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Tunico Amancio Professor associado do curso de Cinema da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador e curta-metragista.

Marcel Camus ou o Triste Prévert dos Trópicos

Marcel Camus fez três filmes de longa-metragem Marcel Camus made three feature films in no Brasil e com um deles – Orfeu do carnaval – and one of them – Orfeu do carnaval – ganhou fama internacional imediata. Seus outros made him instantly famous worldwide, while filmes passaram despercebidos do público e his other movies remained unnoticed by both da crítica. Taxados de folclóricos, exóticos, the audience and critics. Labeled as folkloric, ingênuos, românticos e alienados, trouxeram uma exotic, naive, romantic and alienated, they brought imagem do Brasil cheia de afeto e curiosidade, e us an image about Brazil full of affection and valem como testemunho de uma época e de um curiosity, and are a testimonial of an era and a olhar estrangeiro. foreigner’s look. Palavras-chave: olhar estrangeiro; Orfeu do carnaval; Keywords: foreign look; Orfeu do carnaval; Marcel Camus. Marcel Camus.

omment être poète si message humaniste, briguant les lauriers on ne l’est pas? Telle est (chacun sa vérité) de Saint-Éxupery, il four- “C la quadrature du cercle nit un cinéma confiné de décors exotiques, qu’impose à cet aventurier appliqué le mais n’y déroule que de monotones péri- goût qu’ont des sambas les spectateurs péties de cartes postales: un triste Prévert européens; partagé entre le feuilleton et le sous les tropiques.”1

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Foi com esta comparação inesperada com junto aos jovens realizadores, ainda na ro um filme que era, de fato, francês. Só o cultuado poeta e roteirista francês2 que faixa dos vinte anos. Nascera em 1912, mais à frente a matéria vai falar em co- a revista Cahiers du Cinéma de dezembro em Chappes, e, além de professor de produção franco-ítalo-brasileira, restabele- de 19623 celebra Marcel Camus entre os desenho, tinha sido pintor e escultor. Du- cendo a verdade. A notícia é, entretanto, 162 novos cineastas franceses. Uma má rante a guerra, estivera em um campo de saudada com entusiasmo. Fala-se da sua vontade que tinha sido posta em cena prisioneiros, onde se dedicara ao teatro. filiação teatral e da lenda grega adaptada desde que, em 1959, arrebatara com Depois, optou pelo cinema e trabalhou ao universo das escolas de samba. Fala-se Orfeu do carnaval (Orfeu negro para os como assistente de Henri Decoin, de que Camus, já prevendo a difusão mun- franceses) a Palma de Ouro a François Georges Rouquier, de Jacques Becquer e dial da fita, achou interessante simplificar Truffaut e seu Os incompreendidos, num até mesmo de Luis Buñuel, crescendo na ao máximo o enredo, para que ele fosse momento crucial para o lançamento da carreira, nos contatos e na competência. acessível a todos. E também que o mesmo nouvelle vague. Camus, que tinha sido, Camus achou indispensável aproveitar o Um dado fundamental no desenvolvimento até aquele momento, considerado um cenário excepcional do Rio, substituindo o de Marcel Camus foi sua adesão à maço- dos neófitos mais respeitados (pela ida- lirismo verbal do poeta Vinícius de Moraes naria desde os anos de 1930. De lá saíram de e por sua experiência profissional) na peça teatral por um lirismo de imagens, os contatos e o interesse pelos mitos, de do recém-aparecido movimento, passa que melhor se adaptaria à expressão cine- que Orfeu do carnaval será caudatário, matográfica. Fala-se do método de seleção a ser um inimigo a quem se deve evitar. assim como os traços da fraternidade e dos atores, todos brasileiros, à exceção de Os Cahiers, a trincheira midiática mais das ideias positivistas que vão alimentar e , e todos são aclamados poderosa da nouvelle vague, tão forte regular seu processo de criação. Princípios com efusivos adjetivos, a brilhante, a bela, quanto os filmes, serão implacáveis com essencialmente humanistas, representa- o campeão. ele desde então.4 Porque explicitarão dos de um modo naïf, seguramente, mas uma rejeição que vai ser determinante na baseados em uma busca de compreensão acolhida aos novos trabalhos de Camus, universal. Este é o traço que vai marcar sob a alegação de que ele não foi capaz Marcel Camus como um cineasta singular, de cumprir as promessas contidas em amado e respeitado por todos os colegas, seu filme de estreia, La mort en fraude apesar das divergências quanto à sua (O rio do arrozal sangrento, 1957), com obra. Mas, ainda assim, um triste poeta sua original abordagem do colonialismo dos trópicos! na Indochina, baseado em um livro de

Jean Hougron, que com tensão e drama, O samba de Orfeu em envolvente preto e branco, chamara m 16 de maio de 1959, O Globo a atenção para aquele diretor já maduro. anunciava que Orfeu do carna- Camus já tinha 45 anos quando estreou E val, filme brasileiro falado em na direção e já havia transposto toda a português, havia ganhado a Palma de rígida hierarquia profissional da atividade Ouro em Cannes. O conceituado jornal, cinematográfica francesa, o que também na euforia da comemoração da vitória, O presidente Juscelino Kubitschek acompanhado de Marcel Camus (à esquerda), lhe emprestava um respeitoso prestígio cometia o deslize de considerar brasilei- Marpessa Dawn e (Orfeu e Eurídice) e Vinícius de Moraes, 1959

