacado desde a primeira me- tade do século 20 até aproximada- mente a década de 1960, em geral surgidos nas rádios, com suas vozes potentes acompanhadas por grandes arranjos orquestrais, Ao resgatar clássicos de estavam ficando fora de moda. E Jackson do Pandeiro em Jackson estava entre estes artistas ‘Expresso 2222’ (ao lado), percebidos como “ultrapassados”. Gilberto Gil apresentou o Rei do Ritmo para um novo público na Mas, para uma geração de ar- década de 1970 tistas jovens, que começava a des- pontar com os festivais da canção da segunda metade da década de 1960 em diante, Jackson do A relação entre eles só fez au- Pandeiro e outros músicos como mentar com o passar dos anos. Luiz Gonzaga, Noel Rosa, Pixin- Em 1978, Jackson e Alceu fizeram guinha, etc., surgiam como refe- uma turnê por diversos Estados rências de seus anos de formação brasileiros pelo Projeto Pixingui- cultural e artística e eram então nha, promovido pela Funarte. ressignificados como “mestres da Reunia-se “tradição” e “moder- tradição” da música popular bra- nidade”, com a sonoridade do sileira. Conjunto Borborema, que acom- Exemplo disso é que, em 1969, o “Rei do Ritmo”! Estas regrava- panhava Jackson, formado por pouco antes de ser detido e exila- ções de Gil ajudaram a apresen- zabumba, pandeiro, ganzá e acor- do, Gil participou da gravação da tar Jackson e sua música para um deão, e a banda de Alceu Valença, música ‘Sebastiana’ (de Rosil Ca- novo público, na década de 70, tra- com guitarra, contrabaixo elétrico valcanti), justamente a canção que zendo um certo impulso para sua e bateria. Foi uma experiência re- abriu as portas do sucesso para carreira e dando-lhe um pouco novadora para Jackson, que resis- Jackson do Pandeiro, em 1953, no mais de fôlego. Gil seguiu em con- tia à utilização destes instrumen- disco de estreia de , que tato com Jackson por toda a déca- tos pela identificação que tinham tem como título o próprio nome da de 1970, inclusive participando com o rock – gênero considerado da cantora. de gravações e shows ao lado do por ele como a razão para seu os- E foi esta legitimação de Jack- velho mestre. tracismo e o de inúmeros outros son como “mestre” que levou Gil- artistas brasileiros. berto Gil a regravar dois clássicos Do convívio deste período veio de seu repertório. Mas também discípulos a inspiração para a composição porque Gil reconhecia em Jackson Outros artistas importantes ‘Coração Bobo’, que Alceu Valen- um intérprete virtuoso, especial- para a trajetória de Jackson neste ça fez em homenagem a Jackson mente pelas caraterísticas de sua período foram Alceu Valença e do Pandeiro e que interpretaram famosa divisão rítmico-melódica Geraldo Azevedo, que o convi- juntos no Festival 79 da Música vocal, isto é, pelo modo como ele daram para defender a música Popular, realizado pela TV Tupi, enunciava as sílabas poéticas das ‘Papagaio do Futuro’, de autoria em 1979. Não ganharam o festival, canções distribuídas sobre as cé- da dupla, no 7º FIC (Festival Inter- mas a música se tornou um dos lulas rítmicas das melodias, sem- nacional da Canção), também em maiores sucessos da carreira de pre de forma variada e buscando 1972. Inicialmente desconfiado Alceu, que seguiu com forte in- surpreender seus ouvintes a cada daqueles dois “cabeludos”, acei- fluência de Jackson em seu estilo nova performance. tou cantar a música ao perceber interpretativo. Não foi à toa que Jackson en- que era uma espécie de embolada Ao longo da década de 70 mui- trou para a história da MPB como “moder na”. tos artistas da música popular c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 27 c brasileira reconheceram em Jack- son a figura de um mestre. Entre eles, certamente estão Zé Rama- fotos: reprodução internet lho, Elba Ramalho, Fagner e mui- tos outros vindos dos Estados do Nordeste. Zé Ramalho, em 2010, até gra- vou um CD todo com músicas do repertório de Jackson, chamado Zé Ramalho Canta Jackson do Pan- deiro, tamanha sua admiração pelo conterrâneo paraibano. Ou- tra ligação entre eles é o percus- sionista Zé Gomes, sobrinho de Jackson, que faz parte da banda que acompanha Zé Ramalho faz décadas. No final dos anos 1970, foi a vez do mineiro João Bosco ser arreba- tado pela música de Jackson do Pandeiro. Bosco reconheceu que teve contato com as performances de Jackson por meio de Gilberto Alceu Valença, Elba Gil. O impacto foi tamanho que Ramalho, Fagner João adotou Jackson do Pandeiro e Geraldo Azevedo como seu “patrono” musical, com (em sentido horário) admiração imensa por seu virtuo- estão entre os que reconhecem em sismo rítmico vocal. Jackson a figura de Muito ligado ao mundo do um mestre samba, Bosco foi questionado em programa de televisão, do início dos anos 1980, sobre esta sua esco- lha por um artista identificado no os grandes referenciais da MPB, uma versão da música ‘Um a um’ senso comum como “forrozeiro”. ao incluí-lo nos versos “Nessas (de Edgar Ferreira), em seu disco Ao que parece, os entrevistadores tortuosas trilhas/ A viola me re- Bora Bora, de 1988. A música ha- não perceberam o que João já de- dime/ Creia ilustre cavalheiro/ via sido registrada por Jackson via ao menos intuir: que Jackson Contra fel, moléstia, crime/ Use em 1953, em seu primeiro lote de era um sambista de grande talen- Dorival Caymmi/ Vá de Jackson gravações, nos estúdios da Rádio to, tanto quanto forrozeiro. do Pandeiro!”. Jornal do Commercio, em Recife Um registro surpreendente foi (PE), para a gravadora carioca Co- samba feito pela banda Paralamas do pacabana, e lançada em 1954. Antes de se tornar conhecido e Sucesso. Mesmo estando em um de gravar seus primeiros discos, campo do mercado musical muito revisto e sampleado Jackson atuava profissionalmente distinto ao de Jackson, os músicos Tão inesperadas podem pa- no Nordeste como cantor de sam- da banda reconheceram sua im- recer também as regravações de bas, especialmente de samba de portância para a MPB e gravaram artistas ligados a gêneros como breque e de temáticas da malan- funk, rap, hip-hop. Entre estes, dragem, na linha do cantor Jorge estão O Rappa, com ‘A feira’; The Veiga. Da mistura das matrizes Funk Fuckers, ‘Cremilda’; Gabriel, musicais do Nordeste e do Sudes- O Pensador, ‘A mulher que virou te é que vem o suingue da inter- homem, e Fernanda Abreu, em pretação de Jackson. uma impressionante versão de Muitos outros artistas da mú- ‘Meu enxoval’. Todas estas ver- sica popular brasileira prestaram sões estão registradas no CD Jack- homenagens a Jackson em regra- son do Pandeiro – Revisto e Samplea- vações ou em composições dedi- do, de 1998. cadas a ele. Chico Buarque regra- Outro admirador que pode pa- vou o samba ‘Lágrima’ em seu LP recer inusitado é o compositor e Refinado, Guinga violonista Guinga. Reconhecido Sinal Fechado, de 1974. Esta música não apenas foi lançada em disco por Jackson declarou sua como músico de extremo refina- em 1959 e foi um grande sucesso admiração por mento e sofisticação, Guinga não no Carnaval do ano seguinte. Em Jackson, com apenas declarou sua admiração dedicou-lhe duas por Jackson e sua música como sua música ‘Paratodos’, gravada músicas em 1993, Chico citou Jackson entre lhe dedicou duas composições: c

| João Pessoa, julho de 2019 28 Correio das Artes – A UNIÃO fotos: reprodução internet

