2 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil CAMINHOS PARA A LUTA PELO DIREITO À COMUNICAÇÃO NO BRASIL - COMO COMBATER AS ILEGALIDADES NO RÁDIOE NA TV ÍNDICE Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social índice Conselho Diretor (2015 - 2016) Ana Claudia Mielke Bia Barbosa Helena Martins 1. Apresentação...... 7 Iara Moura 1.1. Direito à Comunicação...... 10 Iano Flávio Souza Maia Jonas Valente 2. O sistema de comunicação do Brasil...... 13 Marcos Urupá 2.1. Uma terra com leis (velhas e não cumpridas)...... 16 Marina Pita Mayrá Lima 3. Propriedade dos meios de comunicação...... 19 Pedro Ekman 3.1. Concentração...... 21 Veridiana Alimonti 3.2. Diversidade...... 23 Pesquisa e Redação Helena Martins 3.3. Combate aos “laranjas”...... 25 Revisão 3.4. Arrendamentos e transferências...... 26 Bia Barbosa 3.5. Coronéis da mídia...... 33 Iara Moura Veridiana Alimonti 4. Violações sobre conteúdo...... 39 Projeto Gráfico e Diagramação 4.1. Regulação e autorregulação...... 40 Raíssa Veloso 4.2. O que diz a legislação brasileira...... 41 Ilustrações 4.3. Violações de direitos humanos na mídia...... 44 Ramon Cavalcante 4.4. Policialescos: estigmatização e medo...... 48 Apoio Fundação Ford 4.5. A alma do negócio...... 51

Outubro/2015 4.6. Infância desprotegida...... 52

INTERVOZES – Coletivo Brasil de Comunicação Social 4.7. Educação está fora da telinha...... 55 Rua Rego Freitas, 454, cj. 92, 9º andar – República ...... 57 CEP: 01.229-010 – São Paulo / SP 5. O que fazer www.intervozes.org.br 6. Bibliografia...... 61 Intervozes 7

1. Apresentação

Vivemos em uma sociedade marcada pelo constante fluxo de comunicação. Televisores, rádios, celulares, computadores e tantos outros instrumentos fazem parte do nosso cotidiano. Por meio deles, recebemos conteúdos que nos ajudam a compreender o mundo, formar nossa identidade, elencar os temas da conver- sa com amigos, familiares e colegas de trabalho, cons- truir opinião e participar da vida política do país. No entanto, apesar da centralidade que os meios de comunicação adquiriram na vida contemporânea, eles ainda são tratados majoritariamente como espa- ços pertencentes a poucos grupos. Já os conteúdos, como mercadorias trocadas pela publicidade ou pela própria audiência. Isso não ocorre à toa. A exclusão das maiorias sociais da mídia e o controle da informa- ção serviram historicamente para garantir privilégios e manter a desigualdade no acesso ao poder. Os que são hoje donos da mídia querem que a socie- dade não compreenda os meios de comunicação como bens de interesse público, desconheça seu direito a ter acesso a um conjunto diversificado de informações e opiniões e não possua espaços para fazer denúncias e cobrar reparação diante de notícias falsas, distor- ções, preconceitos ou do silêncio imposto aos movi- mentos sociais. Com isso, eles limitam a discussão, a participação da sociedade e suas possíveis conquistas. Afinal, uma sociedade que não conhece seus direitos 8 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 9

não pode reivindicá-los. rantir o interesse público no setor. SAIBA MAIS PROJETO DE LEI DA Por isso é tão raro ver jornais, revistas, emissoras de Regulação e Regulamenta- MÍDIA DEMOCRÁTICA É isso que essa cartilha quer mostrar. Ela tem o obje- televisão e rádio discutindo políticas para o setor. ção: qual a diferença? Conheça algumas propostas: tivo de compartilhar dados sobre o direito à comuni- Por isso os veículos da chamada grande mídia classi- Regulação – Procedimentos • Reservar 33% dos canais ao cação no Brasil, apontar as violações mais frequentes ficam qualquer proposta deregulação como censu- ou regras definidas em sistema público, garantindo praticadas pelos concessionários do serviço na área ra, anulando, de imediato, o debate sobre este tema, leis e outros instrumentos espaço para os veículos da radiodifusão, bem como apresentar formas de coi- normativos feitos pelo Estado comunitários; embora a regulação seja prática corrente na maioria bir tais práticas, inclusive os instrumentos normativos para orientar a atividade • Criar o Fundo Nacional de dos países democráticos. Por aqui, as regras do setor econômica pública e privada Comunicação Pública para que podem ser usados para isso. e proteger o interesse público. são lembradas pela mídia quando podem ser utiliza- apoiar o Sistema Público; que as leis são objetos de intensa disputa políti- Regulamentação – Atos das em benefício próprio. Na maioria dos casos em • Proibir que igrejas e ca, desde sua formulação. Por isso, ao mesmo tempo que poderiam proteger o interesse público, são com- complementares que obje- políticos eleitos (ou parentes tivam detalhar e tornar as em que listamos os dispositivos que podem ser usa- pletamente ignoradas. próximos) tenham canais de leis gerais operativas. É uma rádio e TV; dos para enfrentar a violação do direito à comunica- Sabemos que é preciso uma mudança profunda na so- atividade exclusiva da Presi- ção, cobramos que os poderes Executivo, Legislativo dência da República, que tem • Limitar a propriedade cruzada; ciedade para que possamos democratizar os meios e a atribuição de sancionar, • Garantir espaço para e Judiciário adotem entendimentos que favoreçam a garantir o direito à comunicação. Nesse sentido, mo- promulgar e fazer publicar produção regional cultural, coletividade, o interesse público e a democracia no vimentos sociais e organizações da sociedade civil de- as leis, bem como expedir artística e jornalística na momento de avaliar a prestação deste serviço no país. fendem a reorganização do sistema de comunicação decretos e regulamentos para grade das emissoras (30% a execução delas. entre 7h e 0h, sendo pelo Nas páginas seguintes, você vai saber um pouco mais com a aprovação de um novo marco regulatório para menos 7 horas semanais em do que diz a nossa legislação sobre: limites à proprie- o setor. Propostas concretas já existem. Elas constam horário nobre); dade dos meios de comunicação, posse de meios por no Projeto de Lei da Mídia Democrática – uma ini- • Destinar 1 hora por políticos, transferências de concessões e permissões, semestre para cada um de ciativa popular que gerado debates e manifestações e comercialização de tempo de programação, limites recebido assinaturas em seu apoio em todo o país. 15 grupos sociais relevantes (associações, sindicatos, à veiculação de publicidade, regras para conteúdo e Enquanto essa mudança não ocorre, é necessário co- movimentos sociais). violações dos direitos humanos na mídia. As lacunas brar medidas imediatas para garantir o direito à co- existentes na legislação sobre essas questões, boas municação e frear as violações tanto deste quanto dos práticas adotadas em outros países e a atuação da demais direitos na mídia. Regras estabelecidas no país sociedade civil brasileira por uma mídia democrática e outras asseguradas em tratados internacionais dos também serão discutidas. quais o Brasil é signatário já permitem que o Estado, Esperamos, com isso, fortalecer a luta por mudanças, especialmente o Ministério das Comunicações garantindo informações sobre o tema e ampliando o (MiniCom), responsável por regular, outorgar e fisca- convite para que você também se aproprie desse de- lizar os serviços de rádio e TV, cumpra o papel de ga- bate e defenda o direito à comunicação. Boa leitura! 10 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 11

