UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES MESTRADO EM ARTES CENICAS

0 PROCESSO PINA-BAUSCHIANO COMO PROVOCA(:AO A DRAMATURGIA DA MEMORIA

LICIA MARIA MORAIS SANCHEZ

Este exemplar e a reda;;ao final da ndida pel a Sra. Licia Maria Dissertac;:ao apresentada ao Curso de e aprovada pela Comissao Mestrado em Artes do Instituto de Artes da em 16/08/2001 UNICAMP como requisito parcial para a \, c...:.\---~'~1 obtenc;:ao do grau de Mestre em Artes ·-~---"- -:::- - rl C. Cenicas, sob a orientac;:ao do professor Doutor Marcio Aurelio Pires de Almeida.

CAMPINAS - 2001. FICHA CATALOGRAfiCA ELABORADA PELA BffiLIOTECA CENTRAL DA UI\'ICAMP

Sanchez, Ucia Maria Morais. Sa55p 0 processo Pina-bauschiano como provocaQii.O a dramaturgia da memoria I Ucia Maria Morais Sanchez.--Campinas, SP: [s.n.], 2001.

Orientador: Marcia Aurelio Pires de Almeida DissertaQii.O (mestrado)- Universidade Estadual de Campinas, Institute de Artes.

1. Bausch, Pina- lnfluencia. 2 Stanislavski, Konstantin, 1863-1938 - lnfluencia. 3. Dramaturgia. 4. Memoria. I. Almeida, Marcia Aurelio Pires de II.Universidade Estadual de Campinas. lnstituto de Artes. Ill. Titulo. A Carlos Ramon, meu parceiro de cria<;ao e permanente colaborador. A Micaela, minha filha, e a Elza, minha tia-mae que me iniciou na arte. AGRADECIMENTOS

A Pina Bausch, que compartilhou sua genialidade criadora.

Aos professores Jean Cebron e Hans Ziillig, mestres de incomum competencia na transmissao das tecnicas de danqa moderna.

A todos os mestres que transmitiram os conteiidos tecnicos e filos6ficos da nossa

forma~ao.

A grande amiga Julie Shanahan, e a todos os companheiros do Wuppertal.

Ao orientador, Marcia Aurelio Pires de Almeida, pelo equilibria, sabedoria e sensibilidade artfstica da sua orientaqao.

A Jaci Menezes, pela ajuda incondicional em todas as horas.

A Sergio Farias, pelas sugestoes dos meus primeiros passos neste mestrado.

A Inaicyra Falcao dos Santos, por sua atenqao em todos os momentos em que a solicitamos.

A Maria Cecilia dos Santos Fraga e Marilda do Couto Cavalcante, pela importante contribuiqao.

A todos os participantes do Projeto Alforria, Dan~a Jamal e outros projetos, que compartilharam conosco os momentos de cria<;ao.

A Suzana Martins e Antrifo Sanches, pelos depoimentos valiosos. A Universidade Estadual de Campinas, e a todos os funcionarios da p6s-gradua~ao do Instituto de Artes.

Ao Departamento de Artes Cenicas da UNICAMP, que abriu suas portas para as nossas experimentac;oes, e aos que foram nossos professores.

Aos amigos Ivaldo Pessoa, Daniel Roseno da Silveira, Jennie Rodrigues Manteiga e Adriana Barao, pela constante disposic;ao em nos ajudar.

A Felipe Serpa, Silvestre Ramos Teixeira, Monica Krugman, Dulce Aquino, Deolindo Checucci, Juc;ara Martins, Carlos Moraes, Dalal Achcar, Ciane Fernandes, Theodomiro Queiroz, Euzebio Lobo, Lucia Mascarenhas, Luiza Paraguai Donati, pel as contribuic;oes diversas.

Ao Instituto Central de Educac;ao Isafas Alves, onde experimentamos desde o infcio.

A Produtora Universitaria de VIdeo- Provideo I Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- UESB, pela documentac;ao em video do nosso trabalho.

A Universidade Federal da Bahia, onde iniciamos a nossa formac;ao academica.

A CAPES, porter financiado o nosso curso pelo periodo de urn ano e meio.

E a todos aqueles que estao nos abrindo portas. RESUMO

Este trabalho descreve a trajet6ria de uma experiencia influenciada pela escola expressionista alema, que culminou com a nossa convivencia com a mais importante represemante desta corrente no mundo contemporaneo atual, a criadora de teatro de dan<;a Pina Bausch. Essa convivencia nos mostrou caminhos que vieram enriquecer a fluencia da nossa poetica com urn conseqUente fortalecimento da nossa identidade com proje<;ao universal, permitindo-nos a realiza<;ao de experiencias tanto artfsticas quanto pedag6gicas e uma reflexao sobre a rela<;ao entre as praticas de Bausch e de Stanislavski. ABSTRACT

The present work describes the unfolding of a personal experience - my own experience -, which was influenced by the German Expressionist Dance School and culminated in a stint spent working with Pina Bausch, the creator of Dance Theater and the most important member of such school at the moment. This experience showed me new possibilities, which enriched the fluency of my poetics and strengthened my universal identity, therefore allowing me to have new artistic and pedagogical insights and to reflect about the practices of Pina Bausch and Stanislavski. SUMARIO

INTRODU<;:Ao ...... 9

Capitulo 1 RESlJMO DE UMA EXPERIENCIA ...... 15 1. 0 processo ...... 27 2. As perguntas e respostas ...... 31 3. A fase de composi<;ao das pe<;as ...... 50

Capitulo 2 - "AS MlJLHERES DOS DEUSES'', 0 QlJE PINA BAUSCH TEM A VER COM ISSO? ...... 53 1. 0 que Pina Bausch tern aver com isso? ...... 69

Capitulo 3 "TUA OlJTRA CABEc;:A, TUA OUTRA MEMORIA" UMA EXPERIENCIA COM OS ALUNOS DO CURSO DE ARTES CENICAS DA lJNICAMP ...... 76

Capitulo 4 BAUSCH/STANIS LA VSKI. lJMA BREVE INTERPRETAc;:Ao ...... 89

CONCLUSAO ...... 102

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ...... 104

ANEXO I- Projeto Alforria; o que Ruy Barbosa nao queimou ANEXO II- Tua outra cabe<;a, tua outra memoria ANEXO III- Dan<;a Jornal INDICE DE ILUSTRA<;:OES

Capa: As Mulheres dos Deuses: For~a, Transe e Paixao Foto: Gildo Lima

Foto 1: Movimento, gesto e cria~ao no olhar de Pina Bausch ... ,.,...... 14 Foto: Ulli Weiss I Tanztheater von Pina Bausch, 1979

(Reprodu~ao retocada e invertida)

Foto 2: No espelho, integrantes do elenco do Wuppertal Tanztheater ...... 52 Foto: l..nli Weiss I Tanztheater von Pina Bausch, 1979

Foto 3: Konstantin Stanislavski ...... 101

(Reprodu~ao retocada)

As fotografias foram tratadas e processadas no Photoshop. lNTRODuc;:A.o "Pode ser que os cientistas tenham alguma exp/icar;ao sabre a natureza desse processo indizivel. Eu posso apenas descrever aquilo que eu mesmo sinto e como utilizo essas sensac;i5es na minha arte. " Constantin Stanislavsky

Arte, Ciencia e Filosofia nao podem ser confundidas, evidentemente, porque

nao sao a mesma coisa; entretanto, a academia nos disponibiliza urn espa~o propfcio para o dialogo de complementaridade destas ordens de saberes.

Alguns colegas de profissao consideram limitada a contribui<;:ao que o artista tern para dar a academia, todavia, tanto o artista como o cientista e o fi16sofo precisam do insight em seus trabalhos. Desta forma, vemos que a arte, a ciencia e a filosofia estao bern pr6ximas uma das outras.

Entre outras questoes relativas a arte. sabemos que esta nao se ensina, o "artista ja nasce artista" 1 Nossos processes criativos possuem mementos os quais podemos traduzir apenas de maneira aproximada, pais, "Os caminhos da criw;iio, na verdade, niio podem ser conhecidos "2

Este aspecto inclusive e objeto de estudo importante nas areas da psicologia e da educa<;:iio.

Os processes pelos quais se da o produto artfstico sao a grande riqueza do artista, alem da sua obra ffsica. Sentimos que o relato destes processes, atraves dos

1 ALBANO, Ana Angelica. Tuneu, Tarsi/a e outros mestres... Sao Paulo: Plexus, 1998, p. 27. 2 STANISLA VSKI, Constantin. A criaqi:io de um papel. Trad. Pontes de Paula Lima. : Civiliza<;iio Brasileira. 1999. p. 153.

II nossos depoimentos, e uma forma de contribui~ao para o conhecimento te6rico/academico relacionado com a arte,

Sendo assim, conduziremos este trabalho tendo como fator principal o relato da nossa trajet6ria pratica artfstica: seremos os observadores de n6s mesmos,

Certamente nao estamos propondo descobertas como na ciencia nem usaremos os criterios de verdadeiro ou falso, Estamos propondo que os fatos apresemados possam ser compartilhados, sendo questionados e refletidos por aqueles que estejam interessados na discussao da contribui~ao que a narrativa da experiencia do artista pode trazer para o conhecimento academico artfstico, se assim podemos dizer,

Atraves desse depoimento, tentaremos transmitir, entre outras quest5es, as influencias que assimilamos em nosso trabalho e a maneira como processamos a experiencia de dois anos intensivos, vividos ao !ado da criadora de teatro de dan~a Pina Bausch, no Wuppertal Tanztheater na Alemanha,

Este relato sera pautado pelas nossas sensa~5es, sentimentos e interpreta<;5es, Nao sera uma narrati va linear, 0 pens amen to subjeti vo certamente deixa lacunas que podem ser subentendidas ou nao, mas tentaremos compartilha-lo ate onde podem nos levar as nossas reflex5es,

Por outro !ado, as caracteristicas nao alienantes do processo vivenciado no Wuppertal nao nos permitiriam aprisiona-lo em teorias, regras, formulas ou metodos explfcitos, embora tenhamos de levantar principios, conceitos e conduta critica para com eles melhor esclarecer o esse relato,

E oportuno registrar que, por muito tempo, adiamos a investida em urn curso de mestrado, acreditando que, por sermos da pratica artfstica, nao iriamos entender a linguagem academica, e, por outro !ado, nao seriamos entendidos, A verdade e que a

12 academia nos ofereceu instrumemos que vieram fortalecer a ideia da importancia do registro das nossas experiencias como criadora e interprete. Obviamente com algumas dificuldades em traduzir momentos indizfveis contidos em nossos processos interiores.

Ao Iongo da trajetoria profissional, fonnulamos questionamentos dos enigmas que encontramos na investiga~ao da expressao do nosso exercfcio criativo. A este fato se deve a ida ao encomro de Pina Bausch, buscando o aprimoramento da nossa tendencia artfstica, despertada desde o infcio da nossa fonnaqao profissional. Nao se trata de urn encontro momentaneo ou casuaL Esta tendencia foi despertada desde o curso de uma escola, on de recebemos a influencia expressionista.

No primeiro e segundo capftulos, alem de urn breve historico da nossa fonna~ao, relatamos o aprendizado que tivemos com uma verdadeira mestra, que nao nos ensinou como fazer, mas nos forneceu ferramentas que vierarn facilitar o desenvolvirnento das nossas ideias. Conseqiienternente, ressaltamos os ref!exos deste aprendizado ern nossa obra, na qual tivemos a intuiqao como condiqao fundamentaL Apresentarnos tarnbem a afinnaqao da nossa identidade com uma projeqao universal.

No terceiro capftulo, abordamos a experiencia da pratica artfstica que tivemos junto a urn grupo de alunos do curso de artes cenicas da UNICAMP e ressaltarnos que a busca da verdade cenica e comum ao teatro e ao teatro de dan\;a.

0 quarto capftulo e urna breve interpreta\;aO dos conteudos de Bausch e Stanislavski, que lidam, ao nosso ver, corn os mesmos elementos - lembranqas vivas, pessoais. annazenadas na memoria cultural ancestral, afetiva, enfirn, toda uma memoria da nossa historia de vida como seres humanos - para chegar a urn unico firn, que e a verdade cenica em uma dramaturgia de memorias.

13 Movimento, gesto e cria9i'io no olhar de Pina Bausch Capitulo 1

RESUMO DE UMA EXPERIENCIA Para justificar a liga<;:ao que temos com Pina Bausch, lan<;:amos mao de urn breve hist6rico de nossas trajet6rias. Neste paralelo, tentaremos demonstrar a liga<;:ao entre nossas escolas e uma sintonia de ideias que partem de inquietudes semelhantes, como a preocupa<;:ao com o ser humano.

Pina Bausch nasceu em 27 de julho de 1940 em Solingen, Alemanha. Iniciou seus estudos de dan<;:a em 1955 na Folkwang School, em Essen, Alemanha, tendo como diretor Kurt Jooss. Graduou-se em 1958. Em 1959 recebeu uma bolsa de estudos como aluna especial para a Juillard School of Music, em Nova Iorque, onde estudou com importantes professores como Jose Limon, Antony Tudor, Alfredo Corvino, Margaret Craske, Louis Horst, entre outros.

Durante o periodo em que esteve em Nova Iorque, certamente foi sensfvel ao movimento de vanguarda que Ia surgia, em rea<;:ao contra as tecnicas formais de dan<;:a moderna e na busca de novas formas de manifesta<;:6es cenicas.

Em 1962, retornou ao Folkwang Ballet, companhia recentemente fundada por Kurt Jooss. Nesta companhia, dan<;:ou como solista e foi tambem assistente de Jooss.

De 1962 a 1968, trabalhou intensamente sob a orienta<;:ao de Kurt Jooss, urn dos 1 que levaram a pratica com mais enfase as ideias de Laban •

Ap6s a aposentadoria de J ooss, tornou-se diretora artfstica do Folkwang Ballet, de 1969 a 1973. Nesta oportunidade, exercitou seu talento criativo em vanas pe<;:as coreograficas.

1 Rudolf Von Laban (1897-1958) conseguiu enriquecer o vocabulario do movimento expressivo. ampliando o conhecimento sabre o meio de comunica~ao mais vital do homem e colocando estes dados adisposi<;iio de especialistas de outros campos. Laban apoiou-se nos principios b

16 Em 1973 foi convidada para ser diretora e core6grafa da recem-fundada Companhia Wuppertaler Tanztheater.

Atualmente na Alemanha, Pina Bausch nao s6 da prosseguimento as ideias de Laban e Jooss como vern revolucionando o universo da dan<;a contempor1mea, materializando urn dos mais valiosos pensamentos de Laban: a unidade do ser com seu uni'verso?

Ela poe em pratica esta ideia explorando as infinitas possibilidades, nao do ator dan<;arino, mas do indivfduo, como ser que busca a interrela<;ao com o mundo numa qufmica entre esfor~os humanos e criatividade, criando novas realidades, indo alem do 6bvio, da visao imediata de urn tema, possibilitando urn encontro com a sua essencia, como interprete do mundo com a devida poetica do nosso exercfcio: a arte.

N6s, por nossa vez, viemos da pratica intensa, desde 1968, no universo da dan<;a. Durante urn Iongo periodo fomos pessoalmente bailarina-interprete. A partir de urn determinado momento, paraielamente as atividades de bailarina, iniciamos a atividade criativa de coreografar. Atualmente estamos desempenhando fun~6es de direqao, coreografando e dando aulas.

Por conta da mentalidade retr6grada de alguns diretores de companhias de dan~a e core6grafos, que sobrep6em o virtuosismo do bailarino a sua experiencia adquirida atraves dos anos, a carreira do bailarino interprete e efemera. Diante deste fato, desde muito cedo nos inquietamos com a ideia de dar prolongamento a nossa vida na dan~a por qualquer via que fosse.

Nossa primeira forma<;ao foi de ballet ch:issico, aprendizado tecnico que facilita a fluencia de outras tecnicas. A base s6lida de ballet classico, que estudamos na Escola

2 LABAN. Rudolf. Dominio do Movimento. Trad. Anna Maria Barros De Vecchi & Maria Silvia Mourao Netto. Sao Paulo: Summus,l998, p. 15.

17 de Ballet do Teatro Castro Alves, na Bahia, veio facilitar a pnitica de outras dan~as modemas contemporaneas, populares e tradicionais, que estao presentes em nossa vida pro fissionaL

A mise en scene dos ballets classicos despertou-nos para a dan~a expressiva gestuaL Deste despertar, sentimos necessidade de ampliar horizontes no universo da danqa. Em 1972, ingressamos no curso de licenciatura em dan~a da Escola de Musica e Artes Cenicas da Universidade Federal da Bahia.

Ao ingressar nessa escola, onde se "faz referencia a dant;a mode rna da decada de 50, influenciada pela escola alemti e ao movimento academicista da decada de 70, 3 com forte dominio da escola americana" , encontramos uma tendencia expressionista.

Assimilamos concretamente essa influencia, nao s6 nos ensinamentos das disciplinas em geral, como na pratica de professores autenticos da escola expressionista alema, como Rolf Gelewski e Monica Krugman - o primeiro ligado a Mary Wigman, tendo sido seu solista e colaborador, e esta ultima, ex-aluna de Kurt Jooss e colega de Pina Bausch na escola e na Companhia do Folkwang.

Nessa epoca, fascinou-nos o conhecimento que obtivemos sabre a filosofia da danc;a e do movimento expressionista.

Assumimos como bandeira o ideal de que o artista tern a obrigaqao de registrar os acontecimentos polfticos e sociais da epoca em que vive. Envolvida por este pensamento, nao consegufamos pensar a dan.;;a Ionge da condiqao de ser humano.

3 PINHEIRO. Juqara Edgard Santos e a Origem da Escola de Danr;a da Universidade Federal da Bahia. Dissertaqao de Mestrado. Faculdade de Educa<;ao da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1994, p. 97.

18 Freqlientar essa escola foi urn exercfcio muito rico, pois as experimenta~oes faziam parte do dia-a-dia nas disciplinas. A proxirnidade com as aulas de teatro, musica e artes plasticas favorecia os experimentos tfpicos da decada de 70. Tudo isso nos levou a uma reflexao atraves da qual pudemos compreender que a danc;:a ia muito alem das tecnicas pre-estabelecidas que havfamos estudado.

Ainda hoje, na maioria das vezes vemos estas tecnicas trabalhadas de maneira 4 oposta ao que poderfamos chamar de pensamento criativo . Principalmente as tecnicas de ballet classico e dan~a moderna que, quando e preciso serem utilizadas no ambito da criatividade, o que vemos sao condicionamentos aos seus estere6tipos.

E necessario que o artista tenha o seu repert6rio tecnico, entretanto e muito importante que ele tenha tambem uma no~ao precisa de como estas tecnicas devem ser trabalhadas e, conseqlientemente, utilizadas nos processos e produtos artfsticos, pois:

"As tecnicas niio siio artificios rnedinicos - urn saco de truques bern rotulados para serern retirados ( ... ) quando necessaria. ( ... )as tecnicas apareceriio a partir do seu total." 5

As tecnicas nunca devem se sobrepor a criatividade e a nossa necessidade primeira de ser humano. Isto para n6s esta muito claro nas ideias de Laban, especialmente quando ele se refere a ac;:ao dramatica no teatro como a intensifica~ao artfstica da ac;:ao humana. Esta intensificac;:ao artfstica e urn incremento a arte de viver,

4 Enquanto aquele que niio se copia. 5 SPOLIN, Viola. Improvisaqiio para o Teatro. Trad. Ingrid Dorrnien Koudela e Eduardo Jose de Almeida Amos. S. Paulo: Perspectiva, 2000, p. 12-13.

19 quando se aprende a dominar o movimento6 Ao contnirio de quando se e dominado pelas tecnicas.

Movida pelas ideias de Laban e Jooss, come<;amos a coreografar. Inicialmente, trabalhos para as disciplinas da escola.

Em 1973, n6s ja davamos infcio a uma pesquisa na busca de uma dan<;a que transmitisse a expressividade natural do povo brasileiro e da America Latina.

Em 1977, fizemos urn trabalho de final de curso para a disciplina de Coreografia e, ap6s apresenta-lo na escola, nos incentivaram a mostni-lo no Primeiro Concurso Nacional de Dan<;a Contemporilnea na Bahia, evento da Universidade Federal da Bahia que tinha como objetivo ser urn panorama da dan<;:a contempori'mea no Brasil.

Assim teve mfcio o Projeto Dan<;:a Jomal, cuja caracterfstica principal era coreografar notfcias de jomal, tentando transmitir uma tematica brasileira atraves do expressionismo, e tendo em Augusto Boa! 7 uma fonte de inspira<;ao.

0 trabalho Quando Tenga La Tierra ou More com a Proter;iio dos Orixds foi apresentado no concurso e premiado pelo juri com a seguinte men<;ao: ''Pela atualidade da proposta apresentada, o enfoque na danr;a contemporanea de problemas s6cio­ culturais ".

Em continuidade a esta pesquisa, participamos da XIV e da XV Bienal

Intemacional de Sao Paulo, em 1977 e 1979 respectivamente, fazendo a interpreta~;ao coreografica do Projeto Etsedron, uma proposta de arte integrada. Seguimos nos apresentando em varios eventos, com diferentes trabalhos. sempre com enfase na tematica social e polftica do Brasil e da America Latina.

6 LABAN, Rudolf Op. Cit., p. 15 7 Dramaturgo criador do Teatro Jornal.

20 Em 1980, atraves do projeto de dinarnizaqao cultural do Institute Central de 8 Educa.;:ao Isaias Alves , procuramos estender a nossa pesquisa com a cria>;iio do grupo experimental de dan>;a do ICEIA

Nesta epoca, o nosso trabalho contava com a boa aceitaqao do publico, porem, urn comentfuio era constante: "0 trabalho tern umaforte tendencia para o teatro". "0 trabalho e mais teatro que dant;a. "

Necessitavamos, entao, naquele momenta, aprofundar a nossa tendencia expressiva, que, alem do mais, era uma busca de sair do usuaL Queriamos uma renovaqao de olhar que nos levasse a uma percep>;iio mais profunda das sutilezas da realidade, com enfase no nao-intelectual, valorizando a intui.;:ao, procurando perceber­ nos, em direqao a urn estado sensfvel despojado dos estere6tipos construfdos com as tecnicas.

Em 1987, ao tomarmos conhecimento do trabalho da companhia Wuppertal Tanztheater, para !a nos dirigimos com a intenqao de ter a oportunidade de vivencia-lo.

Assim, ingressamos no Wuppertal Tanztheater, onde tivemos a oportunidade de receber a orienta>;ao e a direqao de Pina Bausch. Nesse estagio, que teve a dura<;:iio de dois anos intensives, obtivemos apoio do Conselho Nacional da Pesquisa (CNPq), atraves de uma bolsa de estudos. 0 dia-a-dia na companhia se constitufa de aulas de ballet chissico e de dan"a modema, no Teatro Operhaus, que iam das 10 horas da manha ate as llh30. Ap6s o que 9 nos dirigfamos para o Lichtburg , onde eram realizadas as sessoes de pergunta e resposta.

8 Proposta piloto de integrar as atividades de arte e comunica~ao ao curricula formal no Institute Central de Educa<;ao Isaias Alves ICEIA, na Bahia, Escola Publica de 1o e 2' graus.

9 Cinema antigo onde Pina trabalha suas cria~6es na cidade de Wuppertal, Alemanha.

21 Estas sess5es de pergunta e resposta eram os ensaios para a cria'

Os professores das aulas de dan'

A nossa chegada ao Lichtburg, Pina Bausch sempre estava Ia, sentada a sua mesa, fazendo anota<;:5es, lendo alguma coisa. Assim iniciava-se o ritual diario com ela. Ap6s cumprimenta-la, dirigfamo-nos para os nossos lugares, acomodavamo-nos e, em seguida, tomavamos os nossos cadernos de anota.;;oes, pe.;;a fundamental para o registro das perguntas e das respostas que construfamos, rninuciosamente anotadas.

Vfamos o Lichtburg como urn espa<;:o magico, propfcio para o exercfcio criativo da companhia. As cadeiras da plateia deste antigo cinema foram retiradas, ficando urn grande salao. A tela do cinema permaneceu com suas cortinas antigas. Nesse salao, aconteciam os ensaios. Nesse ambiente tambem estavam disponfveis urn guarda-roupa variado e muitos baus com objetos e sapatos para utilizarmos no momenta em que construfssemos os quadros.

Desta forma, a cena ja estaria pronta no caso de ser escolhida para entrar na pe<;:a, claro que passando antes por Marion Cito (uma das colaboradoras de Pina Bausch nas quest5es de figurino) para novas sugest5es ou ajustes.

22 Como parte do programa da bolsa, deveriamos fazer urn curso de alemao no Goethe Institut, na Alemanha, mas, nao querendo perder nenhum dia de trabalho na companhia, preferimos abrir mao desse curso, o que foi justificado ao CNPq em documento do Wuppertal dizendo que nao precisavamos falar alemao para permanecer na companhia, pois Ia havia pessoas de vanas nacionalidades e nem todas falavam alemao. Alem disso, geralmente nos ensaios Pina Bausch falava inglils. Caso alguma palavra nao tivesse tradw;:ao, consultavamos o dicionano. 0 mais interessante e que ela falava muito pouco durante os trabalhos, apenas o necessano. A questao do entendimento foi muito importante. Por muitas vezes ela nao precisava dizer nada para ser entendida, porque seu olhar e seus gestos diziam tudo.

Nao nos arrependemos de nao termos feito o curso de alemao, pois a compreensao deste processo veio atraves de outra forma de percepc;:ao, nao estava contida necessariamente em palavras. As palavras ajudavam na adequac;:ao da conduta a ser seguida, mas a compreensao profunda veio do sentir, urn sentir que esta ligado mais a intuic;:ao do que ao que convencionalmente e chamado de sentimento: tristeza, dor, 6dio, amor e tantos outros. Poderiamos ate dizer que esta compreensao veio da tomada de consciencia.

Assim, mergulhamos tao profundamente na experiencia que na volta ao Brasil, quando as pessoas nos perguntavam como era o processo bauschiano, apenas dizfamos: e urn sentimento, no sentido de estar envolvida apenas por sensac;:oes, e nao tfnhamos explicac;:6es !6gicas para o que sentfamos.

Temos muita certeza de que a compreensao dessa experiencia nao seria o que foi para n6s, e acreditamos que tambem para todos os que trabalham com Bausch, se nao fOssemos pessoas sensitivas. Isto inclusive e uma qualidade que ela faz questao de ressaltar nos integrantes da sua companhia: "me us danc;arinos sao sensitivos ", no senti do de serem pessoas intuitivas, sensiveis.

23 Quando nos era dado a conhecer o estfmulo-tema ou pergunta, a primeira coisa que fazfamos era nao intelectualizar. Orienta~ao dada por ela quando percebia alguma especie de dificuldade das pessoas em pensar e realizar suas ideias, materializando-as em a~6es.