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junto aos jovens realizadores, ainda na ro um filme que era, de fato, francês. Só Finalmente, a matéria vai colocar o filme faixa dos vinte anos. Nascera em 1912, mais à frente a matéria vai falar em co- em perspectiva com os outros premiados, em Chappes, e, além de professor de produção franco-ítalo-brasileira, restabele- valorizando o troféu recebido, ao lado de desenho, tinha sido pintor e escultor. Du- cendo a verdade. A notícia é, entretanto, Luis Buñuel, de Simone Signoret, de Orson rante a guerra, estivera em um campo de saudada com entusiasmo. Fala-se da sua Welles, Bradford Dillman e Dean Stockwell, prisioneiros, onde se dedicara ao teatro. filiação teatral e da lenda grega adaptada além de François Truffaut. Depois, optou pelo cinema e trabalhou ao universo das escolas de samba. Fala-se O Brasil chegara ao Olimpo cinematográ- como assistente de Henri Decoin, de que Camus, já prevendo a difusão mun- fico, agora com a Palma de Ouro, suplan- Georges Rouquier, de Jacques Becquer e dial da fita, achou interessante simplificar tando em prestígio o prêmio atribuído em até mesmo de Luis Buñuel, crescendo na ao máximo o enredo, para que ele fosse 1953 a O cangaceiro, de Lima Barreto, carreira, nos contatos e na competência. acessível a todos. E também que o mesmo melhor filme de aventuras. Por conta de Camus achou indispensável aproveitar o Um dado fundamental no desenvolvimento sua projeção internacional, o filme de cenário excepcional do Rio, substituindo o de Marcel Camus foi sua adesão à maço- Marcel Camus é lembrado até hoje como lirismo verbal do poeta Vinícius de Moraes naria desde os anos de 1930. De lá saíram um dos mais apaixonados – para o bem e na peça teatral por um lirismo de imagens, os contatos e o interesse pelos mitos, de para o mal – olhares no cinema estrangeiro que melhor se adaptaria à expressão cine- que Orfeu do carnaval será caudatário, sobre a realidade brasileira. matográfica. Fala-se do método de seleção assim como os traços da fraternidade e dos atores, todos brasileiros, à exceção de Nele vai sobressair a paisagem carioca, das ideias positivistas que vão alimentar e Marpessa Dawn, e todos são aclamados e, nela, a implicação de uma comunidade regular seu processo de criação. Princípios com efusivos adjetivos, a brilhante, a bela, negra disposta em uma sociedade bran- essencialmente humanistas, representa- o campeão. ca sem conflitos raciais, uma população dos de um modo naïf, seguramente, mas baseados em uma busca de compreensão universal. Este é o traço que vai marcar Marcel Camus como um cineasta singular, amado e respeitado por todos os colegas, apesar das divergências quanto à sua obra. Mas, ainda assim, um triste poeta dos trópicos!

O samba de Orfeu m 16 de maio de 1959, O Globo anunciava que Orfeu do carna- E val, filme brasileiro falado em português, havia ganhado a Palma de Ouro em Cannes. O conceituado jornal, na euforia da comemoração da vitória, O presidente Juscelino Kubitschek acompanhado de Marcel Camus (à esquerda), cometia o deslize de considerar brasilei- Marpessa Dawn e Breno Mello (Orfeu e Eurídice) e Vinícius de Moraes, 1959

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tomada pela música, uma cidade solar e Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno são rarefeitos nos filmes. Porque ao invés pujante, com os traços de uma moderni- Barreto, feito em 1976, e Tenda dos mi- de uma fricção com a realidade ou grandes dade ainda incipiente. E, atravessando a lagres, por Nelson Pereira dos Santos, em voos artísticos, o que temos são obras trama, uma clássica história de amor. Es- 1977, obras também contemporâneas do cheias de afeto, de sensibilidade. ses valores, que de cara fizeram a alegria estrondoso sucesso popular da telenovela São, principalmente, filmes estrangeiros de milhares de espectadores por todo o Gabriela, dirigida por Walter G. Durst e marcados por uma tomada de posse (prise mundo, escondem outras possibilidades exibida pela TV Globo em 1975. de possession), em oposição aos filmes de de leitura e outras conformações imagi- Nos filmes de Camus, mais que o indis- tomada de vista (prise de vue), em que as nárias a partir do que eu já chamei de farçável exotismo e uma tímida mise-en- coisas são observadas apenas em sua su- efeito-afetivo Brasil – uma prerrogativa scène, resultado de uma também obri- perfície. Porque Marcel Camus quer tomar dos três filmes que Marcel Camus reali- gatória mistura de atores profissionais e posse do imaginário brasileiro, mergulhan- zou aqui entre nós. Orfeu do Carnaval, não atores, sobressai um modo generoso do, profundamente, em suas correntes de 1959, chave de seu sucesso interna- de olhar nossas gentes, seus costumes e imaginárias, e isto vai criar, ao menos no cional, Os bandeirantes, de 1960, uma suas crenças, independentemente do seu caso de Orfeu do carnaval, um conjunto de história original de aventura, um road grau de aproximação à realidade social ou imagens e sensações cinematográficas das movie pelo Norte e Nordeste do Brasil e pela inexistência de inovação da forma mais duráveis sobre o Brasil, atravessando um retumbante fracasso de crítica e de cinematográfica, usada por ele na regra décadas e se sustentando até hoje. público, e Otália da Bahia, filmado em e no cânone. Ambos os elementos, uma Certos críticos brasileiros foram intransi- 1975, na mesma conjuntura em que o ci- perspectiva realista de aproximação ao gentes com o francês que ousara vir aqui nema brasileiro redescobria a Bahia com social ou a expressão estética renovadora, e filmar nossa cultura: como ele podia querer mergulhar diretamente em nossa realidade e dizer: isto é o Brasil? Suprema arrogância, não existe nenhum personagem francês na história, em cujo olhar pudesse ser compensada a legitimidade dessa abor- dagem. Essa consideração ganha outros tons e argumentos como o que reclama um Clauder Rocha, irado, no suplemento do- minical do Jornal do Brasil,5 pretendendo desmascarar “Orfeu, um filme ruim tirado de uma peça ruim e falsa de Vinícius”. Ele arremata: “Acho que um cineasta trabalha melhor em sua terra, no ambiente que conhece”. Esse Clauder, que, certamente por um erro tipográfico, esconde um nome famoso, não por acaso baiano, opõe-se ao Em cena, Marpessa Dawn (Eurídice) e Breno Mello (Orfeu), intérpretes centrais do filme Orfeu do carnaval, de Marcel Camus, 1959 filme, podemos imaginar, porque antes de

