NETmundial, um ano depois... Relatório de participação no 9º Internet Governance Forum

Uma publicação do Instituto Nupef • abril / 2015 • www.politics.org.br O Instituto Nupef é uma organização sem fins

de lucro dedicada à reflexão, análise, produção de conhecimento e

formação, principalmente centradas em questões relacionadas às

Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) e suas relações

políticas com os direitos humanos, a democracia, o desenvolvimen-

to sustentável e a justiça social.

Além de realizar cursos, eventos, desenvolver pesquisas e estudos

de caso, o Nupef edita a poliTICs, a Rets (Revista do Terceiro Setor)

e mantém o projeto Tiwa – provedor de serviços internet voltado

exclusivamente para instituições sem fins lucrativos – resultado de

um trabalho iniciado há 21 anos, com a criação do Alternex (o pri-

meiro provedor de serviços internet aberto ao público no Brasil).

O Tiwa é um provedor comprometido prioritariamente com a pri-

vacidade e a segurança dos dados das entidades associadas; com a

garantia de sua liberdade de expressão; com o uso de software livre

e de plataformas abertas não-proprietárias.

Rua Sorocaba 219, 501 | parte | Botafogo | CEP 22271-110 | Rio de Janeiro | RJ | Brasil “Balcanização da Internet” Telefone/fax +55 (21) 3259-0370 | www.nupef.org.br Conheça os perigos da utilização do termo nas negociações sobre a governança da rede Entenda a origem e a evolução dos modelos multissetoriais nº20 EDITOR CARLOS A. AFONSO • CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO MONTE DESIGN COORDENAÇÃO TÉCNICA E VERSÃO ONLINE: PAULO DUARTE • TRADUÇÕES RICARDO SILVEIRA

Índice Comitê Consultivo da poliTICs: > Avri Doria > Carlos Affonso Pereira de Souza > Deirdre Williams > Demi Getschko > Graciela Selaimen > Jeremy Malcolm > João Brant > > Marilia Maciel 02 > Mawaki Chango > Valeria Betancourt >A fragmentação da balcanização da Internet Na versão online da poliTICs há mais informações sobre cada um dos membros do nosso Comitê Consultivo. Sérgio Alves Jr. Consulte http://www.politics.org.br

Rua Sorocaba, 219 | 501 - parte | Botafogo | 22271-110 >12 Rio de Janeiro RJ Brasil | telefone +55 (21) 3259-0370 Origem e evolução dos Apoio: modelos multissetoriais Virgílio Almeida | Demi Getschko | Carlos A. Afonso

Esta é uma publicação do Instituto Nupef. Versão digitalizada disponível em www.politics.org.br >22 e no sítio do Nupef - www.nupef.org.br | Para enviar sugestões, críticas ou outros comentários: [email protected] NETmundial, um ano depois A tiragem das edições da poliTICs é pequena. Se quiser receber gratuitamente a edição impressa, envie um email a Marília Maciel [email protected] com seu nome, endereço completo incluindo CEP, e área de atuação.

Os originais foram compostos com OpenOffice 3.X e GNU/Linux

>28 Publicado sob licença Creative Commons – alguns direitos reservados: Relatório de participação no ATRIBUIÇÃO. USO NÃO-COMERCIAL. VEDADA A CRIAÇÃO 9º Internet Governance Forum Você deve dar crédito ao autor Você não pode utilizar DE OBRAS DERIVADAS. Flávio Rech Wagner original, da forma especificada esta obra com finalidades Você não pode alterar, transformar pelo autor ou licenciante. comerciais. ou criar outra obra com base nesta.

• Para cada novo uso ou distribuição, você deve deixar claro para outros os termos da licença desta obra. • Qualquer uma destas condições podem ser renunciadas, desde que você obtenha permissão do autor. ISSN: 1984-8803

A poliTICs procura aderir à terminologia e abreviaturas do Sistema Internacional de Unidades (SI), adotado pelo Instituto Nacional de Metrologia do Brasil (Inmetro). Assim, todos os textos são revisados para assegurar, na medida do possível e sem prejuizo ao conteúdo, aderência ao SI. Para mais informação: http://www.inmetro.gov.br/consumidor/unidLegaisMed.asp nº20 EDITOR CARLOS A. AFONSO • CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO MONTE DESIGN COORDENAÇÃO TÉCNICA E VERSÃO ONLINE: PAULO DUARTE • TRADUÇÕES RICARDO SILVEIRA

Índice Comitê Consultivo da poliTICs: > Avri Doria > Carlos Affonso Pereira de Souza > Deirdre Williams > Demi Getschko > Graciela Selaimen > Jeremy Malcolm > João Brant > Louis Pouzin > Marilia Maciel 02 > Mawaki Chango > Valeria Betancourt >A fragmentação da balcanização da Internet Na versão online da poliTICs há mais informações sobre cada um dos membros do nosso Comitê Consultivo. Sérgio Alves Jr. Consulte http://www.politics.org.br

Rua Sorocaba, 219 | 501 - parte | Botafogo | 22271-110 >12 Rio de Janeiro RJ Brasil | telefone +55 (21) 3259-0370 Origem e evolução dos Apoio: modelos multissetoriais Virgílio Almeida | Demi Getschko | Carlos A. Afonso

Esta é uma publicação do Instituto Nupef. Versão digitalizada disponível em www.politics.org.br >22 e no sítio do Nupef - www.nupef.org.br | Para enviar sugestões, críticas ou outros comentários: [email protected] NETmundial, um ano depois A tiragem das edições da poliTICs é pequena. Se quiser receber gratuitamente a edição impressa, envie um email a Marília Maciel [email protected] com seu nome, endereço completo incluindo CEP, e área de atuação.

Os originais foram compostos com OpenOffice 3.X e GNU/Linux

>28 Publicado sob licença Creative Commons – alguns direitos reservados: Relatório de participação no ATRIBUIÇÃO. USO NÃO-COMERCIAL. VEDADA A CRIAÇÃO 9º Internet Governance Forum Você deve dar crédito ao autor Você não pode utilizar DE OBRAS DERIVADAS. Flávio Rech Wagner original, da forma especificada esta obra com finalidades Você não pode alterar, transformar pelo autor ou licenciante. comerciais. ou criar outra obra com base nesta.

• Para cada novo uso ou distribuição, você deve deixar claro para outros os termos da licença desta obra. • Qualquer uma destas condições podem ser renunciadas, desde que você obtenha permissão do autor. ISSN: 1984-8803

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trabalho de Sérgio Alves Junior, especialista da Governança da Internet (NETmundial) em abril O em regulação de telecomunicações, analisa de 2014 e atualmente participa do Conselho da as origens e significado do termo “balcanização Iniciativa NETmundial, faz um conciso balanço da Internet” - expressão que procura qualificar as dos processos de governança desde o referido fronteiras de jurisdição, comércio e geopolítica encontro, particularmente em razão da relevância que possam delimitar o caráter universal e internacionalmente atribuída ao documento final transfronteira da rede. O autor vem trabalhando do evento - que estabelece um conjunto de no tema em suas pesquisas na Universidade de princípios e uma proposta de parâmetros para Berkeley e já publicou artigos relacionados. a construção de um caminho para o avanço do Esta é uma versão mais completa e especial para ecossistema da Internet. a poliTICs. O Brasil sediará em João Pessoa o 10º Fórum de O texto de Virgilio Almeida, Demi Getschko e Governança da Internet da ONU (IGF), de 10 a 13 de Carlos A. Afonso busca fazer um breve histórico e novembro de 2015. O professor Flávio Rech Wagner, analisar as características de processos pluralistas pesquisador da UFRGS e conselheiro do CGI.br, de participação, motivado pelos debates recentes apresenta uma excelente contribuição de referência sobre a relevância e limites do multissetorialismo para quem participará tanto do processo de discussão (multistakeholderism) nos processos decisórios e de nos fóruns nacionais e regionais preparatórios, como governança. De especial interesse são os processos do evento em si, com uma detalhada análise do multissetoriais de governança dos vários aspectos 9º IGF de Istambul (2014) e de seus resultados, e funções relacionados à Internet. limitações, avanços e desafios. Marília Maciel, que atuou no comitê executivo do Encontro Global Multissetorial sobre o Futuro Boa leitura! 02

Sérgio Alves Jr. Pesquisador do Centro de Direito, > Internet e Sociedade do Instituto Brasiliense de Direito Público (CEDIS/IDP)

A fragmentação da balcanização da Internet ::  I. BALCANIZAÇÃO DA INTERNET de novos cabos submarinos para Europa e África), PARA TODOS Rússia (restrições de acesso a Internet e controle Muitos leitores que acompanham a conjuntura de mídias sociais), Índia (proposta de criação de da governança da Internet (IG) devem ter observado órgão nas Nações Unidas dedicado à coordenação referências recentes na mídia sobre as ameaças de temas de IG), China (Grande Muralha de “balcanização da Internet”. O termo tem sido Cibernética da China – Great Firewall of China), utilizado para descrever uma variedade de alternativas Irã (Internet Halal), Turquia (bloqueio a mídias regulatórias sendo consideradas ou adotadas pela sociais), Europa (padrões muito elevados de União Internacional de Telecomunicações (UIT) privacidade e estímulos à formação de uma nuvem (eventos recorrentes liderados por governos), Brasil pan-europeia). A diversidade do grupo sugere que (propostas de retenção local de dados e lançamento não podem estar todos fazendo a mesma coisa. poliTICs 03

balcanização

Alguns desses atores pedem o isolamento de de suas ações, todos têm sido invariavelmente conteúdo nacional; alguns clamam por mais rotulados como “balcanizadores”. privacidade e proteção de dados, e são reações Inspirado pela curiosidade da etimologia e à vigilância em massa conduzida pelos Estados variações semânticas do termo, o texto oferece Unidos; alguns cumprem leis nacionais que não são alguns conceitos para “balcanização da Internet” particularmente relacionadas à Internet; alguns e retoma o emprego histórico do vocábulo original clamam por maior cooperação internacional para (“balcanização”) no sistema jurídico americano. assegurar que leis nacionais sejam respeitadas Em seguida, argumenta-se que esse efeito está (incluindo a proteção de dados) e que nenhum presente também no (ciber) território americano país tenha um papel dominante na governança da e impacta os negócios nacionais de empresas de Internet. Independentemente das especificidades tecnologia que exploram mercados tão inovadores 04 A fragmentação da balcanização da Internet