Mais adiante neste capitulo, voltaremos a questao do nao-intelectualizar, como tambem no quarto capftulo, quando abordarmos os ensinamentos de Stanislavski. Realizavamos o nao-intelectualizar deixando a mente vazia, ate que chegasse uma ideia vinda da realidade simb6lica, mftica, cotidiana, inconsciente, enfim, da nossa hist6ria de vida. Esse conteudo deveria ser materializado a partir da nossa maneira de ver, sentir e perceber o tema, indo alem da visao imediata, buscando nas sutilezas da realidade do tema a nossa interpreta~ao, assim como nos mostra sabiamente esta passagem mitol6gica:

"Uma vez um mestre zen parou diante de seus discipulos, prestes a proferir um sermii.o. No instante em que ele ia abrir a boca, um passaro cantou e ele disse: 'o sermii.o ja foi proferido. "10

Consideramos esta passagem mitol6gica como a expressao da conduta bauschiana da sabedoria em rela.;:ao ao ponto em que devemos chegar: a essencia das coisas, procurando ver e sentir o mundo, eliminando a interpreta.;ao do 6bvio, do imediato, do usual. E nao falar de flares, se urn tema trata de flores. Certamente este nao-6bvio e o que leva a uma das caracteristicas mais marcantes em sua obra: o inusitado.

10 Apud. CAMPBELL, Joseph. 0 Poder do Mito. Trad. Carlos Felipe Moises. S. Paulo: Pala Atenas, 1990. p. 23.

24 A assimilaqao desse processo nao e tao facil, apesar de ser simples, pois, na maioria das vezes, procuramos entender as coisas pela via dos c6digos preestabelecidos, o que certamente e mais acessfveL A verdade e que ele e muito simples porque busca que expressemos o essencial de urn tema.

Pina Bausch nao da muitas explicaqoes do que quer, nem onde quer chegar. E, reforqando essa nossa constataqao, ela diz:

"As pessoas cometem urn erro muito grande, discutem tudo minuciosamente ate que se adapte a seus modelos ( ... ) Eu posso, evidentemente, dizer mais, mas entiio niio preciso mais colocar perguntas." 11

Nao existe nenhum treinamento especffico de preparaqao para esse processo. 0 umco exercicio e a pratica, na qual devemos, de alguma forma, pensar, contudo, deixando que a experiencia se realize no nfvel intuitivo. E o recurso viavel que temos: deixar livre a expressao da nossa imaginaqao e criaqao.

Nao existem, como no teatro tradicional, metodos que trabalhem a constrm;:ao do personagem, ou a preparaqao do ator. Os jogos teatrais, jogos dramaticos e jogos improvisat6rios tambem nao sao utilizados para obter qualquer tipo de resultado cenico. Nesse processo, voce deve ser voce mesmo, sem copiar nenhum padrao externo. Assim nascem as pe<;as de Pina Bausch: de dentro para fora. Como diz Jochen Schmidt:

11 Apud, HOGHE, Raimund. Bandoneon. Trad. Robson Ribeiro e Gaby Kirsch. S. Paulo: Attar Editorial, 1989, p. 15.

25 "Talvez seja isto que pem1ite comover diretamente o corar;iio do espectador de maneira mais intensa que qualquer outra forma , ]? d e teatro . -

Justamente por esta particularidade do processo da nao-busca de modelos externos e que vimos com certa cautela o que queriamos desenvolver, pois sabemos os erros que podem ser cometidos em nome do "eu acho" e sabemos que e diffcil compreender o pensamento subjetivo.

Mesmo sabendo que safmos de Wuppertal com o aval de Pina Bausch quanto ao nosso aprendizado dentro do processo, sentimos a necessidade de comunicar a ela sobre o que iriamos fazer.

Entramos em contato com ela em julho de 2000, resumindo o que conteria a nossa dissertaqao: relatar a experiencia que tivemos com o seu teatro-danqa atraves das nossas sensa~6es, sentimentos e interpreta~6es. Talvez ir urn pouco mais alem, fazendo uma breve interpreta~ao do processo, aproximando-o de alguns aspectos do metodo de Stanislavski. Para nossa tranqiiilidade, recebemos deJa urn conselho bastante confortavel. coerente com os seus princfpios e com o que realmente estavamos realizando: deveriamos fazer a nossa propria interpreta~ao.

Com esta recomendaqao, sentimo-nos coerentes com urn importante princfpio: ode que cada urn busque seus pr6prios caminhos.

12 SCH1v1IDT, Jochen. "Experimentar lo que conmueve al ser humano". In: Teatro Danza Hoy. Coletinea Varios autores. Leipzig: Jlitte Druck. 2000, p. 11.

26 1. 0 PROCESSO

Chegando a Companhia, em 1987, encontramos em an damen to o processo de criac;:ao do filme "The Plaint of the Emperess",

Este primeiro momento foi muito importante para ver, sentir, compreender e executar timidamente algumas respostas.

Mais tarde, no processo criativo da pec;:a "Palermo, Palermo", realizada em co­ prodw;:ao com o Teatro Biondo de Palermo e Andres Neumann Intemacional, participamos ativamente na criac;:ao. Para a realizac;:ao desse trabalho, viajamos com a Companhia para a cidade de Palermo, na Italia, onde, por urn periodo, conhecemos e vivenciamos a cultura local.

Se, por urn !ado, nao sao utilizados os recursos tecnicos de preparac;:ao de ator e criac;:ao de personagens utilizados no teatro tradicional para a composic;:ao de pec;:as, por outro existe uma pesquisa de campo: o ver, o olhar, o observar, o sentir, que, nesse caso, foram as crenc;:as, habitos e costumes dos habitantes da cidade de Palermo, na ltalia, que vivenciamos.

Toda essa experiencia, tanto no momento das perguntas formuladas quanto das respostas, foi convertida a partir da essencia desses conteudos, que daf foram materializados de maneira viva, em conexao com nosso sere em rela<;ao com o mundo.

Isto significa que, se assistimos a uma festa religiosa, com todos os acontecimentos que envolvem urn evento desta natureza - santos, beatas, cantos, rezas, situac;:6es variadas, etc. -, devemos procurar a que nos remete essa experiencia, extraindo uma ideia de conexao que esta contida em outros nfveis que nao sao o fato explfcito,

27 procurando enxergar a infinidade de possibilidades de conex5es e as multiplas significa.;:oes que pode essa vivencia nos sugerir.

Reconhecemos que todo esse conteudo conta com a fundamental parceria do inconsciente para ser processado, mas nao e nossa inten.;:ao, neste momenta, entrar em uma analise psicol6gica. Tratamos aqui do simples relato da nossa experiencia e queremos preservar a primeira impressao e nossas interpretaq5es antes de buscar fundamenta.;:oes em teorias.

Quando Bausch nos faz uma pergunta-estfmulo-tema, seguramente ela sabe o que quer, nada e feito aleatoriamente.

"Mesmo quando ainda niio se pode de linear a dire,iio em que a pe'>a ira desenvolver-se, as perguntas buscam, giram em tomo de uma coisa determinada. "13

Quando se iniciou o processo de cria.;:ao da pe.:;:a da qual participamos, nao nos foi dito o que se pretendia, mas era nftido que nao eram perguntas aleat6rias, havia urn foco principal, que era a Italia. Conseqlientemente, cada pergunta tinha o seu foco particular, que, pela caracteristica do processo bauschiano, nao nos era revelado.

A realiza.:;:ao de nossas respostas nao constitufa urn improviso, no sentido do referencial de improvisa<;:ao que tivemos na gradua.;:ao pela Escola de Dan.;:a da UFBA, que e o de improvisa.:;:oes livres, a partir de urn estfmulo sem compromisso de repetir o que se faz, sem tampouco saber onde se vai chegar; segue-se apenas o fluxo livre da inspira.:;:ao naquele momenta, por vezes nem lembrando do que se fez.

13 HOGHE. Raimund. Op. Cit .• p. 15.

28 Tomando como referencia a essa pnitica na UFBA, diriamos que as respostas no processo bauschiano nao constituem uma improvisa<;ao. No entanto, reconhecemos que o conceito de improvisa<;ao e muito amplo e, segundo Sandra Chacra,

"A improvisar;iio (. .. ) e um fen6meno, ou antes, um termo que encerra diferentes implicar;oes e significar;oes, de conformidade com os diversos contextos e praticas aos quais se encontra ligada. ""

No processo bauschiano, ap6s ser dado o estfmulo-tema, devemos buscar a ideia em conexao com este estfmulo, de maneira que seja construfdo urn quadro fechado, com come<;o, meio e fim, "costurado" e anotado fielmente todo o seu percurso nos mfnimos detalhes. Caso esse quadro seja escolhido para entrar na pe<;a, ele devera ser repetido fielmente, ainda que sujeito a algum corte ou transforma<;ao que Bausch possa vir a fazer.

Para nos, criadores/interpretes, nao basta ter as ideias, e necessano acwnar fatores que estao intimamente ligados a criatividade - processo X produto -, que sao: sensibilidade, fluencia, flexibilidade, originalidade, capacidade de analise e sfntese, coerencia e organiza<;ao15

Quando as ideias chegam em nossas cabe.;:as, existe uma conduta a ser seguida. Devemos ser criteriosos, observando alguns princfpios como: ser justo ao tema, nao ser 6bvio, nao banalizar, ser simples, nao atuar, ser voce mesmo, e outros mais que abordaremos no decorrer do capitulo.

14 CHACRA, Sandra. Natureza e Sentido da lmprovisaqiio Teatral. S. Paulo: Perspectiva, 1983, p. 96. 15 NOV AES, Maria Helena. Psicologia da Criatividade. Petr6polis: Vozes, 1971, p. 35.

29 Para ter lucidez nessas observaq6es, deve ser usada a 16gica, mas o que prevalece na forma finale que essa materializa"ao seja fora do comum.

Bausch quer que voce seja voce mesmo, mas nao e permitido perder a cabeqa, no sentido de nao ter consciencia do que se esta fazendo, colocando seus problemas pessoais. Se isso acontece, ela esta bastante atenta para dar urn direcionamento adequado, colocando o interprete como parte do todo. Pina Bausch sabe quando parar: no momento exato em que percebe que alguem esta realizando uma cena que tern a ver com uma extrapolaqao de algum problema psicol6gico proprio. Ela diz:

"0 importante niio e que as pessoas vomitem seus sentimentos"."

Isto nos leva a considerar que ela sabe muito bern separar o !ado pessoal do !ado criativo. Nunca e dito por ela o que devemos fazer, mas e dito que nao devemos interpretar no senti do de representar, ela quer uma coisa real.

"Se se representa demasiado, a coisa fica muito direta; fica uma caricatura. "17

Isto e o que acontece com a maioria das pessoas: querem mostrar o que querem dizer.

Se Bausch pede urn tema de flores, com certeza nao vai usa-lo na peqa em urn momento que se relacione de verdade com flores, por isso suas pe-;:as sao interessantes: ela sempre coloca em seus quadros o inesperado.

16 Apud. HOGHE, Raimund. Op. Cit .. p.39. 17 Comunica~ao de Pina Bausch para os executantes durante o processo

30 Ela resume a questao da interpreta<;ao de forma muito objetiva:

"Niio represente, porque ningwim acreditarti no que voce estti fazendo "18

2. AS PERGUNTAS E RESPOSTAS

0 que sao as perguntas e respostas?

Sao os estimulos-temas ou o texto, se assim podemos dizer, a partir do qual elaboramos nossas ideias, expressando-as em a<;i5es fisicas extemas.

Podemos dizer que as perguntas tambem sao formuladas no momenta do processo de refletir mentalmente sobre este tema.

No metodo de Stanislavski 19 as perguntas e respostas sao usadas como recurso tecnico para que o ator obtenha o que o escritor poe em seu texto e o que insinua. Entendemos que existem semelhan<;as entre o processo bauschiano e este procedimento porque, quando refletimos na busca da concretiza<;ao de nossas a<;i5es, recorremos mentalmente a perguntas. Estas, porem, nao sao utilizadas com a mesma finalidade.

A finalidade das perguntas que fazemos mentalmente sobre o estimulo-pergunta no processo bauschiano e para chegar a a.;:oes externas que nao sao representa<;ao de personagens, mas sim a expressao das nossas pr6prias hist6rias de vida. Por outro !ado,

18 Observac;ao de Pina Bausch para os dan<;arinos. 19 ST ANISLA VSKL Constantin. A criaqiio de urn papel. Tract. Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro: Civiliza:;ao Brasileira, !999. p. 192.

31 no metoda de Stanislavski este recurso e utilizado como a<,;6es internas que irao dar vida a urn papel preestabelecido em urn texto.

A seguir descreveremos alguns momentos dos nossos ensaios que poderao dar uma ideia da pratica do processo de pergunta e resposta.

Pe~a: The plaint of the emperess. 4 de outubro de 1987.

Pergunta -estfmulo: "Voce da seguran~a e proteqao."

As respostas dos participantes sao a~oes simples: - Tirar aneis dos dedos e colocar dentro da boca. - Guardar o dinheiro dentro do sapato. - Urn cinto de castidade e mostrado.

Essas cenas foram realizadas simplesmente como estao escritas: o executante se dirige ao centro do espa~o, tira os aneis normalmente dos dedos, coloca-os dentro da boca e vai embora, sem nenhuma interpreta<;ao, nao interessa o motivo da prote<;ao.

Apesar de sempre estarmos atentos ii conduta a ser impressa em nossas a<;i5es, acontece em algum momento alguem se desviar dessa conduta. Isto acontece ate mesmo com executantes antigos no processo.

Certa vez, em uma determinada pergunta, urn antigo executante construiu uma cena na qual safa como se tivesse roubado a bolsa de alguem. Bausch disse: "Isto e uma coisa banal. " 17 de outubro de 1987. Pergunta-estfmulo: "Urn gesto tfpico de cada urn."

32 Alguem mostrou urn determinado gesto e ela observou: "Eu ja vi este gesto comumente em outras pessoas. "

29 de outubro de 1987. Pergunta-estfmulo: "Medo de ir para casa." Bausch nao quer que se conte uma hist6ria, tambem nao necessita o porque explfcito.

Pe.:;:a: Palermo Palermo 5 de maio de 1989. Pergunta-estfmulo:"Uma forte rea.:;:ao, ou uma rea.:;:ao a alguma coisa." Jogamos no chao urn guarda-chuva que nao queria se abrir. Ela nos disse: "lsto e muito normal." Pergunta-estfmulo: " Esperan.:;:a" Esta muito proximo de n6s, brasileiros, o drama das maes da Pra.:;:a de Maio, em Buenos Aires, que se reunem com seus len.:;:os brancos amarrados na cabe.:;:a, na esperan.:;:a de encontrar seus filhos desaparecidos na epoca da ditadura. Executamos este quadro apenas amarrando urn len.:;:o branco na cabe.:;:a. Bausch nos pediu explica.:;:ao. As vezes, quando algum quadro a intriga, ela pede uma explica.:;:ao e depois pode emitir sutilmente algum sinal para nos orientar. Neste caso, ela nao disse nada, e esta atitude nos levou a uma reflexao sobre o que tfnhamos feito.

Nada do que fazfamos passava-lhe despercebido. Contavarnos sempre com o seu retorno: palavras, frases, urn olhar ou urn simples gesto, que diz muito, transmitindo­ nos a conduta a ser impressa em nossas a.:;:5es.

33 Vfamos Bausch como uma pessoa muito serena, nunca levantava a voz, porem tinha a for-;;a de urn totem. A sua presen~a bastava para nos transmitir sintonia e alerta a uma conduta nao usual no nosso trabalho.

Ela nos deixa claro que devemos procurar ir mais Ionge. Nao devemos fazer coisas tao simb6licas, nao devemos fazer uma simples associa~ao, mas buscar uma conexao remota, individualizada, com o olhar interior voltado para os reconditos do nosso ser, na busca de uma forma nao usual que nos !eve a urn desligamento da obriga~ao da representa~;ao mimetica, conduzindo-nos a urn pensar e agir transcendentes. E neste ponto a intui-;;ao e muito importante.

Y!as, se nao tivermos lucidez no nosso senso crftico, nao conseguiremos enxergar se nossa conduta esta adequada ou nao, se e uma simples associa~ao, se estamos mostrando o que queremos dizer, e outras atitudes importantes ja citadas anteriormente, para as quais devemos estar atentos no momenta da cria-;;ao.

Essa conduta a ser seguida, no entanto, nao sao regras fechadas a ponto de ter o certo ou errado. Os comentanos sao feitos de forma muito natural, nao em tom de repreensao.

Na epoca em que Ia esUivamos, sabfamos de uma colega que realizava coisas que nao estavam dentro dos princfpios bauschianos, por isso se tornava diffcil colocar suas respostas dentro das pe-;;as.

No momenta da montagem, Bausch pede que se mostre algum quadro que foi feito anteriormente e que ela selecionou. A partir da sele-;;ao, ela podeni deixar este

quadro na fntegra, fazer modifica~oes ou recortar alguma parte. Portanto, ela pode fazer

a transforma~ao de algo que nao esteja tao adequado, mas que desperte algum interesse para o seu trabalho.

34 Dessa forma. ela nao anula de maneira drastica uma ac;ao que nao sep totalmente de acordo com os seus princfpios.

18 de maio de 1989. Pergunta-estfmulo: "Urn casal vive junto, mas cada dia urn se sente mal ou se mostra s6; urn em relac;ao ao outro e ao mundo." "Niio quero nada dramatico, nada humilhante ". Des sa forma, sempre com pequenas observac;oes, mas muito claras e objetivas, Pina Bausch direciona o enfoque dos temas.

21 de maio de 1989. Pergunta-estfmulo: "Utopia" "E no sentido realizavel", ela comenta, "seria born que nao houvesse dinheiro e pudessemos trocar tudo, em vez de se comprar."

Normalmente nao era tecida nenhuma discussao entre n6s, participantes, a partir da explicac;ao ou comento:irio.

Devemos elaborar a nossa ideia em conexao com a pergunta a partir de nosso ponto de vista e capacidade criativa.

30 de maio de 1989. Pergunta-estfmulo: "Penelope: Uma espera sem fim". Foi observado que nao fizessemos ac;oes em urn ritmo crescente, porque nao daria a ideia de espera sem fim, que mantivessemos urn ritmo igual todo o tempo.

35 Nos, das Artes Cenicas, sabemos da importancia do tempo-ritmo em nossas a~;oes como componente fundamental dos significados da comunica~;ao da nossa expressao e que, no teatro tradicional, ele e trabalhado atraves de tecnicas especfficas.

No caso dessa experiencia, o ritmo devia nascer da necessidade intima da a<;:ao. Procuramos agir de uma maneira real. 0 ritmo nao e impasto, nem treinado exteriormente para combinar com nossas a<;6es. Apesar da observa<;ao feita por Bausch, o nosso foco nao deveria estar no ritmo de uma forma exterior, mas numa a<;ao de natureza continua, que, em si, contivesse este tempo continuo. Dessa forma, construimos uma cena em que faziamos balan<;:ar uma cadeira de balan<;o.

31 de maio de 1989. Pergunta-estimulo: "Destruir a si proprio". Urn determinado colega encheu a boca de algodao, tapou as narinas, pegou urn punhal e fez urn gesto como se fosse se apunhalar. Imediatamente Bausch pediu para que ele parasse, dizendo, inicialmente, que se ele aspirasse aquele algodao poderia morrer de verdade. Continuando, disse:

"Ntio devemos imitar a realidade, pais ela e mais forte que qualquer imitUI;tio. 0 melhor e buscar outros recursos, por exemplo, atraves do humor. Se quisermos fazer como a realidade, s6 seria uma vez: eu ntio teria voce todos os dias no espetdculo. "

Essa observa<;:ao poderia parecer contradit6ria, feita por uma representante da corrente expressionista alema, mas na verdade e uma demonstra<;:ao do

36 redimensionamento que ela vern dando a todo urn legado de ideias oriundas de Laban e Jooss, fazendo uma releitura de princfpios e nao repetindo formas expressionistas.

Bausch nao quer uma imita~ao, mas uma coisa real, que nao e no sentido mimetico, mas no de ser voce proprio, com seu proprio ritmo e seus proprios gestos, sua propria cara, sem mascaras de atua<;ao, e do seu proprio ponto de vista.

Apos ouvir a observaqao feita aquele colega, direcionamos a nossa ideia da seguinte maneira: a humanidade estii sendo destrufda em parte pelo proprio lixo que o homem produz. Entao, recolhemos todo o lixo que se encontrava no recinto e que tinha sido produzido por nos mesmos - garrafas, latas de refrigerantes, copos descartiiveis, papeis, etc. -, colocamos uma bacia com iigua limpa, nela lavamos as maos, apos o que jogamos todo o lixo dentro dela.

Evidentemente acreditamos que, como em qualquer outro processo criativo, no momento de elaborarmos nossos quadros, estes deverao estar conectados com a nossa percep~ao de mundo, com a nossa consciencia como seres humanos, com a nossa vivencia, a nossa cultura, o nosso nfvel de informa~oes e tudo que toea e sensibiliza nossas vidas, fazendo-nos lembrar e redescobrir a nossa propria historia.

1 dejunhode 1989. Pergunta- estfmulo: "Como fazer urn anjo de diabo."

Preparamos dois peda<;os de arame, colocamos na cabe~a separados como dois chifres, unimos suas pontas, transformando estes dois chifres em urn cfrculo na cabe~a, como uma aureola.

Depois dessa demonstraqao, Bausch observou que seria interessante que as respostas fossem na dire~ao do que havia sido mostrado por nos e comentou ainda que

37 nao via nenhuma conexao com o diabo na cena feita por uma colega, em que uma pessoa falava alto. cantava e era alegre.

Normalmente eram trabalhadas por dia de tres a quatro questoes. Raramente duas, no caso de serem muito diffceis de elaborar, demandando maior espar;:o de tempo.

0 teatro de danr;:a de Pina Bausch nao e uma coreografia agregada a urn texto, nem sao textos ou movimentos preestabelecidos que se juntam para formar uma pe<;a.

Os gestos, falas, cantos nascem das a~oes fundamentadas em qualquer pergunta. Eventualmente existem algumas questoes direcionadas para respostas especfficas em movimentos ou falas.

De uma maneira geral, qualquer estfmulo pode suscitar uma a~ao falada, cantada ou mesmo de movimento. Casualmente, se o executante usou em uma a~ao qualquer fala, gesto ou canto para se expressar, e se essas a~oes sao interessantes para a pe<;a, elas serao incorporadas ao trabalho em consonilncia com a concep~ilo de Bausch.

Desta forma, nada existe em separado; fala, gesto e canto sao aqoes que podem nascer de qualquer estfmulo, como os exemplos a seguir:

12 de junho de 1989. Pergunta-estfmulo: "Quando voce nao pode mais pensar, o que voce pensa?". A nossa ideia veio de urn costume que temos de, antes de dorrnir, nao s6 pensar no que fizemos durante o dia, como tambem pensar nas tarefas do dia seguinte. Chega urn momenta em que o sono nao nos deixa mais pensar, entao pensamos que nao podemos mais pensar, que temos que dorrnir. Materiaiizamos a nossa resposta com a seguinte fala: "Tenho que dormir!"

38 16 de junho de 1989. Estfmulo-pergunta: "Mendigar com orgulho". Bausch nao quer que mendiguemos. Procuramos fazer uma conexao com o fato de certas pessoas nos convidarem para uma festa que dizem estar oferecendo, ao mesmo tempo ern que pedem que levemos alguma coisa de beber ou de comer para a sua festa. Atraves das palavras, assirn nos expressarnos: "Arnanha vou oferecer uma festa em minha casa! Convido a todos para que venham, mas tragam uma garrafa de vinho, champanhe ou algurna coisa de comer!"

Nao foi pedido que nos expressassemos com palavras, mas foi dessa forma que concebemos a nossa ideia e sentimos a necessidade de assim rnaterializar urn ponto de vista proprio.

Por outro lado, como ja foi dito, eventualmente podem existir quest6es direcionadas para serern respondidas com movimento, tais como:

"Descrever urn touro em movimento". "Descrever corn as maos urn retrato falado". "Movimentos de matar, com as maos e com os pes ao rnesrno tempo". "Tres gestos tfpicos seus". "Urn movirnento que nao tern fim". "Signos que indiquem forne". "Voar".

Como qualquer outra resposta, as a<;6es de movimento espedfico, fala ou canto nao devem reproduzir o lugar cornurn.

Essas perguntas sao exemplos de como urn movimento pode surgir, mas tudo pode acontecer.

39 Bausch pode recortar urn movimento que fac;:a parte de uma a'

"Niio importa o que voces faqam, niio tem a ver com danqa. Quero somente experimentar o que e·possive/"20

0 que podemos observar dessa experiencia e que nao existem formulas nem regras preestabelecidas. Nao existe teorizac;:ao da parte de Pina Bausch quando nos coloca o estimulo e direciona sutilmente o seu enfoque.

Todavia, nesta dissertac;:ao, estamos procurando teorizar sobre a experienCJa vivida. Dividida entre criadora/interprete e pesquisadora, precisamos buscar meios de descrever as observac;:oes que fizemos desta experiencia. Fomos juntando, entao, uma a uma as pec;:as que foram recolhidas de reac;:oes, palavras, gestos, frases, recomendac;:oes e comentarios feitos por Bausch no decorrer do processo. E, para podermos chegar a uma conclusao do que tinhamos observado, os dados por nos levantados foram traduzidos e classificados de acordo com o que consideramos princfpios basicos do processo bauschiano.

Ao Iongo da narra'

20 Apud, HOGHE. Raimund. Op. Cit., p.38.

40 Estabelecemos entao os seguintes principios:

A) SEJA VOCE MESMO

Nao e subir no lustre, como muitas pessoas talvez pensem fazer para serem ongm:ns.

Essa recomendaqao refere-se a uma conduta que nao estii ligada ao exibicionismo, mas sim a urn mergulho que cada urn deve fazer na sua memoria ancestral, cultural, individual, coletiva ... , que e a in vend vel forqa e alma do nosso corpo.

A interpreta<;;ao deste principia, para nos, foi bastante clara, e, durante o perfodo em que estivemos no Wuppertal Tanztheater, buscamos exercitii-lo, sentindo-nos cada vez mais proxima das nossas memorias, nas quais buscamos a realidade de nossas a;;:oes, mesmo porque trata-se de urn erro grave tratar o teatro como faz-de-conta, como situaqoes nas quais se !ida com a<;;6es e ideais falsos.

B) DEVEMOS SER ESPONTAN~OS EVITANDO A ATUA(:AO

Nao fazer uso das mascaras de atua<;;ao.