1.1. DIREITO À COMUNICAÇÃO

A discussão da comunicação como um direito hu- ser produtoras de conteúdo e fazer circular essas mano fundamental tem sido feita pelo menos desde SAIBA MAIS manifestações, sejam elas opiniões, informações ou os anos 1960. Nas décadas seguintes, a percepção da O relatório resultou do tra- produções culturais. Para tanto, é preciso que o Estado balho da Comissão Inter- desigualdade dos fluxos comunicacionais entre os nacional para o Estudo dos adote medidas contra as diferenças que limitam a países e, como resultado disso, os debates em torno Problemas da Comunicação condição de produtor e difusor de informações a da chamada Nova Ordem Mundial da Informação da Organização das Nações tão poucos grupos e garanta o exercício do direito à e Comunicação (Nomic) levaram à afirmação deste Unidas para a Educação, a comunicação de forma plena e em linha com o direito Ciência e a Cultura (Unesco). novo direito, indo além da liberdade de expressão e O grupo foi formado em 1977 à informação e à expressão, já que os direitos humanos do acesso à informação, já garantidos, desde 1948, na sob a liderança do prêmio são complementares e indivisíveis. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em Nobel da Paz, o irlandês 1980, o relatório da Unesco “Um Mundo, Muitas Sèan McBride, e contou com Hoje, o direito à comunicação é reconhecido especialistas de 16 nacio- Vozes”, conhecido como Relatório MacBride , tor- por países como Portugal, Espanha, Argentina e nalidades, entre os quais o Bolívia. No Brasil, a Constituição Federal dedica nou-se um marco desse processo ao destacar a im- escritor e jornalista colombia- portância da mídia e a necessidade dos países ado- no Gabriel García Márquez e um capítulo ao tema, embora não o reconheça como tarem políticas públicas para garantir igualdade nos o teórico canadense Marshall tal. Em 2013, pela primeira vez uma lei brasileira, McLuhan. O relatório não meios de comunicação. o Estatuto da Juventude (Lei 12.852/2013, art. 26), teve o apoio dos EUA e do citou de forma explícita o direito à comunicação. Ele Em torno da construção do conceito de direito à co- Reino Unido, que em protes- to se retiraram da Unesco em estabelece que “o jovem tem direito à comunicação municação, estava a percepção de que outros direitos, 1984 e 1985, respectivamente, e à livre expressão, à produção de conteúdo, como liberdade de expressão, não respondiam total- retornando anos depois. individual e colaborativo e ao acesso às tecnologias mente aos desafios colocados por uma sociedade mi- de informação e comunicação”. diatizada, na qual a possibilidade de circular informa- A LIBERDADE DE A inclusão do direito à comunicação na lista daqueles ção passa, necessariamente, pelo acesso à mídia. Indo EXPRESSÃO é garantida além de uma abordagem individual e pautada pela pela Declaração Universal reconhecidos como fundamentais é uma das propostas ideia da liberdade negativa, segundo a qual o Estado dos Direitos Humanos, que do Projeto de Lei da Mídia Democrática. Segundo o não deve impedir a manifestação de ideias, a perspec- estabelece no artigo 19 que texto, a “promoção e garantia dos direitos de liberdade “todo ser humano tem direito tiva do direito à comunicação afirma justamente o pa- à liberdade de opinião e de expressão e opinião, de acesso à informação e do pel do Estado para eliminar as restrições econômicas expressão; este direito inclui direito à comunicação” devem ser tomadas como e sociais impostas a diversos grupos para se comuni- a liberdade de, sem inter- princípios da comunicação social eletrônica. Com car por meio de veículos massivos. ferência, ter opiniões e de o acesso de diversos grupos ao espaço público e procurar, receber e transmitir midiático, esperamos que a sociedade possa ser mais Na prática, tal direito objetiva um ciclo positivo de informações e ideias por justa, igualitária e solidária. interação e diálogo. Significa que todas as pessoas quaisquer meios e indepen- dentemente de fronteiras”. devem ter condições para se expressar livremente, 12 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 13

2. o sistema de comunicação no brasil

No Brasil, ao contrário de países como a Alemanha, a França e o Canadá, desde o início das transmissões radiofônicas o Estado deu à iniciativa privada a tarefa de ofertar o serviço de radiodifusão (rádio e TV). Essa escolha gerou o domínio do sistema ALCANCE DAS por grandes grupos privados, como Globo, Record, EMISSORAS SBT e Bandeirantes. Devido à falta de limites, essas empresas passaram a ter alcance nacional e atuação em diferentes segmentos. A pesquisa Mídia Dados Brasil 2015, feita pelo Grupo de Mídia de São Paulo, aponta que, apenas com a televisão, a Rede Globo chega a 98,6% dos municípios brasileiros. O SBT, a 85,7%. A Record, a 79,3%. Já a Bandeirantes alcança 64,1% e a Rede TV, 56,7%. Nenhuma outra emissora chega a dois dígitos. A concentração no setor televisivo também é aguda quando o tema é a audiência. Em 2014, a líder Globo obteve, em média, 37,8%. O SBT, 13,4%. Bem próximo a isso, a Record chegou a 13,1%. A Band, a 5,1%. Já a Rede TV! teve, em média, 1,7%. Todas as demais emissoras somadas totalizaram 28,9%. É certo que o acesso a outros meios, especialmente a internet, tem crescido no país. A Pesquisa Brasileira de Mídia 2015, elaborada pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom/PR), mostra que 48% dos/as brasileiros/as usam a rede mundial de computadores, sendo que 14 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 15

