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Roteirização em Suso Cecchi D’Amico: do Neorrealismo Italiano a Contemporaneidade

Denise Camillo Duarte∗

Índice 2010, estabelece um marco para reviver seu legado e sua contribuição para a história do Introdução1 cinema mundial, herança que se traduz em 1 Biografia2 uma construção estilística de roteiro, não 2 Gênese de um movimento cinema- atrelado a normas. tográfico3 Palavras-chave: roteirista, guionista, 3 “Roteiro é trabalho de um artesão, não roteiro, argumento, Suso Cecchi D’Amico, de um poeta. Eu não sou poetisa, sou cinema italiano. artesã”3 4 Filmografia6 5 Com Visconti7 Introdução Conclusões9 morte em 31 de julho de 2010 de Suso Referências 10 A Cecchi d’Amico, talvez a mais impor- tante roteirista que o cinema europeu co- Resumo nheceu e um dos maiores nomes do cinema Suso Cecchi D’Amico foi provavelmente mundial, foi destaque em jornais como The a mais importante roteirista não só da Itália, new yorker, Telegraph e Guardian, entre ou- como também da Europa. Uma das pioneiras tras publicações que lhe renderam homena- do roteiro neorrealista, trabalhou com vários gens e longas retrospectivas de sua carreira. dos maiores diretores italianos de meados No Brasil, entretanto, sua morte obteve i- dos anos 40 do século XX em diante, en- nexpressiva menção na imprensa local. Faz- tre eles , , se necessário relembrar sua obra e sua i- e Martin Scorsese. nestimável contribuição para o cinema, so- Trabalhou também com grandes roteiristas bretudo para o Neorrealismo Italiano, movi- como , Enrico Medioli e mento que ajudou a construir. Tonino Guerra. Sua morte, em julho de Suso dedicou a vida ao cinema. Entre 1946 e 2006, escreveu cerca de 118 obras, ∗Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Fe- entre argumentos e roteiros para cinema e deral do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e profes- televisão, e trabalhou com alguns dos princi- sora universitária no Curso de Comunicação Social, Habilitação Multimídia, da Faculdade CCAA/RJ. pais roteiristas e diretores italianos e também 2 Denise Camillo Duarte

estrangeiros. Com Luchino Visconti man- e roteirista1, e ainda como diretor de dois teve parceria até a morte do diretor. Mario filmes e produtor, vindo a administrar os es- Monicelli, Michelangelo Antonioni, Vittorio túdios Cinecittà no pós-guerra. Suso her- De Sica, Franco Zeffirelli, dara, assim, bem mais que o apelido carin- e Martin Scorsese foram alguns dos demais hoso, diminutivo de Suzana, como o pai a cineastas com os quais trabalhou. Escreveu chamava, mas igualmente seu pendor pelas filmes também com grandes roteiristas, en- artes literárias e cinematográficas. Fora o tre eles Cesare Zavattini (com o qual roteiri- pai também quem a enviaria a estudar na zou Roma, città aperta, Ladri di biciclette, È Suíça e depois em Cambridge nos anos 30, primavera, Miracolo a Milano, Belissima), quando não era habitual para jovens italianas Enrico Medioli (Il gatopardo, Rocco e i suoi completarem seus estudos no exterior. Em fratelli, Ludwig, Gruppo di famiglia in un seu retorno à Itália, trabalhou por oito anos interno, L’innocente) e Tonino Guerra (com como funcionária pública, sendo intérprete quem dividiu os créditos de Casanova ‘70). no Ministério de Comércio Exterior. Du- Profunda conhecedora de literatura, Suso rante a 2a. Guerra Mundial, devido às ativi- construiu um estilo próprio de estrutura para dades anti-fascistas do pai, que o levaram a seus roteiros, fundado em sólida pesquisa a se esconder, Suso sustentou a família com partir da qual tecia uma narrativa consistente, suas traduções de inglês, incluindo textos muitas vezes de base histórica. Estilo este in- shakespearianos e peças a serem encenadas diferente à estrutura em três atos e não sub- por Luchino Visconti. Em 1938, Suso casou- jugado a cartilhas ou normas pré-concebidas se com o famoso músico, crítico musical e de escrita de roteiro. intelectual italiano Fidele d’Amico, ou sim- Com a morte de Cesare Zavattini, em plesmente Lele, passando então a assinar 1989, e de Suso, um dos últimos grandes 1São de autoria de Emilio Cecchi os seguintes ar- roteiristas vivos do Neorrealismo Italiano é gumentos e roteiros, segundo dados do site IMDB: Enrico Medioli, hoje com 85 anos. La tavola dei