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Sensacionalismo sem sangue – uma analise do telejornalismo ao vivo1

Ana Carolina Rocha Pessoa Temer – Universidade Federal de Uberlândia/ Centro Universitário do Triângulo2

Resumo

Análise exploratória do programa Brasil Urgente, exibido em rede nacional de segunda a sábado pela Rede Bandeirantes de Televisão. O trabalho dá uma ênfase aos limites que envolvem o jornalismo sensacionalista para a televisão, por meio dos fatos noticiados e como eles são tratados; a ordem interna da narrativa, a redundância, a fragmentação do conteúdo e o tempo total da narrativa, além das questões referentes às transmissões ao vivo e aos recursos retóricos ou técnicos que procuram tornar esse telejornalismo mais atraente para o público, mas que acabam contribuindo para que a informação perca a qualidade.

Palavras-chave: televisão, jornalismo, Rede Bandeirantes, Brasil Urgente

Introdução Desde as primeiras aglomerações humanas, cada comunidade estabeleceu forma e processos que tornasse possível saber o que está acontecendo, ter acesso às informações que possibilitassem sobrevivência física e social(STEPHENS, 1993). Isto porquê viver em sociedade é estar em contato com pessoas, notícias, “causos”, acontecimentos, dramas públicos ou pessoais, e toda uma série de conhecimentos que leva o indivíduo a se sentir parte da comunidade. Na sociedade contemporânea, o acesso à informação também é uma necessidade, mas muda a qualidade e a quantidade de informação a que se tem acesso. No mundo atual a maior parte dos indivíduos buscam nos meios de comunicação de massa, sobretudo nos veículos da imprensa, informações que incluem desde questões básicas do cotidiano, até intrincadas análises sociais e políticas.

1 Trabalho apresentado ao NP 07 – Núcleo de Pesquisa Comunicação Audiovisual do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom Núcleo de Pesquisa Comunicação Audiovisual 2 Doutora e mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de , Especialista em Sociologia pela Universidade Federal de Uberlândia e Bacharel em jornalismo pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Profissionalmente é professora do Centro Universitário do Triângulo, jornalista da Universidade Federal de Uberlândia e autora do livro Notícias & Serviços nos telejornais da Rede Globo publicado pela editora Sotese, Rio de Janeiro, 2002. E.mail: [email protected].

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Ocorre que, “...a imprensa fez do ato de coletar informação mais do que apenas uma função especializada – estabeleceu-o enquanto negócio.” (STEPHENS, 1993, p. 223). Para atender tanto a demanda social quando a questão do lucro, a impressa moderna oferece um conjunto intricado de veículos nos quais estão presentes informações diversas, qualificadas a partir de uma lógica nem sempre perceptível para atender as necessidades – reais ou construídas – de diferentes grupos sociais. A televisão e o telejornalismo são parte integrante - para muitos brasileiros, parte fundamental - desse conjunto. Ainda que trajetória da televisão de sinal aberto tenha mostrado uma forte vocação do veículo para o entretenimento, telejornais são, ao mesmo tempo, uma mercadoria passível de lucro e um produto que atribuí prestígio ao meio. No Brasil, a qualidade do jornalismo exibido pela televisão tem sido constante objeto de críticas. Esse conteúdo torna-se ainda mais questionável quando o surgimento de novas redes, na década de 1980, alavanca uma nova etapa de popularização da televisão, abrindo espaço para um “novo” modelo de telejornal, no qual o destaque é o cotidiano violento das grandes cidades, retratada por meio do uso de uma linguagem excessivamente coloquial, incluindo gírias e termos chulos. O pioneiro desse modelo foi o Aqui Agora, veiculado no SBT, mas a sua fórmula foi copiada pela Rede CNT, através do 190 - Urgente; pela Rede Record de Televisão, com Cidade Alerta; e de Televisão, com Rota do Crime e outros mais. O conjunto destes telejornais despertou o interesse dos pesquisadores e críticos da televisão, mas o sucesso do modelo junto ao público e a velocidade com a qual ele foi copiado e adaptado por diferentes emissoras vêem multiplicando as possibilidades de pesquisa. Este trabalho é parte de uma pesquisa mais ampla sobre a questão dos gêneros na televisão, e busca levantar critérios que permitam uma classificação mais completa do material jornalístico e programas mistos (jornalismo/entretenimento). O objeto deste trabalho é o programa Brasil Urgente, exibido diariamente as 17:30hs pela Rede Bandeirantes. O objetivo é fazer uma analise exploratória sobre os limites que envolvem o telejornalismo transmitido ao vivo e, particularmente, esta proposta de jornalismo para televisão, analisando os fatos noticiados; a retórica (redundância e fragmentação), as características gerais das transmissões ao vivo. Para o desenvolvimento do trabalho foi 2 realizada uma observação sistemática do programa durante os meses de março e abril, sendo que a semana entre os dias 15 e 20 de março de 2004o programa foi gravado e decupado para uma observação detalhada.