do Movimento Manguebeat, no Lenine (E) e Silvério Silvério é Recife (PE). Com a banda, lançou (D) trouxeram o legado de Jackson para a o CD Fome Dá Dor de Cabeça, em contemporaneidade considerado 1998, que foi dedicado a Jackson do Pandeiro. Este disco recebeu o um continuador Prêmio Sharp de Melhor Álbum Regional. de músicas gravadas por Jack- “moderno” de uma No ano 2000, Silvério deixou a son, além de apontar caracterís- banda para seguir carreira solo. ticas marcantes de sua estética “escola de canto Seu segundo CD solo foi o Pro- musical e de sua performance. jeto Batidas Urbanas – Micróbio do De forma poética, Lenine desta- ligeiro” que tem em Frevo, de 2003, em que regravou ca a mistura de gêneros de ma- músicas do repertório carnava- trizes do Nordeste e do Sudeste na música de Jackson ao pergun- Jackson e Jacinto lesco de Jackson, como a faixa- -título, ‘Micróbio do frevo’, e ‘Vou tar: “Quem foi / que fez o samba embolar? / Quem foi / que fez o Silva dois de seus gargalhar’, entre outras. Em 2015, lançou o CD Cabeça Feita – Silvé- coco sambar?”. Além de ser uma das músicas mais presentes e expoentes rio Pessoa canta Jackson do Pandeiro, todo com regravações do reper- solicitadas nos shows de Leni- tório de Jackson, como a própria ne desde seu lançamento, Jack faixa-título. Soul Brasileiro foi escolhida pelo Silvério é considerado pela crí- artista para uma apresentação tica e por fãs como um continua- realizada na Cerimônia de En- dor “moderno” de uma “escola de cerramento dos Jogos Olímpicos canto ligeiro” na música popular de 2016, realizados na cidade do brasileira, que tem em Jackson e Rio de Janeiro, sendo transmiti- no cantador Jacinto Silva dois de da ao vivo para inúmeros paí- seus expoentes. ses, nos principais veículos de comunicação. c ‘Influência do Jackson’ (em parce- Lenine é, provavelmente, o Estes são apenas alguns dos ria com Aldir Blanc), gravada em compositor da música mais co- muitos artistas da MPB que con- 1988 pela cantora Leila Pinheiro, nhecida na atualidade feita ex- tinuam levando adiante a música em que faz referência a uma sé- plicitamente em homenagem a de Jackson do Pandeiro – e que rie de músicas do repertório de Jackson do Pandeiro. Ele declarou continuarão para muito além des- Jackson, e ‘Para Jackson e Almi- algumas vezes que, em viagem te seu Centenário de nascimento, ra’ (dele e de Simone Guimarães), aos Estados Unidos, estava em comemorado em 31 de agosto de lançada no LP Noturno Copacaba- uma roda de hip-hop com o can- 2019. Faltou falar de Jarbas Ma- na, de 2003. tor Otto, interpretando músicas do repertório de Jackson sobre riz, Chico César, Ney Matogros- moderno a base rítmica do gênero norte- so, Zizi Possi, Zeca Pagodinho, e mais um sem número de admira- Não poderiam ficar de fora dois -americano, quando foi solicitado dores do Rei do Ritmo (sem con- dos maiores divulgadores da mú- pela cantora Fernanda Abreu a tar os forrozeiros, que não foram sica de Jackson do Pandeiro na criar uma música homenagean- contemplados aqui). Mas aí já é atualidade: os pernambucanos do-o. Assim surgiu Jack Soul Bra- coisa para um livro inteiro, pelo Silvério Pessoa e Lenine. sileiro, lançada em 1999, que se menos... Silvério é um dos intérpretes tornou uma das canções de maior Salve Jackson do Pandeiro! Sal- mais conectados ao legado mu- sucesso da carreira de Lenine. ve o Centenário! E sical de Jackson, desde o início A canção traz muitas citações de sua carreira, quando era um dos integrantes da banda Casca- Cláudio Henrique Altieri de Campos é Doutor em Música, com tese sobre bulho, surgida na segunda fase Jackson do Pandeiro e suas relações com a MPB. É músico, professor e pesquisador no IA/UNESP (SP). Vive e trabalha em São Paulo.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 29 6 jackson 100 anos Mr. do Pandeiro, toque para mim

Braulio Tavares Especial para o Correio das Artes

o ano de 2008, Zé Ramalho gravou um disco com versões em português de algumas can- ções de Bob Dylan. Ele sabia que eu tinha es- crito versões para músicas do “Bardo”, e que N as cantava de vez em quando nos meus shows (“It ain’t me, babe”, “Forever young”, “Blowin’ in the wind”, “Girl of the North country”, etc). Mandei, e ele gravou a que eu considerava a melhor delas, minha versão para “Mr. Tam- bourine Man”. Esta canção de 1964 foi uma das primeiras coisas de Dylan que ouvi, e me produziu um impacto poético que até hoje re- verbera. Esta versão foi quase totalmente escrita quando eu morava em Salvador (BA), entre 1977 e 1980. O mais interessante dela é que o título, justamente a alusão a Jackson do Pan- deiro, só me ocorreu depois de muitos anos de estar cantando “Ei, Mr. Tambourine Man, toque para mim...”, ou, numa solução provisória, que sempre achei meio ridícula, “Ei, Rei do Tambo- rim, toque para mim...” Nada disso me satisfazia até que, já nos anos 2000, me fiz a pergunta que deveria ter feito no começo: Qual é a tradução real de “tambourine” em português? É “pan- deiro”? Muito bem, quem é a única pessoa que eu conheço cujo sobrenome é “Pandeiro”? Aí pronto. A letra é muito longa e não dá para esmiu- çar aqui todas as liberdades que tomei com o original, e as soluções que encontrei aqui e ali. A letra em inglês pode ser obtida com facilida- de; meu websaite preferido para essas letras é o “A-Z Lyrics”, que traz transcrições confiáveis, organizadas disco por disco, faixa por faixa. É o saite que abro quando estou escutando seja quem for. Minha versão vai aqui num “box” à parte (veja na página 33); há pequenas discre- pâncias com a versão cantada por Zé Ramalho, pois cada intérprete faz pequenas alterações para moldar os versos à sua maneira de cantar. c

| João Pessoa, julho de 2019 30 Correio das Artes – A UNIÃO ilustração: domingos sávio supomos de festa, de música, de fantasia) vai dar lugar à dura rea- lidade, mas ele insiste em cantar e dançar, seguindo o músico do pandeiro, mesmo depois do nas- cer do sol. As estrofes do poema são mais ou menos simétricas: dois blocos de versos de rimas livremente repetidas, com linhas finais rimando entre si de forma toante, neste caso “sleeping / drea- ming”. Acho que a principal liberda- de que tomei foi trocar os versos “left me blindly here to stand, but still not sleeping” por “”e eu só en- xergo na manhã um sol de assassi- nar”. É uma imagem de Guima- rães Rosa no Grande Sertão: Vere- das (“o sol assassinava demais”), e não vejo melhor tradução para o impacto cegante da primeira luz do dia nas retinas de um boê- mio insone.

Segunda estrofe A segunda estrofe é igual- mente em dois blocos rimados no final wandering( / under it). Nas rimas intermediárias procurei ficar próximo dos sons originais, e consegui principalmente no se- gundo bloco, onde “fade / parade / way” foram substituídos por “tra- cei / escutei / sei”. Esta estrofe difere das demais porque, a certa altura, Dylan dá um freio-de-arrumação na mé- c O refrão trica justamente entre as linhas Além do nome do persona- “cast you dancin’ spell my way / I gem, o único problema tradu- promise to go under it”. Na sua tório do refrão é a expressão “in gravação, Zé Ramalho inverteu a jingle-jangle morning”. “Jingle- algumas palavras para trazer o -jangle” é uma dessas onoma- verso mais para perto do rigor topéias que viram substantivo métrico, mas minha versão ficou ou adjetivo (como neste caso). É próxima do desvio rítmico feito uma mera reprodução de sons por Dylan: “fiquei enfeitiçado e sei / melodiosos ou percussivos; Jorge que já não vou seguir sozinho”. Luis Borges a traduziu por “retin- tim” num texto sobre Edgar Al- Terceira estrofe lan Poe, chamado por alguém de Também dois blocos com ri- “”the jingle-jangle poet” por causa mas finais “facing ( / chasing”). E de poemas onomatopaicos como uma liberdade poética em que o “The Bells”. Minha tradução verso de Dylan “...and but for the para “in a jingle-jangle morning I’ll skies there are no fences facing”, “=e come following you” é meio pálida: a não ser pelo céu não há nenhu- “entre as canções desta manhã eu ma cerca a nos confrontar”) foi poderei te seguir”. Vida que segue. substituído por “alguém vai pen- sar que são as muralhas do horizonte Primeira estrofe a desabar”. A canção fala da ansiedade do Meio difícil achar uma ex- poeta ao ver que o dia está ama- pressão igualmente poética nhecendo e que aquela noite (que para “skipping wheels of rhyme”, c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 31 que já virou nome de banda e, idioma. (Só o erro de imaginar de cultural. Se não gosta do com pequeno trocadilho, de que isto é possível já mereceria que o poema diz, vá traduzir livro (Skipping Reels of Rhyme – ser dissecado num TCC.) outra coisa. A Guide to Rare and Unreleased Em primeiro lugar, um tra- l O tradutor deve ter olho para Bob Dylan Recordings). Me safei dutor não traduz palavras, tra- perceber as palavras (subs- com “...o eco de uma canção feita duz frases. Uma frase é uma tantivos, verbos, nomes pró- em pedaços”, mas nas linhas se- unidade básica de sentido que prios, gírias, alusões etc.) que guintes tive o cuidado de man- precisa ser entendida e repro- são cruciais para o verso ori- ter na versão o “ragged clown”, duzida. Traduzir não é repetir ginal, e se esforçar para achar o Palhaço, personagem recor- nem copiar: é fazer algo próxi- equivalentes para elas, dando rente no imaginário poético do mo do original mas encarniça- um descanso às outras. autor. damente distinto, distante, algo que insiste em ter vida própria l O tradutor precisa saber tra- Quarta estrofe para além do texto que lhe deu duzir com leveza o que foi es- crito com leveza, e com crivo Talvez a estrofe de voltagem origem. mais exigente o texto mais de- poética mais intensa de toda a Uma tradução não é um clo- talhista. letra, quase impossível repro- ne do original, é um filho. Mesmo quando seja possível, duzir numa versão, onde a pri- l Sendo letra de música, o me- aqui e ali, repetir exatamente o meira exigência a ser atendida lhor efeito tradutório em ter- texto denotativo do original, é é a de casar as palavras com mos sintáticos ou vocabula- bom que logo depois a tradução o fluxo da melodia (sílabas = res não vale de nada se o re- poética se desvie dele ligeira- notas) e se possível manter as sultado não for tão cantável mente, pois de que adianta a vogais tônicas das rimas prin- quanto o original. cipais. cópia idêntica de um verso, se l Sendo letra de música, deve- Tentei isso pegando as rimas isso não vai ser possível com os -ser prestar tanta atenção às finais dos dois blocos (“sorrow restantes?! vogais quanto às metáforas, / tomorrow”) e usando “auro- A tradução poética deve ir e caprichar tanto na divisão ra / embora”. Nesta estrofe eu na mesma direção do original, silábica quanto nas camadas visualizo, como na cena final mas lado a lado com ele, co- semânticas. de um filme de Fellini, o poe- brindo uma faixa ligeiramente ta dançando meio doidão pela diversa do suas imagens e suas EM TESE, um texto literário é areia da praia, de braços aber- referências. Uma tradução pode mais difícil de traduzir do que tos, sempre seguindo o pandei- expandir um pouco (sempre um texto comum. Um poema é rista que toca, e tentando exor- com o desconfiometro ligado!) o mais difícil de traduzir do que cizar com seu canto a ameaça que é dito no original. Recorrer, uma obra em prosa. Uma le- do sol que continua a nascer. para achar soluções, a algo que tra de canção é mais difícil de Aí estão na versão “the smo- estava implícito, subentendido. traduzir do que todos os ante- ke rings of my mind”, “the foggy Complementar as lacunas. É riores: porque lida com mais ruins of time”… Do mesmo como se o poeta original e o tra- “constraints”, mais limitações, modo, “the frozen leaves, the dutor estivessem tendo a mes- mais fatores que precisam ser haunted frightened trees” viram ma visão e cada um procurasse contemplados (duração das no- “um bosque branco e sepulcral”. traduzi-la com seu respectivo tas da melodia, voz, dicção, res- Ali estão os “diamond skies”, vocabulário. piração). bem como (tema recorrente) as Nunca serão versões idênti- O mais importante em “Mr. “circus sands” que viram (pela cas, e isso é um pequeno triun- Tambourine Man” é poder em- pressão da rima) “um circo er- fo, é um enriquecimento do ori- barcar nesse navio poético e rante e peregrino”. E no verso ginal. Assim como cada leitor sentir, como o poeta, a angústia final, que sempre dá trabalho, sente coisas diferentes ao ler de quem no meio de uma noi- achei satisfatório substituir um poema, cada tradutor es- te boêmia de maravilha e festa, “let me forget about today until colhe palavras diferentes para no meio de um parque, no meio tomorrow” por “quero amanhã reescrevê-lo. do povo, escutando a pisada ca- lembrar que hoje eu fui embora”, As balizas que não podem denciada de um coco, ergue os que preserva a rima e à inten- ser transpostas são, de um olhos procurando as estrelas, ção emotiva. modo geral: vê o sol se erguendo no céu... l O tradutor não pode achar mas continua a cantar, na espe- Comentários que vai “fazer um poema me- rança de que aquela noite, como a vida, dure para sempre.E A expectativa mais errônea lhor” do que o original. (“Não de quem lê uma tradução, prin- bote perfume na flor”, como cipalmente uma tradução lite- diria João Cabral.) rária, é imaginar que cada pa- l O tradutor não pode ser in- lavra do original deva ser rigo- fiel ao espírito do poema, por rosamente substituída pela pa- puritanismo, viés ideológico, lavra correspondente em nosso preconceito, falta de afinida-