Queremos respaldar este principia com o que diz Viola Spolin:

"Atraves da espontaneidade somas ( ... ) nos mesmos. A espontaneidade cria uma explosiio que por um momenta nos

41 liberta de quadros de referencia estaticos, ( ... ) infonnar;oes, ( ... ) e tecnicas que sao na realidade descobertas dos outros." 21

Devemos agir de maneira espontanea, envolvendo-nos organicamente, e nao tecnicamente, com nossas a<;iies.

C) SER JUSTO AO TEMA. SEM SER OBVIO

Superaqao de limites, em que e necessaria uma compre.ensao das possibilidades que se ligam a rede infinita do universo das coisas, pois a estrutura da "criar;ao contemporanea, com externar;ao do elo sensivel dos seus criadores, vai operar uma fonnalizar;iio da cena do inconsciente, que e ontologicamente uma cena hipertextual, movida por redes, sincronizar;oes, deslocamentos e recombinar;oes ". 22

Em outras palavras, experimentar algo que nao seja 6bvio, uma cmsa que lembra outra coisa de forma associada, mas que nao deve ser uma simples associa<;ao e sim uma conexao remota, contudo, consciente.

Devemos desobrigar-nos da representa<;ao mimetica e buscar urn pensar e agir transcendentes, conforme ja expusemos anteriormente.

21 SPOLIN. Viola. Op. Cit., p. 4. 22 Apud, AGRA, Lucio & COHEN, Renato. Criac;iio em Hipenexto: Vanguardas e Territ6rios Mitol6gicos. C6pia expressa. C. A. FIL. -PUC/SP, p. 8. (Fotocopiada)

42 D) EVITAR INTELECTUALIZAR AS IDEIAS

Deixar a mente vazia, a espera das ideias. Esta atitude e uma soluqao por n6s encontrada desde quando nao era feita nenhuma preleqao sobre o que seria o como nao intelectualizar.

Mas nao vamos achar que nao devemos pensar. Devemos pensar sim, mas nao em urn plano intelectual constrito, que entendemos como obrigatoriamente pensar de forma intelectual estreita.

E necessano dar vazao ao caminho intuitivo.

E) SER SIMPLES

Uma das coisas mais diffceis de realizar, que esta conectada com a capacidade de sfntese que devemos ter em rela<;ao a forma de expressar as nossas a-;6es. Nao e importante somente termos a ideia, e importante, sobretudo, que saibamos traduzir a essencia desta ideia simplesmente em uma aqao interessante. Nao tern receita, esta intimamente ligada a capacidade criativa de cada urn.

F) EVIT AR BANALIZAR

Se, quando estivermos trabalhando, ficarmos atentos ao princfpio de nao ser 6bvio, certamente nao iremos realizar a-;6es que traduzam o lugar comum.

43 G) EVITAR Ql.JERER MOSTRAR 0 Ql.JE QUER DIZER

Quantas vezes, no decorrer da nossa trajet6ria, ouvimos de algum colega a frase: "sera que as pessoas vao entender o que estamos querendo dizer?", numa necessidade de agradar ao publico ou esperando que ele "entenda" o espetaculo: a aprovac;:ao/desaprovac;:ao reguladora dos nossos esforc;:os.

Esses pensamentos nao devem fazer parte dos momentos de cria<;:ao, pais sao eles, ao nosso ver, que limitam a nossa criatividade, nao dando independencia a nossa expressividade.

H) EVIT AR SER ABSTRA TO

E materializarrnos nossas ac;:oes de maneira real, nao fazer de conta que estamos escovando os dentes sem termos a escova de dentes na mao; se estamos escovando os dentes, devemos ter a escova na mao, e nao simplesmente imitar o gesto de escovar .

Pode ser que a nossa interpretac;:ao do que e ser abstrato nao seja a mesma de outras pessoas, mas foi o que conclufmos a partir do contexto bauschiano.

0 principia de nao ser abstrato refere-se as ac;:oes concretas, representadas em cena. Isso nao significa que a abstrac;:ao nao exista. Ela existe nas analogias que dao significado ao processo todo.

44 I) EVIT AR A CARICA TURA

Literalmente, nao caricaturar significa nao representar por meio da caricatura.

Embora o artista extraia, para as suas cria<;;6es, as situa<;;6es, sentimentos e a<;;6es da vida real, nao as deve tratar em sua mimica ou caricatura; essas cria<;;6es devem configurar-se de maneira significativa a partir de sua propria visao e imagina<;;ao.

A interpreta<;;ao que fazemos desses princfpios nao deve ser novidade para as pessoas que lidam como processo criativo nas artes cenicas. Entretanto, eles devem ser levados em considera<;;ao como quest6es relativas a urn processo especffico. Chegamos a essas considera<;;6es a partir do que executamos sob a dire<;;ao de Bausch, que nao da explicac;6es de como atingi-los. E uma particularidade sua esta maneira de transmitir os conteudos e sua condU<;:ao junto ao elenco.

Dirfamos que estes princfpios ficavam subentendidos no momenta das pequenas observa<;;6es, que nao eram explicac;6es explicitas, mas que nos levavam a intuir claramente, na sutileza da conduta de Bausch, o seu sentido no momenta da concepc;ao das nossas ac;6es sem que fosse necessaria qualquer exercicio especffico para ISSO.

Quando chegamos ao Wuppertal, ja tfnhamos experiencia no universo da criac;ao coreogriifica. Entretanto, pudemos compreender com esta experiencia o quanta a busca puramente intuitiva dos nossos resultados coreogriificos era desgastante. 0 conhecimento adquirido nos fez ver que a intuic;ao continua sendo o fator mais importante no exercfcio da criatividade, contudo, esta poderii ser favorecida com o respeito a estes principios que ajudam o desenvolvimento do senso crftico em nossas cnac;6es.

45 Essa vivencia foi para nos urn verdadeiro exercfcio de criatividade. Percebemos uma dimensao incalculiivel das possibilidades deste processo. Hoje podemos dizer que ele vai alem da obra, e que a sua aplicac;ao de forma coerente podeni vir a favorecer nao so resultados artfsticos como exercitar o desenvolvimento da capacidade criativa de qualquer pessoa.

Fazendo uma breve associac;ao com alguns aspectos dos estudos dos processes criativos, vemos que quando Bausch age de maneira sutil, induzindo-nos a sermos nos mesmos, nao permitindo nenhuma atuac;ao, ela esta nos estimulando a uma produc;ao criati va que deve ser caracterizada pel a originalidade, urn a das propriedades do processo criati vo.

Ser justo: uma ideia e vista como criativa nao apenas por ser nova, mas tambem porque consegue algo adequado (jus to) a uma dada situac;ao.

Evitar o obvio: vemos que esta na capacidade de produzir ideias inusitadas, procurando ver alem da situac;ao imediata.

Fazemos essas associac;oes com base em nossa compreensao de uma vivencia durante a qual tivemos oportunidade de exercitar a criatividade, permitindo-nos nao intelectualizar, deixando a mente vazia, aberta para a criatividade, numa forma saudavel e alerta de intuic;ao.

Vimos que nao basta ter ideias, e necessaria saber organiza-las e materializa­ las, exercitando a nossa capacidade de sfntese, elaborando quadros com simplicidade, mostrando apenas o essencial de uma ideia, sem nenhum exagero. No percurso que trac;amos em busca de veicular uma organizac;ao desta experiencia, em varios momentos sentimos insatisfac;ao por parte de pessoas que nos pedem para relatar o processo. Nao tendo sido urn aprendizado linear, certamente a nossa verbalizac;ao nao encontra na linearidade uma traduc;ao correspondente. A compreensao para a execw;:ao das nossas

46 aq6es nao obedece a codigos preestabelecidos com os quais sempre se busca o entendimento das coisas pela maioria de nos.

0 processo deve ser vivenciado para ser compreendido.

Quando conversamos com Pina Bausch sobre este trabalho, manifestamos ate a vohtade de aprofundar com ela o seu conteudo. Ela nos disse que sabemos que ela fala muito pouco. Isto nao e urn esnobismo da sua parte. mas uma verdade constatada durante o perfodo em que pudemos conviver no Wuppertal. E como se ela nos dissesse: o processo eo que foi vivenciado. nao existe nada a mais que isso, nao tern nenhumjogo escondido, nao existe receita.

No mms, o que vemos nas suas belfssimas obras e a sua genialidade como criadora, que, inclusive, vai mais Ionge que sua propria obra, proporcionando-nos o encontro com nossos proprios caminhos.

Recentemente esteve no Goethe Institut em Sao Paulo uma integrante da companhia, Rute Amarante, falando sobre sua vivencia no Wuppertal. Procuramos investigar a opiniao das pessoas que a tinham assistido sobre o seu depoimento, e elas disseram: "foi bam, mas ficou urn pouco no ar", o que vern refon;;ar a nossa afirma<;iio de que nao existem formulas nesse processo. Ele esta fora de uma compreensao linear. Entretanto, apesar dessa caracterfstica, nao esta anulada a possibilidade de podermos verbaliza-lo, por exemplo, da maneira com que estamos procedendo, ou de outras. Vemos o processo como no zen, e como na propria arte: e necessaria uma inicia<;iio a experiencia pnitica.

Os procedimentos que estamos verbalizando podem parecer incompletos, contraditorios, mas dirfamos que isso e fruto da sua incontestavel abertura: tudo e possivel, dependendo das circunstancias.

47 Estarnos fazendo urn esfor~o para toma-los cornpreensfveis, levantando dados que possarn servir de instrurnentos para urna interpreta~ao que esteja de acordo corn a fluidez do pensarnento criador desinibido e subjetivo que nos e proporcionado pela conduta bauschiana.

Digarnos urn nao ao copiar e a repeti<;:ao de tecnicas!

0 fato de nao existirern tecnicas de preparayao de ator e de constru-;:ao de personagern intriga as pessoas ao verern nas suas peyas quadros tao vivos. 0 unico treinarnento que existe sao as aulas de ballet chissico e dan-;:a rnoderna, que sao urna preparayao ffsica de concentra<;:ao, equilfbrio, desenvoltura corporal, dornfnio de espayo e outras habilibades tfpicas que urn treinarnento tecnico desta natureza nos proporciona.

Por outro !ado, cada integrante e livre para buscar outras habilidades que possarn vir a acrescentar ao seu vocabulario, como o taichi, o canto, etc., tudo isso por sua espontanea vontade.

Bausch e rnuito atenta ao que acontece a sua volta. Constanternente havia quest6es trazidas por ela de fatos observados ern algurn Iugar. Ela recornendou assistirrnos, quando Iii estiivarnos. ao filrne "Sociedade dos Poetas Mortos". Pelo que percebernos, o respeito as nossas vontades tern a ver corn o seu processo de busca do nao-usual.

0 nao-usual nos perrnite concluir que esse processo ira configurar urna rnoda!idade de expressao importante da cena conternporanea, de estrutura nao-linear, na qual, entre procedirnentos variados, cada ayao e realizada na dire-;:ao de conex6es inusitadas, tornando a forma de urna cadeia infinita de possibilidades que, ern conseqliencia, e refletida no rnornento ern que ela procede a seus recortes, redirnensionarnentos e edi-;:ao desse material.

48 Sucessivamente, as possibilidades sao sem limites, podendo proliferar em todas as dire<;oes, como nas estruturas hipertextuais. 0 come<;o podera ser o fim e o fim podera ser o come<;o, ou mesmo o meio ou qualquer outra possibilidade, de acordo com o seu genio criador.

Outro ponto importante na sua obra, que inquieta as pessoas do meio das artes cenicas, e a questao da participa<;ao ativa dos integrantes da Companhia em suas cria<;oes. Muitos pensam que se trata de cria<;ao coletiva.

Mais uma vez tomamos como referencial o aprendizado que tivemos na gradua<;ao na Escola de Dan<;a da Uni versidade Federal da Bahia. Realizavamos muitas experiencias de cria<;ao coletiva. Tratava-se de urn grupo de pessoas que, a partir de urn determinado tema ou nao, construfam cada uma suas a<;oes, que, de acordo com todo o grupo, eram agregadas umas as outras. Para isto, todos opinavam, e muitas vezes havia discussoes, pelo fato de algum colega querer impor alguma a~ao sua quando nem todos estavam de acordo. Assim nasciam nossos trabalhos de cria~ao coletiva na tJFBA.

No caso da Companhia do Wuppertal Tanztheater, seria injusto nao reconhecer que as pessoas que trabalham com Pina Bausch sao pe<;as importantes nas suas cria<;oes. Todavia, sem nenhum exagero, fazendo urn balan<;o das atribui<;oes de Bausch e dos integrantes da companhia, podemos ver que o estfmulo dado vern de uma pesquisa sua; a conduta e o enfoque a serem impressos nas a<;oes sao dados por ela, como tambem e deJa a sensibilidade de selecionar e recortar as a<;oes, costurando-as de formas tao inusitadas.

A sua obra nao seria o que e se nao fosse o seu genio criador absoluto, que, entre outras coisas, deixa urn aprendizado para nossas cria<;oes, como ja nos referimos.

Isto nos leva a concluir que ser bauschiano e mais que uma forma, e seguir urn processo de busca dos nossos pr6prios caminhos, se quisermos ser verdadeiros criadores.

49 3. A FASE DE COMPOSI<;:AO DAS PE<;:AS

Quando chega ao final a fase da coleta de material, que, em se tratando da pe~a Palenno, Palenno, foram cerca de cern questoes, Bausch reve as respostas selecionadas para fazer sua composi~ao.

Igualmente como a fase de perguntas e respostas, nao ha discussao com o elenco. Toda escolha das a~oes segue seu ponto de vista.

Quando os quadros escolhidos sao novamente mostrados pelos integrantes, Pina

Bausch procede aos seus recortes, redimensionamentos e transforrna~oes da forma que !he interessa.

A edi~ao ou costura, se assim podemos chamar, nao e uma simples colagem, e uma recria~ao a partir desses conteudos. Esses, em prosseguimento, desenvolvem-se reconfigurando uma cadeia infinita de possibilidades de combina~oes e recombina~oes, na busca de sentidos diversos do lugar comum.

r Dirfamos que sena como o que Guattari e Deleuze o chamaram de estrutura rizomatica: urn sistema de multiplicidade de forrnas as mais diversas, como urn verdadeiro rizoma, com extensao ramificada em todos os sentidos.

Dai para a frente, entra com for~a o seu genio criador com a sua poetica, que, depois de sua cornunica<;:iio ao mundo, nao se encerra; continua em processo, evoluindo, e as "cenas siio intercambiadas, algumas hist6rias siio tiradas, outras acrescentadas." 24

23 Apud. COHEN. Renata. As Estruturas Antropol6gicas do Ciberespaqo: Campinas. Universidade Estadual de Campinas. 2000. (Fotocopiada) 24 HOGHE, Raimund. Op Cit., p. 55.

50 No cspelho. integrantcs do elenco do Wuppertal Tanzthcater Capitulo 2

As MULHERES DOS DEUSES.

0 QUE PINA BAUSCH TEM AVER COM ISSO? De volta ao Brasil, em 1989, os colegas nos solicitavam que dessemos continuidade aos nossos trabalhos coreogr:ificos.

Preferimos nos recolher a uma profunda reflexao, limitando-nos, naquele momenta, a fazer algumas palestras com filmes, divulgando o trabalho do Wuppertal Tanztheater.

Tambem demos aulas de dan<;a modema, focalizando as tecnicas de prepara<;ao corporal utilizadas pela Companhia.

Essas tecnicas sao urn preparo para uma desenvoltura corporal. Vern da linha direta de Laban e Jooss e certamente sao uma memoria preciosa de urn estilo de movimenta<;ao. Mas devemos esclarecer que nao estao vinculadas diretamente ao processo de pergunta e resposta. Assim, o processo prescindiria de treinamento para obter seus resultados. Mas devemos reconhecer que e necessaria urn preparo tecnico para que urn executante de artes cenicas desenvolva a aten<;ao, o sentido de espa<;o, o alinhamento corporal, a fluencia de movimentos e outras coisas mais que devem aparecer no todo.

Alem disso, esta prepara<;ao tecnica da Companhia pode influir diretamente, caso Pina Bausch fa<;a uma pe<;a na qual use somente a<;6es de movimento, sem precisar das perguntas e respostas para chegar a estas coreografias, como e o caso, por exemplo, da Sagrar;ao da Primavera.

Todavia, no primeiro momenta de nosso retorno ao Brasil, as reflex6es buscavam enxergar o que tfnhamos realmente apreendido daquela experiencia percebida em nos em forma de sentimento; uma sensa<;ao de que alga tinha mudado em nos, na nossa maneira de enxergar. Os canais da nossa sensibilidade estavam dilatados. Parecia que tinhamos renascido num estagio superior de consciencia.

53 Ao mesmo tempo em que percebfamos essa sensa<;ao, nao sabfamos aonde poderfamos chegar, nem o que fazer deJa. Sentfamos muito forte a dimensao universal daquela experiencia que, acima de tudo, mexeu com a nossa essencia, e foram 1 momentos tais como os expressou Van Gogh , citado por Kneller:

"0 homem ( ... ) cujo corar;iio e devorado por uma angustia de trabalho, mas que nada faz porque lhe e impassive! fazer alga, porque ele se acha como aprisionado em alguma coisa, porque ele niio obteve exatamente aquila de que precisa para ser criador ( ... ) tal homem niio sabe o que poderia fazer, mas sente de maneira instintiva: niio obstante sirvo para alguma coisa, tenho consciencia de alguma raziio para existir! ( ... ) Como, entiio, posso ser util: como posso servir? Alga se acha vivo em mim: que podera serf"

Aos poucos fomos arriscando fazer alguns laborat6rios com foco no processo. Ao decidirmos dar inicio a estes laborat6rios, urn aspecto importante ja estava sendo vislumbrado: as infinitas possibilidades de aplica<;ao do processo vivenciado no Wuppertal.

Por isso nao hesitamos em realizar uma experiencia, em 1989, quando a dire<;ao da Escola Getulio Vargas, do Institute Central de Educa~ao Isaias Alves, em Salvador,

Bahia, institui~ao a qual estavamos vinculada como professora, propos-nos dar aulas de teatro de dan<;a para uma turma de alunos, na faixa et:iria de 8 a 10 anos que eram muito desatentos nas aulas normais.

1 Apud, KNELLER, George F. Arte e Cii!ncia da Criatividade. Trad. Jose Reis. Sao Paulo: lbrasa, 1987, p. 67.

54 Sem nenhum esquema de pesqmsa organizado, apenas de forma intuitiva, investigamos a possibilidade de aplicac;ao do processo. E 6bvio que tomamos alguns cuidados de observac;ao do vocabulfuio a ser utilizado, levando em considerac;ao urn repert6rio pertinente a faixa etfuia das crianqas envolvidas e a sua hist6ria de crianc;as muito agitadas.

Os estfmulos-temas ou perguntas foram lan.;:ados da mesma forma que os havfamos vivenciado, sem muitos comentfuios:

- Uma coisa que voce viu na rua. - Uma coisa que voce gosta de fazer. - Escrever seu nome como seu corpo em movimento. - Gestos de carinho. - Uma coisa que voce nao gosta de fazer. - Descrever uma profissao em movimento etc. A partir daf, as aulas se transformaram em uma verdadeira festa!

A finalidade maior foi estabelecida: que estas crianqas inquietas extravasassem urn pouco das suas inquietudes para que, talvez, voltassem as aulas normais menos agitadas.

Dentro do possfvel, pudemos aplicar alguns procedimentos basicos de orientac;ao para a realizac,:ao das aqoes, como por exemplo, que as ac;oes realizadas tivessem comec,:o e final.

Este trabalho nos foi proposto para urn perfodo de dois meses, ap6s o que encerramos as atividades.

Por nao sentirmos muita seguran.;:a a respeito da direc;ao que querfamos dar a nossa pesquisa, deixamos de documentar dados importantes deste trabalho. Estes dados

55 seriam, par exemplo, como daf para frente ficou o comportamento das crianqas em sala de aula, e outros mais que seriam necessfuios para poder aplicar o processo de forma adequada a educa<;ao.

Todavia, a ideia inicial de investigar sua aplica<;ao em crian<;as numa faixa etfuia de 8 a 10 anos, com uma hist6ria de comportamento muito inquieto, achamos positiva. Estamos falando apenas do momenta em que trabalhavamos juntos, pais, como dissemos, nao sabemos exatamente das conseqtiencias em sala de aula.

Apesar de nao possuirmos dados esquematizados desta experiencia, pudemos observar que a comunicaqao destas crian<;as foi feita atraves de uma expressao corporal bastante voltada para a mfmica, o que e muito normal. Podemos, entretanto, vislumbrar que, dentro de uma conduta pertinente ao processo, e de acordo com os nfveis de compreensao da faixa etfuia destas crian<;as, havia indicativos de que seria possfvel tocar sua criatividade em nfveis mais originais, que nao fosse somente o mimetico, caso prossegufssemos nesta atuac;:ao.

Em 1990, iniciamos urn laborat6rio coreografico com o Mantra Companhia de Dan<;a da Bahia, laborat6rio este voltado para urn resultado artfstico.

Nesse momenta, os princfpios que tfnhamos elegido, ja mais definidos na nossa compreensao, mam dar suporte ao caminho de aplicac;:ao do processo e deveriam funcionar como urn alerta para que as ferramentas da mente de cada urn pudessem produzir seu insight.

As quest6es-temas lanqadas ao grupo giraram em tomo dos textos de Eduardo Galeano no livro Os Nascimentos 2

2 GALEANO, Eduardo. Os Nascimentos. Tract. Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM. 1996.

56 Desta experiencia obtivemos urn dado muito importante: os participantes veicularam a~6es com uma memoria muito propria da nossa cultura. Isto, alias, nao era novidade para nos, pois, quando estavamos no Wuppertal Tanztheater, em a~6es que executamos para Pina Bausch, dentro da dimensao da universalidade, sentfamo-nos cada vez mais perto da nossa memoria ancestral e cultural.

Devemos esclarecer que o aporte desta cultura e sua ancestralidade nao e o de nos dirigir de maneira proposital para este fim. A verdade e que ele acontece como uma conseqliencia natural do processo que nos envolve como ser total, portanto, esta memoria esta implfcita nas nossas a~6es.

Nesse mesmo anode 1990, investimos em urn outro laboratorio, desta vez com o grupo de dan~a Africa Poesia.

Na experiencia com esse grupo, mais uma vez constatamos uma fluencia de

a~6es com caracterfsticas bastante originais da nossa cultura e verificamos que o

processo bauschiano nos fomece instrumentos que favorecem a reafirma~ao da identidade cultural das pessoas com uma proje<;ao universal. Ele nos orienta a nao copiarmos os padr6es extemos, levando-nos a buscar em nosso interior a nossa expressao.

Desta forma, qualquer pessoa que saiba intuir de modo coerente o processo podeni encontrar a si propria, enxergando as infinitas possibilidades que ele pode suscitar em sua criatividade.

0 exercfcio bauschiano !ida com algo essencial para o artista, que e o ser verdadeiramente, o encontro consigo mesmo, na fronteira do real e do imagin:irio, do controle e do delfrio, do eu e do outro.

57 Destas duas experiencias destacamos urn depoimento muito substancioso de 3 Dimi Ferreira , dan<;arina que participava tanto do grupo Mantra quanto do grupo Africa Poesia:

"Niio se pode dizer que ( ... ) obedeciam a uma tecnica estrita, porem, nos bailarinos eramos orientados para trabalhar ( ... ) evitando a interpretw;:iio, os cliches, a caricatura da realidade, o fazer para mostrar a/go, ou a intenr;iio de construir coreografias de danr;a. ( ... )Era, entiio, uma ar;iio consciente que buscava a transcendencia com relar;iio ao 6bvio. "

Neste depoimento, Dimi refor<;a a nossa condi<;ao de repassadores, ao falar de urn entendimento que experimentamos exatamente assim, quando participamos do processo no Wuppertal Tanztheater.

Estavamos agora proporcionando a outras pessoas a vivencia de urn exercfcio criativo, coerente com sua origem. A conduta, segundo os princfpios por nos levantados, estava de acordo com a fonte principal de maneira a contribuir para o entendimento de outras pessoas.

E necessaria colocar, neste momenta, que existe urn ponto importante que estii ligado ao entendimento. Nao se compreende este processo se nao se aciona o intuitivo, este que Viola Spolin considera: "0 mais vital para a situar;iio de aprendizagem." 4

3 0 depoimento de Dirni Ferreira nos foi dado por escrito. 4 SPOLIN, Viola. lmprovisaqiio para o Teatro. Sao Paulo: Perspectiva, 2000. p. 3.

58 Sem acionar a intui~ao, seguramente nao se entendeni o processo, porque basicamente nao existem explica<;:6es, ou melhor, elas nao estao explfcitas no como fazer.

Qualquer explica<;:ao nao deve ir muito Ionge, sob o risco de perder o prop6sito de busca da espontaneidade de cada urn. As explica<;:6es que podemos dizer que existem neste processo nao devem ir alem do que pode ser registrado nos exemplos dados no capitulo 1 deste trabalho, quando mostramos exemplos de orienta<;:6es e observa<;:6es feitas durante o processo no Wuppertal.

A dan<;:arina Dimi Ferreira foi uma das participantes que teve a comprensao ideal do processo, executando na pnitica suas a~6es com uma qualidade surpreendente, dentro de urn apurado desempenho da conduta intuitiva .

Mais adiante ela diz:

"A consciencia, o planejamento da ar;iio passava pelo racional, niio da mesma Janna que se trabalha quando se faz um exercicio tecnico de controle e atenr;iio, mas um alena, de modo a colocar o bailarino no limite do consciente e do inconsciente (... ) 0 caminho tendia a ser mais intuitivo que racional, apesar da consciencia da ar;iio ( ... )."

0 nfvel de entendimento geralmente demonstrado pelas pessoas participantes do processo e o material pratico apresentado nos faziam cada vez mais sentir a reaproxima<;:ao com a nossa hist6ria no universo da cria9il.o coreografica, em 1977, com o grupo Dan9a Jornal. Desde aquela epoca ja tfnhamos como linha mestra a busca da expressao do povo brasileiro e da America Latina. Mas agora sentfamos uma sensfvel

59 diferem;:a na nossa conduta, urn sensa critico muito mais desenvolvido, uma capacidade maior de lidar com as ferramentas da nossa criatividade e tambem da criatividade das pessoas por n6s dirigidas.

Ap6s a realiza<;:ao das experienc1as citadas acima, novamente fizemos uma parada para reflexao e fomos delineando a proxima etapa da nossa pesquisa.

Nessa nova etapa, encontramos urn ponto de apoio no seguinte fato: inquietava­ nos muito o tratamento dado a cultura afro-brasileira, manancial rico de possibilidades de abordagens, mas que, muitas vezes, vfamos ser levado para a cena apenas atraves da imita<;:ao dos seus rituais sagrados e dan<;:as dos orixas.

