UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE – UENF

CENTRO DE CIÊNCIAS DO HOMEM – CCH

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA POLÍTICA - PPGSP

DANIEL PINHEIRO CAETANO DAMASCENO

A VOLTA DOS EXILADOS: DARCY RIBEIRO, E A CULTURA DO POVO-NOVO PARA O 1983-1986.

CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ – 2014 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO – UENF

CENTRO DE CIÊNCIAS DO HOMEM – CCH

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA POLÍTICA - PPGSP

DANIEL PINHEIRO CAETANO DAMASCENO

A VOLTA DOS EXILADOS: DARCY RIBEIRO, LEONEL BRIZOLA E A CULTURA DO POVO-NOVO PARA O RIO DE JANEIRO 1983-1986.

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política, Linha de Pesquisa Cidadania, Instituições Políticas e Gestão Urbano-metropolitana, da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, como requisito parcial para conclusão no curso de Doutorado em Sociologia Política. Orientação: Prof. Dr. Yolanda Lima Lobo.

CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ – 2014 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO – UENF

CENTRO DE CIÊNCIAS DO HOMEM – CCH

PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA POLÍTICA - PPGSP

DANIEL PINHEIRO CAETANO DAMASCENO

A VOLTA DOS EXILADOS: DARCY RIBEIRO, LEONEL BRIZOLA E A CULTURA DO POVO-NOVO PARA O RIO DE JANEIRO 1983-1986.

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política, Linha de Pesquisa Cidadania, Instituições Políticas e Gestão Urbano-metropolitana, da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, como requisito parcial para conclusão no curso de Doutorado em Sociologia Política. Orientação: Prof. Dr. Yolanda Lima Lobo.

APROVADA EM: ______/______/______

BANCA EXAMINADORA

Prof. Drª . Yolanda Lima Lobo – UENF

Prof Dr. Sérgio de Azevedo – UENF

Prof Dr. Hugo Borsani – UENF

Prof. Dr. João Marcelo Ehlert Maia – FGV/CPDOC

Prof. Dr. – Carlos Eugênio Soares de Lemos – UFF Campos dos Goytacazes AGRADECIMENTOS Primeiramente a Deus, por tudo o que sempre fez e faz por minha vida.

À CAPES, pelo financiamento concedido à esta pesquisa.

Aos meus pais, Jonas e Rosangela, pelas palavras de incentivo e tranquilidade nos momentos de dúvida e pelo constante incentivo aos estudos.

Á professora Yolanda Lima Lobo, pela constante orientação que, desde os tempos de graduação buscou despertar em mim a ciência, exigindo concentração, dedicação, afinco e, principalmente, trabalho.

Ao meu irmão e companheiro de turma, Rafael, que dividiu comigo todas as alegrias e incertezas da Pós-Graduação. Não há palavras para descrever o que representou a companhia de um membro da família nos desafios acadêmicos.

À minha esposa, Erika, pelo companheirismo, incentivo e pela renuncia que teve em prol da realização desse trabalho.

Aos professores Sérgio de Azevedo e Hugo Borsani, pela inestimável colaboração no meu crescimento intelectual e institucional.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UENF, que são parte da construção do conhecimento, que sem a partilha nunca é completo.

A Ricardo Cravo Albin, Leonel Kaz e Cascia Frade, por concederem as entrevistas, que foram momentos de profundo aprendizado para mim.

À Fundação Darcy Ribeiro e a seus funcionários, em particular a Ellen Vogas, e ao Memorial Darcy Ribeiro, na Universidade de Brasília, em especial a Thereza Holanda e Margareth Barbosa, pela paciência com que me atenderam. RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo estabelecer uma possível relação entre as ideias do Darcy Ribeiro antropólogo, particularmente em suas obras “O Povo Brasileiro” (1995) e “Os Brasileiros: Teoria do Brasil” (1983), onde discorre sobre a colonização e a (de)formação étnica do Brasil e da(s) cultura(s) de seu povo, com as ações do Darcy político, particularmente a frente do Estado do Rio de Janeiro enquanto homem forte da política cultural idealizada e construída para o Rio de Janeiro durante o primeiro mandato de Leonel Brizola como Governador desse Estado, entre os anos de 1983 e 1986. Para a realização desta pesquisa a principal fonte de pesquisa documental é o Diário Oficial durante o governo Brizola. Em 19 de junho de 1984, Brizola transforma o Diário Oficial, utilizando informações organizadas e formatadas sob o modelo jornalístico. A iniciativa buscou “democratizar a informação” e “tornar a notícia clara, ao alcance de dezenas de milhares de pessoas”. A transformação do Diário Oficial representa um canal oficial de comunicação entre governo e população. Assim sendo, me ocupei da pesquisa dos mais de quatro mil itens do Diário Oficial entre 1984 e 1986. O trabalho conta ainda com entrevistas semi-estruturadas realizadas com pessoas que compuseram a equipe da cultura do PDT. A pesquisa mostra como a política cultural baseada na gênese do pensamento social de Darcy Ribeiro proporcionou uma invasão da cultura popular em espaços eruditos, quebrando a sacralidade de espaços culturais no Rio de Janeiro, causando polêmica nos campos culturais e midiáticos.

Palavras-chave : Darcy Ribeiro; Diário Oficial; Cultura; Popular; Erudito. ABSTRACT This thesis aims to establish a possible relationship between the anthropologist Darcy Ribeiro 's ideas , particularly in " The Brazilian People " (1995 ) and " The Brazilians : Theory of Brazil " (1983 ) , which discusses the colonization and racial formation in Brazil and the culture of its people , with the actions of the political Darcy , particularly ahead of the State of Rio de Janeiro as a strongman of cultural policy conceived and built for the Rio de Janeiro during 's first term as Governor Brizola this State , between the years 1983 and 1986 . For this research the main source of documentary research is the Official Gazette. During Brizola government. On June 19, 1984 , Brizola transforms the Official Gazette , using information organized and formatted in journalistic style. The initiative sought to " democratize information " and " make clear news to reach tens of thousands of people." The transformation of the Official Gazette is an official channel of communication between government and population. Therefore , I have dealt with the research of more than four thousand items of the Official Gazette between 1984 and 1986 . The work also includes semi - structured interviews with people who were part of the PDT culture’s team . The Research shows how cultural policy based on the genesis of Darcy Ribeiro’s social thought provided an invasion of popular culture in scholars spaces , breaking the sanctity of cultural venues in Rio de Janeiro , causing controversy in the cultural and media fields

Key-Words : Darcy Ribeiro; Official Diary; Education; Culture; Popular, Scholars. SUMÁRIO

1 – INTRODUÇÃO ...... 08

2- CONSIDERAÇÕES SOBRE A ANÁLISE EMPÍRICO-SOCIOLÓGICA ...... 11

2.1.Entrevistas Exploratórias ...... 18

2.2. Categorias e Conceitos-chaves que dão significado ao material empírico ...... 21

3 - BRIZOLA, DARCY E O TRABALHISMO: REINSERÇÕES NO CENÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO ...... 31

3.1. O Campo Político no Rio de Janeiro e a Efervescência Eleitoral-Midiática do Pleito de 1982...... 44

4 – “ VA PENSIERO”: A POLÍTICA CULTURAL PARA O POVO-NOVO ...... 88

4.1. A Teoria Social no Espaço Político...... 159

5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 180

6 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 185  

1 – INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo estabelecer uma possível relação entre as ideias do Darcy Ribeiro antropólogo, particularmente em suas obras “O Povo Brasileiro” (1995) e “Os Brasileiros: Teoria do Brasil” 1 (1983), onde discorre sobre a colonização e a (de)formação étnica do Brasil e da(s) cultura(s) de seu povo, com as ações do Darcy político, particularmente a frente do Estado do Rio de Janeiro enquanto homem forte da política cultural idealizada e construída para o Rio de Janeiro durante o primeiro mandato de Leonel Brizola como Governador desse Estado, entre os anos de 1983 e 1986. Nesse período, Darcy, enquanto membro e um dos fundadores do Partido Democrático Trabalhista (PDT), ocupou os cargos de Vice-Governador, Secretário de Cultura, Ciência e Tecnologia e Presidente da Comissão Coordenadora do Programa Especial de Educação (PEE). A execução do objetivo principal da pesquisa implica em objetivos secundários que orientam a organização da pesquisa. São esses:

• Observar o processo de construção institucional e ideológica do Partido Democrático Trabalhista (PDT) através de seus documentos de fundação, a Carta de Lisboa e a Carta-Testamento de Getúlio Vargas; • Analisar as estratégias traçadas pelo PDT para vencer o processo eleitoral e alcançar o Governo do Estado no Rio de Janeiro em 1982; • Responder, em que medida, as políticas culturais implementadas por Darcy Ribeiro se aproximam do projeto que o mesmo, enquanto antropólogo, acreditou faltar para o Brasil, qual seja, “um claro projeto alternativo de ordenação social, lucidamente formulado, que seja apoiado e adotado como seu pelas grandes maiorias.” (RIBEIRO, 1995, p. 26) • Entender o funcionamento do campo cultural e as estratégias de seus principais atores ao longo do período englobado por esta pesquisa.

A escolha do objeto de investigação surgiu a partir de meu interesse pela trajetória 2 de Darcy Ribeiro enquanto etnólogo-político-educador que teve atuação importante na

 1 Embora a versão publicada date da década de 1980, o livro começou a ser elaborado anteriormente. No prefácio, Darcy afirma que a obra é síntese de pesquisas empreendidas em programas de estudos que dirigiu para o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) e que a primeira versão da obra começou a ser redigida em 1965, em Montevidéu. 2 Ver em Damasceno, Daniel. Darcy Ribeiro e a Formação do Campo Científico no Brasil: Reflexão sobre o Exercício Intelectual de um Etnólogo, 2009 e ao longo deste trabalho.   constituição do campo das Ciências Sociais no Brasil e a manifestação de sua individualidade nos diversos campos em que atuou, em particular, neste trabalho, no campo político. Embora a trajetória política de Darcy Ribeiro seja bastante extensa, ultrapassando o período estudado, a escolha do mesmo se deu pelo acúmulo de funções assumidas por ele no primeiro governo do PDT no Estado do Rio de Janeiro e por ser um momento charneira em sua experiência política no Brasil e no exterior, antes e depois do processo de reabertura democrática no Brasil, fato que permite examinar as ações de um ator já experimentado no campo político frente ao processo de mudança pelo qual passava o país, tanto ideologicamente quanto institucionalmente. Outro fator preponderante para a escolha do recorte temporal e do personagem foi a união de Darcy com Leonel Brizola, personagem que se caracteriza por seu vasto capital político e por sua liderança carismática e capacidade de agregar adesão popular, vide o fato de ter sido o único político brasileiro a governar, através de eleição direta, dois Estados da federação: Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, ressaltando que, no Rio de Janeiro, foi o primeiro Governador eleito pelo voto direto pós 1964.

Muito embora tenha feito uso do acervo do Memorial Darcy Ribeiro, atualmente na Universidade de Brasília, a fonte principal da pesquisa é o Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro no período 1984-1986. Isto porque, a 19 de junho de 1984, o governador Leonel Brizola procedeu uma mudança no formato do Diário Oficial, transformando-o em um veículo jornalístico capaz de estreitar a comunicação entre governo e população, com o objetivo de “democratizar a informação” e “tornar a notícia mais clara ao alcance de dezenas de milhares de pessoas” (DOERJ, 19/06/1984, p.01). Assim, o Diário Oficial embora conserve sua função de órgão registrador dos atos administrativos do governo dela se afasta para se tornar instrumento de divulgação, informação e formador de opinião pública, numa configuração de um jornal diário, com editorial assinado pelo próprio governador Brizola exprimindo a opinião do governo, sob o título “Esclarecendo a População”; com chamadas curtas sobre as notícias principais na primeira página, entre elas, as entrevistas com secretários de estado, e as reportagens e matérias especiais sobre programas de governo. O material coletado nas páginas do Diário Oficial é analisado a partir da Análise de Conteúdo (Laswell, 1948). O trabalho conta ainda com entrevistas exploratórias (Quivy & Campenhoudt, 2003) com testemunhas privilegiadas do objeto de estudo: personagens que compunham o campo   político no período estudado tais como Leonel Kaz, Ricardo Cravo Albin e Cascia Frade.

O trabalho está organizado em quatro capítulos. O primeiro tece considerações sobre a análise empírico-sociológica, revisitando, na teoria social de Darcy, questões-chave que suscitaram esse trabalho e explicita o caminho metodológico escolhido para a construção da pesquisa.

O segundo, Brizola, Darcy e o Trabalhismo: Reinserções no cenário político brasileiro , compreende duas partes: na primeira, aborda-se o retorno de Darcy e Brizola dos exílios a que foram submetidos, focalizando a parceria e as estratégias dos dois para regressar à vida política; a segunda parte versa sobre a candidatura oficial dos grupos políticos e as disputas que marcam o período do pleito eleitoral para o governo do Estado do Rio de Janeiro, no ano de 1982. O capítulo busca esmiuçar os temas debatidos entre os candidatos, as estratégias utilizadas por cada um deles, o que cada candidatura representava política e ideologicamente, através de publicações na mídia. Examino o período eleitoral, sob o viés jornalístico, para identificar o posicionamento político de alguns veículos de imprensa na tentativa de formação da opinião pública. A análise detalhada deste período e das propostas políticas do grupo Brizola-Darcy configuram o nascedouro da agenda política construída pelas lideranças do PDT para o Rio de Janeiro e os planos para executá-las ao longo do mandato.

O terceiro capítulo, Va Pensiero: A Política Cultural para o Povo-Novo, trata da questão da cultura e do patrimônio histórico do Rio de Janeiro, no período compreendido por esse estudo, analisando a atuação de Darcy e sua equipe no campo cultural em questão, bem como uma possível relação das políticas culturais e a teoria social de Darcy. O governo de Brizola-Darcy se caracterizou, também, por voltar suas atenções para os aspectos naturais, culturais e artísticos dos diversos cenários do Rio de Janeiro. A política de tombamentos e salvação teve como objetivo principal restaurar ou manter os espaços que caracterizavam o Rio de Janeiro em sua peculiaridade, prezando assim, o patrimônio histórico do Estado, e foi desenvolvida, sobretudo, através do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC). Outro aspecto que marca a política cultural do governo Brizola é a preocupação com a dessacralização e democratização da cultura, princípio que norteia as ações culturais do período.

O quarto capítulo abrange as considerações finais acerca do trabalho. 



2 – CONSIDERAÇÕES SOBRE A ANÁLISE EMPÍRICO-SOCIOLÓGICA

A fonte principal desta pesquisa documental é o Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, no período1983-1986. Em 19 de junho de 1984, o Governador Brizola transforma o Diário Oficial em um periódico, no qual se registram, diariamente, acontecimentos, impressões, notícias, entrevistas, comentários, anúncios, informações organizadas e formatadas sob o modelo jornalístico para o público em geral. A iniciativa buscou “democratizar a informação” e “tornar a notícia clara, ao alcance de dezenas de milhares de pessoas”. A transformação do Diário Oficial em periódico tinha, pois, o objetivo de estabelecer um canal oficial de comunicação entre governo e população. Um ano depois, o editor do Diário Oficial ressaltaria o “compromisso resgatado”, compromisso esse que era o “de oferecer à opinião pública informações sobre o que faz o Governo do Estado, e o que pretende fazer”.

Assim sendo, ocupei-me de mais de quatro mil páginas jornalísticas do Diário Oficial entre 1984 e 1986, entre chamadas jornalísticas, editoriais assinados por Leonel Brizola sob o título “Esclarecendo a população”, onde o Governador se dirige ao povo escrevendo sobre assuntos que considerou importantes, além de entrevistas concedidas pelo próprio Brizola. Esse tipo de publicação está envolto em poder, uma vez que publica o que é considerado importante e prioritário pelo próprio governo, permitindo ao pesquisador apreender o pensamento de Darcy, Brizola e a equipe do PDT.

A pesquisa feita através do Diário Oficial concede-lhe um caráter original por tratar-se de um estudo de fontes primárias pouco exploradas entre os pesquisadores que se dedicaram ao tema objeto desse estudo. A etnografia das páginas jornalísticas do Diário Oficial me permitiu cumprir o objetivo principal da pesquisa: examinar a agenda política Darcy Ribeiro para o Rio de Janeiro entre 1983-1986.

Para alcançar os objetivos secundários da pesquisa, fiz uso, ainda, de outras fontes, dentre as quais destaco o acervo digital do Jornal do Brasil e, notadamente, as fontes que compõem o acervo Darcy Ribeiro. Trata-se de um arquivo particular. Segundo Castro (2008), um arquivo particular distingue-se por sua natureza peculiar, por sua força ativa que estabelece e conserva a ordem natural de tudo quanto existiu de importante que mereceu ser guardado como memória. Segundo Castro: 



Forte capital simbólico de que se investia a documentação. Tal fato era confirmado tanto pelas demandas de consulta externa quanto pela importância que o arquivo tinha como instrumento de captação de recursos. Neste sentido, o arquivo de Darcy Ribeiro conferia prestígio e legitimidade à instituição depositária, fenômeno recorrente em instituições arquivísticas consagradas ao “legado” de um personagem. (...) O que era apresentado como arquivo pessoal de Darcy resultava, na realidade, da reunião de documentos provenientes de diferentes espaços por ele ocupados – apartamento residencial no Rio, casa em Maricá, escritório político em Brasília – mas também de documentação que se encontrava sob a guarda de outras pessoas (a ex- mulher, um irmão, vários dirigentes e funcionários da Fundação). Estes, supostamente, teriam guardado “coisas do Darcy”, inclusive documentos produzidos já após a sua morte. A reunião destes documentos num mesmo local e como parte de um mesmo “arquivo pessoal” reforçava a idéia de “totalidade” do arquivo, também associada à construção da identidade social do próprio titular. Neste caso, prevalecia sobre um princípio arquivístico geral aquilo que os dirigentes institucionais identificavam como um suposto caráter “excepcional” e “genial” do titular, caracterizações também marcantes da imagem de Darcy Ribeiro (CASTRO, 2008, p. 43-44)

Procuro, pois, desenvolver a pesquisa a partir de análise documental que, de acordo com Cellard apud Sá-Silva (2009), “favorece a observação do processo de maturação ou de evolução de indivíduos, grupos, conceitos, conhecimentos, comportamentos, mentalidades, práticas, entre outros.” (p. 02). Ainda na perspectiva desses autores, na análise documental é de extrema importância o exame do “contexto histórico no qual foi produzido o documento, o universo sócio-político do autor e daqueles a quem foi destinado, seja qual tenha sido a época em que o texto foi escrito.” (p. 08).

Saint-Georges (1997) define a pesquisa documental enquanto método, parte integrante da heurística da investigação, de recolha e verificação de dados que visa o acesso às fontes pertinentes, escritas ou não. Ainda de acordo com este autor, os documentos são “verdadeiros factos de sociedade” (p.17).

Burgess (1997) trata os documentos enquanto instrumento de definição de categorias sociais e de explanação de processos sociais. Sob essa perspectiva, é função do investigador adotar uma postura sociológica crítica frente aos documentos, sem naturalizá-los ou aceitá-los de imediato. Os documentos não são neutros ou alheios à realidade social. De acordo com Saint-Georges (1997) “o que os indivíduos e grupos exprimem é o reflexo da sua situação social, dos seus pólos de interesse, da sua vontade de afirmarem o poder, do seu sistema de crenças, dos seus conhecimentos” (p. 41). 



Ainda nessa perspectiva do documento enquanto fonte de expressão e reprodução do poder, Le Goff atesta que: As condições de produção do documento devem ser minuciosamente estudadas. As estruturas do poder de uma sociedade compreendem o poder das categorias sociais e dos grupos dominantes ao deixarem, voluntariamente ou não, testemunhos suscetíveis de orientar a história num ou noutro sentido; o poder sobre a memória futura, o poder de perpetuação deve ser reconhecido e desmontado pelo historiador. Nenhum documento é inocente. Deve ser analisado. Todo o documento é um monumento que deve ser desestruturado, desmontado. (LE GOFF, 2003, p. 111) Para Cellard (2008), “uma pessoa que deseja empreender uma pesquisa documental deve, com o objetivo de constituir um corpus satisfatório, esgotar todas as pistas capazes de lhe fornecer informações interessantes.” (p.298). No entanto é preciso salientar que os documentos não falam por si só. Tão importante quanto a fonte em si, são as problematizações, os questionamentos que o pesquisador levanta a partir dos documentos. De acordo com Goldenberg apud Sá-Silva (2009), “o que determina como trabalhar é o problema que se quer trabalhar: só se escolhe o caminho quando se sabe aonde quer chegar” (p.02). Esse fato torna o documento não apenas uma fonte importante, mas um complemento do pesquisador em si. O pesquisador precisa permitir que o documento, enquanto transmissor de cultura, intencionalidade e ideologia, lhe abra novas perguntas para a pesquisa. A pesquisa documental volta-se para a construção ou reinterpretação de teorias para reinterpretar as questões sociais e políticas contidas nos documentos. Esta função é o que confere sentido à pesquisa documental. Por isso, para Foucault (apud Le Goff, 2003) os problemas da história se resumem no questionar dos documentos. De acordo com Le Goff:

O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade. Todo documento é mentira. (LE GOFF, 2003, p. 538) É preciso, portanto, redarguir os documentos em relação com a contextualização histórica, social e cultural para apreender os grupos sociais envolvidos no contexto, suas particularidades, sua organização e estratégias políticas, posto que todo documento foi produzido por um ator, inserido politicamente em algum grupo social, direcionado para algum grupo ou indivíduo em particular e mediante a uma temporalidade também dotada de sentido social e político. Cellard (2008) classifica como “bem difícil” a 

 compreensão dos “interesses, (confessos ou não!) de um texto, quando se ignora tudo sobre aquele ou aqueles que se manifestam, suas razões e as daqueles a quem se dirigem.” (p. 300).

Saint-Georges (1997) apresenta ainda, três etapas que constituem um processo de aferição de confiança do conteúdo do documento. A primeira etapa é denominada por Georges de crítica interna e consiste numa leitura atenta e interpretativa do documento. A segunda etapa, conhecida por crítica externa, trata dos aspectos materiais do documento. A terceira e última etapa, a crítica do testemunho, consiste confrontar as informações documentais com outros tipos de informação, a fim de confirmar ou refutar o documento.

A partir dessa concepção de pesquisa e da peculiaridade que caracteriza o arquivo de Darcy Ribeiro, utilizarei documentos guardados e selecionados pelo próprio Darcy, que se encontram sob a guarda do Memorial 3 Darcy Ribeiro, localizado atualmente na Universidade de Brasília (UNB). Por ter permanecido guardado em caixas por longo período, este material conserva ainda hoje suas características originais. Faço uso, portanto, de fontes primárias – documentos pessoais, correspondências, dossiês, projetos, material de campanha eleitoral, solicitações de financiamento e convênios, ofícios, decretos, relatórios – e de fontes secundárias – jornais da época, entrevistas concedidas por Darcy Ribeiro e publicações sobre o tema de pesquisa – além de fontes audiovisuais como gravações feitas por Darcy sobre assuntos acadêmicos e políticos, documentários e coletânea de entrevistas por ele concedidas em diferentes momentos para distintos órgãos (Televisão, Jornais, entidades de classe como União Nacional de Estudantes, Sindicatos).

O recorte do material pesquisado deu-se primeiramente através do quesito temporal, envolvendo o período compreendido por esta pesquisa (1982-1986), e através dos assuntos que constituem a agenda política de Darcy e Brizola para o Rio de Janeiro. Assim sendo, busco trabalhar com os documentos que envolvem a formação do PDT, o período eleitoral que conduziu Darcy e Brizola ao poder e os itens que, prioritariamente

 3 Ver mais sobre o Memorial Darcy Ribeiro em http://www.cultura.gov.br/site/2010/12/06/memorial-darcy-ribeiro-2/ acessado em 19/12/2011.  

 constituíram a agenda política governista, quais sejam, Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia e Patrimônio Histórico-Cultural.

Como proceder a leitura sociológica das fontes? As análises de textos, da linguagem como meio de comunicação, no âmbito das ciências sociais, aparecem com intensidade e de modo sistemático a partir da década de 1930, notadamente na sociologia alemã – nos trabalhos de Walter Benjamim e Theodor Adorno – e, nos Estados Unidos, com o pesquisador Harold Lasswell. Lasswell desenvolveu um método quantitativo que 4 denominou Content analysis (análise de conteúdo), no qual identifica um certo número de fatores ou temas nos textos de que se ocupava, “para tentar enumerar os temas individuais de que um tal texto se constituía sob medida para averiguar qual o peso relativo correspondente aos temas individuais”. (ADORNO, 2008, p.217-218)

O método desenvolvido por Lasswell provocou intenso debate no mundo acadêmico, dentro e fora dos Estados Unidos, principalmente na Alemanha. Adorno dedicou parte do seu curso Introdução à Sociologia a explorar as repercussões suscitadas pelo método de Lasswell no âmbito das ciências sociais. Subentende-se, afirma Adorno, que o método quantitativo de Lasswell conjuga aspectos qualitativos, na medida em que as diferentes categorias que são enumeradas em um texto específico são, antes de tudo, de tipo qualitativo: “não é possível quantificar nada que não tenhamos antes determinado também qualitativamente.” Este, diz Adorno, “é um princípio de todo problema metodológico da sociologia acerca do qual é preciso ter certeza.” (ibidem, p. 219) Adorno ressalta que “o conteúdo social de formações organizadas e diferenciadas em si mesmas só pode ser apreendido mediante a análise de seu sentido, em vez de se vincular de algum modo esse sentido de antemão ao seu efeito, que possivelmente nada tem a ver com o conteúdo em si.” (ibidem) Conclui afirmando que o que é sociologicamente relevante é o conteúdo. E este, diz, somente “é apreendido por uma análise imanente, a qual, entretanto, deve-se acrescentar também a análise dos efeitos, ou seja, a descoberta dos efeitos de tais formações.”

Uso o modo de proceder da Content analysis de Lasswell, tal como o compreende Adorno, para ler o conteúdo social da base empírica deste trabalho. De acordo com Alonso, Volkens e Gómez (2012), a análise de conteúdo investiga os meios de  4 Ver do autor Language of Politics in quantitative Semantics . Apud ADORNO, T. Introdução à Sociologia. Editora UNESP, 2008, p. 217-220.  

 comunicação e a comunicação política. Essa metodologia de pesquisa tem por objetivo interpretar de maneira sistematizada os textos publicados por veículos midiáticos de massa, com o intuito de obter dados empíricos que permitam confirmar ou refutar hipóteses científicas. De acordo com os autores, esse método de pesquisa precisa ser objetivo, sistemático e geral: objetivo pelas regras e procedimentos observadas em cada etapa, sistemático pela necessidade de que essas regras sejam sempre aplicadas e geral pela relevância teórica.

Os autores ressaltam que a metodologia de análise de conteúdo, invariavelmente remete à famosa frase de Laswell (1948): “quem disse o que? Através de qual canal? A quem? Com que efeito?” e que essa frase focaliza os cinco básicos elementos de comunicação: o emissor, a mensagem, o canal, o receptor e o efeito da comunicação; que, consequentemente, aborda cinco áreas da investigação de comunicação: por que se criaram os textos disponíveis? O que significam e para quem? E o que modificou entre as condições antecedentes e as resultantes. Estes aspectos são denominados por Laswell de contexto do texto.

No que diz respeito à análise de textos políticos, os principais pontos de interesse são: a análise interna do texto, as causas do texto e os efeitos do texto. A análise interna se ocupa das seguintes questões: 1) que posições tomam os autores do texto? 2) que importância tem essas posições para os autores?

A codificação utilizada nesse trabalho será manual, devido a complexidade de informações publicadas: compõem a amostra 1431 chamadas culturais publicadas ao longo do período estudado nas mais de 4 mil páginas jornalísticas do Diário Oficial. A amostra possui, portanto, uma subjetividade cujo significado possivelmente escaparia à codificação informatizada.

Toda a codificação necessita dos esquemas de classificação, que são categorias conceituais criadas pelo pesquisador e que precisam refletir de forma adequada a pergunta de investigação. Segundo Berelson apud Alonso, Volkens e Gómez (2012, p. 23), “a análise de conteúdo triunfa ou fracassa por suas categorias”. O pesquisador precisa ainda definir as variáveis de cada categoria e quais os indicadores definem o pertencimento de uma informação a uma categoria. A elaboração dos esquemas de classificação é um trabalho minucioso, pois os mesmos precisam abordar todos os  

 aspectos da pergunta de investigação, sem, no entanto, ser por demasiado complexo e expandindo informação ao invés de reduzir, que é o objetivo da análise de conteúdo.

Seis categorias foram criadas para realizar a análise de conteúdo das chamadas culturais do Diário Oficial: erudito no erudito , erudito no popular , popular no popular , popular no erudito , tombamento e outros .

A criação das quatro primeiras categorias foi pensada e tabulada baseando-se na definição de Darcy na Revista do Brasil (1986, p.04) para popular e erudito, sendo o primeiro “as formas livres de expressão cultural das grandes massas” e o segundo “as formas escolásticas, canônicas de expressão cultural”. A classificação entre popular e erudito é fundamental para aproximar ou distanciar os fazimentos culturais de Darcy do projeto que o mesmo, enquanto antropólogo acreditou ser necessário ao Brasil.

Os eventos foram classificados levando em conta o tipo de evento realizado, o local onde foi realizado e o público frequentado, dando uma grande subjetividade e fluidez à tabulação dos dados. Assim, por exemplo, uma hipotética chamada “Ópera no Teatro Municipal”, por envolver música erudita (ópera) num local erudito (teatro), seria englobada na categoria “erudito no erudito”. No entanto, se a Ópera, no Teatro Municipal fosse para alunos da rede pública, a chamada seria classificada na categoria “popular no erudito”, por tratar-se de um público exclusivamente popular adentrando um espaço erudito.

Por erudito, foram classificados espaços como Teatros, Museus, Bibliotecas, Centros Culturais, Associações, Arquivos, o Planetário, Universidades, Galerias, Institutos, etc. Foram classificados como eventos eruditos teatro, poesia, artes plásticas, música clássica, cinema, monografias, fotografia, literatura, filosofia, astronomia, dança coreografada, congressos, seminários, lançamento de livros, política, saraus, etc.

Por popular, fizeram parte da tabulação espaços como parques, praças, metrô, eventos nas ruas, muros, CIEPs e escolas municipais, o Corredor Cultural, Morros e Favelas, Associações de Moradores, Clubes, praias, lagoas, etc. Eventos tidos como populares envolveram música, folclore, artesanato, eventos relacionados à cultura negra e cultura indígena, eventos que englobavam qualquer tipo de produção cultural de alunos da rede pública de educação, visitas de alunos e professores da rede pública de ensino a algum espaço, carnaval, eventos que relembrem a memória cultural do Rio de Janeiro,  

 festividades religiosas, aniversários de bairros e municípios, eventos voltados para crianças, como recreação e literatura infantil, bandas cívicas, animação cultural, etc.

A categoria tombamento envolve as notícias relacionadas à política de preservação e tombamento de patrimônio histórico-cultural. A categoria outros engloba as chamadas que não se encaixaram em nenhuma das outras categorias, em grande parte chamadas sobre a inauguração de novos espaços culturais ou destaque de já existentes, sem mencionar algum evento particular, ou chamadas que abordam eventos eruditos e populares juntos, impedindo a classificação em popular ou erudito.

2.1 – ENTREVISTAS EXPLORATÓRIAS A segunda abordagem metodológica utilizada na pesquisa é a que Quivy & Campenhoudt (2003) concebem como “entrevistas exploratórias”, que buscam “abrir pistas de reflexão, alargar e precisar os horizontes de leitura, tomar consciência das dimensões e dos aspectos de um dado problema, nos quais o investigador não teria decerto pensado espontaneamente.” (p. 79). Quivy & Campenhoudt (2003) entendem as entrevistas exploratórias enquanto método adequado para situações de investigação de um tema cujo conhecimento prévio do pesquisador é limitado. As entrevistas exploratórias são de grande valia para apontar dimensões da pesquisa com as quais o pesquisador não havia trabalhado, abrindo assim novos caminhos para o trabalho, enriquecendo-o. Nesse quadro, as entrevistas exploratórias atuam enquanto forma de rompimento de pré-noções interiorizadas pelo pesquisador, a medida que Quivy & Campenhoudt (2003) afirmam que, com o auxílio das entrevistas exploratórias ”não nos lançarmos em falsos problemas, produtos inconscientes dos nossos pressupostos e preconceitos” (p.78). Outra perspectiva possibilitada pelas entrevistas exploratórias é a de estender o campo de pesquisada estudado, visto que, segundo Quivy & Campenhoudt (2003) “ela possibilita a descoberta dos contatos humanos mais ricos para o investigador” (p. 68). De acordo com estes autores, as entrevistas exploratórias devem: ajudar a constituir a problemática de investigação (...) descobrir os aspectos a ter em conta (...) revelar determinados aspectos dos fenômenos estudado em que o investigador não teria espontaneamente pensado por si mesmo e, assim, complementar as pistas de trabalho. (QUIVY & CAMPENHOUDT, 2003, p.69)  



Quivy & Campenhoudt alertam ainda para as questões que precisam ser levantadas pelo pesquisador antes de adentrar a pesquisa em si: com que é relevante fazer uma entrevista exploratória e em que consiste a entrevista e de que forma realizá-la? Os autores recomendam que entre as principais categorias de potenciais entrevistados devem constar pesquisadores que dominem o tema de investigação referente à pesquisa que se pretende realizar e testemunhas que ocupavam posições privilegiadas no período e contexto pesquisado, conferindo-lhes um relevante conhecimento acerca do tema. Outro grupo de potenciais entrevistados é o do público ao qual o estudo diz respeito. Essas três categorias de entrevistados irão, de acordo com Quivy & Campenhoudt, conferir um seguro instrumento de apreensão do tema pesquisado e suas peculiaridades.

A condução da entrevista exploratória deve seguir, ainda de acordo com Quivy & Campenhoudt, as seguintes recomendações: o entrevistador pré-seleciona um conjunto de questões sobre as quais se procura que os entrevistados dissertem à vontade. O entrevistador elabora o menor número possível de perguntas e faz suas intervenções da forma mais aberta que puder. Cabe também ao entrevistador não entrar em debates deliberados ou posicionar-se acerca de afirmações do entrevistado. O objetivo é deixar que o entrevistado fale da forma mais autônoma possível, numa espécie de depoimento livre que não precisa seguir a um roteiro previamente estabelecido pelo entrevistador que, por sua vez, dessa maneira poderá capturar informações até então desconhecidas, preenchendo assim eventuais lacunas da pesquisa e derrubando pré-noções interiormente construídas previamente. Para tal tarefa, os autores supracitados recomendam que se realize a entrevista em um ambiente tranquilo – que propicie ao entrevistado condições de falar o mais a vontade possível – e o registro da conversa, para que o entrevistador possa não apenas obter respostas de questões que já possuía, mas a partir do depoimento, elaborar novos direcionamentos para a pesquisa.

Oppenheim (1992) é mais um autor a classificar as entrevistas exploratórias como aquelas que buscam conceituar os problemas que se deseja pesquisar. Neste tipo de entrevista, Oppenheim alerta que o pesquisador deve abordar o tema com uma pergunta aberta, deixando o entrevistado direcionar por si só o rumo da entrevista. O entrevistador interage de forma passiva, mostrando interesse ou encorajando o entrevistado a expor mais detalhes sobre o tema em questão. Intervenções de caráter 

 mais incisivo se dão apenas no intuito de garantir que o entrevistador não fuja do tema de interesse da pesquisa.

A espontaneidade concedida ao entrevistado estende-se ao entrevistador no momento da análise das entrevistas. Esta é a oportunidade de capturar as ideias centrais de cada depoimento e cotejá-los entre si, buscando as concordâncias e divergências existentes. Esse processo permitirá articular o trabalho extraído das entrevistas com o escopo teórico da pesquisa. Quivy & Campenhoudt chamam atenção, porém, para os perigos das entrevistas exploratórias, principalmente no que diz respeito a entrevistados que testemunharam o período em questão e os que fizeram parte do público estudado. Isso porque essas categorias de entrevistados, por estarem submetidos a constante interação com o tema de pesquisa “são geralmente levados a explicar as suas ações, justificando- as. A subjetividade, a falta de distância, a visão parcelar e parcial, são inerentes a este tipo de entrevista.” (Raymond Quivy et al, 2003, p.72).

O objetivo das entrevistas exploratórias é, portanto, compreender aspectos acerca do período estudado dos quais os documentos não dão conta. Essa complementação se faz necessária à medida que se reconhece que todo arquivo documental possui lacunas. Assim sendo, não defino uma pergunta fixa. A pergunta da entrevista irá variar de acordo com a informação que se fizer necessária buscar no intuito de complementar as informações contidas nos documentos pesquisados. O ajuntamento desses métodos – pesquisa documental e entrevista – permitirá apreender as relações entre o documentado e a exterioridade e a compreensão das circunstâncias políticas, históricas e ideológicas presentes nas fontes analisadas. Ao longo deste trabalho foram entrevistados Leonel Kaz, Vice-Presidente da Fundação Anita Mantuano de Artes do Estado do Rio de Janeiro (FUNARJ) e assessor direto de Darcy, Ricardo Cravo Albin, Coordenador dos Museus da FUNARJ e posteriomente Coordenador de Eventos Públicos e Cascia Frade, Diretora da Divisão de Folclore do Instituto Estadual de Patrimônio Cultual (INEPAC). 



2.2 – CATEGORIAS E CONCEITOS-CHAVE QUE DÃO SIGNIFICADOS AO MATERIAL EMPÍRICO

Em sua aula inaugural 5 no curso de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 04/08/1953, Darcy destaca que a cultura de um povo reflete em sua integração, no modo de fazer, sentir ou pensar de uma sociedade e na forma com que se posiciona frente aos problemas da vida associativa. A cultura é, assim, um conceito integrado, onde um aspecto se relaciona com vários outros, formando uma rede que só tem sentido dentro de um determinado contexto. A cultura é organizada e ordenada de acordo com uma estrutura lógica, dotada de sentido. Assim, estando a cultura relacionada aos modos de fazer, pensar e sentir de um grupo de pessoas, ela passa a ser também uma questão política, à medida que torna-se ponto chave na resolução de problemas da vida humana associativa, visto que a cultura tem forte papel na adaptação a um determinado ambiente.

Em sua obra O Povo Brasileiro (1995), Darcy Ribeiro discorre sobre a multiplicação de mamelucos, frutos de cruzamento de portugueses com as índias. Ribeiro se refere a essa multiplicação como um “ criatório de gente ”. O autor atribui ainda à colonização ibérica a aculturação, o aniquilamento e a exploração abusiva da mão de obra que os índios e negros sofreram no Brasil. Esse “ moinho de gastar gente ” gerou insatisfação, tristeza, morte e fuga por parte dos explorados, o que resultou em uma “ política demográfica espontânea ”. Darcy atribui aos ibéricos uma ação conquistadora que dizimou os índios nos mais diferentes aspectos: biológico, ecológico, econômico, social e étnico-cultural. Enquanto os ingleses em suas colonizações buscavam reproduzir a paisagem de sua terra, os ibéricos eram aventureiros em busca de lucro e poder.  Misturando-se aos nativos e ao mesmo tempo os oprimindo, os ibéricos se sustentaram na força da Igreja para implementar no Brasil o seu modo de vida. O povo brasileiro, surgido deste criatório de gente narrado por Darcy, ficou à margem da direção desse processo. Funcionou historicamente como massa de manobra, como força de trabalho. Tomou a si o ônus sem nunca ter tido acesso ao bônus. De norte a sul do Brasil, “o povo brasileiro deve sua diferenciação cultural às peculiaridades climáticas e trabalhistas-coloniais de

 5 Ver em FUNDAR. Série Instituições Diversas. Dossiê Escola Livre de Sociologia Política. 

 cada região”. Ressalta, ainda, que O povo brasileiro trabalhou pra sustentar uma nobreza gringa e baseou sua (sub)cultura no trabalho e no clima de cada região: 

A cultura brasileira não pode, porém, ser entendida em seu conjunto sem se atentar para as três ordens de diferenciação que experimentou: as temporais , correspondentes às suas distintas conformações históricas (colonial, neocolonial, nacional) e aos esforços sucessivos de integração nos processos civilizatórios que a afetaram (mercantil- salvacionista e imperialista-industrial); sociais , como subculturas correspondentes à estratificação em classes (senhorial, servil, popular); a regionais , concernentes às diferenças de adaptação ecológica que se plasmaram como distintas áreas culturais. (RIBEIRO, 1983, p.104)

Darcy remete aos antropólogos para definir cultura como “herança social de uma comunidade humana”, uma “ordem particular de fenômenos que tem de característico sua natureza, réplica conceitual da realidade, tal como é percebida e transmitida simbolicamente, de geração a geração” (1983, p. 127). Assim, a cultura engloba todas as formas de um povo interagir com e entender o mundo que os cerca. A transmissão da cultura se faz socialmente, de uma geração para outra. Para Darcy, estudar cultura é analisar as “manifestações de valores, crenças e explicações veiculadas através de sistemas simbólicos de comunicação” (1983, p. 128).

Darcy denota que a cultura, em seu estado ideológico, engloba as ideias e sentimentos resultantes da tentativa de um povo em compreender sua experiência coletiva e justificar ou questionar a ordem social vigente. Para essa tarefa, a linguagem, a religião, as artes, o saber, entre outros, formam um ethos que significa a compreensão que cada povo tem de si, comparado aos demais. O autor ressalta ainda que as relações culturais não são mecânicas e podem apresentar características diversas como a discrepância (difusão da cultura de um grupo em outro), a defasagem (persistência de atitudes de um estágio que já foi ultrapassado), a alienação (adoção, por parte do dominado, da cultura característica daquele que o domina) e a oposição (numa mesma sociedade, complexa, comportamentos diversos que refletem meios de vida diversos).

Segundo Darcy, devido às discrepâncias, defasagens e alienações existentes, pode-se dividir a cultura em integrada , quando existe harmonia, coerência entre seus membros; autênticas , quando o teor cultural corresponde “aos interesses do desenvolvimento 

 autônomo das sociedades que as detêm” (p.130); espúria , que, por oposição, corresponde a existência de elementos de “domínio exógeno ou de deformação da imagem nacional” (p.130); marginalidade cultural , quando existe uma grande desconexão entre as formas de participação dos diversos segmentos sociais na cultura, a ponto de alguns [segmentos] serem discriminados por outros, causando tensão e frustração.

Nos Povos-Novos , ou seja, “as sociedades nacionais originadas de feitorias”, a cultura desenvolvida, alerta Darcy, está propensa a tornar-se espúria, uma vez que surge atrelada ao domínio colonial. Para Darcy, esta situação, “além de impossibilitar a maioria da população de exprimir sua cultura original, a compele a adotar os costumes de povos estranhos” (p.131), num processo que o autor chama de deculturação , cujo caráter compulsório, inviabiliza a possibilidade de transmissão e manifestação da cultura própria de um povo. Darcy exemplifica o caso dos escravos trazidos ao Brasil, que foram afastados de seu povo e sua cultura e somados a outros escravos de cultura diferenciada, que, por sua vez, passaram pelo mesmo processo. A deculturação , fruto da cultura espúria , é uma “primeira instância do processo mais geral” (p.131), a aculturação , classificada por Darcy como a perda das raízes e da criatividade cultural, frente à necessidade de criar novos costumes e interações entre aqueles que foram deculturados.

Mediante a essas relações de interdependência entre as culturas e as violências culturais a que uns povos submetem outros, pode um Povo-Novo estabelecer uma cultura autônoma e nacional? Na concepção de Darcy:

Só mediante um esforço persistentemente conduzido contra todas as formas de compulsão e alienação, as sociedades nascentes podem auto-afirmar-se como uma nova entidade étnica. Esta amadurece à medida em que sua cultura se liberta da carga de pré-noções e preconceitos destinados a resigná-la com seu destino de núcleo ancilar de uma macro-etnia em expansão; e à medida em que toda a população se incorpora ao mesmo núcleo básico de compreensões culturais, dando integração a sociedade nacional e homogeneidade à cultura. (RIBEIRO, 1983, p.132) Ao tratar da cultura brasileira, especificamente, Darcy ressalta seu caráter plural, classificando o painel cultural brasileiro como detentor de “coloridos variados” (p.141), onde a única constância se confere ao “caráter espúrio, sua condição de cultura defasada 

 e as consequentes vicissitudes de uma cultura alienada” (p.142), que conduz o povo à marginalidade social. Por alienação cultural, Darcy entende:

A alienação cultural consiste, em essência, na introjeção espontânea ou induzida em um povo da consciência e da ideologia de outrem, correspondente a uma realidade que lhe é estranha e a interesses opostos aos seus. Vale dizer, a introjeção induzida de ideias e valores que escamoteiam a percepção da realidade social em benefício dos que dela se favorecem. Ou ainda, a criação autônoma de representações consoladoras ou justificatórias de atraso, que desviam a atenção de suas causas reais para apenas destacar causas supostas (RIBEIRO, 1983, p.151). Por esse atraso e subdesenvolvimento cultural, Darcy responsabiliza a classe dominante brasileira, que, desde a colonização, desempenha a função de “camada gerencial de interesses estrangeiros, mais atenta para as exigências destes do que para as condições de existência da população nacional” (p.107). Comportamento este que, conforme Darcy, estende a alienação também à classe dominante, que, “cega para os valores de sua gente”, torna-se incapaz de “ver e compreender a sociedade em que vivia” e de propor “um projeto nacional de desenvolvimento autônomo”. Essa preocupação da classe dirigente em reproduzir cultural e comportamentalmente as sociedades europeias arruinou expressões autênticas da cultura erudita e popular no Brasil, conforme denuncia Darcy:

Sob o alude da modernização reflexa entra em colapso a dicotomia do ethos nacional: rui a cultura erudita que em certos setores se fizera herdeira do patrimônio europeu e se constituíra em estrato letrado da sociedade nacional. E rui também a cultura vulgar, cristalizada principalmente no folclore haurido de velhas fontes ibéricas e de tradições indígenas e africanas bem como de crenças e ritos católicos que regulavam toda a vida social. A primeira se degrada, perdendo os altos níveis de expressão que alcançara no plano artístico para, transformar-se num pastiche de francesismos, britanismos, ianquismos. A última também se dilui, primeiro nas cidades e nas áreas por elas influenciadas, em que o antigo calendário festivo de inspiração religiosa, as danças dramáticas, os cancioneiros populares são substituídos por novas danças, cantos e folguedos de caráter profano. Com a radiofusão, estes novos estilos se tornariam cada vez mais “modernos” e invadiriam também as áreas rurais, hibridizando e depois obsolescendo as ilhas de arcaísmo em que sobreviviam as formas coloniais de criatividade popular. (RIBEIRO, 1983, p.112- 113) É oportuno ressaltar que Darcy não se opõe a recepção de ideias vindas do estrangeiro, fato que levou a classe dirigente a mimetizar os europeus. Segundo Darcy, “as  

 transplantações culturais são inevitáveis e vêm associadas, frequentemente, a fatores de progresso” (p.108-109). O que se torna um problema, na concepção de Darcy, é a “rejeição de tudo que era nacional e principalmente popular, como sendo ruim, porque impregnado da subalternidade da terra tropical e da inferioridade dos povos de cor.” (p.109). As críticas sobre a maneira com que a classe dirigente conduziu historicamente a construção da nação não terminam por aí. Em Sobre o Óbvio (1978), Darcy discorre acerca das falsas obviedades sustentadas pela classe dirigente brasileira para alienar a população: Os pobres vivem da caridade dos ricos, os negros são socialmente e culturalmente inferiores aos brancos, os brasileiros são um povo inferior, de segunda classe, são falácias citadas por Darcy como falsas obviedades consagradas pela classe dirigente, que, ainda de acordo com o autor, buscava justificar as causas de nosso atraso enquanto nação através de características vitais brasileiras: a mestiçagem do povo, o clima tropical que predomina no país, a influência da religião católica na formação popular e a colonização portuguesa. Darcy ressalta, no entanto, que o avanço das diversas ciências fez com que a população pudesse notar que “à luz das novas ciências, nenhuma daquelas teses se mantinha de pé” (p.11) e que “a causa real do atraso brasileiro, os culpados de nosso subdesenvolvimento somos nós mesmos, ou melhor, a melhor parte de nós mesmos: nossa classe dominante e seus comparsas” (p.12). Darcy fora contundente e definitivo ao afirmar que “não é nas qualidades ou defeitos do povo que está a razão do nosso atraso, mas nas características de nossas classes dominantes, no seu setor dirigente e, inclusive, no seu segmento intelectual” (p.12).

Após responsabilizar a classe dirigente pelo atraso brasileiro, Darcy aponta setores, fundamentais para o desenvolvimento de uma nação, em que a atuação da classe dirigente brasileira semeou os pilares do atraso do país: Na economia, Darcy cita nosso contexto histórico de sustentar a nobreza portuguesa através do trabalho popular e um sistema de trabalho onde o povo produz o que não consome, o discurso vendedor de sonhos da exportação, de paciência popular para saber esperar o bolo crescer: “só acumulando agora, sem nada desperdiçar comendo, se poderá progredir amanhã e sempre” (p.14).

Na história política, Darcy ressalta a “façanha da velha classe” de “enfrentar e vencer” todas as revoluções sociais brasileiras, esmagando aqueles que lutavam pelo  

 alargamento das bases sociais, para que mais pessoas pudessem participar do produto do trabalho, primeiro passo para consolidação da hegemonia popular. Darcy ressalta ainda que, esses movimentos, além de sufocados violentamente, foram escritos na história brasileira, pelas classes dirigentes, como se fossem motins, movimentos separatistas.

Na distribuição e administração de terras, Darcy afirma ser possível notar “a capacidade da nossa classe dominante para formular e instituir a racionalidade que mais convém à imposição de seus altos interesses” (p.15), em referência à imposição da necessidade de comprar as terras para se declarar delas proprietário, enquanto que outros países, como os Estados Unidos, declaravam dono das terras quem a ocupasse e nela trabalhasse. Com essa decisão de não reconhecer os trabalhadores da terra, a elite política brasileira, de acordo com Darcy, “assegurou a propriedade monopolística da terra para suas empresas agrárias e assegurou que a população trabalharia docilmente para ela, porque só podia sair de uma fazenda para cair em outra fazenda igual”, fundamentando assim, “Casas-grandes & Senzalas grandiosas como as nossas”. (p.16).

Darcy ressalta ainda que, enquanto a Revolução Industrial trouxe ao mundo novidades como o carvão e posteriormente a eletricidade e o petróleo como fontes de energia, o Brasil fora a última nação mundial a abolir a escravidão e mesmo quando o fez, dispensou os senhores de engenho da responsabilidade de alimentar as crianças e os idosos que trabalhavam para si. Ao finalmente aderir ao processo de industrialização, Darcy acusa a classe dirigente de desempenhar o papel de representante colonial, gerenciadora de interesses estrangeiros, dessa vez através da instalação de multinacionais no Brasil.

Outro segmento de fracasso apontado por Darcy é o educacional, onde, segundo o autor, houve uma universalização do ensino, mas baseada na missão de criar um povo chucro, que “generaliza tonta e alegremente a educação”. A população alienada é condição fundamental na “sobrevivência e hegemonia da classe dominante” (p.17). Darcy acusa a elite política de não possuir interesse na educação de seu povo, sob o medo de que a mesma possa representar a destituição do poder político, através da escolha popular de um regime político mais identificado com seus interesses:  



Mantido ignorante, ele [o povo] não estará capacitado a eleger seus dirigentes com riscos inadmissíveis de populismo demagógico. [...] com o progresso das comunicações, aumentam dia a dia os riscos do nosso povo se ver atraído ao engodo comunista ou fascista, ou trabalhista, ou sindical, ou outro. (RIBEIRO, 1978, p.18) Darcy aponta, então, o Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), como símbolo de uma política que busca produzir analfabetos como condição primordial para a manutenção do poder político. Quanto ao analfabetismo, se trata com a morte, visto que grande parte dos analfabetos faz parte da camada idosa e pobre da população, que vive pouco por comer pouco.