| João Pessoa, julho de 2019 32 Correio das Artes – A UNIÃO reprodução/internet

Mr. Do Pandeiro (“Mr. Tambourine Man”) (Bob Dylan – versão: Braulio Tavares)

Refrão: Ei, Jackson do Pandeiro, toque para mim. Eu não estou com sono, e não tenho aonde ir... Ei, Mister Do Pandeiro, toque uma pra mim, e entre as canções desta manhã eu poderei te seguir.

Sei que a noite e seus impérios desmoronam sobre o chão ao toque das minhas mãos, e eu só enxergo na manhã um sol de assassinar... O cansaço me atordoa enquanto eu ando para o além procurando por ninguém em velhas ruas já desertas sem poder sonhar... (refrão)

Me leve nas viagens do seu mágico navio... Eu já cansei deste vazio, as minhas mãos tremem de frio mas os meus pés que o chão feriu inda têm forças pra seguir o teu caminho... Eu irei onde você quiser pelas rotas que eu tracei se o teu canto eu escutei fiquei enfeitiçado e sei A canção fala da que já não vou seguir sozinho... (refrão) ansiedade do poeta Se uma gargalhada louca esvoaçar pela amplidão ao ver que o dia está e ecoar sem direção, alguém vai pensar que são amanhecendo e que as muralhas do horizonte a desabar... E se alguém ouvir o eco aquela noite (que de uma canção feita em pedaços ressoando nos espaços, supomos de festa, de é só a voz deste palhaço que canta enquanto segue os passos música, de fantasia) de uma sombra que ele vive sempre a procurar... (refrão) vai dar lugar à dura Vou sumir por entre a névoa de um delírio enfumaçado realidade, mas ele entre as ruínas do Passado deixo a folhagem glacial insiste em cantar e de um bosque branco e sepulcral, vou para um mar de vendavais dançar, seguindo o longe das garras da tristeza, e da aurora... Sob um céu de diamantes músico do pandeiro. vou dançar como um menino

entre o oceano cristalino Braulio Tavares é escritor, e um circo errante e peregrino compositor, tradutor, ensaísta, deixo as memórias e o destino poeta e dramaturgo. Entre dezenas sumir num abismo sem fim, de livros publicados estão ‘Mundo Fantasmo’ (1994) e ‘O Que é Ficção quero amanhã lembrar que hoje eu fui embora... (refrão) Científica (1986). Nasceu em Campina Grande (PB) e está radicado há décadas no Rio de Janeiro (RJ).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 33 6 jackson 100 anos 20 músicas para gostar de Jackson do Pandeiro

Por André Cananéa 2016). Foi regravada por Genival e Érico Sátiro Lacerda, Marinês e Sua Gente (em dueto com Dominguinhos) e Sil- Seleção Fernando Moura vério Pessoa, entre outros. e Érico Sátiro 3. Chiclete com Banana (Gordu- hegou a hora de saber rinha e Almira Castilho). a razão pela qual Jack- Samba surgiu, em disco, a bordo son do Pandeiro é co- do compacto 3097 da Columbia, nhecido como o “Rei lançado em 1959. O lado B trazia C do Ritmo”. A pedido ‘Forró de Surubim’. Reaparece no do Correio das Artes, o biógrafo LP Jackson do Pandeiro (Columbia, Fernando Moura e o pesquisador 1959) e no LP Aqui Tô Eu, lançado Érico Sátiro elencaram 20 músicas pela Phillips em 1970. Foi reedi- que fizeram a fama do músico e tada, em CD, remasterizada, pela que você poderá ouvir apontan- Universal Music na caixa O Rei do do a câmera do seu smartphone Ritmo (2016). Chegou a ser gravada no QR Code na ilustração ao lado. por Gal Costa, Gilberto Gil, Leila Confira: Silva e Casuarina, entre outros.

1. Sebastiana (Rosil Cavalcanti). 4. Forró em Campina (Jackson Rojão integrava o lado B do pri- do Pandeiro). meiro compacto lançado por Jack- Faixa autobiográfica, composta son, em 1953. A “bolachinha” saiu por Jackson durante um voo en- pela Discos Copacabana e trazia, tre Recife (PE) e o Rio de Janei- em seu lado A, o coco ‘Forró em ro (RJ), foi lançada no disco que Limoeiro’. Reaparece no LP Aqui marcou a estreia do paraibano na Tô Eu, lançado pela Phillips em CBS (atual Sony Music), o Dono do 1970 e foi reeditada, em CD, re- Forró, de 1971. Reaparece em co- masterizada, pela Universal Mu- letâneas como Jackson do Pandei- sic na caixa O Rei do Ritmo (2016). ro - As Melhores e Casaca de Couro. Foi regravada por Gal Costa e Le- Foi regravada por Elba Ramalho, nine, entre outros. Biliu de Campina, Arlindo Moita e Nandinho do Pandeiro. 2. Forró em Limoeiro (Edgard Ferreira). 5. A Ordem é Samba (Jackson do Coco foi lançado em compacto Pandeiro e Severino Ramos). 1. Aponte a pela Discos Copacabana junto Terceira faixa do Lado A do LP câmera de seu com ‘Sebastiana’, em 1953. Reapa- Cabra da Peste, lançado pela Con- smartphone com um leitor rece no LP Forró do Jackson (Copa- tinental (hoje, Warner Music) em QR Code para cabana, 1956) e, remasterizada, no 1966 - esse LP teve uma faixa cen- o código CD Os Primeiros Forrós de Jackson do surada pelo Regime Militar, ‘Polí- acima e ouça Pandeiro - Vol. 1, exclusivo da caixa cia feminina’ - o samba de Jackson essa playlist exclusiva. O Rei do Ritmo (Universal Music, e Severino Ramos foi reeditado c

| João Pessoa, julho de 2019 34 Correio das Artes – A UNIÃO c inúmeras vezes. Remasterizada, a 9. Pacífico Pacato (Rosil Caval- faixa foi reeditada duas vezes em canti). CD: em 2001, pela Warner, em ál- Pérola desta playlista, rojão da la- bum com capa diferente da origi- vra de Rosil Cavalcanti teve pou- nal e sem a faixa censurada; e em cos registros, o primeiro deles em 2014, pelo Discobertas, com ‘Polí- compacto lançado pela Columbia cia feminina’ e a capa original. Foi em 1958, lado B de ‘Tum, tum, regravada por Ney Matogrosso tum’, de Ary Monteiro e Christo- (junto com Pedro Luís) e Silvério vão de Alencar. Veio reaparecer Pessoa, entre outros. em 2014, já em CD, na coletânea Chiclete com Banana, lançada pelo 6. Micróbio do Frêvo (Genival Discobertas. Macedo). Frevo gravado por Jackson e or- 10. Xote em Copacabana (Almira questra (conduzida pelo maestro Castilho, como José Gomes). Clóvis Pereira) no auditório da O xote que abre o segundo volu- Rádio Jornal do Commercio foi me do CD Os Primeiros Forrós de lançado originalmente em 1954, Jackson do Pandeiro, integrante do através de um compacto da Dis- box O Rei do Ritmo (2016), fora cos Copacabana (o lado B trazia o lançado 59 anos antes, em 1957, samba ‘Vou gargalhar’, de Edgar através do compacto com ‘Cabo Ferreira). A gravação de Jackson Tenório’. Em 1960, quando Jack- reaparece nos CD 50 Anos de Rit- son já estava na Columbia, ela foi mo (2004) e, em 2016, na coletânea incluída na coletânea Sua Majesta- Os Primeiros Forrós de Jackson do de - O Rei do Ritmo. Está presente Pandeiro - Vol. 1, exclusivo da caixa em dez álbuns, entre reedições O Rei do Ritmo, já remasterizada. em LP e CD do disco original, e coletâneas. 7. 1 X 1 (Edgard Ferreira). Uma das mais conhecidas grava- 11. Na base da chinela (Jackson ções de Jackson do Pandeiro veio do Pandeiro/Rosil Cavalcanti). ao mundo através do 10’’ Jackson Lançado em 1962, o coco é músi- do Pandeiro Com Conjunto e Côro, ca obrigatória em qualquer forró lançado pela Discos Copacabana que se preze. O modo marcante

i lo em 1955. Cinco anos depois, ela de cantar de Jackson é nítido nes- E ressurgiu no LP Sua Majestade - O sa canção, que teve regravações Rei Do Ritmo, também da Copa- de nomes da MPB como Elba Ra- cabana, e por onde se perpetuou malho, Geraldo Azevedo (com até lançamento em CD do álbum. Cascabulho), Paulinho Boca de Cantor e Quinteto Violado, além