A cren<;:a de que o sagrado e o sagrado, tautologia que nos soa muito forte, dizendo-nos que o sagrado e superior e intocavel, somamos o que nos disse Bausch, em Palermo, 31 de maio 1989: "niio devemos imitar a realidade ela e muito mais forte que qualquer imitar;iio". E, com esta ideia, propusemo-nos o desafio de fazer urn trabalho de teatro de dan~a, aplicando o processo aprendido a este referencial afro-brasileiro.

0 foco principal da nossa investiga.;:ao naquele momento era o quanto a universalidade deste processo poderia nos levar ao encontro da essencia da nossa cultura, ao mesmo tempo em que esta seria projetada de forma universal.

Em 1997, em conjunto com o Projeto Alforria - 0 que Rui Barbosa niio queimou ... , apresentamos a proposta de urn espetaculo que teve o apoio direto da Reitoria da Universidade Federal da Bahia, na pessoa do entao Rei tor Felipe Serpa, que declarou "entender a releviincia do espetiiculo" por ser ele "de natureza impar" e "atender o objetivo de visibilizar a vertente negra da Cultura Brasileira "5

5 0 depoimento do Rei tor Felipe Serpa consta em uma carta de recomendayao.

60 Esta nova etapa do nosso trabalho visava urn resultado cenico: o espetaculo As Mulheres dos Deuses: forr;a, transe e paixao. 0 que Rui Barbosa nao queimou.

Este espetaculo, mediante pesquisas hist6ricas e culturais, levanta alguns fatos, como a presen~a da mulher negra na hist6ria das lutas e da resistencia a escravidao, dando-lhes urn tratamento distinto dos usuais, com uma proje~ao contemporii.nea, atra ves do teatro de dan~a.

Na etapa experimental, o projeto teve como objetivo proporcionar aos participantes a montagem conjunta de urn trabalho coreogriifico com a participa~ao ativa das dan~arinas. 0 processo de pergunta e resposta foi deflagrado com a colocac;:ao de quest6es-temas, que partiram de uma pesquisa hist6rica em torno da temiitica da mulher negra.

Para esta pesquisa hist6rica e para o roteiro, contamos com a valiosa participa~ao do jornalista e tambem diretor Carlos Ramon Sanchez. (Anexo I)

0 processo de pergunta e resposta teve como finalidade despertar na memoria das dan~arinas - elas tambem mulheres e baianas, respostas ancestrais, qui~a inconscientes. traduzidas em gestos, movimentos e quadros relacionados com a tematica da liberdade, da resistencia a escravidao e da constru~ao de identidades. Estas respostas encontravam-se guardadas na memoria de cada urn dos participantes, envolvidos pela magia e pelo clima que marca e relembra a presen~a de antepassados em cada canto da Bahia.

As perguntas funcionaram como estfmulo para a expressao de respostas adequadas, mas nao 6bvias, da tematica afro-brasileira, de modo que, nessa fase explorat6ria, as dan~arinas tiveram oportunidade de conhecer e experimentar esse processo de trabalho, expandindo o seu potencial criador.

61 Nesta experiencia, tratamos de examinar e desenvolver algumas interpreta<;6es alusivas a participa<;ao da mulher negra na hist6ria de resistencia e de !uta silenciosa na conquista da liberdade atraves da narrativa simb6lica do gesto, do movimento e seus mecanismos rituais, como na cena que descrevemos abaixo:

0 pr6logo do simb6lico Pergunta estfmulo: "Cada movimento e ao mesmo tempo um gesto" (Suzanne Langer).

Oito dan<;arinas vestidas de branco em urn vai vern carregando objetos variados. Esses objetos vao sendo colocados por estas mulheres em uma escada que esta disposta em urn determinado local do cenario, alusao a urn altar, nao uma imita<;ao, sugere urn ritual preparativo de uma festa.

Uma dam;:arina entra em cena correndo, fugindo de algo. Aos poucos ela vai parando, ao rnesmo tempo ern que vao caindo dos seus cabelos muitos graos de sementes.

As rnulheres negras, apesar da sua silenciosa, mas ativa participa<;ao, pouco ou muito pouco tern rnotivado os pesquisadores dessa nossa hist6ria de resistencia, !uta e fe a fazer urn registro que rnostre a medida exata de sua irnportil.ncia.

Quando iniciamos os trabalhos praticos, tfnharnos a certeza de que o aprendizado que tivernos certamente nao seria aplicado como urn metoda. Sabemos que, etirnologicamente:

"Metoda pode ser qualquer caminho pelo qual se chega a um determinado resultado, ainda que este caminho niio tenha sido fixado de antemao de modo

62 deliberado e rejletido ". 6 Ainda assim nao queremos dizer que essa experiencia se resumiu a aplicaqao de urn metodo.

Tambem nao achamos que o nosso relato nao possa ser visto como a descriqao de urn metodo; pensamos, sim, que o que experimentamos nao pode ser considerado como urn conjunto de regras inflexfveis. Deixamos ·a ressalva de que nao o vemos como metodo no sentido limitado, pois estariamos, assim, reduzindo-o apenas aos procedimentos citados e interpretados por n6s.

A forma que estamos a conduzir e uma leitura nossa, que nao seria igual a de outra pessoa que tivesse vivenciado o processo no mesmo perfodo em que n6s o vivenciamos. Por isto optamos por dizer que nao aprendemos urn metodo, mas que a nossa maneira de trabalhar foi enriquecida com as influencias assimiladas do processo bauschiano.

A maneira pela qual realizamos a busca do nosso objetivo tematico para esse trabalho veio de uma ideia nossa, pois nao sabemos se Pina Bausch procederia desta forma em busca dos seus temas, porque o que nos e dado a conhecer no seu processo sao as perguntas ja elaboradas por ela, entretanto, nao sabemos em detalhes quais sao os mecanismos da sua inspiraqao.

Realizamos uma vasta pesquisa hist6rica que foi lida e estudada. Nao se confunda com os estudos de mesa do teatro tradicional, que e a leitura de urn texto predeterminado, introdut6rio a uma determinada dramaturgia e seus respectivos personagens. 0 nosso estudo se referia a reflexao sobre uma vasta bibliografia, da qual buscamos extrair os vanos estfmulos. Selecionamos trechos significativos de acordo com a nossa concepqao. Dos trechos significativos extrafmos palavras-chaves, que se

6 GONZALEZ, Julio Plaza. Metodos de Criafiio. Dep de Artes Phisticas: UN1CAMP, Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1999, p. 6. (Fotocopiada).

63 transformaram em materia basica do nosso trabalho: os estfmulos-temas ou perguntas, como ja mencionamos.

Algumas das perguntas ficaram literalmente como se encontravam nos textos. Outras, porque se mostravam muito sugestivas, foram trabalhadas na direc;:ao das associac,;oes e analogi as.

Estamos acostumados com a pratica usual de diretores (e tambem nossa, ate urn certo ponto, ha algum tempo atras) de, ao realizar urn trabalho artfstico cenico, fazerem uma palestra sobre como sera o espetaculo, qual sera o tema e outras coisas. Existem profissionais que somente se sentem confortaveis quando sabem o que vao fazer em urn espetaculo. qual sera o tema e qual sera o seu personagem.

Nesse processo, uma das premissas basicas e a de que nao se deve dizer muito sobre o que se esta pretendendo realizar, pois: "Na arte, a descoberta e fazer. E niio teorizar"7 Em todo esse processo, nao deve existir uma forma idealizada a priori do que se estara a realizar. Qualquer resultado que venha a surgir implica numa interatividade entre as ac;:oes dos criadores/interpretes e as ac,;oes do diretor/criador.

Se o criador/interprete souber de antemao o que o diretor esta querendo realizar, certamente ira limitar a sua criatividade, voltando-se para o tema e querendo demonstra­ lo de maneira 6bvia.

Entao, procedemos sem dizer o que querfamos, nem aonde querfamos chegar.

Comec,;amos com urn elenco de cinco danc,;arinas.

7 Apud, ALBANO, Ana Angelica. Tuneu, Tarsi/a e outros Mestres ... Sao Paulo: Plexos, 1998, p. 53.

64 2 de outubro de 1996. Nossa primeira pergunta: A fon;a que vern das folhas. Nao foi preciso nenhum esclarecimento. As respostas continham elementos originais da nossa cultura. - Macerar urn punhado de folhas. -Tomar uma xfcara de cha de folhas. - Macerar urn punhado de folhas e p6r no pe. - Folhas nos olhos. - Comendo uma salada.

- Fazendo inala~ao. - Pondo uma folha na testa. - Pondo folhas na regiao temporal.

Daf em diante foi uma explosao de a~6es, ressonancia: a repercussao da nossa memoria ancestral e cultural.

No decorrer das cinqtienta perguntas contidas em nosso texto elaborado a partir da literatura pertinente, nao precisamos falar muito.

Ap6s essa fase, selecionamos todo o material - as a~6es realizadas pelas

dan~arinas - que nos interessava. Este material selecionado foi processado por n6s, diretores/criadores: efetuamos recortes, redimensiona-mento e transforma~6es destas a~6es.

Reconhecemos que este e urn momento em que realmente entra com for~a a nossa criatividade. Fundamentalmente, as nossas caracterfsticas pr6prias de narra~ao, ritmo, visao de espa~o. forma, fluencia de movimento, tendencia ideol6gica, neste momento se projetam no que esta sendo construfdo. Dirfamos que tudo isso se processa de acordo com a nossa "poetica", que, a bern da verdade, nao sabemos em detalhes como opera.

65 Temos consciencia de que a poetica nao e uma cmsa facil, nem vaga, nem aleat6ria, e uma corrida ao encontro da determinaqao e da precisao, que e a leveza. Nao sabemos como encontra-la, mas temos que ter sensibilidade para intuir o momenta certo em que ela nos toea.

E como nos coloca Marcel Duchamp: 8

"No ato criador o artista passa da intenr;iio a realizar;iio, atraves de uma cadeia de rew;;oes totalmente subjetivas. Sua /uta pela rea/izar;iio e uma serie de esforr;os, sofrimentos, satisfar;oes, recusas, decisoes que tambem niio podem e niio devem ser tota/mente conscientes, pelo menos no plano estetico".

0 roteiro foi construfdo como urn mosmco, sem comprornisso com uma narrativa crono16gica. Dirfamos que em consonancia com este nosso tempo contemporaneo, que contempla a nao-linearidade. Parafraseando Bausch: estamos em busca do que e possfvel realizar e experimentar, em urn procedimento que diverge de uma narrativa formal.

0 cenario nasceu casualmente de uma pergunta, que nao havia sido dirigida com esta inten<;ao: "Fotos dos seus antepassados". As dan<;arinas trouxeram antigas fotografias de farniliares antepassados.

8 Apud GONZALEZ, Julio Plaza. Op. Cit., p. 3.

66 Desta casualidade obti vemos urn dado importante: os cen:irios puderam nascer intimamente ligados as aq6es. 0 cen6grafo apenas redimen-sionou o conteudo de uma resposta interessante de forma a canaliza-lo para efeito de cenario.

As fotos, depois de selecionadas, receberam urn tratamento de ampliaqao na concepqao cenografica de Carlos Ramon: paineis gigantes circundavam a cena com fotos desses ancestrais. Ao mesmo tempo, estas fotografias nao desempenharn urn papel estatico no cen:irio. Em determinado momento do espetaculo, elas sao reproduzidas em cenas representadas pelas pr6prias dan<;:arinas, configurando-se uma recodificaqao da linguagem fotografica

0 processo de recodificaqao intertextual, a transferencia de urn campo do saber para outro, e urn importante recurso criativo. No processo de recodificaqao, o ponto de partida e alguma coisa que existe de forma codificada. Nesse quadro, partimos da fotografia, mas poderia ser de outra linguagem.

A verdade de tudo isso e que a aventura da criaqao pode apenas ser relatada de forma aproximada, porque s6 o artista sabe que a cada trabalho tern que enfrentar seus "dragoes, extraindo das profundezas de si mesmo e do mundo o dificil tesouro a ser 9 conquistado, o tesouro alqufmico, que e a materia prima da sua obra" , sem saber exatamente como nem aonde ira chegar.

A experiencia que tivemos junto a Pina Bausch, essa importante criadora de teatro de danqa, fez acender nossas tendencias, aprimorou o nosso senso crftico, dando uma maior fluencia ao nosso modo de operar. A fase da composiqao da nossa peqa obedeceu a urn processo alquimico.

9 ALBANO, Ana Angelica. Op. Cit., p. 147.

67 E agora lan<;:amos mais uma vez a nossa pergunta:

1. 0 QUE PINA BAUSCH TEM AVER COM ISSO?

0 nosso trabalho com toda a certeza estaria prosseguindo, a pesquisa de busca da expressao do povo brasileiro e da America Latina, iniciada em 1977 com o grupo Danqa Jornal, estaria tendo continuidade, tivessemos ou nao tido Pina Bausch no nosso carninho.

Bausch nao nos deu ideias, ela nos mostrou carninhos atraves dos quais podemos melhor utilizar as ferramentas da nos sa criati vi dade ou, ainda, deu-nos pontos de apoio que nos ajudaram a melhor expressar as nossas pr6prias ideias.

0 espetaculo As Mulheres dos Deuses demonstra a coerencia dessa trajet6ria. Longe de nacionalismos, queremos demonstrar que, ap6s a convivencia com esta grande criadora de teatro de dan~a, nao perdemos o foco, sempre voltado para o referencial cultural brasileiro, preocupando-nos com a projeqao universal deste referencial, ao processarmos as nossas crias;oes pensando na unidade do ser humano como universo.

Relembremos que, em 1977, o publico que assistia aos nossos espetaculos dizia que o que fazfamos "niio era dan~a, era teatro, que era mais teatro que dan~a propriamente".

0 que estavamos fazendo naquela epoca era o desenvolvimento da nossa tendencia expressiva, que tinha, por sua vez, a influencia de uma escola que nos apontou caminhos. Nao estavamos trabalhando aleatoriamente, havia a preocupas;ao de buscar uma forma de transrnitir as nossas ideias sem fazer uso da linguagem tradicional da dan<;a.

68 Hoje, analisando os trabalhos que fazfamos entao, conclufmos que era teatro de dan'ta, e ainda nao havfamos conhecido o trabalho do Wuppertal Tanztheater, Lembramo-nos de nossa busca de sair do usual desde o infcio, como core6grafa, em 1972, Nessa epoca, levavamos muito tempo trabalhando as nossas ideias.

Estes caminhos agora sao mais claros e mais rapidos, em virtude do desenvolvimento do nosso senso critico, da capacidade de sabermos, no momento certo, parar e enxergar o nosso produto criativo de forma critica. Devemos o desenvolvimento dessa capacidade a nossa convivencia com esta grande mestra. A nossa sintonia de ideias esta no interesse pelo ser humano, mas os nossos enfoques sao diferentes. Ressaltamos este aspecto porque sabemos que, como Stanislavski, Grotowski e outros mestres, Bausch nao quer que a imitem.

Esta explicac,:ao com referencia a identidade, nao e porque estamos sofrendo da angustia da influencia. Muito pelo contriirio, muito nos honra que o trabalho que fazemos tenha a influencia dos princfpios bauschianos. Entretanto, nessa influencia est

Repetimos: ser bauschiano e buscar nossos pr6prios caminhos.

Neste aspecto, torna-se urn prazer apresentar depoirnentos de pessoas irnportantes do ceniirio artfstico baiano sobre o nosso trabalho.

Antrifo Sanches, na epoca chefe do departamento de Tecnicas e Praticas Corporals da Escola de Dan'ta da Universidade Federal da Bahia, tambem esteve sob a dire'tao de Bausch na Folkwang School, em Essen. As suas palavras sao bastante claras no que diz com referencia a nossa maneira propria de operar:

69 "Quando percebi que o espetdculo tinha acabado, ou melhor, que tinha acordado daquele sonho intenso, a raziio me reportou a minha expectativa e a conclusiio foi reconfortante: Licia extraiu o melhor de Pina Bausch, criando uma linguagem propria de dant;a-teatro, obedecendo a hist6ria dos nossos movimentos, quero dizer, a hist6ria dos movimentos da dam;a na Bahia "10

Este parecer foi muito esponti'i.neo, rnuito valioso, pois trata-se de urn artista que tarnbern conviveu com Pina Bausch e conhece a sua obra. Estavamos comunicando o processarnento de urn aprendizado, e ele nos disse que havfamos conseguido aprender o rnelhor com esta grande mestra. E este "rnelhor" era, nada mais nada menos, que buscar o nosso proprio caminho.

A Profa. Dra. Suzana Martins, na epoca diretora da Escola de Dan<;a da Universidade Federal da Bahia, ressalta a nossa busca de sair do usual quando fala da composi<;iio coreogr:ifica:

"A estrutura coreogrtifica jlui e foge da tradicional convem;iio de um espetticulo de dant;a, ligando cenas de urn passado com urn sabor contempordneo e sofisticado "11

Alem desses depoimentos que se referern especificamente as questoes que dizern respeito a nossa coerencia na busca dos nossos objetivos, tivemos varias outras manifesta<;6es de reconhecimento da parte do publico em geral, e da critica.

10 Avalia<;ao do espetaculo: Dep. l·Escola de Dan<;a da UFBNoutubro/97. Grifos nossos. II Avalia<;ao de espetaculo: Dep. ll-Escoia de Dan<;a da UFBNoutubro/97.Grifos nossos.

70 Seria leviano dizer que (em parte) nao vi vemos do reconhecimento do publico 2 pois, segundo Berkelei , "0 sabor da mar;ii esta no contacto da fruta com o paladar e niio na fruta mesma." E, para Borges: "a poesia esta no comercio do poema com o leitor, e niio na serie de simbolos que registram as paginas de um livro."

Diriamos que o publico que assistiu a esse trabalho reconheceu, entre outras coisas, que viu a essencia da nossa cultura. Este foi o retorno dado pelo publico que recebeu a nossa comunicaqao. Comunica~ao esta que e a ultima das fases 16gicas do processo criativo na arte e na ciencia: e a inser~ao do produto no campo social.

Entendemos que, alem da importiincia do produto, arte tambem e processo. Nao teriamos obra ffsica de arte sem processo. Assim, nao poderiamos esquecer o depoimento simples, mas carregado de significados, das danqarinas criadoras/interpretes, parte importante do processo, alunas do curso de dan~a da Escola de Dan~a da Universidade Federal da Bahia.

Essas alunas verdadeiramente deram corpo ao nosso trabalho na troca de urn aprendizado que, acreditamos, nao seria o que foi e o que e nao fosse o sentido de vida que demos a ele.

Os depoimentos apresentados a seguir foram extrafdos do registro videografico, realizado pela Universidade do Sudoeste da Bahia, na cidade de Vit6ria da Conquista (11 de abril 1998), quando da nossa comunica<;:ao cenica no X Encontro Regional de Estudantes de Hist6ria.

Alice Linhares simplesmente resume o seu depoimento dizendo:

12 Apud. BORGES, Jorge Luiz. Obra Poetica,1923·1976. Buenos Aires: AlianzaTres!Emece Editores. S.A. 1979, p. 6.

7! "o trabalho e isto ai, e a gente. £ o que etes pensaram., [diretores I criadores] "eo que a gente botou, eo que existe ".

Alice fala da nossa concep9ao e do conteudo das vJvencJas que elas nos trouxerarn, que, juntos, fazem o todo deste processo.

Zaida Cassarno reconhece que tudo tern urn senti do, porque:

"A gente niio dan~a por dan~ar, niio e movimento pelo movimento, todas nos botamos do nosso emocional, a[ nesta hist6ria. Cada uma de n6s tern uma parte de si nesta hist6ria ".

"Parte de si" que e a memoria ancestral e cultural, que e a alma do nosso corpo, como destas dan9arinas/criadoras. Esta historia e o retrato da nossa identidade. Acreditarnos em uma identidade sem barreiras de comunica9ao, com projeqao universal, que possa tocar qualquer ser humano pelos sentidos.

Nao e exatarnente na forma que queremos valorizar a nossa identidade, mas transmitir a consciencia de que as nossas a96es, em si, sao a nossa historia de seres humanos. Somos brasileiros, nao porque danqamos o samba. Somos brasileiros porque temos uma historia de brasileiros em nossas memorias, portanto, nao precisarnos sambar para contar que somos brasileiros.

Simone Lisete, quanto a este ponto, expressa de maneira clara os seus sentimentos, o que significou para ela a sua participaqao, a consciencia de que a

valoriza~ao do seu conteudo de memoria transformou-se em urn trabalho artfstico cenico. Ela diz:

72 "Este trabalho fala de toda a minha origem como pessoa, como mulher, fala da resistencia dos negros, e eu sou uma negra, tenho orgulho disso, e, com certeza, vai afetar ate o final da minha vida ".

Simone nos transmite o toque da universalidade de que tanto falamos, quando coloca em primeiro Iugar a sua condio;:ao de pessoa. Entendemos que ela percebe que, antes de qualquer coisa, o trabalho fala de pessoas, fala do ser humano. E Roquidelia Santos acrescenta:

"Isso e muito importante, a danr,;a, a arte em si faz com que a gente possa passar de outraforma" [as nossas historias].

Celia Carvalho, de uma maneira bern propria, fala o que pensa do teatro de danc;a:

"Muita emor;iio! A danr;a-teatro e muito mals emor,;iio que propriamente movimento !"

0 teatro de dano;:a e mais emo<;ao que propriamente movimento, porque os movimentos nascem da nossa propria gestualidade; dirfamos que os movimentos sao os movimentos das nossas ao;:6es internas e externas como pessoas e nao o movimento estereotipado da dano;:a pela danc;a. 13

13 Que e fazer movimentos mec§.nicos de t6cnica de dan9a sem urn conteU.do interior.

73 Ava Avacy finaliza esta seqUencia de depoimentos dizendo:

"Este trabalho evidencia bastante este referencial, esta cultura nao vive em separado, estd intimamente ligada as nossas ar;oes como criadores ".

Aqui diriamos que nao esta o processo bauschiano. Aqui esta a maneira pela qual reprocessamos todo urn aprendizado, do qual diriamos que: se nao f6ssemos o que somas, certamente de outra forma teria sido assimilado e processado.

74 Capitulo 3

TVA OUTRA CABE<;A, TUA OUTRA MEMORIA.

UMA EXPERIENCIA COM ALUNOS DO

CURSO DE ARTES CEJ'I;!CAS DA UNICAMP No decorrer deste relato, dissemos que a origem da nossa formac;ao esta na dan.;a. Com isto, todavia, nao queremos dizer que consideramos a danc;a uma ati vi dade artfstica isolada. Dane; a e arte cenica e, como tal, nao escapa de aspectos comuns ao teatro.

Nao estamos levantando urn fato novo, apenas queremos reforc;ar uma antiga questao, com vanos colegas interessados em promove-la. Nao negamos as rupturas que ocorreram na danc;a ao Iongo da hist6ria.

Na decada de 60, por exemplo, em Nova Iorque, o movimento de vanguarda buscava modos alternativos de danc;a e estilos cenicos. Artistas de artes visuais, musica e danc;a dividiam suas experimentac;oes em eventos que cruzavam livremente as fronteiras entre estas manifestac;oes artfsticas. Esse periodo estava cansado de gestos teatrais her6icos. Os core6grafos colocavam seus focos nos movimentos de- pedestres e observavam relac;oes basicas de pessoas normais. 1

Como se pode ver, estamos apenas reforc;ando, se assim podemos dizer, uma questao antiga. Urn dos nossos focos esta no fato de que, como pretendemos demonstrar, o teatro de danc;a do qual estamos tratando nao e privi!egio somente de danc;arinos. Outro foco e o reconhecimento de que este teatro de danc;a envolve os mesmos princfpios buscados por Stanislavski para trabalhar a verdade de urn papel no teatro.

0 relacionamento mais 6bvio entre danc;a e teatro e que ambos fazem com que o criador/interprete se expresse atraves do seu corpo. Pelo que conhecemos da hist6ria do teatro, a cena formal nasceu de manifestac;oes que eram danc;as. Quando a danc;a passa a ser conscientemente exibida para uma plateia, ela e teatro.

1 PARTSH-BERGSOHN. Isa. "De Rudolf Laban a Pina Bausch". In: Dance Theatre Journal. Trad. Ciane Fernandes. Escola de Teatro!UFBA. 1999 (Fotocopiada)

76 0 gestual, que e feito para expressar as a~6es de cena de uma peqa teatral, sao seqliencias de combinaqoes e configuraq6es do esfor~o humano que e movimento (a danqa da vida).

Pelo que podemos entender, danqa e teatro estao intimamente ligados e, olhando desta forma, e pertinente a direqao que tomamos.

Sem duvida, vamos encontrar essa fusao desinibida na cena contemporiinea, onde nos e permitido ultrapassar fronteiras, em consonancia com esse mundo contemporilneo, no

2 qual, segundo J. Guinsburg ,

"As no<;i5es de tempo, espa<;o e presen<;a estiio alteradas; onde assistimos a passagem da comunica<;iio verbal para as sinestesias visuais, onde as artes escapam ao estatuto dos generos".

Vemos, ass1m, que o nosso enfoque tern urn sentido contemporaneo, e a pergunta de Guinsburg - se por conta destas transforma~6es, "Niio se poderia falar de uma nova cena?"- claro que respondemos com urn sim.

Nesse trabalho, queremos valorizar o grande abraqo da nova cena contemporanea no teatro de danqa, esta importante manifestaqao cenica no mundo atual.

Laban, que inspira e fortalece a nossa trajet6ria, foi urn dos precursores do teatro de danqa e, em sua filosofia, prega a uniao do corpo com o espfrito. Assim, se somos urn todo, nao seria verdadeiro expressar urn corpo sem alma. Essa alma e uma s6,

2 GUINSBURG. J. "Prefacio". In: COHEN. Renato. Work in Progress na Cena Contemporiinea. Sao Paulo: Perspectiva, 1998

77 tanto no teatro como na dan<;:a. 0 movimento humano e sempre constitufdo dos mesmos elementos. seja na arte, seja no trabalho, seja na vida cotidiana. Assim, Laban' nos ensina a valorizar os movimentos do ser humano em sua espontaneidade e riqueza.

Esta e a dan<;:a que faz parte do teatro de dan<;:a que praticamos: uma dan<;:a gestual, nascida das a<;:6es naturals de cada urn, na qual nos permitimos experimentar o que e possfvel.

A conseqliencia desta filosofia, aplicada as nossas experiencias, e que nao e necessario que o participante do teatro de dan<;:a tenha forma.;:ao nas tecnicas especializadas de dan.;:a, pois lidamos com aqoes corporais reais e nao ac;6es tecnicas de dan<;:a.

0 conteudo desta pratica esta relacionado diretamente com a experiencia humana, acionando a nossa memoria para atitudes intemas e extemas, atraves da nossa mente e dos nossos corpos, com gestos, falas, cantos, acrobacias e tudo o que e possfvel. Essa experiencia deve se realizar no ambito da criatividade espontanea do criador/interprete a partir do seu conteudo de memoria.

