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Sociologia, Problemas e Práticas

82 | 2016 SPP 82

Édition électronique URL : http://journals.openedition.org/spp/2439 ISSN : 2182-7907

Éditeur Mundos Sociais

Édition imprimée ISBN : 0873-6529 ISSN : 0873-6529

Référence électronique Sociologia, Problemas e Práticas, 82 | 2016, « SPP 82 » [En ligne], mis en ligne le 13 octobre 2016, consulté le 20 avril 2020. URL : http://journals.openedition.org/spp/2439

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© CIES - Centro de Investigação e Estudos de Sociologia 1

SOMMAIRE

Artigos

Socialização: onde a sociologia e as neurociências se encontram Pedro Abrantes

Ativismo digital em Portugal: um estudo exploratório Ricardo Campos, Inês Pereira et José Alberto Simões

“Se estava tudo bem, porque é que eu havia de ir a uma obstetra?”: identidade, risco e consumo de tecnologia médica no parto domiciliar em Portugal Mário J. D. S. Santos et Amélia Augusto

Experiences et strategies de femmes investies dans un “monde d’hommes”: le cas de la politique locale portugaise Maria Helena Santos, Patrícia Roux et Lígia Amâncio

Normas face ao género e à diversidade sexual: mudanças inacabadas nos discursos juvenis Dulce Morgado Neves

O campo universitário português: transformações e disputas entre 1988 e 2015 João Mineiro

O ensino da sociologia em cursos superiores de outras áreas de formação: a perspetiva de docentes e diretores Catarina Egreja

Mitos, percepciones y actitudes frente a los resultados combinados en Portugal: un estudio con énfasis en los árbitros y los hinchas Marcelo Moriconi Bezerra et Rita Teixeira-Diniz

Recensões

M. Margarida Marques (org.) (2014), Lisboa Multicultural Carlos Fortuna

Eduardo Duque (2014), Mudanças Culturais, Mudanças Religiosas. Perfis e Tendências da Religiosidade em Portugal Numa Perspetiva Comparada José Pereira Coutinho

Chloé Froissart (2013), La Chine et Ses Migrants. La Conquête d’une Citoyenneté Virginie Arantes

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Artigos

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Socialização: onde a sociologia e as neurociências se encontram Socialisation: where sociology and the neurosciences meet Socialisation: où la sociologie et les neurosciences se rencontrent Socialización: donde la sociología y las neurociencias se encuentran

Pedro Abrantes

1 A sociologia baseia-se no princípio de que nós, os seres humanos desenvolvemos linguagens, conhecimento, disposições, valores, papéis e identidades, em configurações culturais, estruturas sociais e quadros de interação específicos. Este princípio tem sido, aliás, reafirmado pelos inúmeros sociólogos que recusam, por um lado, a visão da sociedade enquanto organismo, sistema ou estrutura independente dos indivíduos que a compõem e, por outro, a perspetiva da sociedade enquanto um agregado de escolhas racionais dos indivíduos, a partir de cálculos universais (inatos?) de custo-benefício.

2 Assim sendo, não deixa de ser preocupante a pouca investigação e reflexão que temos produzido acerca dessa capacidade e, aliás, o modo como tendemos a contornar, nos nossos estudos, qualquer referência à natureza humana. Os próprios conceitos de ator ou agente social , fundamentais nas propostas de renovação científica e ética que pretendem colocar o ser humano, dotado de intencionalidade e subjetividade, no centro da análise sociológica, conservam tal ambiguidade, permitindo uma fuga às questões sobre a natureza, através da redução da sociologia ao estudo do modo como os indivíduos atuam (ou agem) em contextos sociais (como se existisse um ser humano independente dessa atuação ou agência).

3 Terry Leahi (2012) estudou um conjunto de manuais de sociologia com impacto internacional, publicados nas últimas duas décadas, e observou, precisamente, uma evasão dos temas relativos à natureza e uma crítica sistemática às explicações biológicas do comportamento humano, assente na ideia de que este resulta da socialização dos indivíduos. Segundo uma posição comum nestas obras, os seres humanos seriam radicalmente distintos dos restantes animais, pois os segundos seriam comandados por instintos, enquanto os primeiros seriam governados por — e, simultaneamente, coprodutores de — cultura(s). O mais interessante é que, numa

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leitura mais fina, o autor observa diversas referências implícitas a aspetos da natureza para explicar as ações em sociedade, como a necessidade de alimentação, de segurança, de integração, os impulsos agressivos, os sentimentos de medo, vergonha ou orgulho, a fuga a sanções e a agressões ou a busca de recompensas e de bem-estar. Como conclui, a natureza humana é o elefante invisível na sala da sociologia.

4 Num estudo sobre o modo como a socialização tem sido abordada em 16 revistas internacionais de referência, no campo sociológico, pude apurar que, não constituindo um tema central na agenda da investigação, a socialização surge como fator explicativo de um conjunto diversificado de fenómenos, como a participação política e cívica, a etnicidade e o desvio, a religião e os valores, as estruturas familiares e a identidade de género, o percurso educativo e a integração laboral, as histórias de vida e as memórias coletivas, a reprodução e a mobilidade social.1 Tal como se aprofundou anteriormente (Abrantes, 2011), entendemos a socialização como o processo através do qual os indivíduos, ao longo da vida, participam na vida e, simultaneamente, incorporam um conjunto de referências que potenciam essa participação, incluindo linguagens, conhecimentos, crenças, valores, disposições, etc.

5 Uma observação dos quadros teóricos destes estudos não deixa de revelar uma significativa fragmentação das referências e, em muitos casos, uma “subteorização” do conceito de socialização. Obras fundamentais no ensino da sociologia, tais como as de Durkheim (1968 [1922]), Parsons (1968 [1951]) ou Berger e Luckmann (1998 [1966]), estão praticamente ausentes dos artigos analisados, sendo Pierre Bourdieu o que recolhe um maior número de referências sobre o tema — autor que curiosamente não produziu teoria sobre a socialização como tal. Por seu lado, existe uma utilização frequente de referências de outros campos disciplinares, com particular destaque para a teoria da aprendizagem social de Albert Bandura (1977) que, sendo uma perspetiva consagrada na psicologia, assenta na ideia de que o comportamento e a cognição se desenvolvem, fundamentalmente, em resultado de estímulos, recompensas e reforços. Será este o elefante que queremos?

6 Entretanto, alguns sociólogos têm vindo a desenvolver notavelmente o conceito de socialização (Lahire, 2002 e 2005; Dubar, 2005; Darmon, 2007), sendo já referências importantes para alguns dos trabalhos recenseados. Estas teorizações, ora tecem duras críticas às pseudoexplicações do social provenientes da genética, da sociobiologia ou das “ciências cognitivas”, ora recuperam autores clássicos da psicologia, sobretudo Freud e Piaget, com os quais, aliás, já haviam estabelecido um diálogo, mais ou menos explícito, as referidas obras de Durkheim, Parsons ou Berger e Luckmann. Se é certo que Freud e Piaget produziram contributos de uma riqueza inesgotável, este debate não dispensa uma atualização permanente, de parte a parte. Neste sentido, será importante reconhecer que, nas últimas décadas, se registaram enormes avanços no conhecimento sobre o funcionamento da mente humana, nomeadamente no campo das neurociências. Muitos destes estudos utilizam hoje conceitos como disposição, identidade ou eu (self), que são centrais na nossa disciplina, e inclusive têm providenciado à opinião pública explicações para diversos fenómenos sociais.

7 O impacto público destas démarches — que têm descurado, por seu lado, o grande volume de trabalho sociológico, elaborando explicações do social pelo biológico — comporta um sério risco de subalternização da sociologia, sobretudo nos domínios das ciências cognitivas e educacionais, mas não só, bem como de “tecnologização” da investigação e naturalização dos processos sociais — incluindo uma negligência acerca

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da diversidade, da dominação e da exclusão — apoiados por poderosos interesses políticos e económicos (Lahire, 2002; Pickersgill, 2013). É fundamental, portanto, reafirmar em que medida essas disposições, identidades e consciências são construídas em quadros culturais, estruturais e interacionais específicos, para utilizar a terminologia de António Firmino da Costa (1999).

8 Porém, em vez de generalizações a priori, a denúncia destas incursões ilegítimas pode ir a par de um diálogo interdisciplinar exigente e construtivo, proveitoso para o desenvolvimento de ambas as disciplinas e para o avanço do conhecimento científico, em geral. Neste artigo, na senda da proposta de Dores (2005) e dentro da linha que tenho vindo a desenvolver em estudos anteriores (Abrantes, 2011 e 2013), pretendo contribuir para este diálogo, discutindo alguns resultados de investigações do campo das neurociências que podem fortalecer a teoria sociológica acerca dos processos de socialização e, em sentido contrário, alguns avanços recentes do conhecimento sociológico que podem enriquecer a pesquisa sobre os processos mentais de aprendizagem. Não sendo precisamente sinónimos, os estudos recentes em ambos os domínios põem a nu as amplas áreas de convergência entre processos de socialização e de aprendizagem, assim como a utilidade de estabelecer uma ponte entre as investigações em ambos os domínios.

Perceções e disposições

9 Pesquisas recentes em neurociências têm mostrado que, longe de ser apreendida de forma imediata ou de ser determinada pela genética, a perceção que temos do nosso interior e, sobretudo, do mundo exterior é fortemente condicionada pelas nossas experiências passadas, devido à notável plasticidade do cérebro. A este propósito, as nossas capacidades percetivas, apesar de ocuparem uma grande parte do cérebro, são muito escassas à nascença e, assim permanecem, se não forem estimuladas desde uma idade precoce.

10 Mesmo na idade adulta, a nossa capacidade percetiva imediata permanece relativamente limitada e implica grandes gastos de energia. A perceção (visual, auditiva, etc.) que temos de uma dada situação depende, em grande medida, das experiências anteriores e daquilo que estamos motivados para alcançar. As cirurgias que têm restituído a visão a adultos cegos revelam, precisamente, as enormes dificuldades iniciais de interpretação e de processamento da informação visual, afetando a capacidade de identificar os objetos e o seu movimento, o que, em alguns casos, pode provocar danos cerebrais profundos (Sacks, 1996). Desde a infância, construímos, testamos e ajustamos continuamente suposições acerca da realidade, o que nos permite, a cada momento, focar-nos apenas nos aspetos que nos parecem fundamentais e que não correspondem aos mapas mentais previamente incorporados (Eagleman, 2012). Essas inferências não são apenas um conjunto de elementos memorizados de vivências anteriores, mas são, sobretudo, “narrativas” complexas sobre a nossa relação com o mundo, associadas a reações emocionais, juízos morais, nexos de causalidade e cálculos de probabilidade (Volpi, 2007).

11 Importa dizer que estes processos ocorrem a um nível inconsciente, orientados pela (e para a) prática, ativando um naipe alargado de perceções involuntárias, de memórias implícitas e de reações intuitivas. A prática permite assim inscrever um enorme volume de conhecimento no “espaço disposicional” — por vezes, designado também “memória

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maquinal” ou “sistema zombie”, em livros de divulgação científica, conforme a metáfora preferida — e acioná-lo em situações análogas, com ganhos de velocidade reativa e poupança energética.

12 Se um sociólogo lê os parágrafos anteriores, será quase inevitável que venham à sua memória (explícita ou implícita) conhecidas teorizações relativas à “construção social da realidade” (Berger e Luckmann, 1998 [1966]), à “formação do habitus” (Bourdieu, 1987) ou às “configurações sociogenéticas” (Elias, 1994 [1989]), entre outras. Inclusive antes de as neurociências esmiuçarem os mecanismos mentais em que decorrem estes processos, o seu impacto na vida social já havia sido analisado. E o conhecimento sobre estes mecanismos neurais vem, aliás, interpelar as variantes mais intelectualistas e racionalistas da sociologia, que tendem a analisar a sociedade, respetivamente, como produto de construções subjetivas e discursivas ou de escolhas racionais e circunstanciais dos indivíduos.

13 Nesta linha, têm-se desenvolvido estudos sociológicos sobre disposições operatórias, morais, emocionais e estéticas, em grupos sociais específicos, como é o caso dos pugilistas (Wacquant, 2010) ou dos militares (Lande, 2007), bem como as limitações e inversões dos processos de socialização, no caso dos doentes afetados por doenças degenerativas, como doença de Alzheimer (Cicourel, 2013). Reconhecendo que a larga maioria das pessoas participa (e é socializada) hoje em diferentes contextos e comunidades, as mentes modernas tornam-se uma “teia de filiações sociomentais” (Zerubavel, 1997), o que nos converte em “atores plurais” (Lahire, 2002), alimentando simultaneamente os processos de individualização e reflexividade, devido aos nossos esforços permanentes (e nem sempre bem-sucedidos) de analogia e transferência.

14 Grande parte da investigação em neurociências foca-se em anomalias genéticas, doenças ou acidentes que transformam, geralmente limitando, mas em alguns casos também expandindo, as capacidades operatórias, de perceção e de memória (nas suas diferentes variantes). Será uma linha promissora de investigação explorar em que medida estes sistemas estão, na generalidade das pessoas, ancorados a estruturas e dinâmicas sociais. Ao assumir que a influência da sociedade (em particular da cultura) ocorre nos níveis de consciência mais sofisticados, muitos estudos neurológicos subestimam o facto de as experiências — que reconhecem ser fundamentais na construção das mentes humanas — não ocorrerem num “vazio social” ou por “livre iniciativa” do indivíduo, mas sim nos contextos sócio-históricos específicos em que estes atuam e em que decorreu a sua socialização (podendo uns e outros divergir notavelmente). E estes contextos são geradores, não apenas de recursos distintos e assimétricos, mas também de diferentes linguagens, modos de relacionamento e representações do mundo.

15 Note-se, porém, que já existem estudos sobre os efeitos neurológicos de práticas culturais. Por exemplo, Maguire e outros (2000) descobriram que os taxistas londrinos têm um hipocampo muito mais desenvolvido do que a média, sendo esta uma área chave para a memória de longo prazo, em particular no que concerne à navegação e memória espacial. A quantidade de estudos que mostram como atividades culturais alteram processos mentais e, inclusive, provocam transformações genéticas, a longo prazo, tem vindo a crescer (Laland, Odling-Smee e Miles, 2010).

16 Por seu lado, é importante para a sociologia considerar que a plasticidade do cérebro tem limites e que estes são variáveis, entre seres humanos e, sobretudo, ao longo da vida de cada um. Ou seja, as disposições formam-se no curso de vida, mas não em

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palestras ou ações de formação, dado que algumas delas implicam a estimulação desde uma idade precoce ou apenas se desenvolvem em “períodos críticos” do desenvolvimento do corpo, pelo menos para obter performances socialmente distinguidas (Skrzypczak, 1996; Li, 2009). Inclusive, a ausência de certos nutrientes e estímulos (ou a exposição em excesso a outros) — que sabemos associados a condições e estilos de vida —, em especial, durante a gravidez e a infância, podem provocar danos irreversíveis nos sistemas percetivos e de memória implícita (Handel, Cahill e Elkin, 2007).

17 Além disso, a socialização representa um encadeamento (e não apenas uma justaposição) de processos (Darmon, 2007). As noções de socialização primária e secundária representam uma primeira aproximação a este fenómeno, mas é evidente que precisamos de aprofundar a questão. Sabemos hoje, por exemplo, que as áreas neuronais responsáveis pela produção da consciência (o eu autobiográfico) são mais lentas a desenvolver-se, o que pode explicar alguns elementos específicos das culturas infantis e juvenis. E sabemos que, ao longo da vida, a rigidez do cérebro vai aumentando, o que promove processos de hysteresis (Bourdieu, 1987), enquanto a incidência de doenças degenerativas (“dessocializadoras”) vai aumentando, o que não é independente dos contextos e estilos de vida.

18 Contudo, os sociólogos devem também ter presente que a investigação em neurociências não tem revelado a existência de qualquer sistema unificado ou coerente, gerador sistemático de práticas e representações, que funcione de forma independente da produção de significados (ou que controle essa produção). Embora este seja um campo em que muito está por descobrir, os avanços recentes parecem apontar, ao invés, para uma multiplicidade de sistemas disposicionais, em constante interação, mas com claras tensões entre si, sendo a sua harmonização um trabalho, sempre precário e a posteriori, realizado pelo eu (ver adiante o ponto “Consciência e reflexividade”). Assim, além da pluralidade das disposições que estão associadas aos diferentes contextos de vida e cuja transferência não é um dado adquirido (Lahire, 2002), torna-se igualmente importante que os sociólogos assumam que as próprias mentes são plurais, explorando, por exemplo, as diferenças, conflitos e negociações entre múltiplos processos mentais, configurados por diversas forças sociais. Por exemplo, estudar as relações entre as disposições rotinizadas e as elaborações conscientes, entre processos emocionais e racionais, entre desejos de curto e de longo prazo, entre memória quotidiana e memória dramática, entre lado direito e esquerdo do cérebro. A investigação das neurociências já tem produzido algum conhecimento nesta área (Eagleman, 2012), mas assumindo com frequência que, pelo menos, os primeiros elementos destes pares são biológicos (e simplificando frequentemente a dimensão social dos segundos). Se atendermos, por exemplo, ao modelo de “inteligências múltiplas” de Gardner (1995), temos sete distintas capacidades que se desenvolvem de forma autónoma, todas elas em interação com os quadros estruturais, culturais e relacionais específicos em que os indivíduos são socializados ao longo da vida. Os sociólogos podem efetivamente reconhecer as forças sociais que atuam na produção destes distintos mecanismos, bem como estudar os modos (socialmente construídos) de articulação (ou “negociação”) entre eles.

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Emoções e relações

19 A investigação recente no campo das neurociências tem revelado a importância das emoções na regulação da vida humana, em questões fundamentais como a conservação e ativação das memórias (aprendizagem), os processos de tomadas de decisão ou a própria construção do eu. António Damásio (1995 e 2011) é uma das principais referências mundiais, a este respeito, tendo questionado o dualismo clássico entre mente e corpo, ao demonstrar o modo como as emoções, estando orientadas para a homeostase, constituem elementos fundamentais na regulação do corpo, mas também nos processos cognitivos e de tomada de decisão dos seres humanos. Em vez de reações instintivas e irracionais, as emoções permitem-nos, em pouco tempo, aceder à memória implícita, combinar inúmeras variáveis e tomar decisões eficazes para o nosso bem- estar pessoal (mesmo que não as consigamos explicar, senão por referência à intuição).

20 O autor português distingue emoções básicas (dor, prazer, medo, nojo, etc.) e emoções sociais (vergonha, orgulho, desprezo, etc.), atribuindo uma menor importância a estas últimas, como criação evolutiva recente e pouco profunda, em termos neurológicos. Diferencia também emoções e sentimentos, considerando que estes últimos são interpretações conscientes, culturalmente situadas, das reações emocionais. No entanto, Damásio (2011) reconhece que as emoções sociais são criadas nas mesmas regiões que as emoções básicas, envolvendo processos cerebrais profundos e intimamente associados à construção do eu. Assim, uma emoção social como o desprezo, por exemplo, constitui uma apropriação social de uma repulsa biológica (o nojo).

21 Na linha de autores como Durkheim, Goffman ou Bourdieu, os avanços recentes no campo da sociologia das emoções têm colocado em causa este mapa conceptual, ao mostrar como os padrões culturais, as estruturas sociais e os quadros de interação têm um impacto profundo, não apenas nos sentimentos, mas também nos dispositivos e registos emocionais dos indivíduos, incluindo as emoções mais básicas. A diferença (e tensão) entre as emoções geradas, de forma espontânea, nomeadamente no âmbito das relações de poder, e a capacidade dos seres humanos de gerirem essas emoções, a partir de “guiões culturais” incorporados em processos de socialização (também eles profundamente assimétricos), constitui um dos temas em foco em muitos destes trabalhos (Turner e Stets, 2006; Handel, Cahill e Elkin, 2007).

22 Além disso, tal como nota Dores (2005), a ideia em voga nas neurociências de que os desenvolvimentos culturais derivam dos mecanismos biológicos de homeostase e seleção natural é controversa, pois parece não reconhecer que a vida social tem lógicas próprias e que não tendem, necessariamente, para o equilíbrio ou a preservação da espécie. Curiosamente, o neurocientista Eagleman (2012) percorre o caminho inverso — igualmente polémico — ao defender que a mente humana tem um conjunto de propriedades que habitualmente atribuímos às sociedades, como é o caso da existência de diversas forças que estabelecem relações de cooperação, concorrência, conflito e negociação entre si.

23 Todavia, como sociólogos, devemos ter em consideração que as emoções são elementos fundamentais na produção e ativação de memórias, na construção do eu e, por conseguinte, nos processos de socialização.

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24 Um dos mecanismos fundamentais é ativado numa região do cérebro composta pela amígdala e pelo hipocampo, responsável por explorar o mundo exterior e alertar-nos sempre que existem situações de perigo, gerando reações imediatas de grande intensidade emocional, expandindo momentaneamente as nossas capacidades percetivas e operativas. Além disso, estes “alertas” permitem conservar memórias de longo prazo e ativá-las sempre que nos deparamos com situações idênticas (Franks, 2006). Por seu lado, um desgaste prolongado das “hormonas do stress” causa perdas seletivas de memória (traumas).

25 O trabalho de Joan Ferrés i Prats (2008), ao contrastar os modelos de comunicação das escolas e dos media, foca a importância das emoções (quer positivas quer negativas) no estabelecimento de sintonias e, por conseguinte, na possibilidade de se produzirem (ou não) processos de aprendizagem (tanto voluntários como involuntários). Também o estudo das autobiografias dos participantes num programa de educação de adultos permitiu-nos explorar o modo como certas experiências dramáticas são recordadas, em detalhe, ao longo de toda a vida e marcam profundamente os processos de socialização (Abrantes, 2013). Outro exemplo de como as emoções podem estar na base de representações, crenças e práticas é fornecido por um estudo sociológico recente que mostra que a religiosidade dos indivíduos está fortemente correlacionada, não apenas com a sua socialização familiar, mas também com sentimentos de insegurança pessoal e societal (Ruiter e van Tubergen, 2009). O que acontece é que essa insegurança, mais do que uma disposição genética, está associada também à socialização dos indivíduos, em condições sociais, padrões culturais e quadros de interação específicos.

26 Este exemplo conduz-nos às relações de longa duração que estabelecemos uns com os outros e que podem adquirir uma enorme carga emocional muito intensa. Tal como nota Settersten Jr. (2002), os estudos sobre a socialização devem, por um lado, focar as relações afetivas quotidianas (familiares, de amigos ou de trabalho), no âmbito das quais construímos (e sintonizamos) as nossas formas de pensar, sentir e agir, seja por identificação seja por distinção, e, por outro lado, considerar que, pelo menos na idade adulta, estas relações podem adquirir formas bastante abstratas, como a pertença a uma geração, a uma profissão ou a uma nação. Meyer e Lobao (2003) fornecem evidência empírica deste fenómeno, ao mostrar como as atitudes políticas relativamente às transformações económicas são fortemente influenciadas pelos esposos/esposas. As autoras contestam, desta forma, o peso atribuído à socialização primária, na literatura sociológica, defendendo o conceito de “socialização mútua”.

27 A este propósito, uma área relevante de investigação é aquela que se prende com o conhecimento sobre os “neurónios-espelho”, responsáveis pela mimética, isto é, a capacidade de nos colocarmos na pele de outros, enquanto os observamos, sentindo aquilo que os outros estão a sentir, o que tem uma utilidade evidente: permite-nos cooperar uns com os outros, assim como prever se nos querem atacar (Damásio, 2011). A literatura, o teatro e o cinema, por exemplo, têm-se baseado nesta capacidade e alargado o seu campo de possibilidades, providenciando experiências significativas de socialização em contextos remotos (Volpi, 2007). Visto que a nossa mente consegue simular movimentos corporais e estados emocionais alheios, a interação entre pessoas e o próprio processo de socialização ocorrem a um nível mais profundo do que os processos conscientes de observação e de comunicação (Brown e Seligman, 2009).

28 É interessante colocar em diálogo estes avanços das neurociências com os estudos que têm vindo a explorar os substratos emocionais das relações de poder e, em particular,

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da estrutura de classes. Mesmo reconhecendo que a “consciência de classe” é hoje fraca, em muitos contextos sociais, os trabalhos de Diane Reay (2005) têm vindo a revelar um conjunto de emoções — tais como o ressentimento, a culpa, a vergonha, a retração, o medo, a confiança, a empatia, a inveja, a satisfação, a deferência, a arrogância, o desprezo, o orgulho, a raiva, o embaraço ou a pena — que são produzidos nas (e regulam as) relações de classe, desde a infância. A autora distingue então duas fações das classes médias, uma caracterizada pela satisfação e o desprezo, a outra pela culpa e a empatia, bem como dois perfis na classe trabalhadora, um pautado pelo ressentimento e o orgulho, o outro pela deferência e a vergonha. Por seu lado, segundo Andrew Sayer (2005), estas emoções estão intimamente associadas a julgamentos morais implícitos sobre aquilo que cada indivíduo é, deve ser, tem e merece. De forma semelhante, Turner e Stets (2006) assinalam como as emoções, nas relações humanas, estão fortemente articuladas com as noções de justiça acerca dos direitos e deveres atribuídos a cada um.

Consciência e reflexividade

29 A investigação em neurociências tem também produzido importantes avanços no estudo da consciência, mostrando que esta é um produto do cérebro e, especificamente, de uma combinação entre genes e experiências, ao longo da vida. Embora reconheçam que uma grande parte das operações mentais permanece inconsciente, o que, aliás, contribui para a sua eficácia, autores como Damásio (2011) ou Eagleman (2012) notam que a consciência significou um passo fundamental na evolução da espécie, permitindo- lhe enormes ganhos de regulação, adaptação e dominação, incluindo o desenvolvimento de estruturas simbólicas cada vez mais complexas e abstratas.

30 Segundo estes autores, a consciência é o maestro que permite coordenar os diversos circuitos disposicionais e imagéticos, construindo um conhecimento mais sofisticado e abstrato acerca do eu e do mundo exterior, com vantagens na interpretação das situações e na regulação das ações. Visto que, em cada momento, o volume de informação que conseguimos reter na consciência é limitado, as emoções produzem marcadores acerca dos elementos que são decisivos e com os quais as disposições não estão a conseguir lidar, nos quais, portanto, a consciência deve focar-se. Importa notar que a consciência não se forma numa região específica do cérebro, mas em circuitos neurais complexos que articulam diferentes regiões. Porém, existem efetivamente especificidades próprias na ativação da consciência, evidentes nos casos de acidentes e anomalias que inviabilizam a utilização de certas áreas, mas também nas diversas situações quotidianas, vividas por qualquer indivíduo, em que os sistemas disposicionais e conscientes não coincidem.

31 Damásio (2011) caracteriza três etapas do desenvolvimento da consciência. Na base, encontra-se o proto-eu, composto por sentimentos primordiais acerca do próprio corpo (por exemplo, a consciência de ter fome). Num segundo momento, desenvolve-se o eu nuclear, enquanto um reconhecimento (uma narrativa coerente acerca) da relação imediata entre o corpo e o meio exterior (a consciência do aqui e agora). No terceiro momento, forma-se o eu autobiográfico, assente na capacidade de relacionar as experiências ocorridas ao longo da vida, através de uma coordenação e evocação das memórias de longo prazo. Um duplo processo de ajustamento está, permanentemente, em curso: o presente (o aqui e agora) é interpretado à luz do passado, mas o passado

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também é recriado à luz do presente (Sacks, 1996). Note-se que a memória e a consciência autobiográficas (a construção do eu) estão intimamente associadas ao desenvolvimento dos sistemas emocionais, mas também à criatividade e às competências linguísticas e sociais, como se tem observado nas pesquisas sobre o autismo.

32 Embora a investigação sobre este tema ainda se esteja a iniciar, alguns estudos que cruzam neurociências e antropologia têm mostrado uma variação significativa nos processos de formação do eu, consoante o contexto cultural em que vivemos. Assim, Han e Northoff (2009) argumentam que o eu e o outro são representados, não através de processos mentais distintos, mas sim num continuum de self-relatedness. Ou seja, os processos mentais que ativamos, ao pensar em pessoas que consideramos próximas de nós, têm mais semelhanças com aqueles que ativamos quando pensamos em nós próprios do que quando pensamos em pessoas que consideramos estranhas.

33 A partir de algumas experiências, os autores confirmam que existem variações culturais importantes nos processos mentais de construção do eu e do outro. Assim, quando abordam um tema relativo à sua mãe, os chineses ativam uma zona do cérebro (MPFC) que os norte-americanos só ativam quando pensam em si próprios. Em termos comparativos, os segundos ativam mais áreas do cérebro quando veem fotos de si mesmos, mas ativam menos áreas quando observam imagens dos seus familiares. É interessante que, segundo estes autores, este “sentido de identificação”, bem como o seu oposto “sentido de distinção”, são experiências afetivas (culturalmente condicionadas) e que dão origem a um mapa interno de self-relatedness.

34 Mesmo sem considerar mudanças físicas no cérebro, vários neurologistas têm vindo a notar como a adoção de certos papéis sociais permite alterar as configurações neurais que coordenam os padrões motores (disposições), o que permite inclusive superar certos problemas mentais. É o caso, por exemplo, de um paciente de Oliver Sacks (1996), cujas manias e tiques compulsivos (síndrome de Tourette), que o afligiam frequentemente, se suspendiam no momento em que assumia a sua atividade profissional como cirurgião. Como conclui o autor, “o que aqui se observa é um ato fundamental de encarnação ou personificação, por meio do qual as aptidões, os sentimentos, a totalidade dos engramas neurais dum outro eu, depois de assumirem o controlo do cérebro, redefinem a pessoa e todo o seu sistema nervoso enquanto dura a representação” (1996: 133). Esta constatação permite-nos observar o efeito profundo da consciência, inclusive, sobre as disposições inconscientes dos indivíduos.

35 Não devemos, pois, ser reticentes em utilizar o conceito de consciência, receando alguma incursão em mecanismos inatos ou espirituais, quando as neurociências têm revelado que se trata de um produto da mente e, simultaneamente, da sociedade em que esta se desenvolve. A este propósito, será útil convocar os trabalhos sobre a identidade, a reflexividade e a construção biográfica, desenvolvidos por autores como Anthony Giddens (1994), Beck e Beck-Gernsheim (2003) ou Margaret Archer (2007), entre outros, reconhecendo que constituem fenómenos muito mais antigos na história da Humanidade, mas que se desenvolveram notavelmente na modernidade, em estreita associação com um conjunto de “instituições abstratas” (a ciência, os media, o estado- providência, o mercado, a escola, etc.). As transformações em curso noutras regiões do mundo implicam estudarmos este tema, hoje, assumindo a existência de “modernidades múltiplas” (Eisenstadt, 2001).

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36 Por seu lado, tal como a importância das disposições desafia as perspetivas sociológicas mais racionalistas, os estudos sobre a consciência não deixam de colocar em causa as teorias mais “disposicionalistas”, em que as ações individuais são “orquestradas sem serem o produto da atividade organizadora de um maestro”, nas palavras de Bourdieu (1987: 193). Sendo as disposições incorporadas, em grande medida de forma inconsciente, em diferentes contextos e etapas de vida, sem haver uma necessária coerência e transferência entre si (Lahire, 2002), existe efetivamente uma consciência (o tal maestro) que procura permanentemente (re)construir uma narrativa única e consistente, mesmo que provisória e precária, acerca do eu e do mundo envolvente, a partir da evocação de memórias produzidas em diferentes experiências vividas, impondo uma certa ordem sobre a pluralidade disposicional.

37 No seu tratado sobre o processo de socialização, Muriel Darmon (2007) distingue precisamente dois mecanismos distintos, nem sempre coerentes: um ocorrendo ao nível do corpo, o outro ocorrendo ao nível da linguagem (ambos ocorrem no cérebro, mas em processos distintos). O autor assume que a socialização, sendo fundamental para a constituição da consciência, inclui hoje uma dimensão de “trabalho sobre si”, parcialmente orientado pela intencionalidade individual.

38 É neste ponto que será importante reequacionar a já conhecida crítica ao conceito de habitus, pela pouca importância atribuída à consciência e, em particular, à racionalidade (Casanova, 1995). Afastando-nos de noções naturalistas da racionalidade, importa, contudo, investigar o peso de certas operações mentais, assentes em princípios abstratos e universalistas (o que não significa universais), associados a princípios morais (aquilo que é correto, legítimo e eficaz) e incorporados através de processos de socialização específicos e prolongados no tempo (com destaque para os sistemas educativos e meios de comunicação social, mas não só), na forma como os indivíduos vivem, pensam e agem, nas sociedades contemporâneas (mesmo quando isso os prejudica ou oprime, objetivamente).

39 Contudo, a referida conceção de três distintos níveis na formação da consciência abre também espaço à discussão acerca de possíveis divergências e tensões entre eles. Como nota Sacks (1996), sendo a consciência autobiográfica constituída em forte associação com os mecanismos emocionais, há traumas e bloqueios psicológicos provocados pela incapacidade de integrar certas memórias ou perceções na restante narrativa autobiográfica. Daí que as pessoas possam tornar-se resistentes a aprender com certas experiências. Aliás, este é um dos princípios fundamentais da psicanálise, na sua busca por tornar conscientes as memórias que permanecem reprimidas, afetando os estados mentais, as perceções e os comportamentos dos indivíduos.

40 A este propósito, a par dos estudos mais circunscritos à formação de certas disposições, valores ou identidades, tem-se desenvolvido uma linha de estudos sobre a “socialização autobiográfica”, consolidando a ideia de que a história de vida (incluindo a sua dimensão prospetiva) constitui um stock estável e duradouro de (auto)conhecimento, mesmo em períodos de grande transformação sócio-histórica, como foi o caso da transição para o capitalismo e para a democracia liberal, na Europa de Leste (Hoerning e Alheit, 1995; Kupferberg, 1998). Mas a relação entre socialização situacional e autobiográfica requer maior investigação, de preferência interdisciplinar. Na sua obra dedicada ao processo de socialização, Claude Dubar (2005) distingue precisamente a construção de uma “identidade relacional”, baseada no aqui e agora (ou seja, variável consoante o momento e o contexto de vida), e uma “identidade autobiográfica”,

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enquanto uma narrativa mais estável e que relaciona as diferentes etapas e contextos da vida individual, mas não explora, nem teórica nem empiricamente, as relações (e conflitos) entre elas.

Notas conclusivas

41 Ao longo do presente artigo, estabelecem-se algumas pontes entre a investigação recente em sociologia e em neurociências, em particular sobre os processos de socialização. Importa notar que este diálogo não nos permite estabelecer qualquer princípio comum que permita explicar o social pelo biológico (ou vice-versa). Desta forma, procura-se mostrar como um conhecimento recíproco atualizado é útil para o desenvolvimento de ambas as áreas, desde que se respeitem as especificidades teóricas e metodológicas de cada uma delas.

42 Um dos principais obstáculos a uma abordagem interdisciplinar encontra-se, precisamente, nas divergências metodológicas. Mesmo que seja possível construir um quadro teórico em que se articulem conceitos e resultados de investigação de ambas as áreas, os protocolos metodológicos considerados válidos, em cada uma delas, permanecem claramente diferenciados (Brown e Seligman, 2009). Ainda assim, a crescente importância, atribuída em ambos os campos às abordagens biográficas constitui uma base promissora para futuras aproximações entre os dois campos.

43 A estruturação do artigo em três domínios não pretende, obviamente, abarcar todas as questões em que esta relação entre neurociências e sociologia pode ser explorada. Além disso, devemos sublinhar que as disposições, as emoções e a consciência não são geradas em áreas bem delimitadas do cérebro e funcionam de forma profundamente interligada, na grande maioria das situações. Por seu lado, nenhum destes domínios é mais biológico ou mais social do que outros.

44 Contudo, procurámos ao longo do artigo mostrar que, em termos analíticos, existem vantagens em distinguir estes três domínios, no sentido em que efetivamente eles podem ativar circuitos neurais distintos, forças sociais diferentes e tipos de ação divergentes. Busquei, desta forma, contribuir para que, após o reconhecimento de que vivemos em sociedades plurais e de que somos, nós próprios, atores plurais, enquanto sociólogos, estudemos também as implicações de possuirmos mentes plurais.

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NOTAS

1. O período analisado foi de 1991 a 2012 e as revistas consideradas foram: Acta Sociologica, American Journal of Sociology, American Sociological Review, Annual Review of Sociology, Current Sociology, European Journal of Social Theory, European Sociological Review, International Sociology, Journal of Sociology, Social Forces, Sociological Perspectives, Sociological Quarterly, Sociological Research Online, Sociological Review, Sociological Spectrum e Sociology. O principal critério para a construção desta amostra de artigos foi o facto de a palavra “socialização” surgir no título, nas palavras-chave ou no resumo. Foram identificados e analisados os 75 artigos nos quais a socialização constitui um dos temas centrais do trabalho, o que corresponde a cerca de 1% do universo dos artigos publicados nestas revistas naquele período.

RESUMOS

O artigo apresenta um diálogo entre perspetivas atuais, nos campos da sociologia e das neurociências, em torno dos processos de socialização, observando tensões e hiatos, mas também convergências e pistas para um desenvolvimento científico assente na cooperação interdisciplinar. Esta discussão centra-se em três domínios profundamente interligados: perceções e disposições; emoções e relações; consciência e reflexividade. Advoga-se que avanços recentes no campo das neurociências são valiosos para o desenvolvimento do conhecimento sociológico e vice-versa, nomeadamente numa questão central para ambos: o modo como desenvolvemos (e articulamos) disposições e um eu autobiográfico, a partir das experiências que vivemos.

The article provides a dialogue between current perspectives, in the fields of sociology and neurosciences, over the socialization processes, stressing tensions and gaps, but also some convergences and clues for a scientific development based on interdisciplinary cooperation. Such discussion is focused on three intertwined topics: perceptions and dispositions; emotions and relations; conscience and reflexivity. I argue that recent findings in neurosciences are valuable for an advance of the sociological knowledge (and vice versa), especially on a central question for both: the way people develop (and combine) dispositions and a biographical self, based on lived experiences.

Cet article présente un dialogue entre les approches actuelles, dans les champs de la sociologie et des neurosciences, autour des processus de socialisation, en observant les tensions et les cassures, mais aussi les convergences et les pistes pour un développement scientifique fondé sur la coopération interdisciplinaire. Ce débat est axé sur trois domaines profondément reliés entre eux: perceptions et dispositions; émotions et relations; conscience et réflexivité. L’article soutient que les avancées récentes dans le domaine des neurosciences sont précieuses pour le développement de la connaissance sociologique et vice-versa, surtout sur une question centrale pour les deux: la façon dont nous développons et (articulons) des dispositions et un moi autobiographique, à partir des expériences que nous vivons.

Este artículo presenta un diálogo entre las perspectivas actuales en el campo de la sociología y las neurociencias en relación a los procesos de socialización observando tensiones y huecos, así

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como convergencias y pistas para un desarrollo científico sustentado en la cooperación interdisciplinar. Esta discusión se centra en tres apartados profundamente interligados: percepciones y disposiciones; emociones y relaciones; conciencia y reflexividad. Se defiende que los avances recientes en el campo de las neurociencias son valiosos para el desarrollo del conocimiento sociológico y viceversa, particularmente en una cuestión central para ambos: el modo como desarrollamos (y articulamos) disposiciones y un yo autobiográfico a partir de las experiencias que vivimos.

ÍNDICE

Palabras claves: habitus, disposiciones, emociones, conciencia Palavras-chave: habitus, disposições, emoções, consciência Keywords: habitus, dispositions, emotions, conscience Mots-clés: habitus, dispositions, émotions, conscience

AUTOR

PEDRO ABRANTES Professor da Universidade Aberta e investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL), Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]

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Ativismo digital em Portugal: um estudo exploratório Digital activism in Portugal: an exploratory study Activisme numérique au Portugal: une étude exploratoire Activismo digital en Portugal: un estudio exploratório

Ricardo Campos, Inês Pereira e José Alberto Simões

Introdução

1 Nos últimos anos temos assistido, em diferentes contextos geográficos, ao aparecimento de formas novas e inesperadas de mobilização coletiva e de ativismo. Entre os aspetos inovadores encontra-se a utilização de equipamentos e média digitais como recursos cruciais para a participação política e cívica. Em tempos de crise económica e turbulência social, estas novas ferramentas tecnológicas e meios de comunicação têm-se afigurado particularmente relevantes para exprimir reivindicações e organizar o protesto, favorecendo o surgimento de formas de mobilização informal (leia-se extrainstitucional) da ação política e cívica. Nestas práticas os jovens têm tido um papel proeminente, embora não exclusivo, enquanto rosto visível do descontentamento generalizado, como atestam as recentes manifestações públicas a que assistimos em Portugal e noutros países. Os protestos de 2011 na Tunísia ou no Egito são um bom exemplo disso, do mesmo modo que o movimento de “Los Indignados” em Espanha, no mesmo ano, também testemunha a mesma tendência. Não por acaso, em Portugal, a manifestação denominada “Geração à rasca”, que ocorreu a 12 de março de 2011, e que tem sido considerada uma das mais marcantes da sociedade portuguesa dos últimos anos, teve os jovens como protagonistas, tendo sido notada por diversos autores como um momento de viragem para um novo ciclo de protesto (Baumgarten, 2013; Accornero e Pinto, 2015; Estanque, Costa e Soeiro, 2013).

2 Podemos situar a manifestação da “Geração à rasca” num ciclo de protesto mais amplo que se intensificou durante o ano de 2012, tendo culminado na primeira metade de

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2013, para depois sofrer uma diminuição progressiva que continuou durante todo o ano de 2014. Este ciclo é caracterizado por um reportório de ação diversificado, que inclui grandes manifestações com impacto público, marchas, assembleias, ocupação de espaços públicos, sit-ins, etc. Com efeito, desde 2011, emergiram no país o que podemos designar “novíssimos movimentos sociais” (Feixa, Pereira e Juris, 2009) em torno de ações de protesto específicas sob a reivindicação geral da “luta contra as medidas de austeridade” desencadeadas pela crise económica e financeira. A agudização da crise conduziu ao resgate financeiro, em 2012, com a intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Central Europeu (BCE) e da Comissão Europeia (CE), que passaram a ser popularmente conhecidos como “Troika”. Atendendo à fraca tradição de envolvimento político e participação cívica da população portuguesa (Cabral, 2014; Mendes e Seixas, 2005), os protestos atuais surgem como um momento significativo de viragem numa paisagem de participação pública relativamente inexpressiva, inaugurando o que pode ser designado “um novo ciclo de contenção” caracterizado por uma nova estrutura de oportunidades políticas (Tarrow, 2011).

3 Este artigo baseia-se num projeto realizado entre 2014 e 2015,1 que procurou articular o uso dos média digitais com as formas de ativismo e participação pública dos jovens em Portugal. Este projeto não trata diretamente de todo o período de movimentação social e política mais recente, embora tenhamos de reconhecer que este horizonte temporal mais amplo se encontra presente na informação recolhida e é algo que tem implicações óbvias nos resultados que aqui apresentamos. Metodologicamente este projeto adotou uma abordagem de natureza qualitativa, envolvendo uma pesquisa online (análise de plataformas digitais) e off-line (entrevistas aprofundadas, observação de eventos, etc.). Neste artigo analisaremos, por um lado, o uso das tecnologias digitais no ativismo, procurando articulá-las com um conjunto de dimensões do “trabalho ativista” e, por outro lado, as representações acerca dos desafios, oportunidades e resistências despoletados pelo denominado “ativismo digital”.

Média digitais, ação coletiva e movimentos sociais

4 A importância do digital na mobilização coletiva tem vindo a ser destacada desde os acontecimentos que se sucederam ao levantamento neozapatista em meados dos anos 90 (Rovira, 2009), a que se seguiram, na primeira década dos anos 2000, os movimentos contra a guerra do Iraque e alterglobalização (Sommier, 2003; Juris, 2008; Feixa, Saura e Costa, 2002). Em certo sentido, o espaço de protesto contemporâneo não pode deixar de ser concebido como um espaço híbrido, onde a internet e as ruas se interligam de formas variadas (Castells, 2012). O papel das redes digitais enquanto instrumento de democratização e participação pública tem sido interpretado de forma variável (Dahlgren, 2013). Uma perspetiva otimista leva-nos a sublinhar o seu papel não só democratizador como também libertador (Castells, 2012), estando esta, numa certa variante, associada à valorização “cyberfetichista” das tecnologias digitais, com óbvias implicações ideológicas (Rendueles, 2013). Porém, as potencialidades da internet e dos média digitais podem ser encaradas de forma crítica, considerando que a sua utilização não é necessariamente geradora de mais participação (Fuchs, 2011). Com efeito, esta interconexão global tem os seus limites. Se a concertação e o impacto social se baseiam largamente nesse tipo de redes, o acesso a estas torna-se uma pré-condição para a mobilização. Neste sentido, novas desigualdades e novas hierarquias internas aos

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próprios movimentos sociais são construídas em torno da questão tecnológica, distinguindo entre si coletivos com diferentes graus de conexão à rede e literacia digital e, no seio do próprio ativismo, atores individuais com diferentes capacidades técnicas (Sáez, 2004b; Tamayo, Burch e Enriquez, 2004).

5 Para além da utilização generalizada de ferramentas tecnológicas digitais em atividades políticas e, sobretudo, do seu papel nos protestos atuais, a verdade é que podemos considerar de forma mais complexa a sua utilização, associada a interesses e causas variadas, mas igualmente a trajetórias e níveis de competência variáveis para utilizar estas ferramentas (Postill, 2014). Estas questões conduzem-nos a uma primeira distinção que se revelará fundamental no entendimento que faremos mais adiante a respeito de diferentes formas de ativismo digital. Do nosso ponto de vista, a relação entre os movimentos sociais e a internet pode ser analisada numa dupla perspetiva.

6 Por um lado, a internet surge como uma ferramenta ao serviço dos movimentos sociais, permitindo a rápida divulgação de conteúdos e a comunicação sincrónica em larga escala e, consequentemente, a construção de alternativas políticas em rede e na rede (Atton, 2004; Sáez, 2004a; Hill, 2013; Padilla, 2012). Por outro lado, as próprias tecnologias de informação tornam-se causa e motivo de contestação social, constituindo o leit motiv central de movimentos diversos: em prole do software livre, da livre partilha de conteúdos ou contra a cibercensura (Raymond, 1999; Postigo, 2012; Hamelink, 2000).

7 Centremo-nos na primeira dimensão. A utilização instrumental da internet, enquanto ferramenta ao serviço dos movimentos sociais decorre em níveis muito diferenciados, desde a simples colocação de informação em sites, blogues ou páginas de Facebook até a usos mais sofisticados e transgressores, que podemos agrupar sob o epíteto de desobediência civil eletrónica (Sádaba e Roig, 2004). Estes diferentes níveis pressupõem atores diferenciados, dotados de níveis de conhecimento distintos e de intenções variadas. O próprio impacto da utilização da internet e a sua articulação com um espaço off-line é diverso. Tendo em conta esta diversidade de formas de relação com as tecnologias de informação que se encontra refletida na bibliografia sobre a temática, propomos uma tipologia analítica simplificada, estruturada em três níveis de ação, tal como apresentamos na figura 1.

Figura 1 Tipos de utilização de tecnologias digitais em práticas ativistas: internet enquanto “ferramenta” e “causa”

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8 Olhando para esta tipologia encontramos, em primeiro lugar, as ações mais transgressoras e tecnologicamente mais sofisticadas. Estas compreendem um conjunto de repertórios de ação contestatária que decorrem no próprio espaço virtual, quer reproduzindo táticas comuns off-line, quer encontrando formas de conflito específicas do espaço virtual. O ciberespaço surge, neste sentido, como um palco para a ação de protesto. Entre os repertórios de ação mais comuns podemos salientar alguns que reproduzem táticas comuns off-line, como a proliferação de petições online ou as manifestações virtuais. Encontramos também repertórios de ação que requerem uma maior expertise técnica e que tendem a ter um grau de disrupção mais elevado: leaks e divulgação de informação privada; difusão de técnicas de circunvenção, como o website mirroring, que permite contornar casos de censura, mail bombing (envio consecutivo de e-mails, podendo ter como efeito o bloqueio das caixas de correio eletrónicas); web sit-ins e DDOS ou ataques de negação de serviço (invadindo determinados websites com tantos pedidos que estes deixam literalmente de funcionar ou, pelo menos, se tornam muito mais lentos devido ao excesso de tráfego) ou ainda defacing (alteração da página inicial de um determinado website, substituindo o conteúdo original por uma mensagem provocatória) (Padilla, 2012; Cibergolem, 2005). É neste âmbito que se insere particularmente o conceito de hacktivismo — termo contestado, que tem diversas aceções, podendo incluir ou não ataques que visam encerrar sites. Coletivos e iniciativas descentralizadas, como Anonymous, têm sido pródigos neste tipo de ação, que ainda não se encontra, todavia, generalizada (Stryker, 2011).

9 Em segundo lugar, direcionado para o interior dos próprios movimentos sociais, encontramos todo um conjunto de práticas em torno da construção de redes e da organização coletiva (Calle, 2005). A circulação acelerada de informação, de forma sincrónica, através das novas tecnologias de informação, permite uma concertação da ação coletiva a diversos níveis. Por um lado, em diversos websites encontram-se, não apenas informações ou debates ideológicos, mas também repertórios concretos de ação e modus operandi para a realização de diferentes ações, que podem ser, modularmente, transpostos e reconvertidos de forma a serem reutilizados noutras partes do mundo. Por outro lado, esta infraestrutura tecnológica permite também o desenvolvimento de ações, quer numa escala local, permitindo a convocatória eletrónica para manifestações e outros happenings (Ugarte, 2004), quer numa escala global, através da organização concertada de eventos simultâneos (Pereira 2009; Juris 2008).

10 Por último, encontramos todas as utilizações relacionadas com a divulgação e difusão de informação relativa aos movimentos sociais, tendo como destinatários não apenas os ativistas mas o público em geral. Esta utilização não exige competências técnicas particularmente sofisticadas e centra-se, acima de tudo, na propagação de mensagens em sites, blogues ou páginas de Facebook, que possam ser partilhados com um público generalista, potencialmente interessado. O espaço virtual surge então como um showcase que permite a explanação de discursos, projetos e causas, e a transferência de informação e conhecimento. A presença na internet resulta frequentemente numa eficaz difusão destes movimentos e no recrutamento de aliados em diversas partes do globo, podendo esta difusão ocorrer de forma extremamente acelerada (Juris, 2004). A construção de determinadas “causas globais”, oriundas de um contexto específico mas com redes alargadas de apoio em todo o mundo, tem sido uma das mais interessantes consequências apontadas na literatura. Veja-se, a título de exemplo, a presença na internet do MST — o movimento brasileiro dos sem-terra (Sáez, 2004b) — ou do EZLN —

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Ejército Zapatista de Liberación Nacional, considerado como a primeira guerrilha informacional —, ambos com um vasto conjunto de apoiantes e simpatizantes em todo o mundo (Castells, 1997; Rovira, 2009). Podem enquadrar-se ainda neste âmbito iniciativas que não são oriundas de coletivos específicos, mas sim de projetos noticiosos alternativos, nomeadamente através da ação de entidades que recolhem e/ou filtram a informação, disponibilizando-a de forma compilada, em portais, sites ou mailing lists, como é, por exemplo, o caso da Indymedia (Juris, 2004; Atton, 2004).