poveri (1932, dirigido por Alessan- dro Blasetti); Acciaio (1933, dirigido por Walter Ruttman); 1860 (1934, de ); Sis- 1 Biografia signora (1942, de Ferdinando Maria Poggioli); Pic- colo mondo antico (1941, de ); Tra- Nascida Giovanna Cecchi, em Roma, a 24 gica notte (1943, dirigido por Mario Soldati); Gia- de julho de 1914, cresceu em ambiente que como l’idealista (1943, dirigido por Alberto Lat- priorizava as artes. A mãe, Leonetta Pie- tuada); Harlem (1943, dirigido por Carmine Gallone); raccini, era pintora e o pai, Emilio Cecchi, Mio figlio professore (1946, co-roteirizado, entre ou- foi renomado crítico e escritor em seu país, tros, com a filha Suso, e dirigido por Renato Castel- lani); Vida e morte degli etruschi (1947, dirigido e sendo considerado por alguns estudiosos a roteirizado por Emilio Cecchi); Anatomia del colore mais importante figura das letras italianas (1948, dirigido por Emilio Cecchi, que também fez no século XX. Emilio também trabalhou em o roteiro, e A. Riccio); Sotto il sole di Roma (1948, cinema principalmente como argumentista direção de ); Fabiola (1949, jun- tamente com Cesare Zavattini e outros, dirigido por Alessandro Blassetti).

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suas obras como Suso Cecchi d’Amico. Lele 3 “Roteiro é trabalho de um morreu em 1990 e juntos tiveram três filhos. artesão, não de um poeta. Eu não sou poetisa, sou artesã”3 2 Gênese de um movimento A frase de Suso, quando da entrevista con- cinematográfico cedida a Colville-Andersen, transformou-se Finda a 2a Guerra Mundial, Suso e seus ami- em marca registrada de seu pensamento so- gos percorriam as ruas de Roma colhendo bre o ofício do roteirista. Sua visão era bas- histórias junto à população. A idéia era tante pragmática: o roteiro não é uma arte, já fazer filmes tendo por base tais depoimen- que se insere no trabalho de equipe que en- tos, no intuito maior de mostrar o sofri- volve a práxis do cinema. “A verdadeira arte 4 mento do povo italiano durante aqueles anos é uma criação individual” , completaria. difíceis. Inicialmente sem estúdios ou re- Por outro lado, considerando o roteiro a cursos para pagar atores, equipe e equipa- razão primeira para a existência de um filme, mentos, valeram-se quase sempre de atores Suso outorgava ao roteirista papel funda- não profissionais, das ruas da cidade e ou- mental no processo. Ele seria o único a tras locações naturais como cenário. Os merecer ser chamado de autor. Sendo o jovens realizadores eram Suso, Cesare Za- filme uma obra coletiva, não considerava in- vattini, , Vittorio De Sica, teligente a doutrina que perdura no cinema Luchino Visconti, Federico Fellini e tantos desde os anos 20/30 que predispõe somente mais que desfrutavam da liberdade de fazer ao diretor os créditos pelo filme. entre amigos os filmes que queriam. Se por A autora delimita fronteiras entre a es- um lado ressentiam-se das dificuldades que crita literária e a escrita para a tela. Para envolvia fazer cinema sem financiamento, ela, enquanto o escritor precisa achar as por outro desfrutavam de grande liberdade palavras capazes de descrever o que imagina, criativa ao não se filiarem a grandes estú- o roteirista é um inventor de imagens. dios. Segundo Suso, em entrevista a Mikael Nesse processo, seguiu regras próprias na Colville-Andersen (1999), “foi só depois que construção de seus roteiros. Uma delas de- alguém, em algum outro lugar do mundo, de- terminava para cada cena três elementos: o cidiu colocar o nome de Neorrealismo e es- momento crucial de uma situação (o que hoje crever muitos livros sobre o assunto”2. Na convencionamos denominar clímax), seu fi- prática, roteiristas e diretores trabalhavam nal e o início de uma nova situação (gan- juntos no set de filmagem apenas fazendo cho). Avessa às convenções narrativas hol- seus filmes, sem dimensionar que ali surgia lywoodianas, a autora não seguia a tradi- um novo movimento cinematográfico. cional estrutura em três atos. “Não sigo nor- mas como a que determina que algo sim- 2 Tradução minha da entrevista de Suso Cec- plesmente deva acontecer aos 12 minutos chi D’Amico a Mikael Colville-Andersen, publicada no endereço http://zakka.dk/ de filme. Deve-se escrever com o instinto. euroscreenwriters/screenwriters/ 3Idem. suso_cecchi_damico.htm. 4Idem.