A Rede Bandeirantes de Televisão No dia 13 de maio de 1967, a TV Bandeirantes de São Paulo, canal 13 inicia suas transmissões com um show de bossa nova. A emissora é parte de um projeto de expansão da área das telecomunicações das empresas de João Jorge Saad, já proprietário da Rádio Bandeirantes. No mesmo ano a Bandeirante coloca no ar sua primeira novela, Os Miseráveis. Em 1969, um incêndio destrói os estúdios e boa parte de patrimônio da empresa, comprometendo a sua programação. Para sobreviver, a emissora passa a transmitir enlatados e filmes.3 Em meados da década de 70, Walter Clarck, depois de sair da Rede Globo, assume a direção da programação do canal e, em setembro de 1977, a empresa inaugura a TV Guanabara, canal 7, no Rio de Janeiro, concretizando o projeto Rede Bandeirantes de Televisão. A programação passa a ser mais diversificada, e o departamento de é reativado. Em 1979, Carlos Augusto de Oliveira (Guga), vai para a Bandeirantes, que inicia uma nova fase. O marco da mudança é a novela Cara a Cara, de Vicente Sesso. No jornalismo, a emissora tinha colocou no ar programas como Titulares da Notícia e o Jornal de Vanguarda (que nasceu na Rede Excelsior). Em 1980, quando 24 emissoras já integravam a Rede Bandeirantes, o departamento de telejornalismo é reestruturado. Logo em seguida entra no ar o Jornal Bandeirantes, (depois Jornal da Band) apresentado por Joelmir Betting. Em 1981, a Rede Bandeirantes é a primeira emissora a utilizar satélite em suas transmissões. Este é também o ano em que a Rede Bandeirante tem uma novela com melhor desempenho na audiência, Os Imigrantes. Além das novelas, a grade de programação da Rede Bandeirantes era constituída por programas populares, infantis recheados com desenhos animados e de séries importadas.

3 Site oficial da Rede bandeirantes www.band.com.br

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Não era o suficiente para enfrentar os novos concorrentes. Com a chegada das novas Rede a Rede Bandeirantes inicialmente perde espaço para a Record, mas em seguida é sobrepujada pelo Sistema Brasileiro de Televisão, o SBT. Nessa altura a situação da Rede Bandeirantes é instável e, em julho de 1983, durante greve nacional de trabalhadores, tem seus transmissores lacrados. A partir de 1984, com a estréia do Luciano do Valle e do Show do Esporte, o esporte se torna o carro-chefe da emissora. No jornalismo, o destaque é o programa Canal Livre, que aproveita a abertura política para fazer entrevistas com políticos e outras personalidades. No final dos anos 80, a posição da Rede Bandeirantes em São Paulo oscilava entre o terceiro e quarto lugar, em disputa direta com a Rede Manchete4. Em 1990, as finanças da Rede Bandeirantes são abaladas pelo Plano Brasil, e a empresa acaba com os programas de humor e com a linha de shows, dando ainda mais espaço para a programação esportiva. A Rede Bandeirantes assume o slogan de "canal do esporte" e passa a adotar o apelido "Band". Em meados da década de 1990, também fazem parte da programação da Rede Bandeirantes programas de entrevistas como Flash e Silvia Poppovic, Cara a Cara e De Frente Com Gabi, ambos com Marília Gabriela, e os games shows Supermarket e Melhor de Todos. Em 1996 a Rede Bandeirantes retoma sua produção de novelas e em 1997, estréia na emissora Axé Brasil, primeiro programa da TV brasileira criado, produzido e dirigido à raça negra. No jornalismo a novidade do final da década é a chegada de Macus Hummel que passa a fazer o Jornal da Band. A Rede também investe no público jovem, com o Programa do Hulk e depois H+, apresentados por Luciano Hulk. Com a passagem de Hulk para Globo, Otaviano Costa assume o programa, tornando-se O+, Super O+ e depois Super O Positivo. Também entra no ar o Programa Olga Bongiovanni. Em 1999 morre João Jorge Saad, fundador da Rede Bandeirantes de Rádio e Televisão S.A. Em 19 de março de 2001, o Grupo Bandeirantes de Rádio e Televisão coloca no ar a BandNews - primeiro canal brasileiro a transmitir notícias 24 horas por dia, totalmente digital e equipado com tecnologia de ponta, com uma proposta de noticiário