11 Todavia, como afirmámos anteriormente, a internet não é apenas um instrumento, constitui também uma arena de conflito privilegiada, leit motiv para a mobilização social levada a cabo por um conjunto de recentes movimentos sociais que propõem novos projetos de transformação social e tecnológica. O acesso à informação e aos seus mecanismos de produção, bem como as próprias condições de produção e uso de software e hardware surgem, num mundo em acelerado progresso tecnológico, numa sociedade baseada no progresso científico, na tecnologia e na circulação da informação, como um dos principais palcos do conflito social (Sáez, 2004a). Também aqui podemos encontrar alguma dispersão entre distintos níveis de ação e de relacionamento com o poder instituído.

12 Num primeiro nível, encontramos os movimentos que promovem o combate à infoexclusão (Salado, 2004), através da infraestruturação tecnológica e da promoção de uma literacia digital emancipatória (Mossberger et al., 2003; Warschauer, 2004). Podemos aqui inserir ainda uma referência aos movimentos que visam a partilha de ligações wireless (Rheingold, 2004).

13 Num segundo nível encontramos movimentos que combatem a cibercensura e promovem a privacidade, a liberdade de expressão e a transparência (Deibert et al., 2010). Entre estes destacam-se particularmente iniciativas como Anonymous ou Wikileaks (Stryker, 2011), ambas combatendo a repressão digital e promovendo a circulação livre de informação de interesse público. Neste nível podemos ainda enquadrar os movimentos que defendem a livre partilha de conteúdos (informação, música, software) com recurso à internet, como defendido pelo movimento dos Partidos Pirata (Atton, 2004; Gantz e Rochester, 2005; Mason, 2008; Johns, 2009). Finalmente, num nível técnico mais avançado, e com iniciativas centradas na própria produção e não apenas no consumo, encontramos os movimentos que propõem novas formas de produzir e partilhar a tecnologia, em sistemas livres e abertos, como é o caso do movimento do software livre (DiBona et al., 1999; Raymond, 1999; Himanen, 2001; AA.VV., 2006).

14 Como se compreenderá pelo que foi dito, apenas do ponto de vista operacional e analítico faz sentido distinguir a internet enquanto ferramenta e enquanto causa, na medida em que estas dimensões não se excluem mutuamente e estão em grande medida interligadas. Na verdade, a internet enquanto ferramenta é algo mais abrangente e que atravessa um conjunto de práticas, atores e instituições, dado que todas as ações ativistas que empreguem média e circuitos digitais podem ser incluídas neste domínio. Quando falamos de internet enquanto causa, referimo-nos a um certo nicho ideológico em torno do qual se constroem um conjunto de motivações para a ação política e cívica tendo a internet por objeto de disputa. No entanto, esta última dimensão envolve igualmente a primeira, na medida em que estes coletivos ativistas também recorrem à internet como ferramenta de ação nas várias dimensões descritas acima.

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A internet e os média digitais enquanto ferramentas para o ativismo

Breve nota metodológica

15 Como referido inicialmente, este foi um projeto que definimos como de natureza exploratória por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque se tratava de uma pesquisa pioneira, na medida em que não existem evidências de pesquisas recentes sobre a relação entre o ativismo e os média digitais no nosso país, particularmente num período de alguma turbulência social e política, com evidentes repercussões ao nível da ação cívica e política extrainstitucional dos cidadãos. Por outro lado, este foi um projeto financiado no âmbito de pesquisas exploratórias, com um quadro temporal de execução relativamente curto,2 que procurava criar bases empíricas e teóricas para a exploração de objetos de estudo emergentes. Deste modo, as questões e metodologias que nos orientaram buscaram, principalmente, criar as condições para que se pudesse explorar de forma abrangente, aberta e flexível um objeto de estudo sobre o qual ainda não existe suficiente base empírica ou teórica que permitisse construir um quadro analítico-conceptual a priori mais definido. Tal não invalida que consideremos o material analítico recolhido suficientemente rico e coerente para, a partir daqui, construirmos não apenas categorias conceptuais substantivas e empiricamente sustentadas, mas também para desenvolver o debate teórico sobre a matéria.

16 A nossa grande questão de partida foi, por isso, razoavelmente abrangente e flexível nos seus contornos. Questionámo-nos sobre a articulação entre os média digitais e as formas de ativismo contemporâneo em Portugal. Para responder a esta questão, uma série de outras subquestões foram levantadas: que (a) “usos” e (b) “representações” dos média digitais existem no campo do ativismo?; (c) qual a relação entre as “práticas online” e as “práticas off-line”?

17 As opções epistemológicas tiveram em consideração a prioridade dada à exploração e descoberta, com consequências ao nível da seleção da amostra e dos instrumentos de recolha de informação. Acresce o facto de os próprios instrumentos de observação apresentarem uma natureza inovadora, na medida em que pressupunham uma articulação entre duas realidades empíricas distintas — online e off-line — e, consequentemente, exigiam um desenho metodológico que tivesse em consideração esta articulação. Assim, desenvolvemos uma pesquisa off-line de natureza qualitativa, recorrendo a entrevistas aprofundadas e observação de alguns eventos (manifestações, encontros, etc.). Apesar de recorrermos à entrevista aprofundada, concedendo liberdade ao entrevistado para construir o seu discurso em torno das temáticas ou episódios que para ele fossem mais relevantes, delineámos um guião de orientação com duas grandes áreas temáticas. A primeira correspondia às práticas ativistas (inserção no meio, biografia ativista, descrição do movimento, etc.). A segunda era relativa aos usos digitais (envolvimento com ferramentas digitais, tipos de plataformas usadas, funções desempenhadas, etc.) e às representações acerca do ativismo digital e da sua interligação com o ativismo “tradicional” (opiniões acerca das plataformas digitais, benefícios e perigos destas ferramentas, relação entre as ações de rua e as digitais, etc.).

18 Para a nossa amostra optámos por uma estratégia inclusiva, procurando abarcar ativistas com diferentes percursos e com envolvimento em distintas causas (políticas, ecológicas, sociais, etc.). Privilegiou-se nesta escolha a heterogeneidade de áreas de

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intervenção ativista que espelhassem a diversidade do próprio campo. Importa ressalvar que o termo “ator coletivo” possui um sentido amplo, na medida em que tanto inclui associações, plataformas ou grupos ligados a movimentos sociais específicos, como redes informais que agregam diferentes indivíduos e grupos mobilizados em torno de causas, ocasiões ou eventos determinados.

19 Assim, pudemos identificar seis tipos de atores coletivos envolvidos em práticas ativistas, estando todos eles ligados de alguma forma aos recentes protestos públicos que ocorreram na sociedade portuguesa: (a) o primeiro dos tipos encontrados pode ser designado novos movimentos sociais “antiausteridade”, isto é, movimentos que nascem como resultado da crise económica e financeira, tendo como principais reivindicações a luta contra as medidas de austeridade implementadas pelo governo (e.g. Plataforma 15 de Outubro, Que se Lixe a Troika); (b) uma segunda categoria de atores coletivos diz respeito aos chamados movimentos alterglobalização que podem ser considerados, em certo sentido, como uma espécie de “antecessores” dos novos movimentos sociais constituídos em torno das reivindicações antiausteridade (e.g. ATTAC Portugal); (c) o terceiro tipo de atores coletivos considerado insere-se na categoria dos chamados novos movimentos sociais “clássicos”, associados a causas de caráter cultural e identitário (e.g. LGBT, ecologistas); (d) um quarto tipo de atores coletivos corresponde aos chamados movimentos “radicais”, incluindo grupos ou movimentos que se posicionam explicitamente “contra o sistema”. Esta componente antissistema pode ser encontrada em grupos anarquistas ou simpatizantes de causas anarquistas, que se caracterizam por práticas alternativas, de resistência ou que se opõem aos valores da sociedade dominante (e.g. Squatters/Okupas); (e) um quinto tipo insere-se nos chamados movimentos diretamente ligados ao ativismo digital, isto é, movimentos, plataformas, grupos ou organizações que atuam primordialmente online ou que utilizam a internet e outras tecnologias como recurso principal ou causa (e.g. Anonymous, movimento para o software livre, movimento para o Partido Pirata); (f) finalmente, um último conjunto de coletivos protagonistas de várias ações de protesto pode ser encontrado nos atores políticos tradicionais, nomeadamente nos partidos políticos e sindicatos. Estes não são obviamente movimentos sociais mas têm com estes uma relação de cumplicidade que se manifesta de várias formas.

20 Do ponto de vista da seleção dos entrevistados, recorremos a uma estratégia de “bola de neve”, procurando construir uma rede de intervenientes nos diferentes campos de ativismo referidos, tendo sido realizadas no total 36 entrevistas aprofundadas.3 Para além do campo de atuação ativista, os critérios para a seleção dos entrevistados incluíram a idade (entrevistámos jovens e jovens adultos entre os 20 e os 35 anos)4 e a natureza do envolvimento em práticas ativistas. Neste último caso, estávamos interessados em ouvir tanto líderes de movimentos como ativistas “anónimos” ou em posições de menor destaque, que acumulassem trajetórias de envolvimento diversificado e intenso.

21 No que respeita à análise online, esta teve em consideração os dados das entrevistas que nos indicavam quais as plataformas mais relevantes. Com base nesta informação, foram selecionados como estudo de caso diversos perfis do Facebook correspondendo a diferentes movimentos/associações, tendo sido realizado um acompanhamento diacrónico da sua atividade durante certos períodos.5 Para o presente artigo tivemos basicamente em consideração a análise realizada às entrevistas aprofundadas.

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Práticas e representações do trabalho ativista: entre o off-line e o online

22 Através das entrevistas realizadas torna-se evidente que o uso da internet e das diferentes ferramentas digitais no trabalho ativista é algo que acontece de forma relativamente natural, situação que decorre do facto de as tecnologias digitais estarem hoje perfeitamente integradas no quotidiano. Como tal, e apesar de alguns revelarem certas resistências, o facto é que o digital tende a ser incorporado na esfera do ativismo, tal como é incluído noutras esferas da vida social (no trabalho, nas relações sociais, no lazer, etc.). E neste caso aquilo que encontramos é, por um lado, uma adaptação de certas práticas e formatos de fazer ativismo a formas crescentemente familiares de usar os média e as plataformas digitais e, por outro lado, uma aplicação dos recursos digitais em “velhas fórmulas” ativistas.

23 A partir do discurso dos entrevistados verificámos que a forma como as ferramentas digitais (tecnologias, plataformas digitais e internet) são concebidas e aplicadas no trabalho ativista está diretamente associada a diferentes dimensões e procedimentos deste trabalho. Consequentemente, para dar resposta à nossa questão de partida que, recordamos, visava entender as articulações entre os média digitais e as práticas ativistas contemporâneas, considerámos relevante criar uma taxonomia relativa ao que denominámos “trabalho ativista”, destacando os diferentes processos ou etapas que o compõem.6 Todas estas dimensões se referem a várias esferas do trabalho ativista convencional, tal como este é tradicionalmente concebido e descrito pelos diversos protagonistas. Neste sentido poderíamos encará-las como “práticas pré-digitais”. Tal não invalida que estas sejam, atualmente, pensadas e executadas tendo em conta os novos utensílios existentes. Assim, as entrevistas permitiram-nos explorar a forma como diferentes ferramentas de hardware e software, assim como circuitos e práticas digitais, são empregues em articulação com formas de atuação relativamente consolidadas. Destacaríamos oito dimensões.

24 Em primeiro lugar, o “debate e reflexão”, que tem em consideração as atividades de natureza interna (destinadas essencialmente aos ativistas pertencentes a um determinado grupo) que procuram promover a partilha e reflexão em torno das causas defendidas ou que lhe estão diretamente associadas. Em segundo lugar, a “organização e logística”, que tem em atenção o trabalho de bastidores na organização de eventos ou no desenvolvimento de certas iniciativas, de dimensão variável. Em terceiro lugar, a “mobilização”, que tem em consideração as ações que pretendem incentivar a participação e adesão à causa de determinado movimento/grupo, mobilizando não apenas os simpatizantes da mesma, mas igualmente aqueles que a desconhecem ou não lhe são particularmente sensíveis. Em quarto lugar, a “comunicação”, que engloba as ações de comunicação do coletivo que visam disseminar um rol variado de mensagens e atingir diferentes públicos, desde os simpatizantes da causa a um público indefinido. Em quinto lugar, o “recrutamento”, que tem em consideração ações que têm por objetivo angariar novas pessoas para a causa, recrutando novos membros, ativistas, simpatizantes, etc. Em sexto lugar, a “propaganda e representação pública do coletivo”, que compreende os processos de comunicação ideológica e de criação de uma imagem pública do coletivo. Em sétimo lugar, as “redes sociais”, dimensão que envolve os processos de criação, perpetuação ou consolidação de redes, seja a título individual seja a título coletivo, com agentes nacionais ou internacionais. Por último, os “eventos”, que

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englobam todas as iniciativas públicas (manifestações, encontros, festas, etc.) organizadas pelo coletivo ou onde este (ou alguém em sua representação) participa, visando uma série de objetivos estratégicos do mesmo (protesto, divulgação da causa, etc.).

25 Constatamos que os dispositivos digitais participam de diferentes formas em cada uma destas práticas ativistas, variando a importância e centralidade que ocupam. Ou seja, há atividades/etapas do trabalho ativista para as quais é imprescindível o uso de certas ferramentas e circuitos digitais, na medida em que estes: (a) facilitam os processos de trabalho ou (b) garantem maior eficiência e resultados mais favoráveis. Desta forma, podemos afirmar que houve uma integração destes novos recursos naquilo que eram procedimentos e formas de atuação instituídos, mas que esta integração é realizada tendo em consideração uma avaliação dos benefícios e prejuízos que a mesma acarreta. Esta avaliação é geralmente pensada em função das articulações entre práticas online e off-line de fazer ativismo, apesar de considerarmos que na maioria dos casos esta dualidade pode ser questionada, pois não traduz uma verdadeira separação entre dimensões que tendem a estar fortemente interligadas e dependentes. Assim, a internet e os média digitais são complementares das práticas mais convencionais ou “pré- digitais” de fazer ativismo, como se depreende do seguinte excerto: […] eu vejo sempre a internet como um complemento, como um instrumento de realização de agilização de alguns processos… De divulgação, mobilização, mas sempre um instrumento que é complementar a todos os outros, ou seja, antigamente sabia-se que, digamos, existe uma check list, é preciso fazer uma faixa, é preciso fazer um cartaz, é preciso fazer um panfleto e agora na check list é preciso fazer um evento no Facebook, é preciso, ou seja, é mais um complemento, não substitui as outras práticas […]. [Ativista, “Mayday” e “Precários Inflexíveis”]

26 Como seria de esperar, o digital é privilegiado em procedimentos que envolvem comunicação e interação à distância, os quais neste caso apresentam uma série de vantagens. Assim, podemos entrever, de forma simplificada, a existência de dois circuitos comunicacionais: um “interno”, envolvendo membros do coletivo ou simpatizantes, e outro “externo”,7 envolvendo indivíduos indiferenciados sem qualquer filiação no movimento. Por um lado, certas ferramentas digitais (e-mail, Facebook, etc.) são empregues para a comunicação interna, visando a “organização e logística”, o “debate e a mobilização”, o “reforço/ manutenção de redes”, como é sublinhado por alguns entrevistados: […] a primeira slut walk foi organizada, lá está, 99% no Facebook, mas sem exagero, para aí no espaço de três semanas. […] Eu chegava a passar duas horas em que a minha página do Facebook não saía dali. […] nós fizemos isso tudo online, ou quase tudo online, houve, talvez, uma ou duas reuniões presenciais […]. [Ativista, “PolyPortugal”] […] acho que hoje em dia fica muito fácil para as pessoas terem uma intervenção assim cívica porque não precisam de estar a dirigir-se fisicamente para as sedes das associações que fazem este trabalho, podem comunicar virtualmente. Nós já organizamos manifestações sem nos encontramos uma única vez e já trouxemos pessoas que não nos conheciam porque o Facebook chega para chegares às pessoas muitas vezes. [Ativista, “Bichas Cobardes”]

27 Outras ferramentas (blogues, sites, Facebook, etc.) visam processos de alcance mais vasto, sendo usados com propósitos de “propaganda”, “recrutamento” ou “mobilização dos cidadãos”, situação que também nos é descrita pelos entrevistados: Acho que é fundamental. Acho que isto é totalmente estrutural para nós. Ah… Ou seja, uma boa parte da nossa marca identitária, da nossa capacidade de intervenção,

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dá-se com a nossa própria obrigação de comunicarmos todos os dias com as pessoas, a partir daquilo que está a acontecer e dos nossos assuntos específicos, as duas coisas. […] E para isso é preciso uma plataforma de comunicação comum. Portanto, utilizamos o site como base e o Facebook como difusor, é uma espécie, eu acho que é assim. [Ativista, “Precários Inflexíveis”]

A relevância das redes sociais: do blogue ao Facebook

28 A variedade de plataformas usadas é grande, todavia algumas destacam-se no discurso dos entrevistados. Duas das ferramentas mais focadas são, por razões distintas, os blogues e as redes sociais, particularmente o Facebook, e cada uma delas parece marcar paradigmas e períodos historicamente distintos do ativismo.

29 Comecemos pelo Facebook. Nos discursos dos nossos entrevistados, a preponderância desta rede deve-se basicamente a duas razões. Em primeiro lugar, ao facto de esta ser uma plataforma bastante generalizada, sendo central para o quotidiano não apenas dos ativistas, mas também daqueles que pertencem às suas redes. Ou seja, o seu uso não decorre do facto de se estar particularmente habilitado para ações ativistas, mas porque: (a) é familiar, (b) está disseminado e (c) tem elevada capacidade para a expansão/ multiplicação da informação. Em segundo lugar, esta é uma ferramenta multifacetada, com variadas valências, o que lhe permite cumprir diversas das funções anteriormente mencionadas. Ou seja, de um ponto de vista estratégico é bastante útil, equivalendo àquilo que parece ser mais prezado pelos entrevistados: relação economia de meios/ processos para o impacto/ sucesso dos resultados.

30 Por outro lado, a predominância do Facebook está associada a um uso individualizado desta rede social. Assim, quanto mais intenso e rotineiro é o seu uso, maior parece ser a importância que lhe é conferida pelos ativistas, quer no que respeita à sua vida privada, quer no que concerne à sua militância ativista.8 Um uso individual do Facebook pressupõe que é a partir do perfil pessoal do ativista que várias práticas são desenvolvidas, estando a dimensão do ativismo imersa num conjunto de outras atividades de natureza social ou de lazer que ocorrem nesta plataforma. Os seguintes excertos são reveladores desta situação: O Facebook é muito útil para mim, todos dizem que é uma espécie de revista de imprensa que é feita logo ali. Depende das pessoas de quem és amigo, mas se tiveres mil e tal pessoas, dos quais metade são ativistas, militante, de esquerda, o teu feed acaba por estar muito ocupado pela revista de imprensa diária e pelos grandes temas […]. [Ativista, “RDA 69”] A malta cria Facebooks para tudo e sempre que alguma coisa a acontecer está no Facebook. Tudo o que vá acontecer nos próximos tempos eu sei que vou receber um convite no meu computador […]. Para mim o Facebook é uma espécie de comício permanente. [Ativista, “RDA 69”]

31 Falamos de usos coletivos do Facebook quando está em causa a criação de perfis/ páginas de um coletivo ativista, funcionando, neste caso, o Facebook como uma plataforma de comunicação de um grupo. Nestas situações este parece estar associado a um novo paradigma de comunicação onde os processos tradicionais off-line9 perdem algum peso, na medida em que o digital permite com maior economia de meios alcançar resultados mais significativos. Falamos, por isso, de novas realidades de comunicação que são tidas em consideração não apenas pelos movimentos sociais, plataformas e grupos ativistas, mas também pelos atores políticos tradicionais. Assim, o

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Facebook pode ser empregue em exclusivo ou em simultâneo com outras redes de comunicação, como os blogues ou os sites: Mesmo nos coletivos nós temos sempre um grupo de comunicação. Faz-se sempre um grupo de comunicação que é quem decide o Facebook, decide por exemplo a regularidade de publicações no Facebook, ou seja, ao meio-dia vai sair o texto não sei quê, à noite, que é quando há mais tráfego, sai o vídeo que a gente fez com o depoimento do J. P. Simões, depois ao outro dia de manhã sai mais umas pessoas que assinaram […]. [Ativista, dirigente de uma associação de estudantes] Aliás, há muitos coletivos neste momento no movimento LGBT que, se calhar, não existiriam se não existisse Facebook. Estes coletivos muito pequenos sem meios não teriam, não teriam possibilidades de existência se não tivessem este meio ali, à mão de semear e pudessem utilizar como entendessem. [Ativista, “Coletivo Actibistas”]

32 O blogue não é ignorado pelos nossos entrevistados. A referência aos blogues surge não porque estes sejam uma ferramenta muito usada na atualidade, apesar da importância que ainda detêm, mas precisamente porque marcaram um certo momento histórico. Houve um período em que os blogues políticos/ativistas eram bastante dinâmicos, e em que diferentes atores ganharam algum protagonismo na chamada “blogosfera nacional”. Entretanto foram perdendo peso a favor particularmente do Facebook.10 Esta questão tem tendência a ser destacada pelos ativistas que foram bloggers ou tiveram contacto com a fase mais ativa da blogosfera nacional. Nas entrevistas prevalece a ideia de que esta dicotomia Facebook/blogue corresponde a dois paradigmas distintos de conceber a atividade política/ cívica/ ativista. Por um lado, os blogues estão associados a um “tempo longo”, ou seja, a uma conceção da atividade cívica e política que exige um exercício de reflexão mais profundo e duradouro. De acordo com uma representação algo generalizada, os blogues requerem tempo de leitura, incentivam o debate e a reflexão informada e sustentada. Pelo contrário, o Facebook, para além de ser um instrumento massificado, está mais associado a um paradigma do “tempo curto”, à cultura do audiovisual, do instantâneo e do efémero. Não parece incentivar a reflexão nem o debate sustentado, antes funciona através de formas muito simplificadas e rápidas de comunicação. Como tal, favorece o desenvolvimento de episódios “virais”, a mobilização rápida, a “indignação instantânea”.11 Ou seja, uma “cultura do instantâneo” privilegia plataformas como o Twitter12 ou o Facebook, facto que não poderá ser ignorado pelos ativistas. Atentemos nos seguintes excertos: […] antigamente lia mais blogues, acho que isso se perdeu um bocado, o Facebook foi ocupar uma parte do espaço dos blogues. [Ativista, “Mayday”, “RDA 69”] Não consigo fazer um texto sobre análise de um relatório da OCDE no Facebook, ninguém vai ler. O Facebook é uma coisa muito instantânea de resposta rápida, de divulgação de um texto de uma música, de um vídeo, no blogue preenche uma função que não dá no Facebook, que é ter um texto mais estruturado mais longo e que faz arquivo que é o que o Facebook não faz. [Ativista, dirigente de uma associação de estudantes]

Oportunidades, desafios e resistências ao ativismo digital

33 Verificámos que as ferramentas digitais e a internet são genericamente bem acolhidas pelos ativistas, quanto mais não seja porque, estando estes recursos incorporados no dia a dia dos indivíduos, há uma certa “naturalização” na sua aplicação a determinadas práticas de militância ativista. Todavia, nem tudo é considerado positivo nesta área.

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Assim, poderíamos sintetizar as representações acerca do digital falando das oportunidades, desafios e resistências que este gera. Há uma visão basicamente utilitária destes recursos, que nos fala das oportunidades que eles abrem, não apenas para novas formas de fazer ativismo, mas também para melhorar/ potenciar velhas práticas ativistas. Tivemos oportunidade de ver em pormenor algumas destas dimensões no que respeita à facilitação dos processos de comunicação, interação, mobilização, recrutamento, etc. Mas poderíamos resumir todas as situações a uma fórmula: a potenciação da atividade de exercício ativista para atores sociais não institucionais. Os média digitais permitem criar circuitos paralelos de informação, de empowerment daqueles que não detêm grande capacidade de expressão na esfera pública. Isto é especialmente relevante para pequenos grupos que defendem causas minoritárias (por exemplo, Poliamor, queer). Através da sua forte presença na esfera pública digital, estes podem marcar a agenda política, podem ser veículos de “contrainformação” que questionam o “pensamento hegemónico” ou as “narrativas dominantes”,13 facto que é destacado pelo seguinte entrevistado: A internet veio quebrar uma certa hegemonia dos discursos, anteriormente para fazer chegar a informação a muita gente precisava de ter a máquina bem oleada do teu partido ou de um jornal e hoje não tens. […] No Facebook vê-se mesmo isto, muitas pessoas foram politizadas nestes últimos três anos e muito através da internet. [Ativista, “RDA 69”]

34 Desta forma, a leitura que fazemos é que, para a maioria dos ativistas, os média digitais podem cumprir uma função emancipadora, democrática e participativa, facto que pode ser usado estrategicamente pelos coletivos ativistas. Tal não invalida que lhes seja apontado um “lado negro”.14 Se há um grande potencial a ser explorado a partir do uso dos média digitais, estes também colocam uma série de desafios. Um dos mais focados diz respeito ao equilíbrio entre as formas tradicionais e “virtuais” de ser militante e de fazer ativismo. O ativismo ainda é apresentado, essencialmente, como uma realidade de rua, off-line, exigindo comprometimento e empenhamento físico, uma presença nas iniciativas e a mobilização para os eventos. Se, por um lado, o digital amplifica o campo do ativismo (mobiliza mais pessoas, permite maior participação, etc.), por outro lado, corre o risco de desvirtuar a militância ativista, enfraquecendo-a. Um dos desafios é, precisamente, superar a facilidade daquilo que muitos definem como o “click activism” ou “ativismo do like/ de sofá”, que é tido como uma prática comodista e pouco implicada de fazer ativismo. Esta fratura entre as dimensões online e off-line é considerada perigosa, pois a mudança social e o cumprimento dos objetivos dos diferentes grupos ativistas só se conseguem com os eventos off-line, com a capacidade de participação e mobilização dos cidadãos. A rua é ainda o espaço simbólico do combate ativista. Se a internet é muito útil para facilitar chegar, para ter um compromisso ligeiro entre muita gente, para ter um compromisso intenso não é. […] E muitas vezes, desculpa muita gente de não participar fisicamente. Ah… Eu lembro-me de eventos do Facebook em que toda a gente estava muito comprometida a ir e não sei quê e depois, quando chegas, não há. […] E, nesse sentido, acho que pode ser enganadora […]. [Ativista, “Precários Inflexíveis”, “Que se Lixe a Troika”]

35 Outro dos grandes desafios, de certa forma associado ao primeiro, é o de não sobrevalorizar o online em detrimento da ação de rua. As redes sociais, nomeadamente o Facebook, apesar de relevantes, são para muitos entendidas como uma espécie de “bolha”, pois existem num “circuito fechado” que privilegia certas redes (de amigos, de ativistas, etc.). Esta questão é relevante, na medida em que podemos considerar a

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existência de dois tipos de público alvo das mensagens ativistas. Há, por um lado, um público mais restrito, composto por “ativistas, simpatizantes e militantes das causas” e pessoas conectadas online, para quem o Facebook, os e-mails, os blogues, etc. funcionam bem. Por outro lado, há “o resto da sociedade” (o público indiferenciado e, particularmente, os infoexcluídos) que é mais difícil de atingir, convencer e mobilizar e a quem a informação divulgada pelas redes restritas dos ativistas não chega.15 O desafio está, pois, em jogar estrategicamente com os média digitais e os média tradicionais/ mainstream, de forma a fazer passar a mensagem ao maior número possível de pessoas. Cada um de nós acaba por viver numa bolha e nós, no Facebook, no Facebook e nas redes sociais em geral, a internet, criamos uma realidade alternativa onde vivemos rodeados das pessoas que partilham os nossos interesses. Quebrar as bolhas dos outros é muito difícil, se as pessoas não estão para aí viradas, não é porque veem aí o teu coiso no Facebook que se vão interessar, a não ser que apareça algum vídeo hiperviral. [Ativista, “No Hate Ninjas”]

36 Outro dos principais desafios é gerir e filtrar uma grande quantidade de informação num ecossistema mediático cada vez mais complexo. Nas entrevistas é comum esta questão ser associada à multiplicação das plataformas digitais, situação que gera uma certa “saturação de inputs” ou “excesso e fragmentação de informação”. O Facebook e outras plataformas digitais fomentam uma cultura da renovação constante da informação, da transitoriedade e multiplicação da informação. Os inputs informativos são muitos e, por vezes, não favorecem uma avaliação mais densa/detalhada da informação, nomeadamente no que respeita à aferição da veracidade e fidedignidade dos seus conteúdos. Isto é algo sentido por muitos: […] isso é outra desvantagem na internet, é a volatilidade do que é que pode ser hegemónico e no momento seguinte já não é, o que é que é viral e o que é que não é. Uma coisa que não interessa para nada torna-se completamente viral, uma coisa importantíssima que é expressa pelas palavras erradas ou com a imagem errada ninguém… […] E, por outro lado, a criação constante de… Focos que, às tantas, tornas as pessoas um bocado imper… Ficam impermeáveis ou deixam de reagir, tal é a velocidade com que se reproduz a informação. [Ativista, “Precários Inflexíveis”, “Que se Lixe a Troika”]

37 Finalmente, outro dos desafios é criar formas de utilização do digital que funcionem à margem dos sistemas de controlo e vigilância dos atores mais poderosos, nomeadamente do Estado e das grandes corporações. Isto porque é reconhecida a ambivalência dos média digitais: se, por um lado, existe um caráter emancipador, democrático e de empoderamento presente nestas ferramentas, por outro lado, estas tecnologias permitem o desenvolvimento de formas aperfeiçoadas de monitorização dos cidadãos e das suas ações. Como tal, muitos recorrem a ferramentas específicas que dificultam o registo e monitorização por parte de certas instâncias. […] de repente, aquilo apareceu-me como uma novidade e a encriptação, por exemplo, tínhamos um colega que era um hacker, um verdadeiro paranoico da comunicação encriptada e ainda nos, até deu uma série, houve uma série de seminários e workshops sobre como, como se proteger no computador, ah… Da vigilância, não é? Eu, por acaso, não participei mas, e houve outros sobre live streaming, justamente, sobre como documentar, fazíamos esse tipo de, de seminários, não é? Para implementar capacidades […] Há muita necessidade de… De reagir, digamos assim, à hegemonia do controlo de informação, que as corporações e os governos têm. E, portanto, a única forma é criar um, uma retaguarda, digamos assim de ativismo, de pessoas que dominam sistemas de informação e de comunicação e essas tecnologias sem serem vigiadas […]. [Ativista, “Que se Lixe a Troika”]

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Conclusão

38 É indiscutível a relevância que a internet e outras tecnologias digitais possuem numa multiplicidade de práticas quotidianas, onde podemos incluir a esfera da intervenção pública. Com efeito, não só a internet se apresenta cada vez mais como um terreno complementar para trocar informação, comunicar, criar redes, como também se tem afirmado como território específico para a intervenção pública, constituindo tanto um recurso para a luta ativista como uma causa que fundamenta reivindicações e a participação política e cívica. Episódios relativamente recentes ocorridos em diversas partes do globo atestam precisamente esta situação. Tal justifica a necessidade de nos questionarmos sobre o impacto que as tecnologias digitais tiveram no ativismo em Portugal. Daí que tenhamos colocado como questão genérica do presente projeto a articulação entre a internet/ tecnologias digitais e as diferentes práticas ativistas. Para responder a esta questão de partida procurámos examinar os usos e representações do digital, bem como as articulações entre os domínios off-line e online das práticas ativistas.

39 Em primeiro lugar, podemos concluir que o caso português se aproxima de outros contextos recentes de protesto e de mobilização de cidadãos em que os média digitais têm desempenhado um papel relevante em diferentes sentidos (Feixa e Nofre, 2013; Fernandez-Planells, Figueras-Maz e Feixa, 2014; Juris, 2012; Postill, 2014). Todavia, uma análise mais fina revela-nos que, se por um lado o digital parece integrar-se em práticas e modos de fazer ativismo preexistentes (ou pré-digitais), por outro lado esta integração possui um caráter transformador, na medida em que se geram novas gramáticas e repertórios de ação com a introdução e o suporte de ferramentas digitais. O digital participa de diferentes formas em cada uma das práticas que constituem o que designámos “trabalho ativista” — que vão da difusão de informação à mobilização e recrutamento, passando pela logística, propaganda, criação de redes e eventos —, enquanto a sua importância e centralidade vai variando em cada uma destas tarefas. De certo modo, podemos dizer que certas atividades ou etapas do trabalho ativista beneficiam de forma evidente dos dispositivos e circuitos digitais, ao passo que outras se poderão distanciar mais facilmente de tais ferramentas. Assim, conclui-se que tudo o que são práticas associadas a processos de comunicação, interna ou externa, sai claramente beneficiado pela inclusão da internet.

40 De destacar, por isso, a imprescindibilidade da internet para o desenvolvimento de estratégias de comunicação e de construção identitária dos coletivos. Não é por acaso que, a cada novo coletivo que se forma, um novo site/ página de Facebook é criado, permitindo simultaneamente a divulgação do projeto e o diálogo com diferentes atores (Sádaba e Roig, 2004; Pereira, 2009). Por vezes a implementação do site web chega a preceder a ação efetiva noutros domínios que não o virtual, tanto para associações ou coletivos específicos como para eventos ou plataformas de convergência. Nos movimentos contemporâneos, muitas vezes consubstanciados em organizações efémeras, sem uma existência jurídica concreta, a atribuição de um nome e a inscrição no ciberespaço constitui, frequentemente, a forma privilegiada de formalização e institucionalização de determinado projeto16 Daí que alguns autores (Gerbaudo e Treré, 2015; Milan, 2015) tenham destacado a importância destas ferramentas para a construção da “identidade coletiva” dos movimentos, na medida em geram uma rápida

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e eficiente adesão coletiva a certos slogans, imagens ou ideias disseminados via internet, como emblemas de causas comuns. Em suma, práticas que tradicionalmente estavam algo limitadas por constrangimentos de ordem espacial, podem ser claramente favorecidas pelo emprego de utensílios digitais que favorecem ações de natureza desterritorializada. Ou seja, recorrendo à internet é mais fácil e eficiente fazer circular informação, mobilizar pessoas, organizar o trabalho e a logística interna.

41 Quando a análise se foca nas “representações” (opiniões, juízos de valor, etc.) acerca dos média digitais, verificamos que, apesar dos benefícios relatados, existe um certo grau de ceticismo e resistência que emerge de uma série de tensões não inteiramente resolvidas entre “velhos” e “novos” modos de fazer ativismo. A inclusão do digital parece fazer emergir alguns paradoxos. Se, por um lado, estas ferramentas parecem sugerir potencialidades emancipadoras e participativas, concretizando o que seria a sua vocação supostamente democrática, por outro lado, suscitam dúvidas, pelo facto de se “afastarem da realidade”, gerando uma espécie de “mundo paralelo”, de participação fácil e inconsequente (de que o chamado “ativismo de sofá” é o melhor exemplo). Com efeito, persiste a representação tradicional da “rua” como local primordial de ativismo, de participação política e cívica, sendo o terreno digital uma espécie de extensão secundária do primeiro. Assim se compreende que a integração destes novos recursos naquilo que são procedimentos e formas de atuação já instituídas seja realizada tendo em consideração uma avaliação dos benefícios e prejuízos que a mesma acarreta, nunca esquecendo a importância crucial da rua enquanto espaço simbólico de mobilização e luta. Por isso mesmo, apesar de a utilização das tecnologias digitais ser generalizada, tendo-se, de certo modo, “naturalizado”, é igualmente notório um certo sentido crítico na sua utilização, que decorre tanto das circunstâncias que envolvem os vários usos como da sua própria avaliação.

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NOTAS

1. O projeto “Ativismo Juvenil em Rede: Média Digitais, Movimentos Sociais e Cultura Participativa entre Jovens Ativistas” (EXPL/IVC-COM/2191/2013) foi desenvolvido no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, CICS. Nova — FCSH/UNLUID/SOC/04647/2013), com o apoio financeiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT/MEC) através de fundos nacionais. O prosseguimento da pesquisa conta, ainda, com o apoio financeiro da FCT/MEC através de uma bolsa de pós-doutoramento (SFRH/BPD/99671/2014). 2. O projeto teve a duração total de 16 meses. 3. Agradecemos publicamente a disponibilidade demonstrada pelos diferentes ativistas que se predispuseram para ser entrevistados no âmbito do projeto, bem como o trabalho realizado por Ana Mafalda Esteves, bolseira e membro da equipa do projeto que esteve diretamente implicada nesta tarefa. 4. Com duas exceções de entrevistados na casa dos 40 anos, correspondendo a líderes de grupos e ativistas envolvidos há bastante tempo em determinados grupos. 5. Estes dados ainda se encontram em análise. 6. Para a elaboração desta taxonomia baseámo-nos essencialmente nas descrições efetuadas pelos ativistas. Estas dimensões estão obviamente interligadas e, em muitos casos, sobrepõem-se. Porém, do ponto de vista analítico faz sentido destrinçá-las, na medida em que isso nos permite aferir de forma mais rigorosa o papel atribuído aos diversos média digitais no ativismo contemporâneo. 7. O digital é representado enquanto mais um elemento de um conjunto mais vasto de plataformas de comunicação, que incluem os média tradicionais (jornais, revistas, televisão, etc.). Deste modo, é pensada a sua interligação com outros média, tendo em consideração as vantagens e desvantagens que pode trazer em função dos diferentes contextos em análise. Os média mainstream, pela relevância que possuem na construção de uma agenda mediática, não poderiam ser ignorados. 8. Claro que esta distinção nem sempre é evidente. 9. Referimo-nos aos processos de comunicação através de panfletos, cartazes, jornais, etc. 10. Esta alteração não é vista como necessariamente positiva, mas como uma imposição/ decorrência de uma série de alterações tecnológicas e sociais que determinaram que o Facebook se tornasse a ferramenta dominante. 11. Daí que as imagens funcionem muito bem neste contexto. São rápidas, têm impacto. No Facebook resultam especialmente bem. 12. O Twitter apesar de ser referido pelos ativistas como um utensílio digital relevante, não é dos mais utilizados, apesar de ter tidoumpapel importante noutros contextos de mobilização e protesto além-fronteiras, como é o caso conhecido de Barcelona (Fernandez-Planells, Figueras- Mas e Feixa, 2014). O pouco uso do Twitter é, aliás, algo que se destaca em Portugal, quando comparado com outros países europeus.

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13. Os média mainstream são geralmente representados pelos entrevistados como parciais, ideologicamente motivados/ condicionados ou controlados por corporações, sendo difícil que as causas mais minoritárias e fraturantes tenham um espaço nesse universo. 14. Não existe uma “visão ingénua” do poder emancipador e democrático dos média digitais, pois praticamente todos manifestam algumas dúvidas acerca de certos aspetos destes, sublinhando alguns dos efeitos menos positivos do seu emprego. 15. Dado que neste caso funcionam melhor os média mainstream. 16. Por exemplo, no caso português, M12M e Plataforma 15 de Outubro criaram blogues e páginas de Facebook.

RESUMOS

Os últimos anos têm sido férteis em formas novas de mobilização coletiva e ativismo, em que os equipamentos e os média digitais assumem papel de relevo. Este artigo baseia-se num projeto exploratório, realizado entre 2014 e 2015, que procurou articular o uso dos média digitais com as formas de ativismo e participação pública dos jovens em Portugal. Metodologicamente este projeto adotou uma abordagem de natureza qualitativa, que procurou articular uma pesquisa online e off-line. As conclusões que apresentamos decorrem de uma análise das entrevistas aprofundadas realizadas a ativistas com perfis distintos pertencentes a diferentes atores coletivos.

Recent years have been fertile in new forms of collective mobilization and activism. In this context the digital media have been assuming a particularly important role. This article is based on an exploratory project, carried out between 2014 and 2015, which sought to study the use of digital media with the forms of activism and public participation of young people in Portugal. Methodologically this project took a qualitative approach, which sought to articulate a research online and off-line. The conclusions presented derive from an analysis of in-depth interviews carried out with activists belonging to different collective actors.

Les dernières années ont été fertiles en nouvelles formes d’activisme et de mobilisation collective. Dans ce contexte, les médias numériques ont joué um rôle très important. Cet article est basé sur un projet exploratoire, réalisée entre 2014 et 2015, qui visait l´étude de l’utilisation des médias numériques dans les formes d’activisme et de participation publique des jeunes au Portugal. Méthodologiquement ce projet a adopté une approche qualitative, qui cherche à articuler une recherche online aussi bien que off-line. Les conclusions présentées proviennent de l’analyse des entretiens approfondis avec des militants appartenant à différents acteurs collectifs.

Los últimos años han sido fértiles en lo que respecta a las nuevas formas de mobilización colectiva y activismo. En este marco, los médios digitales han assumido un papel importante. Este articulo se basa en un proyecto exploratorio, realizado entre el 2014 y el 2015, que tenía como objectivo estudiar el uso de los médios digitales en las formas de activismo y la participación de los jóvenes en Portugal. Metodológicamente se trataba de un proyecto que partindo de un enfoque cualitativo, pretendía articular una investigación online y off-line. Las conclusiones presentadas provienen de un análisis de las entrevistas en profundidad realizadas a activistas pertenencientes a diferentes atores colectivos.

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ÍNDICE

Palabras claves: ativismo, movimientos sociales, media digitales, Internet Keywords: activism, social movements, digital media, Internet Palavras-chave: ativismo, movimentos sociais, média digitais, internet Mots-clés: activisme, mouvements sociaux, média numériques, Internet

AUTORES

RICARDO CAMPOS Investigador e bolseiro de pós-doutoramento, CICS.Nova, FCSH/UNL, Av. De Berna, 26-C, 1069-061, Lisboa. E-mail: [email protected]

INÊS PEREIRA Professora auxiliar convidada, ISCTE-IUL, Av. das Forças Armadas 1649-026, Lisboa. E-mail: [email protected]

JOSÉ ALBERTO SIMÕES Investigador, CICS.Nova, e professor auxiliar, FCSH/UNL, Av. De Berna, 26-C, 1069-061, Lisboa. E- mail: [email protected]

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“Se estava tudo bem, porque é que eu havia de ir a uma obstetra?”: identidade, risco e consumo de tecnologia médica no parto domiciliar em Portugal “If everything was fine, why should I have gone to an obstetrician?”: identity, risk and consumption of medical technology in home births in Portugal “Si tout allait bien, pourquoi aurais-je dû consulter un obstétricien?“: identité, risque et consommation de technologie médicale dans l’accouchement à domicile au Portugal "¿Si estaba todo bien, porqué tuve que ir a un obstetra?": identidad, riesgo y consumo de tecnología médica en el parto domiciliar en Portugal

Mário J. D. S. Santos e Amélia Augusto

Introdução

1 Enquanto fenómeno social, o parto hospitalar contemporâneo ilustra, de forma paradigmática, os modos como os valores médicos e masculinos se sobrepõem aos valores leigos e femininos. Na gravidez e no parto, a medicalização — projeção social da ampliação do poder da medicina — não pode ser analisada apenas como uma mera replicação de um fenómeno, num campo mais restrito da realidade. A afirmação da medicina sobre o corpo da mulher assenta em bases mais amplas de género e de dominância social do masculino sobre o feminino.

2 Os movimentos pró-desmedicalização do parto, reclamando neste o protagonismo perdido pela mulher e pela família, divulgam e apoiam o direito à prática de alternativas ao parto hospitalar padronizado, como o parto em casa. Esta opção,

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relativamente rara em Portugal e nos restantes contextos europeus (Euro-Peristat, 2013), tem vindo a emergir em debates académicos, clínicos e mediáticos que discutem a sua segurança e legalidade, bem como a impreparação do sistema de saúde português para dar uma resposta adequada ao reduzido — mas relevante — número de casos que se registam no país. Dados do Instituto Nacional de Estatística1 revelam que, nos últimos dez anos, os partos em casa constituíram, em média, 0,75% do total de partos. Em 2013, dos 83.121 partos registados, 592 foram partos domiciliares. Estes são dados limitados, uma vez que não é possível distinguir entre os partos domiciliares planeados e os acidentais, duas situações extremamente diferentes quanto às condições de segurança, aos riscos envolvidos (Olsen e Clausen, 2012) e mesmo às motivações e características sociodemográficas maternas.

3 A partir de um estudo exploratório2 de cariz intensivo, procurou-se analisar a experiência da mulher ou do casal que viveu o parto em casa por opção, em Portugal, desde o conhecimento dessa possibilidade, passando pela vigilância da gravidez, o planeamento e a experiência do parto, até à fase pós-parto. Um olhar sobre a diversidade de percursos e as diferentes perceções de risco que são associadas à gravidez e ao parto hospitalar ou em casa tornou visíveis os fatores sociais que estão na base da rejeição da assistência hospitalar predominante. Emergiram dinâmicas singulares nas relações de confiança estabelecidas entre a mulher grávida e os restantes atores que intervêm no acompanhamento e vigilância da gravidez, o que se reflete nos modos como a tecnologia (médica, ou não) e os restantes recursos são dotados de um valor simbólico e mobilizados ou rejeitados durante o processo. Estas características particulares permitiram traçar um primeiro retrato sociológico do parto domiciliar contemporâneo em Portugal.

Alguns referenciais teóricos para uma sociologia crítica do nascimento e da maternidade

4 O parto é hoje amplamente aceite como pertencendo ao domínio pericial e é mesmo definido, frequentemente e de forma imprecisa, como um ato médico.3 Consequentemente, a personagem principal da história reprodutiva da mulher deixa definitivamente de ser ela própria e passa a ser a figura patriarcal do profissional de saúde (Campbell e Porter, 1997; Carapinheiro, 2005 [1993]) que, pela sua autoridade científica, lhe vigia a saúde para que se mantenha dentro da normalidade e lhe faz o parto. Foucault (1994 [1976]: 107) descreve especificamente este controlo como a “histerização do corpo da mulher”, um processo triplo segundo o qual o corpo da mulher foi analisado, integrado como uma doença intrínseca na ciência biomédica e colocado em contacto e comunicação com o social, o familiar e o materno, numa lógica de manutenção da espécie.

5 Apesar de diferirem no seu contexto, muitos dos estudos que abordam de forma crítica o parto medicalizado afirmam que o parto, um evento fisiológico, tem sido analisado e assumido pela medicina como envolto em riscos, deixando a mulher à margem das tomadas de decisão e das ações sobre o seu próprio corpo, descaracterizando uma experiência que se poderia dizer naturalmente promotora do empowerment individual da mulher (Fox e Worts, 1999). No entanto, considerar as mulheres apenas como vítimas passivas do controlo tecnológico masculino é ignorar elementos relevantes da sua participação no processo de medicalização e contribuir para o reforço do

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estereótipo da mulher vítima e passiva (Petchesky, 1987; Riessman, 1994). Se é um facto que movimentos feministas têm vindo a desenvolver críticas à medicalização no sentido de se diminuírem as diferenças que emergem do estereótipo, sabe-se que parte da intervenção médica sobre a saúde da mulher foi reivindicada pelas próprias mulheres, num movimento “interno” a favor do reconhecimento de algumas condições como um problema médico, procurando-se áreas da vida da mulher onde a expansão médica fosse consensual para médicos e mulheres (Augusto, 2004; Conrad, 2007). Também a participação da indústria médica e farmacêutica tem de ser considerada nesta discussão, já que ambas, legitimadas pelas necessidades ora das mulheres, ora dos médicos, vão produzir e divulgar como imprescindíveis tecnologias cada vez mais complexas e mais dispendiosas.

6 Os movimentos de desmedicalização e de humanização da gravidez e do parto, embora com bases de reivindicação diferentes, têm promovido o direito a alternativas ao modelo hospitalar predominante, alegando que, quando institucionalizado, o parto é habitualmente tratado como uma doença ou um problema a resolver medicamente, esvaziando-o da vida e da espontaneidade que o caracterizam. As parturientes, por seu turno, são desprovidas de identidade e consideradas inválidas, tabula rasa perante o ambiente de pericialidade hospitalar (Tereso, 2005; Shaw, 2007).

7 Transcendendo o controlo e a regulação exercidos pelo profissional de saúde sobre o corpo da mulher, sobre a gravidez e sobre o parto, existe ainda um controlo de manifestação mais subtil exercido pela sociedade, que se prende à própria construção social de género. Badinter (2010: 93) fala do “Império do Bebé” e descreve a ironia de uma “escravatura voluntária” a que as mulheres ocidentais, depois de se libertarem da dominância patriarcal, estão sujeitas quando são mães, numa sociedade onde se “privilegia a mãe em detrimento da mulher” (2010: 127). De facto, mais do que grávida, a mulher é responsável pela formação de um feto e essa responsabilidade ser-lhe-á imputada socialmente (Lupton, 1994). É esperado que seja “manager do próprio corpo” (Baudrillard, 2007 [1970]: 149). Como reforça Tereso (2005), a diminuição do número de filhos por casal transforma cada gestação não apenas num acontecimento delicado para os futuros pais, que procuram controlar todos os riscos, mas também num acontecimento social e político de que depende o futuro da própria humanidade. O seu corpo grávido é menos uma propriedade sua e mais o lugar onde se procuram criar as condições adequadas para o desenvolvimento do indivíduo que há de nascer (Tereso, 2005; Joaquim, 2006), e quer o desafio ao conhecimento médico, quer o incumprimento das normas por ele estabelecidas se tornam socialmente condenáveis.

8 A pericialidade, no entanto, como consequência do questionamento gradual dos processos de racionalidade científica, está em crise. Perante a modernização reflexiva (Beck, Giddens e Lash, 2000 [1994]), a medicina e as tecnologias médicas vão perdendo parte do seu valor inquestionável e sagrado e vão-se aproximando da prestação de serviços, constituindo apenas uma das várias hipóteses disponíveis (Saks, 1994). Apesar de, na prática, tal não significar uma crise real no modelo biomédico (Baudrillard, 2007 [1970]; Giddens, 2008 [1989]), obriga a repensar o poder e a reformular o papel atribuído a cada ator social no encontro profissional-doente (Lupton, 1994; Zadoroznyj, 2001). Sob a retórica do direito à saúde, a crescente acessibilidade aos serviços médicos, embora desigual, aproximou, como nunca antes, o recurso à tecnologia médica da lógica do direito ao consumo (Baudrillard, 2007 [1970]). Perante isto, a incerteza, a perceção do risco e a ausência de verdades absolutas tornam questionável a prática

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obstétrica hospitalar comum, reivindicando-se um diferente patamar de consentimento informado, em que se rejeita o obstetra como único detentor do conhecimento sobre o parto e se procura um patamar em que todos partilhem e discutam o conhecimento sobre o parto com a mesma legitimidade (Zadoroznyj, 2001; Cheyney, 2008).