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Mas a estrutura em três atos tem existido Mario Monicelli, roteirizado por Suso. Ela ao longo dos séculos, por isso deve ser uma ensina que comédia deve ser escrita e lida em coisa boa”5. Desse modo, ao mesmo tempo conjunto, para se perceber o que funciona. O em que demonstrava sua indiferença à con- drama, ao contrário, em sua opinião precisa venção, não fazia de seu modo pessoal de ser escrito solitariamente. trabalhar uma norma para outros roteiristas. Aficionada por literatura, suas grandes Ao contrário, evitava indicar livros ou nor- influências foram os russos, Dostoievski e mas para criação de roteiros a seus alunos. Tolstoi. Prince, de Rocco e i suoi fratelli A intenção era demonstrar que nessa área (Rocco e seus irmãos, 1960, Luchino Vis- não há regras a serem seguidas. Mantinha-se conti), é baseado em personagem de Dos- igualmente indiferente a cartilhas e manuais toievski. de roteiro. A linguagem secreta do cinema, Suso temia pelo futuro do cinema e não de Jean-Claude Carrière, foi o único livro a hesitou em considerar medíocres os filmes lhe causar impressão duradoura. Suso tam- de hoje. Ponderou que não se vive uma bém aprendia muito através da análise da es- época boa para o cinema. “Tornou-se uma trutura de certos filmes. The magnificent am- indústria de mau gosto, em parte, porque a bersons (Soberba, 1942), de Orson Welles, televisão tem jogado o nível de inteligência foi visto por ela inúmeras vezes, no intuito para muito baixo”7. A solução prevista por de aprender sua estrutura e utilizá-la em seu ela seria encarar o cinema por prazer, como trabalho. na época em que ela e seus amigos saiam às De acordo com o roteirista português João ruas de Roma para fazer os filmes que que- Nunes, a palavra escaleta seria tradução de riam, sem pensar em lucros. Em verdade, scaletta, termo italiano adotado por Suso os dizeres de Suso nos trazem respingos do em uma palestra na Fundação Calouste Gul- frescor de um tempo onde os realizadores benkian, em Lisboa, há alguns anos. Se- dispunham de liberdade não só criativa, mas gundo Nunes, ela a definia como “o registro de produção. Hoje, sua proposta soa como dos degraus que o protagonista tem de subir um sonho dolente e provavelmente ingênuo para chegar ao fim da história”6. frente à ótica do mercado contemporâneo de Apesar do trabalho em diversos gêneros, audiovisual, onde quase não há espaço para como dramas históricos, dramas psicológi- a projeção de realizadores fora dos grandes cos, filmes sobre máfia, a comédia era seu estúdios. gênero preferido, para a qual tinha grande Suso também comentou sua relação com talento. No entanto, seu pendor foi pouco diferentes diretores. Em comum, tais expe- reconhecido, apesar do sucesso de I soliti ig- riências lhe trouxeram uma certeza, a de que noti (Os eternos Desconhecidos, 1958), de é inútil escrever algo que não será sentido pelo diretor. Nesse ponto da entrevista, cita 5Idem. 6Depoimento do roteirista português João o exemplo de Michelangelo Antonioni. Em Nunes a respeito de Suso Cecchi D’Amico seu primeiro trabalho juntos, escreveram o disponível em http://joaonunes.com/ roteiro da comédia La signora senza Camelie 2010/guionismo/suso-cecchi-damico- e-a-origem-do-termo-escaleta/. 7Tradução minha, op. cit..

