R V O Tunico Amancio Professor associado do curso de Cinema da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador e curta-metragista. Marcel Camus ou o Triste Prévert dos Trópicos Marcel Camus fez três filmes de longa-metragem Marcel Camus made three feature films in no Brasil e com um deles – Orfeu do carnaval – Brazil and one of them – Orfeu do carnaval – ganhou fama internacional imediata. Seus outros made him instantly famous worldwide, while filmes passaram despercebidos do público e his other movies remained unnoticed by both da crítica. Taxados de folclóricos, exóticos, the audience and critics. Labeled as folkloric, ingênuos, românticos e alienados, trouxeram uma exotic, naive, romantic and alienated, they brought imagem do Brasil cheia de afeto e curiosidade, e us an image about Brazil full of affection and valem como testemunho de uma época e de um curiosity, and are a testimonial of an era and a olhar estrangeiro. foreigner’s look. Palavras-chave: olhar estrangeiro; Orfeu do carnaval; Keywords: foreign look; Orfeu do carnaval; Marcel Camus. Marcel Camus. omment être poète si message humaniste, briguant les lauriers on ne l’est pas? Telle est (chacun sa vérité) de Saint-Éxupery, il four- “C la quadrature du cercle nit un cinéma confiné de décors exotiques, qu’impose à cet aventurier appliqué le mais n’y déroule que de monotones péri- goût qu’ont des sambas les spectateurs péties de cartes postales: un triste Prévert européens; partagé entre le feuilleton et le sous les tropiques.”1 Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 1, p. 133-146, jan/jun 2010 - pág. 133 artigo_Tunico_Amancio.indd 133 13/1/2011 14:25:40 A C E Foi com esta comparação inesperada com junto aos jovens realizadores, ainda na ro um filme que era, de fato, francês. Só o cultuado poeta e roteirista francês2 que faixa dos vinte anos. Nascera em 1912, mais à frente a matéria vai falar em co- a revista Cahiers du Cinéma de dezembro em Chappes, e, além de professor de produção franco-ítalo-brasileira, restabele- de 19623 celebra Marcel Camus entre os desenho, tinha sido pintor e escultor. Du- cendo a verdade. A notícia é, entretanto, 162 novos cineastas franceses. Uma má rante a guerra, estivera em um campo de saudada com entusiasmo. Fala-se da sua vontade que tinha sido posta em cena prisioneiros, onde se dedicara ao teatro. filiação teatral e da lenda grega adaptada desde que, em 1959, arrebatara com Depois, optou pelo cinema e trabalhou ao universo das escolas de samba. Fala-se Orfeu do carnaval (Orfeu negro para os como assistente de Henri Decoin, de que Camus, já prevendo a difusão mun- franceses) a Palma de Ouro a François Georges Rouquier, de Jacques Becquer e dial da fita, achou interessante simplificar Truffaut e seu Os incompreendidos, num até mesmo de Luis Buñuel, crescendo na ao máximo o enredo, para que ele fosse momento crucial para o lançamento da carreira, nos contatos e na competência. acessível a todos. E também que o mesmo nouvelle vague. Camus, que tinha sido, Camus achou indispensável aproveitar o Um dado fundamental no desenvolvimento até aquele momento, considerado um cenário excepcional do Rio, substituindo o de Marcel Camus foi sua adesão à maço- dos neófitos mais respeitados (pela ida- lirismo verbal do poeta Vinícius de Moraes naria desde os anos de 1930. De lá saíram de e por sua experiência profissional) na peça teatral por um lirismo de imagens, os contatos e o interesse pelos mitos, de do recém-aparecido movimento, passa que melhor se adaptaria à expressão cine- que Orfeu do carnaval será caudatário, matográfica. Fala-se do método de seleção a ser um inimigo a quem se deve evitar. assim como os traços da fraternidade e dos atores, todos brasileiros, à exceção de Os Cahiers, a trincheira midiática mais das ideias positivistas que vão alimentar e Marpessa Dawn, e todos são aclamados poderosa da nouvelle vague, tão forte regular seu processo de criação. Princípios com efusivos adjetivos, a brilhante, a bela, quanto os filmes, serão implacáveis com essencialmente humanistas, representa- o campeão. ele desde então.4 Porque explicitarão dos de um modo naïf, seguramente, mas uma rejeição que vai ser determinante na baseados em uma busca de compreensão acolhida aos novos trabalhos de Camus, universal. Este é o traço que vai marcar sob a alegação de que ele não foi capaz Marcel Camus como um cineasta singular, de cumprir as promessas contidas em amado e respeitado por todos os colegas, seu filme de estreia, La mort en fraude apesar das divergências quanto à sua (O rio do arrozal sangrento, 1957), com obra. Mas, ainda assim, um triste poeta sua original abordagem do colonialismo dos trópicos! na Indochina, baseado em um livro de Jean Hougron, que com tensão e drama, O samba de Orfeu em envolvente preto e branco, chamara m 16 de maio de 