9 De uma forma global, veem-se surgir outros modelos explicativos da saúde e dos processos que a envolvem, que procuram afirmar a sua autoridade, divulgando, por oposição à medicina, o seu caráter natural e holístico (Saks, 1994), o que também se tem vindo a verificar na gravidez e no parto. Badinter (2010) aborda, a partir de uma perspetiva crítica, a revalorização social do naturalismo. Para a autora, o retorno ao natural e ao tradicional é uma reação social às incertezas causadas pelos avanços e recuos da ciência e à indefinição de papéis de género. O modelo naturalista radical assume-se como oposto ao capitalismo, à tecnologia e à ciência, enaltecendo os valores de harmonia e respeito absoluto pela Natureza. No que respeita às mulheres e à maternidade, é possível assistir, na sociedade ocidental atual, ao louvor do instinto maternal e à emergência do ideal de “boa mãe ecológica” (Badinter, 2010: 41), que celebra o natural, rejeita o químico, e segundo o qual as respostas da ciência para determinadas condições das mulheres, definidas como problemáticas, seriam algo a rejeitar. Partindo desta perspetiva, há uma oposição declarada ao modelo hospitalar de assistência ao parto e uma aproximação ao contexto familiar, tradicional e natural de parir em casa. A relação com a dor no parto é bipolarizada: em contextos culturais mais próximos da natureza, a dor do parto é uma dor boa, por ser natural e permitir uma vivência integral da experiência de parir, enquanto a dor provocada por uma intervenção médica não fundamentada ou não consentida já não é bem acolhida. A epidural, por seu turno, integra o grupo de “armas suicidárias” (id., ibid.: 41), composto pelos produtos químicos e estratégias farmacológicas, e falsifica a real vivência do parto. Assim, seguindo os argumentos da autora, será em casa que a mulher poderá desfrutar de um encontro com o seu corpo e com a natural experiência de parir, sem as interferências da medicina.

10 O recurso a, ou a recusa da tecnologia obstétrica revelam-se enredados numa complexidade de fenómenos e de pressões, frequentemente díspares. A simples existência e divulgação de uma nova tecnologia obstétrica é condição suficiente para a promover e a sua recusa é comummente adjetivada como irresponsável e retrógrada. No entanto, constata-se que o uso atual de tecnologias excede frequentemente o necessário para a vigilância da saúde na gravidez, situando-se assim numa posição central na lógica do consumo, seja motivado pela perceção dos riscos sociais e médicos da gravidez e do desenvolvimento intrauterino, seja pela possibilidade de se aceder à conveniência e ao interesse pessoal da mulher grávida ou dos profissionais de saúde. Enquadrando a representação social do corpo da mulher como um recipiente para a maternidade, e o próprio bebé como um objeto de consumo, sujeito a testes de controlo de qualidade, são geradas fortes expectativas sociais de uma gravidez resultar num bebé perfeito (Ettorre, 2000). Existindo e estando disponíveis tecnologias obstétricas, são criadas pressões, por parte dos pares, dos profissionais de saúde e da indústria médica, sobre a opinião da grávida ou do casal para que não abdiquem do seu consumo (id., ibid.).

11 Em ambiente hospitalar, o consumo de tecnologias no parto é evidente, por exemplo, pelo recurso à indução medicamentosa do trabalho de parto e à cesariana eletiva. Marca-se o dia e a hora para o parto porque a grávida e/ou o profissional demonstram

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estar já cansados da gravidez, ou porque se quer fazer coincidir o parto com o dia de trabalho do obstetra, ou porque já se calculou o mapa astral para aquele dia e aquela hora, em que a conjuntura astrológica era a mais favorável. Todos estes motivos foram já enunciados em serviços de obstetrícia, com maior ou menor grau de discrição.4 São razões bastantes, numa lógica de consumo, para que se intervenha na gravidez e se aumentem consideravelmente os riscos num parto que, eventualmente, teria todas as condições para decorrer com um mínimo de intervenção médica.

12 Mais do que complexo, o consumo de tecnologias obstétricas revela-se paradoxal. Por um lado, reconhecem-se e divulgam-se amplamente os riscos da gravidez e do parto para a própria grávida e para o seu corpo, para o bebé e, consequentemente, para a sociedade; desenvolvem-se mecanismos de vigilância e tecnologias de controlo desses riscos; e criam-se respostas sociais que permitam atenuar as desigualdades no acesso a essas tecnologias. Por outro, publicitam-se tecnologias mais avançadas para um diagnóstico do risco mais preciso e mais caro; e recorre-se a intervenções mais iatrogénicas, com mais riscos e mais dispendiosas, por opção da mulher, do obstetra ou de ambos, aprofundando insidiosamente as desigualdades sociais. A lógica do consumo e a reflexividade individual da mulher grávida verificam-se quer no recurso à tecnologia obstétrica, quer na recusa de a utilizar. Por existirem ideologias ou fundamentações diferentes, desde as que se aproximam mais do “natural” e do místico, às que se afirmam pela sobredosagem tecnológica, há uma diversidade de opções quanto ao uso da tecnologia, todas elas ilustrando a procura de um parto perfeito e de um bebé normal.

O trabalho de campo

13 O percurso inicial de investigação empírica foi orientado por questionamentos em torno da opção pelo parto em casa e pelos aspetos que a enformam. Tomando como referência o cariz exploratório desta investigação, optou-se por uma metodologia qualitativa, já que se pretendia conhecer os processos de criação da experiência social e a sua significação (Denzin e Lincoln, 2011 [1994]), ou seja, conhecer em profundidade a realidade do parto em casa, desde um ponto de vista subjetivo — de quem optou e experienciou um ou mais partos domiciliares. Para que fosse possível aceder a estes fenómenos subjetivos, neste caso apenas compreensíveis através da linguagem (Ghiglione e Matalon, 2001 [1992]), e porque importava captar o discurso dos entrevistados que surgisse da sua própria linha de pensamento (Ruquoy, 1997 [1995]; Guerra, 2006), a técnica de recolha de dados que emergiu como a mais adequada foi a entrevista semidiretiva, realizada à mulher ou ao casal. Realizaram-se 18 entrevistas, oito delas em casal, que foram gravadas, com a duração média de 1 hora e 25 minutos. As entrevistas decorreram entre março e abril de 2012, nos distritos de Braga, Vila Real, Porto, Coimbra, Lisboa, Setúbal e Faro, sendo dez delas realizadas no distrito de Lisboa.

14 Foram descritos 34 partos com diferentes graus de profundidade, sendo oito deles partos hospitalares (PH) e 26 partos em casa (PC). Os partos domiciliares ocorreram entre 2005 e 2011.5 As experiências hospitalares foram principalmente descritas como contrastando com a experiência domiciliar, ou como legitimadoras, por si só, da opção pelo domicílio no parto seguinte. No entanto, o nível de profundidade da descrição destas experiências não permitiu uma análise comparativa entre as experiências de

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parto num e noutro local. Como tal, e em linha com os objetivos iniciais da pesquisa, a análise centra-se na experiência de um ou mais partos domiciliares.

O lugar da pericialidade médica e da tecnologia

15 A partir das entrevistas acedeu-se a um discurso repleto de terminologia médica (episiotomia, rolhão mucoso, período expulsivo, trabalho de parto), não só porque, como parte do processo de medicalização, a linguagem médica tem ganho protagonismo no discurso leigo e quotidiano, mas também porque esta confere legitimidade, pela sua cientificidade, ao discurso leigo e à opção de um parto em casa, podendo assim discutir-se com profissionais de saúde e contestar, na mesma base linguística, as práticas hospitalares de assistência na gravidez e no parto. À semelhança do descrito por outros autores (Viisainen, 2000; Conrad, 2007; Miller, 2009), o sistema pericial médico enforma o discurso, está na base de alguns dos procedimentos e constitui um recurso na gestão do risco. O conhecimento científico, no geral, e a linguagem médica, em particular, contribuíram para a legitimação das opções e das tomadas de posição da mulher ou do casal em relação aos procedimentos instituídos, uma marca que se enquadra no conceito de modernização reflexiva discutido por Beck, Giddens e Lash (2000 [1994]). Tal não pode ser entendido como independente da elevada escolaridade das participantes do estudo. Legitimada a visão do parto como algo fisiológico e rejeitando que se trata de algo patológico e, logo, dependente de intervenções médicas, o parto é descrito como algo simples, como parte da vida, como não sendo mais arriscado do que qualquer outro momento da vida. A pericialidade hospitalar é rejeitada, por ser um impedimento ao exercício do poder e do controlo da mulher sobre o seu corpo a parir: Para além de a gravidez ter corrido tão bem e eu sentir que não ia lá [ao hospital] fazer nada. Quer dizer… Basicamente, eu para parir, precisava de tempo, precisava de um sítio qualquer, precisava que não me mexessem, que não me falassem, que não me incomodassem e para isso eu estava em casa. Fora todas as outras coisas que eu não queria que me fizessem e que me iam impossibilitar de ter no hospital. [Mariana, 33 anos, 1 PC]

16 Ao hospital é ainda associado um grande grau de incerteza, por referência à perda de confiança nas equipas hospitalares, a quem são atribuídas fragilidades e limitações por também haver partos que “acabam mal”. Esta constatação vai ao encontro do que é referido por Giddens (1998 [1990]) e Zadoroznyj (2001) sobre as reconfigurações das relações de confiança nos sistemas periciais e, em particular, nos profissionais de saúde no parto, modeladas por elementos de reflexividade, por um lado, e por pressões sociais de normalização e responsabilização individual, por outro. Aqui, dado o reconhecimento da falta de legitimidade de alguns dos procedimentos hospitalares de rotina, a experiência de falta de liberdade e de autodeterminação pessoal da mulher no parto, e a constatação da primazia atribuída ao cumprimento de procedimentos e de normas hospitalares, a perceção do risco de um parto era maior no meio hospitalar do que em casa e isso despoletava, em última instância, a decisão pelo parto domiciliar. Mais, já com a decisão tomada em relação ao parto domiciliar, a ida para o hospital permanecia sempre como um receio e foi um dos aspetos mais vezes mencionado.

17 A própria relação com a morte assume contornos particulares. Tereso (2005) explica como a diminuição de filhos por casal tornou cada gravidez num acontecimento repleto de expectativas e de riscos. Aqui, paradoxalmente, quando se perguntava sobre os

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riscos reconhecidos à opção de parir em casa, a morte era verbalizada como uma possibilidade e aceite como tal. Em alguns casos, a morte do bebé era um medo presente no parto, noutros casos foi referida como algo que se aceitou como possível no planeamento do parto e no parto, mas que não esteve racionalmente presente nesses momentos: Pode-se morrer num parto. Tenho perfeita noção disso. Acho que faz parte da vida. [Rita, 28 anos, 1 PC]

18 A opção pelo parto em casa é construída sobre um processo reflexivo de apropriação leiga de conhecimento e de linguagem científica que mune a mulher ou o casal de uma capacidade de argumentação legitimada pela ciência e que, em muitos casos, os próprios peritos não conseguem acompanhar, limitando-se a uma rejeição perentória das propostas e das opções apresentadas. Os profissionais perdiam assim, em definitivo, a confiança e a sua credibilidade pericial, como refere uma mulher sobre a sua visita ao hospital, na sua terceira gravidez: Já tinha investigado e a minha ideia era eu poder circular, eu poder andar durante, durante as contrações e poder parar se me apetecesse e poder relaxar como, como eu sentisse que devia relaxar. E ter, por exemplo, a bola [de Pilates] para me sentar, para me sentir mais confortável e tudo isso e… Quando eu estava no quarto e faço essa pergunta [à enfermeira que conduzia a visita], primeiro eu vi que o espaço, sim senhor, eu podia ter a bola, até dava para ter ali, sim senhora. […] E eu perguntei: “Mas e se eu me quiser levantar da cama, posso? — Mas levantar-se? — Sim, se eu não estiver confortável deitada e quiser estar em pé, estar encostada à cama, estar sentada… — Ah, não… Não, então mas vai estar ligada ao CTG!” E eu: “Sim, mas o fio pode esticar ligeiramente, posso ao menos dar dois passos para cada lado? — Ah, pois, não, mas isso, não, tem de estar deitada.” E eu pronto, OK. [Cristina, 34 anos, 2 PH e 1 PC]

19 Não obstante a rejeição do modelo hospitalar hegemónico de assistência no parto, durante a gravidez valorizou-se o acompanhamento por um ou mais profissionais de saúde e recorreu-se à tecnologia médica na avaliação e controlo dos riscos, embora não houvesse, habitualmente, um cumprimento absoluto do que está definido como a vigilância normal da gravidez. O modelo que predomina, ainda assim, é o acompanhamento médico habitual a nível público, no centro de saúde, ou a nível privado. Reconhecendo, também neste caso, o risco moral da opção pelo parto em casa, a opção era geralmente mantida em segredo perante a figura do obstetra ou do médico de família, profissionais que se orientam pelo modelo de parto hospitalar. Ao medo de condenação moral, acrescia o medo de represálias, quando o médico que fazia as consultas também podia ser encontrado no hospital. Quando a opção era comunicada ao médico, a reação mais frequente foi a condenação mas, inesperadamente, nem sempre a reação do médico era concordante com a expectativa: R: Eu gostava de lhe ter dito, só que, por um lado, eu receei um bocadinho a reação dele. Porque pensei: “Ó pá, ele se calhar, à última da hora, é capaz de me dizer que eu tenho pouco líquido, ou que a bebé está pequena, ou que está grande demais e depois vai-me obrigar a, tipo, a… Ou induzir a que eu tenha um parto hospitalar.” E por isso, na primeira gravidez, optámos por não lhe dizer nada. M: Sim. R: Depois, ele… Eu fui lá no pós-parto e ele foi muito simpático e “Ah, então, já estava a pensar o que é que lhe teria acontecido” porque já tinham passado as 42 semanas, não é? Então, eu disse-lhe que tinha tido em casa e ele “Ah, então um parto à holandesa, não é?” [risos]. M: Depois apresentou-nos à equipa toda como a holandesa, os holandeses. Houve ali uma receção boa. [Raquel, 32 anos, e Marco, 32 anos, 1 PC]

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20 A reação, real ou esperada, dos médicos face à opção pelo parto em casa, conjugada com a incapacidade ou indisponibilidade para compreender a não aceitação de algumas das suas prescrições contribui para a degradação da confiança no modelo médico e hospitalar. Reconhece-se que a medicina e o ambiente hospitalar por ela configurado estão vocacionados para a intervenção e para a prescrição, e não para o aconselhamento e a negociação.

Confiança e risco na gravidez e no parto

21 Dentro da maioria que opta pela vigilância médica mais comum durante a gravidez, é frequente um acompanhamento paralelo pela enfermeira/parteira, que é descrito como mais personalizado, complementando a vigilância pré-natal e tornando-a, no conjunto, mais abrangente. Por oposição ao seguimento médico, mais impessoal, no percurso de definição da opção por um parto em casa e durante a gravidez é construída uma relação alicerçada na confiança com a equipa que assiste ao parto, por ser reconhecida como mediadora no processo de integração da gravidez e contribuir para a conquista de um sentido de coerência identitária. A par da informação científica mobilizada, a presença da enfermeira/parteira é um argumento usado como legitimador da opção perante a família, os amigos e os próprios médicos. É comum a referência à doula, uma figura emergente no panorama da saúde materna que não está enquadrada enquanto profissional de saúde. Habitualmente, possui uma formação orientada para a prestação de apoio emocional e de informações que, em grande medida, incorporam informação médico-científica da área, combinada com uma abordagem holística, contrastando com a abordagem médica mais comum. A doula pode ser enquadrada como uma conselheira perinatal e, habitualmente, o seu apoio é mobilizado durante a gravidez, o parto e o pós-parto. É de referir que, quando existe, a figura da doula emerge pela relevância do acompanhamento e da informação dados ao longo da gravidez, que medeia o processo reflexivo de construção da opção, sendo, em alguns casos, mais notória a complementaridade entre o médico e a doula, do que entre o médico e a enfermeira/ parteira: J: Fiz tudo, ou seja, tinha o acompanhamento hospitalar que elas aconselham sempre, nunca houve nenhum nem ninguém que tivesse dito o contrário, e depois tinha o, aquele acompanhamento mais específico e mais personalizado da parte da minha doula e da minha enfermeira. A única coisa que elas, que a minha doula dizia era: “Se não quiseres tomar os medicamentos que são químicos, o…” E: O ferro, o ácido fólico… J: Exatamente. “Come bananas, ou cereais. Alteras uma coisa pela outra e escusas de estar a ingerir químicos.” Eu nunca tomei esses medicamentos, aliás comecei a tomá-los no início, ainda não sabia. A minha doula falou comigo, eu pus de parte e comecei a ter uma alimentação mais, com mais ferro e com mais legumes e com mais coisas. Todas as minhas análises estavam excelentes, nunca disse à minha médica. A minha médica disse: “Bem, as suas análises estão excelentes, tem tomado o ferro que lhe dei?” E: Tenho sim senhora. J: Tudo tranquilo. E não tomei nada, nunca tomei nada disso. Pronto lá tive as minhas, as minhas consultas, fiz tudo, só alterei isto. [Joana, 36 anos, 1 PC]

22 Não existe, portanto, uma rejeição do modelo biomédico, mas uma seleção reflexiva de qual deve ser o espaço ocupado pela biomedicina na gravidez, fazendo sobressair os conceitos de consumo e de manager do corpo (Baudrillard, 2007 [1970]). Com base num grande número de recursos disponíveis, quer do sistema médico e convencional, quer de um sistema alternativo, há uma definição personalizada de quais os recursos a

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mobilizar para que a vivência da gravidez ganhe sentido e seja integrada no self. A modalidade adotada para o acompanhamento médico da gravidez varia entre a mulher que cumpre todo o programa normal de consultas médicas e apenas rejeita uma ou outra indicação médica, como um suplemento ou uma análise, e a mulher que faz apenas uma consulta médica no início da gravidez e vai fazendo, depois, os exames que entende necessários.

23 Estas escolhas não significam uma rejeição do conhecimento científico, em favor de um conhecimento mais “tradicional” ou “popular”, uma vez que são, em grande medida, escolhas fundamentadas com a pesquisa de conhecimento científico e legitimadas pela confiança na parteira ou na doula. São evidentes diferentes perceções do risco que se confrontam no encontro entre o médico e a grávida. De facto, em alguns casos, mais do que desnecessárias, algumas prescrições médicas foram vistas como arriscadas. Noutros casos, as recomendações fizeram sentido, mas foram adaptadas de modo a poderem ser integradas no conjunto das opções de vida anteriores. Noutros casos ainda, simplesmente não foram aceites, porque a compreensão do corpo fez sentir que estava tudo bem. A seguinte descrição representa de forma significativa o consumo de tecnologias médicas na gravidez: R: Eu não queria ser tocada. É desnecessário. Muitos vão tocar para ver se está, se não está, se está quase, mas não é por aí que vou… Achei que não era necessário. E se eu sentia o bebé, estava sempre a mexer, sentia-me bem, sentia que estava tudo bem, não sentia que havia necessidade. Também percebi também de toda a pesquisa que o CTG demonstra o estado da mãe e do bebé nesse determinado momento. Não quer dizer que no parto possa estar melhor ou pior, não é? Então não fazia sentido eu estar a sair da minha rotina e estar a deixar de fazer coisas ou pôr isso e ir para lá, quando realmente não havia, também não estava a planear ter no hospital. Não fazia sentido. E: Houve mais alguma coisa […]? R: Não, acho que não… […] Acho que não tomei o ferro. Mas… tomei um ferro… comecei com um ferro e ácido fólico proveniente de um meio mais… de ervanária. … Pois, recomendações, sim, houve assim algumas coisas que eu não fiz: não comer chouriço, não comer presunto, ter cuidados com os ovos, aa… Esse tipo de coisas, eu fazia o que o meu corpo me pedia. Tinha cuidado com as saladas e lavava as saladas por causa da toxoplasmose. [Ronalda, 31 anos, 1 PH e 1 PC]

24 De facto, o que mais frequentemente é alvo de rejeição é a toma de medicamentos e suplementos, como o ferro e as vitaminas, o que se procura compensar com a alimentação ou a toma de suplementos naturais, não químicos, lembrando o que Badinter (2010: 39) conceptualiza sobre a maternidade ecológica e a demonização da química, por encarnar “o artificial que, por definição, é inimigo do natural”. No polo oposto, são consensuais a utilidade e a importância do recurso à ecografia, sendo a única tecnologia a que se recorre sempre, apesar de se reconhecerem riscos na realização de ecografias obstétricas em excesso, o que leva a que se rejeite a realização de mais do que três.6 Mesmo quando há uma rejeição completa das consultas médicas e das análises, não se prescinde da segurança dada pela realização de ecografias: M: Na segunda gravidez nem fui a nenhuma consulta de obstetrícia, só fiz as três ecografias. E: […] O que é que te fez optar pelas ecografias e não pelas consultas, por exemplo? M: Ah, as ecografias porque queria ter a certeza que estava tudo bem com o bebé, não tinha malformações, tinha também… Porque eu achava desnecessárias, as consultas… Não sei o que é que elas me iam trazer de mais… o que é que elas iam ajudar a juntar àquilo que a ecografia revelava. Se estava tudo bem, porque é que eu havia de ir a uma obstetra? [Maria B, 32 anos, 2 PC]

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25 De facto, como ilustra Ettorre (2000: 410), a relevância social da deficiência e a pressão exercida pelos mecanismos de controlo da reprodução conduzem a mulher na procura do estatuto da “boa reprodutora” que concebe um bebé normal. A imprescindibilidade do rastreio ecográfico entre os casos estudados denuncia a conformidade com estes mecanismos e demonstra o impacto das persistentes perceções de risco médico e social associadas à possibilidade de se ter um bebé imperfeito, com malformações. Mas além do seu potencial diagnóstico, esta relação com a ecografia aproxima-se também da proposta de Petchesky (1987) e de Lupton (2013), que descrevem a construção social das imagens do feto como objetos culturais, que excedem os propósitos médicos originais e englobam processos de personificação do embrião/feto, reconfigurando historicamente os seus estatutos sociais.

26 Há, de resto, um grande número de recursos mobilizados reflexivamente durante a gravidez e que foram referidos como parte do percurso de acompanhamento desta, como as sessões com a doula, os cursos sobre a gravidez e o parto, os encontros de casais, o yoga e os cursos mais comuns de preparação para o parto. Estes recursos são apresentados como um meio para o desenvolvimento de aspetos que o acompanhamento habitual, com um profissional de saúde, não permite desenvolver, complementando-o e contribuindo, também, para a já referida integração da gravidez no self. No entanto, o curso de preparação para o parto emerge como o recurso que, nos casos em que foi mobilizado, não contribuiu ou contribuiu pouco para essa integração: Sinceramente, [o curso] a mim não me ajudou em nada, até por, eu acho, pela quantidade de informação que já tinha, não é? Mas, portanto, isto tinha sido num parto anterior. Mas tive noção que tudo aquilo que, pronto, também temos de ver que um curso de preparação para o parto é preparação para um parto hospitalar, não é? E eu acho que parte muito da ideia… É um bocado paternalista. Eu acho. Porque quando entramos aqui nas questões do como respirar e não-sei-quê, epá!… Só quem não, pronto, só quem não teve um parto assim, como eu tive, natural, é que acha que é preciso que nos ensinem a respirar. Eu acredito que, se calhar, num parto hospitalar, naquelas condições, pronto. É útil. Para quem tem um parto desses, talvez seja útil. Mas realmente aquilo que eu me apercebi pelo meu parto é que se tivermos as condições certas, esse ambiente propício, é inata a maneira como respiramos, a posição que procuramos. Ela não nos precisa de ser ensinada. [Jasmim, 39 anos, 1 PH e 1 PC]

27 O curso é referido em moldes que permitem enquadrá-lo como um mecanismo de regulação moral e de controlo do comportamento no parto, definindo-se como respirar, como se movimentar, como o companheiro pode ajudar e, no limite, como parir no hospital. O parto é descrito como uma experiência concreta de reconhecimento do corpo e, por isso, o curso é caracterizado pelo sentido de incoerência que promove em quem o frequenta e quer ter um parto em casa.

28 Também no parto foi feita referência à relevância e ao papel de cada um dos atores que estavam ou que deveriam ter estado presentes. Na sua maioria, foi referida a presença do outro membro do casal, da enfermeira/parteira e da doula, e é possível distinguir os papéis atribuídos a cada um.

29 Recuperando o conceito de gineceu, a que se recorre para ilustrar a exclusão do homem do local do parto nas sociedades tradicionais (Carneiro, 2008), identifica-se no parto domiciliar um gineceu reconfigurado, onde não tanto o género, mas principalmente as relações de confiança definem as condições de acesso. Neste sentido, também o papel do homem surge com configurações distintas, sendo reconhecida importância ao seu

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apoio emocional, ainda que lhe seja reconhecido, maioritariamente, um papel instrumental na preparação do espaço físico. Por um lado, esta reconfiguração afasta o homem da posição dominante que, em traços gerais, lhe é reconhecida numa sociedade patriarcal. Por outro, afasta-o do papel passivo e expectante que tradicionalmente lhe é atribuído no parto.

30 À parteira é atribuído um papel pericial, sendo-lhe reconhecida uma autoridade carismática configurada pelo saber científico, combinado ou enriquecido pelo “saber de experiência feito”. À doula é atribuído um papel familiar ou maternal. Habitualmente, quando se inicia o trabalho de parto, o primeiro contacto telefónico é com a doula e, em alguns casos, a doula e a enfermeira/parteira são contactadas em simultâneo, mas nunca o contrário. Não foi possível esclarecer empiricamente o que leva a esta distinção.

Incorporar a experiência do parto

31 O início do trabalho de parto e o parto surgem como uma experiência concreta (e não mística) de incorporação de um processo que é fisiológico ou natural. A autodeterminação, o instinto, a confiança no corpo e a interpretação e compreensão dos seus sinais são eixos condutores da experiência de parir. A referência ao instinto confere naturalidade ao parto e aproxima a experiência da mulher da experiência dos restantes mamíferos: Eu tive a sensação que nós nos tornamos um bicho autêntico. Em casa, eu posso-lhe descrever, no parto da minha primeira filha, eu gosto muito de ouvir música e pus música quando comecei, mas durou muito pouco tempo, porque a seguir o que eu queria era silêncio, escuridão e quentinho. E pedi até ao marido para pôr o colchão na sala, veja lá. Ele pôs-me o colchão na sala, ligou os aquecedores todos e eu fiquei ali, no escuro, apaguei as luzes, pus tudo em silêncio e o que eu senti era, eu acho que deve ser aquilo que sentem os mamíferos quando vão para a toca para ter os seus filhos. [Jasmim, 39 anos, 1 PH e 1 PC]

32 Não obstante, a tomada de consciência de que o parto estava próximo nem sempre foi despoletada por um sinal físico do corpo, que é o que se verifica com a maioria. Num conjunto minoritário, mas significativo, há sinais subjetivos que são descritos como tendo permitido intuir o início do trabalho de parto, tal como a fase da Lua (lua cheia), a “despedida da barriga” ou a “síndrome do ninho”, estes últimos revelando não só a intuição da mulher, mas o seu poder de decidir quando está preparada para o parto: Só comecei a arranjar as coisas muito tarde, a preparar as coisas para o bebé muito tarde, então achava que ele nunca ia nascer enquanto eu não tivesse tudo preparado, que eu inconscientemente não ia deixar aquilo acontecer. E então, a certa altura, falei com a minha doula e disse-lhe: “Olha, ele nunca mais nasce.” Já estava com quarenta e uma semanas, e ela disse: “Estás muito confortável nisso, não estás?” E eu: “Sim, eu acho que não me está a apetecer agora deixar de ficar grávida. Agora estou aqui nisto!” E ela disse: “Pois, tens de te despedir da barriga.” Então fiz assim uma despedida da barriga, assim, fui passear, despedi-me da barriga, tirei muitas fotos e depois, um dia depois ou dois dias depois, eu passei uma tarde assim em casa a ver um filme […] e comecei a sentir as contrações. [Lassa, 34 anos, 1 PC]

33 Os sinais físicos surgem de seguida, nestes e nos restantes casos, confirmando a proximidade do parto através de contrações rítmicas, dores, a saída do rolhão mucoso e a rotura da bolsa de águas. Partindo daqui, cada pessoa revelou uma experiência singular do trabalho de parto, refletindo a liberdade e a autodeterminação da mulher,

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sendo adotadas diferentes posições, diferentes locais em casa e diferentes estratégias para o alívio da dor, com diferentes durações, diferentes equipas e diferentes níveis de aceitação da tecnologia, uma diversidade incompatível com a normatividade hospitalar. O parto em casa conduziu a um afastamento simbólico de uma realidade coletiva e a uma aproximação a uma realidade mais individualizada, através do embodiment (Lupton, 1994) do processo de parir: Sinto que me foi proporcionado um contacto comigo própria e com o meu corpo que era difícil eu ter noutro lado qualquer. Que me foi proporcionada a possibilidade de eu ter uma consciência corporal mais aguçada. Não sei se me… Se faz algum sentido ou se consegues compreender. [Madalena, 32 anos, 2 PC]

34 A dor no trabalho de parto foi largamente descrita com o recurso a expressões como “insuportável”, “horrível”, “ossos a rasgar” e, em alguns casos, como “importante”. Contrariando Badinter (2010), não lhe é reconhecido um valor positivo por ser natural, mas antes por tornar o processo inteligível e permitir a perceção consciente do corpo, para que se possa exercer o controlo: Eu também acho que a dor é importante para saber o que se está a passar. Por isso eu gosto muito de sentir a dor. Eu nunca quis levar epidural porque acho que se apaga a dor e nós não sabemos o que se está a passar no nosso corpo. E para mim é muito importante saber o que se está a passar. Mesmo quando há a coroação do bebé, dói bastante no períneo, mas eu prefiro sentir essa dor e saber se está a rasgar ou não, do que não sentir nada e, por exemplo, irem-me cortar. [Rita, 28 anos, 1 PC]

35 Ainda assim, dentro da descrição concreta do trabalho de parto, através do que acontece no corpo e no espaço envolvente, foi referida uma experiência menos concreta, identificada como “partolândia” ou “transe” ou um “processo iniciático onde é possível contactar com o mundo espiritual”: Enquanto estive na banheira, estava na partolândia, completamente. Eu não faço ideia de quanto tempo foi, eu não me lembro de ter dores, lembro-me de ser um parto muito intenso. [Mariana, 33 anos, 1 PC] Eu acho que nós quase que ascendemos a outro nível da… Eu nem posso falar disto, que fico um bocado emocionada… A outro nível da existência. É fenomenal. Eu não sou nada religiosa, nem esotérica, nem nada, mas se há alguma parte da nossa vida em que nós tenhamos algo de divino, acho que é naquele momento e o passar de todo aquele processo. [Jasmim, 39 anos, 1 PH e 1 PC]

36 Esta descrição de um período de transcendência onde é atingido um outro estado de consciência e de onde, por vezes, não é possível resgatar a memória do que concretamente aconteceu, constitui o único elemento de misticismo ou esoterismo que foi possível identificar.

Consumo reflexivo da tecnologia e controlo

37 O controlo de todo o processo assume contornos importantes, já que, além de à dor, também à tecnologia é atribuído um valor moral, sendo boa ou má consoante o seu recurso dependa ou não da vontade da mulher, ou consoante o seu uso permita ou não a liberdade da mulher. Há um recurso frequente a tecnologias, como piscinas de parto, bolas de Pilates, bancos de parto, cardiotocógrafo ou doppler fetal, entre outras. Podemos considerar a existência de um continuum entre a aceitação completa e a rejeição completa da tecnologia, onde cada mulher se posiciona mais próxima ou mais afastada de cada um dos polos, não se verificando, mais uma vez, uma homogeneidade de posicionamentos. Houve apenas um caso em que se identificou uma rejeição

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praticamente total da tecnologia. A maioria dos casos posiciona-se num nível intermédio, incluindo-se a aceitação de instrumentos, como a bola de Pilates ou a piscina. Depois, com menos frequência, inclui-se a aceitação de substâncias que aceleram o parto ou que aliviam a dor, desde que sejam naturais. Houve quem descrevesse uma indução do trabalho de parto controlada por si e com recurso a métodos não farmacológicos, perante a ameaça de internamento para uma indução hospitalar feita pela médica: Nessa sexta-feira decidi: “Não, isto de hoje não vai passar, eu não quero ir para o hospital, nem pouco mais ou menos.” E então decidi ir sair com as minhas amigas. […] Fui para um bar de praia, estive sempre a dançar, a dançar, a pular, a pular, que era para ver se aquilo… Ao pé da coluna, por causa da vibração, ao pé da coluna, a pular. Eram quatro, quatro e pouco, eu já estava a sentir a barriga muito dura e eu disse às minhas amigas: “Olhem, eu vou-me embora, já estou assim um bocadinho cansada, eu vou-me embora”. [Joana, 36 anos, 1 PC]

38 Não parece ser o ambiente hospitalar que encerra a “tecnologia má”, uma vez que, em casa, não se rejeita a mesma tecnologia quando ela é usada por opção da mulher ou por sugestão de outrem, desde que com a sua concordância. A confiança no contexto e na pessoa que aplica a tecnologia também não basta para a legitimar pois, mesmo quando acontece em casa e é feita pela parteira, se uma dada intervenção é entendida como desnecessária, é uma intervenção ilegítima. Mais, tendo tudo decorrido sem complicações no parto, o que corre mal é associado frequentemente a uma intervenção não desejada da enfermeira/parteira, como refere esta mulher sobre a repentina intervenção da parteira, que chegou pouco depois de o bebé nascer: Apesar da parteira ser uma mulher muito interessante e eu achava-lhe muita graça, senti que ela me tinha retirado alguma coisa também. De repente tinha chegado ali e eu, que estava naquele processo todo-poderoso: “Eu consigo parir o meu filho, isto é um processo meu.” E ela desata lá a fazer as coisas que achou que ela tinha de fazer e deixaram-me ali um bocado… [Filipa, 34 anos, 1 PH e 2 PC]

39 Avaliando a experiência do parto, “correr bem” não é corresponder às expectativas. Em muitos casos, o parto idealizado não aconteceu e, ainda assim, considera-se que correu bem. O facto de a parteira não chegar a tempo, o cordão partir e não permitir esperar que deixasse de pulsar antes de o cortar, ou o parto demorar mais tempo do que o esperado, entre outros fatores, não parecem influenciar essa avaliação. Também não se afigura como suficiente o facto de mãe e bebé estarem bem, já que, quando tal acontece no hospital, é referido que a experiência não foi completa ou que “faltou qualquer coisa”. No conjunto, parece ser a apropriação da experiência de parir, o controlo sobre o processo e a autodeterminação que definem e configuram a experiência do parto em casa como uma experiência positiva.

Conclusões

40 Este artigo lança as bases para um retrato sociológico do parto domiciliar planeado contemporâneo. Pela análise das experiências descritas, ele afasta-se de alguns dos enunciados apriorísticos que o associam a uma recuperação de valores e modelos tradicionais, ou a uma experiência mística, espiritual ou esotérica. Em certa medida, afasta-se até do pressuposto de que este se enquadra no naturalismo, embora se verifique uma valorização do natural. Pelo contrário, o parto domiciliar caracteriza-se por um recurso reflexivo à ciência e ao conhecimento médico, onde apesar de se

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conhecerem os pressupostos da racionalidade técnico-científica, não se reconhece a primazia desta racionalidade. O parto é descrito como um evento concreto que acontece no corpo; e a mobilização de elementos tecnológicos médicos ou “alternativos”, em algumas situações, modela e altera o que seria o desenvolvimento de um trabalho de parto e parto espontâneos, fisiológicos ou naturais.

41 Estas características da modernização reflexiva — o consumo combinado de tecnologias obstétricas e alternativas, bem como a redefinição de relações com base na confiança e a constituição de um gineceu reconfigurado — revelam ser mais do que uma simples mobilização aleatória de todos os recursos acessíveis. Denunciam uma diversidade de perceções de riscos médicos e sociais em interação, que se distingue das perceções de risco que guiam a prática obstétrica predominante. No seu conjunto, definem um percurso de integração positiva das experiências no self e de conquista de um sentido de coerência identitária.

42 Pode dizer-se que é esta incompatibilidade com os sistemas de vigilância e controlo impostos nas instituições hospitalares que conduz o parto num movimento de desinstitucionalização. Apesar de retirar poder e protagonismo à prática médica, a opção por um parto em casa não o transforma num acontecimento desmedicalizado e não reflete uma rejeição do modelo biomédico, mas antes uma recusa do monopólio e da hegemonia de saber e de ação da medicina sobre a gravidez e o parto.

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NOTAS

1. Disponíveis em https://www.ine.pt 2. Este artigo tem por base a dissertação de mestrado em Saúde, Medicina e Sociedade, intitulada Nascer em Casa — A Desinstitucionalização Reflexiva do Parto no Contexto Português, apresentada em 2012 e disponível em http://hdl.handle.net/10071/4684. 3. O parto, em si, não depende da atuação profissional, não se podendo considerar um “ato médico”. Nem mesmo a assistência não profissional de um parto ou a opção por um parto não assistido constituem, por si só, uma ilegalidade. 4. Estes exemplos foram vivenciados por Mário J. D. S. Santos num serviço hospitalar de obstetrícia em Portugal. 5. Para mais detalhes sobre os modos de seleção das participantes no estudo e sobre a sua caracterização, recomenda-se a consulta da dissertação de mestrado. 6. É frequente a referência a médicos que prescrevem mais do que três ecografias obstétricas, embora a norma n.º 023/2011 de 29/09/2011 da Direção-Geral da Saúde recomende a realização de apenas três, na vigilância de uma gravidez de baixo risco.

RESUMOS

O parto domiciliar contemporâneo é um fenómeno raro, pouco visível e, enquanto terreno empírico, é pouco explorado. Partindo de entrevistas a mulheres e casais que experienciaram um parto em casa planeado, o artigo pretende fornecer um primeiro retrato sociológico do fenómeno em Portugal. Este surge não como um retorno ao tradicional ou uma procura de uma experiência mística, mas antes como um acontecimento físico concreto, grandemente enformado por conhecimento científico e médico, que se inscreve numa procura de coerência identitária. Emergiram diversas perceções de risco social e de risco médico, tornando-se visível um consumo reflexivo de tecnologias médicas modelado por essas mesmas perceções. Ainda que destitua algum do protagonismo da medicina na gravidez e no parto, de facto não pode dizer-se que se trate de um fenómeno de desmedicalização.

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Contemporary home births are rare and quite invisible phenomena, and quite unexplored as an empirical field. From interviewing women and couples who experienced a planned home birth, this article aims to give an initial sociological portrait of this phenomenon in Portugal. It is shown to be not a return of the traditional or a search for a mystical experience, but rather a physical and concrete happening, strongly shaped by scientific and medical knowledge, within a search for identity coherence. Several social and medical risk perceptions emerged, as well as a reflexive consumption of medical technologies framed by these same perceptions. Despite the fact that home birth detracts the relevance of medicine during pregnancy and birth, it is not possible to frame it as a phenomenon of demedicalisation.

L’accouchement à domicile contemporain est un phénomène rare, peu visible et en tant que terrain empirique il est peu exploré. À partir d’entretiens avec des femmes et des couples qui ont vécu un accouchement programmé à la maison, l’article prétend fournir un premier portrait sociologique de ce phénomène au Portugal. Celui-ci apparaît, non comme un retour au traditionnel ou comme la recherche d’une expérience mystique, mais plutôt comme un évènement physique concret, énormément formé par la connaissance scientifique et médicale, qui s’inscrit dans une recherche de cohérence identitaire. Diverses perceptions de risque social et médical ont surgi, ce qui a permis l’analyse d’une consommation réfléchissante de technologies médicales modelées par ces perceptions. Bien que l’accouchement à domicile enlève de l’importance à la médecine de la grossesse et de l’accouchement, on ne peut cependant pas dire qu’il s’agisse d’un phénomène de démédicalisation.

El parto domiciliario contemporáneo es un fenómeno raro, poco visible y como terreno empírico está poco explorado. Partiendo de entrevistas a mujeres y parejas que han experimentado un parto en casa planificado, el artículo pretende mostrar un primer retrato sociológico del fenómeno en Portugal. Este surge, no como un regreso a lo tradicional o una búsqueda de una experiencia mística, sino como un acontecimiento físico concreto extremadamente enmarcado por el conocimiento científico y médico, que se inscribe en la búsqueda de una coherencia identitaria. Surgieran diferentes percepciones de riesgo social y riesgo médico, y un consumo reflexivo de las tecnologías médicas modelado por estas percepciones. Aunque le quita algún protagonismo a la Medicina en el embarazo y parto, de hecho no se puede decir que se trate de un fenómeno de desmedicalización.

ÍNDICE

Mots-clés: accouchement à domicile, medicalisation, perceptions de risque, cohérence identitaire Palavras-chave: parto em casa, medicalização, perceção de risco, coerência identitária Keywords: home birth, medicalisation, risk perception, identity coherence Palabras claves: parto domiciliario, medicalización, percepción de riesgo, coherencia identitaria

AUTORES

MÁRIO J. D. S. SANTOS Assistente de investigação, Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), CIES-IUL, Av. Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]

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AMÉLIA AUGUSTO Professora auxiliar, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade da Beira Interior, Estrada do Sineiro, s/n, 6200-209 Covilhã. E-mail: [email protected]

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Experiences et strategies de femmes investies dans un “monde d’hommes”: le cas de la politique locale portugaise Experiências e estratégias de mulheres empenhadas em vencer num "mundo de homens": o caso da política local portuguesa Experiences and strategies of women invested in a “man’s world”: the case of Portuguese local politics Experiencias y estrategias de las mujeres que invierten en "el mundo del hombre": el caso de la política local portuguesa

Maria Helena Santos, Patrícia Roux et Lígia Amâncio

Introduction

1 La sous-représentation des femmes en politique est un phénomène international (Krook et O’Brien, 2010; Gaspard, 2007). Face à cette inégalité, plus d’une centaine de pays se sont dotés de quotas électoraux et de lois sur la parité (Dahlerup, 2008). De telles mesures ont contribué à féminiser la profession politique, mais elle continue à être structurée par la division sexuelle du travail et la féminisation ne s’accompagne pas d’un réel partage du pouvoir entre hommes et femmes politiques (Sineau, 2011). Nous considérons donc que les professionnelles de la politique sont en position de “ token” (Wright, 2001), c’est-à-dire constituent une minorité non seulement parce qu’elles sont moins nombreuses que les hommes dans le champ, mais surtout du fait que la politique reste un monde que la classe des hommes domine et dans lequel elles doivent lutter pour légitimer leur place. A partir de ce point de vue, le présent article s’attache à cerner les expériences de femmes travaillant dans le monde masculin de la politique et les stratégies de genre qu’elles développent dans ce contexte. Notre objectif principal est de voir de quelles manières elles gèrent leur statut doublement

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minoritaire et tentent de s’émanciper aussi bien de leur statut de minorité dans le monde politique que de leur statut de groupe socialement dominé dans les rapports sociaux de sexe.

2 Le terrain de l’analyse proposée se situe au Portugal, qui a introduit une Loi sur la parité en 2006, et l’étude porte sur la politique locale parce que les résistances au changement y sont particulièrement visibles (Santos, 2011; Santos et Amâncio, 2012). Dans un premier temps, l’article présente le cadrage théorique de l’étude que nous avons menée, puis les résultats de celle-ci, dans laquelle 22 femmes engagées dans la politique locale ont été interviewées.

Le tokenism: de l’analyse neutre à l’analyse de genre

3 Le tokenism fait référence à tous les domaines dont l’accès est limité à certains groupes sociaux et, selon Wright (2001), il affecte trois groupes: le groupe dominé, le groupe dominant et les tokens. Dans notre étude, ces trois groupes sont respectivement les femmes, les hommes et les élues. Dans l’étude princeps de Kanter en entreprise (1993 [1977]), trois raisons conduisent l’auteure à considérer que les tokens sont une minorité numérique désavantagée et discriminée par rapport au groupe majoritaire: ils sont particulièrement visibles, et ainsi mis sous pression pour être performants; les différences entre les tokens et les dominants sont polarisées, pouvant conduire à la marginalisation des premiers; ils sont enfermés dans des rôles stéréotypiques associés à leur groupe d’appartenance dominé.

4 Ce travail de Kanter a été critiqué du fait qu’elle n’a retenu qu’un critère numérique pour définir les groupes, alors que de nombreux autres facteurs — structurels, culturels, sociaux et psychologiques — ont aussi un impact sur leurs interactions (voir Santos et Amâncio, 2014). Notamment, les dynamiques du tokenism qu’elle a mises au jour ne prennent véritablement leur sens qu’à la condition de prendre en compte que les individus qu’elle analyse sont des femmes et de replacer ces dynamiques dans les rapports de genre (Yoder, 1994). La relation hiérarchique entre les deux catégories de sexe détermine en effet la nature des expériences que font les tokens et, par exemple, leur mobilité professionnelle: les hommes sont généralement favorisés par un “escalier roulant ascendant” (Williams, 1995) lorsqu’ils s’investissent dans un groupe professionnel féminin, comme dans certains secteures de la médecine où les femmes sont désormais en nette majorité (Santos, Amâncio et Roux, 2015), tandis que celles-ci se heurtent à un “plafond de verre” qui les maintient écartées des postes de pouvoir dans les métiers masculins (e.g., Cognard-Black, 2004; Floge et Merrill, 1986; Heikes, 1991; Ott, 1989), y compris dans le domaine politique (e.g., Bereni et al., 2011).

5 Dans ces situations inégalitaires, les femmes se sentent souvent sous pression, voire menacées parce qu’elles drainent derrière elles l’histoire d’un groupe historiquement défavorisé et dominé (Barreto, Ellemers et Palacios, 2004). C’est le cas lorsqu’elles sont soupçonnées d’être incompétentes et pas à leur place dans un “métier d’homme”. Les travaux de Santos (2011), poursuivis dans notre étude présentée ici, montrent que les femmes — des élues en l’occurrence — sont alors obligées de prouver qu’elles sont compétentes et résistantes, leur présence ne va jamais de soi. Et pour peu qu’elles se comportent de façon contre-stéréotypique (e.g., sont ambitieuses, audacieuses, autoritaires), elles courent le risque d’être stigmatisées (Heilman et al., 2004).

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6 L’intégration des femmes dans des métiers masculins se fait dans un cadre idéologique particulièrement propice à masquer les logiques institutionnelles inégalitaires, celui de l’idéologie méritocratique. En effet, différentes études ont montré que l’adhésion des tokens à cette idéologie peut les amener à ignorer les discriminations subies par les groupes dominés (Ellemers, Spears et Doosje, 1997) et à défendre le statu quo qui leur a permis d’obtenir une position supérieure (Barreto, Ellemers et Palacios, 2004). D’autres travaux établissent que les discriminations contre “les femmes en général” sont reconnues, mais que ce sont les discriminations vécues personnellement qui sont déniées (e.g., Crosby, 1984; Roux, 1999). Les femmes elles-mêmes auraient tendance à se “détacher” de leur groupe de sexe pour maintenir la culture organisationnelle qui a favorisé leur succès (Apfelbaum, 1999), voire se désolidariseraient de leur groupe en privilégiant des discours individualistes qui les placent dans une position méritante et qui placent en revanche leurs pairs dans une position de non-méritantes. Ainsi, le tokenism semble entretenir l’idéologie du mérite (Taylor et McKirnan, 1984), soutenir les mythes légitimateurs de l’ordre social hiérarchique délimitant “qui a droit à quoi?” (Staerklé et al., 2007), et constituer un phénomène institutionnalisé qui maintient les privilèges des hommes et leur position de classe dominante (Williams, 1995). Si l’on y ajoute les difficultés, évoquées plus haut, que les femmes rencontrent lorsqu’elles s’engagent dans un métier masculin, l’on peut penser que leur présence dans ce type d’espaces sert plus d’alibi que de moteur d’un changement des pratiques et des normes de genre.

Genre, tokenism et action positive: le cas des femmes politiques

7 Parmi toutes les controverses qu’a générées la question des quotas électoraux et de la parité en politique (Lépinard, 2007; Scott, 2005), l’argument du mérite continue à tenir une place prépondérante dans les discours des politiciens et du corps électoral: le mérite est une règle de justice prédominante dans nos sociétés (Young, 1990) que ces discours estiment contournée par les lois sur la parité ou les quotas (Santos, Amâncio et Alves, 2013). Cet argument insuffle l’idée que l’inclusion des femmes dans les listes électorales par les quotas péjorerait la qualité du travail politique, soit le niveau de compétence. En d’autres termes, le mérite des femmes politiques est mis en question, même si l’argument ne tient nullement: prétendre à une violation du mérite suppose qu’il peut être objectivement mesuré (Crosby et Clayton, 2001), or l’on sait que l’évaluation du mérite n’est pas “neutre” (Young, 1990). Celui des hommes politiques par exemple est généralement peu questionné (Gaspard, Servan-Schreiber et Le Gall, 1992). Dans le métier politique comme dans les autres métiers masculins, l’accès au mérite fait donc partie des dynamiques du tokenism qui figent les rapports sociaux hiérarchiques et entretiennent les résistances aux transformations des pratiques et des règles de genre inégalitaires (Santos, 2011).

8 Au Portugal, ces résistances sont particulièrement visibles au niveau de la politique locale (Santos et Amâncio, 2012), portées surtout par les hommes, ceux-ci se sentant menacés par la mise en œuvre de la Loi sur la parité (Lei Orgânica n.º 3/2006). Plus largement, c’est l’ensemble des mesures d’action positive promouvant l’égalité des sexes au sein du monde politique qui sont plus appuyées par les femmes. Si le soutien des femmes et des hommes à ces mesures se différencie, c’est bien entendu en raison de

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l’inégalité de leurs positions respectives dans les partis politiques, mais aussi dans la vie privée, car même dans les professions prestigieuses (Fassa et Kradolfer, 2010) parmi lesquelles nous incluons “être femme politique” (Sineau, 2011), le travail domestique continue d’être de la responsabilité principale des femmes (e.g., voir Amâncio, 2007; Geist, 2010; Silva, Jorge et Queiroz, 2012; Wall et Guerreiro, 2005).

9 C’est donc à partir des expériences familiales et professionnelles d’élues que nous avons étudié les effets du tokenism en politique. Notre étude vise à analyser les stratégies que des femmes engagées dans la politique locale portugaise développent pour s’affranchir de leur position doublement dominée, que ces stratégies confortent le système de genre ou au contraire œuvrent en faveur de l’égalité des sexes. L’intérêt de la démarche est qu’elle se situe dans un contexte de tokenism particulier: celui d’un espace politique dans lequel la Loi sur la parité a été appliquée.

Méthode

Participantes

10 Vingt-deux femmes des cinq partis en activité au niveau local ont participé à cette étude, menée au Centre (16 communes de Lisbonne et des environs) et au Nord (six communes de Porto et environs) du Portugal. Nous avons interviewé deux femmes du Bloc de gauche (BE), quatre du Parti communiste portugais (PCP) et six du Parti socialiste (PS), huit du Parti social-démocrate (PSD) et deux du Parti du centre démocratique et social — Parti populaire (CDS-PP). Quatorze exercent leur activité au niveau exécutif (une présidente d’une mairie, sept présidentes de petites communes et six conseillères municipales) et huit au niveau délibératif (députées de différentes Assemblées municipales et communales). Seize sont mariées, deux sont divorcées, une est veuve et trois sont célibataires. Dix-sept ont des enfants, deux femmes mariées et les trois célibataires n’en ont pas. Onze femmes ont entre 32 et 53 ans (M = 42 ans), tandis que l’âge des 11 autres varie de 54 à 78 ans (M = 64 ans). Dans ce second groupe d’âge, l’activité politique des élues s’étend en moyenne sur près de 26 ans (médiane = 29 ans), l’exercice de cette activité étant évidemment plus court, bien que solide, dans le groupe des plus jeunes (M = 16 ans, médiane = 11). Ces dernières sont mieux représentées dans les partis de gauche (les deux-tiers des 12 élues de gauche ont entre 32 et 53 ans) et les interviewées plus âgées sont plus investies dans les partis de droite (7 des 10 élues de droite ont entre 54 et 78 ans).

