ireito à DComunicação no Brasil 2016

Apoio

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 1 ireito à DComunicação no Brasil 2016

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 2 3 Sumário Ficha técnica Apresentação Reportagens 6 Helena Martins Iara Moura O começo do fim da comunicação Marcos Urupá pública no Brasil? Mônica Mourão

Edição 8 Iara Moura Brasil é medalhista em violação do Diagramação direito à Comunicação Hiperativa Comunicação Integrada 20 Revisão Camila Nobrega Na sintonia do golpe: o papel da mídia Iara Moura na crise política Mônica Mourão Oona Castro 32 Colaboraram Bia Barbosa Raio X da ilegalidade: políticos donos Bráulio Araújo da mídia Caio Barbosa Camila Nobrega 45 Cinco de Terra Eduardo Amorim Mídia, política e religião: uma combi- Elizângela Araújo Oona Castro nação perigosa para a democracia Raquel Dantas Yuri Leonardo 60 Apoio A internet livre sob ameaça no Brasil 76

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 4 5 plenário da Câmara aprovou a medida em 14/12/2016. Ao mesmo tempo, com um discurso de austeridade, Temer acabou com o Ministério das Comunicações inte- grando a pasta ao que viria a ser o Ministério de Ciência, Tec- nologia, Inovações e Comunicações. No âmbito do legislativo, atendendo ao poderoso Apresentação lobby das empresas de telefonia, algumas iniciativas apon- taram para uma maior flexibilização do regime público de prestação de serviço de acesso à telefonia e internet e para a Ao longo de 2016, pôde-se observar o grande impacto renúncia, por parte do Estado, de 17 bilhões em bens reversí- de a comunicação não ter alcançado, no Brasil, o patamar de veis. Após ser enviado para sanção de Temer, o projeto de Lei direito humano fundamental. Em uma conjuntura de crise 79/2016, que modifica a Lei Geral de Telecomunicações nos que atinge diversas dimensões da vida pública, os meios de termos colocados acima, foi objeto de liminar do Supremo comunicação tiveram papel central na construção da per- Tribunal Federal (STF) em fevereiro de 2017, retornando ao cepção da realidade, a partir de uma disputa de narratiavs e Senado para análise de recursos. da proposição de sentidos em um contexto no qual brasilei- Além disso, em comissões da Câmara e do Senado, ras e brasileiros estavam imersos. tramitam projetos que avançam na contramão da garantia O papel dos grupos de mídia hegemônicos no país, na da privacidade dos/as internautas e da neutralidade de rede, condução ou pelo menos na consolidação do processo que princípios basilares do Marco Civil da Internet. levou ao impedimento da presidenta Dilma Rousseff, foi de- No campo da radiodifusão, à concentração de mer- veras reconhecido e discutido. cado se soma o avanço de grupos econômicos ligados a en- Enquanto a crise política se acirrava, o Brasil se prepara- tidades religiosas. Através da posse direta de canais e/ou por va para receber os Jogos Olímpicos Rio 2016. Neste contexto, as meio de práticas questionáveis de arrendamento ou trans- violações de direitos humanos em geral e do direito à liberdade ferência das outorgas, grupos religiosos poderosos têm ocu- de expressão e manifestação, em particular, foram recorrentes. pado a radiodifusão para a conversão de fiéis e para a pro- A cerimônia de abertura, transmitida em TV aberta pagação de mensagens ideológicas condizentes com seus pela única emissora oficial dos Jogos no Brasil – a Rede Glo- interesses culturais, políticos e econômicos. bo – trouxe uma narrativa de diversidade cultural e coesão Ainda nesse âmbito, a posse de políticos em manda- de classe. Enquanto cerca de 250 mil pessoas, segundo da- tos eletivos de canais de rádio e televisão também não mos- dos da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa tra sinais de fraqueza, pelo contrário. No Congresso nacional (Ancop), foram removidas de suas casas pelas obras olímpi- essa lógica de apropriação também segue expressiva. Hoje, cas, na cerimônia, samba e bossa nova, favela e asfalto se en- 40 parlamentares são alvo de ação no Supremo Tribunal Fe- contravam em festa. Ainda hoje, o valor investido pelo Gru- deral por, a despeito do artigo 54 da Constituição Federal, po Globo para arrematar a exclusividade nas transmissões serem concessionários de serviços de radiodifusão. não foi divulgado. Neste cenário em que os meios de comunicação con- Com o fim dos Jogos, a crise política atingia seu ápi- solidam-se como atores centrais nas definições dos rumos ce. No segundo semestre, o andamento das investigações políticos do país, as políticas públicas na área tornam-se alvo da Operação Lava Jato e o anúncio do governo de instituir de disputas entre empresas, sociedade civil e o Estado no âm- uma reforma previdenciária e a promulgação da Proposta de bito Legislativo, Judiciário e Executivo. Em geral, o interesse Emenda à Constituição 55 elevou a ebulição das forças sociais público segue sendo ignorado a despeito dos interesses de lu- à máxima potência. Neste contexto de acirramento, o direito à cro e/ou de capital político de grupos econômicos que com- comunicação virou novamente instrumento de barganha do preendem a comunicação tão somente como um negócio. Executivo na busca por garantir mínima estabilidade política. As reportagens aqui reunidas foram publicadas ao É exemplo disso o fato de um dos primeiros atos do go- longo de 2016 no Observatório do direito à Comunicação e verno de Michel Temer, ainda interino, ter sido a demissão do buscam apresentar um panorama dos principais fatos que diretor-presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). marcaram o ano no campo do direito à comunicação. Espe- Consolidado o golpe, Temer editou a Medida Provisória 744, ramos que o material apresente pistas para organizar a resis- que modifica a lei que criou a EBC, extinguindo o Conselho tência aos retrocessos que se apresentam. Curador da empresa, espaço participativo criado para garan- tir o cumprimento dos princípios da comunicação pública. O Boa leitura!

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 6 7 Um dos primeiros atos do presidente interino Mi- chel Temer foi a exoneração do diretor-presidente da Em- Texto: Iara Moura Colaboraram: Oona O começo do fim presa Brasil de Comunicação (EBC). Com a demissão de Castro, Camila Nóbrega Ricardo Melo e de mais de uma centena de funcionários, (Intervozes) e Caio Barbo- e a declaração de que deverá editar Medida Provisória que sa (Cinco de Terra e Ecoar) extingue o Conselho Curador da empresa, Temer dá sinais da comunicação de intenção de retomar o caráter de propaganda estatal que veículos de comunicação pública já tiveram em ou- tros momentos da história do Brasil, como o período do Estado Novo e da Ditadura Militar. pública no Brasil? A medida foi apoiada por alguns editoriais dos principais grupos de mídia do país que, na ocasião, pro- mulgavam a desimportância dos canais públicos no mer- Governo interino de Temer intervém na Empresa Brasil cado de audiência e seu suposto aparelhamento levado a de Comunicação (EBC) e ameaça a continuidade do cabo pelos governos Lula e Dilma. A demissão do presidente Ricardo Melo foi ques- incipiente projeto de comunicação pública nacional.

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 8 9 tionada no Supremo Tribunal Federal (STF) que decidiu o governo golpista pretende tomar se ele continuar no po- pelo retorno dele ao cargo em junho de 2016 e depois no- der”, afirmou. vamente por sua saída definitiva, quando assumiu Laerte Em entrevista à Agência Brasil, o presidente empos- Rimoli. Em dezembro último, a MP 744 foi aprovada pela sado, Laerte Rimoli, defendeu-se das comissão mista que analisava a matéria. A votação do re- críticas e prometeu “devolver a empre- latório pelo plenário da Câmara dos Deputados está pre- sa para a sociedade brasileira”. Rimoli vista para 13/12/2016. Em seguida, a proposta será anali- atuou como diretor de Comunicação sada pelo Senado a partir do início de 2017. na Câmara dos Deputados durante a Dentro da empresa, o clima é de incerteza. Num gestão do presidente afastado da Casa, dos episódios mais recentes, foi anunciada a demissão de Eduardo Cunha. Ricardo Melo, porém, Leda Nagle, profissional da casa há 20 anos, apresentado- relata que a promessa de apaziguar os ra do programa de entrevistas Sem Censura. O programa ânimos na empresa não é o que está era um dos destaques na audiência da TV Brasil. acontecendo na prática. Melo denun- ciou episódios como o arrombamento da sala da superintendente da regional Futuro incerto sudeste I, Marília Baracat, e a tenta-

tiva de obstrução ao trabalho que ele “Houve um boato da exoneração do presidente que mesmo sofreu, quando coordenava feria a lei e essa exoneração foi confirmada no Diário Oficial o fechamento do programa Repór- após o Conselho Curador esclarecer esse governo de que a ter Brasil quando, mesmo exonerado, prerrogativa de demitir o presidente é deste órgão aqui. Isso continuava na função de diretor de Jornalismo. Comissões de Cultura, de Legis- foi feito numa fase em que o país está esperando que seja jul- O cancelamento da transmissão do show de Mano lação Participativa e de Direi- gado o processo de impeachment da presidenta Dilma. Esse tos Humanos da Câmara dos Ex-presidente da EBC, Ricardo Brown (dos Racionais MCs) na Virada Cultural de São Pau- ato sugere para a sociedade a intenção de aparelhamento”, Deputados debatem o mantado Melo, demitido pelo governo lo como uma tentativa de silenciar manifestações contrá- defendeu Rita Freire, presidenta do Conselho Curador, du- do diretor-presidente da EBC. Temer, denuncia o desmonte do rias ao governo Temer e a demissão do jornalista recém- Imagem: Valter Campanato/ caráter público da empresa rante a reunião extraordinária do órgão que aprovou nota -contratado, Sidney Rezende, também foram episódios Agência Brasil Imagem: Agência Câmara de pedido de esclarecimento ao presidente interino Michel repudiados pelo ex-diretor. Temer. A reunião foi interrompida Para representantes dos trabalhadores e trabalhado- quando um grupo de ativistas foi ras da EBC e movimentos sindicais, a ingerência que hoje impedido de entrar no salão. se apresenta de maneira “truculenta e ilegal”, marcou a his- Segundo Ricardo Melo, o clima tória da empresa em outros momentos e se refletiu em di- na empresa nos dias subsequen- ficuldades internas. A diretora do Sindicato dos Jornalistas tes à sua exoneração é de insegu- Profissionais do Município do , Cláudia Abreu, rança. “Eu não fui comunicado defende que a EBC não é um “projeto de governo”, mas é “re- da exoneração. Eu fiquei saben- sultado de uma cobrança da sociedade civil sobre a necessi- do que estava exonerado pelo dade de um projeto de comunicação pública”, destaca. Diário Oficial. São madrugadas A jornalista diz ser necessário ampliar o debate in- e madrugadas que a maioria dos terno e a valorização profissional dos trabalhadores con- funcionários da nossa emissora cursados e repudiou episódios de assédio moral a líderes ficam acompanhando a hora que sindicais, e a condução de trabalhadores à Polícia Federal, o diário oficial vai sair pra saber acusados de fazer piquete durante a greve de 2013. Apesar o que vai acontecer no outro dia”, das críticas, Cláudia destaca a necessidade da união dos denunciou durante solenidade gestores, trabalhadores e da sociedade civil “contra o gol- em homenagem a ele próprio re- pe e em defesa do caráter público da empresa, que é uma alizada na Câmara dos Vereado- conquista da sociedade e não de um governo”, enfatiza. res do Rio de Janeiro em 23/05/2016. Segundo relato do Enquanto fechávamos esse texto, estava em análi- jornalista, a empresa está vivendo um processo truculen- se, no Supremo Tribunal Federal, um mandado de segu- to, “de fazer inveja aos momentos ditatoriais no Brasil”. “A rança, impetrado por Ricardo Melo, denunciando a ilega- EBC vai ser simplesmente um porta-voz das medidas que

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 10 11 lidade de sua exoneração e da nomeação de Laerte Rimoli. do reggaeton também figuravam na programação. Na Corte, a relatoria da ação ficou sob a responsabilidade A emissora foi criada em 2006 e está localizada no do ministro Dias Toffoli, que determinou a notificação do limite fronteiriço do Brasil com a Colômbia e o Peru, no presidente da República interino para que ele preste es- município de Tabatinga (AM). Atualmente, segundo clarecimentos. Até o fechamento, Toffoli não havia se pro- a coordenadora Miss Lene Ferreira, a rádio alcan- nunciado sobre o caso. ça satisfatoriamente quatro municípios: Tabatinga, Após longo debate público que levou à criação da Benjamin, Atalaia do Norte e de Olivença. EBC, firmou-se a concepção de que o diretor-presidente A medição do alcance, para além dos aparatos téc- deveria ter mandato-fixo, não coincidente com a Presi- nicos, se dá de maneira muito simples: pela partici- dência da República, de quatro anos. O mandato de Melo pação ativa dos ouvintes. “As pessoas ligam ou vêm seguiria até o ano de 2020 e a violação desta determinação até a rádio pra dar e receber notícias sobre a família, é o principal argumento que levou à abertura do manda- para saber de concursos públicos, anunciar festas, do de segurança em análise. reuniões. É pela Rádio que elas são convocadas a As notícias de mudanças abruptas na EBC têm sido comparecer no Fórum. É a ligação com a cidade, recebidas com preocupação em várias regiões do país. É o com o país”, explica. caso da Amazônia, região comumente negligenciada na O sinal é uma preocupação constante da rá- programação de canais privados de comunicação do país. A dio que nasceu com a pretensão de alcançar nove Rádio Nacional Alto Solimões, caçula das emissoras da EBC, municípios (Tabatinga, Atalaia do Norte, Benjamim funciona atualmente com sete funcionários que se revezam Constant, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo nas funções de produção, jornalismo, locução, atendimento Antônio do Içá, Tocantins, Jutaí e Fonte Boa). Por aos ouvintes e questões administrativas. Em 2016, comple- meio das ondas de AM e FM, o resgate da cultura lu- ta dez anos de existência. Como parte da comemoração, os sófona-brasileira também está entre os objetivos da funcionários da emissora e os ouvintes aguardam com an- emissora. Miss Lene conta que as rádios que alcan- Ex-presidenta do Conselho Rádio Nacional Alto Solimões siedade o presente prometido: reformas técnicas para pro- çavam a maior parte da região eram colombianas ou peru- Curador da EBC, Rita Freite, atende à tríplice fronteira Bra- critica a extinção do órgão. sil-Colômbia-Peru desde 2006. piciar a chegada do sinal às áreas rurais e ribeirinhas mais anas. “As pessoas usam a rádio também do outro lado (da Imagem: Agência Câmara Foto: Agência Brasil remotas e concurso público para ampliar a equipe técnica. fronteira) para aprimorar ou aprender o português”, conta. As últimas intervenções do presidente in- Segundo relatório da ouvidoria da EBC, a questão do terino Michel Temer transmitem para a sinal é o maior motivo das reclamações que o órgão rece- pequena sucursal de Tabatinga um clima beu no ano de 2015. Até nas grandes cidades é comum a TV de insegurança quanto ao futuro. e as rádios do sistema ficarem fora do ar. “Embora as quei- Os cuidados para evitar o surto de xas sejam provenientes de vários pontos do Brasil, as zonas H1N1 que o Brasil atravessa, as indica- norte e oeste da cidade do Rio de Janeiro se destacam. O ções de como identificar os sintomas da sinal da área provém da estação retransmissora da Serra do doença e os grupos prioritários na vaci- Mendanha, cujos equipamentos não garantem boa quali- nação: esse era o destaque da manhã do dade do sinal e muitas vezes deixam a região sem sinal al- dia 23/05/2016 no noticiário Bom Dia gum durante meses”, destaca o documento. No mesmo in- Amazônia, transmitido para a região da forme, a superintendência de suporte explica que a demora Amazônia Legal e do Alto Solimões, ex- em resolver as questões técnicas se dá pela burocracia para tremo oeste do estado do Amazonas. O aquisição de equipamentos e realização dos reparos. programa entra no ar, ao vivo, de segunda Enquanto na tarde do dia 20/05, no Alto Solimões, a sábado, às 05h, pela Rádio Nacional da ouvia-se a segunda edição do Repórter Amazônia, nas ca- Amazônia e às 03h na Rádio Nacional do pitais São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro, funcionários, Alto Solimões. Entremeando a entrevista ouvintes, telespectadores, leitores e apoiadores ocupa- com um médico especialista na doença, vam as sedes da EBC em protesto contra a exoneração de ídolos da música popular brasileira e do Ricardo Melo. A nomeação, que já havia sido antecipada pop nacional animavam a manhã dos ouvintes. Diferente- na imprensa, se confirmaria com a publicação no Diário mente da erudita Rádio Mec – também do campo público e Oficial da União na manhã daquele dia. que se dedica à música clássica – ali, ídolos do tecnobrega e Para aqueles que protestavam na sexta-feira (20), a

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 12 13 troca de presidentes fere a autonomia da EBC, uma vez que lespectadora que se diz indignada com a edição do dia passa por cima da lei de criação da empresa (11.652/2007) 10/03/2016 do Repórter Brasil: “Considero grave o uso de a qual estabelece, em seu artigo 19, que o mandato de uma emissora pública, bancada com recursos públicos, quatro anos do presidente só pode ser interrompido por ser usada assim para atender os interesses político-parti- meio de dois dispositivos: a saída espontânea ou a exis- dários do governo do momento. Os apre- tência de dois votos de desconfiança feitas pelo Conselho sentadores e os dois jornalistas convida- Curador da empresa. dos para comentar o pedido de prisão não No ato organizado pela Frente em Defesa da Co- disfarçaram suas preferências políticas e municação Pública em Brasília, a presidenta do Conselho fizeram de tudo para tentar caracterizar Curador, Rita Freire, ressaltou: “estamos caminhando jun- as investigações recentes como injustas, to com os trabalhadores e a sociedade civil que está re- indevidas”, diz um trecho da reclamação. presentada nesse conselho e está levantando sua voz hoje Em coluna publicada no portal da para que o direito à comunicação pública não seja macu- EBC, a ouvidora Joseti Marques endossa a lado, violado, agredido por interesses circunstanciais de crítica da leitora, mas chama atenção para mudança na vida do país”. o fato de que também são recorrentes re- A EBC foi criada em 2007 após a realização do I Fó- clamações que apontam os programas jor- rum Nacional de TVs Públicas. Integrou as veteranas Rá- nalísticos da EBC como iguais aos das emis- dio Nacional do Rio de Janeiro, Rádio Nacional Amazônia, soras comerciais em forma e conteúdo. São Rádio Mec e outras emissoras geridas pela extinta Radio- comuns também comentários que criticam brás e pela TVE do Rio de Janeiro numa só rede nacional o fato de as reportagens não defenderem o de comunicação pública. As emissoras estaduais educa- governo. A ouvidora explica que a confusão tivas também foram incorporadas ao Sistema Público de entre público, estatal e governamental ain- Comunicação. Concomitantemente à criação da empre- da é um desafio a ser superado. Principal noticiário da EBC, Re- sa, entraram no ar também a TV Brasil e a Agência Brasil. Para Priscilla Kerche, repórter da TV Brasil de São pórter Brasil busca espaço num A londrina BBC, a mais antiga O portal da EBC estreou em julho de 2012. Paulo, a tentativa da empresa em copiar os modelos de cenário monopolizado pelas emissora pública do mundo, é gestão dos meios privados, hierarquizados e pouco de- emissoras comerciais. modelo para outras experiên- mocráticos, faz confundir o papel do meio público e cria Imagem: Divulgação cias na Europa e demais países. Diversidade em xeque problemas para o exercício da atividade jornalística. “A in- Imagem: divulgação fluência governista pesou em cargos decisórios assumidos Não é a primeira vez que a EBC sofre com interferên- por comissionados que, mais uma vez, se espelham na mí- cias que comprometem o caráter público, a dia tradicional. Muito por conta de uma cultura jornalística atividade jornalística e a relação de confian- do país também. O desafio é produzir conteúdo qualifica- ça com o público. Ao longo da existência da do e diferenciado numa estrutura que reproduz a lógica de empresa, questões de ingerência foram cons- empresas comerciais, mas que não tem estrutura pra fazer tantemente denunciadas pelos empregados igual e nem deveria ter isso como objetivo”, defende. e até pelos espectadores/as, ouvintes e leito- Para o jornalista Albert Steinberger, que passou pe- res/as através da ouvidoria. las redações da TV Câmara, TV Globo, BBC Brasil (sucur- Durante o final de 2015 e o início de sal da TV pública britânica para o Brasil), ZDF (TV pública 2016, com o acirramento da conjuntura de alemã – Canal 2) e Deutsche Welle (canal alemão estatal/ crise política nacional, a ouvidoria recebeu público voltado para o exterior), as interferências ao tra- denúncias de espectadores questionando balho dos jornalistas estão presentes nos diversos tipos de uma suposta falta de equilíbrio nos conteú- meios em diferentes níveis: dos dos programas jornalísticos das rádios, “Seja uma linha editorial neoliberal, ou uma limita- da TV e nas coberturas da Agência Brasil. O ção para lidar com assuntos da família real britânica. Não relatório de março de 2016, por exemplo, dá para idealizar e acreditar que exista um meio com li- período de manifestações a favor e contra berdade total para o jornalista. Todos os veículos têm suas o impeachment e de divulgação de grampos telefônicos limitações de acordo com a cultura da empresa, fonte de pelo juiz Sérgio Moro, destaca a reclamação de uma te- financiamento, chefia e outros fatores”, defende.