Arriscamos dizer que, se por casualidade, temos urn elenco de danc;arinos como o tern Pina Bausch, nao e por uma necessidade estrita do processo, mas sim, acreditamos, por uma questao de op<;:ao, pois para nos ele e muito aberto para ser restrito a danc;arinos!

Reconhecemos, entretanto, que, para praticar o teatro de dan<;:a, faz-se necessano urn repertorio tecnico para o artista, mas nao precisa ser uma especializa<;:ao de dan<;:a.

3 LABAN, Rudolf. Dominio do movimento. Sao Paulo: Summus, 1978, p. 9.

78 Por assim entendermos, propusemo-nos a trabalhar com alunos do curso de formac;ao ern teatro, da UNICAMP, para desrnitificar o bloqueio que, percebemos, muitos que praticam o teatro tern com referencia a danc;a-teatro, como assim e chamada esta manifestac;ao pela maioria das pessoas aqui no Brasil.

Demos entrada do nosso projeto no Departamento de Teatro da UNICAMP. Ap6s a sua aprovac;ao, abrimos as inscric;oes. Dos vinte alunos inscritos, dez compareceram.

Depois de ja iniciados os trabalhos, fomos procurados por alguns alunos que diziam nao terem se inscrito porque nao tinham pratica de danc;a. Deste fato deduzimos que os que se inscreveram e nao compareceram talvez tivessem se arrependido pelo mesmo motivo dos que nem tiveram coragem de se inscrever porque nao tinham conhecimento de tecnica de danc;a, numa demonstrac;ao do bloqueio a que nos referimos acirna.

Dos que compareceram, alguns apresentaram na carta de intenc;6es que tfnhamos solicitado as seguintes expectativas em relac;ao ao curso:

-"Como direcionar a criac;ao para a composic;ao de urn teatro de danc;a". -"Fiz muito ballet classico gostaria de descobrir o que e teatro de danc;a". -"Conhecer urn novo metodo de concepc;ao de espetaculo e criac;ao de personagem". -"Me interessa obter uma introduc;ao sobre seu metodo de trabalho".

A verdade e que estes alunos estavam interessados em tomar conhecimento desta manifestac;ao cenica.

Temos consciencia de que a quantidade do material humano com o qual expenenciamos nao foi suficiente para ernitirmos opini6es de maneira generalizada,

79 entretanto, observamos que, pela sua importancia no campo da cena contemporanea, esta modalidade de expressao dos dias de hoje esta despertando muita curiosidade entre os alunos das artes cenicas.

Nas conversas introdut6rias, tratamos de esclarecer o fato de que a nossa experiencia esta fundamentada na expressao natural do homem. Urn dos objetivos da oficina era que os alunos pudessem perceber seus pr6prios gestos e a~oes como expressao da sua comunica~;ao, de forma Jigada ao princfpio de verdade pregado no teatro. Deixamos bern claro que trabalharfamos com conceitos vivos, com conteudo profundo, penetra~ao espiritual e for~;a vital em nossas sessoes.

Sendo assim, terfamos dois pontos importantes para serem trabalhados nessa oficina. 0 primeiro: fazer com que os alunos percebessem a correla~;ao dos caminhos usados no teatro para se chegar a verdade cenica, com os princfpios para se chegar a a<;;oes verdadeiras no teatro de dan~;a. 0 segundo: orientar como esses princfpios (os mesmos que estao no primeiro capitulo deste trabalho) deveriam ser acionados em fum;ao das a~;oes do teatro de dan~;a.

Quando iniciamos os trabalhos praticos, percebemos uma certa inexperiencia nestes alunos do conhecimento intuitivo. 0 que nao significa que eles nao possufam esta faculdade, porque concordamos com , que ve o "ser humano como ser natural e espontaneamente criativo" 4

0 fato e que eram alunos na maioria do primeiro e do segundo ano do curso de teatro, evidentemente urn tanto inexperientes. Mas isto tambem nos favoreceu a investiga<;;ao de urn ponto cuja importancia ainda nao nos havia preocupado: o repert6rio destes alunos, que estavam iniciando o curso de forrna<;;ao em artes cenicas, nao era suficiente. Isto poderia ser urn fator de dificuldade. Entretanto, nao o consideramos uma barreira.

4 Apud. ALBANO, Ana Angelica. Tuneu, Tarsi/a e outros Mestres ... Sao Paulo: Plexos. p. 20.

80 Chegamos a avaliar esta questao lembrando-nos de que Bausch trabalha com pessoas maduras, e aqui tfnhamos, na maioria, alunos de primeiro ano, Ao mesmo tempo, buscavamos nas experiencias passadas os resultados obtidos, por exemplo, com alunos do curso de danc;a da Universidade Federal da Bahia, com os quais obtivemos resultados surpreendentes,

Como grupos com os quais aplicamos a mesma linha de trabalho (citados nos capftulos anteriores) afortunadamente nos demonstraram terem apreendido de maneira mais fluida e desinibida, centramos as nossas observac;oes no que estaria a desencadear as dificuldades, quest5es com as quais ate aquele momento nao tfnhamos nos preocupado,

Terminamos por considerar que o tipo de rendimento verificado tambem se devia a resistencia pela inibic;ao e pela falta do desenvolvimento da espontaneidade nestes alunos, camufladas por urn sintoma: a verbalizac;ao excessiva e questionamentos do como fazer, Quando colocavamos as perguntas, havia sempre tantos questionamentos sobre como deveriam ser feitas as cenas que decidimos mudar urn pouco o rumo dos trabalhos, Resolvemos dar mais explicac;oes, dando exemplos,

Sabemos que dar muitas explicac;;oes e exemplos do como fazer em urn processo criativo nao e urn born carninho, Procuramos, contudo, dar poucos exemplos, indicando os caminhos de como nos realizariamos urn quadro, mas com a ressalva de que aquela forma seria a nossa visao, que nao deveria se confundir com a deles,

Era uma tentativa de trazer alguma ideia para o fazer de cada urn,

Poderiamos ate fazer uso dos jogos teatrais, que trabalham a espontaneidade, mas nao era o nosso prop6sito, Queriamos preservar a particularidade do processo de nao fazer uso de qualquer treinamento que pudesse dirigir os resultados,

81 Demos exemplos, no que era possfvel serem dados,

Quando transmitfamos uma questao para ser trabalhada, comec;avam os questionamentos de como ela podia ser realizada, formulavamos urn quadro que pudesse ser urn exemplo e mostravamos,

Aos poucos a nossa tatica de explicar foi dando certo, os alunos foram se encontrando e ficando mais soltos, 0 importante era nao terem vergonha de mostrar qualquer coisa,

Fomos direcionando sutilmente as respostas apresentadas para uma conduta pertinente ao processo,

Como nas experiencias anteriores, aqui tambem tivemos o depoimento dos participantes, Uma das alunas o apresentou por escrito, A ele recorremos para falar desta experiencia,

Confirmando a dificuldade inicial observada por n6s no infcio destes trabalhos ela nos revel a:

"No comer;o fiquei muito perdida,' era a primeira vez que me deparava com as (questoes), niio entendia o que era a minha vivencia e, principalmente, o que significava a sua materializar;iio objetiva, Eu tentava raciocinar e niio conseguia me desprender disso,"

82 Consideramos muito sincero o depoimento, pois essa aluna tentou acionar os canais da intui~ao, ela pouco nos questionou, sobretudo no que se refere ao como fazer. A persistencia na sua busca trouxe-lhe a compreensao do como fazer.

"Aos poucos, insistindo na execw;:cio das respostas, comecei a sentir o que se pretendia: quais as minhas relac;oes e conexoes

com elas" [as perguntas e a rela~ao com as suas vivencias].

A nossa proposta nesta oficina era trabalhar todas as etapas do processo: coleta de material, sele~ao, os procedimentos de recortes, redimensionamentos, transforma~oes e edi~ao, quando chegariamos finalmente a uma composi~ao.

Confessamos tambem que, na fase de composi<;ao, tivemos bastantes elementos para avaliar o peso do diretor/criador. Nos, diretores/criadores, dependemos do material trazido pelos participantes para procedermos a uma intera~ao e aos saltos em rela~ao ao que e possivel realizar, ate "tirando Ieite de pedras", caso seja necessaria, em uma composiyao da natureza desta manifesta~ao cenica, que nos permite ultrapassar fronteiras sempre nos levando a buscar o que e possivel.

Os fatos que se referem a execu~ao das a<;oes apresentadas durante esta oficina de teatro de dan~a levaram-nos de certa forma a aceita~ao de ay6es que nao eram tao justas, de acordo com os principios bauschianos. Contudo, nao as descartamos, o material foi transformado, buscamos uma forma adequada ao que se propoe o teatro de dan~a.

83 Dentro da nossa proposta, conclufmos a experiencw com uma composi<,;ao: 5 "Tua outra cabe<,;a, tua outra memoria" , texto de Eduardo Galeano no livro As Caras e As Mascaras, no qual buscamos os nossos estfmulos. (Anexo II)

Quanto ao processo de composi<,;ao, a aluna comenta:

"Depois foi meu estranhamento com a costura feita dessas ar;oes. Eu me questionava qual seria o objetivo daquela sequencia" [certamente este questionamento devia-se ao fato de ela nao estar vendo a linearidade comum as narrativas tradicionais]. "Entiio adotei a postura de apenas fazer as ar;oes selecionadas, sem me preocupar com as razoes ".

Se compararmos os depoimentos apresentados no segundo capitulo deste trabalho com o dessa aluna, podemos observar os diferentes modos de compreensao da experiencia, contudo nao se pode dizer que sao opostos. Esses depoimentos sinalizam para 0 que dissemos sobre as vanas interpreta<,;6es que 0 processo pode proporcionar as pessoas que tern a oportunidade de vivencia-lo.

No trecho a seguir do depoimento da aluna, aparece uma questao da qual temos outros registros semelhantes: a curiosidade das pessoas em saber sobre o processo. Da mesma forma que ela, nao encontravamos palavras que pudessem explicitar o processo. 0 que a aluna esta dizendo abaixo tern bastante semelhan<;a com o que experimentamos nos primeiros momentos ap6s o nosso retorno de W uppertal.

5 GALEANO, Eduardo. As Caras e as Mascaras. Trad. Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985

84 "Muitas pessoas me perguntavam o que nos faz{amos ou como era. E eu nao sabia a resposta; nao adiantava explicar, teria que ser feito, pois e urn trabalho que depende da percepc;ao do executante ".

Prosseguindo, ela nos revela suas descobertas a medida que se tornava mais clara a sua compreensao sobre a experiencia.

"Como passar do tempo, maior assimilac;ao do processo, nosso grande enfoque, a busca interior da verdade, estar rea/mente em cena e fazer as ac;oes ".

E revelador como significado do alcance de urn dos nossos focos nesta oficina, ela nos mostra enxergar o mesmo prop6sito do teatro: a busca interior da verdade. Ela compreendeu que o que precisava acionar para realizar suas a~6es nao era uma outra

CO!Sa.

No fim do depoimento, a aluna resume seus conflitos, mas tambem o que nos parece suas descobertas. Assim ela se expressa:

"Esta dramaturgia de ac;oes depende disso [do acionamento do conteudo de vivencias em ac6es externas] e eu como atriz e, principalmente, como pessoa, entrei em grande conflito, pois e sutil e, concomitantemente, perceptive! a diferenc;a entre demonstrar e rea/mente executar as ac;oes em cena. Atuar ou nao?"

85 Acrescentariamos sobre a sua pergunta - atuar ou nao - que urn procedimento desta natureza ira depender da sua op<;:iio como atriz e criadora. A nossa conduta de nao atuar refere-se especificamente a este teatro de dan<;:a do qual tratamos. Nao questionamos o certo ou o errado. Pelo que podemos perceber, ela sentiu a diferen<;:a entre atuar e nao atuar. Este seria o ponto mais importante.

"Enfim, siio duvidas que devem ser ou niio resolvidas, o importante para mim e identified-las e sempre bused-las, no intuito de me expandir como ser criador. E isso e um ponto­ chave de todo processo: voce cria a sua trajet6ria ou voce a percebe como ser consciente-sens(vel-cultural."

0 depoimento dessa aluna pode nos parecer ingenuo, vago, simples, mas n6s sabemos das sensa<;:oes indizfveis que urn processo de cria<;iio nos proporciona. Podemos enxergar muitos pontos semelhantes com o que n6s vivenciamos, e, assim, vemos a sinceridade das suas sensa<;:oes.

Reconhecemos a maneira de ela se expressar como uma verbaliza<;:iio tfpica de quando nos e dado falar de algo que esteve ligado a nossa criatividade, e de quando acionamos a nossa intui<;iio para atingirmos os nossos resultados. Nao podemos traduzir nada de maneira precisa.

A coerencia do desempenho pratico da aluna dentro do processo, a prova de que ela deu vazao a sua criatividade, pode ser confirmada quando nos e revelado que procurou nao se preocupar com as razoes do que estava sendo feito. Ela procurou agir.

86 E o relata do artista que chega em urn ponto em que nao existem palavras exatas que externalizem de maneira precisa como se dao seus processos interiores no exercicio criativo.

A intui'tii.O, que mencionarnos como condi'tao fundamental deste processo, sabemos que nao pode ser ensinada, mas pode ser desenvolvida, evidentemente.

Necessariarnente nao estavamos em busca de resultados artfsticos, portanto, esses alunos nao tinharn a obriga'tii.O de criar algo artfstico, mas sim experienciar urn. processo que, tambem para n6s, estava sendo uma experiencia nova, sua aplica'

Acreditamos nas possibilidades de alcance deste processo. Lembremos que, pela sua caracteristica aberta, ele possibilita trabalhar a criatividade de uma pessoa nao apenas para resultados artfsticos. Arriscariamos dizer que esses alunos aprenderam bastante, pois acreditamos que qualquer resultado em uma experiencia deixa alguma li'tao.

Quanta a n6s, ficou uma constata'tao: o teatro de dan'

Outro ponto importante e que a pratica do teatro de dan'

Pela nossa longa experiencia como artista e pedagoga, acreditarnos ser a universidade urn espa~o a mais para dar continuidade e arnplia'tii.O a projetos dessa natureza. Assim sendo, temos certeza de que estaremos verdadeirarnente colaborando para a transforma'

87 Capitulo 4

BAUSCH/ STANISLAVSKI:

UMA BREVE INTERPRETA<;AO 0 objetivo deste capitulo e mostrar que o teatro de danc;a pode ser visto como uma altemativa que, por caminhos diferentes, !ida com os mesmos elementos do teatro que levam a verdade cenica.

0 interesse de desenvolver este capitulo veio a partir do nosso convivio com o professor Marcio Aurelio Pires de Almeida nas aulas de improvisac;ao e interpretac;ao teatral do curso de teatro da lJNICAMP, no qual atuavamos, dentro do programa de apoio didatico da Instituic;ao.

Por uma questao de reconhecimento, diriamos que, se nao fosse o processo que presenciamos ser executado por ele em suas aulas de interpretac;ao e improvisac;ao, que por sua vez se tratava de sua propria maneira de trabalhar o conteudo stanislavskiano de verdade cenica, certamente nao teriamos nos reportado ao processo bauschiano. Reconhecendo semelhanc;as entre eles, percebemos uma correlac;ao entre os elementos que levam a fe cenica no teatro e os elementos do teatro de danc;a que devemos acionar no momento de trabalhar as nossas ideias em Bausch.

A correlac;ao que estabelecemos se da atraves da releitura do conteudo do metodo stanislavskiano e dos conteudos do processo bauschiano colocados em espelho.

Com isto pensamos demonstrar que existem outros caminhos a serem considerados como ferramentas que tambem podem instrumentalizar urn interprete de artes cenicas.

Consideramos necess:irias as releituras de urn conteudo que, certamente pela sua grandeza, como e o legado de Stanislavski, nao foi criado para ser cristalizado em formas tradicionais, e sim para acompanhar as transformac;oes do mundo atual e as necessidades especificas de cada projeto.

89 Evidentemente, nao nos referiremos a sua metodologia, mesmo porque ele e bern clara na preocupac;:ao de que seus procedimentos nao se transformassem em regras rigidas e inflexiveis, mas que este material fosse utilizado como referencia para o processo de busca de expressividade fmpar.

Nesta escolha, temos convicc;:ao da atualidade do que foi investigado por ele quanta a princfpios, com os quais fizemos relac;:ao com os conteudos que experienciamos em Bausch.

A verdade e que, se o nosso objetivo fosse uma comparac;:ao entre Stanislavski e Laban. seguramente teriamos muitos pontos em comum, pois ambos estudaram as relac;:6es dos conteudos de vida do individuo e suas ac;:6es na arte teatraL

Assim, sendo Bausch a mais importante representante da corrente vinda de Laban no mundo atual, encontramos tambem nela o mesmo conteudo, que certamente vern sendo redimensionado, pois ela e uma das figuras mais importantes do universo contemporiineo das artes cenicas atuais, influenciando atores e diretores teatrais.

Nossa opc;:ao em fazer este paralelo entre Bausch e Stanislavski vern tambem do fato de constatarmos que personalidades como Grotowski, Peter Brook, Eugenio Barba, entre outros do teatro internaci onal contemporiineo, de uma forma ou de outra reconhecem merecidamente Stanislavski como o pioneiro, o grande mestre, e, como tal, diriamos, e urn genio que nos deixou urn conteudo rico e atual, assim como Laban.

Este conteudo rico e uma grande contribuic;:ao para as artes cenicas, no que pode se referir tanto ao formal como ao nosso contemporiineo niio-linear. Para n6s, sao substanciais os princfpios para encontrar a verdade necessaria ao teatro. Sao principios que estao antes da forma. Sao universais e estiio de acordo com procedimentos da cena contemporanea. Como, por exemplo, o acionamento do plano dos sentimentos criadores

90 pessoais, que pertencem ao ator, que esta dentro de cada urn e que e o fator responsavel pela transmissao da veracidade de uma cena.

Tentaremos identificar semelhan<,;as entre eles e alguns daqueles que denominamos principios basicos que regem o processo bauschiano. Sera importante tambem apontarmos as diferen<,;as.

Ressaltamos que, apesar das semelhan<;as de fundamentos que vemos entre ambos, a maneira de operar bauschiana e particularmente uma recria<,;ao das nossas hist6rias de vida e do nosso modo de ver o mundo, materializados em a<;6es ffsicas externas, enquanto o metodo de Stanislavski e: "Um metoda verdadeiro e artistico de treinar atores e elaborar personagens ", segundo Robert Lewis. 1 Afirma<,;ao esta que concordamos em parte, pois nao o vemos de forma tao restrita.

Em Bausch, o processo e quase que totalmente intuitivo. Em Stanislavski o processo depende de regras claras e definidas para ser operado, e e a partir delas que se pode fazer uso da intui<;ao. Por exemplo, parte-se de urn texto; este texto nao e do ator, mas sim de urn escritor dramaturgo. Deste texto sao extrafdos personagens e sao identificadas as circunstancias determinadas pelo autor. Entao, entra a intui<;ao, trabalhando os conteudos de essencia interior do referido personagem e da pe<;a.

As a<;6es, que expressam as nossas hist6rias e a nossa visao do mundo no processo bauschiano, nao dependem de urn metoda de treinamento, nem de uma an:ilise da pe<,;a, nem do personagem, pelo menos de forma sistematica, como prop6e Stanislavski, mas da nossa espontaneidade em externaliza-las.

Entenda-se que, quando dizemos que nao dependemos de metodo, queremos dizer que o treinamento que existe em Bausch nao e especffico de prepara<,;ao para

1 LEWIS, Robert. "Prefacio". In: ST ANISLAVSKI, Constantin. A Criaqiio de um papel. Rio de Janeiro: Civiliza<;ao Brasileira, 1999.

91 resultados relacionados diretamente com o processo de pergunta e resposta. Os treinamentos tecnicos de dan~ a tern a finalidade de promover uma desenvoltura cenica e nao se conecta diretamente com o que verdadeiramente devemos acionar durante o processo de pergunta e resposta. Por exemplo, nao vamos nos utilizar de jetes, fouettes, plies e piruetas2 para expressar nossas a~6es nas respostas. 0 nosso repert6rio para a finalidade do processo criativo de pergunta e resposta esta em nosso potencial criativo espontaneo. Evidentemente, se estas tecnicas tern algum reflexo nas nossas a<;6es, e em conseqtiencia de urn todo que somos. Esta memoria tecnica existe em nossos corpos e tera urn reflexo em nosso total, mas ela nao e imprescindfvel para a espontaneidade das nossas a~6es.

A verdade e que reconhecemos que existem encontros fundamentais entre os dois mestres, e o mais importante deles esta no conteudo de vida em que ambos se ap6iam para desenvolver seus trabalhos.

Para desencadear urn processo de criatividade, ainda que 6bvio, e necessaria lembrar que o criador/interprete ou ator, como chama Stanislavski, deve estar preparado com uma disposi<;ao de espfrito que estimule seus sentimentos artfsticos e abra a sua alma para uma entrega.

Se nao nos prepararmos para a entrega, permitindo-nos abrir nossa alma, nao teremos verdade no que iremos realizar como criadores/interpretes, pois antes de tudo deve ser elirninada a vontade do exibicionismo.

Esta e uma prernissa basica, que vemos como ponto principal, sem duvida, desencadeador do verdadeiro desenvolvimento da nossa espontaneidade na cria<;ao. Cria<;ao que esta relacionada, em Stanislavski, com o subtexto l6gico para criar uma vida interior, capaz de dar substancia as palavras do autor. Em Bausch, com o subtexto 16gico

2 Term.inologia que se refere aos exercicios do ballet cl

92 vindo do nosso conteudo subjetivo de memoria que se transforma em a'

Estas a'<6es, a pnncfpio intemas e depois extemas, em Bausch, vern de estfmulos que acionam nossa subjetividade, Estes estfmulos, como em Stanislavski, vern de urn texto que sao as perguntas (palavras). Estas sao verdadeiros textos, que, depois de processados interiormente, serao reconfigurados em a«ao extema.

Cada pergunta refere-se ao conteudo essencial de urn tema, que vern de urn processamento exclusi vo do diretor/criador. Este procedimento nao e realizado em conjunto com os criadores/interpretes. Esse estfmulo, conteudo.essencial, ja chega ate os executantes na forma de uma pergunta.

Nao temos conhecimento detalhado de como Bausch trabalha seus textos/estfmulos, que sao repassados aos executantes em forma de perguntas, mas imaginamos que podem ser trabalhados no mesmo sentido das unidades e objetivos que Stanislavski trabalha.

Quando tomamos conhecimento do que senam o objetivo principal, as unidades de urn tema, as unidades maiores e o conteudo essencial no metodo de Stanislavski, vimos uma certa similaridade com o nosso processo. Percebemos que, quando processamos o conteudo hist6rico do tema em As Mulheres dos Deuses, referido no segundo capftulo desta disserta«ao, trabalhamos de maneira aproximada ao que e proposto por Stanislavski quanto aos objetivos de urn texto.

Vejamos como trabalhamos este conteudo tematico ate chegar as nossas perguntas.

0 tema escolhido girou em tomo da tematica da mulher negra e sua hist6ria de resistencia, !uta e fe: podemos denominar de tema principal.

93 Fizemos uma pesquisa, levantamos uma bibliografia que tratava deste tema. Em seguida, fizemos uma leitura para reflexao. Desta leitura tiramos trechos significativos, que poderiam ser chamados de unidades maiores, que sao os principais epis6dios 3 organic as, de acordo com Stanislavski •

Dos trechos significativos ou unidades maiores, tiramos as palavras-chave, ou perguntas, para n6s. Para Stanislavski, unidades menores, nas quais esta contida toda a 4 essen cia de urn tema: "o contomo interior de toda a per:; a " .

De acordo com Stanislavski, em cada unidade existe urn objetivo criador, que e 5 parte organica desta unidade .

Desta forma, em cada pergunta temos urn objetivo criador, vindo de uma cadeia l6gica, conectado como objetivo principal, as unidades maiores e o conteudo essencial. Condensamos urn texto procurando extrair urn conteudo profunda e significative em forma de perguntas.

Quando recebemos este conteudo essencial, que, como vimos no processo bauschiano, ja chega ate n6s, criadores/interpretes, em forma de pergunta, nao devemos intelectualizar sobre o tema, nao procedemos a nenhuma analise consciente. Devemos, neste momento, ser capazes de converter este estfmulo em vida.

Trabalhamos no limite alem do qual a nossa consciencia nao pode estender-se, on de come<; a o espa<;;o do reino do inconsciente, da intui<;;ao, 6 que nao e o intelectual.

3 ST ANISLA VSKI, Constantin. A Preparaqao do Ator. Trad. Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro: Civiliza,ao Brasileira, 1979, p. 142. 4 Idem, ibidem, p. 142. 5 Idem, ibidem, p. 142. 6 STANISLA V!SKl, Constantin. A Criaqao de urn papel. Op. Cit., p. 103.

94 Quando falamos que Bausch nos diz simplesmente: nao intelectualize, as pessoas acham muito vago, pedem explica~5es, como se fosse algo nao muito compreensfvel. Chamarfamos a aten~ao de que o sentido do nao-intelectualizar, que permeia toda a obra de Stanislavski, e exatamente o mesmo que devemos aplicar em

Bausch. Quando ele prega uma analise do personagem ou da pe~a e, ao mesmo tempo, diz que a analise feita pelo ator e executada pelo sentimento, 7 en ten demos que o sentimento nao e intelectual. Assim, embora seja uma analise, nao deve ser intelectual.

Os caminhos de como exatamente nao intelectualizar, voltamos a dizer, vern de

uma solu~ao absolutamente nossa, pessoal, porque nao nos e dito como e exatamente o nao-intelectualizar. Procuramos pensar, certamente, mas tambem sabemos deixar a mente vazia, sem pensamentos fechados, a espera do nosso insight.

Fundamentando a conduta de Bausch, podemos imaginar que esta sabedoria, se

nos fosse expressa com maiores explica~5es da sua parte, teria os mesmos argumentos de Stanislavski:

"Em arte qualquer analise intelectual, empreendida por si s6 e como unico objetivo, sera prejudicial, pois suas qualidades matematicas e secas tendem a esfriar o impulso do elan artistico e do entusiasmo criador. "8

A essencia da arte e a fonte principal da criati vi dade se escondem nas profundezas da alma do ser humano, no centro do nosso ser espiritual, no reino da nossa

7 Idem, ibidem, p. 26. 8 Idem. ibidem, p. 26.

95 9 inacessfvel supraconsciencia, segundo Stanislavski , onde estao o nosso "eu" misterioso e a nossa inspira~ao.

E, para a cria~ao, este mestre do teatro nos comunica que a procura do material esta no proprio ator. Eo que chamamos de conteudo de vida, este material "Consiste de lembram;as vivas, pessoais, relacionadas com os cinco sentidos, armazenadas na

' • .F. • " 10 memona a1 et!va .

