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ENRIC VIVES-RUBIO ENRIC usicólogos Músicos, m Cristina Fernandes Emmanuel Nunes. Emmanuel e ao mesmo tempo enigmática” a sua música e ao mesmo tempo enigmática” de Goethe. Mas o que é que tem de especial este de Goethe. Mas o que é tem de especial e maestros falam do prestígio internacional de do prestígio falam e maestros labiríntico de Emmanuel Nunes de Emmanuel se na ópera com “O Conto”, 27 anos depois de ter 27 anos com “O Conto”, se na ópera começado a trabalhar no libreto a partir da obra a partir da obra no libreto a trabalhar começado compositor que vive em há anos e diz ser um há anos em Paris que vive compositor O mais internacional compositor português estreia- português O mais internacional compositor No universo No universo “labiríntica” não é consensual.“labiríntica” “turista” em ? “Estranha e poética”, “imediata e poética”, “Estranha em Portugal? “turista”

4 • Ípsilon • Sexta-feira 25 Janeiro 2008 Capa

Ípsilon • Sexta-feira 25 Janeiro 2008 • 5 A complexidade do discurso musical, a obsessão pelo rigor construtivo e intelectual e a inovação em função da herança anterior da história da música são traços que habitualmente se asso- ciam à produção musical de Emma- nuel Nunes, o mais internacional dos compositores contemporâneos portu- gueses e uma figura de peso na criação musical europeia. Mas na sua primeira ópera, cuja estreia há muito aguardada terá lugar esta noite no Teatro Nacional de São Carlos (com transmissão em directo para 14 teatros do país), não quis fazer experiências radicais, nem revolucio- DE SÃO CARLOS NACIONAL DO TEATRO DE CENA FOTOGRAFIAS nar o conceito de ópera. Prevista para Novembro de 2006, a estreia foi adiada para este ano, depois de o compositor e o anterior director do São Carlos, Paolo Pinamonti terem entrado em polémica sobre as razões do atraso da estreia há um ano. Do universo fantástico carregado de símbolos de “Das Märchen”/ “O Conto” (com libreto do próprio compositor a partir de “O Conto da Serpente Verde”, de Goethe), quis apenas fazer teatro através da música: servir o texto e não questionar o texto. Talvez por isso tenha optado por deixar no ar o mis- tério, não revelando a sua leitura pes- soal de uma obra que tem suscitado as mais variadas alusões e interpreta- ções: da política à filosofia, da simbo- logia à alquimia, passando pela maço- naria. O próprio Goethe alimentou o enigma dizendo que era um “conto sobre tudo e sobre nada” (ver caixa). Resultado de uma encomenda con- junta do São Carlos, da Gulbenkian e da Casa da Música, “O Conto” terá direcção musical de Peter Rundel (maestro do Remix Ensemble), ence-

“Fui estabelecendo cenas a partir de ‘O Conto”, tendo desde o início uma opção: para mim tinha de ser válido como uma peça de teatro, não queria de modo nenhum estar a fornecer conceitos, filosofia ou teorias. Queria mesmo fazer uma ópera”