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(1953). Porém, o filme foi um fracasso de Sim, nos tempos antigos era muito público. Suso credita a péssima bilheteria à importante. Especialmente no falta de talento de Antonioni para a comédia, período do Neorrealismo. Nós apesar do autor da trilogia da incomunicabi- sempre mudávamos o diálogo. Se lidade, segundo ela, ter um ótimo senso de a cena era escrita com sol e chovia, humor. tínhamos de alterar o roteiro no lo- Sobre a realização de Roma, città aperta cal. E Visconti me queria lá. Ele (Roma, cidade aberta, 1946), de Roberto era muito fiel ao que eu tinha es- Rossellini, Suso afirmou não ter contado crito. Eu estava sempre no set.9 com outro apoio financeiro que não o dos amigos envolvidos em sua realização. Já E foi justamente com Luchino Visconti Ladri di biciclette (Ladrões de bicicletas, que firmou a mais constante e duradoura 1948), um filme mais caro, obteve financia- parceria, embasada em profunda amizade e mento. Sobre a elaboração do roteiro, relem- em forte afinidade, grande parte literária, bra que trabalharam no roteiro por meses, mas também ideológica e criativa. O diretor coletando histórias aleatoriamente em Roma, costumava contar-lhe a história do filme que na intenção de montar um retrato de época de pretendia realizar, muitas vezes escrevendo e Roma no pós-guerra. Todos os envolvidos assinando juntamente com ela o argumento assinavam o crédito de roteiro. Em Ladri di e o roteiro. A partir do convite para es- biciclette há sete roteiristas creditados: crever Bellissima (Belíssima, 1951), Suso trabalharia com Visconti ao longo de vinte Muitas vezes, colocamos nomes e cinco anos em onze filmes, parceria só de nossos amigos para que eles interrompida pela morte do diretor. Em pudessem receber o pagamento. seguida vieram Senso (Senso, sedução da Dizíamos ao produtor que os carne, 1954), Le notti bianche (Noites Bran- havíamos consultado. Fizemos cas, 1957), Rocco e i suoi fratelli (1960), isso por Fellini quando ele era Boccaccio ‘70, episódio Il lavoro (1962), Il jovem e não tinha dinheiro. Por- gatopardo (O leopardo, 1963), Vaghe stelle tanto, há filmes em que Fellini é dell’Orsa (Vagas estrelas da Ursa, 1965), creditado como roteirista, mas ele Lo straniero (O estrangeiro, 1967), Ludwig nunca os escreveu. Eu vi um velho (1972), Gruppo di famiglia in un interno filme há poucos dias atrás onde (Violência e paixão, 1974) e L’innocente havia nove roteiristas. Sei exata- (O inocente, 1976). A adaptação de À la mente quem foram os escritores recherche du temps perdu (Em busca do e não foram certamente todos os tempo perdido), de Marcel Proust, roteiro nove.8 no qual Suso trabalhava já em processo adi- antado, foi interrompida pela morte de Vis- Outra peculiaridade da produção neorrea- conti em março de 1976. De acordo com a lista era a presença do roteirista no set. autora, o diretor queria lidar com apenas dois

8Tradução minha, op. cit.. 9Idem. www.bocc.ubi.pt 6 Denise Camillo Duarte

focos narrativos do romance original: a ator- rigido por Giulio Base, e Le rose del deserto mentada história de amor entre o narrador (As rosas do deserto), co-roteirizado por (que seria desempenhado por Delon) e Al- ela e outros autores e dirigido por Mario bertine, e entre o Barão de Charlus (um per- Monicelli. sonagem, segundo Suso, com grande iden- tificação no próprio Visconti) e Morel (que 4 Filmografia seria interpretado por Helmut Berger). Suso também realizou trabalhos de Ao longo de mais de sessenta anos de car- reparação em roteiros, o que hoje se reira, Suso escreveu não apenas uma, como denomina script doctor. Talvez o mais várias obras-primas, entre roteiros adaptados conhecido seja no roteiro do que viria a ser e originais. Seus personagens eram pessoas a comédia Roman holiday (A princesa e o simples, como em Bellissima e Rocco e