1959, O Globo a atenção para aquele diretor já maduro. anunciava que Orfeu do carna- Camus já tinha 45 anos quando estreou E val, filme brasileiro falado em na direção e já havia transposto toda a português, havia ganhado a Palma de rígida hierarquia profissional da atividade Ouro em Cannes. O conceituado jornal, cinematográfica francesa, o que também na euforia da comemoração da vitória, O presidente Juscelino Kubitschek acompanhado de Marcel Camus (à esquerda), lhe emprestava um respeitoso prestígio cometia o deslize de considerar brasilei- Marpessa Dawn e Breno Mello (Orfeu e Eurídice) e Vinícius de Moraes, 1959 pág. 134, jan/jun 2010 Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 1, p. 133-146, jan/jun 2010 - pág. 135 artigo_Tunico_Amancio.indd 134 13/1/2011 14:25:40 R V O junto aos jovens realizadores, ainda na ro um filme que era, de fato, francês. Só Finalmente, a matéria vai colocar o filme faixa dos vinte anos. Nascera em 1912, mais à frente a matéria vai falar em co- em perspectiva com os outros premiados, em Chappes, e, além de professor de produção franco-ítalo-brasileira, restabele- valorizando o troféu recebido, ao lado de desenho, tinha sido pintor e escultor. Du- cendo a verdade. A notícia é, entretanto, Luis Buñuel, de Simone Signoret, de Orson rante a guerra, estivera em um campo de saudada com entusiasmo. Fala-se da sua Welles, Bradford Dillman e Dean Stockwell, prisioneiros, onde se dedicara ao teatro. filiação teatral e da lenda grega adaptada além de François Truffaut. Depois, optou pelo cinema e trabalhou ao universo das escolas de samba. Fala-se O Brasil chegara ao Olimpo cinematográ- como assistente de Henri Decoin, de que Camus, já prevendo a difusão mun- fico, agora com a Palma de Ouro, suplan- Georges Rouquier, de Jacques Becquer e dial da fita, achou interessante simplificar tando em prestígio o prêmio atribuído em até mesmo de Luis Buñuel, crescendo na ao máximo o enredo, para que ele fosse 1953 a O cangaceiro, de Lima Barreto, carreira, nos contatos e na competência. acessível a todos. E também que o mesmo melhor filme de aventuras. Por conta de Camus achou indispensável aproveitar o Um dado fundamental no desenvolvimento sua projeção internacional, o filme de cenário excepcional do Rio, substituindo o de Marcel Camus foi sua adesão à maço- Marcel Camus é lembrado até hoje como lirismo verbal do poeta Vinícius de Moraes naria desde os anos de 1930. De lá saíram um dos mais apaixonados – para o bem e na peça teatral por um lirismo de imagens, os contatos e o interesse pelos mitos, de para o mal – olhares no cinema estrangeiro que melhor se adaptaria à expressão cine- que Orfeu do carnaval será caudatário, sobre a realidade brasileira. matográfica. Fala-se do método de seleção assim como os traços da fraternidade e dos atores, todos brasileiros, à exceção de Nele vai sobressair a paisagem carioca, das ideias positivistas que vão alimentar e Marpessa Dawn, e todos são aclamados e, nela, a implicação de uma comunidade regular seu processo de criação. Princípios com efusivos adjetivos, a brilhante, a bela, negra disposta em uma sociedade bran- essencialmente humanistas, representa- o campeão. ca sem conflitos raciais, uma população dos de um modo naïf, seguramente, mas baseados em uma busca de compreensão universal. Este é o traço que vai marcar Marcel Camus como um cineasta singular, amado e respeitado por todos os colegas, apesar das divergências quanto à sua obra. Mas, ainda assim, um triste poeta dos trópicos! O samba de Orfeu m 16 de maio de 1959, O Globo anunciava que Orfeu do carna- E val, filme brasileiro falado em português, havia ganhado a Palma de Ouro em Cannes. O conceituado jornal, na euforia da comemoração da vitória, O presidente Juscelino Kubitschek acompanhado de Marcel Camus (à esquerda), cometia o deslize de considerar brasilei- Marpessa Dawn e Breno Mello (Orfeu e Eurídice) e Vinícius de Moraes, 1959 pág. 134, jan/jun 2010 Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 1, p. 133-146, jan/jun 2010 - pág. 135 artigo_Tunico_Amancio.indd 135 13/1/2011 14:25:40 A C E tomada pela música, uma cidade solar e Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno são rarefeitos nos filmes. Porque ao invés pujante, com os traços de uma moderni- Barreto, feito em 1976, e Tenda dos mi- de uma fricção com a realidade ou grandes dade ainda incipiente. E, atravessando a lagres, por Nelson Pereira dos Santos, em voos artísticos, o que temos são obras trama, uma clássica história de amor. Es- 1977, obras também contemporâneas do cheias de afeto, de sensibilidade. ses valores, que de cara fizeram a alegria estrondoso sucesso popular da telenovela São, principalmente, filmes estrangeiros de milhares de espectadores por todo o Gabriela, dirigida por Walter G.
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