6 • Ípsilon • Sexta-feira 25 Janeiro 2008 nação de Karoline Gruber, coreografia Isso significa que entende a de Amanda Miller e um elenco com ópera no seu sentido original nove cantores, cinco actores e dez bai- de “drama per musica”, ao larinos. A componente instrumental contrário de outros compositores Perfil “Um pensamento musical está a cargo do Remix Ensemble e da contemporâneos que têm feito orquestra Sinfónica Portuguesa. experiências mais conceptuais, luxuriante” “O Conto” é a sua primeira por vezes difíceis de definir. ópera. Não abordou este género Pode falar-se de continuidade em musical mais cedo por falta de relação à tradição? A viver fora de Portugal há França e na Alemanha, mas oportunidade ou porque não Se há uma certa continuidade no valor mais de 40 anos, é o mais nunca deixou de visitar Portugal. tinha ainda chegado a altura da minha ópera, não é a mim que com- internacional dos compositores As suas obras são apresentadas certa em termos do seu percurso pete julgar. O meu passado mais pró- portugueses, ocupando um regularmente na Gulbenkian e, artístico como compositor? ximo, se considerarmos a história da lugar de destaque na música mais recentemente, na Casa da O projecto de uma ópera não se con- ópera a partir de Wagner, é o próprio contemporânea europeia. Ainda Música, onde foi compositor em cretiza de um momento para o outro, Wagner, Debussy (com “Pelléas et que tenha desenvolvido um residência na última temporada. estende-se no tempo por vários anos. Mélisande”) e Alban Berg com percurso muito pessoal, pode A partir dos anos 1980, a A primeira intenção de fazer uma “Wozzeck” e “Lulu”. Há outras óperas considerar-se um herdeiro da sua actividade pedagógica ópera data de 1981, mas não teve que me interessaram, mas não sinto linha dura da vanguarda dos adquiriu grande importância, seguimento. Nessa altura trabalhei com elas uma filiação tão próxima. Por anos 60 e 70 e da atitude que tanto através dos seminários sobretudo a nível literário, na maneira exemplo, “São Francisco de Assis”, de vê a criação musical como anuais na Gulbenkian como como ia transformar “O Conto” de Messiaen, já sem falar das óperas de um processo evolutivo em da sua colaboração com várias Goethe num libreto. Li “O Conto” por Richard Strauss. Sendo assim, o meu direcção à inovação. Encontra- instituições europeias de grande acaso, em 1975, mas a ideia da ópera passado próximo está delimitado. se, assim, nos antípodas do prestígio. não surgiu logo, só a partir de 1979- Acha que nenhum compositor pós-modernismo reinante, Desde 1989 trabalha 1980 começou a tomar forma. Tive posterior do século XX igualou a recusando a qualquer preço regularmente com o IRCAM, alguns contactos com a Ópera de Ber- grandeza das óperas de Alan Berg? fazer concessões à facilidade. A tendo estabelecido uma estreita lim, conhecia bem o seu director, que Igualar talvez não, mas há outras ópe- sua estética não é de apreensão ligação com Éric Daubresse era um grande violoncelista, Siegfried ras importantes. Obviamente, “Os Sol- fácil, mas isso não o preocupa. na área de investigação em Palm, muito conhecido na música con- dados”, de Zimmermann, ou a pri- “Acho inaceitável contar à torno da electrónica em “tempo temporânea. Estive em casa dele a meira ópera de Chostakovitch, “O partida com a incultura do real”, que resultou na estreia falar do projecto, mas entretanto ele Nariz”. Embora eu não goste de Chos- ouvinte. Não pretendo ter em Paris de “Lichtung I”, em demitiu-se da Ópera de Berlim e, takovitch em geral, e em particular ouvintes cultos como ideal. Dar 1992, dedicada à pintora Maria durante anos, a ideia da ópera ficou [risos], sei que essa ópera tem uma a ouvir aquilo que facilita uma Helena Vieira da Silva. A versão por ali. Por outro lado, o processo de dramaturgia interessante. audição é para mim inaceitável”, defi nitiva de “Lichtung II”, que trabalho arrastou-se porque não podia Que características encontrou disse ao PÚBLICO numa designou como “cubismo em pensar numa ópera sem constituir pri- n’ “O Conto” de Goethe que o entrevista a propósito da movimento”, foi estreada em meiro um libreto. Nessa medida, fui levassem a querer convertê-lo estreia de “Lichtung II” (edição 2000, seguindo-se, em 2007, estabelecendo cenas a partir do numa ópera? de 25-7-2000). “Lichtung III”, uma “Coda” das “Conto”, tendo desde o início uma Quando li, não disse para comigo: “Ah! A partir da herança de anteriores, e o encerramento opção: para mim tinha de ser válido Isto é uma ópera!” Li primeiro em fran- Boulez e Stockausen – mas deste ciclo criativo. A exploração como uma peça de teatro, não queria cês, porque uma amiga me ofereceu também de todo o legado da da espacialização vinha, porém, de modo nenhum estar a fornecer con- um livro velho, e depois, passado um história da música europeia de mais longe, estando, por ceitos, filosofia ou teorias. Queria ano ou dois, comprei um exemplar em –, Emmanuel Nunes forjou exemplo, em “Es webt” (1974- mesmo fazer uma ópera. alemão. Comecei a ocupar-me do um estilo pessoal de grande 75, revista em 1977), “Tif’ereth” profundidade e rigor intelectual, (1978-1985), “Wandlungen” onde as novas tecnologias têm (1986) ou “Quodlibet” (1990- um papel fundamental, bem 1991), peça concebida para o como a pesquisa em torno do espaço do Coliseu de Lisboa. timbre, do ritmo, do tempo e Nunes reagrupa a maior parte