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 14 15 O jornalista destaca, porém, que a existência de uma militares. A pesquisa mostra ainda que, nem mesmo com variedade de vozes na grande imprensa, como acontece na o fim da ditadura, notou-se significativa mudança de per- Inglaterra e na Alemanha, onde é possível, por exemplo, in- cepção do ponto de vista do controle de conteúdo. vestigar livremente as contas do governo ou as acusações “A linguagem e os métodos utilizados para vigiar os de irregularidade em determinada empresa e “ver um fato meios de comunicação permaneceram similares mesmo sob diferentes olhares”, é positiva e necessária para a socie- após o fim da ditadura. O que evidencia o caráter do que dade. Buscando garantir essa diversidade, a Constituição historicamente entendemos por ‘transição suave’ e que, Federal estabelece em seu artigo 222 a complementaridade mesmo no contexto democrático, a vigília e o controle per- dos sistemas público, estatal e privado na exploração dos maneceram”, relata Janaine Aires, pesquisadora da UFRJ. serviços de rádio e TV em território nacional.

Democracia fora do ar

Episódios anteriores de interferência dos governos e de grupos empresariais nas atividades das emissoras do campo público deixaram marcas profundas na história do Brasil. Em 30 de março de 1964, na madrugada que mar- cou a instalação da ditadura civil-militar, a Rádio Nacio- nal do Rio de Janeiro virou meio de transmissão de grupos que se opunham ao golpe que estava em vias de acontecer reunidos na Rede Pela Legalidade. No primeiro dia do golpe, o diretor da Rádio Nacio- nal foi informado pelo telefone da chegada de dois tan- Manifestação na sede da EBC, em Brasília, após a intervenção ques de guerra que apontavam os canhões para os trans- do governo Temer. Imagem: missores da Rádio Nacional, acompanhados por cerca de Mídia Ninja 100 soldados armados. Assim que se instalou, o presidente Castelo Branco demitiu 39 funcioná- rios da Rádio Nacional sem qualquer processo. A emissora, criada em 1936 Documentos coletados nos arquivos do SNI sobre espionagem e estatizada pelo Estado Novo em de veículos do campo público por governos militares 1940, tinha 800 empregados e produ- zia 20 horas de programação diária, liderando a audiência no país. O uso dos meios públicos para a propaganda nazis- Documentos reunidos na pes- ta durante a Segunda Guerra é um episódio que mostra a quisa “O Serviço Nacional de Infor- importância de se proteger o interesse público e garantir mações e a comunicação” (Peic/ a diversidade de ideias nos meios de comunicação públi- UFRJ) revelam que a espionagem, a cos para evitar o aparelhamento e a difusão de ideias dis- censura e a demissão e perseguição sonantes com os ideários democráticos e com os direitos de funcionários eram expedientes humanos em geral. Embora a independência financeira utilizados pelos governos militares seja constantemente alvo de pressão dos meios privados, como forma de conter as críticas ao os canais públicos, tanto na Alemanha quanto na Inglater- regime feitas pelos movimentos de- ra, se financiam por meio de uma taxa anual que os cida- mocráticos. A partir da madrugada dãos dos dois países pagam. Atualmente a taxa anual de do dia 30 de março para o dia 1º de TV está em 215,76 euros por residência na Alemanha (por abril de 1964, os veículos públicos, ano). No Reino Unido, o valor anual é de 145,50 libras. privados, comunitários, educativos e alternativos eram al- Na Alemanha e em outros países da Europa – como vos a serem neutralizados pelo Serviço de Inteligência dos Portugal e Espanha – onde o modelo de radiodifusão se

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 16 17 desenvolveu primeiro como monopólio público e o uso A programação voltada para este público é reconhe- privado só veio posteriormente, a comunicação pública cida em âmbito internacional antes mesmo da TV Brasil en- percorreu um caminho próprio consolidando-se e servin- trar no ar. Os casos de sucesso “Meu amigãoZão” e “TV Piá”, do de modelo para os demais sistemas no mundo. Lá, a no qual crianças de diferentes ZDF lidera a audiência com 12,6%, seguida pela também regiões do Brasil aparecem com- pública ARD com 11,5%. A rede privada RTL aparece en- partilhando saberes, brincadeiras costada em terceiro lugar com 10%. e suas culturas, demonstram que Do mesmo modo, a BBC inglesa é líder de audiência a TV Brasil busca se diferenciar com uma programação variada que mescla entretenimento das TVs comerciais nos desenhos, e informação. Por conta disso, as emissoras também são alvo séries e revistas eletrônicas volta- das mídias privadas. No Bild Zeitung na Alemanha e no The das para os pequenos. Sun são recorrentes os ataques. Aqui, durante a recente troca “Enquanto as emissoras de presidentes da EBC, os jornais O Globo e O Estado de São comerciais visualizam a criança Paulo publicaram editoriais questionando a rentabilidade e e o adolescente principalmente a relevância da EBC e acusando a empresa de ser instrumen- como consumidores, a TV Brasil to de “propaganda lulopetista”. Ambos os jornais, de grandes olha as crianças sob a ótica da grupos de mídia, acusam a EBC de representar um gasto es- cidadania. Uma implicação ime- tatal desnecessário e desproporcional. diata dessa diferença é a inexis- A EBC custa à União cerca de R$ 750 milhões anuais. tência de publicidade nas 7 horas Os gastos com publicidade do Governo Federal, emprega- de programação infanto-juvenil dos na Rede Globo, por outro lado, somam 6,2 bilhões de exibidas cotidianamente”, expli- Programa TV Piá promove a di- reais nos 12 anos de governo petista, ou seja, uma média ca Inês Vitorino, pesquisadora da Universidade Federal versidade cultural com brinca- de 516 milhões ao ano, sem contar a verba empregada em do Ceará, coordenadora do Grupo de Pesquisa da Relação deiras e costumes de diferentes suas afiliadas. Infância e Mídia (Grim). O grupo fez um monitoramento regiões. Imagem: Divulgação Qualidade da programação que analisou a programação infanto-juvenil da emissora infantil rendeu prêmios à TV levando em consideração critérios de diversidade regio- Brasil e reconhecimento inter- Pluralidade em xeque nal, originalidade, incentivo à criatividade, a ausência de nacional. Imagem: Divulgação conteúdos danosos ao desenvolvimento do público infan- “Nasce hoje uma nova televisão til, entre outros. para que os brasileiros tenham mais A transmissão de campeonatos de futebol femi- liberdade de escolha. Isso é plurali- nino e das séries B, C e D do futebol masculino também dade. Isso é democracia. A TV Brasil são destaques na programação que em 2016 apostou na quer ser um espelho de nosso país, transmissão de eventos culturais e shows como o Desfile espera refletir a multidão de brasilei- das Campeãs durante o carnaval do Rio de Janeiro e a Vi- ros de todas as raças, cores, credos, rada Cultural de São Paulo. regiões e condições sociais que for- Pensar a programação da emissora é uma das prer- mam o coletivo chamado Brasil”. rogativas do Conselho Curador formado por 22 membros: O trecho da vinheta exibida du- 15 representantes da sociedade civil, indicados via consul- rante a primeira transmissão da TV ta popular e aprovados pela presidência; quatro do Gover- Brasil em 2 de dezembro de 2007 foi no Federal; um da Câmara dos Deputados; um do Senado lido pela atriz Zezé Motta e resume Federal; e um representante dos trabalhadores da EBC. o intento da emissora em ter uma Os representantes do público são escolhidos por meio de programação diversa que refletisse a consulta pública. Se a intenção da Medida Provisória de cultura nacional e o interesse públi- Temer se confirmar, o órgão pode ser extinto e o acompa- co. A grade da TV Brasil foi formatada nhamento da sociedade civil quanto à diversidade, a isen- a partir de uma perspectiva generalista com programas in- ção jornalística e o respeito aos direitos humanos, dentre formativos, jornalísticos e de entretenimento, além da pro- outros princípios da comunicação pública, podem ficar gramação infantil. fora do ar por um longo tempo.

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 18 19 Brasil é medalhista A empolgação com os esportes não apaga o “legado negativo” dos Jogos Olímpicos. Além da repressão policial em violação do direito e das remoções, o cerceamento à liberdade de expressão e a concentração midiática marcaram a Rio 2016 à comunicação

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 20 21 As Olimpíadas de 2016 encerram quase dez anos durante os 15 anos que atua com comunicação comunitá- Texto: Iara Moura e em que diversas cidades do Brasil viveram as mudanças ria nas favelas do Rio de Janeiro, foram poucas as formas de Mônica Mourão causadas por um megaevento esportivo. Desde a prepara- incentivo público para a comunicação não comercial. Colaborou: Eduardo ção para os Jogos Pan-Americanos de 2007, bilhões foram A cobertura da grande mídia, que, em geral, não Amorim, Yuri Leonar- investidos em gastos feitos a partir de parcerias públi- pauta as violações de direitos co- do, Caio Barbosa, Ca- co-privadas (PPP) em diferentes áreas. A comunicação é metidas em nome dos Jogos Olím- mila Nobrega e Cinco uma delas. O International Broadcast Center (IBC), centro picos, tem relação direta com o de Terra de mídia para a transmissão dos Jogos, faz parte de uma interesse privado de transmisso- PPP que inclui também o Main Press Center (MPC) e o res e patrocinadores do evento. Hotel de Mídia. O custo total do complexo é estimado em “As Olimpíadas são um produto. R$ 1,68 bilhão, dos quais R$ 1,15 bilhão vem de recursos A Globo vendeu cotas multimilio- privados e R$ 528 milhões da prefeitura do Rio de Janeiro. nárias, então os megaeventos dei- Após os Jogos Olímpicos, o “legado” ficará sob a responsa- xam de ser uma pauta e passam a bilidade da Concessionária Rio Mais, formada pelas em- ser um produto para a empresa”, presas Odebrecht, Andrade Gutierrez e Carvalho Hosken, explicou Mário Campagnani, in- responsáveis pela construção. tegrante do comitê organizador “Saber que a prefeitura do Rio gastou todo este di- da jornada Rio 2016 – Os Jogos da nheiro para um centro de mídia que vai funcionar apenas Exclusão, que realizou atividades durante os megaeventos é ter certeza de que a prefeitura e de denúncia ao desrespeito aos o governo do estado do Rio têm suas preferências no que direitos humanos nas Olimpíadas. investir. Este é mais um exemplo para mostrar também que esta cidade está virando uma cidade apenas para turistas, Público ou privado? para ricos, para alguns”, afirmou a jornalista, comunicadora Apenas 20 famílias, de um total de 600, conseguiram Localizada em frente ao In- popular e moradora do Complexo da Maré Gizele Martins. No dossiê de candidatura para ser cidade-sede dos permanecer em suas casas na ternational Broadcast Center No contexto dos megaeventos realizados na cida- Jogos, apresentado em 2008, o valor estimado do evento Vila Autódromo após a reali- (IBC), a Vila Autódromo foi uma de do Rio de Janeiro, cerca de 250 mil pessoas sofreram era de R$ 28,8 bilhões. Com a mais recente atualização da zação dos jogos das comunidades mais afetadas remoções, segundo dados da Articulação Nacional dos pelas remoções olímpicas. Matriz de Responsabilidade, em janeiro de 2016, este va- Comitês Populares da Copa e das Olimpíadas (Ancop). É Imagem: Aline Furtado lor passou para R$ 39 bilhões nos dados oficiais, superando certo que o grande público e as comuni- em quase R$ 14 bilhões os custos da Copa do Mundo de dades afetadas com as remoções e a vio- 2014 e chegando a quase dez vezes os R$ 3,7 bilhões gastos lência policial pouco ficou sabendo das com o Pan-Americano de 2007. Na versão atual da Matriz, violações de direitos relacionadas ao Pan, houve um aumento da participação do poder público de à Copa e às Olimpíadas, até porque os di- 36%, em agosto de 2015, para 40% do montante total. reitos de transmissão das competições As altas cifras contrastam com o cenário de des- também ficaram nas mãos de poderosos truição da comunidade vizinha ao Parque Olímpico. A Vila grupos de mídia no Brasil e o acesso à in- Autódromo, onde moravam cerca de 600 famílias e hoje formação e o direito à livre manifestação resistem apenas 20, é um símbolo das prioridades de in- de pensamento foram violados durante os vestimentos feitos pelo poder público a serviço do interes- Jogos. se privado. Essa mesma lógica rege também a comunica- Segundo a mareense Gizele Martins, ção. Os serviços de telefonia e internet, que deveriam ser “se todo o dinheiro [investido no IBC] fos- um direito de todos, foram alvo de grandes investimentos se dividido entre os inúmeros meios de para garantir a transmissão dos jogos, enquanto comuni- comunicação comunitária e populares de dades ao lado das arenas seguem sem acesso à internet favelas, ocupações, bairros pobres, estarí- banda larga. Uma força-tarefa foi feita para que o Brasil amos equipados, nos organizaríamos para oferecesse, ainda na Copa das Confederações, em 2013, fazer muito melhor a nossa própria comu- uma internet com a qualidade que o país nunca conse- nicação. Estaríamos contando o histórico escravista e racis- guiu implantar. Essa possibilidade, inclusive, foi a justi- ta do nosso país, disputando as opiniões”. Ela lembra que,

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 22 23 ficativa para que as empresas que fossem oferecer esses alemão Deutsche Welle, aponta as diferenças nas trans- serviços tivessem isenções fiscais (IPI, PIS e Cofins). missões de grandes eventos esportivos quando se compa- Além disso, foram feitas modificações na legislação ra o caso do Brasil com o Reino Unido e a Alemanha, por para facilitar a instalação de antenas necessárias para a exemplo. Nesses países, as emissoras disponibilização da rede 4G. Para a Copa de 2014, a Te- públicas BBC e Channel 4, no primeiro, lebras investiu R$ 89,4 milhões na implantação de infra- e ARD e ZDF, no segundo, transmitem, estrutura, o que equivale ao investimento anual para a entre outros, Copa, Olimpíadas e Para- implantação do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL). A limpíadas. Mas alguns campeonatos na- expectativa do Plano era conectar 35 milhões de domicí- cionais, como a Bundesliga e a Premier lios à internet fixa até o ano de realização do Mundial. No League, têm suas transmissões restritas entanto, segundo dados de 2015 do Ministério das Comu- às TVs privadas. “Aqui também se ques- nicações, apenas 23,5 milhões de locais têm banda larga tiona muito se vale a pena gastar milhões fixa. Quando se olha para fora dos centros urbanos, os nú- em acordos de direitos de transmissão”, meros diminuem ainda mais. apontou Steinberger. “Um caso para mim que foi su- per interessante foi a cobertura da BBC Direitos de transmissão durante os Jogos Olímpicos de Londres, em 2012. Eles realmente abriram todos Em dezembro de 2015, o Comitê Olímpico Interna- os sinais e disponibilizaram na internet. cional (COI) anunciou que o Grupo Globo comprou os di- Ou seja, era possível assistir a qualquer reitos dos Jogos Olímpicos até 2032 para tevê aberta, por tipo de esporte que tivesse acontecen- assinatura, internet e celular, mas o valor é mantido em se- do ao vivo e de graça. Se o direito tivesse gredo. A título de comparação, sabe- que, nos Estados Uni- sido comprado por uma TV privada, obviamente o mo- Com o slogan “O canal das Durante os jogos, o Comitê dos, um acordo semelhante entre o COI e a NBCU (conglo- delo de tomada de decisão seria diferente. Seria priori- paralimpíadas”, a TV Brasil Popular Rio Copa e Olimpíadas merado de mídia daquele país) custou R$ 7,6 bilhões. transmite os jogos com cerca organizou, no Rio, a jornada zado o lucro, afinal de contas, o investimento inicial é A falta de transparência repete erros de anos passa- de 10 horas de transmições Jogos da Exclusão, denunciando muito alto”, analisa o jornalista. dos, já que a empresa brasileira também não revela os gas- diárias. Imagem: Divulgação as violações de direitos, dentre No caso brasileiro, o direito de transmissão das Pa- elas o direito a manifestação. tos para detenção dos direitos sobre a Copa do Mundo de ralimpíadas, que atrai menos público e, portanto, desper- Imagem: Caio Barbosa 2014. O que se sabe é que a Rede Globo tem como anun- ta menos interesse comercial, foi comprado pela Empresa ciantes nos Jogos: , Coca Cola, Fiat, Bra- Brasil de Comunicação (EBC). De acordo com o plano de desco, P&G e Nestlé. Segundo informações trabalho de 2016 da empresa pública, o orçamento total da revista Meio & Mensagem, cada cota de previsto para as Olimpíadas e as Paralimpíadas é de R$ 1,9 patrocínio foi vendida a R$ 255 milhões. Ou milhão de reais, sendo que R$ 450 mil foram usados para a seja, a Globo deverá ter um faturamento de transmissão das Paralimpíadas na televisão, quase 17 ve- pelo menos R$ 1,53 bilhão com o evento. zes menos o valor que a NBCU pagou ao COI para os Jogos A emissora da família Marinho re- Olímpicos de 2020 a 2032. passa direitos e certamente lucra também O resto do montante foi distribuído entre transmis- sobre o faturamento da Rede Record e da são dos Jogos Olímpicos no rádio (R$ 600 mil), custos para Bandeirantes. A Record, do bispo Edir Ma- viagens jornalísticas (R$ 350 mil), gastos adicionais no sa- cedo, fechou quatro patrocinadores e, se télite (R$ 220 mil) e compra de espaço no IBC (R$ 280 mil). cada cota tiver sido vendida por R$ 126 mi- O mesmo IBC do complexo de mídia que recebeu mais de lhões, deve faturar cerca de R$ 760 milhões R$ 500 milhões de investimentos da prefeitura e será geri- com os jogos. Já a Band vendeu quatro cotas do por um grupo de empresas privadas. de patrocínios, cada uma no valor de R$ 310 milhões, segundo o site Conexão TV. A concentração da transmissão pela Acesso à informação mídia privada não é uma regra universal. Albert Steinber- ger, jornalista freelancer que trabalha para o canal público Segundo aponta relatório da organização Artigo 19,