Ilustração: V i ctor- Ilustração: Foi regravada pelos Paralamas do Sucesso. de diversos forrozeiros, a exem- plo de Genival Lacerda, Assisão 8. Casaca de Couro (Rui Morais e Biliu de Campina. Em CD, en- e Silva). contra-se disponível em algumas Este arrasta-pé foi lançada no coletâneas e na caixa Jackson do primeiro LP do paraibano pela Pandeiro – O Rei do Ritmo. Columbia, Jackson do Pandeiro, de 1959. Fez tanto sucesso que justi- 12. O canto da ema (Alventino ficou o lançamento de um com- Cavalcanti/Ayres Viana/João do pacto, pelas mesma Columbia, Vale). no ano seguinte (no lado B, ‘La- Batuque de fácil refrão foi lança- mento cego’, de Jackson e Nival- do em 1956 como lado do B do do da Silva Lima). Depois disso, compacto que tinha ‘Coco social’ a gravação reapareceu em quase (Rosil Cavalcanti). Foi regravada uma dezena de coletâneas, entre pelo próprio Jackson outras duas LPs e CDs. O disco foi editado vezes: em 1970, no LP Aqui Tô Eu, em CD nos anos 1990, pelo selo e em 1981, fazendo dueto com um Rock Company, e, em 2018, foi dos autores da canção, João do reeditado, em vinil, pela Sony Vale, no LP João do Vale (1981). To- Music, com seu repertório re- das essas versões foram relança- masterizado. A canção foi re- das em CD e podem ser escutadas gravada por Carmélia Alves, Zé em aplicativos de streaming. Há, Ramalho e Mastruz com Leite, também, inúmeras regravações entre outros. por parte de outros artistas, como c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 35 c Sebastião do Rojão, Gilberto Gil, 16. Como tem Zé na Paraíba e ‘Retirante’ (Nivaldo Lima/Ma- Zé Ramalho, Carlos Malta (com (Manezinho Araújo/Catulo de noel Pedro), no ano seguinte. participação de Lenine), Elba Ra- Paula). malho etc. De autoria dos cantores e compo- 19. Água com leite (J. Cavalcan- sitores Manezinho Araújo e Ca- te/Jackson do Pandeiro). 13. Cantiga do sapo (Jackson do tulo de Paula, que também gra- Lançada em 1976 no LP Mutirão, Pandeiro/Buco do Pandeiro). varam a canção, ‘Como tem Zé na ‘Água com leite’ narra, com bom Representa a ludicidade contida Paraíba’ foi lançada por Jackson humor, a trágica estória de Zé em seu repertório. Assim como do Pandeiro em 1962, em com- Leiteiro, que enricou colocando ‘Sebastiana’ (“...A E I O U, Y”), pacto, e também no LP A Alegria água no leite que vendia e acabou ‘Sem cabeça’ (“Caranguejo tem da Casa. ‘Como tem Zé na Paraí- se afogando após cair do navio. sua carangueja, caranguejo tem ba’ também foi gravada pelo Trio O destaque da gravação, além seu caranguejinho...”), ‘Acende- Nordestino e por cantores como da interpretação de Jackson, é o ram a fogueira’ (“Toinho, Joãozi- Genival Lacerda, Jarbas Mariz e instrumental do Conjunto Bor- nho e Pedrinho inventaram uma Arlindo Moita. borema, com um balanço alegre brincadeira...”) e ‘Vou ver Papai no ritmo e a sanfona precisa de Noel’ (“...quando a rua ficar toda 17. Capoeira mata um (Álvaro Severo. Em CD, integra apenas escura vou ver a figura de Papai Castilho/De Castro). a coletânea Enciclopédia Musical Noel”), além de várias outras, A influência da Bahia na obra Brasileira – vol. 15 – Jackson do Pan- ‘Cantiga do sapo’ é de rápida assi- de Jackson se fez presente, em deiro e Gordurinha, de 2000. Foi milação não só pelos adultos, mas especial, nos anos 60, quando regravada em 2014 pelo Trio Ma- também pelo público infantil. gravou composições como ‘Ca- racá, do Espírito Santo. Facilmente encontrada em coletâ- poeira de Zumbi’ (Geraldo Nu- neas de Jackson, foi gravada ori- nes), ‘Capoeira no baião’ (Codó), 20. Tem pouca diferença (Dur- ginalmente por ele em 1959, como ‘Comprei um berimbau’ (Walter val Vieira). um baião, e regravada por Alceu Levita) e ‘O assunto é berimbau’ Jackson do Pandeiro e Luiz Gon- Valença, Zé Ramalho, Carmélia (Jackson do Pandeiro/Antônio zaga não eram lá melhores ami- Alves, Fagner, entre outros. Barros), entre outras. Uma das gos, mas tinham um respeito mú- músicas gravadas por Jackson do tuo muito grande. Do repertório 14. Meu veneno (José Bezerra da Pandeiro mais executadas pelos de Gonzaga, Jackson regravou Silva/Jackson do Pandeiro/Mer- usuários de plataformas digitais ‘Dezessete e setecentos’ (Luiz gulhão). de streaming (Spotify, Deezer, Gonzaga/Miguel Lima) em 1976, Grande incentivador da carreira Apple Music etc.) na atualidade, além de interpretar ‘Baião’ (Luiz musical do pernambucano José ‘Capoeira mata um’foi lançada Gonzaga/Humberto Teixeira) no Bezerra da Silva, o famoso sam- em 1966 no LP O Cabra da Peste filme Cala a Boca Etelvina, de 1959, bista Bezerra da Silva, Jackson (disponível também em CD), um e ‘Cintura fina’ (Luiz Gonzaga/ do Pandeiro lançou esse coco em dos melhores da carreira do mú- Zé Dantas) em uma apresenta- 1960 como parte do LP Cantando sico paraibano. Álvaro Castilho, ção televisiva, mas, enquanto de Norte a Sul. ‘Meu veneno’, can- coautor da canção, era irmão de era vivo, não chegou a ouvir o ção explorada com frequência por Almira Castilho, parceira musi- Rei do Baião gravar algum su- Biliu de Campina em seus shows, cal e esposa de Jackson à época cesso seu. Em 1984, no entanto, foi regravada pelo próprio Bezer- da gravação. dois anos após o falecimento de ra da Silva em 1991 sob o título de Jackson, Lua fez dueto com Gal ‘Minha drogaria’. Em CD, a faixa 18. Lá vai a boiada (Manoel Pe- Costa em ‘Tem pouca diferença’, de Jackson pode ser encontrada dro/Jackson do Pandeiro). incluída pela baiana no LP Profa- Faixa de abertura do LP A Braza na. A versão original de Jackson na caixa Jackson do Pandeiro – O do Norte (brasa com “z” mesmo), do Pandeiro integrou seu último Rei do Ritmo, de 2016. de 1967, relançado em CD no box LP, Isso é Que é Forró, de 1981 (a Jackson do Pandeiro – Anos 60 (Dis- edição, em CD, está contida no 15. Rojão de Brasília (José Go- cobertas), toada aborda um tema box Jackson do Pandeiro – O Rei do mes Filho/João do Vale). pouco explorado por Jackson em Ritmo). Foi a canção mais famosa Rojão em homenagem à Capital seu repertório: a seca nordestina. do cantor e compositor alagoano Federal, inaugurada em 1960, faz Foi regravada por Fuba de Tape- Durval Vieira, falecido em 2014 parte do LP Ritmo... Melodia... e a roá, em 1985, e por Zé Ramalho, e que ficou mais conhecido pe- Personalidade de Jackson do Pandei- em 2010. Outras composições las suas letras de duplo sentido, ro, de 1961. Assim como em ‘Boi gravadas por Jackson sobre o pro- interpretadas, principalmente, misterioso’ (Betinho), do mesmo blema da seca foram ‘O retirante’ por Genival Lacerda, Zé Duarte ano, a canção explora, além da (Ruy de Moraes e Silva), em 1975, e Clemilda.E voz de Jackson, apenas o som do violão, ganzá e triângulo, algo pouco comum na discografia do André Cananéa é jornalista, crítico de música e cinema e editor do Correio das Rei do Ritmo. Em compact-disc, Artes. Érico Sátiro é pesquisador e idealizador do podcast ‘Ralabucho’, dedicado ao autêntico forró pé de serra. Fernando Moura é jornalista, pesquisador e também integra o box Jackson do biógrafo de Jackson do Pandeiro, coautor do livro ‘O Rei do Ritmo’ (Editora 34). Pandeiro – O Rei do Ritmo. Os três moram e trabalham em João Pessoa (PB).