e diversos como o compartilhamento de caronas, bastante parcial, para dizer o mínimo. No contexto compartilhamento de alojamentos, empréstimos corrente das negociações de governança da peer-to-peer, jogos de azar online e vendas online de Internet, seria bastante mais preciso se referir carros elétricos nos EUA. Ao menos nesses casos, a também à história dos Estados Unidos da América “balcanização da Internet” não mantém nenhuma como uma federação, bem como à utilização da relação com aspectos de segurança cibernética expressão “balcanização” pela academia e sistema global ou decisões exógenas de atores estrangeiros, jurídico americanos, do que à da Península associações frequentes nas discussões sobre o Balcânica em si. tema; trata-se de dificuldades nada excepcionais Em sua conotação moderna, alguns stakeholders impostas por normas e políticas econômicas cautelosamente fazem alusão à importância concorrentes entre entes federados que formam suprema de unicidade nas camadas mais baixas os próprios Estados Unidos, ou seja, uma questão da arquitetura da Internet (Internet Governance essencialmente de comércio e jurisdição. Forum, 2014), mas a literatura de tecnologia é muito mais rica do que isso e se refere a ::  II. FRAGMENTANDO UM CONCEITO “balcanização da Internet” como: O termo “balcanização” foi cunhado em uma entrevista com o político alemão Walther Rathenau u formas de segregar as pessoas online ao New York Times, em 1918, que analisava o de acordo com suas preferências: maior processo geopolítico de fragmentação do Império conectividade não implicaria necessariamente Otomano e a consequente formação de estados o surgimento de uma vila global, o que menores não-cooperativos na região dos Bálcãs fragmentaria a sociedade e balcanizaria as (Todorova, 2009). A versão moderna dessa metáfora interações no espaço virtual (Van Alstyne & tem sido empregada (sem créditos a seu criador) Brynjolfsson, 1997); para descrever processos diversos e cenários iminentes que ameaçariam a promessa de unicidade u diferentes níveis de interconexão de de uma Internet global, conforme idealizada por infraestruturas para a Internet: acordos pioneiros como Tim Berners-Lee, e Bob discriminatórios e hierárquicos entre Kahn (Markoff, 2013; Schmidt & Cohen, 2013; Clark, provedores de serviços de Internet, com 2014; Larson, 2014; Morozov, 2014). o objetivo de mitigar congestionamento, Embora a referência à história dos Bálcãs seja aumentar a qualidade do serviço e resolver bastante direta (Kurbalija, 2012), é também problemas de alocação de custos, poderiam poliTICs 05

levar à balcanização de zonas rurais com pouca ::  III. BALCANIZAÇÃO COMO BARREIRA atratividade econômica (Frieden, 1998); AO COMÉRCIO, CONFORME O DIREITO CONSTITUCIONAL DOS EUA u fragmentos resultantes de forças regulatórias O que os autores anteriores aparentemente e culturais: com o emprego de softwares de não perceberam ou explicitaram é que esse geolocalização, capacidades de banda desiguais, conceito traz implicações diretas nas searas de regras distintas de privacidade e propriedade comércio e jurisdição. Nesse sentido, o Direito intelectual, seria possível privilegiar rotas de Constitucional americano é fundamental tráfego de Internet e promover a censura para se entender o significado e as origens de (Wu, 2004); e “balcanização” como o argumento que tem sido trazido para o vernáculo e a agenda política u uma agenda diplomática: sob a ótica da política global da Internet. externa americana e inspiração utópica de Desde a promulgação da constituição americana, Tim Berners-Lee, para quem as leis da Internet cortes e legisladores lutam para fazer o ajuste deveriam ser as mesmas em todos os lugares, fino entre os poderes federal e estadual. Esse “assim como as leis da física”, o foco estaria em exercício constitucional constante permitiu a (a) ameaças ao Sistema de Nomes de Domínio coexistência de modelos regulatórios distintos (DNS), (b) a gradativa transição IPv4 para IPv6, dentro do mesmo país, com estados optando por (c) censura, bloqueio e filtros na Internet, (d) abordagens diferentes para uma mesma questão a falência dos modelos tradicionais de acordos (ou abordagens diferentes para diferentes lados de de peering e trânsito / neutralidade de redes, uma mesma questão). (e) o colapso de processos de definição de A dupla soberania decorrente do federalismo padrões para a Internet e (f) regimes locais de americano resolveu muitos e deu origens a tantos privacidade (Hill, 2012). outros desafios de integração econômica do país. Para garantir a unidade nacional, os estados Esses estudos revelam que o vocabulário enfrentam limitações no controle de suas questões da Internet parece estar nos pregando peças domésticas e contam com o governo federal para novamente; o mesmo termo pode ser usado para regular o comércio interestadual (Abernathy, 2006). descrever fatos distintos e versões distintas de A Cláusula de Comércio da constituição dos EUA um mesmo fato, gerando confusões inadvertidas e determina que o Congresso tem o poder “para também intencionais. regular o Comércio com Nações estrangeiras, 06 A fragmentação da balcanização da Internet

e entre os diversos Estados, e com as Tribos “O resultado prático (de barreiras locais que afetam Indígenas”. Ela também implica que os estados a condução dos negócios interestaduais) é que, na não podem aprovar legislações que oprimam falta de ação por nós, elas vão continuar sufocando e ou discriminem excessivamente o comércio retardando e Balcanizando o comércio, as trocas e a interestadual no país (conhecida como a Cláusula indústria americanos.” (Grifou-se) de Comércio “Dormente”). Esse poder federal de regular o comércio interestadual é o mais relevante B) HP Capa & Sons v. Du Mond, US 525 336 para este texto. (1949) A Suprema Corte dos EUA construiu um Em H. P. Hood & Sons, o requerente, um distribuidor longo legado de interpretação dessa cláusula, de leite em Massachusetts, operava três instalações oscilando entre tendências centralizadoras e de armazenagem licenciadas sob a legislação de descentralizadoras do federalismo, de acordo com o Nova Iorque e solicitou uma licença para operar debate político americano e o diálogo constitucional uma quarta instalação. O Comissário de Nova histórico (Scheiber, 1996). Em 1941, a Suprema Iorque, que argumentou que as instalações iriam Corte já empregava a palavra “balcanização” para reduzir a oferta de leite para mercados locais e explicar parcialmente o porquê de os formuladores prejudicaria a concorrência no mercado, não da Constituição americana terem unificado o país concedeu a nova licença. A Corte entendeu que a no século XVIII e delegado a regulação do comércio lei nova-iorquina violara a Cláusula de Comércio. interestadual a uma autoridade central do poder Este caso evocou a decisão de Duckworth e alocou federal (o Congresso). o raciocínio jurídico sobre balcanização ao campo semântico do libertarianismo: A) Duckworth v. Arkansas, 314 U.S. 390 “... medo de que a tolerância judicial por (U.S. 1941) quaisquer regulamentos estaduais sobre fases Em Duckworth, a Suprema Corte entendeu que uma locais de comércio trarão o que eles chamam de lei do Arkansas que requeria uma permissão para o ‘balcanização’ do comércio nos Estados Unidos — transporte de bebida alcóolica através do estado não barreiras comerciais entre os estados tão altas que violava a Cláusula de Comércio. O requerimento exigia impedem fluxos de comércio interestadual. Outras a identificação das pessoas envolvidas no transporte, pessoas acreditam nessa filosofia por causa de uma suas rotas, pontos de destinação e o pagamento hostilidade instintiva a qualquer regulamentação de uma taxa nominal. O caso registra a primeira governamental à ‘livre empresa’; este grupo prefere referência a “balcanização” pela Suprema Corte: uma economia de ‘laissez faire’. Para eles, o poliTICs 07

espectro da ‘burocracia’ é mais assustador do que a de 1648, geralmente citados como péssimas e ‘Balcanização’.” (Grifou-se) desatualizadas referências para a regulação de assuntos de Internet (La Chapele, 2012; Cerf, Ryan C) Hughes v. Oklahoma, 441 US 322 (1979) & Senges, 2013); uma abordagem de que o governo e Em Hughes, o recorrente do Texas era licenciado os gigantes de tecnologia americanos normalmente para operar um negócio em que comercializava tentam se esquivar em suas peixes do tipo vairão (pequenos peixes utilizados agendas internacionais. como isca). Após transportar uma leva desses peixes adquirida de um negociante em Oklahoma, ::  IV. BALCANIZAÇÃO DA (CIBER) ele foi multado por violar lei estadual que proibia TERRA PÁTRIA transportar, para fora do território de Oklahoma, Ao reconhecer que conflitos entre regulamentações vairões oriundos de águas deste estado com o locais, estaduais e federais são absolutamente objetivo de venda. A Suprema Corte considerou que normais na maioria dos Estados federados, a lei de Oklahoma violara a Cláusula de Comércio, a “balcanização”, conforme historicamente e resumiu um objetivo da Constituição americana e referenciada por tribunais norte-americanos, uma preocupação de seus formuladores: parece não ser algo assim tão estranho. De fato, “... a fim de obter sucesso, a nova União teria que é possível argumentar que indústrias inovadoras evitar as tendências de balcanização econômica estariam experimentando a prestação de serviços que atormentaram as relações entre as Colônias de uma Internet balcanizada nos Estados Unidos e mais tarde entre os Estados sob os Artigos da que se assemelharia ao debate constitucional sobre Confederação.” (Grifou-se) “balcanização econômica”, com estados optando por abordagens distintas para os desafios impostos A Suprema Corte dos Estados Unidos manifestou por novas tecnologias e frustrando a ideia de a sua preocupação com “balcanização” em cerca um ecossistema de Internet plano naquele país de trinta casos desde 1941. Na maioria das vezes, individualmente considerado. balcanização era essencialmente uma questão de política econômica resultante da dupla soberania A ) Empréstimos peer-to-peer (P2P) derivada do federalismo americano (Alves Jr, Prosper e LendingClub são as duas principais 2014). Em outros termos, trata-se de uma questão plataformas de empréstimo entre particulares de comércio e jurisdição, desafio clássico que com fins lucrativos na Internet, operando antecede até mesmo os tratados de Paz de Vestefália desde 2005 e 2007, respectivamente. 08 A fragmentação da balcanização da Internet

Sediadas em São Francisco, na Califórnia, ambas B) Jogos de azar online permitem que credores escolham e financiem A Lei de Transferências Interestaduais de 1961 empréstimos a mutuários cujos perfis são publicados sempre foi interpretada como uma proibição em seus sites. Após períodos de crescimento contra apostas online (Federal Wire Act, 2014). constante, Prosper e LendingClub tiveram seus A lei determinava que comunicações por fios serviços suspensos por alguns meses em meados de (telefone, cabos, fibra ótica, Internet) não 2008 para se registrarem na Comissão de Valores poderiam ser utilizadas para a transmissão de Mobiliários e continuam a prosperar desde então. apostas ou de informações de apoio a apostas no Ambas as empresas afirmam serem capazes de comércio interestadual. Os infratores seriam oferecer taxas de retorno mais altas aos credores multados ou presos. e juros mais baixos aos mutuários do que fontes Em 2011, o Departamento de Justiça dos EUA tradicionais de crédito disponíveis na praça (United exarou opinião de que as proibições da Lei de States Government Accountability Office, 2011). Transferências Interestaduais ainda se aplicariam Um arranjo complexo de leis estaduais sobre a eventos esportivos, mas silenciou sobre jogos de valores mobiliários, finanças e direito do consumidor azar online (Wyatt, 2011). Desde então, os estados impede que essas empresas operem em todo o país. de Delaware, Nevada e Nova Jersey aprovaram leis A Prosper está atualmente aberta para investidores que autorizavam apostas online (Ruddock, 2013a). americanos de 30 estados e tomadores de empréstimo Os sites autorizados oferecem serviços restritos de 47 estados; enquanto a LendingClub, a 26 e 45, a jogadores fisicamente presentes nesses estados respectivamente. Este cenário é causado, mormente, apenas, geralmente se fazendo valer de softwares pela rigidez variável de leis estaduais, que oferecem de geolocalização para verificar a autenticidade abordagens diferentes para os riscos que credores e das informações. devedores enfrentam no modelo de P2P online. Embora haja sinalizações de que outros estados Ao passo que a Prosper ultrapassa a barreira seguirão o exemplo (Gruetze, 2014), esse movimento de um bilhão de dólares em empréstimos expansionista não acontece sem oposição. O magnata (Cunningham, 2014a), o banco Wells Fargo luta de cassinos Sheldon G. Adelson está patrocinando para gerenciar suas próprias políticas internas uma lei e uma nova Coalizão para Abolir os Jogos que proibiram funcionários de investirem nessas na Internet (Confessore & Lipton, 2014) para se plataformas online (Alloway, 2014). contrapor à Coalizão pelo Consumidor & Proteção Para alguns analistas, é um claro indicativo de que Online (Coalition for Consumer and Online os bancos afinal se importam com o negócio de Protection, 2014), organizada pelos representantes da empréstimo P2P (Cunningham, 2014b). indústria de cassino favoráveis à ampla legalização. poliTICs 09