i plebeu, 1953), de William Wyler. Apesar suoi fratelli, ou nobres italianos, como em do trabalho, seu nome não foi incluído nos Il gatopardo, Senso e Gruppo di famiglia in créditos do filme. un interno, entre outros. Quando perguntada sobre qual filme O primeiro roteiro foi para o filme Mio gostaria de ter escrito, era categórica ao figlio professore (1946), juntamente com apontar A slave of love (A escrava do amor), uma equipe de roteiristas, incluindo seu pai, 1976, de Nikita Mikhalkov. Emilio Cecchi, com produção de Carlo Ponti Suso foi vencedora de 19 prêmios de e dirigido por Renato Castellani, com o qual roteiro, entre eles o Oscar de Melhor Roteiro faria ainda È primavera (1949). no ano de 1966 pelo filme Casanova ‘70 No mesmo ano surgiria o primeiro grande (Mario Monicelli, 1965), prêmio que di- sucesso de sua carreira, um dos mais im- vidiu com outros cinco roteiristas, entre eles portantes filmes do Neorrealismo Italiano, Tonino Guerra, e o Leão de Ouro pelo con- Roma, città aperta, de Roberto Rossellini. junto de sua obra no Festival de Cinema de Em seguida, vieram trabalhos com Luigi Veneza de 1994. Zampa (L’onorevole Angelina, 1947, Vivere Seu último trabalho de grande sucesso foi in pace, 1947) e (Il delitto o roteiro do documentário Il mio viaggio in di Giovanni Episcopo, 1947). Italia (Minha viagem à Itália, 1999), dirigido Com Vittorio De Sica faria, em 1948, o por Martin Scorsese. Com o título provisório próximo filme marco em sua carreira, Ladri Il doce cinema, o filme alcançaria cerca de di biciclette. De acordo com Suso, Cesare quatro horas de duração. O projeto começara Zavattini, um dos co-roteiristas, provavel- muitos anos antes, quando, em companhia de mente teria terminado o filme do mesmo Federico Fellini Scorsese estivera em casa de modo que o livro, com o pai e o filho Suso, narrando a ambos o modo como o ci- voltando para casa derrotados. Ela propôs, nema italiano o influenciara em Nova York. então, um final climático, o que tornou o A idéia do documentário foi então sugerida filme inesquecível. O pai em desespero por Fellini naquela ocasião. rouba uma bicicleta, é humilhado diante do Em 2006 realizou seus derradeiros filho e isso estabelece um novo vínculo entre roteiros, L’inchiesta (A investigação), di-

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ambos. Outro sucesso com De Sica foi Mira- a vida de pessoas comuns, eram temas que colo a Milano (Milagre em Milão, 1951). permeavam grande parte da obra da autora. Com Michelangelo Antonioni realizou As breves análises fílmicas a seguir não I vinti (1952), La signora senza camelie estão necessariamente em ordem cronoló- (1953) e Le amiche (1955). gica. Foram agrupadas seguindo uma afini- Trabalhou ainda com em dade que prioriza, antes, a tipologia dos per- Salvatore Giuliano (1961), onde delineou sonagens em Suso e Visconti. um estudo único sobre o bandido siciliano Em Belissima, protagonizado por Anna do pós-guerra, trazendo um novo olhar sobre Magnani, uma mãe de classe operária sonha sua vida e morte e suas relações com a máfia para sua filha uma carreira no cinema no in- e políticos corruptos. Com Mario Monicelli tuito de que a criança possa ter uma vida faria Casanova ‘70 (1965). melhor que a sua. O processo de seleção e Trabalhou também com Franco Zeffirelli o conhecimento dos bastidores fazem-na re- em Taming of the shrew (A megera domada, dimensionar o custo pessoal para a família, 1967) e Brother sun, sister moon (Irmão principalmente para a própria filha, do in- sol, irmão lua; 1972). gresso em um universo onde os valores são (Le avventure di Pinocchio, 1972, La storia, outros. Restava-lhe encarar a realidade de 1985), (Metello, 1970), sua vida operária junto aos seus e abrir mão Nikita Michalkov (Oci Ciornie, 1987). do sonho. Em Rocco e i suoi fratelli se voltaria 5 Com Visconti ao enfoque em pessoas