De Emmanuel Nunes
Total Page:16
File Type:pdf, Size:1020Kb
4 • Ípsilon • Sexta-feira 25 Janeiro 2008 25Janeiro •ÍpsilonSexta-feira No universo ENRIC VIVES-RUBIO labiríntico de Emmanuel Nunes O mais internacional compositor português estreia- se na ópera com “O Conto”, 27 anos depois de ter começado a trabalhar no libreto a partir da obra de Goethe. Mas o que é que tem de especial este compositor que vive em Paris há anos e diz ser um “turista” em Portugal? “Estranha e poética”, “imediata e ao mesmo tempo enigmática” a sua música “labiríntica” não é consensual. Músicos, musicólogos e maestros falam do prestígio internacional de Emmanuel Nunes. Cristina Fernandes Capa Ípsilon • Sexta-feira 25 Janeiro 2008 • 5 A complexidade do discurso musical, a obsessão pelo rigor construtivo e intelectual e a inovação em função da herança anterior da história da música são traços que habitualmente se asso- ciam à produção musical de Emma- nuel Nunes, o mais internacional dos compositores contemporâneos portu- gueses e uma figura de peso na criação musical europeia. Mas na sua primeira ópera, cuja estreia há muito aguardada terá lugar esta noite no Teatro Nacional de São Carlos (com transmissão em directo para 14 teatros do país), não quis fazer experiências radicais, nem revolucio- DE SÃO CARLOS NACIONAL DO TEATRO DE CENA FOTOGRAFIAS nar o conceito de ópera. Prevista para Novembro de 2006, a estreia foi adiada para este ano, depois de o compositor e o anterior director do São Carlos, Paolo Pinamonti terem entrado em polémica sobre as razões do atraso da estreia há um ano. Do universo fantástico carregado de símbolos de “Das Märchen”/ “O Conto” (com libreto do próprio compositor a partir de “O Conto da Serpente Verde”, de Goethe), quis apenas fazer teatro através da música: servir o texto e não questionar o texto. Talvez por isso tenha optado por deixar no ar o mis- tério, não revelando a sua leitura pes- soal de uma obra que tem suscitado as mais variadas alusões e interpreta- ções: da política à filosofia, da simbo- logia à alquimia, passando pela maço- naria. O próprio Goethe alimentou o enigma dizendo que era um “conto sobre tudo e sobre nada” (ver caixa). Resultado de uma encomenda con- junta do São Carlos, da Gulbenkian e da Casa da Música, “O Conto” terá direcção musical de Peter Rundel (maestro do Remix Ensemble), ence- “Fui estabelecendo cenas a partir de ‘O Conto”, tendo desde o início uma opção: para mim tinha de ser válido como uma peça de teatro, não queria de modo nenhum estar a fornecer conceitos, filosofia ou teorias. Queria mesmo fazer uma ópera” 6 • Ípsilon • Sexta-feira 25 Janeiro 2008 nação de Karoline Gruber, coreografia Isso significa que entende a de Amanda Miller e um elenco com ópera no seu sentido original nove cantores, cinco actores e dez bai- de “drama per musica”, ao larinos. A componente instrumental contrário de outros compositores Perfil “Um pensamento musical está a cargo do Remix Ensemble e da contemporâneos que têm feito orquestra Sinfónica Portuguesa. experiências mais conceptuais, luxuriante” “O Conto” é a sua primeira por vezes difíceis de definir. ópera. Não abordou este género Pode falar-se de continuidade em musical mais cedo por falta de relação à tradição? A viver fora de Portugal há França e na Alemanha, mas oportunidade ou porque não Se há uma certa continuidade no valor mais de 40 anos, é o mais nunca deixou de visitar Portugal. tinha ainda chegado a altura da minha ópera, não é a mim que com- internacional dos compositores As suas obras são apresentadas certa em termos do seu percurso pete julgar. O meu passado mais pró- portugueses, ocupando um regularmente na Gulbenkian e, artístico como compositor? ximo, se considerarmos a história da lugar de destaque na música mais recentemente, na Casa da O projecto de uma ópera não se con- ópera a partir de Wagner, é o próprio contemporânea europeia. Ainda Música, onde foi compositor em cretiza de um momento para o outro, Wagner, Debussy (com “Pelléas et que tenha desenvolvido um residência na última temporada. estende-se no tempo por vários anos. Mélisande”) e Alban Berg com percurso muito pessoal, pode A partir dos anos 1980, a A primeira intenção de fazer uma “Wozzeck” e “Lulu”. Há outras óperas considerar-se um herdeiro da sua actividade pedagógica ópera data de 1981, mas não teve que me interessaram, mas não sinto linha dura da vanguarda dos adquiriu grande importância, seguimento. Nessa altura trabalhei com elas uma filiação tão próxima. Por anos 60 e 70 e da atitude que tanto através dos seminários sobretudo a nível literário, na maneira exemplo, “São Francisco de Assis”, de vê a criação musical como anuais na Gulbenkian como como ia transformar “O Conto” de Messiaen, já sem falar das óperas de um processo evolutivo em da sua colaboração com várias Goethe num libreto. Li “O Conto” por Richard Strauss. Sendo assim, o meu direcção à inovação. Encontra- instituições europeias de grande acaso, em 1975, mas a