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 24 25 rência Carioca, o Portal Transparência da Mobilidade e o Portal da Controladoria Geral do Município, além do Insti- tuto Estadual do Ambiente. Apenas 7% dos pedidos foram atendidos. Foram três meses de busca que levou à conclu- são de que o direito à informação não é respeitado e que é praticamente im- possível para a população ter acesso à caixa preta das obras preparatórias para as Olimpíadas 2016. “Se não há in- formação, fica comprometida a efetiva participação popular no debate sobre o tema e, portanto, qualquer possibilida- de real de incidência no processo deci- sório”, conclui a pesquisa. A falta de transparência tam- bém abrange os investimentos para infraestrutura de telecomunicações durante os Jogos. Segundo matéria da Agência Brasil, o valor dos investi- mentos para possibilitar as conexões 3G e 4G não pode ser divulgado por exigência contratual do Comitê Olím- pico Internacional (COI) e do Comitê Olímpico do Brasil (COB). O acordo foi Pai de jovem assassinado pela firmado com o Grupo América Móvil, polícia é impedido de abrir uma bandeira de protesto no Maracanã/ que engloba as marcas Claro, NET e Embratel. FOTO: Comitê Popular Rio Copa e Mais uma vez, recursos públicos foram usados para Olimpíadas beneficiar empresas privadas. Apesar dos investimentos feitos pelo Grupo América Móvil, coube à Embratel forne- cer a rede de fibra ótica para captar os sinais de transmis- são entregues ao IBC. Além disso, o site oficial dos Jogos e Falta de respostas e acesso negado foram os principais retornos à consulta sobre obras olímpicas/ a venda de ingressos estão hospedados nos data centers Reprodução relatório Artigo 19 da Embratel.

no Brasil dos megaeventos esportivos, estamos muito lon- ge de garantir a transparências das informações públicas. Liberdade de expressão O orçamento detalhado e os impactos das obras olímpi- cas, como a do BRT (Bus Rapid Transit) Transolímpica no A violação do direito à comunicação durante as Rio de Janeiro, não estão ao alcance de todas as cidadãs e Olimpíadas também se deu através da repressão a mani- cidadãos como determina a Lei de Acesso à Informação festações políticas nos locais dos jogos. Responsáveis pela (12.527/11). Os ônibus articulados que trafegam em corre- Rio 2016 retiraram dos estádios Mané Garrincha, em Bra- dores exclusivos foram uma das principais promessas de sília, Mineirão, em e no Sambódromo, no legado das Olimpíadas para a cidade do Rio de Janeiro. De Rio de Janeiro, torcedores que se manifestaram contra o acordo com o relatório, foram feitos 13 pedidos específi- governo interino de Michel Temer. cos de informações sobre remoções causadas pelas obras No último sábado (20), o pai de um jovem morto do BRT, com base na LAI. pela Polícia Militar do Rio de Janeiro foi impedido de abrir Ao todo, 54 solicitações foram feitas para diferentes uma bandeira de protesto no Maracanã. Segundo o Comi- órgãos, como o Portal Cidade Olímpica, o Portal Transpa- tê Popular Rio Copa e Olimpíadas, Carlos da Silva Souza,

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 26 27 pai de Carlos Eduardo, um dos cinco jovens assassinados do Coletivo Papo Reto, também é alvo de perseguição. Em por policiais do 41º Batalhão da Polícia Militar em novem- abril deste ano, Santiago denunciou para a mídia e a Co- bro de 2015, teve cerceado seu direito à manifestação. missão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Tais ações repressivas estão respaldadas pela Lei Ge- Estado do Rio de Janeiro (Alerj) que policiais da Unidade ral das Olimpíadas. O inciso IV do artigo 28 estabelece como de Polícia Pacificadora (UPP) do Alemão têm abordado condição para o acesso e permanência nos locais oficiais, moradores perguntando se o conhecem. O Papo Reto atua por exemplo, “não portar ou ostentar cartazes, bandeiras, principalmente na denúncia à violência policial, através símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, de ca- de redes sociais e de conteúdo audiovisual. ráter racista ou xenófobo ou que estimulem outras formas de Os riscos de fato são grandes para quem defende os discriminação”. O inciso X do mesmo artigo determina ainda direitos humanos no Brasil. Segundo a organização inter- que não se pode “utilizar bandeiras para outros fins que não nacional Front Line Defenders, o país está em primeiro lu- o da manifestação festiva e amigável”. gar na lista mundial de defensores assassinados em 2016: São puníveis com prisão de até um ano a produção ao todo, 24, entre janeiro e abril. A disputa de narrativas e distribuição de produtos que imitem símbolos oficiais sobre os megaeventos e seu impacto, especialmente nas da competição, mas também a mera modificação de qual- comunidades mais pobres ou periféricas, certamente in- quer símbolo, ainda que seu objetivo seja, por exemplo, a comoda as instituições violadoras de direitos. Para Gizele realização de uma paródia. Em abril deste ano, diversas Martins, “com a mídia comercial ao lado da prefeitura e entidades da sociedade civil repudiaram a Lei das Olimpí- do governo, eles sabem que vão alienar, silenciar, apagar a adas e Paralimpíadas, sancionada pela presidenta Dilma história e mentir dizendo ao mundo que este é um exem- Rousseff, por seu caráter autoritário. plo de cidade e que durante os Jogos tudo aconteceu per- A coordenadora do Centro de Referência Legal da feitamente, sem qualquer sangue no chão”. ONG Artigo 19, Camila Marques, mostrou-se preocupa- da com a repressão à liberdade de expressão que marcou os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. “Com apenas uma semana do início do evento, já vimos o aumento da ocu- Entrevista pação na Maré, no Complexo do Alemão e de uma forma geral. Cada vez mais o Estado está se aprimorando no seu Débora Prado, Instituto Patrícia Galvão aparato de repressão, através da compra de equipamen- tos, e esse legado é o que realmente vai ficar dos megae- ventos no Brasil”, considera Camila Marques. A cobertura comercial dos Jogos Olímpicos ficou marcada Sangue no chão pelo sexismo A comunicação independente, alternativa e comu- nitária segue pulsante, apesar de todas as dificuldades O reforço de estereótipos que silencia a diversidade de mulheres e des- impostas pela repressão cotidiana que se acirra no con- respeita sua atuação como atletas foi analisado pela jornalista Débora texto dos megaeventos. As articulações de comunicadoras Prado, coordenadora de projetos especiais do Instituto Patrícia Galvão, na e comunicadores em favelas e bairros periféricos do Rio entrevista a seguir. de Janeiro levaram à criação, por exemplo, de páginas no Facebook para denunciar violências cometidas pela polí- Uma pesquisa recente demonstrou que as mulheres em geral têm me- cia, prefeitura, governo do Estado e Forças Armadas – que nos aparição na mídia do que os homens e, quando são retratadas, ainda ocuparam o Complexo da Maré durante a Copa de 2014. são comuns os estereótipos e outras violências. Como você avalia a co- Mas, além de canal de denúncia, as redes sociais bertura dos Jogos Olímpicos Rio 2016 a partir desta perspectiva? têm sido um meio para perseguir comunicadores. Gize- le Martins, da Maré, já recebeu até ameaças de estupro e As desigualdades e as relações de poder construídas em torno dos gêneros avisos de que deve “calar a boca”. No Complexo do Ale- mão, outro conjunto de favelas cariocas, Raull Santiago,

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 28 29 – incluindo aí os esportes e eventos esportivos – leva à negação de direitos meras barreiras e chegam a uma Olimpíada, num momento de visibili- em diferentes níveis. Por isso, é fundamental desnaturalizar esses papéis dade, ainda são submetidas a desqualificação sexista e até a violências, discriminatórios. Mas, infelizmente, a invisibilidade da construção social como aconteceu com Joana Maranhão. em torno dos gêneros ainda é bastante naturalizada, apesar de alimentar discriminações, limitar oportunidades e até estimular a violência contra as Os direitos de transmissão dos megaeventos esportivos são negociados mulheres. Por outro lado, diante deste cenário de desigualdades, existem por valores altíssimos e ficam restritos aos grandes monopólios de mí- cada vez mais vozes fazendo denúncias, desconstruindo os papéis e evi- dia. Como isso se relaciona com o enquadramento da cobertura? denciando os limites que eles impõem às mulheres em sua diversidade. Os monopólios midiáticos são um grande problema para a efetivação No esporte, não é diferente e tampouco foi durante as Olimpíadas. Por democrática no Brasil, pois vêm há anos impedindo que haja diversida- um lado, uma parcela da sociedade vibrava com o feito das atletas, e a de de perspectivas e vozes – e sabemos que as perspectivas feministas, própria realidade desconstruía papeis de gênero tradicionais, já que a anti-racistas, LGBT, indígena, daqueles que foram impactados negativa- diversidade entre as esportistas era inegável. Por outro, a cobertura ficou mente pelos megaeventos, entre tantas outras, é brutalmente silenciada. marcada pela reprodução de estereótipos sexistas antes e durante os Olhando a diversidade de realidades em que vivem mulheres e homens jogos. Na mídia empresarial, observamos a reprodução de velhos clichês no Brasil, fica muito evidente esta lacuna de representatividade nas em- sexistas, como destacar uma atleta pela sua aparência física e não pelo presas de mídia, onde, de um modo geral, predomina a lógica comercial. desempenho esportivo ou apresentá-la como a namorada ou esposa de A internet altera um pouco este cenário. Há como pressionar os veículos alguém – ou seja, a redução da mulher a um acessório ou objeto de pra- por aquilo que é ocultado, mas esse é um fenômeno recente que ainda zer para um homem, noção que além de sexista é altamente ultrapassa- precisa ser melhor entendido. da pelo reducionismo que representa. Vimos casos mais graves, como a violência de gênero praticada na internet contra a nadadora Joana Ma- De que forma a cobertura poderia contribuir para visibilizar e empo- ranhão ou os crimes de racismo contra a judoca Rafaela Silva, que foram derar as atletas? cometidos nas Olimpíadas. A cobertura poderia, por exemplo, discutir os papéis desiguais de gênero, Mas é importante observar não só os preconceitos reproduzidos, como mostrar que eles são construções culturais que podem – e devem – ser também a desigualdade no tratamento que o silêncio representa, ou seja, modificadas quando limitam o pleno potencial de desenvolvimento de observar o que a imprensa deixou de fazer. As mídias, de um modo geral, diversos grupos na sociedade e, inclusive, estão nas raízes de violências. perderam a oportunidade de debater a desigualdade de gênero no Brasil e O esporte seria um espaço incrível para debater estas desnaturalizações nos esportes – este tema era um fator de interesse público, considerando tão necessárias. Poderia também mostrar a diversidade de mulheres que que as mulheres são metade da população e que as atletas exerceram um existe, que não há um ideal único de feminilidade. Poderia ainda debater papel fundamental no desempenho do país nos Jogos Olímpicos. a falta de investimento na formação das atletas, colocar suas vozes em primeiro plano. Mostrar seu protagonismo e empoderamento, que certa- Seria uma chance de pautar que o esporte, como outras esferas da vida mente servirão de inspiração para muitas outras meninas e mulheres. E social, pode ser tanto esfera reprodutora de discriminação, como ferra- pode cobrar as instituições quando elas promovem o racismo e o sexis- menta de reflexão, discussão e empoderamento de meninas e mulheres. mo institucional. Por exemplo, depois de toda repercussão positiva do fu- Acabaram noticiando o percurso individual das atletas medalhistas, mas tebol feminino, que não conseguiu medalha, mas orgulhou e empolgou o problema estrutural não apareceu, salvo algumas exceções, especial- espectadores, há rumores na imprensa que a CBF considera acabar com mente no jornalismo online e de veículos alternativos. Ou seja, a mídia a seleção permanente feminina. Vale lembrar que a seleção masculina empresarial tem a responsabilidade de não ocultar que as atletas enfren- existe desde meados do século XX e que teve a oportunidade de disputar tam vários obstáculos para chegar a uma Olimpíada – desde desestímulo inúmeras Olimpíadas no decorrer desses anos todos até conquistar uma para prática de alguns esportes por meninas nas escolas e até pela famí- medalha de ouro neste ano – além do investimento ser infinitamente lia, passando pela falta de investimento nas categorias de base feminina superior que o do futebol feminino. Então, caso esse rumor se confirme, e também na profissionalização. E vale lembrar que a diferença na visibi- será uma atitude altamente desigual, e esta responsabilidade deve ser lidade em relação às categorias masculinas reverbera nos patrocínios. cobrada da confederação – e não só pela sociedade civil, mas pela mídia Tudo isso fica muito invisibilizado e, quando estas atletas superam inú- também e, sobretudo, pelas televisões que usam concessões públicas.

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 30 31 Na sintonia do golpe: Em 2016, as gerações nascidas nas décadas de 1990 e 2000 defrontaram-se, talvez pela primeira vez de forma mais o papel da mídia na aberta, com a ação incisiva e determinada dos grandes conglomerados midiáticos, no sentido de moldarem, à crise política sua imagem e semelhança, o sistema político do país.

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 32 33 O afastamento da presidenta Dilma Rousseff, por ção da Universidade de Brasília, Liziane Guazina, afirma ser Texto: Helena Martins meio de um golpe que envolveu decididamente o Legis- uma postura adversária aos políticos e à política, conforme Colaboraram: Iara lativo, o Judiciário e os meios de comunicação, trouxe à demonstrou na tese de doutorado “Jornalismo em Busca da Moura, Mônica tona e exigiu que fosse incluída na agenda de debates da Credibilidade: a cobertura adversária do Jornal Nacional no Mourão e Elizângela sociedade a problemática do papel da mídia para a cons- Escândalo do Mensalão”. Araújo trução – ou o desmonte – da democracia. Professor de Ciência Política Na memória de um país que não enfrentou aber- da Universidade de Brasília (UnB), tamente a história da ditadura civil-militar (1964-1985), Luís Felipe Miguel aponta que, a restavam quase apagados casos de como o escândalo Pro- partir de então, houve “um pro- consult, uma tentativa de fraude, encobertada pela Rede cesso de regressão da ação política Globo, que objetivava impossibilitar a vitória de Leonel da mídia brasileira”. Ele avalia que, Brizola, em 1982, ao governo do Rio de Janeiro. A apresen- do fim do período ditatorial até tação pela emissora do maior comício das Diretas Já, em as eleições presidenciais de 2002, São Paulo, em 1984, como uma festa em comemoração ao a grande imprensa parecia ter aniversário da capital paulista, ou a determinante edição aprendido a conviver com o plu- debate televisivo entre Luiz Inácio Lula da Silva e Fernan- ripartidarismo. Ela “parou de agir do Collor de Melo, candidatos à Presidência da República tão ostensivamente em favor de tal em 1989, às vésperas da eleição, pareciam fatos datados e ou qual candidato e passou mais a cuja repetição seria improvável no tempo presente, dada exigir, de todos, compromissos bá- a possibilidade de circulação de narrativas diferentes da- sicos com certos interesses, o que quelas apresentadas pelos oligopólios. se alinha às formas dominantes de Muito embora a criminalização, o silenciamento intervenção política da mídia nas democracias liberais. Editorial do jornal O Estado de e a distorção de fatos envolvendo movimentos sociais e Não é ausência de interferência, é uma interferência que São Pauo inflama os brasileiros a irem às ruas contra a presidenta outros grupos progressistas sejam uma constante na his- se dá mais em termos de limitação do debate legítimo e Dilma Rousseff. tória do sistema de comunicação brasileiro, a sociedade menos como tentativa de induzir a opção eleitoral. Como Imagem: captura de tela acostumou-se a ver uma mídia complacente com o poder o PT havia abandonado as partes de seu programa que Capa do jornal O Globo em 20 de março de 1964. Imagem: Blog central e seu projeto, ao longo dos governos de Fernando podiam ser consideradas antissistêmicas, parecia possível do Professor Julio Sosa. Henrique Cardoso, nos anos 1990. No campo acadêmi- uma acomodação dentro desse modelo”, explica. co, vimos o deslocamento do olhar sobre o poder dos con- glomerados para as práticas A defesa aberta do golpe de resistência e reelaboração contra a democracia de significados pelos recep- tores, bem como a difusão de No dia 13 de março de 2016, o regresso tornou-se entusiasmados estudos que nítido. Se, em 1964, O Globo usou seu editorial do dia 2 decretaram o fim da comuni- de abril para proclamar que a nação vivia “dias gloriosos”, cação massiva com o advento “porque souberam unir-se todos os patriotas, indepen- da internet. dentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião No início dos anos 2000, sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a após a eleição de Lula, apesar democracia, a lei e a ordem”, e saudou o golpe como um da ausência de enfrentamento movimento não partidário, do qual participaram “todos os do poder midiático por par- setores conscientes da vida política brasileira, pois a nin- te do governo, os oligopólios guém escapava o significado das manobras presidenciais”, mudaram de postura. No con- em 2016, foi a vez do Estado de S. Paulo usar o principal texto da Ação Penal 470, ape- espaço de opinião do jornal para inflamar as milhares de lidada pela própria mídia como “mensalão”, em 2005, eles pessoas que saíram às ruas, naquele dia de domingo, para passaram ao que a professora da Faculdade de Comunica- protestar contra a presidenta Dilma Rousseff. Após afirmar que “a maioria dos brasileiros, con-