ESPECTRO plano (em muitos casos, são completamente esquecidos). ELETROMAGNÉTICO - Tudo o que chega ao No sistema de comunicação do país, coube especial- espectador por meio do mente às emissoras públicas e comunitárias o pa- rádio ou da televisão tem pel de fazer da mídia um espaço para a cidadania. que passar pelo espectro Mas elas sempre sofreram com o pouco espaço no eletromagnético, conjunto de frequências da radiação espectro eletromagnético, dificuldades de alcance, eletromagnética, que falta de recursos, uma legislação restritiva e a concor- funciona como uma estrada rência desleal com os grupos hegemônicos. Como re- por onde trafegam carros. sultado disso, muitos/as brasileiros/as sequer conhecem Assim como a estrada, esse 37% fazem isso todos os dias. Não cabe aqui entrar em espaço é limitado. Para os veículos públicos e os estatais em funcionamento no detalhes sobre o acesso e o conteúdo compartilhado utilizá-lo, é preciso obter país. A Pesquisa Brasileira de Mídia 2015 aponta que a uma concessão pública TV Brasil, principal emissora pública do país, é conheci- na rede. O que queremos evidenciar é que, apesar dada pelo Estado. Segundo dessa concorrência, TV e rádio ainda são os veículos a lei, o espectro é um bem da por apenas 31% dos/as entrevistados/as. mais populares e com maior capacidade de influenciar público administrado A concentração da propriedade, a grande presença de na informação da população e formação da opinião pela Anatel (Lei Geral de Telecomunicações, art. 157). grupos familiares, a vinculação às elites políticas lo- pública. Além disso, frequentemente pertencem a cais e, ainda, o “toma lá, dá cá” entre governos, políti- grupos politicamente fortes. cos e empresas, entre outros fatores, arquitetaram um De acordo com o estudo, 95% dos/as entrevista- sistema que limita/ a liberdade de expressão da maio- dos/as veem TV, sendo que 73% a assistem todos ria da população e que é incapaz de garantir diversi- os dias. Essas pessoas dedicam a isso, em média, dade de conteúdo e pluralidade dos atores envolvidos 4h31 por dia, de segunda a sexta-feira, e 4h14 no fim na produção e circulação de comunicação. de semana. Já o rádio é escutado por 55% dos que Em muitos momentos da nossa história, esse arran- participaram do estudo. Cerca de 30% usam esse meio todos os dias. Durante a semana, a exposição é, em jo serviu para incidir diretamente no regime políti- média, de 3h42 diárias. Aos sábados e domingos, a co. O apoio dos grandes conglomerados midiáticos à média chega a 2h33. Ditadura Militar, o silêncio de parte deles em relação ao movimento que pedia eleições diretas no contexto Não há dúvidas, portanto, da importância social des- da redemocratização, a edição do último debate tele- ses veículos de comunicação. O que preocupa é que, visivo da disputa eleitoral para a Presidência em 1989, sendo hegemonicamente comerciais e, portanto, guia- a criminalização dos grupos que propuseram e pro- dos pela busca por lucro, o interesse público, a diversida- põem reformas populares são exemplos disso e mos- de, a educação e a cultura acabam ficando em segundo tram o perigo da sociedade desconhecer esses impactos. 16 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 17

2.1. UMA TERRA COM LEIS (VELHAS E NÃO CUMPRIDAS)

Os interesses privados incidiram diretamente na regula- tempo, elas foram editadas para tratar de questões espe- ção do setor midiático, ao longo da história do Brasil. O cíficas, deixando o conjunto do setor ainda organizado Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), de 1962, por uma lei arcaica e, desde o início, problemática. foi bastante influenciado pelas empresas, que à época A Constituição Federal traz artigos progressistas sobre se organizaram em torno da Associação Brasileira de o tema, frutos da participação de entidades do setor no Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), até hoje atuan- processo constituinte. Ela estabelece que os princípios te com grande força política. A pressão foi tanta que to- norteadores da produção e da programação das emis- dos os 52 vetos à lei, feitos pelo então Presidente João soras de rádio e televisão são: preferência a finalidades Goulart, foram rejeitados pelo Congresso Nacional. educativas, artísticas, culturais e informativas; promo- Aos problemas já então constatados, como o largo prazo ção da cultura nacional e regional e estímulo à produção das concessões (15 anos para televisão e 10 para rádio) e independente; regionalização da produção cultural, ar- a ausência de punição no caso da publicação de notícias tística e jornalística; respeito aos valores éticos e sociais falsas, somaram-se outros. Aprovada quando a transmis- da pessoa e da família (art. 221). Também proíbe o mono- são de TV em cores ainda estava em fase de testes, a lei pólio e o oligopólio nos meios de comunicação (art. 220). não responde hoje ao debate político da sociedade sobre a No entanto, a maior parte dos artigos não encontra detalha- comunicação ou aos desafios da convergência tecnológica, mento na legislação infraconstitucional, inclusive os dois que tem levado à ampliação da concentração midiática. SAIBA MAIS CONCENTRAÇÃO HORIZON- citados acima. Além das lacunas, também falta vontade po- A propriedade cruzada, por exemplo, não foi regulada pelo TAL, VERTICAL E CRUZADA lítica para efetivar o que consta na Carta, como o estabele- CBT e segue sem ser objeto de leis brasileiras que tratam do A concentração horizontal cimento da complementaridade entre os sistemas público, ocorre em casos de mono- rádio e da televisão aberta. Esse tipo de concentração foi proi- LEGISLAÇÃO GERAL privado e estatal. A própria definição de sistema público só bido apenas no caso dos Serviços de Acesso Condicionado polização ou oligopolização ocorreu com a criação da Empresa Brasil de Comunicação dentro de uma mesma área SOBRE SISTEMA DE (SeAC), como a TV paga, após a recente aprovação da lei do setor. Já a vertical, quando COMUNICAÇÃO (EBC) pela Lei 11.652/2008. Ainda hoje, contudo, estamos 12.485/2011. Ela proíbe que empresas de telecomunicações há integração das diferentes • Constituição Federal de longe de ter um equilíbrio entre esses sistemas. controlem empresas de radiodifusão e vice-versa. Também etapas da cadeia de produção 1988 (Capítulo V) O que fazer diante desse cenário? A opinião que o mi- impede que os serviços de cada setor sejam prestados por e distribuição. A propriedade • Regulamento dos Serviços cruzada é caracterizada, nistro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux deu um grupo que atua no outro. Assim, empresas telefônicas de Radiodifusão (Decreto nº por sua vez, pela formação 52.795/1963) ao julgar ações relacionadas à lei do Serviço de Acesso que distribuem o sinal da TV paga estão proibidas, por exem- de conglomerados multi- • Código Brasileiro de Condicionado (SeAC) é esclarecedora. Em sessão reali- plo, de produzir conteúdos para esses canais. mídia que agregam, a título Telecomunicações (Lei nº zada em junho de 2015, disse que é preciso que o Estado de ilustração, TV aberta, 4.117/1962) No caso da rádio e da TV aberta, além de desfasados e TV por assinatura, rádio, tenha um “papel ativo”, “promocional”, “no combate à insuficientes, o Código e as regras muitas vezes são ig- revistas, jornais, telefonia, • Regulamento dos Serviços concentração do poder comunicativo”, pois “o mercado de Radiodifusão (Decreto N° norados. Aliás, outro problema que marca a comunica- provedores de internet, etc. audiovisual – deixado por si próprio – é incapaz de pro- (LIMA, 2008). 52.795 /1963) ção brasileira é a dispersão das normas. Com o passar do mover a diversidade de conteúdo e o pluralismo”. 18 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 19