| João Pessoa, julho de 2019 36 Correio das Artes – A UNIÃO POESIA o Bruno Gaudêncio i lustração: ton Esta Vida i Para Bruno Ribeiro

escrevo um poema sobre o ato de não escrever um poema

para isso observo o teor de adorno de uma máquina de escrever

suas teclas presas pela poeira o G apagado como ponto exato do desamparo

enquanto isso escuto o ressonar do meu cão fiel antes tão raivoso hoje morto pela noite

releio os poemas de raymundo carver pouco dizem sobre minha desatenção

escrevo um poema sobre o ato de não escrever um poema

Bruno Gaudêncio (Campina Grande-PB). Poeta e historiador. Doutorando em História Social pela USP. Autor de quatro coletâneas de poemas, com destaque para O Silêncio Branco (Patuá, 2015) e A Cicatriz que canta o incêndio da raiz (Moinhos, 2018). Mora em Campina Grande (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 37 Fotos: Divulgação dros que se justapõem, desde um 6 sarau aristocrático baile de máscaras até o coro em versos de compositores contemporâneos. Ao todo, dez canções se entrelaçam a quase 60 poemas de autores, estilos e épo- cas variadas, compondo um painel com múltiplos ângulos e facetas do sentimento amoroso, tema do espetáculo: quadros que vão do amor platônico ao erotismo; do amor trágico ao que se reveste de humor; do atemporal ao social- mente marcado; do confessional ao irônico; do amor contido ao ultrarromantismo. No repertório poético, outro mosaico de referên- cias colhidas numa vasta pesquisa diacrônica. São verdadeiramente inco- muns, para esse tipo de espetácu- A poesia lo – e isto explica muito da atenção que os saraus do grupo têm atraí- do –, o rigor e a coerência com que sobe ao palco se vão inserindo cada uma des- sas formas de expressão (poesia, NOTAS SOBRE A dança, teatro, música) em torno do eixo temático pré-definido. É PERFORMANCE incomum o despertar de tantos DO GRUPO talentos individuais em cada uma das formações do elenco nume- POÉTICA EVOCARE roso. Mas é incomum, sobretudo, o envolvimento de cada um dos participantes. São estudantes, edu- cadores, representantes de comu- Expedito Ferraz Júnior nidades – todos, ou quase todos, [email protected] artistas amadores. O que o público testemunha no teatro do SESI pa- rece ser o produto de uma rica ex- periência de construção coletiva, oite chuvosa de um domingo de junho, Centro da cidade. que compreende leitura, seleção e Pelo terceiro dia consecutivo, o teatro do SESI encontra-se lo- estudo de textos, produção do es- tado. O que se apresenta ali não é um show de artista nacio- petáculo cênico, atuações. A per- nalmente conhecido ou um espetáculo de teatro profissional, formance resultante parece estar N mas a culminância de mais uma edição (a quarta) do projeto carregada de significados huma- de extensão A Poesia Como Prática Social de Linguagem, de- nos, intersubjetivos, que emergem senvolvido junto ao Centro de Educação da Universidade Fe- da criação literária, mas também deral da Paraíba (UFPB) pela professora Marineuma Olivei- da troca de experiências vivida ao ra, à frente de uma numerosa equipe cujo núcleo fixo forma o longo daquele processo. Grupo Poética Evocare. Desde 2014, foram realizados quatro Estive na plateia de três das saraus, cada um deles com um motivo temático: Se Narciso se quatro edições já realizadas desse Encontra com Narciso (2014), Epitaphium (2016); Cronos (2018) e espetáculo. E, desde a primeira Amour (2019). experiência, me prometo registrar O roteiro do sarau poético Amour, apresentado nos dias 7 em texto algumas das reflexões a 9 d junho, em João Pessoa, compõe-se, como nas três edi- que ele me tem suscitado. A pri- ções anteriores, de uma sequência de textos interpretados ao meira observação que me ocorre é ritmo dinâmico de números dramáticos e musicais (ou tudo acerca da dinâmica de comunica- isso ao mesmo tempo), o que envolve um cuidadoso trabalho ção que ali se realiza. Falo do con- na produção de cenário, no figurino, na coreografia, na ilu- texto específico da comunicação minação, na sonoplastia e na música, parcialmente executa- da mensagem poética. Diferente- da ao vivo. O projeto inclui ainda uma exposição fotográfica. mente do pacto silencioso entre Já na entrada do teatro, o público é recebido por trovadores um leitor e um texto, que é a forma caracterizados, que cantam temas (texto e música) da lírica predominante de transmissão do medieval. No palco, o que se vê é uma montagem de qua- poema desde que a palavra escrita c

| João Pessoa, julho de 2019 38 Correio das Artes – A UNIÃO Dinâmica de comunicação: Diferente do pacto silencioso entre um leitor e um texto, o sarau produz uma celebração coletiva, espécie de comunhão da palavra em suas múltiplas possibilidades expressivas

c se firmou como a mídia preferen- a seleção de textos atente sempre trução, saúde [...]. Mas será que o cial para a veiculação da literatura para um certo equilíbrio entre a seu semelhante pobre teria direito erudita, o sarau produz uma cele- representação de poemas, ainda a ler Dostoievski ou ouvir os quar- bração coletiva, espécie de comu- desconhecidos para a maior par- tetos de Beethoven?”. nhão da palavra em suas múltiplas te do público, e momentos que se Penso que a construção desses possibilidades expressivas: som, transformam numa espécie de saraus responde em mais de um cor, canto, corpo. “conversa” em torno de textos já aspecto a esse questionamento, na Além disso, trata-se de um ri- consagrados. medida em que promove o aces- tual com hora e local definidos, a O que não se deve perder de vis- so do público à poesia, mas tam- que o público deve acorrer – dinâ- ta é que toda essa ressignificação bém promove o direito de seus mica que acaba por selecionar uma provocada pela simultaneidade de realizadores à leitura e ao estudo audiência pré-disposta à participa- linguagens postas em movimento da produção literária utilizada no ção no jogo interativo que a poesia não consiste numa mera combi- projeto, além de franquear a eles o (toda ela) propõe. nação de elementos exóticos, mas direito à experiência da recriação, No palco, os poemas se ofere- num resgate da própria essência da reinterpretação, da tradução cem a um tipo de fruição também da poesia lírica que, em suas ori- intersemiótica do texto poético. diverso do que acontece no am- gens, trazia texto, música e dança Neste caso, não se trata, portanto, biente do livro, da tela do compu- como elementos intrínsecos à ma- apenas do acesso à literatura, na tador ou do visor do smartphone: nifestação do poético. condição de leitor (o que já seria uma leitura que se realiza ao sabor O trabalho da professora Ma- uma justificativa louvável), mas da efemeridade, e que precisa, rineuma Oliveira junto ao grupo também do direito a participar portanto, ser instantânea. O espec- Poética Evocare me remete, por fim, dela, como atividade coletiva – o tador não pode retornar ao verso ao pensamento de Antonio Can- direito de ser sujeito de sua parti- anterior, nem voltar a página, nem dido acerca do que ele chamou de lha, de sua socialização. I deslizar a tela no sentido inverso O direito à literatura – precisamente para reler, rever, reouvir a palavra àquela aguda constatação de que, Expedito Ferraz Júnior é poeta e pro- fessor de Teoria Literária da Universi- que acabou de tocá-lo. em nosso tempo, as pessoas “afir- dade Federal da Paraíba. Em 2014 lançou O poema acontece, pois, no jogo mam que o próximo tem direito, Poheresia (A União Editora), primeira reunião de poemas. O visgo das coisas tem da urgência entre o olho, o ouvi- sem dúvida, a certos bens funda- previsão de lançamento para este ano. do e a memória. Talvez por isso, mentais, como casa, comida, ins- Mora em João Pessoa (PB).

Proposta faz um resgate da essência da poesia lírica que, em suas origens, trazia texto, música e dança

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 39 6 literatura

protótipo, Valéria explicou a origem da ideia e as intenções de querer transformar o que, A voz inicialmente, seria um conto em um romance. Carta à Rainha de mil prisões Louca tem pouco mais de uma centena de páginas, mas pode- ria ser bem maior se não tives- se um formato epistolar como Roberto Menezes Valéria quis pôr na narrativa. Especial para o Correio das Artes Essa escolha dá a Valéria a liberdade de trazer um texto primeira vez que eu soube de Carta à Rainha Louca com um tom informal. E isso (Alfaguara, 2019) foi no começo desta década. Dois nos aproxima mais do que está mil e onze, dois mil e doze, não lembro. Maria Valéria escrito, já que a narrativa se Rezende, no espaço dentro das reuniões do Clube do passa no fim do século 18, e A uma opção mais ortodoxa po- Conto reservado a textos não temáticos, leu umas dez páginas do que seria esse livro. Ao apresentar esse deria engessar o enredo, ou dá uma impressão de simulacro malsucedido. É verdade que Fotos: reprodução/internet a linguagem escolhida pela escritora não configura com exatidão a maneira como se escrevia na época. A narrado- ra Isabel dos Santos escreve, de dentro do seu cárcere no convento do Recolhimento da Conceição, uma carta à rainha Maria I. Eu nem imagino como se escrevia por essas bandas no tempo colonial. E isso não faz diferença. Uns anos atrás, enquanto eu e Valéria escrevía- mos o livro Conversas de Jardim, entre tanta conversa aleatória, ela me explicou seu processo Em seu novo livro, de criação desse livro: ‘Carta à Rainha Louca’, a vencedora “Estou tentando escrever do Jabuti Maria numa linguagem plausível Valéria Rezende para o século 18 e legível para procura escrever o século 21. Muita gente tenta numa linguagem plausível para o fazer isso, mas de uma ma- século 18, época neira adaptada. Por exemplo, em que passa a tem o livro do Scliar, A Mulher trama, mas legível para o século 21 que Escreveu a Bíblia. O truque, lá, foi dar voz a uma mulher reencarnada nos dias de hoje. Um outro caminho, que é o ou- tro extremo - e desse jeito me deixou fascinada, mas sei que não sou capaz de fazer -, es- tou falando do livro Desmundo, de Ana Miranda. Ela escreve numa linguagem do século 16, o que torna o livro ilegível pra grande parte das pessoas que c