Alem da memoria afetiva, acrescentariamos a memoria ancestral e cultural do ator, criador/interprete.

Reconhecemos que o exposto acima por Stanislavski, nao e outra coisa senao o mesmo fator que acionamos no processo do Wuppertal Tanzteater. 0 subtexto logico, pesquisa de campo de nossa propria experiencia, despertara sentimentos aniilogos ao que o papel exige em Stanislavski.

Em Bausch, podemos dizer que o subtexto logico de nos sa propria experiencia tambem desperta analogias, e e deste conteudo que nossos corpos necessitam para materializar em a~6es que, por sua vez, sao"ressignifica~6es". Estas a~6es nao sao para compor a cria\;aO de urn papel, mas sim para servir a uma forma de agir dos nossos corpos em rela~ao a materializa~ao dos conteudos de nossa vida e de nossa forma de ver o mundo. Dirfamos que e urn subtexto que nao estaria por traz de urn personagem, mas, na verdade, ele e uma simbiose, uma vida em comum. 0 subtexto e ac;ao viva e executante.

Voltemos a urn ponto importante: as explicaq6es. No teatro de dan~a de Bausch, elas nao existem dirigidas a este criador/interprete para fundamentar os seus procedimentos. Entretanto, as pessoas sempre acham que fica uma lacuna quando

9 Idem, ibidem, p. 103. 10 Idem, ibidem, pp. 26-27.

96 dizemos: tomamos conhecimento da pergunta e comec;:amos a pensar no que fazer. E somente isto. Bausch nao nos dii muitas explicac;:oes.

A razao desta conduta e a mesma que encontramos nos fundamentos de Stanislavski:

"A de que se deve evitar ao maximo passive/ as injluencias ( ... ) que poderiam criar um pre-conceito e desviar suas pr6prias impressi5es bern como sua vontade, sua mente e sua zmagmar;:ao. ' - ,, . 11

0 excesso de verbalizac;:ao e a ilustrac;:ao sao fatores que, -aplicados, tern conseqiiencias na distorc;:ao de uma rela<;ao estabelecida naturalmente entre as emoc;:oes do criador/interprete e o tema proposto. Portanto, e evidente que tern procedencia quando dizemos que Bausch nao dii muitas explica<;5es no seu processo. Talvez, justificando desta forma, as pessoas vejam com mais clareza esta sua conduta e, ao mesmo tempo, passem a acreditar no que estamos revelando.

Quando Bausch nos pede para sermos n6s mesmos, assim como Stanislavski, devemos acionar emor;:oes instintivamente sinceras e sentimentos fi.eis a vida.

No capitulo V do livro A Criar;:ao de um Papel, de Stanislavski, em determinado trecho da pagina 164, dois dos seus alunos, que procuravam representar urn certo papel, recebem urn comentario crftico do mestre: "E assim que voces andam em uma rua?"

11 Idem, ibidem, p. 22.

97 Nessa observa<;ao, o mestre esta se referindo a uma a<;ao que teria que ser realizada como verdaddeiramente e realizada por urn ser humano. De acordo com o texto, e justificando a observa~ao feita, esta seria a execu~ao do objetivo fisico mais simples, segundo Stanislavski

Se a execu~ao do objetivo fisico mais simples se refere exatamente ao como 12 faria urn ser humano de verdade , podemos seguramente dizer que, no processo bauschiano, devemos sempre agir de acordo com o que Stanislavski chama de objetivo fisico mais simples em nossas a~oes. Nao e s6 no caminhar. Todas as a~oes que realizamos no processo bauschiano tern este prop6sito: agir sempre como urn ser humano de verdade, ao que Laban diria, realizar at;oes corporais reais!

Para que sejamos tao reais e verdadeiros nas nossas cna~oes, certamente devemos agir acionando o melhor objetivo criador, que eo objetivo inconsciente, o qual, segundo Stanislavski, logo se apodera dos nossos sentimentos, conduzindo por intui<;:ao ao alvo basico de uma pe~a 13 .

E Incontestavel a analise do percurso da cria~ao em nossas mentes feita por Stanislavski. E exatamente a mesma coisa que trabalhamos com Bausch, como deve ser igual em qualquer outro processo criativo em que tenhamos que expressar e comunicar urn tema atraves dos nossos conteudos interiores de forma verdadeira e convincente.

Resumindo nossa interpreta<;:ao, dirfamos que, se abstrairmos das questoes tecnicas referentes ao texto e a elabora~ao da personagem presentes em Stanislavski, poderfamos dizer que ele quer atingir no ator-pessoa o mesmo que Pina Bausch.

Ao finalizar este capitulo, temos a consciencia de que o tema e muito rico e obviamente nao se esgota na simples imerpreta~ao de alguns aspectos. N a verdade, esta

12 ldem, ibidem, p. 163. 13 Idem, ibidem, p. 73.

98 e apenas uma tentativa de mostrarmos que Bausch possui nao s6 a sua obra ffsica, mas tambem uma conduta de procedimentos que, analisados de maneira mais aprofundada, sao ferramentas que podem instrumentalizar alunos dos cursos de formaqao em artes cenicas.

99 Konstantin Stanislavski CONCLUSAO 0 complicado e indizivel percurso de nossas criac,:oes nao e aleatoric.

Nesse processo de criac;ao, os nossos conteudos de memoria, juntamente com as ferramentas da nossa criatividade, dao identidade a nossa obra, e este fato esta implicito no processo bauschiano, na sua orientac;ao fundamental de sermos nos mesmos atraves da materializac;ao dos nossos conteudos de vida. Consideramos que o teatro de danc;a e teatro e, ainda mais, uma das mais importantes manifestac;oes no contexto da nova cena contemporfmea.

0 teatro de danc;a requer urn aprendizado que usa a intuic;ao a partir do estimulo-tema, como ferramenta fundamental em sua compreensao.

Ele e importante e merece ser divulgado e repassado para pessoas interessadas em processar suas experiencias de vida com conteudo expressive na manifestac;ao cenica, indo ao encontro de niveis originais da sua criatividade, pois atraves dele transcendemos nossos conteudos de memoria em procedimentos nao-mimeticos nos quais a intuic;ao deve ser o suporte fundamental.

0 teatro de danc;a e, ainda, urn processo que pode trabalhar a criatividade de qualquer pessoa, nao necessariamente o artista, pois sua abertura permite canalizar para urn resultado artistico ou nao. 0 fundamental e que ele exercita a criatividade. Por isso acreditamos ser importante divulga-lo e aprofundar as reflex5es sobre ele para valoriza­ lo como processo que pode contribuir para a arte e tambem para a educac;ao. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS AGRA, Lucio & COHEN, Renato. Cria<;ao em hipertexto: vanguardas e territorios mitologicos. Centro Academico de Filosofia, PUC/SP, 2000. (fotocopiada).

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107 ANEXOI

PROJETO ALFORRIA; 0 QUE RUY BARBOSA NAO QUEIMOU 0 que Rui Barbosa nao queimou...

apresenta QUEIMA DOS ARQUIVOS DA ESCRAVIDAO

(Aviso do Ministro da Fazenda Ruy Barbosa, 1890)

Manda queimar todos os papeis, livros de matricula e documentos relativos a escravidiio, _ existentes no Ministerio da Fazenda.

~uy BARBOSA, Ministro e Secretario de Estado dos Neg6cios da Fa· zenda e presidente do Tribunal do Tesouro Nacional: Considerando que a nagao brasileira, pelo mais sublime lance de sua evolugi.io historica, eliminou do solo da piitna a escravidiio - a institui<:;iio funest!ssima que por t::mttk anos paralisou o desenvolvi· men~to da sociedade, inficlonou-lhe i: £tt:mo:~fera n1onl1; Ccnsiderando que a HepUblica 1:;s-~:2 ,·:,hdgada a clestruir esses ves~ tigios por honra da patria, e em bc:_-:,;cLage:tt: aos nossos deveres de fraternidade e solida:ciedade para corn a grande massa de cidadlios _que pela aboligao do elemento servil entraram na comunhiio brasileira; Resolve: 1.o - Seriio requisitados de todas as tesourarias da fazenda to·· dos os papeis, -Evros e clocumentos existentes nas repartii;Oes _do Mi· nisterio da fazendQ, relativos ao elemento servil, matricula dos escra· vos, dos ingenuos, filhos Hvres de mulher escrava e Ebertas sexage~

mirios,. aueA deveriio ser sem.' demora remetidos a esta canital£ e reuni· des em lugar apropriado na Recebedoria. 2. 0 - Uma comissao compo~ta. dos Srs. Joiio Fernandes Clapp, Jlresidente da Confedera~ao Aholicionista, e do administrador da Re· _~!3btdo~ia desta capital clirigirfi ..a arrecada~fio dos referidos li-vros e papeis e proceden1 a queima e .destrui<:;iio imediata deles, 0 que se fara na casa da maquina da Alffmdega desta capital, pelo modo que .mais .conveniente parecer a .cOmisS&o.

Capita! Federal, 14 de dezembro de 1890 - Ruy Barbosa. AS MULHERES DOS DEUSES Forya, Transe e Paixao

Este traba!ho faz parte de urn projeto de pesquisa ainda em sua fase de descoberta. Trabalhar com Licia Morais dentro de urna proposta coreografica em Dan~a-Teatro, - depois de seu estagio de dois anos de especializac;:ao com a danc;:arina e coreografa alema Pina Bausch - e com danc;:arinas da Escola de Danc;a da U.F.BA (levando em considerac;ao a linha caracteristica do grupo e sua participac;ao no Odunde), criava condic;oes de testar o Projeto Alforria.

Esta proposta da continuidade ao projeto Dan~a-Jornal (77185), que obteve, no Concurso Nacional de Danc;a Contempocinea (77), Menc;:ao Especial do JUri "pela atualidade da proposta apresentada: o enfoque na danc;a contemporanea, de problemas socio culturais". Igualmente da continuidade a proposta de trabalho elaborado para o CNPq por Licia Morais, que serviu de base a bolsa de estudos concedida por aquele orgao para estagiar no Tanztheater Wuppertal.

0 Projeto Alforria pretende, mediante pesquisas historicas e culturais, resgatar alguns fatos - como a presem;a da mulher negra na historia das lutas e da resistencia a escravidao - dando-lhes urn tratamento distinto dos usuais nos trabalhos de tematica afro­ brasileira, e urna projec;:ao contemporanea, atraves da Dan~a - Teatro.

Esta etapa experimental do projeto teve como objetivo proporcionar aos participantes a montagem conjunta de urn trabalho coreografico com a participac;:ao ativa dos danc;:arinos, a partir de urn processo de pergunta e resposta deflagrado a partir da colocac;:ao de questiies-temas que partem de urn roteiro ou de urn tema central previamente elaborado e que, no caso desse trabalho, partiram de pesquisas historicas em tomo da tematica da mulher negra.

0 processo pergunta-resposta teve como finalidade despertar na memoria das danc;:arinas - elas tambem mulheres e baianas - respostas ancestrais, quic;:a inconscientes, traduzidas em gestos, movimentos e quadros relacionados com a tematica da liberdade, da resistencia a escravidao e da construc;:ao de identidades. Respostas estas que se encontram guardadas na memoria de cada urn dos participantes, envolvidos pela magia e pelo clima que marca e relembra a presenc;:a de antepassados em cada canto da Bahia.

As perguntas funcionam como estimulo para a expressao de respostas adequadas - mas nao obvias - da tematica afro-brasileira, de modo que, nessa fase exploratoria, os danc;:arinos tiveram oportunidade de conhecer e experimentar este processo de trabalho, expandindo o seu potencial criador. 0 presente trabalho pretende exarninar e desenvolver algumas interpreta9oes simb6licas da participa((iio da mulher negra na hist6ria de resistencia e !uta silenciosa na conquista da Iiberdade, atraves da narrativa simb6lica do gesto, do movimento e seus mecanismos rituais. Elas, as mulheres negras, apesar de sua silenciosa mas ativa participa((iio, pouco ou muito. pouco tern motivado os pesquisadores dessa nossa hist6ria de resistencia, !uta e fe, a fazer urn registro que mostrasse a medida exata de sua, importancia.

A realiza((1iO desse resgate do papel das mulheres negras na hist6ria desse pedac;:o da America, nao foi muito f:icil. Urn exemplo claro: sobre Luiza Mahim, uma das mulheres hoje reverenciadas como simbolo de !uta e resistencia e que mais parece uma lenda que realidade concreta, encontrarnos apenas tres linhas no livro de Clovis Moura "Rebelioes da Senzala":

"Luiza Mahim, escrava gege, mie de Luis Gama, participou do movimento. [Revolta dos 1\llales] Sabre sua atuar;iio, porem, nao encontramos referencias nos documentos que consultamos. "

Neste trabalho pretende-se fazer, a partir dos pequenos registros encontrados na bibliografia sobre a vida dos negros na Bahia, uma apresenta((ao da vida e do papel das mulheres negras, nao apenas no seu quotidiano, no silencio do dia a dia, mas tambem no seu papel de sacerdotisas, de guardiaes da forya, do saber e do poder dos orixas. Da sua participa((ao na resistencia da Africa recriada dos quilombos, quando forneciarn a retaguarda e o apoio aos seus guerreiros, semeando a vida e os alimentos. Detentoras de uma cultura da diaspora, guardavarn e guardarn gestos, cantos, dan9as, jogos, e, sobretudo, a fe, a for9a do axe.

Os materiais de apoio a pesquisa forarn levantados de diversas publica9oes, Iivros e monografias que constituirarn o ponto de partida parcial para o trabalho - alem dos pr6prios participantes, em suas vivencias. Nas cliversas publica96es consultadas, livros, ensaios, revistas, encontrarnos apenas algumas linhas referentes a participa((1iO das mulheres que permitirarn elaborar o roteiro base, contendo os seguintes referenciais:

Prologo do Simbolico

"Cada movimento e, ao mesmo tempo, urn gesto" (Suzane Langer, 1951).

"A interpreta((1io do simbolo ( ... ) uma vez descoberto seu nexo ontogenetico, seu ou seus referentes, permite-nos tomar explicita a realidade fatual. Ja dissemos que nao entendemos o simbolo com urn significado constante; sua interpreta9iio esta sempre em rela((iiO a urn contexto. Sua mensagem esta em fun((iio de outros elementos." (Juana Elbein, 1977)

"Tanto maior e o acfunulo de conhecimentos quanto maior e a experiencia ritual; entre eles se incluem o conhecimento apropriado de invoca9oes, cantigas, longas series de textos, mitos e lendas. 0 conjunto desses textos contribui para expressar o conhecimento universal, c6smico e teol6gico"( ... ) "A musica, as cantigas, as dan<;as litlirgicas, os objetos sagrados, quer sejam os que partem dos altares -peji- quer sejam os que paramentam os orixa, comportam aspectos artisticos que integram o complexo ritual( ... ) A manifesta~tiio do sagrado se expressa por uma simbologia formal de conteudo estetico. Mas objetos, textos e mitos possuem uma finalidade e uma fun<;ao. E a expressao estetica que "empresta" sua materia a fim de que o mito seja revelado (... ). 0 belo nao e concebido unicamente como prazer estetico: faz parte de todo urn sistema" (Juana Elbein, 1966).

l.As sementes da resistencia

"Por mais negros que crucifiquem ou pendurem em ganchos de ferro que atravessam suas costelas, sao incessantes as fugas nas quatrocentas planta<;oes da costa do Suriname. Selva adentro, urn leao negro flameja na bandeira amarela dos cimarroes. Na falta de balas, as armas disparam pedrinhas ou botoes de osso: mas a floresta impenetravel e o melhor aliado contra os colonos holandeses.

Antes de escapar, as escravas roubam graos de arroz e de milho, pepitas de trigo, feijao e sementes de ab6bora. Suas enormes cabeleiras viram celeiros. Quando chegam nos rerugios abertos na selva, as mulheres sacodem as cabe<;as e fecundam, assim, a terra livre". (Eduardo Galeano, 1985).

2. A for~ta dos ancestrais

" 0 conteudo mais precioso do "terreiro" e o axe". E a for<;a que assegura a existencia dinfunica, que permite o acontecer e o devir. Sem axe, a existencia estaria paralisada, desprovida de toda possibilidade de realizac;:ao. E o principio que torna possivel o processo vital.

Como toda fon;a, o axe e transmissive!; e conduzido por meios materiais e simb6licos, e acumuhivel. E uma forc;:a que so pode ser adquirida pela introjec;:ao ou por contato. Pode ser transmitida a objetos ou seres humanos. Em nago, designa a forc;:a invisivel, a for<;a magico-sagrada de toda divindade, de todo ser animado, de toda coisa. Mas esta for~ta niio aparece espontaneamente. deve ser transmitida.( ... )"

"0 axe e contido numa grande variedade de elementos representativos do reino animal, vegetal e mineral quer sejam da agua (doce e salgada), quer da terra, da floresta, do "mato" ou do espa<;o urbano. 0 axe e contido nas substancias essenciais de cada urn dos seres, animados ou nao, simples ou complexos, que compoem o mundo. Os elementos portadores de axe podem ser agrupados em tres categorias:

1. sangue vermelho; 2. sangue branco; 3. sangue preto. (Juana Elbein, 1976) sacerdotisa, era dedicada a Oxala e, por ser tao velha, chamavam-na Papai, como ao deus. (Ruth Landes, 1967).

"Os Eres sao sempre crianc;:as, como os santos Cosme e Damiao, e se imagina que sejam filhosde Xango e !ansa, os deuses do trovao e do.relilmpago.( ... ) Podiam falar, embora numa linguagem de fala e gestos infantis, uma mistura de africano e portugues estropiado. Davam-lhe dissolvidos em agua fria, o simples e sensaboriio aca9a, o seu primeiro alimento em muitas horas. Ficavam entao brincando nas esteiras como crian9as.( ... ) Os Eres podiam ser divertidos e inofensivos, porem muitas vezes usavam linguagem e gestos indecentes e tinham de ser censurados severamente pela mae. Podiam airtar coisas uns dos outros e dos circunstantes e podiam correr a volta do templo dando pa1madas nas pessoas" (Ruth Landes, 1967).

4. Pela Alforria

"As mulheres eram mais alforriadas que os homens" (Katia Mattoso, 1992)

"Ate a Abolivao, a alforria era urna etapa obrigat6ria para qualquer escravo cuja descendencia viesse a se integrar as camadas livres da populas:ao. Durante toda sua vida, o antigo escravo continuava a ser urn "alforriado" .(Katia Mattoso, 1992)

"Nas primeiras horas da manha as negras vinham ao canto trazendo grandes panelas de angti de milho e de tapioca, que os ganhadores engoliam com pao. Elas vendiam tambem acas:as quentes. Entre as duas e tres da tarde outras negras vinham para vender arroz feito a maneira ussa com came seca frita, preparada com urn molho de pimenta seca, bolinho de inhame lambuzado com agua as:ucarada, came de baleia assada, inhames 'cozidos, caruru, etc. (... ) As mulheres eram vendedores ambulantes, cozinheiras, vendedores de diversos artigos, etc. Carregavam nas costas os filhos, netos ou filhos de seus senhores, de maneira tal que as maos ficavam livres para todo e qualquer trabalho" (Pierre Verger, 1987)

"Os trabalhadores libertos ou escravos [de ganho] se agrupavam em certas esquinas da cidade [cantos] conforrne o oficio que exerciam e a etnia a que pertenciam." (Katia Mattoso, 1992)

"A etnia estava presente tambem quando os escravos se organizavam nas "juntas de alforria", tendo em vista conseguir a liberdade. Nesse contexto, era natural que o mesmo fator influenciasse a escolha dos parceiros e parceiras, mesmo porque, na rela<;:ao mais intima, o africano tentava recriar em terra alheia urn ambiente semelhante ao da sua terra natal". (KM, 1992) 3. Fortalecimento do ritual

"As cerim6nias africanas que levam este nome sao de diversas origens, tendo sido trazidas pelos escravos de diferentes regioes da Africa. Este nome de candombli\, cuja significas:ao exata nao e conhecida, parece ser de origem bantu e data sem duvida do inicio do seculo XVIII, epoca em que a maioria dos escravos na Bahia era originaria da Africa ao sui do Equador. Por razoes econ6micas e comerciais ( ... ) o trafico trouxe, a partir do final do seculo XVIII, quase unicamente escravos da Regiao do Golfo do Benim Isto provocou uma importa<;ao maci<;a de gege e de seus inimigos nagO/ioruba. E nessa epoca que foram criados clandestinamente os terreiros de candomble" .(Verger, 1981)

"Nas:oes diversas se agruparam nas casas de candombles ( ... ) E desta epoca o caso dos nag6 trazidos do Ketu. 0 primeiro terreiro desta na<;ao foi fundado no inicio do secu1o XIX, em uma pequena casa situada atras da igreja da Barroquinha, por um grupo de mulheres que pertenciam a Irrnandade de Nossa Senhora da Boa Morte.

Cita-se nomes, mas nem todos estao de acordo sobre os 1as:os reais de parentesco e de dependencia que unem os fundadores desse terreiro. Sabe-se no entanto que entre e1es figuram duas mulheres, lyaluso e lyanaso, e um homem, Baba Asika. Este primeiro terreiro da na<;ao Ketu dara origem 'as tres casas de candomble mais famosas da Bahia: Engenho Velho, Gantois, Sao Gon<;alo do Retiro que terao influencia muito grande sobre o ritual que adotarao em seguida outros terreiros da Bahia e do resto do Brasil, mesmo aqueles de na<;oes diferentes". (Verger, 1981).

"As esposas (yawo) dos deuses dan<;am de inicio com suas roupas comuns; mas, depois do transe, sao conduzidas aos aposentos onde voltam a um estado mais calmo, sao vestidas com suas roupas sacerdotais, enfeitadas com seus omamentos simbolicos para voltar a dan<;ar ate o fim da festa". (Bastide, 1985).

"Na Bahia as "ekedi" emparelham com os "ogan"; sao mulheres que constituem uma especie de empregadas das filhas-de-santo , enxugam-lhes o suor de seus rostos durante a dan<;a, tiram-lhe os sapatos, desembara<;am-lhes a cabeleira no instante do transe, conduzem-nas ao interior da casa para cobri-Ias com os omamentos de suas divindades" (Bastide, 1985).

"Comecei a achar que este era realmente um templo de matriarcas e que os homens, embora desejados e necessarios, eram principalmente espectadores. (... ) De repente, ouvi uma voz estridente de mulher tirando can<;oes que os tocadores de atabaques levavam adiante. (... ) Era uma mulher de meia idade, bonita, clara, gorda e bern vestida. Energica como uma lider jovial, cantava em voz alta e dan<;ava por toda a sala com a ligeireza de um patinador. Tirava uma can<;ao ap6s outra, na ordem preestabelecida pela hierarquia dos deuses. No banco construido a volta da coluna central jazia impassive! uma velha sacerdotisa sonolenta, os cabelos como flocos de neve. ( ... ) Era uma ex-escrava vinda da Africa havia mais de cern anos. Tambem 5. For~a, Transe e Paixiio

"A mulher africana conquistou na Bahia uma influencia e uma preeminencia que nao possuia na ambito do patriarcado tradicional existente em sua terra natal. Sendo minoritana no Brasil, ela ocupava posic;:ao privilegiada na sociedade escrava de entao, desempenhando na Bahia importante papel. Sozinha na criac;:ao dos filhos, sem familia consangi.iinea, cercada por gente de varias etnias e forc;:ada a viver segundo urn c6digo social "ocidental", a mulher africana procurou e achou em sua etnia novos lac;:os de solidariedade". (Katia Mattoso, 1992).

"As mulheres africanas, antigas escravas emancipadas, sao muito independentes. E em tomo delas que se forma a familia. Elas vivem com seus companheiros e pais sucessivos de seus filhos, sem que se possa por isso tacha-las de mulheres libertinas. Elas sao em geral mais ricas que os homens com os quais elas vivem amasiadas, concubinato que as vezes se transforma em casamento na devida forma, celebrado na igreja. Sao elas que comandam em casa, os fllhos de diversos pais muitas vezes vivem com elas.

Estas mulheres sao extremamente ativas. Nos ja falamos de suas ocupac;:oes de vendedores de pratos cozidos nas ruas. As mulheres nago e seus descendentes na Bahia tern o mesmo espirito empreendedor que as caracteriza na Africa. Elas vendem no mercado e, boas comerciantes, ganham dinheiro e mesmo enriquecem, tomam-se proprietarias de pequenas casas onde elas habitam e que alugam a seus compatriotas. ( ... ) Seu espirito de empresa e de dominac;:ao toma-se visivel na organizac;:ao das irmandades religiosas cat6licas. A con:fraria de N. Sra. da Boa Morte da igreja da Barroquinha e dirigida pelas mulheres Nago, enquanto que as irmandades congo deN. Sra. Do Rosario e ados Geges do Daome da Capela do Corpo Santo, sao irmandades de homens". (Verger, 1981).

"As negras ricas da Bahia carregam o vestuano a baiana de ricos adomos. Vistosos braceletes de ouro cobrem os brac;:os ate o meio, ou quase todo; volumoso molho de variados berloques, com a imprescindivel e grande figa, pende da cinta. A saia e entao de seda fina, a camisa de alvo linho, o pano da costa de rico tecido e custosos lavores; completando o vestuano especiais sanda!ias que mal comportam a metade dos pes". (Nina Rodrigues, 1982).

Jean-Baptiste. Debret, descrevendo uma negra da Bahia, vendedora de "atacac;:a", escreve que, com as perturbac;:oes politicas da Bahia em !822, houvera para o Rio de Janeiro uma imensa imigrac;:ao de trilnsfugas e que desde entao as negras da Bahia estavam misturadas com as vendedores das ruas. Elas se faziam reparar pela sua toalete e inteligencia: umas vendiam musselinas e xales; outras, menos comerciantes, ofereciarn como novidades guloseimas importadas da Bahia e que faziarn grande sucesso.( ... ) "Os males que haviam escapado no seculo passado as investiga9oes da policia ap6s as revoltas e sublevayoes particularmente ap6s a 'revolta dos Males' de 1835, haviam adquirido habitos de prudente desconfian9a, que haviam transmitido aos seus filhos" (Verger, 1987)

"Os africanos redefiniram na Bahia sua no91io de familia e linhagem. Neste ponto retoma o elemento etnico. A palavra parente foi escolhida do vocabulario da lingua do senhor para significar patricio. Os membros de um mesmo grupo etnico eram "parentes" entre si. E tambem significativo que, ate hoje, os candombles se dividam em "na\!iies" e seus membros perten9am a mesma "familia de santo". Na ausencia de uma rede familiar de sangue, a identidade etnica ganhou fei9oes de uma grande familia, talvez o principal canal de solidariedade e organiza91io de vida da maioria dos afi:icanos que viveram na Bahia". (Joao Jose Reis, 1987)

"Luiza Mabim, escrava gege, mae de Luis Gama, participou do movimento. [Revo1ta dos Males] Sobre sua atua91io, porem, nao encontramos referencias nos documentos que consultamos." (Clovis Moura)

Revolucionaria? Que rastros deixou de sua vida de mulher? Como viviam as mulheres da comunidade islfunica? Princesa? Quitandeira? Lider reverenciada? Se declara male quando os mesmos estao proscritos, depois da repressao de 35, quando os vencedores estavam sedentos de vingan9a.