ENRIC VIVES-RUBIO do espaço, onde desenvolve das suas obras em dois grandes fascinantes geometrias sonoras. ciclos atravessados pelo mesmo A sua biografi a publicada material musical. O primeiro, que no site do IRCAM (Institut de compreende peças compostas Recherche et Coordination entre 1973 e 1977, caracteriza- Acoustique/Musique) defi ne-o se pela utilização de um como uma espécie de “virtuose” anagrama composto por quatro das ferramentas electrónicas notas. O segundo, intitulado “A na concretização de “um Criação”, iniciou-se em 1977 pensamento musical luxuriante” com “Nachtmusik” e tem como que resulta do “contraponto ponto comum o chamado “o par interactivo entre a partitura rítmico”, designação atribuída instrumental e o programa pelo próprio compositor que se informático”. aplica à frase rítmica, à métrica, Nascido em Lisboa, em 1941, aos intervalos e à espacialização. numa família sem tradições A obra de Nunes tem musicais, o apelo da música despertado o interesse de parece ter surgido quase de musicólogos como Peter Szendy, geração espontânea. Desde o Brigitte Massin ou Alain Bioteou, nascimento com perturbações que lhe consagrou a sua tese motoras, o seu problema físico de doutoramento. Entre outras parece nunca ter sido um publicações, destaca-se o livro obstáculo. Iniciou os estudos de editado em 2001 pelo Centro piano e solfejo aos 14 anos e aos Cultural Gulbenkian de Paris: 18 ingressou na Academia de “Emmanuel Nunes, compositeur Amadores de Música de Lisboa, portuguais”, de Hélène Borel, onde foi aluno de Francine Benoît. Alain Bioteau e Éric Daubresse. Estudou depois com Fernando O valor da obra de Emmanuel Lopes-Graça, frequentou a Nunes tem sido reconhecido Faculdade de Letras e, entre através de vários prémios e 1963 e 1965, seguiu os cursos distinções: ofi cial da Ordem das de Darmstadt, onde trabalhou Artes e das Letras, pelo Governo sobretudo com francês (1986), comendador da e Pierre Boulez. Em 1964, fi xou- Ordem de Sant’Iago da Espada se em Paris e, no ano seguinte, (1991), doutoramento “honoris Ensaios de foi admitido na Escola Superior causa” pela Universidade de “O Conto”, com de Música de Colónia, onde Paris VIII (1996), Prémio de libreto a partir recebeu ensinamentos de Composição da UNESCO (1999), de “O Conto da Stockhausen. Paralelamente, Prémio Pessoa (2000). Serpente demonstrou grande interesse Verde”, de pela fonética e pela fi losofi a “Acho inaceitável Goethe , que e, de regresso a Paris, em 1971 tem um (onde ainda hoje vive), obteve contar à partida potencial de o primeiro prémio de Estética com a incultura do leituras do Conservatório Nacional infitnito mas, Superior. Bolseiro da Fundação ouvinte. Não pretendo parado- Gulbenkian e do Governo francês xalmente, durante os anos 1970, afi rmou- ter ouvintes cultos também pode se progressivamente no plano ser visto como internacional, em especial em como ideal” um mero jogo lúdico

Ípsilon • Sexta-feira 25 Janeiro 2008 • 7 “Eu não tenho linhas texto e de todo o seu imaginário Sim, mas este é particularmente simbólico e, pouco a pouco, cheguei enigmático. Quais são as suas de interpretação. à conclusão de que era uma ópera, linhas de interpretação do mas não houve assim um momento texto? Não vou dar exacto em que tivesse essa revelação. Eu não tenho linhas de interpretação. Aliás, se fizesse outra ópera a partir de Não vou dar nenhuma leitura filosó- nenhuma leitura outro texto, a minha estratégia de com- fica, política ou outra. Eu sei que é posição e a maneira de abordar iriam enigmático, mas em primeiro lugar filosófica, política mudar completamente. Nesta peça, trabalho o que está lá. Eu sirvo o texto, ou outra. Eu sei que quis desenvolver um certo tipo de rela- não tenho perguntas a fazer ao texto. ção texto-música. Se fizer outra ópera, Se quero transformar “O Conto” numa é enigmático, mas em essa relação será outra. Por isso, não ópera, em primeiro lugar quero tomar seria capaz de compor uma ópera sem posse do que lá está. primeiro lugar ter acabado o libreto. No entanto, a encenadora Durante quantos anos trabalhou [Karoline Gruber], poderá trabalho o que está no libreto? direccionar o seu trabalho para Intermitentemente, a partir de 1981. uma leitura própria… lá. Eu sirvo o texto, Fez ajustamentos no libreto Está muito na moda hoje a encenação não tenho perguntas enquanto compunha? por ignorância do texto. Não é não Claro, é natural, mas fiz muito poucos. conhecer o texto, não é essa a questão. a fazer ao texto. Pequenos ajustamentos: uma palavra É ignorar o texto porque o artista faz o que é redita, que se desloca um pouco que quer. Eu nunca na vida fiz o que Se quero transformar mais para a frente ou mais para trás. quis, só faço o que posso, o que não é A única coisa foi que, mais tarde, há bem a mesma coisa. Nessa medida, não o ‘Conto’ numa ópera, seis meses, fiz a recomposição da posso fazer mais ou fazer outra coisa última cena da ópera. Todas as perso- para além de servir o texto, detalhe a em primeiro lugar nagens principais têm um cantor e um detalhe. No momento em que muda a quero tomar posse do actor, e desses principais há ainda acção muda o conteúdo musical, para alguns que deveriam ser representa- mim isso é fundamental. Deve ser o que lá está” dos por bailarinos. Esta dimensão múl- meu lado reaccionário… tipla de uma mesma personagem é um Há quem defenda, como por dos aspectos mais específicos na minha exemplo Yvette Centeno, que “O concepção do desenvolver teatral. Conto” podia ser uma segunda “O Conto”, de Goethe, tem “Flauta Mágica”… uma grande multiplicidade de Não é a única, Goethe também pensava leituras… assim em relação ao segundo “Fausto”. Não é o único… O problema é que Mozart já tinha mor- Um conto sobre tudo e sobre nada