Darcy define os conceitos de consciência ingênua 6 e consciência crítica como importantes para interpretar a crise cultural brasileira. O primeiro tipo de consciência diz respeito ao tratamento da realidade enquanto consequência natural de forças superiores e interpreta a ordem social vigente como aceitável, desejável e imutável. A consciência crítica, por sua vez, reflete sobre as diferenças entre a realidade forjada e a realidade factual, trabalhando assim para as possibilidades de intervenção racional para a reordenação social. A crítica de Darcy sobre a incapacidade pensar um projeto de desenvolvimento nacional atinge também a classe intelectual brasileira, que, em grande parte, se limitou à “transplantações alienadas” (p.123)

Mesmo os estratos eruditos das camadas dominantes dificilmente escapam à contigência da consciência ingênua. Este é o caso, por exemplo, dos intelectuais pessimistas e amargurados com a realidade, concebida como o resultante de fatores incontroláveis que os converte em porta-vozes de concepções racistas e do “darwinismo” social. Seus próprios privilégios de ilustração os faz ambíguos culturais, cujas obras refletem menos a observação direta do modo de ser de sua sociedade do que visões alheias sobre a mesma. Em nossos dias, a expressão mais típica da consciência ingênua, no plano erudito, é dada pelos quadros oficiais da sociologia, da economia e da antropologia acadêmica, já não recorrem aos determinismos climáticos ou raciais, suficientemente desacreditados, mas a procedimentos mais sutis tais como a conceituação de que a ordem existente, gerada pela interação espontânea de forças sociais, só é passível de mudanças lentas e gradativas. Este artifício converte conceitualmente a ordem social num sistema natural com o que se pretende demonstrar a inocuidade dos esforços tendentes a provocar mudanças rápidas e profundas. (RIBEIRO, 1983, p.132- 133)

 6 Sobre consciência ingênua e consciência crítica, ver FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade . 23ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.  



O pensamento antropológico de Darcy (1995) denota que a formação do povo brasileiro se enquadra no conceito de Povo-Novo , adjetivado desta forma, por ser “uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras” (p.19). Um povo marcado por sua mestiçagem, surgido de matrizes étnicas tão diferenciadas, não poderia ser singular, a não ser a partir de uma violenta repressão cultural e política. Sobre isso, Darcy denuncia:

Essa unidade resultou de um processo continuado e violento de unificação política, logrado mediante um esforço deliberado de supressão de toda identidade étnica discrepante e de repressão e opressão de toda tendência virtualmente separatista. Inclusive de movimentos sociais que aspiravam fundamentalmente edificar uma sociedade mais aberta e solidária. A luta pela unificação potencializa e reforça, nessas condições, a repressão social e classista, castigando como separatistas movimentos que eram meramente republicanos ou antioligárquicos. (RIBEIRO, 1995, p. 23) Entre todas as diferenciações e particularidades históricas, culturais, étnicas e sociais que marcam o povo brasileiro, existe uma característica comum a que esse povo fora submetido: a aculturação. Darcy (1995) cita os exemplos do mameluco (fruto do cruzamento entre português e índia) e do mulato (fruto do cruzamento entre branco e negra) para ilustrar “o drama de ser dois” (1983, p.106), que é o não pertencimento a grupo cultural algum, já que não eram reconhecidos pelos brancos portugueses como pertencentes legítimos de seu grupo cultural e, por não viver em sociedades negras e índias legítimas, por assim dizer, devido ao fato dessas terem sidas dizimadas pelas cruzadas portuguesas no Brasil. Essa aculturação, o não pertencimento a grupo cultural algum, continua a partir do cruzamento entre mulatos e mamelucos, acentuando ainda mais o caráter mestiço do povo brasileiro. Dessa maneira, a cultura do povo brasileiro se faz como um “grito de sobrevivência” das culturas africanas e indígenas, surgindo a partir de sua adaptação aos climas, buscando meios de sobrevivência e métodos de produção nos mesmos:

O que tenham os brasileiros de singular em relação aos portugueses decorre das qualidades diferenciadoras oriundas de suas matrizes indígenas e africanas; da proporção particular em que elas se congregaram no Brasil; das condições ambientais que enfrentaram aqui e, ainda, da natureza dos objetivos de produção que as engajou e reuniu. (RIBEIRO, 1995, p.20)  



Darcy não apenas apontou as mazelas da formação do povo brasileiro, mas assinalou o que faltou para que o povo brasileiro pudesse desenvolver sua cultura enquanto autêntica, responsável por desenvolvimento autônomo:

O que faltou, sempre, foi espaço para movimentos sociais capazes de promover sua reversão. Faltou sempre, e falta ainda, clamorosamente, uma clara compreensão da história vivida, como necessária nas circunstâncias em que ocorreu, e um claro projeto alternativo de ordenação social, lucidamente formulado, que seja apoiado e adotado como seu pelas grandes maiorias. (RIBEIRO, 1995, p. 26)

Ao analisar particularmente os fazimentos culturais para o período estudado, Darcy (1986, p.03) define cultura popular como “as formas livres de expressão cultural das grandes massas” e cultura erudita como “as formas escolásticas, canônicas de expressão cultural”. Ao definir dessa forma, Darcy atribuiu ao popular um caráter livre, de improviso e espontâneo, enquanto que o erudito segue uma norma, um preceito, um parâmetro, um padrão. Embora esclareça as diferenças entre as duas espécies de cultura, Darcy, na Revista do Brasil, (1986) define como “sectarismo” (p.03) o juízo de valor entre os estilos, ressaltando que gosta de pensá-las como: “as duas asas da cultura que, sem vigor em ambas, não voam belamente. É preciso reconhecer que uma não é melhor nem pior, superior ou inferior à outra; são apenas diferentes e, porque distintas, se intercambiam, abeberando-se reciprocamente.” (1986, p.03)

Enquanto elite dirigente Darcy coloca como desafio a produção de uma cultura brasileira autêntica, que possa ser reconhecida como tal, sem, no entanto, fechar as portas para outros tipos de manifestações culturais:

Nosso desafio está precisamente em criar, no plano cultural, com fundamento em nossos modos de ser, gêneros equivalentes, que cultivemos com gosto e, quem sabe, até exportemos. É igualmente importante não nos fecharmos aos gêneros eruditos, hostilizando-os, porque são exógenos. Ganhando geande público, eles se fizeram, para muitos povos, modos de co-participação nos valores da civilização a que pertencem. Rejeitá-los ou até hostilizá-los será cair num provincianismo detestável. Reverenciá-los boquiabertos como formas perfeitas e intocáveis, sem a ousadia de criá-los a nosso jeito, é igualmente boboca. (RIBEIRO In: Revista do Brasil, 1986, p.03) 



Entendendo cultura dessa forma, e com o objetivo supracitado, Darcy entende o papel do Estado enquanto produtor de política cultural, como “o estímulo generoso para que a criatividade popular e erudita floresça, sem nelas jamais interferir.”. (1986, p.03)

Para interpretar os fenômenos observados na base de dados procuro estabelecer um possível diálogo entre eles e as ideias de Darcy antropólogo (com seu pensamento social), tomando por objeto de estudo particularmente as suas obras “O Povo Brasileiro” (1995) e “Os Brasileiros: Teoria do Brasil” (1983). Assim sendo, tento fazer um diálogo entre o pensamento social darcyniano tal como se apresenta nestas obras - que discorre sobre a (de)formação étnica do Brasil e da(s) cultura(s) de seu povo - e as ações de Darcy político, à frente da vice-governadoria e de secretarias do Estado do Rio de Janeiro durante o primeiro governo Brizola. Cabe lembrar que não é objetivo deste trabalho esgotar a análise da obra acadêmica de Darcy Ribeiro. Procuro, sim, interrogar as ações políticas do vice-governador com o objetivo de verificar em que medida elas estão (ou são) indissociáveis de sua teoria social. A atuação do vice-governador dá-se prioritariamente (mas não exclusivamente) nas áreas da cultura, educação, ciência e tecnologia e, portanto, conferem-lhe o poder de controlar sistemas culturais constituídos por instituições as mais diversas: escolas, teatros, rádio, cinema, galeria de arte, publicidade, laboratório, etc.

  

3 – BRIZOLA, DARCY E O TRABALHISMO: REINSERÇÕES NO CENÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO 

Em dez de abril de 1964, o Ato Institucional nº 1 (AI-1) demitiu Darcy Ribeiro de seus cargos de professor da Universidade do Brasil e de etnólogo do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e cassou seus direitos políticos. Darcy segue para seu primeiro exílio, no Uruguai. Convidado pelo reitor da Universidad de La República do Uruguai, Mario Cassinoni, ministra cursos de Antropologia Cultural na Faculdade de Humanidades e Ciências e elabora um projeto de reforma inovador para essa universidade. No exílio, sua experiência como etnólogo, idealizador e ex-reitor da Universidade de Brasília (UNB) confere-lhe autoridade e reconhecimento nos meios acadêmicos latino- americanos. Assim é que, após deixar 7 o Uruguai na condição de exilado político, Darcy segue para o seu segundo exílio, agora na . Em Caracas, dirige um Seminário interdisciplinar de Ciências Humanas para pós-graduandos e assessora o Grupo de Trabalho incumbido de elaborar diretrizes básicas para renovar a estrutura da Universidade Central da Venezuela. O momento político da Venezuela o preocupa e, em carta dirigida a Pablo Gonzalez Casanova, diretor do Instituto de Investigações Sociais e, posteriormente, reitor da Universidade Nacional Autônoma do México, Darcy apresenta suas credencias para trabalhar nessa universidade; em uma única página, escreve seu curriculum vitae, destacando os livros publicados no Brasil, Uruguai, Venezuela, os artigos em revistas internacionais e o trabalho realizado nessas nações, “sempre como especialista em reestruturação universitária”. 8 Mas, é para o Chile que ele segue, atendendo convite do presidente Salvador Allende. Com o golpe político no Chile e a morte de Allende, Darcy segue, então, para o .

Durante os períodos de exílio ele viveu em diversos países da América Latina, nos quais atuou em programas de reformas universitárias - Venezuela, Chile, Peru, Costa Rica –, exerceu a docência e foi assessor de Velasco Alvarado no Peru e Salvador Allende, no Chile.

De volta ao Brasil, em 1976, ainda sem gozar de seus direitos políticos, Darcy tem dois principais objetivos: retomar suas atividades acadêmicas e políticas. No entanto, ao

 7 Em 1968, Darcy Ribeiro retorna ao Brasil, sem autorização das autoridades brasileiras, é preso, responde a inquéritos, recebe autorização para deixar o país e segue para a Venezuela. 8 Correspondência Darcy Ribeiro - Pablo Gonzalez Casanova. Acervo Darcy Ribeiro. DR W1964.10.17, V14 W1.    contrário do que ocorreu no exterior, suas credenciais não são bem aceitas no campo acadêmico brasileiro. No âmbito da Antropologia, área em que sempre atuou, Darcy Ribeiro encontra novos personagens, novos objetos de investigação e novos métodos de pesquisa. Darcy encontra dificuldades em estabelecer redes de relações com o campo acadêmico porque seu passado parece condená-lo. Naquele momento, os atores que hegemonicamente dominavam o campo não consideravam bem vinda a sua presença. Isolado, e bem a seu estilo, Darcy faz então da polêmica seu principal instrumento de interlocução com o campo. A famosa polêmica que travou com os antropólogos do Museu Nacional - Roberto da Matta e Gilberto Velho – a quem acusou de fazerem “uma antropologia vadia, que ajuda o discurso europeu a povoar o Brasil”, recebeu resposta 9 em forma de repúdio assinada por quase todos os antropólogos do Museu. A polêmica sai do recinto acadêmico para os jornais e foi acompanhada por um público não acadêmico. Em sua defesa, Darcy disse 10 :

[...] Sou, talvez, demasiadamente ambicioso, para com os jovens antropólogos brasileiros. Que fazer? Quisera para o Brasil uma antropologia descolonizada. Se possível, uma antropologia tão boa no plano humanístico que trate logo de devolver aos índios o que apreendeu deles. Uma antropologia tão eficaz no plano sócio-político que permita até aposentar, por dispensável o materialismo-histórico. E, quem sabe? – se já não é desvario meu, pedir tanto a vocês – uma antropologia sem conivências com o despotismo, que ajude o Brasil a sair desse atoleiro de um subdesenvolvimento que se subdesenvolvesse cada vez mais [...]. No dia 28 de agosto de 1979, o então presidente da República, General João Batista Figueiredo sancionou a lei nº 6.683, que aprovava a anistia aos “crimes políticos praticados por motivação política”. Darcy tenta, então, o seu reingresso na Fundação Nacional do Índio (FUNAI), mas foi surpreendido com uma aposentadoria ex-officio , cujo salário era cerca da quarta parte do que ganhavam os jovens antropólogos em exercício na instituição. A primeira proposta de trabalho que conseguiu, no retorno ao Brasil, foi para coordenar a construção do Museu do Homem na Universidade Federal de , projeto que acabou não se concretizando. Foi o então Ministro da Educação, Eduardo que providenciou o retorno de Darcy ao cargo de professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro:

 9 Ver em MATTA, Roberto Augusto da. Carta aberta a Darcy Ribeiro. Encontros com a Civilização Brasileira , Rio de Janeiro, v. 15, p. 81-92, 1979. 10 Carta endereçada a Roberto da Matta, sob o título “Por uma antropologia melhor e mais nossa”. Acervo de correspondências da FUNDAR.  

Para não me constranger com um pedido de reintegração, ele mandou- me um telegrama em que me comunicava que, sabendo do meu desejo de voltar ao convívio de meus colegas professores da universidade, determinara minha reintegração como professor de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais... Seu gesto me reconciliou com o mundo acadêmico brasileiro. (RIBEIRO, apud LOBO, 2008, p. 67) Darcy assume as cadeiras de Antropologia e Antropologia do Brasil, Etnologia Indígena Brasileira e Teoria da Cultura, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ainda em 1980, mais precisamente no dia 19 de agosto, Darcy é indicado para a função de Diretor Adjunto de Pós-Graduação desse Instituto. No entanto, a experiência no campo acadêmico foi árdua e difícil no que diz respeito ao seu legado :

Passei imediatamente a dar aulas no IFCS, onde muita coisa me surpreendeu. Praticamente ninguém sabia nada de mim, senão como um político errado e como um subversivo. Nenhum aluno tinha lido nada meu. Até meus colegas, jovens antropólogos, achavam que eu era descartável. O veto ditatorial a todos nós exilados funcionou. Foi interiorizado pela maioria dos professores. (RIBEIRO, 1997, apud LOBO, 2008, p. 67) Darcy não seria bem-vindo no campo acadêmico vigente, pois, mais do que fazer parte de outra geração, representava outra linha de pensamento, outra forma de fazer ciência e, consequentemente, outros tipos de capitais, cujas regras vigentes no campo acadêmico em questão buscavam exterminar para manter a estrutura e as posições de poder e destaque em mãos dos novos acadêmicos. O passado de Darcy, segundo ele próprio afirmou, teria sido apagado do universo acadêmico no Brasil e sua vasta experiência na América Latina como professor, autor de livros e artigos, e, principalmente, sua autonomia intelectual e acesso aos meios de comunicação, parecia mostrar-se ameaçadora aos que dominavam o campo. A resistência a Darcy marca a diferenciação entre os intelectuais que dominavam o campo na ocasião – cujo reconhecimento era pautado em títulos, vinculação a agências de fomentos e atuação em espaços institucionais universitários – e Darcy, cujo reconhecimento era pautado em sua experiência como reformador de universidades, publicações internacionais e sua atuação política ao lado de figuras como Marechal Rondon, Juscelino Kubitschek, João Goulart, Anísio Teixeira.

A essa época, Darcy mantinha seu vínculo ideológico com o trabalhismo. Após um período em que desenvolveu sua veia comunista, advinda de seus tempos de   estudante 11 , Darcy define o suicídio de Vargas como o momento que o aproximou do trabalhismo, por ver naquele fato uma forma de acordar o povo brasileiro para o complô existente contra a figura de Getúlio e sua política trabalhista e nacionalista. No ano de 1979, com os direitos políticos reconquistados, une-se, na luta pela posse da sigla do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), a Leonel Brizola, companheiro político dos tempos em que ocupou a chefia da Casa Civil, no governo de João Goulart, conforme atesta Ricardo Cravo Albin:

[Sobre a relação entre Darcy e Brizola] Ah... Desde Brasília. Desde o João Goulart, né? Claro. João Goulart é cunhado de Leonel Brizola, então eles conheceram-se e ficaram muito amigos a partir do grande desafio do Leonel Brizola ao lado do Governo João Goulart, fazendo a Universidade de Brasília, né? E fazendo outras referências, que ele sempre deu ideias a João Goulart. Não sei bem quais eram nem quais foram, mas certamente houve muitas conexões, íntimas conexões, entre o João Goulart e o Darcy Ribeiro em Brasília quando o Presidente era Jango. Acredito que muito antes, inclusive. (ALBIN, Ricardo, em 23/11/2013)  Durante o período em que viveu exilado, Brizola construiu uma intensa rede de relações vinculadas à política social-democrata internacional. Ao ter o seu direito de asilo cancelado pelo governo uruguaio e receber a solicitação para que deixasse o país, adentrou os Estados Unidos graças à política de Direitos Humanos empenhada pelo então presidente americano Jimmy Carter. Ao deixar os Estados Unidos conseguiu também entrada na Europa através do primeiro-ministro português Mário Soares, que forneceu a Brizola passaporte português. A partir de janeiro de 1978, muda-se definitivamente para Europa, onde reside em Lisboa. Sua permanência por lá foi a chave para estabelecer relações com importantes figuras européias da social- democracia, tais como François Mitterrand, Felipe Gonzáles e Olof Palm. As conversas tinham a intenção de incluir o Brasil na organização da Internacional Socialista.

Darcy e Brizola se mobilizam pelo resgate da sigla PTB, partido que fora fundado em 1945, por Getúlio Vargas e pelo qual Brizola havia sido governador do Estado do Rio Grande do Sul, no início dos anos sessenta, poucos anos antes do PTB ser extinto pela ditadura militar. Reorganizar o PTB, renovando e ampliando os quadros do partido era o desejo 12 de Brizola, significava retomar o que fora interrompido pelo golpe militar de  11 Ver em Damasceno, Daniel. Darcy Ribeiro e a Formação do Campo Científico no Brasil: Reflexão sobre o Exercício Intelectual de um Etnólogo, 2009. 12 Ver em SÉRIE PERFIS PARLAMENTARES - Leonel Brizola : perfil, discursos e depoimentos (1922-2004). Porto Alegre: Assembleia Legislativa do RS, 2004   

1964 e enfatizar a evolução do partido em direção ao socialismo. Seria a vitória de um grupo que foi uma das principais vítimas políticas – cassações, exílios, punições – dos militares.

Leonel Brizola organiza então o Encontro de Lisboa, realizado nos dias 15, 16 e 17 de junho de 1979, tendo em sua agenda dois pontos fundamentais: análise de conjuntura brasileira e problemas referentes aos moldes para a reestruturação do partido e contou com a participação 13 de mais de 1.500 pessoas, desde militantes do trabalhismo até líderes de esquerda das mais diversas vertentes. O encontro, cuja abertura coube ao primeiro ministro português Mário Soares, foi realizado na Europa, na sede do Partido Socialista Português, em Lisboa, devido à impossibilidade de muitos desses militantes, inclusive Brizola, adentrarem em solo nacional, devido ao exílio político. A Carta de Lisboa 14 , documento produzido no encontro, justifica a impossibilidade do mesmo ocorrer em terras nacionais porque o “exílio arbitrário e desumano impediu este Encontro no lugar mais adequado: a Pátria Brasileira” (CHACON, 1981, p.685). Sobre o Encontro de Lisboa, Costa (2011) ressalta:

Conjugando a “tradição” e a “modernização”, o Encontro de Lisboa apresentava como novidade a transformação do trabalhismo na etapa fundamental de construção do socialismo em países periféricos como o Brasil. Fortemente apoiados na Internacional Socialista, os dirigentes e militantes ali reunidos defendiam uma concepção que ultrapassasse os modelos clássicos e eurocêntricos. Propunham uma nova abordagem para o país. [...] uma concepção que se amparasse nas tradições enraizadas na memória popular. A trajetória do trabalhismo aproximava-se delas. O resgate do nacionalismo democrático era essencial, pois no Brasil a luta socialista não havia trilhado os caminhos clássicos europeus. Retomar o projeto do socialismo, portanto, significava, [...] transformá-lo num movimento de massas, identificado com o momento histórico do pré-64. (COSTA, 2011, p.s/n)    13 Estiveram presentes, entre outros, Doutel de Andrade, Alfredo Hélio Sirkis, Anselmo Francisco Amaral, Artur José Poerner, Carlos Fayal, Carlos Minc Baumfeld, Cibilis da Rocha Viana, Cláudio Augusto de Alencar Cunha, Clóvis Brigagão, Darcy Ribeiro, Eric Nepobuceno, Flávio Tavares, Francisca Brizola Rotta, Francisco Julião, Genival Tourinho, Herbert de Souza, Jackson Kepler Lago, João Vicente Goulart, José Carlos de Oliveira, José Macedo de Alencar, José Maurício, Jorge Roberto da Silveira, José Gomes Talarico, José Guimarães Neiva Moreira, Leonel Brizola, Luiz Alberto , Lygia de Azeredo Costa, Lysâneas Dias Maciel, Manoel Sarmento Barata, Matheus Schmidt, Maurílio Ferreira Lima, Moema São Thiago, Murilo Rocha Mendes, Pedro Celso Ulhoa Cavalcanti Neto, Sebastião Nery, Theotônio dos Santos, Trajano Ribeiro, Tuffik Mattar e Vânia Bambirra. 14 Ver em CHACON, Vamireh. História dos partidos brasileiros. Brasília, Editora UNB, 1981.    

Em setembro de 1979, Brizola volta ao Brasil pelo Rio Grande do Sul, sua terra natal, onde é tão fortalecido politicamente. Mas desde então escolhe o Rio de Janeiro como novo polo de batalhas políticas. O motivo, segundo o próprio Brizola (2004, p.115) era “retomar o fio da história exatamente onde pretenderam interrompê-lo, no Rio de Janeiro”. O grupo de Darcy e Brizola naquela ocasião já ia tomando forma e reunia figuras ilustres do trabalhismo brasileiro, tais como Almino Afonso, Waldir Pires, Lysâneas Maciel, José Colagrossi, Cibilis Viana, Neiva Moreira e Doutel de Andrade. Anos depois, Darcy Ribeiro definiu bem o que representava a figura política de Brizola:

O Brizola é um homem extremamente vigoroso como líder. Eu vi Brizola chegar à Europa e ser reconhecido de imediato. É carisma. Os gregos diziam que carisma é a quantidade de tempo que uma pessoa que entra num templo leva para enchê-lo. Eu fui uma vez com ele a Paris e foi a única vez que eu fui hospedado no Regines, um hotel de receber reis e chefes de Estado, por conta do Estado francês. Eu vi o Brizola, que não fala língua nenhuma, ser recebido pelo Willy Brandt, que via nele uma liderança da América do Sul, mais rigoroso que Fidel. (RIBEIRO apud ZARVOS, 2007, p.190).

Ainda sobre a representatividade de Brizola, Izabel Costa (2011) a ilustra através de declaração de Theotonio dos Santos, uma das célebres figuras presentes no Encontro de Lisboa, a Brizola:

Brizola, quero dizer que você conseguiu unir a todos nós, e inclusive romper nossas velhas divergências. E eu estou aqui junto com um trotsquista que nós combatemos tanto tempo, e somos aliados completamente agora, juntos e tal, e acabou com essas divergências porque nós estamos construindo um partido a partir da unidade do povo brasileiro que você representa tanto (SANTOS, Theotonio dos. Entrevista . RJ, 2008 In: COSTA, 2011, p.s/n.) Em novembro de 1979 o pluripartidarismo volta a vigorar oficialmente no Brasil. A nova legislação eleitoral dava fim ao bipartidarismo e pregava que todas as legendas dali em diante utilizariam a letra P no início da sigla. Mais do que isso, para formar um partido seria preciso filiar o mínimo de 10% de seus representantes na Câmara dos Deputados e no Senado. Outra alternativa seria ter 5% dos votos do eleitorado que participou na eleição geral de 1978 para a Câmara dos Deputados. Esse apoio deveria estar distribuído entre, pelo menos, nove estados. A legislação tornava, então, tarefa árdua a construção de um partido novo, o que dava ainda mais importância ao embate pela sigla PTB.   

Na batalha pela sigla do PTB, Brizola e Darcy enfrentam a deputada Ivete Vargas, uma adversária de experiência 15 na política, já que, além de carregar o nome de Getúlio Vargas, foi deputada federal representando São Paulo, em 1950, pelo PTB. Em 1953, foi nomeada representante brasileira na Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque. Em 1957 foi novamente deputada federal pelo PTB paulista, reelegendo- se em 1962, pelo Estado da Guanabara. Outro ponto forte a favor de Ivete Vargas foi a aliança com o General Golbery do Couto Silva, articulador político dos militares e adversário político de Brizola. Depois de disputas no âmbito judicial, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) concede a sigla do PTB ao grupo de Ivete Vargas. O sentimento de frustração de Brizola e seu grupo foi traduzido em forma de poema 16 por Carlos Drummond de Andrade no Jornal do Brasil do dia seguinte:

Eu vi

Vi um homem chorar porque lhe negaram o direito de usar três letras do alfabeto para fins políticos.

Vi uma mulher beber champanha porque lhe deram esse direito negado ao outro.

Vi um homem rasgar o papel em que estavam escritas as três letras, que ele tanto amava.

Como já vi amantes rasgarem retratos de suas amadas, na impossibilidade de rasgarem as próprias amadas.

Vi homicídios que não se praticaram mas foram autênticos homicídios: o gesto no ar, sem conseqüência, testemunhava a intenção.

Vi o poder dos dedos. Mesmo sem puxar gatilho, mesmo sem gatilho a puxar, eles consumaram a morte em pensamento.

Vi a paixão e todas as suas cores. Envolta em diferentes vestes, adornada de complementos distintos, era o mesmo núcleo desesperado, a carne viva;

E vi danças festejando a derrota do adversário, e cantos e fogos.

Vi o sentido ambíguo de toda festa. Há sempre uma antifesta ao lado, que não se faz sentir, e dói para dentro.

Vi as impurezas da política recobrindo sua pureza teórica. Ou o contrário...

 15 Ver http://www.ptb.org.br/index.php?page=ConteudoPage&cod=1450 acessado em 24/10/08

16 Ver Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de maio de 1980, Caderno B. P. 1   

Se ela é jogo, como pode ser pura?... Se ela visa o bem geral, por que se nutre de combinações e até de fraude?

Vi os discursos...”

(DRUMMOND, Carlos. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 de maio de 1980, Caderno B. P. 1)

A impossibilidade de resgatar a sigla não encerrou os projetos políticos conjuntos de Darcy e Brizola que decidem então criar um novo partido político. Nos dias 17 e 18 de maio de 1980, uma semana após a derrota no Tribunal, Brizola, Darcy e o grupo que os apoiavam se reúnem no Palácio Tiradentes para um encontro nacional de trabalhistas, que reuniu mais de mil pessoas. Criam então o Partido Democrático Trabalhista (PDT). Dias depois, em 25 de maio, o partido já possuía aprovado seu programa, seu manifesto e os estatutos. Os documentos basilares do partido são a Carta Testamento, deixada por Getúlio Vargas em 1954 e a Carta de Lisboa 17 , cujo teor dava a linha política que o novo partido pretendia seguir.   A respeito da criação do PDT, Vânia Bambirra atesta que:

O programa do PDT (...) não foi improvisado por um grupo de políticos e intelectuais. Foi produto de toda uma reflexão crítica de um passado histórico e o resultado de uma elaboração democrática. Resgata a “Carta Testamento” do presidente Getúlio Vargas, que é a mais veemente denúncia histórica da penetração imperialista sobre nossa economia; seus esboços foram elaborados e discutidos no Brasil e em vários países onde existiam núcleos significativos de exilados políticos brasileiros; em seguida, esses esboços foram debatidos linha por linha em Lisboa, na primeira reunião dos exilados com os políticos, líderes sindicais, mulheres que lutavam pela anistia no interior do país. Desse encontro histórico resultou a Carta de Lisboa e a reconstituição do Partido Trabalhista no Brasil. Com base nesses materiais e prolongadas discussões, surgiu um partido novo, que parte da tradição trabalhista mas que concebe como um partido que “defende efetivamente a democracia, o nacionalismo, o socialismo, um partido nacional e popular”. Quer dizer: herda as tradições do nacionalismo democrático mas as moderniza e as supera propondo claramente o socialismo como a sua meta. (BAMBIRRA, Vânia, 1981. p. 27-28) A Carta de Lisboa propõe uma “solução trabalhista” para a “urgente tarefa da libertação do nosso povo” (CHACON, 1981, p.685), coloca em caráter de urgência a tarefa de

 17 Por basear-se ideologicamente na Carta de Lisboa, a fundação do PDT é considerada pelo partido como data de redação deste documento, em de 17 de junho de 1979. Segundo o TSE, sua fundação só ocorreu em maio de 1980, com a concessão do registro em 1981. Ver em http://pt.wikipedia.org/wiki/Partido_Democr%C3%A1tico_Trabalhista , acessado em 22/09/2013.   

“organizar com o nosso povo um Partido verdadeiramente nacional, popular e democrático” (Id. Ibid) frente às “tentativas das forças autoritárias de esmagar os movimentos dos trabalhadores” (Id. Ibid) e observa um quadro de “vontade de institucionalizar a espoliação de nossa gente e (...) manutenção de uma estrutura política e econômica inaceitável para o povo brasileiro” (Id. Ibid) e reconhece que “Partido e Povo organizado constituem, por conseguinte, as duas condições fundamentais para a construção de uma sociedade democrática.” (Id. Ibid, p. 686). A Carta caracteriza ainda o PDT como “um Partido Popular Nacional e Democrático, o nosso novo PTB” (Id. Ibid), cujo objetivo é “a construção no Brasil de uma sociedade socialista, fraterna e solidária, em Democracia e em Liberdade.” (Id. Ibid). Na Carta de Lisboa o PDT aponta seus direcionamentos e se compromete a “exercer o papel renovador que desempenhávamos antes de 1964 e em razão do qual fomos proscritos” (Id. Ibid, p. 687), bem como “reconduzir o Brasil a uma institucionalidade democrática em que todo o poder emana do povo e seja por ele periodicamente controlado através de eleições livres e diretas” (Id. Ibid). A veia social-democrata advinda das experiências do grupo de Darcy e Brizola no exterior pode ser percebida através do compromisso de “afirmar, em lugar do primado do lucro, a prioridade de dar satisfação às necessidades vitais do povo, especialmente as de alimentação, saúde, moradia, vestuário e educação.” (Id. Ibid). Por fim, a Carta registra ainda a importância que o resgate da sigla PTB tinha para os ideais daquele grupo político ao ressaltar “a repulsa àqueles que veem no ressurgimento do PTB uma sigla de fácil curso eleitoral.” (Id. Ibid, p. 690). Costa (2011) define o nascimento do novo partido:

No início dos anos oitenta do PTB nascia o PDT. Transitando entre antigas e novas tradições, as “virtudes” eram incorporadas ao projeto renovador. Quanto aos “vícios”, poucas reflexões sobre as suas origens e razões, mas muitas promessas de não mais repeti-los. Eles haviam ficado para trás com o “velho PTB”. O que importava era o “novo trabalhismo”. [...] O novo trabalhismo possuía referências fundamentais em Getúlio Vargas e no governo de João Goulart, mas o grande elemento agregador era, sem dúvida, a figura emblemática de Leonel Brizola. Mais do que o antigo PTB, esse movimento reivindicava as heranças do “trabalhismo brizolista”. A sua liderança popular e a ousadia da sua ação revolucionária no pré-64 – muitos o consideravam o segundo maior líder revolucionário do país após Luiz Carlos Prestes – empolgavam distintos setores das esquerdas brasileiras. (COSTA, 2011, p.s/n)  

De acordo com Sento-Sé (2004), apesar do teor enfático da Carta de Lisboa, as lideranças do partido, na ocasião de sua formação, ainda buscavam o modelo político mais adequado para o país e para a identidade do partido naquele momento. A coluna Que socialismo é esse? , publicada no jornal Espaço Democrático , periódico lançado pelo PDT nos anos 80, era espaço recorrente de análises e opiniões de figuras importantes do partido acerca do assunto. Na ocasião, o PDT era, na concepção de Sento-Sé, um partido ainda em formação, processo esse acelerado pelas eleições, mas que ainda estava buscando suas raízes. Brandão Monteiro, que viria a ser Secretário de Transporte do primeiro governo Brizola afirmou que “em primeiro lugar nós temos que garantir a consolidação democrática do país. Não podemos dar um salto para o socialismo sem que as massas organizadas possam direcionar o nosso processo político” (Sento-Sé, 2004, p.60) . Luiz Alfredo Salomão, que viria a ser Secretário de Obras e de Meio Ambiente do governo Brizola acreditava que “a sociedade deve estar envolvida não apenas na consulta e na definição do planejamento, como na definição e na supervisão dos atos governamentais” (Id. Ibid).

O partido se define como defensor da “democracia, do nacionalismo, socialismo, um partido nacional e popular.” (CHACON, 1981, p. 691), um partido que traz uma proposta de “um projeto alternativo de sociedade para o Brasil.” (Id. Ibid) e que se caracteriza por ser “um partido de massas, vivo, moderno, com intensa vida partidária.” (Id. Ibid, p.692). O conteúdo programático do partido enfatizava de forma veemente a participação popular, o que em parte pode ser explicado pelo contexto político que o Brasil vivia na época e em parte pela veia socialista do PDT, que emerge à medida que se exalta o “trabalhismo democrático” (Id. Ibid), que toca no entendimento do conceito de trabalho enquanto um valor “não apenas econômico, mas, igualmente, humano, ético, cultural e político.” (Id. Ibid). Voltar os olhos para o trabalhismo, no entendimento do partido é valorizar a integridade e os interesses do país, que é fruto “das lutas, da criatividade e, sobretudo, do trabalho de seu povo.” (Id. Ibid, p.693). O PDT entende o povo brasileiro como “a maior riqueza e fonte de afirmação do Brasil” (Id. Ibid) e acredita que “tendo acesso ao saber e à cultura, condições de vida e saúde, um ambiente de liberdade e justiça, ele transformará o nosso País, rapidamente, em uma grande Nação.” (Id. Ibid). No plano econômico, a perspectiva socialista e nacionalista também se fazem presentes pelo fato do partido demonstrar preocupação com a “emancipação   econômica do país, assegurando, dentro de um regime de garantia de trabalho, a satisfação prioritária das necessidades básicas do povo brasileiro.” (Id. Ibid).

O plano econômico do partido contava com as seguintes medidas para garantir tal emancipação: intervenção do Estado na obtenção de pleno emprego com ênfase especial na utilização da força de trabalho como fonte geradora do progresso; aumento substancial do salário-mínimo de forma a assegurar o poder de compra do trabalhador; política global de distribuição de renda que elimine as violentas desigualdades sociais; combate ao colonialismo interno, eliminando a espoliação de umas regiões por outras; combate à inflação através de uma política de austeridade que não recaia sobre os assalariados; democratização do uso e posse da terra através de uma reforma agrária que (...) assegure a posse de terra aos que nela trabalham; orientação da produção industrial e agrícola, prioritariamente, para a satisfação das necessidades populares de alimentação, habitação e vestuário; implantação de um plano nacional de ciência e tecnologia apoiado na comunidade científica nacional e que atenda às necessidades tecnológicas do país, em particular da empresa pública e nacional, só recorrendo à tecnologia externa em caráter supletivo; a presença e ação do capital estrangeiro deverão ser disciplinadas por legislação que estabeleça rigorosamente sua admissão somente em casos especiais; participação acionária dos trabalhadores nas empresas, através de fundos de participação.

Sento-Sé (2004) ressalta que na ocasião em que o partido foi criado, ainda não era permitida a criação de partidos comunistas, o que só ocorreria em 1985, a partir da instauração da Nova República, fato que não impediu que o PDT abrigasse lideranças de ideologia marxista, tais como Francisco Julião e Edmundo Muniz. Esse último, inclusive, acreditava ser “o momento, no Brasil, de criar um partido revolucionário, capaz de mobilizar as massas de todas as camadas sociais, conforme a originalidade brasileira, tendo em vista o desenvolvimento desigual de nossa vida econômica.” (SENTO-SÉ, 2004, p. 63). No entanto, a questão da luta de classes não teria sido a linha orientadora do partido, visto que vários setores do PDT a conceberiam sem o potencial suficiente para assumir o protagonismo da atividade política do partido. Darcy foi bastante contundente nesse sentido:

  

Se quisermos uma explicação para a maior parte das coisas, temos que partir do fato de que o que determina o destino de cada pessoa é a classe em que ela nasceu. Nada é explicável sem referência à luta de classes. Mas é uma estupidez querer reduzir tudo à luta de classes. Por exemplo, mais importante do que a luta de classes é a lei da gravidade. Mas ninguém diria que quando o catarro cai pra baixo do nariz é pela lei da gravidade. Não é. É outra coisa. Agora, tem muita gente que confunde o catarro com a lei da gravidade e diz que tudo é luta de classes. Tem outras coisas, além da luta de classes no mundo. Há, por exemplo, a infecção intestinal. (RIBEIRO, 1984 In: SENTO-SÉ, 2004, p. 64) Darcy Ribeiro rejeitava a luta de classes como tema central na atividade política do PDT e fazia uma análise da questão socialista como o caminho para a conquista dos instrumentos de poder do Estado, via eleições, para, a partir daí, passar o Brasil a limpo . A questão do socialismo dava a tônica do PDT e do novo trabalhismo. Cibilis Vianna, ex-assessor de Brizola quando este governou o Rio Grande do Sul, definiu o socialismo em relação ao trabalhismo como “a continuidade desse mesmo movimento. Hoje, nós achamos que a visão trabalhista seguiria normalmente, seu caminho, desembocando no socialismo democrático” . (SENTO-SÉ, 2004, p.69) Para Sento-Sé, entender o trabalhismo como a versão brasileira do socialismo significava abraçar a tradição do primeiro e retomá-la de onde foi interrompida. Esse socialismo tinha diversas abordagens, como ressaltado pelo autor:

Pode-se perceber que a pergunta sobre o conteúdo do socialismo encampado tinha muitas respostas plausíveis. Dá máxima de Juruna (1984), “[...] socialista mesmo é a tribo de índio”, à remissão ao passado da população brasileira de (1984), “O socialismo brasileiro tem que basear, irredutivelmente, na experiência quilombolista, se não quiser ser uma flor de estufa”, passando pelas inspirações solidarista, eurocomunista, marxistas de várias tendências e trabalhistas idem, o socialismo democrático dos novos trabalhistas tinha várias cores. Daí, talvez, o alcance do adjetivo moreno, expressão da mestiçagem fundamental que marca a formação étnica da sociedade brasileira. Ele traduzia, certamente, o traço que unia correntes e apaziguava, ainda que precariamente, as tensões internas: a defesa incondicional de se encontrar o tom local, o modo brasileiro de ser socialista. Em suma, uma intuição nacionalista atravessava o discurso de novos e velhos trabalhistas voltados para a conquista de um espaço privilegiado do qual pudessem interferir nos rumos futuros da política brasileira em um de seus mais delicados e férteis momentos. (SENTO-SÉ, 2004, p.72) Assim, o novo partido articulava suas ações em torno de socialismo, democracia e trabalhismo, pautado em dois pilares: a importância da figura de Leonel Brizola como liderança política incontestável no partido, o que gerou uma adesão irrestrita dos   membros do PDT a seu líder, a ponto de o novo trabalhismo ser chamado por alguns de brizolismo e uma veia nacionalista que se traduz na fala de Darcy:

A posição socialista é a posição dos que querem passar o Brasil a limpo, no sentido de fazer com que o Brasil se torne habitável, para que todos os brasileiros tenham os mínimos indispensáveis. Mínimos a partir dos quais nós passaríamos a existir como povo civilizado entre outros. Esse mínimo é o socialismo brasileiro. E um socialismo brasileiro surgirá de nossa história, com a nossa carne e com a nossa cor, moreno. Um socialismo brasileiro começa por assumir o povo moreno que nós somos, mas sobretudo a nossa pobreza. Assumir esta pobreza sabendo que ela dá lucro para muita gente. Muita gente quer que o país continue assim. Nós somos contra isso. (RIBEIRO, apud SENTO-SÉ, 2004, p.73) Para que os ideais trabalhistas e socialistas do PDT chegassem ao povo, o partido definiu 18 , inicialmente, sete pontos prioritários de atuação: defesa dos interesses dos trabalhadores, das mulheres, das populações negras, indígenas e da natureza brasileira, assistência à infância e aos jovens e recuperação de concessões feitas a grupos estrangeiros “lesivas ao patrimônio e à economia nacionais”.

É pelo PDT que Brizola se candidata a Governador do Estado do Rio de Janeiro com Darcy candidato ao cargo de Vice-Governador, em 1982. A seguinte fala de Darcy representa sua importância no projeto do PDT:

Brizola me fez secretário de Ciência e Cultura, chanceler da Universidade, diretor do Municipal, da Funarj, da Faperj (fundação de pesquisas), coordenador do carnaval, construtor do sambódromo e agora Coordenador do Programa de Educação [...] De vez em quando Brizola diz que sou o Israel Pinheiro dele (o tocador de obras do Juscelino). (RIBEIRO, apud ZARVOS, 2007, p. 131)

 18 Ver em FUNDAR, Fazimentos. Caderno 8. Rio de Janeiro, Outubro de 2009.  

3.1 – O CAMPO POLÍTICO NO RIO DE JANEIRO E A EFERVESCÊNCIA ELEITORAL-MIDIÁTICA DO PLEITO DE 1982

O ano de 1982 tornou-se emblemático no processo de reabertura democrática. Foram as primeiras eleições a serem realizadas no Brasil depois de acontecimentos políticos significativos para o Brasil, tais como o fim do AI-5, a concessão da anistia política e o estabelecimento do sistema pluripartidário. Some-se isso ao fato de ser um ano eleitoral para os quadros do Senado, Câmara dos Deputados, Legislativos Estaduais, Câmara de Vereadores, além das prefeituras e do governo do Estado. Cessava-se, assim, um período de vinte anos sem eleições diretas para o executivo. Esse cenário movimentou o campo político, através de rompimentos, alianças e debates. Essa efervescência já começara na reforma partidária de 1979, que rompeu com o bipartidarismo, dando lugar ao pluripartidarismo, fato que, em tese, permitia a formação de correntes políticas mais homogêneas. Um exemplo de rachadura interna escancarada pelo pluripartidarismo foi o número de partidos oposicionistas que surgiram a partir de discordâncias internas do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e da Aliança Renovadora Nacional (ARENA). A ARENA deu lugar ao Partido Democrático Social (PDS) e do MDB surgiram o Partido Popular (PP), onde predominavam os adeptos do chaguismo 19 e o Partido Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), que buscava se caracterizar por um viés oposicionista em relação ao MDB.

O novo cenário político vigente foi se tornando complexo devido às novas regras do jogo democrático. Entre elas, pode-se destacar a Lei Falcão e a Lei do Voto Vinculado. A Lei nº 6.339, promulgada em 1 de julho de 1976, mais conhecida como Lei Falcão, devido ao então Ministro da Justiça, Armando Falcão, rezava que as propagandas eleitorais dos partidos políticos na televisão deveriam limitar-se a simples menção da legenda partidária e dados dos candidatos, tais como número, foto e horários de comícios. O objetivo era evitar uma exaltação oposicionista e, principalmente, ataques aos militares. Para 1982, mesmo diante de todo o cenário de abertura democrática, a lei fora apenas reformulada, permitindo debates entre os candidatos e propaganda paga na televisão. A Lei do voto vinculado rezava que somente os votos que demonstrassem coerência partidária seriam considerados válidos. Essa medida fez com que todos os partidos em disputa necessariamente precisassem apresentar candidatos para todos os

 19 Sobre o Chaguismo, ler MOTTA, Marly Silva da. Mania de Estado: o chaguismo e a estadualização da Guanabara. História Oral , São Paulo, nº 3, p.91-108, jun. 2000.    cargos disponíveis. Esse cenário favoreceu PMDB e PDS, os únicos partidos que já possuíam uma estrutura para articular tantas candidaturas em seus quadros. O PMDB, inclusive, agregou em seu quadro os políticos do recém-criado PP, criando um ruído interno, já que a base do MDB – que havia ficado no PMDB – não aceitava bem a hipótese de estar sob o controle do grupo de Chagas Freitas que saíra para o PP e fora obrigado a retornar naquele momento. Sob essa tensão, dois nomes influentes deixaram o partido: Nelson Carneiro se juntou ao PTB e Saturnino Braga ingressou no PDT.

Os partidos recém-criados ainda precisavam de um número mínimo de filiados para serem considerados válidos em um quadro partidário tão complexo. Buarque de Holanda (2005, p. 50) caracteriza essa complexidade como uma tentativa de inibição de surgimento de novos partidos, que teriam dificuldade em atender a tantas exigências burocráticas, ao afirmar que “após quase vinte anos de cerceamento dos esforços políticos organizacionais e de exclusão de militantes de esquerda, as forças partidárias buscavam, a passos lentos, promover a reformulação de seus quadros.” Assim, partidos recém-criados – entre eles o PDT – corriam risco de extinção.

As dificuldades do novo cenário eleitoral não afetavam apenas a estrutura partidária. À dificuldade na organização do partido agrega-se a grande preocupação em orientar os eleitores para votar da maneira correta, isto é atendendo aos dispositivos da Lei do voto vinculado. A reabertura democrática trouxe, em pouco tempo, um turbilhão de informações e havia a preocupação de que muitos votos válidos se perdessem na burocracia das novas regras. As reportagens abaixo do Jornal do Brasil, em outubro e setembro de 1982, respectivamente, demonstram a preocupação em orientar o enorme eleitorado que compareceria às urnas de todo o Estado do Rio de Janeiro no dia 15 de novembro daquele ano.   

Figura 01 – Reportagem do Jornal do Brasil em 01/10/82 mostra grande quantidade de eleitores esperada pelo TRE

Figura 02 – Reportagem do Jornal do Brasil em 07/09/82 traz campanha educativa do Ministério da Justiça sobre o voto vinculado.   

Buarque de Holanda (2005) atesta que, mesmo diante das dificuldades impostas pelo novo cenário político, o pluripartidarismo promoveu também o significante alargamento das possibilidades de voto, o que acabou gerando, ainda, nas diferentes esferas da sociedade civil, uma grande ebulição eleitoral e uma grande expectativa de mudança. Nessa confusão de vinculações e ideologias, grande parte dos candidatos ao Governo do Estado do Rio de Janeiro buscou evitar o rótulo de situação e atribuir a si a perspectiva de mudança (Buarque de Holanda, p.51). A perspectiva da população por novos rumos tornava a continuidade estigmatizadora e essa foi a marca do período eleitoral (ibidem) onde todos os candidatos buscavam se distinguir através de estratégias e discursos, levantando diferentes bandeiras:

Nesse sentido, o debate em torno do que seria boa ou má oposição moldou, em grande medida, a interlocução entre os candidatos. As questões específicas de governo pareciam gravitar em torno dessa reivindicação. As metas definidas como prioritárias contribuíam para configurar projetos políticos que, em última instância, deveriam representar a melhor opção de mudança. Seguindo esta lógica, Sandra apontava para a necessidade de investimentos no campo, além de buscar uma identificação massiva com o público feminino; Miro atentava para a urgência de modernização e ampliação da polícia; Lysâneas destacava a importância do estímulo à organização de movimentos populares; e Brizola falava em educação e na promoção dos direitos humanos da classe pobre. (Buarque de Holanda, 2005, p. 55) Somada a essa expectativa, tem-se um quadro político no Rio de Janeiro marcado por um hibridismo e uma indefinição política: O trabalhismo, característico do PTB em sua origem passa a ter mais afinidade com o conteúdo programático do PDT, enquanto que o “novo” PTB passa a se identificar (por abarcar) com o Lacerdismo. O PDS tem a tônica ditada por Ernani do Amaral Peixoto e os seus seguidores do MDB. Os candidatos a governador do Estado do Rio de Janeiro refletem essa pluralidade de concepções.

Sandra Cavalcanti, professora do Instituto de Educação, foi vereadora pelo antigo Distrito Federal em 1954, Deputada Estadual pela Guanabara em 1960, mandato que não cumpriu até o fim por aceitar o convite de Carlos Lacerda para ser sua Secretária de Serviços Sociais. Sua atuação nesse cargo provocou polêmicas e acusações de remoções de favelados sem a devida preocupação com a questão humana e social dos removidos. Sandra fora acusada ainda de estar preocupada apenas em “limpar” os morros da zona sul e de ter autorizado incêndios premeditados em moradias e afogamentos de mendigos    no Rio Guandú. Pesou contra a imagem de Sandra Cavalcanti a maneira com que conduziu políticas de remoção em bairros de baixa renda no Rio de Janeiro, tais como a Favela do Pasmado e Favela do Pinto. Sandra ficou estigmatizada por ter orientado o Corpo de Bombeiros a queimar a Favela do Pasmado para por fim a uma praga de ratos no local. Desse episódio ficou a alcunha de “desgostosa dos pobres”. Em 23 de julho de 1982, o Jornal do Brasil publicou a declaração de um morador de comunidade referindo-se a Sandra: “Ninguém na Rocinha gosta dela. Foi ela quem disse que favelado é ladrão. Aí a polícia... vai lá e pega a gente!” Esse assunto ganhou proporção, fazendo com que a mídia interpelasse os outros candidatos ao governo do Estado acerca do assunto, tornando a política de habitação um importante ponto da agenda eleitoral.

Sandra Cavalcanti também fora filiada na ARENA, onde exerceu o cargo de presidenta do Banco Nacional de Habitação, cargo que abandonara após o rompimento entre Carlos Lacerda e os militares. Em 1974, exerceu mandato de Deputada Estadual pelo Rio de Janeiro antes de ingressar no PTB, já nos anos 80, partido pelo qual se candidatou ao governo do Estado, em 1982.  O PTB possuía uma expressão política bastante relevante. De acordo com Souza, Lima Júnior, Figueiredo (1985), o partido, desde 1946 até a ascensão do Regime Militar, concentrou no Rio de Janeiro, ao lado da UDN, quase que a totalidade dos eleitores.

Essa popularidade do partido, ao menos inicialmente, deu força a Sandra, visto que uma das primeiras pesquisas de opinião divulgadas acerca do pleito eleitoral daquele ano não era muito favorável a chapa Brizola-Darcy, conferindo apenas 5,4% das intenções de voto ao candidato do PDT. Miro Teixeira, mesmo com o apoio de Chagas Freitas, vinha em segundo lugar, com 23% enquanto Sandra Cavalcanti liderava com expressivos 51,7% das intenções de voto 20 . Sandra tinha bastante espaço na mídia, principalmente no programa de rádio de Haroldo de Andrade, da Rádio Globo e na Revista VEJA, que em abril de 1982, estampou Sandra em sua capa como um “fenômeno”, favorita para vencer as eleições:

 20 Índices do IBOPE, publicados na edição de 14/03/1982 do Jornal do Brasil.   