Ao passo que essas disputas impedem empresas apenas exibir o carro em seus salões, e o cliente em como a californiana Zynga de oferecerem cassinos potencial é obrigado a conferir o preço na Internet com moeda real similares aos que disponibiliza (os funcionários do showroom são proibidos de na Internet em outros países (Lunden, 2014), os mencionar o preço) e eventualmente comprá-lo entusiastas de outros estados ainda podem viajar pela web, uma transação que juridicamente ocorre para esses territórios isolados e se conectarem na Califórnia. às redes wi-fi de algum hotel para algumas horas A Carolina do Norte quase elevou essas restrições dedicadas às apostas online. a um patamar totalmente novo quando, em 2013, senadores do estado apresentaram um projeto de lei C) Venda online de carros elétricos (que foi posteriormente abandonado) que proibia A Tesla Motors é uma fabricante de carros elétricos a venda online direta de carros naquele estado e componentes para veículos elétricos fundada em (Oremus, 2013), o que, segundo a Tesla Motors, 2003, em Palo Alto, na Califórnia. Sob a liderança de acabaria por obstar a comunicação via Internet Elon Musk (o mesmo fundador de PayPal e SpaceX), com a empresa. a empresa inova tanto na indústria de carros Nessas linhas, pode-se levantar argumentos elétricos quando no modelo geral de negócios de semelhantes (de balcanização da Internet nos automóveis. Em vez de depender de representantes Estados Unidos, com viés econômico) sobre concessionários tradicionais, a Tesla opera suas compartilhamento de caronas e de alojamento, lojas e galerias próprias para vender veículos de luxo onde empresas como Uber, Lyft, Sidecar, e Airbnb diretamente ao consumidor, que desfruta de um enfrentam os regulamentos locais e lobby agressivo produto com características únicas de desejo, alto da indústria de táxis e de hotéis com o objetivo de desempenho e a melhor tecnologia de baterias do limitar ou proibir essas empresas de operarem em mercado (Gordon-Bloomfield, 2013). várias cidades americanas. Os opositores desses Além da esperada concorrência com a indústria novos negócios normalmente levantam argumentos automobilística, a Tesla Motors enfrenta fortes sobre regras tributárias, de segurança e registros entraves regulatórios em seu modelo baseado em administrativos para combater as investidas das showrooms autônomos e vendas online, pois vários empresas de Internet. estados, como Arizona, Texas, Virgínia, Ohio, Nova Todos esses casos sinalizam o tipo de medida Jersey, têm leis que restringem ou proíbem a venda regulatória protecionista contra a Internet que direta de carros para consumidores de varejo sem é considerada por regiões e empresas altamente o intermédio de revendedores concessionários dependentes de modelos de negócios tradicionais (Jones, 2014). Em alguns estados, a empresa pode nos Estados Unidos. Até certo ponto, os desafios 10 A fragmentação da balcanização da Internet

de todos esses negócios mimetizam a fórmula da como ocorreu nos Bálcãs, mas também à neutralidade da rede: uma empresa incumbente “balcanização econômica”, conforme considerado de um grande setor altamente regulado desafiada na interpretação da Cláusula de Comércio da por um entrante inovador, com algum tipo de constituição dos EUA. autoridade reguladora no meio do caminho. À medida que os principais representantes da indústria de Internet começam a perceber a ::  V. UNIFICAÇÃO E RACIOCÍNIO INDUTIVO inadequação do termo para descrever um problema “Balcanização da Internet” é uma das expressões global, eles tentam avançar uma agenda preocupada mais capciosas das disputas políticas globais em com “fragmentação da Internet”, com importantes curso sobre a Internet. Ela significa, entre outras iniciativas dedicadas a delimitar o que isso realmente coisas, (i) formas de segregar as pessoas online de significa e como lidar com a questão. acordo com suas preferências; (ii) diferentes níveis É certamente uma abordagem melhor, uma estratégia de interconexão de infraestruturas para a Internet; que só eventualmente acabará por revelar o que (iii) fragmentos resultantes de forças regulatórias mais proeminentemente interessa a uma empresa e culturais; (iv) uma agenda diplomática; e (v) uma de Internet: as maravilhas e magnitudes de uma questão de comércio e jurisdição. Ela pode decorrer economia em rede (Cassidy, 2014). da ação de agentes estrangeiros e também de forças Sob a ótica proposta nesse artigo, se há um atuantes em um mesmo território soberano. problema de balcanização da Internet, a chegada No presente contexto midiático e diplomático, do Fórum Econômico Mundial em debates de a balcanização da Internet não é exclusivamente governança da Internet e os contornos que a um efeito análogo à “balcanização geopolítica”, NetMundial Initiative começa a tomar deveriam ser recebidos com mais naturalidade e menos espanto. Aparentemente, o liberalismo sempre subjazeu ao discurso. “Balcanização da Internet” Construir formas de combater a censura e é uma das expressões mais promover a confiança na natureza distribuída capciosas das disputas da Internet devem ser as premissas para os políticas globais em curso desenvolvimentos recentes sobre governança da sobre a Internet. Internet. A fim de contribuir para esse esforço, o termo polissêmico “balcanização da Internet” não deve ser empregado como um mero argumento de poliTICs 11

retórica. Algumas de suas origens podem implicar que a solução para “balcanização” seria convocar uma Convenção Constitucional global formal, aos “Balcanização” é um moldes do que os formuladores da constituição termo pejorativo, americana outrora fizeram. Nesse cenário, Estados independentemente de todas soberanos enfrentariam limitações no controle de as transformações e suas questões domésticas e contariam com uma derivações por que passou ordem central suprema para regular transações ao longo do século. transfronteiriças de Internet e outros desafios usuais relacionados à Internet e jurisdição. Paradoxalmente, isso não seria do interesse dos atores que mais fomentam o discurso sobre termo tem sido completamente descontextualizado “balcanização”, pois estão convictos de que o e paradigmaticamente relacionado com uma processo multissetorial (“multistakeholder”) é capaz variedade de problemas. Que os Bálcãs têm sido de assegurar um quadro suficientemente inovador descritos como o “outro” da Europa não precisa e confiável para a governança da Internet. de prova especial. O que tem sido enfatizado sobre Se esses trava-línguas não forem suficientes, os Bálcãs é que seus habitantes não se importam há um motivo nobre para abandonar essa em estar em conformidade com os padrões de expressão nas negociações de governança da comportamento imaginados como normativo Internet: “balcanização” é um termo pejorativo, pelo e para o mundo civilizado. Como acontece independentemente de todas as transformações com qualquer generalização, esta se baseia em e derivações por que passou ao longo do século. A reducionismo, mas o reducionismo e os estereótipos historiadora búlgara Maria Todorova, da Universidade sobre os Bálcãs têm sido de tal forma e intensidade de Illinois, é uma especialista na história dos Bálcãs e que o discurso merece e requer uma análise especial. denuncia o porquê (Todorova, 2009): (Grifou-se) “Balcanização” não só passou a denotar o parcelamento de unidades políticas amplas Versões parciais deste texto foram publicadas nos sites da DiploFoundation e do IDGNow! em 2014. e viáveis, mas também se tornou sinônimo A pesquisa foi também apresentada à 20th International de uma reversão para o tribal, o retrógrado, o Telecommunication Society – Biennial Conference 2014. primitivo, o bárbaro. Em sua derradeira hipóstase, A bibliografia deste texto está disponível na versão online da revista, em: www.politics.org.br particularmente na Academia norte-americana, o 12

Becky Lentz PhD – professora > assistente na Universidade McGill, Montréal, Canadá.*

Origem e evolução dos modelos multissetoriais poliTICs 13

> Virgílio Almeida - Universidade Federal de Minas Gerais > Demi Getschko - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo > Carlos A. Afonso - Instituto Nupef, Rio de Janeiro

Os processos multissetoriais (multistakeholder) da Internet. As revelações feitas por Edward visam reunir todos os principais setores em Snowden sobre a maciça vigilância exercida torno de uma nova forma de comunicação, de através dos meios cibernéticos e o anúncio da encontrar a decisão (e possivelmente tomá- Administração Nacional de Telecomunicações e la) acerca de um assunto específico. Eles se Informação (a NTIA dos EUA) de que a entidade baseiam no reconhecimento da importância de pretende deixar seu papel de administradora alcançar equidade e assumir responsabilidades do contrato da IANA poderiam mudar todo o na comunicação entre os setores. Envolvem ecossistema de governança global da Internet. representação equitativa de três ou mais grupos Montado pelo Secretário Geral da ONU em 2003, setoriais e suas respectivas visões; baseiam-se o Grupo de Trabalho sobre Governança da Internet em princípios democráticos de transparência e (GTGI/WGIG) introduziu a primeira definição participação. E buscam desenvolver parcerias funcional para o termo: “(governança da Internet e redes mais fortes entre os vários setores. 1 é) o desenvolvimento e aplicação, por governos, A Internet permitiu que a política, a economia, iniciativa privada e sociedade civil, em seus o trabalho, a diversão e os relacionamentos respectivos papéis, de princípios, normas, regras, pessoais passassem a desenvolver-se cada vez procedimentos de tomada de decisão e programas mais no espaço cibernético. Não mais apenas uma compartilhados que deem forma à evolução e ao tecnologia, a Internet tem agora impacto social e uso da Internet.”2 Desde então, os países vêm econômico forte e abrangente em todos os países. adotando diferentes modelos, Estes vão desde os O espaço cibernético tornou-se estratégico para o utópicos de auto-gestão da liberdade individual desenvolvimento na maioria deles. Por conta disso, alheios ao controle governamental até aqueles cada país vem elaborando suas políticas públicas e onde as atividades relacionadas com a Internet montando seus arcabouços locais para a segurança ficam sujeitas ao controle de governos e agências cibernética e a governança da Internet. regulatórias. Muitas das variações nos modelos de Os próximos anos serão fundamentais para governança da Internet baseiam-se em conceitos e multissetoriais traçarmos o novo mapa da governança global ideias introduzidos por processos multissetoriais.3 1. M. Hemmati, Multistakeholder Processes for Governance and Sustainability: Beyond Deadlock and Conflict, Earthscan, 2002. 2. Report of the Working Group on Internet Governance, junho de 2005, em http://www.wgig.org/docs/WGIGREPORT.pdf. 3. L.W. Fransen e A. Kolk, “Global RuleSetting for Business: A Critical Analysis of Multi-Stakeholder Standards,” Organization, vol. 14, no. 5, 2007, pp. 667–684. L. DeNardis e M. Raymond, “Thinking Clearly about Multi-Stakeholder Internet Governance,” Proc. 8th Ann. Conf. Global Internet Governance Academic Network (GigaNet), 2013, em http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2354377 14 Origem e evolução dos modelos multissetoriais