3. propriedade dos meios de comunicação

Esqueça a ideia de que os donos da mídia devem ser sempre os Marinho e outros parecidos com eles. Todos os brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos podem ter empresa jornalística e de ra- diodifusão sonora e de sons e imagens, de acordo com o artigo 222 da Constituição Federal. As pesso- as jurídicas autorizadas a explorar esse serviço devem constituídas sob as leis brasileiras e ter sede no País. Todas elas têm que seguir uma regra: garantir que pelo menos 70% do seu capital total e votante per- tença, direta ou indiretamente, a brasileiros. Essa é uma forma de manter o caráter nacional da mí- dia. Além desses atores, a legislação autoriza que União, Estados, Municípios, universidades e fun- dações prestem o serviço de radiodifusão (art. 7° do Decreto 52.795/1963). Para levar emissoras ao ar, é preciso ter uma con- cessão, permissão ou autorização do Estado (no caso de rádios comunitárias, retransmissoras e re- petidoras de rádio e TV). Os interessados em pres- tar o serviço devem participar de seleção pública, em geral uma licitação. As principais regras estão previstas no Decreto 52.795 /1963, já alterado por normas posteriores. Na classificação das propostas, sai na frente quem atingir maior pontuação. Para tanto, são considerados critérios diversos que estão presentes nessa norma e no Decreto 7.670/2012. 20 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 21

Tempo destinado a programas educativos e a servi- Difícil? Some a isso o fato de todo o processo de ço jornalístico e noticioso; tempo destinado a progra- outorga ocorrer sem transparência ou participação mas culturais, artísticos, educativos e jornalísticos da sociedade. Alguns parlamentares são ainda, eles produzidos no município de outorga; e presença de próprios, concessionários dos serviços de radiodi- conteúdos desse tipo feitos por entidade sem vínculo fusão. Não é absurdo concluir, portanto, que a ló- com empresas de radiodifusão são exemplos daquilo gica da renovação automática, sem avaliação do que o decreto estabelece como desejável em termos respeito ao interesse público e sem debate com o de conteúdo. Também são considerados critérios téc- conjunto da sociedade, tornou-se regra. E é assim nicos e a proposta de preço oferecido pela outorga. que um serviço público acaba sendo apropriado por Infelizmente, como a mídia é tratada como negócio, poucos e executado a despeito de qualquer critério. esse último critério sempre prevaleceu sobre os demais. Após o vencimento do prazo da outorga (15 anos 3.1. CONCENTRAÇÃO para televisão e 10 para rádio), deve haver a avalia- ção da prestação do serviço e do cumprimento das finalidades estabelecidas, para então ser viabilizada A concentração dos meios de comunicação no Brasil a renovação do serviço (art. 67, parágrafo único, da é alarmante. Já vimos aqui que quatro grupos domi- Lei 4.117/1962). Mas, se é assim, como gerações intei- nam 69,4% de toda a audiência televisiva. Indo além, ras cresceram vendo praticamente os mesmos canais é possível afirmar que boa parte dos meios de comu- e donos da mídia? E quem dá as cartas sobre isso? nicação tradicionais do país (rádio, televisão aberta, jornais, revistas) é controlada pelas famílias Marinho De acordo com a Constituição Federal (artigos 49, (Organizações Globo), Abravanel (SBT), Saad (Rede XII e art. 223), a outorga e a renovação dos servi- Bandeirantes), Sirotsky (RBS), Civita (Editora Abril), Frias ços de radiodifusão são de responsabilidade do (Folha de S. Paulo), Mesquita (O Estado de S. Paulo), bem Poder Executivo (Ministério das Comunicações e como por duas igrejas, a Universal do Reino de Deus Presidência da República, no caso de televisão) e Imagine: (Record) e a Igreja Católica (Rede Vida). Em âmbito re- devem ser confirmadas pelo Congresso Nacional. quantos deputados gional e local, o cenário também é pouco diverso. Aliás, Cabe ao Congresso, inclusive, votar a não renovação topam enfrentar as pesquisas mostram que quanto mais pobre é a região da concessão. Para isso, dois quintos do Parlamento a Globo e discutir A pesquisa está dispo- maior é o nível de concentração da mídia. devem se manifestar contra a renovação em votação nível em http://observa- a renovação toriodaimprensa.com.br/ Para piorar, nos últimos anos, o número de agen- nominal, como fixa o artigo 223,§2º da Carta Magna. de concessões interesse-publico/pobreza-a- tes tem diminuído. Famílias tradicionais como Levy Agora, imagine quantos deputados topam enfren- públicas para limenta-concentracao-nas- (Gazeta Mercantil) e Nascimento Brito (Jornal do comunicacoes-brasileiras/ tar a Globo e discutir a renovação de concessões. rádio e televisão? Brasil) perderam espaço. Mesmo os Civita, que ti- 22 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 23