Figura 03 – Sandra Cavalcanti, candidata do PTB, exaltada na Revista VEJA de Abril de 1982

No entanto, embora tenha tido bastante projeção na mídia, a campanha de Sandra Cavalcanti sofreu alguns percalços que diminuíram consideravelmente suas intenções de voto. A Lei Falcão restringiu a exposição dos candidatos na mídia e Sandra não foi efetiva em encontrar alternativas a isso, já que nos debates televisivos muitas vezes demonstrava temperamento explosivo quando provocada. O voto vinculado também foi um problema para sua campanha, já que os eleitores precisavam votar em todos os candidatos de uma mesma legenda e o eleitorado de Sandra Cavalcanti dividiu-se com o surgimento da candidatura de Moreira Franco, que tinha o mesmo público que Sandra como carro chefe de seu eleitorado. Posteriormente, Moreira Franco acabou tomando uma considerável fatia dos eleitores de Sandra. A declaração de Mauricio Cibulares, coordenador-geral da campanha de Sandra, ao Jornal do Brasil em 01 de outubro de 1982 refletiu os motivos da queda de Sandra: “Ela atingiu até 60% da preferência em uma fase em que o PDS ainda não tinha candidato, e tinha acesso aos meios de comunicação. Isto, sem contar a ausência da necessidade da vinculação dos votos.” Enfrentando todas essas adversidades, Sandra baseou sua campanha na tentativa de criar uma identificação com o público feminino e com o eleitor de baixa renda, especialmente da Baixada Fluminense, um dos grandes redutos eleitorais do Rio de Janeiro. Em   carreatas por Madureira, Nilópolis e São João de Meriti, Sandra Cavalcanti usava de críticas fortes ao que classificava frequentemente como “desgoverno do Estado” e prometia promover mutirões de trabalhadores como uma forma emergencial de combater o desemprego e a falta de saneamento básico e falta de água. Nas palavras de Sandra, o plano era “criar frentes de trabalho na Baixada Fluminense”, onde os trabalhadores ganhariam “de dois e meio a três salários mínimos para capinar, colocar manilhas de esgoto, canos de água, limpar valas”. Discursava também prometendo acabar com a informalidade de vendedores ambulantes e falava em investimentos no subúrbio. A visita de Sandra a esses municípios envolvia uma carreata que anunciava a “futura Governadora desse Estado, a mulher que vai promover a redenção do Rio de Janeiro” (JB, 04/11/82). Em suas visitas aos municípios Sandra fazia duras críticas aos adversários, referindo-se ao Deputado Jorge Leite, do PMDB, como “capitão hereditário, apadrinhado do Governador Chagas Freitas, que pensa ser o dono daqui.” As críticas eram direcionadas também àqueles que “estão na praia, dizendo que vão votar em Brizola, Miro ou em Moreira. Eles não sabem o que é falta d’água nem querem saber do povo.” (JB, 05/11/82) Essas críticas eram uma execução do que Mauricio Cibulares, coordenador-geral da campanha do PTB, já havia declarado em 01/10/82 ao Jornal do Brasil como estratégia de campanha: “polarizar sempre com quem estiver na frente”.

Miro Teixeira, jornalista e advogado, foi reporter do jornal O Dia – que pertencia a Chagas Freitas e possuia grande circulação no Rio de Janeiro, especialmente na Baixada Fluminense – foi Deputado Federal em três legislaturas, 1970, 1974 e 1978, pelo MDB. Participou, junto com Chagas Freitas, em 1979, da Criação do Partido Popular (PP). Em 1981, o partido foi incorporado ao PMDB e Miro foi indicado para ser o candidato a sucessão de Freitas no pleito de 1982. Nem mesmo o rompimento do MDB e a criação do PMDB foi capaz de apagar a situação desgastada pela baixa aprovação popular do governo e mesmo a ala opositora do partido ainda carregava o estigma clientelista da máquina chaguista, não conseguindo passar à população a confiança necessária nem corresponder às expectativas de mudança, de um novo fôlego, diferente da figura de Chagas Freitas. Diante deste quadro, o candidato do PMDB para o governo do Estado, Miro Teixeira, ocupava grandes esforços de sua campanha empenhando-se em desvincular sua imagem do chaguismo e se colocar como representante de oposição, como podemos ver nesse anúncio do Jornal do Brasil no dia 01 de outubro de 1982:  

Figura 04 – Miro Teixeira, do PMDB, se apresenta como candidato de oposição.

Enquanto Miro se caracterizava como candidato de oposição, representante da democracia, a estratégia do PMDB falava em unidade e utilizava a figura do então Governador Chagas Freitas na tentativa de capitalizar votos. Na reportagem abaixo, Chagas Freitas pede apoio a Miro e ao PMDB para que seu programa pudesse ter “continuidade de governo”.

Figura 05 – Governador Chagas Freitas discursa em Araruama por apoio a Miro Teixeira e ao PMDB

Chagas Freitas, dono do Jornal o Dia, mantinha um estreito vinculo com a imprensa que não fazia questão de esconder:  

Quando acabar meu mandato? Eu volto para o meu jornal. Sou jornalista desde os 14 anos e quero voltar às minhas origens. Estou confiante na vitória do PMDB porque é um Partido que cumpriu o seu programa e, consequentemente, realizou diversas obras importantes. (JB 06/11/82) Chagas Freitas utilizava com maestria da esfera jornalística para alavancar sua trajetória política. Através do Jornal O Dia, consolidou 21 para si uma imagem populista, baseada em preocupações sociais, principalmente com as esferas mais pobres da população. O Jornal O Dia foi um importante divulgador da marca chaguista e Chagas Freitas utilizava também o veículo para oferecer visibilidade a Miro Teixeira. Em 09 de maio de 1982, o jornal O Dia chegou a estampar em suas páginas uma pesquisa eleitoral que marcava 58% das intenções de voto para Miro Teixeira, contra 13,8% de Sandra, 13,5% de Lysâneas Maciel e 13,1% de Brizola. A polêmica de Sandra Cavalcanti com as políticas de remoção, supracitadas nesse trabalho, ganhavam as páginas do Jornal de Chagas Freitas, numa clara tentativa de estigmatizar a então candidata do PTB.

No entanto, apesar desse aberto apoio de Chagas Freitas e da tentativa de unificar ideologicamente as figuras políticas do PMDB, Miro Teixeira insistia em se colocar como inovação, como representante de mudança, estratégia que se apresentava muito atraente para os candidatos ao governo do Estado devido ao contexto político da ocasião, mas que, no caso de Miro, acabou criando uma rachadura interna no PMDB, fato que acabaria por emperrar sua candidatura. O apoio de Chagas Freitas e sua figura desgastada politicamente, parecia não agradar, ao menos publicamente, a Miro Teixeira, que falava em tentativa de ser levado para “política de clientela”, numa referência às insistências do PMDB para que Miro retirasse de sua assessoria regional o comando de sua campanha e a unificasse para a esfera federal, numa clara tentativa de dar coesão ao partido e fôlego à figura do Governador Chagas Freitas. No entanto, Miro via como negativa a participação de Chagas Freitas em sua campanha e deixou de comparecer a eventos públicos do Governo Estadual, como inaugurações de obras, numa clara tentativa de desvinculação, ameaçando inclusive romper publicamente com os políticos vinculados a Chagas Freitas. O trecho abaixo, de reportagem do Jornal do Brasil de 05 de outubro de 1982 resume bem o desencontro interno do PMDB na ocasião:

 21 Ver sobre o assunto em http://www.webartigos.com/artigos/a-utilizacao-do-jornal-o-dia-na- maquina-politica-de-chagas-freitas/78902/ , acessado em 02/07/2012.  

Figura 06 – Manchete do Jornal do Brasil mostra desconforto de Miro Teixeira ao ser vinculado ao chaguismo.

Essa rachadura interna desgastava a candidatura do PMDB, à medida que demandava esforços do partido para desfazer a imagem estigmatizada que se estampava na mídia e nos demais ciclos da sociedade. Um bom exemplo dessa tensão foi o debate sobre o chaguismo no Teatro Casa Grande, no Leblon, em outubro de 1982, que contou com a presença de João Carlos Serra, um dos nove assessores diretos de Miro Teixeira, como mediador do debate. Estiveram presentes também, o Deputado Jorge Leite, a economista Maria da Conceição Tavares, o filósofo Leandro Konder, o cientista político César Guimarães e o candidato a vereador Sergio Granja. A fala do Deputado Jorge Leite 22 foi enfática na tentativa de quebrar essa imagem. De acordo com Leite, “Alguns segmentos do PMDB insistem em descobrir defeitos no Governador Chagas Freitas, criticá-lo e condenar o chaguismo.” Leite e o partido sabiam que esse tipo de notícias praticamente arruinariam as possibilidades de vitória e demonstrou isso ao dizer que “a 40 dias das eleições, porém, estamos alimentando o racha e a divisão. Falo em nome do

  As frases extraídas do discurso do Deputado Jorge Leite, do PMDB, podem ser conferidas na edição do Jornal do Brasil do dia 05/10/82, na reportagem intitulada “Chaguista” pede trégua para Miro vencer.    pessoal do extinto PP: podem nos criticar, mas deixem para fazer isto depois das eleições.”. O apelo de Leite veio acompanhado de uma tentativa de valorizar a figura do governador Chagas Freitas enquanto um diferencial capaz de conduzi-lo à vitória: “Eu nunca tive esta preocupação, mas agora quero mesmo ser chaguista para valer e vou ganhar a eleição em cima do chaguismo.” É importante notar ainda que, naquele momento da campanha eleitoral, os adversários já eram unânimes em admitir o bom momento de Brizola e seu grupo e se referiam ao PDT como o único adversário a ser batido, polarizando as eleições. Leite foi bem claro nesse sentido ao referir-se aos pontos de campanha do PDT quando afirmou que:

Precisamos de menos reuniões e mais agitação de rua. Estamos fazendo debate sobre chaguismo enquanto o adversário está na Central do Brasil, na Cinelândia e na Praça Quinze. Não vejo nenhuma vantagem em procurar impingir agora ao Governador ou ao seu Governo defeitos – quem não os tem? – e assumo o que digo: repelimos a palavra clientela e se ela continuar a ser a bandeira da campanha do PMDB, temo pela nossa vitória, pois se a gente brincar, perde a eleição. (JB 05/10/82) A tentativa desenfreada de se desvincular da alcunha de chaguista, tão estigmatizada pelo povo fez com que Miro se aproximasse da esquerda do PMDB, o que esvaziou ainda mais sua campanha, visto que o próprio Chagas, nos estágios finais da campanha, abriu mão do apoio irrestrito a Miro Teixeira, retirando deste a coluna que possuía no Jornal O Dia, e dando igual espaço a Brizola e Moreira Franco nas páginas de seu periódico. O jornalista Francisco Pedro do Coutto, ilustrou bem a ruptura com Chagas Freitas como ponto primordial para o fracasso da campanha de Miro Teixeira:

Chagas tinha no Miro Teixeira um filho. Arrancou a campanha, lançou Miro candidato, mas de repente o candidato, deixando-se levar pelos “luas-pretas”, começou a enveredar por outro caminho. Convenceram o Miro de que ele era um líder de esquerda e de que o Chagas ia pesar contra. Até que um dia ele fez um debate na televisão com a Sandra Cavalcanti e reconheceu que o Chagas era um produto da ditadura. (...)E Miro Teixeira, depois do rompimento com o Chagas, ficou sem apoio. Chagas ficou possesso e cortou a coluna dele n’O Dia. O jornal passou a noticiar por igual Brizola, Miro e os outros. O próprio Chagas disse numa matéria n’O Dia que todos os quatro, Lysâneas, inclusive, estavam com condições de governar o Estado. Ora, uma declaração dessas desabou o Miro. O Miro só não desabou mais porque o voto era vinculado. Se você permitisse que o cara do PMDB desse voto ao Brizola, Brizola teria ganhado muito mais facilmente do que ganhou. O partido dele era fraco no Rio, não tinha estrutura. Mas o PMDB tinha. Os 20% que o Miro teve não foram votos dele, foram votos da estrutura do partido no Rio. (AMORIM & PASSOS, 2005, p.217-220)  

Lysâneas Maciel, advogado, atuou defendendo presos políticos após o golpe militar de 1964. Em 1970 foi eleito Deputado Federal pelo MDB, destacando-se por sua atuação em prol dos direitos humanos enquanto membro da Comissão de Constituição e Justiça. Releito em 1974, assume o cargo de Presidente da Comissão de Minas e Energia e sua atuação em prol da manutenção do monopólio da Petrobrás recebe elogios. Em 1976 é cassado pela ditadura e faz exílio na Suíça, onde trabalha na Comissão de Justiça e Serviço do Conselho Mundial de Igrejas Cristãs e na Comissão de Direitos Humanos e de Refugiados ligados à ONU. Lysâneas conviveu com Brizola a partir de 1978, ainda no exílio quando, em Genebra, dialogavam constantemente sobre a social-democracia europeia e suas vertentes. Sobre essa época, Lysâneas (CPDOC/ALERJ, 2003, p. 28) afirma ainda ter sido uma espécie de mentor político para Brizola que, de acordo com Lysâneas, “entrou nisso desconhecendo completamente o que era a social-democracia europeia. Em muitos países era nazismo. A social-democracia alemã, com o Schmidt, era verdadeiramente nazista. Com Willy Brandt não, já era uma pessoa evoluída.” A parceria continuaria e Lysâneas foi um dos pilares da formação do PDT, tendo atuado como um dos redatores do Manifesto de Lisboa. No entanto, após algumas divergências ideológicas entre Brizola e Maciel, o último migrou para o PT, que segundo o próprio Lysâneas Maciel:

[O PT] era uma proposta nova, limpa, cheia de esperança. O PDT tinha aqueles três defeitos que eu citei [caudilhismo, peleguismo e a manipulação populista] — porque os defeitos do Brizola são os defeitos do PDT; ele é que manda, ele é que dá o tom e não admite que se faça restrição. Eu dizia: “Mas assim não é possível, vamos apoiar beltrano, sicrano.” Ele não queria. Então eu vi que o ambiente nãoestava bom. Quando surgiu uma proposta nova, repito, limpa, cheia de esperança, me interessei. (CPDOC/ALERJ, 2003, p. 32)

A campanha de Lysâneas Maciel e do PT procurou focar em grupos desfavorecidos e/ou minorias sociais. Essa bandeira era refletida através do quadro da chapa do partido que continha 44 candidatos lavradores, 57 operários e 24 oriundos de favelas. Em 01 de novembro de 82, em comício em Piabetá, Lysâneas discursou em defesa de lavradores da Fazenda Santa Rosa, que estavam sob ameaça de despejo, prestou homenagem a um militante do PT que fora assassinado três dias antes. Neste mesmo dia, esteve em Magé, onde discursou em defesa de lavradores e do Sindicato de Trabalhadores Rurais, que enfrentava uma ação de remoção por parte da Prefeitura local. Em 04 de novembro do mesmo ano, o Jornal do Brasil publicou declaração de Lysâneas, na véspera, na Assembleia Legislativa, afirmando que haveria confronto “caso algum candidato eleito   pelo sentimento oposicionista seja impedido de tomar posse.” Essa edição do Jornal do Brasil trouxe ainda denuncia de Lysâneas de que o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) teria pedido dinheiro do PT para melhorar a cotação no partido nas pesquisas eleitorais. Sobre a denúncia, Lysâneas demonstrou confiança na campanha do PT e afirmou que “eles querem desmoralizar o PT e amedrontar, mas achamos que essas pesquisas influenciam apenas os setores mais intelectualizados, porque as bases estão firmes”.

A aposta nas bases transformava-se também em escudo, bandeira de campanha. Em passeata do PT na Tijuca “para firmar o compromisso do Partido dos Trabalhadores com o movimento das mulheres”, um morador, do alto de um prédio atirou diversos panfletos de Brizola sobre os candidatos do PT. Foi quando Lélia Gonzalez, candidata a Deputada Federal usou um megafone para bradar que “somos pobres e entregamos panfleto de mão em mão e não temos dinheiro para jogar panfletos para o alto.” (JB, 05/11/82). A aposta nos setores de base serviu de escudo também à confissão de uma popular, a nutricionista Lidea Costa, que disse ter vontade de votar no PT, mas que achava seus candidatos “imaturos”. Diante da crítica, Lysâneas retrucou: “posso até perder o seu voto, mas o que distingue o PT dos demais partidos é justamente a formação da chapa, com candidatos favelados, humildes, pobres, mas não imaturos. Essa sua argumentação é a mesma do regime”.

O partido voltou a exaltar as mulheres em passeata pela Cinelândia. Diversas mulheres estiveram presentes para protestar contra a discriminação, violência e desigualdade sexual. Nesta ocasião, Lysâneas Maciel aproveitou para ressaltar a “plena integração entre homens e mulheres no PT” e discursou em prol da “proposta socialista, afetiva, fraterna e não desumanizante” do partido: “propomos um socialismo em liberdade e total solidariedade às nossas companheiras do PT, em igualdade de condições, e algumas até em superioridade”. (JB, 06/11/82)

Outro público com o qual a candidatura do PT buscava se associar eram os evangélicos. Lysâneas era uma figura religiosa e em reportagem do dia 04 de novembro do Jornal do Brasil, citou o profeta Jeremias para dizer que “a maior revolução do mundo foi feita por um carpinteiro e alguns pescadores, gente humilde.” Essa frase é um resumo da campanha do PT, visto que engloba o aspecto religioso e os setores de base. Lysâneas encerrou declarando que a grande virtude da Assembleia de Deus – igreja que   frequentava – era “dar aos trabalhadores humildes e analfabetos um sentido de identidade, de grupo, com direito a voz e voto.” Nessa frase de Lysâneas é possível perceber que o candidato ao Governo do Estado via, ou pelo menos pretendia transmitir, uma similaridade entre a ideologia da Igreja e do Partido dos Trabalhadores.

Figura 07 – Manchete do Jornal do Brasil mostra a identificação de Lysâneas Maciel, candidato do PT, com a religião evangélica.

Outro sinal claro da estratégia do candidato Lysâneas Maciel e do partido em causar grande aprovação da campanha nos setores de base da sociedade foi a estratégia do PT de organizar um comício na Cinelândia que, segundo a edição de 01/10/82 do Jornal do Brasil, “fantasiou de vermelho e branco” e formou “A maior concentração popular da campanha eleitoral no Rio de Janeiro até hoje”. Para tal feito, o partido contou com a presença da atriz Lucélia Santos, e com o então presidente nacional do partido, Luiz Inácio Lula da Silva. Lula buscava envolver os eleitores com frases de efeito e declarou que “Os poderosos podem matar uma, duas ou até três rosas, mas jamais conseguirão deter a primavera. E esta primavera é o PT.” Lula não poupou críticas ao Governo Estadual, citando a dificuldade do PT em manter a estrutura partidária: “Enquanto nós estamos passando uma sacola no meio do povo, para ajudar a conseguir recursos para o  

PT, os Srs. Moreira Franco e Chagas Freitas passam a mão no bolso do povo.”. As críticas se estenderam também ao Governo Federal: “Eles não vão acabar com a gente não. Mesmo que falem que a classe trabalhadora cria problemas para eles, os grã-finos que governam este país. A verdade é que eles são vagabundos e precisam de nós para produzir.” Lula ainda foi incisivo ao citar de forma negativa a Rede Globo e políticos da situação:

Não adianta a Globo inventar o Povo e o Presidente nem ele ir à televisão com cara de Madalena arrependida para dizer que vai resolver os problemas do povo. Porque se ele fosse bom, não teria Ministros como Delfim Neto, Murilo Macedo, Cesar Cals e Jair Soares e um Governador como Maluf. (JB, 01/10/82)

Figura 08 – Manchete do Jornal do Brasil mostra participação de Lula em campanha do PT ao Governo do Estado do Rio de Janeiro.

Mesmo diante das estratégias supracitadas, a campanha de Lysâneas Maciel e do PT não conseguiu a mobilização necessária para serem levados em consideração na reta final da campanha. Esse fato pode ser melhor compreendido ao analisarmos a entrevista concedida por Lysâneas Maciel ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), anos depois, em 1998, quando Maciel caracteriza sua candidatura como:  

Uma malandragem do José Eudes. Eu entrei para o PT com a condição de não ser candidato a governador e de eles não atacarem o Brizola e os companheiros que eu considerava. Mas, como o voto era vinculado, e não ter um candidato a governador prejudicaria a eleição de deputados federais e estaduais, o PT me lançou candidato. Se nós tivéssemos uma votação boa, elegeríamos uns dois estaduais e uns três federais. Mas no fim eles me abandonaram, a pretexto de não sei o quê. O mesmo grupo do Vladimir Palmeira. Alguns até foram em direção ao Brizola. Eu mesmo recomendei que votassem no Brizola, porque havia uma possibilidade de o Moreira se eleger. Nos 10, 15 dias finais, aconselhei o voto no Brizola, senão ganharia o Moreira. (CPDOC/ALERJ, 2003, p. 35)

Moreira Franco, sociólogo, iniciou a vida política partidária em 1972, filiando-se ao MDB, através de seu então sogro, o Senador Amaral Peixoto 23 . Em 1975, torna-se Deputado Federal pelo Rio de Janeiro, cargo para o qual se reelegeu mais duas vezes, exercendo o mandato de 1975 a 1977. Em 1978 assume a prefeitura de Niterói. Junto de Peixoto, junta-se ao PDS no fim do bipartidarismo, partido pelo qual disputa as eleições para governo do Estado do Rio de Janeiro, em 1982.

O Jornal do Brasil, em 01/10/82, noticiou a participação de Moreira Franco na Reunião Plenária da Indústria e Comércio (PLENINCO), onde convidou os empresários a apoiarem o presidente Figueiredo e a “cerrar fileiras em torno do projeto de redemocratização”. Na visão de Moreira, o presidente Figueiredo “tem estado muito só”, uma vez que “o próprio Partido do Governo é, às vezes, muito silencioso em seu apoio.” Moreira aproveitou a oportunidade para dizer que “o grande desafio brasileiro dos anos 80 é o de uma política social.” Moreira Franco fazia das questões sociais uma das bandeiras de sua candidatura, tendo como slogan o jargão “casa, comida e emprego” e discursou nesse sentido na PLENINCO ao afirmar que:

  Ernani do Amaral Peixoto foi interventor no Estado do Rio durante o Estado Novo (1937- 1945), governador eleito de 1951 a 1954, e várias vezes deputado e senador. Foi presidente nacional do PSD de 1952 e 1965, organizou a partir de então o MDB fluminense e, com a fusão do Estado do Rio com a Guanabara em 1975, passou a disputar o comando do partido com Chagas Freitas, procurando atrair para seu grupo os autênticos do MDB. Após a extinção do bipartidarismo em 1979, ao perceber que, a despeito da ida de Chagas para o PP, seu grupo político continuaria em minoria dentro do PMDB, decidiu ingressar no Partido Democrático Social (PDS), criado para substituir a Arena, antigo partido de apoio ao regime militar. Ver DHBB , op. cit. e Artes da política; diálogo com Amaral Peixoto (org. Aspásia Camargo, Lucia Hippolito, Maria Celina Soares de Araújo e Dora Rocha Flaksman. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,1986). Ver em MACIEL, Lysaneas. Lysaneas Maciel (depoimento, 1998). Rio de Janeiro, CPDOC/ALERJ, 2003.   

Existe uma população de 1 milhão e 500 mil favelados que vive em áreas sem zoneamento, sem serviços públicos e sem cuidados de saúde. O que hoje constatamos é a alienação das elites intelectuais, políticas, empresariais e trabalhadoras com relaçao aos problemas do Estado e a deteriorização da máquina administrativa pelo predomínio de valores clientelisticos e pela corrupção. (JB, 01/10/82) O uso do termo clientelismo na declaração acima pode ser interpretado como uma crítica ao então governador do Estado, Chagas Freitas e, consequentemente, ao seu candidato a sucessão ao Governo do Estado, Miro Teixeira, do PMDB. Em tempo de reabertura democrática, em que as concepções políticas se alargavam, as palavras chaguismo e clientelismo estavam cada vez mais associadas e de uma maneira negativa, pelo menos no que diz respeito à repercussão pública.

As críticas brandas, sem ataques pessoais, com o intuito de mostrar a imagem de uma pessoa serena, eram outra estratégia de campanha de Moreira Franco. Em 03 de outubro de 1982, em visita a Magé, Moreira Franco criticou a postura dos adversários e afirmou (JB, 04/10/82) que a campanha eleitoral até então se resumia a uma participação pública violenta dos candidatos que estavam “estraçalhando uns aos outros numa linguagem violentíssima, que agride as tradições democráticas de nosso povo e tira toda a seriedade de que precisamos para ter um Governo capaz de resolver os problemas que esse povo tem.” Mais do aproveitar suas aparições públicas para criticar a postura de seus adversários, Moreira Franco utilizava propagandas de página inteira em jornais para fazê-lo, e se colocar como o candidato “de muito trabalho, responsabilidade e sobretudo, dignidade”. A publicação diz que Moreira era o candidato que devolveria a dignidade ao Rio, “sem ofensas e acusações que ferem antes de tudo o nosso próprio povo.”  

Figura 09 – O candidato ao Governo do Estado do Rio de Janeiro pelo PDS, Moreira Franco, utiliza propaganda de página inteira em edição do Jornal do Brasil.

A utilização dos meios de comunicação – que ficaram restritos no pleito eleitoral de 1982, em decorrência da Lei Falcão – também marcou polêmica envolvendo a candidatura de Moreira Franco e do PDS. Durante o período de campanha, Moreira Franco lançou um livro que teve propaganda divulgada na televisão. O fato é que a propaganda continha cenas da campanha eleitoral do PDS, o que feria a Lei Falcão. A propaganda foi divulgada pela Globo, tanto na televisão quanto no rádio, além de outras emissoras de grande audiência, como TV Tupi e TV Bandeirantes. A exposição maciça na mídia não agradou aos adversários políticos do PDS e o caso foi parar no Tribunal Regional Eleitoral (TRE) devido a ação movida pelo PDT, como mostra a reportagem abaixo, do Jornal do Brasil de 04 de novembro de 1982:  

Figura 10 – Propaganda Eleitoral foi tema de batalha judicial entre PDS e PDT

Moreira Franco mais uma vez respondeu com críticas brandas, com um tom irônico no que diz respeito à repercussão das movimentações de seu partido, o PDS, na campanha eleitoral: “os meus adversários, que vivem vigiando a minha campanha e vociferando nas portas dos tribunais, deviam ser mais inteligentes e criativos para contornar os efeitos da Lei Falcão.” Moreira argumenta que as dificuldades impostas pela Lei atingiam a todos os candidatos e que, ao questionar os métodos de sua campanha, os adversários nada mais estariam fazendo além de “o jogo da Lei Falcão, incompatível com a abertura.” Moreira continuou criticando os adversários ao dizer ter certeza da vitória. Ao analisar a situação de seus adversários, classificou Miro Teixeira como “um candidato já derrotado e praticamente fora da disputa eleitoral (...) que já foi julgado pela opinião pública” e Brizola como “portador de ideias carcomidas pelo tempo transmitidas aos eleitores através de discursos demagógicos”. (JB, 06/11/82).

Para ter tanta certeza do resultado favorável, Moreira Franco contava com seu passado político em Niterói, onde fora prefeito e possuía uma base eleitoral forte. O Jornal do Brasil de 04 de novembro de 1982 traz declaração de Moreira Franco em visita à cidade durante a campanha eleitoral “Sinto-me na minha cidade, na minha casa. E pelo que vi   nos bairros, em caminhada, tenho consciência de que cumpri com meu papel, minha obrigação perante as pessoas.” Moreira Franco via na boa administração em Niterói um trampolim para o Governo do Estado, uma vez que, em sua concepção, a população da cidade “acreditaram, como acreditam ainda, que poderei fazer pelo Estado do Rio o que fiz por essa cidade.” A expectativa do PDS “por uma votação maciça do outro lado da Baía” de fato se justificava, visto que o partido esperava arrecadar pelo menos 50% dos 260 mil votos de Niterói na ocasião.

Faltando poucos dias para a votação, a disputa já se encontrava polarizada entre Brizola e Moreira Franco, fato que justifica o aquecimento das disputas judiciais envolvendo PDS e PDT. O PDS, apoiado pelo presidente João Figueiredo e ministros, já demonstrava preocupação com o crescimento da candidatura do PDT, como mostra a publicação da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul:

De Brasília começam a chegar os primeiros sinais de desconforto dos militares com os rumos da eleição no Rio. A abertura poderia ter sido lenta, gradual – como gostava de repetir o general Ernesto Geisel – mas não parecia ser assim tão segura. Os ministros da Marinha, Maximiliano da Fonseca, e da Aeronáutica, Délio Jardim de Matos, mandam recado aos eleitores do Rio de Janeiro advertindo sobre os riscos que a eleição do candidato do PDT representa para o processo de abertura política. Vindo de quem vinham, advertências que soavam como ameaças. Espalha-se o boato de que, se eleito, Brizola não assume. ( SÉRIE PERFIS PARLAMENTARES - Leonel Brizola : perfil, discursos e depoimentos (1922-2004). 2004, p.124)

Diante da iminência real de perder as eleições, um cenário inimaginável no início da disputa, o presidente Figueiredo empenha-se pessoalmente na candidatura de Moreira Franco. O presidente passa a estar presente na campanha de Moreira, numa tentativa de fortalecer seu candidato. Um episódio que melhor simbolizou esse apoio irrestrito se deu na véspera da eleição, dia 14 de novembro. O “Show da Abertura", uma festa que na Quinta da Boa Vista – área de lazer bastante frequentada por moradores da Zona Oeste e Baixada Fluminense – que, além de Figueiredo e Moreira Franco, contou com artistas como The Fevers, Bateria da Portela, Alcione, Orquestra Sinfônica Brasileira e Sérgio Mallandro, que anunciara a presença de Dona Dulce, primeira-dama como “uma tremenda gatinha”, numa tentativa de criar uma empatia com o público. Os shows percorreram bem, mas Dona Dulce e Figueiredo foram vaiados pela população. O presidente discursa para a multidão, mas não consegue terminar diante dos gritos de “Brizola, Brizola” ecoando do povo. O presidente passa então o microfone para Moreira  

Franco e a reprovação popular permanece. Após o vexame, Figueiredo confessa 24 a decepção para seus ministros. O show da abertura fora noticiado amplamente na televisão, em mais uma estratégia do PDS de mobilizar a população para a reta final da campanha. A propaganda maciça acabou criando mais uma polêmica sobre a questão da propaganda eleitoral. O PDT acionou a justiça, pedindo a proibição da transmissão do evento na TV, alegando se tratar de um “comício eleitoral”. No entanto, foram apenas parcialmente atendidos, uma vez que a Justiça Eleitoral vetou apenas a inclusão da música que caracterizava a campanha de Moreira Franco no evento. O Jornal do Brasil de 06 de novembro daquele ano noticiou a decisão:

Figura 11 – Propaganda Eleitoral foi tema de batalha judicial entre PDS e PDT

Leonel Brizola, cujo perfil já foi apresentado neste trabalho 25 , tinha a experiência de ter sido prefeito de Porto Alegre, Deputado Estadual e Deputado Federal pelo Rio Grande do Sul, Governador do Rio Grande do Sul, além de ter sido Deputado Federal pelo antigo Estado da Guanabara. Uma das preocupações do PDT era a possibilidade de que

 24 Ver em Revista Veja, 17/11/1982, O choque da vaia na festa do Rio de Janeiro.  Ver capítulo 1 deste trabalho.    as novas regras de vinculação de voto afetassem sua candidatura, uma vez que os votos que não observassem a questão da vinculação seriam anulados. Brizola e o PDT iniciam então uma ação pedagógica nesse sentido. Em comício em Angra dos Reis, em novembro de 1982, Brizola alertava seus eleitores: “Eles complicaram o voto para o trabalhador errar e eles continuarem no poleiro, mas vamos mostrar que vai ser a gente deles que vai errar, vai ficar nervosa na hora de votar.” Ainda no sentido dessa ação pedagógica que procurava preparar os eleitores tanto para votar corretamente quanto para compreender o contexto eleitoral da época, em novembro de 1982, o Partido fez circular jornal 26 com os seguintes dizeres:

Uma Brisa – Nova

Sexta-Feira Dia 12 Cinelândia

Venha de onde estiver para todos juntos e irmanados mostrarmos nossa força! Você não chegará atrasado, lá estaremos com BRIZOLA até o dia clarear! Não falte! Precisamos de você! Irmãos: Não se deixem enganar pelas noticias tendenciosas e mentirosas que vão colocar outros candidatos à nossa frente. Nossa força cresce mais a cada dia! Não teremos apenas a vitória! Teremos a maior vitória do Brasil! COLABORE COM A NOSSA VITÓRIA Queremos que você seja um dos fiscais do partido. É necessário termos uma forte defesa contra as fraudes que estão sendo tramadas, tanto no dia das eleições como na apuração. Procure a comissão de fiscalização na Rua 7 de Setembro, 5º andar, ou telefone para 231-0720 VOTAR É FÁCIL O Governo modificou o voto para assim se beneficiar dando a impressão que pode anular seu voto – mas não pode! Basta seguir essas regras simples: 1 – NÃO LEVE DE JEITO NENHUM cédulas entregues por estranhos. Há mil formas de enganar, e o Governo usará todas. 2 – LEVE um rascunho feito por você mesmo em casa e copie na cédula Oficial dentro da cabine. 3 – NÃO SE APRESSE a cabine é um direito seu. Demore quanto tempo precisar. 4 – VOTE em todos os cargos nos candidatos do PDT. Se não tiver candidato já escolhido, use algum da lista do PDT na cabine.  A publicação trazia ainda sete pontos principais em que se pautavam os princípios ideológicos da candidatura do PDT, todos eles de caráter popular, na tentativa de formar uma identificação com seus eleitores. Os dizeres eram:









 26 Ver Pasta DR.GBI. 1981.10.20  

Votar no PDT é votar:

Democracia

1- Na Democracia , pela devolução ao povo do direito de eleger governantes e legisladores honestos e competentes, a fim de fazermos do Brasil uma nação cada vez mais livre, mais justa e mais fraterna Trabalhismo 2- No trabalhismo que reconhecendo no trabalho a fonte de todas as riquezas, exige para os assalariados a estabilidade nos empregos, melhores salários e participação efetiva nos frutos do desenvolvimento e progresso. Participação Popular 3 – Na participação popular , fundada no compromisso de assegurar ao povo organizado meios de influir no governo e de co-governar, integrando nos órgãos colegiados de planejamento e de gestão pública representantes autênticos de cada setor, tais como: das associações de moradores na administração regional, de professores e estudantes nos órgãos de ensino, de artistas e intelectuais nas instituições culturais, de médicos e dentistas no sistema de saúde e de empresários, prefeitos e líderes sindicais nos bancos estatais. Nacionalismo 4 – No nacionalismo , inspirado na carta testamento , de Getúlio Vargas, que nos defenda contra todo tipo de imperialismo; que nos permita enfrentar estas máquinas de sucção dos recursos do Brasil que são as multinacionais e que nos liberte da usura do capitalismo internacional. Justiça 5 – Na justiça, que garanta aos brasileiros o direito de viver sem medo, num ambiente de paz, como todo povo civilizado, sem ameaças de novos golpes regressivos com respeito aos direitos sociais dos trabalhadores, e repressivo pela violência que desencadeiam sobre o povo. Socialismo Democrático 6 – No socialismo democrático que, em lugar de prometer melhoria das condições de vida do povo para depois de uma revolução catastrófica, exija que se passe a limpo a legislação social, a fim de garantir aos trabalhadores aqui e agora melhores salários, estabilidade, boas escolas públicas, assistência médica e dentária gratuitas e acesso à casa própria. Humanismo 7 – No humanismo que oriente a política econômica e cultural para atender às necessidades e às aspirações da população, combatendo o modelo econômico perverso e a orientação cultural obscurantista que se implantaram no Brasil com o crepúsculo da democracia. Apesar do texto supracitado ser de conteúdo extremamente político e complexo, uma das estratégias de campanha do PDT foi a de elaborar uma mensagem coerente com o capital que as camadas populares dispunham para operar naquele campo. O uso de cartilhas ensinando a votar e convocando os eleitores a participar das comissões do partido buscava atrelar a ampliação do entendimento político popular a uma identificação partidária favorável ao PDT. Ao mesmo tempo em que ensinava ao povo   técnicas para operar no campo da política, a propaganda eleitoral do PDT também levava o partido até o povo, utilizando a cultura popular em sua mensagem, fazendo uma analogia ao conhecido “jogo do bicho”. Nas imagens abaixo, pode-se perceber que a cartilha do PDT faz menção subliminar aos estigmas políticos de cada adversário, exaltando seus defeitos. Enquanto Brizola é associado à águia, por sua capacidade de “voar muito alto” e “enxergar muito longe”, Lysâneas Maciel é associado a um burro, por ter trocado “o certo pelo duvidoso”, numa referência ao fato do candidato do PT ter abandonado o PDT após ter participado da criação deste; Sandra Cavalcanti é associada à borboleta, símbolo da campanha da candidata do PTB. No entanto, na publicação do PDT, a associação se deve ao fato de ter “pousado em vários partidos”. Ao dizer que a borboleta deixa “ovos que se transformam em lagartas que se alimentam destruindo a vegetação”, o PDT se refere aos legados negativos que Sandra deixou nos cargos que exerceu, como a polêmica da habitação. Moreira Franco, por sua vez, é associado a um avestruz, “por seu estômago que aceita qualquer coisa” e pelo fato de que “quando em perigo, enfia a cabeça em qualquer buraco que aparece”. Por fim, Miro Teixeira é associado ao cachorro, “animal conhecido pela fidelidade ao seu dono”, numa alusão à ligação de Miro com o então Governador Chagas Freitas. A charge de Miro ainda vinha acompanhada dos dizeres “nem isso fez”, diante da tentativa do candidato do PMDB de se desvincular da imagem de chaguista:

Figura 12 – Propaganda Eleitoral do PDT associa Brizola à Águia  

Figura 13 – Propaganda Eleitoral do PDT associa Lysâneas Maciel ao burro.

Figura 14 – Propaganda Eleitoral do PDT associa Sandra Cavalcanti à borboleta e Moreira Franco ao avestruz.  

Figura 15 – Propaganda Eleitoral do PDT associa Miro Teixeira ao cachorro.

Brizola e o PDT procuravam ao máximo usar os estigmas políticos de seus adversários e escancarar suas alianças comprometedoras para se diferenciar dos mesmos. Em 04 de novembro de 1982, o Jornal do Brasil noticiou comício de Brizola em Angra dos Reis, onde, diante de dois mil operários, Brizola desafiou os adversários a mostrarem suas raízes políticas:

Nós vamos vencer estas eleições. Mas não vamos vencer para brincar de política. Vamos trabalhar para o ser humano e não servir ao capitalismo. Não viemos enganar ninguém, somos a continuidade do velho PTB, do velho Getúlio Vargas. Eles que digam o que são 27 . (JB, 04/11/82) Ainda nessa estratégia de se diferenciar dos outros candidatos, Brizola buscava uma aproximação com o povo. Em setembro de 1982, circulou na cidade a Cartilha da Legalidade que contava, através de quadrinhos, a história de vida de Brizola, marcada por uma infância pobre e superação para adentrar no mundo político. Os obstáculos, dramaticidade e superação era a tentativa de estabelecer um elo comum com a população carioca. O candidato do PDT atacava pontualmente o que considerava os pontos fracos de seus adversários. No que diz respeito a Lysâneas Maciel, Brizola (JB, 19/09/82), dizia que ao ouvir o discurso “único e imutável” do então candidato do PT, tinha a certeza de estar “diante de uma reprise. A memória remeteu-o à rigidez ideológica, ao radicalismo, à presunção e à arrogância de quem sabe tudo e para tudo tem solução, típica da mensagem do PCB nos idos de 1945,1950”. No que diz respeito às polêmicas de Sandra Cavalcanti com a questão da habitação, Brizola posicionou-se sobre o assunto mostrando o que Buarque de Holanda (2005) define como a marca de

 27 Grifos do autor deste trabalho   sua candidatura, uma trajetória eleitoral ascendente pautada em grande apelo popular combinado à ênfase num perfil opositor. Brizola afirmara que todo barraco de favela devia ser reconhecido tal como outro domicilio qualquer, demandando mandato judicial para remoção e entrada a força da polícia. A ideia de reconhecimento dos moradores de favela enquanto detentores de iguais condições frente aos outros moradores da sociedade, claramente vinculou a candidatura do PDT aos eleitores de menor poder aquisitivo.

Brizola prosseguia com as críticas às alianças políticas de seus adversários e se dizia “o único oposicionista sem cumplicidade”. Os adversários de Brizola e seu grupo na luta pelo governo do Estado tiveram dificuldades em se livrar da alcunha de continuidade política e de heranças políticas fracassadas e pouco democráticas. Como destaca Buarque de Holanda (2005), nenhum deles conseguiu como Brizola construir uma imagem contundente de mudança:

Este destaque inesperado da candidatura brizolista foi interpretado por boa parte dos analistas políticos da época como resultado de seu bom desempenho nos debates televisivos. A oportunidade de exposição pública aliada a seu desempenho reconhecidamente carismático teriam servido para a consolidação de uma imagem política em franca oposição tanto ao legado militar como ao chaguismo. Além disso, a veiculação de um discurso que mesclava tradicionalismo e modernidade na abordagem de questões sociais se mostrava atraente do ponto de vista eleitoral. (BUARQUE DE HOLANDA, 2005, p. 60)

Buarque de Holanda define bem os motivos das vantagens que a chapa Brizola-Darcy possuía ao se caracterizar como oposição:

Um partido novo como o PDT emergia no ambiente partidário sem vínculos com o passado, podendo, com maior legitimidade diante do eleitorado, atribuir a si o compromisso com a ruptura. A formulação de um discurso abertamente oposicionista, fundado no repúdio tanto à conjuntura estadual como à nacional, imbuía o candidato pedetista numa dupla recusa que, em grande medida, refletia os anseios da população por mudança. (BUARQUE DE HOLANDA, 2005, p.51- 52)

Brizola era o presidente nacional do PDT, fato que, somada a sua experiência política, possibilitava que o candidato ao governo do Estado do Rio de Janeiro transitasse em outras praças eleitorais. No dia 01 de novembro de 1982, o Jornal do Brasil noticiou a participação de Brizola, na véspera, em comício no Rio Grande do Sul, em apoio a  

Alceu Collares, então Deputado e candidato à governador do Estado do Rio Grande do Sul, como mostra a imagem abaixo:

Figura 16 – Reportagem do Jornal do Brasil em 01/10182 mostra participação de Brizola em comício no RS.

Essa participação em outras praças era na verdade um intercâmbio que marcou a campanha de Brizola e do PDT. Além de se associar constantemente em seus discursos 28 a figuras nacionais como Getúlio Vargas, João Goulart e Roberto Silveira, Brizola apoiava e buscava apoio de líderes de outras regiões do Brasil. Ainda no período eleitoral, a campanha de Brizola e do PDT recebeu, durante 15 dias, Francisco Julião, ex-líder das Ligas Camponesas de Pernambuco, organização que primava pela distribuição de terras e demais direitos dos camponeses. Julião era mais um dos nomes que se aliara ao quadro de políticos do PDT após exílio fora do país. Ao chegar ao Rio para participar da campanha de Brizola, Julião (JB, 03/10/82) afirmou que atuaria “sobretudo na Baixada Fluminense, onde tem muito pernambucano e campesinato.” Em comício na região, Francisco Julião tratou de deixar clara a intenção do PDT de unir

 28 Ver em Jornal do Brasil, Brizola faz comício em Angra, 04/11/1982.   esforços das demais regiões do Brasil em prol da vitória de Leonel Brizola: “A vitória de Leonel Brizola é uma questão de justiça histórica e venho aqui, meus companheiros, trazendo a palavra do Nordeste e de Pernambuco que quer a vitória de Brizola.”.

Figura 17 – Francisco Julião apoia Brizola e o PDT.

Outra personalidade esquerdista de grande expressão política a apoiar a candidatura do PDT, agregando relevância e capital político à mesma, foi Luís Carlos Prestes, ex- secretário geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que, em 04 de novembro de 1982 foi a Niterói participar de evento político do PDT, discursou para operários, citou a União Soviética como um país promotor da paz mundial, almoçou com estudantes da Universidade Federal Fluminense (UFF) nas dependências da instituição e classificou Brizola como capaz de resolver inúmeros problemas do Rio de Janeiro de forma imediata, caso vencesse as eleições para o governo do Estado:  

Figura 18 – Luis Carlos Prestes apoia Brizola e o PDT.

A candidatura de Brizola teve uma crescente que o tirou do anonimato midiático. Apesar de, em abril de 1982, o candidato do PDT ter sido citado pela revista Veja como “candidato sem chances”, o desenrolar favorável da campanha fez com que no fim de setembro daquele ano a revista reconsiderasse sua opinião. No dia 22 daquele mês, classificou Brizola como “a moda carioca” que “emergia das águas rasas das pesquisas eleitorais”. A revista ressaltava o crescimento de Brizola que ganhara adesão dos universitários e popularidade no reduto “entre o Hotel-Sol Ipanema e o Country Club”. Ainda naquele mês de setembro, mais precisamente no dia 29, a revista VEJA publica matéria colocando quatro candidatos com chances de vencer as eleições. Segundo a publicação, apenas Lysâneas Maciel se encontrava “fora do páreo”, enquanto que os outros candidatos estavam envolvidos em “um afunilamento nas posições”. A revista já alertava que “o crescimento de Brizola é consistente e contínuo”, mas ressaltava que o mesmo esbarrava “nas diminutas dimensões do PDT, que só tem a preferência de 8% dos eleitores fluminenses, contra 17% do PDS e do PTB e 27% do PMDB.” Embora seu   crescimento não pudesse mais ser ignorado, a revista via a questão partidária como empecilho para a candidatura de Brizola.

Figura 19 – Reportagem da revista Veja mostra disputa acirrada em eleição no RJ.

O Jornalista Francisco Pedro do Coutto classificou posteriormente o crescimento de Brizola como inevitável:

Sempre senti que o Brizola, que tinha saído com 6%, ia subir. Só podia subir. Estava havendo indefinição, junto às classes pobres havia espaços muito abertos. Brizola tinha uma história política e estava enfrentando adversários muito fracos para a categoria dele. A categoria dele é outra. Ele é um homem, afinal, que poderia ter chegado a presidente da República. Foi enfrentar quem? Miro Teixeira, Sandra Cavalcanti... Eram adversários fracos para ele, muitos fracos. Moreira até surpreendeu. Sempre sustentei que nos dias finais da campanha Brizola teria uma tendência de crescimento muito grande, como sempre acontece com os candidatos preferenciais da classe pobre. Ao falar de uma professora que trabalhava como servente, Brizola se emocionou. Foi naquele debate da Globo que ele passou a frente nas pesquisas. (COUTTO In: AMORIM & PASSOS, 2005, p.218-219) Brizola passa, então, a integrar o grupo que tinham chances de vencer as eleições. O ostracismo midiático do início da campanha já não podia ser mantido e Brizola ganhava espaço na mídia. O cenário eleitoral na mídia foi ficando ainda mais favorável ao candidato do PDT à medida que, em outubro, passou de candidato com chances a protagonista de um “novo salto”. Classificando o eleitor carioca como “o mais instável   do país” – talvez numa tentativa de justificar seus erros de previsões – a revista VEJA de 27 de outubro de 1982 mostra que “candidato do PDT se isola na liderança”, destacando ainda que Brizola cumprira sua promessa quando anteriormente havia declarado “vamos engoli-los como se toma um prato de mingau: pelas bordas.”. Naquele momento, a campanha de Brizola e do PDT entrava de vez nos noticiários, fato que não ocorria no início da campanha, que se caracterizou por uma demarcação dos espaços midiáticos: Sandra Cavalcanti ocupava a revista Veja, Moreira Franco o jornal O Globo, Miro Teixeira o jornal O Dia. A barreira estava quebrada e Brizola ganhava espaço, tanto para noticiar seu crescimento, quanto a oposição a ele.

Figura 20 – Reportagem da revista Veja mostra crescimento de Brizola.

Ainda que a revista Veja não deixasse de noticiar o crescimento de Brizola na reta final da campanha, nas páginas da mesma era possível perceber certa apreensão com o aumento de popularidade da candidatura do PDT. Em 06 de outubro, Elio Gaspari que na ocasião era editor da revista publica uma carta ao leitor fazendo uma análise que associa o crescimento de Brizola a “uma teoria marota, a do voto útil”. O voto útil, na concepção de Gaspari era o voto que “que leva o cidadão a votar em outro não porque ele mereça o voto, mas porque é útil votar nele”. A carta tinha a intenção de alertar o leitor e entre os avisos de Gaspari estavam os fatos de que “se se vota sem compromisso, então os eleitos terão a força dos desacompanhados” e que votar em  

Brizola significava “anistiar suas aventuras anistiadas, como a sua conexão cubana, e sua demagogia do presente, como a candidatura do cacique Juruna.” Gaspari aproveitou ainda o espaço para lançar um aviso ao eleitor: o de que “o voto (...) ao contrário de uma emoção política, que pode ser fugaz, tem a duração de um mandato de quatro anos.”.

Figura 21 – Elio Gaspari critica Brizola em carta ao leitor da revista Veja.

As palavras de Gaspari se justificavam primeiro porque a revista Veja apoiava a candidatura de Sandra Cavalcanti e do PTB e segundo pelo fato de que a campanha do PDT ganhava cada vez mais relevância, fazendo com que os adversários encarassem Brizola como o adversário a ser batido. O Jornal do Brasil do dia 14 de novembro de 1982, véspera da eleição, define a campanha de Brizola e do PDT:

Um vento de renovação e liberdade, dignidade e de competência sopra vigorosamente sobre o Rio de Janeiro. Cassado e perseguido pelo golpe de 64, Brizola sofreu 15 anos de exílio sem poder voltar à sua Pátria [...] E é justamente no Rio que Brizola retorna à vida pública, trazendo uma proposta de governo moderno (esteve no Uruguai, Estados Unidos e Europa, de onde voltou reconhecido como um dos principais líderes latino-americanos), humano, competente. (JB, 14/11/82) Julgo oportuno ressaltar que a rejeição midiática a Brizola não era completa, uma vez que, de acordo com Rodrigues (1998), o candidato do PDT possuía apoio da TV Manchete, do Jornal do Brasil, além dos jornais Última Hora e Pasquim, além das Rádios JB e Tupi. Os rádios, particularmente, constituíram importante veículo de   comunicação na campanha de Brizola, o que em parte pode ser justificado pela grande desenvoltura e oratória apresentada nos debates, conforme atesta Sarmento:

A partir dos meses de agosto e setembro, porém, Brizola passaria a frequentar muitos programas de rádio e a atrair maior atenção para suas participações nos debates entre candidatos. Ao melhor desempenho de Brizola nos meios de comunicação de massa, correspondeu um aumento evidente no índice de intenções de voto. Brizola saltou, nesses mesmos dois meses, de 10% para 23% e 26%. Em matéria publicada na edição de 2 de setembro, a revista Veja anunciava a estratégia brizolista de ocupação de todos os espaços disponíveis para veiculação, através de canais de radiofusão, de seus discursos. Segundo a revista, Brizola estava começando a ser “percebido” pelo eleitorado fluminense justamente pelo bom uso do de sua contundente oratória. (SARMENTO, In: FERREIRA, 1998p. 54)

O bom momento da campanha do PDT fez aumentar a oposição a Brizola. Os jornalistas Paulo Henrique Amorim e Maria Helena Passos (2005) comentam a capa do jornal O Globo da mesma data: O Globo chegou às bancas com um editorial de capa que recomendava voto em Moreira Franco. Dizia que Brizola possuía um encantamento pela retórica fácil do oposicionismo generalizado. Citava seu passado incendiário como dado de personalidade, atestava seu mau desempenho com o fato de não ter feito o sucessor no Rio Grande do Sul. E aproveitava uma declaração desbocada de Darcy Ribeiro para mostrar que o partido de Brizola não tinha quadros para constituir o governo, só tinha candidatura. Já Moreira Franco era descrito como alguém com comprovada capacidade administrativa – a qualidade- chave para a escolha, segundo o editorialista. O jornal informava que, no Rio, PDS e PMDB equilibravam as forças políticas do Estado. (AMORIM & PASSOS, 2005, p. 36-37) Naquele momento da campanha, Brizola atraía a preferência de grande parte do eleitorado, e o pleito eleitoral começara a se polarizar em torno de sua figura, seja a favor ou contra ela. Alguns adversários, inclusive, usavam o fato de ser oposição à Brizola e ao PDT como uma espécie de capital, na tentativa de angariar algum tipo de popularidade e adesão, como mostra o anuncio a seguir, de Deputado Estadual do PTB:  

Figura 22 – Cronista se caracteriza como anti-Brizola.