Procédure et dimensions thématiques

11 L’échantillon des élues a été constitué avec la technique dite “boule de neige”, en partant de nos contacts avec des députées du Parlement national. Sollicitées par courrier électronique, les 22 femmes politiques ont été interviewées entre avril et juin 2012, durant 1h30 en moyenne. Les entretiens ont été enregistrés puis retranscrits intégralement, tout en garantissant aux élues leur anonymat.

12 Notre guide d’entretien semi-structuré englobait plusieurs questions divisées en six dimensions thématiques: les expériences des participantes dans l’exercice de leur métier politique (donc les dynamiques du tokenism); les compétences qu’elles jugent nécessaires pour “faire de la politique” de façon efficace; la conciliation des vies

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politique et familiale; les causes de l’inégalité des sexes dans la politique, leurs opinions sur la situation et sur des mesures telles que les quotas et la Loi sur la parité; leur sentiment sur la discrimination des femmes en général et d’elles-mêmes en particulier; leurs formes de mobilisation (individuelle ou collective) pour l’égalité des sexes.

Procédure analytique

13 Le corpus des 22 entretiens a été soumis à une analyse des données textuelles effectuée avec le logiciel Alceste 2012.1 Nous avons opté pour une procédure qui ne se centre pas sur la spécificité interne de chaque interview et donc sur la logique des discours ou des parcours individuels, mais qui vise à saisir la diversité ou la communauté des points de vue exprimés sur chacune des six dimensions thématiques décrites ci-dessus. Dans nos résultats, les dimensions seront désignées par les mots-clés suivants: (i) dynamiques, (ii) compétences, (iii) conciliation, (iv) in/égalité, (v) discrimination et (vi) mobilisation.

14 De manière à saisir l’ancrage social des classes identifiées par Alceste, nous avons projeté sur celles-ci trois variables sociodémographiques des interviewées: le statut marital (vit en couple vs. seule), le nombre d’enfants (avec vs. sans enfants) et le groupe d’âge construit à partir de l’âge médian (11 femmes de 32 à 53 ans vs. 11 de 54 à 78 ans). Une quatrième variable d’ancrage social a été considérée, l’appartenance politique, à partir d’une division dichotomique: gauche (BE, PCP, PS: 12 élues) vs. droite (PSD, CDS- PP: 10 élues).2

Résultats

15 Les résultats ont révélé une structure thématique divisée en deux grands groupes de cinq classes. Le premier groupe, incluant les classes 1, 2 et 3, est plus centré sur l’activité politique, tandis que le deuxième groupe, incluant les classes 4 et 5, intègre davantage d’éléments de la sphère privée, articulés à l’engagement des femmes dans la sphère publique. Nous allons nommer et interpréter ces classes en tenant compte des mots à partir desquels elles ont été construites et des “unités de contexte élémentaires” (les UCE sont des extraits d’interviews) qui les caractérisent (voir figure 1).3

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Figure 1 Dendrogramme et dénomination des classes

Dynamiques de genre faisant obstacle à la Loi sur la parité

16 La classe 1 représente 10% des UCE classées. Les discours qui ont le plus contribué à la formation de cette classe sont liés aux questions sur l’in/égalité, portés par l’ensemble de la population étudiée mais davantage encore par les élues de gauche et la catégorie d’âge la plus jeune (32-53 ans).4

17 Dans cette classe, nous avons identifié quatre thèmes organisant les prises de position des interviewées concernant la Loi sur la parité et les quotas: la division sexuelle du travail, le principe du mérite, les résistances des hommes et la minimisation de la discrimination personnelle.

18 Le premier thème est constitué par la division sexuelle du travail qu’elles voient comme un obstacle à la mise en œuvre des mesures paritaires, et ceci indépendamment du fait qu’elles sont favorables ou défavorables aux quotas. Comme l’illustre l’extrait suivant, les interviewées estiment que le monde politique n’est pas capable de s’organiser sur un mode égalitaire et que la difficulté, pour une femme, d’accéder au métier politique est renforcée par sa charge de travail dans la sphère domestique: Les femmes ont de nombreuses contraintes, ont beaucoup de difficulté à faire partie d’une liste, d’autant plus qu’après, à mon avis, elles n’auront pas le temps de pouvoir suivre. [Présidente d’une commune, gauche (PCP), 32 ans, mariée, 1 enfant petit]

19 Une autre dynamique de genre qui fait obstacle à la mise en œuvre de la Loi sur la parité tient au poids de l’idéologie méritocratique. L’ensemble des participantes, mais avant tout les plus jeunes positionnées à gauche, estiment que l’égalité des sexes n’est pas respectée si le principe du mérite n’est pas lui-même respecté. Concrètement, le mérite se mesure aux efforts de la personne, à son investissement, à ses qualités et compétences. L’on relèvera cependant que seul le mérite des femmes est évalué, celui des hommes politiques va de soi. Ainsi, lorsqu’une femme est invitée à rejoindre une

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liste, ce doit être parce qu’elle est compétente, et non pas pour faire nombre, pour donner une bonne image du parti ou pour appliquer la loi, car sinon, cela serait injuste pour les hommes: Les quotas, c’est très injuste parce que ce que j’ai toujours vu, c’est qu’on finit par remplir les listes avec des femmes qui étaient très peu impliquées auparavant, et que les hommes sont placés comme suppléants, les malheureux, alors qu’ils sont très compétents et se sont beaucoup donnés pour la cause. [Députée d’une Assemblée municipale, gauche (PS), 32 ans, mariée, 1 enfant petit]

20 Si l’idéologie méritocratique imprègne les conceptions de ces élues, c’est aussi parce qu’elles savent que les hommes et les partis résistent à l’entrée des femmes en politique et cherchent à préserver leurs privilèges masculins. En effet, elles font état des stratégies que les partis, y compris le PS — qui a impulsé l’idée des quotas —, ont développées ou développent encore pour détourner le sens premier, donc l’objectif d’égalité, des quotas ou de la Loi sur la parité. Les militantes se montrent relativement fatalistes, voire désabusées face à ces stratégies de résistance masculines, telles que répartir les femmes dans les listes de manière à ce qu’elles ne soient pas élues, nommer des femmes-alibis, ou encore augmenter le nombre de sièges pour que les hommes n’en perdent pas un au moment où les femmes politiques en conquièrent quelques-uns, comme l’exprime clairement cette élue: Comme les hommes ne voulaient pas partir, la première fois que le quota des 25% devait être appliqué, Guterres [ancien premier ministre] n’a changé qu’une seule chose: il a augmenté de 25% le nombre de sièges dans les organismes nationaux, ce qui prouve que le gros problème, jamais explicite, est que les hommes ne veulent pas sortir. [Conseillère municipale, gauche (PS), 65 ans, mariée, 3 enfants adultes]

21 Ainsi, d’un côté, les interviewées dénoncent les fortes résistances des hommes et des partis à l’application de la parité. Mais de l’autre, elles se montrent très attachées au principe du mérite individuel. Or, aux yeux de beaucoup, ce principe est incompatible avec des mesures telles que les quotas, qui cherchent à corriger les positions inégalitaires des groupes sociaux. Prises en quelque sorte entre le marteau (les résistances masculines) et l’enclume (le mérite), elles semblent s’en dépêtrer en évacuant l’idée qu’elles pourraient être personnellement discriminées: Je n’ai jamais ressenti ça [être traitée autrement qu’un camarade], parce qu’ici il y a toujours eu des femmes élues. Et c’était même le cas bien avant cette dernière règle qu’est la Loi sur la parité. [Conseillère municipale, gauche (PCP), 35 ans, célibataire, sans enfant]

Inégalités de genre

22 La classe 2 représente 30% des UCE classées. Les discours qui ont le plus contribué à la formation de cette classe sont les réponses aux questions sur l’in/égalité et la discrimination. Ils proviennent surtout des femmes politiques plus âgées (54-78 ans) et de gauche.

23 Dans cette classe, nous avons identifié cinq thèmes: la discrimination que vivent les femmes en général, la discrimination que vivent les femmes politiques, la fragilisation des carrières politiques féminines, les différences entre hommes et femmes, en particulier dans leur façon de faire de la politique, et les réponses, en termes d’éducation ou de formation surtout, à donner aux inégalités de genre.

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24 Le premier thème révèle que ces élues de gauche sont conscientes de l’existence des discriminations auxquelles l’ensemble des femmes sont confrontées: Je pense que oui, les femmes en général sont victimes de discrimination. Oui, il suffit de regarder les statistiques et ça se voit. Elles sont victimes de discrimination dans l’accès aux postes de responsabilité, n’est-ce pas? [Députée d’une Assemblée municipale, gauche (BE), 44 ans, mariée, sans enfant]

25 Les femmes politiques sont également perçues comme un groupe discriminé, au même titre que “les femmes en général”. Mais lorsque les interviewées dénoncent les inégalités de genre à l’œuvre dans le monde politique, elles n’évoquent pas qu’elles sont incluses dans cette catégorie. En d’autres termes, on est toujours ici dans le registre de la discrimination collective et non dans celui de la discrimination personnelle, dont on a vu auparavant (classe 1) qu’elle était minimisée: Il n’y a pas autant de femmes que d’hommes dans la vie politique, cela signifie qu’il y a bien une discrimination. Le système politique est essentiellement auto-éligible, c’est-à-dire que les hommes sont choisis par eux-mêmes… ils sont proposés par eux- mêmes, c’est ainsi. [Conseillère municipale, gauche (PS), 65 ans, mariée, 3 enfants adultes]

26 Plusieurs comportements masculins fragilisent la carrière politique des femmes. En particulier, les plus âgées dénoncent le paternalisme de certains hommes politiques et l’irritabilité de ceux qui ne supportent pas qu’elles fassent carrière. Elles observent que les élues se sentent très visibles dans cet univers masculin et donc relativement vulnérables, devant alors être plus performantes que les hommes afin d’être reconnues. Dans ce contexte, les femmes font leur travail politique sous pression, d’autant plus quand les soutiens professionnels et/ou privés font défaut: La femme politique doit démontrer plus de choses, elle est plus sous observation et plus visible. Elle est aussi plus fragile, parce que tout ça endommage sa vie personnelle. Parce qu’un homme politique est généralement soutenu par sa femme, tandis que le mari d’une femme politique, lui, s’associe moins avec elle, il la soutient moins. [Conseillère municipale, gauche (PS), 65 ans, mariée, 3 enfants adultes]

27 Un autre thème est centré sur la différence des sexes. Notamment, les femmes sont perçues comme plus sensibles, plus humaines et plus pacifiques que les hommes, et ces différences se reflètent dans leurs manières respectives de travailler en politique. Parfois, la complémentarité entre hommes et femmes associée à la différence des sexes est valorisée, mais surtout, les élues valorisent les qualités spécifiquement féminines et espèrent que celles-ci seront le support d’un changement des pratiques en vigueur dans le monde politique masculin: Quand une femme est dans une position de leader, elle est meilleure qu’un homme. Quand elle est bonne, elle est vraiment bonne… enfin, je veux dire, par comparaison. [Députée d’une Assemblée communale, gauche (BE), 54 ans, célibataire, sans enfant]

28 Le dernier thème est l’éducation à l’égalité. Du point de vue des interviewées, les inégalités entre femmes et hommes en général et, plus spécifiquement, la sous- représentation des femmes en politique, reposent en bonne partie sur la socialisation différentielle des sexes. Dans cette perspective, l’intégration de valeurs égalitaires dans les politiques d’éducation et de formation leur paraît un bon moyen d’améliorer le destin des femmes: Les femmes sont de meilleures leaders que les hommes, c’est prouvé. [Alors, pourquoi n’arrivent-elles pas aux postes de pouvoir?] Je ne sais pas. Je ne comprends pas. Ça ne peut être qu’une question de société, ça passe sous une forme

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soft dans l’éducation. [Députée d’une Assemblée communale, gauche (BE), 54 ans, célibataire, sans enfant]

Conceptions de la profession politique

29 La classe 3 représente 22% des UCE classées. Elle est formée par les discours sur la compétence politique et, plus modérément, sur la mobilisation contre les inégalités de genre. Ils émanent davantage des militantes âgées de 32 à 53 ans, indépendamment de leur appartenance politique. Nous avons identifié quatre thèmes: les compétences nécessaires en politique, les qualités personnelles, la reconnaissance des pairs et la mobilisation pour l’égalité. Les discours montrent que le spectre des compétences nécessaires au travail politique est très étendu. La personne militante doit savoir communiquer, écouter, observer, réfléchir, être disponible, honnête, humaine, humble, intelligente, in/ formée, compétente, travailleuse, avoir du bon sens, aimer la communauté, connaître son entourage, être personnellement désintéressée, avoir de l’intérêt pour la cause publique et s’y dévouer, servir le bien commun, défendre ses idéaux, avoir le sens de la justice, une bonne capacité de travail et savoir prendre des décisions:

30 Les caractéristiques importantes pour faire de la politique, ce sont le travail, la capacité de travail, l’honnêteté, la compétence, l’écoute, et savoir communiquer. [Présidente d’une commune, gauche (PCP), 32 ans, mariée, 1 enfant petit]

31 Outre les compétences politiques, les qualités personnelles sont des outils importants pour s’investir en politique. Pour expliquer leur engagement et à la fois rendre compte de leur manière de militer, les jeunes élues mettent en avant leurs aptitudes personnelles, se décrivant comme des personnes équilibrées, engagées, créatives et avec un certain sens de l’humour, solidaires et ambitieuses: En tant que personne, en tant que femme politique, en tant qu’étudiante, je suis quelqu’un qui a de l’ambition, mais pas une ambition démesurée. J’ai une ambition personnelle. Je suis une personne solidaire et très équilibrée. [Députée d’une Assemblée municipale, gauche (PS), 33 ans, célibataire, sans enfant]

32 Cette conception exigeante de la profession politique, qui multiplie les compétences politiques et les qualités personnelles attendues de l’élue, semble être le garant de la reconnaissance par les pairs. Ainsi, sur un plan individuel, les interviewées s’estiment généralement bien intégrées, respectées et non stigmatisées: Mes collègues du conseil municipal me respectent. Personne ne dit: “elle fait ça parce que c’est une femme”. Non, d’aucune façon. Au contraire, je sens un respect. Je dirais même, sans fausse modestie, que certaines personnes ont de l’admiration pour moi. Oui, c’est un fait. [Conseillère municipale, droite (PSD), 45 ans, mariée, 2 enfants petit et adolescent]

33 Le dernier thème est centré sur la mobilisation contre les inégalités de genre. Dans leur parcours, toutes les interviewées ont déjà milité pour l’égalité, d’une façon ou d’une autre, à travers un parti, une association ou un mouvement de femmes: Oui, j’ai participé à plusieurs actions collectives [pour l’égalité] et à des initiatives locales de la municipalité, ainsi que du MDM [Mouvement démocratique des femmes]. [Conseillère municipale, gauche (PCP), 35 ans, célibataire, sans enfant]

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Maternité et mariage comme obstacle au travail politique

34 La classe 4 représente 17% des UCE classées. Elle fait partie du deuxième groupe thématique émergeant de la classification descendante hiérarchique effectuée par Alceste. Les discours qui ont le plus contribué à la formation de cette classe sont liés à la conciliation, résultant surtout des plus jeunes élues qui ont des enfants et sont mariées. La “conciliation” entre le travail politique et la vie familiale est structurée autour de trois thèmes: le travail domestique en tant que frein aux carrières politiques, les compétences organisationnelles des mères et l’indispensable soutien du conjoint.

35 Le travail domestique, incluant les tâches ménagères, la prise en charge des enfants et le soin aux parents, est un frein à la carrière politique des interviewées. Pour ces femmes, le quotidien domestique représente une lourde charge de travail, qui rend ladite conciliation difficile et conditionne leur investissement politique. Dans ce contexte, elles tendent à déléguer une partie de ce travail à des membres de la famille, à une femme de ménage ou à une crèche. Mais lorsqu’un de ces soutiens devient défaillant, l’articulation de leurs diverses activités se fragilise. L’idée est même émise qu’une femme engagée en politique aurait intérêt à ne pas avoir d’enfant. Le militantisme, qui ne prévoit ni horaire ni week-end, se conjugue donc difficilement avec une vie familiale qui elle aussi exige beaucoup de disponibilité: J’ai une personne à la maison tous les jours. Elle s’occupe des tâches ménagères, du nettoyage de la maison, de la lessive et elle m’aide avec les repas. Ce serait impossible sans cette aide, car en fait, mon mari n’a pas non plus d’horaire pour rentrer à la maison le soir, et s’il fallait, au moment où il rentre, avoir à faire le dîner ou devoir sortir pour l’acheter, cela n’aurait aucun sens. [Présidente d’une commune, gauche (PCP), 32 ans, mariée, 1 enfant petit]

36 Les conditions dans lesquelles le travail domestique se fait étant un élément fondamental de la possibilité même du militantisme des femmes mariées, ce travail leur demande une organisation rigoureuse, où rien n’est laissé au hasard. Elles font ainsi valoir leurs compétences organisationnelles comme un facteur d’ajustement important entre le temps familial et le temps militant: Le secret, c’est de bien rentabiliser le temps. Je dis toujours: la journée a 24 heures pour tout le monde. Je ne perds pas de temps, je n’ai pas de temps mort. C’est l’organisation qui est fondamentale. Toutes mes minutes sont importantes, très importantes. [Conseillère municipale, droite (PSD), 45 ans, mariée, 2 enfants petit et adolescent]

37 Le troisième thème sur le militantisme des femmes mariées est le soutien des conjoints au travail domestique, et donc au travail politique de leur compagne. Les discours des élues, tant de gauche que de droite, montrent que ce soutien masculin ne va pas de soi et qu’elles doivent lutter pour obtenir que les tâches ménagères et éducatives soient partagées au sein du couple. La contribution domestique de leur conjoint détermine les modalités de leur engagement politique: À la maison, rien n’a jamais été partagé. La responsabilité m’est toujours revenue, particulièrement au niveau logistique. C’est évident par exemple avec mon fils. Et cela m’a empêchée de faire de nombreux choix [notamment au niveau politique]. [Conseillère municipale, droite (PSD), 57 ans, mariée, 1 enfant adulte]

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Stratégies des femmes tokens face au sexisme

38 La classe 5 représente 21% des UCE classées. Les discours qui ont le plus contribué à sa formation résultent avant tout des dynamiques du tokenism, de la mobilisation et de la conciliation. Ils émanent principalement des élues de droite qui ont entre 54 et 78 ans. Nous identifions deux thèmes qui ont trait au sexisme qu’elles rencontrent à partir de leur double statut minoritaire, donc en tant que femmes et en tant que tokens: leurs stratégies face aux agressions des dominants et le sexisme ordinaire des univers professionnels masculins.

39 Tout au long de leur parcours, les élues plus âgées se sont fait régulièrement rappeler par les hommes qu’elles sont d’abord des femmes, objets de conquête de ceux-ci. Dans tous les espaces de vie (dans la rue, dans l’entreprise et dans le monde politique), ces femmes ont fait l’expérience de regards masculins qui s’expriment avec plus ou moins de violence, allant de tentatives de séduction déplacées à des agressions et du harcèlement sexuel. Pour résister à ces rappels à l’ordre sexué et se défendre des agressions, elles adoptent toutes sortes de stratégies. Notamment, elles utilisent l’humour, cherchent à décourager leur agresseur en lui montrant qu’elles n’ont pas peur de lui, feignent de l’ignorer pour éviter que la situation dégénère, et parfois lui opposent une riposte frontale: Quand je suis confrontée à une situation de discrimination, je suis frontale. Quand je vois quelque chose que je n’aime pas, c’est quelque chose qui… je suis très… impulsive! Vous voyez? Moi, devant une telle situation, je réagis à chaud, ce qui, parfois, n’est pas très bon. [Présidente d’une commune, droite (PSD), 53 ans, mariée, sans enfant].

40 Dans les partis de droite, les discours des élues mettent également en avant qu’elles sont ou ont été renvoyées à leur statut de femme par des comportements plus subtils, qui relèvent d’un sexisme ordinaire et routinier. Ainsi, dans leur quotidien politique ou professionnel, il leur est arrivé plus d’une fois de se voir dénié, par les hommes, le droit à la parole, de disparaître derrière l’usage généralisé du masculin ou d’être tenues à l’écart des informations: Un jour dans l’entreprise où je travaillais, l’un des directeurs a dit à la fin d’une réunion: “J’ai encore deux ou trois questions, mais on verra ça plus tard.” Le président lui dit: “Comment ça, plus tard?” Le directeur, jetant un œil dans ma direction, lui a répondu: “J’en parlerai avec vous plus tard.” Le président lui a dit: “Non, les choses de l’entreprise, nous devons en parler ici.” “Pas possible en sa présence” semblait penser le directeur en se tournant de nouveau vers moi [Conseillère municipale, droite (PSD), 57 ans, mariée, 1 enfant adulte]

Discussion

41 Nous proposons de discuter les dynamiques de genre qui œuvrent dans le contexte du tokenism en distinguant celles qui relèvent de stratégies de contestation de l’ordre social sexué par les femmes politiques et celles qui contribuent à le maintenir, incluant aussi bien les discriminations exercées par le groupe dominant que certaines des stratégies adoptées par ces femmes. En particulier, cette discussion des résultats sera attentive à l’ancrage social (âge, statut familial et appartenance politique) des dynamiques observées, car même si la plupart des interviewées ont contribué à la

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formation de chaque classe thématique, leurs représentations varient parfois fortement selon leurs positions sociales et politiques.

42 Globalement tout d’abord, les résultats montrent que les élues ne se considèrent pas comme des femmes-alibis, qui seraient instrumentalisées par les hommes et les partis pour ne rien changer au système politique antérieur à l’introduction des quotas. En effet, elles ont une vision positive d’elles-mêmes (compétences politiques et qualités personnelles) et se sentent reconnues dans leur travail politique (classe 3), et elles s’estiment généralement bien intégrées, respectées et non discriminées sur un plan personnel (classe 1). Pourtant, les discriminations que vivent “les femmes en général” et “les femmes politiques” en particulier ne font pas de doute pour elles (classe 2). Certaines dénoncent par exemple le paternalisme des hommes politiques et le prix à payer pour que les élues se fassent une place dans le monde masculin qu’elles ont choisi d’investir: en termes de compétences, les exigences sont beaucoup plus élevées à leur égard qu’à celui des hommes (classe 2). En d’autres termes, une double dynamique paraît caractériser ce contexte marqué par le genre: les carrières politiques des femmes sont freinées par les comportements de domination qu’exercent les hommes tant dans la sphère publique (e.g., dénier le droit de parole aux élues, classe 5) que privée (e.g., ne pas faire sa part de travail domestique, classe 4), mais ce qui vaut pour les autres ne vaut pas forcément pour soi, puisque les femmes qui reconnaissent ce mécanisme de discrimination collective (envers les femmes en général et les femmes politiques) ne s’estiment pas toujours concernées. La minimisation de la discrimination personnelle, doublée de la reconnaissance de la discrimination collective, serait donc un moyen de se démarquer de son groupe d’appartenance dominé — les femmes — afin de légitimer sa place dans le groupe dominant — les hommes. En ce sens, la minimisation de la discrimination personnelle peut favoriser la mobilité de quelques individus minoritaires mais n’aide pas à franchir les barrières intergroupes et donc à rehausser le statut du groupe d’appartenance initial lorsque celui-ci occupe une position sociale dominée.

43 Ces dynamiques de genre se différencient systématiquement selon les groupes d’âge, et parfois selon les positions politiques. Dans notre étude, ce sont d’abord les élues de gauche les plus jeunes (32-53 ans) qui s’estiment non stigmatisées et non discriminées à un niveau personnel, et ce sont les interviewées plus âgées (54-78 ans) qui dénoncent davantage les discriminations dont les femmes, les femmes politiques et elles-mêmes sont ou ont été victimes, qu’elles soient de gauche (classe 3) ou de droite (classe 5). Par exemple, les élues de gauche plus âgées déplorent qu’une femme politique doive travailler deux fois plus qu’un homme politique (classe 3) et les élues de droite plus âgées elles aussi s’insurgent contre les agressions ou le harcèlement sexuel qu’elles ont eu à subir (classe 5). Cette différence de perception selon les groupes d’âge peut s’expliquer par le fait que l’expérience de la discrimination augmente avec le temps, donc avec l’âge. Le cumul des inégalités et des contraintes vécues tout au long du parcours de vie conduirait les élues plus âgées à prendre la mesure de la stabilité de la hiérarchie des sexes, fortes des expériences de résistance qu’elles ont déployée par toutes sortes de stratégies — mépris, persuasion, coups, humour — pour se défendre aussi bien du sexisme ordinaire dans l’hémicycle politique que des violences sexuelles vécues en entreprise ou dans la rue (classe 5). Pour leur part, si les femmes politiques plus jeunes, surtout dans les partis de gauche, se sentent moins discriminées, c’est peut-être parce que l’égalité des sexes a réellement progressé dans le monde politique

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ou du moins dans leur parti. Si tel est le cas, leur évaluation de la discrimination personnelle n’est pas du déni. Mais il est aussi possible que leur place dans le groupe dominant soit encore plus difficile à consolider que celle des élues plus âgées, parce que leur entrée en politique a eu lieu, en moyenne, 10 ans plus tard que leurs aînées. Le cas échéant, la sous-estimation du sexisme de leurs camarades masculins serait alors un moyen de poursuivre leur carrière, en ne se laissant pas enfermer dans un statut de “femme dominée”. Cette volonté de sortir d’un statut inférieur est fort bien illustrée par la manière dont les plus jeunes interviewées, indépendamment de leur appartenance politique, conçoivent leur métier: l’élue doit cumuler toutes les qualités et toutes les compétences possibles et imaginables (classe 3) et doit faire une double journée de travail ou tout au moins assurer ladite conciliation de ses engagements politiques et familiaux, aussi bien envers ses enfants et ses parents qu’envers son conjoint dont le soutien lui fait trop souvent défaut (classe 4). Il faut relever que ce manque de soutien est déploré par les militantes de droite comme de gauche: la division sexuelle du travail au sein des couples transcende les oppositions idéologiques.

44 Un autre résultat appuie l’idée que les plus jeunes cherchent à contrer leur assignation à un groupe d’appartenance dominé en profilant une sorte de superwoman capable de tout gérer à la fois: leur attachement au principe du mérite (classe 1). Même favorables à la Loi sur la parité, elles subordonnent sa mise en œuvre au respect et à la reconnaissance des mérites individuels, en particulier celles qui militent au PS. Ce faisant, elles prennent un risque, car elles savent que ce sont toujours le mérite et les compétences des femmes qui sont questionnés, rarement le mérite et les compétences des hommes. Mais elles observent aussi les stratégies que les hommes politiques et les partis, y compris le leur, qui est à l’origine de la mise en place des quotas au Portugal, déploient pour ne pas appliquer la Loi sur la parité, détournant de multiples manières l’objectif d’égalité qu’elle est censée concrétiser (classe 1). Du coup, dans ce contexte ambivalent où l’égalité est censée s’accommoder du maintien des privilèges des hommes, l’adhésion à l’idéologie méritocratique paraît relever d’une stratégie que les jeunes élues de gauche mobilisent pour forcer les partis à repenser leur conception de l’égalité des sexes et pour mener à bien leur carrière malgré leur position de tokens. Peut-être même est-ce là une stratégie visant à faire oublier qu’elles sont des femmes, un objectif qui intéresserait nettement moins les interviewées plus âgées.

45 En effet, ces dernières sont particulièrement attentives, surtout dans les partis de gauche, à la différence des sexes et valorisent des qualités qu’elles jugent spécifiquement féminines (e.g., le pacifisme, classe 2). Adoptant d’autres modes de travail que les hommes politiques, elles estiment que les femmes, pour autant qu’elles soient féministes, pourraient rendre plus égalitaires le fonctionnement des partis et la nature même de la politique (classe 2). Dans cette perspective, leurs stratégies d’action prioritaires visent à changer les mentalités, à travers des politiques d’éducation et de formation qui devraient être aptes à contrer la socialisation différentielle des sexes toujours dominante aujourd’hui. Les plus jeunes pour leur part évoquent rarement ce type de politiques et se centrent davantage sur ce qu’elles peuvent faire depuis l’intérieur du parti ou d’une association pour lutter contre les inégalités de genre (classe 3).

46 Notre étude a montré que l’application de la Loi sur la parité au Portugal ne bouleverse pas l’ordre de genre structurant la politique locale et va dans le même sens que les travaux cités en introduction qui ont été menés dans d’autres domaines professionnels:

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la hiérarchie des sexes ne disparaît pas dans un contexte de tokenism, la division sexuelle du travail qu’elle produit continue à organiser tant la sphère politique que la sphère privée. Les élues que nous avons interrogées reconnaissent ces discriminations que les femmes en général et les femmes politiques en particulier ont à affronter, mais les stratégies qu’elles développent pour y faire face pourront-elles, à terme, favoriser une égalité de fait entre les sexes? Par exemple, le modèle de la superwoman ne risque-t- il pas de renforcer le niveau de compétences exigé d’elles, souvent nettement plus élevé que celui attendu des hommes? Valoriser les qualités dites féminines ne risque-t-il pas de consolider la différence des sexes qui sert de support à la justification des inégalités? De même, la valorisation des mérites individuels et la minimisation de la discrimination personnelle pourraient être récupérées pour dénier la domination des hommes et la subordination des femmes. Certes, avec de telles stratégies, parfois différentes selon leur appartenance politique et selon l’étendue de leur parcours politique, les interviewées tentent bien de combattre les inégalités de genre, mais notre étude a montré qu’elles le font en mettant à distance leur double statut minoritaire de femme et de token, pour privilégier davantage un statut qui semble leur garantir une relative légitimité: celui d’individu politique comme les autres, capable d’intégrer un monde d’hommes au même titre que n’importe lequel d’entre eux. Or, penser de manière égale des individus qui ne le sont pas dans la réalité sociale peut créer l’illusion d’échapper à l’ordre de genre mais ne permet certainement pas de le transformer.

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NOTES

1. Nous avons utilisé la méthode de “classification descendante hiérarchique” que propose Alceste: à partir des (co)occurrences de mots et d’un découpage des discours en “unités de contexte”, le logiciel crée des classes thématiques qui permettent d’identifier l’organisation des discours. 2. La dispersion des 22 interviewées entre les cinq partis rendait délicate une analyse effectuée au sein de chaque parti. 3. Alceste a classé 74% du corpus, ce qui constitue un bon indice de pertinence. 4. Le fait qu’un groupe d’interviewées soit plus représenté dans une classe ne signifie pas que les discours des autres élues ne contribuent pas à la formation de la classe.

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RÉSUMÉS

L’article présente une recherche sur les dynamiques de genre œuvrant dans un contexte de tokenism: la politique. Vingt-deux femmes politiques portugaises ont été interviewées. Leurs stratégies pour se faire une place dans le monde masculin de la politique sont surtout déterminées par l’âge: les plus âgées luttent contre les discriminations de genre et privilégient des compétences féminines, tandis que les plus jeunes valorisent le profil de la superwoman qui se distancie de son groupe socialement dominé, au risque de dénier la discrimination vécue, et se montrent très attachées à l’idéologie méritocratique menacée par les quotas.

O artigo apresenta uma investigação sobre as dinâmicas de género que operam num contexto de tokenism: a política. Vinte e duas mulheres políticas portuguesas foram entrevistadas. As suas estratégias para assegurar um lugar no mundo masculino da política são sobretudo determinadas pela idade: as mais velhas lutam contra as discriminações de género e privilegiam as competências femininas, enquanto as mais jovens valorizam o perfil da superwoman, que se distancia do seu grupo socialmente dominado, correndo o risco de negar a discriminação experimentada, e mostram-se muito ligadas à ideologia meritocrática ameaçada pelas quotas.

The article presents a research on the gender dynamics operating in a tokenism context: politics. Twenty-two Portuguese female politicians were interviewed. Their strategies to get a place in the masculine world of politics is mainly determined by the age: whereas the older women fight against gender discriminations and favor women’s skills, the younger value the superwoman profile that distance themselves from their socially dominated group, at the risk of denying the experienced discrimination, and are very attached to the meritocratic ideology threatened by the quotas.

El artículo presenta una investigación sobre las dinámicas de género que operan en un contexto de tokenism: la política. Veintidós mujeres políticas portuguesas fueron entrevistadas. Sus estrategias para hacer su lugar en el mundo masculino de la política están principalmente determinadas por la edad: las de más edad luchan contra las discriminaciones de género y favorecen las competencias femeninas, mientras que las más jóvenes favorecen el perfil de la superwoman, que se distancia de su grupo socialmente dominado, al riesgo de negar la discriminación experimentada, y se muestran muy apegadas a la ideología meritocrática amenazada por las cuotas.

INDEX

Palavras-chave : tokenism, política, género, discriminação, discursos Palabras claves : tokenism, política, género, discriminación, discursos Keywords : tokenism, politics, gender, discrimination, discourses Mots-clés : tokenism, politique, genre, discrimination, discours

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AUTEURS

MARIA HELENA SANTOS Psychologue sociale, investigadora de pós-doutoramento à l’Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) (CIS-IUL), Lisbonne, Portugal, et Centre en Etudes Genre LIEGE, Université de Lausanne, Lausanne, Suisse. E-mail: [email protected]

PATRÍCIA ROUX Ancienne professeure en Etudes Genre à l’Université de Lausanne et co-rédactrice en chef de la revue Nouvelles Questions Féministes, Lausanne, Suisse. E-mail: [email protected]

LÍGIA AMÂNCIO Psychologue sociale et professeure à l’Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) où elle dirige le Centre de Recherche en Psychologie (CIS-IUL), Lisbonne, Portugal. E-mail: [email protected]

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Normas face ao género e à diversidade sexual: mudanças inacabadas nos discursos juvenis Norms regarding gender and sexual diversity: unfinished changes in youth discourses Normes face au genre et à la diversité sexuelle: changements inachevés dans les discours des jeunes Normas ante el género y la diversidad sexual: cambios inconclusos en los discursos juveniles

Dulce Morgado Neves

Introdução

1 Pós-modernidade (e.g. Lyotard, 1989; Harvey, 1989; Baudrillard, 1991; Jameson, 1995), modernidade tardia (Giddens, 2002) e sociedade pós-paradigmática (Simon, 1996) são alguns dos termos imortalizados pelas ciências sociais para definir a nossa contemporaneidade — um tempo, segundo os autores, fortemente marcado pelo pluralismo, pelo alargamento das escolhas individuais e pela constante redefinição das noções espaciotemporais.

2 Para vários autores, tais mudanças têm um impacto significativo também na forma como vivemos e representamos a intimidade. No que à sexualidade e à revisão dos papéis de género diz respeito, a atual conjuntura tende, de resto, a ser entendida como resultado de uma “revolução sexual”: “a revolution that created a temporal compression such that […] it becomes difficult to speak of many dominant sexual homogenities” (Simon, 1996: 27). Qual metáfora do discurso público (Scott, 1998), a ideia de revolução é promovida tanto nos media como no discurso científico para reforçar o impacto de mudanças operadas nas décadas de 1960 e 1970, no sentido da

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liberalização dos costumes e das identidades face à ordem mais institucionalista e tradicional da sociedade.

3 No entanto, sobre esta suposta “revolução sexual” as sociedades parecem produzir e difundir discursos contraditórios e também a literatura sociológica deixa antever a diversidade de posturas face às mudanças assinaladas e aos seus efeitos mais duradouros. Abordagens mais otimistas, como as de Weeks (1995), vêm defender a revolução sexual como uma realidade que se vai intensificando cada vez mais. Neste contexto, destacam-se as repercussões positivas do aumento de liberdade e das escolhas individuais contrapondo-as aos contextos de subordinação e intolerância do passado. Outras abordagens (e.g. Laumann et al., 1994; Scott, 1998), contudo, revelam-se mais hesitantes na celebração das conquistas, considerando que as mudanças registadas nas últimas décadas nas atitudes face à sexualidade não são tão revolucionárias ou dramáticas quanto por vezes se faz supor.

Objetivos, fonte de informação empírica e dimensões de análise

4 Neste artigo, sem naturalmente subestimar as mudanças verificadas nas últimas décadas nas formas de viver e dar sentido à vida íntima e sexual, procuraremos mostrar que as transformações no sentido da liberalização dos valores e dos comportamentos, longe de serem lineares e definitivas, vão conhecendo impasses e oscilações ao longo do tempo. Com efeito, questionar os limites da ética sexual moderna pressupõe chamar a atenção para desigualdades e constrangimentos que, ainda que num contexto claramente mais plural e livre que os do passado, não deixam de se colocar aos indivíduos no momento de viverem e representarem a sua sexualidade atualmente. Para concretizar, neste artigo centraremos a nossa atenção em torno de duas questões que, de acordo com a literatura e com os discursos públicos sobre as mudanças ocorridas, constituem pressupostos importantes do argumento liberalizador dos comportamentos sexuais: (1) a igualdade de género e (2) a aceitação da diversidade de orientações sexuais.

5 Quanto a dados empíricos, a análise mobilizará excertos de um conjunto de entrevistas biográficas semiestruturadas aplicadas a homens e mulheres no âmbito do projeto “Género e Gerações. Continuidade e Mudança nas Narrativas Familiares” (ICS-UL),1 as quais constituíram também a fonte de informação empírica principal da tese de doutoramento intitulada Intimidade e Vida Sexual. Mudanças e Continuidades Numa Perspectiva de Género e Geração (Neves, 2013). Em particular, para este texto vamos mobilizar os discursos dos entrevistados mais jovens que integraram a amostra,2 ou seja, rapazes e raparigas, com idades compreendidas entre os 18 e os 30 anos que, enquanto descendentes diretos da modernidade portuguesa (Aboim, Vasconcelos e Neves, 2011), são, por princípio e por comparação com as gerações precedentes, portadores de éticas sexuais e de género tendencialmente mais tolerantes e individualistas (e.g. Pais, 1998; Aboim, Vasconcelos e Neves, 2011).

6 Sabemos que a sociedade ocidental contemporânea faz recair sobre a intimidade e a sexualidade uma parte importante da reflexão sobre a pessoa moderna e a realização pessoal (e.g. Plummer, 1996a; Kimmel, 2004; Giddens, 2001). E sabemos também que, sendo este um campo muitas vezes entendido como “de difíceis verdades”, haverá

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sempre que admitir a possibilidade de existir um hiato entre as atitudes que as pessoas expressam no momento da entrevista e aquelas que são as suas práticas reais. Partimos para a análise conscientes das limitações deste exercício mas, independentemente das verdades de cada um, os discursos que se produzem sobre sexualidade, género e intimidade são importantes portadores de sentidos e é precisamente disso que aqui pretendemos dar conta. Em suma, neste artigo, para pensar as resistências que na contemporaneidade continuam a colocar-se à consagração do ideário moderno de libertação sexual, propomo-nos recorrer, com caráter ilustrativo, a opiniões, atitudes, normas e valores (em suma, aos sistemas de representações sociais) que os entrevistados jovens partilharam acerca de dois tópicos-chave dos estudos sobre vida íntima — a (des)igualdade de género e a (não) aceitação da diversidade de orientações sexuais.

O duplo padrão de género: continuidades que resistem à mudança

7 Entre as mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas, uma das que sem dúvida mais se destaca é a que afeta a condição da mulher na sociedade e na família. Fatores como a difusão da contraceção, o aumento do nível de instrução feminina ou a participação maciça das mulheres no mercado de trabalho propiciaram não só a transformação das relações entre géneros na família, mas uma revisão mais ampla do papel social das mulheres (e, por consequência, dos homens também).

8 Por seu lado, documentadas estão também as mudanças no campo da vida íntima e sexual, que traduzem a atenuação do gap entre atitudes e práticas femininas e masculinas (Kimmel, 2004). Os estudos geracionais em Portugal revelam que, de geração para geração, as biografias afetivas e sexuais refletem uma evolução no duplo padrão de género, sugerindo a aproximação progressiva entre as experiências de mulheres e homens. E também do ponto de vista das representações se sugere que homens e mulheres tendem, ao longo da sucessão geracional, a aderir a discursos mais igualitários, fazendo contrastar a ordem tradicional de género das gerações mais velhas com a emergência de um padrão tendencialmente menos diferenciador das normas femininas e masculinas (e.g. Pais, 1998; Aboim et al., 2009; Neves, 2013).

9 De uma maneira geral, a máxima de que as mulheres querem amor e os homens querem sexo deixou de ser efetiva (Giddens, 2001; Allen, 2003). Atualmente, como nos diz Giddens (2001), a experiência sexual tornou-se mais acessível e a identidade sexual constitui uma parte central da narrativa do self. Neste contexto, não só os homens mas também as mulheres depositam na sexualidade uma parte importante da sua autonomia e realização.

10 Todavia, se por um lado as aproximações são evidentes, relevante é também o facto de elas não serem unânimes, transversais a todos os contextos ou definitivas, continuando a realidade a ser, consideravelmente, segregadora das prescrições e das práticas legítimas de homens e mulheres. Ou, como sugere Bourdieu (1999), o facto de a dominação masculina já não se impor, em todos os contextos, com a evidência do óbvio está longe de significar a sua erradicação, porque, efetivamente, os princípios da visão dominante — os da dominação masculina — continuam ativos, ainda que sejam incorporados “sob forma de esquemas de perceção e apreciação dificilmente acessíveis

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à consciência” (Bourdieu, 1999: 82). Assim, na sua relação com a sexualidade, o género continua a constituir um forte princípio de organização da realidade e a persistência do duplo padrão (isto é, de um quadro normativo que dita modelos de conduta distintos em função do género) assume-se como obstáculo ao ideal de sexualidade liberta de constrangimentos e discriminações.

11 Quando, nas entrevistas realizadas, questionámos os indivíduos acerca das mudanças ocorridas no campo da sexualidade, a tendência — não só no grupo aqui analisado mas transversal às diferentes gerações entrevistadas — foi o reconhecimento de que muita coisa se alterou nas últimas décadas em virtude da revisão dos papéis de género na sociedade. Com efeito, os discursos tenderam a atribuir às mulheres o epicentro das transformações, sendo os homens entendidos como “retardatários” de tais mudanças, na linha do que nos sugerem autores como Giddens (2001). Neste sentido, as mudanças verificadas nas trajetórias das mulheres parecem, aos olhos dos entrevistados, ser mais abruptas e significativas, sendo as verificadas na vida dos homens uma consequência necessária de adaptação da masculinidade às novas regras. Acho que a mudança do papel do homem se deve à mudança do papel da mulher. Ou seja, o homem não muda por livre vontade, porque quer ir trabalhar e porque lhe apetece cozinhar, mas acho que isso se impõe por uma maior afirmação do papel da mulher. [Inês, 24 anos, pós-graduação, psicóloga, Lisboa]

12 Efetivamente, nos discursos juvenis sobre mudanças nas relações de género e na sexualidade, damo-nos conta da prevalência de posturas otimistas que se consubstanciam na valorização de fenómenos tão diversos como a igualdade de género na vivência da sexualidade, a multiplicação de meios para a construção das experiências, o maior acesso a informação sobre sexualidade, a atenuação do controle (social, familiar…) exercido sobre as práticas de rapazes e raparigas, a pluralização de scrips da sexualidade, etc. Todavia, apesar da vastidão dos princípios de liberalização enumerados, o confronto com as práticas reais dos sujeitos ou com os seus julgamentos face às condutas concretas de outrem revela-nos que a construção de um ambiente social efetivamente livre e igualitário em termos de género parece ser mais um recurso estilístico que uma conquista real e inabalável nesta geração. Neste quadro, os discursos dos jovens entrevistados revelam-se ainda muito ambivalentes, oscilando, no que ao género diz respeito, entre a celebração da igualdade de oportunidades e a reedição (normalmente, pouco consciente) do duplo padrão de género.

13 Com efeito, uma das tensões normativas que adiam a superação do duplo padrão tem justamente a ver com o facto de, na sociedade ocidental contemporânea, a informação sobre sexualidade feminina e a diversificação das experiências das mulheres não aniquilarem dilemas relacionados com a respeitabilidade social e a decência moral das mulheres. Apesar dos discursos amplamente difundidos do prazer sexual feminino e da aproximação dos comportamentos das mulheres aos padrões de diversidade masculinos (mais parceiros e maior atividade sexual), para vários autores, a dupla moral que qualifica as mulheres como “sérias/respeitadas” ou “fáceis” não caiu completamente em desuso. Neste sentido, continuamos a assistir à reprodução de esquemas associados a uma heterossexualidade compulsória (Rich, 1980), isto é, de uma conceção institucionalizada da sexualidade na qual a mulher surge como dependente da orientação e da iniciativa masculinas.

14 Entre os discursos recolhidos verificamos que tal dicotomia é muitas vezes apontada pelos indivíduos como injusta e obsoleta, traduzindo uma desigualdade do passado. No

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entanto, a verdade é que continuamos a deparar-nos com um entendimento moral que associa a sexualidade feminina às noções de cautela e responsabilidade sob pena de os comportamentos poderem ser julgados provocatórios ou pouco adequados. Elas são muito mais promíscuas […]. São muito mais para a “frentex”. [Aos 13 anos] já têm relações sexuais e […] eu vejo nas amigas da minha irmã, elas são muito mais espevitadas. Muito mais. E eu estou sempre em cima dela, sempre a chateá-la. Tem que se estar. [Rita, 18 anos, estudante de curso técnico-profissional, Sintra]

15 No fundo, neste julgamento hegemónico da feminilidade, constatamos que a agência sexual feminina é frequentemente entendida como um derivado negativo das liberdades sexuais conquistadas (Fonseca e Santos, 2011), sendo a ideia de que “hoje em dia as raparigas são piores do que os rapazes” um juízo comum entre aqueles que entrevistámos na pesquisa, em especial (e paradoxalmente) entre mulheres e raparigas. 3

16 Por outro lado, refira-se que, para além de este escrutínio operar na produção de avaliação negativa sobre as condutas de outrem (de outras raparigas), também no que toca à autoavaliação, os testemunhos das entrevistadas são pródigos em defender a sua própria conduta, reclamando para si um certificado de respeitabilidade sexual. No entanto, na maioria das vezes, esta salvaguarda assume uma forma mais implícita que explícita, integrando-se numa postura de suposta tolerância face ao outro. Não tenho nada a ver com a vida das outras pessoas, eu não o fazia, mas… [Carolina, 18 anos, estudante universitária, Loures] Cada um sabe de si, não é? Eu não tenho feitio para isso, mas tenho amigas minhas que têm… [Susana, 29 anos, curso técnico-profissional, empregada administrativa, Lisboa]

17 Desta forma, damo-nos conta que, apesar de a mudança nas relações de género ser indesmentível e bastante valorizada pela generalidade dos entrevistados, a divisão binária da sociedade em homens e mulheres continua muito atual e constitui um refúgio identitário importante mesmo entre os mais jovens. Tal como Bozon (2002) refere, em matéria de sexualidade, homens e mulheres continuam a ser entendidos como seres opostos sendo, muitas vezes, esta oposição justificada em termos das diferenças de natureza psicológica de cada género. De uma maneira geral, os homens são pensados como agentes “com desejo sexual” e independentes e as mulheres são entendidas como objetos desse desejo, sendo a sua agência sexual pouco valorizada simbolicamente.

18 Assim, as representações de género ou os discursos sobre as diferenças produzidos no contexto das entrevistas podem ser bastante elucidativos do quão atual e operante se mantém o duplo padrão. Com efeito, verificamos que se entre os mais jovens começam a ganhar visibilidade os apelos retóricos à fluidez das identidades de género (dizia-nos uma entrevistada: “Nem todos gostamos do mesmo e nem todos esperamos o mesmo dos outros, por isso as coisas não são assim. Não gosto nada que apregoe que homens são todos iguais ou que as mulheres são todas iguais”), por norma, a generalidade das pessoas assume as categorias de género como constitutivas da razão simbólica (Heilborn, 1992), fazendo recair sobre elas uma parte importante da sua consciência identitária e dos pressupostos das suas relações.

19 De facto, para Jackson e Scott (2004), uma das antinomias que melhor caracteriza a dubiedade normativa contemporânea é a que se refere às expectativas que os indivíduos depositam nas relações de género. Segundo as autoras, a relação entre homens e mulheres quer-se de igualdade e simultaneamente de diferença — um

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paradoxo que resulta da tensão entre os ideais igualitários e a ênfase nas diferenças “naturais” entre sexos. E, efetivamente, a análise dos discursos dos entrevistados jovens — e em especial das nossas entrevistadas — parece convalidar uma “situação de dualidade normativa entre valores e atitudes emergentes de tendência igualitária e as disposições incorporadas e materializadas em práticas quotidianas que tendem a reproduzir as distinções sociais de género” (Coelho, 2008: 28). No entanto, afirmar a coexistência entre os significados modernos e os arquétipos tradicionais de género na sociedade não significa apenas assumir que umas pessoas (gerações e grupos sociais) aderem a normas mais permissivas, enquanto outras continuam a protagonizar atitudes mais conservadoras. Trata-se antes de perceber que a pluralidade que ressalta no retrato social pode habitar cada um dos seus indivíduos, relembrando a natureza híbrida das identidades pessoais modernas num mundo repleto de múltiplos e contraditórios significados (Weeks, 1995).

20 É desta forma que constatamos que mesmo aqueles que mais se envolvem na denúncia das desigualdades de género e que adotam condutas mais liberais acabam, muitas vezes, por também protagonizar a acomodação a um essencialismo renovado e, consequentemente, ao reforço do esquema binário ordenado pela natureza. É isto que vemos acontecer, com alguma clareza, em casos como os de Raquel ou Sara, por sinal, duas jovens cujas trajetórias e reflexividade discursiva as inserem entre os perfis mais emancipatórios e experimentalistas da amostra de entrevistados, mas que, não obstante, também reproduzem afirmações como as seguintes: As mulheres são mais sentimentalistas e dão mais importância a tudo […] [porque] as mulheres é que geram os filhos. Os homens têm muito mais… não é desejo que eu quero dizer, mas talvez impulso. Os homens são muito mais carnais, têm aquelas necessidades que têm que ser mesmo satisfeitas, as mulheres não, são mais emocionais. Elas é que têm a criança na barriga [e isso] tem tudo a ver. Eles são […] muito parecidos entre eles, mas isso em conversas com raparigas nota- se que os homens são todos muito parecidos e que nós também somos todas muito parecidas. [Raquel, 27 anos, ensino secundário, assistente de produção, Almada] Acho que os homens têm muita razão quando dizem que as mulheres complicam, acho que eles têm razão. Têm muita razão. Nós somos umas chatas, somos muito chatinhas. Eles também são uns totozinhos às vezes. […] É verdade que homens e mulheres pensam de forma diferente, ou pelo menos acho que os homens e as mulheres pensam as coisas de forma diferente e veem as coisas de forma diferente. [Sara, 28 anos, pós-graduação, assessora de imprensa, Lisboa]

21 Assim, apesar de aqueles que protagonizam a emergência da ética sexual moderna insistirem numa retórica de condenação do duplo padrão, a verdade é que muitas vezes as suas trajetórias bem como os seus discursos sobre experiências vividas derivam num reforço involuntário e até pouco consciente da lógica binária que diferencia a masculinidade da feminilidade. Concretamente, verificamos que a emancipação sexual feminina (premissa fundamental de um ideário libertário da sexualidade), sendo sobejamente aclamada pelos indivíduos e em especial pelos mais jovens, acaba por significar uma emancipação regrada dentro dos limites postulados pela reprodução das identidades de género, ou seja, pela ordem das suas desigualdades (Bloss e Frickey, 1994).