“O Conto da Serpente Verde”, pertencem a um Velho (o Homem à volta do cadáver do Príncipe escrito por Goethe em 1795, da Lâmpada) e à sua mulher para evitar a sua decomposição e, constitui o último capítulo da (Velha). As únicas formas fi nalmente, desintegra-se numa obra “Conversas de Emigrantes de atravessar o rio nas duas série de pedras preciosas que são Alemães”. Nele se descreve direcções é através da sombra deitadas ao rio pela Velha. São as um universo fantástico repleto de um Gigante, ao pôr-do-sol, pedras preciosas que dão origem de símbolos esotéricos e ou quando a Serpente Verde se à ponte eterna e à harmonização alquímicos, que deixa em aberto transforma em ponte, ao meio-dia. das tensões entre os dois mundos. múltiplas interpretações. Um jovem Príncipe anda de um Mas n’ “O Conto da Serpente Na elaboração do libreto, lado para o outro sem sossego e há Verde” nada é o que parece e Emmanuel Nunes construiu uma dois Fogos Fátuos que espalham tudo pode ser tudo. Numa carta estrutura dramatúrgica que moedas de ouro por onde passam. de 1814, Goethe escreveu: “As inclui o prólogo “A Imaginação”, Lília tem a capacidade de matar pessoas utilizam como símbolo onde são declamadas 16 frases os seres vivos em quem toca e de da eternidade a serpente que de Goethe (que não fazem parte ressuscitar os seres petrifi cados. se fecha num círculo. Eu, pelo de “O Conto”) e dois actos, “O Todas as personagens aguardam contrário, gosto mais de a Jogo dos Elementos” e “As um “tempo de mudança” e considerar como imagem de uma Metamorfoses”. são assaltadas por uma forte temporalidade feliz.” O espaço físico de “O Conto” inquietude. Sofrem várias No prefácio da edição inclui duas margens separadas aventuras, transformações e portuguesa de “O Conto da por um rio que nenhuma ponte metamorfoses antes de encontrar Serpente Verde” (Relógio D’Água) estável liga. De um lado, está nova ordem e existência plena. João Barrento cita algumas o palácio, o jardim e o lago da No fi nal, além do inevitável das leituras mais comuns bela Lília. Aí vive também um casamento entre o Príncipe (que deste condensado de símbolos, Barqueiro, que transporta é coroado novo rei) e a bela Lília, desde a “profecia política” à viajantes para o outro lado do o gigante transforma-se em “transfi guração literária do rio mas que não tem autorização relógio de sol e as duas margens processo de maturação da para fazer o mesmo em sentido do rio fi carão eternamente obra alquímica” defendida por inverso. Na outra margem, há ligadas por uma ponte de Yvette Centeno (“A Simbologia um templo subterrâneo, debaixo pedras preciosas, resultantes Alquímica no Conto da Serpente de uma montanha, onde se do sacrifício da Serpente Verde. Verde”). Numa recensão de 1796, encontram as estátuas de três reis Também esta passa por vários o compositor Reichardt via o (Rei de Ouro, Rei de Prata e Rei de estádios de transmutação: torna- conto como espelho de “toda a Bronze), mais um quarto rei (Rei se transparente e luminescente história natural da humanidade” Misto), que é a mistura imperfeita após ter engolido as moedas e também não faltam leituras dos restantes metais. Há ainda de ouro lançadas pelos Fogos fi losófi cas ou ligadas à maçonaria uma cabana e um quintal que Fátuos, forma um círculo mágico (Goethe, era maçon e conhecia de perto a simbologia alquímica). Outra leitura comum vê nele uma resposta à Revolução Francesa e aos seus efeitos, ideia desenvolvida por Barrento, podendo entender-se como “parábola da situação histórica no momento de viragem para uma nova era, depois da Revolução e do Terror”. Surge uma nova harmonia social onde emerge o entendimento entre classes e o interesse colectivo, mas sobre a égide de um monarca esclarecido. O potencial de leituras é infi nito mas, paradoxalmente, também pode ser visto como um mero jogo lúdico: “Um conto sobre tudo e sobre nada”, dizia Goethe. C.F.