Essa oposição aberta e declarada se estendeu, no fim da campanha, a um artifício usado por Moreira Franco, único candidato que aquela altura possuía chances de derrotar Brizola e o PDT nas eleições para o governo do Rio de Janeiro. No dia 14 de novembro, de 1982, véspera da eleição, a disputa pelos votos permanecia acirrada. Moreira Franco e o PDS divulgam propaganda de página inteira no Jornal do Brasil. A propaganda, ao invés de simplesmente enaltecer o candidato do PDS, polarizava ainda mais a disputa eleitoral ao trazer em letras garrafais os dizeres “Agora é Moreira ou Brizola” e fazia dez perguntas que, ainda segundo a publicação, decidiriam a eleição. A propaganda buscava um teor de incerteza ao referir-se a Brizola, com perguntas do tipo: “Quem pode afastar as indústrias, os empregos, o comércio para outros Estados, com medo do que pode acontecer no Rio: Moreira ou Brizola?” e “Quem pode gerar um clima de violência, de insegurança, provocando greves e desemprego: Moreira ou Brizola?”, ao mesmo tempo enfatizava uma estreita ligação entre Moreira Franco e o Presidente João Figueiredo como capaz de trazer vantagens à população do Rio de Janeiro, com perguntas tais como “Quem conta com o apoio pessoal do presidente João Figueiredo e terá acesso a ele a qualquer hora que precisar para defender os interesses do nosso Estado: Moreira ou Brizola?” e “Quem vai tornar o Rio mais tranquilo, colocando um guarda em cada esquina e fazendo desse guarda amigo da comunidade: Moreira ou Brizola?”  

Figura 23 – Propaganda eleitoral do PDS polariza disputa com PDT e Brizola.

Na mesma edição do Jornal do Brasil, o PDT também publicou uma propaganda de página inteira, sob o título de “Porque Brizola”, no intuito de tranquilizar os eleitores de que o candidato do PDT seria a escolha correta. Na publicação, Brizola define as metas de seu governo, citando a intenção de “modernizar a economia do Estado” e o desejo de promover o “progresso social”. A publicação deixa clara ainda a preocupação de Brizola com o desenvolvimento que deve alcançar “a totalidade da população e não só a segmentos minoritários e privilegiados”. Brizola garante que os favelados terão assegurados “em sua plenitude, os direitos humanos”. Com relação à educação, a publicação assegura que “todos os professores desempregados serão contratados, numa campanha de escolarização integral” e que “serão criados centros educacionais em todas as favelas e bairros mais pobres”. A questão da educação se desenrola pela preocupação do candidato do PDT com a infância, que é “a meta prioritária de Brizola”. As propostas da agenda de campanha do PDT buscavam “restituir ao Rio sua alegria tradicional”. A publicação da campanha enaltece também a figura de Darcy Ribeiro, peça importante na concretização das propostas de governo do PDT. Na publicação, Darcy é citado como um personagem “intelectual, socialista, Ministro da Educação e chefe da Casa Civil do   governo deposto de João Goulart. E todos precisam saber que votar em Brizola para Governador é votar automaticamente em Darcy Ribeiro para Vice-Governador.”.

Figura 24 – Propaganda política do PDT enaltece Brizola.

Já no dia seguinte ao pleito eleitoral, a vitória de Brizola e do PDT era projetada e proclamada por diversos veículos da imprensa. Um exemplo foi a capa do Jornal do Brasil daquele dia 16 de novembro que estampava em letras garrafais: “Ibope dá vitória a Brizola no Rio”.  

Figura 25 – Manchete do Jornal do Brasil mostra dados do IBOPE com vitória de Brizola.

No entanto, o que era para ser o fim da disputa eleitoral e a confirmação da vitória de Brizola sob Moreira Franco, marcou o início de um período de acusações, incertezas e de projeções jornalísticas a espera do resultado oficial. A apuração das urnas foi bastante nebulosa e mais um capítulo da disputa política se desenrolava a medida que se levanta a suspeita de uma tentativa de fraudar o resultado das urnas. De acordo com Paulo Henrique Amorim e Maria Helena Passos 29 (2005), “a tentativa de fraude começou na escolha da empresa que ia contar os votos.” Os autores sustentam tal afirmação a partir da negação do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) de participar da licitação pela apuração, alegando não estar apto a realizar ao mesmo tempo eleições majoritárias municipais e estaduais. Outra empresa de processamento de dados, a Datamec, também se retirou, alegando não ter mais interesse no projeto eleitoral. As desistências de Serpro e Datamec deixaram o caminho aberto para a Proconsult, empresa que, ainda de acordo com Amorim e Passos, era associada a antigos colaboradores do regime militar. Amorim e Passos (2005, p.36) atestam ainda que Brizola fora avisado de uma fraude contra sua candidatura nas vésperas da eleição,

  Ver mais sobre a polêmica apuração das urnas no Rio de Janeiro em “Plim-Plim: a peleja de Brizola contra a fraude eleitoral”, 2005.    quando, na madrugada do dia 14 de novembro de 1982 o candidato a governador do Estado pelo PDT “atendeu a um telefonema da mesma voz de mulher que sempre fornecia a ele os dados quentinhos das pesquisas realizadas pelo SNI sobre as eleições do Rio. Desta vez, ela informava sobre um plano de sabotagem na totalização do pleito.” O aviso foi a deixa para que o PDT montasse um sistema paralelo de apuração, ideia que já tinha sido levantada anteriormente, mas foi descartada por Brizola. Com a suspeita de fraude, no entanto, Cibilis Vianna, secretário-geral do partido recruta César Maia para a tarefa da apuração. Sobre este episódio, posteriormente César Maia afirmou que:

O mais grave de tudo já acontecia durante a campanha. O Brizola recebia informações que batiam com as que o (Elio) Gaspari noticiou em outubro, sobre a presença do SNI na articulação política do PDS e outras atividades de campanha. Por essa razão, no dia seguinte à publicação da matéria, ele me pediu através do Cibilis (Viana, secretário-geral do PDT) que montasse uma apuração paralela. (...) Às vezes, a fonte do Brizola podia não ser primária, mas era segura. Ele teve informação de que haveria fraude, senão não me mobilizaria na véspera. Já teria feito o esquema de apuração paralela há muito tempo ou não faria nunca. (AMORIM & PASSOS, 2005, p.162) Ficou conhecida como diferencial delta a artimanha que os computadores da Proconsult usavam para transformar em votos válidos para Moreira Franco e o PDS todo e qualquer voto branco e nulo do eleitorado do Rio de Janeiro, fazendo com que Moreira superasse Brizola e vencesse o pleito eleitoral. Além disso, no dia da apuração, a empresa postergava o anúncio dos resultados das regiões onde Brizola e o PDT possuíam a maioria dos votos, para dar a impressão de que Moreira estava mesmo a frente na disputa. Posteriormente, Francisco Pedro do Coutto, jornalista político que na ocasião trabalhava no Jornal do Brasil, confirmou as estratégias usadas pela Proconsult para alterar o resultado final do pleito eleitoral, na tentativa de tirar do PDT a vitória: Eu, que sempre prestei atenção nos votos brancos, disse: “olha, só há uma maneira de se fraudar uma eleição: é preencher o voto branco. Não existe outra. Se eu emendar um voto, deixo prova de que foi emendado. Mas, se eu preencher um voto branco, não há prova nenhuma”. Vejam o caso da Bahia, do Ornelas contra o Waldir Pires: em alguns lugares, o voto branco vinha dando 10, 12%, de repente dá 2%, e o Ornelas tem até mais voto que o Antônio Carlos... É evidente que preencheram o voto branco. Mas você não tem prova, não deixa rastro, é só fazer um x. Continuei: “Então, prestem atenção. Se o voto branco baixar, é porque roubaram”. A Rede Globo botava na frente as áreas em que o Moreira estava mais forte e não apurava os votos da Baixada e da cidade do Rio. Brizola estava com 42% aqui e 50% na Baixada, mas estava fraquíssimo no interior: em ¼ do eleitorado tinha 9%. (COUTTO In: AMORIM & PASSOS, 2005, p.220-221)  

No dia 18 de novembro daquele ano, diante dos avisos da tentativa de fraude, Brizola convoca a imprensa internacional, se autoproclama eleito com base em apurações paralelas do PDT e da imprensa e se diz vítima de uma manobra ilegal que lhe tiraria a vitória nas urnas. Ainda naquele dia, vai à Rede Globo de televisão a solicita sua entrada no ar, ao vivo, para falar sobre o caso. Então, às 22 horas, concede entrevista aos jornalistas , André Gustavo Stumpf e Paulo César de Araújo. Na entrevista 30 , Brizola afirmou que sempre tivera a convicção de que o PDT venceria as eleições, e que essa vitória, não sua, pessoal, mas do povo do Rio de Janeiro, só poderia ser ameaçada pela fraude. Quando perguntado pelo jornalista André Gustavo, Brizola disse temer a fraude, citou a existência, no Rio de Janeiro, da criação de um ambiente favorável à fraude diante de um conflito de dados entre meios de comunicação relevantes e afirmou que a Globo estaria atrasada no processo de apuração dos votos ao mesmo tempo em que dava enfoques diferentes em seus noticiários. Brizola afirmou ainda, que deveria assumir simbolicamente o cargo de governador para defender os interesses da população do Rio de Janeiro, que, mesmo sendo um estado de grande importância cultural e política, era o único estado brasileiro a passar por aquela situação de indefinição. Brizola questionou ainda uma explicação para o fato de urnas vindas de Campos dos Goytacazes chegarem para serem apuradas, mas urnas de Bangu não chegarem. Quando questionado por Paulo César de Araújo pelo fato de Moreira Franco estar na frente em boletim parcial do TRE àquela altura, Brizola afirmou que o TRE estava passando por dificuldades e citou o fato do mesmo só ter divulgado um boletim oficial 48 horas depois do termino do pleito eleitoral. Questionou ainda a Proconsult, que apresentava problemas na elaboração dos mapas eleitorais. Brizola aproveitou ainda para declarar que em momento algum ele ou o PDT colocaram em dúvida a lisura da Justiça Eleitoral, mas que alguém teve a intenção de “esvaziar a projeção dos resultados do Rio de Janeiro”. Por fim, Brizola pediu ainda para que todo o eleitorado se mantivesse tranquilo para que a verdade eleitoral pudesse surgir.

A estratégia de Brizola repercute e, no dia seguinte a entrevista, a Globo suspende sua programação eleitoral, passando a dar apenas informes eleitorais em seus telejornais. No mesmo dia, a Polícia Federal abre inquérito para investigar uma possível fraude e o TRE transfere da Proconsult para o SERPRO a responsabilidade oficial pela apuração das urnas. Mesmo diante de tais medidas, o resultado oficial da apuração só viria a ser   Idem à nota 29.    divulgado quase um mês mais tarde. Os dados apontavam a vitória do PDT e de Brizola com 34,2% dos votos válidos (1.709.264 votos). Moreira Franco ficou em segundo lugar, com 30,6% dos votos válidos. Brizola foi, em todo Brasil, o único governador eleito no pleito de 1982 que não pertencia ao PDS ou PMDB, as duas principais estruturas partidárias da ocasião. Soares e Valle (1985) mostram que a vitória de Brizola se deu misturando eleitores de diversos estratos socioeconômicos e Hollanda (2005) atribui esse fato à mescla entre a postura oposicionista, comprometida com a ruptura política e às diferentes expectativas sociais que a candidatura do PDT abarcava.

O período eleitoral supracitado remete ao campo político, que se destaca, pelas disputas que agrega em torno do poder. De acordo com Bourdieu, o capital político: É uma forma de capital simbólico, crédito firmado na crença e no reconhecimento ou, mais precisamente, nas inúmeras operações de crédito pelas quais os agentes conferem a uma pessoa – ou a um objeto – os próprios poderes que eles lhe reconhecem. (...) produto de atos subjetivos de reconhecimento e que, enquanto crédito e credibilidade, só existe na representação e pela representação, na confiança e pela confiança, na crença e pela crença, na obediência e pela obediência. (BOURDIEU, P. 1999, p. 179)

Bourdieu afirma que “o homem político retira sua força da confiança política que um grupo põe nele” (1999 p.188). Assim sendo, politicamente, é necessário fugir de tudo que põe em risco a confiança e a crença. A credibilidade é fator-chave no embate de forças do campo político. Esse capital político também atua de forma institucionalizada: quanto mais forte e tradicional for a organização, maiores são as vantagens e a credibilidade que ela alcança, e maior é o prestígio do qual seus participantes desfrutam. Em torno dessas disputas, a política é vista como um produto e os cidadãos que elegem são vistos como consumidores que têm a incumbência de escolher através dos votos. Essa corrida pelos votos faz do campo político, um campo onde a economia simbólica tem forte ênfase.

Nesse jogo de dominação, toda ação em busca de tomada de posição tem seus efeitos sociais e Bourdieu (1999 p.172) afirma que o político avisado consegue dominar esses efeitos e sentidos de sua prática. A escolha das tomadas de posição vem da experiência prática em saber quais movimentos são possíveis de execução em determinado momento e quais as possibilidades de reação daqueles que ocupam a(s) posição(ões)   que se quer alcançar. É bastante importante evitar movimentos que possam ser comprometedores.

Bourdieu (p. 174) atesta a importância de conquistar a confiança e adesão dos cidadãos, pois esta é também uma forma de garantir a distribuição de poder nos diferentes espaços da sociedade civil. Os partidos são, assim, organizações condutoras dessa batalha de mobilização dos agentes, que devem partilhar uma visão social. Essa visão vem através de uma representação do partido, que deve conquistar o maior número de adeptos possível. Por isso são chamados por Bourdieu de “máquinas políticas, instrumentos de mobilização” (p. 194).

No entanto, uma característica essencial é a percepção de que, entre os atores do campo político e a massa, existe um afastamento, uma distância. Os códigos peculiares – a linguagem, por exemplo – aparece como uma forma de manutenção de posição. O jogo político envolve complexas relações sociais específicas que caracterizam o campo político. Os discursos precisam ser reconhecidos e é importante saber mobilizar os atores e as instâncias de fora do campo político. É preciso ter poder de mobilização. Os capitais desenvolvidos em busca de posições no funcionamento interno do campo político precisam encontrar eco e conquistar a máxima adesão possível na parte externa do campo, onde estão os eleitores, os não especialistas. De acordo com Bourdieu, “não pode consagrar-se a virtudes tão exclusivas” . (p. 184) Tão importante quanto ter uma bandeira política, é agregar pessoas a esta causa.

O campo político descrito nesse capítulo se caracteriza pela necessidade de adaptação de seus atores, exigida através da implementação de novas regras para todos os envolvidos: a mudança do bipartidarismo para o pluripartidarismo requereu das organizações políticas a formação de correntes políticas mais definidas ideologicamente falando e capazes de absorver os atores que regressavam à cena política com a promulgação da lei nº 6.683, que aprovava a anistia aos “crimes políticos praticados por motivação política”. A Lei Falcão e a Lei do Voto Vinculado demandaram da mídia e dos eleitores entendimento das regras eleitorais. Tamanha complexidade fez com que atores envolvidos no processo eleitoral necessitassem de um capital político apurado para operar as movimentações necessárias rumo ao poder. Foi justamente a experiência, em virtude do grande capital político acumulado em seus experimentos políticos que permitiu a Brizola sair vencedor nessa disputa. Brizola gozava de um capital político   que seus adversários naquele pleito ainda pareciam buscar, como mostram os fatos a seguir, decisivos para a vitória de Brizola nas urnas e nos embates do referido campo:

1) Alianças Políticas adversárias comprometedoras : Brizola competiu com adversários vinculados a Chagas Freitas, Ernani do Amaral Peixoto e Carlos Lacerda, figuras vinculadas aos militares e ao Regime, fato que criou, junto à população, estigma e rejeição, obstáculos que Brizola soube utilizar em seu benefício; 2) Conhecimento do jogo ao tomar decisões : Miro Teixeira criou rejeição interna e externa na tentativa de desvincular-se de Chagas Freitas, minando suas chances de vitórias, Lysâneas Maciel abandonou o PDT que mais tarde venceria as eleições, Sandra Cavalcanti não conseguiu evitar a debandada de seus eleitores a partir do surgimento da candidatura de Moreira Franco; os adversários de Brizola acabaram tomando ao longo da campanha eleitoral, decisões que os enfraqueceram; 3) Exposição das fraquezas adversárias : Todas as más decisões e vínculos comprometedores supracitados eram abordados por Brizola nos debates e em seus discursos, temas que comprometiam seus adversários. Ao longo da campanha Brizola sempre trouxe a tona assuntos que seus adversários preferiam que o povo esquecesse ou ignorasse; 4) O Progresso social e adesão popular : Brizola estabeleceu propostas concretas de campanha que visavam as camadas populares: ênfase nos direitos humanos, educação pública integral e promoção do progresso social para além “dos segmentos minoritários e privilegiados” fez com que a população mais pobre se reconhecesse na proposta de governo do PDT; 5) União à figuras esquerdistas de peso nacional e internacional em sua campanha : Enquanto seus adversários possuíam alianças comprometedoras, Brizola vinculou-se a figuras trabalhistas históricas e fora ele, referência para outros políticos, como fez com Alceu Collares, no Rio Grande do Sul; 6) Ação e reação no campo ao esquivar-se com destreza das armadilhas do campo político, como mostrou o episódio da Proconsult : A vasta experiência de Brizola no campo político nacional e internacional certamente foi um aliado para driblar a tentativa de fraude na apuração dos votos. Brizola por vezes estigmatizou o vínculo que seus adversários tinham com veículos midiáticos, questionando as  

pesquisas de opinião, mas soube utilizar do instrumento jornalístico a seu favor ao convocar a imprensa internacional – com quem gozava de prestígio a partir de alianças políticas construídas no exterior nos tempos de exílio e fundação do PDT – para denunciar o escândalo da fraude da apuração dos votos e posteriormente transformou o Diário Oficial em veículo jornalístico para movimentar-se no campo político. 7) A estratégia utilizada por Brizola para aproximar-se da massa, usando uma linguagem que era compreensível ao meio popular e proporcionasse a identificação entre sua figura política e o povo. A alusão ao jogo do bicho e o slogan “Brizola na cabeça” retratam bem essa tática. 8) Eleições em tuno único : O pleito eleitoral para Governador do Estado do Rio de Janeiro fora decidido em turno único. Os candidatos considerados oposicionistas obtiveram 37,3% dos votos, sendo 34,2% para Brizola e o PDT, enquanto que Lysâneas Maciel e o PT contabilizaram apenas 3,1%. Sandra Cavalcanti (10,7%), Moreira Franco (30,6%) e Miro Teixeira (21,5%), candidatos vinculados a figuras da “direita”, dividiram 62,8% dos votos. Se houvesse segundo turno, o caminho de Brizola e do PDT rumo à vitória poderia ser interrompido por uma polarização dos votos de “direita” em apenas um candidato.   4 – “ VA PENSIERO”: A POLÍTICA CULTURAL PARA O POVO-NOVO .

Conforme já visto 31 nesse trabalho, Darcy interpreta a cultura como uma rede integrada de significados que somente possui sentido dentro de um contexto determinado. Seria então a cultura uma “herança social de uma comunidade humana”, uma “ordem particular de fenômenos que tem de característico sua natureza, réplica conceitual da realidade, tal como é percebida e transmitida simbolicamente, de geração a geração” (1983, p. 127). Darcy atribui à cultura o sentido de “manifestações de valores, crenças e explicações veiculadas através de sistemas simbólicos de comunicação” (1983, p. 128). A cultura seria, então, na concepção de Darcy:

A herança social de uma comunidade humana, representada pelo acervo co-participado de modos padronizados de adaptação à natureza para o provimento da subsistência, de normas, e instituições reguladoras das relações sociais e de corpos de saber, de valores e de crenças com que seus membros explicam sua experiência, exprimem sua criatividade artística e a motivam para a ação. (RIBEIRO, 1983, p. 127) Assim, se na interpretação de Darcy, a cultura diz respeito a fenômenos transmissíveis simbolicamente, a disseminação cultural pode agir tanto como forma de compulsão quanto de dominação de um grupo em relação a outros em uma determinada ordem social. Ainda na interpretação de Darcy, o que define o tipo de relação cultural estabelecida é o grau de homogeneidade entre os grupos envolvidos. Na disseminação cultural entre grupos homogêneos cada grupo escolhe os patrimônios culturais que desejar adotar e o faz sem estabelecer uma relação de dependência. Darcy ilustra esse tipo de disseminação cultural com o exemplo da cerâmica que se difundiu nas relações intertribais. No caso da disseminação cultural entre grupos separados por grandes diferenças culturais, portanto, menos homogêneos culturalmente, o grupo em condições inferiores não escolhe os costumes que deseja adotar e não encontra condições de produzir por si próprio o que foi adotado. É aí que se estabelece a relação de dominação cultural. Darcy oferece como exemplo as relações entre homens brancos e índios.

Na teoria social de Darcy, a cultura é composta pelos sistemas adaptativos – que dizem respeito às ações sobre a natureza para garantir as condições materiais de existência – associativos – que versam sobre as formas de organização interpessoais e da produção e distribuição de bens que regem o convívio social e pelo sistema ideológico de cultura,

 31 Ver em 2.2 – Categorias e conceitos-chaves que dão significados ao material empírico.   que, segundo Darcy, diz respeito às ideias, valores e crenças que justificam ou questionam a ordem social vigente. Para Darcy, o componente ideológico da cultura “é intrinsecamente ambíguo porque tanto pode refletir objetivamente a realidade e explicar realisticamente a experiência, como pode deformá-la. Na verdade tende a mistificá-la”. (1983, p. 129) Darcy define o sistema ideológico da cultura como “uma recriação simbólica do mundo”, presa a realidade, porque intimamente relacionada à práxis, mas passível de alienação devido à “incapacidade de compreender a experiência vivida” (1983, p. 130). O sistema ideológico da cultura depende dos sistemas associativo e adaptativo, uma vez que é criado através da reflexão conceitual do que ocorre nesses dois sistemas. Esses três sistemas, na teoria de Darcy, são indissociáveis devido a sua relação de interdependência.

Sob essa perspectiva teórica de Darcy, a cultura é determinante na questão política devido a sua importância para a adaptação do homem ao ambiente em que vive e para a capacidade de associar-se aos seus semelhantes. No caso da sociedade brasileira, Darcy entende que a colonização barroca 32 implantada no Brasil, alienou o povo culturalmente, impedindo sua integração efetiva à sociedade e, consequentemente, sua participação na questão política. Darcy alerta para o fato de que em Povos-Novos , como no caso do povo brasileiro, “a cultura se plasma como uma criação necessariamente espúria, porque nasce condicionada pela dominação colonial” (1983, p.131). Dessa forma, Darcy classifica a disseminação cultural exercida na formação da sociedade brasileira como uma relação de dominação cultural. Em casos como esse, invariavelmente a disseminação cultural deixa traços da cultura dominante nas lideranças das culturas dominadas, sufocando-as e alienando culturalmente seu povo:

Quando as etnias nacionais surgem em decorrência da expansão de povos culturalmente mais avançados (ou ao menos mais eficazes porque conseguem impor seu domínio), o patrimônio destes tende a predominar na cultura nascente, sobretudo na subcultura dos estratos dominantes. Nesse sentido é que as etnias embrionárias surgem com culturas não integradas e espúrias, porque formadas por conteúdos distintos e contrapostos: os dos setores privilegiados inteiramente aculturados e os das camadas marginalizadas que retém parte do patrimônio original ou cuja posição social só permite e só exige aqueles graus limitados de participação nas pautas da cultura dominante, que as tornem mais eficazes em sua função de força de trabalho (RIBEIRO, 1983, 131-132)

 32 Sobre o Barroco e o Gótico ver RIBEIRO, D. O Povo Brasileiro. 1995   O processo de aculturação também está presente na teoria de Darcy, reafirmando o processo de dominação cultural. Darcy atesta que as culturas envolvem sempre “entidades complexas, diferenciadas e dinamizadas por intensos processos de traumatização” e que a “bipartição da cultura em um componente erudito, que é de domínio dos letrados, e um componente vulgar, de domínio popular” exemplifica esse processo de traumatização. (RIBEIRO, 1983, p.138). Importante mencionar que, para Darcy, a bipartição cultural não impede, “em condições ideais de autonomia”, ressalta o autor, que os conteúdos eruditos da cultura sejam considerados como criações genuínas de saber, arte e manifestação humana. Por vezes, nesse cenário, segundo Darcy (1983, p. 139) a criação da cultura vulgar encontram dificuldades de se afirmar: “Desaparecidas, por inviáveis, as velhas formas singelas mais autênticas de auto- expressão, as novas se desenvolvem debaixo de condições tão adversas que não oferecem ao trabalhador ou ao artesão oportunidades de afirmar sua individualidade”.

Entre as teorias sociais que abordam a cultura como instrumento de dominação vale destacar, neste trabalho, a perspectiva de Bourdieu. Segundo ele, “É pela cultura que os dominantes garantem a sua dominação”. (BONNEWITZ, 2003, p. 93) Indissociável de sua teoria social, a cultura, para Bourdieu, “é também um sistema de significações hierarquizadas e, enquanto tal, torna-se um jogo de lutas entre grupos sociais cuja finalidade é manter as diferenças distintivas entre classes sociais:

O termo cultura tem um sentido antropológico, designando as maneiras de fazer, sentir e pensar, próprias de uma coletividade humana. Essa noção global é construída por oposição à de natureza: pertence à cultura tudo aquilo que é adquirido e transmitido (por oposição ao inato), tudo aquilo que faz dos homens seres criadores de suas próprias condições de existência. [...] ela fundamenta a identidade coletiva de um vasto conjunto [...] no sentido sociológico, a cultura corresponde ao conjunto dos valores, normas e práticas adquiridos e compartilhados por uma pluralidade de pessoas. (BONNEWITZ, 2003, p. 94)

Bourdieu considera a cultura não apenas como acesso a um patrimônio artístico e cultural, mas também como uma hierarquia de valores e de práticas. [...] a cultura tem todas as propriedades de um capital. Como tal, ela é móvel de lutas num campo que se autonomizou. (BONNEWITZ, 2003, p. 96) Na teoria de Bourdieu a cultura é um conceito chave, operado como instrumento de protagonismo nos processos de hierarquização e diferenciação social que envolve as relações sociais e suas estruturas simbólicas, conforme nos mostra Almeida:   Em um primeiro momento, Bourdieu apropria-se explicitamente da herança neokantiana e durkheimiana e conceitua a cultura – ou os “sistemas simbólicos” como mito, língua, arte, ciência – como instrumento de construção do mundo, dando inteligibilidade aos objetos e definindo aquilo que é bom ou ruim, aceitável ou inaceitável etc. (ALMEIDA, 2007 apud CUNHA, 2007, p. 505).

“Para entender o conceito de cultura em Bourdieu, é fundamental relacioná-lo a uma sociologia das práticas e das relações de poder. Somente esta combinação é que permite ao pesquisador compreender a regra ao jogo e, por extensão, a sociedade ao campo.” (CUNHA, 2007, p. 510).

Ao pensar o conceito de cultura, Darcy e Bourdieu, cada um a seu modus operandi , trazem como principal ponto de suas obras o entendimento da cultura como uma herança social transmitida simbolicamente e a relevância que o aspecto cultural possui nas formas de dominação que um grupo exerce sob os demais na sociedade a que pertence.

Essa perspectiva que aborda o aspecto cultural enquanto protagonista da forma de dominação é o que faz da análise da política cultural empreendida no primeiro governo Brizola, sob a coordenação de Darcy Ribeiro, fundamental para entender as estratégias montadas por ele para exprimir a política do Partido Democrático Trabalhista nos campos político e cultural, foco deste trabalho. Para tanto, procurei selecionar as matérias sobre esse tema publicadas no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro durante o Governo Brizola (1983-1986).

No mês de junho de 1984, começou a circular em formato jornalístico o Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro. Essa primeira edição trazia, além de assuntos que davam conta das atividades burocráticas, como despachos, decretos, nomeações, exonerações e afins, cerca de cinco páginas dedicadas às mais diversas matérias jornalísticas. A diagramação da primeira página dispunha os espaços medidos e distribuídos em colunas com textos, ilustrações, legendas e chamadas sobre matérias jornalísticas diversas (artigos, notícias, reportagens) e, ainda, o logotipo da Imprensa Oficial do Rio de Janeiro. O arranjo do texto tipográfico, desde a criação dos caracteres à sua composição e impressão, resultou num produto gráfico ao mesmo tempo adequado, legível e agradável de um jornal que se propunha e desejava ser lido diariamente por cariocas e fluminenses. A matéria editorial, produzida e publicada sob a responsabilidade do Governador Brizola, que a assinava, ocupava quase inteiramente a página dois, mas não   aparecia em todas as edições. Alguns assuntos apareciam rotineiramente, quase sempre em páginas fixas. As matérias sobre Cultura, por exemplo, eram publicadas na página quatro; já a última página, geralmente, trazia a matéria de maior destaque na capa. 

As matérias não eram assinadas, talvez numa tentativa de aumentar o caráter institucional do veículo, como se fossem a “visão do Estado”, e não de um grupo de indivíduos. No entanto, como todo periódico, o Diário Oficial tinha sua diretoria. O Diretor Presidente era J.P. de Carvalho; o Diretor Financeiro, Sônia Suely Lopes; o Diretor Administrativo, Benedito Marques; o Diretor Industrial, Ivan Pedro César da Cunha. Todos nomeados pelo Governador Brizola.

A circulação gratuita, muito provavelmente, contribuiu para aumentar não somente a quantidade de exemplares do periódico distribuídos efetivamente em cada edição como também o número e a diversidade de matérias. O número de páginas com matérias jornalísticas aumentou, passando para sete em agosto e, em setembro, para oito páginas. A média permanece entre sete e oito páginas jornalísticas durante todo o ano de 1985. Em janeiro de 1986, chegou-se a publicar onze páginas jornalísticas no dia trinta e um. De maio a outubro de 1986, o número de páginas jornalísticas variou entre oito e onze, retornando a média de oito páginas no mês de novembro e dezembro.

No dia vinte e dois de junho de 1984, pela primeira vez a cultura aparece com uma chamada na capa do Diário Oficial. Trata-se da quinta e última nota da capa, intitulada “Cultura e Lazer”, que anuncia a ópera Nabucco de Verdi no Teatro Municipal. A nota descreve a ópera como um espetáculo que “canta o espírito de libertação de povos oprimidos”. É interessante perceber que a descrição da primeira chamada cultural a figurar na capa do Diário Oficial possuía uma analogia com as bases ideológicas do Partido Democrático Trabalhista que, na Carta de Lisboa, reafirma reconhecer ser “urgente a tarefa de libertação do nosso povo” (CHACON, 1981, p.685).

A página quatro inteira do dia 22 de junho traz ampla matéria sobre o espetáculo. Em letras garrafais estampa o título “Nabucco, de Verdi: um grito de libertação no Municipal”, com o seguinte texto:

  O nome Verdi, consagrado após a primeira apresentação de Nabucco no Teatro La Scala de Milão, foi logo associado ao movimento patriótico dos italianos, por coincidir com as iniciais do slogan "Vittorio Emmanuele Re D’Itália". Assim, quando se gritava "Viva Verdü", era possível demonstrar a adesão a Vittorio Emmanuele II, rei da Sardenha, que mais tarde seria o primeiro rei da Itália unificada. E o coro de Nabucco, "Va, pensiero 33 ", o coro dos exilados na Babilônia bíblica, se transformou também no coro dos italianos oprimidos em sua própria terra. (DOERJ, 22/06/1984 p. 04) A citação acima explicita o caráter político do primeiro evento cultural do Governo Brizola noticiado na capa e em destaque de página no Diário Oficial. O espetáculo canta “a libertação dos povos oprimidos” e faz referência e exaltação aos exilados e oprimidos, características que unificam Brizola, Darcy e a teoria social deste sobre o povo brasileiro. A preocupação de Darcy com a “libertação dos povos oprimidos” é oriunda de sua teoria social, onde critica o desinteresse dos estudiosos por essa questão, visto que, segundo o próprio, “os estudiosos marxistas, focalizando preferencialmente os conflitos de classe nunca se ocuparam dos conflitos interétnicos ou das lutas de libertação, [...] os cientistas sociais também descuidaram destes temas.” (RIBEIRO, 1983, p.54-55).

Ao longo do mês de julho de 1984 percebe-se, também, através do destaque dado ao teatro 34 , uma tentativa não somente de tornar este espaço mais acessível à população, mas, sobretudo, de usá-lo como lugar de formação de novas competências culturais. No dia treze, a principal chamada de capa do Diário Oficial publica o título “Municipal: 75 anos levando cultura ao povo do Rio”, ilustrada com uma grande foto da fachada do Teatro, conservada desde os tempos de sua inauguração. O teor da matéria ressalta que o Teatro “deixou, desde o ano passado, de ser frequentado apenas pelas consideradas “elites”” e prossegue o raciocínio com o seguinte argumento: “Lá se apresentou, por exemplo, , uma das maiores expressões de nossa cultura popular, e muitos outros projetos, no sentido de democratizar o mais importante espaço cultural do País, estão em estudos.” Essa matéria ganha corpo e ocupa todo o espaço da última página, sob o título “O velho teatro, onde impera o pensamento.” O subtítulo “a política

 33 Va Pensiero foi uma espécie de lema do Risorgimento , movimento nacionalista italiano, que buscou unificar aquele país. A unificação acabou ocorrendo em 1861. Ver em http://www.wellcom.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=196:protesto- emocionante-pela-cultura-italiana-va-pensiero&catid=48:curiosidades&Itemid=157 , acessado em 07/09/2013. 34 No âmbito da Cultura, neste mês, matérias relacionadas ao teatro aparecem seis vezes.   de democratização da cultura clássica” anuncia os novos projetos da Secretaria de Ciência e Cultura para tornar “cada vez mais popular esse palco”.

É preciso entender o sentido, a intenção deliberada de ampliar os espaços de manifestação da cultura popular, antes restritos, dispondo novos meios para a difusão dessa cultura para o conjunto da sociedade. Ao mesmo tempo, essa política de democratização visa quebrar a hierarquia que ordena os espaços de manifestação e promoção de culturas, mantidos pelo poder público estadual e municipal, de modo que não somente as elites possam deles usufruir. Símbolo da cultura erudita, o Municipal, lugar “onde impera o pensamento”, isto é, o lugar da reflexão, de produção e divulgação de culturas, de lazer, passa a abrigar espetáculos dos mais variados matizes culturais, capazes de atrair público diverso e de mobilizar meios de comunicação. A abertura de espaços e eventos culturais ao povo significa, como que em um mercado, expandir a oferta de um produto, para que mais consumidores possam ter acesso a determinados produtos culturais e, consequentemente, ao conteúdo ideológico que está intrínseco a esses produtos. A teoria social de Bourdieu aponta que a cultura é uma produção social que se constitui a partir dos espaços restritos para serem disseminados na população:

Os produtores têm por tarefa produzir “códigos simbólicos” organizados em sistemas culturais diferenciados. Esses sistemas culturais são constituídos de maneiras de ver, com a pintura, o cinema, a televisão, a publicidade; maneiras de sentir, com a produção e a difusão do romance ou da poesia; maneiras de raciocinar, com a aprendizagem escolar da matemática, da arte do resumo de texto ou do comentário. Este universo simbólico adquire, ao passo que se desenvolve e se constitui – com suas instituições, organizações, modos de ascendência sobre os indivíduos –, uma autonomia que lhe permite, por sua vez, estruturar as relações sociais. (BONNEWITZ, 2003, p. 96) A política cultural do PDT alia o teatro ao museu, espaços culturais tradicionais do Rio de Janeiro 35 numa tentativa de quebrar restrições de natureza ritual “sagrada”. Alguns teatros são vistos como “templos” das “elites”. Dessacralizar esses espaços parece ser prioridade para o Governo. Sua estratégia é realizar um trabalho pedagógico capaz de criar disposições ( habitus , para usar o conceito bourdieuniano) pautadas em saberes específicos a partir do domínio de certas competências. Por isso exploram-se condições favoráveis para os atores de camadas populares adentrarem ao museu e ao teatro. É o que se faz ao introduzir Clementina de Jesus no palco do Municipal (das “elites”) e abrir

 35 A cidade do Rio de Janeiro conta atualmente com 121 salas de teatro e 109 museus.   as portas desse “templo” para a cultura popular. Entende-se que a essência da política cultural é pôr em prática situações em que se executam esquemas de percepção e sistema de valores com os quais operam as camadas populares. Afinal, conforme Bourdieu, o habitus é também um haver (um capital), o lado ativo do conhecimento prático. O fato da política de dessacralização dos espaços vir de um partido político detentor do poder e que contava com importantes nomes em seu quadro conferiam legitimidade à iniciativa frente à população:

As crenças, valores, construções doutrinárias, teorias sociais se desenvolvem inicialmente no seio de meios restritos. Mas a difusão destas representações para o conjunto da sociedade e sua aceitação não são automáticas. [...] Estes são elaborados ou formulados por indivíduos que têm um capital cultural elevado e uma autoridade legítima reconhecida: por exemplo, intelectuais consagrados, jornalistas importantes, dirigentes de movimentos representativos influentes, como sindicatos, grupo de pressão. (BONNEWITZ, 2003, p. 97) Nesse sentido da disseminação cultural nas esferas da sociedade civil, o Diário Oficial e sua missão de divulgação dos fazimentos políticos do PDT ganham importância. Dentro dessa missão, o título na capa do Diário Oficial do dia 30 de julho chama a atenção para  Q evento da Rioarte, a inauguração o 8º Salão Carioca de Arte, que funcionaria durante todo mês de agosto, das 10h às 18h, na Estação Carioca do Metrô. No dia seguinte, a chamada destaca, e convida os leitores, para o curso sobre Literatura de Cordel e Arte Popular, oferecido pelo Centro Cultural Municipal de Santa Teresa. Interessante notar que todos os três eventos abordam a cultura popular do povo carioca e nordestino. Além disso, a estratégia do local escolhido para a exposição, uma estação de metrô, (transporte coletivo de massa, situado num local de grande circulação popular) evidencia o cuidado da Secretaria de Cultura em explorar condições favoráveis para alcançar seus objetivos.

Em oito de julho de 1985, foi publicada a chamada “Moreira da Silva inaugura música ao vivo no Metrô”. A chamada informa que o “Metrô-Música” é uma iniciativa Rioarte e da Petrobrás e que busca transformar o mezanino do Metrô em um espaço cultural. A iniciativa disponibilizará ao público – com entrada franca – vinte shows em locais diferentes. A estreia será no Largo da Carioca. A chamada continua na página quatro, com o título “Moreira da Silva abre o Metrô-Música”, trazendo a programação do projeto e o seguinte dizer em negrito:

  Em todo o mundo, as galerias do metrô são usadas como espaços culturais, onde se apresentam informalmente músicos e artistas plásticos. No Rio de Janeiro, a primeira tentativa de fazer isto organizadamente começa hoje, às 18h30min, na estação da Carioca. É a estréia do Metrô Música, uma iniciativa da Rioarte e da Petrobrás que, até o mês de outubro, apresentará 20 shows diferentes no local, sempre com entrada franca e no mesmo horário. (DOERJ, 08/07/1985, p.04)

A transformação do Metrô em um espaço cultural proporciona uma aproximação entre cultura e vida cotidiana. Busca-se quebrar a ideia de que para apreciar cultura se faz necessário interromper as atividades do dia-a-dia. O Metrô-Música não é uma possibilidade de o povo ir a mais um espaço cultural. Ao contrário, trata-se da cultura ir até onde o povo está diariamente. Esse hibridismo entre culturas e espaços eruditos e populares presente nas chamadas jornalísticas sobre cultura no Diário Oficial pode ser confirmado no gráfico abaixo, que coteja os tipos de chamada cultural publicadas no período que engloba este estudo: Gráfico 1 – Eventos Culturais no Rio de Janeiro/Fonte: DOERJ 1984-1986

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O gráfico acima mostra o equilíbrio existente entre os eventos de cultura popular e erudita divulgados nas páginas do Diário Oficial: a cultura erudita ocupou 44,1% das chamadas jornalísticas tabuladas, contra 42,7% de chamadas referentes à cultura popular. É oportuno notar que, embora obtendo ligeira vantagem nos números gerais, a cultura erudita ficou mais restrita ao seu espaço, sediando apenas 8,1% de seus eventos   em espaços populares, enquanto que os eventos de cultura popular ocorreram em espaços eruditos 19,6% das vezes, o que ilustra bem a utilização dos Teatros e Museus na tentativa de quebrar a sacralidade dos espaços culturais.

Essa invasão do popular em espaços eruditos me remete novamente à Bourdieu, para quem, de acordo com Bonnewitz (2003) os conflitos simbólicos visam impor uma visão do mundo de acordo com os interesses dos agentes. Se a cultura é um instrumento de poder, em consequência disso, as lutas políticas se estendem ao campo cultural:

Toda dominação social, a menos que recorra pura e continuamente à violência armada, deve ser reconhecida, aceita como legítima. Isto supõe a mobilização de um poder simbólico, poder que consegue impor significações e as impor como legítimas, dissimulando as relações de força que estão no fundamento da sua força. Desse ponto de vista, as relações sociais são também relações de concorrência entre arbítrios culturais (culturas). Como elas se referem ao campo simbólico, Bourdieu propõe que sejam chamadas “lutas de classificação” (BONNEWITZ, 2003, p. 97). Nesse sentido das lutas de classificação, da tentativa de impor suas ideologias, o político se coloca em posição de produtor e disseminador cultural:

Certos atores sociais estão em situação privilegiada para impor o seu sistema de representação, porque controlam, ou pelo menos exercem uma influência especial em instâncias de socialização como a escola, as organizações religiosas ou políticas, a mídia. (BONNEWITZ, 2003, p. 101). A divisão quase que igualitária (44,1% versus 42,7%) observada no que se refere ao espaço concedido ao popular e ao erudito podem ser confirmadas nos discursos de figuras importantes da equipe da cultura em reportagens do Diário Oficial. No dia sete de janeiro de 1985 o D.O. publica uma reportagem com o escritor Gerardo de Mello Mourão, então presidente da Rioarte. A matéria, intitulada “O povo entende, gosta e vibra com a arte erudita”, ressalta que a Rioarte teve um ano de 1984 bastante produtivo e destaca projetos como o Salão Carioca de Arte, no Metrô, a Semana de Balé que reuniu todas as setenta e seis escolas de danças, algumas delas situadas em favelas, e informa também sobre a redução nos gastos, com o enxugamento do pessoal (de duzentos e oitenta para oitenta e três funcionários) “necessário”. Mourão justifica afirmando que “a finalidade do órgão é produzir arte e cultura, e não empregos.” A chamada ressalta ainda o caráter afetivo de Mourão com a sede da Rioarte, localizada em uma mansão nas Laranjeiras, que pertencera a Barros de Carvalho, líder do PTB em   Pernambuco e sogro de Mourão, e chama a atenção do leitor para o caráter popular do projeto:

A fronteira entre a cultura popular e a erudita é uma fronteira supersticiosa, pois a cultura popular alcança níveis tão altos quanto a cultura erudita em certas manifestações de arte. A política cultural do Estado e do município obedece à orientação do Secretário de Cultura Darcy Ribeiro, que tem trabalhado no sentido de uma integração. As verbas para a cultura, que não são grandes, tenderiam a se pulverizar, diminuindo a eficácia dos projetos através de iniciativas de vários órgãos diferentes. (DOERJ, 07/01/1985, p.04)

Também em janeiro, foi publicada no dia 14, a manchete “Revista do Brasil, em busca do equilíbrio entre o erudito e o popular”, que destaca o lançamento do terceiro fascículo da Revista do Brasil 36 . A chamada publica declaração de Darcy Ribeiro sobre o artigo de Fernando da Rocha Peres sobre Gregório De Mattos, destaque da edição da revista. Darcy, em depoimento publicado na reportagem afirma: “ele me agrada porque nos dá a presença de um iracundo, o que nunca deve faltar nesta revista”. A matéria aponta as áreas de cinema e antropologia da revista, e a inauguração de uma seção de polêmica, com espaço aberto para debate. Traz, ainda, declaração de Ana Arruda, diretora da Divisão Editorial do Departamento de Cultura do Estado, afirmando que “A Revista do Brasil caminha em direção a um equilíbrio saudável entre o que é erudito e o popular, tratando ambos os setores de forma clara, aprofundada e sem partidarismos.”

O dia trinta de julho de 1985 traz a chamada de capa “Uma casa de cacos transformada em flor”, noticiando apenas a sequencia da chamada na página quatro, que traz o mesmo título, exaltando a Casa da Flor, situada entre Cabo Frio e São Pedro da Aldeia, de autoria de “Seu Gabriel”, o Gabriel de Almeida dos Santos, que a chamada define como um homem sem nenhuma cultura erudita, mas com um senso estético semelhante ao do arquiteto catalão Gaudi e que possuía a intuição que caracteriza os visionários e artistas. A chamada informa também que a Casa da Flor fora tombada pelo Estado e homenageada com uma mostra de fotos e pesquisas, a ser inaugurada em novembro no Amélia Zaluar. A comparação jornalística feita entre “Seu Gabriel” e Gaudi no caso particular da “Casa de Flor” reflete a visão que norteia a política cultural do PDT, onde a distância entre a cultura popular e a erudita é um juízo de valor, utilizada por vezes para manter um status quo que Darcy, Brizola e seu grupo buscavam quebrar.   A Revista do Brasil é um empreendimento de parceria entre a Funarj, a Rioarte e a Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro.   

Também publicada na página trinta e dois, dessa vez no dia quinze de maio de 1986, está a chamada “Darcy se desincompatibiliza e dá balanço na cultura” traz reflexão de Darcy sobre seu cargo a frente da Secretaria Estadual de Ciência e Cultura, cedendo 37 lugar a Edmundo Moniz, uma vez que Darcy se candidataria a Governador nas eleições de Novembro. Ao analisar os feitos culturais de sua equipe, Darcy enaltece os fazimentos do Governo Brizola e a importância de sua equipe e da veia cultural do Estado do Rio de Janeiro, cujas diferenças culturais foram aproveitadas sem julgamento de valor entre o erudito e o popular: Tudo que fiz teria sido feito sem mim, pois o Rio tem uma tal criatividade que ele age com ou sem a participação dos órgãos oficiais. Assim, fizemos muitas coisas, algumas delas inolvidáveis. [...] Tombamos mais do que todos os governos anteriores juntos. Tombamos uma rua inteira (a da Carioca), quase cem quilômetros de praias, que poderão dar muito prazer aos netos de nossos netos, tombamos 14 coretos e vamos agora restaurá-los. Tudo isso só se compara ao gesto de D. Pedro, que comprou as fazendas do Alto da Boa Vista e mandou replantar toda a floresta da Tijuca. O Governo Brizola também teve um gesto comparável, ao tombar tantos bens, que agora não poderão ser mais destruídos. [...] Estamos restaurando, também [...] o antigo prédio da Alfândega, o último remanescente inteiro das obras que o arquiteto Grandjean de Montigny deixou no Brasil. Lá será feito o Museu França-Brasil, que vai mostrar 400 anos de relações cordiais entre os dois países. — Quanto ao Teatro Municipal, ele, além de levar 175 peças nesse período, abriu suas portas às crianças, que puderam ver produções de alto nível. [...] O mais bonito foi criar uma equipe que é capaz de levar isso à frente, comandada agora por Edmundo Moniz. Criamos equipes nas áreas de patrimônio, tombamento, teatro, e instituímos um estilo de conduzir a cultura Este é o estilo antropológico de um homem que vê a cultura sem sectarismo, que considera no mesmo nível Villa-Lobos e Clementina de Jesus .38 (DOERJ, 15/05/1986, p.32)

A iniciativa de conferir ao popular o mesmo valor do erudito e a maior invasão da cultura popular a espaços eruditos, já mostrada no gráfico dos eventos culturais para o Rio de Janeiro no período estudado pode ser comprovada se analisarmos de perto a política cultural para os teatros e museus do Rio de Janeiro. Em reportagem publicada na edição do D.O. do dia 21 da janeiro de 1985, intitulada “Estamos resgatando a memória da cidade”, recebe grande destaque o trabalho do historiador, pesquisador e  37 Darcy deixa a pasta da cultura, apenas oficialmente, por uma manobra do campo político, devido às regras do jogo, que ele devia acatar por se candidatar a Governador do Estado em 1986. Sua saída, no entanto, não modifica as diretrizes da política cultural fluminense, visto que Darcy continua sendo Vice-Governador e uma das principais cabeças pensantes do Governo Brizola. 38 Os grifos nas citações são trechos destacados pelo autor deste trabalho.   crítico musical, Ricardo Cravo Albin que, convidado por Darcy Ribeiro e Leonel Kaz, aceitou o cargo de Coordenador dos Museus e da FUNARJ. Cravo Albin diz ao repórter que aceitara o cargo como “um desafio”, uma missão para resgatar a memória e a “animação cultural da cidade”. Cravo Albin apresenta o plano de trabalho para dinamizar os Museus, (que, segundo ele, estavam “ociosos”) com os projetos de Férias nos Museus, Aulas nos Museus, Concertos nos Museus. A idéia, diz Cravo Albin, é “distribuir e partilhar mais os bens culturais com a população”, com a criação de novos espaços culturais. Nesse sentido, destaca o foyer do Teatro Municipal que, a partir de março de 1985, abrigaria o acervo do Museu dos Teatros. Outra iniciativa é o diálogo com órgãos culturais de Minas Gerais e São Paulo “para criar um eixo cultural muito desejado pelo Secretário Darcy Ribeiro.” Em entrevista que me foi dada, Ricardo Cravo Albin revela o pedido de Darcy Ribeiro sobre a política cultural para os museus:

O Darcy sempre me recomendou e me pediu a fazer com que os Museus não fossem mortos, pudessem ser peças vivas. O que de fato eu tinha feito no Museu de Imagem e do Som que eu criei em 1965 e é claro que o Darcy sabia da grande força e da grande originalidade que foi o Museu na minha consolidação. Então foi de 1965 a 1971 e aquilo fez com que o Darcy me solicitasse, quase que exigisse, que os Museus, que estavam sob minha Coordenação, pudessem ser participantes, não fechados neles mesmos. Uma das grandes realizações minhas como Diretor Geral dos Museus foi reformar todo o Palácio do Ingá, que era um Museu, e reformar todo o Museu Antônio Parreiras, de Niterói. E fiz um esboço de fazer a recuperação do Museu do Maracanã, o Museu do futebol, que era muito parado e o Darcy queria fazer realmente uma outra qualificação. E especialmente sonhava em fazer o Museu do carnaval. Entregou a mim a possibilidade de fazer, eu fiz um projeto, um Museu totalmente virtual, que se instalaria na Praça da Apoteose, mas não foi adiante porque o orçamento foi muito caro. Mas, em compensação, eu fiz para elogiar e para fazer o levantamento das escolas de samba, ele que fez o sambódromo, exatamente no começo da minha participação no governo dele, ele fez o sambódromo, né? Com o , de quem ele é grande amigo. Quer dizer, então, essa exposição no Largo da Carioca, foi absolutamente original e revolucionária, ele ficou contentíssimo com essa exposição, porque era o esboço do que chamei de Museu nas Ruas. Era um projeto, o Museu nas Ruas. Tanto ele queria que os Museus fossem para as ruas, que eu fiz essa exposição com a Beija-Flor, e João 30 ajudou muito a fazer, foi uma exposição com os objetos todos de João 30 da escola Beija-Flor daquele ano de 1984, 1985. [...] Trouxe Joãozinho 30 para fazer a exposição do Museu nas Ruas, a grande exposição do carnaval nas ruas. Foi a maior exposição que já aconteceu nas ruas do Rio de Janeiro. Embora não na rua, mas na rua embaixo, no túnel do Metrô. Na estação do Metrô. Na estação Carioca do Metrô. Com seus 3, 4, 5 mil metros quadrados, enorme. A exposição foi praticamente limitada pela mídia que foi muito fraca. Você não encontra muitas coisas nos jornais sobre essa   exposição, que foi importantíssima. Nunca me esqueço da inauguração, o Darcy felicíssimo, me cumprimentando a toda hora: “você conseguiu! Vamos fazer esse Museu nas Ruas, precisamos jogar todo esse acervo de Museus, que tá bolorento, para que todo mundo compartilhe, todo mundo veja, todo mundo pegue, eu quero é isso, eu quero é participação”. Ele quase que gritava, excitado. (ALBIN, Ricardo, entrevista em 23/11/2013) O pedido de Darcy, para que os museus fossem peças vivas, participantes, que se aproximassem do povo, como observado na fala supracitada, norteou a política cultural para essas instituições, conforme mostra o gráfico abaixo, que aponta os principais espaços eruditos a sediar eventos de cultura popular durante o período estudado. Os museus lideram com 15% dos eventos, seguido pelas bibliotecas e teatros do Rio de Janeiro.