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 34 35 forme atestam há tempos as pesquisas de opinião, exige das. Isso foi feito através de enquadramentos favoráveis aos que a petista Dilma Rousseff deixe a Presidência da Re- protestos em defesa do impeachment; exclusão do contra- pública”, dispara: “a oportunidade de expressar concre- ditório da cobertura jornalística dos principais veículos de tamente essa demanda e, assim, impulsionar a máquina comunicação; repetição incessante de argumentos e outros institucional responsável por destituí-la, conforme pre- mecanismos de manipulação. vê a Constituição, será oferecida hoje, nas manifestações populares programadas Brasil afora. Chegou a hora de os brasileiros de bem, exaustos diante de uma presidente Desequilíbrio: a gente que não honra o cargo que ocupa e que hoje é o principal vê por aqui entrave para a recuperação nacional, dizerem em uma só voz, em alto e bom som: basta! Que as famílias indignadas Em março, mês decisivo para com a crise moral representada por esse desgoverno não a definição dos rumos da crise po- se deixem intimidar pelo rosnar da matilha de petistas e lítica, diversas análises produzidas agregados, cujo único interesse na manutenção de Dilma pelo Intervozes buscaram captar o na Presidência é preservar a boquinha à qual se habitua- posicionamento dos veículos vincu- ram desde que o PT chegou ao poder”1. lados às grandes corporações, bem Nos dois textos, há o apelo às famílias “indignadas como a relação com as instituições com a crise moral”; o tom odioso com que trata o PT e a que deveriam zelar pela democra- esquerda, em sentido amplo; a apresentação dos críticos cia. Os textos mostram que, desde à presidenta como não partidários e legítimos represen- o início daquele mês, uma sucessão tantes da maioria dos brasileiros, além da adoção de uma de episódios que revelaram a articu- postura convocatória por parte do jornal, justificada pela lação íntima entre mídia e Judiciário suposta defesa da democracia. Do mesmo modo, assim foi, aos poucos, convencendo parte Luís Felipe Miguel: “a mídia foi como no contexto do golpe de 1964, essa postura aberta- expressiva dos brasileiros a apoiar o impeachment de Dil- crucial para produzir o clima mente golpista foi combinada com a construção cotidia- ma como uma solução final à crise política brasileira. Manifestantes contrários ao im- de opinião favorável ao golpe”. peachment da presidenta Dilma Imagem: Editora Unesp na de percepções sobre a crise política. A edição especial do Jornal Nacional sobre a Opera- denunciam estratégia golpista da Na avaliação de Luís Felipe Miguel, “a ção Aletheia (fase da Lava Jato que culminou com a condu- Rede Globo. Imagem: Mídia Ninja mídia foi crucial para produzir o clima de ção coercitiva do ex-presidente Lula) foi praticamente toda opinião favorável ao golpe. Produziu-se dedicada ao fato de, de relevância inegável. Os números, uma narrativa manipulada e unilateral, porém, mostram a ausência de equilíbrio. Nos primeiros de criminalização do governo, do PT e quatro blocos do jornal do dia 4 de março, embora tenham da esquerda em geral. Além disso, a mí- sido veiculados 21 minutos de matérias sobre o tema, ape- dia tem colaborado num processo mais nas 50 segundos foram ocupados com a posição da defesa. de longo prazo, de desconstrução do dis- No segundo, novos 15 minutos de reportagens e apenas 20 curso dos direitos e produção de uma segundos com a posição do ex-presidente e outros 20 se- representação do mundo social focada gundos com fala de Paulo Okamotto, presidente do Insti- tuto Lula. A defesa dos empresários envolvidos no caso foi na competição e sem espaço para a so- lida pelos apresentadores na bancada, totalizando pouco lidariedade, isto é, de esvaziamento dos mais de um minuto e meio. Na matéria sobre o tríplex do pressupostos da narrativa da esquerda”. Guarujá, foram sete segundos para citar a nota do Instituto Se a construção da hegemonia de- Lula em 2 minutos e 50 segundos de reportagem. pende, como detalhou o filósofo italiano Lula falou a primeira vez quando já haviam se pas- Antonio Gramsci, da combinação entre sado 40 minutos de jornal. Dilma entrou na sequência, coerção, portanto uso da força, e consenso, era – e tem sido – com fala de 1 minuto e 15 segundos. Rui Falcão, presidente fundamental produzir sentidos comuns sobre os fatos e, in- do Partido dos Trabalhadores, teve direito a 16 segundos. clusive, acerca das possíveis saídas que deveriam ser adota- Na matéria sobre as repercussões no Congresso, a oposi- ção ocupou 1 minuto, ao passo que o PT, 30 segundos. No 1 - Fonte: opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,chegou-a-hora-de-dizer-basta,10000020896 vídeo, o repórter divulgou, por 2 minutos, informações de

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 36 37 como a direita pretendia paralisar o Parlamento até o im- nutos de programa, coube ao PT apenas 45 segundos de peachment sair. fala; à Secretaria de Comunicação da Presidência da Re- Quando promotores de São Paulo pediram a prisão pública, 30 segundos; e, aos protestos pró-governo, que preventiva de Lula, no dia 10, o Jornal Nacional apresen- também haviam sido realizados, menos de 2,5 minutos. tou os fatos sem citar as críticas feitas por juristas, espe- A reportagem de abertura do cialistas e inúmeros membros do Ministério Público à programa, que teve 17 minu- peça jurídica. No sábado 12, o principal telejornal do país tos de giro nacional e inter- destinou sete minutos para negar o pedido de direito de nacional sobre os atos, não resposta do Instituto Lula em relação à cobertura daquele teve qualquer contraponto. O fato. A emissora se disse “surpreendida” por ser chamada bloco sobre as manifestações a cumprir uma lei em vigor no Brasil – que tem o objeti- foi encerrado com mais de 6 vo, exatamente, de garantir o princípio constitucional do minutos sobre novas táticas e equilíbrio jornalístico e o direito de não ser ofendido nos descobertas da operação Lava meios de comunicação. Em vez de atender o pedido, vei- Jato, selando um domingo culou editorial defendendo-se e reiterando as acusações. nada plural – e triste – para o Invertendo a lógica das coisas, a empresa utilizou-se do jornalismo brasileiro. discurso de defesa da liberdade de imprensa para seguir Nos dias seguintes, sua atuação autoritária, avessa à pluralidade de pensa- vazamento de conversas en- mento no país. volvendo Lula e, inclusive, a No dia 13 de março, quando foi registrado o maior presidenta da República, que Protesto na Avenida Paulista, no número de protestos favoráveis ao impeachment, a Globo- bem poderiam ser compre- dia 13 de março de 2016, favo- News cobriu, por mais de 12 horas, as manifestações. Ao endidas como ataques à Se- rável ao impeachment da pre- sidenta Dilma Rousseff, contou longo do dia, repórteres e comentaristas se revezaram para gurança Nacional, ganharam com a repercussão ao vivo nos enaltecer os protestos, repetir à exaustão, a cada cidade no- destaque. Os apresentadores Manchete de capa de O Globo no canais da Rede Globo, abertos e ticiada, os motivos que já estavam claros para os telespec- do JN, William Bonner e Renata Vasconcelos, chegaram a dia 14 de março de 2015. por assinatura. Imagem: Bruno tadores, e jogar sobre os atos um peso decisivo sobre o pro- protagonizar uma vergonhosa leitura teatral das conver- Imagem: site O Globo Bocchini/Agência Brasil cesso de mudanças no comando do governo sas – grampos ilegais que tiveram o sigilo derrubado pelo federal. Duas frases sintetizam a narrativa juiz Sérgio Moro. Buscando ocultar a parcialidade, o jornal hegemônica: “um desfecho com a Dilma não apresentou respostas de Dilma, bem como protestos con- agrega… O Brasil está perdendo o bonde da trários ao afastamento – além, claro, daqueles favoráveis história”, afirmou a jornalista Cristiana Lôbo. que se multiplicaram enquanto o JN ainda estava no ar. Já Renata Lo Prete asseverou: “podemos che- Postura diversa foi adotada na cobertura dos atos gar ao final do dia sem a ideia de que o país em defesa da democracia, com destaque para aqueles está dividido”. realizados no dia 18 de março. Repetidos à exaustão, os Na Globo, o tradicional filme das tar- números inferiores destes protestos em relação aos mar- des de domingo foi suspenso para dar es- cados pelo verde e amarelo passado foram também um paço à cobertura ao vivo do que se passava elemento central para deslegitimá-los. Reiterando o ar- na Avenida Paulista, em São Paulo. “Agora gumento, o Jornal Nacional apresentou, no dia seguinte, há pouco a gente presenciou o momento uma reportagem somente sobre o comparativo das pre- mais emocionante das manifestações. A senças. Outras duas diferenças foram notórias: a menor FIESP jogou balões verdes e amarelos con- intensidade da cobertura e a presença do contraditório. tra o número de impostos que os brasilei- A frase de Eliane Catanhede dispensa grandes ex- ros pagam. Foi um movimento muito for- plicações: “a manifestação de hoje mostra que quem está te, as pessoas aplaudiram, foi uma emoção indo pra rua é a militância. Não é o conjunto do povo bra- aqui”, declarou um repórter. Outra jornalista não conte- sileiro”, disse a comentarista. Assim, a Globo buscou levar ve o entusiasmo e arrematou: “está linda a festa”. o telespectador a não se enxergar naquelas pessoas “de O mesmo enquadramento foi repetido no progra- vermelho” e “petistas”, como tantas vezes foram tachadas, ma nobre do domingo, o Fantástico. Em trinta e cinco mi- numa ocultação de toda a diversidade de posicionamen-

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 38 39 tos políticos de pessoas e grupos que denunciaram o gol- da casa, a empresa sofreu forte retaliação logo que Temer pe. Capas do O Globo não deixam dúvidas acerca dessa assumiu. estratégia. “Brasil vai às ruas contra Dilma e Lula e a fa- Quando do episódio de demissão do diretor-presi- vor de Moro”, estampou o periódico no dia 13 de março. dente da EBC, o Relator Especial para a “Aliados de Dilma e Lula fazem manifestação em todos os Liberdade de Expressão da Organização estados”, resumiu no dia 18. dos Estados Americanos, Edson Lanza, Os casos deixaram nítida a midiatização da polí- destacou que “o desenvolvimento de um tica e das ações do próprio Judiciário, bem como as es- sistema de meios de comunicação públi- tratégias de manipulação adotadas pela Globo, no que co em nível nacional, com garantias de foi seguida por boa parte da imprensa brasileira. A se- independência em sua gestão e meca- letividade das acusações, especialmente das denúncias nismos de participação para a sociedade de corrupção; a confirmação da relevância de determi- civil constitui um esforço positivo para nados fatos e posicionamentos, aos quais foi atribuído a promoção do pluralismo de vozes nos caráter nacional; a utilização de números e imagens que meios de comunicação do Brasil”. conferiam legitimidade à argumentação e a fixação de argumentos por meio da repetição e da eliminação do contraditório foram os elementos da estratégia. Para não Os fundamentos do correr riscos, a Globo, especialmente, valeu-se de falas ataque da mídia à editorializadas ao longo de toda a cobertura, ao passo que a emissora praticamente dispensou a presença de democracia Venício Lima critica a postura comentaristas externos. A opinião pública era, afinal, a Pesquisador da relação entre mídia e democracia, o adotada pela grande mídia no opinião dos próprios jornalistas do grupo. professor aposentado da UnB, Venício Lima, critica a pos- contexto da crise política. Edison Lanza, relator especial Diante desse quadro e garantido o enraizamento Imagem: UFMG tura adotada pela grande mídia no contexto da atual crise para a Liberdade de Expressão social de tal posicionamento, não foi preciso abusar da política. Para ele, ela expressa “continuidades históricas no da ONU, critica intervenção de inteligência dos analistas de mídia durante a cobertu- Temer na comunicação pública. comportamento da mídia que são fundamentalmente anti- ra da aprovação do afastamento, acompanhada, ao vivo, Imagem: Daniel Cima/CIDH democráticas e que são construtoras de uma cultura política em todo o Brasil. Registros dos atos e de que acaba sendo a cultura política dominante, independen- declarações de deputados foram abundan- te de, por exemplo, uma nova geração que não necessaria- tes. Não se viu, contudo, apuração, investi- mente se utiliza de uma velha mídia”. gação, contextualização e problematização A partir da leitura de diversos estudos sobre o tema, do processo em curso. Os argumentos que Lima aponta três elementos-chave desse comportamento embasam o pedido de impeachment não dos meios de comunicação. O primeiro é a adoção de um foram apresentados, muito menos os de sua conceito de opinião pública “publicista”. Exemplificando defesa. Nenhum convidado externo – nem o termo a partir da ação da mídia contra o presidente João mesmo um “especialista” alinhado ao posi- Goulart, ele explica que os meios “assumiam que o papel da cionamento da Globo – foi convidado a dis- mídia era um papel de formação da opinião pública, mas ao cutir a situação do país. mesmo tempo era um papel de representação e expressão A postura motivou diversas críticas dessa opinião pública”, o que era feito também com a des- por parte da imprensa internacional, que qualificação de outras instituições, como partidos, sindica- denunciou o papel de políticos como Edu- tos e o próprio Congresso. ardo Cunha em todo o processo, as fragili- Em sentido semelhante, outra continuidade que dades jurídicas e mesmo os riscos à demo- pode ser percebida é a construção de um discurso adver- cracia. A crítica também foi direcionada aos sário em relação à democracia, que é expresso na crítica conglomerados midiáticos. A tentativa de permanente à política e aos políticos. Um olhar sobre as imprimir outras leituras à crise política e de denunciar as consequências dessa argumentação, para o professor, artimanhas que levariam ao impeachment coube aos veí- pode ajudar a explicar a eleição de candidatos que se culos alternativos e também às emissoras públicas, em es- apresentam como “apolíticos” nas eleições deste ano. pecial à TV Brasil. Também, por isso, apontam jornalistas

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 40 41 O perfil conservador desses políticos pode estar as- nhava destaque em jornais como o Bom Dia Brasil e o sociado ao terceiro elemento destacado por Lima: o fato Jornal Nacional, duas das principais fontes de informação de a grande mídia ter adotado o discurso da vulgata neo- de milhares de pessoas, a cobertura sobre o Chapecoense liberal e, obviamente, refratário à esquerda. “Se você ana- dava lugar apenas à discussão sobre as medidas de com- lisar o conjunto de palavras que fazem parte de um léxico bate à corrupção. neoliberal que vão sendo introduzidas no cotidiano das Nos dias seguintes, as políticas propostas pelo gover- pessoas, e como a mídia passou a criar uma linguagem no Temer continuaram a ter o apoio da grande mídia, mas o pública usando esse léxico, é impressionante. E, no con- discurso em relação ao presidente ganhou inflexões. Após o texto dessa vulgata neoliberal, há também uma linguagem anúncio do acordo firmado pela cúpula da Odebrecht com que favorece a intolerância e o ódio”, opina. o Ministério Público Federal (MPF), reportagens críticas passaram a ser mais recorrentes. No dia 9 de dezembro, o Jornal Nacional revelou o acordo de Cláudio Melo Filho, ex- A cobertura oficialesca -diretor da empreiteira. Na abertura, citou o nome de Te- das medidas de Temer mer após destacar os de vários políticos da cúpula do go- verno. Na sequência, foi feito o anúncio de denúncia contra O programa neoliberal adotado sem mediações por o ex-presidente Lula e seu filho e, em seguida, da redução Michel Temer encontra na mídia um grande aliado. Medi- da inflação – “a menor do mês de novembro em 18 anos”. das como a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55, A primeira notícia do jornal foi exatamente sobre que propõe o congelamento dos gastos públicos por vinte a pauta positiva do dia: a redução da inflação. A segunda anos, ou a Reforma da Previdência têm sido apresenta- tratou da prisão do prefeito de Embu das Artes, na Gran- das como ações imprescindíveis para que o país obtenha de São Paulo. A terceira, da identificação de suspeitos de melhoras em seus índices econômicos. O discurso sobre a matar um turista italiano, no Rio de Janeiro. A quarta, do PEC, repetido à exaustão, buscava simplificar o problema anúncio do novo técnico da Chapecoense. Uma matéria e ocultar propostas concretas de saídas para a crise que sobre a situação dos sobreviventes do acidente foi apre- não apenem os trabalhadores, como a auditoria da dívida sentada na sequência. Do acidente, o JN passou a um pública e a taxação das grandes fortunas. tema internacional, o relatório do Unicef sobre crianças No dia 30 de novembro, data da votação da Propos- que vivem em áreas de conflito ou são afetadas por de- ta no Senado, milhares de pessoas de todo o país foram sastres naturais. No segundo bloco, ganhou espaço a re- a Brasília protestar contra a aprovação da medida que é forma da previdência, tema de duas reportagens seguidas. considerada como um marco do fim do pacto constitucio- Até mesmo a previsão do tempo já havia sido anunciada nal firmado em 1988. O objetivo delas era chamar a aten- quando, aos 25 minutos e 30 segundos, foi ao ar a matéria ção da sociedade e pressionar os parlamentares. Não obs- sobre a delação. tante, a agenda midiática foi alterada devido ao acidente O destaque dado foi à denúncia contra Geraldo Al- aéreo que vitimou 71 pessoas na Colômbia, a maior parte ckmin. Embora o nome de Temer tenha sido pronunciado formada por integrantes do clube Chapecoense e profis- nas chamadas do jornal, inclusive na escalada, o caso en- sionais da imprensa. volvendo o presidente só foi detalhado aos 43 minutos e 10 A tragédia ocupou todos os noticiários, de forma segundos, por meio de link com um jornalista posiciona- praticamente ininterrupta e sensacionalista. Enquanto os do em Brasília. Isso é, não precisou de edição ou algo mais movimentos protestavam na Esplanada dos Ministérios, às complexo do ponto de vista técnico. O texto passou longe casas de milhares de pessoas não chegavam informações de ser personalista. O nome de Temer foi apresentado em sobre o que ocorria em Brasília. O silêncio fora rompido meio a muitos outros. E mais. Foi um dos últimos a ser cita- apenas quando o conflito já estava instaurado no local. En- do. A “atuação indireta” de Temer, que teria pedido doações tão, era útil à imprensa defensora da PEC apontar os atos de pessoalmente em uma ocasião, foi explicitada. “vandalismo” – sem criticar, claro, a violência policial. No dia 10, o depoimento dele veio à tona. Na lista Na madrugada, a Câmara dos Deputados também de 51 políticos, o próprio Temer – citado 43 vezes na dela- aproveitou o envolvimento dos brasileiros com a tragédia ção premiada. O tom adversário verificado em momentos para alterar e votar o pacote de medidas contra a corrup- anteriores, contudo, não foi reprisado. Na longa chamada ção. Nos dias que se seguiram, enquanto a PEC não ga- inicial do Jornal Nacional, o nome do presidente sequer

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 42 43 foi citado. A matéria sobre o capítulo dedicado por Cláu- dio Melo Filho a Temer começou assim: “as delações da Lava Jato, que já tinham atingido em cheio o grupo políti- co do PT, e que ainda podem atingir mais nas próximas re- velações, voltam-se agora contra para o núcleo do PMDB e políticos do PSDB”. O nome de Temer é citado quando a reportagem alcança o primeiro minuto. Destaca trecho da delação em que o empresário diz que Temer atuava de “maneira muito mais indireta”. O tratamento da denúncia de pedido de R$ 10 milhões foi bastante sutil, sobretudo se compa- rarmos com a postura adotada em delações que envolve- ram Dilma Rousseff. No Jornal das 10, na Globo News, o tradicionalmente ácido Merval Pereira teve que fazer uma ginástica argumentativa para criticar o vazamento das de- lações. Merval chegou a concordar com a postura da Pro- curadoria-Geral da República, que decidiu abrir investiga- Raio X da ilegalidade: ção para apurar o vazamento do conteúdo de delações. A fragilidade do governo abriu espaço para a dis- puta entre setores da burguesia, que se reflete também no comportamento da mídia. Os jornais impressos deram políticos donos da destaque ao envolvimento do atual presidente, inclusive O Estado de S. Paulo e a Folha de S. Paulo, que deram ex- clusividade, na chamada principal, à referência a Temer. A disputa pela ocupação do poder dependerá do resultado mídia no Brasil da pressão popular diante das novas denúncias e do avan- ço das propostas conservadoras, como a PEC 55 e a refor- ma da previdência. Este capítulo da história está aberto. E Alvos de ação do MPF, parlamentares donos de emisso- a posição da mídia, mais uma vez, poderá ser definidora. ras de rádio e TV são um símbolo da fragilidade da de- Conforme visto, embora os canais privados resguar- dassem entre si algumas divergências editoriais e formais, mocracia brasileira e do conservadorismo político. a narrativa geral que culminou no estabelecimento do im- peachment de Dilma e com a chegada ao poder de Temer seguiu um caminho coerente e uníssono em seu objetivo geral. O governo Temer encontra na grande mídia uma aliada no que diz respeito ao apoio às medidas neoliberais mais polêmicas. A falta de pluralidade de opiniões remonta à própria estrutura que organiza os meios de comunicação no Brasil regidos por uma lógica estritamente comercial. Além disso, a posse dos canais de rádio e TV por grupos reli- giosos e/ou políticos, conforme veremos, também garante a ressonância de um discurso hegemônico condizente com os interesses das elites políticas nacionais.