LIMITES À PROPRIEDADE DE EMISSORAS DE RÁDIO POR ENTIDADE

LOCAL ESTADUAL REGIONAL NACIONAL

4 estações ondas 3 estações ondas 2 estações ondas nham atuação forte no impresso e na TV paga, redu- médias (OM) médias (OM) médias (OM) ziram drasticamente seus negócios. As mudanças que abalam o setor hoje, relacionadas à crise do impresso e da publicidade, à concorrência com a Internet e à pre- sença de conglomerados tradicionais, tendem a refor- çar esse movimento. Exemplo disso é o que ocorre na 6 estações frequência 3 estações ondas 2 emissoras 2 estações ondas TV paga. Nesse segmento, as quatro principais opera- modulada (FM) tropicais (OT) de rádio curtas (OC) doras (Claro/NET/Embratel; SKY; Oi e Telefônica/GVT) chegam a controlar 91,69% do número total de acessos. prietário em todo o país, sendo no máximo 2 por esta- Fazer valer a proibição da formação de monopólios e do. É por isso que o Grupo Globo possui, formalmen- oligopólios é algo absolutamente necessário para a ga- te, cinco emissoras de TV próprias, com sedes no Rio rantia da liberdade de expressão, da diversidade e da de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Brasília e Recife. pluralidade. Para tanto, uma postura ativa do Estado no sentido de buscar concretizar esses direitos deve 3.2. DIVERSIDADE: ser estimulada. No entanto, a concentração da proprie- A GENTE NÃO VÊ POR AQUI dade foi facilitada pela ausência de dados públicos so- bre o tema, que só passaram a ser disponibilizados em 2003, embora de forma ainda pouco clara. Também Como forma de se desvencilhar dessas poucas amar- foi legitimada pela ausência de uma regulamentação ras legais, os grandes grupos de mídia constituíram im- eficiente sobre os limites de propriedade. périos por meio de retransmissoras e alianças com gru- pos regionais, formando as chamadas redes. Na prática, A concentração no setor, apesar disso, pode e deve ser uma “cabeça-de-rede”, a exemplo da TV Globo Rio de considerada ilegal, afinal o monopólio e o oligopólio Janeiro, impõe a transmissão de sua programação para são proibidos pela Constituição em seu artigo 220, §5º. A lista de sócios e dire- afiliadas em todo o país. Há ainda normas objetivas que coíbem o excesso de tores de todas as empresas propriedade. O artigo 12 do Decreto-lei 236/1967, por de rádio e televisão do país Mas o artigo 12,§7º, do Decreto-Lei 236/1967 também res- disponibilizada pelo Mini- tringe a formação de “cadeias ou associações”. Diz o tex- exemplo, estabelece a quantia que cada entidade pode Com tem como base o Siste- ter de permissões (dadas a emissoras de caráter local) ma de Acompanhamento de to: “As empresas concessionárias ou permissionárias de e concessões (de caráter nacional) para executar o ser- Controle Societário (SIAC- serviço de radiodifusão não poderão estar subordinadas viço de radiodifusão. CO), gerenciado pela Agência a outras entidades que se constituem com a finalidade de Nacional de Telecomunica- estabelecer direção ou orientação única, através de ca- No caso da televisão, a regra é clara! O mesmo texto ções (Anatel). Ela pode ser deias ou associações de qualquer espécie”. normativo permite até 5 geradoras de VHF por pro- acessada em: http://sistemas. anatel.gov.br/siacco/ Basta olhar para a grade de programação das emissoras 24 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 25

Cerca de 90% dos conteúdos veiculados pelas afiliadas são produzidos pela “cabeça-de-rede”

de todo o país para perceber que essa proibição é ignora- OBSERVATÓRIO DO DI- 3.3. COMBATE AOS “LARANJAS“ da. Cerca de 90% dos conteúdos veiculados pelas afiliadas REITO À COMUNICAÇÃO. são produzidos pela “cabeça-de-rede”, segundo estudo do Produção regional na TV Observatório do Direito à Comunicação. A produção aberta brasileira: um estudo Outra forma de combater o acúmulo de outorgas é própria desses canais é essencialmente jornalística. Como em 11 capitais. Observatório fazer valer o art. 12,§3, do Decreto-lei 236/1967, que do Direito à Comunicação. diz: “Não poderão ter concessão ou permissão as resultado, temos uma programação centralizada, produ- 2009. Disponível em: . ta que integre o quadro social de outras empresas grupos ampliam seu poder por todo o território, ganham com executantes do serviço de radiodifusão, além dos verbas publicitárias e sufocam a diversidade do nosso país. O Mapeamento TV limites fixados neste artigo”. Do mesmo modo, o Aberta, da ANCINE, pode ser quinto parágrafo fixa que “nenhuma pessoa poderá Essa lógica é apontada pela Agência Nacional do Cinema conferido em: < http://www. participar da direção de mais de uma empresa de (Ancine) como fundamental na definição do mercado de ancine.gov.br/media/SAM/ radiodifusão, em localidades diversas, em excesso TV aberta no Brasil. No Mapeamento - TV Aberta de Estudos/Mapeamento_ TVAberta_Publicacao.pdf>. aos limites estabelecidos neste artigo”. As regras só 2010, a agência reconhece que as afiliadas “oferecem au- diência às emissoras, em troca de programação, gerando não valem para a posse de estações repetidoras e assim mais audiência e anúncios a ambas”. Nota ainda retransmissoras de televisão. que as geradoras funcionam apenas como retransmisso- Medida protetiva semelhante já constava no Código ras de programação e que a infraestrutura pública serve Brasileiro de Telecomunicações (art. 38, g). A prin- para dar suporte, de Norte a Sul, a negócios privados. cipal lei do setor prevê expressamente que uma Apesar dessa importância, a Ancine assinala que nem a mesma pessoa não poderá participar da adminis- Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) nem o tração ou da gerência de mais de uma concessio- Ministério das Comunicações possuem o mapeamento NORMAS SOBRE nária, permissionária ou autorizada do mesmo tipo PROPRIEDADE das redes de televisão. de serviço de radiodifusão, na mesma localidade. A • Constituição Federal de O Ministério, por sua vez, não considera que as “redes” 1988 (Capítulo V) exceção feita também é para estações repetidoras caracterizam a subordinação prevista na lei, embora esta • Lei Geral de Telecomunica- e retransmissoras de televisão. Reforçando a medi- deixe claro que a associação ocorre quando há “a finali- ções (Lei 9.472/1997) da, o artigo 15,§1º, c do Decreto 52.795/1963 diz que, dade de estabelecer direção ou orientação única”. Apesar • Decreto-Lei Nº 236 / 1967: para participar da licitação, a direção da empresa da ausência de reconhecimento oficial, a direção sobre as Complementa e modifica o deve apresentar documentos que comprovem que Código Brasileiro de Teleco- não infringe as regras citadas. redes se materializa nos nomes dos jornais locais trans- municações (CBT) mitidas, por exemplo, pelas afiliadas da Globo, na estética • Decreto 7.670/2012: Altera Por que, então, o MiniCom não atua diante dos ex- dos programas e na impossibilidade de alteração da grade dispositivos do Regulamento cessos? Primeiro, o Ministério não trabalha anali- da programação por parte das emissoras locais. dos Serviços de Radiodifusão sando os grupos econômicos de forma geral, como 26 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 27

TEMPO DE PROGRAMAÇÃO VENDIDO PARA PROGRAMAS RELIGIOSOS OU PUBLICITÁRIOS (POR SEMANA)