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A persistência das discriminações com base na orientação sexual

22 As crescentes visibilidade e aceitação sociais das identidades à margem da heteronorma contribuem, segundo Bozon (2002), para redefinir na época contemporânea o horizonte da experiência sexual dos indivíduos, mesmo se, paradoxalmente, tal exteriorização caminha no sentido inverso do processo histórico de reserva das manifestações sexuais à esfera mais íntima e privada dos sujeitos.

23 Sabemos, por outro lado, que a modernidade reflete a passagem do entendimento naturalizado da sexualidade para a sua desnaturalização (Simon, 1996) e que, simultaneamente, faz emergir a conceção de uma identidade sexual fluida (Bauman, 2005), liberta da rigidez dos cânones tradicionais. Só na base deste processo é possível reconhecer a pluralidade inerente às identidades sexuais e compreender o processo de “desperiferização” das minorias sexuais (Pais, 1998).

24 Tal como em muitos países ocidentais da Europa e América, em Portugal as mudanças recentes no domínio das identidades sexuais trouxeram consigo algumas conquistas sociais, como são exemplo o reconhecimento político da orientação sexual como critério de defesa dos direitos humanos e o entendimento da homofobia como um problema (correlato de outros como o machismo ou a xenofobia) que merece ser combatido através de legislação (Almeida, 2004). Com efeito, a sexualidade entre pessoas do mesmo sexo tem, hoje em dia, uma visibilidade social indiscutível, tendo vindo a assistir-se ao longo das últimas décadas a uma mudança profunda nos discursos sociais sobre a homossexualidade e ao aumento dos direitos reconhecidos às minorias sexuais.

25 No entanto, como também salienta Almeida (2004), tais mudanças não têm sido suficientes para produzir uma aceitação social efetiva da homossexualidade como variante da sexualidade humana, por forma a suplantar as dificuldades e dilemas existenciais, biográficos e psicológicos que decorrem da vivência de uma identidade e modo de vida homossexual.

26 É importante ter em conta que a pesquisa que serve de base a este texto teve como referência os contextos da heterossexualidade e que pretendeu ser um subsídio ao entendimento da pluralidade de perspetivas, valores e práticas compreendidas na heteronorma (Neves, 2013). Neste sentido a vivência e os significados da homossexualidade ou de outras identidades sexuais minoritárias não constituíram um objeto direto deste projeto de investigação, sendo a amostra de entrevistados composta por pessoas que se definiam como heterossexuais ou predominantemente heterossexuais. Assim, neste contexto, as representações da homossexualidade (por mais proximidade que até se possa ter com o fenómeno) não podem senão constituir projeções “para o outro” ou “sobre o outro” e discursos de alteridade, certamente distantes do que seriam os testemunhos de quem experiencia na primeira pessoa uma orientação sexual à margem da norma heterossexual. Feita a salvaguarda, considerou- se contudo que tratar o tema da diversidade sexual não era nem podia ser uma tarefa estranha ao estudo das formas de viver e dar sentido à (hetero)sexualidade: a forma como aqueles cujas referências e contextos de inserção são os da heteronormatividade se reportam às identidades sexuais, condutas e estilos de vida minoritários contribuirá, em certa medida, para aprofundar conhecimentos acerca desta “maioria sexual”, das

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suas orientações normativas e níveis de tolerância e permissividade. Afinal, não será estranha a ideia de que as representações da alteridade constituem uma janela de acesso ao conhecimento de identidades coletivas e pessoais (Vasconcelos, 2004).

27 Quando analisamos os discursos sobre a diversidade de orientações sexuais, percebemos que estes vão sofrendo mudanças consideráveis ao longo da sucessão geracional, acompanhando, de resto, a tendência verificada noutros domínios de avaliação normativa. Uma vez mais, como refere Pais (2012: 28), “poderia supor-se que os jovens vivem num mundo com pautas culturais muito diferentes das dos seus pais”, levando-nos a esperar deles normas mais libertárias face à sexualidade e, em particular, aos modelos de orientação sexual. E de facto, a comparação intergeracional dos discursos recolhidos (Aboim et al., 2009; Neves, 2013) veio revelar que os jovens se declaram mais abertos e tolerantes à diversidade sexual, havendo inclusivamente quem, no quadro da sua trajetória de vida, assuma já ter mantido relações com pessoas do mesmo sexo. [Foram duas relações episódicas] mas eu acho que desde sempre que soube que eu era bissexual e não tenho qualquer problema em assumir isso. […] Se bem que a verdade é que se contam pelos dedos de uma mão as mulheres por quem já me senti atraída e ainda mais aquelas com quem concretizei alguma coisa. Foram duas. Uma quando eu era muito nova e outra há pouco tempo. Portanto não sei, o que eu acho é que o mundo é cheio de possibilidades. […] Não faço qualquer tipo de julgamento. Nada, nada. Cada um é livre de sentir e viver aquilo que quer. Só espero é que também me deixem viver aquilo que eu tenho para viver e quero viver. [Sara, 28 anos, pós-graduação, assessora de imprensa, Lisboa]

28 Ainda assim, impõe-se perceber em que medida poderemos falar de transformações abismais face às atitudes das gerações precedentes e questionar até que ponto as posturas tendencialmente mais liberais que encontramos entre os jovens não constituirão uma retórica algo superficial. Na verdade, a análise dos discursos vem sugerir que a ambivalência continua a ser a pedra de toque nesta geração: assumindo a heteronormatividade como referência, os jovens entrevistados persistem em fazer da homossexualidade signo de uma alteridade não conforme. Mesmo entre as franjas mais tolerantes e conscientes da diversidade, há como que uma necessidade perene de distinguir o eu do outro, estabelecendo uma fronteira entre aquilo que se aceita como “legítimo para si mesmo” e “legítimo para os outros”, dado que nesta diferença, a relação homossexual constitui uma condição aceitável nos outros mas exterior a si mesmos.

29 Desta forma, ainda muito distantes de um ambiente verdadeiramente inclusivo e destigmatizante, as atitudes de tolerância vão-se instaurando com muita hesitação. Sobre si próprios, rapazes e raparigas dizem “aceitar”, “respeitar”, “não discriminar” e “não ter nada contra” a homossexualidade. E, fazendo a apologia do paradigma moderno de sexualidade, partilham conceções e sentidos associados à pluralidade sexual, assumindo a diversidade como norma. No entanto, como sugere Vieira (2009: 273), “essa aceitação parece ser mais do nível da razão e da vontade informada pela reflexividade do conhecimento, do que do nível das atitudes”, deixando antever a contradição entre uma autorrepresentação de aceitação e a discriminação manifesta nos discursos.

30 A reforçar as fronteiras simbólicas, a homossexualidade, para além de se constituir como um desvio face à norma social, continua nesta geração a ser muitas vezes entendida como contra natura e, neste sentido, a patologização da condição

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homossexual (qual resquício do entendimento clínico do início do século XX) é ainda relativamente frequente e está na base de afirmações desculpabilizadoras mas bastante discriminadoras como as seguintes: Eles que façam o que quiserem, quantos mais melhor. Mas não vejo nenhum problema nisso. Acaba por ser um problema que é uma alteração a nível genético e eles sentem aquilo. Acho que é mesmo a nível genético, não por opção. [João, 23 anos, estudante universitário, Lisboa] Acho que tem um bocado a ver com uma disfunção cerebral e hormonal qualquer. […] Não acho mal nenhum, mas ao mesmo tempo acho um bocado anti natura, senão para que é que existiriam homens e mulheres? Não sei, ou então isto foi uma ideia que a sociedade te impôs, e eu fui criada assim, já está. [Raquel, 27 anos, ensino secundário, assistente de produção, Almada] Não vou condenar quem o faz porque não têm culpa, coitados, nasceram assim. […] Tenho mais é que aceitar. É como uma pessoa que nasce com paralisia cerebral. Que culpa é que tem disso?! [Rita, 18 anos, estudante de curso técnico-profissional, Sintra]

31 Por outro lado, ainda que se aceite sem resistência a homossexualidade como identidade coletiva e se valorizem as mudanças conquistadas no domínio dos direitos das minorias sexuais, não raras vezes não se é capaz de tolerar a visibilidade das práticas homossexuais. Facilmente, sobre o indivíduo homossexual recai a acusação de provocação, como se para a aceitação social da sua homossexualidade se recomendasse manter a discrição ou dissimular essa condição. Em suma, “o homossexual pode sê-lo desde que não se exiba em público” (Vieira, 2009: 274). Não julgo as pessoas por o serem. Quer dizer, se tivesse um amigo ou amiga que fossem homossexuais — desde que não fossem as chamadas bichonas que acho horrível — nada contra. Se bem que não acho bem. É aquela coisa, a mulher foi criada para amar o homem e faz-me confusão duas mulheres ou dois homens aos beijos. Faz-me confusão. Eu não me importo desde que as pessoas vivam a sua intimidade na intimidade. Fazia-me impressão se tivesse uma amiga minha que fosse homossexual e vê-la a beijar a namorada. Eu sou aberta, sou jovem, compreendo as coisas mas faz-me confusão ver. Mas as pessoas podem dizer: “Tu tens namorado e também o beijas”, mas isso é o normal. [Carolina, 18 anos, estudante universitária, Loures]

32 Outro aspeto importante associado à persistência das discriminações com base na orientação sexual é — como não podia deixar de ser — a sua relação com as categorias de género. A literatura sugere que, comparativamente aos homens, as mulheres tendem a adotar posições de maior aceitação da homossexualidade, aderindo mais facilmente a discursos tolerantes e de valorização de mudanças sociais como o reconhecimento público dos direitos das minorias sexuais (e.g. Scott, 1998; Pais, 1998). Na pesquisa que levámos a cabo, esta maior tolerância feminina nem sempre se revelou muito evidente, mas o que é facto é que, por comparação com os discursos masculinos, no grupo das mulheres existe uma maior diversidade de posturas, sendo, por conseguinte, no lado feminino que se encontram as posturas mais liberais face orientações sexuais não heteronormativas.

33 Outra questão interessante prende-se com a diferenciação entre “relações entre dois homens” e “relações entre duas mulheres” nos discursos dos nossos entrevistados, onde, de uma maneira geral, as últimas tendem a ser mais bem aceites que as primeiras. Sobretudo nos discursos masculinos, os homens que mantêm relações com outros homens estão sujeitos a um maior estigma social, sendo a sua conduta mais frequentemente catalogada de promíscua e exibicionista. Pelo contrário, as relações

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entre mulheres podem ser representadas de forma menos depreciativa, valorizando-se os aspetos mais sensuais da interação sexual no feminino. E, embora esta tendência seja particularmente notada entre os entrevistados mais velhos, ela não deixa de estar presente também nas declarações dos mais jovens que aqui pretendemos destacar: O que vemos na televisão e internet… se calhar é-nos vendido de uma maneira diferente. Se calhar quando são dois homens, as pessoas já olham e sentem que é um bocado esquisito! Se forem duas mulheres já é diferente. Se calhar, por o corpo da mulher ser mais bonito, duas mulheres juntas, se calhar, uma pessoa olha e já acha engraçado… Se forem dois homens já não se acha tanta piada. [Hugo, 24 anos, licenciatura, professor, Mondim de Basto]

34 Inevitavelmente, esta questão vem sugerir que esta suposta aceitação masculina da homossexualidade feminina possa, em muitos casos, ser mais aparente que real, na medida em que o que parece estar em causa não é a aprovação de um fenómeno identitário em toda a sua complexidade, mas uma representação positiva de “práticas sexuais entre mulheres, retratadas na ideia de jogo erótico ‘voyerista’ masculino” (Vieira, 2009: 256).

35 No fundo (e sem que para isso seja necessário insistir demasiado na desconstrução dos discursos), a análise parece desvelar bastantes indícios de uma discriminação persistente com base na orientação sexual. Como vimos, o preconceito aflora dos discursos (mesmo dos juvenis) com evidência suficiente para sustentar a ideia de uma “heterossexualidade como regra”, apesar de tais continuidades surgirem matizadas por elogios a uma ética mais igualitária e inclusiva da diversidade.

Notas finais

36 Neste artigo quisemos salientar alguns limites que se colocam ao ideário da liberdade e igualdade sexuais. Para o efeito, fizemos incidir a nossa análise sobre dois domínios temáticos específicos, chamando a atenção para a persistência de desigualdades e tensões que, mesmo no contexto atual de pluralização de escolhas legítimas, continuam a condicionar as condutas individuais, obstando à plena consagração das liberdades sexuais.

37 Combinando a revisão de literatura com ilustrações discursivas recuperadas de entrevistas biográficas realizadas a rapazes e raparigas, julgamos ter saído reforçada a ideia de que, não obstante os discursos apontarem para uma individualização dos valores e dos comportamentos nos jovens, as mudanças neste sentido não são unívocas nem transversais a todos os temas e contextos, continuando o usufruto das novas liberdades a estar sujeito a uma regulação ativa e fortemente associada à ordem de género e à heteronormatividade.

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NOTAS

1. O termo quase-mercado designa contextos organizacionais em que, apesar de existir financiamento ou cofinanciamento por parte do estado, também estão presentes mecanismos de funcionamento de mercado (Bertolin, 2011). 2. Para o estudo, foram realizadas entrevistas a 22 linhagens familiares (11 masculinas e 11 femininas), perfazendo um total de 66 pessoas entrevistadas (33 homens e 33 mulheres). Começando pela geração mais nova (justamente, aquela cujos discursos são aqui mobilizados) a estratégia de constituição da amostra recaiu em entrevistar famílias cujos jovens se encontrassem em distintas situações de transição da escola para a vida profissional. Embora não houvesse o intuito de formular um estudo representativo, a distribuição da amostra procurou garantir a diversidade dos perfis sociais dos entrevistados. Assim, entre os 22 jovens entrevistados, observavam-se desde casos de abandono escolar precoce até situações de completude dos estudos superiores.Para maior aprofundamento acerca das características sociais da amostra e da sua relação com os resultados da pesquisa, ver Neves (2013). 3. Perante isto, não podemos, contudo, deixar de colocar a hipótese de tais juízos fazerem parte de uma performance de quem procura projetar uma determinada imagem diante do/a entrevistador/a.

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RESUMOS

Partindo do princípio de que os jovens são portadores de normas mais tolerantes e individualistas que as das gerações anteriores, o artigo vem recuperar excertos de entrevistas biográficas aplicadas a rapazes e raparigas e questionar os limites do ideário de liberalização sexual. Para isso, a análise centra-se em duas dimensões fundamentais dos discursos sobre mudança na sexualidade: a igualdade de género e a aceitação da diversidade sexual. Sem negar a crescente flexibilização das normas e dos percursos afetivos e sexuais dos indivíduos, pretende-se mostrar como a vivência da sexualidade reflete um movimento de liberalização das condutas apenas nos limites do prescrito, estando tais condicionantes ainda muito associadas às diferenças de género e à heteronormatividade.

Assuming that young people have more tolerant and individualistic standards than the previous generations, this paper uses excerpts from biographical interviews applied to boys and girls to question the limits of the sexual liberalization ideology. To do that, the analysis focuses on two key dimensions of the discourses on changes in sexuality: the gender equality and the acceptance of sexual diversity. Without denying the growing flexibility of affective and sexual norms and trajectories, we seek to show that the experience of sexuality reflects a movement towards the liberalization of the conducts only in the prescribed limits, being such constraints attached to the gender differences and to the heteronormativity.

En partant du principe que les jeunes sont porteurs de normes plus tolérantes et individualistes que celles des générations précédentes, cet article reprend des extraits d’entretiens biographiques auprès de garçons et de filles et il s’interroge sur les limites des idéaux de libération sexuelle. L’analyse se centre sur deux dimensions fondamentales des discours sur les changements dans la sexualité: l’égalité de genre et l’acceptation de la diversité sexuelle. Sans pour autant nier la croissante flexibilisation des normes et des parcours affectifs et sexuels des individus, l’article s’efforce de montrer comment le vécu de la sexualité reflète un mouvement de libéralisation des conduites uniquement aux limites du prescrit, ces contraintes étant encore très associées aux différences de genre et à l’hétéronormativité.

Partiendo del principio de que los jóvenes poseen normas más tolerantes e individualistas que las generaciones anteriores, el artículo viene recuperar extractos de entrevistas biográficas de jóvenes hombres y mujeres con el objetivo de reflexionar sobre los límites de la liberalización sexual. Para eso, el análisis se va centrar en dos dimensiones clave de los discursos sobre los cambios en la sexualidad: la igualdad de género y la aceptación de la diversidad sexual. Sin denegar la creciente flexibilidad en las normas y trayectorias afectivas y sexuales, se concluye que la experiencia de la sexualidad refleja un movimiento hacia la liberalización de las conductas en los límites establecidos, estando tales limitaciones muy vinculadas a las diferencias de género y a la heteronormatividad.

ÍNDICE

Palavras-chave: revolução sexual, género, orientação sexual, discursos juvenis Palabras claves: revolución sexual, género, orientación sexual, discursos juveniles Mots-clés: révolution sexuelle, genre, orientation sexuelle, discours des jeunes Keywords: sexual revolution, gender, sexual orientation, youth speeches

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AUTOR

DULCE MORGADO NEVES Investigadora no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL), Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]

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O campo universitário português: transformações e disputas entre 1988 e 2015 University campuses in Portugal: transformations and disputes between 1988 and 2015 Le champ universitaire portugais: transformations et disputes entre 1988 et 2015 El campo universitário portugués: transformaciones y disputas entre 1988 y 2015

João Mineiro

Introdução

1 As universidades nas sociedades ocidentais têm pelo menos 928 anos de história. É nessa história, em particular nos séculos XIX e XX, que se estruturam as universidades modernas. Contudo, pese embora essa contextualização, que também abordaremos, este artigo centra-se nas transformações do campo universitário português entre 1988 e 2015, respondendo a três grandes questões. Quais foram as principais transformações no ensino superior português nos últimos 27 anos? O que nos revelam elas sobre as conceções em disputa entre os agentes? Podemos falar de um campo universitário com uma autonomia relativa no atual quadro do neoliberalismo e das mutações na organização do estado?1

2 Centrado na análise de entrevistas a atuais e antigos reitores e dirigentes estudantis, procurarei desenvolver três tipos de análise. Em primeiro lugar, irei explicitar as transformações que, segundo os agentes, são mais relevantes para perceber a transição da universidade portuguesa, discutindo-as no quadro das transformações económicas, sociais e políticas desde a segunda metade do século XX. Em segundo lugar, analisarei os principais dissensos que se identificam nos discursos dos agentes em torno das transformações do campo universitário. Finalmente, discutirei como estas transformações e disputas nos ajudam a refletir sobre as características de um campo universitário português, enquanto campo social com autonomia relativa no espaço social.

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Fronteiras de um programa de pesquisa: objeto, amostra e estratégia metodológica

3 A definição desta pesquisa partiu do pressuposto defendido por Bourdieu, Chamboredon e Passeron (2010), de que não são neutras nem as escolhas metodológicas, nem a nossa própria posição no espaço social. Na verdade, o campo aqui em análise insere-se numa estrutura social marcadamente conflitual, na medida em que as transformações do ensino superior não têm ocorrido sem arrastarem consigo diversos dissensos. Por isso, a estratégia metodológica aqui usada procurou ampliar a nossa visão da diversidade do campo universitário e dos seus agentes, partindo da teoria como função de comando (Almeida e Pinto, 1975).

4 O objeto de estudo deste artigo não é, em estrito senso, as mudanças legislativas ou as mutações na organização universitária, nem é também uma historiografia dos percursos de resistência e/ou de consentimento às políticas educativas. O objeto que nos concentra é parte disso mas com uma perspetiva distinta. Parto do enquadramento histórico (Rubião, 2013; Dréze e Debele, 1983; Neto, 1999), da legislação (Amaral, Tavares e Santos, 2012; Magalhães e Amaral, 2007; Amaral, 2003; Barrias, 2013), das transformações organizacionais (Oliveira, Peixoto e Silva, 2014; Barrias, 2013) e das práticas políticas (Santos e Filho, 2008; Drago, 2005; Cabrito e Jacob, 2011) para desenvolver um quadro interpretativo da universidade enquanto campo, isto é, enquanto subconjunto relacional do espaço social, estruturado através de posições e disposições, onde os agentes lutam pela posse e o reconhecimento de um ou mais capitais, e que, tendo características próprias e uma autonomia relativa, funciona como um terreno de jogo, que se interseta com campos distintos, e onde os agentes disputam posições, significados e poder (Bourdieu, 1984a; 1984b; 1989; 1992; 2001; 2011).

Quadro 1 Características da amostra referente a antigos e atuais reitores de universidades públicas

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Quadro 2 Características da amostra referente a antigos e atuais dirigentes estudantis de associações de estudantes de universidades públicas

5 Concentramo-nos no caso das universidades públicas2 e nos seus dois maiores corpos: professores e estudantes. Mas, procurando uma análise em torno do poder, analisarei os discursos de uma parte específica destes corpos: reitores e dirigentes estudantis. Do ponto de vista espaçotemporal centramo-nos nos últimos 27 anos, isto é, entre 1988 e 2015, e em oito universidades públicas, nomeadamente: Universidade de Lisboa (UL), Universidade Nova de Lisboa (UNL), Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Universidade de Coimbra (UC), Universidade do Porto (UP), Universidade da Beira Interior (UBI), Universidade de Aveiro (UA) e Universidade do Algarve (UAlg).

6 A amostra mobilizada foi de 18 entrevistados, entre os quais oito atuais ou antigos reitores e dez atuais ou antigos dirigentes estudantis. Esta amostra procurou refletir quatro critérios: (a) a diversidade de universidades públicas em termos de dimensão e de localização; (b) a amplitude do ciclo temporal em estudo; (c) a representação da diversidade de protagonistas com responsabilidades universitárias no período em análise; e (d) o critério da diversidade de pontos de vista políticos sobre as principais transformações em análise.

O campo universitário português no contexto internacional

7 As transformações no ensino superior que aqui se identificam ocorreram num contexto histórico marcado por grandes mutações económicas e políticas. De facto, as políticas de educação superior enquadram-se nas tendências de definição das políticas públicas e da própria visão sobre o papel do estado. No nosso caso, foi na viragem da metade do século XX que à luz da relação de forças entre capital e trabalho, se expandiram as valências do estado social, no qual as políticas de democratização da educação foram um eixo central. Os acordos de Bretton Woods de 1944, não definindo a democratização da educação, simbolizaram a viragem política que a permitiu.

8 Contudo, o ciclo do pós-guerra foi interrompido logo nos anos 70 em consequência da crise do petróleo de 1973, do crash bolsista e da nova recessão de 1973-1975. A perda de

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hegemonia da escola keynesiana e o fim dos acordos de Bretton Woods mudaram o ciclo político, referindo Rui Canário (2005) que na educação se passou do “tempo de promessas”, para um “tempo de incerteza”.3 É nesse contexto que se desenha um novo paradigma com a eleição de Tatcher (1979) e Regan (1981) e com o estabelecimento do “Consenso de Washington” em 1989, onde instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) ou o Banco Mundial (BM) passam a ter a função de consolidar o processo de neoliberalização que visou a redução da despesa pública, as privatizações e a desregulação.

Quadro 3 Percentagem de alunos por natureza do sistema de ensino superior entre 1960 e 2013

Quadro 4 Percentagem do orçamento das instituições do ensino superior pelo Orçamento de Estado e receitas próprias entre 1990 e 2008

9 No caso do BM, a promoção destas reformas refletiu-se de forma clara no ensino superior. Se fizermos uma análise diacrónica, identificamos um conjunto de recomendações relacionadas com: (a) a priorização do investimento na educação básica, propondo-se o cofinanciamento do sistema de ensino superior;4 (b) a adaptação do sistema às lógicas da economia, através da privatização e de formas alternativas de financiamento;5 (c) a submissão às leis do mercado, uma vez que a educação superior é sobretudo um “bem privado”;6 (d) a aproximação das formações do mercado, dotando os estudantes de competências “empreendedoras” e “flexíveis”;7 (e) a substituição do termo “educação superior” por “educação terciária”.8 É no contexto dessas orientações que o sociólogo e consultor do BM Michael Gibbons vem justamente defender o que designa o economically-oriented paradigm, no qual a universidade devia, em primeiro lugar, servir a economia, advogando que a sua relevância seria definida pela sua contribuição em termos de “performance económica” (Gibbons, 1998).

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Figura 1 Evolução do valor da propina máxima e mínima em euros entre os anos letivos de 1992/93 e 2014/15 no ensino superior público (a preços correntes)

10 No caso português, só a partir do 25 de Abril de 1974 a democratização do ensino ganha tradução política e, desde esse momento, a expansão da oferta ocorreu a um ritmo acelerado.9 Mas a dinâmica de alargamento do sistema não foi isenta de contradições. Dados do Ministério da Educação, citados por Belmiro Cabrito (2011), mostram por exemplo que a oferta pública foi desde os anos 80 insuficiente para acompanhar a vontade crescente de acesso ao sistema. Em sentido oposto expandiu-se a oferta privada.

11 Os resultados são claros. Por um lado, assistimos a uma expansão da oferta privada como forma de absorver o número de jovens que procuraram este nível de ensino. Por outro, foi clara uma redução progressiva da verba do estado para as instituições, acompanhada pelo recurso a receitas próprias, principalmente através das propinas que, como se demonstra, e se explicará adiante, aumentaram a um ritmo acelerado nos últimos 23 anos.

O ciclo 1988-2015 do campo universitário português: dez transformações estruturais destacadas pelos agentes universitários

12 Nos discursos dos agentes universitários são identificadas dez transformações fundamentais nas universidades portuguesas.

13 Em primeiro lugar, a Lei da Autonomia Universitária de 1988.10 Esta consagrou o princípio da autonomia universitária, nomeadamente em termos estatutários, científicos, pedagógicos, administrativos e financeiros. Mas veio garantir também a gestão democrática assente em quatro órgãos: a Assembleia da Universidade, onde tinha de haver “paridade entre os docentes e os estudantes eleitos”,11 que aprovava estatutos e elegia o reitor; o reitor, eleito por escrutínio secreto, cabendo-lhe propor as linhas gerais da universidade, representá-la ou superintender a gestão; o Senado Universitário, constituído por docentes e estudantes, respeitando a paridade, e também

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por funcionários,12 competindo-lhe aprovar as grandes linhas de orientação, atividades, organização interna, bem como exercer poder disciplinar ou fixar propinas; e o Conselho Administrativo, órgão colegial do qual fazia parte o reitor, um vice-reitor, o administrador e um representante dos estudantes.

14 Em segundo lugar, o aumento das propinas. No início dos anos 90 pagava-se uma taxa que hoje seria de cerca de 6 euros. O aumento, que se discutia desde o início da década, 13 confirma-se com a Lei n.º 20/92, provocando um aumento para o que hoje seriam 399 euros na propina máxima e 159 na mínima. Apesar da contestação acontecer desde 1990, é esse aumento de 1992 que a amplia, com mobilizações de rua e bloqueios de órgãos de gestão. Depois de três ministros tentarem sem sucesso implementar a lei,14 esta é suspensa em 1995. Mas a suspensão durou pouco tempo. Depois de dois anos, o XIII Governo Constitucional, chefiado por António Guterres, aprova a Lei n.º 113/97, onde se fixa a propina no valor do salário mínimo. Essa lei havia de durar até à aprovação da Lei n.º 37/2003, em que se verificou um grande aumento, com a fixação de um valor mínimo de 1,3 vezes o salário mínimo nacional e um valor máximo que passa a ser o referente ao valor de 1941, indexado à inflação. Esta alteração fez as propinas aumentarem de 348 euros em 2002, para 464 euros de propina mínima e 852 euros de máxima em 2013. Assim, progressivamente, a introdução da ideia da “partilha de custos” (Cerdeira, 2009; 2008), ocorreu em paralelo com a “descapitalização pública” das universidades (Santos e Filho, 2008).

15 Em terceiro lugar, destacam-se as mudanças ao nível do financiamento público. Por um lado, é referida pelos agentes a criação de uma fórmula de financiamento em 1993.15 Por outro lado, é dado relevo aos cortes no financiamento público que se encontram na ordem dos 30% desde 2010.16

16 Em quarto lugar, salienta-se a adesão ao Processo de Bolonha em 1999.17 Este promoveu a constituição de um Espaço Europeu de Ensino Superior, assente em cinco objetivos: (a) a adoção de um sistema baseado em duas fases, a pré-licenciatura de duração mínima de três anos e a pós-licenciatura que deveria conduzir aos graus de mestre e doutor; (b) a criação de um sistema de créditos; (c) o incentivo à mobilidade para estudantes, professores, investigadores e pessoal administrativo; (d) a cooperação europeia nos processos de garantia da qualidade; (e) a promoção de dimensões europeias ao nível do desenvolvimento curricular, programas de estudo, estágio e investigação. Como se perceberá, os impactos de Bolonha estão longe de ser consensuais.

17 Em quinto, a introdução do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) em 2007,18 que redefine a estrutura de gestão das universidades criada com a Lei da Autonomia Universitária de 1988. Uma das principais mudanças foi a introdução do Conselho Geral, um órgão com 15 a 35 membros, dos quais o corpo de professores deve constituir mais de metade do conselho e os estudantes representarem um mínimo de 15%, e onde se introduz a presença de membros externos com uma presença de no mínimo 30%.19 Este órgão acaba com a paridade de estudantes e professores e introduz elementos externos. Ele incorpora as funções antes atribuídas à Assembleia da Universidade e ao Senado, e uma das suas implicações teve a ver com a mudança no método de eleição do reitor, que deixou de ser eleito através de um colégio eleitoral, para ser eleito pelo Conselho Geral, de número mais reduzido e do qual fazem parte membros externos. O RJIES introduz ainda a possibilidade de as instituições se candidatarem ao regime fundacional, que lhes permite ter uma gestão em regime de

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direito privado e um novo órgão máximo, o Conselho de Curadores, constituído exclusivamente por membros externos cooptados, “de elevado mérito e experiência profissional reconhecidos como especialmente relevantes”.

18 Um sexto aspeto está relacionado com a incorporação da missão científica nas universidades. Esta mudança implicou um aumento da qualificação nos graus mais elevados, novas carreiras e mais investigação científica nas universidades.

19 Em sétimo lugar, salientam-se as questões do acesso e do abandono escolar. Por um lado, é destacada uma crescente redução de candidatos ao ensino superior nos últimos anos. De facto, segundo dados da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, entre 2011 e 2014 o número de matriculados pela primeira vez no público caiu de 102.895 para 87.381 estudantes.20 E por outro lado, é destacado o crescente número de estudantes que abandonam os estudos e que, segundo o Ministério da Educação, só entre 2012 e 2013, foram cerca de 9 mil.

20 Em oitavo lugar, destacam-se as questões relativas ao corpo docente. Por um lado, é salientado o seu envelhecimento. Por outro, é destacada a qualificação deste corpo, em particular ao nível do doutoramento.

21 Em nono lugar, as mudanças na Ação Social Escolar. É relevado por antigos dirigentes estudantis que, já no início dos anos 90, o reforço da ação social era apresentado como contrapartida para o aumento das propinas. Essa perspetiva continua presente para os atuais dirigentes. Mais recentemente, as questões da ação social são mencionadas relativamente aos cortes do Decreto-Lei n.º 70/2010 às bolsas de estudo21 ou à introdução das dívidas fiscais e contributivas da família como critério de exclusão do acesso à bolsa. A estas alterações correspondeu um ciclo de contestação estudantil que forçou o recuo por parte do poder político.

22 Finalmente, salientam-se nas entrevistas as mudanças nos processos de avaliação e acreditação, feitos desde 2007 pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES), que mudou as regras e os métodos de avaliação e acreditação, deixando esta de ser feita entre pares, para passar a ser tutelada por uma agência externa pública de direito privado cujos critérios são reconhecidos por outras agências europeias e pela European Universities Association.

Um campo em disputa: dissensos, polémicas e controvérsias de um campo em transformação acelerada

23 As dez transformações que sintetizei estão longe de ter sido consensuais entre os agentes universitários. O seu desenho foi sempre influenciado pela dinâmica conflitual que originaram ou que as antecederam no campo universitário. Vejamos os 11 principais dissensos identificados nos discursos dos agentes.

Bolonha: entre a formação geral e as competências para o mercado de trabalho

24 O Processo de Bolonha introduziu enormes transformações na organização da formação. Júlio Pedrosa, antigo reitor da UA, destaca que “na Declaração de Bolonha

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aparece claramente um primeiro grau com um grande potencial de inserção no mercado de trabalho”. Mas a visão de que o 1.º ciclo deve ter o objetivo de ingresso profissional está longe de ser consensual, na medida em que vários agentes referem que o modelo que veem para o futuro de Bolonha é o do reforço das formações gerais no 1.º ciclo, transformando o 2.º ciclo numa formação de vocação mais profissional ou de investigação.

25 Esta polémica não é nova. Em 1807, na fundação da Universidade de Berlim, Humboldt desenhou um modelo baseado na liberdade e autonomia académica e numa conceção da “formação pelo saber” — Bildung durch Wissenschaft —, através da unidade ensino/ pesquisa, na qual a formação daria grandes bases de pesquisa científica fundamental (Humboldt, 1997). Por sua vez, na tradição inglesa da “educação liberal”, John Newman (1996) defendeu que as funções da profissionalização e da pesquisa deviam ser precedidas de uma formação geral capaz de desenvolver o raciocínio e o espírito público. É desses debates que, com a criação da Johns Hopkins University, em 1875, se constrói um modelo de formação geral assente em quatros anos — os colleges — e um segundo nível de formação especializada — as graduate schools. Como se percebe, sendo esta uma questão antiga, ela está longe de estar encerrada no campo universitário português.

O tempo da formação: três mais dois (não) é igual a cinco?

26 Outro objeto de discordâncias relativamente a Bolonha foi a redução do número de anos de cada ciclo. Se, para António Rendas, reitor da UNL, a questão deve ser centrada na importância da qualificação ao longo da vida, outros como José Barata-Moura, antigo reitor da UL, afirmam que a redução das formações “é um disparate monumental, porque […] na formação das pessoas, há uma variável fundamental que é a variável tempo”. Já para Manuel Santos Silva, antigo reitor da UBI, “[Bolonha] foi uma forma de desqualificarmos os jovens em alguns aspetos […] porque três mais dois, não é igual a cinco […]”.

Propinas: 23 anos de polémica

27 O aumento das propinas desde 1992, acompanhado nos últimos anos com o que Boaventura de Sousa Santos (Santos e Filho, 2008) designa descapitalização pública da universidade, conduziu a posicionamentos muito distintos. No quadro das entrevistas, identificamos três posições em confronto. A primeira refere-se àqueles que são explicitamente contra a fixação das propinas, na medida em que a justiça social se deve fazer por via fiscal e em que constitui um dever do estado proporcionar a tendencial gratuitidade do ensino superior. A segunda refere-se aos que afirmam que não há alternativa, quer pelo peso que as propinas têm no orçamento das instituições, quer por razões estratégicas de exigência de mais financiamento público. A terceira posição reflete-se em quem concorda com o princípio das propinas pelas vantagens individuais que os diplomados têm no mercado22 ou porque elas devem servir para a melhoria da qualidade ou da ação social.

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Colegialidade e dimensão dos órgãos de gestão

28 Uma dimensão fundamental da transformação do campo universitário teve que ver com a mudança nos órgãos de gestão. Vários reitores argumentam que a redução dos membros do Conselho Geral, em relação aos principais órgãos, estabelecidos em 1988, não introduz um caráter menos democrático uma vez que as universidades podem criar outros métodos de auscultação. Outros destacam o facto de a dimensão excessiva dos antigos órgãos criar desresponsabilização. Contudo, vários agentes referem que o RJIES “é um sistema claramente menos democrático” porque faz com que os corpos participem cada vez menos na vida interna da universidade. Hoje as posições confrontam-se entre a necessidade de eficiência dos órgãos e a exigência da participação interna em órgãos democráticos e representativos.

Que representação dos corpos internos e externos?

29 Uma das transformações mais importantes no que respeita aos órgãos de gestão foi o fim da paridade entre docentes e estudantes. Mas esse não foi o único fator de dissenso. Outro teve a ver com a introdução de membros externos. Para Júlio Pedrosa, antigo reitor da UA, é “trazerem para dentro vozes de fora, o que é boa notícia, porque as universidades são entidades públicas”, mas outros agentes universitários defendem um modelo alternativo em que os membros externos estariam numa estrutura consultiva da instituição, e não nos seus órgãos deliberativos.

Que tipo de abertura à sociedade?

30 A questão da presença de membros externos não se coloca apenas no tipo de representação que estes devem ter, mas também sobre as implicações da sua presença. De facto, os agentes universitários chamam a atenção para as possíveis consequências da presença do setor privado nos órgãos de gestão, da cópia dos seus procedimentos e metodologias, e para a necessidade de preservação da autonomia científica nesse contexto. Sendo a relação da universidade com os outros campos do poder, nomeadamente o político e o económico, uma polémica longa, estas preocupações estão longe de estar encerradas.

A democraticidade na eleição do reitor

31 Passando da Assembleia da Universidade para o Conselho Geral, o método de eleição do reitor mudou radicalmente, na medida em que, em vez de a eleição ser feita através de um colégio eleitoral amplo, passou a ser feita por um órgão com menos representatividade, onde participam membros externos à universidade, cooptados, e que acumula as funções de desenvolvimento estratégico e supervisão das instituições. Essa mudança não foi, nem é, pacífica. Enquanto antigos reitores a classificam como um “retrocesso” ou uma importação de “culturas que não temos”, outros referem que o modelo é melhor “principalmente pela presença dos elementos externos dentro da universidade”.

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Educação e mercado de trabalho: para que serve a empregabilidade?

32 Como defendi noutra ocasião (Mineiro, 2015), a mais recente literatura sobre a noção de “empregabilidade” mostra como ela adquiriu um uso ideológico muito forte, relacionado com o tipo de formação que os diplomados supostamente devem ter para estarem “empregáveis”. Mas para além do debate sobre as “competências de empregabilidade” nos currículos, uma das questões muito presentes é a definição das vagas de cada instituição em função dos “índices de empregabilidade”. As opiniões dividem-se entre os que acham que o sistema deve ser regulado tendo em conta estes indicadores e aqueles que consideram que este não é um fator crucial a ter em conta.

O regime fundacional: entre a natureza pública e o direito privado

33 Uma outra disputa entre os agentes no quadro da implementação do RJIES teve que ver com a introdução do regime fundacional. Se para uns agentes este regime “reforça as lideranças”, permite “uma maior responsabilidade de quem dirige”e garante universidades mais “ágeis” e “flexíveis”, para outros ele “parece ser claramente uma porta aberta para dinâmicas de privatização”. Na verdade, o modelo fundacional mantém dimensões de natureza pública (como sejam as regras da fixação de propinas ou de vagas), mas introduz mecanismos de gestão privada que estão longe de ser consensuais entre as universidades públicas.

A ideia da “universidade de excelência”

34 O conceito de excelência é dos mais marcadamente polissémicos, mas também dos mais usados na apresentação das instituições. Para alguns agentes a universidade de excelência é a que consegue atingir os patamares de empregabilidade, eficiência formativa e investigação, e ter “capacidade de se gerir por si própria”; para outros ele é um conceito “vazio” ou “chavão”, relacionado com a mercantilização das universidades.

A questão da avaliação e acreditação das instituições

35 Importa ainda assinalar algumas discordâncias sobre as questões da avaliação e acreditação. Alguns agentes destacam que com as mudanças recentes as universidades perderam autonomia pedagógica, enquanto outros preferem salientar que o papel da agência A3ES tem contribuído para consolidar a qualidade dos cursos. Contudo, há ainda quem argumente que este modelo “é uma vergonha” porque se baseia num sistema de “prémios e castigos” quebrando as experiências anteriores.

Podemos falar de um campo universitário?

36 Como tentei demonstrar, as universidades não são imunes às dinâmicas sociais, económicas e políticas do tempo histórico em que se inserem. Contudo, elas são também motores de transformação e mudança social. O que é que as transformações e

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disputas destes 27 anos, nos podem revelar sobre o lugar da universidade nas dinâmicas da sociedade contemporânea?

Universidade enquanto campo?

37 No período aqui em análise, as universidades transformaram-se profundamente, principalmente ao nível do financiamento, da organização interna e da relação com o exterior. Nesse contexto, podemos falar da universidade enquanto campo social, isto é, enquanto subconjunto relacional do espaço social, dotado de autonomia relativa, caracterizado pela disputa de um capital, e cuja existência é irredutível a outros campos?

38 Gostava de propor uma hipótese pluralista para essa questão. Apesar de uma clara pressão economicista e mercantil, a universidade persiste enquanto subconjunto do espaço social passível de ser entendido enquanto um campo. É na sua dinâmica que se pode entender não apenas a posição dos agentes em disputa por um conjunto particular de capitais, mas também as suas lutas pelo reconhecimento do campo na relação com o estado e o mercado. É por constituírem um campo que as universidades ainda não são hoje uma mera expressão do mercado ou da administração pública. São sobretudo um palco de avanços e recuos, consentimentos e resistências, competição e solidariedade, em torno dos processos de transformação que se foram e vão sucedendo à escala internacional, mas que têm em Portugal uma configuração específica.

Acesso, doxa e um certo “sentido do jogo”

39 O direito de acesso a um campo é atribuído pelo reconhecimento dos seus valores e regras fundamentais — daquilo que (e como) nele se joga —, e do tipo de capital que nele se disputa. Apesar da diversidade de dissensos, é muito clara a forma como os agentes reconhecem um conjunto de valores comuns associados à pertença ao campo universitário. Entre eles, a importância da qualificação, o contributo para o desenvolvimento económico e social, a promoção da cidadania e do espírito crítico, a inserção profissional vantajosa ou a promoção do desenvolvimento científico e tecnológico.

40 Mas a admissão no campo, para além da adesão a um conjunto de pressupostos valorativos, implica igualmente a posse de diferentes capitais que legitimam a entrada. Desde logo de capital económico, na medida em que pertencer ao campo implica o cofinanciamento dos custos da educação,23 e de capital cultural, na medida em que a entrada depende da anterior acumulação de capital cultural certificado pelo estado.24 Mas pode ainda implicar a posse de capital simbólico, na medida em que o acesso implica um reconhecimento que distingue a posse dos meios económicos e culturais de quem acede, e de capital social, uma vez que se podem ativar redes facilitadoras de acesso.25 Assim, a mobilização de diferentes capitais é um fator explicativo do conjunto de disposições, de um habitus ou de uma hexis (Bourdieu, 2011) que orienta os agentes para a importância da presença no campo.26

41 São essas faculdades de acesso e essas disposições incorporadas que constituem a doxa (Bourdieu, 1984a) do campo universitário: a adesão a um entendimento tácito, entre efetivos e potenciais agentes, de um conjunto de leis e regras que regulam o acesso, a pertença e a luta, bem como dos benefícios individuais e coletivos da participação no

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campo. Dessa doxa faz parte precisamente o que Bourdieu (2001) chama “sentido do jogo”, isto é, um certo senso prático que faz com que os agentes, ao jogarem, respondam às exigências das regras do campo, aceitando as regras inerentes à disputa da posse de um conjuntos de capitais transponíveis para o conjunto do espaço social.27

Capitais em disputa: uma aproximação à ideia de capital universitário enquanto capital compósito

42 Uma questão central da definição de um campo é precisamente a de saber que capital nele se disputa e que posições se ocupam na luta pela sua dominação (Bourdieu, 1984b; 2001). Se falar de um campo universitário é também falar de campos que nele se refletem, como os campos educacional, profissional, de pesquisa e cultural (Cunha, 2006), o que me leva a considerar a existência de um campo universitário analiticamente delimitado? Gostava de avançar na hipótese de que a universidade constitui um campo porque nela se disputa o capital universitário, isto é, um capital compósito que reflete a articulação dos quatro capitais propostos por Bourdieu na sua teoria geral dos campos, os capitais económico, cultural, social e simbólico.

43 Capital económico porque a presença no campo pode potenciar uma posição económica mais favorecida na sociedade. A mobilidade social inerente à pertença ao campo constitui um elemento definidor das lutas pelo acesso, pela permanência ou pela conclusão com sucesso da passagem pelo campo.28

44 Capital cultural porque algumas das justificações dadas pelos agentes para o acesso e a pertença ao campo são, por um lado, a possibilidade de exponenciar os conhecimentos que se tem do mundo e da sociedade e, por outro lado, a possibilidade de que esses conhecimentos se traduzam em qualificações e competências mobilizáveis fora do campo, por exemplo, na esfera profissional, na esfera pública ou nas práticas de cidadania.

45 Capital simbólico, porque a pertença ou a passagem pelo campo constituem em si mesmas um traço de distinção social. Revelador disso é o facto de a um tipo de formação corresponder um título formal de apresentação. Mas também a ideia de que o conhecimento nele produzido é um conhecimento distintivo em relação a outras formas de conhecimento na sociedade.29

46 E finalmente o capital social, que pode potenciar a criação, ampliação e ativação das redes que facilitem a inserção no mercado de trabalho, a investigação científica, a presença no espaço público, ou que auxiliem a mobilidade nas hierarquias do mercado de trabalho.

47 O capital universitário é, por isso, um capital compósito distintivo, na medida em que pode ser mobilizado enquanto elemento potenciador de capital económico, cultural, simbólico e social. Por isso, é um capital flexível e adaptável à dinâmica das trajetórias sociais e estrategicamente transponível para o conjunto do espaço social.

Podemos falar de “autonomia relativa”?

48 Apesar de os campos só poderem ser interpretados na sua interdependência, uma das suas características centrais é a sua autonomia relativa, enquanto microcosmo social,

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com regras próprias, em disputa, e que são irredutíveis ao funcionamento de outros campos (Bourdieu, 1984b; 1992).

49 Se olharmos para as pressões economicistas, para a descapitalização pública e para as pressões de organizações nacionais e supranacionais externas à universidade que tentam influenciar as suas prioridades científicas, curriculares ou pedagógicas, podíamos tender para a hipótese do fim da “autonomia universitária”. Mas essa hipótese seria demasiado redutora. Na verdade, a reação dos agentes à heteronomia tem feito com que a relação de forças esteja também em mutação e, por isso, as universidades ainda não sejam uma mera expressão de interesses empresariais ou políticos, mas sim um espaço de lutas e disputas, nos seus avanços e recuos, onde os próprios campos e agentes em confronto se vão redefinindo. Essa dinâmica é, provavelmente, a melhor expressão da autonomia relativa do campo.

Campo e interação: a universidade entre o estado e o mercado no quadro do new public management

50 Estando as universidades sob administração indireta do estado, as pressões economicistas e mercantis a que fiz referência, só podem ser entendidas no contexto das mutações do próprio estado com o new public management (NPM).

51 O NPM designa um conjunto de reformas surgidas no final dos anos 70 (Hood, 1991) que traduziram uma aproximação entre o setor público e o setor privado e uma crescente penetração dos valores de mercado na esfera pública. As mudanças introduzidas por estes novos métodos de gestão traduziram-se na organização das universidades, sintezando-se, segundo Barrias (2013), em nove princípios. Em primeiro lugar, o NPM introduziu um novo paradigma de aproximação ao mercado e à utilização de instrumentos de gestão privada. Em segundo, reforçou a autonomia institucional em relação ao estado. Em terceiro, centralizou as decisões mitigando a representatividade e colegialidade. Em quarto, profissionalizou a gestão. Em quinto, promoveu uma alteração dos mecanismos de financiamento através de fórmulas baseadas na “desconfiança sistémica”. Em sexto, promoveu um conjunto de novos valores, como a prestação de contas, a produtividade ou a angariação de receitas. Em sétimo, estimulou a uma maior prestação de contas. Em oitavo, acentuou a promoção de novos “perfis de liderança” mais dedicados à gestão de finanças e recursos humanos. E, finalmente, alterou leis laborais com a promoção de políticas de recursos humanos privadas.

52 O conjunto destas mudanças transformou a interação do campo universitário com o mercado e o estado. A diluição dessas fronteiras manifesta-se em 12 características sociologicamente relevantes: (a) a atuação das instituições passou a basear-se na competição, operando em condições de quase-mercado;30 (b) aprofundaram-se estruturas de lógica empresarial; (c) desenvolveu-se o caráter comercial na captação de estudantes e competição entre funcionários; (d) mitigou-se a representatividade e colegialidade dos órgãos, agora substituídos por lideranças centralizadas e novos órgãos com membros externos; (e) os reitores passaram a assumir funções de gestão semelhantes às do setor privado; (f) os órgãos de representação como o Senado foram secundarizados; (g) encareceram-se os custos do ensino; (h) mercantilizou-se o campus; (i) apostou-se nas instituições enquanto marcas comerciais; (j) criaram-se novas parcerias com o capital privado para a obtenção de receita própria; (k) os estudantes passaram a ser

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entendidos como clientes; (l) o acesso à universidade deixou de ser entendido como um direito, por meio da cidadania, mas sim como um serviço, por meio do consumo.

53 A reconfiguração das universidades mostra-nos que a diluição das fronteiras entre o campo universitário e o campo económico se concretiza precisamente no quadro das transformações do próprio estado. Mas ao constituírem um campo social, as universidades não viram estas transformações ocorrer sem intensas disputas internas que, em muitos casos, continuam em aberto.

Interação e disputa interna: um sentido das lutas no campo universitário

54 No final dos anos 80, em La Noblesse d´Etat (1989) Bourdieu analisa a estrutura da educação francesa organizada entre as grandes écoles, de formação de elite, e as universidades, instituições de massas e que não estão necessariamente ligadas ao mundo do trabalho. Uma das dimensões da diferenciação é precisamente a dualização institucional que tende a mimetizar as desigualdades sociais no sistema de educação. Mas o que sobressai nesta pesquisa não é tanto uma disputa sobre a diferenciação interna no sistema universitário português, mas sobretudo sobre a relação que o campo universitário estabelece com os campos que o circundam.

55 Na verdade, as disputas dos agentes sobre algumas das matérias mais estruturantes do processo de mudança dos últimos 27 anos são reveladoras de disputas mais amplas sobre a natureza da autonomia do campo universitário, nomeadamente na sua relação com o estado, o mercado e a sociedade. Com o estado quando, por exemplo, no quadro da Lei da Autonomia Universitária, do RJIES ou dos novos processos de avaliação, se opõem conceções sobre o grau de autonomia que o poder político deve atribuir às instituições. Com o mercado quando, no quadro do aumento das propinas, das novas regras de gestão ou dos novos valores em emergência, se disputam posições sobre a maior ou menor necessidade de mimetismo com esfera privada. E com a sociedade, porque no conjunto das transformações que analisei se opõem visões distintas sobre o tipo de interação que a universidade deve estabelecer com a sociedade em que se inscreve. O desenho da autonomia do campo universitário, nomedamente na sua permeabilidade ao poder político e económico, parece ser uma das arenas em que os agentes mais disputam lutas pela dominação interna.

A função social da universidade: aproximações e desencontros

56 Um elemento central da definição do campo é a função que os agentes lhe atribuem. Analisando as respostas à questão “qual é a função social da universidade?”, é possível encontrar elementos de convergência que refletem uma narrativa confluente, mas também elementos de divergência ou de destaque diferenciado.

57 No plano da opinião consensual, encontramos um conjunto amplo de justificações para a função social da universidade, como sejam as de colocar as pessoas a pensar contribuindo para a formação pessoal, promover o ensino e a qualificação, formar bons profissionais, estimular a investigação científica ou contribuir para o desenvolvimento económico, social e cultural.