O recente Encontro Multissetorial Global Sobre internacional, dos governos nacionais e dos o Futuro da Governança da Internet (NETmundial) representantes de vários setores.5 no Brasil produziu um documento recomendando Para conseguir amplo apoio para os princípios que o eixo central para a evolução da governança da da sustentabilidade, vários segmentos da sociedade Internet seja composto de modelos multissetoriais precisaram aprender a escutar uns aos outros e (MMSs).4 O documento apresenta o arcabouço a integrar visões e interesses distintos de forma da governança da Internet como um ecossistema a chegar a soluções práticas capazes de levar a distribuído e coordenado, envolvendo várias um mundo mais sustentável. Essas discussões organizações e fóruns. O documento expressa ambientais enfatizaram o papel dos stakeholders: que os órgãos de governança sejam inclusivos e indivíduos ou grupos com interesse em transparentes, e que sejam responsabilizados determinada decisão por poderem influenciá-la ou pelos seus atos, com estruturas e operações cujas por poderem ser afetados por ela. posturas permitam a participação de todos os O primeiro organismo internacional a setores para tratar dos interesses de todos que reconhecer o papel relevante do multissetorialismo usam a Internet, bem como daqueles que ainda na discussão de questões globais foi a Organização não estão conectados. Então, o leitor deve estar se Mundial do Trabalho (OMT), que em 1919 criou perguntando: qual o conceito multissetorial e como um modelo com representantes do governo, do tem sido aplicado a assuntos práticos? patronato e dos sindicatos. Fazemos aqui um apanhado geral dos MMSs, Mais recentemente ocorreram discussões do seu uso e da sua evolução histórica, e ainda multissetoriais da Comissão para o Desenvolvimento examinamos a adoção que este vem experimentando e Sustentabilidade da ONU (CDS), que introduziu em vários domínios, particularmente no na organização o conceito como um modelo de ecossistema global de governança da Internet. engajamento para questões do desenvolvimento sustentável. O documento “Agenda 21” para a :: ORIGEM E FUNDAMENTOS DOS MMSs Eco-92 é o primeiro em que a ONU inclui os papéis Em 1992, a Cúpula Mundial para o Meio Ambiente de diferentes setores num acordo global. e Desenvolvimento (a Eco- 92), realizada no Rio A adoção de processos multissetoriais tem de Janeiro, alertou o mundo para vários problemas sido lenta porque muitos governos e órgãos relativos ao meio ambiente e ao desenvolvimento, e intergovernamentais não se sentem à vontade colocou a sustentabilidade na pauta da comunidade com a influência cada vez maior de certos setores,

4. “Declaração Multissetorial de São Paulo (NETmundial)”, abril de 2014, em http://www.cgi.br/publicacao/declaracao-multissetorial-do-netmundial 5. Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/ECO-92. Ver também https://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/Agenda21.pdf poliTICs 15

enxergando-os como representantes não eleitos :: METAS aos quais falta legitimidade.1 Mas as vantagens dos Os MMSs podem ser concebidos para atingir MMSs superam suas dificuldades, e eles metas que seriam inatingíveis caso cada setor criam benefícios mútuos para a sociedade como atuasse sozinho. Por exemplo, a meta de preservar um todo. Na verdade, ele têm o potencial uma Internet unificada, não fragmentada, de promover melhores decisões através de interconectada, interoperável, aberta, inclusiva, contribuições mais amplas. segura, estável, flexível e confiável não seria Algumas características são comuns a MMSs possível se houvesse apenas governos envolvidos existentes. Em geral, variam conforme as questões no acordo. tratadas, que vão desde o cuidado de saúde, pobreza e equidade de gênero até a governança da Internet. :: PARTICIPANTES A Figura 1 mostra a composição típica de um MMS, Normalmente os MMSs envolvem representantes incluindo setores e os principais componentes de grupos que tenham interesse ou que sejam do modelo: metas, participantes, escopo, prazos e afetados pela questão em pauta. Sua composição, conexão com o poder decisório oficial. por conseguinte, deve ser altamente variada. Por exemplo, no caso da governança da Internet, os principais setores envolvidos são a sociedade civil, os governos, a iniciativa privada e as comunidades Sociedade civil Setor privado técnica e acadêmica.

Modelo multissetorial: temas, metas, escopo, :: ESCOPO participantes, prazos, interação com quem decide. Os MMSs podem ajudar a abordar questões nos níveis nacional, regional ou internacional. Por Setor acadêmico & Governo comunidade técnica exemplo, a Corporação Internet para a Designação de Nomes e Números (ICANN) é um órgão multissetorial que opera no nível internacional. Figura I Os cinco Registros Regionais da Internet (RIRs) Principais componentes de um modelo multissetorial. se encarregam da distribuição dos identificadores Podemos ver os vários setores normalmente envolvidos na operação de um MMS. de números alocados pela IANA. Estes são órgãos multissetoriais que operam no nível regional. Alguns órgãos multissetoriais são puramente Alguns órgãos informativos. Outros podem desenvolver boas multissetoriais são práticas ligadas a determinado assunto e puramente informativos. apresentá-las ao governo. Outros podem desenvolver Há órgãos multissetoriais também capazes de boas práticas ligadas a acompanhar questões que afetam a sociedade, tais como o índice de desflorestamento ou a qualidade determinado assunto e do acesso à Internet oferecido pelas operadoras de apresentá-las ao governo. telecomunicações.

:: ÓRGÃOS MULTISSETORIAIS PARA A :: LINHAS DE TEMPO GOVERNANÇA DA INTERNET Os MMSs podem ser organizados para eventos Do ponto de vista histórico, a oportunidade de pontuais ou para processos sem fim determinado, vários setores participarem em processos de gover- dependendo da questão que estiver sendo exami- nança aumentou com o fim da Guerra Fria no início nada. Por exemplo, o NETmundial foi criado para da década de 1990. A Eco-92 foi uma das primeiras ser apenas um evento, organizado por um comitê conferências internacionais multissetoriais. multissetorial.6 O Fórum de Governança da Internet Coincidentemente, foi o primeiro evento a utilizar a (FGI/IGF) tem um mandato da Cúpula Mundial sobre Internet, abrindo as primeiras oportunidades para a Sociedade da Informação (CMSI/WSIS) que visa a participação online. Isso foi especialmente útil manter um fórum anual para o diálogo multissetorial para organizações da sociedade civil que não podiam sobre políticas. A ICANN é uma organização perma- arcar com as despesas de estar no Rio de Janeiro, nente com estrutura multissetorial para coordenar e também para alguns governos da África que não o sistema de atribuição de nomes de domínio, tinham meios de comunicação remota com suas endereços IP e protocolos técnicos na Internet. sedes. Esse foi o início de uma série de conferências que agora baseiam-se na presença multissetorial :: CONEXÃO COM O PODER DECISÓRIO em suas linhas de discussão. Destacam-se espe- Os órgãos multissetoriais podem interagir de dife- cialmente a segunda Conferência Mundial sobre rentes formas com os processos decisórios oficiais Direitos Humanos (CMDH/WCHR) em Viena (junho nos níveis internacional, regional ou nacional. de 1993), que gerou a Declaração de Viena Sobre os

6. V. Almeida, “The Evolution of Internet Governance: Lessons Learned from NETmundial,” IEEE Internet Computing, vol. 18, no. 5, 2014, pp. 65–69. poliTICs 17

Direitos Humanos aprovada por 171 países e em conferência surge a partir da maneira como ela foi seguida adotada pela Assembleia Geral da ONU. organizada e executada. A natureza multissetorial A Conferência resultou na criação do Alto do encontro envolveu segmentos da sociedade civil, Comissariado das Nações Unidas para os Direitos empresas privadas e as comunidades acadêmica e Humanos em dezembro do mesmo ano. técnica de vários países. Com base em consenso Desde então, a participação multissetorial tem preliminar, um documento de princípios e um guia sido uma característica das conferências da ONU e para a evolução do ecossistema de governança da de suas agências. Uma pergunta interessante é: quais Internet foi aprovado por representantes de mais são os limites dessa participação? Processos plura- de 100 países. listas envolvem a sociedade civil, as comunidades acadêmica e técnica, e outros grupos de interesse que :: PROCESSOS PLURALISTAS NA GESTÃO se reúnem, conscientes de seus respectivos papéis e DOS RECURSOS DA INTERNET responsabilidades, em prol de uma meta declarada Ainda que com suas limitações específicas, há em comum. Na última década, podemos destacar a processos decisórios pluralistas nas estruturas de importante participação da sociedade civil organiza- gestão de recursos da Internet. Em constante evo- da com interesses relevantes em eventos tais como lução, as tecnologias cibernéticas são coordenadas campanhas pelo direito à comunicação na socieda- por organizações como a IETF, que propõe normas de da informação e a forte presença no processo da e parâmetros através de recomendações adotadas CMSI, onde o conceito de “governança da Internet” por consenso após discussões em fóruns abertos. foi elaborado com certa profundidade. A coordenação global de distribuição de endereços De fato, o domínio da governança da Internet ofe- IP é executada na prática por todos os cinco RIRs. rece alguns exemplos de processos multissetoriais. Estes registros regionais de números trabalham Por exemplo, o FGI é um fórum multissetorial para o de forma coordenada e consensuada através de um diálogo normativo sobre questões de governança da fórum comum: a NRO (Organização de Recursos Internet.2 Ele é aberto e inclusivo, reunindo todos Numéricos). Essas políticas são desenvolvidas os setores para trocar informações e compartilhar as em diálogos pluralistas abertos à participação de melhores práticas sobre questões de políticas públi- todos os setores. Embora a governança do estoque cas relativas à Internet. Outro exemplo é o Encontro central de recursos de numeração da rede esteja NETmundial, que foi preparado como uma conferên- formalmente sob a ICANN, regido por contrato cia multissetorial para discutir o futuro desenvolvi- entre a ICANN e a NTIA, na prática os mecanismos mento da governança da Internet. A importância da de distribuição numérica são regidos pelos RIRs. 18 Origem e evolução dos modelos multissetoriais