comuns ao abordar- se a mudança de uma família humilde, os Suso escreveu alguns dos mais importantes Parondi, liderada pela viúva Rosaria, de filmes da história do cinema em parceria uma região rural ao sul da Itália para uma com Luchino Visconti, incluindo roteiros de metrópole, Milão. O choque com a ética ur- cunho histórico, melodramas e dramas psi- bana ocasionaria degradação e corrupção en- cológicos, um cinema que não guardava es- tre os filhos. Somente Rocco (Alain Delon) paço para finais felizes. A intenção era outra. procura preservar seus altos padrões morais. O questionamento de seu lugar num mundo A disputa com um de seus irmãos, Simone, em transição, sentimentos de decadência, pela mesma mulher, Nadia, desequilibra a fracasso e desesperança compunham uma harmonia familiar. Mas são o desespero e construção de personagens que primava pela o desencanto frente a modernidade que per- densidade e expressividade dos conflitos in- meiam toda a narrativa. teriores. Tal desenho estabelecia contrastes Os personagens aos quais Suso se dedi- entre personagens de diferentes classes soci- cava geralmente eram seres em conflito com ais e indicava que Suso possuía talento in- uma nova ética ou com uma nova confluên- comum para construir tipos muito distintos. cia de forças alheias a sua vontade. Não raro A decadência da nobreza, à qual o próprio revelavam espanto com os novos tempos e Visconti pertencia, e de seus valores ante o se resguardavam, muitas vezes com desdém, surgimento de uma nova classe, tanto quanto diante da classe emergente, compondo em si mesmos o retrato solitário de uma época que www.bocc.ubi.pt 8 Denise Camillo Duarte em breve não mais existiria, situados que es- uma luxuosa residência em Roma. Ao alu- tavam a beira do abismo histórico. É o que gar o andar de cima para uma família con- se observa em Il gatopardo e dez anos de- flituosa (Helmut Berger, ), pois em Gruppo di famiglia in un interno, fica nítida a diferença que o separa dos mas muito mais no primeiro. Il gatopardo, novos inquilinos. Assim como o fora em Il considerado por muitos observadores como gatopardo, aqui também o protagonista é um a obra-prima de Suso, esplendidamente di- observador surpreso, passivo e nostálgico. rigida por Visconti, é uma adaptação do livro Senso e Ludwig seguem a tendência ao ro- homônimo de Giuseppe Tomasi di Lampe- mance histórico. Foi com Senso que se so- dusa, o príncipe de Lampedusa. Enfocando lidificou a parceria com Visconti, após terem um momento de transição para a aristocra- trabalhado em Belissima. Ele estava interes- cia siciliana, em 1860, o filme de três ho- sado na obra homônima de Camillo Boito ras de duração exibe o declínio do príncipe sobre o período histórico da unificação da de Salina, o Leopardo, interpretado por Burt Itália, no século XIX, relativo à luta con- Lancaster, que permanece como observador tra a dominação austríaca. Primeira cri- autômato do apogeu da classe comerciante. ação a romper com o estilo realista, um Seu sobrinho Tancredi (Alain Delon), ao divisor de águas na carreira de Visconti, contrário, não hesita em aderir aos novos Senso enquadra-se no gênero melodrama e tempos e casa-se com a filha de um comer- se assemelha a uma grande ópera român- ciante (). A narrativa vai tica que começa na cena inicial, no palco, gradativamente mergulhando nas reflexões de onde desce para tomar a cena até o final do protagonista sobre os contrastes entre as do filme. Com a habilidade de Suso, o filme duas classes, até chegar ao ápice, a sequên- transformou-se em obra-prima. A protago- cia final do baile. Ali, Salina atravessa cô- nista, a condessa Livia Serpieri (Alida Valli) modos observando também seus iguais com ganhou mais simpatia e vulnerabilidade que um misto de sentimentos, sendo o desdém e na história de Boito, alcançando, assim, a amargura os mais freqüentes. Questiona