8 • Ípsilon • Sexta-feira 25 Janeiro 2008 “Goethe disse três coisas importantes. Que ‘O Conto’ não é para ser tomado alegoricamente, mas simbolicamente. Que “este ‘Conto’ é a propósito de tudo e de nada.” E a terceira, mais humorística: “‘No ‘Conto’, o que é que se conta? O conto!’”

rido. É óbvio que o “Conto” tem pontos Existe uma base, um fundo, que faz “O Conto” tem se conta? O conto!” Isto para mim é em comum com “A Flauta Mágica” mas, parte da própria natureza do conto uma base que verdade. ao mesmo tempo, tem toda uma série fantástico. Para além do facto de con- “faz parte da De que forma trabalhou a de premissas diferentes. Também o ter ou não elementos sociais, Goethe própria relação texto-música? Há música texto tem uma evolução de personagens disse desde início três coisas muito natureza do associada a personagens ou a que são muitas vezes o oposto da importantes. A primeira é que “o conto símbolos? “Flauta Mágica”. Convém não confun- ‘Conto’ não é para ser tomado alego- fantástico” Na relação texto-música é óbvio que dir. Pela minha parte, quem sou eu para ricamente, mas sim simbolicamente”. não iria usar a ideia de “leitmotiv” fazer uma segunda “Flauta Mágica”? A segunda foi: “Este ‘Conto’ é a pro- [motivo musical condutor que simbo- Há também um imaginário pósito de tudo e de nada.” E a ter- liza uma personagem, objecto, lugar, comum a muitos outros contos ceira, também de Goethe, mais ideia, estado de espírito, etc., numa fantásticos… humorística: “No ‘Conto’, o que é que obra musical] como fez Wagner. Melhor do que Wagner não se pode fazer, só se pode fazer pior, por isso é melhor não usar! [risos] Nessa pers- pectiva, o que há são estruturas meló- dicas e harmónicas, e cores orquestrais relacionadas com cada personagem separadamente. Por exemplo, se é o Velho que age, tem o seu contexto orquestral, se é a Serpente que canta, tem um outro. A cor orquestral e a har- monia que emana são obviamente diferentes. Refiro-me ao discurso har- mónico em sentido geral, mas há muito mais que isto. Por exemplo, uma maior ou menor mudança agógica tem a ver com as personagens que, em determinado momento, se encontram em diálogo. Como é que a arquitectura de “O Conto” se articula com a arquitectura da ópera? No primeiro acto, a mobilidade orques- tral em geral é maior do que no segundo acto, devido à natureza dife- rente dos diálogos. Cada acto tem um título: o primeiro é “O Jogo dos Elemen- tos” e o segundo “As Metamorfoses”. O segundo acto é menos escarpado em termos do desenrolar das vozes. Para facilitar o trabalho aos músicos e ao maestro, que já têm trabalho a mais, recorremos à tecnologia. Podíamos fazer como no “Quodlibet”, em que os instrumentos estão em vários pontos da sala, mas aqui optámos por deixar os instrumentos no mesmo sítio e é a equipa do Ircam que controla a sua projecção sonora. O som surge como se estivessem em cima, à frente, atrás, etc. Faz-se uma reconstituição sonora no espaço do teatro. A voz ocupa um lugar minoritário na sua produção anterior. Quais foram as suas principais preocupações em relação ao uso da voz na ópera? Nunca quis escrever para uma voz solista. Quando eu era novo, o que era mais praticado eram obras com uma voz. Se se fizer um catálogo das obras para voz dos anos 60 e 70 depa- ramo-nos com uma produção imensa. Mas nessa altura eu nunca senti essa necessidade. Sempre disse que só o faria se houvesse um contexto cénico, e assim aconteceu. Pode parecer estranho eu dizer isso, mas para escrever as partes vocais improvisei. Embora sempre com muita atenção ao texto e às frases. Para escrever para voz há dois elementos fundamentais: respeitar a prosódia original e saber qual é a expressão teatral que quero dar através da partitura.

Ípsilon • Sexta-feira 25 Janeiro 2008 • 9 O que é que esta música tem de especial?