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 44 45 Segundo informações do Sistema de Acompanha- em especial de um relevante como a radiodifusão”. Texto: Iara Moura mento de Controle Societário – Siacco, da Agência Nacio- Segundo defendem alguns órgãos do Judiciário, Colaboraram: Mônica nal de Telecomunicações (Anatel), 32 deputados e oito se- pesquisadores e entidades do campo do direito à comu- Mourão, Raquel Dantas nadores são proprietários, sócios ou associados de canais nicação, a prática contraria o disposto no artigo 54 da e Yuri Leonardo de rádio e tv. Têm, assim, espaço privilegiado de disputa Constituição Federal, segundo o qual deputados e sena- pelo voto antes mesmo do período de campanha determi- dores, a partir do momento em que são diplomados, não nado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Os 40 parla- podem “firmar ou manter contrato” ou “aceitar ou exercer mentares são alvo de uma ação no Supremo Tribunal Fe- cargo, função ou emprego remunerado” em empresa con- deral que questiona a constitucionalidade da participação cessionária de serviço público. A primeira linha do arti- de políticos titulares de mandato eletivo como sócios de go seguinte da Constituição, de número 55, diz: “Perderá empresas de radiodifusão e pede medida liminar para evi- o mandato o deputado ou senador que infringir qualquer tar a ocorrência de novos casos. das proibições estabelecidas no artigo anterior”. O próprio STF, no julgamento da Ação Penal 530, confirmou que os artigos 54, I, “a” e 54, II, “a” da Constitui- Na mira da Justiça ção contêm uma proibição clara que impede deputados e senadores de serem sócios de pessoas jurídicas titula- Buscando combater a concentração de emissoras res de concessão, permissão ou autorização de radiodifu- nas mãos de políticos, o Partido Socialismo e Liberdade são. Para o Ministro Luís Roberto Barroso, o objetivo des- (Psol) com o apoio do Intervozes protocolou, em dezem- bro de 2015, uma Arguição por Descumprimento de Pre- ceito Fundamental (ADPF 379) no Supremo Tribunal Fe- deral (STF). De quem é a rádio e a TV que estavam aqui? Em novembro do mesmo ano, uma articulação de Perfil de 40 parlamentares ligados diretamente a veículos de comunicação entidades da sociedade civil e institutos de pesquisa entre- Senadores gou ao MPF representação denunciando os políticos que foram em seguida listados na ADPF. A representação traz nomes famosos como o do senador Fernando Collor e dos deputados Sarney Filho (PV-MA), Elcione Barbalho (PM- DB-PA) – ex-mulher de Jader Barbalho, Rodrigo de Castro (PSDB-MG) e Rubens Bueno (PPS-PR) – líder do partido na Câmara. O próprio MPF de São Paulo já havia proto- colado poucos dias antes ação contra veículos de radio- difusão ligados aos deputados paulistas Antônio Bulhões (PRB), Beto Mansur (PRB) e Baleia Rossi (PMDB). Para o procurador geral da República Rodrigo Janot, a posse de canais de rádio e TV por políticos fere a liberda- de de expressão e o princípio de isonomia, segundo o qual os candidatos e partidos devem ter igualdade de chances na corrida eleitoral. Ao emitir parecer favorável à ADPF 379, em agosto último, Janot argumentou que “a dinâmica so- cial produz normalmente desigualdades – há, de fato, aque- les com maior poder econômico ou que detêm, na órbita privada ou na pública, função, cargo ou emprego que lhes confere maior poder de influência no processo eleitoral e político”. Porém, de acordo com ele, “não deve o próprio Estado criar ou fomentar tais desigualdades, ao favorecer determinados partidos ou políticos por meio da outorga de concessões, permissões e autorizações de serviço público,

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 46 47 De quem é a rádio e a TV que estavam aqui? Perfil de 40 parlamentares ligados diretamente a veículos de comunicação

Deputados

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 48 49 ta proibição foi prevenir a reunião entre “poder político e políticos, enquanto o governo de Luiz Inácio Lula da Silva controle sobre veículos de comunicação de massa, com concedeu, até agosto de 2006, pelo menos sete canais de os riscos decorrentes do abuso”. Segundo a Ministra Rosa TV e 27 outorgas de rádio a fundações liga- Weber, “a proibição específica de que parlamentares de- das a políticos. Entre os anos de 2007 a 2010, tenham o controle sobre empresas de radiodifusão” visou 68 congressistas eram ligados a pessoas ju- evitar o “risco de que o veículo de comunicação, ao invés rídicas concessionárias de radiodifusão, en- de servir para o livre debate e informação, fosse utilizado quanto no período de 2011 a 2014, 52 depu- apenas em benefício do parlamentar, deturpando a esfera tados federais e 18 senadores eram sócios do discurso público”. ou associados de concessionária. A mesma ministra rejeitou, em novembro último, o Em relação à legislatura atual (2015- pedido de liminar impetrado por Michel Temer por meio 2019), o projeto “Excelências”, vinculado a da Advocacia Geral da União, que pedia a suspensão de Transparência Brasil, revela que 43 deputa- processos que contestam as concessões de rádios e TVs dos são concessionários de serviços de rá- em nome de deputados e senadores. dio ou TV, totalizando 8,4% dos membros da Câmara dos Deputados. Por sua vez, o Uma prática antiga Senado Federal é proporcionalmente ainda mais marcado por este fenômeno, já que 19 Segundo a pesquisadora e professora da UFRJ senadores são concessionários, atingindo a Suzy dos Santos, o fenômeno de políticos radiodifuso- marca de 23,5% dos membros da casa. Ou O senador Edison Lobão res, chamado de “coronelismo eletrônico”, é antigo. Des- seja, de 594 parlamentares eleitos, 63 são outorgados de meios de comunicação, atingindo a marca de mais de 10% (PMDB- MA) detém a con- de o processo de redemocratização, os governos eleitos cessão da Rádio Guajajara. mostraram-se não apenas tolerantes, mas protagonistas do Congresso Nacional. “No caso de alguns estados como Sua família é responsável da prática de distribuição de canais de rádio e TV entre o Rio Grande do Norte, Roraima ou Santa Catarina, a pro- pelo Sistema Difusora de Co- aliados políticos. “Demonstramos através de documentos priedade de canais de rádio e TV por políticos ultrapassa municação, segunda maior empresa de comunicação do históricos, correspondências, reportagens, a instrumen- 50% do total”, denuncia Suzy. Os números apresentados pelo projeto “Exce- Maranhão, atrás apenas do talização das concessões de rádio e televisão desde o perí- Grupo Mirante, pertencente lências” revelam que, para além da vinculação juri- Fernando Collor (PTB-AL) odo Vargas até os dias atuais. Você verifica claramente que à família Sarney. Imagem: detem as concessões da Rádio desde os tempos do PSD, os partidos governistas sempre dicamente registrada de políticos com os serviços de Agência Senado Clube Alagoas, Rádio Gazeta se mantiveram como os partidos dos políticos donos de radiodifusão, existem ainda os casos em que os parla- Alagoas e TV Gazeta de Alagoas. radiodifusão”, explica. mentares mantêm influência a partir de “laranjas” ou Imagem: Agência Senado No período de 1985-1988, foi ampla a distribui- parentes no quadro societário dos veículos. É o caso do ção de outorgas de radiodifusão a parlamenta- senador Eunício de Oliveira (PMDB-CE), que tem sua res constituintes. Segundo o pesquisador César esposa Mônica Paes de Andrade Lopes de Oliveira, o ir- Bolaño, “durante o governo do presidente José mão Edilson Lopes de Oliveira e o seu correligionário Sarney, as concessões foram ostensivamente usa- Gaudêncio Lucena como sócios proprietários da Rádio das como moeda política, dando origem a um Tempo FM, em Juazeiro do Norte. dos processos mais antidemocráticos do proces- A situação de domínio político sobre os meios de so constituinte. Em troca de votos favoráveis ao comunicação expõe um grave conflito de interesses, uma mandato de cinco anos para presidente, foram vez que o próprio Congresso Nacional é responsável pela negociadas 418 novas concessões de rádio e tele- apreciação dos atos de outorga e renovação de concessões visão. Com isso, cerca de 40% de todas as conces- e permissões de radiodifusão. Segundo explica Camila sões feitas até o final de 1993 estavam nas mãos Marques, advogada da Artigo 19, “a posse dos meios de de prefeitos, governadores e ex-parlamentares ou radiodifusão por políticos afeta a isonomia, o pluralismo seus parentes e sócios”. e o interesse público porque o sistema brasileiro de regu- Ao longo dos anos, a prática ficou mais sutil, lação de radiodifusão não prevê um regulador indepen- mas não foi abandonada. O governo de Fernando dente para deliberar sobre a distribuição do espectro ele- Henrique Cardoso distribuiu pelo menos 23 outorgas para tromagnético e, por isso, essa deliberação é realizada por um procedimento licitatório em que os parlamentares do

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 50 51 Congresso Nacional ocupam um papel central na análise O diálogo transcrito acima [ouça aqui] ocorreu em das outorgas realizadas pelo poder executivo”, analisa. 2009 entre o senador José Sarney e seu filho, Fernando Um dos episódios emblemáticos desta situação foi Sarney, deputado federal, proprietário do Sistema Miran- a aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça da te (formado pela Rádio Litoral Maranhense, Rádio Miran- Câmara dos Deputados de 38 concessões de radiodifu- te e pela TV Mirante). A escuta feita pela Polícia Federal foi são e a renovação de outras 65 em apenas três minutos e amplamente divulgada pela imprensa e com apenas um deputado presente no plenário, em 2011. demonstra a interferência de interesses Além disso, há ocasiões em que os parlamentares votam políticos na linha editorial dos canais de na aprovação das próprias outorgas ou renovações. rádio e TV. Na ocasião, o senador José Segundo apuração da Folha de S. Paulo, dos 40 con- Sarney solicitou a seu filho a utilização gressistas que constam como sócios de rádios ou TVs, sete da emissora de radiodifusão que possui creem que a legislação permite esse tipo de participação, em São Luís do Maranhão, a TV Mirante, desde que eles não exerçam funções administrativas nas afiliada da Rede Globo, para a veiculação emissoras. Essa opinião foi manifestada por Baleia Rossi de denúncias contra seus rivais do grupo (PMDB-SP), Fernando Collor (PTB-AL), Gonzaga Patriota do ex-governador Jackson Lago. (PSB-PE), João Henrique Caldas (SD-AL), João Rodrigues São muitos os causos do clã dos (PSD-SC), Ricardo Barros (PR-PR) e Victor Mendes (PV-MA). Sarney quanto à utilização das redes de Em manifestação encaminhada em maio de 2015 rádio e TV para beneficiar os negócios da ao Supremo Tribunal Federal, a Advocacia Geral da União família. Na eleição de 1994 para eleger o (AGU) endossa a tese de que a situação não infringe o dis- governador do Maranhão, o candidato posto na Constituição. O órgão pronunciou-se pela rejei- Cafeteira era o principal adversário de ção da ADPF 379, argumentando que “não se pode aferir Roseana Sarney. Roseana liderava por diretamente desse fato a manipulação da opinião pública, apenas 1% de diferença nas intenções O senador José Agripino Maria conforme pretende fazer crer o autor”, pois “os preceitos de voto quando, no início do segundo turno, os jornais e O Senador Tasso Jereissati (PS- (DEM-RN), detem a concessão constitucionais invocados estão plenamente assegurados a TV da família começaram a divulgar que Cafeteira ha- DB-CE) é outro tucano conces- da TV Tropical. Imagem: Agên- pelo próprio ordenamento jurídico, especificamente pelo via mandado matar o adversário José Raimundo dos Reis sionário: FM Jangadeiro e TV cia Senado Código Eleitoral (Lei n° 4.737/65), que re- Pacheco. Faltando dois dias para o encerramento da cam- Jangadeiro. Imagem: Agência gula a propaganda eleitoral e impede a ma- panha, a equipe de Cafeteira localizou José Raimundo e Senado nipulação de informações e o controle da gravou entrevista com ele para exibir no último programa opinião pública por meio de empresas de eleitoral gratuito. Naquela noite, a imagem da tevê desa- radiodifusão”. pareceu misteriosamente em todo o interior maranhense. Só a capital são Luís, onde vivia 1/3 do eleitorado teste- munhou a imagem do homem dado como morto, ates- Casos de família tando, ele mesmo, que o boato de assassinato era falso. O caso foi contado pelo jornalista Palmério Dória no livro Alô, pai / Meu filho, esse negócio que “Honoráveis bandidos”, lançado em 2009. eu li hoje do filho do Aderson Lago, esse su- Episódios parecidos se multiplicam Brasil afora. O jeito foi muito cruel com a gente, com todos ex-senador, governador da Bahia por três mandatos (dois nós, com Roseana (Sarney), comigo. Escre- dos quais como governador biônico indicado pelo gover- veu aquele artigo outro dia me insultando no militar) e ministro das comunicações do governo de de uma maneira brutal, vamos botar isso na José Sarney, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) é alvo de televisão / (…) O cara já está aqui, da Globo, uma longa lista de reclamações contra a utilização políti- desde segunda-feira e estamos trabalhando ca do seu grupo de comunicação. nisso, tá? / Falou com ele isso? / Falei, falei Além da Construtora OAS, comandada pelo seu com ele. Falei com ele, mostrei tudo. Vai dar, genro Cesar Mata Pires, seu filho, Antônio Carlos Maga- vai dar certo (…) / Esse foi um assunto que eu peguei des- lhães Júnior, é presidente da Rede Bahia, que engloba di- de o começo, consegui, passei pro Sérgio, tô passando pro versas empresas do estado, principalmente de comunica- jornal pouco a pouco (…). ção. São elas: 88.7 Bahia FM,102,1 FM Sul (rádio FM em

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 52 53 Itabuna), Correio da Bahia (jornal impresso) teve o nome junto integram também a chamada bancada da bala. reformulado para “Correio”, Globo FM (Rádio FM em Sal- No caso dos senadores, figuram na ação os nomes vador), TV Bahia (afiliada da Rede Globo em Salvador e de Aécio Neves (PSDB-MG), Edison Lobão (PMDB-MA), região), TV São Francisco (afiliada da Rede Globo em Ju- Fernando Collor de Mello (PTB-AL), Agri- azeiro e região), TV Oeste (afiliada da Rede Globo em Bar- pino Maia (DEM-RN), Tasso Jereissati reiras e região), TV Santa Cruz (afiliada da Rede Globo em (PSDB-CE), Jader Barbalho (PMDB-PA), Itabuna e região), TV Subaé (afiliada da Rede Globo em Acir Gurcacz (PDT-RO) e Roberto Coelho Feira de Santana e região), TV Sudoeste (afiliada da Rede Rocha (PSDB-MA), cujo filho é atualmen- Globo em Vitória da Conquista e região), TV Salvador (ca- te candidato à vice prefeitura de São Luís. nal fechado, transmitido em UHF ou por assinatura). Este último também compõe a bancada Somente no ano de 1993, seu primeiro ano de man- ruralista. Os sete demais são alvo de algu- dato, a assessoria de comunicação da ex-prefeita de Sal- ma investigação, segundo levantamento vador Lídice da Mata (PSDB) contabilizou a veiculação de da Agência Pública. 600 matérias contra a sua administração pela TV Bahia, Os nomes de destaque na política repetidora da Globo, de propriedade da família Maga- nacional, entre eles o de Aécio Neves, can- lhães. didato à presidência derrotado no último pleito, demonstram que o coronelismo ele- trônico, diferente do que se possa pensar, No ar, bancada BBB: boi, bala e bíblia não é um fenômeno restrito à zona rural ou às regiões mais pobres do País, mas é Suzy dos Santos, professora da UFRJ e coordenado- generalizado e atinge também os grandes O deputado Beto Mansur (PRB-SP), ra do projeto “Coronelismo eletrônico: as concessões na detem duas concessões: Rádio Cultu- centros urbanos. história política nacional”, explica que a posse direta ou ral MF e Rádio Cultura São Vicente. Na grande São Paulo, após ações civis públicas mo- Jader Barbalho (PMDB-PA), detem indireta de canais de rádio e TV por políticos produz uma Imagem: Agência Câmara vidas pelo MPF e pelo Intervozes, em iniciativa oriunda as concessões da Belém Radiodi- enorme deformidade no regime democrático e guarda se- do Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicação fusão, RBA Rede Brasil Amazoônia melhanças com formas de poder plutocrático característi- e Sistema Clube do Pará. Agência (Findac), o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) co da República Velha ou Primeira República (1889-1930), Senado. determinou, em abril deste ano, o cancelamento das con- quando o capital político centrava-se em fi- cessões de cinco emissoras de rádio que têm como sócios guras autoritárias que mantinham com seu proprietários os deputados federais Baleia Rossi (PMDB- eleitorado uma relação dúbia de troca de fa- -SP) e Beto Mansur (PRB). A medida atende ao pedido do vores, exploração e repressão. Ministério Público Federal que, por meio da Procuradoria No Brasil rural, o poder político está Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), em São Paulo, ligado à posse de terras e à exploração da ajuizou ações civis públicas contra os parlamentares em mão de obra campesina em grandes latifún- novembro de 2015. Alguns meses depois, porém, a liminar dios. A palavra “coronel” refere-se à paten- que determinava a retirada do ar da Rádio Cultura FM, e te militar não apenas porque alguns destes Rádio Cultura São Vicente, de propriedade de Beto Man- políticos a detinha, mas porque, fardados sur, foi suspensa. ou não, faziam uso da violência para manter Mais recentemente, em agosto deste ano, também o controle político e perseguir não-aliados. por meio de liminar, foi determinada a interrupção das Passados quase 90 anos, o cenário, hoje em transmissões da Rádio Metropolitana Santista Ltda (1.240 dia, não é muito diferente. MHz) de propriedade de Antônio Carlos Bulhões (PRB-SP). Entre os 32 deputados concessioná- Com as decisões, está suspensa a execução dos ser- rios de rádio e TV listados na ADPF 379, 18 viços de radiodifusão da Rádio Show de Igarapava LTDA, são grandes proprietários de terra ou pecu- Rádio Metropolitana Santista e da Rádio AM Show LTDA, aristas, compondo a chamada bancada ru- que contam com a participação de Baleia Rossi e Antônio ralista, que defende no Congresso os interesses do agro- Carlos Bulhões em seus quadros societários. negócio; nove são ligados à bancada evangélica; três estão O caso da Rádio Cultura FM em Santos é emble- nas duas bancadas. Além disso, dois deputados do con- mático, uma vez que além da questão da posse por par-