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Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno são rarefeitos nos filmes. Porque ao invés qualquer coisa ele representa tudo aquilo Barreto, feito em 1976, e Tenda dos mi- de uma fricção com a realidade ou grandes que os cineastas brasileiros, engajando-se lagres, por Nelson Pereira dos Santos, em voos artísticos, o que temos são obras na luta pela descoberta de um outro Brasil, 1977, obras também contemporâneas do cheias de afeto, de sensibilidade. não querem retomar naquele momento, estrondoso sucesso popular da telenovela na altura de 1959, preocupados com seu São, principalmente, filmes estrangeiros Gabriela, dirigida por Walter G. Durst e projeto estético-político de independência marcados por uma tomada de posse (prise exibida pela TV Globo em 1975. cultural. Se até então tínhamos sido parca- de possession), em oposição aos filmes de mente mostrados pelo cinema estrangeiro, Nos filmes de Camus, mais que o indis- tomada de vista (prise de vue), em que as farçável exotismo e uma tímida mise-en- coisas são observadas apenas em sua su- antes que isto se transformasse num mode- scène, resultado de uma também obri- perfície. Porque Marcel Camus quer tomar lo, precisávamos recuperar nossa imagem, gatória mistura de atores profissionais e posse do imaginário brasileiro, mergulhan- tão “manipulada” durante os séculos de não atores, sobressai um modo generoso do, profundamente, em suas correntes colonização. Não é de admirar que, qua- de olhar nossas gentes, seus costumes e imaginárias, e isto vai criar, ao menos no se quarenta anos depois do filme, já em suas crenças, independentemente do seu caso de Orfeu do carnaval, um conjunto de 1997, outro baiano famoso, dessa vez o grau de aproximação à realidade social ou imagens e sensações cinematográficas das cantor e compositor Caetano Veloso, em pela inexistência de inovação da forma mais duráveis sobre o Brasil, atravessando seu Verdade tropical, confesse que o filme cinematográfica, usada por ele na regra décadas e se sustentando até hoje. o envergonhara à época do lançamento. e no cânone. Ambos os elementos, uma Que tinha sido difícil entender o que levara Certos críticos brasileiros foram intransi- perspectiva realista de aproximação ao os melhores músicos do Brasil a produzir gentes com o francês que ousara vir aqui social ou a expressão estética renovadora, verdadeiras obras-primas em canções que e filmar nossa cultura: como ele podia ornaram e dignificaram uma tal enganação. querer mergulhar diretamente em nossa Embora ele reconheça que o fascínio que realidade e dizer: isto é o Brasil? Suprema se desprendia da obra funcionasse bem arrogância, não existe nenhum personagem com os estrangeiros, que se comoviam francês na história, em cujo olhar pudesse com a atualização do mito grego e com a ser compensada a legitimidade dessa abor- revelação do país paradisíaco onde aquela dagem. Essa consideração ganha outros história era encenada. tons e argumentos como o que reclama um Clauder Rocha, irado, no suplemento do- Pois surpresa maior teve Caetano quan- minical do Jornal do Brasil,5 pretendendo do, em seu exílio londrino, em 1969, “os desmascarar “Orfeu, um filme ruim tirado executivos de gravadoras, os hippies e de uma peça ruim e falsa de Vinícius”. Ele os intelectuais, todos, sem exceção, se arremata: “Acho que um cineasta trabalha referiam entusiasticamente a Orfeu do car- melhor em sua terra, no ambiente que naval”. E, finalmente, ele confessa, ainda conhece”. Esse Clauder, que, certamente hoje não param de se repetir as narrativas por um erro tipográfico, esconde um nome de descobertas do Brasil por estrangeiros famoso, não por acaso baiano, opõe-se ao (cantores de rock, romancistas de primeira Em cena, Marpessa Dawn (Eurídice) e Breno Mello (Orfeu), intérpretes centrais do filme Orfeu do carnaval, de Marcel Camus, 1959 filme, podemos imaginar, porque antes de linha, sociólogos franceses, atrizes debu-

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tantes), todos marcados pelo inesquecível mãe, diz ele, “era a garota com aquele Do Rio à Bahia filme de Marcel Camus.6 filme na cabeça. Foi como se abrisse uma o Brasil, por motivos diversos, janela no seu coração”. Mais melodramá- Mais recentemente, a lista de admiradores Camus foi buscar sustentação, tico, impossível! Mais terno impossível. foi engordada com o depoimento do atual N nas extremidades temporais presidente dos Estados Unidos, Barack Rendidos às evidências, os brasileiros têm de sua carreira brasileira, em textos le- Obama, como ele narra no livro A origem de se contentar com a incompreensão do gitimados por autores de reconhecida dos meus sonhos.7 Filho de uma mulher porquê de tanto sucesso do filme, um car- popularidade. De um lado, por Orfeu do branca, nascida no reacionário Kansas, tão de visitas que marcou várias gerações carnaval, construído a partir da peça Orfeu com um negro do Quênia, ele viu o filme de espectadores do mundo inteiro e que só da Conceição de Vinícius de Moraes. E de com sua mãe. Para ela, Orfeu negro foi o agora começa a ser esquecido pelo tempo. outro, por Otália da Bahia, baseado no li- primeiro filme estrangeiro que tinha visto Até porque suas estrelas começam a se vro Os pastores da noite de Jorge Amado, na vida e uma das coisas mais lindas que apagar. Primeiro foi Camus, falecido em com diálogos do próprio escritor baiano. já vira. Ele detestou o filme, como bom janeiro de 1982 em . E no ano passa- Dele participaram Grande Otelo, Antonio militante do movimento negro americano, do, numa triste coincidência, apagaram-se Pitanga, Jofre Soares, Mira Teixeira e Zeni formado na Universidade de Colúmbia, as luzes para Breno Mello, nosso atleta do Pereira, sob uma trilha sonora composta porque achou os negros brasileiros infan- futebol que virou Orfeu, falecido em 14 de pela dupla Antonio Carlos e Jocafi, inter- tilizados. Mas, quando foi sugerir a ela que julho, e para a atriz Marpessa Dawn, Eurí- pretada por Maria Creuza, para narrar a saíssem da sala, “viu em seu olhar hipno- dice, falecida quarenta e um dias depois, trajetória da prostituta Otália aos castelos tizado toda uma história de vida”. Minha em 25 de agosto. da Bahia e o que ela provoca no destino de vários homens.

Aqui nos interessa, para além dos con- flitos sentimentais dos personagens de Martin/Otália, ou mesmo de Curió/Marial- va, a história que envolve Miguel Charuto e Jesuíno Galo Doido, o velho sábio e o chefe de polícia. Uma relação de atrito que desemboca em uma perseguição que resulta na morte deste último, no momen- to de consolidação da ocupação legal do morro do Mata Gato e da última investida das forças da lei contra seus ocupantes. Estamos longe do romantismo de Orfeu: a tragédia que se instala no morro não é de natureza individual, e sim coletiva, e motivada socialmente. A resistência é insana, criativa e constante. E ela envolve Marcel Camus e Breno Mello, 1959 toda a comunidade, das moças e velhas do