4 Site oficial da Rede bandeirantes www.band.com.br 4 permanente. Segundo dados de Caparelli & Lima (2004), atualmente a Rede Bandeirantes é a segunda maior rede entre os principais grupos de mídia no Brasil.

O programa Brasil Urgente e o seu apresentador No ar desde o dia 03/12/2001, o Brasil Urgente ocupa o horário das 17h30, de segunda a sexta, e das 18h00, no sábado, sendo transmitido para todo o Brasil. Inicialmente apresentado por Roberto Cabrini, é comandado atualmente por José Luiz Datena. O programa assume como linha editorial estar “muito próximo do cidadão e seus problemas”, principalmente em assuntos como segurança, saúde, trabalho e comportamento. O modelo do programa, assim como o seu apresentador atual, foi importado da Record, embora o modelo original venha do SBT. O programa é produzido e apresentado na Central de Jornalismo da Band, o News Center5 e oficialmente conta com a participação diária e ao vivo do Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Porto Alegre e Brasília. Além do apresentador José Luiz Datena e das equipes de reportagem, o telejornal conta com três helicópteros posicionados em pontos diferentes da grande São Paulo6. A proposta do programa sempre foi levantar os índices de audiência da Rede Bandeirantes, mas trata-se de uma dura disputa com o SBT, com a Record (Cidade Alerta) e com a Rede TV! (Canal Aberto). Ainda assim, o programa tem piques de audiência, como na cobertura das enchentes em São Paulo. Em função dos resultados do Brasil Urgente, a Rede Bandeirantes reforçou produções como a Hora da Verdade, com Márcia Goldsmith, que antecede ao programa. Também o Jornal da Band, apresentado às 19h20, que historicamente perdia de , tem elevado sua participação junto ao publico. O resultado é positivo também no faturamento, já que a emissora tem conseguido atrair novos anunciantes.7

Considerações Teóricas

5 Uma redação/estúdio de 700 metros quadrados, que integra as diferentes redações da Rede Bandeirantes, podendo acomodar até 100 profissionais . 6 Segundo afirmações do próprio apresentador do programa, durante suas “conversas” com repórteres e pilotos do helicóptero. Essa informação também esta disponível no Portal do Leão Lobo, jornalista especializado em informações sobre personalidades e programas de televisão, no endereço http://www.portaldoleaolobo.com.br/, em 02/04/2003. 7 A audiência medida pelo Ibope cresceu em torno de 30% e a receita, na casa dos 10%, segundos dados da Gazeta Mercantil, em 26/08/2003. 5