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 54 55 lamentar, a emissora havia anunciado a mudança total da ralidade”, vez que permite “a uma determinada empresa programação, arrendada para a Igreja Universal do Reino especializar-se em ‘vencer concorrências públicas’, repas- de Deus em setembro de 2015. A legislação de radiodifu- sando-as, em seguida, para empresas realmente interes- são estabelece que a quantidade máxima de programação sadas no serviço”. que pode ser comercializada pelo controlador da outorga é 25% do tempo total. “O arrendamento de emissoras de radiodifusão De pai para filho, de caracteriza comercialização ilícita de outorgas públicas”, amigo para amigo explica Bráulio Araújo, advogado, integrante do Coletivo Intervozes e um dos autores das ações contra os parlamen- A Rádio Cultura AM foi inaugu- tares radiodifusores. As Redes TV, 21 e CNT são as campe- rada inicialmente em São Vicente, em ãs em arrendamento no país, segundo levantamento feito 17 de outubro de 1946 e depois trans- em 2014, comercializando respectivamente 49% e 91% de ferida para Santos. A emissora foi fun- seus tempos de programação. dada por Paulo Salim e Jorge Mansur. Em junho deste ano, a Comissão de Ciência e Tec- Em 1958, o então diretor, Paulo Jor- nologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara ge Mansur, desdobrou a emissora em dos Deputados aprovou projeto de lei (PL) 2088/15, que duas rádios – Rádio Cultura S. Vicente permite a transferência de 50% das cotas ou ações repre- AM e Rádio Cultura de Santos FM –, sentativas do capital de radiodifusão já no primeiro ano ambas pertencentes à Sociedade Rádio Sarney Filho (PV-MA), também de vigência da outorga, e a transferência integral das co- Cultura São Vicente LTDA. A rádio foi a deputado, detém três concessões: tas ou ações apos esse período, alterando a regra atual do segunda emissora do Brasil a entrar no Rádio Litoral Maranhense, Rá- Decreto 52.795/1963, que só permite a transferência de ar e, desde então, cumpre papel políti- dio Mirante e Televisão Mirante. outorgas cinco anos após a expedição do certificado de co central nas disputas locais. As duas últimas compõem o O também senador pelo Ma- Sistema Mirante de Comunica- licença para funcionamento (art. 90). O fundador da rádio, Jorge Mansur, acumulou po- ranhão Roberto Rocha (PS- ção, maior empresa do ramo no De acordo com a proposta da deputada Renata pularidade ao apresentar o programa “A voz do povo” e foi DB-MA) é outro parlamentar Maranhão. Imagem: Agência Abreu (PTN-SP), caso o poder executivo não se manifeste eleito deputado por três mandatos. A partir de 1964, a So- detentor de concessões: Rádio Câmara no prazo de 90 dias, a emissora estará tacita- ciedade Cultura de São Vicente LTDA passou a ser consti- Ribamar, Rádio Vale OM, Rádio mente autorizada a proceder à transferência tuída por Paulo Roberto Mansur, Gilberto Mansur e Maria Vale OT. Imagem: Agência requerida. O projeto é muito permissivo por Gomes Mansur, filhos de Paulo Jorge Mansur, que se des- Senado reduzir o prazo necessário para a efetivação ligou juridicamente, por motivos políticos. Seu filho Paulo das transferências e por prever de anuência Roberto Mansur (Beto Mansur), foi eleito – primeiramen- tácita, caso o Poder Executivo não se mani- te vereador (1989), depois deputado federal (1991), prefei- feste em 90 dias. Segundo Bráulio Araújo, a to (1996) e reeleito em 2000 – através da utilização do veí- transferência direta e indireta de outorgas culo rádio. A família ampliou seus negócios também para de radiodifusão é inconstitucional pois des- a televisão. Em 2001, os Mansur venceram a concorrência cumpre a exigência constitucional de previa pública do canal 46 de Santos. [Leia mais sobre isso] licitaçao, ensejando a negociação de outor- O poderio da família Mansur não se esgota nos gas públicas por particulares e o controle de negócios de mídia. Beto Mansur é empresário e latifun- concessões por terceiros que nao participa- diário. No caso do deputado, a versão moderna do coro- ram do processo de licitação. nel tem raízes arcaicas com a exploração monocultora, a Na Ação Direta de Inconstitucionali- utilização de mão-de-obra análoga ao trabalho escravo e dade 2946, a Procuradoria Geral da Repú- ainda a exploração do trabalho infantil. Em 2014, o depu- blica questiona um dispositivo análogo da tado foi condenado pelo Tribunal Superior do Trabalho. lei de concessões de serviços públicos (lei Em nota publicada à época, Mansur negou as acusações 8.987/1995), que autoriza a transferência de outorgas. Na e argumentou que a legislação brasileira é vaga na deter- ação, a PGR afirma que a autorização legal à transferên- minação do que é ou não trabalho escravo, o que acaba cia direta e indireta de concessões faz com que “a fraude “prejudicando enormemente os produtores rurais”. ao sistema da licitação pública atinja raias de literal imo- Para livrar-se do questionamento do MPF sobre a

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 56 57 posse das rádios, Mansur doou sua participação indireta seu patrimônio de R$ 1,8 milhão. Hélder Barbalho, ex-pre- nas empresas de radiodifusão para seus filhos e esposa. feito de Ananindeua (PA), ministro da Integração Nacio- Baleia Rossi vendeu a sua participação em uma das rádios nal do governo Temer, também declarou ser dono de TVs para um de seus irmãos. A outra rádio, ele alega que foi no Pará, retransmissoras da Band. vendida há alguns anos. Essas medidas estão sendo ques- Ser ministro e radiodifusor não constitui uma ilega- tionadas pelo MPF no âmbito das ações civis públicas. lidade em si. Mas além de misturar os poderes O também deputado federal Eduardo Cunha (PM- político e midiático de forma pouco saudável DB-RJ) utilizou-se de expediente parecido para se defen- para a democracia, em geral os responsáveis der ao ser investigado pelo MPF por não declarar à Justi- pelos ministérios tenham exercido cargo ele- ça Eleitoral, nas últimas três eleições, ser sócio da rádio tivo quando já eram proprietários de meios de Satélite, em Pernambuco. Cunha comprou a rádio em comunicação. 2005 e segundo afirmou em defesa, vendeu a emissora em 2007. O problema é que o Ministério das Comunicações, onde os registros das rádios são feitos, não homologou a Andamento transferência. Cunha afirma que as transações de com- A ADPF 379 encontra-se nas mãos do pra e venda foram declaradas em seu imposto de renda. ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Atualmente a rádio é explorada pelo pastor R.R. Soares. A Mendes, relator da arguição. Além do parecer representação contra Eduardo Cunha segue em averigua- favorável da PGR, o Fórum Nacional pela De- ção pelo Ministério Público Federal no Rio de Janeiro. mocratização da Comunicação e a Artigo 19

protocolaram amicus curiae (intervenção ex- O deputado Acir Gurcacz (PDT- Na sintonia do golpe terna em processo através de opinião jurídica) endossan- -RO) detem a concessão da Editoria do a ADPF. Na contramão, além da AGU, Senado, Câmara Rádio Amazonas. Imagem: Agência Cãmara Os políticos na mira do MPF tiveram participação dos Deputados e Presidência da República protocolaram O Senador Aécio Neves (PSDB-MG) ativa no processo de impeachment da ex-presidenta Dil- manifestações contrárias. detem a concessão da Rádio Arco-Íris. ma Roussef. Dos oito senadores radiodifusores, sete vota- A representação contra os políticos radiodifusores Imagem: Marcos Oliveira/Agência ram a favor do impeachment e um se ausentou da votação. de todo o país segue tramitando junto às Procuradorias Senado Dos 32 deputados federais, 23 foram a favor, oito Regionais dos Direitos do Cidadão do MPF em cada um contra e um faltou à sessão. O deputado federal dos 18 estados de origem dos políticos listados. Beto Mansur foi um dos principais articuladores do impeachment de Dilma na Câmara dos De- putados. Papel também crucial teve o senador Aécio Neves. Os golpistas estão muito ligados ao poder midiático. Para se ter uma ideia, no quadro atu- al do governo Temer, do total de 24 ministros, quatro são radiodifusores. Mendonça Filho, ex- -deputado e ex-governador de Pernambuco, mi- nistro da Educação, já esteve entre os acionistas da TV Jornal do Commercio, além da Rádio Difu- sora de Caruaru, Rádio Difusora de Garanhuns, Rádio Difusora de Limoeiro e Rádio Difusora de Pesqueira. Todas do mesmo grupo do empresário João Carlos Paes Mendonça. Ricardo Barros, ex-deputado federal e ex-prefeito de Maringá (PR), atual ministro da Saúde, declarou pos- suir 99% das cotas da Rádio Jornal de Maringá (PR), no valor de R$ 488 mil, o que corresponde a cerca de 30% de

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 58 59 Mídia, política e religião: mistura que ameaça a democracia

Alvos de ação do MPF, parlamentares donos de emissoras de rádio e TV são um símbolo da fragilidade da democracia brasileira e do conservadorismo político

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 60 61 “Abri uma igreja em Lusaka (capital da Zâmbia) e os gressistas estão presentes em mídias alternativas e na in- Texto: Mônica Mourão. pastores haviam sido expulsos de lá. Com a carta do presi- ternet, e não há uma denominação específica: são grupos Colaboraram: Bráu- dente Lula, não só os pastores puderam voltar, como o presi- os mais variados, vários deles articulados em experiências lio Araújo, Elizângela dente Rupiah Banda (2008-2011) deu a eles uma concessão ecumênicas”, explica. Araújo, Iara Moura e de rádio e televisão para que pudessem pregar o evangelho”. A imbricação política, mídia e religião fica bem evi- Ramênia Vieira A frase acima foi uma das descobertas da mídia du- dente em alguns casos: o deputado Antônio Bulhões (PRB- rante a reta final do segundo turno das eleições no Rio de -SP), além de concessionário de três emissoras de rádio, foi Janeiro, quando a população da cidade vai escolher entre apresentador do programa “Fala que eu te escuto”, da Rede Marcelo Freixo (Psol) e Marcelo Crivella (PRB). O trecho foi Record, e do “Retrato de Família”, na , durante retirado de um vídeo disponível no Youtube em que Cri- nove anos. Atualmente está em seu terceiro mandato como vella conta que entrou para a política forçado pela Igreja parlamentar. Ele é um Exemplo do quanto a visibilidade Universal do Reino de Deus (Iurd) e comenta a temporada em que viveu na áfrica. O senador, bispo da Iurd e sobrinho do fundador dessa igreja, Edir Macedo, dono da rede Record, associa diretamente missão evangelizadora, política e mídia. O caso é emblemático de um cenário que está longe de se resumir à disputa eleitoral do Rio de Janeiro.

Políticos evangélicos donos da mídia

Em novembro do ano passado, o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, autorizou procuradores de São Paulo a receberem uma representação, assinada por diver- sas entidades da sociedade civil, pedindo o cancelamento das outorgas de radiodifusão dadas a pessoas jurídicas que tenham entre seus sócios políticos em exercício do man- dato. No total, 32 deputados federais e oito senadores são denunciados. Dos 32 deputados federais, nove fazem par- te da bancada evangélica, o que corresponde a quase 30% do total. Desses nove, quase a metade faz parte também da bancada ruralista. Um deles, Beto Mansur (PRB-SP), é ficha suja, condenado por exploração de trabalho escravo. A bancada evangélica – ou bancada da bíblia – é co- nhecida por seu caráter conservador. Mas se engana quem generaliza esse posicionamento para todos os evangélicos. A professora Magali Cunha, da Universidade Metodista de São Paulo, explica que o senso comum associa evangélicos a conservadorismo por serem os grupos com esse perfil os que têm mais visibilidade na mídia e na política. midiática aumenta as chances de eleição, mas também Segundo Magali, na radiodifusão, “não existem da relação entre o crescimento de concessões para grupos evangélicos progressistas ou de posição mais aberta em evangélicos ou espaços “arrendados” para eles na televisão, relação à teologia, à prática pastoral e à participação polí- crescimento da bancada da bíblia e avanço das agendas tica. Esta é uma característica dos grupos mais conserva- conservadoras no Congresso Nacional. dores e que os coloca em vantagem no tocante à visibili- “Este avanço começou a se configurar com o surgi- dade: buscaram uma presença intensa nas mídias rádio e mento da bancada evangélica tal como a conhecemos em tevê, mais ainda no rádio. Os grupos mais abertos ou pro- 1986, com a eleição do Congresso Constituinte. Naquela

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 62 63 ocasião, houve um farto oferecimento de concessões ao tevês e os sócios e diretores. Existem dois sistemas separa- chamado ‘centrão’, onde se localizou a maior parte da dos: Sistema de Controle de Radiodifusão (SCR) e Sistema bancada. Foi dali que surgiram alguns dos empresários de Acompanhamento de Controle Acionário (Siacco). O de mídia evangélica e a força de igrejas como a Iurd. Para SRD não fornece o quadro societário das emissoras, que estes grupos, estar nas mídias é parte de uma estratégia precisa ser buscado no Siacco. de ocupação de espaços na esfera pública”, conta a pro- “Esse programa, entretanto, só poderá revelar o capital investi- do nessa empresa, as nomeações que compõem o quadro societá- rio, quanto cada sócio investiu e o cargo que ele assume, em consul- tas individuais, dificultando a in- vestigação”, explica Jorge Miklos. O professor coordenou a pesquisa de uma média de 4.500 rádios para cruzar os nomes dos deputados, senadores e seus fa- miliares com as rádios e televi- sões brasileiras. Porém, houve uma diferença no resultado dos dados. “Por exemplo, o nome do deputado federal cassado Eduardo Cunha encontra-se no A revista Época noticiou que o anexo do Ministério das Comunicações, mas não no da ex-presidente da Câmara, Edu- Anatel”, relata Miklos. ardo Cunha, é sócio da Rádio Eduardo Cunha, evangélico da Assembleia de Satélite. Imagem: site da revista Deus, teve uma representação protocolada contra ele na Procuradoria da República do Rio de Janeiro em dezem- bro de 2016. Naquele mês, a revista Época divulgou que Cunha consta nos registros do Ministério das Comunica- ções como sócio da Rádio Satélite. O deputado cassado afirmou para a revista que, apesar de ainda estar na lista de acionistas do Siacco, vendeu suas cotas em 2007, e as transações de compra e venda constaram de suas declara- ções de renda à Receita Federal. Mesmo que a informação dada pelo ex-deputado esteja correta, trata-se de uma ilegalidade: a definição de que empresa terá direito de explorar o serviço de radiodifu- são depende da sua participação em uma licitação, seguida fessora Magali Cunha. Atualmente, segundo levantamen- de aprovação pelo Congresso Nacional. Assim, Cunha não to de grupo de pesquisa coordenado pelo professor Jorge poderia simplesmente ter vendido sua outorga. Miklos, da Universidade Paulista, a bancada evangélica é formada por 199 deputados federais e quatro senadores. O cruzamento dos dados da Frente Parlamentar Bancada religiosa e direitos humanos Evangélica (FPE) e de concessionários de radiodifusão é uma tarefa difícil pela falta de transparência da Agência O aumento da bancada da bíblia é patente: na le- Nacional de Telecomunicações (Anatel). A Agência não gislatura de 2003-2006, era formada por 58 congressistas, disponibiliza um documento único com todas as rádios e um crescimento de 25% em relação à legislatura anterior.

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 64 65 No Senado, passou de nenhum representante para três Defesa dos Direitos da Mulher na Câmara, Flavinho disse mandatos. “A maior parte dos congressistas evangélicos que, em vez de empoderamento, as mulheres querem ser eram pastores vinculados à Assembleia de Deus e à Igreja “cuidadas” e que as parlamentares feministas não sabem o Universal do Reino de Deus”, segundo Jorge Miklos. que é ser “amadas”. O professor explica: “A Frente Parlamentar Evan- Para o professor Jorge Miklos, “não é inconstitucio- gélica expressa os interesses das igrejas evangélicas em geral, embora seja principalmente constituída de depu- tados pertencentes a igrejas pentecostais, que por sua tí- pica agressividade em evangelizar, formam a maior parte da população evangélica brasileira”. Contudo, ele vê dife- rença nos posicionamentos dos deputados e senadores da FPE: “Os parlamentares evangélicos nem sempre votam em bloco, pois representam correntes distintas no cam- po religioso e no econômico. Só falam a mesma língua em questões de conteúdo moral. Sua relação com a bancada católica é marcada tanto pela união na defesa de interes- ses comuns como pela oposição às eventuais tentativas de suprematismo católico”. Apesar de não formarem um bloco totalmente co- eso, uma série de retrocessos nos direitos humanos está associada à bancada da bíblia, especialmente durante o período em que o pastor Marcos Feliciano (PSC-SP) foi Charge do cartunista Latuff presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias ilustra com ironia a atuação da da Câmara. bancada evangélica no Congres- Para ficar apenas com casos mais recentes, atual- so Nacional e o que ela represen- ta para o Estado laico. mente, são deputados ligados às igrejas católica e evan- gélica que estão no comando dos trabalhos da comissão especial que analisa a proposta conhecida como “Escola sem Partido”. O deputado Marcos Rogério (DEM-RO) ocupa nal ou ilegal a presença da bancada evangélica no con- a presidência e Flavinho (PSB-SP) gresso nacional. Todos lá dentro foram eleitos democra- é o relator. Ambos defendem o PL ticamente. O que é inconstitucional? Pautas que ferem a 5069/2013, que tipifica como cri- dignidade da pessoa humana, como prevê o Artigo 1º da me contra a vida o anúncio de meio Constituição Federal, e a pluralidade do povo brasileiro”. abortivo. Marcos Rogério foi repórter de televisão e radialista, atuando na Missas e cultos eletrônicos Comunicação Social por mais de 12 Os grupos evangélicos conservadores não se con- anos. Como deputado, foi relator da tentam “apenas” com a concessão de emissoras de rádio e cassação de Eduardo Cunha, apesar televisão. Também ocupam os espaços de outras emisso- de, como ele, pertencer à Frente Par- ras, numa prática chamada de “arrendamento”. Ou seja, lamentar Evangélica. como se um horário da programação fosse um terreno, o Flavinho já foi ligado à comuni- “dono” (concessionário) o cede para que outra pessoa faça dade católica Canção Nova e apoiou uso dele, mediante pagamento. A prática, contudo, é ilegal. uma proposta para revogar a permissão do uso do nome “Isso ou é uma subconcessão, o que é vedado, já social de travestis e transexuais em órgãos da administra- que a concessão de qualquer serviço (como de estradas) ção pública. Ao se colocar contra a criação da Comissão de