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mãe, diz ele, “era a garota com aquele Do Rio à Bahia castelo de Tibéria, às crianças arregimen- filme na cabeça. Foi como se abrisse uma tadas como franco-atiradores, cabendo o Brasil, por motivos diversos, janela no seu coração”. Mais melodramá- aos homens a linha de frente das batalhas Camus foi buscar sustentação, tico, impossível! Mais terno impossível. campais. Para reconquistar o terreno ocu- nas extremidades temporais N pado, a polícia usa de toda a sua força e de Rendidos às evidências, os brasileiros têm de sua carreira brasileira, em textos le- toda a sua astúcia. A contraocupação vai de se contentar com a incompreensão do gitimados por autores de reconhecida fazer um herói do povo, em contraponto porquê de tanto sucesso do filme, um car- popularidade. De um lado, por Orfeu do à heroína romântica morta em sua quase tão de visitas que marcou várias gerações carnaval, construído a partir da peça Orfeu virgindade. Assim como vai propiciar um de espectadores do mundo inteiro e que só da Conceição de Vinícius de Moraes. E de gesto populista do governador cedendo agora começa a ser esquecido pelo tempo. outro, por Otália da Bahia, baseado no li- às reivindicações populares e doando Até porque suas estrelas começam a se vro Os pastores da noite de Jorge Amado, o morro à sua população, concluindo a apagar. Primeiro foi Camus, falecido em com diálogos do próprio escritor baiano. narrativa. Tudo se passa no terreno da janeiro de 1982 em Paris. E no ano passa- Dele participaram Grande Otelo, Antonio luta contra o poder, sem a intermediação do, numa triste coincidência, apagaram-se Pitanga, Jofre Soares, Mira Teixeira e Zeni de forças espirituais, que, por outro lado, as luzes para Breno Mello, nosso atleta do Pereira, sob uma trilha sonora composta interferiram em vários outros conflitos. A futebol que virou Orfeu, falecido em 14 de pela dupla Antonio Carlos e Jocafi, inter- batalha pela posse da terra permanece julho, e para a atriz Marpessa Dawn, Eurí- pretada por Maria Creuza, para narrar a no terreno das necessidades humanas, dice, falecida quarenta e um dias depois, trajetória da prostituta Otália aos castelos afastada qualquer intervenção do divi- em 25 de agosto. da Bahia e o que ela provoca no destino no. Um leve tom de comédia e de farsa de vários homens. ameniza a situação, até que a morte de Aqui nos interessa, para além dos con- Jesuíno, o líder do grupo, interrompe o flitos sentimentais dos personagens de espetáculo, colocando em evidência a Martin/Otália, ou mesmo de Curió/Marial- rigidez da estrutura da propriedade da ter- va, a história que envolve Miguel Charuto ra no interior da narrativa. A apropriação e Jesuíno Galo Doido, o velho sábio e o dessa história de Jorge Amado por Camus chefe de polícia. Uma relação de atrito está perfeitamente sintonizada com as que desemboca em uma perseguição que circunstâncias históricas da expansão ho- resulta na morte deste último, no momen- rizontal de Salvador na década de 1970, to de consolidação da ocupação legal do causada pela evolução dos transportes, morro do Mata Gato e da última investida o desenvolvimento do centro urbano, a das forças da lei contra seus ocupantes. forte especulação imobiliária. Motivos Estamos longe do romantismo de Orfeu: da intensificação da ocupação urbana, a tragédia que se instala no morro não com conjuntos habitacionais ao lado de é de natureza individual, e sim coletiva, loteamentos legais, em alterações que e motivada socialmente. A resistência é vão renovar a cidade do ponto de vista insana, criativa e constante. E ela envolve de sua configuração estético-espacial, Marcel Camus e Breno Mello, 1959 toda a comunidade, das moças e velhas do demográfica e ocupacional.

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Em que pesem as distâncias temporais, es- sua adaptação aos morros cariocas. O per- tos imediatamente em seguida, enquanto tilísticas e dramáticas que separam as duas curso do herói é solitário, o ponto de vista busca imagens originais, quase docu- obras, algumas marcas de um temário é único e ele carrega a trama com o peso mentárias.8 Entretanto, Camus trafega comum as aproximam, sendo a primeira da tragédia, assentada no transe pagão co- na contramão da viagem iniciática que o delas a localização da ação, um território letivo. Já em Otália, a trama da heroína se Cinema Novo vai empreender ao Norte- de exclusão da sociedade baiana ou cario- dilui no seio de questões mais complexas, Nordeste, e busca a luz e a cor brasilei- ca. De um lado a favela, de outro as terras como a invasão de terras, o afrontamen- ras que sejam associadas ao espetáculo ocupadas na periferia. Em ambas, o núcleo to policial e o compartilhamento quase cinematográfico, feito para as grandes dramático principal é uma comunidade ne- clandestino das ações religiosas. Ambos plateias. Já os cineastas brasileiros vão gra, tratada de um ponto de vista interno os filmes trabalham com o elemento po- procurar identificar as imagens dessa a elas mesmas. Ou seja, sem a interme- pular folclorizado, cristalizando imagens e mesma terra com seu projeto político e diação de um personagem estrangeiro, sons que repetem velhos chavões de uma estético de autoafirmação e de mudança. que pudesse filtrar os motivos brasileiros sociedade miscigenada e aberta para a No lugar onde os brasileiros vão destecer para outras plateias. Cabe ressaltar que os sensualidade, na realização de uma velha as tramas conhecidas da dramaturgia dois principais motivos explorados são de hegemônica americana, Camus vai ope- utopia de solidariedade e homogeneidade natureza profundamente exótica para um rar no já asfaltado caminho dos filmes social. Orfeu e Otália se complementam, não iniciado: o carnaval e o candomblé. de aventuras, em um périplo que parte na medida em que, como heróis e heroínas E Camus os trata incorporados à trama, da Amazônia e alcança a capital federal clássicos, deixam-se imolar para expiar as ainda que sem fugir das perspectivas já recém-construída. Camus vai inscrever culpas da sociedade injusta que os gerou. presentes nas obras originais, de onde os o seu Os bandeirantes na perspectiva