O foco principal da ICANN está em coordenar a comunidade de usuários era, até meados da dé- o endereçamento mnemônico da rede (nomes de cada de 1980, quase homogeneamente composta domínio). Sua estrutura multissetorial de partici- de membros da comunidade acadêmica procuran- pação é bem organizada, através de organizações do usar os recursos computacionais de maneira e comitês de apoio onde governos, empresas, remota. A popularização dos PCs levou as pessoas a registros (registries), distribuidoras de nomes usá-los em suas próprias organizações, estimulan- (registrars) e entidades civis participam bastante e do assim um maior envolvimento individual entre elegem representantes para o conselho da ICANN comunidades com interesses específicos para (alguns membros do conselho são indicados por a troca de dados e ideias. Os velhos sistemas de um comitê de nomeação). quadros de avisos, que inicialmente propiciavam o Há algumas limitações nessa abordagem intercâmbio de informações em ambiente isolado, pluralista; em particular, os processos decisórios demonstravam o anseio por comunicação direta na ICANN não se derivam totalmente dessas entre usuários em torno de muitas questões. participações. As partes interessadas reconhecem No início da década de 1980, outra plataforma que desempenham um papel mais assessor e gerou ainda mais sinergia: a USENET. Milhares de consultivo nos processos decisórios da organiza- máquinas baseadas no protocolo padrão UNIX e seu ção, com maior ou menor influência real. Mas é “programa de cópia UNIX a UNIX” (UUCP) trouxe o conselho quem sempre toma as decisões finais. integração para os grupos de usuários. A dissemina- Isso não significa que os participantes estejam ção de muitos fóruns sobre tópicos variados (USE- satisfeitos com essa condição. Cada setor repre- NET News) propiciou discussões abertas e a criação sentado na ICANN busca formas de expandir sua de grupos de interesse. A disseminação do correio influência nas decisões dentro de um contexto eletrônico e das malas diretas trouxe de uma vez por onde o desequilíbrio é óbvio – por exemplo, todas a segunda onda de usuários da rede: indiví- devido a poderio econômico ou alavancagem duos e entidades da sociedade civil não tardaram política capaz de favorecer alguns setores. em juntar-se aos acadêmicos para aproveitar o novo meio como um modo de comunicação mais rápido, ::  USUÁRIOS DA REDE COMO mais barato e mais eficiente. PARTES INTERESSADAS No Brasil, por exemplo, as redes acadêmicas As redes computacionais existem com uma surgiram no final da década de 1980. Em 1991, variedade de recursos e formas desde o início da a sociedade civil tornou-se a segunda onda e os década de 1970. Em contraste com essa variedade, variados protocolos (Bitnet, UUCP, DECnet, X.28, poliTICs 19

X.25, X.400 e assim por diante) não tardaram em juntar-se em uma única solução: TCP/IP – a Muitos foram os países que Internet. A criação da World Wide Web há 25 anos perceberam a Internet como conformou uma nova situação onde os usuários algo diferente do mundo das não apenas tinham acesso à informação como telecomunicações, já tradicional também encontravam maneiras eficazes de atuar e altamente regulado, e no espaço cibernético, veiculando suas opiniões e começaram a buscar formas participando plenamente da rede. próprias de controle. É interessante observar que, antes da Web, pouco se falava de segurança e ameaça à privacidade, ou de espionagem do tráfego de dados. Até os ataques de importância estratégica. A criação de um órgão spam e códigos mal-intencionados eram raros na multissetorial para a governança da Internet teve época, um pouco por causa da natureza analógica da início dentro de um país e logo se tornou um comunicação através de links com pouca largura de modelo tangível e aplicável em âmbito global. banda, e também por serem os participantes na sua Ao examinarmos o caso brasileiro, podemos escla- maioria acadêmicos e entidades sem fins lucrativos. recer bem esse ponto. O Comitê Gestor da Internet A expansão da Internet para além dos limites no Brasil (CGI.br) foi criado em 1995. Ele já anteci- desse grupo de iniciados, com suas características pava algumas das características que teria a ICANN de ruptura e sua capacidade de ultrapassar as (fundada em 1998) e também tornou-se referência fronteiras nacionais, mudou o cenário das articu- para as discussões introduzidas na CMSI em 2005. lações. Muitos foram os países que perceberam a Em 1995, o governo brasileiro criou o CGI.br Internet como algo diferente do mundo das teleco- como um órgão multissetorial para a governança municações, já tradicional e altamente regulado, e de nomes e númerosm no âmbito brasileiro, começaram a buscar formas próprias de controle. sem objetivos regulatórios. Dois anos depois, a legislação brasileira das telecomunicações definiu ::  OS PRIMÓRDIOS DOS MMSs DE a Internet como um “serviço de valor agregado” GOVERNANÇA DA INTERNET NO BRASIL que a diferenciava da sua subjacente infraestrutura A necessidade de discussões permanentes sobre de telecomunicações. Essa abordagem inovadora modelos de governança para a Internet surge por permitiu que a Internet crescesse rapidamente no conta de seu crescimento impressionante, tanto país. A partir de 2003 os representantes não gover- em termos de quantidade de usuários quanto de namentais no conselho do CGI.br passaram a ser 20 Origem e evolução dos modelos multissetoriais

escolhidos por seus próprios setores. Desde então o as necessidades das gerações futuras. O conceito conselho de 21 membros é distribuido desta forma: que hoje respalda a governança da Internet nove de organizações governamentais, quatro da também se refere aos princípios, normas, regras e sociedade civil, quatro da iniciativa privada e quatro procedimentos que amanhã irão conformá-la. das comunidades acadêmica e técnica (incluindo Os dois processos, portanto, trabalham com um membro de notório saber). valores que são essenciais para as gerações futuras. Observe-se que nenhum setor, nem mesmo Tanto a governança da Internet quanto o desen- o governo, conta com maioria de votos no volvimento sustentável precisam de um processo conselho. A composição do conselho do CGI.br de diálogo e consenso entre todas as partes inte- reflete bem a natureza multissetorial da Internet. ressadas no intuito de construir soluções viáveis, O comitê funciona sem verbas públicas; a trabalhar para implementá-las e avaliar os resulta- comunidade sustenta o CGI.br ao registrar-se no dos. Os MMSs estão no centro dos dois processos, domínio .br ou ao adquirir blocos de endereços IP. que enfrentam desafios globais com fortes Os recursos arrecadados são de natureza privada impactos sociais e econômicos. e qualquer superávit orçamentário é usado no desenvolvimento harmonioso da Internet no Brasil. :: CONSTRUÇÃO DE CONSENSO O MMS inovador e sua natureza não governamental A construção de consenso é uma atividade não costumam ser bem compreendidos pelo fundamental para os órgãos multissetoriais de público em geral. A mesma observação se aplica ao governança. Os representantes dos vários setores seu comportamento “não regulamentador”, sempre apresentam suas opiniões e posições acerca de um em contraste com o ambiente tradicionalmente dado assunto. Em seguida, envolvem-se num diá- regulado na indústria das telecomunicações. logo que visa atingir uma compreensão mútua dos problemas. A partir dessa melhor compreensão, :: GOVERNANÇA DA INTERNET E o presidente ou mediador do órgão busca o con- DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL senso. Essa busca por consenso nos MMSs quase A governança da Internet e o desenvolvimento nunca é um processo organizado e ordeiro. Como sustentável são processos que têm lá suas as partes interessadas participam em pé de igual- semelhanças. O conceito de desenvolvimento dade, as discussões costumam ser confusas e seus sustentável refere-se ao desenvolvimento capaz de desdobramentos, imprevisíveis. Esse pé de igual- atender as necessidades atuais sem comprometer dade é uma característica fundamental do MMS poliTICs 21

que visa reduzir a influência e o poder tradicionais u Como identificamos o conjunto de partes de grupos específicos, acima de tudo a influência interessadas mais adequado para trabalhar econômica e política. Toda parte interessada tem o sobre uma determinada questão? direito de ser ouvida com base apenas na sua pró- u Como definimos os mecanismos e critérios para pria forma de enxergar o problema. Num processo escolher representantes de cada grupo? de construção de consenso, todas as partes traba- u Como evitamos que um setor ou as corporações lham para criar soluções capazes de minimizar suas de maior influência e poder se apropriem do diferenças. Embora os participantes possam não processo multissetorial? concordar com todos os aspectos de um acordo, só u Como podemos usar técnicas de crowdsourcing se atinge o consenso se todos estiverem dispostos a para trazer contribuições aos diálogos em torno aceitar a decisão e a participar da sua implantação. de questões difíceis? Os MMSs estão em constante evolução. Trata-se u Quais tecnologias ajudariam os representantes de uma nova espécie na biodiversidade de estruturas setoriais a “sentir o pulso” daqueles que eles para reger questões complexas. Mas não são fáceis representam? de implementar. Há dificuldades inerentes à admi- u Quais tecnologias ajudariam os órgãos nistração de um órgão multissetorial. A implantação multissetoriais de governança a acompanhar os deve ajustar o processo às especificidades das várias resultados dos seus acordos? partes interessadas, especificidades tais como os u Que tipo de arcabouço tecnológico vai de fato momentos das decisões, sua representatividade e facilitar o diálogo em um órgão multissetorial sua linguagem. Esses valores são fundamentais de forma a atingir um mínimo de consenso? para conquistar credibilidade e legitimidade em u Que tipo de tecnologia pode ser desenvolvida cada comunidade – uma característica obrigatória para acelerar o processo decisório em para tornar o processo de tomada de decisões organizações multissetoriais? multissetoriais um processo viável e factível. u Que tipo de modelo teórico vai respaldar a Além disso, o processo decisório pode ser construção de consenso e o processo decisório tortuoso, dependendo de lideranças. Está claro em ambientes multissetoriais? que é necessário um aprendizado comum do Essas perguntas representam uma oportunidade processo multissetorial. Continuam sem resposta para a pesquisa e o desenvolvimento de novas muitas perguntas relativas à estrutura e à tecnologias capazes de trazer mais eficiência aos dinâmica dos MMSs: processos de governança da Internet. 22022Infovia Municipal 23

Marília Maciel Pesquisadora e coordenadora do Centro de > Tecnologia e Sociedade da Fundação Getulio Vargas (CTS/FGV), no Rio de Janeiro, e membro do Conselho Consultivo da poliTICs

NETmundial, um ano depois O Encontro Global Multissetorial sobre o Futuro ::  PRINCÍPIOS GERAIS E DIREITOS da Governança da Internet (NETmundial), que se HUMANOS realizou nos dias 23 e 24 de abril de 2014 em Dois objetivos nortearam de modo explícito São Paulo1, tornou-se rapidamente um uma a agenda do NETmundial: a necessidade de referência inescapável nas discussões sobre o identificar um conjunto de princípios para a tema. Sua importância foi atribuída tanto a avanços governança da Internet universalmente aceitos e presentes no documento final do evento, como ao de propor um mapa do caminho para a evolução processo de sucessivas consultas que possibilitou do ecossistema institucional. O princípios são elaborá-lo de modo multissetorial e participativo. importantes, pois permitem a harmonização de Um ano após o NETmundial, é interessante avaliar entendimentos e orientam o desenvolvimento em que medida os objetivos principais do encontro de políticas. Em 2003, a Declaração de foram alcançados e o impacto que teve sobre o Princípios de Genebra, aprovada ao final da processo de governança da Internet. primeira fase da Cúpula Mundial da Sociedade