| João Pessoa, julho de 2019 40 Correio das Artes – A UNIÃO c só querem entretenimento”. 'Carta à Rainha Louca' zende escreve para apresentar E para mim, como leitor que os invisíveis. Aqueles encarce- busca o vigor, mesmo que se foca na questão de rados e que ninguém dá valor afrouxe o rigor, Maria Valé- por eles. E Isabel é um destes. ria acertou a mão. Muitas ve- gênero, mas não E assim como outros perso- zes me vi dentro de um fluxo nagens da escritora, Isabel per- narrativo em que eu desco- esquece que a luta cebe que a única via possível nhecia o significado de mui- de sobrevivência é através do tas palavras, mesmo assim eu de classes é algo que conhecimento que porcamente seguia tendo o entendimento lhe foi apresentado. E assim, suficiente para não me perder, tem que ser levada em ela vai forjando cartas com a nem precisar ir ao dicionário. intenção de ser admitida num O começo do livro pode dar consideração dentro de convento para viver na com- a impressão que o livro irá se panhia da irmã postiça. Ou perder, por digressões e lamen- qualquer discussão. kibando poemas de poetas fa- tações sem nau. As primeiras mosos, ou escrevendo poemas cinquenta páginas colocam o de punho próprio para serem leitor no ambiente inóspito em crítica a um tom inaceitável. vendidos em tavernas ou em que a protagonista vive. Uma Até aí, numa censura forçada, feiras públicas. Mas sem alar- cela pequena e imunda, im- se perpetua a sensação de que dear a autoria desses textos. pregnada pela maresia e pela Isabel é sempre cativa. Até no Já na vida adulta, a perso- saudade de Diogo Lourenço (o ato de escrever. A angústia de nagem se sentia mais segura tachado é proposital). ser aprisionada e não ter voz ao se resguardar numa ves- Desde aí já se percebe que o contra essas forças coercivas é timenta masculina, escondia único refúgio que Isabel tem uma forma perene de tortura. seus feitios femininos para ser são as suas palavras. E para Valéria desenha o Nordes- aceita em grupos de viajantes escrever sua carta desesperan- te brasileiro com tons cruéis, para dentro do Sertão profun- çosa, ela se arrisca com o au- onde os homens são seres abo- do. “Então, sim, fazia-me de xílio de outras mulheres na fa- mináveis que tratam as mu- muda ou quase muda, usando bricação de papel e tinta, como lheres como outra propriedade as mãos, esgares e movimentos também se arrisca ao querer qualquer. E cabe às mulheres da cabeça para comunicar-me insistir no processo de escrita. se ajudarem, criando entre si – que nesses sertões de brutos, Isabel quer contar a sua histó- uma rede silenciosa de apoio parcas são as palavras e pouca ria e como chegou a esta últi- mútuo, em que, por muitas ve- falta fazem – para não me ar- ma prisão. zes, não se distingue raça ou riscar a trair-me pelo tom de posição social. minha voz” (pag. 115). E a que- Prisão Porém a narrativa não cai na bra da invisibilidade imposta Carta à Rainha Louca aborda falácia de pintar todas as mu- às mulheres sobre este mundo este tema em vários aspectos. lheres com as mesmas tintas, de homens é punida com vio- No terceiro ato/ano do livro, reforçando que, mesmo entre lações, agressões e até a mor- Isabel conta suas desventuras elas, o sistema imposto pela te. E o fato disso soar tão atual com um relato agora mais li- Coroa Portuguesa e pela Igreja fortalece a narrativa deste ro- near. Logo vemos que, desde a Católica é vigente, e que não se mance que por pouco não foi infância, a menina é obrigada deve confiar nas senhoras que, só um conto. a servir a uma família rica em a priori, estariam ali para de- Maria Valéria nos entrega troca de proteção. fender os fracos, em especial, mais um capítulo de sua obra, Isabel cresce ao lado de as mulheres. mais uma vez nos apresenta os outra menina, Blandina, que Carta à Rainha Louca foca na invisíveis. Fico na torcida para mesmo sendo filha de um po- questão de gênero, mas não que o seu próximo livro toque deroso latifundiário, é tão cati- esquece que a luta de classes nessas e noutras feridas. E, va quanto ela, assim como sua é algo que tem que ser leva- pelo que eu ouvi de um passa- mãe. da em consideração dentro rinho, o título do seu próximo É fácil fazer o paralelo en- de qualquer discussão. Como romance é Toda Família tem um tre a realidade das mulheres muitas vezes ela já falou em Esqueleto no Armário. Mais uma do século 18 e das mulheres entrevistas, Maria Valéria Re- vez, obrigado, Valéria.I atuais. E Valéria faz questão de enfatizar isso nos comentá- rios ácidos dirigidos à rainha Roberto Menezes é paraibano, nascido em 1978. É professor da Universidade louca, comentários estes mui- Federal da Paraíba, integra o Clube do Conto da Paraíba e tem seis livros tas vezes riscados da versão publicados, entre eles ‘Pirilampos Cegos’ (romance), ‘O Gosto Amargo de Qualquer Coisa’ (romance), “Despoemas’ (contos) e ‘Julho é um Bom Mês pra Morrer’ original por escancararem a (romance). Mora em João Pessoa (PB).

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 41 6 clarisser Analice Pereira [email protected] Pelo véu transparente de uma lágrima

clamado como o mais importante escritor tizar, alguns condicionamentos sociais re- cubano da contemporaneidade, inclusive presentados no romance: Cuba e seu passa- depois de lançar O Homem que Amava os Ca- do promissor, seu presente desencantado e chorros (Boitempo: 2013), Leonardo Padura seu futuro imprevisível. A traz a público o seu mais recente livro, que tem o tempo como tema central, já anun- Deixamos para trás o tempo, o nosso ciado no próprio título: A Transparência do tempo, e vamos nos aproximando cada dia Tempo, editado no Brasil, também pela Boi- mais do imprevisível: futuro que não sa- tempo, em 2018, com tradução de Monica bemos como vai ser nem quanto vai durar, Stahel. se vai se desencaminhar ou transcorrer Além de tema, o tempo nesse romance é monótono, tranquilo. E, justamente ali, recurso narrativo dos mais surpreendentes, no insondável, prefigurava-se o mais té- pois funciona como um meio de o narrador trico vazio: no amanhã, não no ontem. (‘A refletir, a partir de uma estruturação tem- Transparência do Tempo’, p. 364). poral bastante peculiar, sobre como uma geração de cubanos tem encarado o seu A história central (porque há uma outra tempo presente que, ligado a um passado história) se passa em 2014, ano em que os histórico e a um futuro “insondável”, reve- presidentes Barack Obama e Raúl Castro la-se marcado por uma gama de sentimen- anunciaram o restabelecimento das rela- tos adversos em torno dos problemas que a ções dos Estados Unidos e Cuba. Não por sociedade cubana tem enfrentado. Noutras acaso, o último capítulo do romance, no- palavras, no romance, tempo é forma – re- meado de Epílogo, acontece no dia 17 de curso estético – e conteúdo – representação dezembro de 2014, lembrado pelo autor- do diálogo entre passado, presente e futuro, -narrador como “dia de São Lázaro” e, por- a fim de revelar, ou mesmo de problema- tanto, dia de milagres. Foi exatamente nes- se dia que ocorreu o referido anúncio dos

Fotos: reprodução internet presidentes do EUA e de Cuba. Na reflexão do narrador, a partir do olhar Mario Conde sobre a data, ignora-se o feito político, mas não o deixa de tratar nas entrelinhas, uma vez que põe em relevo o que o personagem (não) espera como “milagre” social: c

Leonardo Padura e a capa do seu novo romance, em que o tempo é recurso narrativo dos mais surpreendentes

| João Pessoa, julho de 2019 42 Correio das Artes – A UNIÃO 6 clarisser

Thriller: o roubo de uma c [Mario Conde] Acordou delas podem se cumprir. valiosa imagem de santa em madeira, conhecida com a premonição de que acon- Mantilla, em Cuba como “Virgem teceria alguma coisa [...] Lem- 17 de dezembro de 2014-10 de Regla”, integra a brou por algum capricho do de agosto de 2017. (‘A Tr a n s - trama do livro subconsciente, ou talvez por parência do Tempo’, p. 369). suas recentes relações com a hagiologia, que era 17 de de- A escolha por essa data se zembro, dia de São Lázaro. O constitui elemento bastante sig- santo leproso, rodeado de cães, nificativo para a interpretação o Obaluayê dos iorubás: dia da obra, uma vez que, em certo Conde faz o papel de persona- de cumprir promessas ou es- sentido, justifica a postura desa- gem principal em, pelo menos, perar milagres. Talvez ele fos- creditada de Conde frente a essa mais oito livros de Leonardo Pa- se surpreendido por algum, e possibilidade de mudança na so- dura: As Quatro Estações (Paisa- o que poderia acontecer seria ciedade da qual faz parte, e preo- gem de outono, Ventos de quaresma, o seguinte: viria a calhar, por cupada com o suas necessidades Máscaras e Passado perfeito); Adiós exemplo, encontrar uma boa mais imediatas e cotidianas: o Heminguay; La Cola de la Serpiente; biblioteca à venda, com livros café que lhe falta à mesa; os so- Hereges e O Homem que Amava os que o ajudassem a sair da indi- nhos e as esperanças que tam- Cachorros. gência em que costumava viver. bém lhe faltam; a possibilidade No último, a sua passagem é Esse seria um milagre aceitá- de encontrar livros usados para rápida, dando-se apenas como vel. Embora estivesse farto de comprar e vender e, assim, sobre- um dos amigos de Iván, com santos e virgens e continuasse viver numa sociedade que vem quem compartilha algumas se- não acreditando no intangível, se destacando menos por suas melhanças: ambos são escritores, agora sabia melhor que, se al- conquistas do que por suas priva- frustrados, e ambos apresentam guém tem fé suficiente, o mi- ções. Daí a imprevisibilidade do uma certa ambivalência em sua lagre pode acontecer. Mas fé, amanhã, mesmo que se anuncie configuração, pois, ao passo que justamente, era o que mais fal- algum “milagre” à vista. lançam um olhar crítico sobre o tava e faltaria a Mario Conde. Por se constituir um persona- seu chão histórico-social, ao mes- Também lhe faltava café. Café gem que representa uma geração mo tempo, mostram-se incapazes de verdade. E sonhos. E espe- de cubanos, e cujas posturas e de ir embora, dado o sentimento ranças. E anos para pensar que composturas estejam estabeleci- de pertencimento estabelecido era ou é possível começar de das conforme seus condiciona- com o seu país. Tratam-se de per- novo, se tal milagre fosse rea- mentos sociais externos, algumas sonagens embasados nos prin- lizável. Por sorte, outras coisas palavras sobre Mario Conde pa- cípios da ética, da amizade, do lhe sobravam. Premonições, recem necessárias e importan- amor, da solidariedade, da com- por exemplo. E ele tinha certe- tes. Além de protagonizar em paixão. E são esses princípios que za, inclusive, de que algumas A Transparência do Tempo, Mario norteiam Mario Conde por todas c