A televisão, e em particular o telejornalismo, é um elemento por meio dos qual o indivíduo elabora a sua realidade, oferecendo informações que vão ajudá-lo a construir a imagem do mundo em que vive e dados necessários para o planejamento da sua vida. A domesticidade da televisão e a sua presença habitual na vida diária, combinada com o aparente realismo das imagens – que se torna ainda mais forte quando cenas são mostradas ao vivo – faz com que as imagens da telinha se integrem à realidade do receptor e sejam aceitas como algo vivido, como algo real. Mas os telejornais transformam a realidade ao elaborar o material jornalístico: seja por meio de recursos técnicos ou ideológicos. O conteúdo do telejornalismo é o resultado de um tipo de trabalho fragmentado, em que o ritmo de produção limita tanto quantitativamente quanto qualitativamente o seu conteúdo. A televisão herdou do cinema técnicas de câmera e corte, porém, a imagem televisiva é marcada por uma maior fragmentação e pelo sincretismo8 e, sobretudo, pela ausência de tempo para se construir um tratamento estético mais elaborado. É por meio da imagem que a televisão se apresenta como “testemunha ocular da historia”9 mas a trama televisiva é construída pela articulação do discurso verbal e imagético de forma didática e redundante. Além disso, a televisão “convida para a dramatização: põe em cena, em imagens, um acontecimento e exagera-lhe a importância, a gravidade, e o caráter dramático, trágico” (BOURDIEU: 1997, p.25). Essa característica e reforçada pelo desvendamento da história por etapas: como em um livro ou filme policial, os enigmas são desvendados passa a passo. Na televisão cada fato noticiado contém uma narrativa em potencial e o discurso é construído de forma que o telespectador possa perder partes sem deixar de entender a trama central (ou o fato transformado em trama). No discurso do telejornalismo destaca-se a função fática, secundada pelas funções expressiva, conativa e referencial (JACKOBSON, 1995): o discurso da TV se estabelece como um contato permanente entre o emissor e o receptor/telespectador. Soma-se a isso a recepção quase sempre doméstica: “ O receptor percebe a mensagem de tevê como algo ´natural`...”.(SODRE, 1977, p.59-61), induzindo a convicção de que tem alguém

8 Sincretismo pode ser definido como a tendência para homogeneizar a diversidade dos conteúdos da comunicação de massa (principalmente a informação e a ficção), a contaminação entre o real e o imaginário. O real toma a aparência de ficção e a ficção toma a aparência do real, confundindo-se na realidade do receptor. 9 Slogan do Repórter Esso. 6 conversando “comigo” (receptor/ telespectador). O rompimento da sensação de unilateralidade da comunicação gera uma noção inconsciente de diálogo. A emoção e essencial para o telejornal, pois garante que o publico fique “ligado”, não migre para outro canal ou outra atividade. Nos telejornais ditos “sérios”, os conteúdos emocionais são contrabalançados por apresentadores mais formais, pautas diversificadas e técnicas de filmagem e texto que repassam uma idéia de neutralidade. Já os telejornais voltados para uma proposta mais popular buscam obter mais audiência com matérias jornalísticas com maior apelo dramático, em que predomina a moral simples do bem contra o mal, transformando acontecimentos sem importância em manchetes espalhafatosas, usando excessos emocionais e linguagem exacerbada e excessivamente coloquial, eventualmente com a utilização de gírias, termos de baixo calão e insinuações apoiadas em ambivalências lingüísticas. A soma destas características compõe o sensacionalismo, ou o jornalismo sensacionalista. No jornalismo, o sensacionalismo aparece como característica nos primeiros jornais na França e nos Estados Unidos, mas a imprensa de escândalo originou-se nos Estados Unidos, no jornal World de Pulitzer. No Brasil, o sensacionalismo jornalístico está incorporado aos padrões de vários jornais brasileiros desde a década 1930. Na televisão brasileira o sensacionalismo aparece em programas como O Homem do Sapato Branco, apresentado nos anos 1970 por Jacinto Figueira Junior, embora ouras apresentações pontuais também possam também ser apontados como sensacionalistas10. Nos anos 1990, o sensacionalista renasce, desta vez incorporando o formato do telejornal.

Reflexões preliminares A principal característica do telejornal Brasil Urgente, constantemente proclamada pelo apresentador, é o fato de ser um telejornal ao vivo. E, de fato, Brasil Urgente trabalha com muitas cenas transmitidas ao vivo e (em principio) inéditas, construindo-se a partir dessa imagens. No entanto, mais do que um telejornal ao vivo, o Brasil Urgente tira partido de ser um telejornal apresentado ao vivo, com o apresentador que reforça constantemente