Gráfico 2 – Locais eruditos a sediar eventos de cultura popular/Fonte: DOERJ 1984-1986

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*: :R:!:`_%V :RV/:J Q  5Q   A concepção de museus como espaços de provimento educativo-cultural à população é uma concepção que acompanha Darcy de longa data. De acordo com Lobo (2010), Bertha Lutz, bióloga de formação, porém mais conhecida por sua grande contribuição nos campos do feminismo e da educação, preocupada, a partir de seu envolvimento com o movimento renovador da educação no Brasil, em tornar o ensino mais prazeroso, pensa em uma modernização dos museus para atuar nesse sentido. Na década de 1930, designada por Roquette Pinto, então Diretor do Museu Nacional, Bertha viaja aos Estados Unidos para entender a função educativa dos museus daquele país. Na visita, Lobo (p.18) destaca duas questões que chamaram a atenção de Bertha: “a nova concepção de museu – museu da vida – e as mudanças introduzidas pelo arquiteto para democratizar o acesso de todos os cidadãos à cultura e às artes.” A interatividade dos museus com seus frequentadores e a utilização de salas ambientes foram destaques positivos na apreciação de Bertha. Em seu trabalho, Lobo explicita a preocupação de Roquette Pinto com uma nova concepção de museu e as influências importadas da viagem de Bertha: A criação de um serviço educativo no Museu Nacional ganha prioridade na gestão de Edgar Roquette-Pinto (1926-1935). Das viagens internacionais que havia feito anteriormente aos Estados Unidos e a Bruxelas, Bertha trouxe farto material sobre o papel educativo dos museus nesses países.[...] Quando Roquette-Pinto assume a direção do museu, empreende esforços para ampliar as funções dessa instituição sem, contudo, alterar sua vocação para as ciências naturais. O diretor está particularmente interessado nos programas educativos dos museus americanos. [...] Os museus populares e a função educativa dos museus são dois aspectos inovadores que mudam o papel até então por eles desempenhado de elemento material subsidiário à disposição do pesquisador. (LOBO, 2010, p. 67-70)

O Museu Nacional, que envia Bertha aos Estados Unidos para aprender sobre a concepção educativa de museus, é um espaço cultural de relações estreitas para Darcy: em 1952, como membro do Serviço de Proteção aos Índios, atua em parceria com o Museu Nacional na criação do Parque do Xingu. Em 1953, mostrando que vinha de longa data sua concepção de museu enquanto espaço educativo, cria 39 o Museu do Índio, para que a população brasileira pudesse conhecer de fato a cultura indígena. Com esse propósito, realiza a primeira exposição do Museu do Índio, com objetos indígenas

  Ver em DAMASCENO, Daniel. Darcy Ribeiro e a Formação do Campo Científico no Brasil: Reflexão sobre o Exercício Intelectual de um Etnólogo, 2009.

   coletados durante as expedições que realizou na segunda metade da década de 1940. Essa concepção de museu, temático, interativo e educativo parece ter sido uma tônica na política cultural do PDT, que durante o período estudado, implantou no Rio de Janeiro, entre outras iniciativas da política dos Museus, o Museu do Gás, o Museu da Eletricidade, o Museu do Lixo, o Museu da Tecnologia, além de recuperar o Palácio do Ingá e o Museu Antônio Parreiras, em Niterói.

Se não bastasse liderar as estatísticas de espaços eruditos sediando eventos populares, os museus, as bibliotecas e os teatros sediaram uma quantidade maior de eventos populares do que de eventos eruditos, fato que também ocorreu no Centro Cultural Laurinda Lobo, em Santa Teresa. Assim sendo, os principais espaços eruditos – teatros, museus e bibliotecas – se tornaram anfitriões costumeiros da cultura popular na política cultural de Darcy Ribeiro. Segue abaixo o gráfico de locais que sediaram a maior quantidade de eventos eruditos:   Gráfico 3 – Locais eruditos a sediar eventos de cultura erudita/Fonte: DOERJ 1984-1986

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O depoimento de Cravo Albin sobre pedido de Darcy Ribeiro explicita a maneira com que ocorriam as tomadas de decisões acerca da implementação de políticas culturais para o Rio de Janeiro ao longo do governo Brizola. De acordo com os depoimentos coletados nas entrevistas realizadas por mim, havia uma reunião semanal para definir as diretrizes da política cultural, em que Darcy Ribeiro expunha suas ideias, sempre dizendo o que queria que fosse feito, mesmo que suas ideias esbarrassem em entraves políticos, burocráticos e ou econômicos:    O Darcy tinha uma reunião semanal que ele fazia com todo mundo. Tanto do Estado quanto da Prefeitura. Todas as áreas de cultura do Estado e da Prefeitura. Todo mundo se reunia. E acabou que, como o Darcy foi se dedicar ao projeto dos CIEPs, mais enfaticamente, eu acabei, em grande parte das vezes, sendo o coordenador dessa reunião do culturinha. Sentado ao lado do Edmundo, mas até pela idade do Edmundo e por tudo eu acabava... Darcy entrava, na maior parte das vezes, falava lá um bocado, depois se mandava e eu coordenava. Então, num certo sentido, eu acabei sendo um... acabei ficando agudamente próximo a ele, todos os dias. (KAZ, Leonel, entrevista em 06/12/2013 Ricardo Cravo Albin confirma a citação acima ao afirmar que:

Essa reunião, ele quando chegava ele era o definidor, que falava praticamente sozinho: “Eu quero isso, isso e isso, por isso e por aquilo”. As pessoas ouviam e tinham que fazer o que ele pedia. (ALBIN, Ricardo, entrevista em 23/11/2013) A respeito dessa reunião semanal, duas questões chamam atenção: A junção dos profissionais do Estado com os do Município do Rio de Janeiro e as ordens advindas de Darcy, que queria a todo custo implementar suas ideias, mostram que o então Secretário de Cultura não se inibia pelos entraves característicos do jogo político, ignorando a separação entre as esferas municipais e estaduais, englobando todos em sua reunião, tentando definir uma diretriz cultural única, que exigia ser executada, mesmo diante das dificuldades políticas-econômicas, obstáculos constantes para aqueles que operam no campo político. Em relação a essa divisão entre estado e município, na prática, não existia separação. Isso porque, de 15 de março de 1983 a 4 de dezembro de 1983, o prefeito do município do Rio de Janeiro, eleito através de nomeação do governo estadual fora Jamil Haddad, que era do PDT. De dezembro de 1983 até 1985, também através de nomeação do governo estadual, a Prefeitura do referido município ficou a cargo de Marcello Alencar, também do PDT. Em primeiro de janeiro de 1986, dessa vez eleito pelo povo, o prefeito fora Saturnino Braga, também do PDT. O fato de o governo estadual nomear os prefeitos durante os três primeiros anos de seu mandato e ter sempre um prefeito do PDT no município do Rio de Janeiro mostra que procurava-se uma unidade entre Estado e Município do Rio de Janeiro e isso explica o fato do Diário Oficial do Estado publicar notícias do município. As nomeações dos prefeitos do município do Rio de Janeiro fizeram com que Darcy e sua equipe não tivessem que enfrentar resistência ou barreira política alguma para planejar também as diretrizes da política cultural municipal. Mesmo diante desse fato, muitas vezes, a estrutura política    montada para a cultura esbarrava em dificuldades para realizar os desejos de Darcy, conforme aponta Leonel Kaz:

Lembro-me que muitas, inúmeras dezenas de vezes, ele ia almoçar em casa, eu ia almoçar com ele e a gente ia brigando na ida e brigando na volta. Mas era muito importante enfrentá-lo. E era importante enfrentá-lo até para ele poder não necessariamente impor certas ideias de ordem num certo sentido messiânicas, entre aspas, e de uma certa salvação do Brasil, era uma coisa meio positivista, um pouco de Augusto Comte. [...] As coisas do Darcy eram num plano muito mega, multi, não sei o que. Ele era um quase baiano de Montes Claros, ele era um mineiro, baiano, muito falante e muito messiânico, nesse aspecto. Teve uma história muito famosa que era o festival [ênfase] mundial da juventude, que desde o início do governo ele queria fazer na praia de Grumarí: um milhão de jovens cagando, um milhão de jovens trepando, um milhão de jovens comendo jabá com jerimum, era uma ideia fixa dele e era inviável fazer isso. Ele ficava com ódio, me lembro que o Antônio Pedro, grande ator de teatro, Diretor dos Teatros, falou “Mas Darcy, tem o problema das marés, como é que eu vou botar o palanque lá?” e o Darcy dizia “[gritando] qual é a maré mais alta?” Aí o Antônio Pedro falou “Sei lá, 3 metros”, então o Darcy “Faz um palanque de dez, eu quero fazer”. Então são histórias assim dele, de querer por querer, o que eu quero é o que eu quero, ele repetia muito. (KAZ, Leonel, entrevista em 06/12/2013). Os grifos na citação acima reafirmam a pretensão, e por vezes obstinação, de Darcy em implementar suas ideias na política cultural para o Rio de Janeiro. Em edição especial da Revista do Brasil, em julho de 1986, ao falar sobre a política cultural, Darcy lamenta não poder ter criado uma canal de televisão para o governo do Estado. Na publicação, Darcy classifica a televisão como “instrumento supremo da cultura de massas” e argumenta que o Estado não poderia permitir que a televisão fosse administrada “exclusivamente como um negócio, dando ao público o que venda mais, mercadoria ruim” (p.03). Ao longo da pesquisa documental nas páginas do Diário Oficial, foi possível identificar iniciativas que tentaram viabilizar esse projeto. No dia seis de agosto de 1984, a página quatro, tradicional página das notícias de cultura, traz chamada que noticia a reativação do canal comunitário de televisão que “é fruto de um convênio firmado entre a Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro e a Fundação Centro Brasileiro de Televisão Educativa do MEC.” A reportagem noticia que o objetivo do canal de televisão era “desenvolver nos alunos uma recepção crítica das mensagens veiculadas e a utilização da televisão como instrumento de expressão e criação da realidade.” A chamada informa também que as escolas públicas do Rio de Janeiro receberiam aparelhos de televisão para a recepção organizada do canal, que teria uma programação destinada aos alunos e outra à população em geral. O programa de    abertura contaria com a participação do professor Samuel Pfromm Netto, que fora diretor pedagógico do Programa Infantil “Vila Césamo” na TV Cultura, e de Maria Yedda Linhares, Secretária Municipal de Educação e Cultura do Rio de Janeiro.

É possível notar que os esforços no sentido de viabilizar o projeto do canal de televisão se estenderam, visto que o Diário Oficial publicou outra reportagem sobre o tema, cinco meses depois, no dia vinte e três de janeiro, sob o título “Encontro pede uma tevê pública para o Rio” e destaca o debate a respeito do assunto no I Encontro de Televisão Pública e Televisão Comunitária, promovido pela Secretaria de Estado de Planejamento e Controle. A manchete traz ainda declaração de Mauro Rego Costa, assessor para assuntos culturais da Secretaria, sobre a iniciativa de uma tevê pública com a missão de transmitir “programas educativos para serem utilizados dentro e fora das escolas”. A matéria continua na página vinte e cinco do Diário Oficial, agora com o título “Encontro reivindica televisão pública para o Rio de Janeiro”, notando que a iniciativa teria o potencial para ser um “difusor cultural, como meio de expressão da cultura do Estado, da sua música e suas festas populares da cidade e do campo, de seu teatro.”.

Chama a atenção o fato das chamadas mencionarem que o canal de televisão atuaria como “difusor cultural”, “dentro e fora das escolas”, com programação “para os alunos e para a população em geral”. Essa ambição me remete ao entendimento de cultura na sociologia de Pierre Bourdieu. Conforme mencionado anteriormente neste trabalho, em Bourdieu, a cultura é considerada não apenas como acesso a um patrimônio artístico e cultural, mas, também, como uma hierarquia de valores e de práticas. Desse modo, a cultura é móvel de lutas num campo que se autonomizou. A lógica de produção da cultura passa pela autonomização do campo cultural. Como todo campo, o campo cultural funciona como um mercado, com sua oferta e procura.

Esse universo simbólico adquire modos de ascendência sobre os indivíduos, e tem uma autonomia que lhe permite, por sua vez, estruturar relações sociais, ao longo do seu processo de desenvolvimento e formação com suas instituições, organizações. Assim sendo, a cultura não é simplesmente um conjunto de obras, mas, também, uma elaboração de percepções do mundo, uma maneira particular de descrevê-lo e compreende-lo. É, portanto, um conjunto de esquemas de percepção. Esses esquemas são elaborados ou formulados por indivíduos que tem um capital cultural elevado e uma autoridade legítima reconhecida. Pode-se interpretar que, sob essa perspectiva, Darcy,    no âmbito da cultura, pretendia ultrapassar os simples fazimentos e estruturar relações sociais a partir da ascendência cultural sobre os indivíduos.

O PDT, um partido que surge denominando-se socialista em seus documentos de fundação, adota na política cultural para o Estado do Rio de Janeiro essa interpretação de disseminar a sua ideologia política nos aparelhos de Estado e nos aparatos da sociedade civil, no caso das matérias supracitadas, a escola e a televisão. Nesse sentido, a televisão constituiria importante papel em seu projeto cultural. Nas entrevistas que fiz, o tema do projeto televisivo foi abordado. Ricardo Cravo Albin e Leonel Kaz falaram sobre o assunto e apontaram as questões pelas quais o mesmo não seguiu adiante:

O Darcy na verdade... irradiador como ele era, absorvente como ele era, centralizador, sobretudo isso, era o grande centralizador, ele queria fazer evidentemente tudo o que poderia ser feito. Ele queria claro que uma emissora de televisão, queria claro que um jornal poderoso na mão, queria claro, enfim, o poder todo na mão, queria claro que todos fossem a favor dele, todos o incensassem. Era normal na personalidade do Darcy. Ele em geral queria tudo. [...] ele fazia questão de querer um canal de televisão, até mesmo para dizer um basta, segundo ele, à Globo. Coisa que, evidentemente não haveria a menor condição, como de fato não houve condição. O canal de televisão não passou da ideia, né? [...] Porque não houve possibilidades econômicas e financeiras para que isso pudesse, nem técnicas. Não havia condições. O governo sabia, Leonel Brizola sabia que isso era inviável. (ALBIN, Ricardo, entrevista em 23/11/2013)

Era impossível, eu fui com ele na Embratel naquela época. Naquela época só tinha um satélite, Intelsat, se não me engano, e tinha um problema de transponder, não é que nem hoje que cada um de nós tem aqui cinquenta conexões. Naquela época você obter um horário do satélite era um inferno, entende? Só tinha um horário, era tudo ocupado. Tem-se que lembrar que os programas de televisão eram feitos em vídeo-tape, na manhã seguinte o sujeito pegava um carro, ia pra São Paulo, passar o programa na TV de São Paulo e vice-versa. É meio complexo, tem que situar à luz do tempo. Essas coisas avançaram de forma muito radical. E se você olhar para esse período histórico, quanto tempo faz? 30 anos? Pô, 30 anos atrás, eu achava importante você tentar se situar, como os meios de comunicação funcionavam. Era muito difícil. Ele talvez quisesse dizer isso a posteriori. Que a televisão tomou um vulto muito grande. E a televisão já era, a partir da TV Globo, uma grande dominadora da informação. Mas, não haveria como, naquele momento. Eu me lembro que se tentou mesmo. Depois é que as coisas foram se modificando rapidamente. (KAZ, Leonel, entrevista em 06/12/2013) Interessante notar que o projeto fracassa por questões estruturais, nesse caso, de tecnologia disponível, e entraves financeiros, barreiras cotidianas a serem vencidas no campo político. Constitui importante informação também, a fala de Cravo Albin, de que    Darcy Ribeiro queria “dizer um basta à rede Globo”. As organizações Globo travavam, há muito tempo, uma disputa política (eleitoral) com Leonel Brizola, conforme lembra Cravo Albin:

Evidentemente as organizações Globo, especialmente o jornal O Globo, a TV Globo, é claro, que tinha uma grande diferença pública, política com o Leonel Brizola. Então, evidentemente isso é claro que respingava na pouca divulgação que as organizações Globo davam ao trabalho do Estado do Rio de Janeiro com o Leonel Brizola Governador e com o Darcy Vice-Governador. (ALBIN, Ricardo, entrevista em 23/11/2013) O projeto do canal de televisão, então, além de seu caráter cultural-educativo, de formação de percepções e concepções, possuía um viés político, uma estratégia para operar ideologicamente, um instrumento que seria mais efetivo, devido ao maior alcance, do que o Diário Oficial, que já atuava nesse sentido. A criação de veículos midiáticos que pudessem disseminar uma cultura específica é importante passo para o domínio do campo cultural, conforme explicita Bourdieu, para quem as crenças, valores, construções doutrinárias, teorias sociais se desenvolvem inicialmente no seio de meios restritos. Mas a difusão destas representações para o conjunto da sociedade e sua aceitação não são automáticos. A cultura dominante supõe um trabalho de legitimação que passa por conflitos simbólicos. O móvel dos conflitos simbólicos é a imposição da definição legítima do mundo social que permite garantir a reprodução da ordem social.

Bourdieu (apud Bennewitz, 2003) revela que a cultura dominante é a cultura da classe dominante que, por longo trabalho de legitimação, fez esquecer toda parte de arbítrio que está na sua base. A legitimação designa o processo que resulta na legitimidade. O arbítrio remete aquilo que tem apenas uma existência de fato e não de direito, e que, consequentemente, nada justifica nem obriga a aceitar, posto que o arbítrio é desprovido de legitimidade. A legitimação está na origem de conflitos entre classes sociais. Essa luta não ocorre no contato entre classes “mobilizadas” e reunidas para defender ou modificar a estrutura das propriedades objetivas, mas entre classes “objetivas”, entendidas como o conjunto dos agentes colocados em condições de existência homogêneas. A luta de classes toma a forma de uma luta simbólica. Para Bourdieu, os conflitos simbólicos visam impor uma visão do mundo de acordo com os interesses dos agentes; esta visão do mundo se refere tanto à posição objetiva no espaço social (o lado objetivo) quanto às representações que os agentes fazem do mundo social (o lado subjetivo);   Bourdieu (apud Bennewitz, 2005) apresenta duas formas diferentes de lutas simbólicas a propósito da percepção do mundo social: - do lado objetivo, pode-se agir por ações de representação, individuais ou coletivas, destinadas a fazer ver e valer certas realidades (tipo manifestações que tem por objetivo manifestar um grupo, seu número, sua força, sua coesão e fazê-lo existir visivelmente; e no nível individual por todas as estratégias de apresentação de si, destinadas a manipular a imagem de si e principalmente da sua posição no espaço social); - do lado subjetivo, pode-se agir tentando mudar categorias de percepção e de apreciação do mundo social, as estruturas cognitivas e de avaliação (categorias de percepção, os sistemas de classificação, isto é, no essencial, as palavras, os nomes que constroem a realidade social tanto quanto a expressam, são o móvel por excelência da luta política, luta pela imposição do principio legítimo de visão e de divisão legitima).

Sob essa perspectiva, pode-se afirmar que, com o canal de televisão, o teatro, o museu, a escola e com o próprio Diário Oficial, Darcy e sua equipe queriam fazer-se presentes no campo cultural, manifestar a presença e a ideologia do grupo do PDT no campo em questão, buscando não impor, mas disseminar seu projeto cultural não apenas nos âmbitos estatais, mas também na sociedade civil, combatendo assim os disseminadores culturais dominantes, dentre os quais, destacavam-se as organizações Globo. Leonel Kaz remete ao contexto histórico-político para ressaltar a importância da questão midiática:

Quando o Jango caiu do poder, Jango, Brizola e Darcy, o Brasil foi um período muito turbulento do governo do Jango, né? E essa turbulência foi mais ou menos retomada naquele momento, porque teve o interregno dos governos militares, então havia uma turbulência política, muita mídia, muita pressão, contrapressão, etc, né? (KAZ, Leonel, entrevista em 06/12/2013) O fato de representarem um partido de oposição, chamado esquerdista, com influências no socialismo europeu, que talvez tenha dado origem à alcunha do “socialismo moreno”, agitava o campo político, ampliava os embates e suas repercussões, fato que Darcy sabia operar com maestria, de acordo com Leonel Kaz:   Você tem aí um imbróglio político de crítica, ao chamado socialismo moreno, então havia uma grande pressão política, dos outros partidos para criticar. O Darcy se apropria disso, Darcy era um grande homem de marketing. Eu vou sofrer muitas críticas por falar isso, mas não tenho medo de falar. Ele era um homem que antes de todo mundo falar de marketing, entendia de marketing. Ele sabia como se apropriar das situações e fazê-las reverberar. O Darcy se apropriava das coisas de uma forma mais ampla, ele sabia como utilizar esse mecanismo da mídia. (KAZ, Leonel, entrevista em 06/12/2013) O que possibilitava essa apropriação por parte de Darcy? O que determina as possibilidades de execução e movimentação dentro de um campo? De acordo com Bourdieu (2004) é a estrutura das relações objetivas entre os atores. Essa estrutura está estreitamente relacionada ao volume e a estrutura do capital que tem determinado ator. Isso porque no campo, todo ator age sob a pressão que a estrutura do campo impõe a seus participantes. Quanto maior for o volume de capital do ator, maior a possibilidade de superar a pressão das estruturas e modificá-las. Submeter as forças do campo à sua vontade será possível somente se o volume de capital acumulado for relevante. Bourdieu define o capital como uma espécie de poder simbólico pautada no reconhecimento que os pares e concorrentes tem acerca de um ator no interior de determinado campo. Esse reconhecimento, atribuído a uma espécie de competência, confere autoridade para atribuir as regras do jogo e partilhar os lucros simbólicos.

Um dos exemplos mais comentados sobre as polêmicas de Darcy Ribeiro que movimentou a mídia e atraiu as atenções para a política cultural do PDT foi a apresentação de Clementina de Jesus no palco do Teatro Municipal. Na tabulação feita para as manchetes do Diário Oficial, os eventos no Teatro Municipal foram computados isoladamente, separados dos demais teatros. Nos gráficos finais, apresentados nesse trabalho, o Teatro Municipal apareceu apenas nos eventos de cultura erudita em espaços eruditos (ver gráfico 3), o que mostra que as queixas sobre os eventos de cultura popular no referido teatro, foram feitas por uma classe que ainda dominava a maioria dos eventos no local. Sobre essa revolta generalizada, Darcy comentou:

Frequentadores habituais do teatro se danaram, apoiados pela imprensa, contra a ousadia de levar uma cantora negra, pobre e favelada para cantar no seu reduto elitista. Esses idiotas se esbaldavam quando o teatro se abria para qualquer cantorzinho francês. Alienados. (RIBEIRO, 1997, p. 330) Em entrevista que fiz com Ricardo Cravo Albin, o mesmo afirma que o episódio envolvendo Clementina de Jesus no Teatro Municipal foi mais uma das vontades   exigidas de Darcy, e que o episódio ficou marcado como uma das realizações que mais causou polêmica no campo midiático e cultural da ocasião:

É, ele fazia questão, o que contrariou, aí sim, contrariou muito os frequentadores do Teatro Municipal, de abrir, “eu quero”, eu nunca me esqueço ele dizendo na reunião de Conselho, tinha um Conselho, que se reunia uma vez por semana na Secretaria de Cultura e que todos participavam. E ele bradando: “Eu quero abrir o Teatro Municipal, essa história do Teatro Municipal só para grã-finos, não é possível, porque só para música erudita? Se é um Teatro Municipal da Cidade do Rio de Janeiro? Do Estado do Rio de Janeiro. Eu quero abrir esse Teatro”. E aí, ele imaginou essa possibilidade, né? De abrir com Clementina de Jesus e as baianas da Mangueira. Então as baianas da Mangueira adentraram o Teatro Municipal com Clementina de Jesus. Então aquilo satisfez muito o Darcy. Causou um horror por parte do público habitual do Teatro Municipal, que não perdoou o Darcy por jogar dentro do Teatro Municipal, o templo sagrado da música erudita, o popular. E o Darcy fez questão de jogar o popular mesmo. Clementina de Jesus, afro-brasileira, junto com as baianas das escolas de samba. Nada mais espetacularmente popular. (ALBIN, Ricardo, entrevista em 23/11/2013) Leonel Kaz, outro entrevistado, de grande relevância na equipe cultural da ocasião, tem uma visão diferente do caso. Para ele, o referido episódio não foi algo inédito, que apresentasse uma ruptura abrupta. Kaz remete à história do teatro brasileiro para citar outros eventos que, em sua opinião, representam igualmente a invasão do popular ao Teatro Municipal:

Não é uma verdade que pela primeira vez o povo ou o negro subiu ao palco do Teatro Municipal. Em primeiro lugar, o , em 1946, com Vestido de Noiva, ele trouxe a fala das ruas pro palco do Teatro Municipal. Isso já é um acontecimento, talvez o mais notável da história do Teatro Municipal no Brasil. Porque... e aí é o fato mais marcante da história do teatro brasileiro. No caso do Teatro Municipal, o fato mais relevante da história do teatro brasileiro, a coisa mais importante é a estreia de Vestido de Noiva no Teatro Municipal, quando a fala das ruas entra no palco. Mas depois houve outros fatos! Antes da Clementina de Jesus. A apresentação, por exemplo, de Orfeu da Conceição, que é uma peça, musical, do Vinícius e Tom, com cenário do Oscar Niemeyer, que foi, em 1956, se não me engano, no palco do Teatro Municipal. A homenagem ao Pixinguinha. Pixinguinha tocou no palco do Teatro Municipal. E outros fatos relevantes aconteceram. O fato da Clementina ter sido homenageada está dentro de uma contingência política. (KAZ, Leonel, entrevista em 06/12/2013) Cabe ressaltar aqui que os eventos citados por Kaz, são, sim, eventos que tratam do cotidiano e cultura popular em um espaço erudito, porém, com envolvimento de personagens com penetração na cultura erudita, portanto mais bem aceitos pela classe   burguesa. Orfeu da Conceição trata a realidade das favelas cariocas e marcou a primeira vez que atores negros encenaram no palco do Teatro Municipal. No entanto, foi escrita por Vinícius de Moraes e Tom Jobim, teve cenários de Oscar Niemeyer e é adaptada do drama da mitologia grega de Orfeu e Eurídice; Vestido de Noiva foi escrita por Nelson Rodrigues, talvez o principal nome da dramaturgia brasileira, com um teor psicológico, tratando de conceitos científicos como alucinação, realidade e memória e é considerada como importante colaboração à modernização do teatro brasileiro; Pixinguinha, por sua vez, músico negro, como Clementina de Jesus, porém tocava instrumentos de sopro, de certa erudição, com relativa influência do jazz que chegou até mesmo a lhe render críticas, além de ter passado seis meses tocando em Paris, o que certamente proporcionou outro olhar por parte do público do Teatro Municipal.

Clementina de Jesus, por sua vez, negra como Pixinguinha, mas neta de escravos, envolvida com o carnaval e samba dos morros cariocas, empregada doméstica, cantava jongos e começou a carreira artística tardiamente, aos sessenta e três anos de idade. Clementina representava, em relação aos artistas e eventos citados por Kaz, uma ruptura mais agressiva de um espaço sagrado, que presenciava ali a cultura popular em um estado mais cru. Sua apresentação no palco do Teatro Municipal pode ser associada à ascensão social de uma mulher, negra e favelada, como que um símbolo do que Darcy acreditava, em sua teoria social, ser o caminho para o povo brasileiro e do que criticou a classe dirigente brasileira por ter tentado evitar. O PDT foi ainda mais longe com Clementina de Jesus, consolidando-a também institucionalmente como patrimônio cultural carioca: Uma das chamadas de capa da edição do dia oito de fevereiro de 1985 do Diário Oficial, intitulada “Clementina de Jesus, aos 85 anos, ganha pensão do Estado”, informa que Brizola propôs à ALERJ conceder pensão especial a Clementina de Jesus que, segundo ele, “construiu parte indispensável da história popular urbana do Rio”.

Além das polêmicas peculiares do embate midiático, outra questão que Darcy e sua equipe precisaram driblar, conforme mencionado nas citações abaixo, foi a falta de recursos financeiros disponíveis para a política cultural, visto que grande parte dos recursos financeiros do Estado era destinada ao projeto da educação. A educação como prioridade era um discurso partidário, que encontrava eco nas falas de Brizola e Darcy e que foi confirmado por Leonel Kaz e Ricardo Cravo Albin nas entrevistas:   O Governo Leonel Brizola fazia caixa única para instalar os CIEPs. Era caixa única, então não havia condição de dizer muita coisa, muito menos para a cultura e muito menos para a televisão. Então o Darcy compreendia isso porque o sonho dele era exatamente os CIEPs, objeto de caixa única do Governo Leonel Brizola. O grande dinheiro era destinado para fazer os CIEPs. Para construir a coisa maior, que era a educação, especialmente a solidariedade aos meninos pobres. Que eram cidadãos do futuro. Isso Darcy não abria mão. Meninos de hoje, que não tinham chance nenhuma, tendo a proteção integral do Estado, estudando de manhã à noite, sendo alimentado e tudo, pudesse ser o homem do futuro e fazer a grande revolução amanhã. Um país justo, um país socialista como ele queria. (ALBIN, Ricardo, entrevista em 23/11/2013)

Então, na verdade, foram feitas muitas coisas. Mas dentro de certos limites, inclusive porque também os olhos do governo, os recursos do governo foram postos nesse programa de educação. Então a cultura, por mais que ela tenha sido relevante ela continuou, como sempre foi, um patinho pobre. (KAZ, Leonel, entrevista em 06/12/2013) Em prol da declarada prioridade do projeto educacional, o PDT adotou o discurso e a política de austeridade financeira para conseguir direcionar também verbas para outras áreas, caso da cultura. Em sua coluna “Esclarecendo a População” publicada no Diário Oficial no dia dois de agosto de 1984, Brizola expõe tabela com dados financeiros e afirma que “no quadro geral o Rio foi muito prejudicado pelas exportações. Afirmamos que nenhum outro Estado executou uma política financeira tão austera e eficiente como o Rio de Janeiro. Estamos recuperando firmemente a arrecadação”. Cinco dias depois, no dia sete de agosto, Brizola publica nova coluna, dessa vez sob o título “Procedimento Injustificável”, onde pede que o leitor tire suas próprias conclusões sobre quem estaria por trás da “política de asfixia e discriminação contra o Rio de Janeiro”. Em seguida, Brizola acusa Delfim Netto de centralizar o poder de gestão e decisão financeira do país e classifica como “indisfarçável” os males que Netto vinha fazendo “contra o povo fluminense”:

Exigências descabidas sobre compromissos, que ele próprio sugeriu e homologou anteriormente, sabendo que o Estado não tinha a menor condição de cumpri-los (caso do Metrô, do festival de empréstimos do Governo Chagas Freitas, etc. etc); retenção indevida, desde março, de tributos do Estado [...] procrastinações odiosas e injustificáveis para a regularização de situações que aqui encontramos; orientação aos órgãos e agências financeiras para restringir financiamentos, delongar a liberação de recursos contratados, decisões que a União deve proporcionalmente ao Rio de Janeiro, porque aqui arrecada 20% de todos os seus fundos. Os royalties do petróleo encontraram o veto do Sr. Delfim. Enquanto isto, grupos privados e outros Estados têm sido atendidos, em centenas de bilhões, com todas as facilidades. (DOERJ, 07/08/1984, p.02)   

Após o tema principal, a coluna publica três subtítulos. O primeiro deles, “Arrocho”, é o adjetivo usado por Brizola para definir o que Delfim Netto impusera ao Estado do Rio de Janeiro. Brizola classifica como “irrepreensível em matéria de austeridade” sua política, aponta dados que mostram a redução – de 772 bilhões de cruzeiros no primeiro ano de governo Chagas Freitas para 179 bilhões no primeiro ano de governo Brizola – de títulos, empréstimos e operações externas e afirma que mesmo diante do equacionamento das dívidas, o arrocho adotado para o Rio de Janeiro não se aplicava para Estados como Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul, que conseguiam empréstimos federais de valores exorbitantes.

Como se pode notar, no campo político, os embates ideológicos, financeiros e midiáticos se entrecruzam. O campo, na concepção de Bourdieu (2004), portanto, é um mundo social composto por atores e instituições que produzem política, arte, ciência, etc. Esse mundo social obedece a leis mais ou menos específicas que conferem relativa autonomia ao campo. Todo campo é um espaço de lutas para transformar ou conservar a ordem vigente de estrutura de posições. As relações em um campo são de força e dominação. Essas forças estabelecem a lógica do funcionamento do campo e determina o que, a cada momento, e por parte de cada ator, torna-se possível ou impossível. A questão econômica tem um peso considerável nessa determinação e na autonomia do campo, visto que é um dos capitais requeridos no campo político. O que caracteriza a peculiaridade do campo é que, as regras que ditam o funcionamento do mesmo também estão em disputa e podem ser alteradas. Cada ator conta com seu volume de capital e sua posição adquirida nas lutas do campo para definir estratégias que conservem ou modifiquem as regras e estrutura vigentes.

O imbróglio envolvendo a questão midiática, político-ideológica e econômica continua na medida em que as decisões tomadas para resolver uma questão modificam as outras. Um exemplo disso é a polêmica do jogo do bicho. Brizola declarou abertamente a busca pela legalização da atividade. Esse propósito era uma possibilidade de angariar recursos financeiros para o Estado, cobrando impostos pela atividade, e acabar com a corrupção que envolvia a mesma, o que seria uma atitude positiva no aspecto político-ideológico. No entanto, a iniciativa foi explorada no campo midiático pelos adversários políticos do PDT. Cravo Albin fala sobre a legalização do jogo do bicho como uma forma de frear a corrupção e recolher recursos para o Estado:    Foi uma maneira talvez de sistematizar uma coisa, ou legalizar uma coisa que existia como foco de corrupção, que era o jogo do bicho. Então uma vez legalizando aquilo, supostamente acabaria a corrupção policial em relação bicheiros-polícia. Entendeu? Bicheiros... enfim, alguma comunidade civil, que era favorável ao jogo do bicho. Legalizando, eles imaginariam que poderiam cortar com a corrupção com a polícia e também injetar dinheiro do jogo do bicho na cultura. Porque o Darcy Ribeiro buscava todas as fontes possíveis, da LOTERJ... de várias outras fontes para chupar dinheiro para injetar na cultura. Darcy era um centralizador, insisto. (ALBIN, Ricardo, entrevista em 23/11/2013) Leonel Brizola, em sua coluna “Esclarecendo a População”, do dia onze de setembro de 1984, segue raciocínio parecido para defender-se das críticas publicadas nas páginas jornalísticas:

De quando em quando, insistem com envolvimentos sobre o jogo do bicho. Tais comprometimentos simplesmente não existem. Abertamente, assumimos a defesa da regulamentação e controle dessa modalidade de aposta, que é, entre todas, a mais antiga e enraizada nos hábitos da população. Isto, de nenhuma forma quer dizer proteção ou qualquer tipo de envolvimento. (DOERJ, 11/09/1984, p.02) A relação entre a política de austeridade econômica e a busca por recursos financeiros que acabaram associando o governo do PDT ao jogo do bicho foi tema recorrente nas páginas jornalísticas. Brizola já havia abordado o tema no dia nove de agosto daquele ano, no subtítulo “ Boicote I ”, classificando como “irresponsável” a publicação do “Jornal do Brasil” de que o governo Brizola “determinou aos órgãos da administração do Estado o boicote de verbas de publicidade oficial ao Jornal do Brasil”. De acordo com Brizola, a publicação associou o socialismo moreno ao totalitarismo e o “corte de verbas” foi classificado como “manipulação indevida, como acontece com o dinheiro do jogo do bicho”. Brizola conclui o subtítulo e rebate as acusações com a seguinte resposta:

Como se vê, trata-se de uma matéria bem típica da chamada imprensa marrom. Insinuações maldosas em função de coisas improcedentes, mas necessariamente em defesa de interesses próprios. Sobre o jogo do bicho, a população sabe que meu Governo não admite promiscuidades. Defendemos publicamente a sua legalização, como o fez o Min. Jarbas Passarinho. É melhor regularizar uma situação de fato, que nenhum governo, há decênios, conseguiu coibir. Em lugar de reprimir bicheiros, preferimos empregar o pessoal da Polícia no combate à violência e à criminalidade. Há muito que intentam envolver meu Governo e suas autoridades com essas práticas. Estão muito enganados. Jamais conseguirão nos atingir. O Sr. Brito sabe que os banqueiros do jogo do bicho partidariamente, estão muito mais próximos dele próprio do que de nós. (DOERJ, 09/08/1984, p.03)   

A relação torna-se paradoxal, pois, à medida que a legalização do jogo do bicho pode ter sido encarada como uma estratégia para arrecadar recursos escassos, fez a mídia e grupos políticos adversários associarem Brizola aos bicheiros, Darcy e sua equipe; ao criarem o Sambódromo, porém, desagradaram os bicheiros, que, em geral possuíam influência nas escolas de samba e, consequentemente, no carnaval do Rio de Janeiro, conforme atesta Ricardo Cravo Albin: O Sambódromo foi um grande momento. Ele [Darcy] queria acabar, como ele disse, com aquele monta-desmonta, que era muito feio e inclusive “enfeiava” não só a Avenida Presidente Vargas como perturbava o trânsito; era uma fonte de dinheiros ilícitos correndo, porque era um monta-desmonta, monta-desmonta com empresários aqui e ali, com firmas se fazendo, porque era todo ano aquele monta- desmonta, que era grande, as escolas de samba cresciam e cada vez o poder do dinheiro era maior. Então, ele imaginou fazer: “Nós vamos fazer, acabar com esse monta-desmonta”, eu me lembro bem. E fazer uma coisa permanente, para que as escolas de samba desfilem permanente. Pro desfile permanente. Aí pediu a Oscar Niemeyer. Escolheram o lugar e pediu a Oscar Niemeyer para fazer o projeto, me pediu inclusive, também uma possibilidade de, logo depois do Sambódromo feito, de fazer o Museu do Carnaval. Olha a preocupação dele! Além de fazer o Sambódromo, fazer logo em seguida o Museu do Carnaval. Entregou a mim o Museu do Carnaval. (ALBIN, Ricardo, entrevista em 23/11/2013) O Sambódromo acabou sendo um dos símbolos da política cultural implementada pelo PDT, à medida que, além de ter construído ali um “escolódromo” para a política educacional, os eventos culturais sediados no local atraíram um quantitativo enorme de público, e esse fato foi aproveitado pelo governo em matéria no Diário Oficial para reforçar a “vitória” sobre os opositores, conforme mostra a capa do dia vinte de outubro de 1986, que traz como chamada principal o título “Praça da Apoteose é o grande palco artístico e cultural dos cariocas” e relata que entre os dias vinte e sete de setembro e doze de outubro, a Apoteose recebeu duzentas e quarenta mil pessoas, entre os show de RPM, , James Taylor e a Festa da Criança. A chamada informa que, com esse quantitativo, “a praça contestada está definitivamente estabelecida como o melhor lugar para grandes espetáculos no Rio de Janeiro” e que o palco para grandes shows era um sonho de Darcy, na ocasião da construção do local. A chamada prossegue na página quatro, com o título “Apoteose exagera – em 15 dias, 240 mil pessoas – e anuncia próxima atração: Noite do Pagode” e traz depoimento de Wagner Teixeira, presidente da Riotur, sobre o sucesso da Praça da Apoteose:    Quando se construiu a Passarela do Samba, Darcy Ribeiro sonhou que a Cidade pudesse passar a contar com a Praça da Apoteose para shows de todos os tipos. A praça contrariava a tradição do samba e passou a não ser mais usada durante o desfile das escolas, mas ela continuou existindo, à espera de sons e luzes que a animassem. [...] Não tínhamos idéia de como funcionaria com o espaço cheio, pois o único grande espetáculo que lá ocorreu foi o de , na época das diretas, em condições especialíssimas. O primeiro teste foi o baile do Trabalhador que realizamos a 3 de maio, com a Orquestra Tabajara, Jamelão e Elza Soares. Começamos a testar o local (em ternos de segurança, infraestrutura, som, etc.) e passamos a levar lá empresários de propaganda o marketing, gente ligada a rádio, televisão e imprensa em geral. (DOERJ, 20/10/1986, p.04)

O termo “contrariar a tradição do samba”, usado por Wagner Teixeira, é uma menção polida à polêmica que envolveu a construção da Praça da Apoteose. Entre os grupos monopolizadores do carnaval carioca que foram contrariados estavam as organizações Globo, que, naquele ano de 1984, pela primeira vez em nove anos, deixou 40 de transmitir o carnaval carioca. Brizola então convida a TV Manchete, que transmite o evento e alcança a liderança de audiência, com 70%, derrotando a Globo em dia de domingo, pela primeira vez em onze anos. No ano seguinte, em 1985, as organizações Globo, aliadas aos patronos das escolas de samba desejavam fazer o desfile no local construído para a realização do Rock in Rio, empreendimento do empresário Roberto Medina. Ao tomar conhecimento dessa articulação Globo-Patrono das escolas, Darcy toma as providências necessárias para impedir seu avanço: Brizola e Darcy conseguem determinação judicial 41 , visto que a cessão do espaço ao Rock in Rio era de caráter provisório, e no dia seguinte ao término do evento, bem cedo, as máquinas lá estavam para desmontar toda a estrutura montada para realizar o festival de rock e reintegrar a área à posse do Estado do Rio de Janeiro, fazendo com que o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro daquele ano fosse, de fato, realizado no Sambódromo.

Esse episódio ilustra bem o hibridismo de atores e interesses existentes no campo político em questão. Teoricamente, as escolas de samba são associações civis, sem cunho político ou estatal. No entanto, possuem patronos, que precisam arrecadar recursos diversos para competir em alto nível no desfile das escolas de samba, que é um evento de repercussão nacional. Assim, a construção do sambódromo por parte do

 40 Ver em http://nilsonxavier.blogosfera.uol.com.br/2013/02/11/o-ano-em-que-a-globo-deixou- de-transmitir-o-carnaval-carioca-e-se-arrependeu-amargamente/ acessado em 09/01/2014 41 Ver em http://pt.wikipedia.org/wiki/Leonel_Brizola acessado em 08/02/2014 .    estado, envolve ambos – o sambódromo e o estado – em um cenário de interesses econômicos, políticos e culturais, que conta com um fluxo de personagens estatais e civis em busca de lucros simbólicos que, conforme atesta Bourdieu (1996b, p. 245) “são suscetíveis de ser convertido, em prazo mais ou menos longo, em lucros econômicos”. A partir das manobras realizadas pela equipe do PDT no campo político no intuito de prestigiar o sambódromo com eventos culturais de peso, conferindo assim posição de destaque ao local, pode-se dizer que a Praça da Apoteose caiu nas graças da população, visto que sediou 12% dos eventos de cultura popular realizados em locais populares 42 ao longo do período compreendido por esta pesquisa, conforme mostra o gráfico abaixo. Gráfico 4 – Locais populares a sediar eventos de cultura popular/Fonte: DOERJ 1984-1986

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   O sambódromo é um exemplo do caráter relacional das categorias popular e erudito empregadas neste trabalho. Trata-se de uma construção da arquitetura moderna, projetado para sediar um evento popular (carnaval) que até então ocorria nas ruas, o que, na visão de alguns, dá ao sambódromo uma definição não popular. No entanto, nesse trabalho, é caracterizado como local popular por estar relacionado ao carnaval, cuja transformação de algo espontâneo para industrial não é uma das questões deste trabalho.   Durante o período estudado, a relação entre educação e cultura foi muito além da questão financeira que privilegiava uma e criava dificuldades financeiras para a outra. Ambas tiveram Darcy Ribeiro como suas cabeças pensantes – Darcy foi Secretário de Ciência e Cultura e Presidente do Programa Especial de Educação (PEE) – e ambas seguiram uma diretriz semelhante, quiçá única, que provinha das ideias de Darcy. Apesar de existir separadamente a Secretaria Estadual de Educação e a Secretaria Estadual de Ciência e Cultura, em depoimento disponível no acervo sonoro da FUNDAR, Darcy explicita a estrutura governamental referente à educação, ciência e cultura que, ao mesmo tempo, descentralizava e garantia um trabalho conjunto entre as áreas: A ideia de organizar a administração do Estado com base em grandes blocos de Secretarias, que cubram áreas afins, se aplica muito bem ao campo da educação, da ciência e da cultura. Contando com uma coordenação conjunta, se pode, nesse caso, conciliar a presença de Secretários de Estado para cada uma das áreas, com um Secretário extraordinário, que seria um intermediário entre eles e o Governador do Estado. Isto teria duas vantagens: Primeiro, a de liberar o próprio Governador para dar atenção aos problemas estratégicos, gerais, deixando que táticas previamente aprovadas por ele sejam executadas em cada área. A segunda vantagem é estimular uma ação interfecundante das Secretarias, cada uma das quais, tomando conhecimento da atuação das outras, se esforçaria para evitar duplicações e para potencializar suas formas de ação. (RIBEIRO in: CD DR 128 – Faixa 2).

As chamadas publicadas no Diário Oficial ilustram essa unidade entre educação e cultura. Um exemplo é a chamada do dia seis de novembro de 1984, intitulada “Centros Integrados irão abrir mais espaço para a cultura”, com depoimento de Maria Lúcia Freire, do Departamento de Assuntos Culturais do Departamento do Estado de Cultura, informando ao leitor que os Centros Integrados de Educação Pública, previstos para funcionar em março de 1985, funcionariam como casas de cultura, com atividades que envolvem as comunidades. A frase de Maria Lúcia Freire que abre a reportagem resume a política cultural do Governo Brizola: “O trabalho da cultura não se separa da ação educacional. Pelo contrário, os dois caminham juntos. Por isto, procuramos envolver a instituição estudantil com a comunidade”. Entre os exemplos de programas culturais citados na matéria está o Seis e Meia da Ciência, que promovia debate entre estudantes e cientistas.   O Departamento Geral de Cultura do Município do Rio de Janeiro - órgão subordinado à Diretoria de Patrimônio Cultural e Artístico, com atuação associada ao Conselho do Patrimônio - organismo responsável pelo Arquivo Geral da Cidade, também tinha sua atuação integrada à educação, através de diretrizes estabelecidas por Maria Yedda Linhares, 43 Secretária Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Um exemplo é a orientação dada em seminários aos professores de educação artística das escolas dessa rede pública sobre a diversidade cultural do Rio de Janeiro. O Departamento e a Secretaria Municipal de Educação realizariam, em junho de 1985, o segundo seminário de educação artística da cidade para os professores. Outra chamada que bem ilustrava o binômio educação-cultura no governo do PDT foi publicada no dia quatro de dezembro de 1985, sob o título “Uma atividade que faz a ligação da escola com a comunidade quer ser reconhecida” destaca a figura do animador cultural, cuja função é “juntar a educação com a cultura, [...] fazer a ponte por onde irão passar as relações da escola com a comunidade”. A chamada informa ainda que os animadores culturais são pessoas com ligação no bairro onde atuam e que, segundo Maria Rita Silva, da Divisão de Animação Cultural do Departamento de Cultura do Estado, “foram importantes polos de resistência cultural no período do obscurantismo e tiveram boas experiências criativas com a arte”. O trecho abaixo dá uma ideia da atuação diversificada no animador cultural na escola e na comunidade: São eles, por exemplo, quem sistematizam a cessão do espaço do CIEP para os moradores nos fins de semana, que ajudam na promoção de atividades que vão desde a reunião de alcoólicos anônimos nos sábados até um forró no domingo, passarão pelas festas do calendário escolar (comemoração da primavera, da semana da consciência negra, etc). Alguns até se vestem de palhaços e vão animar a garotada. Outros querem fazer hortas e jardins, e terceiros tentam traçar, com as crianças e pais, a memória do bairro onde vivem. (DOERJ, 04/12/1985, p.04)

A figura do Animador Cultural busca a aproximação entre a escola e a população. Este profissional seria um dos principais responsáveis por essa união escola-população. Daí a importância de quem assumir essa responsabilidade ser uma pessoa ligada à comunidade. O animador cultural faria da escola algo móvel, que invadiria a  43 Catedrática da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a professora Maria Yedda foi uma grande colaboradora do Governo Brizola, tendo assumido a Secretaria de Estado de Educação em 1986, substituindo a Yara Vargas. Maria Yedda e Darcy Ribeiro conheceram-se quando disputaram a maratona intelectual promovida pelo MEC para estudantes do Ensino Médio. Maria Yedda auxiliou Darcy na elaboração do projeto do Curso de História da Universidade de Brasília e compôs a Comissão encarregada do projeto da Universidade Estadual do Norte Fluminense.   comunidade e receberia o povo em suas dependências. No dia vinte e dois de abril de 1986, o Diário Oficial publicou a reportagem “Exposição de artes no CIEP de Nilópolis”, sem texto, apenas indicando a continuação da chamada na página quatro, onde recebe o título “Os artistas populares da Chatuba”. A chamada noticia exposição de artes plásticas – que duraria até o dia seis de maio – com pessoas da comunidade local. Os professores do CIEP do local esperam aprender as técnicas dos artesãos locais e, como o barro é um material muito utilizado pelos artesãos, o CIEP espera autorização da FAPERJ para que seja construído um forno na escola. A exposição é mais um exemplo de integração entre os CIEPs e as comunidades. Em gravação disponível no acervo sonoro da FUNDAR, Darcy fala sobre o animador cultural:

A função do animador cultural, que eu chamo de agitador cultural, é fazer com que a escola respeite a cultura do povo a que ela serve. Nessa cultura existe, por exemplo, bumba meu boi, maracatu, samba, escola de samba, existe música popular, fundamentalmente. Ele vai ser contratado para estimular aquele povo a cultivar sua própria cultura. (RIBEIRO in CD DR 104, FUNDAR)

No dia seis de agosto de 1984, a página quatro, tradicional página das notícias de cultura, traz as seguintes chamadas: “Para adultos, os filmes das crianças”, “Nas bibliotecas, leituras para as crianças” e “TVE Mostra hoje como vai funcionar TV comunitária”. A primeira chamada da página noticia o Projeto Municine, desenvolvido pela equipe de cinema do Serviço de Artes Visuais, ligada ao Departamento Geral de Cultura. De acordo com a reportagem, os filmes exibidos “foram concebidos e realizados por alunos da quinta à oitava série das escolas da rede municipal”. O projeto Municine tinha o objetivo de “colocar a criança em contato com a linguagem cinematográfica de forma ativa despertando sua consciência crítica e sua capacidade de reflexão.” A segunda chamada da página quatro, abrindo o sumário de Cultura e Lazer, informa sobre a ação do Departamento Geral de Cultura do Município do Rio de Janeiro, que, como parte do projeto “Hora do Conto”, promove sessões de leituras em suas bibliotecas regionais. O objetivo dessa ação é “oferecer às crianças a oportunidade de conhecer histórias de diversos autores e desenvolver a criatividade através de atividades correlatas como debates, criação de histórias, desenho e outras”. É interessante observar que essas ações são dirigidas às crianças e unem instituições culturais à educação escolar, dois agentes pedagógicos importantes na formação do   habitus , na preparação para operar ferramentas especiais (novas linguagens, novos códigos) que contribuem para aumentar o capital cultural.