filmes foram criados. É o carnaval cario- Cortando os Brasis de compreensão de uma nação que se ca o terreno onde se movimenta a morte re-forma. O filme cria um eixo novo de este ponto, convém apresentar branca, é o candomblé baiano onde se questões para o cineasta, que busca coop- a viagem mais radical de Camus movimenta o espírito rebelde africano. tar essas imagens para sua trama desgar- no Brasil, Os bandeirantes, seu Em ambos os filmes, ainda, a ressonância N rada. E se tais imagens não propõem de périplo aventureiro realizado em 1960 e trágica embala o enredo, seja no desfecho imediato uma multiplicidade de sentidos, produzido entre os dois filmes citados. da história de Orfeu, morto abraçado à sua elas vão interessar enquanto testemunho Produção bem abonada por financiamento amada, seja na jovem prostituta que se de um programa de produção imaginária francês, resultado do sucesso internacio- deixa morrer de amor, porque não cede à estabelecido por um olhar melancólico e nal de Orfeu do carnaval, o filme é um sedução de seu amado. E as comunidades quase documental de um Brasil selvagem, road movie insólito, que desvela um certo negras são um reforço coral ao desenvol- sensual e pré-capitalista. Brasil àquela altura pouco presente no te- vimento dramático da história. E, sobretudo, tais imagens vão estar a chnicolor das telas, adornado por diálogos O recorte social que os filmes promovem serviço da idealização de uma história em de Rubem Braga. é sintomático do modelo de construção que os personagens principais são estran- adotado, que se sofistica entre uma e Fruto da associação com o documenta- geiros. O filtro dramático e o ponto de vista outra produção, no decorrer dos 16 anos rista Jean Manzon, o filme percorre uma narrativo agora se instituem claramente passados entre elas. Orfeu promove a trilha geográfica simbólica dos filmes enquanto mediação. Camus assume essa releitura de um mito clássico por meio de brasileiros mais engajados que serão fei- distância com relação ao objeto, diferente-

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sua adaptação aos morros cariocas. O per- tos imediatamente em seguida, enquanto mente das tentativas de imersão imparcial curso do herói é solitário, o ponto de vista busca imagens originais, quase docu- proporcionadas pelos outros dois filmes. é único e ele carrega a trama com o peso mentárias.8 Entretanto, Camus trafega Trata-se da história de uma perseguição da tragédia, assentada no transe pagão co- na contramão da viagem iniciática que o para acerto de contas entre dois europeus. letivo. Já em Otália, a trama da heroína se Cinema Novo vai empreender ao Norte- Não por acaso, o filme narra o drama de Nordeste, e busca a luz e a cor brasilei- dilui no seio de questões mais complexas, um francês e de um alemão perdidos no ras que sejam associadas ao espetáculo como a invasão de terras, o afrontamen- Norte-Nordeste brasileiro, o palco dos cinematográfico, feito para as grandes to policial e o compartilhamento quase conflitos entre essas duas nacionalidades plateias. Já os cineastas brasileiros vão clandestino das ações religiosas. Ambos deslocado sem muita sutileza, interagindo procurar identificar as imagens dessa os filmes trabalham com o elemento po- com a paisagem e com os personagens mesma terra com seu projeto político e pular folclorizado, cristalizando imagens e nativos. sons que repetem velhos chavões de uma estético de autoafirmação e de mudança. Camus enfim se aproxima neste roteiro, sociedade miscigenada e aberta para a No lugar onde os brasileiros vão destecer feito com a colaboração do conterrâneo sensualidade, na realização de uma velha as tramas conhecidas da dramaturgia hegemônica americana, Camus vai ope- Jacques Viot, de sua real problemática utopia de solidariedade e homogeneidade rar no já asfaltado caminho dos filmes de viajante, de estrangeiro, de coloniza- social. Orfeu e Otália se complementam, de aventuras, em um périplo que parte dor. Seus personagens não são mais a na medida em que, como heróis e heroínas da Amazônia e alcança a capital federal representação segura que uma adaptação clássicos, deixam-se imolar para expiar as recém-construída. Camus vai inscrever cinematográfica de um texto feito por um culpas da sociedade injusta que os gerou. o seu Os bandeirantes na perspectiva brasileiro permite. Sua ficção transita em um território escorregadio, perigoso, cheio Cortando os Brasis de compreensão de uma nação que se re-forma. O filme cria um eixo novo de de vulnerabilidades. Em Os bandeirantes, este ponto, convém apresentar questões para o cineasta, que busca coop- Camus alça seu próprio voo. a viagem mais radical de Camus tar essas imagens para sua trama desgar- O mesmo Clauder Rocha, no suplemento no Brasil, Os bandeirantes, seu N rada. E se tais imagens não propõem de dominical do Jornal do Brasil, citado ante- périplo aventureiro realizado em 1960 e imediato uma multiplicidade de sentidos, riormente,9 já desqualifica Os bandeiran- produzido entre os dois filmes citados. elas vão interessar enquanto testemunho tes antes de sua estreia, implicando com a Produção bem abonada por financiamento de um programa de produção imaginária personalidade romântica de Camus, capaz francês, resultado do sucesso internacio- estabelecido por um olhar melancólico e de comover a imprensa com sua ternura nal de Orfeu do carnaval, o filme é um quase documental de um Brasil selvagem, humana. E critica o filme como sendo uma road movie insólito, que desvela um certo sensual e pré-capitalista. colcha de retalhos de um Brasil primitivo, Brasil àquela altura pouco presente no te- E, sobretudo, tais imagens vão estar a uma mera empreitada comercial, realizada chnicolor das telas, adornado por diálogos serviço da idealização de uma história em em conluio pelos vilões Jean Manzon e de Rubem Braga. que os personagens principais são estran- Luís Severiano Ribeiro. Clauder reclama Fruto da associação com o documenta- geiros. O filtro dramático e o ponto de vista da falta de oportunidades para os novos rista Jean Manzon, o filme percorre uma narrativo agora se instituem claramente cineastas e aproveita para denunciar a trilha geográfica simbólica dos filmes enquanto mediação. Camus assume essa nouvelle vague como “contravenção esté- brasileiros mais engajados que serão fei- distância com relação ao objeto, diferente- tica”, por conta de sua mentalidade presa