10 Seria o caso de situações envolvendo Dercy Gonçalves, Flávio Cavalcanti e Chacrinha, para citar exemplos. 7 essa informação. Esta estratégia transmite a idéia de que o que é mostrado na tela é inquestionável, é mais do que a verdade, pois é a verdade em tempo real11. O apresentador atua a partir de um diálogo simulado com o receptor/telespectador, reforçado por diálogos com os repórteres e pilotos (dos helicópteros), que são chamados pelos nomes e convidados a expor idéias e emoções; e eventuais observações aparentemente triviais e espontâneas (liga esse ar aí que a gente esta cozinhando; hoje estou gripado, etc.). Enfim, um conjunto de comportamentos que reforçam a idéia de conversação A simulação de diálogo é reforçada pelo uso da função fática da linguagem, com o apresentador se dirigindo de forma direta e apelativa ao público, convidando-o a se indignar e a interagir com o programa. Outro reforço vem do gestual do apresentador, que usa as mãos para demonstrar seu envolvimento emocional, ao mesmo tempo em que em caminha pelo cenário, falando constantemente, perguntando o que será apresentado a seguir, pedindo detalhes aos repórteres e pilotos, prometendo voltar “daqui a pouco” com outras informações, sempre apontando e gesticulando. Como um visitante indignado, em muitos momentos o apresentador parte em direção da câmera, como se pretendesse sair dela e “invadir” o espaço do receptor, exigindo dele uma reação semelhante a sua. Todo material é elaborado na forma de um drama, e o apresentador utiliza uma entonação própria de suspense e um ar de corre-corre. A dramatização transforma em destaque “...tudo que pode ser comovente, sensacional, excepcional.” (MORIN, 1967, p. 104) e dá ao fato características romanescas. Trata-se de uma estratégia para atrair o o telespectador que, além do prazer de ver uma cena dramática, coloca-se (de forma consciente ou não) na posição de observador privilegiado, que conhece detalhes secretos. A mudança de tom ocorre quando o apresentador usa a terceira pessoa, referindo-se geralmente alguém presente nas imagens. Nesse caso, o apresentador assume uma tonalidade de cúmplice com o receptor, referindo-se as pessoas citadas de forma respeitosa ou cerimoniosa; “esse senhor” ou “essa senhora”, ou outros termos equivalentes. Ainda que os termos sejam adequados, a quebra do padrão acaba por transmitir uma sensação de artificialidade, como se o locutor estivesse se esforçando para ser educado com alguém que, na verdade, não merece a essa deferência.

11 Embora não se refira especificamente ao Brasil Urgente, e nem se trate de uma citação, os termos do parágrafo foram retirados de Boudrillard (1997, p. 60). 8

As seqüências visuais utilizam recursos consagrados no cinema, o plano geral em oposição aos detalhes, a aproximação mais lenta da câmera e, sobretudo, a construção do suspense. Como no cinema, há muito suspense, mas ao contrário do cinema ficcional, o telespectador não tem a noção de que este suspense é construído. No Brasil Urgente o suspense se vende como real: cada notícia/história e uma obra inacabada, um processo em andamento, a possibilidade de algo que esta por vir (uma nova informação, uma outra declaração, uma segunda testemunha, etc.). As matérias pré-gravadas são poucas e, geralmente, de fora de São Paulo. Cabe ressaltar, porém, que elas mantêm o mesmo estilo das matérias ao vivo, o que pode levar um telespectador desatento à não perceber a diferença. Convenientemente também, a verborragia constante do apresentador não se preocupa em relembrar que as matérias exibidas são gravadas. Esse foi o caso, para citar um exemplo, da exibição de tiroteios ocorridos no Rio de Janeiro no mês de abril (2004). O horário do programa, que vai ao ar no final da tarde inicio da noite, permite que tanto cenas diurnas quanto noturnas se confundam com matérias ao vivo. Para a contínua confusão entre o que é ao vivo e o que é gravado, a fragmentação e fundamental. De fato, em muitos casos o Brasil Urgente se organiza como uma novela () com reportagens que se assemelham a capítulos seqüenciais nos quais a informação é apresentada (desvendada) em pequenas partes cumulativas, com personagens convidados para explicar cenas e situações, exemplificar casos, dar depoimentos, opiniões e outros artifícios semelhantes. Isso torna possível a introdução de “ganchos”, o fim anunciado do suspense que, de uma forma geral, não é desvendado e apenas gera um novo suspense. Os jornalistas claramente tem a intenção de emocionar o receptor, e para isso transformam a reportagem em um show televisivo, afastando-se do jornalismo impresso (ou mesmo do jornalismo) e se aproximando dos conteúdos ficcionais. A informação por si mesma já não importa mais, ou já não importa tanto. O que vale é a representação do fato, a atuação dos jornalistas/atores, o desempenho dos entrevistados personagens, pois