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 66 67 é sempre dada para aquela pessoa jurídica, e não para ne- Serviços de Radiodifusão. Contudo, se o arrendamento nhuma outra, ou é publicidade. Se for publicidade, tem o para igrejas for considerado venda de espaço publicitário, limite de 25% da programação da tevê”, explicou o Pro- CNT e Rede TV! estariam infringindo o Regulamento. curador da República Sergio Suiama. Ele é responsável O caso visivelmente ilegal do Grupo CNT, que ven- por um inquérito que investiga os casos de arrendamento de quase a totalidade do seu espaço, é praticados por Band, Record, Rede TV! e TV Gazeta, a par- alvo de ação ajuizada pelo Ministério tir de um estudo da programação feito pela Agência Na- Público Federal de São Paulo. Outra cional do Cinema (Ancine). ação do MPF pelo mesmo motivo foi De acordo com o levantamento, em 2016, 21% do aberta contra a Comunica- total de programação veiculada pela tevê aberta brasileira ções S/A, ambas em 2014. As emisso- foram de programas religiosos. Esse é o gênero número 1 ras venderam 22 horas diárias de toda ao se considerar o espaço total das emissoras pesquisadas a sua grade à Igreja Universal. Segun- pela Ancine, representando 1/5 da programação. Dentro do o MPF, os contratos firmados entre da grade de cada uma, o percentual do gênero religioso é a Universal e as duas emissoras podem o seguinte: Band (16,4%), CNT (89,85%), Globo (0,58%), envolver R$ 900 milhões. Record (21,75%), Rede TV! (43,41%), SBT (0%), TV Brasil O Ministério Público solicita, (1,66%), TV Cultura (0,69%) e TV Gazeta (15,80%). nas ações, que as outorgas sejam inva- Curioso notar que a Record, única do grupo cujo lidadas e que o Grupo CNT, a Rede 21 e concessionário é um bispo da Igreja Universal, não é a que a Iurd sejam condenados ao pagamen- mais veicula conteúdo religioso. Esse dado pode mostrar to de indenização, em valor determina- que, para as demais emissoras, o arrendamento é um ne- do pela Justiça, por danos materiais à gócio como qualquer outro, e não interessa o conteúdo vei- União e por danos morais difusos. Além culado. Vale ressaltar também duas importantes exceções: disso, o MPF pede que a Presidência da Sérgio Suiama, procurador da dois canais com as maiores audiências, Globo e SBT (numa República e o Ministério das Comuni- República no Estado de São disputa já longa com a Record pelo segundo lugar), não cações sejam condenados a se abster de conceder futuras Além da Rede Record, a Igreja Paulo. Imagem: Banco de Ima- Universal do Reino de Deus gens da Assembleia Legislativa exercem essa prática: a primeira veicula, por conta própria, outorgas de radiodifusão aos dois grupos empresariais e à ocupa horários na grade de do Estado de São Paulo a missa católica aos domingos; a segunda é a única emisso- Universal. programação de outras emisso- ra que não transmite nenhum progra- Segundo a assessoria do Ministério Público de São ras. Imagem: Divulgação ma religioso. Paulo, as duas ações seguem tramitando na Justiça Federal. “A TV Globo, ao que consta, A invalidação das outorgas do serviço de radiodifusão pode não recebe pagamento para veicular acontecer, mas depende ainda da decisão da Justiça. a Santa Missa. No caso dessas outras O caso das demais emissoras, cujo inquérito foi emissoras, a gente vê que uma boa aberto pelo Ministério Público do Rio de Janeiro em maio parte da programação diária é paga deste ano, ainda está num estágio inicial. A partir da aber- pelas igrejas. Então é diferente a situ- tura do inquérito, foram solicitadas informações das emis- ação. Essas emissoras estão usando as soras e, agora, o MPF aguarda resposta do Ministério das igrejas como fonte de financiamento”, Comunicações. avalia Suiama. Segunda colocada no ranking dos programas re- A Ancine contabilizou também ligiosos, a Rede TV! foi a única que respondeu nossa re- o percentual de publicidade veicula- portagem. Através de sua assessoria, a emissora afirmou da em cada uma das emissoras: Band ser “laica em sua programação, transmitindo programas (3,20%), CNT (0,10%), Globo (0,10%), de diversas igrejas evangélicas, a missa da Catedral da Sé Record (0,10%), Rede TV! (5,29%), SBT da Igreja católica, entre outras. Seus programas discutem (0,25%), TV Brasil (0,10%), TV Cultura abertamente temas de todas as religiões, do espiritismo, (0,10%), TV Gazeta (43,61%). Quase todas, com a marcan- do candomblé e de qualquer outra motivação religiosa. te exceção da TV Gazeta, cumprem o teto de 25% de tem- Entende que como agente de comunicação não tem o di- po de publicidade comercial estabelecido pelo artigo 28 reito, nem a vontade, de cercear ou discriminar qualquer do Decreto 52.795/63, que determina o Regulamento dos manifestação religiosa, garantindo a mais ampla liberda-

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 68 69 de de expressão”. gião que não tem dinheiro para pagar também deveria ter Ainda de acordo com a Rede TV!, a programação re- espaço? Se o Estado fosse fazer isso, como ele iria fazer? ligiosa não prejudica a democracia: “Programas religiosos Iria financiar todas as religiões? Qual seria o critério de fi- existem em todos os países democráticos, sendo vistos por nanciamento?”. Os questionamentos milhões de telespectadores. No Brasil, as coproduções, re- do procurador Sergio Suiama dizem ligiosas ou não, são agentes fundamentais na garantia da respeito a um dilema vivido atualmen- pluralidade das comunicações. A RedeTV! respeita inte- te pela comunicação pública no Brasil. gralmente toda a legislação do setor”. Em 2011, a partir de reclama- ções de ouvintes e telespectadores à Laicidade, política e comunicação Ouvidoria da Empresa Brasil de Co- municação (EBC), o Conselho Curador pública aprovou uma resolução que solicitava a suspensão dos programas religiosos Mesmo sendo uma televisão pública, a TV Brasil vei- nos veículos da EBC. Com a decisão, A cula programas religiosos da igreja católica e da evangélica. Santa Missa e Palavras de Vida, produ- Em 2016, um deles, o evangélico Reencontro, além de fazer zidos pela Igreja Católica, e o evangé- proselitismo religioso, serviu também de palanque político. lico Reencontro deveriam ter saído do A reclamação foi feita por telespectadores. ar. Contudo, a Justiça Federal de Brasí- Segundo o Boletim da Ouvidoria da Empresa Brasil lia concedeu liminar mantendo a exi- de Comunicação (EBC), o programa entrevistou a candi- bição dos programas. data a vereadora e ex-deputada federal Liliam Sá (PROS- Integrante do Conselho Cura- -RJ), no dia 21 de maio, para falar sobre o Rio de Janei- dor da EBC cassado pelo governo ilegí- ro. Ela já havia sido entrevistada no mês anterior, assim timo de Michel Temer, a professora da Mesmo sendo uma emissora como um pré-candidato a prefeito de São Gonçalo (RJ) e Ana Veloso, integrande do Con- UFPE Ana Veloso relembra o processo: pública, a TV Brasil exibe o reli- um pastor que mencionou que a esposa seria candidata a selho Curador da EBC, cassado gioso Reencontro. Imagem: Blog “Nós recebemos várias manifestações, via Ouvidoria, de vereadora. Liliam é ex-deputada federal. pelo governo Temer, afirma que Arolde de Oliveira telespectadores e ouvintes que não estavam satisfeitos o órgão recebeu várias mani- O apresentador abriu o micro- porque a EBC transmitia a missa”. festações de telespectadores e fone para a candidata apresentar suas A ação está no Supremo Tribunal Federal e ainda ouvintes insatisfeitos com a propostas para a cidade: “a senhora transmissão da programação aguarda uma decisão de Justiça. “O Estado brasileiro é voltando como vereadora para o Rio religiosa. Imagem: Reprodução laico e a comunicação pública deve permitir a liberdade de Janeiro, para ajudar esse municí- do Facebook de expressão das diversas religiões e crenças. Então, além pio, um dos mais importantes do Bra- de a gente sugerir que esse tipo de programa fosse retira- sil, quais são os planos que a senhora do do ar, e nossa fundamentação está na lei da EBC e na tem em mente?”. O caso demonstra a Constituição Federal, também sugerimos que a Empre- desigualdade de possibilidades dos sa viabilizasse a produção de programas que primassem candidatos se comunicarem com o pela diversidade religiosa”, contou Ana Veloso. Os contra- eleitorado, como publicamos em ma- tos de permissão dos programas religiosos são anteriores téria especial do Observatório do Di- à constituição da EBC, em 2007. reito à Comunicação sobre políticos O argumento da Arquidiocese do Rio de Janeiro donos da mídia. e da Primeira Igreja Batista na Ilha da Conceição, de Ni- “O espaço de uma televisão terói, que entraram na Justiça para manter a exibição dos não é propriamente igual ao de uma programas, foi de que “a pluralidade máxima consegue-se praça pública. Na praça pública, qual- com a ampliação dos programas religiosos, não com a su- quer pessoa pode chegar e fazer uma pregação, o Estado pressão dos existentes”. Tentamos ouvir o arcebispo cató- não pode impedir um pastor, um pai de santo ou um pa- lico Dom Orani Tempesta, que defende a continuação das dre de fazer uma pregação no meio da praça. Mas, no caso transmissões da Santa Missa, mas não obtivemos retorno da televisão, não é um espaço público acessível a qualquer da Arquidiocese do Rio de Janeiro até o fechamento des- pessoa. O Estado tem que assegurar essa igualdade? A reli- ta reportagem. Dom Orani Tempesta foi o presidente do

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 70 71 Conselho Nacional de Comunicação Social, órgão auxiliar giu leis do setor e foi considerado parcialmente responsá- do Congresso Nacional, durante o período de 2012 a 2014. vel pelo episódio pelo então arcebispo do Rio de Janeiro, Apesar de não ter conseguido, até o momento, a re- Dom Eugênio de Araújo Sales. tirada do ar dos programas que veiculam cerimônias reli- Mas, na “guerra santa” midiática, os que não pro- giosas, o Conselho Curador obteve uma vitória neste pro- fessam nenhuma crença também já fo- cesso: a EBC publicou, em 2014, o resultado final de um ram alvo de discurso de ódio. Em caso pitching (espécie de concurso) para contratação de pro- mais recente, a Band teve que assinar dutoras responsáveis por dois programas sobre diferentes um termo de ajustamento de conduta religiões e crenças: Entre o Céu e a Terra e Retratos de Fé. (TAC) com o Ministério Público Federal O primeiro foi produzido pela Realejo Filmes e custou R$ comprometendo-se a exibir 72 vezes 1,3 milhão e, o segundo, pela Aldeia Produções, no valor um vídeo produzido pelo MPF cujo ob- de R$ 910 mil. jetivo é conscientizar a população so- “A gente respeita a religião de todas as pessoas, bre a laicidade do Estado brasileiro. mas a gente defende o Estado laico. Não podemos, numa A assinatura do TAC, feita em emissora pública, privilegiar uma religião em detrimento 2016, é resultado de um processo de outra, porque isso se chama manutenção de privilé- aberto pelos procuradores contra a gios”, reforçou Ana Veloso. emissora após declarações preconcei- tuosas do apresentador José Luiz Da- Intolerância religiosa tena no programa Brasil Urgente con- O apresentador Datena, do Bra- tra cidadãos ateus, no dia 27 de junho de 2010. O apresentador teria associa- sil Urgente, e a emissora Band “Na minha vida dei um chute na heresia / Houve tan- foram condenados a pagar do práticas criminosas à “ausência de ta gritaria de quem ama a idolatria / Eu lhe respeito meu ir- multa por conteúdo ofensivo a Deus”: “Porque o sujeito que é ateu, Daniel Sottomaior, presidente mão, não quero briga / Se ela é Deus, ela mesmo me castiga”. ateus. Imagem: Band na minha modesta opinião, não tem limites, é por isso que da Associação Brasileira de Os versos acima, compostos Ateus e Agnósticos (Atea). a gente vê esses crimes aí”. pelo bispo Marcelo Crivella, fazem Imagem: Marcos Alves/ O Para Daniel Sottomaior, presidente da Associação parte da canção “Um chute na Globo. Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), a veiculação desse heresia”, lançada em CD do atual tipo de conteúdo estimula o preconceito. José Luiz Date- senador e postulante à prefeitura na, o repórter Maurício Campos e a fo- do Rio de Janeiro em 1998. Divul- ram condenados a pagar R$ 135.600,00 à Associação. gados na última semana pela im- Outro caso que acabou parando na Justiça diz res- prensa, os versos relembram um peito a uma ação foi movida, em 2004, pela Procuradoria marcante episódio de intolerância Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC) de São Paulo e religiosa. o Instituto Nacional de Tradição e Cultura Afro Brasileira No dia 12 de outubro, quando do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e da De- católicos celebram o Dia de Nos- sigualdade (Ceert). Naquela ocasião, a Justiça entendeu sa Senhora Aparecida, o bispo da que a Rede Record e a Rede Mulher descumpriram o ar- Igreja Universal Sérgio von Hel- tigo 215 da Constituição de 1988, uma vez que deixaram der chutou uma imagem da san- de garantir o pleno exercício dos direitos culturais e não ta no programa O Despertar da protegeram as manifestações das culturas populares, in- Fé, transmitido pela Rede Record. dígenas e afrobrasileiras. As duas emissoras haviam pro- O episódio aconteceu em 1995 duzido e veiculado conteúdos ofensivos contra as religi- quando, por coincidência, a Igreja ões de matriz africana. Católica passou a ter seu próprio Para a professora da Universidade do Estado do Rio canal de televisão, a Rede Vida. de Janeiro (Uerj) Stela Guedes Caputo, apenas quando é O bispo foi condenado por intolerância religiosa cometida alguma violência contra um terreiro ou uma e vilipêndio a imagem. O Ministério das Comunicações pessoa de religião de matriz africana é possível conseguir chegou a se comprometer a investigar se o pastor infrin- alguma abordagem positiva da mídia. No entanto, Stela

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 72 73 considera a inclusão dos terreiros fundamental para se Folha Universal é a publicação impressa de maior distri- compreender o Rio de Janeiro e o Brasil: “Qualquer mídia buição do Brasil, com tiragem semanal média de 1,6 mi- e discussão política que exclua os terreiros não é demo- lhão e circulação em todo o país. Dados de 2014 encontra- crática. Se uma criança de candomblé não pode andar na dos no site da Universal apontam rua sem medo, não vivemos numa democracia”. que a Rede Aleluia, composta por emissoras de rádio e televisão, atinge 75% do território nacional. Que religião se vê na tevê? É formada por 64 emissoras, espa- lhadas por 22 estados. Apesar do crescimento do número de evangé- O missionário da Assembleia licos, que aumentou mais de 61,45% nos últimos dez de Deus Cosme Felippsen acredi- anos, o Brasil ainda é majoritariamente um país cató- ta que o problema não é o fato de lico. De acordo com dados de 2010 do Instituto Brasi- grupos religiosos serem detentores leiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população do de outorgas de radiodifusão, mas o país se divide entre 123.280.172 católicos; 42.275.440 conteúdo que transmitem em suas evangélicos; 3.848.876 espíritas; 588.797 umbandistas, pregações. “O pessoal demoniza as candomblecistas e pessoas de outras religiões afro-bra- religiões de matriz africana, e isso é sileiras; 5.185.065 cidadãs e cidadãos de outras religiões uma das faces do racismo. As igre- e 15.335.510 sem religião. jas cantam contra orixás e outras Para a professora Magali Cunha, “os grupos religio- Magali Cunha: “na radiodifusão entidades”, conta. sos são segmentos sociais como outros e podem partici- não existem evangélicos pro- Felippsen critica sua igreja, gressistas ou de posição mais par do espaço público, inclusive da política. Isto é saudá- considerada por ele uma das mais aberta em relação à teologia, à vel numa democracia. A concessão de radiodifusão para “machistas, homofóbicas e racis- prática pastoral e à participação grupos religiosos deveria obedecer aos mesmos processos O periódico Folha Universal, política”. Imagem: Universidade tas”, porém ainda se identifica com ela por ser o espaço da Igreja Universal do Reino de de concessão para outros segmentos sociais, com as mes- Metodista de São Paulo que frequenta desde os três anos de idade, quando sua Deus, é a publicação impressa mas exigências de comprometimen- mãe se converteu. Porém, lembra que é um erro asso- com a maior tiragem no Brasil. t o”. Imagem: Divulgação ciar todos os evangélicos ao conservadorismo: “Existe No entanto, como o interesse um grupo forte de comunidades de fé que se reúnem no político e econômico influencia forte- Ato Aula Pública Evangelho e Desobediência Civil. São mente a aprovação de concessões de evangélicos de esquerda que se encontram para discutir rádio e tevê, essa distribuição aconte- política. É a contracorrente dentro do movimento”. Cos- ce de forma desigual. Segundo Stela me Felippsen deixa o recado contra a intolerância: “O Guedes, as religiões afrodescenden- problema é que, às vezes, a gente generaliza tudo”. tes são tratadas de forma negativa Para a professora Magali Cunha, o que ocorre hoje tanto pela mídia corporativa quanto é que os grupos religiosos tiram vantagem das conces- pela mídia da Igreja Universal. “Lutar sões e dos arrendamentos da mesma forma que outros contra isso é muito difícil, porque os segmentos o fazem, uma vez que não há regulação. Se- terreiros são unidades independen- gundo ela, “o mesmo ocorre com ‘abusos’ da presença tes e muito pobres, sem condições de religiosa em outras frentes do espaço público, na políti- ter meios de comunicação próprios ca partidária, em que não há regulação e freios para que como as igrejas católica e evangélica”, estes grupos não ultrapassem o sentido democrático de afirmou Stela, que é candomblecista e sua participação”. faz parte do grupo de pesquisa Kererê *A reportagem procurou a Igreja Universal do Rei- (“miúdo”, em iorubá). no de Deus através da única forma de comunicação que Assim, enquanto milhares de disponibiliza em seu site, um formulário para envio de pessoas de outras religiões não têm espaço na mídia, a email. Não obteve resposta até o fechamento da matéria. Igreja Universal tem um verdadeiro conglomerado. De acordo com informações dos próprios veículos da Iurd, a

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 74 75 A internet livre sob ameaça no Brasil Uma série de iniciativas de empresas e dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário pode mudar radical- mente a forma como os/as brasileiros/as usam a rede

Trabalhar, estudar, locomover-se, informar-se, co- municar-se. Os usos da internet em nosso cotidiano são Texto: Iara Moura e Marcos Urupá tão diversos e tão essenciais que nos deixam a dúvida se Colaboraram: Bia seria possível hoje viver sem conexão. Mais além, espe- Barbosa, Marina Pita, cialistas há muito apontam a existência de dois universos Elizângela Araújo onde convivemos concomitantemente: físico e virtual. Não, isso não é coisa da ficção inspirada na trama da trilo- gia Matrix ou da recente ‘série-febre’ Black Mirror. Mesmo quando estamos aparentemente desconectados, os ras- tros virtuais e nossos dados pessoais continuam com vida própria, em transações bancárias, perfis em redes sociais, cadastros em big datas (espécie de arquivo com grande ca- pacidade de processamento de dados), entre outras ações que se dão concomitantemente na internet e fora dela. Parece óbvio defender a vida física e os direitos fun- damentais que a garantem, mas e os da rede, quem cuida? E se uma não existe mais sem a outra? Em 2014, uma Re- solução da Organização das Nações Unidas (ONU) dispõe que os direitos humanos do mundo off-line também va- lem para o online. No Brasil, a Lei 12.965 de 2014, conhecida como Mar- co Civil da Internet (MCI), estabelece um conjunto de prin- cípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no país, além de consagrá-la como um serviço essencial. Ao longo de 2016, infringindo os princípios do MCI, uma série de iniciativas de empresas privadas, do Judiciário e de parlamentares busca alterar a lógica de funcionamento da internet da maneira como se conhece atualmente. Segundo o relatório Freedom on the Net da organização Freedom House, divulgado em novembro de 2016, o status da internet no Brasil perdeu três pontos e