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ao literário, ao simbólico, à divagação, em documentária preside a trama, em que são da alemã. Ela quer se adequar àquela terra tudo associando Camus a ela. Sintomas encaixadas pequenas ações dramáticas e àquelas gentes, mas como seu projeto aparentes do clima de chauvinismo que capazes de movimentar a cena. A história, amoroso é impossível, construirá na trama se instalara em certos círculos, às véspe- por isso, progride por linhas sinuosas, outro destino. Cansada daquele mundo ras da eclosão do Cinema Novo, em sua rarefeitas. Uma composição pitoresca de privações, vai partir para Copacabana, tentativa de demolir todo o cinema exis- preenche o segundo plano do quadro, um para de novo tentar a sorte como cantora tente para recorrer a novos pressupostos repertório de saveiros, coqueiros, danças, na cidade grande. políticos e estéticos. Nesses termos, nem dunas, fogueiras, vaqueiros, santos barro- Helga tem como contraponto a mulata a nouvelle vague foi poupada. cos, samba de roda, capoeira, um quase Susana, irradiando vitalidade, muambeira carnaval permanente em que não faltam A trama de Os bandeirantes inicia-se em que não conhece limites para sobreviver e alegorias enormes dançando na praia. Rio Branco, na região amazônica, onde o sustentar com dignidade a filha, em idas e Colorido e musical, o Brasil de Camus francês Jean Morin (Raymond Loyer) e seu vindas à capital federal. Susana é acusada margeia o Brasil que vai ser lido em um amigo negro Beija Flor (Almiro Espírito San- do roubo de uma boneca e só consegue futuro próximo em outro diapasão, mais to) são atacados no garimpo pelo alemão escapar do linchamento popular graças profundo e irado, pelo Cinema Novo. Mas Curd, que lhes rouba o fruto do trabalho. aos estrangeiros. Logo se revelará genero- Os bandeirantes passam pela floresta, pelo A partir daí, Morin perseguirá seu ex-amigo sa e trabalhadora. Depois, num insinuante sertão, pelo litoral e dali alcançam o cerra- até Brasília, passando por Manaus, Belém, vestido vermelho, vai provocar o desejo do do. No caminho, eles entrecruzam gentes Fortaleza, pelo Canindé e pela Bahia. No francês e recusá-lo virulentamente quando humildes de diferentes procedências, das caminho, Morin encontrará Helga, uma ele se joga sobre ela nas dunas, tentando quais contemplamos os rostos em closes, falsa francesa também alemã, e se apaixo- seduzi-la. Só o reencontro em Brasília vai admirando os sulcos de suas rugas e as nará pela mulata Susana, acompanhada de fazê-los esquecer as desavenças passadas. texturas espessas de sua pele. A marca do Jane, sua pequena filha. Beija Flor quer se E eles partirão para o futuro, em uma terra homem brasileiro se imprime na tela, em casar na Bahia e, após o rompimento com incerta e não revelada, nos passos dessa um olhar de procura sentimental e postura Helga e Susana, Morin vai acompanhá-lo. marcha de modernidade que coroa a inau- documentária. Durante o casamento eles reencontram guração da cidade. Diante da tamanha diferença paisagística e Curd, que mora agora na capital federal, antropológica, vivida de passagem na so- Curd é o alemão mau, frio e calculista, que para onde partem o casal e o francês. freguidão da aventura, a boa consciência ordena um homicídio na floresta enquanto Trabalhando na construção civil, os dois europeia se diz explicitamente assustada. confraterniza com sua vítima potencial. inimigos se encontram, mas no confronto E afirma que quer ser transformada. Como Foge e muda de profissão, e reencontra Morin percebe que não quer mais vingança. quando Helga se redime de seu passado o herói na Bahia e depois em Brasília, Ele deixa Curd livre e parte com os amigos de cantora de cabaré: no sertão, o pau para o acerto de contas final. Curd é o e Susana, no meio da multidão que se di- de arara parado para o derradeiro gole mal que detona a trama e é salvo por um rige para a inauguração da cidade. d’água, ela se faz batizar, reivindicando providencial desabamento que o livra da A trama é simples, edulcorada por inúme- um renascimento. Depois, na festa popular prisão, decretada pelos amigos de Jean. ros crepúsculos, por paisagens iluminadas, nas dunas, ela manifesta sua nostalgia da Contraposto a ele, temos o negro Beija por cantigas folclóricas, um bumba meu natureza, dos ritos primitivos de confrater- Flor, o companheiro solidário, amigo das boi e uma dança do coco. Uma intenção nização, e uma utopia se delineia no olhar aventuras e das desditas, que divide com

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documentária preside a trama, em que são da alemã. Ela quer se adequar àquela terra Jean Morin as peripécias do filme. No encaixadas pequenas ações dramáticas e àquelas gentes, mas como seu projeto mesmo sertão da redenção de Helga, no capazes de movimentar a cena. A história, amoroso é impossível, construirá na trama açude onde param a fim de tomar um gole por isso, progride por linhas sinuosas, outro destino. Cansada daquele mundo de água, Beija Flor consegue uma laranja rarefeitas. Uma composição pitoresca de privações, vai partir para Copacabana, e gentilmente a divide com o casal de eu- preenche o segundo plano do quadro, um para de novo tentar a sorte como cantora ropeus. Beija Flor, que mente pelo amigo, repertório de saveiros, coqueiros, danças, na cidade grande. que o aconselha, que o consola. Beija Flor dunas, fogueiras, vaqueiros, santos barro- que vai ser o responsável pelo reencontro Helga tem como contraponto a mulata cos, samba de roda, capoeira, um quase amoroso do amigo com Susana, para o Susana, irradiando vitalidade, muambeira carnaval permanente em que não faltam inevitável happy end. O negro esperto, o que não conhece limites para sobreviver e alegorias enormes dançando na praia. neto do Pai Tomás com Tia Ciata, vai es- sustentar com dignidade a filha, em idas e Colorido e musical, o Brasil de Camus tar no limite extremo do ariano Curd, em vindas à capital federal. Susana é acusada margeia o Brasil que vai ser lido em um bipolaridade pronunciada. do roubo de uma boneca e só consegue futuro próximo em outro diapasão, mais escapar do linchamento popular graças E finalmente temos Jean Morin, esse profundo e irado, pelo Cinema Novo. Mas aos estrangeiros. Logo se revelará genero- aventureiro viajante que garimpa ouro. Os bandeirantes passam pela floresta, pelo sa e trabalhadora. Depois, num insinuante Ele é atacado e ferido, e parte em perse- sertão, pelo litoral e dali alcançam o cerra- vestido vermelho, vai provocar o desejo do guição a seu agressor, estrangeiro como do. No caminho, eles entrecruzam gentes francês e recusá-lo virulentamente quando ele. Jean se deixa comover pelo Brasil e humildes de diferentes procedências, das ele se joga sobre ela nas dunas, tentando é seduzido por sua gente. Jean afirma a quais contemplamos os rostos em closes, seduzi-la. Só o reencontro em Brasília vai utopia europeia que um certo colonialismo admirando os sulcos de suas rugas e as fazê-los esquecer as desavenças passadas. deixou intacta – palmeiras, dunas, mu- texturas espessas de sua pele. A marca do E eles partirão para o futuro, em uma terra lheres e música. Mas afirma também seu homem brasileiro se imprime na tela, em incerta e não revelada, nos passos dessa lado imigrante, o trabalhador no garimpo, um olhar de procura sentimental e postura marcha de modernidade que coroa a inau- no restaurante da praia e na construção documentária. guração da cidade. civil, tentando restabelecer as regras de Diante da tamanha diferença paisagística e seu destino no exílio. E nesta jornada antropológica, vivida de passagem na so- Curd é o alemão mau, frio e calculista, que ele vai cruzar com o amor e a ternura, e freguidão da aventura, a boa consciência ordena um homicídio na floresta enquanto também com o ódio e a vingança, mas é europeia se diz explicitamente assustada. confraterniza com sua vítima potencial. certamente o amor que prevalece. O Brasil E afirma que quer ser transformada. Como Foge e muda de profissão, e reencontra cordial triunfa no fim. quando Helga se redime de seu passado o herói na Bahia e depois em Brasília, de cantora de cabaré: no sertão, o pau para o acerto de contas final. Curd é o Jean Morin se afina com a nação mitoló- de arara parado para o derradeiro gole mal que detona a trama e é salvo por um gica que o filme encena e dá as costas ao d’água, ela se faz batizar, reivindicando providencial desabamento que o livra da Brasil que inicia com Brasília uma nova um renascimento. Depois, na festa popular prisão, decretada pelos amigos de Jean. fase. Intuição certeira, ele termina o filme nas dunas, ela manifesta sua nostalgia da Contraposto a ele, temos o negro Beija onde começa a se plantar a história con- natureza, dos ritos primitivos de confrater- Flor, o companheiro solidário, amigo das temporânea do país. A modernidade da nização, e uma utopia se delineia no olhar aventuras e das desditas, que divide com capital federal é o derradeiro emblema de