EMISSORA BANDEIRANTES REDE TV! TV GAZETA REDE 21 RECORD

Tempo total de 83 horas e 38 horas e programação ven- 32 horas 154 horas 35 horas 50 minutos 30 minutos faz no caso do setor de telecomunicações. Isso seria dido (estimado) importante porque muitos conglomerados são for- Percentual do tem- mados pela junção de pessoas jurídicas distintas. po de programação 19% 50% 23% 92% 21% Não faz sentido, portanto, considerá-las isolada- vendido mente. Mas é exatamente isso o que o órgão fisca- Fonte: Intervozes (2014) lizador da radiodifusão no Brasil faz. E mais. Para o Ministério das Comunicações, CNPJs diferentes significam entidades diferentes. Uma interpretação que precisa ser alterada, pois para obter um novo registro de pessoa jurídica basta uma simples mu- dança na composição acionária do grupo. pelo Intervozes em 2014 mostra que essa prática Além de não avaliar a composição e o consequen- ilegal é bastante frequente. Em emissoras como a te controle pelos mesmos agentes, o órgão também Rede 21 e a CNT, absurdos 91,66% do tempo total da não considera o grau de parentesco existente en- programação são comercializados, o que equivale a tre os sócios. Essa postura permissiva, na prática, 154 horas de programação terceirizada por semana autoriza que vários sócios ou mesmo proprietários ocupadas por programas como ShopTur, Polishop e “laranjas” justifiquem a propriedade de diversos leilão de tapetes. meios de comunicação que, em essência, perten- Os principais contratantes são empresas de publi- cem a um mesmo grupo. cidade e igrejas. No Canal 21, são 22 horas diárias ocupadas pela Igreja Mundial do Poder de Deus. A 3.4. ARRENDAMENTOS E Rede TV, líder na programação religiosa, vende 46 TRANFERÊNCIAS ILEGAIS horas de sua programação semanal para igreja. Já a Record, da Igreja Universal, disponibiliza 32 horas. Outras duas práticas que devem ser enfrentadas Essa lógica reforça o “televangelismo”, que ocupava para que a legislação sobre propriedade dos meios em 2011, segundo dados da Folha de S. Paulo, 140 seja respeitada são o arrendamento, isso é, a co- horas semanais da TV brasileira. Uma presença que mercialização de parte do espaço da programação cresceu nos últimos anos, ampliando espaços para para terceiros, e a transferência direta ou indireta o proselitismo religioso. de concessões e permissões. Todas elas fragilizam o O arrendamento, em muitos casos, acaba possibilitan- caráter público do serviço de comunicação. do que grupos burlem os limites de propriedade e te- Sobre o arrendamento, levantamento produzido nham mais espaço nos meios de comunicação do que o que é permitido. Os limites à escolha dos consumi- 28 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 29

dores e os danos para a diversidade e para a garantia descumprida por emissoras que funcionam como da laicidade do Estado também são evidentes. verdadeiros “supermercados eletrônicos”. Ao contrário do que temos visto, essa prática pode A venda de tempo de publicidade acima do limite ser combatida pelos mecanismos já previstos em lei legal agride todo o processo de outorga e consti- e considerada nula, pois se baseia na negociação de tui infração à ordem econômica (art. 36 da Lei nº um bem público sem prévia licitação. Além disso, 12.529/2011). Se para obter uma concessão ou per- ela não obedece aos princípios da impessoalidade e missão é preciso apresentar uma proposta de pro- do tratamento isonômico na disputa por contratos gramação e se essa programação é alterada depois públicos (art. 37 da Constituição e art. 3º da Lei nº de ser vendida, está claro que há um problema. 8.666/1993). Ao terceirizar parte da programação, o Novamente, o entendimento restrito do Ministério concessionário escolhe e, assim, beneficia um ter- das Comunicações, expresso em uma nota infor- ceiro que não participou da competição pela licen- mativa em 2012, é de que o arrendamento não foi ça, mas que vai ocupar um espaço público. objeto de regulamentação e, por isso, não é possível atuar em relação a esses contratos. O Ministério, Na prática, ocorre uma subconcessão, algo não pre- com isso, compra o argumento das empresas e aca- visto nas regras para a radiodifusão no país. Mesmo ba liberando o comércio de programação. se fosse considerada a norma que trata dos serviços públicos em geral, ainda há flagrante desrespeito, Parte do Judiciário já tem adotado outro enten- pois a subconcessão somente é admitida no serviço dimento. Em decisão inédita, em 2015, a Justiça público “desde que expressamente autorizada pelo Federal, provocada pelo Findac, pediu a suspensão poder concedente”, devendo ser sempre precedida dos serviços de radiodifusão da Rádio Vida, do ex- de concorrência (art. 26 da Lei nº 8.987/1995). vereador de São Paulo Carlos Apolinário. Ele havia resolvido alugar toda a programação da rádio para As empresas costumam se defender alegando a a Comunidade Cristão da Paz. A prática pode fazer possibilidade de venda de espaço da programação com que Apolinário tenha que pagar R$ 20 milhões, para publicidade. Só que o Código Brasileiro de valor estabelecido na ação civil pública. A Justiça Telecomunicações também estabelece limites a esta bloqueou os bens do ex-vereador e suspendeu a prática. Ele permite a comercialização de até 25% programação da rádio. do tempo na programação das estações de radiodi- Em 2013, Abril anunciou a venda da fusão (art. 124 da Lei nº 4.117/1962), ou seja, 6 horas concessão do canal da MTV para Assim como o arrendamento, a transferência dire- por dia, incluindo todos os intervalos comerciais. o grupo Spring, que edita a revista ta - quando uma pessoa jurídica passa para outra Rolling Stone. O negócio irregular Essa demarcação também está colocada no Decreto envolveu R$ 290 milhões. a outorga para prestação de serviços - ou indire- nº 52.795/1963 (art. 28,12, c), mas é flagrantemente ta - que ocorre no caso de mudanças no controle 30 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 31

Enquanto a venda irregular da conces- são do canal da MTV é analisada pela Justiça, a programação é ocupada pela Igreja Mundial do Poder de Deus, do pastor Valdemiro Santiago.