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 43 6 clarisser c as histórias pelas quais ele passa. tal. Premonição, em Conde, ateu primeros párrafos de Passado Per- Outra marca importante da sua e materialista assumido, significa fecto, ese instante semejante a una constituição é o seu humor afia- a sua capacidade de imaginar um génesis en que Conde recibe la llama- do, a sua “presença de espírito” futuro a partir do presente vivi- da de su jefe y despierta de la brutal como dizemos no Brasil, sobretu- do, em que as questões sociais borracheira que se propone reventar- do no enfretamento de situações não escapam, historicamente, das le la cabeza, las claves de aquella ‘fa- adversas. suas relações de causa e efeito. bricación’ literaria abrieron todas las Nos demais livros, Conde apa- Daí, também, o aspecto irônico puertas. Comencé entonces a cons- rece, em alguns, como policial no uso da palavra, já que tratar truir realmente Mario Conde. (p. 14). ativo; em outros como ex-policial de temas relacionados à religião, Nesse livro, Padura revela seu aposentado, que vive de vender nesse romance, vai além de opor- processo criativo, cuja intenção livros usados como seu ganha- tunizar o tratamento de assuntos está em provocar no leitor, pela -pão, vez ou outra fazendo o pa- um tanto obscuros em Cuba, so- sua obra explicitamente de fic- pel de detetive. Em todos eles, bretudo a partir do período re- ção, o alcance a um conhecimen- Conde tem sempre a função de volucionário. Tal procedimento to mais amplo de uma realidade investigar crimes ocorridos em pode ser compreendido, portan- social. Isso significa dizer que, Havana, a fim de encontrar os to, como sendo um mote roma- para aqueles que desejam co- responsáveis e, a partir de seu ca- nesco elegido por Padura para nhecer Cuba em seus meandros ráter ético, auxiliar nos autos dos trazer ao âmago de sua literatu- e fora dos filtros midiáticos, os processos criminais, com uma ra temas complexos em seu país, romances de Leonardo Padura se dose de humanismo surpreen- tais como: as condições sociais de apresentam como um caminho dente. seu povo; assuntos relacionados à possível. Porém, um caminho Além dessas caraterísticas, em amizade, amor, honestidade, éti- crítico e, sobremaneira, humanis- A Transparência do Tempo, Conde ca e, também, fé e religião; além ta porque põe o ser humano, em também se apresenta como um das ideias relacionadas às atitu- suas complexidades, no centro de ser dotado de premonições. O des de deixar a Ilha ou de nela suas reflexões. Mario Conde é um uso da palavra “premonições” se permanecer. Em termos formais, exemplo forte disso. É uma figura deve, em certa medida, à situa- merece destaque, também, a ficcional com valores humanistas ção criminal na qual se envolve cumplicidade entre o narrador de muito sólidos, e sentimentos hu- como investigador: o roubo de terceira pessoa e o personagem manos os mais diversos, repre- uma valiosa imagem de santa Mario Conde, devido ao grau de sentando, assim, aquele cidadão em madeira, conhecida em Cuba onisciência desenvolvido na nar- comum que ocupa cada esquina como “Virgem de Regla”. A partir rativa. de seu país. dessa imagem, Padura traz para Essa configuração de persona- É possível afirmar que, por o cerne de seu romance, uma gem se deve não só à sua aparição meio desse personagem, Padura discussão em torno das religiões neste romance, mas considerando fala do povo cubano, da sua his- católica, evangélicas, com aten- todos os demais porque se revela tória, das suas carências, da sua ção especial à Santeria, religião como um ser criado pelo autor luta. Conde funciona, para Padu- de matriz africana, praticada em e que o acompanha há décadas, ra, salvo o exagero da compara- c Cuba, equivalente ao Candomblé conforme podemos constatar no no Brasil. Traz, portanto, o tema seguinte depoimento, extraído da fé. Mas a constituição premo- do seu livro Cómo Nace un Perso- O ponto central do romance se niatória de Mario Conde vai além naje: La Historia de un Detective en passa em 2014, ano em que foi de um mero caráter místico, de La Habana (Barcelona: Tusquets anunciado o restabelecimento uma crença em algo transcenden- Editores, 2013): “Cuando escribí los das relações dos Estados Unidos e Cuba

| João Pessoa, julho de 2019 44 Correio das Artes – A UNIÃO 6 clarisser c ção, como os heterônimos para serviços na pesquisa Conde sensación de fracaso personal, Fernando Pessoa: um alguém tinha recebido uma bela quan- el desencanto social, la inca- diferente de si, porém revelador tidade de dólares. (A Trans- pacidad para encontrar un de um “eu”. Não por acaso, a his- parência do Tempo, p. 29). lugar en un mundo con exi- tória de A Transparência do Tempo E tal recorrência se dá, não gencias morales y económicas se dá em torno do aniversário somente pela protagonização distintas, hasta la traumática de sessenta anos de Conde, cuja de apenas um personagem, em expresión del creciente temor idade e data coincidem com as do sua individualidade, mas con- a lo inevitable: la vejez y la autor: nove de outubro. No entan- siderando, sobretudo, toda uma muerte. to, para além dessa revelação de coletividade que inclui seus si, na base da criação desse per- amigos, familiares, amantes etc. Os romances de Leonardo sonagem se encontra, de forma e, portanto, o chão histórico- Padura são ambientados, pri- imediata, a representatividade -social representado nos roman- mordialmente, em Havana e co- de toda uma geração de cubanos, ces. Em suma, esse personagem brem um período que envolve, em que se desenvolve um lugar faz parte de um projeto literário em linhas gerais, as décadas de de fala bastante legítimo. estruturado em bases sólidas, e 1960/70/80/90/2000 e, em A Trans- Uma vez criado, no ano de com intenções claras, conforme parência do Tempo, a década de 1989, para compor o romance podemos constatar na seguinte 2010. São histórias contadas sob Passado Perfeito, esse personagem passagem do livro Cómo Nace un um olhar crítico da sociedade, não deixou de acompanhar seu Personaje (p. 22-23): mas, também, com o reconhe- autor, fazendo-se presente em cimento de certos valores hu- todos os livros que viriam de- Esa capacidad de Mario manísticos que estão na base da pois deste. Em A Transparência do Conde para vivir y reflexio- formação dos seus personagens, Tempo, há diversas passagens que nar junto a mí es, pienso yo, com destaque ao valor da ami- fazem referências às outras histó- lo que lo mantiene y lo que zade e da questionadora dor pela rias protagonizadas por Conde, mantendrá literariamente ac- ausência daqueles que saem da como, por exemplo, no trecho a tivo (y me seguirá ayudando Ilha em busca de uma vida me- seguir, no qual se verifica uma re- a hacerlo más humano, vivo). nos escassa. ferência ao romance Hereges, em Si en las primeras novelas ese Mario Conde representa, en- que Conde investiga em Havana personaje me servía no solo fim, um tipo social que comparti- o desaparecimento de uma tela para investigar un crimen, lha desses valores e sentimentos, de Rembrandt: sino sobre todo para revelar pondo-se, em todas as histórias, la realidade de La Habana y no lugar daquele que não deixa Já fazia quatro ou cinco del país enterro, a lo largo de seu país, por mais que este lugar anos que o pintor Elías Ka- todos estos años su finción se se apresente precário, obscuro minsky tinha aparecido em há perfilado y ampliado. Su e de futuro “insondável”, como Havana em busca de ajuda responsabilidad será, y cada ele mesmo diz. Exerce, assim, a para completar a história do vez más, la de revelar la evo- função de alter ego de seu criador, pai, o judeu Daniel e por seus lución y las oscuridades de uma vez que Padura também esa realidade em la que él y declara que, pelo seu sentimen- yo nos ubicamos: la realidad to de pertencimento ao seu local de los años que pesan sobre el de origem, é incapaz de deixá- cuerpo y la mente, la realidad -lo, já que sua literatura é o que de los años que pasan sobre la o seu lugar lhe oferece como ma- islã y el mundo. [...] Pero in- téria principal. E, mais ainda do Para aqueles que sisto, las responsabilidades de que um alter ego, Conde significa este personaje serán cada vez um ser (quase) vivo, com quem desejam conhecer más complejas: al madurar y Leonardo Padura conta para a envejecer a mi lado, conmigo, criação de suas narrativas, cujos Cuba em seus Mario Conde también tiene espaços e tempos se conectam la misión de experimentar y magistralmente num ponto cru- meandros e fora dos transmitir las incertidumbres cial: na observação da História y los temores que asaltan a mi “através de um véu transparente filtros midiáticos, os generación, con todas las par- de uma lágrima” (‘A Transparên- ticularidades que nos acom- cia do Tempo’, p. 356). I romances de Padura se pañan y acechan: desde la apresentam como um Analice Pereira é professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB). Escreve caminho possível sobre literatura e, vez ou outra, aventura-se pela ficção. Mora em João Pessoa (PB).