maior identificação com o público. Houve as atitudes e a estética desfavorável de seus ainda a colaboração do dramaturgo norte- descendentes, fruto de casamentos entre pri- americano Tennessee Williams nos diálogos. mos, com a beleza da noiva de seu sobrinho, Senso retrata o romance extraconjugal en- representante da nova classe. Suas lágri- tre Lívia e o tenente austríaco Franz Mahler mas diante do espelho são também por um (Farley Granger). Enquanto ela é verdadeira mundo que se modifica. E o passeio solitário no sentimento, mesmo já não conseguindo pela rua, que encerra o filme, revela-se como ocultar socialmente o caso, Mahler, por sua metáfora para o caminho sem volta para si e vez, é dissimulado e a utiliza para obter re- para os seus. cursos financeiros. Após conseguir seus in- Em Gruppo di famiglia in un interno, o tentos, o tenente a ignora e a humilha, o que jogo de contrastes dá-se de forma mais in- leva Lívia a buscar vingança. Na sequência timista. O protagonista, também interpre- final a protagonista vagueia sozinha em de- tado por Lancaster, é um solitário e culto sespero pelas sarjetas enlameadas da cidade, colecionador de arte, que vive recluso em

www.bocc.ubi.pt Roteirização em Suso Cecchi D’Amico 9 indicando que a decadência da nobreza tam- manos”. Aqui estava lançada a premissa para bém pode se dar por outros meios. o que ocorreria com Gianni ao final da trama. Ludwig, interpretado por Helmut Berger, O tema é a relação incestuosa ocorrida no compõe a vida do rei da Bavaria em sua passado entre os irmãos Sandra (Claudia gradativa demência. A decadência é sim- Cardinale) e Gianni (Jean Sorel). A tensão bolicamente demarcada pela degradação de entre esse passado e presente é a base para sua arcada dentária, que aos poucos vai apo- se estabelecer o conflito interior dos perso- drecendo em paralelo ao aumento de sua lou- nagens. Constrói-se uma atmosfera de culpa, cura. A companhia de Sissi (Romy Schnei- nojo e vergonha em torno da protagonista, der), por quem Ludwig nutre uma paixão si- que tentou refazer sua vida casando-se com lenciosa apesar do homossexualismo latente Andrew e deixando as lembranças para trás. ao qual dará vazão mais adiante, compõe o No entanto, as homenagens ao pai, morto em quadro de desencanto que o filme procura Auschwitz, fazem o casal voltar a sua cidade expressar. Em Suso e Visconti, a impera- natal, onde o passado ainda está presente na triz da Áustria é agora uma mulher madura forma do segredo que abalou toda a família, e frustrada, distante de seus tempos de gla- principalmente a relação da mãe com os dois mour, separada forçosamente dos filhos e ig- filhos. Ela, perdida entre a insanidade e a norada pelo marido. O roteiro é estruturado lucidez, e o padrasto não se cansam de re- permeando entrevistas com diversos perso- memorar, com revolta e desgosto, aquilo que nagens ligados ao rei, que julgam seus exa- abalou a família e que Sandra sempre lutou geros e prejuízo ao erário, causados tanto por para esquecer. Gianni reaparece e reafirma sua admiração e amizade cega ao compositor sua paixão pela irmã. Mais que isso, ele Richard Wagner, que lhe explora, quanto pe- escrevera um livro, Vaghe stelle dell’Orsa, los três castelos luxuosos que outorga cons- cujo tema é a relação entre ambos, o que truir. Por fim, constatada sua loucura e inca- enche Sandra de nojo e culpa. O marido está pacidade de gerenciar os recursos do reino, é cada vez mais ciente de que há um segredo afastado do poder. Antes, Ludwig já entrara oculto no passado dor irmãos. Ao descobri- em ruína física e mental. lo, Andrew parte, mas deixa a porta aberta Provavelmente nenhuma outra obra pen- para Sandra. Vaghe stelle dell’Orsa talvez sada por Suso e Visconti tenha alcançado seja um dos poucos trabalhos de Suso com maior grau de densidade dramática do que Visconti onde se vislumbre