ideia da ópera passado próximo está delimitado. se, assim, nos antípodas do prestígio. não surgiu logo, só a partir de 1979- Acha que nenhum compositor pós-modernismo reinante, Desde 1989 trabalha 1980 começou a tomar forma. Tive posterior do século XX igualou a recusando a qualquer preço regularmente com o IRCAM, alguns contactos com a Ópera de Ber- grandeza das óperas de Alan Berg? fazer concessões à facilidade. A tendo estabelecido uma estreita lim, conhecia bem o seu director, que Igualar talvez não, mas há outras ópe- sua estética não é de apreensão ligação com Éric Daubresse era um grande violoncelista, Siegfried ras importantes. Obviamente, “Os Sol- fácil, mas isso não o preocupa. na área de investigação em Palm, muito conhecido na música con- dados”, de Zimmermann, ou a pri- “Acho inaceitável contar à torno da electrónica em “tempo temporânea. Estive em casa dele a meira ópera de Chostakovitch, “O partida com a incultura do real”, que resultou na estreia falar do projecto, mas entretanto ele Nariz”. Embora eu não goste de Chos- ouvinte. Não pretendo ter em Paris de “Lichtung I”, em demitiu-se da Ópera de Berlim e, takovitch em geral, e em particular ouvintes cultos como ideal. Dar 1992, dedicada à pintora Maria durante anos, a ideia da ópera ficou [risos], sei que essa ópera tem uma a ouvir aquilo que facilita uma Helena Vieira da Silva. A versão por ali. Por outro lado, o processo de dramaturgia interessante. audição é para mim inaceitável”, defi nitiva de “Lichtung II”, que trabalho arrastou-se porque não podia Que características encontrou disse ao PÚBLICO numa designou como “cubismo em pensar numa ópera sem constituir pri- n’ “O Conto” de Goethe que o entrevista a propósito da movimento”, foi estreada em meiro um libreto. Nessa medida, fui levassem a querer convertê-lo estreia de “Lichtung II” (edição 2000, seguindo-se, em 2007, estabelecendo cenas a partir do numa ópera? de 25-7-2000). “Lichtung III”, uma “Coda” das “Conto”, tendo desde o início uma Quando li, não disse para comigo: “Ah! A partir da herança de anteriores, e o encerramento opção: para mim tinha de ser válido Isto é uma ópera!” Li primeiro em fran- Boulez e Stockausen – mas deste ciclo criativo. A exploração como uma peça de teatro, não queria cês, porque uma amiga me ofereceu também de todo o legado da da espacialização vinha, porém, de modo nenhum estar a fornecer con- um livro velho, e depois, passado um história da música europeia de mais longe, estando, por ceitos, filosofia ou teorias. Queria ano ou dois, comprei um exemplar em –, Emmanuel Nunes forjou exemplo, em “Es webt” (1974- mesmo fazer uma ópera. alemão. Comecei a ocupar-me do um estilo pessoal de grande 75, revista em 1977), “Tif’ereth” profundidade e rigor intelectual, (1978-1985), “Wandlungen” onde as novas tecnologias têm (1986) ou “Quodlibet” (1990- um papel fundamental, bem 1991), peça concebida para o como a pesquisa em torno do espaço do Coliseu de Lisboa. timbre, do ritmo, do tempo e Nunes reagrupa a maior parte ENRIC VIVES-RUBIO do espaço, onde desenvolve das suas obras em dois grandes fascinantes geometrias sonoras. ciclos atravessados pelo mesmo A sua biografi a publicada material musical. O primeiro, que no site do IRCAM (Institut de compreende peças compostas Recherche et Coordination entre 1973 e 1977, caracteriza- Acoustique/Musique) defi ne-o se pela utilização de um como uma espécie de “virtuose” anagrama composto por quatro das ferramentas electrónicas notas. O segundo, intitulado “A na concretização de “um Criação”, iniciou-se em 1977 pensamento musical luxuriante” com “Nachtmusik” e tem como que resulta do “contraponto ponto comum o chamado “o par interactivo entre a partitura rítmico”, designação atribuída instrumental e o programa pelo próprio compositor que se informático”. aplica à frase rítmica, à métrica, Nascido em Lisboa, em 1941, aos intervalos e à espacialização. numa família sem tradições A obra de Nunes tem musicais, o apelo da música despertado o interesse de parece ter surgido quase de musicólogos como Peter Szendy, geração espontânea. Desde o Brigitte Massin ou Alain Bioteou, nascimento com perturbações que lhe consagrou a sua tese motoras, o seu problema físico de doutoramento. Entre outras parece nunca ter sido um publicações, destaca-se o livro obstáculo. Iniciou os estudos de editado em 2001 pelo Centro piano e solfejo aos 14 anos e aos Cultural Gulbenkian de Paris: 18 ingressou na Academia de “Emmanuel Nunes, compositeur Amadores de Música de Lisboa, portuguais”, de Hélène Borel, onde foi aluno de Francine Benoît. Alain Bioteau e Éric Daubresse. Estudou depois com Fernando O valor da obra de Emmanuel Lopes-Graça, frequentou a Nunes tem sido reconhecido Faculdade de Letras e, entre através de vários prémios e 1963 e 1965, seguiu os cursos distinções: ofi cial da Ordem das de Darmstadt, onde trabalhou Artes e das Letras, pelo Governo sobretudo com Henri Pousseur francês (1986), comendador da e Pierre Boulez.