Músicos, musicólogos e maestros falam do prestígio internacional de Emmanuel Nunes: qual é, afi nal, a originalidade da sua música? A sua música é velha ou nova? Será a sua ópera terrivelmente aborrecida ou surpreendentemente enérgica? Pedro Boléo

Falou em improvisação, isso “Ter um estilo sas é incomparavelmente maior e Emmanuel Nunes viveu grande “Estou convencido quer dizer que deixou elementos tenho notado também um nível geral parte da sua vida entre a França e à consideração dos intérpretes? reconhecível não é cada vez mais alto entre os alunos de a Alemanha. Esse facto biográfi co de que a música Não, eu posso improvisar, eles não! composição que vêm aos meus semi- não chega, no entanto, para explicar Referia-me à minha própria improvi- forçosamente nários. Outro ponto, esse negativo, todo o sucesso internacional, o de Emmanuel Nunes sação no processo de escrita das recorda-me uma frase do José Rodri- apoio institucional e a veneração vozes, no sentido de não haver uma sinónimo de gues Miguéis. Com um género de de que é alvo actualmente nos sobreviverá daqui regra teórica. Cada personagem, em qualidade. No que diz humor muito amargo, ele dizia: “Em circuitos mais ofi ciais da música momentos diferentes da ópera, tem terra de cegos quem tem um olho é contemporânea europeia. Herdeiro a muitos anos. um tipo de música, uma atitude meló- respeito ao estilo rei, em Portugal quem tem um olho assumido de Pierre Boulez e Tem força e está dica e rítmica semelhante. Se você vaze-o!” Eu digo outra coisa: “Em terra , Emmanuel me pede “posso fazer-lhe uma entre- pessoal, é difícil de cegos quem tem um olho só tem Nunes seguiu um caminho próprio muito presente. vista?”, pode dizê-lo com ritmo e um olho, não tem dois.” e não precisa hoje de fazer parte velocidade diferentes [exemplifica explicar. A ideia de Considera que para um jovem de nenhuma “vanguarda” estética Portugal devia estar enunciando a frase pausadamente e compositor português continua para ser respeitado por muitos e ser depois mais depressa]. Há uma lei- amor é diferente para a ser essencial a experiência de considerado por alguns como um orgulhoso deste tura minha do texto que vai desenca- cada um. Também ir para o estrangeiro? dos mais importantes compositores dear o ritmo, a velocidade e outros Não é a única. Eu de maneira nenhuma europeus. Mas também há quem homem” elementos. Isto acontece em tudo, cada compositor fui para fora para me especializar. Para rejeite a sua música, relativize a sua Peter Rundel não uso nesse ponto uma estrutura alguém se especializar tem de saber. importância como compositor e pré-fabricada, é feita “à mão”. imprime uma marca Para alguém tirar uma especialidade deteste o que ele representa. Interferiu na escolha da de medicina tem de ser médico. Fomos ouvir vozes que julgámos encenadora, da coreógrafa e na partitura, que não Mas a sua música seria capazes de nos esclarecer: qual é, do elenco ou foram opções da provavelmente diferente se não afi nal, a originalidade da música de direcção do teatro? se vê, só se ouve” tivesse saído de Portugal… Emmanuel Nunes? A sua música Como é do domínio público, nesta casa Isso é pura especulação. Quem sai é velha ou nova? Será a sua ópera de ópera houve muitos problemas de daqui pode ser músico ou não ser direcção e administração. Normal- ela inaugura outro ciclo? músico e quem fica também. Não é Peter Rundel mente, uma ópera nova que se faz pela “A Criação” terminou com a “Lichtung por sair de Portugal que alguém se primeira vez é muito problemática. III”. “Das Märchen” [“O Conto”] é ela torna compositor. É muito importante, Não é o mesmo que fazer “La Traviata”, própria