58 Mas se estas funções constituem elementos relativamente consensuais, no concreto elas desdobram-se em funções destacadas de modo divergente pelos agentes. Enquanto uns

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falam da função de formar recursos humanos, outros de formar cidadãos livres. Uns destacam a promoção do pensamento culto, outros da formação técnica. Uns privilegiam a necessidade de garantir a aplicabilidade do conhecimento, outros de formar gente crítica. Uns de dar respostas a nível tecnológico, outros de se organizar para a autonomia. Uns a missão do direito à educação independentemente da origem económica ou regional, outros de contribuir para a competitividade económica. Uns destacam a promoção da justiça social, outros a função de contribuir para o crescimento dos estados. Uns acentuam a função de combater as desigualdades, outros de garantir os benefícios individuais da educação. Uns destacam a promoção da competitividade, outros a função de garantir uma experiência democrática e de participação cidadã. Uns a função de soberania, outros a de crescimento económico. Uns de promoção de uma sociedade coesa e solidária, outros de garantir a função de contribuir para o desenvolvimento económico local.

59 A maioria destas funções não são nem dicotómicas, nem mutuamente exclusivas. Elas provavelmente poderiam ser melhor agrupadas se estivéssemos a analisar a diferenciação entre universidades e politécnicos. Mas mesmo analisando apenas o campo universitário, o destaque dado pelos diversos agentes a cada função da universidade revela também a identificação de posições divergentes sobre a natureza e o futuro das universidades no século XXI. É a intensidade das disputas no campo que aqui analisámos e são as relações de força que nele se estruturam que colocam o seu futuro tão aberto e imprevisível nesta transição de século.

Conclusão

60 Em 2009, dizia George Steiner em Lisboa que “desde a sua instauração em Bolonha, Salerno ou Paris medieval, as universidades são bichos frágeis mas tenazes”. Foi esse o caminho desta pesquisa: nele procurámos olhar para a tenacidade que faz das universidades uma das mais notáveis invenções da humanidade; mas olhámos também para a fragilidade da sua exposição às mais diversas formas de pressão política e económica, no quadro da intensificação do neoliberalismo e das transformações no estado.

61 É verdade que a pressão mercantil e as transformações do estado com a emergência do new pubic management são uma realidade que tem reflexos profundos no que são hoje as universidades portuguesas. Contudo, se analisarmos os discursos diretos dos agentes universitários dos 27 anos que aqui se escrutinam, somos levados à conclusão de que a universidade não tem sido um espaço amorfo e isento de conflitos. A sua primeira característica enquanto campo é precisamente o facto de as suas transformações nestes 27 anos não terem ocorrido sem disputas intensas no seu seio, condicionando avanços e recuos na relação da autonomia da universidade no conjunto do espaço social.

62 Estas transformações e disputas, sendo parte intrínseca e constitutiva do campo, mostram como tem mudado a relação da universidade com o estado e o mercado. Mas é precisamente pelo facto de a universidade constituir um campo social que ela não é hoje uma mera expressão de nenhum dos dois, mantendo características próprias e elementos de autonomia. Apesar da pressão economicista e mercantil, é a “autonomia relativa” que lhe permite constituir-se como um microcosmo social que, na sua dinâmica interna, redefine permanentemente, mediante a relação de forças de cada momento, a relação de interseção com as suas fronteiras.

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63 Apesar dos elementos de autonomia, a colonização crescente do campo universitário pelo poder económico a partir do estado, tem colocado em causa alguns domínios da missão pública das universidades. Contudo, o que sobressai nesta pesquisa é que não há nenhum elemento que nos permita antecipar o resultado das disputas ou da configuração futura da relação de forças interna do campo. A essa tentação para cartomancia sociológica só podemos responder com uma certeza: a existir, o campo universitário continuará a reagir de forma intensa à heteronomia.

64 Voltando a George Steiner, na atribuição do doutoramento honoris causa pela Universidade de Lisboa em 2009, o ensaísta terminou o seu discurso com uma piada bem otimista. Deus resolve acabar com a humanidade de forma definitiva e em dez dias toda a espécie vai morrer afogada. Os homens, desesperados, vão ter com o seu rabi anunciando a sentença. Sereno, este responde-lhes: “Calma, calma, dez dias é tempo de sobra para aprender a respirar debaixo de água”. Haverá quem profetize para este século o fim da universidade pública. Não é impossível que assim seja. Mas a essas profecias (geralmente autocumpridas) exige-se maior prudência. É que não há qualquer razão de natureza sociológica que nos leve a achar que não vai continuar a haver quem insista em aprender a respirar debaixo de água.

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NOTAS

1. As reflexões a que este texto dá corpo têm origem numa pesquisa desenvolvida entre setembro de 2014 e junho de 2015 sobre as transformações e disputas nas universidades portuguesas entre 1988 e 2015. 2. Importa referir que o sistema de ensino superior português se divide nos subsistemas universitário e politécnico. Por razões de espaço e tempo, optamos por analisar exclusivamente o caso do sistema universitário, tendo ainda assim consciência de que a análise do sistema de ensino superior politécnico tem uma enorme relevância na sociedade portuguesa. 3. É precisamente nessa década, em 1974, que Hayek publica O Caminho da Servidão (2010), onde defende que as soluções de tipo coletivista conduzem à violência e à supressão da liberdade, reforçando as ideias defendidas em 1962 por Milton Friedman (2014), que opondo-se ao welfare state, argumentava que a educação superior não devia depender sobretudo da iniciativa privada. 4. Estas e outras recomendações podem ser encontradas no relatório “Financing education in developing countries—an exploration of policy options” (1986). 5. Estas e outras recomendações podem ser encontradas no relatório “Higher education: the lessons of experience” (1994). 6. Estas e outras recomendações podem ser encontradas no relatório “The financing and management of higher education: a status report on worldwide reforms” (1998). 7. Estas e outras recomendações podem ser encontradas no relatório “Higher education in developing countries: peril and promise” (2000). 8. Estas e outras recomendações podem ser encontradas no relatório “Constructing knowledge societies: new challenges for tertiary education” (2003). 9. A este respeito veja-se que, segundo dados do INE,em1960 tínhamos apenas 0,9% da população residente com o ensino superior, enquanto em 2013 essa percentagem já estava nos 15%. 10. Lei n.º 108/88, de 24 de setembro. 11. Dela faziam também parte o reitor, os vice-reitores, presidentes dos órgãos de gestão das unidades orgânicas, presidentes das associações de estudantes, o administrador e o vice- presidente dos serviços sociais (artigo 17.º). 12. Não sendo obrigatório, a lei permitia ainda integrar representantes externos à universidades, em número não superior a 15% da totalidade dos seus membros. 13. Apesar de as propinas para as licenciaturas só sofrerem um aumento com a lei de 1992, este já tinha sido propostoem1990 no Livro Branco sobre o Financiamento Público ao Sistema de Ensino Superior, da autoria de Afonso de Barros, Daniel Bessa e outros. 14. Respetivamente, Diamantino Durão (1991-1992), Couto dos Santos (1992-1993) e Manuela Ferreira Leite (1993-1995). 15. Esta fórmula durou até 2009.Em2010 e 2011 o financiamento foi baseado na fórmula de 2009 complementado com financiamento atribuído por contratualização de objetivos, o Contrato de Confiança. No ano de 2013, o financiamento voltou a ser feito com base numa fórmula, que tem em consideração o histórico do orçamento anterior (85%) e a reposição da fórmula usada até 2009 (15%).

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16. Estes cortes fizeram com que em muitas universidades hoje o financiamento público já não chegue aos 50% do seu orçamento. 17. A Declaração de Bolonha, assinada a 19 de junho de 1999, encontra-se disponível em: http:// www.magna-charta.org/resources/files/BOLOGNA_DECLARATION.pdf 18. Lei n.º 62/2007, de 10 de setembro. 19. Não sendo obrigatório, a estes membros podem ainda juntar-se representantes dos funcionários não docentes. 20. Se virmos o número de matriculados no ensino público, ele reduziu-se de 311.547 em 2012 para 301.654 estudantes em 2014. Quase menos 10 mil inscritos matriculados em dois anos. 21. Decreto-Lei n.º 70/2010, de 19 de julho. 22. A legitimação das propinas em nome dos benefícios que os diplomados têm no mercado de trabalho também foi identificada, no caso do Reino Unido, por Boden e Nedeva (2009). 23. Isso manifesta-se nos estudantes que querem aceder à universidade, mas também para professores que têm de concluir os vários graus de formação para ingressarem numa carreira docente. 24. Na verdade, é a avaliação quantitativa desse tipo de conhecimentos anterior à universidade — as chamadas “médias” —, que regula a relação entre o número efetivo de candidatos à entrada e o número de vagas disponíveis. Quem está melhor avaliado nos graus antecedentes tem acesso prioritário ao campo. 25. Um exemplo paradigmático é a possibilidade da ativação de redes de contactos na universidade que facilitem candidatura a uma bolsa de estudo para suportar os custos da educação ou o simples processo de candidatura e entrada num curso. 26. Esse habitus do campo pode ser desenvolvido e instigado dentro e fora dele pelos seus próprios agentes internos (professores, estudantes, antigos estudantes, investigadores, reitorias, funcionários, etc., que produzem discursos sociais sobre a importância da pertença ao campo), mas também por agentes externos (estado, mercado, governo, sociedade civil, etc., que inscrevem narrativas na sociedade sobre as função do campo e as vantagens de lhe pertencer). 27. Delas fazem parte, para estudantes, a aceitação dos mecanismos de avaliação e classificação, regras pedagógicas, custos da formação, currículos, hierarquias internas ou regras de acesso. Para professores, sistemas de avaliação de desempenho, regras laborais de progressão na carreira, estatutos docentes, regras salariais ou hierarquias internas. 28. Entre outras, podemos ter como exemplo as lutas pela a redução de propinas ou a melhoria de bolsas (para facilitar o acesso), as estratégias contra o abandono (para assegurar a permanência), ou os mecanismos de promoção do sucesso escolar (para facilitar a conclusão da passagem pelo campo com sucesso). 29. Exemplo curioso desse facto é a expressão “fuga de cérebros”, que tende a privilegiar na sociedade a preocupação com a emigração dos jovens qualificados, invisibilizando a emigração não qualificada. 30. O termo quase-mercado designa contextos organizacionais em que, apesar de existir financiamento ou cofinanciamento por parte do estado, também estão presentes mecanismos de funcionamento de mercado (Bertolin, 2011).

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RESUMOS

Este artigo analisa o campo universitário português entre 1988 e 2015, com base no discurso de 18 antigos e atuais reitores e dirigentes estudantis e nas mudanças sociais, económicas e políticas deste período. Primeiro, descrevem-se aquelas que, segundo os agentes, constituem as dez principais transformações das instituições universitárias. Depois, examinam-se os principais dissensos suscitados por essas transformações. Por último, partindo destas transformações e dissensos, analisamos a universidade enquanto campo, isto é, enquanto subconjunto relacional do espaço social, estruturado através de posições e disposições, onde os agentes lutam pela posse de um capital específico e que tem uma autonomia relativa na relação com o poder político e económico.

This article analyses the Portuguese universities field between 1988 and 2015, laying its foundations on the discourses of 18 current and former deans and leading students and in the social, economic and political changes in that period. At first, we will describe those that, according to social agents, constitute the ten main transformations of the university institutions. Then, we will examine the main points of contention raised by these transformations. Lastly, departing from these transformations and points of contention, we analyze the University as a field, this is, as a relation subset of social space, structured through the positions and dispositions, where the agents struggle for the possession of specific type of capital and that has a relative autonomy in relation to the political and economic power.

Cet article porte sur le champ universitaire portugais entre 1988 et 2015, sur la base du discours de 18 anciens et actuels doyens et leaders étudiants et aussi des changements sociaux, économiques et politiques de cette période. D’abord, on décrit celles qui, selon les responsables, sont les dix principales transformations des universités. Ensuite, on examine les principaux désaccords soulevés par ces transformations. Enfin, en partant de ces changements et désaccords, nous analysons l’université comme un champ, ça veut dire, en tant que sous- ensemble relationnelle de l’espace social, structuré par des positions et des dispositions, où les agents se battent pour la possession d’un capital spécifique et qui a une autonomie relative dans la relation avec le pouvoir politique et économique.

Este artículo analiza el campo universitario portugués entre 1988 y 2015, con base en el discurso de 18 antiguos y actuales rectores y dirigentes estudiantiles y en los cambios sociales, económicos y políticos en este período. Primero, se describen aquellas que, según los agentes, constituyen las diez principales transformaciones de las instituciones universitarias. Después, se examinan los principales disensos suscitados de esas mismas transformaciones. Por último, a partir de estas transformaciones y disensos, analizamos la universidad como un campo, es decir, siendo un subconjunto relacional del espacio social, estructurado mediante posiciones y disposiciones, donde los agentes luchan por la posesión de un capital específico y que tiene una autonomía relativa en la relación con el poder político y económico.

ÍNDICE

Palavras-chave: universidade, campo, campo universitário, neoliberalismo, ensino superior Mots-clés: université, champ, champ universitaire, le néolibéralisme, l’enseignement supérieur Keywords: university, field, university field, neoliberalism, higher education Palabras claves: universidad, campo, campo universitario, neoliberalismo, enseñanza superior

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AUTOR

JOÃO MINEIRO Doutorando e bolseiro de investigação, Socius-ISEG e CRIA-IUL, Avenida das Forças Armadas, Edifício IUL, 1649-026, Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]

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O ensino da sociologia em cursos superiores de outras áreas de formação: a perspetiva de docentes e diretores Teaching sociology as a discipline in courses from other areas: the perspective of teachers and principals L’enseignement de la sociologie comme discipline dans d’autres filières de formation: le point de vue des enseignants et des directeurs La enseñanza de la sociología como disciplina en cursos de otras áreas de formación: la perspectiva de los docentes y directores

Catarina Egreja

Introdução

1 Nas últimas décadas, a sociologia tem vindo a ganhar dimensão, tanto ao nível do ensino superior como da investigação em Portugal. Este crescimento, acompanhado de uma maior notoriedade, verifica-se não só no seio das ciências sociais, mas também noutras áreas do conhecimento, potenciando a multidisciplinaridade na produção científica. No entanto, o olhar reflexivo da sociologia sobre esta realidade tem sido descurado.

2 O presente artigo pretende dar um contributo para a atualização do conhecimento nesta área, focando-se ao nível do ensino — não o ensino da sociologia como área científica principal, mas sim a sua mobilização por outros cursos e áreas no ensino superior. Qual a presença da sociologia no ensino superior português? Como é que esta é vista por docentes e coordenadores de curso? A pesquisa[1] iniciou-se com o levantamento das licenciaturas e mestrados integrados que lecionam uma disciplina de sociologia no ensino superior português, excluindo os próprios cursos de sociologia,

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para permitir perceber quais as áreas mais e menos recetivas à integração desta disciplina na formação dos seus alunos e também que diferenças existem entre os vários subsistemas de ensino. Na fase seguinte da pesquisa, procurou-se perceber de que forma a sociologia se enquadra no âmbito geral do curso e qual a sua utilidade — tanto prevista como percecionada —, pelo que se entrevistaram alguns responsáveis (coordenadores e docentes da disciplina) em diferentes cursos / instituições. Apresentam-se aqui as principais conclusões da análise das entrevistas.

A presença e o ensino da sociologia em cursos superiores de outras áreas de formação: um enquadramento

3 A evolução e presença da sociologia em Portugal tem sido objeto de reflexão por parte de vários autores (Almeida, 1992; 2004; Costa, 1996; 2004; Machado, 1993; 2004; 2009; Nunes, 1988; Pinto, 2004). No entanto, as referências teóricas sobre o ensino da sociologia em cursos de outras áreas de formação são escassas (Almeida, 1992; Nunes, 1963; Resende e Vieira, 1993).

4 Alguns estudos debruçam-se sobre as particularidades e dificuldades do ensino da disciplina — sobretudo, nas áreas da economia / gestão (referências em Almeida, 1992; Esteves, 2004; Pinto, 1994) e da formação de professores (Cortesão, 1992; Esteves e Stoer, 1992; Vieira, 2004). Uma das principais questões abordadas é a dos “efeitos” da presença da sociologia nestes cursos, geralmente vistos como benéficos mas, por vezes, de alcance muito limitado (Almeida, 1992). Tanto Cortesão (1992) como, uma década mais tarde, Vieira (2004) concluem que a sociologia tem bastante importância na formação dos professores, sobretudo pelo seu contributo para o desempenho bem- sucedido das suas funções profissionais.

5 Outra abordagem ao ensino da sociologia fora do espaço sociológico é a identificação e observação de possíveis constrangimentos ou dificuldades sentidos pelos professores que a lecionam. Os autores referem o contacto único e pontual e a temporalidade reduzida da disciplina (Vieira, 2004); a necessidade acrescida de seleção e condensação de saberes (Vieira, 2004); o contacto com o pluralismo teórico característico da sociologia, por poder ser visto como algo de estranho e muitas vezes indutor de suspeitas quanto à sua cientificidade (Sebastião, 2004; Vieira, 2004); e, ainda, uma localização periférica ou secundária da sociologia nos cursos (Esteves, 2004).

6 Tais dificuldades constituem um desafio à relação pedagógica e levantam problemas de legitimação da presença da sociologia nos cursos (Pinto, 1994; Esteves, 2004). De acordo com Esteves (2004: 67), nestes casos, a estratégia a utilizar deve ser tornar força pedagógica a fraqueza curricular da sociologia, que poderá ser desenvolvida pelo estabelecimento de um programa explicitamente formulado numa lógica de afinidades eletivas com paradigmas que, transdisciplinares, são menosprezados ou totalmente esquecidos pelos paradigmas dominantes e excludentes das disciplinas centrais do curso. Por seu lado, Pinto (1994) dá especial importância ao desenvolvimento dos problemas técnico-metodológicos da pesquisa sobre situações concretas, com especial incidência na fase da recolha de informação. O autor refere que os fatores que influenciam as opções pedagógico-didáticas na cadeira são: a dinâmica de transformação dos sistemas de aspirações socioprofissionais e dos perfis da procura de

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saberes predominantes na população discente universitária; circunstancialismos vários ligados a imposições administrativas quanto a planos de curso, regimes de aulas, dimensão das equipas docentes e formação académica, pedagógica e profissional dos seus elementos; e, finalmente, o tipo de preparação obtida pelos estudantes no ensino secundário, bem como algumas tradições e rotinas instaladas na universidade em matéria de ritmos de lecionação e de avaliação de conhecimentos (Pinto, 1994: 49-50).

7 Encontramos também algumas referências às vantagens e desvantagens percebidas pelos alunos de outras áreas científicas na aprendizagem da sociologia. Sebastião (2004: 130) afirma que aprender sociologia não é apenas dominar um conjunto de conceitos ou técnicas, mas construir no aluno uma progressiva maturidade reflexiva, capaz de o levar a compreender a relação entre as particularidades da atividade científica em ciências sociais e a complexidade da vida social. Para Vieira (2004: 145), as três principais dificuldades de entendimento da sociologia por parte dos alunos em cursos de ciências exatas e naturais, são: o caráter pluriparadigmático das ciências sociais, em contraste com o sólido uniparadigmatismo que parece dominar a prática científica nas ciências exatas e naturais; a compreensão do sentido, ou seja, sobre o estatuto da subjetividade dos atores sujeitos do conhecimento, já que nas “suas” ciências não existem atores-sujeitos reflexivos; e por fim, a questão da validade dos resultados em ciências sociais e humanas, não tendencialmente universalista, como nas “ciências duras”, mas fundamentada numa “epistemologia dos domínios de validade” de alcance mais limitado.

8 Realizou-se um levantamento[2]dos cursos do 1.º ciclo[3]do ensino superior português (anos letivos de 2012/2013 e 2013/2014) que facultam uma ou mais unidades curriculares na área da sociologia, semelhante ao efetuado há duas décadas por Resende e Vieira (1993). Foi então criada uma listagem que inclui informação sobre a instituição de ensino superior, o nome do curso e o grau correspondente, o nome da(s) disciplina(s) lecionada(s), o tipo de obrigatoriedade de frequência de cada disciplina e o ano curricular em que é lecionada. Foram contabilizadas 106 instituições, entre universidades, academias, escolas e institutos superiores, que têm pelo menos um curso (licenciatura ou mestrado integrado) em que a sociologia é lecionada (estando excluídos os cursos específicos desta área): 14 no sistema público universitário, 22 no sistema público politécnico, 3 no regime militar e policial, 28 no sistema privado universitário e, por fim, 39 no sistema privado politécnico. Foram contabilizados 655 cursos com as especificações indicadas, assim distribuídos: 170 no ensino público universitário, 216 no ensino público politécnico, 8 no ensino militar e policial, 165 no ensino privado universitário e, por fim, 96 no ensino privado politécnico.

9 Em seguida, procedeu-se à caracterização dos cursos por áreas científicas, com recurso à classificação mais agregada de domínios da educação e formação utilizada na ISCED (2013),[4]concluindo-se que a maior parte se encontra na área de saúde e bem-estar (148 cursos, 22,6% do total). Com valores próximos, surgem as áreas de gestão, administração e direito (111 cursos, 17,0% do total); ciências sociais, jornalismo e informação (107 cursos, 16,3% do total); e artes e humanidades (99 cursos, 15,1% do total). A meio, encontramos cursos das áreas de serviços (63 cursos, 9,6% do total), engenharia, manufatura e construção (56 cursos, 8,6% do total) e educação (44 cursos, 6,7% do total). Por fim, com muito poucos casos, temos as áreas de ciências naturais, matemática e estatística (13 cursos, 2,0% do total); tecnologias da informação e da

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comunicação (10 cursos, 1,5% do total); e agricultura, silvicultura, pescas e veterinária (4 cursos, 0,6% do total).

Considerações metodológicas

10 A informação recolhida sobre a presença da sociologia no ensino superior permitiu fazer a seleção dos cursos / instituições para realização das entrevistas de forma informada, contemplando as diferentes áreas ISCED e tendo em atenção a sua distribuição por subsistemas de ensino. Em primeiro lugar, optou-se por eliminar o sistema de ensino superior militar e policial, não só pela sua especificidade, como pelo reduzido número de casos que apresenta; em segundo lugar, tomou-se a decisão de agregar as áreas de ciências naturais, matemática e estatística, tecnologias da informação e da comunicação, e agricultura, silvicultura, pescas e veterinária numa nova classificação — “outras áreas”, devido ao reduzido número de casos em cada uma das categorias. Por último, de forma a avançar para o trabalho de campo, calculou-se o número ideal de cursos por área e sistema de ensino com vista a respeitar a proporção real anteriormente calculada (Egreja, 2014), mas sem preocupações de representatividade.

11 O guião de entrevista utilizado foi construído de raiz, debruçando-se sobre os seguintes tópicos: caracterização pessoal e institucional; presença e avaliação da sociologia no curso; considerações sobre o ensino da disciplina; expectativas de competências adquiridas e de contributo para a inserção profissional e futuras funções dos alunos; e perspetivas sobre os motivos de escolha da disciplina e aspetos mais e menos valorizados pelos alunos. À margem das questões do guião, outros temas de interesse foram abordados pelos entrevistados, uma vez que as entrevistas seguiram um método semidiretivo (Quivy e Campenhoudt, 1998).

12 O trabalho de campo decorreu de setembro de 2014 a junho de 2015, e foram realizadas 32 entrevistas em 17 cursos (em instituições de norte a sul do país), cujas características podem ser consultadas no quadro 1. Em alguns casos, não foi possível realizar entrevistas ao par docente / diretor no mesmo curso, enquanto noutros se entrevistou mais que um docente, pelo facto de haver oferta de mais que uma disciplina da área da sociologia.

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Quadro 1 Caracterização dos entrevistados por área ISCED e sistema(s) de ensino

Caracterização dos entrevistados

13 Os docentes que foram entrevistados têm entre 34 e 62 anos de idade (média de 50 anos), nove são homens e dez são mulheres. A maioria tem formação de base em sociologia, embora se verifique que alguns estudaram outras áreas (docentes G, K, L, N2, O, Q).[5] Em média, os docentes exercem as suas funções há cerca de 11 anos, havendo porém casos em que se encontram no cargo há apenas um ano, como outros que rondam as três décadas.

14 Os diretores / coordenadores de curso que foram entrevistados têm entre 37 e 71 anos de idade (média de 54 anos), cinco são homens e oito são mulheres. Nenhum deles tem formação de base em sociologia. Em média, os diretores exercem as suas funções há cerca de cinco anos, havendo porém casos em que se encontram no cargo há apenas um ano, como outros perto das duas décadas.

Presença e avaliação da sociologia no curso

15 A maioria dos cursos leciona uma disciplina de sociologia desde a sua criação (cursos A, B, C, D, H, I, K, M, N); nalguns casos, a sociologia foi introduzida com a reestruturação de Bolonha, em 2006 (cursos E, Q).

16 Questionados sobre os motivos de inclusão da sociologia, os diretores (e alguns docentes que também se pronunciaram sobre o assunto) referem sobretudo a necessidade de estudar as questões centrais dos vários cursos como fenómenos sociais (docente H1; diretores A, H) e a importância de mobilizar várias áreas do saber na formação dos alunos (docentes E, G; diretores C, E, K, M, Q). Sociologia em geral, portanto, nós trabalhamos e visamos nos nossos estudantes o desenvolvimento de competências técnicas, científicas, relacionais, entre outras.

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Mas visando os cuidados ao doente, à família, inseridos na comunidade. Ora a sociologia é imperativa, não é? Portanto, os fenómenos sociais, a inserção social dos nossos utentes, da família… Todas as implicações que a sociedade tem no processo saúde/doença do indivíduo, não é verdade? Portanto é fundamental, é determinante que tenhamos uma unidade curricular que, enfim, aborde essas temáticas de uma forma mais geral ou mais específica. [Diretora A, SBE] Foi o espírito de Bolonha, digamos. O espírito de Bolonha tinha um pouco a ver com isso, que era as pessoas terem, para além de disciplinas da sua área de formação — que neste caso incluía disciplinas de matemática, informática e estatística —, deveriam incluir também disciplinas de áreas mais abrangentes, e que portanto lhes pudessem abrir os horizontes em relação a outras matérias. [Diretora Q, OA]

17 Nalguns casos é referida a importância da “visão” dos fundadores dos cursos ou da “tradição” multidisciplinar das instituições de ensino superior em que se inserem (diretor e docente D; docente B1 e diretora B; diretora J; docente P). No entanto, nem todos os diretores souberam responder a esta questão (diretores F, L, N).

18 Tendo sido pedido que fizessem uma avaliação da presença da sociologia no curso, docentes e diretores têm visões semelhantes — embora, mais uma vez, alguns diretores não elaborem muito a sua opinião (diretores F, L, Q). A perspetiva mais comum é a avaliação positiva, sem reservas ao sentido que faz no curso e na formação dos alunos (diretor e docentes H; diretora e docente C; diretores A, D, E, N; docente O), tendo até bastante peso em dois cursos (C e N). Outro tipo de asserção muito comum é uma avaliação positiva mas afetada pelo pouco interesse ou resistência dos alunos (docentes D, I, K, L, Q; diretora e docentes B; diretora M). Faço uma avaliação talvez um bocadinho ambivalente. […] Tratava-se de uma valência importante que era necessário preservar no curso de forma a que, enfim, os estudantes pudessem ter essa vertente no seu currículo. No que diz respeito aos efeitos práticos disso, quando digo que é ambivalente é porque ao nível da disciplina junto dos estudantes […] é muito frequente haver vários tipos de, não só de equívocos, mas mais de anticorpos. [Docente B2, SBE] Acho que a avaliação é positiva. Tem alguns obstáculos. Porque, nesta faculdade, escola, universidade, há uma maior preponderância da parte prática. Têm muito o ensino mais voltado para a prática e eu acho que os próprios alunos já vêm com essa expectativa. E quando surgem cadeiras teóricas ficam com um grande sentido de rejeição, OK? [Docente L, AH]

19 Porém, independentemente da importância que os entrevistados possam atribuir à inclusão da sociologia no curso, vários deles — quase exclusivamente docentes — referem que a sua presença tem vindo a diminuir (por exemplo, os docentes A, B1, M, O e P referem que a sociologia diminuiu no curso após o processo de Bolonha) e/ou receiam que possa vir a ser cortada no futuro, pelo facto de haver vozes contra a sociologia, jogos de poder dentro da instituição ou por ser essa a direção que ultimamente as políticas educativas têm tomado (docentes B1, B2, L, K, N1, N2, O; diretor E). Quer dizer, a única coisa que eu posso acrescentar de contexto, é que a tendência — pelo menos aqui nesta universidade, não sei como é que é nas outras — é para se ir, cada vez mais, empobrecendo o leque de optativas que os alunos têm. […] Portanto, não me admiraria muito que se nós viermos a falar daqui a cinco anos, que a disciplina entretanto possa ter caído, está a perceber? Mas eu penso que isto acontece aqui, como acontece na maior parte das universidades. E infelizmente tenho a sensação que as disciplinas que marginalmente podem chamar os alunos para a área do pensamento, ou do pensamento crítico, são essas que realmente estão a ser cortadas, mais rapidamente cortadas. [Docente K, AH]

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20 Nós temos assistido é ao desaparecimento da sociologia da estrutura curricular dos cursos. […] quando houve a passagem de bietápico para licenciatura de quatro anos, as unidades curriculares que acabaram por sair foram as ligadas às ciências sociais e humanas, nomeadamente, a sociologia, a psicologia e outras áreas afins. A própria antropologia. […] Também os próprios sucessivos governos têm valorizado o ensino superior politécnico mais técnico. E tem-se assistido sempre a ter que cortar em unidades curriculares e acabam por ser sempre as nossas. Antigamente, tínhamos aqui uma carga horária significativa e, entretanto, tem vindo a diminuir. [Docente M, serviços] Eu sinto que há muita gente que está incomodada com o peso que nós temos […]. Acham que nós estamos demasiado envolvidos em tudo o que é cursos e devíamos ser postos no nosso lugar, não é. Sinto isso. Sinto. E, portanto, sempre que apanham uma oportunidade de nos desalojarem, se essa oportunidade surgisse não tenho dúvidas que o fariam. [Docente N2, educação]

21 Verifica-se também a tendência de substituição por outras ciências sociais, sobretudo pela psicologia (docentes B1, D, M). Por outro lado, é importante que a sociologia não seja redundante face a outras disciplinas (diretor H; docentes H2, N1). Alguns dos entrevistados também chamam a atenção para o facto de, em certos casos, a presença da sociologia não se limitar às disciplinas com esta designação específica (docentes N1, N2).

22 Questionados sobre se os alunos destes cursos terão alguma vantagem relativamente a alunos de cursos semelhantes, noutras instituições, mas onde a sociologia não é lecionada, a maioria dos entrevistados considera que os cursos da mesma área também oferecem este tipo de disciplinas, pelo que a situação não se aplica. Porém, nas áreas da saúde e bem-estar (diretora e docente D, diretora e docentes B, diretora A), engenharia, manufatura e construção (docentes O, P), artes e humanidades (docente L; diretores K, J) e outras áreas (diretora Q), tendencialmente consideram que sim. Agora, claro que os alunos que saem desta faculdade — os de engenharia — têm um perfil diferente dos outros. Portanto, são alunos que têm uma preparação, em termos de conhecimento, em áreas de ciências sociais, muito maior do que os outros, o que significa que isso tem sido de certo modo explorado pela própria escola, que diz que eles de facto são habilitados não só para os aspetos meramente técnicos, mas para uma visão mais holística dos problemas do desenvolvimento da tecnologia. [Docente P, EMC] […] eu acho que tudo o que nós lhes possamos oferecer em termos de outras áreas que não só aquela da qual somos peritos, digamos, entre aspas, poderá ser-lhes útil, e eu acho que a sociologia é uma dessas áreas. Acho que realmente constitui uma mais-valia. Aliás, eu acho que outros cursos […] que estejam integrados noutras faculdades que não têm valências tão distintas como a nossa, não conseguem nunca ser tão ricos para eles como é o nosso aqui. [Diretora Q, OA]

Considerações sobre o ensino da disciplina

23 Os docentes foram questionados sobre se sentiam alguma dificuldade em particular no ensino desta disciplina aos alunos, nomeadamente pelo facto de muitos virem, provavelmente, de áreas do secundário onde não tiveram contacto com a sociologia — o que, por si só, é visto como uma dificuldade: tratando-se de uma área algo distante dos seus interesses, os alunos costumam manifestar alguma resistência inicial (docentes B1, D, E, H2, M, Q).

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24 Além desta situação, a principal dificuldade referida pelos docentes advém da conjugação de uma série de limitações intelectuais que são apontadas aos alunos e com as quais se defrontam: fracos hábitos de leitura e escrita (redundando em dificuldades de interpretação e desenvolvimento de raciocínios); dificuldade em trabalhar em grupo e em discutir ideias; falta de cultura geral; fortes componentes de passividade e imaturidade (docentes A, B2, C, I, K, L, N2, O). As dinâmicas vão mudando, porque as gerações vão sendo muito diferentes… as minhas aulas agora não têm nada que ver com as minhas aulas de há dez anos atrás, ou há 15 anos atrás, […] agora eu tenho alunos que se sentam, querem ouvir, que ficam muito perturbados se formos para além desta dinâmica um pouco escolástica… tenho cada vez mais dificuldade em ter debates em sala se não forem pré-programados, e se forem pré-programados não funcionam porque para serem pré-programados tinham de ser preparados e há alguma dificuldade em ler, em fazer essas coisas normais da vida de um estudante… [Docente I, CSJI] Sinto dificuldade inerente ao facto de estarem muito pouco habituados a ler, não dominarem a bibliografia básica, e portanto há ali um primeiro momento que é estar a dar conceitos a um nível muitíssimo básico. [Docente K, AH]

25 Este tipo de crítica, além de bastante alargado, surge muitas vezes espontaneamente, sem que tenha sido colocada nenhuma questão nesse sentido, e também encontramos diretores que se pronunciam a este respeito (diretores B, K).

26 O que também causa alguma dificuldade aos docentes é o facto de a sociologia ser muitas vezes vista como uma “ciência da mesa de café” (docentes A, C, H1, M, N3). Sabe qual é o problema da sociologia? É facilmente uma ciência de mesa de café. Qualquer pessoa sabe falar sobre o social, sobre o que é que é importante, o que não é, o que levou a pessoa a fazer aquilo, o que é que não levou, está a perceber? E, portanto, os meus alunos não são… não são isentos dessa lógica da sociologia da mesa de café. E eu escrevo-lhes muitas vezes nas anotações dos testes: “não estamos à mesa do café ou à mesa do bar a discutir estes conceitos, isto é senso comum”. [Docente C, SBE] Quando nós vamos para sociologia, nós vamos porque gostamos ou porque temos predisposição para. E portanto, nós vamos tirar um curso de sociologia e, pronto, é aquilo que a gente gosta e aquilo que a gente quer. E estamos virados para aí. Nestes cursos, os alunos não estão virados para aí. Estão muito longe do social. O social faz parte daquela coisa normal, até se pode falar num café, para quê se explicar sociologia? Há a sociologia do senso comum. A gente explica tudo. Para quê? Não há muitas diferenças, não é? [Docente H1, CSJI]

27 Em parte derivando de críticas anteriores, alguns docentes referem também a dificuldade em fazê-los pensar, raciocinar, romper com o senso comum (docentes A, C).

28 Porém, também houve docentes (sobretudo nas áreas da educação e engenharia) que indicaram não sentir qualquer dificuldade no ensino da disciplina (docentes G, N1, N3, O, P).

29 Vários entrevistados referem que a disciplina é mais bem recebida (e compreendida) pelos estudantes em regime pós-laboral[6] ou ao nível de mestrados e doutoramentos, pois a idade e experiência profissional mais avançadas incutem uma maior maturidade aos alunos que lhes dá uma perspetiva diferente, pelo que estes alunos compreendem melhor a “utilidade” da disciplina e são também mais participativos nas aulas (diretor e docente E, diretor F, docente B1). Contrariando esta perspetiva, a docente C pensa que os alunos mais velhos têm mais dificuldade em desmontar as ideias de senso comum.

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Expectativas de competências adquiridas e contributo para a inserção profissional e futuras funções dos alunos

30 As principais competências que os docentes esperam que os seus alunos adquiram são — além da apreensão dos conceitos-chave da disciplina, naturalmente — o desenvolvimento da capacidade crítica, reflexiva, e o rompimento com o senso comum (docentes B1, B2, C, D, E, H1, I, L, M, N1, N2, N3). Não sei se eles desenvolvem ou não, mas desejaria que eles desenvolvessem competências sobretudo de análise crítica, de reflexão crítica. Mais do que qualquer outra coisa. Não desejaria nem esperaria que se transformassem em sociólogos, ou que desenvolvessem um ponto de vista próximo do dos sociólogos, não me interessa. Mas que aprendessem a ler a realidade e, sobretudo, a criticar; a olhar com um olhar mais crítico, portanto, menos passivo, a realidade e as coisas que lhes são ditas. [Docente I, CSJI] O que é que a sociologia dá? Dá, deve dar em primeiro lugar capacidade de análise, de reflexividade, de sensibilidade social, de compreensão, de explicitação, uma capacidade discursiva, de argumentação sociológica, não é. Digamos, com força, poderosa, não é, capacidade de interpretar, convencer, participar nos debates. Capacidade de fundamentar e de identificar, digamos, os fatores isolados ou inter- relacionados, a tal constelação de fatores que muitas vezes está por detrás dos fenómenos, de dinâmicas, de comportamentos individuais ou coletivos, não é, isso é muito importante. [Docente N3, educação]

31 São também referidas a aquisição de uma perspetiva das áreas de estudo enquanto fenómenos sociais (docentes B1, B2, C, D, G, H2, O, Q), o desenvolvimento de capacidades de escrita e de leitura, de trabalho em grupo e de exposição oral (docentes D, K, N3, P). Menos comuns, mas também indicadas, são as competências para a futura atividade profissional (docentes A, B1). […] há também aqui um conjunto de lógicas que está a mudar e portanto é dizer: “Olhem, compreender isto é ter a possibilidade de saber analisar criticamente os fenómenos que vão caracterizar a vossa prática e é, em termos profissionais, ser um técnico preparado para lidar com a diversidade de situações que, sem surpresa, poderão vir a acontecer”. [Docente B1, SBE] Se eles saírem daqui com a noção de que a dimensão social é tão ou mais relevante que a dimensão técnica, e que as coisas não estão desligadas, isso para mim era ouro sobre azul. Quando eles pensam em políticas, quando pensam em técnicas, quando pensam em tecnologias, nada dessas coisas são socialmente neutras, logo estão articuladas. [Docente O, EMC]

32 É também comum o reparo de que nesses cursos não se estão a formar sociólogos, pelo que as expectativas em termos de competências adquiridas ao nível da sociologia são bastante moderadas (docente I, diretor e docentes H). E a própria noção de “competências” é muitas vezes questionada pelos entrevistados.

33 Colocando a mesma questão aos diretores, vários não sabem como responder (diretores F, J, L, Q). No entanto, aqueles que oferecem a sua opinião referem sobretudo o desenvolvimento da capacidade crítica e analítica dos fenómenos (diretores B, C, H, K, M, N), assim como o desenvolvimento de competências inter-relacionais (diretores C, D, E) e de utilidade para o futuro profissional (diretoras A, D) — o que não deixa de ser uma visão um pouco diferente da dos docentes. Obviamente, depois por outra vertente, também a relação entre profissionais e entre toda a equipa de profissionais de saúde e os seus pares. Também desenvolver

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competências nesta área de estar com os outros. E de estar em comunidade, saber trabalhar em equipa e saber respeitar o outro. [Diretora D, SBE]

34 Eu espero que eles consigam perceber que para se inserirem no mundo do trabalho têm que ter algumas competências… vamos chamar-lhes inter-relacionais, enfim, competências de inter-relação com os outros e de adaptação à própria cultura organizacional, que podem ser adquiridas, sensibilizando-os para os temas, lecionando aulas essencialmente práticas, com casos práticos, com recurso a vídeos, com recurso a filmes, que lhes permitam perceber melhor como é o mundo do trabalho […]. [Diretor E, GAD]

35 Entre os docentes, as opiniões dividem-se sobre se as disciplinas de sociologia poderão ter algum contributo para a inserção profissional dos alunos. Mais comummente, acreditam que poderá ter importância, mesmo que de uma forma indireta, através do alargamento de horizontes (docentes D, E, K, L, M, N2, O, P). Outros são otimistas mas advertem que depende do empregador (docentes B1, B2, H1, H2, N3). Portanto não é um contributo direto, penso eu, para a inserção; são contributos mais de pré-empregabilidade, quase. De apoio à empregabilidade. Não vejo que isto lhes seja diretamente útil eles irem para lá dizerem que tiveram sociologia das organizações, não será bem por aí. [Docente E, GAD] Quer dizer, há duas perspetivas. Há a nossa e poderá haver a da entidade empregadora que poderá olhar para o currículo e achar interessante que o aluno tenha tido uma formação naquela área e que seria pertinente. Mas também depende de quem é o empregador e de qual é a sua formação. Para nós, enquanto formadores, enquanto instituição, para nós é importante que os alunos saiam com este olhar… com esta capacidade de olhar para a sociedade e vê-la de uma forma mais global. [Docente H1, CSJI] Mas normalmente aqueles [ex-alunos] que eu conheço e que têm dado esse feedback, normalmente é muito positivo, porque dizem justamente que nas empresas, quando eles querem ir trabalhar, o que lhes pedem, é claro que tenham essa formação de engenharia em geral, mas o facto de ter uma formação em ciências sociais é o que lhes permite ser diferentes de outros e serem capazes de colaborar com departamentos ou com áreas das empresas que usualmente os engenheiros não têm capacidade. [Docente P, EMC]

36 Porém, há também docentes que não acreditam que a sociologia poderá ter alguma importância na inserção profissional dos alunos (docentes C, G, N1).

37 Já os diretores manifestam-se pouco, geralmente não têm uma ideia concreta sobre o assunto (diretores A, B, F, J, N), ou são mais pessimistas (diretores C, E, H, L, M, Q). Poucos manifestam uma opinião cautelosamente otimista (diretores D, K).

38 Quanto ao possível contributo da sociologia para as funções profissionais que os alunos poderão vir a desempenhar no futuro, na maior parte, docentes e diretores acreditam que a disciplina tem importância, mesmo que indiretamente — de tal forma que é mais simples enunciar aqueles que não têm uma opinião formada ou consideram que não existe nenhum contributo significativo (diretores F, L, N, docente N1). Acho que sim, na compreensão do outro. A compreensão de por que é que eu me comporto daquela forma […]. Por outro lado, também a sociologia tem a componente de, muitas vezes nós, profissionais de saúde, não conseguimos viver isolados. Vivemos sempre em equipa, sempre em inter-relação; não há outra forma. Eu costumo dizer: em saúde são equipas multidisciplinares, cada vez maiores. […] E portanto tudo isso, eu acho que o facto de se eles encarassem a sociologia desta forma, eu acho que era mais fácil a sua entrada no mundo de trabalho, o seu estágio, etc., toda essa relação era mais fácil. [Diretora B, SBE]

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39 Porém, alguns docentes têm uma posição muito particular, em que rejeitam a avaliação utilitarista da disciplina (docentes I, N2). Mas se a disciplina tem ou não tem contributo futuro, para o futuro profissional, interessa-me pouco. Eu não estabeleço nenhuma relação utilitária entre as disciplinas que são lecionadas na universidade, num curso universitário, e depois o futuro profissional. […] Quando eles manifestam esse tipo de preocupação eu procuro desconstruir isso e faço-lhes o discurso que estou a fazer aqui, e dizer-lhes que se eles quisessem de facto aprender aquilo que vão pôr em prática, iam para um curso de formação profissional, não vinham para aqui. Aqui, vêm desenvolver-se como pessoas, vêm aprender a pensar, aprender a olhar a realidade e se eu puder contribuir para isso, por pouco que seja, já me sinto feliz. [Docente I, CSJI] Há uma ideia ainda muito utilitarista da educação e mesmo os próprios colegas que trabalham essas questões tentam, no fundo, dar-lhes o que chamam as competências para trabalhar, as competências para se adequarem ao mercado de trabalho e eu penso que devemos fazer ao contrário. Eu costumo dizer nas aulas até a propósito de uma pergunta que eles me fizeram: “Para que é que isso serve professor? Não serve para nada, aquilo que eu vos digo não tem nenhum tipo de utilidade e portanto não serve para nada, não é para levar a sério.” E acho que a educação é isso mesmo, não deve servir para nada, não tem que ter utilidade. A utilidade é uma outra questão e, portanto, se quiserem refletir sobre a vida, sobre o mundo, a essa reflexão estamos abertos. [Docente N2, educação]

40 Também houve referências ao facto que muitas vezes os ex-alunos, depois de entrarem no mercado de trabalho, transmitem um feedback positivo dos ensinamentos que receberam nestas aulas, pois frequentemente só mais tarde é que conseguem verdadeiramente entender a sua pertinência (diretora B e docente B2, diretora e docente D, docentes M, P).

Perspetivas sobre os aspetos mais e menos valorizados pelos alunos

41 Apesar de se tratar de disciplinas muito variadas dentro da área científica da sociologia, os docentes têm uma visão semelhante sobre este assunto: praticamente todos referem que o aspeto mais valorizado pelos alunos são as próprias temáticas lecionadas, sobretudo quando relacionadas com os seus interesses e ilustradas com exemplos ou trabalhos práticos. Alguns docentes referem também como aspeto muito valorizado a utilização de métodos pedagógicos que tornem as aulas mais dinâmicas, nomeadamente o recurso a vídeos e outros meios audiovisuais (docentes Q, N1). Por vezes, o facto de ser uma unidade curricular diferente também pode ser interessante para os alunos (docentes D, M).

42 Quanto aos aspetos menos valorizados pelos alunos na perspetiva dos docentes, surge de forma bastante alargada a referência ao caráter teórico da disciplina (docentes B2, C, D, G, H1, H2, I, K, L, M, N1, N2). Aqui, o sentido de “teórico” pode referir-se a vários aspetos, como por exemplo as aulas serem muito expositivas, os conceitos estudados serem muito abstratos ou, sobretudo, existir um corpo de autores clássicos cujas perspetivas teóricas enquadram a disciplina e devem ser apreendidas. Tudo o que for explicações, conceitos, noções mais abstratas, mais difíceis de chegar, de certa maneira, ao concreto do quotidiano, do dia a dia, para eles é o mais desvalorizado. Se for alguma coisa que não compreendam, não tem valor, percebe? […] Se eu começar pelo abstrato eu sei que perco a turma em cinco minutos. [Docente C, SBE]

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Primeiro, eles têm expectativas muito práticas. O nosso conceito central é o conceito de sociedade, que é um conceito altamente abstrato, não é? Portanto a cadeira é uma cadeira estranha para eles, exatamente por causa deste nível teorético. […] Um outro problema é a estrutura normativa. […] Portanto uma estrutura normativa muito rígida no ensino nas áreas da saúde confronta-se muito com a abordagem pluriparadigmática que eu dou. [Docente D, SBE] A sociologia é uma ciência que, ao contrário de outras, os nossos teóricos são algo complexos. E é difícil falarmos, por exemplo, de classes sociais, sem referirmos os clássicos e fazer aquela evolução. E isso, para este tipo de alunos, para este público, é, utilizando um conceito que eles utilizam muitas vezes, secante. Portanto eles precisam e é preciso articular rapidamente os conceitos, se calhar, com um artigo que já tenha dados empíricos. [Docente M, serviços]

43 A questão da teoria é sobretudo importante quando os cursos são lecionados em institutos politécnicos; aqui sente-se alguma diferença face ao ensino universitário e os entrevistados fazem constantemente essa ressalva. Existe alguma dualidade na tentativa de equilibrar a visão mais prática dos cursos com o contributo que as disciplinas mais teóricas também dão. E isso nota-se no curso do seguinte modo: ele é politécnico, OK? Sem dúvida. E portanto procura dirigir os alunos para campos um pouco mais específicos de aplicação. Mas […] em determinadas áreas das humanidades e das ciências sociais, não pode deixar de lhes dar uma boa formação teórica. Mesmo sendo um curso politécnico. Ou seja, não é um curso só de maquinetas e de aparelhómetros, OK? É um curso em que, pelo menos, na fase inicial e intermédia, a formação teórica é absolutamente essencial. [Diretor H, CSJI] E compreende-se, porque os próprios alunos que nós temos estão a fugir da teoria, eles procuram cursos mais práticos mesmo a todos os níveis. É um discurso frequente que “se nós quiséssemos refletir teorias, teorizar, trabalhar teoria, se calhar, não estávamos aqui, estávamos noutro sítio”. [Docente M, serviços]

44 Outro aspeto menos valorizado — e que acaba por estar relacionado com o anterior — é a necessidade de fazer leituras, mais ou menos extensas, e que podem ter ainda a dificuldade acrescida de não serem em português, o que provoca algum desânimo nos alunos (docentes B1, N1, N2, Q).

45 Em consequência do caráter mais expositivo e teórico da sociologia, e pela particularidade de se tratar de uma área científica muitas vezes distante da área central do curso, surge com frequência a necessidade de se proceder a uma adaptação pedagógica (docentes D, H1, N1, N3, P). Em resultado, os docentes tentam recorrer a muitos exemplos práticos e à simplificação do ensino dos conceitos mais abstratos. Mas é realmente esta a luta que nós temos: equilibrar entre a teoria e a dimensão prática sem que uma descure a outra, obviamente, nem o rigor científico, mas, ao mesmo tempo, não perder o público. Porque senão a gente perde o público e eu acho que esse também não é um bom trabalho que a gente faz para a sociologia. [Docente H1, CSJI] Quer dizer, se eu desse aulas só a falar em teorias sociológicas, os alunos acabavam por adormecer e aborreciam-se com isso. Apesar de tudo, a estratégia pedagógica não pode ser essa, não é dar sociologia como se os alunos fossem estudantes de sociologia. Eles estão ali para aprender conceitos básicos, mas eles podem ser dados de uma maneira diferente e acabamos por chegar a atingir os objetivos que são necessários […]. [Docente P, EMC]

46 No entanto, esta “simplificação” também deve ser encarada com cautela, pois pode ter efeitos secundários indesejados, como a perda de rigor científico. Às vezes lembro-me quando o Sedas Nunes dizia, e o Durkheim também, muitas vezes se chegou a falar nisso, “o que a sociologia pode perder em popularidade,

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ganhá-lo-á em dignidade”. Para nós, isso é importante. Ou seja, não é dizer que somos herméticos, até porque fazemos um esforço para não ser; mas evitamos fazer o populismo da sociologia, a propaganda da sociologia. [Docente B1, SBE] Eu acho que a única diferença e, por isso, é que temos alguma dificuldade, é que a sociologia na forma como nós a lecionamos, principalmente em cursos com componentes significativamente práticos, é que temos que aligeirar o processo das teorias. E depois, a partir de certa altura, acabamos por transmitir uma imagem de uma sociologia, mas de uma sociologia — isso é uma análise que eu faço — de uma sociologia algo superficial. De uma sociologia que se confunde com… com algo pouco científico, com algo pouco estruturado, com algo que não tem bases teóricas fortes. [Docente M, serviços] Eu acho que estamos a simplificar demasiado o exercício da docência e da… em cada uma das unidades, estamos a transformar isto quase num curso profissional de nível superior. E isso pode ser problemático. [Docente N2, educação]

Reflexões finais

47 A presença da sociologia nos cursos em foco é, no geral, bastante antiga e consolidada. Em vários casos, a sua inclusão deveu-se à “visão” dos fundadores dos cursos ou de uma determinada tradição das instituições, que valorizam a vertente multidisciplinar do ensino superior. A presença da disciplina é assim vista como sendo importante no âmbito dos cursos, ao permitir abordar os temas centrais lecionados como fenómenos sociais e desenvolver o sentido crítico nos alunos.