1. O evento foi organizado por meio de uma parceria entre o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e a 1Net, uma coalizão que reúne os intervenientes dos vários grupos de intervenientes envolvidos em discussões de governança da Internet. 24 NETmundial, um ano depois

da Informação (CMSI), foi considerada uma âmbito da ONU, e houve a criação de uma Relatoria verdadeira “constituição para a sociedade da especial para tratar do tema da privacidade. informação”. Documentos sobre princípios foram Esses avanços se devem ao papel proativo de desenvolvidos por várias organizações, como o vários países, notadamente Brasil e Alemanha, Conselho da Europa, a OCDE, a União Europeia, o e de organizações da sociedade civil. Também se G-8, pelo governo dos Estados Unidos, e também devem ao fato de que o problema da vigilância em pelo Comitê Gestor da Internet Brasileira (CGI. massa foi denunciado pelo governo brasileiro, e br). Entretanto, a maioria deles só havia sido foi o estopim para a convocação do NETmundial. reconhecida por um determinado país ou região A questão foi ressaltada no documento final do ou por certos grupos de atores. encontro, apesar de resistências inicias à sua No NETmundial, pela primeira vez um inclusão. A soma de todos esses esforços cria as documento de princípios foi adotado de modo condições para os avanços recentes. multissetorial e no âmbito global. Direitos O documento do NETmundial afirma ainda humanos como a liberdade de expressão, de que a Internet é um recurso global, que deve ser associação e o direito à privacidade, são administrado de modo a atender o interesse público. elencados e relacionados aos desafios atuais. Menciona-se, por exemplo, o papel das redes sociais para o exercício da liberdade de associação e a contraposição entre a vigilância em massa das comunicações e o respeito à privacidade dos indivíduos. O documento do Em decorrência da legitimidade que angariou, NETmundial afirma o documento final do NETmundial reforça as pressões que já vinham sendo exercidas por ainda que a Internet é vários atores para que os direitos humanos sejam um recurso global, que vistos como pedra angular da governança da deve ser administrado Internet. Um exemplo são as discussões sobre monitoramento das comunicações e privacidade. de modo a atender o Após o NETmundial, duas resoluções sobre interesse público. Privacidade na Era Digital foram aprovadas no poliTICs 25

A importância de se ter como norte o interesse todas as formas de interação humana, opções público já havia sido levantada por organizações e políticas contraditórias naturalmente vão sociedade civil e também por governos. Entretanto surgir, refletindo a diversidade de interesses na o documento galvaniza um endosso multissetorial sociedade. A falta de procedimentos claros para a esse principio. Percebe-se, paralelamente, o coordenar as escolhas políticas entre a diversidade reforço da discussão sobre interesse público em de atores e para a tomada de decisões colocar outros fóruns, como a ICANN. Considerações pressão sobre o regime de governança distribuídos sobre o interesse público estão presentes no e dar força às chamadas de melhoria institucional. âmbito da discussão sobre accountability, no Existe um distanciamento cada vez maior entre processo de aprovação dos novos nomes de os processos democráticos, territorialmente domínio genéricos (gTLDs) e na discussão sobre o ancorados, e as redes transfronteiriças de impacto das políticas aprovadas pela ICANN sobre governança, onde as políticas são moldadas os Direitos Humanos. de forma que fogem ao controle democrático tradicional. Combinar as vantagens e a flexibilidade ::  PRINCÍPIOS SOBRE O PROCESSO DE das redes de governança distribuídas com as GOVERNANÇA DA INTERNET E ASPECTOS práticas democráticas é um dos grandes desafios INSTITUCIONAIS para o aprimoramento da governança da Internet. A Declaração final do NETmundial também trata Infelizmente, um anos após o NETmundial, das instituições e dos princípios que devem se nota-se ainda resistências à inclusão da palavra aplicar aos processos de governança da Internet. “democrática” em textos posteriores, como Dentre outras coisas, o documento afirma que nos documentos aprovados na Conferência deve-se promover uma governança que seja, ao “Connecting the Dots”, promovida em março mesmo tempo, democrática e multissetorial. pela UNESCO. Isso parece ter ocorrido em Essa é uma evolução salutar, que promove o decorrência do fato de que aqueles que apoiam atual e bem-sucedido modelo multissetorial com mais veemência a governança democrática de governança, ao mesmo tempo em que busca são também os que propõem maior papel dos nele injetar aspectos basilares à democracia, governos nas instituições de governança. Os dois como inclusão, transparência, devido processo debates, entretanto, não devem ser confundidos. e accountability. À medida que a Internet se Princípios democráticos são essenciais a qualquer desenvolve e se torna o ambiente principal para estrutura de governança que se pretenda legítima. discussões inerentes ao processo preparatório. Embora a declaração do No que diz respeito à arquitetura institucional da governança, o documento final do NETmundial NETmundial não seja um trata tanto do aperfeiçoamento de fóruns documento vinculante, existentes, como o Fórum de Governança da ela teve peso político Internet (IGF), como de possíveis ausências ou considerável, advindo gaps, sobretudo no que diz respeito à comunicação da adesão dos atores e coordenação entre instituições. O documento e do processo aberto, final pede que as sugestões de aprimoramento bottom-up, seguido do IGF feitas pelo grupo de trabalho da Comissão de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento para a construção do (CSTD), que tratam de pontos como resultados documento. mais concretos e financiamento do IGF, sejam implementadas em sua totalidade. Esse chamado ressoou no âmbito do MAG (Grupo de Outro ponto que foi bastante comentado/ Aconselhamento Multissetorial), que, dentre elogiado na declaração final do NETmundial foi outras coisas, realiza o planejamento do IGF. que o documento adota uma visão flexível sobre os O processo de preparação do IGF criou grupos papéis e responsabilidades dos diferentes setores de trabalho, organizados em torno de listas de na governança da Internet. Ao invés de estabelecer discussão, para tratar de temas que vão desde a papéis fixos – que pouco correspondem à participação remota no evento e a comunicação realidade –, como fez a Agenda de Túnis, o texto com o público (outreach), como também os aponta para o entendimento de que diferentes critérios para a apresentação de propostas de atores podem desempenhar papéis diversos à workshops e sessões, com o intuito de que as depender do tema em questão. Seria interessante discussões sejam mais focadas e que gerem que essa evolução trazida pelo documento final do resultados mais palpáveis. Além disso, foram NETmundial pudesse reverberar nos documentos criados “fóruns de boas práticas” no intuito de de revisão da Cúpula Mundial da Socieadade da identificar modelos de ação no âmbito de temas Informação (WSIS+10) e que maior entendimento cuja discussão se encontra em estágio sobre os diferentes papéis seja buscado nas mais maduro. poliTICs 27

::  A INICIATIVA NETMUNDIAL entre atores. A NMI pode oferecer um ponto Em 2014, foi lançada oficialmente a Iniciativa focal online em que ideias e projetos inovadores NETmundial (NETmundial Iniciative - NMI), uma possam se tornar conhecidos e receber suporte plataforma com o objetivo de dar continuidade da comunidade. Por fim, outro ponto presente à colaboração multissetorial alcançada de modo no documento do NETmundial foi a necessidade ímpar no NETmundial. A forma como os primeiros de incentivar o desenvolvimento de capacidades passos desse empreendimento foram dados – e a inclusão de atores com menos recursos nos sem suficiente transparência e discussão com a debates sobre governança. A plataforma poderia comunidade, gerou uma atmosfera de desconfiança. ter um efeito positivo nesse sentido, por meio da Diante disso, os fundadores da iniciativa disseminação de informação e do suporte a estudos. – ICANN, CGI.br e o Fórum Econômico Mundial (WEF) – decidiram criar um conselho ::  CONCLUSÃO de coordenação do NMI, cuja principal Embora a declaração do NETmundial não seja responsabilidade tem sido a discussão dos termos um documento vinculante, ela teve peso político de referência que detalharão a missão, o escopo e os considerável, advindo da adesão dos atores e aspectos operacionais da NMI. Para isso, foi aberto do processo aberto, bottom-up, seguido para a um processo de consulta pública para compreender construção do documento. Esse peso político as necessidades e expectativas dos setores, e como pode se tornar cada vez mais forte, à medida que a NMI poderia servi-los dentro do ecossistema de os atores fizerem referência ao documento em governança. O termo de referência foi recentemente debates futuros, como no processo de revisão da aprovado e colocado em consulta pública.2 Cúpula Mundial da Sociedade da Informação. Embora as tarefas específicas da NMI se Embora os efeitos da declaração possam ser encontrem por definir, alguns pontos interessantes sentidos de modo bastante concreto no processo sobre a iniciativa parecem claros. Em primeiro de aprimoramento do IGF, seria interessante que lugar, considerando-se que o NETmundial foi houvesse esforços coordenados para incentivar pensado como um único evento, a NMI pode ser e acompanhar a implementação do documento uma forma de incentivar a adoção dos princípios final e dos princípios nele contidos. A Iniciativa presentes no documento final do NETmundial. NETmundial poderia fornecer essa plataforma e Em segundo lugar, o documento final aponta a participação dos atores na sua construção é de para a necessidade de aperfeiçoar a coordenação grande importância.

2. NETmundial Initiative. Terms of Reference. http://comments.netmundial.org 028 poliTICs 29

Flávio Rech Wagner Conselheiro do CGI.br (representante da > comunidade científica e tecnológica), pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e membro do Grupo Assessor Multissetorial do próximo IGF

Relatório de participação no 9º Internet Governance Forum Istambul, 2 a 5 de setembro de 2014 a cargo do MAG3 – Multistakeholder Advisory Este relato traz minhas observações sobre o Group, organismo subordinado à CSTD – 9º IGF – Internet Governance Forum 1, realizado Commission on Science and Technology for em Istambul entre os dias 2 e 5 de setembro Development, da ONU. Sua programação inclui de 2014. O IGF foi criado a partir da Cúpula sessões plenárias principais, sobre temas de Mundial da Sociedade da Informação 2, organizada grande relevância, selecionados pelo MAG, e pela ONU em 2003 e em 2005. Ele é um evento grande quantidade de atividades paralelas, na completamente aberto à participação de todas forma de workshops e encontros de “coalizões as pessoas e instituições interessadas no tema dinâmicas”4, propostos pela comunidade e da governança da Internet. Sua coordenação está aprovados pelo MAG.