“ ... assim como na ficção o bom ator salva o mau personagem e o mau ator enterra o bom personagem, na matéria telejornalística um personagem bem 9

colocado, que por qualquer condição conte e informação de forma interessante, curiosa ou divertida, torna-se elemento de valorização da informação....” (TEMER, 2002, p. 231)

Cada assunto é dividido em numerosos segmentos e até os últimos momentos do último bloco, o apresentador José Luiz Datena esta sempre instando os jornalistas da casa a buscar algo mais, dizendo – mesmo que nas entrelinhas – que tudo pode acontecer, que uma reviravolta no caso pode estar à espreita após os comerciais. A moral simples do bem contra o mal, de mocinhos contra bandidos, esta embutida nesse pretenso diálogo, embora de forma disfarçada: apresentadores e repórteres alternam duvidas (Será que nada pode ser feito? A situação financeira da prefeitura – ou da policia; ou do país – é tão grave que não permite que sejam buscadas soluções?) com indignação convicta de que o problema é grave e que “alguém” esta sendo incompetente ou desonesto. Todas as matérias do programa possuem uma linguagem de fácil compreensão, e são narradas de forma que não exige reflexões, interpretações e nem associações de fatos, além de possuir um alto grau de personalização. Vítimas, parentes e vizinhos estão sempre dando depoimentos, um recurso eficiente para a participação afetiva do público de baixo nível sociocultural pois: “A medida em que se desce na escala sociocultural da imprensa, aumenta o grau de personalização dos conflitos”.(SODRE, 1996, p.135). Uma vez que muito do que é mostrado no Brasil Urgente é o resultado de entrevistas ou depoimentos de pessoas que participam das histórias ou são testemunhas de um fato e “contam” uma história, ou melhor, a sua versão do fato. Muitas matérias jornalísticas apresentadas no Brasil Urgente são, portanto, uma interpretação do real narrado sob o ponto de vista do enunciador ou dos enunciadores. A opção de trabalhar com histórias simplificadas e não com fatos complexos torna Brasil Urgente incapaz de explorar os temas mais profundos. Normalmente esses temas são totalmente deixados de lado, mas eventualmente são expostos de forma tão simplória que se transformam quase em uma chamada para os jornais posteriores da emissora. A predominância das matérias de São Paulo é evidente, assim como a exploração das transmissões aéreas. Cenas de acidentes são transmitidas ao vivo no local e acompanhada até que as vítimas sejam despachadas para o hospital, não sendo raros os boletins posteriores com notícias dos feridos (principalmente nos acidentes de maior porte). Mas 10 também entram ao vivo manifestações de todos os tipos, cenas de persiguição policial, o trânsito em geral, e tudo que ocorra no horário que chegue ao conhecimento da redação e possua conteúdo dramático (principalmente) ou informativo. Como outros telejornais, o Brasil Urgente explora o conflito12. Perseguições policiais, informações sobre acidentes, lutas, disputas e litígios, além de outros conflitos que se enquadram nos padrões historicamente explorados no jornalismo. Mas o Brasil Urgente explora, sobretudo, o conflito entre os interesses da população e as ações dos governos. Entre as exigências por ações imediatas e a indignação pela ineficiência do setor publico, o programa e o seu apresentador se prendem a situações pontuais, evitando analises mais amplas.