O dia seis de maio de 1986 publica na capa do Diário Oficial a chamada “Escolas públicas terão coleções de discos culturais” e noticia produção do selo Eldorado, que levará canções e poemas de nomes como Mario de Andrade, e Jorge de Lima. A chamada de capa informa ainda que Darcy recebeu a coleção das mãos da diretora da Funarj, Maria Luiza Librandi. A chamada, que continua na página vinte e sete, sob o título “O melhor da poesia infantil chega às escolas. É a luta contra a massificação”, resume bem o pensamento da iniciativa e informa que o Rio foi o primeiro a receber a coleção por ser um dos estados brasileiros mais atingidos pela massificação. A matéria traz ainda depoimento de Darcy informando que a tiragem recebida “já mostra o respeito pelo ato cultural. Estava faltando uma coleção assim e vamos pedir para multiplicar esse número”. A iniciativa é mais uma ação cultural que busca diálogo na educação escolar, visto que o posicionamento governamental era o de aproximar ao máximos as políticas de educação e cultura, trazendo para a escola a obra literária de autores consagrados.

As bibliotecas são outro exemplo da unidade entre educação e cultura. A edição do Diário Oficial do dia três de janeiro de 1985 traz a reportagem “Nas bibliotecas do Estado, gibis ao lado dos clássicos”, com depoimento de Alfredo Mendonça de Souza, Diretor do Instituto Estadual do Livro (INELIVRO), órgão que estava incumbido da política global do livro no Estado do Rio de Janeiro. A fala de Mendonça segue a crítica de Darcy ao sistema educacional brasileiro e apresenta a introdução de livros de “interesse popular” nas bibliotecas: No momento, todo o sistema de escola primária do Rio de Janeiro está sendo reavaliado, pois na realidade ele está servindo para formar analfabetos na medida em que mais da metade dos alunos que entram na escola não consegue alfabetizar-se. Isso nos leva a questionar o próprio papel das bibliotecas, que não são usadas pela população e se transformam em guardadoras de livro para uma pequena elite. Assim, todo esforço será feito para democratizar as bibliotecas, para que atendam ao maior segmento possível da população. [...] Mas como fazer para criar nos alunos o hábito de freqüentar bibliotecas? A resposta é que elas passarão a ter livros de interesse realmente popular. Elas vão ter livros de , João Ubaldo Ribeiro e muitos outros que são realmente populares. E, para estimular a freqüência, serão criadas as gibitecas, ou seja, revistas em quadrinhos ao lado dos clássicos brasileiros e universais. (DOERJ, 03/01/1985)   É oportuno ressaltar que a medida de integrar leituras de interesse popular às bibliotecas do Rio de Janeiro estabelece uma coerência com o gráfico de locais eruditos a sediarem eventos populares – já exposto nesse capítulo (gráfico 2) – que aponta as bibliotecas em segundo lugar (atrás apenas dos museus) entre os espaços eruditos que mais sediaram eventos populares, com 12% dos eventos. Outro gráfico que ressalta a ênfase dada na relação entre educação e cultura no período estudado é o de eventos populares em espaços eruditos, onde somados, as visitas de alunos e professores e a apresentação de produção cultural de alunos em espaços eruditos, representam 11,2% dos eventos dessa natureza: Gráfico 5 – Eventos de cultura popular sediados em espaços eruditos/ Fonte: DOERJ 1984-1986

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*%C %`:3JR3$VJ: R 5Q    O intercâmbio entre cultura e educação prosseguia tanto com os alunos da rede pública indo aos eventos culturais, quanto com eventos culturais indo aos CIEPs. O dia vinte e nove de agosto de 1986 publicou na capa do Diário Oficial a chamada “Circo faz a festa no Largo da Carioca”, que destaca a apresentação, ao ar livre, do Circo de Moscou, intercalado com o grupo teatral “Tá na Rua” em picadeiro improvisado no Largo da Carioca. O evento foi prestigiado por cerca de três mil pessoas, dentre os quais estavam alunos de três Brizolões. A chamada continua na página 52, com o título “Circo de Moscou leva três mil pessoas ao Largo da Carioca”, noticiando que o evento faz parte do projeto “Meio-Dia da cultura, cujo objetivo é “levar artistas populares para o Largo, sempre na hora do almoço. A intenção é um encontro mais íntimo entre artista e público, sem a parafernália eletrônica dos shows”.

O dia quinze de setembro de 1986 traz a chamada “Teatro do Oprimido presente nos Cieps”, noticiando espetáculo apresentado às crianças do CIEP Tancredo Neves 44 . A chamada informa que o teatro percorrerá outros CIEPs45 e que reuniu animadores culturais sem experiência teatral prévia. Na página trinta e cinco, a chamada prossegue, agora com o título “Teatro do Oprimido se apresenta no CIEP” e relata o que 46 , descrito na chamada como pai do Teatro do Oprimido, chama de “Teatro Forun”, que percorrerá alguns CIEPs ao redor do Rio. A chamada traz ainda depoimento de Maria Líbia de Melo, da Coordenação de Ativação Cultural, do Departamento Geral de Cultura sobre o evento: “É uma experiência fantástica poder trabalhar com Boal, com a possibilidade de levar este trabalho às crianças e professores de escolas de bairros muito carentes e, por isso, muito oprimidos”.

O dia dezesseis de outubro de 1986 publica na capa do Diário Oficial a chamada “Arte das favelas tem sua exposição”, que divulga a primeira exposição de arte produzida nas

 44 O CIEP Tancredo Neves foi o primeiro CIEP construído pelo governo Brizola. 45 Os 60 primeiros CIEPs foram construídos no município do Rio de Janeiro. Isto porque cabia aos municípios a competência para atender a educação obrigatória dos 7 aos 14 anos. Além disso, Darcy considerava importante iniciar o programa de educação integral no município do Rio de Janeiro que ainda mantinha a repercussão de ensino modelo porque foi palco das reformas de ensino que introduziram o modelo de Escola Nova no Brasil. (Reforma Fernando de Azevedo, 1928 e Reforma Anísio Teixeira, 1932).   Augusto Boal foi um dramaturgo brasileiro, responsável pela criação do Teatro do Oprimido, que apresentou técnicas inovadoras para abordar temas de cunho político e proporcionar a democratização dos meios de produção teatral, o acesso das camadas sociais menos favorecidas e a transformação da realidade através do diálogo.    favelas do Rio de Janeiro. De acordo com a chamada “são 121 trabalhos de 21 artistas das comunidades do Pavão, Pavãozinho, Cantagalo, Rocinha, Morro da Formiga e outras.” A chamada prossegue na página quatro, dessa vez intitulada como “A inspiração espontânea e forte da arte do favelado carioca” informa que o organizador do evento é Ernani Silva, morador do Morro do Cantagalo e animador cultural no Ciep. De acordo com Ernani, a motivação veio do fato de que “o artista de favela não tem acesso às galerias de arte e muitas vezes não tem consciência do valor de seu trabalho. E as comunidades, que vivem em guerra, podem aprender a fazer a paz através da arte.”. Essa reportagem aborda dois aspectos fundamentais da agenda política cultural desenvolvida por Darcy: a promoção de oportunidade cultural a públicos até então marginalizados e concebidos como não produtores de cultura. A oportunidade que aqui se coloca não é a de consumir cultura alheia, mas a de expressar e divulgar uma cultura própria, desenvolvida no interior das favelas, que, por vezes, tende a se tornar um gueto cultural por não estabelecer relações culturais com o restante da sociedade. O segundo aspecto é a presença do animador cultural como uma das figuras pensantes do projeto, traduzindo assim, seu trabalho, em ações culturais direcionadas à comunidade. Os eventos relatados nas reportagens supracitadas embasam depoimento 47 de Vera , Coordenadora Pedagógica da implantação dos CIEPs (em sua primeira fase), sobre a educação concebida pela equipe do PDT para o Estado do Rio de Janeiro: Quando você se propõe a um projeto de educação popular você se propõe a educar a base da pirâmide. Quando você educa a base da pirâmide, significa inverter a situação do jogo de poder da pirâmide. Porque quando você educa, você dá o instrumental, você informa. Quem detém a informação detém o poder. Ou seja, você está se propondo na verdade à única e verdadeira revolução. [...] Darcy batia numa tecla que era fundamental: para que um povo reivindicasse, ele precisava ter um padrão de reivindicação. E esse padrão de reivindicação não podia ser, como ele demeritoriamente dizia, as escolinhas do Flecha Ribeiro, que eram feitas de compensado em cima da favela. Ele queria a melhor escola possível pro povo mais desassistido, para que eles tivessem um padrão de reivindicação. Darcy queria que a criança, os pais e a comunidade como um todo, tivessem um padrão de reivindicação educacional à altura. (CRUZ, Vera, In: Memórias de Secretários de Educação – Yara Vargas)

A concepção acima aproxima a política cultural e educacional do PDT ao povo carioca, e sob a perspectiva da teoria social de Darcy que prega a saída do Povo-Novo da

 47 Ver em Memórias de Secretários de Educação – Yara Vargas. Documentário produzido pelas professoras Yolanda Lôbo e Lia Faria com apoio da FAPERJ, FUNDAR, Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro e produção da Bogotá filmes, em 2007.    alienação cultural, propor um projeto cultural que proporcione a emancipação da população de base para buscar uma nova concepção de sociedade. De acordo com Bonnewitz, na teoria de Bourdieu, os líderes precisam de ideologias que alcancem o público a quem se dirigem:

É preciso que os agentes a quem se dirige a instituição estejam preparados para submeter-se ao seu veredito. Um ateu dará pouca importância às bênçãos religiosas. O discurso institucional só pode funcionar se encontrar nos agentes estruturas internas, cognitivas e afetivas, prontas para acolhê-lo. (BONNEWITZ, 2003, p. 102). Nesse sentido, o PDT, um partido que se declarava como socialista e popular, busca uma concepção de educação que obtém adesão das camadas populares. No dia catorze de maio de 1986, a página trinta e dois do Diário Oficial publica a chamada “Inaugurada Escola Colorida em São Gonçalo” e informa que, o projeto da Escola Estadual Coronel João Tarcísio Bueno, idealizado por Carlos Scliar, após ser desafiado por Darcy a “transformar a escola, segundo ele um lugar feíssimo, em algo belo”. Scliar afirma que a ideia da escola colorida tem o propósito de estimular os alunos a aprender em um local vivo, criativo, que aguçasse a criatividade das crianças. Também na chamada publica-se que as paredes das escolas estão repletas de poemas e aborda discurso de Darcy que narra o impedimento de construir dois CIEPs no local por questões de conflito político: “não tivemos a cooperação nem do município nem da justiça local. Se isso tivesse acontecido, teríamos mais 2 mil vagas e poderíamos ter desafogado esta escola. O nosso compromisso é bem maior do que esta escola aqui, embora ela seja linda”. O depoimento de Darcy denota mais um dos embates no campo político, visto que alguma questão dessa natureza impediu a criação dos CIEPs – que atenderiam quantitativo maior de crianças – no local. As polêmicas em torno do projeto educacional dos CIEPs não é exatamente uma novidade. A implementação dos Centros Integrados de Educação Pública gerou insatisfação de grupos da educação privada, partidos políticos e até associação de moradores. Leonel Kaz e Ricardo Cravo Albin atribuem este fato à quantidade de dinheiro envolvido no projeto dos CIEPs, além da briga por espaços físicos e afirmam que a política cultural não enfrentou problemas dessa natureza:    Não. Não houve resistência desse jeito não. Realmente a escola mexe com dinheiro, muito grande, dinheiro estabelecido, que eram as escolas particulares. Mas, na cultura não houve esse tipo de resistência. Muito menos, não houve, porque o Darcy era muito simpático ao ambiente cultural. Não esqueça que ele fundou a Universidade de Brasília, né? Quer dizer, era uma pessoa muito criativa, era um escritor, era antropólogo, tinha uma história de vida muito bonita, destemida, muito criativa. É claro que ele era bem aceito no meio cultural. Não havia movimentos de resistência a ele, não. As pessoas eram favoráveis. Tanto que eu me recordo eram pessoas simpáticas ao Darcy. Claro que sempre havia um ou outro que falava mal. Mas isso é normal, não é unanimidade. Mas a maioria era realmente favorável e estimava as ideias megalômanas do Darcy que era um grande megalômano, era uma pessoa realmente, era um... ele sempre dizia que ele era um sol. (ALBIN, Ricardo, entrevista em 23/11/2013)

Não, eu acho que não. No caso da política de educação, o Darcy tentou reimplementar as ideias do Anísio. Só que ele partia, ele talvez se viu tolhido porque o Brizola escolheu o próprio filho para coordenar a escolha dos locais 48 onde as escolas seriam implementadas. Isso gerou já muita crítica e havia negociações políticas de espaços que não eram ideais para serem de escolas e que talvez perturbaram um pouco esse processo da boa escolha dos locais, você tem muita escola exibida em beira de estrada, que é um absurdo de barulho, né? (KAZ, Leonal, entrevista em 06/12/2013) É possível ter uma ideia do dinheiro envolvido para a educação a partir das páginas do Diário Oficial. O dia dois de dezembro de 1986 traz como chamada principal “Orçamento 87 da prefeitura tem na Educação e Cultura sua prioridade” informa proposta orçamentária do prefeito Saturnino Braga para o próximo ano, onde educação e cultura recebem 36,8% do orçamento total. A chamada prossegue na página vinte e sete, com o título “Orçamento Municipal está estimado em Cz$ 15 bilhões”. A chamada informa ainda que a intenção é “dar continuidade ao Programa Especial de Educação” e que o governo mostra “sua preocupação em manter e melhorar os programas de merenda escolar, construção, reforma e conservação das unidades de ensino do município”. Essa chamada demonstra que a união entre educação e cultura não se fazia apenas no plano ideológico, mas também na questão financeira, visto que os recursos das duas áreas eram somados. A destinação de quase 40% do orçamento total do

 48 Sobre o processo de escolha dos locais dos CIEPs, ver depoimento de Carlos Sussekind no vídeo Memórias de Secretários de Educação – Yara Vargas, onde o mesmo informa que os locais escolhidos levaram em consideração os terrenos que já eram do poder público (municipal, estadual) ou que foram adquiridos sem custos e que possuíssem a amplitude necessária para atender desejo de Brizola sobre a estrutura física dos CIEPs. Por sugestão de Darcy, o dr. Sussekind, engenheiro de cálculo do escritório de Niemeyer, foi nomeado coordenador de obras dos CIEPs. A escolha dos terrenos, portanto, estava sob sua responsabilidade.    município para educação e cultura demonstra o protagonismo que estes segmentos governamentais possuíam no período estudado. O gráfico de espaços populares que sediaram eventos de cultura popular, já mostrado nesse trabalho, aponta os CIEPs com um índice de 10,2% desse tipo de ocasião. O gráfico abaixo mostra que os CIEPs, somados as demais escolas públicas, sediaram 11,1% dos eventos eruditos em locais populares, um índice bem próximo dos 13,8% dos líderes nesse quesito, Parque Lage e bairros, ruas e municípios do Rio de Janeiro, mostrando que parceria entre educação e cultura era de fato sólida.

Gráfico 6 – Locais populares a sediar eventos de cultura erudita/Fonte: DOERJ 1984-1986

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No entanto, a prioridade financeira e política dada à educação, que refletia para o bem – nos fazimentos – e para o mal – no arrocho financeiro – na política cultural, tinha literalmente um preço, já que Darcy, Brizola e a equipe do PDT encontravam problemas no campo político para receber recursos do Governo Federal. No dia primeiro de   outubro de 1986 a capa do Diário Oficial publicara a chamada “Sem apoio federal, Estado prepara orçamento dando destaque à educação”, divulga proposta orçamentária para 1987, enviada na véspera por Brizola à ALERJ. O texto da chamada destaca a educação como “prioridade número um”, baseando-se nos 22,4% do orçamento destinado à educação, um aumento considerável em relação aos 14,5% investidos em 1984. A chamada destaca que, de acordo com Brizola, “nunca o orçamento expressou tão claramente a intenção de democratizar os interesses da coletividade”, e dá ênfase ao embate entre governo do Estado e governo Federal publicando reivindicação de Brizola, que afirma ser o governo do Estado discriminado pelo governo Federal: “não reivindicamos qualquer privilégio, e sim aqueles recursos oriundos de financiamentos a que temos direito para dinamizar iniciativas de inequívoco cunho social” 49 . A sequência da chamada ocupa as páginas quatro, cinco e seis do Diário Oficial, com os títulos “Orçamento para o próximo ano mantém a prioridade para as áreas sociais”, “Inflação calculada é 49,95%”, “Previsão é de 36% de aplicações federais” na página quatro, enquanto que as páginas cinco e seis foram ocupadas com a íntegra da mensagem enviada por Brizola à ALERJ, publicada no Diário Oficial sob o título “Mensagem cita discriminação odiosa da União”:

 49 Brizola refere-se aos recursos provenientes do Salário Educação, uma contribuição social destinada ao financiamento de programas, projetos e ações voltados para o financiamento da educação básica pública. Ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE, compete a função redistributiva da contribuição social do salário-educação. Do montante arrecadado e após as deduções previstas em lei (taxa de administração dos valores arrecadados pela RFB, devolução de receitas e outras), o restante é distribuído em cotas pelo FNDE, observada em 90% (noventa por cento) de seu valor a arrecadação realizada em cada estado e no Distrito Federal. No que diz respeito às cotas estadual e municipal, correspondente a 2/3 do montante dos recursos, a partir da Lei nº 9.394 de 1996, Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional, são creditadas mensal e automaticamente em favor das secretarias de educação dos estados, do Distrito Federal e dos municípios para o financiamento de programas, projetos e ações voltados para a educação básica. No entanto, anterior a esta Lei, as cotas estadual e municipal não eram creditadas automaticamente. Às vezes, dependia de acordos políticos partidários. Brizola denuncia como insuportável o protelamento, por parte do governo federal, no repasse do salário educação para o município e o estado do Rio de Janeiro. Ver em http://www.fnde.gov.br/financiamento/salario-educacao/salario-educacao-entendendo-o acessado em 08/02/2014   Muito embora o nosso Governo venha se norteando nesta linha de trabalho, não podemos deixar de lamentar o quadro pleno de dificuldades imposto pela União, que vem obstando, permanentemente, a implantação de nossos projetos prioritários. Não reclamamos favores federais como os que infelizmente, pautaram e pautam as relações entre a União e os Governos estaduais, desde que os Estados lhes foi negado pelo autoritarismo o poder de atuar com a autonomia que o princípio da Federação requer. Referimo-nos à discriminação odiosa contra os fluminenses que vem sendo exercida antes e depois do Governo Sarney, no plano das relações administrativas e financeiras. Não reivindicamos qualquer privilégio, e sim, aqueles recursos oriundos de financiamentos a que temos direito para dinamizar iniciativas de inequívoco cunho social. Nossos pleitos ficam, via de regra, sem resposta, e quando isto ocorre, o Governo federal introduz exigências absurdas como forma de protelar as decisões. As autoridades econômicas de Brasília chegaram a reter durante meses recursos do Estado assegurados pela Constituição Federal, obrigando-nos a recorrer aos Tribunais para que os ministros da área econômica dessem curso aos repasses financeiros retidos ilegalmente. Além disso, como é do conhecimento de todos, nada recebemos dos royalties, numa postergação inaceitável pelo povo do Rio de Janeiro. (DOERJ, 01/10/1986, p.05)

Percebe-se, através da reportagem acima, um exemplo claro da utilização que Darcy, Brizola e sua equipe faziam do Diário Oficial como um instrumento político-midiático, reivindicando os direitos políticos e econômicos do Estado do Rio de Janeiro, marcando posição no campo em questão, e passando para a população a mensagem de que o governo Brizola, mesmo diante das injustiças que vinham sendo praticadas contra ele, cumpria com seus compromissos, não abrindo mão de suas prioridades e suas ideologias, dentre as quais estava a educação, instrumento esse que aproximava o PDT do povo. De acordo com Ricardo Cravo Albin, uma das ambições de Darcy na pasta da cultura, era alçar Brizola a condição de pleitear a Presidência da República: Ele queria realmente fazer com que Leonel Brizola saísse dali e pudesse evidentemente aspirar a Presidência da República. E segundo por que ele também era um grande sonhador, um grande executivo e um grande ser vulcânico. Então ele queria fazer o máximo possível, queria fazer ali [da Secretaria Estadual de Cultura e da Presidência da FUNARJ] o Ministério da Cultura. Era esse o envolvimento. O Darcy vivia num envolvimento de perspectiva do futuro, ele não vivia no nosso tempo, ele era uma perspectiva do futuro. E evidentemente muito vulcânico e ambicioso, no sentido de ser realmente ele o centro do mundo. O epicentro, razão porque ele realmente pensava grande. (ALBIN, Ricardo, entrevista em 23/11/2013) Sinais dessa pretensão à Presidência da República podem ser vistos através das reportagens publicadas no Diário Oficial, dentre as quais destacam-se a do dia vinte e sete de fevereiro de 1986, como principal chamada de capa, intitulada “Brizola: juros da   dívida externa dariam para colocar todas as crianças nos CIEPs”, que aborda participação de Brizola no Seminário do Programa Especial de Educação, onde Brizola afirma que “Se o País deixasse de pagar os juros da dívida externa durante dois anos, o Governo teria dinheiro suficiente para colocar todas as crianças nos CIEPs”. A chamada segue na página três, dessa vez sob o título “Brizola: CIEPs serão um padrão nacional”: Este foi um programa que deu certo. A construção é rápida e econômica, com a tecnologia de pré-moldados de argamassa armada, e os seus objetivos foram alcançados. A criança matriculada no CIEP tem um dia inteiro de atividades, as previstas no currículo da rede de ensino e as outras, geralmente à tarde, com exercícios de recreação, de esportes, de música, de arte, de cultura, com quatro refeições diárias, atendimento médico, etc. De minha parte, eu não tenho dúvida alguma de que esse programa vai ganhar padrão nacional. [...] Para as elites brasileiras que nos precedem, não tem sido fácil entender o que os japoneses entenderam há 100 anos atrás. Os japoneses não tinham a riqueza natural que nós temos, não tinham energia, não tinham um fundo cultural, e entenderam que a maior riqueza deles era o povo. E investindo na força e no dinamismo do seu povo, nos seus recursos humanos, saíram do buraco. Hoje, o Japão é um país forte na sua economia, um país industrializado, com alto padrão de vida. Então essa reunião de, hoje tem uma importância fundamental, e a considero mesmo a que mais renderá frutos dentre as muitas que temos promovido, uma vez que poderemos aproveitar essas horas para rediscutir os muitos aspectos do programa. (DOERJ, 27/02/1986, p.03)

O que se pode evidenciar é que a luta no campo político afeta diretamente os programas de educação e cultura do governo Brizola. Sob a perspectiva da teoria de Bourdieu (1999), podem-se examinar as estratégias do PDT no campo político. De acordo com este autor, no referido campo os indivíduos atuam como jogadores e como produtores e consumidores de bens. Dentro de um campo, os indivíduos que possuem o capital específico para dominá-lo se enfrentam em busca da acumulação de forças que vai assegurar a dominação do campo. Sob essa perspectiva o capital é meio e fim. Os indivíduos medem capital em busca da acumulação do mesmo. Nessa busca pelo capital, o propósito de quem está na posição dominante é acumular o máximo possível. E quem está em posição dominada, procura mudar essa configuração, através de estratégias que desvalorizem o capital sobre o qual repousa a dominação do oponente. Nessa competição nos variados campos em busca dessa potencialização as disputas passam a ser mediadas através de e em busca dos capitais. O objetivo é superar os outros indivíduos para manter-se no topo. Aqui, nesse contexto, o poder é fruto da posição ocupada dentro do campo. Quanto mais vantagem sobre os outros, mas lucro e   dominação. De acordo com Bonnewitz (2003), na teoria de Bourdieu, a cultura é entendida como um subproduto do campo:

A sociologia da cultura de Bourdieu comprova a importância das lutas simbólicas na luta de classes. Impor significações, fazendo esquecer o arbítrio contido nelas, essa é a lógica da violência e da dominação simbólicas. [...] a cultura constitui um elemento de um conjunto mais vasto, o campo da produção simbólica, para o qual contribuem os campos político, jurídico, religioso, que, de maneira concorrente e com uma legitimidade diferente segundo as épocas, produzem representações do mundo que visam difundir-se e impor-se. (BONNEWITZ, 2003, p. 110-111). Nesse sentido, no campo político, da ocasião, Brizola e a equipe do PDT direcionam as ações políticas – incluindo as educacionais e culturais – para um novo ator que adentra o campo em questão: a grande massa, que estava fora da política de estado, por não ter direito a votar, durante todo o regime militar. A volta das eleições diretas, da escolha popular, constitui um elemento novo no campo político, de peso determinante para alterar a configuração de poder do mesmo. Com as mudanças das regras eleitorais e as eleições diretas para o governo do estado em 1982, essa grande massa adquire capital no campo político, por ter o poder para modificar a configuração do mesmo. Brizola e o PDT buscam, então, utilizar-se da estrutura governista para promover e solidificar sua aliança com a grande massa, que agora tem poder de voz e voto. O campo é movido por interesses. Brizola precisa movimentar o campo a seu favor. Desenvolve, assim, uma política de incluir esse novo personagem que volta à cena brasileira; Brizola, eleito por voto direto, entende que precisa dar resposta ao público que o apoiou. A aliança do PDT com a massa popular era, ao mesmo tempo, uma questão ideológica do partido, que se declarava socialista, e uma estratégia de busca e manutenção de poder, de garantir posições dominantes no campo político.

As estratégias para garantir e solidificar essa aliança estiveram presentes em diversos segmentos da política do PDT: além da educação com os CIEPs e da cultura com a inclusão da grande massa nos cenários tradicionais da cultura carioca, percebe-se ações desse sentido na segurança pública 50 e direitos humanos, onde Brizola determinou que as casas das favelas cariocas só poderiam ser adentradas pelos policiais mediante

 50 Sobre a segurança pública no primeiro governo Brizola, ver BUARQUE DE HOLANDA, Cristina. Polícia e Direitos Humanos. Política de Segurança Pública no Primeiro Governo Brizola. Rio de Janeiro. Revan: 2005.   apresentação de mandato. Na questão da comunicação, o Diário Oficial denota a preocupação de formar a opinião pública. O fato de o periódico ser gratuito mostra tentativa de alcançar a população de massa, se comunicar com esse público. Seu discurso, desde a campanha, é um discurso que verbalizava uma linguagem do povo, com jargões populares como “comer pelas beiradas”; as charges eleitorais fazendo alusão ao jogo do bicho, um jogo de azar cuja grande maioria de adeptos pertencia à classe popular. A questão política voltada para o povo era o que transformava a configuração do campo político naquele momento. Darcy, Brizola e o PDT tiveram essa percepção e produziram ações políticas, como que em uma espécie de oferta para esse novo público, novo consumidor que adentrava o campo político. Sobre a política enquanto um mercado de oferta e procura, Bourdieu explicita que:

Podemos descrever a política, por analogia, como um fenômeno de mercado, de oferta e de procura: um corpo de profissionais da política, definido como detentor do monopólio de fato da produção de discursos reconhecidos como políticos, produz um conjunto de discursos que são oferecidos a pessoas dotadas de um gosto político, quer dizer, de uma capacidade muito desigual de discernimento entre os discursos oferecidos. Estes discursos vão ser recebidos, compreendidos, percebidos, selecionados, escolhidos, aceites, em função de uma competência técnica e mais precisamente de um sistema de classificação cuja precisão, a penetração diferenciadora vai variar em função das variáveis que definem a competência social. (BOURDIEU, 2003, p.257). Nessa aliança popular, Brizola foi ainda mais além, sendo um dos militantes pela participação popular também nas eleições presidenciais. No dia 30 de outubro de 1984, foi publicada no Diário Oficial a coluna “Esclarecendo a População”, sob o título “Escamoteação e ilegalidade”, onde Brizola fala sobre o processo de escolha do futuro Presidente da República. O então governador do Estado do Rio de Janeiro afirma que o povo brasileiro externara “a sua vontade no sentido de uma mudança das regras em vigor sem a realização de eleições diretas e imediatas, única alternativa limpa e correta para tirar a Nação deste ambiente de sofrimentos, de incertezas e insegurança”, mas que, em resposta, “os centros de poder e influência, instalados no Executivo e no Legislativo, empedernidos e insensíveis ao clamor público, tudo fizeram para impedir o restabelecimento destes sagrados direitos de nosso povo.” No final da coluna, Brizola volta a defender os princípios democráticos ao afirmar que:    A Nação inteira quer paz e a intangibilidade das regras estabelecidas, sem mais distorções e escamoteios. A ordem legal que aí está precisa, indispensavelmente, ser democratizada, mas por processos legítimos e normais. Até então, o que cumpre a todos nós é defendê-la, como o estatuto mínimo com que conta, neste momento, o povo brasileiro, para fazer prevalecer às suas justas e legitimas aspirações. (DOERJ, 30/10/1984, p.02)

Na literatura política a questão dos princípios democráticos é recorrente. Para Aléxis de Tocqueville (1998), por exemplo, a democracia somente existe quando pautada em instituições legítimas e na efetiva participação popular na questão política. A participação popular se faz importante no sentido de representar as demandas da coletividade e implementar ações para que as mesmas sejam satisfeitas. Tocqueville atribui ao povo uma soberania que, a partir do exercício de sua participação, e, por conseguinte, de sua autoridade, constitui-se na parte mais preponderante soberania do poder político, deliberando sobre questões fundamentais do mesmo. Para Tocqueville, a participação do indivíduo na esfera pública é o que o torna cidadão. O referido autor entende por soberania popular a participação das massas em nível que proporciona a criação de regras, demandas que serão implementadas e vigiadas a partir da vontade popular:

Quando um povo começa a tocar no censo eleitoral, pode-se prever que chegara, num prazo mais ou menos longo, a fazê-lo desaparecer completamente. Essa é uma das regras mais invariáveis que regem as sociedades, Á medida que se recua o limite dos direitos eleitorais, sente-se a necessidade de recua-lo ainda mais; porque, depois de cada nova concessão, as forcas da democracia aumentam e suas exigências crescem com seu novo poder. A ambição dos que são deixados abaixo do censo inflama-se proporcionalmente ao grande numero dos que se acham acima. A exceção se torna enfim a regra; as concessões sucedem-se sem parar e só se para quando se chega ao sufrágio universal. Em nossos dias, o principio da soberania do povo teve nos Estados Unidos todos os desenvolvimentos práticos que a imaginação e capaz de conceber [...] Ora o povo em corpo faz as leis, como em Atenas; ora deputados, que o voto universal criou, o representam e agem em seu nome sob sua vigilância quase imediata. (TOCQUEVILLE, 1998 p.67)

Guardadas as devidas proporções entre o entendimento de democracia – com um viés aristocrático 51 em Tocqueville e com um viés populista, já abordado neste trabalho, na

   De acordo com Huisman (2001), na concepção de Tocqueville, a democracia envolve o individualismo, a possibilidade de isolamento entre os indivíduos. Isolamento esse que remete à herança despótica de Tocqueville. Sob essa ótica, as instituições são criadas por iniciativas individuais que se interpoem-se entre os indivíduos solitários e o Estado. Em Tocqueville, o    trajetória política de Brizola, a participação popular no pleito eleitoral de 1982 proporcionou ao povo de Rio de Janeiro exercer a sua cidadania, restituindo-lhe a possibilidade de intervir na coisa pública. A ampliação dessa postura política para o âmbito nacional – ideia defendida por Brizola, entre outros nomes da política nacional, com a proposta de eleição presidencial direta – remete-me ao conceito de igualdade em Tocqueville, que seria a possibilidade da população participar ativamente da questão política, votando, sendo votado, formando associações e manifestando opiniões. Ao estabelecer estratégias que confiram poder ao povo, o PDT busca ser impulsionado pelo apoio popular às posições dominantes no campo político da ocasião. As estratégias estabelecidas nesse sentido geraram, por parte dos adversários, à Brizola, a alcunha de populista. Ora, não se pode deixar de lembrar que o PDT traz de volta ao cenário político três princípios básicos do antigo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de Getúlio Vargas: Nacionalismo, Democracia e Participação Popular, premissas basilares do PDT 52 que encontravam eco nessa política de construir uma nação para o povo. Na concepção de Darcy, Brizola e do PDT, essa massa que estava de fora do jogo político, agora entra, e precisa ser tratada como cidadã. É justamente essa questão de participação popular, de política voltada para a população que agrega ideologicamente vontades dispersas, polissêmicas presentes nas diversas matrizes ideológicas das figuras esquerdistas que compunham o PDT desde sua fundação até aquele momento. As divergências político ideológicas em um grupo que envolvia marxistas, trotsquistas, comunistas, e outras vertentes ideológicas da esquerda, foram deixadas de lado  justamente porque essa participação popular efetiva era o elemento que garantia coesão a todas essas vertentes políticas. Embora existissem divergências políticas, era a participação popular como elemento preponderante na questão política o elo comum a todos esses personagens distintos.

No que diz respeito à política cultural, embora não tivesse a prioridade dada à educação no governo do PDT, possuía também uma estrutura política profunda. O depoimento de Leonel Kaz possibilita compreender essa estrutura política:

  entendimento entre despotismo e democracia vem de uma concepção materialista, onde o objetivo da coletividade – e da democracia – é fazer com que o maior número possível de pessoas viva da melhor forma possível.

52 Ver página 66 deste trabalho. 53 Ver depoimento de Theotonio dos Santos na página 36 desse trabalho.     Naquela época você tinha uma bifurcação de duas grandes estruturas na Secretaria que era de Ciência e Cultura. Uma bifurcação era o Departamento de Cultura e outra era a FUNARJ. Departamento de Cultura cuidava de Patrimônio Histórico, Bibliotecas, a ativação das festas populares, da arte popular, etc. Quer dizer, algo que eu poderia dizer como coisas mais permanentes. E a FUNARJ cuidava basicamente dos Teatros e Museus, incluindo o Teatro Municipal, os chamados corpos estáveis, que eram o corpo de baile, o coro e a orquestra. (KAZ, Leonel, entrevista em 06/12/2013) A parte que cabia ao Departamento de Cultura, responsável pelo Patrimônio Histórico, festas populares, folclore e política cultural para o interior do Estado, também, se caracterizou por uma efervescência de eventos, que foram publicados nas páginas do Diário Oficial. No dia vinte e quatro de outubro de 1984, o Diário Oficial publica reportagem sobre festividades populares, com o título a “Festa da Penha, uma tradição de fé que atravessa os séculos”, ilustrada com foto, preenche metade da página quatro. A tradição secular da festa é narrada e a reportagem ressalta o projeto cultural que vinha sendo desenvolvido pelo Governo do Estado na comunidade: Em 1984, a Igreja da Penha iluminada mostra seu perfil no alto do rochedo, resistindo, com a tradição popular, aos apelos da moderna indústria cultural eletrônica. A festa termina amanhã e este ano ela teve um dado novo: a participação da Sociedade Intercomunitária de Produção Cultural da Penha. A Sociedade deu um tom diferente à festa, reforçando sua ligação com a comunidade, que participou expondo fotos do bairro, mostrando suas manifestações culturais próprias, como mamulengo, coco, jongo e puxadores de partido-alto. A Sociedade se formou a partir do Projeto Rioarte Comunitário, que se desenvolve na Penha desde janeiro deste ano, com a participação de associações de bairro e do 22.° Departamento de Educação e Cultura. O projeto está mobilizando a população e as escolas em torno da história do bairro e de suas comunidades faveladas. Estão sendo realizadas pesquisas de campo que já serviram para a festa deste ano e que servirão para futuras mostras de fotos, teatro, dança, etc. (DOERJ., 24/10/1984, p.04)

A citação acima é emblemática no que se refere à questão da soberania popular, do protagonismo dado ao PDT para o povo nos campos político e cultural. É possível notar que, naquele ano, pela primeira vez, a festa da Penha contou com a participação de uma sociedade intercomunitária de produção cultural, associações de bairros, bem como de escolas e favelas do bairro, que contam a história do mesmo, que é também a história de cada um deles. Pode-se afirmar que a identidade cidadã se fortalece nesse tipo de experiência social, em que a povo expressa suas manifestações culturais de origem, como o jongo, puxadores de partido alto, etc. A participação da população, de maneira associada e organizada, em eventos sociais é um aspecto importante a ser considerado    quando se examina a política cultural do governo Brizola, que estabeleceu a participação, a reivindicação, o nacionalismo como os eixos que articulam o desenvolvimento de sua política cultural. Em seu livro “Um governo socialista no Rio” (1982), Luiz Alfredo Salomão, então Deputado Estadual pelo PDT, dá embasamento a esta análise quando comenta sobre as benesses que um governo socialista poderia proporcionar ao Estado e aponta entre elas “a verdadeira redemocratização do Estado e da sociedade, o que significaria um compromisso radical de defesa dos direitos e liberdades civis” (p.15). Salomão cita, também, como ainda mais importante:

A total mudança de métodos administrativos, que passarão a ser pautados pela ampla participação popular. Quer isto dizer, concretamente, que as associações de moradores, de profissionais, de empresários, de estudantes, de defensores do meio ambiente, enfim, dos grupos de interesse, terão – juntamente com os representantes eleitos pelo povo – a oportunidade de manifestar-se e de influir em todas as atividades do Governo Estadual Socialista. [...] A meta seria buscar a institucionalização de um quarto nível de governo, articulado com os poderes municipais e estadual, composto pelas entidades representativas dos vários segmentos da população e capaz de administrar e supervisionar vários setores da vida pública. (SALOMÃO, 1982, p. 16)

Em dezembro daquele mesmo ano, também na página quatro, duas chamadas recebem destaque: A primeira, no dia três, traz o título “Campofiorito quer proteger a cultura, respeitando o folclore do interior do Estado” com depoimento de Ítalo Campofiorito, diretor do Departamento de Cultura da Secretaria de Estado de Ciência e Cultura. Na reportagem, Campofiorito afirma a necessidade de “proteger a cultura onde quer que ela exista, respeitando as diferenças regionais e, sobretudo, a fragilidade de certas manifestações do interior. Não podemos sufocar a pequena e ingênua cultura das cidades do Estado do Rio com a grande cultura europeia”. No texto, Campofiorito fala sobre o trabalho que vinha desenvolvendo, enfatiza os CIEPS como instrumento essencial para a política cultural do Governo do Estado, o que mostra que a parceria com a educação atingiu todos os aspectos da política cultural:    Num primeiro momento o trabalho foi integrar as várias partes do Departamento: patrimônio cultural, editoração, bibliotecas, ativação cultural e escolas de arte. "Isso implica, explica ele, em considerar que patrimônio, cultura e criatividade contemporâneos não são coisas diferentes. Tudo é patrimônio, e todo patrimônio antigo tem de ser considerado vivo para o uso do povo. Não existe isto de a cidade de um lado e o patrimônio do outro. [...] um dos principais veículos da política cultural do Governo de agora em diante serão os Cieps. Os 60 Centros Integrados de Educação Pública farão com que educação e cultura se misturem. Uma parte do período das aulas será ocupada com arte e educação e nos fins de semana os Cieps viram casas de cultura. Os projetos de bandas, corais, teatro amador, que já estão se desenvolvendo, se transferirão para os Cieps, bem como cursos e discussões e apresentações de danças locais, artesanato, sentimento sobre o patrimônio e ecologia. (DOERJ, 03/12/1984, p.04)

É interessante apontar que os eventos supracitados por Campofiorito – bandas, teatro amador, artesanato, a relação com a educação – estão presentes no gráfico que aponta os principais eventos de cultura popular realizados em espaços populares ao longo do governo do PDT no Rio de Janeiro:

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Em cinco de dezembro de 1984 foi publicada no Diário Oficial a reportagem “Estado tem um dos mais ricos folclores do país”, noticiando o trabalho da Divisão de Folclore do Departamento de Cultura do Estado. Na chamada, a diretora da Divisão, Cascia Frade, apresenta os departamentos de pesquisa, documentação e promoção da Divisão de Folclore. Esses departamentos fazem pesquisas de campo e bibliográficas sobre as manifestações folclóricas do Rio de Janeiro e, acrescenta Frade, no ano seguinte, pretendem lançar um Guia do Folclore Fluminense. O Departamento de Promoção organiza também palestras, cursos e exposições que mantém atuantes as manifestações dos grupos folclóricos. Na chamada, Frade ressalta que o Rio de Janeiro “tem congregado grupos étnicos variados: recebeu mineiros, nordestinos, capixabas, gaúchos, que para aqui trouxeram suas festas e sua cultura” e que por esse motivo seria difícil falar de um folclore carioca, pois no Rio de Janeiro “convivem manifestações folclóricas não só das outras regiões fluminenses como também de todo o Brasil.”. Cascia Frade era Diretora da Divisão de Folclore do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC), ligado ao Departamento de Cultura. Quando a entrevistei, Cascia explicou-me como funcionava o trabalho com a cultura popular: Então a proposta do trabalho com a cultura popular foi, primeiro, identificar o que existe nesse Estado, que é um Estado que tem influência de vários países, de várias regiões brasileiras, que tem um fluxo turístico muito grande... Fala-se muito em carnaval, futebol, mas, o que mais além disso? O que acontece no interior? Então, em primeiro lugar foi identificar, traçar um panorama das manifestações tradicionais no Estado do Rio de Janeiro. Depois identificar os problemas, as dificuldades, o que poderia tornar inviável a realização de uma festa, festa do Divino, por exemplo. Uma vigência de um grupo-ritual, o que poderia estar inibindo o pleno vigor dessas expressões. E a terceira coisa foi a divulgação disso que a gente fosse recolhendo, levantando e tal. A gente publicou muita coisa. A gente organizou pastas por cada município, considerando as festas, a literatura oral, a música, a dança, jogos infantis, culinária, várias expressões e publicamos muitas coisas. A possibilidade de apoio as vezes era uma coisa tão simples, né? [...] Organizamos muitas feiras de arte popular, no Largo do Machado, que o Departamento passou um tempo ali numa casa da UERJ em Laranjeiras, então, o Largo do Machado é ali perto. Feira, no período Natalino, no Largo do Machado, no Mercado São José, promovendo o artesão no Rio de Janeiro, né? Fizemos isso também na Baixada Fluminense, então, foi um trabalho enorme, mas que eu acho que rendeu muito, as pessoas até hoje falam: “Ah, bom foi aquele tempo” (FRADE, Cascia, entrevista em 13/12/2013). Duas preocupações estavam presentes: a de levar a cultura ao interior e da preservação e resgate da memória cultural fluminense. Nesse sentido, as Casas de Cultura   implementadas pela equipe do PDT em diversos municípios do interior do estado tiveram importante atuação, como ressaltam as reportagens do Diário Oficial. No dia cinco de julho de 1985, “Fazenda Colubandê será Casa da Cultura”, noticia que o Governador Brizola libera orçamento de Cr$728 milhões para construção de três Casas de Cultura, em São Gonçalo, Vassouras e Angra dos Reis. A matéria afirma ainda que a expectativa do governo é aprontar, até 1987, mais cinco casas que funcionarão em prédios históricos tombados. A página dois estampa a chamada que ganhou espaço na capa, dessa vez sob o título “Governo libera verba e cria centros culturais no interior”, reafirma as notícias da capa, informa que as Casas de Cultura têm por objetivo “resgatar a memória e preservar o patrimônio artístico-cultural através da realização de atividades na área da Ciência e Cultura em vários pontos do Estado.” E que servirão de espaço para “feiras de ciências, festivais, concursos, encontros de bandas e corais, concertos, exposições e mostras fotográficas, além de promover atividades em suas oficinas de teatro, artesanato e arte.” e diz que as próximas Casas de Cultura serão em Ipanema, Parati, Niterói e Lapa.

O dia vinte e três de junho de 1986 traz na capa do Diário Oficial a chamada “Filosofia das Casas de Cultura se espalha pelo Rio”, que informa o funcionamento de Casas de Cultura em Angra dos Reis, Vassouras, Barra de São João e Paraíba do sul, a partir de março de 1987, sempre em casas tombadas e restauradas. A chamada prossegue na página quarenta e quatro, com o título “As casas que levam a cultura ao interior do Estado”, noticiando que até o fim do governo, quatro casas de cultura estarão funcionando em diversas regiões do Estado do Rio de Janeiro. De acordo com Ítalo Campofiorito, Diretor do Departamento de Cultura do Estado, as Casas de Cultura “materializam a conjunção do patrimônio com a ativação cultural, que é a marca da nossa política. Elas são o primeiro passo positivo no sentido da interiorização cultural. Nelas, todo o patrimônio é ativo e toda a atividade cultural é patrimônio.”.

As reportagens acima mostram que as Casas de Cultura constituem peças importantes na política cultural do PDT, como espaços de referencias que identificam acontecimentos coletivos de um conjunto de características culturais que precisam ser preservadas e, também, para possibilitar o acesso das camadas populares aos bens culturais. A preocupação da equipe de cultura não era somente a de levar a cultura popular aos espaços eruditos tradicionais, mas também a de criar novos espaços   culturais para que as camadas populares pudessem interagir com os bens culturais. A equipe de cultura do PDT espalha, também, no sentido geográfico, as instituições culturais a zonas periféricas, sem tanta possibilidade de ter contato cotidiano com espaços culturais tradicionais. Nesse sentido, as Casas de Cultura se juntam aos CIEPs, às bibliotecas, aos teatros e os museus, enquanto espaços culturais restaurados ou criados para permitir que a população tivesse acesso constante à cultura. O gráfico dois deste capítulo mostra que diferentes centros culturais foram responsáveis por 20,6% dos locais que sediaram o popular no erudito, ou seja, abriram suas portas e seus eventos para a cultura popular. As bibliotecas receberam o povo em 12% dos eventos tabulados nessa mesma categoria, enquanto que os museus tiveram 15% e os teatros 11,7%. Sobre essa preocupação de possibilitar o acesso das camadas populares aos bens culturais, Leonel Kaz, em entrevista concedida a mim, afirmou que “realmente fizemos uma política de levar gente ao Teatro, isso era uma coisa que eu insistia muito, eu sempre defendi: não adianta você levar o Teatro Municipal para a favela, eu acho que as pessoas tem que ir é no teatro, tem que ter orgulho de ir lá, né?”. Esse orgulho, costume de frequentar o espaço cultural, citado por Kaz denota, na equipe cultural do PDT, a tentativa de criar na população o habitus , compreendido por Bourdieu como o processo de interiorização individual das estruturas do mundo social, que são transformadas em esquemas de classificação que, por sua vez, vão conduzir e orientar os comportamentos, gostos, julgamentos e escolhas de cada indivíduo. Outro exemplo dessa tentativa de criação de disposições através de possibilitar o acesso das camadas populares aos bens culturais foram as visitas dos alunos da rede pública de educação a espaços culturais tradicionais do Rio de Janeiro, conforme mostrou o gráfico cinco deste capítulo.