48 No entanto, na perspetiva dos entrevistados, a presença da sociologia tem vindo a diminuir, ou é expectável que venha a ser cortada no futuro, em grande parte dos cursos, possivelmente em favor da substituição por outras ciências sociais — esta é uma preocupação manifestada quase exclusivamente pelos docentes. Sabendo que entre os anos letivos de 1989/1990 e de 2013/2014 houve uma expansão considerável da oferta de disciplinas de sociologia em cursos de outras áreas de formação no ensino superior português (Egreja, 2014), novas interrogações surgem: será que a presença da sociologia atingiu o seu auge antes da implementação do Processo de Bolonha, havendo então lugar a um corte significativo desta oferta? E após a sua implementação, a tendência tem sido realmente de decréscimo? Para poder determinar até que ponto a opinião dos entrevistados corresponde, de facto, à realidade, novas análises terão de ser levadas a cabo.

49 Os docentes referem que as dificuldades que normalmente surgem no ensino da disciplina são a falta de hábitos de escrita e leitura dos alunos, o seu baixo nível de cultura geral e imaturidade, acentuados de ano para ano — na verdade, estas são críticas apontadas várias vezes de forma espontânea, tanto pelos docentes como pelos diretores de curso, transversalmente aos vários cursos e tipos de instituições de ensino. Diretamente relacionados com a área da sociologia, surgem alguns reparos ao facto de esta ser muitas vezes vista como uma “ciência da mesa de café” e que, como tal, traz maiores dificuldades a quem não tenha interesse pela área.

50 Questionados sobre as competências que gostariam que os alunos adquirissem, docentes e diretores destacam o desenvolvimento da capacidade crítica e reflexiva; o rompimento com o senso comum; a aquisição de uma perspetiva das áreas de estudo enquanto fenómenos sociais; o desenvolvimento de capacidades de escrita e de leitura, de trabalho em grupo e de exposição oral; e, menos frequentemente, o

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desenvolvimento de competências inter-relacionais — se bem que o próprio conceito de “competências” seja por vezes desvalorizado.

51 Os entrevistados foram ainda confrontados com o possível contributo da disciplina para a inserção profissional e futuras funções a desempenhar nesse contexto. De um modo geral, a opinião é bastante indicadora de um contributo favorável, ainda que indireto (e, a espaços, até questionando se a pertinência da sociologia deve ser colocada nesse tipo de assunções utilitaristas).

52 Por fim, apesar de se tratar de disciplinas muito variadas dentro da área científica da sociologia, os diferentes docentes têm uma visão semelhante sobre qual será o aspeto mais valorizado pelos alunos: as próprias temáticas lecionadas, sobretudo quando relacionadas com os seus interesses e ilustradas com exemplos ou trabalhos práticos. Alguns docentes referem também como aspeto muito valorizado a utilização de métodos pedagógicos que tornem as aulas mais dinâmicas, nomeadamente o recurso a vídeos e outros meios audiovisuais. Quanto aos aspetos menos valorizados pelos alunos na perspetiva dos docentes, surge de forma bastante alargada a referência ao caráter teórico da disciplina; aqui, o sentido de “teórico” pode referir-se a vários aspetos, como por exemplo as aulas serem muito expositivas, os conceitos estudados serem muito abstratos ou, sobretudo, existir um corpo de autores clássicos cujas perspetivas teóricas enquadram a disciplina e devem ser apreendidas. Outro aspeto menos valorizado — e que acaba por estar relacionado com o anterior — é a necessidade de fazer leituras, mais ou menos extensas, e que podem ter ainda a dificuldade acrescida de não serem em português.

53 Comparando as opiniões de diretores e docentes no mesmo curso, vemos na verdade que, na maior parte dos casos, se encontram em sintonia — mas os casos em que isso não acontece são bastante reveladores de alguma tensão interna. De resto, podemos concluir que nesta amostra de entrevistados, os docentes constituem um grupo mais homogéneo do que os diretores; nestes últimos, encontramos indivíduos muito interessados e envolvidos na organização dos cursos, e que atribuem importância à sociologia nos mesmos, como outros que mostraram grande desinteresse e/ou desconhecimento do funcionamento da disciplina. De realçar que não foi possível entrevistar o par docente / diretor em todos os cursos, e essas recusas também são indicadoras, por si só, do desinteresse que este tema parece ter junto de algumas pessoas, sobretudo ao nível dos cargos de coordenação.

54 Não se encontram diferenças relevantes nas respostas dadas pelos entrevistados consoante o subsistema de ensino em que se inserem, com exceção da referência ao caráter “teórico” da disciplina que parece ser mais problemático nos institutos politécnicos, pela sua natureza intrínseca. Também a área científica não parece produzir grandes diferenças de perspetivas. É porém de referir que mesmo em áreas das ciências naturais ou tecnológicas, a sociologia é relativamente bem recebida, enquanto em áreas que se poderiam supor mais próximas — nas artes e humanidades ou nas ciências sociais — se encontram casos de alguma desvalorização do seu interesse.

55 Procurou-se com o presente artigo contribuir para o conhecimento sobre a presença da sociologia em cursos de outras áreas, no ensino superior português, através da análise das representações dos atores fundamentais desta formação, os professores e os diretores dos cursos. No entanto, esta é apenas uma de várias vertentes de investigação prosseguidas com o objetivo de aprofundar o conhecimento sobre esta realidade.

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[1] Trabalho desenvolvido no âmbito do projeto de investigação doutoral atualmente em curso no CIES / ISCTE-IUL, intitulado “O Papel da Sociologia em Contextos de Ensino e de Investigação Multidisciplinares”, objeto de uma bolsa da FCT com a referência SFRH / BD/ 84515 / 2012, e orientado pelo professor doutor António Firmino da Costa.

[2] Apresenta-se aqui um resumo da informação mais relevante recolhida na fase anterior da pesquisa de doutoramento; a versão completa pode ser consultada em Egreja (2014), se bem que alguns dados tenham sido revistos e atualizados entretanto.

[3] Analisaram-se todas as licenciaturas e mestrados integrados. Sublinhe-se que, apesar de tudo, ficam de fora desta análise todos os outros mestrados, pós-graduações, doutoramentos e outros tipos de formações que podem existir em instituições de ensino superior, muitos deles certamente também com valências na área da sociologia.

[4] International Standard Classification of Education, adotada pela UNESCO. O documento pode ser consultado em: http://www.uis.unesco.org/Education/Documents/isced-fields-of-education- training-2013.pdf

[5] Na maior parte das situações, a unidade curricular já existia mas houve necessidade de substituição do docente anterior e, por maior afinidade com a área em questão e opção de se trabalhar com o corpo docente existente na instituição, foram convidados a lecionar a disciplina.

[6] Os cursos E, F, G e N têm oferta pós-laboral.

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RESUMOS

O presente artigo pretende dar um contributo para a atualização do conhecimento sobre a presença da sociologia no ensino superior português — não enquanto área científica principal, mas sim na sua mobilização por outros cursos e áreas de formação. Após o levantamento de informação nos planos curriculares, procurou-se perceber de que forma a disciplina se enquadra no âmbito geral do curso e qual a sua utilidade, pelo que se entrevistaram alguns responsáveis (coordenador / docente da disciplina) em diferentes cursos / instituições. Em suma, o ensino da sociologia nestes contextos, apesar de ser valorizado, enfrenta vários obstáculos.

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The present article seeks to help update what we know about Sociology’s place in Portuguese higher education — not as a primary academic field, but rather when mobilised by other courses and areas. After surveying the information in curricular plans, the author looks at how the discipline fits into the general framework of other courses and how useful people find it, with interviews of a number of senior staff (coordinators / teachers) from different courses and institutions. The outcome shows that although Sociology is valued in such contexts, it still faces various obstacles.

Cet article apporte une contribution à l’actualisation des connaissances sur la présence de la Sociologie dans l’enseignement supérieur portugais — non en tant que discipline scientifique principale, mais dans sa mobilisation par d’autres filières de formation. Après le relevé d’informations dans les programmes d’études, l’article tâche de comprendre de quelle façon cette discipline s’inscrit dans le cadre général de la formation et quelle est son utilité. À cet effet, quelques responsables (directeurs / enseignants de la discipline) de différents établissements / formations ont été interrogés. En somme, bien que l’enseignement de la Sociologie soit valorisé dans ces contextes, il rencontre plusieurs obstacles.

El presente artículo pretende dar una contribución para la actualización del conocimiento sobre la presencia de la Sociología en la enseñanza superior portuguesa, no como área científica principal sino en su incorporación en otros cursos y áreas de formación. Después del levantamiento de información en los planes curriculares se procuró entender de que forma la disciplina se encuadra en el ámbito general del curso y cuál es su utilidad, por lo que se entrevistaron a algunos responsables (coordinador/docente de la asignatura) en diferentes cursos/instituciones. En conclusión, la enseñanza de la Sociología en estos contextos, a pesar de ser valorada, enfrenta varios obstáculos.

ÍNDICE

Keywords: Sociology, higher education, multidisciplinarity, ISCED Palavras-chave: sociologia, ensino superior, multidisciplinaridade, ISCED Palabras claves: Sociología, enseñanza superior, multidisciplinariedad, ISCED Mots-clés: Sociologie, enseignement supérieur, multidisciplinarité, ISCED

AUTOR

CATARINA EGREJA Bolseira de doutoramento FCT no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES), ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]

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Mitos, percepciones y actitudes frente a los resultados combinados en Portugal: un estudio con énfasis en los árbitros y los hinchas Mitos, perceções e atitudes face aos resultados combinados em Portugal: um estudo com ênfase nos árbitros e adeptos Fixed matches in Portugal – myths, perceptions and attitudes: a study focusing on referees and fans Mythes, perceptions et attitudes face aux résultats combinés au Portugal: une étude qui met l’accent sur les arbitres et les supporters

Marcelo Moriconi Bezerra y Rita Teixeira-Diniz

Introducción

1 La manipulación de resultados se ha convertido en uno de los problemas más relevantes del fútbol mundial. Las instituciones que gobiernan este deporte han establecidos proyectos conjuntos con organizaciones tales como Interpol o Transparencia Internacional (TI) para estudiar, entender, diagnosticar y prevenir el flagelo (Moriconi, 2016).

2 A pesar de que el problema de los resultados combinados se remonta a la antigüedad1 y ha estado siempre presente en el mundo del deporte (SportAccord, 2011; Hill, 2011),2 el fenómeno se habría expandido y ganado tinte criminal debido a las nuevas tecnologías y el crecimiento de las apuestas online (Haberfeld y Sheehan, 2013; Interpol, 2013; TI, EPFL y DFL, 2014; SportAccord 2013; Carpenter, 2012; Federbet, 2015). En la actualidad, un apostador puede apostar en tiempo real en un partido de cualquier parte del mundo y obtener suculentas ganancias. Esto ha generado el interés del crimen organizado que

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ve en el juego y la manipulación de resultados una posibilidad para ganancia exacerbadas y lavado de dinero.

3 En 2013, Europol3 denunció que había detectado 680 partidos, 380 de los cuales se habían disputado en Europa, en los cuales había sospecha de manipulación de resultados. Se estima que el mundo de las apuestas online representa un negocio multi- billonario (TI, EPFL y DFL, 2014: 6). Por su parte, Federbet (2014), un ente creado para monitorizar las apuestas europeas, encontró sospechas de combinación de resultados en 510 juegos en la temporada 2013/14. Entre enero y mayo de 2013, la FIFA sancionó a más de 200 actores de la comunidad del futbol debido a sus vinculaciones con el flagelo (Mutschke, 2013).

4 En Portugal, hablar de resultados combinados remite socialmente al famoso caso conocido como el “Apito Dourado” (Melo, 2010). No obstante, el problema se ha agravado en la actualidad. En su informe de 2015, Federbet advirtió que Portugal es uno de los países donde más creció la manipulación de resultados (Federbet, 2015: 8). En mayo de 2016, en el marco de la operación “Jogo Duplo”, la policía detuvo a 15 personas, entre los que se encuentran jugadores y dirigentes de la Segunda División del fútbol portugués, por sospechas de combinación de resultados relacionados a apuestas deportivas.

5 A pesar de estos informes, de diversos manifiestos y documentos políticos con recomendaciones de políticas públicas, y de investigaciones periodísticas y académicas, la comunidad internacional reconoce la falta de datos empíricos sobre los colectivos implicados en el tema. En este sentido, este trabajo busca colaborar a brindar datos empíricos sobre opiniones, percepciones y actitudes de dos colectivos claves en la historia de la manipulación de resultados en Portugal: los árbitros y los aficionados. A partir de encuestas realizada en el marco del proyecto internacional “Staying on Side. How to Stop Match-Fixing”,4 y la posterior constatación de los resultados con entrevistas en profundidad a informantes clave, el trabajo busca comprender cómo un colectivo habitualmente denunciado de influir en la materialización de los resultados combinados piensa y se posiciona frente al problema. Los datos empíricos permiten construir una narrativa particular sobre el problema a nivel nacional que, al tiempo que confirma algunas hipótesis de la narrativa oficial sobre el problema, se aleja de proposiciones centrales, como la vinculación directa del fenómeno con el crimen organizado y las apuestas (Mutschke, 2013; Moriconi, 2016). Por un lado, se confirma la percepción de existencia de ofertas de prostitutas (Hill, 2011: 148), por el otro, se presenta una coyuntura institucional crítica cuyas áreas de riesgo y estructuras de oportunidad para materializar la manipulación de resultados no se relacionan con mafias externas y sí con diferencias económicas entre los clubes, tráfico de influencias y falta de transparencia a niveles institucionales.

6 El trabajo está dividido en cuatro partes. En la primera se presentan las definiciones y la narrativa oficial de las instituciones que gobiernan el futbol sobre el problema, su materialización y sus causas. La segunda describe el caso portugués y la importancia de estudiar empíricamente las percepciones y actitudes del colectivo arbitral y el imaginario social de los aficionados. El mayor escándalo de manipulación de resultados, conocido como “Apito Dourado”, centraba su trama en el soborno a los árbitros (Melo, 2010: 35). Desde entonces, diversos sectores sociales, incluidos sectores deportivos, muestran públicamente su desconfianza en medios de prensa y declaraciones. Las sospechas y denuncias en contra del arbitraje son constantes. En la tercera parte se

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presentan la metodología y los resultados de las encuestas realizadas a miembros de la APAF y a aficionados. Asimismo, se presentan algunas consideraciones de informantes clave surgidas en entrevistas en profundidad. La última parte presenta una discusión de los resultados a través de comparaciones con proposiciones de la narrativa oficial y la poca bibliografía existente.

Definiciones

7 La manipulación de resultados es la influencia irregular en el desarrollo de un evento deportivo para obtener ventajas personales o institucionales para uno mismo o para terceros. Esta influencia remueve parcial o totalmente la incertidumbre normalmente asociada al resultado final de un evento deportivo (DFL y DFB, 2012; TI, EPFL y DFL, 2014; SportAccord, 2011: 1; Council of Europe, 2011: 3).

8 Los amaños pueden materializarse por cuestiones deportivas o económicas. En los primeros, lo que se busca es asegurar un resultado final que sirva para cumplir objetivos deportivos, como ganar un campeonato, evitar un descenso, acceder a una fase siguiente de una competición o lograr un cruce más accesible en una etapa de eliminación directa. En este caso, los principales implicados son personas relacionadas al mundo del futbol: árbitros, jugadores, entrenadores, dirigentes, o agentes. En los segundos, lo que se busca es un rédito económico, habitualmente relacionado con el mundo de las apuestas. Además de los actores del mundo futbolístico, en este tipo de manipulación podrían participar actores externos que ofrecen sobornos. Según el discurso oficial de las instituciones internacionales (Council of Europe, 2011; 2012; Interpol, 2013; Carpenter, 2012; TI, EPFL y DFL, 2014; Mutschke, 2013), el crimen organizado estaría detrás de este tipo de manipulación. Este tipo de manipulación se habría expandido debido a las nuevas tecnologías y al crecimiento de las agencias de apuestas deportivas online (SportAccord, 2013; Interpol, 2013: 6). La nueva gama de apuestas, y la posibilidad de apostar en vivo sobre diferentes injerencias del juego, han determinado la expansión de un nuevo tipo de manipulación, el spot-fixing. En este caso, se trata de manipular acciones precisas, como el acuerdo de qué equipo llevará la primera tarjeta o será favorecido con un penal.

9 En un video de prevención,5 SportAccord advierte que, si bien el problema del amaño de partidos no es nuevo y ha sido parte de la historia de los deportes, “este nuevo fenómeno de las apuestas globalizadas vinculadas a la Internet es actualmente el principal peligro para la credibilidad de los deportes”. La expansión de las nuevas tecnologías permite que personas de todo el mundo apuesten en línea, en tiempo real, en las competiciones en todo el planeta. En consecuencia, este cóctel de variables ha determinado la intromisión del crimen organizado en el negocio y ha transformado a la manipulación de resultados en un camino para el lavado de dinero (Interpol, 2013).

10 La variable “crimen organizado” (Mutschke, 2013: ix ss.) es fundamental para entender el relato oficial sobre el flagelo. Tanto los programas de educación de Interpol-FIFA,6 como los utilizados por TI, EPFL y la DFL (DFL y DFB, 2012) o SportAccord (2013) consideran que la manipulación de resultados es algo peligroso materializado por actores deportivos que son cooptados por el crimen organizado y que, posteriormente, quedan a su merced, incluso en peligro de muerte (SportAccord, 2013: min. 8:17; Interpol, 2013). De esta forma, el problema es colocado discursivamente fuera del mundo del futbol: la amenaza provendría de fuera (criminales deseosos de ganar dinero

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con apuestas) y nunca del ámbito institucional del futbol. Esta estrategia discursiva permite que entidades como la FIFA, tantas veces denunciada por escandalosos casos de corrupción (Aguilar, 2013; Jennings, 2006; Yallop, 1999; Kistner, 2012), se posiciona discursivamente como un agente limpio y legítimo deseoso de participar en la cruzada por el juego limpio.

11 Los amaños de partido serían más factibles cuando algún actor deportivo tiene problemas económicos o cuando los jugadores sufren retrasos en el pago de sus salarios (Hill, 2010; FIFPro, 2012). Pero también existen problemas deportivos debido a la pérdida de competitividad de algunos campeonatos. Las diferencias de presupuestos y poder entre distintos clubes de la misma competición son, en algunos casos, extrema, limitando la lógica competitiva. El nivel de salarios en algunas ligas también es desproporcionado. En relación a los juegos, los partidos amistosos y los finales de las temporadas serían los momentos en los que la potencialidad de amaños de resultados es mayor.

La recurrente desconfianza en el arbitraje portugués: ¿cómo y por qué?

12 Los árbitros han sido habitualmente blanco de críticas respecto a su desempeño y, muchas veces, a su honestidad. A nivel mundial, el arbitraje se vio inmerso en varios casos de corrupción deportiva (SportAccord, 2011: 9; Haberfel y Sheehan, 2013). En 2004, 20 árbitros que había manipulados resultados en el campeonato Sudafricano fueron arrestados. En 2005, el árbitro alemán Robert Hoyzer fue suspendido de por vida y condenado a prisión luego de reconocer que había participado en amaños de partidos y apostado en ellos. El árbitro reconoció vinculaciones con un grupo mafioso croata. Por el hecho, también fue condenado el referí Dominik Marks. En 2011, el árbitro ucraniano Oleg Orekhov fue suspendido de por vida tras ser culpado de manipular un partido entre Basle y CSKA Sofia dos años antes. En 2011, la federación haitiana suspendió a varios referís por manipular resultados. Lo mismo sucedió con cuatro árbitros en Hungría. En 2012, casos similares se produjeron en Croacia, China, Argelia y Nigeria.

13 Declan Hill (2011: 148) enumera diversos casos de sobornos de árbitros, en los que los propios clubes tienen a su cargo corruptores expertos. Sobornos, regalos, sexo son algunas de las estrategias utilizadas. Según Hill, el experto en compra de árbitros croata Ljubomir Barin, quien también se desempeñó como agente de jugadores, asegura que él mismo es contratado por los clubes. De ninguna manera se trata de una intimidación de la mafia. El deseo de manipular resultados proviene del interior institucional del futbol. Incluso diversos acusados de manipulación de juegos, como el francés Jean-Pierre Bernès, reconocieron que recurrieron al soborno para estar en igualdad de condiciones con el resto de equipos, debido a que esa era la norma (Hill, 2011: 153). Bernès hoy continúa ligado al mundo del fútbol como agente.

14 Pero no todo tiene que ver con grupos criminales. La narrativa oficial utilizada para las campañas de prevención, que relaciona directamente el problema de la manipulación de resultados con el mundo de las apuestas deportivas online y con el crimen organizado, no da cuenta de la totalidad del problema (Moriconi, 2016). Existen casos de corrupción y manipulación de resultados que no siguen los patrones enunciados en esta narrativa. Diversos casos de corrupción sistémica e institucionalizada dentro del

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futbol, como el caso de Luciano Moggi en Italia,7 determinan la manipulación de resultados a través de tramas forjadas por dirigentes de clubes e instituciones deportivas.

15 El mayor escándalo de corrupción del futbol portugués, conocido como “Apito Dourado”, se trató de un esquema de manipulación de resultados y tráficos de influencias engendrado y materializado en el seno institucional del futbol, sin injerencia del crimen organizado. Los árbitros eran los agentes sobornados que, en última instancia, materializaban el arreglo deportivo (Melo, 2010; Queirós, 2008).

16 Los vínculos entre corrupción y arbitraje no eran nuevos en Portugal (Coroado, 2006). En noviembre de 1990, antes de disputarse un encuentro entre Penafiel y Belenenses, el árbitro Francisco Silva fue descubierto recibiendo un soborno.8 Hasta ese momento, el acto de corrupción según el Código Penal sólo podía ser practicado por funcionarios públicos. En consecuencia, Silva apenas sufrió una condena de los tribunales disciplinarios deportivos.

17 Al año siguiente, las sospechas de corrupción en el futbol eran tantas que el Estado se decidió a legislar sobre el tema y sancionó el Decreto-Ley n.º 390/91, de 10 de octubre, creado expresamente para combatir la corrupción en el deporte.

18 Años después, un árbitro era condenado por corrupción deportiva pasiva por primera vez. Se trató de José Guímaro, quien fue culpado de aceptar dinero (500 contos, 2500 euros) a través de un cheque firmado por el entonces Presiente del club Leça, Manuel Rodrigues.9 El objetivo del soborno fue favorecer al club en un partido contra Académico de Viseu disputado en 1993. Leça venció por 3 a 0, logró el campeonato de Segunda División B y ascendió a Segunda División de Honra. Guímaro y Rodrigues fueron condenados por corrupción pasiva y activa y el Leça — que mientras se desarrolló el proceso judicial había ascendido a Primera División — fue descendido.

19 El caso “Apito Dourado” salió a la luz en 2004, cuando una carta anónima fue enviada a la Policía Judiciaria. En ella se denunciaba que los dirigentes del club Gondomar, de la Segunda División B del futbol portugués, estaban sobornando árbitros para conseguir ganar y ascender de categoría.

20 El presidente de la Cámara Municipal de Gondomar, era el presidente de la Liga Portuguesa de Futbol Profesional (LPFP) y antiguo presidente del club Boavista, Valentim Loureiro. El presidente del Gondomar era el vice-presidente de la Cámara Municipal, José Luís Oliveira. El desarrollo de la investigación de la Policía Judiciaria y una serie de escuchas telefónicas a dirigentes deportivos, rápidamente extendió la trama hasta el campeonato de Primera División, afectando a clubes como F. C. do Porto, União de Leiria e Boavista. El caso era diferente a los anteriores: esta vez, además de árbitros y algunos de los clubes más importantes del país, había implicados políticos y dirigentes de primera línea.

21 A raíz de las denuncias de soborno a los árbitros, la Comisión Disciplinar de la Liga condenó al Boavista, cuyo presidente era el hijo del presidente de la Liga, a perder la categoría y al Porto le decretaron la pérdida de seis puntos y fue excluido por la UEFA de la Liga de Campeones.10 No obstante, el Tribunal de Arbitraje Deportivo (TAS) revocó esta decisión al argumentar que no existían pruebas sobre las supuestas actividades ilícitas del club, lo cual acabó también por ser ratificado por el Comité de Disciplina de la UEFA.

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22 Entretanto, la justicia penal investigaba denuncias por corrupción, tráfico de influencias, falsificación de documentos y abuso de poder.

23 En 2007, el caso tomó una nueva dimensión después de que la ex compañera sentimental de presidente del Porto, Pinto da Costa, publicara un libro titulado Yo Carolina (Salgado, 2006), en el cual relata los procedimientos para sobornar a los árbitros en determinados partidos. La historia del libro fue llevada al cine por el director João Botelho en el film Corrupción. A pesar de que la justicia no pudo comprobar lo expresado por Salgado, y de que la propia mujer posteriormente se desdijo de alguna de sus acusaciones, todas estas narrativas sedimentaron una deslegitimación del arbitraje en el imaginario social portugués. Asimismo, se comenzó a percibir el mundo institucional del futbol como un ámbito de poca transparencia y honestidad.

24 Las sospechas y el desprestigio institucional del futbol aumentaron con la difusión de escuchas telefónicas realizadas durante las investigaciones y difundidas posteriormente en youtube.com.11 En ellas se aprecian la relación cercana y el tráfico de influencias que existía entre la Liga, el F. C. do Porto y la Comisión de Arbitraje, entre otros, para manipular las nominaciones arbitrales y defender los intereses particulares de algunos clubes.

25 El arbitraje era el núcleo de acción de la red de tráfico de influencias institucionales que incluía designaciones parciales de árbitros, manipulación de las evaluaciones de desempeño y clasificación de los árbitros, oferta de regalos y prostitutas, sobornos. Incluso existían presiones y extorsiones contra la Comisión de Disciplina para evitar sanciones a jugadores y entrenadores o, en el peor de los casos, disminuirlas.

26 Da prova produzida resulta indiciado que todos estes agentes têm como fim abstrato e comum o controlo efetivo dos resultados desportivos, bem como das próprias instituições que organizam as competições e se unem voluntariamente para cooperar na realização de um programa criminoso, que executam com caráter permanente e estável (Melo, 2010).

27 Finalmente, se declararía que la utilización de las escuchas como medio de prueba y confirmación de los delitos era ilegal por haber sido realizadas sin levarse a cabo todos los procedimientos judiciales previos. Además, el constitucionalista Joaquim Gomes Canotilho consideró que el proceso era inconstitucional porque el crimen de corrupción deportiva es “inexistente en la ley”. Según explicó, la Asamblea de la República no ha determinado el alcance y significado de la ley, por lo que el gobierno no puede legislar al respecto.12

28 A lo largo de las investigaciones se investigó el amaño sistemático de alrededor de 118 partidos entre Primera y Segunda Liga y Copas entre 2003 y 2004 (Melo, 2010: Anexos). Todos por cuestiones deportivas.

29 En 2008, 13 personas fueron condenadas, aunque ninguna debió pasar por la prisión.13 Valentim Loureiro fue condenado por abuso de poder y prevaricación. José Luís Oliveira fue condenado por crímenes de abuso de poder y de corrupción deportiva activa. Pinto de Sousa fue condenado por crímenes de abuso de poder. Francisco Tavares Costa, vice- presidente de Consejo de Arbitraje de la FPF, también fue condenado. En todos los casos, las penas de prisión no fueron efectivas.

30 También se condenó a pago de multas a Luís Nunes y los árbitros João Macedo, Antonio Eustáquito, Jorge Saramago, Licínio Santos y al presidente de Sousense, Américo Neves.

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31 En relación a los árbitros, el tribunal consideró que las ofertas de objetos de oro no significan, por sí solos, que los árbitros hayan violado las leyes del juego y manipulado resultados. El tribunal explica que, aunque se puede discutir en cual jugada el árbitro se equivocó, quedará siempre la duda de si el error fue intencional o no.

32 Por su parte, Jorge Nuno Pinto da Costa fue absuelto de todos los cargos.

33 La resolución del caso, y las sospechas sedimentadas sobre el desarrollo interno del mundo del futbol, mudó las percepciones sobre el tema. Aunque no fueron consideradas válidas para juzgamiento en los tribunales, las escuchas publicadas fueron de interés público y confirmaron sospechas sobre el modus operandi al interior del mundo institucional del futbol. Desde entonces, diversas denuncias sobre la transparencia y corrupción aparecen habitualmente en la prensa. Criticar y dudar de la honestidad del futbol se convirtió en algo “aceptable” en la opinión pública.

34 Según un informe de CMTV (Correio da Manhã TV) emitido en abril de 2013, y en el que se revelaron escuchas inéditas sobre el caso “Apito Dourado”, “la impunidad tornó vulgar a la corrupción”.14 Asimismo, habitualmente se escucha que la trama y la forma de proceder continúa existiendo, puesto que muchos de los implicados en el caso “Apito Dourado” continúan desempeñando importantes funciones de dirigente dentro del mundo del futbol (Melo, 2010: 12).15

35 Ante esta situación, se construyó un imaginario social alrededor del fútbol en el que la sospecha en torno a la honestidad y transparencia de sus actores está siempre puesta en duda. Los árbitros aparecen como el punto más débil y criticado. En la temporada 2013/2014, las dudas sobre el desempeño de los árbitros fueron recurrentes: en al menos 20 jornadas hubo al menos un equipo que consideró que el árbitro lo perjudicó e influyó en el resultado final del partido.

36 En febrero de 2014, y ante las constantes críticas de varios dirigentes futbolísticos, la APAF sacó un comunicado diciendo que no toleraría más agresiones. Hasta ese momento, en un mes, los presidentes del Porto, Pinto da Costa, Sporting, Bruno de Carvalho, y Sporting de Braga, António Salvador, habían criticado duramente el desempeño de los árbitros. En su comunicado, la APAF consideró que los “señores del futbol” estaban promoviendo la muerte del fútbol y aseguraba que los fallos arbitrales que acontecían se debían a “errores naturales”.16

37 Pero las críticas también llegan de las altas esferas institucionales del futbol. El entonces presidente de la Liga Portuguesa de Futbol Profesional (LPFP), Mario Figueiredo, denunció recurrentemente entre 2013 y 2014 la falta de transparencia en la nominación de los árbitros para los partidos de las principales ligas nacionales. Para Figueiredo, el Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol parecia una “monarquia” en la que “tudo é secreto e ninguém sabe como são feitas as avaliações. Ainda no final da época passada, os melhores árbitros desciam e não ficavam nos árbitros da elite”. Para Figueiredo, algunas nominaciones eran “incompreensíveis”.17

38 Por estas cuestiones, la LPFP consideraba que el arbitraje debería estar bajo el dominio de una entidad independiente y los procesos de nominación y evaluación deberían ser claros, trasparentes y homogéneos.

39 En este último año, el informe anual de Federbet fue duro contra Portugal. Según la institución, es uno de los países donde el flagelo más se extiende, fundamentalmente en la Segunda Liga que fue descripta por el secretario general de la institución, Francesco Baranca, como una competición enferma. Según la institución, también hubo sospechas

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de combinación de resultados en la Primera Liga. El caso más paradójico es el de un partido fantasma que ni siquiera se jugó. Se trata de un encuentro entre Freamunde y Ponferradina que debería jugarse el 4 de agosto a las 10 horas en el campo de São João de Ver, cerca de Oporto. A pesar de que no se disputó, el juego recibió varios miles de euros en apuestas y tuvo un resultado final, un gol a dos (Federbet, 2015: 8).

40 Ante este contexto, se torna fundamental conocer las percepciones y actitudes de los árbitros ante el fenómeno de los resultados combinados. Esto brinda la posibilidad de tener las primeras muestra empíricas experimentales y sistematizar esta información en pos de entender mejor cuáles son los problemas reales de un colectivo en permanente conflicto. Sin un conocimiento profundo de los problemas internos, difícilmente se podrán estipular programas de prevención efectivos.

41 A continuación, se presentan las metodologías y los resultados de los estudios realizados. Las percepciones sobre la situación indican que diversas premisas centrales del discurso hegemónico de prevención mundial de los resultados combinados no describen la realidad del futbol portugués.

Metodología de las encuestas

42 El artículo cuenta con tres estudios empíricos complementarios: una encuesta realizada a los miembros de la APAF, otra realizada a fans con la ayuda de asociaciones de aficionados, y entrevistas en profundidad a actores claves para comprobar o ampliar los resultados de los estudios experimentales.

43 La primera encuesta fue realizada a través de una plataforma online y contó con el apoyo de la Asociación Portuguesa de Árbitros de Futbol (APAF), quien se encargó de enviar el cuestionario a los 1185 miembros con e-mail válidos en su base de datos. Además colocó un anuncio solicitando participación en su página web. La encuesta fue anónima. Cada miembro recibió un ID personalizado para ingresar al cuestionario. La muestra, intencional, fueron todos los miembros de la APAF, que incluye árbitros de todas las categorías del futbol. Se obtuvieron 307 respuestas válidas, lo que representa un promedio de respuestas del 25,9%.

44 El segundo estudio fue realizado con la colaboración de la Asociación de Adeptos Sportinguistas (AAS) y la Asociación de Adeptos Benfiquistas (AABE). Las dos asociaciones se encargaron de hacer circular el cuestionario entre sus socios, en sus redes sociales y lo enviaron también a otras asociaciones de adeptos portuguesas. También se presentó la encuesta en diversas actividades organizadas por la AAS, en las que participó el autor de este artículo.

45 La elección inicial de la AAS se debe a que es el punto de contacto portugués de Supporter Direct Europe. Esta organización internacional brinda asesoramiento a las asociaciones de aficionados en el continente para obtener participación institucional formal en los clubes. El objetivo es mejorar la gobernanza de los clubes, incluyendo la incorporación de los hinchas.18

46 Se utilizó un cuestionario online y se consiguieron 441 respuestas, 95,4% de sexo masculino y 4,6% femenino. La media de edad fue de 32,08 años y el promedio de años durante los cuales ha estado apoyando a su equipo es de 26,04 años. El 68,8% aseguró no pertenecer formalmente a una organización de aficionados. El restante 31,2% sí pertenece.

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47 Por último, se realizaron 12 entrevistas a árbitros y ex árbitros, ex jugadores de la Primera y Segunda Liga, dirigentes, entrenadores.

Resultados

Diagnóstico sobre los resultados combinados y áreas de riesgo en Portugal

48 Los resultados sugieren que el panorama del futbol portugués dista mucho del diagnóstico oficial sobre la expansión de la manipulación de resultados. Los árbitros encuestados no incluyen a la manipulación de resultados como un problema grave del futbol portugués (figura 1). Apenas un 3,6% considera que se trata de un flagelo importante a nivel nacional. Los principales problemas relevados son: la disparidad económica entre los clubes (27,4%), falta de transparencia en la gestión de los clubes (21%) y distribución injusta del dinero (15,3%). Es de destacar que estos problemas son relevados en la literatura como generadores de estructuras de oportunidad para el ingreso del crimen organizado en el contexto deportivo. En palabras de un dirigente de un club de Primera División entrevistado, la combinación de resultados no es un problema extendido en el país. Sin embargo, existen flaquezas institucionales que, en caso de desearlo, permitirían que la mafia de las apuestas aprovechara áreas de riesgo y sedimentara el problema rápidamente. Por su parte, un ex jugador y dos entrenadores reconocieron que vivieron o escucharon intentos de combinación de resultados cundo se desempeñaban en ligas de ascenso (Tercera Liga en el caso del jugador y uno de los entrenadores). Las ligas de asenso serían más proclives a manipulaciones.

Figura 1 Principales problemas del futbol portugués según los árbitros

49 A nivel europeo, la manipulación de resultados también vuelve a tener un valor bajo (5%). La disparidad económica entre los clubes vuelve a ser considerado el mayor problema (52,7%). La falta de transparencia en los órganos centrales (UEFA 13,5% y FIFA 11,3%) se ubican posteriormente.

50 La desacreditación de la manipulación de resultados como problema central del fútbol nacional puede estar implicando una protección corporativa, una estrategia de auto- protección y relegitimación de un colectivo sospechoso.

51 Cuando son los aficionados quienes responden, la combinación de resultados sí emerge como un problema en el futbol nacional. No obstante, el mayor problema serían la

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corrupción y el tráfico de influencias (figura 2). Al ser consultados sobre la existencia de manipulación de resultados en Portugal, el 76,1% respondieron afirmativamente. A los que respondieron afirmativamente se les pidió que indicaran un porcentaje para las tres hipótesis que les fueron presentadas como motivación del fenómeno. La mayor motivación, con una media de 68,72%, fue obtener resultados deportivos. Ganar apuestas ocupó el segundo lugar (18,39%) y conseguir favores políticos (17,45%). A pesar de tratarse de una muestra restringida, los datos empíricos son relevantes para percibir que el imaginario social en torno a la manipulación de resultados en el país difiere en gran medida de la narrativa oficial de la FIFA y la UEFA. El foco de conflicto en Portugal provendría del interior del fútbol y se relacionaría con la falta de transparencia institucional. El crimen organizado no tendría injerencia. Por supuesto, un contexto institucional con este tipo de características es permeable a la corrupción, por lo tanto, se convierte en un factor de riesgo debido a que existen estructuras de oportunidad para que mafias externas al fútbol intervengan para lograr réditos económicos en el mundo de las apuestas. Es de destacar que el crimen organizado no genera estructuras de oportunidad, sino que se aprovecha de las estructuras de oportunidad existentes para extender sus negocios y su ámbito de influencia.

Figura 2 Existencia de manipulación de resultados en Portugal según los hinchas

52 El no reconocimiento de la manipulación de resultados como un problema central del futbol no implica que los árbitros nieguen su existencia. El 23% de los encuestados asegura que escuchó hablar de manipulación de resultados con la participación de árbitros de su liga. Al diferenciar entre árbitros activos e inactivos, las respuestas difieren mínimamente: un 22,16% de los árbitros activos responden afirmativamente, mientras que un 28,30% de los inactivos responden lo mismo (tabla 1).

Tabla 1 Participación de árbitros en manipulación de resultados (la pregunta fue: “Ouviu falar de manipulação de resultados com participação de árbitros na sua liga?”)

53 En relación a la participación de árbitros en manipulación de resultados, de un universo de 231 repuestas, 8 de cada 100 árbitros participaría en manipulación de resultados. A la hora de las entrevistas, los informantes claves, cuando están vinculados

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al arbitraje, comparten esta idea (entre 5 y 10 árbitros estarían involucrados de promedio). Cuando se trata de entrenadores de divisiones de segunda categoría y fútbol de formación, el porcentaje asciende a 20%.

54 Por su parte, los aficionados consideraron que 58 de cada 100 árbitros participarían en la combinación de resultados. Lo mismo sucedería con los dirigentes. Sin embargo, sólo 27 de cada 100 futbolistas aceptaría manipular un juego (tabla 2).

Tabla 2 Participación de actores en la manipulación de resultados según los hinchas (la pregunta fue: “Em cada 100 [árbitros/dirigente/jugadores] quantos diria que, em geral, participam em manipulação de resultados?”)

55 Las motivaciones que llevarían a aceptar participar en un amaño de partido coinciden con las relevadas por la literatura (FIFPro, 2012; Hill, 2010; 2011): problemas económicos personales (39,5%), otros (23,2%), deseo de riqueza (20,5%). Las amenazas o extorciones no son relevadas como un factor importante (7%). Para aquellos encuestados que reconocen haber escuchado hablar de manipulación de resultados en su liga, las motivaciones principales son los problemas económicos personales.

56 Como es de esperar, los árbitros creen que las críticas a su honestidad son infundadas (81,2%). La mala imagen de su profesión es injustificada y se trata de una consecuencia de ser el sector más débil y desprotegido del fútbol profesional (37%). No obstante, es de destacar que un 30,7% consideró que el cuestionamiento de la honestidad de los árbitros se debe a la percepción generalizada de corrupción en el país y en el fútbol, y un 23,9% se acuerdan del pasado y reconocen que se debe a que “hubo casos de árbitros que participaron en manipulación de resultados”.

57 Sin embargo, el ex árbitro Jorge Coroado, entrevistado en el marco de la investigación, no comparte el resultado global de la encuesta. Según él, existe un sentimiento de victimización colectiva que no es tal. Los árbitros para él, son de los sectores más fuertes del futbol en cuanto a la responsabilidad que tienen y debido a la personalidad que deben tener para realizar su trabajo. En este sentido, considera que la peor corrupción del arbitraje portugués es psicológica y tiene su fuente en la desproporcionada disparidad de poder (simbólico y real) de los tres clubes más importantes con el resto. En su opinión, el árbitro sabe antes de comenzar un partido de un equipo grande que si cobra un penal en contra del Benfica o del Porto, toda la semana será analizada su actuación en los medios de prensa. Por otro lado, es lógico el interés social de que los tres clubes grandes estén bien ubicados en la tabla de posiciones. El ex presidente de la Liga Portuguesa de Futbol Profesional, Mario Figueiredo, también consideró que, ante la duda, un árbitro portugués siempre beneficia al equipo grande. Los clubes pequeños tienden a ser perjudicados si la jugada no es muy clara. Esta opinión fue compartida por un ex jugador portugués que se compitió en las primeras ligas de Portugal y España, por tres entrenadores de ligas de ascenso y fútbol de formación de clubes de Lisboa.

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58 Según los aficionados encuestados, los árbitros (51%) son los actores más permeables a la hora de combinar un resultado, seguido de los dirigentes (29%). Sin embargo, a nivel europeo, los aficionados consideran a los dirigentes de las federaciones como los más permeables (39,3%), seguidos por los árbitros (21,3%).

59 La permeabilidad de los árbitros ha sido ampliamente denunciada, como en el caso del “Apito Dourado”, y descripta en la literatura (Hill, 2011; Coroado, 2006; Queirós, 2008). Los factores de riesgo y persuasión no sólo incluirían dinero, regalos o favores políticos. Una denuncia constante en relación al amaño de partidos es la utilización de prostitutas para comprar a los árbitros (Hill, 2011: 152, 155-163). En medio de las investigaciones del “Apito Dourado”, y tras la publicación del libro de Carolina Salgado, las vinculaciones entre el fútbol y la prostitución se hicieron más visibles. En este sentido, algunos sectores institucionales sugirieron que una medida para acabar con este problema era ampliar el cupo de árbitros femeninos.

60 Las respuestas indican que los árbitros reconocen la existencia del problema. Sólo un 28,34% de los encuestados aseguró que es un fenómeno que no sucede. Mientras tanto, el 48,90% de los encuestados reconoce que escuchó hablar de donde fueron ofrecidos servicios de prostitución a árbitros portugueses en Portugal (tabla 3).

Tabla 3 Oferta de prostitutas a árbitros (pregunta: “Alguns testemunhos sugerem que a oferta de prostitutas tem sido uma prática comum no mundo do futebol. Já ouviu falar de casos onde foram oferecidos serviços de prostituição?”)

61 En relación a la posible solución de árbitros incluir más árbitros femeninos para solucionar este problema, el 79,01% consideraron que la medida sería inútil.

62 Los informantes claves entrevistados corroboraron estas tendencias. Jorge Coroado consideró que, en sus tiempos, la oferta de prostitución existía y que no se trataba sólo de heterosexualidad. En su opinión, pensar que las mujeres son menos proclives a este tipo de corrupción, o a cualquier otra corrupción en particular, es absurdo. Por lo que considera que de nada sirve pensar en medidas de género para combatir la corrupción arbitral.

Recomendaciones para solucionar el problema de los resultados combinados

63 En relación a las medidas indispensables para combatir la manipulación de resultados en el país, los árbitros encuestados debieron responder a una pregunta abierta. En ella se les solicitaba que indicaran tres recomendaciones. Los árbitros se mostraron reticentes a responder. El grado de silencio fue del 57,8%. Teniendo en cuenta que, en términos generales, el colectivo no consideró al fenómeno como un problema trascendental a nivel nacional, es lógico que no se quieran estipular medidas para solucionar algo que no es considerado un problema.

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64 No obstante, las respuestas brindadas por el 42,2% restante fueron sistematizadas en tres categorías. Según esta información, la creación de mejor legislación al respecto y de condenas más sólidas sería la mejor manera de combatir el fenómeno. El aumento de la fiscalización ocupó el segundo lugar de preferencia, seguido de mejoras en la calidad salarial y premios para el arbitraje. En este último sentido, la cuestión de la profesionalización de los árbitros, cuestión que se ha mantenido en la mesa de agenda institucional del futbol en los últimos años, vuelve a ser enfatizada como necesaria. El 74,8% de los encuestados afirmó que preferiría ser árbitro profesional. La posibilidad de dedicarse a tiempo completo a la actividad y, por ello, ofrecer un servicio de mejor calidad, es el argumento principal de la elección. En segundo lugar se ubica la mejora de las condiciones económicas que, según indico un árbitro en una entrevista, estaría unida a la estabilidad emocional.

65 Según explicó un árbitro, la profesionalización “además de permitir una mayor disponibilidad, permitiría un trabajo más específico y direccionado a la actividad. Permitiría que los árbitros prepararan un juego como lo hacen los jugadores, dedicándose exclusivamente a ello.”

66 El debate sobre la profesionalización del arbitraje ha estado en la agenda institucional del fútbol portugués durante los últimos años. La propuesta tiene detractores en todo el ámbito institucional, desde la LPFP hasta sectores del arbitraje. En la encuesta, el 25,2% consideró que no prefiere ser profesional. El argumento principal es que la profesionalización genera dependencia de las instituciones que pagan el salario. Un árbitro, durante las entrevistas, reconoció que la situación institucional del arbitraje no es un buen contexto para impulsar la profesionalización. Según él, la profesionalización terminaría por crear un núcleo clientelar del que nadie quisiera salir y al que sería difícil acceder sin favores institucionales. En este sentido, la profesionalización generaría riesgos de corrupción graves.

Percepción de manipulación y juego sucio entre los fans

67 La literatura considera que una de las mayores amenazas de la manipulación de resultados es que, si la percepción de manipulación de resultados fuera elevada, el público perderá interés en el deporte, dejará de ir a los estadios o a ver los partidos por televisión (TI, EPFL y DFL, 2014: 6). En consecuencia, el negocio disminuiría y el fútbol perdería capacidad comercial (SportAccord, 2013). No obstante, los resultados de la encuesta a los aficionados no comprueban esta hipótesis. El 88,5% considera que su equipo sufrió manipulación de resultados (figura 3). Cabe recordar que la encuesta se realizó con apoyo principal de la AAS en calidad de punto de contacto de Supporters Direct en Portugal. Es de destacar que el Sporting de Lisboa es uno de los clubes que ha denunciado con mayor énfasis campañas de manipulación de resultados en su contra. Su presidente, Bruno de Carvalho, lanzó una campaña en marzo de 2014 para “decir basta” debido a que, según denunció, su club había sido sistemáticamente perjudicado por los arbitrajes en los últimos años.19

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Figura 3 Victimización por manipulación de resultados

68 No obstante, los resultados indican claramente que la percepción de falta de transparencia y fair play en el futbol portugués, no es motivación suficiente para que los adeptos dejen de asistir a los campos de juego. Continuando con el ejemplo del Sporting, el club que más ha denunciado manipulación de resultados en su contra, es de destacar que, a pesar de sus quejas y de haber ganado su última liga en la temporada 2001/2002, la afluencia de gente a su estadio no ha variado significativamente en la última década. Mientras que en 2003/2004, tras dos gloriosas temporadas asistieron casi 31 mil espectadores de media, en 2011/2012 asistió una media de 32.863 espectadores, en 2012/2013 25.248; en 2013/2014 una media de 31.669 y en 2014/2015 32.259.20 Ni la crisis económica del país, ni las denuncias, ni las sospechas de corrupción, ni los malos resultados generan desafección por parte de los adeptos.

69 Además de la percepción de la existencia de resultados combinados, los aficionados perciben una corrupción en los valores deportivos (figura 4). Según sus percepciones, los valores más relevantes del fútbol profesional actual serían “ganar” (56,1%); “jugar bien” (25,1%), “jugar limpio” (17,9%). Tan sólo el 16,6% considera que la “transparencia” es un valor perseguido en el futbol actual. Esta realidad presenta serias dislocaciones con que, según la opinión de los aficionados, debería ser. Según sus percepciones, los valores que deberías defenderse serían la transparencia (57,9%), la justicia (42,8%) y sólo después el jugar bien (22,3%).

Figura 4 Valores del futbol actual

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70 Esta vicitimización presenta una doble moral cuando incorpora al equipo del aficionado. Sólo el 26,8% afirma que su equipo se ha visto favorecido en alguna oportunidad por el arreglo de resultados. El panorama, entonces, incluiría una alta percepción de existencia de resultados combinados por objetivos deportivos, en los que los equipos de los aficionados son fundamentalmente víctimas del sistema y en muy pocas ocasiones utilizarían las estrategias de manipular.

Discusión y conclusiones

71 El análisis de percepciones, opiniones y actitudes de actores clave es una herramienta útil para recabar información empírica sobre el fenómeno de los resultados combinados. En esta línea, y con las dificultades propias de un tema polémico, el artículo brinda un primer análisis sobre el problema de la manipulación de resultados en Portugal. El análisis general gira en torno a uno de los colectivos más sospechados por el imaginario popular nacional: los árbitros.

72 Esta investigación permite dar cuenta de algunas diferencias sustanciales entre el caso portugués y la literatura sobre el tema.

73 Los resultados combinados en Portugal no son el problema central del fútbol nacional. Más bien se trataría de una consecuencia relacionada a problemas anteriores que generan estructuras de oportunidad para que diversas corrupciones se materialicen. Las abruptas diferencias de poder económico, cultural y deportivo en la Primera Liga, la opacidad en la nominación de los árbitros, y las presiones psicológicas generadas por esas diferencias serían los factores de riesgo más importantes. A pesar de que la narrativa oficial sobre prevención de la manipulación de juegos vincula directamente al problema con el mundo de las apuestas deportivas online y el crimen organizado, la historia y los imaginarios sobre el fenómeno en Portugal tienen una raíz diferente. Las motivaciones, en este caso, no surgen debido a intimidaciones externas al mundo del fútbol, sino de intereses institucionales y deportivos y de situaciones personales particulares, como los problemas económicos o los intereses económicos individuales. Este trabajo, centrado en un estudio de caso crucial, sirve para demostrar las limitaciones y errores de diagnóstico que pueden tener los programas preventivos universales (Moriconi, 2016). Para combatir el flagelo es necesario prestar atención a las particularidades de cada país. Las estructuras de oportunidad varían de país en país y de liga en liga. Muchas premisas que se construyen con intenciones universales pueden estar dislocadas de realidades particulares.

74 En ese sentido, por ejemplo, una premisa del discurso institucional de combate a los resultados combinados indica que si los espectadores y televidentes sospechan que los resultados de los partidos están combinados, perderán interés y dejarán de asistir a los estadios (TI, EPFL y DFL, 2014: 6). Sin embargo, los datos indican que, a pesar de que los aficionados desconfían de la transparencia del fútbol y perciben que sus equipos sufren manipulación de resultados en contra, continúan haciendo del fútbol una parte importante de su vida de ocio.