de fato, mas não na pessoa jurídica - são práticas inconstitucionais que acontecem com frequência e que podem ser verificadas facilmente. MPF descobriu que o pedido de transferência foi No fim de 2013, um desses casos veio à tona. A Abril feito depois de a negociação ter sido efetivada, anunciou a venda da concessão do canal da MTV sem o respaldo do Ministério. Foi pedido, por isso, para o grupo Spring, que edita a revista Rolling o cancelamento da transação. O caso ainda corre Stone. O negócio irregular envolveu R$ 290 milhões. na Justiça. Enquanto isso, a programação do canal Mais uma vez, não houve observação por parte do tem sido praticamente toda ocupada pela Igreja Ministério que deveria fiscalizar a radiodifusão. Mundial do Poder de Deus. Coube ao Ministério Público Federal (MPF) de- Embora o Código Brasileiro de Telecomunicações nunciar o problema, a partir das discussões e aná- permita a transferência direta e indireta da outorga, lises feitas com participação da sociedade civil no desde que com a prévia anuência do Ministério das NORMAS SOBRE âmbito do Fórum Interinstitucional pelo Direito à Comunicações, entendemos que essa autorização le- Comunicação (Findac), que funciona em São Paulo. ARRENDAMENTO E TRANSFERÊNCIA gal não foi recepcionada pela Constituição Federal de O MPF não teve dúvidas ao afirmar que a venda • Constituição Federal (art. 37) 1988. Isso porque a Constituição afirma, em seu art. da MTV violava a Lei nº 4.117/1962 e o Decreto nº • Código Brasileiro de 175, que a prestação de serviços públicos sob o regime 52.795/1963, que vedam a cessão do direito de uso Telecomunicações (Lei nº de concessão ou permissão deverá ocorrer sempre por da outorga a terceiros sem a prévia autorização do 4.117/1962) meio de licitação. Portanto, se um concessionário não poder concedente. No questionamento, o órgão • Decreto-Lei Nº 236 / 1967: deseja ou não tem mais condições de prestar o servi- Complementa e modifica destacou que “os canais abertos, enquanto serviço o Código Brasileiro de ço de radiodifusão, sua outorga deve ser devolvida ao público, não são comercializáveis entre particula- Telecomunicações (CBT) Estado e repassada a outro prestador mediante novo res, e toda autorização para que a iniciativa priva- • Decreto 2.108/1996: Altera procedimento licitatório. da explore as frequências deve ser feita mediante dispositivos do Regulamento dos Serviços de Radiodifusão A transferência acertada entre pares, sem concorrên- concorrência pública” (Ação Cautelar Preparatória cia ou debate público, impede que outros grupos da n° 0006235-69.2015.4.03.6100). • Lei N° 8.987/1995: Dispõe sobre o regime de concessão radiodifusão privada, pública ou comunitária possam Em sua defesa, a Abril alegou que seguiu o Código e permissão da prestação de ter acesso às licenças. Sem o procedimento licitatório, Brasileiro de Telecomunicações e informou o serviços públicos existente exatamente para garantir legalidade, mora- Ministério das Comunicações sobre a mudança • Lei nº 8.666/1993: lidade, impessoalidade e publicidade em todo o pro- (o art. 90 do Código diz que nenhuma transferên- Institui normas para cesso (art. 10 do Decreto 52.795/1963), a possibilidade licitações e contratos da cia de concessão ou permissão poderá ser realiza- Administração Pública de novas vozes ocuparem esse espaço público acaba da sem autorização do Governo Federal). Só que o sendo inviabilizada. 32 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 33

ILEGALIDADE NO AR 3.5. OS CORONÉIS DA MÍDIA Com o objetivo de chegar a locais mais Itanhaém, Sulamérica Trânsito (FM rentáveis, empresas de radiodifusão 92,1) de Mogi das Cruzes, Nativa (FM O chamado coronelismo eletrônico é outra prática 95,3) e Mix (FM 106,3) de Diadema, Tupi praticam ilegalidades como ampliação recorrente que viola a legislação em vigor no país. do alcance e mudança de suas antenas (FM 104,1) de Guarulhos, Terra (FM Mais do que um desrespeito às leis, a troca de con- para localidade diferente daquela em 97,3) de Atibaia, Sê tu uma benção (FM que possui autorização para a execução 98,1) de Itatiba, Expressão (FM 106,9) cessões de rádio e TV como moeda política e seu do serviço. Elas descumprem, assim, a e Scalla (FM 102,1) do Arujá, 89 (FM controle por deputados, governadores, senadores, Portaria n° 26 do Ministério das Comuni- 89,1) e Alpha (FM 101,7) de Osasco, 106 ministros e até presidente da República talvez seja cações, de 1996, que diz que essa altera- Love (FM 105,7) e Tropical (FM 107,9) o maior exemplo do uso político dos meios de co- ção só pode ocorrer por questões técnicas de Itapecerica da Serra, Energia 97 (FM municação em benefício das elites. Isso submete 97,7) e Rede Aleluia de Rádio (FM 99,5) a imprensa e seu conteúdo ao controle político. e para melhor atender à localidade objeto Antônio Carlos Magalhães, da outorga. Mesmo nesse caso, o estúdio de Santo André e Vida (FM 96,5) de São ex-ministro das Comunica- Assim, órgãos que deveriam servir para investigar principal de emissora de rádio deve estar José dos Campos. ções: concessões em troca de os poderes acabam sendo usados para manipular a apoio político situado na localidade original. Em 2015, diante da situação, a Ana- opinião pública em favor deles. Contando com a omissão dos órgãos tel determinou que a situação fosse Um caso ilustrativo ocorreu no governo José Sarney. O então Ministro das Comunicações Antônio Carlos Magalhães, ACM, distribuiu nada menos que 1.028 outorgas durante sua gestão. Apenas no mês ante- rior à promulgação da Constituição de 1988, foram distribuídos 25% desse total. O objetivo era claro: trocar as concessões por apoio às propostas defen- didas pelo governo na Assembleia Constituinte.

fiscalizadores, em São Paulo, conforme corrigida. Em decisão inédita, a Justiça ACM não esqueceu, inclusive, de se beneficiar com perceberam o Ministério Público Fede- Federal pediu a suspensão dos serviços outorgas. Na época, ele também convenceu Roberto ral (MPF) e a sociedade civil, as rádios de radiodifusão da Rádio Vida, nos mu- Marinho a transformar a TV Bahia, de sua proprie- alteravam suas antenas sem que respei- nicípios e São José dos Campos e Mogi dade, em afiliada da Rede Globo. A relação foi fun- tar esses requisitos. A partir da reco- das Cruzes. Também foi determinado damental para a manutenção do poder da família mendação do MPF, a Anatel fez relatório que União e Anatel não concedessem Magalhães. O mesmo ocorreu com a família Collor, sobre a prática e comprovou que 16 rádios mais outorgas aos réus. Foi decretada, em Alagoas, e Barbalho, no Pará, bem como com faziam o deslocamento ilegalmente. por fim, a indisponibilidade dos bens de outras tantas espalhadas pelo país. algumas das empresas investigadas. A mudança foi comprovada nos casos O termo “coronelismo eletrônico” é uma referência das rádios Bandeirantes (FM 90,9) de 34 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 35