Considerações específicas De uma forma geral, a estratégia do Brasil Urgente é oferecer informações que destacam fatos incomuns mas de fácil cobertura,13 e que despertem/prendam a atenção do telespectador para o desenrolar da situação. Um bom exemplo disso é a cobertura das fortes chuvas que caíram no verão/outono de 2004. Assunto de reportagem na maior parte dos telejornais, no Brasil Urgente à cobertura das chuvas/enchetes se destaca pela exploração intensiva das cenas aéreas e movimentação constante dos helicópteros, usados para mostrar “do alto” os dramas daqueles que, “lá em baixo”, passavam por momentos difíceis. Cenas de pessoas nos telhados, grupos isolados em ônibus ou pontos mais altos, carros cercados pelas águas e/ou impedidos de se movimentar se alternavam com grande quantidade lixo rodopiando em direção aos bueiros (apontado como exemplo da ausência/ineficiência do poder público). Para compensar o distanciamento, repórteres eram despachados (geralmente de moto) para os locais atingidos para entrevistar ao vivo os moradores. Nesses casos o destaque é (nesta ordem) para as perdas materiais – móveis empilhados, pátios invadidos pela água, etc - e para a angústia/desespero dos moradores. Tudo mostrado ao vivo e narrado pelo apresentador que, no estúdio, relembra indignado que as conseqüências nefastas do clima são ampliadas pela incompetência administrativa.

12 KIENZ12, em uma análise de títulos e manchetes de primeira página de dez diários franceses, constatou que 80% dos títulos estavam caracterizados pelos conflitos e utilizavam os termos guerra, ataque, disputa, combate, luta, escalada, litígio, vitória, derrota, protesto, contestação, revolução, golpe, greve, agressão, defesa, acusação etc. 13 Para exemplificar, o jornalismo investigativo não esteve presente no período analisado. 11

Acidentes de trânsito também têm cobertura semelhante, embora ofereçam menor variedade de cenas dramáticas. Nesse caso, merece destaque a ausência de cenas de sangue: feridos e mortos não são focalizados, ou pelo menos não são focalizados de perto, e embora a correria de macas em ambulâncias não seja poupada, é comum o apresentador solicitar que a cena seja mostrada apenas à distância porque “há muito sangue”. Chuvas e acidentes, mesmo quando menos graves, abrem espaço para matérias sobre o trânsito, em especial sobre engarrafamentos e outros transtornos. Nesses casos a cobertura é sempre feita com o uso do “helicóptero”, muitas vezes sem um repórter presente. Em conseqüência, o locutor assume o comando da “reportagem à distância”, solicitando cenas, ângulos, destaques e enquadramentos e fazendo os comentários adequados a situação. Assim como os engarrafamentos, outros conteúdos menos dramáticos, como tiroteios e intervenções policiais quando previamente gravadas, exigem maior veemência do apresentador no estúdio. Chamam mais atenção, no entanto, os casos em que a reportagem chega “antes” da policia, geralmente atendendo a solicitação de moradores ou comerciantes locais, para denunciar ameaças de gangues e pressões de grupos ligados ao trafico (ou a outro tipo de contravenção). Nestes casos multiplicam-se as expressões indignadas do apresentador, enquanto o repórter no local tenta entrevistar passantes e curiosos, repetindo a situação instável e deixando claro que vai ficar “por ali” esperando as “autoridades competentes” chegarem. Assassinatos ou crimes de maior repercussão também ganham destaque no Brasil Urgente, mas chamam a atenção pela cobertura diferenciada. Nesses casos dois ou mais repórteres literalmente fazem plantão em diferentes pontos estratégicos (em frente à delegacia, a casa dos acusados ou vítimas, hospitais ou delegacias), não perdendo a oportunidade de seguirem parentes, delegados ou pessoas envolvidas com o microfone empunhado. Enquanto as novidades não vêem – e elas não são tantas quanto o apresentador tenta fazer crer – o programa investe em interpretações extra-jornalistícas, estimulando polêmicas fictícias e repetindo rótulos (que incluem termos chulos ou gírias), adjetivos e definições de conotação negativa. O óbvio é constantemente reafirmado: a vítima está 12 nervosa, a mãe do acusado está angustiada, o desabrigado esta triste, ninguém sabe o que vai acontecer no futuro e mais uma centena de lugares comuns. Seguindo a denominação de Casasus (1979, p. 42-43), o Brasil Urgente trabalha a redundância também a partir de “séries informacionais paralelas”, ou seja uma linguagem visual iônica, ou a imagem-imagem, que é a representação transmitida (em geral) ao vivo do fato; a sonora-linguística, ou a locução/narração do apresentador, que recria verbalmente tudo que é mostrado; a visual lingüística, ou a legenda (na forma de tarja), que muitas vezes repete frases do apresentador; e a visual para-linguística, que equivale a efeitos de câmara (zoons, parnorâmicas, cortes estúdio/externa etc.) e efeitos sonoros (barulho do helicóptero, sons de balas e sirenes, etc). A soma dessas linguagens permite que o telespectador entenda rapidamente qual reportagem está sendo exibida. Uma manobra necessária, uma vez que o programa tem uma audiência volátil o limite de compreensão de um tema é cerca de dez segundos (RUGE, 1983). Para assegurar que o telespectador infiel não se perca, a cada novo bloco do telejornal , tanto informações verbais como cenas são repetidas são novamente mostradas e comentadas, ainda que na voz do apresentador e dos repórteres o tom se mantenha o tom de que tudo é novo, de que uma grande novidade esta surgindo naquele segundo. A picotagem dos assuntos e a verborragia incessante do apresentador torna impossível verificar se as promessas são cumpridas. Além disso, como o telejornal é feito ao vivo, à medida que novos fatos são apresentados, novos conteúdos tomam lugar daqueles que foram anteriormente citados.