um ciclo. Se houver outra mas não é a chave. aí sabe-se com o que se conta. Oito ópera, não terá nada a ver com esta. Qual é a chave? PIMENTA PAULO meses antes da estreia não havia nem Mas está a trabalhar Não há chave. elenco, nem encenador, nem nada, foi paralelamente num projecto O que torna reconhecível o um problema e tiveram de ser tomadas sobre Dostoievski, a partir de “A estilo de um compositor? Como as devidas providências. Mas devo Submissa”… se explica que em muitos casos dizer que tive muita sorte com os can- Sim, mas é outra coisa. Goethe é Goe- este seja uma marca evidente e tores, com o Remix Ensemble e com a the, Dostoievski é Dostoievski. que outras vezes não se consiga Orquestra Sinfónica Portuguesa. A Mas o compositor é o mesmo… distinguir as obras de um escolha de Peter Rundel como maestro Aí não tenho escolha, é fatal! compositor das de outro? era, para mim, indiscutível. “O Conto” vai ser transmitida É algo que acontece em todas as épo- Mas os cantores foram escolhas em directo para 14 teatros por cas. No tempo de Mozart havia cente- suas ou do actual director artístico? todo o país, provavelmente vai nas de compositores que hoje desco- Ouvi algumas gravações dos cantores, ser vista e ouvida por pessoas nhecemos, que na altura eram reco- mas foi Christoph Dammann que me que nunca foram à ópera antes. nhecidos. O grande compositor para propôs o elenco. Acha que vai ser um universo de Goethe, à parte de Mozart, que já tinha Como enquadra esta ópera em fácil acesso? Ou será um choque? morrido, era um alemão seu amigo, função do seu percurso anterior? A compreensão e a reacção do Carl Friedrich Zelter, de que hoje nin- Uma vez que o ciclo “A Criação” público preocupam-no? guém fala. Goethe ignorava Beethoven está concluído, pode dizer-se que Será certamente um choque para cer- e Schubert. Antes de responder à sua tas pessoas que vêm regularmente à pergunta, ou melhor, de fazer um ópera, como não será um choque para comentário, já que é uma pergunta “Como sou ‘turista’, outras certas pessoas que nunca vêm sem resposta, devo fazer um parênte- à ópera. Todas as combinações são sis: também acontece reconhecerem- não me compete possíveis. Mas o facto de haver uma se imediatamente traços ou tiques de dizer o que está bem transmissão em 14 teatros espalhados linguagem de um compositor sem que pelo país é, para mim, uma acção este tenha qualidade. Ter um estilo ou mal! Mas de há extremamente importante de um reconhecível não é forçosamente sinó- ponto de vista de cultura social. nimo de qualidade. No que diz res- 20 anos para cá, Vive em Paris desde 1964 mas peito ao estilo pessoal, é difícil expli- vem a Portugal regularmente. A car. Por exemplo, a ideia de amor é a quantidade de vida musical portuguesa mudou diferente para cada um de nós. Não muito nos últimos anos? Qual é existe um conceito único e abstracto música a perspectiva de quem está no igual para toda a gente. É algo muito contemporânea que exterior? pessoal. Também cada compositor Como sou “turista”, não me compete imprime uma marca pessoal na par- se toca, boa ou má, a mim dizer o que está bem ou mal! titura, que não se vê, só se ouve. Mas Mas de há 20 anos para cá, a possibi- o importante é a qualidade de cada não tem nada a ver lidade de conhecer o que se passa, a momento, a qualidade de feitura, mas quantidade de música contemporânea não de uma feitura tipo receita. O mais com a época da que se toca, boa ou má, não tem nada importante é a qualidade de cada a ver com a época da minha juventude. momento, não são as ideias. De boas minha juventude” É preto e branco. Hoje, o acesso às coi- ideias está o inferno cheio!