1. Ver site do IGF em http://www.intgovforum.org/. 2. Ver informações sobre a Cúpula Mundial da Sociedade da Informação em http://www.itu.int/wsis/index.html. 3. Ver informações sobre o MAG em http://www.intgovforum.org/cms/magabout. 4. Uma coalizão dinâmica é um agrupamento voluntário de pessoas e/ou instituições, interessadas na discussão de um tema relevante da governança da Internet. Tipicamente uma coalizão dinâmica atua ao longo de diversos anos. Uma relação das 12 coalizões dinâmicas que se reuniram em Istambul pode ser encontrada em http://igf2014.sched.org/overview/type/dynamic+coalition#.VGI3tvTF_yA. 30 Relatório de participação no 9º Internet Governance Forum

No IGF deste ano, as sessões plenárias cobriram 3) a evolução do ecossistema internacional de os seguintes temas: Policies enabling Access, Growth governança da Internet e o papel do IGF. and Development on the Internet; Network Neutrality: Towards a Common Understanding of a Complex ::  NETMUNDIAL Issue; Evolution of Internet Governance Ecosystem O NETmundial5 teve grande impacto no IGF. and Role of the IGF; IANA Functions: NTIA’s O evento foi citado continuamente durante toda a Stewardship Transition and ICANN’s Accountability. semana em Istambul, como exemplo extremamente Além das sessões plenárias, foram realizados bem-sucedido de evento que aliou duas oitenta e sete workshops e doze encontros de características: coalizões dinâmicas. Também foram introduzidas neste ano cinco sessões de “boas práticas” 1) o caráter multistakeholder, no qual os diversos de governança. setores realmente atuaram em “equal footing”, Pela abrangência da programação, com excesso inclusive os governos, cujos representantes de atividades paralelas, cada participante só precisavam entrar na fila do microfone para se consegue acompanhar uma pequena parte manifestar, como todos os demais; do evento. Assim, o relatório a seguir inclui observações coletadas a partir das sessões e 2) o resultado obtido, na forma de um workshops dos quais eu participei pessoalmente. documento com claras recomendações sobre Pontos que despertaram muita atenção em princípios de governança e futuros passos, obtido Istambul, e aos quais eu me dediquei em por “consenso aproximado” num curto espaço particular, foram: de tempo e com enorme esforço e boa vontade de todos os setores. 1) as repercussões e consequências do NETmundial; Um evento no dia anterior ao início formal do IGF, com forte participação do CGI em sua 2) a transição da supervisão das funções IANA preparação e condução, foi inteiramente do governo dos Estados Unidos para a comunidade dedicado ao NETmundial, com uma avaliação multistakeholder internacional e as questões crítica de seus resultados e uma discussão dos associadas à responsabilização (accountability) da passos futuros. Em diversas outras sessões ICANN e à sua globalização; do IGF os resultados e o grande exemplo do

5. Ver site do NETmundial em http://netmundial.br/. NETmundial foram mencionados. Verificou-se em Istambul que o Brasil, que já gozava de grande Pela abrangência prestígio internacional na área de governança da programação, com da Internet, graças ao sucesso do modelo excesso de atividades multistakeholder implementado no CGI e à recente aprovação do Marco Civil, teve esse paralelas, cada prestígio aumentado em muito, pois todos não participante só consegue hesitam em associar o sucesso do NETmundial acompanhar uma à liderança exercida pelo CGI, que impregnou o pequena parte do evento. evento de maneira muito clara com o seu modelo próprio de governança.

::  ICANN ICANN8, tanto aqueles diretamente relacionados A ICANN foi o tema de uma sessão especial, de à supervisão da execução das funções IANA como pelo menos dois workshops e de uma sessão outros mais gerais, relativos às demais atividades plenária, além de impactar diversas discussões desempenhadas pela entidade. De outro lado, o em outras sessões e workshops. Este destaque final do contrato com os Estados Unidos dá força foi fruto, obviamente, do anúncio6 do governo a uma discussão recorrente sobre a globalização norte-americano, feito em março último, de que (ou internacionalização) da ICANN, até hoje o contrato que liga a ICANN ao Departamento incorporada no Estado da Califórnia e sujeita a sua de Comércio dos Estados Unidos, relacionado à legislação em termos de organização e em qualquer execução das funções IANA7, não será renovado caso de conflito. ao fim de seu prazo, em setembro de 2015, sendo O workshop 239, que foi copatrocinado pelo substituído por uma nova forma de supervisão a ser CGI.br e que teve o conselheiro Carlos Afonso proposta pela própria comunidade internacional. entre seus painelistas, teve como tema a Dois outros assuntos estão fortemente accountability da ICANN e de que forma ela é obtida relacionados a este. De um lado, a comunidade sob os processos de governança multistakeholder está discutindo os mecanismos de accountability da da entidade. Foi discutido perante quem a ICANN

6. Ver anúncio do governo norte-americano em http://www.ntia.doc.gov/press-release/2014/ntia-announces-intent-transition-key-internet-domain-name-functions. 7. Ver uma apresentação das funções IANA e de sua execução através da ICANN em https://www.icann.org/news/multimedia/469. 8. Ver informações sobre o processo de discussão da accountability na ICANN em https://www.icann.org/resources/pages/accountability-2012-02-25-en. 9. Os workshops do IGF são numerados de acordo com sua ordem de proposição. Ver programação do workshop 23 em http://www.intgovforum.org/cms/wks2014/index.php/proposal/view_public/23. 32 Relatório de participação no 9º Internet Governance Forum

deve ser accountable e quais são os mecanismos esta transição e a accountability da ICANN. existentes para garantir que esta accountability é Uma preocupação expressa nesta sessão e repetida adequada. Discutiu-se ainda se estes mecanismos em outras discussões em Istambul diz respeito ao precisam ser reforçados ou aprimorados, pouco tempo disponível para que a comunidade especialmente diante da transição da supervisão chegue a uma proposta consensual e aceita pelo das funções IANA. Governo dos Estados Unidos, embora a NTIA O workshop 18510 tratou da globalização da tenha repetido várias vezes que o contrato com a ICANN, especialmente diante do final do contrato ICANN poderia ser prorrogado caso necessário. (AoC – Affirmation of Commitments) entre a Foi lembrado que o processo precisa entidade e o Departamento de Comércio dos necessariamente seguir o modelo multistakeholder Estados Unidos, e foi promovido pela NCUC – e que, quantos mais atores participarem do Non-Commercial Users Constituency, que reúne processo tanto mais demorado este poderá representantes da sociedade civil dentro da ser. O Embaixador Benedicto Fonseca, um dos ICANN. Um dos painelistas foi o Embaixador painelistas, enfatizou que não se deveria perder Benedicto Fonseca. Entre outras ideias, discutiu- esta oportunidade de discussão dos rumos da se se o atual AoC poderia ser substituído por ICANN para também se avançar na busca de uma uma “web of commitments” entre a ICANN e solução adequada para a internacionalização diversos governos nacionais e entidades não da entidade. Discutiu-se a necessidade de um governamentais com os quais a ICANN se mecanismo de redress, que permita a revisão relaciona. O workshop revelou as visões muito de decisões tomadas pelo Board quando a distintas dos diferentes setores, com posições comunidade entender que estas decisões não são mais conservadoras em relação à manutenção dos consistentes com os compromissos da ICANN mecanismos de accountability já existentes na ou com o interesse público. Foi lembrado que é entidade e outras solicitando alterações mais o próprio Board que interpreta os estatutos da significativas, por exemplo, com a criação de entidade, aprova alterações nos estatutos quando uma assembleia de membros, superior ao Board, julgar necessário e decide quando os estatutos representando o interesse público. necessitam correção. Tais funções poderiam ser Uma sessão plenária realizada no último dia separadas entre diferentes instâncias da entidade. do evento tratou especificamente da transição da Parte da comunidade chegou a Istambul supervisão das funções IANA e da relação entre descontente com os procedimentos adotados pela

10. Ver programação do workshop 185 em http://www.intgovforum.org/cms/wks2014/index.php/proposal/view_public/185. poliTICs 33

ICANN, que pareciam ser apressados demais e a ser realizado no Brasil no próximo ano terá o sem estabelecer a devida correlação entre a impacto desta transição, certamente com críticas transição da supervisão das funções IANA e a e com elogios à solução adotada, dependendo accountability da ICANN. Já na sessão especial das visões de diferentes setores e de diferentes realizada no primeiro dia do IGF, o CEO da países. De qualquer forma, a discussão sobre ICANN, Fadi Chehadé, anunciou que mais prazo a accountability da ICANN continuará sendo um estava sendo concedido para que a comunidade ponto muito importante, já que há muitos aspectos pudesse dar novas contribuições e influir nos de accountability que não estão relacionados procedimentos propostos. apenas ao escopo estreito das funções IANA. A transição das funções IANA terá possivelmente É muito provável que será ainda mais forte no IGF se completado em setembro de 2015, quando do próximo ano a discussão sobre a globalização da expira o atual contrato entre a NTIA (governo ICANN, com a análise de alternativas para retirar a dos EUA) e a ICANN. Assim, certamente o IGF ICANN da jurisdição legal dos Estados Unidos.

É muito provável que será ainda mais forte no IGF do próximo ano a discussão sobre a globalização da ICANN, com a análise de alternativas para retirar a ICANN da jurisdição legal dos Estados Unidos. 34 Relatório de participação no 9º Internet Governance Forum

:: NEUTRALIDADE DE REDE brasileiro sobre neutralidade e alertou que Esse foi o tema principal do workshop 172 11 e de modelos de negócios de operadoras no Brasil uma sessão plenária12, além de, obviamente, ser poderiam resultar em fragmentação da rede e abordada em muitas outras sessões. Na sessão desrespeito aos direitos dos consumidores. plenária, foi lembrado que o documento final do Um representante de operadoras brasileiras, NETmundial constatou que seus participantes presente na plateia, argumentou que as operadoras não tinham chegado a um consenso sobre o apoiam a neutralidade, mas que há muitas tema e indicou que o IGF deveria ser um fórum definições possíveis para ela e as operadoras importante para a continuidade da discussão. irão esperar a regulamentação das disposições A questão foi dissecada em seus aspectos técnicos, constantes do Marco Civil. Aliás, diante de regulatórios e socioeconômicos. Abordagens repetidas afirmações incorretas feitas em sessões sendo adotadas em diferentes regiões (Brasil, do IGF de que o Marco Civil não teria uma regra Comunidade Europeia e Estados Unidos, clara e geral sobre neutralidade, Diego Canabarro, principalmente) foram referidas. da Secretaria Executiva do CGI, convidou os A representante da FCC, comissária Mignon presentes a lerem a versão em inglês da lei. Clyburn, deixou claro no debate que o governo dos Num aspecto mais político, foi argumentado EUA espera manter regras que garantam uma Internet que neutralidade teria que ser regulamentada livre, aberta e neutra, que promova a inovação e em legislações nacionais, de modo que o IGF não não permita discriminação “não-razoável” (um teria muita influência no tema. Mas uma coalizão conceito obviamente a ser definido). As implicações dinâmica13 foi criada para discussão do assunto da neutralidade sobre liberdade de expressão e e está propondo um framework que sirva de de escolha pelo consumidor foram debatidas. Foi modelo para a definição de um padrão. Também lembrado que acordos “over-the-top” entre operadoras foi sugerido que um grupo de trabalho poderia de telecomunicações e provedores de conteúdo discutir o assunto, num trabalho “intersessional”, podem matar a inovação, embora um representante ou seja, entre edições consecutivas do IGF. Aliás, a da Telefónica tenha rebatido que o mercado era realização de tal tipo de trabalho, ao longo de todo competitivo e não necessitava de regulação. ano, e cobrindo diferentes temas, foi sugerido A conselheira Flavia Lefrève, uma das como uma das formas de reforço ao papel do IGF, painelistas, citou as disposições do Marco Civil atendendo à recomendação do NETmundial.