A implementação de Casas de Cultura em diversos municípios do interior do estado do Rio de Janeiro atuavam no sentido de descentralizar geograficamente a política cultural do PDT. Embora houvesse a restrição orçamentária já comentada neste trabalho, Cascia Frade ressalta o apoio dado por Darcy à política cultural:   Nunca tivemos dificuldade, às vezes não tinha uma verba para isso ou aquilo, mas também ninguém empacou, disse: “Ah, isso é besteira, não vamos fazer isso, vamos fazer aquilo outro”, como estou percebendo agora, de fora. Então, acho que essa foi a razão também. E Darcy é uma pessoa muito inteligente, muito sensível, mineirão lá do interior também, ele sabia o que eram essas coisas. Ele sabia. Então acho que isso falava muito também a identidade dele. Sobretudo porque tem muita coisa mineira que está aqui, é o Sudeste, né? Que está aqui no Rio de Janeiro, as Folias de Reis, o Jongo, essas coisas todas tem lá na terra dele, então acho que foi isso. (FRADE, Cascia, entrevista em 13/12/2013). A política para o interior do Estado representava uma preocupação com a democratização e a pluralidade culturais. Interessante notar, que os eventos culturais programados para o interior e espalhados pelos diferentes locais do Estado, como encontro de bandas de música, a revitalização dos coretos das praças, a revigoração do teatro de rua, o respeito ao folclore local, a criação de Casas de Cultura, refletem o discurso de “dar voz à cultura onde quer que ela exista”, que era uma preocupação de Darcy. 54 A fala de Ítalo Campofiorito, ao alertar sobre a medida governamental em “proteger a cultura onde quer que ela exista, respeitando as diferenças regionais e, sobretudo, a fragilidade de certas manifestações do interior” e sobre a preocupação em “não sufocar a pequena e ingênua cultura das cidades do Estado do Rio com a grande cultura europeia”, dá uma ideia do que representava a política cultural para o interior do estado do Rio de Janeiro. Essa postura de respeito, preservação e manutenção, fazia com que o PDT agisse frente ao interior muito mais como um facilitador, no sentido de proporcionar recursos para que as manifestações culturais ocorressem, do que um produtor cultural propriamente dito, que de antemão já estabelece e implementa iniciativas culturais nos diferentes municípios do Estado do Rio de Janeiro. Sobre esse papel de facilitador e sobre a implementação de políticas para o interior do Estado em geral, Cascia Frade deu o seguinte depoimento: O contato era inicialmente feito com as prefeituras. Então, fazíamos encontro com o prefeito, eu participei de vários deles. Por exemplo, Duas Barras, está me vindo à memória: “Prefeito, estamos querendo fazer uma política de dar apoio à cultura de Duas Barras, aquela cultura que às vezes não tem como conseguir”, não tinha nada de edital, nada disso, FAPERJ, esquece, nada disso! Então dizia: “Eu não tenho muito recurso, mas eu queria aplicar isso nos municípios que  54 Vale lembrar que no Governo Faria Lima, na gestão da professora Myrthes de Lucas Wenzel na Secretaria de Estado de Educação e Cultura, o Departamento de Cultura, sob a direção de Paulo Afonso Grisolli, desenvolveu uma política cultural de interiorização, neste sentido. Aliás, a figura do animador cultural foi criada por Grisoli. Cecília Conde, uma das principais colaboradoras de Grisoli, também participa da equipe de Darcy. Ver, a esse respeito o documentário Memórias de Secretários de Educação: D. Myrthes , 2002.   tem vontade de realizar alguma coisa que tem a ver com a sua identidade”. Essa era a palavra! Aí o Prefeito dizia: “A minha terra tem muita Folia de Reis, mas os grupos são tão pobres, tão não sei o quê, e eles fazem umas festas e querem reunir os amigos, querem trazer, mas não tem condição de fazer, eu queria ver se podia fazer”, e eu dizia: “então nós vamos fazer Encontro de Folia de Reis, o que o senhor acha? O senhor conversa com seu pessoal, a gente dá o apoio, o senhor vê o que precisa para realizar isso”. Até hoje tem Encontro de Folia de Reis, segundo domingo de janeiro, em Duas Barras, você acredita, numa coisa dessa? O que ele fez? “Ah, precisa de transporte, pra trazer os grupos lá de Friburgo, a Prefeitura monta um altar lá na Praça e eu preciso de uma ajuda, um dinheirinho pra dar um lanche ao pessoal que vem de fora.” O ano passado estive lá e fiquei muito emocionada. Trigésimo sei lá quanto Encontro de Folia de Reis. E eu participei do primeiro deles, você já imaginou? Mesma coisa Parati. Prefeitura. Parati, eu já sei que o importante lá é Festa do Divino”. Falei, “então nós vamos conversar com a festeira religiosa, não é com o Prefeito.” Para descobrir quem era a festeira me enfiei por lá, andei de bicicleta, andei de carro de boi, andei de ônibus, andei de tudo que você quiser para me enfiar nesses lugares todos, conheço o Estado do Rio como minha casa, tudo quanto é canto. Baixei em Parati e sabia que era um festeiro. “O que o senhor está precisando?”. “Ah, eu estou precisando, tenho a bandeira, tenho o lanche do pessoal todo que vem”, porque Festa do Divino é festa de fartura, comida a vontade, gente que despenca de tudo quanto é lugar. E Parati, do lado de São Paulo, a paulistada desce toda, então, “eu estou precisando de um apoio pro almoço do pessoal lá e não sei o que, mas o resto eu tenho tudo.”. Entendeu? Então essa coisa de apoio, a gente não chegou lá com a coisa pronta para eles, foi o contrário, fomos ouvir o que as pessoas... que também era uma política do Darcy: a voz do povo. Ele dizia: “Deixa o povo falar, deixa o povo dizer, eles sabem o que eles querem, eles entendem o mundo, só que do jeito deles. Não é o nosso jeito. É outro jeito de entender a mesma coisa!”. Me lembro disso. Isso foi feito em muitos locais, um monte. Encontro de Patrimônio Cultural. Isso aí foi uma festona que o pessoal devia retomar isso. Me pediram para fazer um plano de cultura pro Estado do Rio, eu inseri isso lá. O que que era? Por exemplo... Encontro de São Sebastião do Alto. Onde é que o Encontro acontecia. Aí começava aquele problema sério, por ser de interior, da política local. Quem é do Colégio daqui, porque a mulher daqui apoia fulana, não vai no Colégio tal, porque apoia beltrana. Nesse dia o Encontro acabou sendo sabe onde? Na Paróquia. Na Igreja, com o Padre lá. A Igreja lotada, o Padre teve que tirar o Santíssimo, aqueles bancos da Igreja cheios, aqueles santos lá no Altar. Aí vinha gente de todo lugar, os Prefeitos, Secretários, educadores. (FRADE, Cascia, entrevista em 13/12/2013) O depoimento de Frade reforça os conceitos de participação popular e cidadania já mencionados em análise sobre a política cultural nesse capítulo. A repetição, em sua fala, do termo “apoio”, a ênfase na questão da identidade e na desburocratização do processo de produção cultural, que não possuía editais, ou que procurava o diálogo com a festeira popular antes de falar com autoridades políticas, mostram que a postura da política cultural para o interior não era a de levar às cidades algo pronto, uniforme, mas    de proporcionar condições para que a cultura florescesse a partir das particularidades de cada município. Em depoimento à Revista do Brasil, Ítalo Campofiorito reforça a intenção governamental de respeitar as particularidades e exalta a influência de Darcy nessa concepção de cultura:

Nesses tempos de reestruturação democrática do país, alguns intelectuais ensimesmados têm protestado contra a legitimidade de uma política cultural entendida por eles como vontade de orientar ou dirigir a produção da cultura. Tolo engano; as ideias básicas e diretrizes de ação para uma política cultural inteligente e democrática pretendem atingir justamente o outro lado. O que se quer é organizar, da melhor forma possível em cada caso, a ação administrativa. “Onde a cultura existe, dar voz a ela”, nos dizia Darcy. Amparar e liberar a criatividade, ou, pelo menos, impedir que os setores técnicos especializados e, portanto, caolhos, impeçam o florescimento cultural. (CAMPOFIORITO, In: Revista do Brasil, edição especial, 1986, p. 07-08) É importante ressaltar que, quando chega ao governo do Estado e, consequentemente ao comando da cultura, em 1983, Darcy já encontra estabelecida a estrutura supracitada, visto que em 1965 55 inaugura-se a Divisão do Patrimônio Histórico e Artístico (DPHA), que, após a fusão, mais precisamente em 1975, transformou-se em INEPAC, permanecendo ligado ao Departamento de Cultura e assumindo as responsabilidades pelo Patrimônio Cultural do Estado do Rio de Janeiro. Além da estrutura institucional e política, Darcy herda contribuição ideológica de um grande nome da cultura brasileira: Paulo Afonso Grisolli, jornalista, teatrólogo, Diretor do Departamento de Cultura no Governo Faria Lima. A política cultural do Governo Faria Lima e as concepções culturais de Grisolli não fazem parte do recorte temporal ou dos objetivos da pesquisa, mas é necessária a menção a ambos, devido à contribuição que deixaram para a política cultural de Darcy Ribeiro para o Rio de Janeiro, conforme atestam Leonel Kaz e Cascia Frade:

Aproveitou-se tudo, porque o Paulo Afonso Grisolli era muito talentoso. Departamento de Cultura, eu fui Diretor, dei continuidade a tudo que o Grisolli fazia. Ele tinha uma política muito boa, de apoio, através de Cecília Conde, as manifestações de arte popular, entende? Já havia um programa nesse sentido, havia um programa de apoio ao teatro de rua, havia uma série de coisas que o Grisolli fazia. Não se deixou de fazer nada disso. [...] se deu continuidade ao trabalho do Grisolli, mesmo porque não há como não dar! É importante você dar continuidade à política, não houve necessariamente uma ruptura. (KAZ, Leonel, entrevista em 06/12/2013)

 55 Ver em http://www.inepac.rj.gov.br/index.php/home/historico acessado em 08/01/2014    Então a política que o Grisolli montou quando da criação do INEPAC como um todo, não só no setor de cultura popular, mas os outros setores também, era tão criativa, tão viável de ser executada, porque também tem isso, não adianta muita lucubração, né, enfim. E o Programa era também muito inteligente, a gente tinha encontros de cultura nas cidades do interior, encontros de patrimônio cultural, envolvendo as prefeituras, as escolas, a cidade do Rio de Janeiro se deslocava para o interior nesse sentido de um auto reconhecimento e tal. Então, essa política do Grisolli que foi mantida. O Darcy não alterou em nada, ele não mudou em nada. O apoio que a gente tinha na época do Grisolli, isso foi mantido ao longo do tempo em que eu fiquei lá. Eu fiquei lá 14 anos. A coisa começou a ficar meio complicada, eu cansei também, achei que estava na hora de mudar, outras pessoas com outras ideias eu acho que é saudável. Foi no Governo do Moreira Franco que eu saí. Eu acho que não acharam outro caminho. E também acho que o Darcy não faria isso. Apesar de ter sido uma pessoa vaidosa, era muito inteligente para saber que o caminho bom estava sendo traçado, estava acontecendo, as pessoas estavam caminhando nele. Eu acho que não teria, não sei, acho que não. (FRADE, Cascia, entrevista em 13/12/2013) A questão de democratização cultural, de proteger as diferentes culturas, de dar possibilidades à população de expressar suas próprias manifestações culturais seguiu firmemente na política cultural de Darcy. Embora essa política de apoio às manifestações culturais já estivesse presente no período de Paulo Afonso Grisolli, a continuidade das mesmas na política cultural de Darcy podem ser compreendidas também a partir de sua teoria social. Os conceitos de alienação cultural, cultura autêntica, cultura espúria, marginalidade cultural e deculturação evidenciam a preocupação de Darcy Ribeiro em permitir que os diferentes povos tivessem a possibilidade de manifestar sua cultura própria ao invés de apropriar-se alienadamente da cultura alheia. Fazer da população protagonista, produtora cultural, descentralizada das burocracias governamentais, era uma proposta da política cultural do PDT, conforme atestam Leonel Kaz e Cascia Frade: Havia uma política, sim, eu também tenho muito orgulho de ter participado dela, a gente fazia muita coisa dentro do que era possível fazer. Procurando disseminar mais, procurando ouvir mais as bases da cultura, procurando evitar a imposição cultural de cima pra baixo. (KAZ, Leonel, 06/12/2013)

A gente começou a ganhar autonomia, quando a gente percebeu que não dava pra ficar preso só ao Estado. Amigos, pessoas conhecidas, professores, gente competente, geralmente professor, né? Professor bom é uma coisa maravilhosa. Então o professor, pessoas da comunidade... esquece Governador, esquece sei o que lá. E isso foi muito legal. Ajudou muito, muito. (FRADE, Cascia, entrevista em 13/12/2013)    As reportagens publicadas no Diário Oficial também ilustram bem esse norte. O mês de janeiro de 1985 estampa, no dia vinte e um, chamada intitulada “Comunidade escolhe local e Riotur faz o carnaval”, numa referência a reunião realizada entre representantes de comunidades e administrações regionais a respeito de bailes populares durante o carnaval. A matéria sublinha ainda que o Governo do Estado disponibilizou Cr$300 milhões para os bailes, que seriam organizados pela Riotur. A matéria continua na página trinta e sete, com o título “Riotur diz que carnaval já está organizado” e informa que, ao contrário de anos anteriores, quando o Estado escolhia sozinho as datas e locais dos bailes – que ficavam vazios, acrescenta, – naquele ano, o Estado atuaria como coordenador das demandas provenientes de comunidades. O dia dezoito de setembro de 1985 publica na página quatro a chamada “Funarj saneia finanças e investe em bens culturais”. A matéria, com Leonel Kaz, Vice-Presidente da Funarj, aborda a recuperação financeira do órgão, que superou uma dívida de cerca de um milhão de dólares, e focou- se na “recuperação dos bens e equipamentos culturais do Estado”. Na chamada, Leonel Kaz exalta a política cultural do Governo Brizola, afirmando que o Estado “não intervém na cultura, mas sim cria condições para que ela possa ser produzida com vigor e liberdade no Rio de Janeiro.”. Apontada na chamada como um dos pilares da Secretaria de Ciência e Cultura, ao lado do Departamento de Cultura do Estado, a Fundação das Artes do Rio de Janeiro (FUNARJ) tem a recuperação da Sala Cecília Meireles e da Escola de Dança Maria Olenawa, a reforma da Escola de Música Villa-, o fim da crise das Escolas e Villa-Lobos como exemplos da atuação da Funarj, resumida nos dizeres de Kaz: Estamos partindo para recuperar os bens e equipamentos, pois com isto se abre a possibilidade de produzir a cultura por qualquer produtor. A política cultural no País passa pelo atendimento clientelista, pela superposição de projetos e mantém a cultura em banho-maria. Tradicionalmente, os órgãos oficiais tratam das coisas sem interesse ou das atividades que não dão resposta comercial Assim, a cultura oficial fica antiga. Por exemplo, existe um Instituto Nacional de Folclore, mas não existe um instituto que cuide de televisão e vídeo, ou seja, as formas contemporâneas de cultura não foram privilegiadas. [...] assim como não estamos inventando viadutos, não estamos também com uma visão novidadeira da cultura Nosso interesse principal é manter física e humanamente o trabalho da Funarj. Para isto, fazemos não só obras, mas, também, concursos públicos, como os que foram realizados para renovar os quadros da Orquestra Sinfônica do Municipal, da Orquestra Sinfônica Jovem e do corpo do baile daquele teatro E a Orquestra Jovem também se apresenta nos CIEPs, saindo fora do circuito só de elites. (DOERJ, 18/09/1985, p.04)    Em 13 de janeiro de 1986, publica-se a chamada “Secretaria vai distribuir lonas culturais pela cidade”, que divulga a primeira iniciativa do então novo Secretário de Cultura do Município, Antonio Pedro, de distribuir lonas culturais para a população “a fim de que ela criasse ou seu circo ou o seu palco”. Na chamada, Antonio Pedro, que tem uma vida dedicada à área cultural, como ator, diretor, autor teatral e ex-coordenador do setor de Teatro da Funarj, expõe seus pensamentos sobre a questão cultural no Rio de Janeiro: O trabalho se desenvolve diretamente nas comunidades, explica o secretário; é a coisa da arte com educação. Pretendemos fazer um levantamento dos dispositivos legais que regem a produção cultural no Estado e o que pode ser feito para ser mudado e melhorado neste contexto. Vamos partir para criar centros de cultura permanentes nas áreas mais carentes. Os que já existem, vão continuar, e vamos aparelhá-los tanto do ponto de vista material como humano, para que possam funcionar, dentro das "possibilidades da administração, É neste ponto que o dinheiro do povo volta ao povo, que vamos tentar dar ao público muitas alternativas culturais [...] A produção cultural do Rio — pela própria crise que o País vive o que se reflete em todos os setores — tem muitos problemas. E nós temos de olhar não apenas pelo setor emergente e pelos produtores iniciantes, mas também pelos que já existem, são profissionais há muito e também estão estrangulados. Vamos desafogar os espaços afogados. [as lonas] serão entregues às comunidades, e talvez vão junto com elas agitadores culturais, mas com a intenção de estimular a comunidade para que ela própria possa gerar os seus fatos culturais. Imagino que estas lonas sejam instaladas quase sempre perto dos campos de futebol. Lá dentro vai se fazer silk-screen, que servirá para ajudar a imprimir os cartazes da programação, mas também pode imprimir as camisas do time de pelada. Estas lonas, na medida em que se fixem e que as atividades desenvolvidas nelas sejam feitas e apoiadas pelas comunidades, poderão ser substituídas por uma estrutura de cimento. Se naquela área não houver interesse e a lona ficar abandonada, a gente tira ela de lá e leva para outro lugar. Não importa o que role debaixo das lonas: samba, rock ou forró. Importa é que, com as lonas, estaremos fazendo algo desligado do caráter vetusto da coisa oficial, em que o Estado interfira apenas como estimulador. (DOERJ, 13/01/1986, p.04)

O dia dois de abril de 1986 trouxe no Diário Oficial a chamada “Produtores profissionais discutem cultura” e noticia o Primeiro Encontro do Fórum dos Produtores Culturais Profissionais do Rio de Janeiro, que contou com a participação de figuras como Hugo Carvana, Carlos Vergara, Carlos Eduardo Novaes, , , Joaquim Pedro de Andrade, , Rodrigo Farias Lima, entre outros. De acordo com a chamada, o objetivo do Fórum é proporcionar à política cultural “uma discussão entre os produtores profissionais, o Estado, as entidades culturais e iniciativa privada no sentido de levantar os problemas e as possibilidades da cultura no Rio e de    trabalhar juntos no sentido de dinamizá-la.”. O evento proporcionou ainda debate entre a população e as lideranças políticas e culturais e o depoimento de Antônio Pedro, Secretário de Cultura do Município, de que “não interessa o dirigismo cultural” e que a “as pessoas são plurais, há lugar para todos. A Prefeitura não pode e não quer estabelecer o que fazer. Ela apenas quer dar condições para que as pessoas façam. Não cabe a nós discutir a estética, a filosofia ou a política da arte.”. As declarações de Antônio Pedro representam a concepção de liberdade e diversidade cultural do governo estadual e a criação do Fórum é entendida por este autor como uma forma de institucionalizar os profissionais da cultura e criar um espaço oficial para pensar os rumos e possibilidades dos diversos tipos de cultura produzidos no Rio de Janeiro.

No dia vinte e nove de maio de 1986, também na página trinta e dois, publica-se a chamada “Amir Haddad: “Da demolição dos restos do autoritarismo irá nascer uma nova cultura”, que informa as expectativas de Amir Haddad, novo diretor do Departamento Geral de Cultura” do município do Rio de Janeiro. Na chamada, Haddad garante a continuidade dos projetos desenvolvidos pela gestão anterior, e adota um discurso declaradamente socialista, que pretende descentralizar a cultura, expandindo o acesso e combatendo o autoritarismo, cujo cargo ocupado por ele, ajuda a disseminar, de acordo com o próprio Haddad. O novo diretor afirma ainda, a necessidade de criar essas novas relações de dentro da Secretaria para fora, e reafirma o que tem sido uma marca da política cultural do Governo Brizola: a de não fazer juízo de valor entre diferentes tipos de cultura, abrindo espaço para todo e qualquer tipo de cultura, erudita ou popular, profissional ou amadora. De acordo com Haddad:    Acreditamos que a secretaria de uma prefeitura que se diz socialista deve começar modificando as suas relações internas. A própria forma de produção do fato cultural é que determina o produto final. Se não mudarmos as relações internas, não vamos mudar o aspecto externo do que fazemos. Vamos descobrir, na prática, como é uma prefeitura socialista. A gente chama esse processo de "deshierarquização". Queremos acabar com o autoritarismo onde quer que ele se encontre. Achamos que o ranço do autoritarismo deve ser banido para sempre dos órgãos oficiais. Devemos fazer, nesse sentido, uma vigília constante, pois, às vezes, apesar das boas intenções, a prática é bem diferente e revela muitas contradições. Precisamos "desidealizar" a prática, pois, de boas intenções o inferno anda cheio... [...] No cargo, trabalho pela sua extinção. Esse é um cargo de poder concentrador, que cria quase uma subsecretária dentro da secretaria. Minha função aqui é criar condições para que meu cargo não exista mais, o que vai significar uma descentralização administrativa, uma maior autonomia para cada departamento, uma possibilidade de as pessoas crescerem a um grau da diluição da figura "antiga" do superchefe que existia antes. [...] Da demolição dos restos desse autoritarismo é que a secretaria deverá nascer, com uma outra estrutura, sem ranços e com uma cara nova. Estamos estabelecendo a primeira secretaria de cultura de uma cidade importante como o Rio de Janeiro, e temos de fazê-lo de modo que ela continue assim, e que os novos que vierem recebam uma instituição com uma fisionomia verdadeira e definida. Vamos atingir todas as áreas. O fórum dos produtores culturais é um bom exemplo. Não vamos trabalhar com nenhuma área de preconceito. Todos os setores serão beneficiados, não seremos paternalistas. Vamos estimular quem quiser produzir cultura, independente de ser profissional ou não. Procuramos construir uma visão das mais abrangentes possível. Para atingir a todos os setores da sociedade. Vamos trabalhar em todos os níveis para trazer à tona a alma da Cidade, desde os profissionais da cultura até os níveis mais submersos, aqueles que ainda não conseguiram encontrar espaço para a sua expressão. Isso é uma tarefa essencial, fazer aflorar a expressão inteira, para que possamos ter o perfil cultural do Rio delineado e exercê-lo. (DOERJ, 29/05/1986, p.32)

O depoimento de Haddad, é interessante notar, traz um aspecto diferente; ele quer desestruturar o Departamento de Cultura, no sentido de quebrar hierarquias burocráticas que, segundo ele, estariam revestidas de autoritarismos e, portanto, funcionariam como instrumento impedidor da produção cultural. Esta medida tem um objetivo importante: quebrar as regras 56 que regem as tomadas de decisões sobre a política da cultura. Haddad entende os efeitos (e o poder) da hierarquia burocrática na escolha não só dos que produzem a arte, mas, também, na distribuição e consumo dos produtos culturais. Para implantar a linha política estabelecida por ele e possibilitar e expandir as manifestações culturais populares as regras então estabelecidas teriam que ser mudadas.  56 Ver As Regras da Arte: Gênese e estrutura do campo literário, de Pierre Bourdieu, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.    A preocupação institucional não era somente em produzir ou garantir cultura para a população, mas a de proporcionar à população meios de manifestar suas expressões culturais, seja criando novos produtores culturais, seja dando visibilidade àqueles produtores de cultura que se encontravam marginalizados. Vale observar um detalhe: o Diário Oficial é um órgão do Estado do Rio de Janeiro, mas a quantidade de notícias sobre o município do Rio de Janeiro é quantitativamente expressiva. E, no caso da cultura, é algo extraordinário. Pode-se entendê-la como uma lógica das práticas culturais do PDT, visto que o prefeito do Rio foi nomeado pelo governador Brizola. E, mesmo depois da eleição para prefeito, que elegeu Marcelo Alencar, a prefeitura permaneceu sob o domínio político do PDT. É, pois, natural que a política cultural da prefeitura esteja sincronizada com a do Estado, até porque era intenção de Darcy fazer da cidade do Rio de Janeiro o palco privilegiado de suas intervenções políticas, no campo da cultura e da educação, posto que o que nela se fazia ecoava em todo o Estado, quiçá no Brasil.

Um outro aspecto que vale salientar na fala de Haddad é o que identifica a cultura popular com “a alma da Cidade ”. Tema recorrente no DO. “O povo produz o show e retribuiu visitas do Palco” foi outra chamada de capa, noticiando o evento Mesmo Chão , em que todas as comunidades que receberam o Projeto Palco sobre Rodas ao longo de 1986 retribuíram com shows organizados pela própria população no estacionamento do Centro Administrativo da Cidade Nova. A chamada ressalta ainda exposição de fotografia “Onde está o Brasileiro” e declaração de Simone Farinha, responsável pela Mostra: “Por isso valorizo mais as imagens da comunidade. Muita gente que sequer tem espelho em casa, pode se ver aqui.” A chamada ressalta também declaração do Diretor do Departamento de Cultura da Secretaria Municipal de Cultura, Hamir Haddad: “Acho que morei muitos anos na zona Sul e tinha esquecido a cara do povo. Olhando as fotos pensei nisso: é preciso assumir essa cara. Imagine se o Brasil descobre a cara dele?”. Destaco aqui o caráter de reciprocidade e interação (no sentido percepção (Bourdieu, 1996): não somente de se reconhecer, mas de ser reconhecido) que a iniciativa busca estabelecer com o povo, que, após receber o Palco sobre Rodas em suas comunidades, agora assumia o protagonismo e desenvolvia seu próprio espetáculo cultural, definindo, nesse sentido, entre governo e população, entre os diversos tipos de manifestações culturais, uma relação horizontal. As expressões (o povo) “alma da cidade”, “cara do povo” (a cara do Brasil) por oposição à “zona sul” expressa com clareza o sentido que    se quer atribuir à política cultural do município e do Estado do Rio de Janeiro. Ao atribuir à entidade povo a função unificadora das várias caras dos brasileiros, Haddad vê nas manifestações de cultura popular as características essenciais à vida do brasileiro em oposição ao modo de vida da zona sul.

Há, certamente, nos discursos dos dirigentes pedetistas uma adesão ao pensamento do mentor dessa política, Darcy Ribeiro. Assim, vamos continuar focando os diversos aspectos dessa política, como o importante destaque dado no DO à política cultural encabeçada por Darcy, que também ressalta a questão da continuidade, e refere-se aos tombamentos, política existente no Brasil desde a década de 30, com Mário de Andrade e o IPHAN, que ocorreu no Rio de Janeiro com Grisolli e a criação do INEPAC, mas que ganhou força com a chegada da equipe de Darcy, conforme aponta Leonel Kaz: No campo do Departamento de Cultura, talvez o fato mais notável tenha sido uma política de tombamentos, coordenada pelo Ítalo Campofiorito. Evidente que foi o Mario de Andrade quem criou o então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que é o IPHAN. 1937, né? O texto original é dele. E houve uma política de tombamento importante. A política de tombamento na nossa passagem pelo governo se caracterizou por um espraiamento maior de coisas. Foram tombados cem quilômetros de praia no Estado do Rio. A começar por Prainha e Grumarí. Depois o sistema de transportes, de bonde, de Santa Teresa. A Casa da Flor, lá em São Pedro da Aldeia, que é uma casa que foi construída com cacos de vidro, quer dizer, uma política realmente mais ampla de tombamento, eu acho que, nesse caso da política de tombamento realmente se espraiou o conceito de tombamento. Isso eu não tenho dúvida, foi a grande contribuição do Departamento de Cultura. (KAZ, Leonel, entrevista em 06/12/2013) O tombamento de praias, bens naturais e pertinentes à memória cultural carioca, bem como a importância do INEPAC para esse aspecto da política cultural do PDT podem ser comprovados mediante análise das reportagens do Diário Oficial sobre tombamento no período estudado. O dia vinte e nove de março de 1985 trouxe no Diário Oficial a reportagem “Estado estuda tombamento dos últimos coretos”, que informa que o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC), do Departamento Geral de Cultura do Estado estudava tombamento provisório dos coretos do Estado do Rio de Janeiro. A matéria afirma que a inclinação ao tombamento vem da “importância arquitetônica e cultural e, porque eles são, como diz o escritor Pedro Nava, parte do "patrimônio sentimental" de todos nós.”:    Na área cultural os objetivos da Secretaria de Educação e Cultura são os de preservar a memória cultural da cidade do Rio de Janeiro e elaborar normas que visem à proteção dos bens culturais e seu tombamento, na área do patrimônio cultural. Na área comunitária, a Secretaria pretende apoiar pesquisas que façam emergir conhecimentos e valores latentes das comunidades e desenvolver trabalho participativo com as comunidades objetivando a melhoria da qualidade de vida urbana da cidade. (DOERJ, 29/03/1985, p.04)

Fora publicado, no dia dois de abril de 1985, o título “Estado tomba extensão da Praia de Grumari e Casarão Histórico em Angra dos Reis”, que informa sobre a publicação – no próprio Diário Oficial – dos editais de tombamentos do Casarão Histórico, desapropriado pela prefeitura local que, a pedido da comunidade o transformará em Centro Cultural, e da Praia de Grumari, cujo processo de tombamento foi considerado em caráter de urgência, a pedido de Darcy e Brizola que ficaram encantados com a região quase virgem. Catorze dias depois, o dia dezesseis traz o título “Rio quer levantar a memória dos bairros” e noticia iniciativa de Secretaria Municipal de Planejamento para preservar todas as características históricas e culturais dos bairros cariocas. De acordo com a chamada, o projeto, chamado Memória dos Bairros: Tem como objetivo preservar a identidade cultural dos bairros do Rio de Janeiro. Formam esta identidade cultural os seguintes elementos: traçado urbano, padrões arquitetônicos, tipos de edificação, marcos de referência, acidentes geográficos, moradores importantes e outros. Estes elementos, somados, definem o perfil daquele bairro, que lhe dá personalidade e vida própria. [...] O projeto Memória dos Bairros procura assim inserir a preocupação com a preservação do patrimônio cultural nas ações de planejamento urbano, visando a manutenção da fisionomia cultural dos bairros e da cidade. (DOERJ, 16/04/1985, p.04)

A chamada “Salvar o Rio para sua população”, publicada no dia seis de maio de 1985, aborda a nova política do Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Cultural que, “agora norteia suas diretrizes a partir dos anseios da comunidade”. Nesse sentido, a chamada destaca que já haviam sido tombados vinte e três prédios nos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo e afirma que Sagas é o nome do projeto de preservação, que agrega o nome dos três bairros supracitados. O Diretor do Departamento Geral de Cultura do Município e membro do Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural, Afonso Carlos Marques dos Santos, enfatiza a importância da política cultural para o Rio de Janeiro ao afirmar que:    O Rio vive hoje uma consciência aguda da necessidade de se preservar em regime de emergência o seu patrimônio. E preservar não apenas os símbolos do exercício do poder (templos, fortificações, palácios) mas também aquilo que é fundamental para a memória da coletividade e a identidade da população trabalhadora, cujo acervo sentimental e cultural sempre foi colocado em segundo plano. Assim, o Sagas tombou provisoriamente não apenas exemplares da arquitetura neoclássica e eclética da área, mas também cortiços e formas de moradia das camadas populares (DOERJ, 06/05/1985, p. 04)

No dia 13 de maio de 1985, a página quatro publicou a manchete “Corredor Cultural, um projeto democrático” e um texto com o seguinte teor: o Corredor Cultural 57 existe desde 1979, “dentro do clima de abertura em que associações comunitárias passaram a exigir melhor tratamento dos espaços urbanos e sua participação nas decisões”. Em 1983, o Governador expede o  Decreto-Lei do Corredor que estabelece as funções do Corredor Cultural e cria a Zona Especial, definida como “uma precursora das Áreas de Proteção Ambiental muito usadas pelo patrimônio estadual”. Na ocasião em que se publica a matéria, o Corredor já se encontrava sob administração da Rioarte, e seu diretor, Gerardo de Melo Mourão, classifica o projeto como “inteligente, bonito e, acima de tudo, democrático.” A matéria publicada no Diário Oficial revela a extensão da área do Corredor Cultural que compreende 1.294.624 metros quadrados, com 1.238 prédios preservados e 34 monumentos tombados. De acordo com Ítalo Campofiorito, gerente de implantação do projeto da Rioarte, o Corredor Cultural mescla de maneira única o urbanismo, a cultura e a estética: A cidade é, como a cultura, de natureza cumulativa, e é essa qualidade que procuramos preservar. Defendemos a cidade como linguagem do cotidiano e acreditamos que o grotesco tem seu lugar. A estética do Corredor admite o feio que faz parte da vida. Eu chamaria o projeto de culturalista, já que é extremamente ligado à preservação da vida urbana, no que ela tem de bonito, de sublime e de engraçado. (DOERJ, 13/05/1985, p.04)

No dia dois de setembro de 1985, sob o título “Fábrica que Noel cantou é Patrimônio do Rio” informa o tombamento da antiga fábrica de Vila Isabel e as vilas operárias ao seu redor. A menção a no título se dá pelo samba famoso cujo apito fora inspirado justamente por essa fábrica de Vila Isabel. A chamada ressalta a política cultural, que tombou “vários bens culturais ligados à antiga Companhia de Fiação

 57 O Corredor Cultural é um projeto de preservação e revitalização do Centro Histórico do Rio de Janeiro e abrange Lapa, Cinelândia, Carioca, Passeio Público, Praça Tiradentes, Praça XV, SAARA e Largo São Francisco.    Confiança, em Vila Isabel” e ressalta que o tombamento não modifica a questão de moradia nas vilas. O texto da chamada e depoimento de Paulo Sérgio Duarte, um dos relatores do processo de tombamento, explicita a política cultural do Governo Brizola: [o tombamento] faz parte de uma filosofia de preservação que privilegia também os bens que têm a ver com a memória popular, ao contrário de uma visão elitista, pela qual se tombaria apenas os monumentos identificados com o passado da classe dominante e cercados de uma grande bibliografia. [...] Estamos dando continuidade, garante Paulo Sérgio, a urna política de tombamento aos valores da vida do povo. Nas vilas da antiga Fábrica Confiança existe um quadro da vida da classe operária do início do século e foi isso que se pensou preservar. (DOERJ, 02/09/1985, p.04)

As oposições, no discurso de Sérgio Pereira, “bens que tem a ver com a memória popular” versus “visão elitista” aqui aparecem como uma maneira de compreender, de perceber determinadas situações, uma nova visão do mundo social e a posição nele ocupada das classes sociais, e, também, as representações que devem determinar a vontade e os atos governamentais. Determinadas ações teriam que mudar, como privilegiar o tombamento de monumentos identificados com o passado da classe dominante, e novas situações seriam admitidas, como o tombamento de vilas operárias.

O Diário Oficial do dia dezessete de março de 1986 foi uma edição especial pelo fato de fazer um apanhado dos principais feitos do Governo do PDT nos últimos três anos. A página seis dessa edição foi toda dedicada a política cultural e teve a chamada “Mais de 90 quilômetros de praias garantidos pelo Poder Público.” A chamada ressalta a política de tombamento e preservação dos bens culturais do Estado com os seguintes dizeres: As áreas das Pedras da Moreninha e dos Namorados, na Ilha de Paquetá, tradicionais pontos turísticos do Estado, não podem mais ser violentadas pelo homem. Assim como 95 quilômetros do litoral fluminense, de Paraty à foz do Paraíba do Sul, também estão garantidos pelo Poder Público. Essas são algumas das regiões tombadas pelo Instituto Estadual do Patrimônio Artístico e Cultural — Inepac, nos últimos três anos. Foram centenas de tombamentos, que se transformaram em um importante instrumento de inédita e efetiva aplicação de uma diretriz cultural na administração da coisa pública. (DOERJ, 17/03/1986, p.06)

A política de tombamento é destacada 58 pelo “valor intrínseco que tinham e tem para a memória do Rio de Janeiro” e por “preservar para o futuro o que restava de mais valioso da memória do passado”. É oportuno apreender nesse discurso, a questão do juízo de valor e da formação do gosto. Quem define o que é valioso para a memória do Rio de  58 Ver cadeno 2 de fazimentos da Fundação Darcy Ribeiro, p. 39.    Janeiro? Sob qual ponto de vista? As manchetes publicadas no Diário Oficial sobre tombamento que foram reproduzidas nesse trabalho destacam o tombamento de paisagens naturais, do sistema de transporte público, utilizado majoritariamente pela classe popular e trabalhadora, a Casa da Flor, construída com vidro, um material que não é considerado nobre, as falas de Pedro Nava, de “fazer emergir valores latentes da comunidade”, de Afonso Carlos Marques dos Santos, de “preservar aquilo que é fundamental para a memória da coletividade e identidade da população trabalhadora” e de Paulo Sérgio Duarte em “privilegiar a memória popular e os valores da vida do povo”, o tombamento da fábrica cantada por Noel Rosa, etc. A política cultural de tombamento busca reclassificar o conceito de patrimônio, do que merece ser preservado. A faculdade de julgar os valores estéticos segundo critérios subjetivos, sem levar em conta normas preestabelecidas, revela que o gosto também constitui diferenciações sociais entre sujeitos dando a conhecer suas posições em espaços sociais distintos. 

Bourdieu (2007, p.101) afirma que o exercício do gosto gera um mecanismo de distinção entre as classes sociais, que se aproximam ou distanciam-se a partir de habitus compartilhado. As classes sociais constroem socialmente seus estilos e seus modos de distinção. Para este autor, o que caracteriza uma classe social é a “estrutura das relações entre todas as propriedades pertinentes que confere seu valor próprio a cada uma delas e aos efeitos que ela exerce sobre as práticas”. Nos campos político e cultural, as classes sociais travam lutas por posições sociais. Esses embates pressupõem manutenção ou modificação das práticas sociais dessas classes que, a partir dos distintos interesses, buscam conservar ou transformar seus costumes e, consequentemente, o campo em questão. Esse movimento é o que Bourdieu entende por dialética da desclassificação e da reclassificação. Ele mostra que as classes sociais se distinguem a partir do gosto: O gosto encontra-se na origem dessas lutas simbólicas que opõem, em cada instante, as frações da classe dominante e que seriam menos absolutas, menos totais, se não estivessem baseadas nessa espécie de adesão primitiva, de crença elementar que une cada agente a seu estilo de vida: a redução materialista das preferências a suas condições econômicas e sociais de produção, assim como às funções sociais desempenhadas pelas práticas, na aparência, mais desinteressadas, não deve fazer esquecer que, em matéria de cultura, os investimentos não são somente econômicos, mas também psicológicos. (BOURDIEU 2007, p. 291)    A política de preservação cultural do Governo Brizola se dá através da tentativa de promover e revigorar tudo aquilo considerado como característico e peculiar do povo carioca. Busca-se, também, na política de tombamento e preservação, uma conexão com a classe popular, considerando sua memória e suas práticas sociais como elementos dignos de serem preservados, quebrando uma concepção de patrimônio como algo sagrado, exclusivamente elitista, distinto da vida cotidiana.

Além das já citadas instituições - INEPAC e FUNARJ - outra instituição que colaborou para robustez da estrutura e funcionamento da política cultural no período estudado foi a Rioarte, órgão da prefeitura do município do Rio de Janeiro. No dia quinze de julho de 1985, a página quatro do Diário Oficial publicou a chamada “Rioarte estima em dois milhões o público de seus espetáculos e mostras desde 83”. A estimativa é de Gerardo Melo Mourão, Presidente da Rioarte, em relatório entregue ao Prefeito Marcello Alencar. Na chamada, Mourão ressalta a excelência do momento cultural vivido pelo Rio de Janeiro e, consequentemente, pela Rioarte: Nunca na historia da cidade [...], o povo foi contemplado com uma política cultural tão abrangente. Alguns eventos, como o Auto de São Sebastião (com um público calculado pelos jornais em torno de 300 mil pessoas) ou o Salão Carioca de Artes ou ainda o Auto da Paixão da Lapa (cálculo dos jornais em cerca de 100 mil pessoas) reuniram audiência maior do que a dos espetáculos do Rock in Rio em qualquer dos dias de suas apresentações. Com a diferença de que o Rock in Rio gastou milhares de dólares para ser feito e nós gastamos apenas alguns milhares de cruzeiros. [...] E também quero deixar claro [...] que temos sido prestigiados de modo excepcional pela Prefeitura e pela Secretária Municipal de Educação, Maria Yedda Linhares, além de devermos também alguns projetos à cooperação do Secretário de Ciência e Cultura, Darcy Ribeiro. (DOERJ, 15/07/1985, p.04)

A chamada ressalta, ainda, a atuação da Rioarte e suas atividades de Artes Cênicas, Visuais, Musicais e seus estudos e programas especiais pautados em “proteção do patrimônio histórico e revitalização dos espaços urbanos, apoio à criação e difusão de bens culturais e editoração.” Ao longo do texto, que ocupa metade da página quatro, são ressaltados os trabalhos da Rioarte, com destaque para: o projeto Cenas Cariocas/Teatro no Museu, o Grupo Tá na Rua, o Teatro no Presídio, o Primeiro Festival Carioca de Vídeo, o Ponto de Encontro do Cinema Comunitário, a Primeira Mostra de Cinema Infantil e Infanto-Juvenil Brasileiro, o Apoio aos projetos de instalação de obras de artistas plásticos, (por não se enquadrarem em critérios comerciais, esses artistas não tinham acesso ao mercado tradicional de arte, daí a criação do projeto para apoiá-los),    os concertos da Catacumba (na Lagoa Rodrigo de Freitas), os espetáculos de música clássica na Penitenciária, o já consagrado Música no Ibam (sempre às terças-feiras), o patrocinado para as três apresentações de grupos de choro no Largo de São Francisco, a edição de seis livros em 1983 e, é preciso citar ainda, o 7 ° Salão Carioca de Arte, com seiscentos e cinco artistas inscritos e sessenta e cinco selecionados. Também são mencionados o Oratório de São Sebastião, a encenação da Paixão de Cristo nos Arcos da Lapa; o Primeiro Concurso Carioca de Dramaturgia e Produção de Espetáculos Natalinos do Rio, o Cenas Cariocas, Rioarte Instrumental no Parque da Catacumba, a Rioarte Comunitária, o concurso de monografias. Todas essas iniciativas culturais, de acordo com a chamada, “ajudam a abrir o espaço cultural da cidade e a democratizá-lo”. O significado dessas chamadas culturais estão definidas em uma palavra, utilizada por Mourão em seu depoimento supracitado: abrangência. Esse é o termo que explica a variedade de eventos organizados pela Rioarte para a população carioca e fluminense.

A participação da Rioarte nos eventos realizados através da política cultural do Rio de Janeiro se fez presente também nos gráfico que mostram os locais eruditos que sediaram eventos populares (gráfico 2) – onde aparece com 3,2% dos eventos – e no gráfico que mostra os locais eruditos que sediaram eventos eruditos (gráfico 3), onde aparece com 4,4% dos eventos. Cabe ressaltar que a Rioarte aparece nos gráficos não por fornecer espaço físico, mas por ser responsável por organização, lançamento, editoração e financiamento de eventos culturais em chamadas que não especificaram o local de acontecimento dos eventos.

No que diz respeito à FUNARJ, o texto da chamada do dia 17 de março de 1986 ressalta que “a atuação dos órgãos estaduais permitiu um avanço substancial na política cultural do Estado” e aponta realizações como o alto nível de ocupação do Teatro Municipal e da Sala Cecília Meireles, o papel da FUNARJ – administradora de sete Teatros e treze Museus – como ampliadora das condições para o “florescimento da cultura no Estado”, e os Museus Estaduais que “ganharam as ruas tornando-se realmente abertos à comunidade”. A chamada informa ainda, pela primeira vez no Diário Oficial, o projeto organizado pelo Departamento de Cultura em que “a antiga Fundição Progresso, instalada num prédio da Lapa, está sendo restaurada e dará espaço à Casa das Festas”. Ao longo da chamada, de meia página, são ressaltados também a Casa França-Brasil, a Escola de Música Villa-Lobos, a Escola de Teatro Martins Penna, a Escola de Dança    Maria Olenewa, e a Escola de Artes Visuais do Parque Lage. A chamada menciona o CIEP e o CIC para ressaltar o protagonismo que tem a criança na política cultural do governo. São ressaltados também como expoentes da política cultural os Teatros Armando Gonzaga e Arthur Azevedo; o Museu da Imagem e do Som e outras realizações da Funarj como o Festival Internacional de Música Negra, a série Brasilianos, a Revista do Brasil, a reforma da Casa Laura Alvim, a restauração de quatro Escolas de Arte e o projeto Arte nos Muros. Nota-se, na publicação, a preocupação em divulgar a agenda política cultural construída para o Rio de Janeiro, destacando sua diversidade de instituições e manifestações culturais. A publicação enfatiza a ampliação da produção cultural no Rio de Janeiro.

4.1 – A TEORIA SOCIAL NO ESPAÇO POLÍTICO

É possível evidenciar traços da teoria social de Darcy na construção da política cultural para o Rio de Janeiro nas páginas do Diário Oficial, desde a publicação de chamadas divulgando a teoria social do próprio Darcy, como matérias que destacavam figuras e ideologias que eram referencias na formação do então Vice-Governador.

“Darcy Ribeiro quer mudar escola primária no Estado” é o título da chamada publicada no dia vinte e três de janeiro de 1985, na página quatro do Diário Oficial e aborda o livro “Nossa escola é uma calamidade”, de autoria do então Vice-Governador. O livro analisa o “caráter deformado do crescimento da rede escolar, que não cresceu como devia nem onde devia.”. A chamada destaca ainda as ideias de Darcy em relação ao sistema educacional brasileiro: A escola pública brasileira de primeiro grau não acolheu nem reconheceu ainda como sua clientela as crianças oriundas das camadas populares. Como negar então que temos uma escola desonesta, inadequada e impatriótica? [...] A sociedade brasileira é enferma de desigualdade e descaso por sua população. O povo, os trabalhadores, jamais são levados em conta quando se tomam deliberações, senão como força de trabalho a ser desgastada na produção. É preciso coragem para ver esse fato porque só a partir dele podemos romper nossa condenação ao atraso e à pobreza. (DOERJ., 23/01/1985, p.04)

Uma outra chamada, no dia vinte e nove de janeiro de 1986, com o título “Darcy conta como o Brasil deu no que deu” noticia o lançamento do livro de Darcy “Aos trancos e barrancos – como o Brasil deu no que deu”, traz a sinopse do livro e sua divisão em    quatro capítulos, bem como depoimento de Darcy acerca das motivações que o levaram a escrever mais uma obra:

Desejo apenas que este livro faça algum jovem pensar que é tempo de tomar este País nas mãos. Para construir aqui a beleza de nação que podemos ser. Havemos de ser! Para tanto, é indispensável impedir o passado e construir o futuro; quero dizer, tirar da gente que nos regeu e infelicitou através dos séculos o poder de continuar conformando- deformando o nosso destino. [...] É hora de lavar os olhos para ver a nossa realidade. É hora de passar o Brasil a limpo, para que o povão tenha vez. No dia em todo brasileiro comer todo dia, quando toda criança tiver um Primeiro Grau completo, quando cada homem e mulher encontrar um emprego estável em que possa progredir, se edificará aqui a civilização mais bela desse mundo. É tão fácil; estendendo os braços no tempo, sinto na ponta dos dedos esta utopiazinha nossa se realizando. (DOERJ, 29/01/1986, p. 04)

Os discursos de Darcy exaltam sua preocupação com a questão popular. Ao afirmar que o povo jamais é levado em conta a não ser como força de trabalho e que é hora de dar vez ao povo, é possível estabelecer uma relação com os fazimentos culturais, voltados para a classe popular, empreendidos no governo PDT, citados nesse trabalho.

A importância e ênfase de uma política cultural na qual o povo fosse protagonista principal retoma as páginas do DO no dia seis de setembro de 1984, página 4, com a manchete: “Planetário tem nova programação para abrir-se à comunidade”. É importante mencionar que o texto que abre a matéria inicia-se com os seguintes dizeres: “tão grave como os bolsões de pobreza que existem no País é a falta de acesso da população ao conhecimento científico.” Note-se que este é um aspecto novo, que aparece pela primeira vez, associando a política cultural à política científica. A frase expressa o pensamento de Epitácio Brunet, diretor do Planetário. A ideia de Brunet justifica a inauguração das novas atividades do Planetário, que aliam atividades científicas a eventos de caráter cultural. A programação, entre outras atividades, prevê a realização da Semana de Astronomia, a apresentação do Moitará do Macunairama , em quinze dias de sessões de filmes em comemoração aos cem anos do nascimento de Mário de Andrade.