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um Brasil que vai formular também para si Camus criou laços fortes com o Brasil, Ele faz, mais adiante, o caminho contrário mesmo um novo estatuto cinematográfico casou-se com a brasileira Lourdes de Oli- do Cinema Novo, descendo do Norte até nos anos que se seguirão. veira, atriz de dois de seus filmes, e com a capital federal, movimento associado a ela teve dois filhos. Além desses vínculos, todo o programa de integração regional Na poeira dessa marcha de inauguração Camus tinha uma enorme percepção do que vai marcar as políticas governamentais da cidade, estes quatro personagens que Brasil, o que lhe permitiu transitar com da década seguinte. Mais uma vez, erra na seguem a multidão, malas em punho no alguma desenvoltura por caminhos imagi- mão, mas se orienta no caminho. abandono daquele sonho, são os últimos nários bastante ásperos, até mesmo para vestígios desta viagem iniciática de Camus. Uma percepção apurada que será revelada os brasileiros. Sua obra realizada aqui Uma viagem na contramão, que tentou também em um momento futuro de pro- transcorre durante duas décadas de 1959 perseguir um Brasil exótico lá onde o funda inquietação para os brasileiros, os a 1975, cobrindo um momento de intensa Brasil não se reconhecia mais e ensaiou anos negros da ditadura e sua política de vitalidade para o cinema nacional, com o colocar-se ali em confronto com relações expansão capitalista. No mesmo instante surgimento, a maturação e o declínio do que se pretendiam reais, em um universo em que o governo militar do general Emílio movimento do Cinema Novo. Camus, natu- de ficção. O exotismo deixou de ser chaga Garrastazu Médici (1969-1974) projetava a ralmente por sua condição de estrangeiro, para ser trilha de aproximação. Embora o rodovia transamazônica (BR-230), uma das manteve-se na contramão dos postulados que tenha mantido a solidez sejam ape- obras faraônicas de maior impacto nacio- estéticos e políticos do movimento, e por nas algumas imagens do real que Marcel nal, Marcel Camus propunha um roteiro, isto foi tachado de colonizador, às vezes Camus, esse estrangeiro, aprisionou no nunca filmado, intitulado Dernier refuge com certa virulência. Seus filmes foram cinema com seu olhar de testemunha in- ou La terre du troisième jour, um filme chamados de folclóricos, exóticos, ingê- teressada, buscando compreender. sem cidades, nos anos 1970, tratando das nuos, românticos, alienados, e, salvo o relações de sobrevivência de um grupo de A intuição Brasil renomado Orfeu do carnaval, consagrado brasileiros em plena selva. por outras razões, não garantiram seu arcel Camus é um dos cine- lugar na história. E, finalmente, Camus se coloca ao lado astas estrangeiros que mais de outros brasileiros ilustres, no direcio- M filmou o Brasil, rodando aqui Para além de todas as críticas e conside- três de seus nove longas-metragens de rações que lhe foram feitas, o filme Orfeu ficção. Seu filme mais popular, que o pode ser lido também na tecla do último consagrou junto às plateias do mundo suspiro da então capital federal, às véspe- inteiro, foi Orfeu do carnaval, de 1959, ras de ser destituída de seu poder, bem ganhador da Palma de Ouro em Cannes pouco antes da transferência do aparato N O T A S e do Oscar de melhor filme estrangeiro, burocrático-político para Brasília. Basta o que lhe garantiu um lugar na historio- olharmos com atenção para o modo como 1. “Como ser poeta quando não se é? Esta é a quadratura do círculo que impõe o gosto aventureiro do samba aos espectadores europeus; dividido entre o folhetim e a mensagem humanista, corren- grafia oficial do cinema industrial. A não a cidade é tratada, com seus ambientes do pelos louros (cada um com sua verdade) de Saint-Éxupery, ele oferece um cinema confinado por um cenário exótico, onde se desenrolam apenas peripécias monótonas de cartões-postais: visibilidade do restante de sua obra lhe sombrios e tristes, onde só brilha o car- um Prévert triste sob os trópicos.” proporcionou a fama de homem de um naval, que desce do morro. O asfalto vive 2. Jacques Prévert (1900-1977), poeta francês de grande popularidade, roteirista de prestigiados filmes do realismo poético dos anos de 1930 e 1940, como Cais de sombras, Trágico amanhecer filme só, e normalmente é assim que ele sua crise de identidade, enquanto o morro e O boulevard do crime, todos de Marcel Carné. é lembrado. resplandece. 3. Cahiers du Cinéma, n. 138, p. 64, dez. 1962.