10 • Ípsilon • Sexta-feira 25 Janeiro 2008 Alexandre Delgado Mas o reconhecimento no caso de Emmanuel Nunes é porque a música dele é o que é. Não tem

PEDRO CUNHA PEDRO cunhas. Teve um reconhecimento progressivo.” Para Alexandre Delgado “a música contemporânea continua a ser um gueto” e, por isso, a questão é apenas a de “saber entrar” no círculo. Segundo ele, Nunes conseguiu-o sobretudo graças à protecção da Fundação Gulbenkian. Sobre a música dele, diz sucintamente: “Estou no direito de odiar. Prefi ro música pimba.” E acrescenta com ácida ironia: “Nesse dia tenciono estar a quilómetros do São Carlos. Só por masoquismo é que ia aguentar um espectáculo de cinco horas com música de Emmanuel Nunes”, diz. João Rafael tem outra ideia desta estreia mundial. Para ele “Conto” será “um marco na história da ópera”, e compara-a à importância da ópera “Wozzeck”, de Berg, no século XX. terrivelmente aborrecida ou “Ele vai cair Mas estará esta discussão aberta surpreendentemente enérgica? apenas a maestros, especialistas A sua obra é um mero exercício no esquecimento da música contemporânea ou da conceptual ou sente-se de facto ópera? Quem conhece afi nal a alguma coisa do que nos chega aos total, vai ser varrido música de Emmanuel Nunes em ouvidos? Ou resumindo: o que é que Portugal? João Rafael não pensa a sua música tem de especial? na voragem” que a música de Emmanuel Nunes Alexandre Delgado seja pouco conhecida em Portugal: Labiríntica “Claro que não é conhecido como “Conheço bem há vários anos a o Marco Paulo. Mas a música música de Emmanuel Nunes”, diz dele sempre foi tocada cá, na o musicólogo Philippe Albéra, Gulbenkian.” ligado há muito a um dos mais De facto, desde os anos conceituados grupos de música 1970 que as suas obras (várias contemporânea franceses, o encomendadas pela Gulbenkian) Contrechamps. Albéra gosta são tocadas com alguma especialmente das obras de regularidade em Portugal. Mas Emmanuel Nunes escritas há hoje há mais grupos de música mais de uma década: “Sou crítico contemporânea e orquestras, por das obras em que usa electrónica todo o mundo, a fazê-lo. E como ao vivo, em que quer organizar fi cou conhecido Emmanuel Nunes o espaço como faz com o som – o enquanto fi gura pública? Isso resultado é música mais rígida do parece ser mais recente: “Julgo que que as composições de há 20 anos”, foi sobretudo depois do Prémio diz o musicólogo. Para ele, a obra Pessoa” (no ano 2000), diz João mais conseguida do compositor Rafael, que destaca também outros é “Quodlibet”, de 1991. Albéra prémios atribuídos ao compositor, considera a música de Emmanuel Nunes, ele naturalmente “absorveu incluindo uma distinção da Nunes muito pessoal e forte, e usa o aquilo que aprendeu. Uns UNESCO. termo “labiríntica” para a descrever: aprendem técnicas e copiam. Mas Alexandre Delgado diz que “É uma música estranha e poética. ele não.” Também o maestro Peter Nunes foi “sacralizado e enlevado”, Perdemo-nos como num labirinto, Rundel, que começou a tocar a e critica em concreto os elevados mas de uma forma interessante. música de Nunes na Alemanha custos da ópera “O Conto” que, É imediata e ao mesmo tempo quando era um jovem violinista segundo ele, davam para “um ano enigmática”. há mais de 20 anos e hoje é um dos de uma companhia de ópera” e Eric Daubresse, compositor e maestros mais “autorizados” (pelo representam “mais dinheiro do que responsável pela electrónica ao próprio compositor) a dirigir as para a Tetralogia de Wagner” (que o vivo de “O Conto” e colaborador suas obras orquestrais, destaca a São Carlos tem vindo a apresentar). de Emmanuel Nunes desde os originalidade da sua linguagem Para Alexandre Delgado, Emmanuel anos 1990, destaca na música do musical. Rundel irá dirigir, no Nunes é um “sub-Boulez” ou, em compositor português “um notável Teatro de São Carlos, a gigantesca alternativa, “um Lully”, comparando- domínio do tempo e a riqueza partitura desta ópera. “Estou o ao famoso compositor da corte do seu trabalho com os timbres. convencido de que a música de de Luis XIV. Mas vaticina: “Ele vai É uma música onde há muitas Emmanuel Nunes sobreviverá pagar a factura e vai ser brutal. Vai cores”. O especialista em música daqui a muitos anos. Tem força e cair no esquecimento total, vai ser electrónica e seu colaborador está muito presente. Portugal devia varrido na voragem.” Delgado não regular no IRCAM (Institut estar orgulhoso deste homem.” acusa apenas o compositor e a sua de Recherche et Coordination música. Fala-nos também daquilo Acoustique/Musique, em Paris), Reconhecimento? a que chama “a falta de coragem onde Nunes criou “Lichtung” (I e II), Quem não pensa assim é Alexandre das pessoas”. Segundo ele, “99 em explica que “O Conto” não explora Delgado, que considera a música 100 assumiriam que abominam as possibilidades de espacialização de Emmanuel Nunes “execrável”. aquela música. Mas preferem dizer da música que Nunes desenvolveu Alexandre Delgado, músico, que é muito interessante.” Peter noutras obras. Para Daubresse, compositor e crítico musical, não Rundel, admirador da música de a música de Emmanuel Nunes é poupa nos adjectivos e diz: “Nunes Emmanuel Nunes, pensa que, “rigorosa e muito construída mas representa tudo o que detesto na pelo contrário, a música de Nunes também muito expressiva”. Mas arte musical – é música conceptual pode interessar verdadeiramente fala-nos também da importância e horrenda. Dentro de uma certa mesmo aqueles que nunca tiveram de Nunes como professor no vanguarda acham que ele é nenhuma espécie de formação Conservatório Superior de Paris: extraordinário. Mas é-o apenas num musical: “Mesmo sem ‘background’ “Há uma geração de compositores meio muito restrito.” Para Delgado, o ou conhecimentos musicais, se se é que aprenderam coisas com ele. sucesso internacional de Emmanuel curioso e aberto pode-se sentir uma Não se trata de uma escola, mas de Nunes “não é um sucesso junto qualidade e uma força energética na um conjunto de compositores que dos melómanos. Mas junto de sua música”. seguiram a sua própria estética”, algumas pessoas fundamentais. “O Conto” vai confi rmar ou tal como o próprio Emmanuel É preciso ter os amigos certos nos desmentir esta força, energia e Nunes seguiu o seu rumo a partir sítios certos.” João Rafael discorda: originalidade que o maestro atribui do que aprendeu com Boulez e “Uma coisa é o êxito, que tem a ver à música difícil e controversa de Stockhausen. com contactos, com a imprensa Emmanuel Nunes? Segundo João Rafael, compositor e com os media e não com uma Quem puder ouvir dirá de sua e estudioso da obra de Emmanuel apreciação de qualidade objectiva. justiça.

Ípsilon • Sexta-feira 25 Janeiro 2008 • 11