Em novembro de 1984, no dia 12, o Diário Oficial publica a manchete: “Preservação da Cultura exige criatividade e muito esforço”, retirada do discurso de Leonel Kaz, Vice- Presidente da Funarj, pronunciado na Câmara dos Deputados no Dia Nacional da Cultura. A importância da política cultural para o governo do PDT bem como o papel    de Darcy Ribeiro na concepção e execução dessa política cultural podem ser percebidos no trecho a seguir, reproduzido da referida matéria:

“Um povo não pode viver afastado de si mesmo toda a vida." Esta foi uma das conclusões colocadas no discurso que Leonel Kaz, vice- presidente da Funarj, fez na Câmara dos Deputados, em Brasília, no dia nacional de cultura. Leonel, representando na ocasião o Secretário de Ciência e Cultura do Rio de Janeiro, Darcy Ribeiro, disse ainda que o florescimento e a preservação do bem cultural exigem criatividade, despreendimento, muita vontade e algum esforço. [...] o programa cultural de um governo eleito e representativo que, na sua diversidade, tem muita união. A diversidade é enriquecedora. Aqui na Funarj a diversidade da ação de pessoas como Miguel Proença (diretor da Sala Cecília Meireles), (do Teatro Municipal), Ana Maria Bahiana (diretora do MIS) Antônio Pedro, do setor de teatro e Adriano de Aquino, das artes visuais, faz com que a experiência de cada um enriqueça e repercuta na área do outro e assim se encontra a unidade." As diretrizes da política cultural no Estado do 'Rio são traçadas por Darcy Ribeiro, que, segundo Leonel, "é um dos raros intelectuais brasileiros que consegue conjugar a palavra com a ação. O que Mário de Andrade representou na primeira metade deste século, Darcy representa hoje. Esta ação cultural se dá de forma prática num espectro bem amplo, atingindo os setores mais diversos. (DOERJ, 12/11/1984, p.04)

A exibição de filmes em homenagem à Mário de Andrade e a comparação feita por Leonel Kaz entre este pensador e Darcy não são atos isolados. Políticas executadas no período estudado compreendido por esta pesquisa, como a ampliação da política de tombamento – idealizada por Mario de Andrade no IPHAN na década de 30 – e a atuação das bibliotecas volantes visitando e levando cultura a diferentes espaços do Rio de Janeiro – conforme Mário de Andrade já havia feito, também na década de 30, à frente do Departamento de Cultura em São Paulo – denotam a influência que Andrade possuía na política cultural do PDT e no pensamento social de Darcy, que, em suas críticas ao pensamento social brasileiro, atribui à literatura de Andrade grande contribuição para a reformulação da consciência social brasileira:    As primeiras contribuições destas criações culturais à reformulação da consciência social surgem com a poesia. Mas são logo superadas pelas artes narrativas, sobretudo a novela, que de forma mais completa e dramática retrata a experiência comunitária, conseguindo um alto grau de comunicabilidade e muitas vezes também de acuidade. Com efeito, a ficção literária, recriando livre e episodicamente a realidade, sem maior pretensão que a verossimilhança, reflete frequentemente melhor o existente que as tentativas de equacioná-lo cientificamente. Talvez por isto, as teorizações clássicas da literatura brasileira (Sílvio Romero, José Veríssimo) e a produção dos literatos do movimento modernista (Mário de Andrade, Oswald de Andrade) tenham maior valor sociológico que toda a produção pretensamente científica de sua época (RIBEIRO, 1983, p. 159). A admiração por Mario de Andrade vinha desde os tempos de estudante na Escola Livre de Sociologia Política, período que se caracteriza pela inserção institucional de Darcy nas ciências sociais brasileira: Assim que cheguei [A São Paulo, para estudar na Escola Livre de Sociologia Política] articulei-me politicamente. Tinha uma carta de apresentação para o Mário de Andrade. Ele era muito importante para a cultura brasileira. Tinha publicado a Revista do Arquivo , participado de inúmeros congressos, todos reconheciam, não apenas a extraordinária importância de sua obra crítica, de Macunaíma , como ainda sua coragem intelectual. Acontece que levei algum tempo para procurá-lo. E acabamos marcando um encontro na sala dos fundos da Livraria Jaraguá, às quatro da tarde de um dia qualquer. Acontece que quando cheguei ele estava em companhia do Germinal Feijó e do Paulo Emílio Salles Gomes. Eu estava em guerra com eles, pois o artigo 13 dos estatutos do PC proibia estritamente qualquer contato com trotsquistas. [...] Besteira total, naturalmente. (RIBEIRO apud ZARVOS, 2007, p.82-83)

Como bem assinalou Kaz, Darcy é “ um dos raros intelectuais brasileiros que consegue conjugar a palavra com a ação ”. E, sobre essa questão de conjugar a palavra à ação, é oportuno lembrar uma das referencias marcantes na vida de Darcy, que exerceu, certamente, uma influencia nas suas ações políticas. Refiro-me a Anísio Teixeira. Em 1956, Anísio convida Darcy para ser o Diretor da Divisão de Pesquisas do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) órgão do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP). Além da direta inspiração que os CIEPs tiveram da Escola-Parque de Anísio Teixeira, a concepção política do PDT de distribuir bens culturais e usá-los como propostas de solução para as questões brasileiras encontram diálogo na atuação de Anísio Teixeira, conforme aponta Nunes:    Eis Anísio Teixeira em sua mesa de trabalho, que é também uma mesa de existência a serviço da educação. Redige o programa do Partido Autonomista do Distrito Federal. Estamos no mês de fevereiro de 1935. Na introdução desse programa aponta a necessidade do Estado assumir o papel regulador da distribuição de bens [...] Propõe um partido para o qual a primeira necessidade é a difusão da cultura e do esclarecimento público dos problemas brasileiros e de suas possíveis soluções. (NUNES, 2010, p.20-21)

Ainda de acordo com Nunes, a concepção que Anísio Teixeira tinha de Estado, era a de que o mesmo deveria atuar enquanto “ o principal promotor da escolarização e difusor da cultura junto às classes populares. (2010, p.27)”. As críticas à classe dirigente como interessada pela ignorância popular, a invasão da classe popular e sua cultura em espaços eruditos, como mostram os gráficos desse trabalho e a necessidade de uma emancipação política da classe popular, a ser proporcionada pelo Estado através de meios culturais são também pontos em comum no pensamento de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro:

Ele [Anísio] deslocou a carência do indivíduo para a omissão dos governos na direção da reconstrução das condições sociais e escolares. Não considerou as classes populares urbanas como obstáculos sociais e políticos e por esse motivo defendeu a educação como instrumento de superação de uma carência que não é do indivíduo, mas da cultura erudita que lhe faz falta. Pôde perceber que a desigualdade entre as pessoas não estava dada. Era feita. [...] Aprendera, na primeira metade da sua vida, que a pobreza não é só a destituição de bens materiais, mas também a repressão do acesso às vantagens sociais. Não é só fome. É também segregação, degradação, subserviência, aceitação de um Estado avassalador e prepotente. A pobreza brasileira era também, e no mesmo grau de importância da pobreza material, a pobreza política. (NUNES, 2010, p.23-27)

É oportuno ressaltar que, nas entrevistas que realizei com Ricardo Cravo Albin e Leonel Kaz ambos destacam a autonomia intelectual de Darcy, definindo-o como “autocitável” e “completamente centrado nele”, mas entendem a influência de Anísio Teixeira como fundamental para as concepções educacionais de Darcy Ribeiro no período à frente da cultura e educação no primeiro governo Brizola. Albin define as ideias de Anísio como “inspiração” e “influência decisiva”, enquanto que Kaz destaca a admiração de Darcy por Anísio:    Eu acho que a única pessoa que o Darcy verdadeiramente admirava era o Anísio Teixeira; se debruçando sobre o Anísio você entende bem o Darcy. [...] Essas ideias do Anísio Teixeira, da Escola-Parque, de uma criança muito mais autóctone, muito mais capaz de por seus próprios meios participar, a ideia do aprendizado não como uma sistemática de repetições, mas a criação, o fomento de capacidades próprias, isso era uma ideia que o Darcy tinha, ele admirava o Anísio Teixeira. Era a única pessoa que ele realmente, repetidamente admirava [...] Ele nunca citou ninguém. Mas aí era da personalidade dele. A única pessoa que ele citava era o Anísio. (Leonel Kaz, entrevista em 06/12/13) A partir de vasto material empírico, resultado de anos de investigações científicas sobre tradições intelectual, cultural, social, educacionais e políticas brasileiras, Darcy constrói uma teoria explicativa do “povo brasileiro” que referenda suas ações políticas no período em que exerceu as funções de vice-governador e secretário de Cultura, Ciência e Tecnologia e coordenou o Programa Especial de Educação do Estado do Rio de Janeiro. Darcy aponta, especialmente, em suas análises, um período que julgou importante para a cultura nacional:

Nos primeiros anos da década de 60 começou a surgir uma esquerda nacional que vinha amadurecendo graças a três fatores de conscientização. Primeiro, a crítica ao stalinismo que, quebrando a ortodoxia comunista, liberou a maioria de seus afiliados e simpatizantes para uma ação política autônoma. Segundo, a renovação do pensamento católico que também liberou para a ação revolucionária amplas parcelas da intelectualidade. Terceiro, a vitória da revolução cubana que, demonstrando a possibilidade de empreender-se uma revolução socialista a partir de formações neocoloniais, evidenciou o caráter conciliatório dos partidos comunistas ortodoxos que não se propunham a tomada do poder, senão a participação nele para melhorá-lo. Estes fatores, atuando numa conjuntura política reformista, geraram uma criatividade cultural sem paralelo na história brasileira, ao mesmo tempo em que davam lugar a uma dinamização sem precedentes dos estudos dos temas e problemas brasileiros. Surgiram, então, múltiplos movimentos culturais de vanguarda que, no esforço por definir suas linhas ideológicas, produziram um pensamento crítico original predisposto para a ação no plano político e cultural. Contudo, sua duração efêmera os converteu em promessas do que teria sido um florescimento cultural brasileiro que, pela primeira vez, unia no pensamento e na ação aos intelectuais mais criativos e às massas analfabetas . na educação popular, Maria Yedda Leite Linhares na radiofusão, no cinema novo, o Grupo Opinião e Augusto Boal no teatro, a turma da “bossa-nova” na música popular, o Movimento de Cultura Popular, a Editora Civilização Brasileira e a Universidade de Brasília nos dão uma mostra do que teria sido essa explosão de criatividade se ela não fosse estrangulada nas primeiras pulsações. (RIBEIRO, 1983, p. 162)    Em meio ao que considera como “um pensamento crítico original predisposto para a ação no plano político e cultural”, Darcy faz menção a nomes como: Maria Yedda Linhares – Secretária de Educação e Cultura do Município do Rio de Janeiro, e no final do governo Brizola secretária da Educação do Estado do Rio de Janeiro; Paulo Freire – que recebeu, em 1985, o prêmio “Estácio de Sá”; 59 Augusto Boal – Diretor de Teatro, Dramaturgo e Ensaísta, que no governo do PDT ajudou a revitalizar os musicais brasileiros com espetáculos como Vargas e o Corsário do Rei , além de ter sido fundador do Teatro do Oprimido, que se baseava por sua preocupação social e de emancipação política que ganhou notadamente os CIEPs e as ruas do Rio de Janeiro no período estudado. A participação dessas personalidades na política cultural idealizada por Darcy Ribeiro para o Rio de Janeiro demonstra a intencionalidade de retomar o que, para Darcy, teria sido a união entre ação e intelectualidade, em prol das camadas populares da população. A preocupação de Darcy com a questão popular é evidenciada também quando, ao criticar a teoria social brasileira, alerta para importância de pensar a sociedade sob o ponto de vista das camadas populares: Eu já disse [...] que o Casa Grande & Senzala é o livro mais importante que já se escreveu no Brasil [...] porque é um livro belíssimo, importantíssimo, com uma linguagem nova, uma expressão barroca. [...] Exponho a minha perplexidade porque o Gilberto é um reacionário horroroso. [...] Agora, ninguém escreveu ainda o Senzala e Casa Grande , quer dizer, o drama visto do ponto de vista do negro, com aquele sentimento, com aquela coragem, com aquela beleza. [...] É o ponto de vista da classe dominante sobre o que é a casa grande e a senzala. Não explica o Brasil. (RIBEIRO apud ZARVOS, 2007, p. 124-125) Em sua teoria social e tentativa de explicar o Brasil, Darcy o concebe enquanto um Povo-Novo , “oriundo da conjunção, deculturação e caldeamento de matrizes étnicas muito díspares como a indígena, a africana e a europeia” (RIBEIRO, 1983, p. 58)

 59 Os prêmios “Estácio de Sá”, “Golfinho de Ouro”, “Almirante” e “Governo do Estado”, estavam suspensos desde 1981 e foram retomados pela equipe do PDT, para premiar as personalidades com reconhecida colaboração em diversos segmentos sociais.    Os Povos-Novos das Américas – e entre eles o Brasil – demonstram, em seu atraso relativo, o que resulta de processos formativos institucionalizados pelo sistema de fazendas e pela escravidão dentro de movimentos de colonização que se exercem sobre populações de nível tribal. Seus desempenhos evolutivos, tanto no curso da civilização agrário mercantil como na urbano-industrial, foram e são medíocres e contraditórios. Criaram, ontem como hoje, empresas prodigiosamente prósperas mas de prosperidade não generalizável à população, nem capazes de permitir um crescimento econômico acelerado porque transferem ao exterior a maior parte dos frutos do trabalho nacional. Como tal, geraram uma estratificação social encabeçada por uma classe dominante consular porque dependente de interesses exógenos e retrógrada porque oposta a qualquer transformação profunda na estrutura socioeconômica (RIBEIRO, 1983, p. 73) Darcy (1983, p. 73) argumenta que, a partir do exposto acima, as classes oprimidas possuem interesses muito diversos dos da classe dominante, o que impossibilita sua categorização enquanto categoria política capaz de influenciar seu próprio destino. Ainda de acordo com Darcy (1983, p 74), o processo de integração e participação da população na sociedade e na cultura nacional é um processo inconcluso nos Povos- Novos, onde se enquadra o Brasil. A exclusão se estende à questão política:

Nessas sociedades, frequentemente, o contingente principal da população não foi incorporado à cultura moderna [...] Ademais, estão excluídos da nação porque não participam da vida política, uma vez que, como analfabetos, não são eleitores e, mesmo quando alfabetizados e eleitores, estão de tal modo submetidos ao despotismo patronal que não alcançam ser cidadãos de uma pátria. (RIBEIRO, 1983, p. 75) As matrizes étnicas indígenas e negras e europeias, base da formação do povo brasileiro, e do contingente principal da população a que Darcy se refere na citação acima, estiveram presentes na política cultural do PDT. O movimento Negro encontra grande espaço na política cultural em questão, visto que, em seus estudos de antropologia da civilização, Darcy (1995) concebe o negro como uma das matrizes étnicas fundamentais da formação do povo brasileiro, tanto no aspecto étnico quanto cultural, neste último influenciando em campos diversos como música, dança, culinária, arte, idioma, religião, entre outros. Essa relação é ilustrada em algumas publicações do Diário Oficial.

No dia onze de abril de 1986, o Diário Oficial publica em sua capa e na página quatro a chamada “Zumbi dos Palmares terá estátua na Praça Onze”, noticia homenagem a Zumbi, com a construção de uma estátua na Praça Onze. Estiveram presentes no    pronunciamento de Darcy personalidades relacionadas ao Movimento Negro, tais como Benedita da Silva, , Justo de Carvalho, José Miguel, Joel Rufino, além de Leonel Kaz e Ítalo Campofiorito. A chamada traz declarações de Darcy, , Benedita da Silva e Joel Rufino em referência ao Movimento Negro. Na reportagem, Darcy afirma que “a história dos heróis negros no Brasil não foi bem registrada”. Justo de Carvalho, descrito como “militante negro”, ressalta a importância da Praça Onze para sediar o monumento, visto que se trata de um local caracterizado como “uma espécie de Quilombo cultural, a retomada de uma resistência cultural negra ao domínio branco”, visto que, no fim do século XIX a Praça fora um dos nascedouros do samba. Em consulta feita por mim às gravações 60 das reuniões da equipe de cultura, pude ouvir os anseios de Darcy sobre a inauguração da estátua. No registro, Darcy trata o evento como “Um ode a Zumbi, um ode à negritude, ao grande herói negro”, e afirma que “eu quero lá, um milhão de negros, trazer os Pais de Santo, as Mães de Santo”.

No dia vinte de novembro de 1984, o Diário Oficial tem sua página quatro toda reservada à cultura negra. A página estampa as chamadas “Festa marca o dia da consciência negra”, “Pedra do sal, agora, é um movimento negro”, em referência ao tombamento da Pedra do Sal, “Projeto Zumbi mostra a arte nas escolas” e “Angola e Moçambique, nas fotos de um brasileiro”, para comemorar o dia da Consciência Negra. A publicação no dia vinte, data do falecimento de Zumbi, símbolo da cultura negra, é exaltada em trecho da página 4 que resume a programação cultural do Governo Brizola para a ocasião: O movimento negro brasileiro recusou a data oficial de 13 de Maio (quando se comemora o fim da escravidão em nosso País) e preferiu comemorar seu Dia Nacional da Consciência Negra a 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares. No Estado do Rio de Janeiro, uma intensa programação está se realizando em torno do evento, que inclui desde a Kizomba (cuja programação foi publicada pelo Diário Oficial da última sexta-feira), até o tombamento da Pedra do Sal, passando por atividades nas escolas, como parte do Projeto Zumbi dos Palmares. (DOERJ, 20/11/1984, p. 04).

Em entrevista à rádio MEC, disponível no acervo sonoro 61 da Fundação Darcy Ribeiro, o então vice-governador do Estado do Rio de Janeiro falou sobre a questão negra, tratou o tombamento da Pedra do Sal como um símbolo de rebeldia e protesto do movimento negro:  60 Ver em CD – DR104 – Faixa 2, FUNDAR.  Ver em CD DR104, FUNDAR.     Vamos tombar locais que possuam identificação com a população negra. Qual é o local fundamental? É a Pedra do Sal. [...] O local de negro de contar o que querem, não o que o branco queria que lhe contassem era ali, o ponto de encontro. A Pedra é o símbolo da rebeldia que protesta, por isso também foi tombada. (RIBEIRO in CD DR 104, FUNDAR)

Destaco aqui que a menção de Darcy à Pedra do Sal como um local onde o negro poderia contar o que quiser em oposição ao que o branco gostaria que fosse contado, faz coro com as críticas feitas pelo Darcy antropólogo à Gilberto Freire, por contar a história da Casa-Grande e não a da Senzala e por afirmar, em sua obra, O Povo Brasileiro que nossa história é contada sob o ponto de vista do dominador: Só temos o testemunho de um dos protagonistas, o invasor. Ele é quem nos fala de suas façanhas. É ele, também, quem relata o que sucedeu aos índios e aos negros, raramente lhes dando a palavra de registro de suas próprias falas. O que a documentação copiosíssima nos conta é a versão do dominador. (RIBEIRO, 1995, p. 30)

Essa concepção de Darcy, de conceder ao negro a oportunidade de contar a sua própria história, de estabelecer a possibilidade de transgredir uma dominação que lhe fora historicamente imposta reflete na configuração do quadro partidário do PDT, uma vez que o partido abre espaços de relevância política, e consequentemente de poder, para os negros, fazendo emergir aos espaços de protagonismo uma das matrizes de base, que dá origem ao povo brasileiro, conforme menciona Darcy em entrevista concedida à Rádio MEC: “O nosso Partido foi o primeiro partido que incorporou negros: Três Secretários de Estado Negros, vários parlamentares negros, federais, estaduais, municipais [...] isso significa ir ao fundo, querer ser um partido do povo do fundo.” (RIBEIRO in CD DR 104, FUNDAR). Um exemplo que ilustra essa concepção partidária está no artigo “Uma Resposta à Cultura do Racismo”, de Joel Rufino, publicado na edição especial da Revista do Brasil, em 1986. Rufino abre o referido texto lembrando a repercussão midiática negativa causada pela sua posse como Secretário de Ciência e Cultura do governo Brizola: Na primeira sessão do atual Conselho Estadual de Cultura me apresentei como representante de Madureira, “a capital cultural do Rio, com duas das maiores escolas de samba da cidade, centenas de blocos, pagodes e terreiros de candomblé e umbanda”. Lembrei também – no clima espirituoso e levemente provocativo daquela tarde – que, talvez pela primeira vez um representante de Madureira tinha assento naquela casa. No outro dia, o Estadão aproveitou o fato para malhar o governo Brizola e seu Secretário de Ciência e Cultura, “profeta da negritude”: haviam demagogicamente nomeado um sambista e macumbeiro para o egrégio conselho. (RUFINO, Joel, In: Revista do Brasil, edição especial, julho de 1986)   

Ao longo do artigo, Rufino cita a atuação do Conselho e sua preocupação em adotar como norte “um conceito antropológico de cultura”, “reconhecer contextos culturais”, “valorizar processos culturais” e pensar “em uma redefinição de Brasil”. Talvez um exemplo dessa valorização e reconhecimentos culturais a qual Rufino se refere possa ser ilustrado através da entrada dos diferentes tipos de cultura na educação pública fluminense, como mostra a capa do Diário Oficial do dia vinte e quatro de setembro de 1986, que estampa a chamada “Projeto Zumbi dos Palmares é realidade”, informando que, embora o lançamento oficial esteja previsto para o ano seguinte, o projeto já atendia comunidades e cita que na véspera alunos da Escola Municipal Anne Frank assistiram a um recital da violonista Mônica Mangia. A chamada prossegue na página quatro, com o título “Projeto Zumbi tem oficina do oprimido”, descrevendo o projeto como “uma proposta de difundir a cultura negra, principalmente na área da educação” e divulga que o objetivo do Teatro do Oprimido é “desenvolver o caráter reflexivo sobre as questões raciais e outros tipos de opressão dentro de nossa sociedade, inclusive nas escolas, criando condições para o reconhecimento e a aceitação dos aspectos pluriculturais na formação do homem brasileiro.”.

Outra matriz cultural basilar na formação do povo brasileiro, na concepção de Darcy Ribeiro, os índios também tiveram espaço na política cultural do PDT. Em O Povo Brasileiro (1995, p.99), Darcy registra que vasto aparato cultural da matriz indígena é notado pelos colonizadores: “A documentação colonial destaca, por igual, as aptidões dos índios para ofícios artesanais, como carpinteiros, marceneiros, serralheiros, oleiros. Nas missões jesuíticas tiveram oportunidade de se fazerem tipógrafos, artistas plásticos, músicos e escritores.” E ressalta que, mesmo diante de tais aptidões, os índios foram utilizados pelos colonos como “mão de obra na produção de subsistência”. A herança cultural indígena foi introduzida na política cultural produzida para o Rio de Janeiro, como se pode notar em algumas reportagens publicadas no Diário Oficial no período. A edição do dia dezoito de abril de 1985 publica na página quatro a reportagem “No Méier, um índio vai à escola para explicar a cultura de seu povo”, que aborda a visita do índio da tribo tapuias a uma escola pública municipal do Rio de Janeiro. A chamada informa que o evento foi denominado dia da integração e fazia parte da programação cultural em comemoração à semana do índio, “com a intenção de trazer a cultura indígena para mais perto dos alunos.” A declaração da Supervisora da referida escola    publicada na chamada, revela a sintonia da profissional das matrizes étnicas da cultura brasileira em foco na teoria social de Darcy com as diretrizes da política cultural do PDT: “no ano dedicado à cultura, é preciso procurar entendê-la mais profundamente, começando pelo índio e pelo negro.” A chamada informa ainda que o índio Santiê falou para as crianças sobre artesanato indígena, ervas medicinais, pesca e matrimônio, e ressalta que o referido índio foi criado por Berta Ribeiro, primeira esposa de Darcy, e colaborou com o então vice-governador na publicação de dicionário tupi-guarani organizado por Darcy.

No dia trinta de abril de 1985 a página quatro do Diário Oficial publica a chamada “O índio invade Brasília e é exposto no MIS”, em referência à exposição de colagens, desenhos e serigrafias de Paulo Andrade, sediada no Museu da Imagem e do Som. Nota-se a predisposição em mostrar a importância do índio, seja nas figuras, que mostram os índios invadindo Brasília, e sempre em maior tamanho que a cidade, sempre coloridos, enquanto que o restante da paisagem em branco e preto. Uma das gravuras mostra uma índia de olhos bem abertos, e a estátua da justiça, cega, atrás dela; no discurso e nas imagens Paulo Andrade caracteriza os índios como “um tipo marcante na cultura brasileira e que, mesmo massacrado e espoliado de suas terras está contribuindo para a formação desta mesma cultura.” A percepção da cultura indígena como algo grandioso, injustiçada e responsável por grande contribuição na cultura brasileira é demonstrada em sua obra O Povo Brasileiro.

Uma das matrizes culturais da formação do povo brasileiro mereceu também atenção especial na política cultural do PDT: a francesa. Durante o período compreendido por esta pesquisa, o PDT firma convênio para restaurar o antigo prédio da Alfândega (Praça do Comércio do Rio de Janeiro), projeto erguido em 1819, assinado pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny, que veio ao Brasil com a missão artística francesa convidada por Dom João VI. A documentação arquivada no acervo 62 Darcy Ribeiro sobre a Casa França Brasil mostra que a vinda daquele grupo de artistas trouxe ao Brasil o modernismo francês da época.

 62 Ver em DR.GBI    Com a finalidade de dar uma nova utilização a esse antigo prédio Darcy promove a sua recuperação arquitetônica para abrigar a Casa França-Brasil. A concretização do projeto passou por dois eixos de trabalho: a restauração do prédio e a formação de grupos de trabalho para desenvolver pesquisa iconográfica referente a cinco séculos de missão francesa no Brasil: O novo museu virá celebrar a múltipla e rica convivência do pensamento e da arte de franceses e brasileiros durante a nossa história de colônia, império e república. Cabe ao Museu revelar, seja como exposição de acervo ou mostras eventuais, seja como centro de referência, as matrizes culturais com que a França trouxe-nos o processo civilizatório desencadeado pela Revolução Mercantil européia. (FUNDAR, In: DR.GBI)

Os espaços desse edifício retomam ao estado primitivo para desenvolver atividades culturais. Uma das duas salas, logo à entrada, receberia exposições temporárias e, na outra, abrigariam um cinema. A Casa França-Brasil desenvolveria as mais diversas atividades culturais (cinema, concertos, vídeos, sala de informática), além de biblioteca especializada e um Centro de documentação da história das relações França-Brasil desde o século XVI, com objetos, iconografia, bibliografias, biografias. A quantidade de reportagens sobre a Casa França-Brasil publicadas no Diário Oficial aponta uma tentativa de promover a instituição aos olhos da população, conforme mostram os trechos abaixo:

No dia cinco de julho de 1985, na página dois, a chamada principal é “Convênio dará Cr$1 bi a Casa Brasil-França”, e traz declaração de Angelo Osvaldo, representante do Ministério da Cultura: “este é um projeto que emerge do brilhantismo de Darcy Ribeiro e veio resgatar um prédio tombado em 1938 e que, desde então, vem requerendo uma utilização adequada. O Ministério da Cultura é parceiro desta importante iniciativa”. O Embaixador Bernard Dorin, representando o governo Frances, afirmou que a iniciativa é uma “operação extraordinária que reflete a amizade da França com o Brasil” e se referiu ao Rio de Janeiro como “a capital sentimental e intelectual do Brasil”. Darcy encerrou a cerimônia discursando sobre a ideia da Casa França-Brasil e sobre as relações entre os dois países ao longo da história:    Certa vez, conversando em Paris com o Ministro da Cultura francês Jack Lang, eu disse a ele que os franceses, como os demais povos colonizadores, não podem se orgulhar muito do seu passado colonialista, mas, por outro lado, eles podem se orgulhar de suas relações com o Brasil. Eles quiseram colonizar mas não conseguiram, pois o País resistiu. Começamos a articular então a criação de um local que pudesse concretizar a presença do olho francês entre nós durante cinco séculos Há mapas franceses do Brasil de 1500 e muitos outros documentos e objetos que atestam isto. E a própria cidade do Rio de Janeiro foi criada pelos calvinistas com uma proposta generosa, que era a de vir para cá construir uma sociedade toda fabricada, utópica, perfeita. Que infelizmente não deu certo. Os jesuítas fizeram a primeira guerra brasileira contra os franceses, em que cerca de 12 mil de nossos índios morreram sem ter consciência de porque morriam, morreram apenas porque sabiam brigar. Eles não tinham a menor idéia do que fosse reforma e contra-reforma. Na mesma luta morreram apenas alguns poucos franceses e portugueses. Mais tarde, os franceses também desempenharam, na história do Brasil, o papel de subversivos, ajudando a botar na cabeça do nosso Tiradentes as idéias de liberdade que levaram os portugueses a esquartejá-lo Depois veio a Missão Francesa de 1817, que trouxe para cá uma arquitetura muito feia, implantada no lugar do nosso belo barroco. (DOERJ, 05/07/1985, p.02)

O dia doze de setembro daquele mesmo ano trouxe na página quatro a chamada “Mitterrand visitará no Rio Casa França-Brasil”. A chamada, ocupando metade da página e trazendo foto da Casa, um local “onde o passado, o presente e as perspectivas das relações culturais, científicas e históricas entre o Brasil e a França estarão vivas através de uma visão antropológica, agilizada pelas mais modernas técnicas de audiovisual e informática”, noticia que no dia dezesseis de outubro o presidente Frances, François Mitterrand, visitará o local.

A chamada descreve a Casa França-Brasil como “uma aspiração do Vice-Governador Darcy Ribeiro”, e informa que a inauguração está prevista para 1986. Descreve ainda que a Casa França-Brasil possibilitará diversas nuances das culturas dos dois países e isso será mostrado desde a arquitetura neoclássica do prédio, passando pelo museu que aborda a visão francesa do Brasil do século XVI, até vitrines que conterão peças indígenas e pinturas e mobiliários franceses que se modificaram a partir da influência brasileira. A Casa contará ainda com vídeos que mostrarão a relação Brasil-França nos campos da arte, medicina, comércio, tecnologia, entre outros, além de uma biblioteca e do setor de informática, onde se pode consultar sobre as relações culturais entre os dois países. Destaca-se, no entanto, o discurso de Darcy Ribeiro por ocasião das visitas de François Miterrand e Jack Lang, Presidente e Ministro da Cultura da França,    respectivamente, à Casa França-Brasil. A chamada foi publicada no dia dezessete de outubro de 1985, com o título “Casa França-Brasil será recuperada em um ano”. No discurso, Darcy demonstra a afinidade política com o socialismo e indica que a ausência de relações coloniais entre Brasil e França possibilitou a parceria entre os dois países: Felizmente agora, sob o mando do socialista Miterrand, podemos já receber os franceses e conviver com eles sem maiores receios. Tanto mais porque, hoje, temos sobre os demais povos latinos a superioridade, pobre é verdade, de sermos a maior massa de neolatinos neste mundo. Mas não se impaciente, Senhor Ministro; qualquer dia, prometo eu, nós seremos uma nova Roma ou, melhor, uma nova França. Um centro novo de criatividade cultural da latinidade, de uma latinidade vestida de carnes índias e negras, de uma latinidade mestiça, que há de florescer como uma civilização alegre e bela. Sobre estas bases, teremos um convívio ainda mais gratificante nos próximos quinhentos anos, o que será devidamente comemorado neste Museu França-Brasil. (DOERJ, 17/10/1985, p.04)

Ainda de acordo com o material arquivado no acervo Darcy Ribeiro, o empreendimento tem como objetivo “visualizar as relações culturais seculares entre a França e o Brasil.” Dentre essas relações, caracteriza-se como um dos objetivos do Museu “reviver a memória do que a presença francesa contribuiu para a constituição da nação brasileira, de nossa cultura, de nossa “arte de viver””. Um dos documentos do acervo Darcy Ribeiro registra que a concretização da ideia do Museu passava por dois pontos essenciais: a restauração do prédio e a formação de grupos de trabalho para sua concepção cultural.

A pedido de Darcy, chega ao Brasil Pierre Catel, museólogo francês, “para assessorar e orientar a restauração do edifício de Grandjean de Montigny a fim de que ele seja compatível com o projeto museológico que abrigará.” No projeto de Catel, o Museu dedica-se “ao registro e à celebração do patrimônio cultural franco-brasileiro abrirá novas perspectivas à cooperação entre os dois países.”:

Para os brasileiros, o museu complementará a memória de formação ideológica de sua nação desde as visões teológicas do século XVI até o estruturalismo, passando pela influência em luzes do positivismo, do cientismo, da consciência, da latinidade ou do impacto das vanguardas. A França permanece para eles como portadora de uma herança humanista, contribuindo para instaurar elos de natureza nova nas relações norte-sul. Esse museu não deverá ser de forma nenhuma um memorial, mas terá por vocação servir de ponte entre os dois países Constituíam-se também como pilares do projeto de Catel os seguintes itens:    Celebrar a múltipla e rica convivência do pensamento e da arte de franceses e brasileiros, durante a nossa história de colônia, império e república; revelar, seja como exposição de acervo ou mostras eventuais, seja como Centro de Referência, as matrizes culturais que a França trouxe-nos o processo civilizatório desencadeado pela Revolução Mercantil europeia; montagem de um museu que mostre o Brasil visto pelo olho francês, que celebre a longa convivência entre o pensamento e a arte dos franceses e brasileiros. (PASTA DR. GBI.) Visando demonstrar “o olhar francês sobre o Brasil” e “as influências sobre a formação da nação brasileira”, o projeto cultural do museu abordava cinco momentos privilegiados nas relações que os dois países mantém desde o século XVI:

a) a França Antártica: o imaginário francês sonha com os paraísos lendários situados nesse Novo Mundo que acabou de ser “inventado”. Rabelais fala de “navios das Ilhas das Pérolas dos Canibais carregados de lingotes de ouro, de ceda pura e pedras preciosas e é sob sua pena que pela primeira vez a palavra exótico é consagrada. b) a França equinocial. Em 1611, Ragilli e La Ravardiere se instalam perto da Foz do Amazonas e fundam a cidade de São Luiz do Maranhão. c) a influência das luzes, o movimento da Inconfidência mineira d) As missões científicas e artísticas e) As sementes de modernização. Darcy entende que as matrizes culturais 63 são a origem do povo brasileiro. Em sua teoria, as matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo novo (Ribeiro 1970 apud Ribeiro, 1995, p. 19). Sua interpretação (RIBEIRO, 1995, p.30) é a de que o brasileiro foi construído com os tijolos dessas matrizes culturais e que “sobre essa massa de neobrasileiros feitos pela transfiguração de suas matrizes é que pesaria a tarefa de fazer Brasil. (p. 130)”. A separação do povo brasileiro de suas matrizes culturais é, na interpretação de Darcy, um dos itens que colabora para que o povo brasileiro se “exerça culturalmente como uma marginalia, fora da civilização letrada em que está imersa”. (p.179) Nesse sentido, ao executar a política cultural do PDT para o Rio de Janeiro, Darcy e sua equipe retornam às matrizes culturais que formaram o povo brasileiro e a influência cultural francesa sobre o povo brasileiro é contemplada na execução da Casa França-Brasil, cujo projeto é parte da política cultural elaborada por Darcy Ribeiro para   Embora não cite a França como uma matriz cultural direta (indígena, negra e portuguesa), em O Povo Brasileiro (1995) Darcy discorre sobre a extensa influência cultural francesa no Brasil, afirma que os franceses também praticaram o cunhadismo no Brasil e recorre a Capistrano de Abreu para afirmar que “por muito tempo não se soube se o Brasil seria português ou francês, tal a força de sua presença e o poder de sua influência junto aos índios.” (1995, p. 85). Darcy aponta os Tamoio no Rio de Janeiro, os Potiguara na Paraíba e os Caeté em Pernambuco como exemplo de alguns mamelucos gerados pelos franceses.

    o centro da cidade do Rio de Janeiro. Darcy desejava restaurar prédios históricos e transformá-los em estabelecimentos permanentes criados para conservar, estudar, valorizar pelos mais diversos modos, e, sobretudo, expor ao público, coleções de interesse artístico, histórico e técnico das matrizes culturais brasileiras (francesa, portuguesa, indígena, africana). Pierre Catel confirma a preocupação de Darcy em transformar o centro da cidade do Rio de Janeiro em um polo cultural de interesse da população:

Na época, início dos anos 1980, quando começamos a Casa França- Brasil, eu estive no lugar, e encontrei um espaço bastante abandonado, casas destruídas ou mais conservadas, e a Bolsa de Comércio, que fora um Palácio da Justiça, se tornara um estacionamento, com os Correios ao lado. E me lembro da frase de Darcy Ribeiro, porque eu lhe disse: “Você sabe, Darcy, penso que a França não quer pagar por esse projeto. Ela não está muito interessada”. Ele disse: “Mas para mim dá no mesmo, que o projeto saia ou não saia. O que é importante é conscientizar os cariocas de que se pode salvar o Centro da cidade, e que é preciso redinamizá-lo. Estamos, portanto, Pierre, usando a Casa França-Brasil para fazer o carioca redescobrir o interesse neste centro histórico do Rio de Janeiro”. (CATEL, apud Museu de Artes e Ofícios, 2005, p. 327)

A preocupação de Darcy em revigorar o interesse da população carioca pode ser percebida também em ações políticas do PDT noticiadas pelo Diário Oficial. A reportagem do Diário Oficial do dia três de julho de 1986, “Patrimônio preserva a arquitetura do centro da cidade”, noticia a intenção do PDT em transformar o centro da cidade em pólo cultural. A notícia informa que foram tombados no centro da cidade espaços como cortiços, casas, igrejas, vilas e pinturas e publica declaração de Saturnino Braga, então prefeito do município do Rio de Janeiro, sobre o centro, local “por onde se iniciou a cidade” e de “extrema significação para o Rio”. Em seu depoimento, Saturnino Braga demonstra a preocupação governamental em “dar meios para que esta área retome suas características históricas.”. Na opinião do então prefeito, à relevância econômica e diurna do centro da cidade, era preciso retomar um protagonismo cultural e noturno, “como ocorria no início, na metade do século”. Em quatro de fevereiro de 1986, o Diário Oficial divulga a reportagem “Rioarte lança Guia Histórico do Centro”, que noticia a publicação de guia histórico do centro da cidade do Rio de Janeiro, com informações desde a fundação da cidade, no século XVI até os dias então atuais. O texto da reportagem mostra que o guia reporta momentos históricos das influências portuguesas e francesas no Rio de Janeiro:    No Século XVI, a descoberta, a fundação e a economia. No Século XVII, a exploração do pau Brasil nas redondezas e os primeiros canaviais. No Século XVIII começa o ciclo do ouro, que escoava pelo Rio e a Cidade é elevada à condição de capital da colônia. No Século XIX, acontece a vinda da Coroa portuguesa para o Rio, tem a missão francesa, a Independência do Brasil e o Segundo Império. No Século XX destacam-se as reformas de Pereira Passos, a belle époque o art nouveau, os anos 30, o modernismo e o desenvolvimentismo. (DOERJ, 04/02/1986)

Em dezenove de novembro do mesmo ano, o Diário Oficial publica a reportagem “Maquete do Centro da Cidade: O Rio ao alcance da mão”, que divulga iniciativa dos arquitetos Fernando Cosmelli e Antônio José Pereira de Oliveira em construir, com patrocínio da Rioarte, uma maquete de 4,2 metros por 3,2 metros do centro da cidade do Rio de Janeiro. De acordo com a notícia, a maquete, que define os prédios históricos do centro pelos seus formatos e arquitetura, possibilita que “pela primeira vez, tanto o público leigo, como o especializado (arquitetos, planejadores urbanos, técnicos, construtores, etc.) poderão ter uma ideia global da Cidade para poder atuar sobre ela”. Outro exemplo de iniciativa política que contempla, ao mesmo tempo, a recuperação do centro da cidade como um pólo cultural do Rio de Janeiro e a presença das matrizes culturais brasileiras destacadas na teoria social de Darcy como partícipes da política cultural do PDT foi o convenio firmado com o governo federal para a restauração do Paço Imperial 64 , localizado na Praça XV. O edifício, construído no século XVIII, mais precisamente no ano de 1743, é um dos símbolos da influência portuguesa no Rio de Janeiro, visto que serviu como residência dos governadores da Capitania do Rio de Janeiro e, posteriormente, dos Vice-Reis do Brasil. Com a chegada da corte portuguesa de D. João VI ao Rio de Janeiro, o Paço sediou os governos do Reinado e do Império. O edifício sediou também episódios marcantes da história brasileira, como o Dia do Fico, em nove de janeiro de 1822, em que D. Pedro I anuncia sua decisão de não retornar a Portugal e a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel, em treze de maio de 1888. A restauração do prédio, feita pelo IPHAN, órgão do Ministério da Educação e Cultura, no período do governo Brizola, entre os anos de 1982 e 1985, misturou elementos contemporâneos e originais do prédio. A obra teve por objetivo “reabilitar o passado e as marcas deixadas pelos diferentes fases históricas vivenciadas por esse monumento”, bem como “recapturar os elementos arquitetônicos e buscar o significado de cada fase  64 Ver em http://www.marcillio.com/rio/encepmpa.html#res e http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=15504&retorno=paginaIphan , acessado em 03/03/2014    histórica e sua importância cultural. O Paço foi transformado em Centro Cultural oferecendo à população exposições de arte, teatro, eventos acadêmicos, artísticos, além da Biblioteca Paulo Santos, com obras variadas, onde se destacam as que versam sobre a arquitetura luso-brasileira.

A preocupação do PDT em recuperar o interesse da população pelo centro da cidade do Rio de Janeiro faz parte integrante da política cultural de Darcy, que, ao conceber a necessidade da formação cultural de um Povo-Novo , enfatiza a importância do processo cultural-educativo para o povo, à medida que entende ser responsável pela situação de exclusão popular “a redução de seus horizontes intelectuais a uma compreensão grosseira da realidade que, da resignação com a ordem vigente como uma ordem sagrada.” (RIBEIRO, 1983, p. 75). Darcy coloca em prática uma política cultural e educacional do PDT, à luz de sua teoria social, onde a emancipação cultural e intelectual da classe popular possibilitaria uma ativa participação nas transformações sociais e na vida política do país. Leonel Kaz e Ricardo Cravo Albin parecem confirmar essa temática:

Era uma política cultural que tinha como ponto central de destino o povo. A popularização da cultura. Evidentemente a cultura, sendo um elemento não popularizável na sua... quer dizer, um povo semi- analfabeto, ele queria fazer com que o povo, analfabeto ou semi- analfabeto, pudesse ter acesso àqueles bens que só a classe média detinha. (ALBIN, Ricardo, entrevista em 23/11/2013)

O Darcy sempre teve um pouco uma ideia que contraditoriamente eram um pouco as ideias do Delfim Netto, num certo sentido. Que é um homem muito inteligente, mas que serviu aos governos militares e sempre Delfim Netto dizia “Ah, quanto mais ampliar o bolo,mais a gente vai poder reparti-lo”. Não é verdade. Quanto mais amplia o bolo, mais concentra nas partes privilegiadas. A pirâmide do Brasil não cessa de aumentar a base e de diminuir o topo concentrando os recursos lá em cima. O Darcy tinha uma ideia assim. “Quanto mais as pessoas fossem letradas, escolarizadas, etc. Culturalmente participantes, mais elas participariam do processo político, modificariam e tal”. Bom... a gente vê que nem sempre isso é uma verdade e o Brasil só andou pra trás no que diz respeito à educação pública de qualidade. O Darcy realmente achava isso sobre educação. “Ah, se nós tivermos mais educação nós teremos muito mais Aleijadinhos.”, era uma frase que ele falava. Só que Aleijadinho é um fenômeno que nem se sabe se é tão verdadeiro ou não. (KAZ, Leonel, entrevistam em 06/12/2013) As relações entre política e cultura são estreitas na teoria social de Darcy, que classifica a ambas enquanto elementos de coesão capazes de construir uma unidade popular. Ao    apontar fatores que “permitem a vastas populações de diferentes etnias [...] se verem a si próprias como entidades singulares”, Darcy enfatiza como primordiais: “primeiro, o proveniente da dominação política; segundo, a uniformidade cultural oriunda de seu núcleo metropolitano; terceiro, uma auto-identificação mais ou menos exclusiva.” (RIBEIRO, 1983, p.56).

De acordo com a concepção de Darcy (1983, p.138), o aspecto cultural de uma sociedade revela suas experiências prévias e suas condições estruturais. Darcy entende, então, questões como estratificação de classes, heterogeneidade de desenvolvimento social e dependência, como variantes da questão cultural. Para esse autor, “as culturas são sempre entidades complexas, diferenciadas e dinamizadas por intensos processos de traumatização”.

Darcy credita a estas questões de estratificação social a diferenciação entre cultura erudita e popular, dividindo o que pertence aos letrados e o que pertence à população. A cultura popular, nessas condições, estaria então, operando “debaixo de condições tão adversas que não fornecem ao trabalhador ou ao artesão oportunidades de afirmar a sua individualidade” (RIBEIRO, 1983, p.139)

A questão entre erudito e popular, se encontra então presente na teoria social de Darcy, que busca em sua atuação como homem forte da cultura no governo Brizola, evitar o sectarismo. O gráfico estabelecido nesse trabalho, que aponta uma divisão quase que igualitária entre erudito e popular, no entanto com a maior presença da cultura popular em espaços eruditos do que o contrário reflete bem as opiniões de Cravo Albin e Leonel Kaz sobre a temática, onde ambos apontam a política cultural desenvolvida como tendendo ao popular, mas descartando o sectarismo na diferenciação entre ambas:

Certamente popular. Não que ele não gostasse de cultura erudita, era uma pessoa de grande cultura e conhecedor, naturalmente daquilo que o envolvia como ser humano, em termos do mundo, né? Ele era um intelectual, acima de qualquer coisa era um intelectual, um pensador. Mas a preferência dele era distribuir com o povo, ele pensava basicamente no povo. Portanto eu insisto na alegria, na euforia dele vendo o Museu nas ruas, com o Museu do Carnaval nas ruas. (ALBIN, Ricardo, entrevista em 23/11/2013).    O Darcy se apropriou bem do termo popular, mas eu não acho que é popular. Ou você tem uma coisa de qualidade ou não tem. A arte popular para mim é tão relevante quanto a arte mais sofisticada. Para mim eu boto Malevich ou Paul Cret junto com um boneco do Nino ou algum outro elemento de arte popular. Ambas são representativas, eu não vejo isso, que é uma luta da minha vida inteira. Você guetifica, é uma coisa meio nazi-fascista, você guetifica aquele negócio. Não! O que está unindo essa gente toda é o sonho, e o que está unindo essa gente toda é a própria história. Se você ler o Gilberto Freyre, você vai ver a história do Brasil, dos curumins sendo catequizados para catequizar os pais, entende? O curumim modifica o canto gregoriano, aquela chatura toda e bota uma alegria muito grande. O próprio Gilberto Freyre fala dos santos descendo os altares para dançar com o povo nas ruas, a partir desse amálgama dos africanos com os índios, com os brancos europeus, quer dizer essa salada toda, essa amálgama todo, eu acho muito relevante. Esse tema que a esquerda se apropriou no Brasil, da busca da identidade nacional da cultura brasileira, se esquece que quem cunhou isso foi o senhor Emílio Médici, no Plano Nacional de Desenvolvimento, nos anos 70. Então esse negócio de identidade eu tenho pavor. E dentro da identidade, essa separação entre erudito e popular, não! Eu acho que você pode fazer, no campo das chamadas belas artes, das classificadas artes eruditas, você pode fazer dentro de grande qualidade e tal sorte, para que as pessoas possam então ir ao Teatro Municipal e vê-las, participar delas. Da mesma forma que você nas manifestações mais comezinhas feitas pelo povo, você também pode dar a elas instrumentos para que elas se ampliem na sua qualidade e na sua capacidade. E tornar mais conhecidos essas áreas. Então o que eu acho que tem que se produzir mais no país é uma interpenetração de coisas e não uma guetificação de coisas. Eu acho que se procurou fazer... dar continuidade ao que já vinha sendo feito, procurou-se um parâmetro de qualidade também, que eu acho importante, e procurou-se atender também, talvez mais as manifestações populares. Isso eu acho que sim, mas não essa separação do erudito e popular, eu acho que educação tem que ser um programa de qualidade, cultura também é uma coisa de qualidade. (KAZ, Leonel, 06/12/2013)   

5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Darcy Ribeiro inspira-se em raízes da cultura brasileira e em experiências desenvolvidas por personagens que ele admirava para implantar a política cultural para o Rio de Janeiro. Um dos primeiros trabalhos que fez ainda como estudante na Escola Livre de Sociologia Política em São Paulo foi ler autores como Sílvio Romero, Capistrano de Abreu e Oliveira Vianna, entre outros, ocasião em começa a se interessar pelos problemas brasileiros de forma sistemática. No início dos anos 1960, quando assumiu a pasta da Educação e Cultura no governo João Goulart, teve oportunidade de conhecer experiências culturais as mais diversas, como as desenvolvidas por Paulo Freire em Recife e as desenvolvidas pelos Centros Popular de Cultura. Assim sendo, quando assume a Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, pode-se notar que não só trabalha para recuperar experiências consideradas por ele exitosas mas interrompidas, e também abre espaços para novas manifestações culturais. Os dados apresentados neste trabalho mostram que, ao longo do primeiro governo Brizola no Rio de Janeiro, a política cultural desenvolvida concedeu espaço igualitário às culturas erudita (44,1%) e popular (42,7%). No entanto, a invasão da cultura popular aos espaços eruditos – que ocorreu em um percentual maior que o dobro da presença da cultura erudita em espaços populares – 19,6% contra 8,1% – caracterizou o programa cultural do PDT. Essa ideologia de valorização nacional e fim da alienação cultural e do subdesenvolvimento, presentes na teoria social de Darcy e no programa político do PDT, segue uma concepção de valorização da cultura popular que já emergira em ocasiões anteriores, por exemplo na década de 1960, com a criação, no Rio de Janeiro, por parte da União Nacional dos Estudantes, do Centro Popular de Cultura, em 1961. Na década de 1970, essa premissa também pode ser vista, por exemplo, através da presença, na programação da TV Globo, de dramaturgos ligados à esquerda e ao Partido Comunista Brasileiro, como Ferreira Goulart, , Oduvaldo Vianna Filho, entre outros, cujas obras artísticas enfatizam a preocupação em proporcionar uma programação que levasse ao público, uma programação popular, que abordasse as questões da realidade brasileira.

O resgate de iniciativas anteriores pode ser visto em outros fazimentos políticos do PDT abordados no presente trabalho, que encontram inspiração em figuras que influenciaram a gênese do pensamento social de Darcy Ribeiro: O empreendimento educacional dos CIEPs teve por base a experiência de Anísio Teixeira – a quem Darcy considerava um    mestre – com a Escola-Parque na Bahia na década de 1950, e a experiência de implantação do sistema público de Brasília, em 1960, do qual ele participou quando trabalhava com Anísio Teixeira no INEP; a inspiração em Mário de Andrade traduziu-se na expansão da política de tombamento e na experiência das bibliotecas volantes que circulavam pelo Rio de Janeiro; o aproveitamento de iniciativas culturais implementadas por Grisolli no governo Faria Lima, as publicações, no Diário Oficial e nas edições da Revista do Brasil, de reportagens resgatando a importância de figuras como Roquette Pinto, Paulo Freire, entre outros; o convite para Augusto Boal e Maria Yedda Linhares, a quem Darcy considerava membros de uma intelectualidade voltada para a ação que trabalhariam em prol das massas, e para Oscar Niemeyer, parceiro de empreitadas de sucesso anteriores, como a Universidade de Brasília, integrarem a equipe de governo, são questões que mostram que a política cultural idealizada para o período estudado alinhou-se na gênese do pensamento social brasileiro que norteia a obra do próprio Darcy Ribeiro.

Ainda sobre o interesse nas questões sociais brasileiras, na década de 1960, Darcy empreende pesquisas no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), para compreender questões referentes ao Brasil, tais como o estudo de comunidades brasileiras e suas culturas; os aspectos do processo de industrialização e urbanização pelo qual passara o país e as conexões desse processo com a questão educacional brasileira. Posteriormente, ao desenvolver sua própria teoria social, Darcy critica o pensamento social brasileiro por não se preocupar com a libertação dos povos oprimidos, por não contar a história da Senzala, somente a da Casa-Grande, que, em sua concepção, é, isoladamente, insuficiente para interpretar o Brasil, país concebido pelo próprio Darcy como um Povo-Novo , que necessita formar sua própria cultura. A associação entre a política cultural do PDT e a concepção de Povo-Novo se aprofunda a partir da associação de que o novo surge em oposição ao velho e, de acordo com Darcy, o povo brasileiro é velho porque “se viabiliza como um proletário externo [...] um implante ultramarino da expansão europeia que não existe para si mesmo”. A existência do povo se dava para “gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial de bens para o mercado mundial, através do desgaste da população que recruta no país ou importa.” (RIBEIRO, 1995, p. 20). Mas é, também, um povo novo, "porque é um novo modelo de estruturação societária, com uma forma singular de organização socioeconomica, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada    ao mercado mundial". e continua: "novo pela inacreditável alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado que encoraja e comove a todos os brasileiros". E mais: "novo porque surge como uma etnia nacional diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos". Novo porque, segundo Darcy, "se vê a si mesmo como uma gente nova, novo gênero diferente de quantos existiam" e porque o “desejo de transformação renovadora constitui, talvez, a característica mais remarcável dos povos novos” (RIBEIRO, 1995, p. 248).

Esse desejo de transformação do Povo-Novo, explica Darcy (1995, p. 370), emerge numa sociedade em que se encontra submetido a uma dominação cultural cuja configuração histórico-social encontra-se marcada “pelo cruzamento de gente de matrizes raciais díspares e pela integração de seus patrimônios culturais sob a regência do dominador que, a longo termo, imporia a preponderância de suas características genéticas e de sua cultura”. Darcy critica nesse sentido a classe dirigente brasileira, ao afirmar que “todas as suas forças transformativas [por parte do Povo-Novo], porém, foram contidas pelas classes dominantes dentro de limites que não ameaçavam sua hegemonia.” (Ibidem p.259).

Em sua teoria social, Darcy não apenas apontou as mazelas da formação do povo brasileiro, mas apontou o caminho a ser seguido:

O que faltou, sempre, foi espaço para movimentos sociais capazes de promover sua reversão. Faltou sempre, e falta ainda, clamorosamente, uma clara compreensão da história vivida, como necessária nas circunstâncias em que ocorreu, e um claro projeto alternativo de ordenação social, lucidamente formulado, que seja apoiado e adotado como seu pelas grandes maiorias. (RIBEIRO, 1995, p. 26)

Esse projeto de ordenação social e a compreensão da história vivida apenas poderia se estabelecer:

mediante um esforço persistentemente conduzido contra todas as formas de compulsão e alienação, as sociedades nascentes podem auto-afirmar-se como uma nova entidade étnica. Esta amadurece à medida que sua cultura se liberta da carga de pré-noções e preconceitos destinados a resigná-la com seu destino de núcleo ancilar de uma macroetnia em expansão; e à medida que toda a população se incorpora ao mesmo núcleo de compreensões culturais, dando integração à sociedade nacional e homogeneidade e autenticidade à cultura. (RIBEIRO, 1983, p. 132)   

Essa concepção de valorização do popular ganha ainda mais força a partir do processo de reabertura democrática e das eleições diretas de 1982. A mudança das regras no jogo eleitoral fez com que representar os interesses populares se tornasse uma estratégia atraente a partir da possibilidade de ser recompensado com votos diretos, que são essenciais no objetivo primordial de qualquer político, que é a tomada ou manutenção do poder. Essa corrida pelos votos é destacada por diversos autores da ciência política, entre eles Joseph Schumpeter:

O primeiro e principal objetivo de cada partido político é sobressair- se em relação aos outros para chegar ao poder ou se manter nele. Como a conquista da fatia de terra ou da colina, a decisão sobre os temas políticos e, do ponto de vista do político, não o fim, mas apenas o material da atividade parlamentar. Como os políticos disparam palavras em lugar de balas e como essas palavras são inevitavelmente dadas pelos temas em debate, isso pode não ser tão claro quanto no caso militar. Mas a vitória sobre o oponente é, não obstante, a essência de ambos os jogos. (SCHUMPETER, Joseph, p. 348, 1961) Assim, com o conteúdo programático e ideológico de seu partido voltado para o povo, Brizola, Darcy e sua equipe direcionam as estratégias do campo político para a classe popular de base, que, historicamente, até aquele momento, estava marginalizada do processo de decisão do jogo político. Com a mudança de regras, a participação no jogo político era agora um direito popular e o poder só se concretizaria a partir da vontade geral. Sobre o campo político Bourdieu (1999, p. 184) assinala que “não pode consagrar-se a virtudes tão exclusivas”. Nesse sentido, o PDT assimila bem as novas regras do jogo e, ao propor ações que contemplam um segmento numeroso dos eleitores, a população de base, consolida a união entre este segmento populacional e suas ideologias partidárias, como se pode ver pelo tipo de comunicação utilizado durante o período eleitoral, com alusões ao jogo do bicho e jargões populares, à educação integral, gratuita e de qualidade, a política de segurança pública que buscou estabelecer direitos humanos até então violados nas favelas cariocas. A política cultural seguiu o mesmo caminho. Além da iniciativa de organizar e proporcionar visitações da classe popular a centros culturais tradicionalmente elitistas, tais como o Teatro Municipal, a democratização da cultura se fez presente a partir da implementação de programas culturais móveis, como o Palco sobre Rodas e a Biblioteca Volante, além de Bibliotecas e Lonas instaladas em diversos locais do Estado e da política cultural e de tombamento desenvolvida para o interior do Estado, que buscaram garantir que as ações    culturais desenvolvidas por Darcy e pelo PDT alcançasse também o povo que vivia à margem dos centros culturais cariocas tradicionais.

Neste trabalho procurou-se encontrar os elos de ligação entre a teoria social de Darcy Ribeiro e a política cultural implementada pelo PDT ao longo do período estudado. Em síntese, destacaram-se os seguintes elementos: a concessão de espaço a movimentos sociais, a importância em proporcionar a compreensão da história vivida e suas circunstâncias, a conquista do apoio das grandes maiorias, ao combate à alienação cultural.   

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