Moradora da Rua do Biingala, onde ainda esta a sua casa, freqiientava a missa da Piedade, onde chegava de "cadeirinha de arruar", respeitada como uma verdadeira rainha. Responsavel pela comunicayao entre as diversas mesquitas e seus dirigentes, no processo de prepara91io da revolta, usava os vendedores dos doces que preparava no quartel do Guadalupe, (hoje pra9a dos Veteranos) para enviar e receber mensagens em arabe.

Altiva, seria a Presidente da Provincia mn\!ulmana que se iria implantar. Ficou o registro da sua beleza e elegiincia, - "as autoridades e familias de destaque da sociedade local ficavam perplexas ao ver aquela esguia criatura negra, cor de azeviche, ricamente trajada, sendo conduzida ... como se fosse uma dama da Corte, uma rainha na sua terra" - bern como do seu poder. (Antonio Monteiro, 1985).

No dia da revolta, enfrenta a policia evitando a entrada no seu quartel general, de onde saem os males para o combate, em dire91io a praya municipal. Lenda?

"Mas hoje, os males estlio todos mortos .... Gunoco voltou para a Africa ... Ele fala ao vento mas ninguem o entende". (Bastide, 1985) A negra da Bahia era facilmente reconhecida pelo seu turbante, como tambem pela altura exagerada de suas mantas de seda; o resto de sua roupa compunha-se de uma blusa de musselina bordada, sobre a qual ela coloca uma faixa cujos riscos caracterizavam a fabrica9ao da Bahia. A riqueza da blusa o a qiiantidade de j6ias de ouro eram os principais objetos de sua elegiincia.( ... )

Os vestidos de gala das mulheres negras sao muito particulares e muito elegantes. A parte superior do vestido, acima da saia, e feita de fina musselina, simples ou trabalhada, algumas vezes tao transparente que apenas dissimula o corpo da cintura para o alto. A parte em tomo do busto e bordada por uma larga renda; bra<;adeiras ricamente trabalhadas sao presas por duplo botao de ouro. Esta parte superior do vestido e tao frouxa que urn ombro da mulher fica sempre nu. A saia do vestido e muito volumosa, formando urn circulo completo quando e estendida no chilo, a borda inferior e bordada com rendas onde esta omada com urn arabesco branco costurado por dentro; o saiote interior e tambem bordado com renda. Os pes nus estiio enfiados em pequenos sapatos que cobrem as extremidades dos artelhos; os saltos sao muito altos e frnos, nao alcan<;ando o calcanhar do pe. Os bra9os estao cobertos corri braceletes de coral, de ouro, de contas, etc. 0 pesco<;o esta carregado de correntes e os dedos com aneis, particularmente aqueles da mao que e mais frequentemente exibida fora das pregas do xale ( ... )Urn elegante pano da Costae jogado sobre os ombros.( ... ) Urn grande len<;o de rede branca, de renda ou de musselina com uma borda de renda branca, ou uma rede preta e muito graciosamente enrolada em turbante na cabe<;a e curiosos brincos completam esta roupa. (Verger, 1987)

6. Mulheres Males -1835- Silenciosa Resistencia.

"As mulheres continuavam com alguns dos costumes do seu pais, em particular com a pintura do rosto; pintavam as palpebras inferiores como requinte de beleza. Mas nao traziam o rosto coberto como na Africa. Parece que estes males tinham uma existencia tranqiiila, levantando-se cedo, e dormindo tambem cedo, observando cuidadosamente a higiene e vivendo isolados". (Bastide, 1985).

A familia e as amizades afetivas eram fonte de solidariedade e conflito, amor e 6dio. Os homens ajudavam as mulheres ganhadeiras a cuidar dos filhos, enquanto elas trabalhavam, e cuidavam delas tambem em tempo de necessidade. Ajadi, por exemplo, conta em seu depoimento que costumava tomar conta dos tres filhos enquaoto Felicidade saia para trabalhar. E Ignacio Santana, nago ja idoso, declarou que "se ocupa com mandar ensinar a seus filhos hum a carpina, outro na escola e a crear o outro que ainda he muito pequeno". Quando Gaspar da Silva Cunha foi preso, os policiais o encontraram fazendo mingau para sua camarada que estava doente". Sua "camarada" era a negra Tereza. Tanto esta como muitas outras africanas defenderam com paixao seus homens e cuidaram deles quando presos." (Joao Reis, 1987). 7. As mulheres dos deuses

"E mesmo assim, na -Bahia todo mundo acha, e os negros tambem, que a pele clara e prova de boa qualidade. Todo mundo, nao: Ruth Landes, antrop6loga norteamericana que vern ao Brasil em 1938, descobre na Bahia o orgulho da negritude nas mulheres dos templos africanos.

Nesses templos sao quase sempre mulheres, sacerdotisas negras, que recebem em seus corpos os deuses vindos da Africa. Resplandecentes e redondas como balas de canhao, oferecem aos deuses seus corpos amplos, que parecem casas onde da prazer chegar e ficar. Nelas entram os deuses, e nelas dan9am. Das maos das sacerdotisas possuidas o povo recebe animo e consolo; e de suas bocas escuta as vozes do destine.

As sacerdotisas negras da Bahia aceitam amantes, nao maridos. 0 casamento da prestigio, mas tira a liberdade e a alegria. Nenhuma se interessa em formalizar o casamento frente ao padre ou ao juiz: nenhuma quer ser esposada esposa, senhora fulano. Cabe9a erguida lilnguido balan9ar: as sacerdotisas se movem como rainhas da Cria9ao. Elas condenam seus homens ao incomparavel tormento de sentir cillines dos deuses". (Eduardo Galeano, 1985)

Esclarecemos que o roteiro apresentado e uma sintese dos diversos autores consultados. Destacamos, entre outros, Antonio Monteiro, Clovis Moura, Eduardo Galeano, Jefferson BaceUar, Juana Elbein , Joao Jose Reis, JUlio Braga, Katia Mattoso, Maria Helena Machado, Maria Stella de Azevedo Santos, Nina Rodrigues, Pierre Verger, Suzane Langer, Renato da Silveira, Roger Bastide, R. Slenes, Ruth Landes, Vivaldo Costa Lima.

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For~a~ rrranse e Paixao Projeto ALFORRIA 0 que Rui Barbosa nao queimou ...

As Mulheres dos Deuses: forca,> ' Transe e Paixao

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Foiografia Gildo Lima !! Mulhe.te.!! do!! De.u!!e.!! For<;a, 'Transe e Paixao

Ficha tecnica Rotciro

Ueral: Carlos Ram6n I Licia Morais 0 Projeto Alfunia pretende, rn~diante pesquisas hist6ricas e 0. PnJiogo do Simholico Uiu:yilo Corcografka: Licia Morais culturais, resgatar alguns fatos ~ como a presen~a da mulher negra na Prenaracfio TCcnica: Elisio Pita hist6ria das lutas e da resistCncia a escravidao dando"lhes um l. As scmcnt<·s da rcsistCndn e Roteiro: Carlos Rambn tratamento distinto dos usuais nos trahalhos de km

(J c-;petAculn procura dat visibilidade !icas da ativHlade feminina Ava Avacy, CC!ia Carvalho, negra em determinada 6poc-1 do Brasil A referi'ncia principal (' I .ui.ta is

Neste trahalho prett'nde- s~· fazer, a partir dos pequcnus rcgistros -f. Pcla ,\lfonia de ccnografia c figurino: 1. Cunha. em:ontrados na bi!,Jiografia sol)n~ us rH.·gros na Bahia, ttmn upresentw;ilo Renlita):ilo c montagcm do n:m1rio- \V. Eloi Ygas. da vida e do papet das mu!hert'S uegras, niio apcnas no seu quotidiano, no Rote!rn musical: Carlos Rmn<'Hl si!Cncio do dia a dia, mas tmnbt?m enqunnto sacerdotisns, guardiil.s da 5. Fore; a, Transe c Paido fon;a, do saber t' do podcr dos orix1ls. Da sua partlcipayao na resistCncia da Africa rrcriada dos quilombo~, quando fomeciam a retagwuda eo t a!wlos t: maqu1agem: Ver6nica Ruggeri. apoio a seus guerreiros, semcando a vida e os alimentos. Dctentoras de 6. Mulhcrcs 1\ilttf

Ounu;!\odo t'i(lCIAculo: 45 minutos

Assessoria Pedag<')gica: Jaci Menezes. 0 «>!•im ¥'""""""~ ' ui"l 1!1>101~ d~ ~~ui10 M t!i\"lM(l~ OUI<\Il)!. <:\>1\lull!tiiOI lkii>X~h"'' tttlf. Anl Momoim, C!G>i< Mo~m~. Ed.,.I.Rlo (hi"""<>, Jolfm1m lb,dlo•. lu>•. NiM fuxki!Jil"', Non• \'"'*"'' Si,...,< tq<'<, R>mi>l~ do SohCmt..Urm>, Y«<•!'e~Wl 0 que H.ut Barbosa nfln qucimou ... 0 que Rui Barbosa niio queimou ....

As Mulheres dos Deuses: for~a, Transe e Paixao

Alguns comentarios e depoimentos: Curtissiinas DAS DEUSAS! Mulheres dos Deuses: Impecavel

Espetaculo de dan<;a-teatro, As Mulheres dos Deuses - Forca, Transe e Paixiio fez uma apresenta9iio (mica, impecavel, anteontem a noite, no Espa9o Xis. Fruto do Projeto Alforria, o espetaculo mostra a participayao da mulher na hist6ria da resistencia a escravidao. Urn roteiro musical condizente com a proposta do espetaculo e urn verdadeiro show das bailarinas (JL) A TARDE,Caderno 2. 1 llll/!998

As Mulheres dos deuses jogou com minha emoyao logo na estrada da sala de espetaculos, onde a ambientayao cenica me fez esquecer qualquer expectativa e me envolveu no clima do espetaculo que ainda viria. A partir dai, fui levado aos poucos a deixar a razao e a me transformar nem ser que so via, ouvia e sentia.

Falar da historia das mulheres afro-brasileiras nos traz a ideia de maternidade, coragem, luta, for9a, fe, dan9a, ... enfim, urn tema que e absolutamente fascinante. Licia e Ramon conseguiram levar estas ideias para cena de maneira criativa, inteligente e acima de tudo poetica. E e esta poesia que nos tira da razao e nos leva a viajar junto com as bailarinas (que alias vi vern o trabalho intensamente, dans;ando e interpretando com qualidade, prazer e desenvoltura) pelo mundo dessas mulheres que fizeram grande parte de nossa historia.

Quando percebi que o espetaculo tinha acabado, ou melhor, que tinha acordado daquele sonho intenso, a razao me reportou a minha expectativa e a conc!usao foi reconfortante: a de que Licia extraiu o melhor de Pina Bausch, criando uma linguagem propria de dan9a-teatro, obedecendo a historia dos nossos movimentos, quero dizer, a historia dos movimentos, quero dizer, a historia dos movimentos da dan9a na Bahia. "As Mu!heres dos Deuses" e urn grande trabalho de pesquisa e urn delicioso presente para o publico ... Antrifo Ribeiro Sanches Neto Departamento I- E.-.cola de Danya da L:PR--\outubro:97 Projeto

0 que Rui Barbosa niio queimou.... Curtfssiinas Mulheres dos Deuses: belo trabalho

A estreia do espetaculo As Mulheres dos Deuses, ( ... ) encantou a plateia com a releitura cenica da pesquisa realizada, dentro do Projeto Alforria, sobre as mulheres negras que recebiam entidades, deixando que os deuses falassem atraves delas com os homens. Urn belo trabalho, em todos os sentidos (KB) A TARDE, Cademo2, 17/09/1998

"Muitos dos projelos recebidos pela Fundacao Cultural Palmares apresentam qualidade impar, alem de atenderem ao objetivo de dar visibilidade a vertente negra da cultura brasileira. Este e o caso do projeto para a realiza<;ao do espelaculo "As Mulheres dos Deuses: For<;a, Transe e Paixao" proposta teatral elaborada a partir do projeto "Aiforria: 0 que Rui Barbosa nao queimou" . Trata-se de proposta da maior relevancia, onde variados aspectos da heran<;a cultural afro­ brasileiros sao retratados". Maria Lucia Ferreira Verdi. Fundayao Cultural Palmar~. Brasilia, 23/07:1997

0 ZOOM DA SEJliA1YA Concorrido ZOOM3 Fruto do Projeto Alj()rria, o espetaculo As Mulheres dos Deuses ... agradou em cheio ao publico. Com dramaturgia e roteiro de Carlos Ramon, o espetaculo mostrou que simplicidade e competencia formam mna boa dupla. Jose Lago A TARDE, Caderno 2, 16111!1996 Projeto

0 que Rui Barbosa niio queimou ....

Universo Magico

0 espetaculo As Mulheres dos Deuses:Fon;a, Transe e Paix{io leva ao palco, uma leitura coreografica da vida e do papel das mulheres negras na sociedade e na religtao.

Na longa e cuidadosa pesquisa que levou il elaborayiio de As Muiheres dos Deuses; For<;a, Transe e Paixiio, o Jornalista Carlos Ramon e a dan9arina Licia Morais descobrirarn urn universo magico, onde as mulheres negras desempenhavam esses papeis, incorporando as mensagens dos deuses, rnanifestadas atraves de seus corpos( ... ).

"As Mulheres dos Deuses" traz o questionarnento sobre racismo a discussiio, mais uma vez, ja que se propoe a resgatar" o que Rui Barbosa niio queimou (. .. )" Licia Morais espera acrescentar mais urn enfoque ao debate: "Creio que o espetaculo contribui para a universalidade do assunto, no sentido de resgatar os motivos de orgulho da cultura negra".

Katia Borges, A A TARDE, Cademo 2. 22/8/97

"As Mulheres dos Deuses e urn espetaculo que envolve nossos sentidos e as nossas emo<;ooes com extrema grandeza e sensibilidade. Este espetaculo nos remete a essencia da hist6ria e cultura africanas no Brasil, demonstrando a peculiaridade de urn povo que tanto sofreu quando aqui chegou. As JVIulheres dos Deuses coloca em cena com muita criatividade, o negro africano atraves da musica (alias uma sele<;:iio muito cuidadosa), do movimento corporal e da dramaturgia, a fon;a dos rituais, as celebra<(oes religiosas, o cotidiano e a festa com muita propriedade atraves de 08 mulheres dan<;arinas. A estrutura coreografica fluir e foge da tradicional conven<;iio de urn espetaculo de dan<;a, !igando cenas de urn passado com urn sabor contemporaneo e sofisticado.

Prof. Dr• Suzana Martins Escola de DanQa da UFBA. lO/l0/1997 ufhete~ do~ For~a, Transe e Paixao De 02 a 25 de setembro de Quinta a Sabado as 21 horas. T catrc CabaJJcrcs ~c Santiasc (No Rio Vermelho: Bairro de lemanja, dos Artistas e das Artes)

Bahia 1999 Espetaculo

a for~a sabado, 11/9/1999 Caderno2 ~ 3

I I Rainhas da crias;ao Espetaculo de da.~9a-teatro, em cartaz no teatro Caballeros de Santiago, mostra a for;;a da mulher neg-ra na luta

quisa his16ric:t em tome d:.; tem~tica da mulher 0 b:'isic 6 Ln<: \12.~

espetikulo As I'>fulheres dos mae uma das rrm!he""' :~l~ie :-cve:en­ Deuses e resultado das arivldu­ ciadas ,;:omo slmhJl; de :m;; c ;e~is- O~ des acadGmicas de pesquisa do ti:ncia. 0 rc~uimGc- 0 um espe;;;~;;;p projew Aiforria. que pretende resgatar que prctende mest.n.r ,, de~..ompcnhv fatos como a presenqa da mulher negra das muihercs nq;m~ :w :.La<;~Jia oe na hist6ria das lutas e dn resistCncia il. es- enqtnnw s;::.::;:rc:o:h;to_ gt adEh J:; for<;:ii. do ~aber ,; do xis. As Jiuihcres des a p:11-ticipw;:Uo dcss;;;;, mc;lheres m.1. ]u­ ta pda liberdade. quando hmeciam a retag:uardu t o :rpuw ::us g;wrrc1~ ros, e como de1tiltD

sulda~. o povo recebc $OlD; de su:h bocas. ;:-~cuu as ,.,. zes do destine" sinte\i;:J Edu;;.do Galeano. i\1ulheres dos Deuses

1> Firiba Tecnica cravidiio. dando-!be urn trata.tnento dlfe­ renciado do usual. trabalho coreografico, que teve a 0 Onde: Tcatro Cahaikrns de S2n1i~;;o pa.'iicipayiio ativa da.s danfatinas, deu-se Quiinda: De quinta u <.k>i1\iili:"· iJ.s a partir de urn processo de pergunta-res­ 2! twra~. ;:,10 <' '" tos. Simone Lisett\ posw. sobre assumos relacionado~ a pes- lngresso: RS !OJ}(; c RS -~.{_11) uncn. Dan({a-teatro As Mulheres dos Deuses fica em cartaz no Teatro Caballeros de Santiago 'As Mulheres Deuses'tem

As :Ylulheres des Deu-

rante dois anos com Pina Bausch, no Tanztheater Alemanha. 0

negra na histOria das lutas e brasileira, atrav2s de inter- re;:;1St2ncia 8. escravid:J.o- dan­ do-lhes um tratamento dis­ tinto dos usuai;:; r:o5 trabalhos de temitica afn>brasileira, e

rais, resgata:r alguns fatos­ sr,s'' procura dar visibilidade como a presenya da muL'l.e-r a vertente negra da cultura 4 ~ L&I

a pn:sem;a da mulher negra tn":;r;a Ja.:-; Luta;:; e resist8ncia a escra­ dcmdo urn tDtamento disrinto dos Rio Vermetho. de- nu;; F abalhos :~obre o rema afro-

sa e o roteiro ;:;Jc do JrluLcnsw Ctr)J:erJtinc Carlos Rru exa- dois anos no Tanztheater simb6licas da pcnturpcc~zto mu- na Alemanha. 0 trabalho B Iher negra na hist6ria da resizctenc:ia voltado pan e adultos interessa­ siienciosa para da liberdade. dos na pe:SCjUtS:l histOric a e na tern Uric:: atravts da narratiYa simb6lica do gesto, da Iiberdade. movimento e seus mecanismos rituals, 0 -·As !v'fulheres dos Deuses" e resu!tado espcctacctlo tem de 50 rninutos das ati'/idades acad~micas No denco: G~lia Ca.,..\:aJho, ha- do Alforrla. Com P''"l''""' bet Oii";eira, Nzklia ~Iontanhas, !{()quttje!u Santos, Slrmme Lisete e '£vitu--iLza Oliveira, For~a., Transe e Paixao 1 de Quinta a Sabado as 21 horas. Tcatro Pclourit1HO SESC- SENAC

Bahia 1999 Dos deuses

/ olta a cartaz, a partir de hoje, no teatro Pelourinho Sesc/Senac, o born espetaculo As i'v!ulheres dos Deu­ ses, que mescla dan<,;a e'teatro para exi­ bir o belo universo das sacerdotisas ne­ gras da religiao afro-brasileira. Resulta­ do das pesquisas do projeto Alforria, o espetaculo tern coreografia de Lfcia Morais, roteiro de Carlos Ramon e fica em cartaz, de quinta a sabado, as 21 ras, ate 6 de fevereiro (Luis La.rserre

Salvador • Qninta-feira • 21/1/1999 0 espetitculo de teatro-danya '<4s mulheres dos deuses' fica em · eartaz de quinta a sdbado, .as 21 h, no · TeatroPelourinho Sesc!Senac

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icia Moraes {46) garante que nao QDESAFIO DE esta preparando uma versao da L"'danya~ do alemao doido. Discipula UClA MORAES da genial core6grafa Pina Bausch DANCA-TEATRO AltMA (57)< ela vai implantar em Sa!vador o que aprendeu com a mestra alema. COM,JE!TO BRASilEIRO Sua id8ia e adaotar os conceitos da danya~teatro' a cultura brasileira.

ESTA ~ t PARTE INTEGRAm'E OA REVJST~follt~-E£ _ A SOMEm'E NOESTADO EJA ' s Mulheres dos Deuses For~a, Transe e Paixao e n n"l 20 L:?sp

Bahia 1998 lJAS DfUSAS!

Foto: . ]l!~spetaculo de dan­ <;a-teatro As Mulhe­ res dos Deuses - l'orfa, Transe e Paixlio fez urn apre­ senta9i'io (mica, im­ pecavel, anteontem a noite, no Espa9o Xis. do Proje­ da Uneb, o espetaculo mostra a participa­ <;ao da mulher na hist6ria da resisten­ cia aescravidi'io. roteiro musical con­ dizente com a proposta do e urn verdadeiro das bailarinas

Salvador • Quarta-feira • 11111/1998 Salvador 0 Segunda-feira 0 16!1111998 For~a" Transe e Paixao

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Forc;a,. Tra:nse e Paixao 02 a 04 de outubro s 21 hs. Teatro do ICBA Salvador Universo magico 0 espetticulo As !vfu!heres dos Deuses: pur darwa-t~~tr<:l des­ Cucla tcma ~ nandormnclo em mnvi­ qunmlo crtuu, tamb;~o sen\· entre os dias 2 e 4 de outubro, uma Ieitura bianos que C>H!diirum ~mn Pina pre foi ~orcografar a .,.;da, tnHJ5por a Bo;l~~h, no Jimz!iu cmno uimm". c~•na. 0 ~onvfno sm•r "'o que lbi Barb c;orc6g:mfall do mou"". ,\~umpanhundo J pohlmi~a qu~ pinncta >c pmiongoo por doio uno~ c cnvolveu Cabare do Ra~a. 1wva pc;;a mcio. ··R~!Omei para SJivador scm J 1cmra! ndo !!Hcno;Ju ck nazcr ':m moddo pil!a· d.: Telllro 0/mlum, Lid~ Mom» cs;x:m bmudtiano. mus d~ rcproc~~ar M coi· acr<'~~n!Jr ma1s um ~nfoque "" dd>atc. Ji~. "'Crdo que" C~Jl<'~"i~u!(> ~omribm p:;.ra foi moma- a umv~rsahJmle do :!$UIIW, no >cnndo do ~\>W gatnr o~ ;nO!iV(>S ,gulho Ua d~ CFBA. 1~ncl:> como ba;e a p.:squbu ~llltum negra", diz. Dcpois cl" tcmpnra­ h!OtOnc t:abillho ~c­ nts dcscobnram mOn. 0 mllsico gu~m p;.l!"~ ~Argcntlna. Lid" canw que, mn um'c"enha,.,m c~c:s cam canycf!nos 00 Exclo de Donyo do UFSA tendo como 111\J ~or.~idad.:>s ~$ptciat>. fuen­

Quinta-terra, 2 de Outubro de t99_7 For~a, Transe e Paixao

Teatro JORGE .fu\1ADO Pi tuba

Bahia ~~~Q 997 n~a no CongressoAfro ''"As Iv1ulheres dos Deuses: Fory

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A!I.'EXO II

TVA OUTRA CABE<;A, TUA OUTRA MEMORIA Oficina de Cria<;ao em Teatro de Dan<;a

"Tua outra cabega, tua outra memoria"

Direyao: Licia Morais Sanchez

Participantes: Alunos de Artes Cenicas

Fontes de Pesquisa:

Impressas: 0 roteiro elaborado por Carlos Ramon, inspirou-se basicamente nos textos da Trilogia de Eduardo Galeano: Memoria do Fogo

Discogn3ficas: Marlui Miranda: IHU I. Todos os sons., IHU 2: Kewer: Rezar. Brasil I Bresil, Asurini et Arara. Cocora-Radio France. France,1995/ Anna Maria Kiefper, Anima Ensembre. Teatro do Descobrimento.- Memoria Musical Brasileira. Brasil. I Lenine. Na pressao. Brasil. /Nande Reko Arandu. Memoria Viva Guarani. Brasil. /Glauber Rocha e Sergio Ricardo. Dios e Diabo na Terra do Sol. Brasil./ Maria Lucia Godoy. Villa Lobos. Brasil. I Mehinaku. Message Fron Amazon. D;oleto Latin America Documentary. Sao Paulo. 2000.

Filmes e Videos: Silvio Back.: Republica Guarani.J982 I Zelito Viana: Terra dos indios. 1979/ Roland Joffe: A Missao. 1986 I Hector Babenco: Brincando nos Campos de Senhor. 1991/ Luis Alberto Pereira: Hans Staden. 2000.

Local: Departamento de Artes Cenicas- Instituto de Artes -UNICPu\11'

2000 Do relogio de sol do convento de Sao Franscico, uma lugubre inscri<;:ao recorda aos caminbantes como a vida e fugaz: cada hora que passa te Jere e a ultima te matani.

Sao palavras escritas em latim. Os escravos negros da Bahia nao entendem latim nem sabem ler. Da Africa trouxeram deuses alegres e brigoes: com eles estao, com eles vao. Quem morre, entra. Soam os tambores para o morto nao se perca e chegue a regiao de Oxahi. La na casa do criador dos criadores, espera por ele sua outra cabe<;:a, a cabes;a imortal. Todos nos temos duas cabes;as e duas memorias. Uma cabe<;:a de barro, que sera po, e outra invulneravel para sempre as mordidas do tempo e da paixao. Uma memoria que a morte mata, bussola que acaba com a viagem, e outra memoria, a memoria coletiva, que vivera enquanto viver a aventura humana no mundo.