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Camus criou laços fortes com o Brasil, Ele faz, mais adiante, o caminho contrário namento do olhar para a Bahia, um rico casou-se com a brasileira Lourdes de Oli- do Cinema Novo, descendo do Norte até celeiro de tradições e sugestões muito veira, atriz de dois de seus filmes, e com a capital federal, movimento associado a claras das novas orientações culturais e ela teve dois filhos. Além desses vínculos, todo o programa de integração regional raciais que o Brasil vai ser obrigado a en- Camus tinha uma enorme percepção do que vai marcar as políticas governamentais carar desde então. Um filme contaminado Brasil, o que lhe permitiu transitar com da década seguinte. Mais uma vez, erra na pelo social, pela visão da exclusão, pela alguma desenvoltura por caminhos imagi- mão, mas se orienta no caminho. solidariedade às massas negras oprimidas, nários bastante ásperos, até mesmo para em busca de cidadania, em sua luta de Uma percepção apurada que será revelada os brasileiros. Sua obra realizada aqui resistência. Um projeto estético falido em também em um momento futuro de pro- transcorre durante duas décadas de 1959 um projeto político antecipador. funda inquietação para os brasileiros, os a 1975, cobrindo um momento de intensa Desse modo, Marcel Camus leu o Brasil anos negros da ditadura e sua política de vitalidade para o cinema nacional, com o e os brasileiros de um modo precário, na expansão capitalista. No mesmo instante surgimento, a maturação e o declínio do maioria das vezes destituído de grande va- em que o governo militar do general Emílio movimento do Cinema Novo. Camus, natu- lor artístico, mas intensificado pela paixão Garrastazu Médici (1969-1974) projetava a ralmente por sua condição de estrangeiro, e pela curiosidade. Vai levar essa marca rodovia transamazônica (BR-230), uma das manteve-se na contramão dos postulados para os muitos filmes que realizou depois, obras faraônicas de maior impacto nacio- estéticos e políticos do movimento, e por e que também foram esquecidos,10 assim nal, Marcel Camus propunha um roteiro, isto foi tachado de colonizador, às vezes como para as várias séries para televisão, nunca filmado, intitulado Dernier refuge com certa virulência. Seus filmes foram em que, sempre que possível, havia a ou La terre du troisième jour, um filme chamados de folclóricos, exóticos, ingê- sombra do Brasil, em uma referência, uma sem cidades, nos anos 1970, tratando das nuos, românticos, alienados, e, salvo o canção, uma lembrança. relações de sobrevivência de um grupo de renomado Orfeu do carnaval, consagrado brasileiros em plena selva. Marcel Camus não foi, definitivamente, por outras razões, não garantiram seu um triste poeta, mas um zeloso cineasta, E, finalmente, Camus se coloca ao lado lugar na história. totalmente apaixonado pelas gentes que de outros brasileiros ilustres, no direcio- Para além de todas as críticas e conside- retratou. rações que lhe foram feitas, o filme Orfeu pode ser lido também na tecla do último suspiro da então capital federal, às véspe- ras de ser destituída de seu poder, bem pouco antes da transferência do aparato N O T A S burocrático-político para Brasília. Basta olharmos com atenção para o modo como 1. “Como ser poeta quando não se é? Esta é a quadratura do círculo que impõe o gosto aventureiro do samba aos espectadores europeus; dividido entre o folhetim e a mensagem humanista, corren- a cidade é tratada, com seus ambientes do pelos louros (cada um com sua verdade) de Saint-Éxupery, ele oferece um cinema confinado por um cenário exótico, onde se desenrolam apenas peripécias monótonas de cartões-postais: sombrios e tristes, onde só brilha o car- um Prévert triste sob os trópicos.” naval, que desce do morro. O asfalto vive 2. Jacques Prévert (1900-1977), poeta francês de grande popularidade, roteirista de prestigiados filmes do realismo poético dos anos de 1930 e 1940, como Cais de sombras, Trágico amanhecer sua crise de identidade, enquanto o morro e O boulevard do crime, todos de Marcel Carné. resplandece. 3. Cahiers du Cinéma, n. 138, p. 64, dez. 1962.

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artigo_Tunico_Amancio.indd 145 13/1/2011 14:25:42 4. Quando do lançamento de Le chant du monde, em 1965, dirigido por Camus e baseado em outro célebre autor francês, Jean Giono, a crítica dos Cahiers foi igualmente demolidora, classificando-o de um “pseudo-western provençal” onde os atores e diálogos “estão certamente entre os mais hilariantes do mundo”. E não se trata de uma comédia. (Cahiers du Cinéma, n. 172, nov. 1965, p. 60). Ou, ainda, quando o Conselho dos Dez (responsável pelo aconselhamento dos leitores/ espectadores e que conta com a presença de Henri Angel, Jean Luc-Godard, André S. Labarthe, Jean Douchet e Jacques Rivette, entre outros) atribui a L’oiseau du paradis, também de Camus, nove irredutíveis bolas pretas, correspondentes ao conceito de “inutile de se deranger”, contra- riadas apenas pelo comunista Georges Sadoul, que lhe atribui uma estrela, “a voir à la rigueur” (Cahiers du Cinéma, n. 138, dez. 1962). 5. Rocha, Clauder. Suplemento dominical. Jornal do Brasil, sábado, 24 out. 1959. 6. Veloso, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 252. 7. Obama, Barack. A origem dos meus sonhos. São Paulo: Gente, 2008. 8. Aruanda (1960), Bahia de todos os santos (1960), Barravento (1961), Os fuzis (1963), A grande feira (1961), Mandacaru vermelho (1961), O pagador de promessas (1962), Vidas secas (1963). 9. Rocha, Clauder, op. cit. 10. Filmografia de Marcel Camus: 1957, Mort en fraude (O rio do arrozal sangrento), com Daniel Gélin; 1959, Orfeu negro (Orfeu do Carnaval), com Breno Mello, Marpessa Dawn, Lourdes de Oliveira, Lea Garcia; 1960, Os bandeirantes, com Raymond Loyer, Elga Andersen, Lourdes de Oliveira, Lea Garcia, Almiro do Espírito Santo; 1962, L’oiseau du paradis, com Bopha Devi, Sam El, Narie Hem, Nop Nem; 1965, Le chant du monde, adaptação de Gian Giono, com Hardy Kruger, Charles Vanel, , Marilu Tolo, ; 1968, Vivre la nuit, com Jacques Perrin, Serge Gainsbourg, Catherine Jourdan, Georges Géret; 1970, Un été sauvage, com Albert Augier, Juliet Berto, Nino Ferrer, Katina Paxinou, Marilu Tolo; 1970, Le mur de l’Atlantique, com , Peter McEnery, Sophie Desmarets, Terry-Thomas, ; 1975, Otália da Bahia, com Mira Teixeira, Grande Otelo, Jofre Soares, Zeni Pereira, Antonio Pitanga. Séries para televisão: 1973, La porteuse de pain; 1973, Molière pour rire et pour pleurer; 1974, Les fauchers de marguerites; 1978, Ce diable d´homme; 1979, Le roi qui vient du sud; 1980, Winnetou le mescalero; 1980, Les amours du bine aimé; 1981, L’agent secret; 1982, Le féminin-pluriel.

Recebido em 20/7/2009 Aprovado em 14/9/2009

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