11. Ver programação do workshop 172 em http://www.intgovforum.org/cms/wks2014/index.php/proposal/view_public/172. 12. Ver programação da sessão plenária em http://www.intgovforum.org/cms/igf-2014/main-focus-sessions/1909-network-neutrality-towards-a-common-understanding-of-a-complex-issue 13. Ver informações sobre a Coalizão Dinâmica em Neutralidade de Rede em http://www.networkneutrality.info/about.html. poliTICs 35

Como era de se esperar, as discussões em Istambul não trouxeram nenhum consenso claro. Como era de Certamente o assunto continuará sendo decidido nas legislações nacionais (ou regionais, como na se esperar, as Europa), dependendo muito dos equilíbrios de discussões em força entre setores empresariais e da sociedade Istambul não civil em cada caso. O tema continuará sendo um desafio a ser discutido no IGF no Brasil, embora trouxeram nenhum até lá muito provavelmente tenhamos novidades consenso claro. concretas por parte da FCC e da Comunidade Europeia. Também outras legislações nacionais 36 Relatório de participação no 9º Internet Governance Forum

Enquanto o IGF foi estabelecido e se consolidou como um processo multilateral, multistakeholder, democrático, transparente e não vinculante, o conceito de Cooperação Aprimorada jamais se transformou em algo palpável.

poderão ter avançado, buscando inspiração no instrumentos para endereçar questões de políticas Marco Civil brasileiro (o que já está ocorrendo na públicas relacionadas à governança da Internet. Itália, por exemplo). Enquanto o IGF foi estabelecido e se consolidou como um processo multilateral, multistakeholder, ::  COOPERAÇÃO APRIMORADA democrático, transparente e não-vinculante, o O workshop 19614 discutiu a relação entre o IGF e a conceito de Cooperação Aprimorada jamais se Cooperação Aprimorada (“Enhanced Cooperation”). transformou em algo palpável. Até hoje se discute Estes dois conceitos foram introduzidos pela o próprio conceito: Cooperação Aprimorada Agenda de Túnis, em 2005, resultante da Cúpula deveria ser um conceito aplicado aos fóruns Mundial da Sociedade da Informação, como dois intergovernamentais, para que eles cheguem a

14. Ver programação do workshop 196 em http://www.intgovforum.org/cms/wks2014/index.php/proposal/view_public/196. 15. Ver informações sobre o WGEC e o seu relatório em http://unctad.org/en/Pages/CSTD/WGEC.aspx. poliTICs 37

resultados mais efetivos e consensuais em termos WSIS a ser feita pela ONU em 2015. de políticas públicas? Ou Cooperação Aprimorada Em comum entre quase todos os painelistas deveria representar a inclusão dos demais esteve a defesa do modelo multistakeholder, a setores nos fóruns intergovernamentais, para que necessidade de engajamento e diálogo globais e eles adquiram uma expressão multistakeholder? a importância do IGF. O Embaixador Benedicto O conselheiro Carlos Afonso, que representou Fonseca, um dos painelistas, lembrou que temos a sociedade civil neste workshop, afirmou que o hoje um desafio muito similar àquele enfrentado próprio IGF representava a implementação de pela Cúpula Mundial da Sociedade da Informação Cooperação Aprimorada e deveria começar a fazer dez anos atrás – como viabilizar que todos recomendações, além apenas das discussões. os atores do ecossistema, processos e fóruns Um grupo de trabalho criado sob a CSTD da ONU, atuem de forma colaborativa. Ele afirmou que o o WGEC – Working Group on Enhanced Cooperation, NETmundial foi um grande esforço nesta direção, liderado por Peter Major, também presente que o CGI se orgulha de seu papel na condução no workshop, e reunindo representantes de daquele evento e que deve ser feito um esforço diferentes setores, discutiu o assunto sem em Nova Iorque e em Genebra para que os chegar a fazer recomendações concretas 15. governos enxerguem a relevância do IGF como Peter Major admitiu que o assunto é extremamente fórum de discussão. sensível para muitos governos, opondo visões de A discussão sobre o papel e a evolução do IGF civilizações (sic) muito distintas. revelou tanto consensos como divergências. De um lado, foi consensual que ele deve ser ::  EVOLUÇÃO DO ECOSSISTEMA DE mantido como espaço de discussão e que GOVERNANÇA DA INTERNET E O devem ser feitos esforços para que ele seja PAPEL DO IGF ainda mais inclusivo (p.ex. permitindo uma O tema foi debatido em uma sessão plenária. participação mais expressiva de representantes Representantes de diferentes setores (governos, de países subdesenvolvidos) e que ele tenha um entidades técnicas, empresas, sociedade civil) financiamento estável e mais expressivo. analisaram entidades, atividades específicas Por outro lado, ficaram claras as divergências e eventos que são considerados relevantes no quanto aos seus resultados. Há vozes expressando ecossistema, tais como NETmundial, o processo a posição de que o IGF deve permanecer apenas WSIS+10, a CSTD, a ITU, a ICANN, e a revisão do como um espaço de discussão, sem a produção 38 Relatório de participação no 9º Internet Governance Forum

de documentos contendo recomendações e sem os participantes do evento, bastando que sejam a necessidade de busca de consensos. Aliás, produzidos documentos com propostas às quais um representante do governo do Reino Unido, pessoas e instituições possam posteriormente Mark Carver, foi bastante explícito ao afirmar aderir de forma voluntária. Fadi Chehadé, CEO que “nós não apoiamos a rápida introdução de da ICANN, chegou a afirmar que era necessário resultados negociados no IGF” e que “também não mover do diálogo para a ação e que deveríamos concordamos com suporte orçamentário da ONU lembrar o processo do NETmundial. Segundo ele, para apoiar o aumento da participação no IGF”. havia muito receio da comunidade em relação Outros, no entanto, gostariam de ver um ao resultado possível, mas não houve nenhuma IGF chegando a resultados mais tangíveis. mágica para o sucesso, apenas coragem, e que Surpreendentemente, o próprio representante da era o momento de sermos novamente corajosos China no painel afirmou que, sem a obtenção de e inovadores. resultados, o IGF continuaria a ser apenas uma Ao longo de toda a semana em Istambul, “tea house”. Raul Echeberria, da ISOC, um dos muito se discutiu a continuidade do IGF, cujo coordenadores do comitê executivo multissetorial mandato da ONU expira no próximo ano. Este do NETmundial, afirmou que a lição mais mandato tem sido renovado em períodos de importante do NETmundial foi a demonstração de cinco anos. Discutiu-se a conveniência da que é possível produzir documentos de consenso aprovação, pela ONU, de um mandato permanente sem a necessidade de processos formais de para o IGF, evitando-se a eterna dúvida em negociação. Ele também reforçou a necessidade relação a sua continuidade. Uma declaração 16 de IGFs nacionais, já que é no nível nacional que é assinada por diferentes instituições e pessoas foi desenvolvida a maioria das políticas relacionadas gerada em Istambul, solicitando esforços para à governança da Internet. Jeanette Hoffman, do garantir a continuidade do IGF. Mas houve Humboldt Institute for Internet and Society, enorme receio de que um mandato permanente afirmou que, para que as discussões no âmbito pudesse ser associado a uma forma de do IGF se tornem relevantes, elas precisam ser institucionalização do IGF dentro da ONU colocadas em documentos. Mas ela argumentou que pudesse dar excessivo poder aos governos que não precisamos ser ambiciosos e esperar nacionais, prejudicando a característica de diálogo documentos que sejam aprovados por todos multistakeholder do IGF.

16. Ver declaração em http://www.igfsa.org/wp-content/uploads/sites/15/2014/09/IGF-Support-Association- Articles.pdf. poliTICs 39

::  APRECIAÇÃO FINAL E PERSPECTIVAS PARA O IGF 2015 NO BRASIL Como em anos anteriores, o IGF oportunizou Temos que aproveitar uma importante troca de ideias entre as diversas a realização do evento comunidades envolvidas na governança da no Brasil em 2015 para Internet, mas poucos resultados práticos foram promovermos avanços que obtidos. Um relatório completo do evento, acompanhado de relatórios específicos dos se tornem permanentes muitos workshops e encontros paralelos, pode e que abram novas ser encontrado no seu sítio17. perspectivas para o IGF. Uma crítica ouvida em Istambul é que há um excesso de atividades paralelas no IGF, inclusive com sessões plenárias ocorrendo em paralelo com workshops e encontros de coalizões dinâmicas. Isto torna as discussões muito fragmentadas e também muito repetitivas, pois cada sessão ou workshop acaba reunindo agrupamentos diferentes de pessoas, que tendem perseguidos no ecossistema internacional de a repetir argumentos já colocados diante de outros governança da Internet. Temos que aproveitar agrupamentos, em outras sessões. a realização do evento no Brasil em 2015 para Minha expectativa para o IGF a ser realizado promovermos avanços que se tornem permanentes no Brasil em 2015 é muito grande. O sucesso do e que abram novas perspectivas para o IGF. NETmundial, o prestígio do CGI e a aprovação Em particular, eu gostaria de ver um IGF do Marco Civil certamente dão ao Brasil uma mais propositivo, tentando seguir, na medida autoridade, uma liderança e uma respeitabilidade que do possível, o modelo do NETmundial, com a precisaremos saber aproveitar para avançarmos no elaboração (prévia ao evento, inclusive), discussão IGF como fórum de discussão. Como estabelecido no e aprovação, por alguma forma de “consenso documento final do NETmundial, o fortalecimento aproximado”, de documentos que contenham do IGF é um dos principais passos futuros a serem recomendações concretas em temas relevantes da

17. O relatório final do IGF pode ser encontrado em http://www.intgovforum.org/cms/documents/igf-meeting/igf-2014-istanbul/308- igf-2014-chairs-summary-final/file. 40 Relatório de participação no 9º Internet Governance Forum

governança da Internet, especialmente em estão pontos como privacidade, neutralidade, temas não-técnicos. Embora não-vinculantes, inimputabilidade da rede (e de provedores tais recomendações poderiam receber a de acesso e de conteúdo), cibersegurança e adesão voluntária de instituições e mesmo vigilantismo eletrônico, entre outros. Até que de governos, através de políticas e legislações ponto a comunidade internacional conseguirá nacionais, e de instituições internacionais chegar a propostas consensuais, que sejam intergovernamentais. colocadas na forma de recomendações (como O documento final do NETmundial já apontou no documento do NETmundial) e que possam diversas questões que precisam ser discutidas influenciar legislações nacionais e tratados em busca de abordagens que sejam aceitas internacionais (ou resoluções da ONU, por pelas comunidades internacionais dos diversos exemplo)? Até que ponto o IGF no Brasil poderá setores e que possam ser compatibilizadas com avançar para se tornar um fórum no qual, além das as legislações nacionais e internacionais – aqui discussões e relatórios, também recomendações concretas possam ser elaboradas e submetidas às entidades envolvidas nos múltiplos aspectos da governança da Internet? Para que o IGF alcance resultados mais efetivos, talvez seja necessário dar mais foco a suas atividades, evitando a excessiva proliferação de workshops e sessões paralelas, como tem ocorrido nas últimas edições. Também sabemos que muitos setores e governos querem manter o IGF como um espaço apenas de discussão, sem a aprovação de recomendações. Teremos nos próximos meses uma discussão importante sobre o formato, os temas e os resultados esperados do próximo IGF. Espero que o CGI possa influenciar decisivamente a organização do evento para que tais resultados possam ser obtidos, inclusive atuando fortemente junto ao MAG. NETmundial, um ano depois... Relatório de participação no 9º Internet Governance Forum

Uma publicação do Instituto Nupef • abril / 2015 • www.politics.org.br O Instituto Nupef é uma organização sem fins

de lucro dedicada à reflexão, análise, produção de conhecimento e

formação, principalmente centradas em questões relacionadas às

Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) e suas relações

políticas com os direitos humanos, a democracia, o desenvolvimen-

to sustentável e a justiça social.

Além de realizar cursos, eventos, desenvolver pesquisas e estudos

de caso, o Nupef edita a poliTICs, a Rets (Revista do Terceiro Setor)

e mantém o projeto Tiwa – provedor de serviços internet voltado

exclusivamente para instituições sem fins lucrativos – resultado de

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meiro provedor de serviços internet aberto ao público no Brasil).

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