alguma possibi- Vaghe stelle dell’Orsa. A ambientação es- lidade de redenção final para o personagem colhida para a trama insere os personagens central, não sem uma perda marcante. em um local condenado ao fim. Volterra, na Toscana, é uma cidade parcialmente Conclusões soterrada pelas montanhas, que continuam a desmoronar sobre casas e edifícios da O digital e a internet vieram impor novos cidade. Nas palavras do personagem Gianni caminhos para a televisão e o cinema. Ou- a Andrew, marido de Sandra, “Volterra é a tros papéis estão se delineando para a escrita única cidade na Toscana condenada a morrer audiovisual a partir da reconfiguração da de doença, como a maior parte dos seres hu- dinâmica dos meios. O texto hipermidiático www.bocc.ubi.pt 10 Denise Camillo Duarte apresenta-se como uma das novas possibili- sada no sentido de incluir e dimensionar a dades para o roteiro. A tendência é que seja contribuição dos roteiristas, e não somente pensado para multiplataformas. Qual será o dos produtores, como o fora no Primeiro impacto de tais mudanças sobre o ofício do Cinema, e dos diretores, como tradicional- roteirista? À primeira vista, o processo de mente costumamos estudá-la desde então. construção do roteiro tenderá a uma maior Se é inegável a grande contribuição prestada complexidade quando pensado para a inter- pelo roteiro desde o cinema narrativo clás- atividade, ambientes virtuais e deslineariza- sico, seja, por exemplo, no modelo holly- ção narrativa. Porém, nenhuma inovação woodiano ou nas vanguardas dos anos 20 técnica será capaz de sozinha comportar um do século passado, neste caso quando as- bom roteiro. É preciso que o roteirista alie sume papel inovador em movimentos como técnica a talento, ou seja, que domine princi- o Impressionismo Francês e o Expressio- palmente a arte de escrever boas histórias. nismo Alemão, por que até hoje não se es- E é nesse ponto, o do talento, que o tra- boçou uma história do cinema incluindo seus balho realizado com esmero e capricho (téc- grandes roteiristas? nica) por Suso Cecchi d’Amico precisa ser O legado de Suso permanece como um lu- dimensionado pelos profissionais de cinema gar para se pensar essas questões e para in- contemporâneos, principalmente roteiristas, dicar que é preciso reservar, sim, um lugar de justamente no momento em que o roteiro destaque para o roteirista nos estudos históri- passa por profundas transformações. Muito cos de cinema e audiovisual. provavelmente, a figura e o papel que ela de- sempenhou enquanto roteirista já não exista Referências nos próximos anos. Suso, mesmo assim, permanecerá como o retrato da importância Bibliografia: que teve o roteirista em dado momento da história do cinema. A reflexão sobre sua BORDWELL, D. (2005), O cinema clás- obra é múltipla. Demanda o estudo das sico hollywoodiano: normas e princí- relações entre diretor e roteirista, questões pios narrativos. In: Teoria contem- de co-autoria, o trabalho entre roteiristas porânea do cinema: documentário e numa mesma obra, o papel do roteiro para narratividade ficcional. Volume II. Fer- a manutenção de um momento cinematográ- não Pessoa Ramos, organizador, São fico específico, como fora o Neorrealismo Paulo: Senac São Paulo, p. 278 a 301. Italiano, gêneros e roteiro, construção e BORDWELL, D.; THOMPSON, K. (1997), tipologia de personagens. Seja de que ponto Film art, United States of America: partir a observação, o fazer de Suso indica McGraw-Hill Companies. que muitas das inovações observadas em algumas das maiores obras do movimento GOSCIOLA, V. (2003), Roteiro para as no- foram propostas por ela, do mesmo modo vas mídias: do game à tv interativa, São que faria posteriormente em outras realiza- Paulo: Senac. ções de sua longa carreira. Uma indicação de que a história do cinema precisa ser repen-

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