Quando o ar do universo se agitou e respirou pela primeira vez, e nasceu o deus dos deuses, nao havia separa<;:iio entre a terra e o ceu. Agora parecem divorciados; mas o ceu e a terra voltam a se unir cada vez que alguem morre, cada vez que alguem nasce e cada vez que alguem nasce e cada vez que alguem recebe os deuses em seu corpo palpitantes. 1

1 Galeano, Eduardo. "Tua outra caber;a, Tua outra memOria" In Memoria do Fogo II:As Caras e as Mascaras, Rio de Janeiro; Nova Franteira, 1985 Foto: Reprodurao/ Cangaceiros com cabe~:·as decepadas. 1938 A mulher e o homem sonhavam que Deus os estava sonhando. Deus os sonhava enquanto cantava e agitava suas maracas, envolvidos em fumaya de tabaco, e se sentia feliz e tambem estremecido pela duvida e o misterio. Os indios makiritare sabem que se Deus sonha com comida, frutifica e dii de comer. Se Deus sonha com a vida, nasce e dii de nascer. A mulher e o homem sonhavam que no sonho de Deus aparecia urn grande ovo brilhante. Dentro do ovo, eles cantavam e danyavam e faziam urn grande alvoroyo, porque estavam loucos de vontade de nascer. Sonhavam que no sonho de Deus a alegria era mais forte que a duvida e o misterio; e Deus, sonhando, os criava, e cantando dizia:

-Quebro este ovo e nasce a mulher e nasce o homem. E juntos viverao e morrerao. Mas nascerao novamente. Nascerao e tomaril.o a morrer e outra vez nascerao. E nunca deixarao de nascer, porque a morte e' mentlra.. 2

2 Galeano, Eduardo, "A Criaqdo''Jn I'vfemoria do Fogo, I: Nascirnentos, Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1983. America, 1600. 0 Pai Primeiro dos guaranis e ergueu-se na escuridao, iluminado pelos reflexos de seu proprio cora9ao, e criou as chamas e a tenue neblina. Criou o amor, e nao tinha a quem da-lo. Criou a fala, mas nao havia quem escutasse. Entao encomendou as divindades que construissem o mundo e que se encarregassem do fogo, da nevoa, da chuva e do vento. E entregou-lhes a musica e as palavras do hino sagrado, para que dessem vida as mulheres e aos homens. Assim o amor fez-se comnnhao, e a fala ganhou vida e o Pai Primeiro redimiu sua solidao. Ele acompanha os homens e as mulheres que caminham e catam: Jri estamos pisando esta terra, Jri estamos pisando esta terra reluzente3

3 Galeano,Eduardo. "0 Falar" ln: Memoria do Fogo l: Os Nascimentos, Rio de Janeiro. Paz e terra, 1983.

Quando do massacre dos Guarani junto aos Sete Povos das Missoes, em Santo Inacio, territ6rio argentino, urn grupo de resistencia ao invasor branco lutou ate o fim. Em dado momento perceberam que seriam aniquilados. EnUio mataram suas esposas e filhos . no final, os poucos lutadores que restavam lan9aram em dire9ao ao abismo, recusando serem presos vivos. Pode parecer suicidio, mais nao e. 0 indio nao conhece essa pnitica dos civilizados. 0 que ele nao aceita e viver sem liberdade . essa e uma condi9ao de que ele nao abdica, ja que a vida sem liberdade contraria toda sua essencia, adultera sua visao do mundo 4 Gruvura.· Theodore de Bty. America Tercia Pars, Frankfurt. 1592 A propria ideia da Terra sem Mal embutida na profecia do triunfo da santidade assemelhava-se, em diversos relatos, ao modelo do paraiso celestial cristao. Os que aderissem a santidade, pregavam os indios, "iriam voar para o ceu". A igreja dos indios -diziam- "era a verdadeira santidade para ir ao ceu, porque a dos cristaos era falsa e nao merecia que nela se acreditasse". "Bebamos o fumo" - exclamou certo mameluco da seita- "que este e o nosso Deus quem vern do Paraiso."5

Aos olhos dos amerindios, a santidade era, antes de tudo, uma cerimonia particular - caraimonhaga ou acaraimonhang-, na qual, por meio de bailes, transes, cfmticos e ingestao de tabaco, os indios encenavam e vivenciavam a mais caro de seus mitos: a busca da Terra sem Mal. 0 rito do caraimonhaga e a peregrina<;ao continuaque deJa resultava permitiam aos tupi, liderados pelos caraibas, sair do mundo dos homens e ingressar no mundo dos ancestrais; abandonar o tempo cotidiano e vivenciar o tempo etemo, o tempo do deuses. 0 caraimonhaga tupi transformava, com efeito, os os homens em deuses6

A transforma<;ao dos mites tupis seria, com efeitos, ainda mais complexa. Alem de adquirir esse novo sentido anticolonialista- e apesar de adquiri-lo - , a propria estrutura das cren<;as indignas absorveria, paradoxalmente, ingredientes da cultura que os nativos almejavam destruir. Ingredientes do catolicismo, simbolos e nomes cristaos, liturgia catolicas, nada disso faltaria a S"antidade de Jaguaripe, como parece nao ter faltado a outras santidades menos documentadas.'

5 Vainfas, Ronalda." Terra Sem }vial, Nova Jerusalrim'' In: A Heresia dos Indios: Catoiicismo e rebeldia no Brasil Colonial, Companhia das Letras, Sao Paulo, 1995. 6 idem idem Gravura: Theodore de Bry, America TerciaPars, Fran~jltrt. 1592 Chegam os mamelucos da regiao de Sao Paulo, ca<;adores de indios, devastadores de terras: avan<;am ao som da caixa, bandeira estendida e ordem militar, troar de guerra, vento de guerra, atraves do Paraguai. Trazem longas cordas com colares para indios que agarrarao e venderao como escravos nas planta<;oes do Brasil. Os mamelucos ou bandeirantes estao hit anos arrasando as missoes dos jesuitas. Das trezes missoes do Guayra, nao sobram mais que pedras e carvao. Novas comunidades evangelicas nasceram do exodo, agua abaixo do Parana; mas os ataques, incessantes, continuam. Nas missiSes, a serpentes encontra os passarinbos reunidos e engordados, militares de indios treinados para o trabalho e a inocencia, sem armas, faceis para o bote. Sob a tutela dos sacerdotes, os guaranis partilham uma vida regulada, sem propriedade privada nem dinbeiro nem pena de morte, sem luxo nem escassez, e caminba para o trabalho ao som de flautas. Nada podem suas flechas de taquara contra os arcabuzes dos mamelucos, que provam os at;os de suas alfanjes fendendo em duas partes as criant;as e que como trofeu levam tiras esfarrapadas de batinas e caravanas de escravos. Mas desta vez urn surpresa espera pelos invasores. 0 rei da Espanba, assustado pela fragilidade desta fronteira, ordenou que entregassem arrnas de fogo aos guaranis. Os mamelucos fogem em debandada. Das casas brotam penachos de fuma<;a e cantos de alaban<;a a Deus. fuma<;a, que nao e de incendio e sim de lareiras, celebra a vit6ria. 8

8 Galeano, E. "As l'vfissOes" In: lvfemoria do Fogo I: Nascimentos, Rio de Janeiro. Paz e terra, 1983. Gravura: Theodor de Bry, America Terc·ia Pars, Frankfurt, 1592 Foto: Joiio Maria. Cwnpinas, 2000. Nas graficas das missiles paraguaias tinham sido feitos alguns dos melhores livros impressos na America colonial. Eram livros religiosos, publicados em lingua guarani, com letras e gravuras que os indios tralhavam em madeira. Nas missiles falava-se o guarani e lia-se o guarani. A parti da expulsao dos jesuitas, e imposta aos indios a lingua castelhana, obrigat6ria e (mica. Ninguem se resigna a ficar mudo e sem memoria. Ninguem obedece 9

9 Galeano, E "Nao deixem que arranquem sua lingua" In: As Caras e as tvH.scaras. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1985. Foto: Joiio Maria. Canwinas. 2000. A igreja dessa aldeia esta de dar pena. 0 padre, recem chegado da Espanha, resolve que Deus nao pode continmorando em casa tao lugubre e carcomida e Poe maos a obra: para levantar paredes solidas, manda que os indios tragam pedras das ruinas dos tempos da idolatria. Nao ha ameaya ou castigo que os faca obedecer. Os indios se negam a mover essas pedras do Iugar onde os avos dos avos adoravam os deuses. Essas pedra nao prometem nada, mas sa!vam do esquecimento10

10 Galeano, E. "As Foryas das Coisas" In: As Caras e as Miscaras, Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1985. Jodo Maria, CampimLY, 2000 0 papa diz que sao como nos

0 papa Paulo III estampa seu nome no selo de chumbo, que mostra as efigies de Sao Pedro e. Sao Paulo, e o amarra em urn pergaminho. Uma nova bula sai do vaticano. Se chama sublimis Deus e descobre que os indios sao seres humanos, dotados de alma e razao. 11

11 Galeano. E. lv1em6ria do Fogo I: Os l'ascimentos. Rio de Janeiro. Paz e terra, 1983. Misericordia e Justi(:a: olema do Santo Ojicio. (Estandarte da Inquisi(:iio Portuguesa.) Foto: Joiio Maria. Camuinas. 2000. Foto: Jean-Pierre EstivaL Fram;a. 1995. Tururin participa, juntamente com todo o seu povo, de um Iento processo de reagrupamento e reconquista de toda a unidade tribal perdida num epis6dio desfechado pela viol8ncia, oportunismo e incompreensao dos civilizados. Foto: Reprodur;iio Maria Mulata, I ia Caingang, a mais valha de sua tribo. Nela reside a mem6ria oral de seu povo. Foto: Repmdurdo Fica zangada a terra, a mae terra, a pachamama, se alguem bebe sem !he oferecer. Quando ela sente muita sede, quebra a botija e derrama o que esta Ia dentro. A ela se oferece a placenta do recem-nascido, enterrando-a entre as flores, para que a crian9a viva; e para que o amor viva, os amantes enterram cachos de cabelos. A deusa terra recolhe nos bra9os os cansados e os maltrapilhos que deJa brotaram, e se abre para lhes dar refugio no fim da viagem. La embaixo da terra, os mortos florescem. 12

12 Galeano, E. "A Pachamama". In: As Caras e as Mascaras. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1985. Foto: Joao /Vfaria. Campinas, 2000 0 tigre azul rompeni o mundo. Outra terra, a que nao tern mal, a que nao tern morte, vai nascer da aniquilaqao desta terra. Ela pede que seja assim. Pede a morte, pede o nascimento, esta terra velha e ofendida. Ela esta cansadissima e, de tanto chorar por dentro, ficou cega. Moribunda, atravessa os dias, lixo do tempo, e quando e noite inspira piedade as estrelas. Logo logo, o Pai Primeiro escutara as suplicas do mundo, terra querendo ser outra, e entao soltara o tigre azul que donne debaixo da sua rede.

Esperando esse memento , os indios guaranis peregrinam pela terra condenada.

Danqam sem parar, cada vez mais !eves, mais voadores, e cantam os cantos sagrados que celebram o proximo nascimento da outra terra.

Buscando o paraiso chegaram ate as costas do mare ate o centro da America. Rodaram selvas e serras e rios, perseguindo a terra nova, a que sera fundada sem velhice nem doen9a nem nada que interrompa a incessante festa de viver. Os cantos anunciam que o milho crescen1 por conta e as flechas voarao sozinhas na floresta; e nao serao necessaries o castigo e o perdao, porque nao haven'! proibi<;:ao nem culpa. 13

13 Galeano,E. "Promessa da America". In: As Caras e as Mascaras. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1985. Flavio de Barros. Canudos: Prisioneiras. Que tem dono a terra? Como assim? Como se h::\ de vender? Como se hade comprar? Se ela nao nos pertence ... N6s somos deJa. Seus filhos somos. Assirn sempre, sempre. Terra viva. Como cria os vermes, assim nos cria. Tem ossos e sangue. Tern Ieite, enos dade marnar. Tern cabelos, pasto, palha, arvores. Ela sabe parir batatas. Faz nascer casas. Gente, faz nascer. Ela cuida de n6s e n6s cuidamos dela. Ela bebe chicha, aceita nosso convite. Filhos seus somos. Como hade vender-se? Como hade cornpra-la? 14

14 Galeano,E. "Dizem os indios" In: fvlemoria do Fogo I. Nascimentos" Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1983.

ANEXOIII

DAN<;:A JORNAL 0 Danya Jornal foi uma experiencia de trabalho desenvolvida por run grupo de artistas, sob a lideranya de Licia Morais e Carlos Ramon na decada de 70. Primeira experiencia na linguagem hoje denominada de Dan9a-Teatro, foi realizado no entendimento de que os artistas tern, como principio: a obrigayao de registrar, atraves de seu trabalho, os acontecimentos politico-sociais da epoca em que vivem - principio ainda pouco explorado na danya contemponillea de entao.

Ainda em periodo pre-anistia de controle e censura da informayao, este trabalho significava fazer urna re-leitura e rnna interpretayao dos fatos do cotidiano apresentados (as vezes apenas nas entrelinhas) nos jornais, estabelecendo layos entre o dan9arino e o homem de imprensa no seu trabalho de levar, diariamente, ao publico, o conhecimento das noticias sobre a vida da popula9ao.

0 trabalho do Danya Jornal se estendeu durante oito anos- 1977 a 1985 e viria a ser o ponto de partida para seus outros trabalhos na linguagem da danya-teatro - como Pagunaima - Musa, Antrop6faga e Mdrtir (I Mostra de Novos Core6grafos, Bale Teatro Castro Alves, Salvador, 1982) e, posteriormente o Projeto Alforria. 0 primeiro trabalho do

Dan9a-Jornal foi o espetaculo Cuando tenga Ia Tierra ou More com a prote~ao dos Orixas, sobre a repressao aos moradores da favela do Marotinho em Salvador.

Apresentado no Concurso Nacional de Danya Contemporanea, durante o Festival de Arte Bahia 77, promovido pela Universidade Federal da Bahia, MEC e FUNARTE, baseava-se em docrnnenta9iio de reportagens, depoimentos e fotos de arquivo do Jornal da Bahia e da Tribuna da Bahia, com proje9ao de slides, falando aos expectadores sobre o dia a dia da cidade. A apresentas:ao recebeu Mens:ao Especial do jUri "pela atualidade da proposta apresentada: o enfoque na dam;a de problemas s6cio-culturais". A premias:ao incentivou o grupo a se aprofundar na sua linha de pesquisa.

Alem de Cuando tenga Ia Tierra de 1977, foram os seguintes os trabalhos do Dans:a Jornal: em 1978, utilizaudo os elementos das colunas sociais, montamos Do Caviar ao Jilii, mostrando os contrastes entre os acontecimentos sociais que envolvem a alta sociedade e aqueles que envolvem a populas:ao carente. No ano de 1979, participamos, a convite do Etsedron, da XV Bienal lnternacional de Sao Paulo, inteipretando Etsedron/Nordeste, daudo vida ao drama da populayiio nordestina no enfrentamento da seca e da pobreza. Em 1981, com o espeticulo Antes que seja tarde, que_falava da urgencia da realizas:ao da justi9a na America Latina, a partir de declaras:ao do papa Joao

3 Paulo II. Apresentado entre outros na33 , Reuniao Annal da Sociedade Brasileira para o

Progresso da Ciencia, em Salvador, e no 1o Festival Nacional das Mulheres nas Artes - Teatro , Sao Paulo, 1982.

Foram ainda montados outros trabalhos pelo Dauya Jornal entre eles: Nos Bailes da Vida, apresentado na Oficina Nacional de Danya Contemporilnea realizada em 1982, no Teatro Castro Alves, Salvador, tratando da !uta dos artistas independentes para mostrar seus trabalhos, discutir as estruturas e continuar lutando; e Do Negro ao Amarelo ... o grito de todos, sobre o processo de redemocratizayao do Brasil e o movimento por eleis:oes realizado ( e frustrado ), saudava a volta do povo brasileiro as ruas usando o verde-amarelo sem constrangimento, e apresentado durante a realiza9ao da VIII Oficina Nacional de Dau-;:a Contemporilnea em agosto de 1985 no Teatro Castro Alves. Correio da Bahia - 2° Caderno - Pagina ~. Recupera~ao. do.verde-amare.lo e tema do Dan~a Jornal no TCA Donegroao amarelo, .. dos Orixas. Em 7U ut.lll~ 0 grito de todos e 0 espe~ zando eJementos dn:i ta.culo que; o grupo colunas socials e · poU­ DanyaJornult.razparaa. ciais, mont.aram Do ca~ Oflcina Naclonal de viar ao jU6, mostrano os Dun~a Contempora.nea cont.rastes entre os ncst..e domint{O, Us 21h, acontecimcntossocials, no Teatro Castro Alves. envolvendo a alta so­ Mantendo nrme a pro­ ciedade e os aconteci~ post.a de registrar os · ment.os socials envo1- acont.ecimcntos politi­ vendo a popuJayAo en­ cos e soc; I a is a l.ra ves da rente. danca cont.ernpor

Saba!lo. 31 de agosto de 1985 OFICINA Encerramento no teatro 'e'naFprac;a

~~o grito de todos"

elementos das colunas sociais/s,ociais, montar-am "Do caviar ao jilOn ~ most.rando OS contrastes entre OS acon­ tecimentos sodais oue envolvem a alta sodedade"e aquelfi"s que envolvem a popu.la~:ao carente. ~ No a no de 79 participaram a" convite do Elsedrom da XV Bienal lnterna­ uma hmm,,ag:em aos prctfi»5im•ais cional de Sao Paulo. Em 81, com o mr1reosa que com seu trabalbu diarlo ~spetilc\llo "Antes que seja Tarde"; '"''i"ltro de nossa hisu.,,;, oaseado na declarac;ao de Joao Paulo II P2trtimd!o regros da a da realizaGao de justi<;a na a ditadura se faz Latina antes que iosse tarde em sua mais :~,;~ii.b" apresentaram-se no TCA e na esjJet.actllo m ostra toda a •, da sBf'C. povo desde o obscurantism a,, o, _ Bailes da Vida" foi o espetaculo heco-sem sa!da ate a redescoherta dd montMilton Nascimento, Pn,te<;ao dos ooi~~~:,~~~~~~~c Buarque outros. GRUFD DA'IICA JOPJ'ii.\L ( BA l

H NOS BAILES DA VIDA H Jesus Paula Fonseca. saf' de Clline e ,;!ll!lt!doPequ~mo e Kaleldosc

"ANTES QUE SEJA TARDE" (ENSA!OS) o Superm.ercado Brasil Produtos Culturais , Mesmo preteridos ps1a organ~ da da revolu'ii!O intl'irllll' como 1lniea sa!da SS?C que lhes ralmw. da E!a restlffiEI, ?m parhl, um p~$31n qosdra de!e,.enquanto: uma O!)l)!o;ijo POlftle<>. mas uma po­ o mi(!rf! que serviu de !ont~ ta Iii P*' ---;­ s1!;W ·de earnmoal. de po!itica da fust.l". sacido feme·. E nmmata' £u :c~_ E sugere Jnvad!r as "cama®s politlcss. a d\Nldar d~ssq pez:wa!, do $(!11 po~n- _; u ?'ill"larmmto naciona!, fal:er dl:l)lut.ados, cfa! _mi:fstlco e re!lgtooo, E os negrm~., ~. govamndores, ?rasldama•. tfm que se j.untar pra avltlr qua os ll'l<< teleolo~ls fuyam usn- do natM:I ~MM; form11~. "ANTES QUE SEJA TARDE" Grupo de darn;a da soltou um batao na festa que encerrou a reunido da SBPC .

Samba e balao 0 encerramento da :ss• reuntao anual da SBPC foi marcado por ini:uneras m.arutesta~Oes paralelas. que oo­ r,neyaram A ta."'de com UIT".a passeata. de grJ.J)OS negros e prossegulram a noite, oom a apresenta~o de g!!...lpos teatrats e a soltura de wn_Q~S.G.. slllQQlizando a luta £.PJltmg g_~~mP~go, __~ fom~~~t_~_alt;a"do c}lsto d_f:' vid#-, A festa. muito anunada. s6 terminou !"'.A madrugeda de hoje, com mill"J.ares de pessoas sambando e bebendo e inUmli'ras ba.."'J"acas a.'!Tl.adas nas imediaQOes do campus da UFBA. A parte otlcial de oolenidade de eneemunento incllliu a prem1acao do.s Cie.nUstas de Ama.n.hi, ag.radeci~ mentos a pessoa.s e enttdades aue colaboraram e discur· """da seeretana rei!lonal • ao· prceldente da BBPC.

1' Caderno Outubro !979

Biena I Sabado, 06 de outubro de IEXPOSI~AO /Vida'------~~------e. arte do Etsedronj na Bienal de Sao uloi A terra. ohomem, o bicho, a vida e a mlseria do Nordeste que o grupo Et­ sedron_ apresentou, -nas bienais ante­ riores~ -como: nova proposta de art..e para o continente, volta este ano para a XV B!enal Internacional de Sao Paulo; Desta vez ao vivo. 0 grupo baiano Dan~a Jornal, pre­ parou um espet'liiio de urn- Etsedron 0 roteiro e de Carlo Ramon San­ ches, com dire<;ao ·e coreografia deLi­ cia.Morais, adeteyos deW. Ygas. -Na dani;a os ballarinos Lfcia Morais, Emina Alfaya. GiovanniLuquini~ Lu­ cia MascareP..has e Elisio Pita. 'salvador, Domingo, de Outubro de 1979 Danga Jornal interpreta o Etsedrom na. Bienal

. - . EneO!IIrando 1!6. Elsedroo a m

Etsedront ·eases· nordestinos1 agrieultoresl camponese;;, bolar s a Via Crucis '" de lOme, suor, seca, desesperi>, !rum!~ e derro!as eles ae tornam ool:ra ""' humanoo, oo meb!r, sobrehumanoo, oo ~de t:r~ ao oo­ fr!menro !mpos~A> e bus<:ar a!r;'tm de. """"· humem e ~ lllais aguemdte uma razlio

Dom Helder diz que a I{freja reunira p~v? vela reforma agrarta

IV BlENA!.. lNTE:RNACiONAL

DANCA JORNAL I 79 0 rnento Contra o Custo a

...,,._ ,..,_ • oOriO>""" M .,.. ..,..,.,'-

,,.,,.,..,...... ,..'"'..,'~""" ,,.,,,,.. ~ lvi '~"''"""'" ••t"'e>o ...... ,..,.-.,"""' ~.;,

DANCA JOI'INAt AGR ... O€CE Cl- >'>ldo MK,KIO / Nil><>n Moe-do> I ClOri..,.,n An<:<•od• IS."''""' It""~· I:::::::~-;::~~J,.,. d• ~>... ,. ~ ;;;·~~.:..~"';:y v~~::; ;,::,';;' ![ ,, .....~ O!oon.""""" • .,., ..;;.,.,, w_ v,., , tu~i.o "''""''/ G•b;,.,, "om .. C.•b• R,,..,n dot do htO do il•"'~tc ... c;.;l S,;• >dmi~lflnthl>' S.ndt• P•<'f•itu•• .u s.;....;.,, 1 a.,..., &noo .l.n<>rd<>N"<~• N""N"' do< .k:>rnoi>e A To•d• <1<>Alb•~ El!.>d<> • c;._ ~· "'"'·S..hi> S/A 1 C"'"'"'" iil'~l~!lil~=~-~~~~ Tril>«,. d• a..n;., I J,.,.l d~ IW>i• I o l'u~ek<"'""' do C&..U lHci•• • Co,..••o #.> l'uro:!..So C~l•u~• do E•"''"" do .i'.>~io- CMAC.

DANCA .JORNAL J 79 "Do Caviar ao JIM"- Ds~s Jomal/1978. JOHNAL DA BAlllA, Salvador, Quarta-feira, 20 de iulho de 1977

··Bahia Foi Pre1niada

no Concurso de Danca. .,

Nu ( 'opcurso NiH:iml;,t! de Llt!il(,'CJ Cuntern· iit'!:ll\10 da 1-.:::;l!ui;; d'-.' 1\lw::d!.::.J. ~· ,\rll·;; i 't'wca, U<.J ;xn·;:.ri mil J:1'11[H!S\ii _oq~~·~se~Jluda eum enfuque :w dant;u l'J"U'LC\ro;;. i\kilHII' dun.:.;armu, o solisl<.! i\!iche! L'Uillt'l!ipor;r.;ea de probiemn;; socio-':u!turais. Hollin:: o meliwr cureografo. 0 argt~nlmu O;;car f\!vJI!,'<'w esp!.!cial .ao gru!--'1 ''Cruzada" !XJI' Ler ArriliZ corn o traUalho 'Uominio Publico" u.s<~ do o recurso'de musicu ao vlvo. A soli,;ta·u­ Hpresentado pc!o grupo Teutro du f\'luvimento, vu Sl·rafim Uividlu u yrt!mio (le' mclhor dan­ cHrigido por Angel Viana. 0 juri foi t:umpo:-;lo por ('~lrincl com a solist.a de Silo Paulo, :Vlara Borbil. Ceiia Gouvea Gerard Gali. Joey de (Jlivein:l, '(l (;r~ipo" com o tnilmltw "lnli.qje;u ll' fol Jo<\u i\ugusto A·wvedo e H.oiand Scbaffm:r t:b:;siflcat.lo em segunJo 1ugar e recel:x:~! !J ( presklcnle J, ----::'•rtefato•"

Urn tex!o de-. Cm_ "& Pastnres da Noite". OS ajuda a engajar a ideia: "Os pobres t<':!m de viver, Ibn de morar em a!gum lugar, ninguCm_ pode permanecer to. do o tempo ao rclento. predsa­ se de urn tetfl e quem tern d!nhein:q;ara pagar a!uguel?''

Os m<:~vfmentn;:; continuam, ; la tierra" Nt "More cnm a pro­ f)s Hwnst>re<>, o medo. Aparece te(,;:io dos orixas", roreografia :;i fCj:lf('MiiQ. Um Unico S<:llh;ta. d,;il!':{r~~s!:n~;d~~gre~:-s: A tensao, a des!ruh;ib dm; em, 10 m!nutoS de Una Marla realiriadO" partind0 dtruh:;ilo e a esperan. eoncorrendo no Concurso t6rias da soc!m!ade da epo<::a. Nacional de Dan~a Contem· -r;a. A vitotia da primeira. E a De urn !ada :nttbi~nda do prlmelro jurnnis da cid " movimento q1w dcsenrp!a ate a

=~~F~::~~~~::;:§:::::~ ~=~;~:c;-c:.::r::;:;:;:~ ~. ~~- ·-- . '"='•· r-~,-- " .--_ ., qUej?lrr!rovisad~S- · ·m;;mPntO rio ;:;Qnh•Hen!ld;~tiE: ·tonlO di~AJ;~·nrara"·comes ate aquele momentR Ca!ad<:>s e Depois clesse rr:ovimentam, os Jimi0r. Pirrrtl1!:' --zi}: · -/~~ire~ird- ·mostra n ..;ll; dir.r~;M · Cnr!os R;un6n !ti ~~gna __ j)arll:dm. E um )."!eS!l!JErt:J ;,-. d!!.!ll;armos _• !in· fon;:a tede ocrip<;;ao tempO l! ~~:i':·~!~;;~r:!:!~:,n:que za(<;lio) estiller esca,darif!s; .S&ra . obseNado o . acompa.iihamento'··.de .. musica. de ~ara;·'<'•• .... · .•... ·• •··. . • Segtind(i .·... !;;ill .esse. h'npaeto e . :outros momertt9JI do .espetacu!o de ldilntica contradl;lio e a meta do trab&lho que e!'lvolva dan­ lfarinos, todos .amado res. lVI,,.,.,. ce Va(l!laU, dirat()r Castro Alves, ao mtmlifell1ter-se n Concurso