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 76 77 passou de “livre” a “parcialmente livre”. Os motivos para recem respectivamente em primeiro, segundo e terceiro a queda foram os constantes bloqueios judiciais ao apli- lugar entre as 50 que mais receberam queixas nos Procons cativo WhatsApp, a decisão de operadoras de implantar no último ano. Dados divulgados pela Agência Nacional franquias na banda larga fixa e o Projeto de Lei 215/2015, de Telecomunicações (Anatel) em 2016 sobre os serviços conhecido como “PL espião”, que estabelece medidas po- de telefonia e internet mostram que o setor com a pior lêmicas como a quebra do anonimato de internautas. avaliação em relação à satisfação dos consumidores é o de Em declaração recente, Maximiliano Martinhão, banda larga fixa, que obteve nota 6,58 em nível nacional, secretário de políticas de informática do Ministério de Ci- em uma escala de zero a 10. ência Tecnologia Inovações e Comunicações (MTIC), de- “No regime privado, deixa de existir a modicidade fendeu a flexibilização da legislação vigente tanto no que tarifária, ou seja, o consumidor pode se deparar com pre- diz respeito a alguns pontos colocados no Marco Civil da ços ainda mais elevados, ainda mais num mercado extre- Internet quando na proposta que tramita de revisão da Lei mamente oligopolizado como o nosso que tem atualmen- Geral de Telecomunicações (LGT). Questões como a neu- te três grandes players”, explica. tralidade de rede, o manejo e a guarda de dados pessoais, a Além disso, segundo o especialista, há um inte- revisão de contratos de prestação de serviços de telefonia resse das empresas de telefonia e dos parlamentares que e internet, o bloqueio de aplicativos, entre outros temas, encampam o projeto de rever metas de universalização estão atualmente em pauta no congresso e no judiciário (que significa acesso para todas as pessoas) direto com e podem alterar radicalmente a maneira como os brasi- a Agência regulatória, a Anatel. Atualmente, pouco mais leiros utilizam a internet no dia a dia. Analisamos a seguir de metade dos domicílios brasileiros têm acesso à banda algumas destas ameaças. larga fixa. O modelo de mercado concentra a distribuição do serviço em áreas urbanas e de maior Produto Interno Bruto (PIB). Enquanto isso, áreas rurais, principalmente Em terra de teles quem do norte e nordeste do País são verdadeiros “desertos di- tem acesso é rei gitais”. Mas não só. Enquanto o mundo assistia aos jogos olímpicos sediados no Rio de Janeiro, moradores do Mor- No último dia 9 de novembro, o Projeto de Lei ro da Conceição, na região portuária da cidade olímpica 3453/15, de autoria do deputado Daniel Vilela (PMDB- há poucos metros de onde a tocha ficou aberta à visitação, -Go) foi aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e denunciavam a falta de acesso à internet banda larga fixa. Cidadania (CCJC) por 36 votos favoráveis e 11 contrários. Outro ponto polêmico do PL é a busca das telefô- A aprovação foi questionada por vários deputados que nicas por não devolver ao Estado brasileiro os chamados alertaram que o PL representa uma entrega de patrimô- bens reversíveis. Segundo apuração do Ministério Público nio público e reduz a capacidade de regulação do Estado Federal (MPF), estes bens somam cerca de 100 bilhões em em um setor conhecido por ser um dos piores prestadores infraestrutura montada para prestação de serviços essen- de serviço do país. O projeto impacta também o acesso à ciais de telefonia. internet fixa que, no caso brasileiro, compartilha a infraes- O contrato de concessão das telecomunicações, re- trutura com a telefonia. alizado em 1998 por meio da privatização do sistema Tele- Rafael Zanatta, pesquisador em telecomunicações brás, estabelece que, findado o prazo de outorga, o Estado do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), alerta que, retomaria a posse dos bens necessários para oferta do ser- se aprovado, o PL pode piorar a qualidade de serviços es- viço e iniciaria um novo processo de concessão da presta- senciais como telefonia e internet além de abrir caminhos ção do serviço, incluindo obrigações de preço, continuida- para o aumento do preço. Isso porque o projeto pretende de e universalização. Com a aprovação do PL 3453/15, esses mudar o regime de prestação de serviço de telefonia de re- bens, que fazem parte da outorga de telefonia fixa, não vol- gime público, que se dá atualmente por meio de contratos tam mais para o Estado e não há mais garantias de que essa de concessão, para regime privado, mais flexível. soma seja revertida para ampliação do acesso aos serviços. Segundo dados do Sistema Nacional de Informa- Após aprovação na CCJC, a votação segue para o ções e Defesa do Consumidor (Sindec), de 1º de janeiro de Senado. Enquanto a proposta avança, outras iniciativas 2015 a 31 de dezembro do mesmo ano, as empresas Claro/ no Congresso e no Judiciário também vêm causando pre- Embratel/Net, Fixo/Celular e Vivo Telefônica/GVT apa- ocupação entre internautas, especialistas e ativistas.

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 78 79 trafegam ou não naquele trecho e com que qualidade de estrada ou limite de velocidade determinados motoristas Bloqueio de aplicativos irão se deparar. A prática confronta o princípio da neutralidade de Ao longo de 2016, várias decisões judiciais, com rede, consagrado no inciso IV, artigo 3º do Marco Civil da base em investigações criminais, têm resultado no blo- Internet (MCI), segundo o qual a rede deve ser igual para queio de alguns aplicativos usados por um amplo público, todos, sem diferença quanto ao tipo de uso. Assim, ao ob- como o WhatsApp. Mais recentemente, o lobby da indús- ter um plano de internet, o usuário paga pela velocidade tria de direitos autorais também tem investido pesado na contratada e não pelo tipo de página ou conteúdo que vai tentativa de alterar o Projeto de Lei 5204/16 (baseado no acessar ou usar. PL 5204/16, apensado ao primeiro) que visa justamente Segundo Flávia Lefèvre, representante da socie- proibir esse tipo de decisões arbitrárias da justiça. dade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI Os bloqueios também foram pontos determinan- – BR), a utilização de zero rating, sem regulação especí- tes na queda do Brasil no ranking de liberdade na inter- fica, também viola o princípio da neutralidade de rede e net da Freedom House. Também com o intuito de evitar ameaça o modelo aberto da internet. “A prática do zero ra- que casos similares voltassem a ocorrer, o Partido da Re- ting associada aos planos com limite de volume de dados pública (PR), ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionali- e restrição de acesso à internet ao final da franquia cria dade de nº 5.527 (ADI). condições para que a internet se torne um espaço voltado Para especialistas, há uma distorção na interpreta- preponderantemente a interesses comerciais e contrários ção do MCI pelo poder Judiciário, o que abre preceden- à verdadeira e efetiva inclusão digital”, defende. tes perigosos para a liberdade de escolha do consumidor/ Por outro lado, o governo demonstra abertura para usuário. A legislação aponta a possibilidade de bloqueio a pressão das empresas em flexibilizar o princípio da neu- de aplicativos somente no caso destes descumprirem a tralidade. “Para a gente poder avançar com a internet, e proteção da privacidade dos dados do usuário. Em Ami- estou falando como secretário, e não como coordenador cus curiae que endossa a ADI citada, o Instituto Beta para do CGI.br, não dá para pensar com tamanha rigidez o as- Democracia e Internet argumenta: pecto de neutralidade de rede, sem poder usar zero rating, “Não parece plausível e muito menos proporcional até para vencer a insegurança jurídica que está posta”, de- que o descumprimento de uma medida judicial de quebra clarou Maximiliano Martinhão, secretário de Políticas de de sigilo bancário ou telefônico, por exemplo, atinja todos Informática do MCTIC, em novembro de 2016. os demais correntistas de uma instituição financeira ou os usuários de uma operadora de telefonia. O Marco Civil constitui um importante patamar regulatório de proteção Franquia de dados dos direitos do usuário da internet, porém ainda requer uma cautelosa compreensão de suas premissas e a das O alerta feito por Flávia Lefèvre também se refere formas de implementação das suas sanções”. à tentativa das operadoras de implementar o modelo de franquia de dados na banda larga fixa. Este é o padrão de negócio utilizado na banda larga móvel, e consiste Zero rating na forma de serviço em que o usuário, ao utilizar toda a capacidade contratada, tem a sua conexão interrompi- Outra prática que vem sendo questionada por es- da e para voltar a navegar na web é incitado a comprar pecialistas é a das operadoras de telecomunicações de pacotes adicionais. ofertar “gratuitamente” o acesso a determinados aplicati- O argumento das operadoras de telecomunicações vos após o fim da franquia de internet móvel. Detentoras é o de que o modelo de “internet ilimitada” é um modelo das infraestruturas por onde trafegam os dados de nave- de negócio ultrapassado e que não contempla mais a atual gação, as operadoras têm trabalhado para criar mecanis- fase de uso da rede, pois existem hoje muito mais dados mos que favorecem alguns aplicativos e conteúdos em trafegando do que há dez anos. À época, o presidente da detrimentos de outros, o chamado zero rating. É como se Anatel, João Rezende, em entrevista ao G1, defendeu o li- a empresa concessionária do serviço de pedágio de uma mite de franquia e argumentou que obrigar as empresas a rodovia tivesse também o poder de escolher quais carros

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 80 81 oferecer banda larga ilimitada pode elevar o preço do ser- mapeava todo o tráfego de dados do usuário, permitindo viço ou reduzir a qualidade deste. a criação de um perfil de uso da internet. Após a análise do Rafael Zanatta, do Idec, argumenta que não há estu- episódio, o Ministério da Justiça entendeu que a empresa dos específicos que comprovem que haja uma “escassez de violou princípios contidos na Constituição Federal e no rede”. O especialista aponta que, mesmo com a crise eco- Marco Civil da Internet. nômica, as telefônicas continuam com alta taxa de lucro De posse de todas as nossas informações, e com o que poderia ser revestido em investimento pra ampliar a uso de uma tecnologia que cada vez mais se aprimora por infraestrutura. “No último balanço trimestral, por exemplo, meio de algoritmos, Google, Facebook, , entre ou- os três players que dominam o mercado brasileiro apresen- tras grandes corporações têm acesso a informações pri- tam uma margem de lucro superior a um milhão”. Rafael vilegiadas do dia a dia dos usuários. A localização exata, o acrescenta que a internet no Brasil é um serviço caro, que percurso que fazemos ao nos deslocar de casa ao trabalho, chega a superar 2% da renda média familiar e, ainda assim, os destinos de férias ou as pesquisas nas ferramentas de a velocidade está muito aquém dos padrões globais. busca, os problemas de saúde, entre outras questões es- “Existe a possibilidade de regular a franquia sem tritamente pessoais, são dados valiosos que estão sendo abusividade. Vendo se a empresa tem escassez temporá- manipulados e negociados por essas grandes empresas. ria de infraestrutura, considerando as especificidades das Mas não só por elas. Há também os casos de dados pequenas operadoras, por exemplo. Não faz sentido isso pessoais de órgãos públicos que são vazados para empre- nos casos onde há infraestrutura abundante”, defende. E sas privadas. No início de 2016, aposentados do Espírito completa: “A estratégia oculta [neste debate] é implemen- Santo que haviam pedido aposentadoria pelo INSS caíram tar a franquia e flexibilizar o Marco Civil da Internet para nas mãos de bancos e agências financeiras. Segundo o Mi- permitir o zero rating”, resume. nistério Público do Estado, as pessoas que haviam reque- Durante audiência que discutiu a questão no Sena- rido o benefício ao INSS receberam ligações de agências do Federal em junho deste ano, Bia Barbosa, do Intervozes, financeiras oferecendo empréstimos consignados antes argumentou que é possível que esta prática comercial crie mesmos dos pedidos serem aceitos. A investigação está um fosso entre aqueles que poderão ter a “liberdade” de apurando como essas agências tiveram acesso a esses da- navegar por quaisquer tipos de conteúdos e aqueles que, dos pessoais. À época, o INSS informou que os dados dos por questões financeiras, não poderão pagar um valor que segurados são mantidos em sigilo e que não fornece qual- garanta a navegação sem restrições. Isso sem falar nos pre- quer dado pessoal a outras instituições que não sejam as juízos para a educação à distância, por exemplo, já que esta responsáveis pelo pagamento da aposentadoria. modalidade educacional exige várias horas na frente da tela “Cada vez mais, em todo e qualquer momento, to- do computador com aulas em vídeo de alta resolução. das as nossas relações sociais estão apoiadas em coletas ou tratamentos de dados. Basta pensar nas relações que a gente tem com o governo, com o setor estatal de uma Dados pessoais maneira geral. É impossível você aderir a um programa social, pensar, por exemplo, num bolsa família ou finan- Em 2014, a Oi, empresa de telefonia, foi condenada ciamento estudantil, sem que você troque os seus dados pelo Ministério da Justiça a pagar R$ 3,5 milhões por ser pessoais para poder aderir a aquele determinado benefí- acusada de monitorar a navegação dos consumidores na cio social”, explica Bruno Bioni, advogado do Núcleo de internet para posterior comercialização de dados. Duran- Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br) e pes- te o processo administrativo, foi observado que a empresa quisador do Grupo de Políticas Públicas para o Acesso à violou direitos à informação, à proteção contra publici- Informação da USP (GPoPAI/USP). dade enganosa e o direito à privacidade e à intimidade. A O pesquisador defende que é urgente pensar uma porta de verificação do comportamento dos consumido- política de proteção de privacidade e uso de dados pes- res era o serviço Navegador, oferecido pelo Velox, o serviço soais na rede, uma vez que grande parte dos modelos de de banda larga da Oi. negócios online e as próprias políticas públicas, como as Durante as investigações, verificou-se ainda que a apontadas, se baseiam no tratamento de nossos dados. parceria da empresa Oi com a britânica Phorm permitiu o Até o momento, o Brasil não tem sancionada uma desenvolvimento do software Navegador, que capturava e lei que regule a coleta, armazenamento, processamento e

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 82 83 divulgação de dados pessoais. O PL 5276/2016, que trata do dade é que temos para onde encaminhar a denúncia (rede assunto, atualmente tramita na Câmara dos Deputados. A de apoio) defensoria, Ministério Público, ONGs de direitos legislação protege os dados pessoais tanto no que diz res- humanos de forma articulada”, contou. Para fazer uma de- peito ao uso por entes privados quanto públicos e ainda núncia por meio de vídeo, foto, áudio ou texto no Nós por impede a transferência internacional de dados para países Nós, o usuário não precisa fazer nenhum cadastro anterior com leis de proteção menos rigorosas do que a nossa. que permita sua identificação, o que no caso do teor da fer- Joana Varon, integrante da Coding Rights, organiza- ramenta, é um detalhe vital para o funcionamento. ção liderada por mulheres que promove direitos no mun- Além do PL 2390/15, uma série de inciativas decor- do digital, explica que vivemos atualmente num contexto rentes dos trabalhos da Comissão Parlamentar de Inqué- de capitalismo de dados. “Tudo o que a gente faz na rede é rito de Crimes Cibernéticos, conhecida como CPI Ciber, registrado. E esses dados são utilizados como modelos de afetam a privacidade e a liberdade de expressão na rede. negócios das empresas que a gente usa pra navegar na rede O relatório final da comissão apresentado em março deste e que a gente usa nos serviços digitais”, resume. ano, reúne oito propostas de projetos de leis que, segundo Enquanto isso, também avançam na Câmara e no a própria comissão, objetivam combater os crimes come- Senado algumas iniciativas de Projetos de Lei que cami- tidos na internet. nham na direção contrária da promoção da privacidade e da liberdade de expressão na web, como o PL 2390/15 que propõe a criação de um “Cadastro Nacional de Acesso à In- Direitos na rede ternet”. O cadastro incluiria informações como endereço e Diante deste cenário, entidades da sociedade civil CPF do usuário e teria como função combater práticas de brasileira criaram em julho de 2016 a Coalizão Direitos pedofilia na internet. Segundo o PL, a cada nova conexão, na Rede, como uma forma de combater as crescentes o usuário teria de fornecer todos os dados pessoais para tentativas de retirada de direitos. Em manifesto lança- que a conexão seja liberada. do durante o VI Fórum da internet, ocorrido em julho O cadastro obrigatório põe em xeque não só direitos de 2016, as entidades afirmam que o objetivo da coali- individuais mas também coletivos e ameaça organizações e zão é defender princípios fundamentais para a garantia movimentos sociais que trabalham com a defesa e promo- de acesso universal à Internet: respeito à neutralidade da ção de direitos humanos e que têm o anonimato como re- rede, liberdade de informação e de expressão, seguran- O Nós por Nós é taguarda para resistir à perseguição ou retaliação. É o caso ça e respeito à privacidade e aos dados pessoais, assim um aplicativo do do aplicativo Nós por Nós. Lançado em março de 2016, o como assegurar mecanismos democráticos e multiparti- Forum de Juven- aplicativo, voltado para denúncias de violações de direi- tudes RJ que surge cipativos de governança. tos cometidas por policiais no Rio de Janeiro, recebeu em de uma cartografia Segundo a Coalizão, além de atacar a privacidade, a quase um ano de funcionamento 250 denúncias. Segundo social realizada liberdade de expressão e comunicação e o direito à infor- com Jovens Negros relatório “Você matou meu filho”, publicado pela Anistia In- mação de cidadãos conectados, este conjunto de propos- e pobres de 15 fa- ternacional, de 2005 a 2014 foram registrados 8.466 casos tas legislativas não leva em conta as características da rede velas do estado do de homicídio decorrentes de intervenção policial no estado RJ sobre o impacto e instaura uma espécie de “censura preventiva”. do Rio de Janeiro; 5.132 casos apenas na capital. na militarização Os níveis de vigilância massiva da série Black Mir- Ao checar o andamento de todas as 220 investiga- na vida deles. A ror vêm causando furor em discussões e tentativas de partir do resultado ções de homicídios decorrentes de intervenção policial no prognósticos que se multiplicam nas redes sociais. Se as da cartografia, os ano de 2011 na cidade, a Anistia descobriu que foi apre- iniciativas analisadas avançarem, trabalhar, estudar, loco- jovens produziram sentada denúncia em apenas um caso. Até abril de 2015 o aplicativo como mover-se, informar-se, comunicar-se, organizar protestos, (mais de três anos depois), 183 investigações seguiam em uma ferramenta de denunciar violações de direitos, entre outras ações essen- aberto. O medo e a descrença no sistema judicial são os luta. ciais para democracia, devem ficar bem comprometidas. principais fatores apontados para a falta de denúncia. Se depender da pressão das empresas e de alguns entes do Um dos idealizadores do aplicativo, Fransérgio Gou- Estado, a realidade fictícia da série está mais próxima do lart, afirma que a ideia da ferramenta é justamente facilitar que podemos imaginar. a reação da população atingida pela violência de Estado. “Tinha já algo se iniciando, mas o aplicativo Nós por Nós facilitou e potencializou essas denúncias. E a grande novi-

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 84 85 Rua Rego Freitas, 454, Cj 92 - 9º andar República • 01220-010 São Paulo • SP • Brasil +55 11 3877 0824 [email protected]

Gestão 2016-2017 Conselho diretor Élida Raquel (AL) – [email protected] Iano Flávio (RN) – [email protected] Iara Moura (RJ) – [email protected] Jonas Valente (DF) – [email protected] Marcos Francisco Urupá (DF) – [email protected] Marina Pita (SP) – [email protected] Pedro Ekman Simões (SP) – [email protected] Veridiana Alimonti (SP) – [email protected]

Coordenação Executiva Ana Claudia Mielke (SP) – [email protected] Bia Barbosa (DF) – [email protected] Mônica Mourão (RJ) – [email protected] Helena Martins (CE) – [email protected] Veridiana Alimonti (SP) – [email protected]

www.intervozes.org.br/direitoacomunicacao

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 86 87 Rua Rego Freitas, 454, Cj 92 - 9º andar República • 01220-010 São Paulo • SP • Brasil +55 11 3877 0824 [email protected] www.intervozes.org.br

Apoio

DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL 2016 88