75 Por último, los datos relevados sirven para alertar a los programas oficiales de prevención sobre el peligro de mantener la estrategia discursiva de conceptualizar el problema como externo al mundo institucional del futbol y culpabilizar de la naturalización y expansión del fenómeno al crimen organizado. Si bien esto permite la

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legitimación del establishment institucional del futbol, cuya falta de transparencia es y ha sido denunciada incluso por insiders del futbol (Jennings, 2006), evita debatir en torno a las estructuras de oportunidad que son generadas, justamente, por las disfunciones institucionales del sistema. Establecer programas de prevención que nieguen estas situaciones y generen realidades paralelas limitadas a factores externos, no será un buen camino para tener buenos diagnósticos y comprensiones sobre el fenómeno de la manipulación de resultados.

76 Con las limitaciones lógicas de la calidad de la muestra y de la sensibilidad del tema, este artículo es innovador en el sentido de profundizar empíricamente en las percepciones, valores y opiniones de y sobre un colectivo particularmente conflictivo: los árbitros del fútbol portugués. Los hallazgos dejan la puerta abierta a nuevas investigaciones que permitan tener un diagnóstico profundo y holístico con el objetivo de crear e implementar programas de educación más efectivos.

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NOTAS

1. El primer caso de amaño exitoso en la historia del deporte se remonta a los Juegos Olímpicos de 388 AC. En aquella oportunidad, Eupolos de Tesalia sobornó con dinero a tres de sus rivales, entre ellos el antiguo campeón Phormion de Halikarnassos, y de esa manera pudo obtener el título en la competición de pugilato (Maennig, 2005: 216). 2. Incluso han existido casos en los que la manipulación de resultados formaba parte de una trama sistemática e institucional, como el caso de Calciopoli match-fixing scandal o el enredo criminal del Olympique de Marsella de Bernard Tapie. Ver: http://www.telegraph.co.uk/sport/ football/european/8878870/Former-Juventus-general-manager-Luciano-Moggi-to-appeal-jail- sentencefollowing-match-fixing-scandal.html 3. Europol (2013), “Results from the largest football investigation in Europe”: http:// www.europol.europa.eu/content/results-largest-football-match-fixing-investigation-europe 4. El proyecto fue liderado por Transparencia Internacional (TI), la European Professional Footbal Leagues (EPFL) y la Liga Alemana de Fútbol (DFL). Fue financiado por la Dirección General de Educación y Cultura de la Comisión Europea. El objetivo fue desarrollar programas y materiales de prevención que pudieran ser utilizados por las Ligas a través de Europa para hacer frente al

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flagelo. En Portugal, la coordinación estuvo a cargo de Transparencia e Integridade, Associação Cívica (TIAC). Más información en: http://www.transparency.org/whatwedo/activity/ staying_on_side_education_and_prevention_of_match_fixing 5. Ver SportAccord (2013). 6. Accesible online: http://www.interpol.int/Crime-areas/Corruption/Integrity-in-sport/E- learning2 7. http://en.wikipedia.org/wiki/2006_Italian_football_scandal 8. http://www.jn.pt/PaginaInicial/Interior.aspx?content_id=482629&page=-1 9. http://www.record.xl.pt/Futebol/Arbitragem/interior.aspx?content_id=194718 10. http://www.dn.pt/especiais/interior.aspx? content_id=1017953&especial=Apito%20Final&seccao=DESPORTO 11. http://www.youtube.com/results?search_query=escutas+apito+dourado 12. http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?id_news=243100 13. http://www.jn.pt/Dossies/dossie.aspx?content_id=969400&dossier=Apito%20Dourado 14. http://www.youtube.com/watch?v=un5IOwDuWrs (minute 8:30) 15. http://www.youtube.com/watch?v=qMkhEanpnps 16. “Árbitros portugueses revoltam-se e dizem ‘basta’”, Diario de Notícias, 14 de febrero de 2014, Accesible online: http://www.dn.pt/desporto/interior.aspx?content_id=3687731&page=-1 17. http://rr.sapo.pt/bolabranca_detalhe.aspx?fid=42&did=126020 18. http://www.supporters-direct.org/ 19. Bruno de Carvalho: “É fundamental os sportinguistas dizerem ‘basta’”, Record, 10 de março de 2014. Accesible online: http://www.record.xl.pt/futebol/futebol-nacional/liga-nos/sporting/ detalhe/bruno-de-carvalho-e-fundamental-os-sportinguistas-dizerem-basta-872206.html 20. Fuente: Painel de espctadores da Liga de Portugal. Accesible online: http:// www.ligaportugal.pt/oou/estatisticas/espectadores/clube/20142015

RESÚMENES

El artículo presenta datos sobre opiniones y percepción de los árbitros del fútbol portugués y los hinchas sobre la manipulación de resultados, uno de los principales problemas del fútbol mundial. Los analistas suelen vincular el problema con el crimen organizado y las apuestas deportivas. En Portugal, sin embargo, los escándalos del pasado indican que la manipulación se conectaría más con el interés deportivo, el tráfico de influencias y el soborno de los directivos y actores institucionales. En la opinión pública, los árbitros aparecen como el grupo más sospechoso y denunciado. A través de una encuesta a los miembros de la Asociación Portuguesa de Árbitros de Fútbol (APAF) y a simpatizantes agrupados en diferentes asociaciones, el artículo confirma empíricamente hipótesis de la narrativa oficial sobre el arreglo de partidos, como la existencia de oferta de prostitutas a los árbitros. Sin embargo, muestra una perspectiva más amplia del fenómeno que va más allá de la esfera de las apuestas y el crimen organizado. Entrevistas en profundidad a informantes clave se llevaron a cabo para confirmar y ampliar los resultados.

O artigo apresenta dados sobre opiniões e perceções dos árbitros do futebol português e dos adeptos sobre a manipulação de resultados, um dos principais problemas do futebol mundial. Os analistas vinculam o problema com o crime organizado e as apostas desportivas. No entanto, em

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Portugal, os escândalos de anos anteriores indicam que a manipulação estaria conectada com o interesse desportivo, o tráfico de influências e o suborno de diretores e atores institucionais. Para a opinião pública, os árbitros são o coletivo mais suspeito e denunciado. Através dum inquérito a membros da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF) e adeptos membros de diferentes associações, o artigo confirma empiricamente hipóteses da narrativa oficial sobre a combinação de resultados, como a existência de oferta de prostitutas. Não entanto, o trabalho apresenta uma perspetiva mais abrangente, que vai além do mundo do crime organizado e das apostas. Entrevistas em profundidade a informantes chave foram realizadas para confirmar e ampliar os resultados.

The paper presents data about opinions and perception of Portuguese football referees and supporters about manipulation of results, ones of the main problems of football worldwide. Analysts often link the problem with organized crime and sporting betting. In Portugal, however, recent scandals indicate that manipulation would be mostly connected with sporting interest, influence peddling and bribing from managers and officials. In the public opinion, referees appear as the most suspicious and denounced group. Through surveys of members of the Portuguese Football Referees Association (APAF) and supporters, the paper empirically confirms some assumptions of the official match-fixing narrative, like the existence of offers of prostitutes to referees. Nevertheless, it shows a wider perspective of the phenomenon that goes beyond the betting sphere and organized crime. In depth interviews to key informants were carried out to confirm and extend the results.

L’article présente des données sur les opinions et les perceptions des arbitres de football portugais et des supporteurs sur la manipulation des résultats, un des principaux problèmes du football à travers le monde. Les analystes lient souvent le problème avec le crime organisé et les paris sportifs. Cependant, au Portugal, les scandales récents indiquent que la manipulation serait principalement liée aux intérêts sportifs, au trafic d’influence et à la corruption des gestionnaires et des fonctionnaires. Au sein de l’opinion publique, les arbitres sont perçus comme étant le groupe le plus suspect et dénoncé. Grâce à des enquêtes à des membres de l’Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF) et des partisans, l’article confirme empiriquement une hypothèse du récit officiel des matches truqués, comme l’existence d’offres de prostituées aux arbitres. Toutefois, il montre une perspective plus large du phénomène qui va au-delà de la sphère des paris et du crime organisé. Des entretiens approfondis avec des informateurs clés ont été effectués pour confirmer et amplifier les résultats.

ÍNDICE

Palavras-chave: resultados combinados, árbitros, Portugal, corrupção, futebol Mots-clés: manipulation des résultats, arbitres, Portugal, corruption, football Keywords: match-fixing, referees, Portugal, corruption, football Palabras claves: resultados combinados, árbitros, Portugal, corrupción, futbol

AUTORES

MARCELO MORICONI BEZERRA Investigador no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), CIES-IUL e CEI-IUL, Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]

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RITA TEIXEIRA-DINIZ Mestre em Global and Comparative Politics, University of Essex. Assistente de investigação na Transparência e Integridade, Associação Cívica (TIAC) Lisboa, Portugal.

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Recensões

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M. Margarida Marques (org.) (2014), Lisboa Multicultural

Carlos Fortuna

REFERÊNCIA

M. Margarida Marques (org.) (2014), Lisboa Multicultural, Lisboa, Fim de Século

Lisboa: uma paisagem etnocultural renovada

1 Não erro ao afirmar que as pessoas se sentem mais atraídas por cidades do que por estados-nação.1 Quem não reconhece que, de uma visita aos Estados Unidos da América ou a França, as pessoas recordam sobretudo as cidades de Nova Iorque ou Paris?… Vem isto a propósito do recente Lisboa Multicultural (organizado por M. Margarida Marques), um livro que regista uma mudança profunda na configuração etnocultural de Lisboa. Não há cidade que não tenha em algum momento da sua história procurado ser uma outra. Assim sucede com esta Lisboa que, ao longo das quase 500 páginas da coletânea, surge narrada como crescentemente heterogénea e cosmopolita. Sintomaticamente, num dos capítulos do livro, assinado por Francisco Carvalho, a Lisboa alfacinha está a converter-se numa Lisboa africana sem deixar de ser também uma outra Lisboa da diversidade e assumir a diferença cultural como seu traço constituinte.

2 O livro abre com um texto de José Leitão sobre as peripécias jurídico-formais que enquadram o “imigrante empresário” que é, afinal, o sujeito central da reflexão que aqui se comenta. Um outro enquadramento, que não o jurídico, é o que Sofia Santos, uma prolixa autora deste livro, oferece ao debruçar-se sobre a conversão da atual diversidade sócio-etno-cultural de Lisboa em “ativo estratégico” crucial para o planeamento da cidade. No processo de municipalização da política e da diversidade cultural, o texto antecipa o que Francisco Costa, outro autor regular da coletânea, enuncia como a “etnicização positiva” da (nova) dimensão cultural de Lisboa.

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3 Este estudo mostra de forma clara como a cidade é muito mais do que uma coleção de settlements com alguma contiguidade nos espaços e nas linguagens. Repare-se nos três textos que compõem a parte 2 do livro e no modo como ilustram a variedade de acontecimentos identitários e oferecem uma imagem, dir-se-ia, de totalidade, não de um somatório de fragmentos. Os media tendem a devolver-nos essa imagem de totalidade como ressalta do escrito de Nuno Domingues sobre como o jornal Público relata a presença dos imigrantes em Lisboa, entre 1996 e 2000. É uma narrativa sobre a diversidade percebida, centrada principalmente na música, no artesanato, no cinema e na TV, e em outras expressões culturais, como a literatura, a dança e os festivais, sem que o autor deixe de nos alertar para a possível marca cultural de segmentos das elites culturais como responsáveis pelos acontecimentos de maior cobertura jornalística.

4 Francisco Lima Costa regressa de novo à escrita para falar de (des)ordenamento do território, noção heuristicamente riquíssima, com que procura caraterizar os (des)ajustamentos das categorias geográficas e estatísticas utilizadas desde 1930 (do “distrito de Lisboa” à “grande Lisboa” e à “região metropolitana de Lisboa”). Ao lado da oscilante nomenclatura estatística, o texto dá conta da recente multiplicação por dez do número de estrangeiros residentes em Lisboa (de 14.500 em 1970, para 147.800 em 2011), que se pode “experimentar” na viagem que o autor propõe desde a Lisboa dos “bairros de lata” até aos espaços de imigração de hoje, marcados por (i) um edificado envelhecido, (ii) alojamentos sobrelotados e arrendados e (iii) uso intenso de transportes coletivos.

5 No seu outro texto sobre a revitalização urbana e os mercados da diversidade, Sofia Santos coloca-nos perante a valorização cultural decorrente da disponibilidade de novos produtos comerciais (veja-se o exemplo trazido noutro capítulo, do ato banal da compra de chá), resultante da atividade empresarial de muitos imigrantes. Tal cenário de renovado consumo, visível na oferta de bens de consumo doméstico, na restauração e no artesanato, produz um efeito de boa convivência local (veja-se como Frederica Rodrigues enuncia o acolhimento das empresárias de salões de beleza e manicure), tanto em espaços residenciais, como em espaços históricos e turísticos da cidade, ao mesmo tempo que sedimenta uma relação dupla: por um lado, coétnica (partilha dos outros com os seus iguais) e, por outro lado, exoétnica (procura pelos locais dos lugares dos outros).

6 Em si, tanto bastaria para considerar este Lisboa Multicultural um relato socioantropológico notável, que convida a refletir sobre a urbanidade de uma cidade que se transforma, quer ao sabor da sua própria história, quer de outras histórias. É disso que trata o livro e não tanto da outra mudança turística que, por enquanto, traz muitos lisboetas extasiados com o radioso negócio do turismo internacional.

7 Lisboa Multicultural lê-se como se fosse um livro de contos. E essa é uma vantagem enorme. O conto, aqui chamado “capítulo”, é por natureza um texto curto. Sempre se chega ao fim. Além disso, o estudo é também, obviamente, atual. Primeiro porque trata de um tempo urbano contemporâneo que nos surpreende a cada instante. Depois porque é feito de linguagens modernas e retóricas atualizadas que geram intertextualidade e comunicação entre capítulos, ampliando a coerência ao conjunto. Este Lisboa Multicultural é ainda fonte de cautelosas “traduções”, isto é, de aplicações rigorosas de conceitos forjados em outros contextos e que aqui se testam e aplicam com génio e criatividade. Na voragem do tempo que fustiga Lisboa, este livro permanece atual, apesar de já datado. Mas todos livros são datados, sobretudo os que temos por “clássicos”. E, creio, este Lisboa Multicultural partilha dessa virtude dos “clássicos” ao

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tratar de uma espécie de “presente eterno”, uma novidade que se vai prolongar no tempo como tudo parece indiciar.

8 O renovado enlace etnocultural que se revela na leitura do livro configura um cosmopolitismo progressista, já que a presença dos outros assinala uma condição de cidadania que faz deles atores a ter em conta no planeamento estratégico da própria cidade. Na Lisboa “de outras eras”, se cosmopolitismo existia, era profundamente conservador e a “diversidade” era marcada pela subjugação e destituição. Agora, como sujeitos e não já mero décor da evolução urbana, os recém-instalados em Lisboa, vindos de África, da Ásia, da América do Sul, ou da antiga Europa de Leste, negoceiam, vivem e pluralizam os espaços públicos e, mais que isso, participam diretamente, embora limitadamente ainda, no devir da cidade.

9 No texto de abertura, Margarida Marques (MM) — a organizadora do livro — dá testemunho aturado desta mudança. O relevo concedido aos empresários reforça o papel dos pequenos comércios que marcam distintivamente o novo “espírito de cidade”. Aqui, MM faz lembrar Robert Park, que ousou um dia definir a cidade como um “estado de espírito” para surpresa de todos. Está MM a dizer, bem entendido, que além das ações de arquitetos, urbanistas e decisores políticos, as cidades são feitas da realidade humana e da sua quotidianidade que importa trazer para o desenho ajustado do futuro urbano e sociocultural desta cidade. Aprecio esta forma quase militante como o texto introdutório assume a “descoberta” do potencial estratégico que a diversidade cultural representa para Lisboa. Não podendo ser “romantizado”, este potencial aproxima Lisboa de outras cidades, cujo sucesso depende de conexões geoculturais complexas, como bem assinalou Anthony King quando fez notar que a história da Manchester industrial estava inscrita em Bombaim, o que tornava impossível compreender uma cidade sem se entender a outra… A Lisboa de hoje encontra na teia imperial as raízes da sua modernidade e o que ela é, e há de ser no futuro, deve-o a outras paragens e a outras (cumpli)cidades… A Luanda e a Bissau, à Praia e a Maputo, a Goa, mas também ao Brasil e à China…

10 Mas há outras “geografias” críticas pertinentes para a leitura deste livro. Entre elas, sobressaem as que ensinam a ver uma cidade sem os limites e as fronteiras espaciais (psicológicas?) que subjazem a categorizações tantas vezes desajustadas e erróneas. Algumas referem-se ao binarismo das linguagens académicas recheadas de “centros” e “periferias”, de “nortes” e de “suis”, de “ocidentes” e “orientes”. Estes pares de mundos diversos nunca estiveram tão próximos e tão íntimos. O raper Edson Silva dos Força Suprema, angolano residente há mais de 20 anos na região metropolitana de Lisboa, afirma-o com eloquência (Ípsilon, 12/06/2015): “Gostamos da Linha de Sintra. Dá para ir ao Fórum Sintra e sentirmos que estamos na Europa e dá para ir à Damaia e comprar mandioca na rua. Somos desses dois mundos!”

11 Ser destes dois mundos é uma implicação da condição urbana e democrática de hoje. Atravessá-los sem impedimentos é hoje um direito. A diversidade cultural atravessa a cidade sem limites a toda a hora, por toda a parte. Anytime/anywhere, como dizia de Niro do Taxi Driver de M. Scorcese, parece ser o lema de tudo o que hoje se move, incluindo os novos fluxos migratórios e étnicos que Lisboa regista.

12 No seu Fronteiras Perdidas — Contos para Viajar, a páginas tantas J. Eduardo Agualusa relata o episódio em que o assaltante, de bons modos e viajando num carro de grande estilo, se dirige ao jovem objeto do assalto: “Também dizem que nós destruímos este país. Destruir? Estamos simplesmente a reajustá-lo a África, aos nossos hábitos

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culturais. Luanda, por exemplo, era uma cidade europeia, um corpo estranho relativamente ao resto do país. Foi preciso corrompê-la para a libertar”. Este livro, como que replicando o bandido, ensaia devolver a Lisboa a imagem de uma condição estrutural que só na escavação histórica e antropológica da usurpação do outro se pode compreender no seu atual reajustamento.

13 Como evoluirá no futuro a multiculturalidade lisboeta abordada neste livro? O livro não nos responde. Que Lisboa teremos em resultado dessa evolução? Uma Lisboa mais diversa, mais plural, mais democrática? Ou antes uma Lisboa regressiva, cosmopolita sim, mas conservadoramente cosmopolita que atende às reivindicações dos turistas mas não dos imigrantes… mais fechada e segregadora? Receosa dos outros que a procuram como refúgio ou como espaço de oportunidade e emancipação?

14 “Os ares da cidade libertam”… diziam os subjugados camponeses alemães que rumavam às cidades em busca da sua medieval libertação. Esse era um dramático grito que, paradoxalmente, volta a ecoar hoje, lancinante, por toda a região mediterrânica europeia. Sabemos que outrora os ares da cidade não libertaram como se esperava. E sabemos também que, por aqui, à vista das vagas mediterrânicas, os ares europeus continuam quase tóxicos e irrespiráveis. Temos de continuar a limpá-los. Sem esmorecer. Este livro pode ser visto como uma metafórica higienização do ar que respiramos. Em Lisboa e fora dela. A leitura liberta! — apetece dizer. Daí o meu convencimento de que este livro vai ser lido por gente jovem em busca de ares límpidos de uma cidadania plural e diversa, como aqueles que brotam das reflexões postas neste Lisboa Multicultural.

NOTAS

1. Recupera-se parcialmente o texto de apresentação pública do livro (8 de julho de 2015).

AUTORES

CARLOS FORTUNA Professor de Sociologia, Faculdade de Economia e Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra. Av. Dias da Silva, 165, 3904-512 Coimbra. E-mail: [email protected]

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Eduardo Duque (2014), Mudanças Culturais, Mudanças Religiosas. Perfis e Tendências da Religiosidade em Portugal Numa Perspetiva Comparada

José Pereira Coutinho

REFERÊNCIA

Eduardo Duque (2014), Mudanças Culturais, Mudanças Religiosas. Perfis e Tendências da Religiosidade em Portugal Numa Perspetiva Comparada, Vila Nova de Famalicão, Edições Húmus

1 Eduardo Duque, professor auxiliar na Universidade Católica Portuguesa (Braga), apresentou em 2008 a sua tese de doutoramento em sociologia na Universidade Complutense de Madrid, recebendo pela mesma o Prémio Extraordinário. O presente livro atualiza a sua tese, diferenciando-a apenas em dois aspetos. Primeiro, um dos sete objetivos específicos da tese não foi desenvolvido neste livro (“Indagar se a igreja católica continua a ser um dos grandes mobilizadores da sociedade portuguesa e consequentemente um dador de sentido”). Segundo, sendo este livro posterior à última edição do European Values Study (EVS), realizada em 2008, o autor prescindiu das outras bases de dados internacionais utilizadas na sua tese, empregando unicamente o EVS. As conclusões dos dois trabalhos, na sua amplitude, são iguais, mesmo que haja ligeiras dissemelhanças nos resultados, decorrentes da aplicação de anos e de bases de dados diferentes.

2 Assente na sociologia compreensiva de Weber, o autor desenvolve uma abordagem sistémica, para examinar a realidade de forma alargada. A complexidade da realidade sociocultural, assim como da realidade religiosa inclusa na mesma, é demasiada para se

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optar por modelos simples de análise, de causalidade linear. Esta opção também se justifica pela aspiração do autor a analisar a realidade religiosa de várias perspetivas, expressas no elevado número de objetivos, sumarizáveis no seguinte: caracterizar a religiosidade dos portugueses, compará-la com os países católicos europeus e compreender a influência dos fatores sociais e culturais na mesma. Com a mudança sociocultural em curso abre-se caminho para reconfigurações do religioso que importa analisar, tanto na perspetiva a jusante, do religioso em si, como a montante, das transformações sociais e culturais. Além disso, a comparação com países com a mesma matriz histórica e religiosa possibilita situar Portugal no contexto europeu.

3 Para implementar estes objetivos, o autor aposta na metodologia quantitativa, recorrendo ao inquérito por questionário como instrumento de trabalho. O EVS, porventura a base de dados internacional mais indicada para o estudo da religião, pela variedade e adequabilidade dos indicadores disponíveis, foi usado exaustivamente e na maioria das vezes de forma longitudinal. Desdobrando-se em dimensões, indicadores e análises, o autor disponibiliza dados e informação em abundância, numa área pouco estudada no nosso país. A tese de doutoramento de Oliveira (1995), com pontos convergentes com a de Duque, concorreu no seu tempo para aumentar o conhecimento da realidade religiosa portuguesa, pela análise do contexto social, como pela caracterização minuciosa da população portuguesa em termos religiosos. No entanto, para além da sua perspetiva sincrónica, encontra-se relativamente desatualizada. Resumidamente, o contributo valioso de Duque com este livro, para além da atualidade, da diacronia e da comparação internacional, passa pela caracterização extensiva da religiosidade (desenvolvendo índices, analisando dimensões e cruzando variáveis) e pelo estudo da relação dos fatores socioculturais com a religiosidade.

4 Passemos agora a olhar para cada capítulo. Após justificar a pertinência do seu estudo no capítulo primeiro (introdução), o autor faz o enquadramento teórico no capítulo segundo. Começa pela definição de religião, cuja dificuldade, que o autor menciona e discute, se coloca habitualmente nos estudos desta área. Seguindo Berger, Duque considera que a definição tem de ser construída em função de determinada pesquisa, pois a validade universal das definições torna-se impossível devido à enorme variedade de objetos religiosos. A sua definição parece oportuna, tanto pelos autores escolhidos (por exemplo, Durkheim ou Luckmann), como pelo ajustamento à realidade estudada. De seguida, o autor desenvolve a sua narrativa sobre a evolução da razão na modernidade, na secularização e no desencantamento do mundo como sua consequência, o que demonstra bem a influência de Weber. Como refere Duque, não estando consumada a modernidade, na pós-modernidade tudo se torna possível, nomeadamente o retorno do religioso, porventura renovado e consolidado, mas agora marcado pela subjetividade, pela abertura e pela contingência. Talvez a “arte” pudesse ser mais explorada. Sobre a secularização, os trabalhos de síntese de Dobbelaere ou Tschannen, os contributos de Bruce, Davie ou Taylor poderiam ser lembrados; Martin e Casanova poderiam ser referidos não só em notas de rodapé, mas no corpo do texto. Autores como Hervieu-Léger, Heelas ou Woodhead poderiam ser bastante úteis para melhor definir a religiosidade pós-moderna, indo ao encontro do pretendido por Duque. As recomposições religiosas, a religião à la carte, a bricolage são assuntos centrais em Hervieu-Léger, enquanto a dicotomia religião/espiritualidade é discutida por Heelas e Woodhead. Para terminar o enquadramento teórico Duque desenvolve e explora as três teorias que subjazem à mudança sociocultural atual e que são testadas diretamente

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neste trabalho (individualização, materialismo /pós-materialismo e centro/periferia); daí justamente o seu destaque relativamente às outras questões teóricas.

5 No capítulo terceiro, Duque expõe a metodologia usada, quantitativa, assente em desenhos longitudinais, com dados de 1990, 2000 e/ou 2008, tendo em vista entender as tendências ao longo do tempo. Relativamente às fontes, o autor baseia o seu estudo no EVS, apoiando-se ainda, a nível internacional, nas bases de dados do Vaticano e, a nível nacional, no INE e nos dados fornecidos pela igreja, o que parece a melhor opção. Termina descrevendo os indicadores e as análises usadas (univariadas, bivariadas e multivariadas), as quais são muitas e variadas, o que demonstra o empenho do autor na qualidade da sua obra.

6 No capítulo quarto, passa-se para a análise dos resultados da dimensão religiosa, com quatro partes. Na primeira parte, na autoidentificação religiosa, enquadram-se os seguintes indicadores: sentimento religioso, pertença religiosa e matriz religiosa dominante. Refira-se, todavia, que, devido à subjetividade inerente à interpretação dos mesmos, a sua utilização requer cuidado. Na segunda parte, na assistência aos serviços religiosos, relembre-se que este é o indicador mais antigo da religiosidade e, apesar das suas limitações, talvez seja dos mais fiáveis. Basta lembrar que os censos da igreja e os vários estudos portugueses realizados neste domínio, tal como o estudo mais recente de Teixeira (2013), sempre se apoiaram neste indicador. A terceira parte começa pela dimensão religiosa (importância de Deus, importância da religião, consolo e fortaleza na religião). No final desta análise o autor apresenta um índice de religiosidade baseado nas seguintes variáveis: prática religiosa, frequência de oração, importância de Deus na vida, importância da religião na vida, sentimento religioso, crença em Deus, conceção de Deus. Consciente da complexidade da realidade em estudo e da inadequação de análises anteriores baseadas somente na prática religiosa, porventura mais adequadas para sociedades menos complexas, o autor desenvolve justamente este índice, assente tanto nas práticas como nas crenças e nas atitudes. Depois da dimensão religiosa passa para a dimensão valorativa (atitudes frente a diferenças sociais, aceitação de comportamentos sociais, importância da família). Com bases em indicadores desta dimensão desenvolve uma análise de componentes principais, para reduzir a informação existente, chegando a três fatores: consciência moral, tolerância e dimensão relacional. Passa de seguida para a dimensão crencial (Deus, vida depois da morte, inferno, céu, pecado e reencarnação; e conceito de sobrenatural). Com todas as variáveis, exceto a última, o autor cria um índice de crencialidade. Por fim, Duque apresenta a dimensão institucional (atitudes perante a igreja — confiança nas instituições, pertença a organizações e atividades de voluntariado; resposta institucional — ritos e sacramentos, outras respostas da igreja aos problemas morais, problemas da vida familiar, necessidades espirituais, problemas sociais do seu país). No final do capítulo o autor analisa a desinstitucionalização religiosa, criando uma escala para medir a religiosidade privada e pública com indicadores apropriados. Na primeira usa os indicadores: crença num Deus pessoal, importância de Deus, sentimento religioso, frequência à oração e se encontra consolo e fortaleza na religião. Na segunda usa os indicadores: prática religiosa, grau de confiança na igreja, importância dada aos três ritos de passagem. Por último, define novas dimensões de religiosidade conjugando três indicadores (sentimento religioso — religiosidade privada, prática religiosa — religiosidade pública, e posição religiosa — religiosidade privada e pública).

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7 No capítulo quinto passa para a análise da dimensão sociocultural, estudando a individualização, o materialismo/pós-materialismo e a posição social. Na individualização, após aplicação de análise fatorial verificam-se as variáveis que melhor explicam os valores tradicionais e de individualização, respetivamente. Com base na polarização dos dois valores mais importantes de cada, constrói um índice, analisando- o de seguida. No segundo aspeto, usam-se quatro indicadores apropriados para se construirem escalas e assim determinar os materialistas, os pós-materialistas e os mistos. Para se analisar a posição social, constrói-se um índice com base em sete variáveis sociodemográficas. Por fim, o autor faz a correlação entre a segunda dimensão e as duas outras, para testar as hipóteses: quanto maiores o grau de individualização e a posição social maiores os valores pós-materialistas.

8 No capítulo sexto procede-se ao estudo da relação entre as dimensões religiosa e sociocultural. Cruza-se a posição religiosa e a prática religiosa com os índices/escalas acima referidos. Analisa-se a capacidade preditiva de modelos sociodemográficos, valorativos e socioculturais sobre a religiosidade. Por último, analisa-se a predição das variáveis dos modelos sobre a religiosidade. Depois de se concluir que são as variáveis do modelo sociocultural que predizem mais a religiosidade, segue-se para a sua análise.

9 No capítulo sétimo, discutem-se os resultados e apresentam-se as conclusões. Na discussão aborda-se a confirmação das três hipóteses do livro. A primeira hipótese não é rejeitada, ou seja, à medida que as sociedades se desenvolvem reestrutura-se a dimensão valorativa, o que reconfigura uma nova mentalidade. A segunda hipótese também não é rejeitada, ou seja, a reconfiguração da mentalidade leva à criação de novas formas de religiosidade de foro mais privado e desinstitucionalizado. A terceira hipótese não é igualmente rejeitada, ou seja, embora Portugal partilhe muitos valores com os outros países, ao contrário deles, a religião tem ainda forte expressividade. Na conclusão, Duque sintetiza primeiro os principais resultados do estudo, o que parece acertado em vista do acervo produzido. Por fim, apresenta as principais conclusões do estudo, que se resumem no seguinte: “Fica, assim, claro, que se assiste a uma reconfiguração da religiosidade portuguesa motivada, em parte, pelos valores emergentes, o que demonstra que esta religiosidade não é alheia às mudanças socioculturais, próprias do desenvolvimento da sociedade, mas sim, que se metamorfoseia, adaptando-se às particularidades que definem a mentalidade contemporânea.”

BIBLIOGRAFIA

Duque, Eduardo (2008), El Fenomeno Religioso y Sus Influencias Sociales. Perfiles y Tendencias del Cambio Religioso en Portugal, Madrid, Universidade Complutense de Madrid, tese de doutoramento em Sociologia.

Oliveira, Carlos (1995), Atitudes e Comportamentos Religiosos dos Portugueses na Actualidade, Évora, Universidade de Évora, tese de doutoramento em Sociologia.

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Teixeira, Alfredo (2013), “A eclesiosfera católica: pertença diferenciada”, Didaskalia, XLIII (1/2), pp. 115-205.

AUTORES

JOSÉ PEREIRA COUTINHO Investigador, Númena. Taguspark — Núcleo central, 379, 2740-122, Porto Salvo. E-mail: [email protected]

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Chloé Froissart (2013), La Chine et Ses Migrants. La Conquête d’une Citoyenneté

Virginie Arantes

REFERÊNCIA

Chloé Froissart (2013), La Chine et Ses Migrants. La Conquête d’une Citoyenneté, Rennes, Presse Universitaires de Rennes

1 As primeiras linhas do livro de Chloé Froissart transportam de imediato o leitor para a atmosfera delicada da migração interior na China. Segundo a especialista francesa, em resposta às reformas económicas iniciadas por Deng Xiaoping em 1978, um êxodo extraordinário aconteceu, “o mais vasto da história do mundo” (p. 13). Desde Contesting Citizenship in Urban China de Dorothy Solinger (1999), La Chine et Ses Migrants. La Conquête d’Une Citoyenneté (A China e seus migrantes: a conquista de uma cidadania), oferece ao leitor um estudo detalhado de uma das reformas capitais da China contemporânea: a lenta ascensão à cidadania de centenas de milhões de trabalhadores migrantes (mingong) vindos do campo para garantir uma mão de obra competitiva e favorável ao crescimento económico.

2 Este livro representa bem mais do que um estudo sobre uma categoria social. É o culminar de um meticuloso trabalho sobre as peculiaridades dos migrantes e o funcionamento da cidadania no sistema político chinês, em particular na cidade de Chengdu (Sichuan). Centrando a sua análise numa cidade do interior da China, a autora rompe as tradições ocidentais e chinesas que tendem a focar as suas análises em áreas mais “populares”.1

3 O livro de Chloé Froissart está organizado em cinco partes. Na primeira parte, a autora foca-se no desenvolvimento do conceito de cidadania, analisando e descrevendo a reinterpretação e a readaptação deste conceito ao longo da história da República Popular da China (RPC). A mesma autora afirma ainda, no primeiro capítulo, que o

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sistema de registo hukou permitiu a conservação de uma natureza dual da sociedade chinesa. O hukou (hù = casa e kou = residente, que pode ser traduzido como “sistema de registo de residência”) simboliza o documento de identificação de um cidadão chinês, tendo sido criado em 1951 para os cidadãos das regiões urbanas e em 1955 para os cidadãos das regiões rurais, tendo como referencial o modelo da propiska.2 O hukou simboliza a residência oficial de um chinês, podendo esta ser classificada como rural ou urbana, e teve como principal objetivo criar uma industrialização sem urbanização (p. 96), afastando-se do conceito iluminista vindo do Ocidente. Este sistema de registo e de controlo da sociedade permite esclarecer as relações complexas existentes entre o estado e os cidadãos da China. Ao longo deste capítulo, o discurso da autora destaca que a existência de uma distinção dos cidadãos em função de critérios económicos, sociais, geográficos e hereditários continua a ser uma problemática atual. Por este motivo, a especialista opõe a conceção universalista, vinda do Iluminismo, à conceção maoista, na qual prima a ideia de uma vocação para a segregação, e que, portanto, para Chloé Froissart, “de cidadania apenas tem o nome” (p. 45).

4 Se o primeiro capítulo atesta que a ideologia e as lutas políticas do período maoista constituem um pressuposto irrefutável a fim de interpretar a expansão da Constituição e do direito na RPC, o segundo capítulo desenvolve um novo preconceito: o sistema administrativo do hukou como sendo o mais durável, mas também aquele que “invalida o âmbito aparentemente universal do direito chinês” (p. 47), visto que tende a autorizar o estado de partido único a “dividir para reinar” (Froissart, 2008 : 2).

5 No seguimento de uma exploração detalhada do conceito de cidadania, na segunda parte do livro, a autora analisa a forma como as reformas instauradas questionam o sistema institucional chinês, bem como concedem oportunidades para o reaparecimento dos trabalhadores migrantes. Assim, no desenvolvimento da segunda parte, uma imponente descrição de vários fatores económicos, políticos, institucionais e sociológicos é desenvolvida, a fim de apresentar ao leitor, de maneira clara e precisa, os fundamentos que levam, desde o ano de 1980 até ao princípio do ano de 2000, a um fluxo migratório de cidadãos rurais para as cidades. De forma geral, considera-se que foram essencialmente modificações institucionais resultantes do desmantelamento dos municípios populares, mas também dos encargos financeiros como consequência dos aumentos sucessivos dos impostos, que motivaram muitos cidadãos chineses a migrarem para outras regiões. A diminuição da rentabilidade das atividades agrícolas e o aumento das disparidades cidade-campo também se constituem como outros fatores de migração abordados por Froissart.

6 Na sequência de uma descrição detalhada das causas da recorrência, das características e perfis da migração interior na China, Chloé Froissart revela, lentamente, a alma do seu livro, com uma análise detalhada da situação dos trabalhadores migrantes nas cidades. A partir da exploração da forma como são aplicadas as políticas públicas à atenção dos trabalhadores migrantes, mais particularmente na cidade de Chengdu, a autora descreve a estreita relação existente entre a multitude de regulamentos e procedimentos burocráticos (e.g., condição de alojamento, emprego, educação) e a modelagem dos migrantes em condição de “cidadãos de segunda classe” e “de estrangeiros no seu próprio país” (p. 105).

7 No que concerne o quarto e o quinto capítulos, estes são bastante esclarecedores quanto à compreensão da política do estado chinês no que diz respeito às migrações. Adotando uma atitude de oposição face à lógica do mercado liberalizando o hukou nos

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polos urbanos menos desenvolvidos, as autoridades chinesas servem-se do mantimento do hukou de forma a orientar e controlar a imigração para as grandes cidades, em particular Pequim, Xangai e Cantão (p. 96). Este sistema tende a impor uma estrutura dualista da sociedade, com a introdução de procedimentos de controlo flexíveis na promoção da estadia dos trabalhadores rurais em zonas urbanas, permitindo o acesso a uma mão de obra barata e maleável, no sentido de potenciar uma economia em contínuo crescimento. A partir dos anos 90, a segregação e discriminação dos migrantes aumentou em consequência da instauração pelo estado chinês de serviços administrativos saturados de ambiguidades jurídicas e regulamentares, nomeadamente através da exigência de normas impostas pelo estado para a atribuição de licenças de residência e de emprego que conduzem à rejeição de uma parte da população migrante (p. 131). Segundo a especialista, são numerosos os obstáculos políticos, sociológicos, históricos e culturais que se opõem a uma consciencialização generalizada acerca dos direitos dos migrantes. A perceção da migração como uma fase provisória, uma repressão quotidiana ao estatuto de “camponês” e a dificuldade na concessão de uma igualdade dos seus direitos, são alguns dos fatores que dificultam a tomada de consciência por parte dos mingong a reivindicarem os seus direitos (p. 164). Por outro lado, os terrenos agrícolas mantêm-se como uma segurança em caso de crise, razão pela qual, uma grande maioria dos migrantes presentes nas cidades não desejam, em caso algum, renunciar às suas propriedades na terra natal. Por sua vez, a identificação constante do migrante ao estatuto de “camponês” e as dificuldades ligadas à sua integração nas zonas urbanas justificam ainda, segundo a mesma autora, esta decisão. No que diz respeito à posição dos migrantes face aos seus direitos, a sua desconfiança alusiva ao estado leva-os a priorizar os guanxi (relacionamentos pessoais). Esta escolha é maioritariamente tomada, uma vez que, os sindicatos, empregadores ou instituições locais raramente suscitam efeitos positivos e concretos. A indignação diária e a situação precária e frágil pelas quais os migrantes enfrentam os procedimentos de controlo social representam um fator essencial na forma de compreender as relações mingong- estado, tal como as representações que estes apresentam sobre o estado, os agentes do estado e a lei.

8 Relativamente à terceira parte do livro (capítulos 7 e 8), vários fatores sociais, económicos, políticos e ideológicos da migração são levantados, de forma a explicar como a questão da integração dos trabalhadores migrantes em zonas urbanas se foi gradualmente politizando e transformando numa questão essencial para o partido. A autora revela como, entre o início do ano de 1990 e o início do ano de 2000, o aumento das migrações, assim como o alargamento do tamanho das comunidades rurais dentro das cidades tende a escapar ao controlo do estado. O agravamento da criminalidade urbana e das ilegalidades, a auto-organização dos migrantes e a instabilidade social foram vários dos problemas constatados por diversos académicos chineses, que realçam a contradição entre a presença a longo termo de “novos urbanos” (xin shimin) nas cidades e o facto de estes não serem reconhecidos como tais pelo sistema e pelo discurso do partido (p. 212). A mensagem que sobressai no sétimo capítulo, é a de uma viragem para “uma nova maneira de conceber a ordem, assim como os custos e perfis ligados aos migrantes.” (p. 226). Por outras palavras, a consciencialização política acerca da importância da contribuição dos migrantes para a economia rural e urbana, bem como a necessidade de adaptar as políticas públicas em termos de “gestão e de controlo” por uma política de serviços (fuwu) adaptada aos trabalhadores migrantes.

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Estas representam algumas das etapas indispensáveis, referidas por Froissart, de forma a readquirir a confiança dos migrantes face a um estado de partido único (p. 209).

9 No capítulo seguinte, Chloé Froissart prende-se na importância do compromisso do mundo académico e na sua capacidade na construção de um novo ideal de cidadania. São, essencialmente, estas entidades que fazem “sobressair as migrações como legítimas, mostrando que os agricultores não podem fazer outra coisa senão migrar, e que a razão se deve diretamente à política de desenvolvimento maoista…” (p. 227). Assim, a autora focaliza a passagem de uma “sociologia dogmática” a uma “sociologia empírica” (p. 228). Ao interessar-se pelas causas históricas e sistemáticas da condição dos trabalhadores, os estudos sociológicos colocam em evidência a responsabilidade do estado através das suas políticas públicas, nomeadamente as reformas empreendidas sob o reino de Jiang Zemin entre 1993 e 2002. Este capítulo interessa-se ainda pela emergência de um número crescente e cada vez mais heterogéneo de atores sociais e políticos (académicos, médias, membros de ONG, artistas, etc.), capazes de mobilizar um novo discurso em favor da proteção dos direitos dos trabalhadores migrantes, sob a forma de um militantismo patriótico (pp. 245, 247). No entanto, a autora não se esquece de revelar a ambiguidade do novo discurso do Partido Comunista Chinês (PCC) acerca da cidadania e da forma como a questão dos migrantes foi politizada, quando estipularam que o início do ano de 2000 permitiu uma mudança ideológica e estratégica, ainda que esta mudança continue a representar apenas uma mudança simbólica: os trabalhadores migrantes veem-se transformados em “novos heróis que se sacrificam pela pátria, para os outros, para o bem comum” (p. 244). Chloé Froissart defende de forma argumentada, no desenvolvimento deste capítulo e dos anteriores, as razões que forçam o estado de partido único a adaptar as suas políticas e ideologias no que concerne a presença dos mingong nas zonas urbanas. Estes motivos resumem-se principalmente numa estratégia: perseguir o desafio de uma economia de mercado que impõe a sua presença, com o objetivo de frustrar as suas capacidades de auto- organização e, consequentemente, deixar-se influenciar pelas crescentes pressões sociais.

10 Se, até agora a autora acentua a dimensão global da situação dos migrantes, na quarta parte do seu livro, a mesma destaca, em particular, o plano local, focando-se mais precisamente na cidade de Chengdu. Ao longo da segunda metade da década de 1990, o desenvolvimento económico de Chengdu e as estratégias de reorientação das migrações intraprovinciais transformaram esta cidade num polo de imigração popular (p. 255). Nesta região, a migração aumenta em resposta ao crescimento substancial de vários setores, como a manufatura, a construção, a restauração e a venda por grosso e/ou a retalho, encorajada pelo estado, com o objetivo de reequilibrar o desenvolvimento das regiões costeiras e oeste do país, para outras províncias no interior. Nesta parte, Chloé Froissart analisa em particular a reforma do sistema de hukou, a segurança social, o sistema de educação e a forma como os mesmos contribuem “certamente para uma integração parcial dos trabalhadores em zonas urbanas, mantendo, no entanto, uma desigualdade com os urbanos” (p. 21). No que diz respeito à reforma do hukou, o exemplo da cidade de Chengdu permite reforçar a ideia de que, mesmo se algumas modificações são feitas graças à flexibilização das condições do estatuto de urbano, novas disparidades em função de critérios socioeconómicos têm tendência a ser criadas. A título de exemplo, no que concerne a segurança social, novas discriminações tendem a aparecer e a beneficiar uma categoria social mais favorecida, dando forma a uma “estratificação piramidal no interior da categoria dos migrantes entre a pequena elite

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que foi integrada no regime social dos urbanos, e outros, mais numerosos, que estão cobertos por um regime específico aos migrantes, e a grande maioria daqueles que não têm possibilidades para se assegurarem.” (p. 278). A reforma da educação, tal como acontece com a do hukou e a da segurança social, tende também a beneficiar uma população estável e financeiramente mais “segura”. No entanto, esta última, contrariamente às anteriores, permite o acesso de indivíduos pertencentes a uma “elite de migrantes” a beneficiarem do mesmo direito à educação que os habitantes urbanos e a um serviço público verdadeiro.

11 Finalmente, na quinta e última parte do seu livro, Chloé Froissart apresenta, em duas etapas, a forma como os migrantes se tornaram ativos e como estes, com a ajuda de intelectuais, organizações não governamentais (ONG), redes de ajuda mútua, especialistas, entre outros, iniciaram negociações e “uma resistência com base na lei” (p. 355). A fim de explorar esta questão, o capítulo 11 é dedicado inteiramente ao caso Sun Zhigang.3 Este caso é analisado enquanto episódio denunciante “do nascimento de uma cidadania universal nas representações (os urbanos identificando-se aos migrantes)…” (pp. 328, 21). Esta história, permite testemunhar de forma argumentada os tumultos atuais, que poderiam vir a modificar o funcionamento da sociedade civil na China. Por último, o capítulo 12, último capítulo do livro, examina mais profundamente a natureza do “movimento para a proteção dos direitos”, revelando a questão do papel das ONG chinesas. Aqui, a natureza das relações que algumas destas ONG mantêm com o poder, a repressão constante à qual estão sujeitas e o seu baixo grau de autonomia face às estratégias do PCC são evidenciadas. No entanto, Froissart enfatiza a importância que estas têm no desenvolvimento técnico, moral e social em relação aos migrantes, acautelando sobre o papel ambíguo e limitado, principalmente através da promoção de uma “mudança na continuidade” (p. 371). O argumento central deste capítulo é que as ONG incentivam os migrantes a apoiarem-se em leis “imperfeitas” para defender a sua mobilização e, assim, contribuirem para o reforço da legitimidade do regime. Este argumento é bastante desconcertante, porém, poderia efetivamente revelar-se autêntico no que diz respeito às ONG chinesas patrocinadas pelo governo.4 Não obstante, atualmente, outras ONG que se encontram numa estratégia mais civil e sem relação com o governo tendem a surgir. Obviamente, o grau de influência que estas organizações têm ainda deverá ser investigado no futuro, mas a questão que aqui surge é, precisamente: a qual tipo de ONG a autora faz referência nas suas observações? Froissart, num artigo mais recente de 2014, demonstra, claramente, que o apolitismo exibido por algumas associações promove a evolução de formas de representação, de gestão de conflitos e de renegociação dos modos de exercício do poder do regime autoritário chinês (Froissart, 2014).

12 Em relação à teoria, esta encontra-se solidamente construída e argumentada pela autora, especialmente a nível empírico, não só com informações de primeira mão, coletadas a partir de entrevistas e observações etnográficas feitas entre 2002 e 2007 em Chengdu, Shenzhen e Pequim, mas também pela extensa literatura produzida na China, com relatórios de especialistas comandados pelas autoridades e de numerosos trabalhos universitários (e.g., documentos do Conselho de Assuntos Estaduais, Municipais). Assim, nada pode ser dito em detrimento da autora. Torna-se básica e exclusivamente na razão pela qual este livro se revela uma fonte de informação amplamente fascinante e estimulante.

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13 Não obstante, conhecendo o trabalho exaustivo de terreno desenvolvido pela autora para a realização da sua tese, poderia dizer-se que a única reserva se estende ao facto de o leitor esperar mais detalhes sobre as questões ligadas à metodologia. Ainda que, ao longo do livro, a experiência da especialista sobressaia frequentemente, uma explicação mais detalhada sobre o método como a pesquisa foi realizada no terreno, quais as metodologias usadas, em que circunstâncias, quais as limitações e dificuldades, ou ainda, como ser uma política junto de populações vulneráveis num país autoritário como a China, são questões que, infelizmente, não são abordadas no livro. Dois outros tópicos poderiam igualmente ter sido investigados mais profundamente: o primeiro consiste no papel das empresas e da indústria no que diz respeito aos direitos dos migrantes, uma vez que este livro poderia ter abordado e investigado com maior detalhe a parte de responsabilidade que algumas empresas ocidentais têm na condição de emprego dos migrantes; o segundo ponto seria, e já foi colocado em evidência por Dorothy Solinger (1999b) no início do ano 2000 e, atualmente, por Wu Weiping e Wang Guixin (2014), a influência que as empresas estrangeiras pertencentes ao estado e fundadas sob a lei poderiam ter ao envolver-se na China e nas suas atividades económicas. Resta-me depois da análise e revisão desta leitura, colocar as seguintes questões: estará, neste momento, uma mudança em curso? Existe alguma diferença entre os direitos dos migrantes nas indústrias puramente chinesas e nas estrangeiras?

14 No entanto, ao focar-se no que está a mudar a partir do interior, este livro representa uma referência, em francês, para a compreensão de um fator social crucial que envolve transformações decisivas da sociedade e do sistema político chinês. Ao traçar a evolução dos migrantes em termos de cidadania, Chloé Froissart dá ainda a possibilidade, a um leque alargado de leitores, de expandir conhecimentos acerca das dificuldades enfrentadas pelos mingong ao longo da história e nos dias que correm.

BIBLIOGRAFIA

Froissart, Chloé (2008), “Le système du hukou: pilier de la croissance chinoise et du maintien du PCC au pouvoir”, Les Etudes du CERI (Centre d’Etudes et de Recherches Internationales), 149.

Froissart, Chloé (2014), “L’émergence de négociations collectives autonomes en Chine”, Critique Internationale, 4, pp. 43-63.

Solinger, Dorothy J. (1999a), Contesting Citizenship in Urban China. Peasant Migrants, the State, and the Logico f the Market, Berkeley, CA, University of California Press.

Solinger, Dorothy J. (1999b), “Citizenship issues in China’s internal migration: comparisons with and Japan”, Political Science Quarterly, The Academy of Political Science, 114 (3), pp. 455-478.

Weiping Wu, e Wang Guixin (2014), “Together but unequal: citizenship rights for migrants and locals in urban China”, Urban Affairs Review, 50 (6), pp. 781-805.

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NOTAS

1. Por exemplo sobre as cidades de Xangai e Pequim: Wu Weiping (2014). 2. Palavra russa para “permissão de residência temporária”. Este sistema foi oficialmente instituído durante o período soviético, em 1932, quando a utilização de passaportes internos se tornou obrigatória, de forma a regular o movimento populacional por meio da fixação de pessoas em seus locais de residência permanente. (N. da A.) 3. Sun Zhigang, um estudante de 27 anos, graduado das Belas-Artes é levado, no dia 17 de março de 2003, para um “centro de detenção e investigação”, isto é, um centro de detenção para imigrantes, onde morreu três dias depois. As circunstâncias da morte do jovem estiveram na origem de uma mobilização social e de uma indignação coletiva. Esta mobilização levou ao cancelamento deste tipo de centros de detenção pelo sistema chinês. (p. 325) (N. da A.) 4. Também conhecidas pelo nome de GONGO (organização não governamental orientada pelo governo). (N. da A.)

AUTORES

VIRGINIE ARANTES Virginie Arantes. Doutoranda em Ciências Políticas e Sociais no Centro de Estudos da Vida Política (Cevipol), Faculté de Philosophie et Sciences Sociales, Université Libre de Bruxelles, Chaussée de Namur, 105, 5537 Anhée, Bélgica. E-mail:[email protected]

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