Conclusão A observação do programa Brasil Urgente permite afirmar que o programa, apesar dos limites técnicos evidentes14, apresenta uma proposta algo diferenciada e telejornalismo sensacionalista, que foge a exibição de cenas mais pesadas, como as que envolvem grande quantidade de sangue, ou cenas grotescas de anomalias humanas ou familiares. Trata-se de um sensacionalismo que se constrói predominantemente através das linguagens verbal – marcada pelo exagero, pelo tom emocional e indignado; e visual –

14 O maior deles,é a cobertura quase que restrita a grande São Paulo. 13 marcada pela fragmentação, pelas imagens ao vivo, que tanto mostram quanto insinuam, e pela construção artificial do suspense. Não se trata, é evidente, de uma evolução do modelo anterior, mas antes da busca de uma alternativa que tenta se esquivar das criticas mais duras sem propor mudanças significativas. O programa não acrescenta nada de realmente novo ao modelo e aparentemente apenas tenta se aproveitar da idéia de que o jornalismo, ao investir na denúncia e em uma abordagem indignada, assume uma função educativa, motivando as massas a buscar soluções para os seus problemas. No entanto, ao misturar-se com o discurso indignado do apresentador, a informação perde a sua essência e transforma-se tão somente em veículo para a crítica direcionada, perdendo a sua função essencial de informar. O conteúdo deixa de ser informativo para ser “formativo”. A retórica indignada apenas serve de atenuante à própria violência indiretamente revelada pelo conteúdo do programa, a maior delas, talvez, a incapacidade do poder público em atender as necessidades dos mais carentes. O Estado e os seus representantes são o alvo principal das críticas do programa, embora desse conjunto escapem alguns profissionais15. De uma forma geral, aliás, o Brasil Urgente elogia os indivíduos (o policial, o detetive, etc.) mas critica o Estado. Uma duplicidade da qual escapam os empresários, sempre apresentados como vítimas; um aspecto conveniente para o departamento comercial. Mais grave ainda: os problemas apresentados pelo Brasil Urgente são pontuais, não há espaço para análises mais aprofundadas ou para explorar os temas mais complexos. As soluções citadas e as sugestões feitas não vão além do senso comum e dos palpites vazios. Dessa forma, o programa não retrata a realidade, mas antes representa um exercício sutil de construção de pretensas realidades, gerando a sensação de que tudo é permanentemente desorganizado. A audiência do programa é segurada pela promessa de que a vida mostrada ao vivo é sempre menos ordinária, comum e tediosa do que a vida vivida dentro das casas dos telespectadores. No entanto, um acompanhamento diário mostra que, de várias maneiras, o programa pode ser comparado à vida diária: monótona quase sempre, ocasionalmente ridícula, surpreendente às vezes, mas sempre obra inacabada na qual o indivíduo/telespectador tem influência relativa.

15 É o caso, por exemplo, dos bombeiros, cujo desempenho é sempre elogiado. 14

Assim como repete o óbvio em suas narrativas, o Brasil Urgente, é também igualmente óbvio, um retrato distorcido e mal acabado de uma vida incompleta e insatisfatória.

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