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Tiago Germano i r

[email protected] b Foto: ga

Literatura e sonho

sonho é a ficção da memória; é o inconsciente operando no território da escrita, modelando o barro da lembrança. A imagem pode até ser bonita, mas não nasce de uma ideia original. Desde Freud, pelo menos, O há um empenho sistemático em relacionar o mecanismo dos sonhos ao da criação. Ambos atuam num universo aleatório apenas na aparência, descortinando uma realidade íntima bem mais reveladora. “Eu vivo dormindo. Os sonhos são a literatura ao vivo”, afirmou o cantor e compositor Jorge Mautner, em uma entrevista recente à Folha de São Paulo. Mautner esteve entre a vida e a morte no início de 2007, quando sobreviveu a um infarto e ficou internado num hospital para tratar um ferimento na panturrilha. Antes de passar por um procedi- mento cirúrgico, tinha sonhos de que não retornaria à vida. Retornou, e a experiência parece ter influenciado seu novo trabalho, Não Há Abismo em que o Brasil Não Caiba: “Entorpecidos e narcotizados / Por um sonho tão lindo / Acordamos dormindo”, diz a letra de “Destino”, uma das Até as escolhas faixas do disco. Parece bastante óbvio que o estado de saúde de Mautner, transitando conscientes de entre a vida e a morte num leito de hospital, mobilizou seu inconsciente em torno deste que é o nosso terror mais primitivo: o fim, sempre imi- um escritor, nente e – até onde sabemos – irreversível. Seus sonhos (ele cita dez, na entrevista) se apropriaram desse temor e o sono, que para Shakespeare fixadas no campo era o prelúdio da morte, para Mautner passou a ser a própria represen- tação do fim, de uma morte da qual ele tinha a oportunidade de retor- da decisão e da nar quando acordava ainda entorpecido, sob efeito dos medicamentos. A metáfora perfeita para uma canção sobre o nosso país: um gigante intencionalidade, ignaro e adormecido, deitado eternamente em berço esplêndido, se mo- vendo na penumbra de ilusões enquanto julga estar acordando, desper- estão impregnadas tando de um sonho ruim. Este paradoxo é o mesmo que Cristopher Nolan explora em seu filme de lastros de um A Origem (Inception, 2010). No longa, personagens transitam por realida- des paralelas que são, na verdade, sonhos manipulados por “arquitetos” certo inconsciente – pessoas capazes de construir cenários para os devaneios. A única ga- rantia de se estar no “mundo real” e não no universo onírico é o manu- criador. seio de um totem, uma espécie de amuleto que cada viajante carrega e c

| João Pessoa, julho de 2019 46 Correio das Artes – A UNIÃO 6 ao rés da página c possui certas especificidades que Divulgação só o proprietário conhece. Quan- do o protagonista, interpretado por Leonardo DiCaprio, gira o seu pião e o filme termina sem sa- bermos se o brinquedo vai conti- nuar em movimento ou simples- mente parar, permanecemos na dúvida: ele voltou para o “mundo real” ou continua sonhando? O curioso é que o próprio Nolan, diretor do filme, se diz adepto de técnicas mnemônicas capazes de induzir os chamados “sonhos lúcidos” – aqueles nos quais temos plena consciência de que estamos dormindo e po- demos reger nossas ações dentro da fantasia, aproveitando melhor sua experiência. Nolan é o arqui- teto de sua própria ficção, e não abdica do papel de cineasta nem quando dorme. É muito provável que não tenha controle absoluto dos seus sonhos (como também não tem de seus filmes – obras por essência coletivas, que mes- mo quando centradas na figura Jorge Mautner, de um único realizador possuem transitando entre a vida e a morte idiossincrasias e circunstâncias num leito de que fogem ao domínio indivi- mica. A ordem quase sempre é hospital, mobilizou dual). precedida do caos. O caminho da seu inconsciente É neste aspecto que o sonho escrita também se faz aos percal- em torno do nosso terror mais se aproxima também da litera- ços, com tentativas e abandonos, primitivo: o fim tura: até as escolhas conscientes erros e acertos, tropeços e falhas. de um escritor, fixadas no campo Afinal, muito mais comum da decisão e da intencionalidade, que controlarmos nossos sonhos, estão impregnadas de lastros de voltando deles satisfeitos por ter- um certo inconsciente criador, mos feito aquilo que, acordados, que age naturalmente enquan- jamais teríamos a coragem de fa- to escrevemos. A escrita criativa zer, é que de fato acreditemos tão tem se aliado à ciência cognitiva piamente na ficção gerada pela a fim de, senão almejar à impos- nossa memória que, ao acordar, sível compreensão do processo até duvidemos de estar desper- de escrita, tentar pelo menos elu- tos. É aí que só nos restam as cidar suas inúmeras variáveis – e páginas dos livros para, enfim, é ingenuidade pensar que estes nos conduzir pelo labirinto do in- campos do conhecimento não consciente com uma maior ilusão abarquem, também, esta dimen- de controle, pulando no abismo são aleatória do pensamento e do de paraquedas, resolvendo nos- ato criador. sos traumas pelas lembranças Embora já saibamos que o aca- dos outros e nos realizando atra- so não é parte predominante da vés de nossos personagens.I criação (costumo dizer que “ins- piração” é um conceito pregui- çoso, que sempre pode ser subs- tituído por termos que tenham mais a ver com o trabalho de es- Tiago Germano é escritor, autor do romance “A Mulher Faminta” (Moinhos, 2018) crever), também sabemos que ele e do livro de crônicas “Demônios Domésticos” (Le Chien, 2017), indicado ao é parte considerável de sua dinâ- Prêmio Jabuti. Mora em João Pessoa.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 47 POE Marcelo Mourão

A parábola do iluminado vivia na escuridão. encontrou uma vela: que grande emoção! anos e anos na cela, custou a se acostumar com luz, cor e som. Marcha marcada mas aí, depois da vela, Todo dia, alguma coisa se parte, achou uma lanterna. se quebra, se desfaz, de mim se aparta. nem se lembrava mais Toda hora, cato minhas muitas partes dos tempos de caverna. e varro lá para debaixo da alma. mas a vida sempre voa e até a própria lanterna Todo dia, um alguém em mim se mata, deixou de ser tão boa. se queima, abre muitas crateras largas. buscou então um farol. Todo tempo, ressoa essa sonata depois desejou a lua, e caio, um por um, nos buracos da alma. as estrelas, os cometas. por fim quis o sol, Todo dia, pouco a pouco, me acabo, para colocá-lo inteiro incinero pedaços putrefatos à sua disposição. e envelhecemos eu e o meu retrato. brincou de deus e diabo e ficou cego com A sorte é que nunca me descontrolo. tanta iluminação. Enquanto insanos se sujam de sangue, mal sabia o “iluminado” a poesia põe minha alma no colo. que a tristeza da escada é sonhar céu e acordar chão. o vi O olho de ferro

para Michel Foucault e George Orwell ngos sá mi ngos Feito um farol, porém desprovido de lume e soturno, segue o olho da máquina sem piscar nem um segundo.

lustração: do lustração: O olho me olha e olha tudo mais à sua volta i sempre com um olhar de pergunta, nunca de resposta.

Feito um deus, que tudo escuta, tudo sabe e tudo vê, segue o olho mecânico a nos enquadrar numa TV. Esse mesmo olho oco, que escaneia corpos e rostos, jamais irá hackear o que há na alma do seu oposto.

Feito um cão de guarda, ou um juiz furioso e sem dó, segue o olho de ferro a vigiar tudo ao seu redor, numa fome de fera que tudo decifra e devora.

E, assim, olhos espreitam, surgem, dão botes feito cobras. E, assim, mil olhos vão se clonando e, quanto mais, melhor. E assim caminha a humanidade: acompanhada e só.

| João Pessoa, julho de 2019 48 Correio das Artes – A UNIÃO SIA o Marcelo Mourão vi ngos sá mi ngos lustração: do lustração: i

Desconstruição Quando os pais e os avós vão aos poucos morrendo é como um prédio antigo perdendo os pavimentos. Mas não é ele que cai: Marcelo Mourão é graduado em História e Le- sou eu tras, pós-graduado em Literaturas de Língua Portuguesa, pela Unesa e, em Literatura Brasi- desmoronando leira, pela UERJ. Desde 2018, é mestrando em por dentro. Literatura Brasileira (UERJ). É também poeta, crítico literário e produtor cultural. É o cria- dor, produtor e apresentador do sarau POLEM. E, desde 2019, é o diretor de comunicação da União Brasileira de Escritores (UBE). Possui quatro livros solo publicados.

A UNIÃO – Correio das Artes João Pessoa, julho de 2019 | 49 6 cantinho do conto Rinaldo de Fernandes [email protected] O cavalo morto

avia um cavalo morto na praia. Estava embor- cado e era branco, feito o pó da areia. A barriga crescida, as pernas alçadas, aturdia as gaivotas H com seus olhos abertos, adornados de formigas. Um menino, de um prédio, viu a barriga do ca- valo e entendeu que ele ingerira um bolo inteiro o

de aniversário – “o do aniversário do Soutinho!”. vi Era um belo cavalo e as ondas o cuspiam. Nin- guém sabia de quem era. Ninguém somava uma palavra para informar de que morrera. Mas relin- sá mi ngos chara em algum recanto, antes de, agonizante, se acocorar nas areias da praia e derrear o seu últi- I mo e definitivo cansaço. do Ilustração:

Rinaldo de Fernandes é escritor, crítico de literatura e professor da Universidade Federal da Paraíba. Mora em João Pessoa (PB).

| João Pessoa, julho de 2019 50 Correio das Artes – A UNIÃO