às oligarquias que controlavam a riqueza e o voto proprietários, controladores ou diretores de empre- da população a partir do domínio da terra e da in- sa que goze de favor decorrente de contrato com fluência política. Embora se baseie em condutas pessoas jurídicas de direito público, ou nela exercer arcaicas, a apropriação das concessões por políti- função remunerada”. Vale ressaltar que o artigo 55 cos segue sendo um problema atual. Na legislatura diz que “perderá o mandato o deputado ou senador passada (2010 – 2014), eram 40 os parlamentares fe- que infringir qualquer das proibições estabelecidas derais que controlavam diretamente emissoras de no artigo anterior”. radiodifusão. Na que foi iniciada em 2015, são ao O Código Brasileiro de Telecomunicações (art. 38, todo 44, sendo 9 senadores e 35 deputados. parágrafo único) e o Decreto 52.795/1963 (art. 15, Parte deles integra a Comissão de Ciência, §5º, b) também deixam claro que quem estiver no Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) gozo de imunidade parlamentar ou de função que da Câmara, por onde passam todos os processos assegure foro especial não poderá exercer a função de outorga. Assim, deputados chegam a votar em de diretor ou gerente de concessionária, permissio- matérias referentes à renovação das próprias con- nária ou autorizada de radiodifusão. cessões que controlam, o que deixa explícito o con- Indo ao encontro das normas citadas, o MPF ajui- flito de interesses que essa situação gera. Também zou ações civis públicas na Justiça Federal contra composta por parlamentares radiodifusores e seus parlamentares proprietários de canais de televisão parceiros, em 2011, a Comissão de Constituição e e de rádio que teriam votado em causa própria, en- Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, para onde vão tre janeiro de 2003 e dezembro de 2005, na comis- os processos depois da CCTCI, aprovou 38 concessões são que trata do tema na Câmara. O MPF também de radiodifusão e a renovação de outras 65 em apenas tem cobrado a realização do processo licitatório três minutos e com apenas um deputado no Plenário. para a obtenção de concessões e pedido a anulação A posse de concessões por políticos contraria o que da cessão, quando é constatado o descumprimento diz o artigo 54 da Constituição Federal, que declara dessa obrigatoriedade. explicitamente que deputados federais e senado- No STF, desde 2011 tramita a Arguição por res não podem, desde a expedição de seu diploma Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) parlamentar, “firmar ou manter contrato com pes- 246, elaborada pelo Intervozes e ajuizada pelo soa jurídica de direito público, autarquia, empresa Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). A ação pública, sociedade de economia mista ou empresa questiona a outorga e a renovação de concessões de concessionária de serviço público, salvo quando radiodifusão a pessoas jurídicas que tenham políti- o contrato obedecer a cláusulas uniformes”. Após cos com mandato no quadro social e pede a proibi- a posse, os parlamentares ficam proibidos de “ser 36 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 37

ção da diplomação e a posse de políticos que sejam, NORMAS SOBRE CON- direta ou indiretamente, sócios de pessoas jurídicas CESSÕES PARA POLÍTICOS veículos de comunicação. O crime, contudo, prescre- concessionárias de radiodifusão. • Constituição Federal (art. 37) veu; por isso o ex-parlamentar não foi punido. Apesar da importância da matéria, que é relatada • Código Brasileiro de Teleco- O Ministério das Comunicações, apesar de todo o municações (Lei nº 4.117/1962) pelo ministro Gilmar Mendes, ainda não há previsão debate e das ações da sociedade civil sobre esse de quando ela será votada. Todavia, no julgamento • Decreto 2108/1996 – Altera dispositivos do Regulamento tema, não corrobora com a tese da proibição, pois de outros processos, o STF confirmou a tese que a dos Serviços de Radiodifusão defende que a situação se enquadra na exceção ADPF sustenta. No começo de 2015, o Supremo jul- do artigo 54, I, “a”. O trecho aponta que a posse gou a Ação Penal 530, proposta pelo MPF, e conde- de concessão por pessoas nas condições citadas é nou o ex-Deputado Federal Marçal Gonçalves Leite possível “quando o contrato obedecer a cláusulas Filho por falsificação do contrato social de empresa uniformes” (caso dos transportes, seguros, forne- detentora de permissão para exploração de servi- cimento de água e luz, etc.). Além de inadequada, ço de rádio FM em Dourados, no Mato Grosso do pois os contratos de radiodifusão não são unilate- Sul. Segundo o Acórdão, a falsificação foi feita para rais e conferem ao contratante poder de influência, omitir a condição de sócio do então parlamentar a leitura do MiniCom não leva em consideração o federal. Na decisão, o STF considerou o artigo 54 objetivo do artigo, que busca proteger as eleições e a da Constituição e destacou os riscos decorrentes do probidade administrativa, bem como evitar abusos abuso do poder gerado pelo controle de políticos sobre e favorecimento do parlamentar.

ATÉ A DITADURA MILITAR TEMEU O PODER DA GLOBO Com o fim da primeira emissora de Isso porque, como relatou poste- são de rádio e de televisão e ainda TV do Brasil, a TV Tupi, houve uma riormente o general João Batista lhe disse: Não vou dar porque já disputa pelos canais que ela possuía. Figueiredo, era preciso diminuir o tem demais! Criei três redes de TV: a O Serviço Nacional e Informações poder de Roberto Marinho. Manchete, a do Silvio Santos e a Ban- (SNI) sugeriu que elas não fossem “Ele é dono da opinião pública do deirantes. Aí o Roberto Marinho ficou entregues para emissoras que faziam país. Faz o Ministro das Comuni- com raiva de mim porque antes era jornalismo informativo e político. cações e muda quem ele quiser. só ele”, disse Figueiredo em gravação Por serem confiáveis, o Grupo Síl- O dia em que o Roberto Marinho que posteriormente foi divulgada pela vio Santos (SBT) e o Grupo Bloch quiser se virar contra o governo, Revista Veja. (Manchete) saíram vencedores. o governo cai. Ele não chegou General Figueiredo de braços dados Outra questão política pesou: era com Roberto Marinho a influenciar-me porque brigou Fonte: Revista Veja, edição 1631, 12 jan. preciso amenizar o poder da Globo. comigo. Não lhe dei uma conces- 2000, p. 39. 38 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 39

4. violações sobre o conteúdo

A interpretação do MiniCom tampouco dialoga O conteúdo veiculado nos grandes meios é um dos com os anseios da sociedade. Como mostrou a pes- elementos centrais para a garantia do direito à co- quisa Mídia e Poder, da Agência Patrícia Galvão, municação. Afinal, com a afirmação desse direito o realizada pelo Data Popular em 2013, 63% dos en- que se pretende é garantir diversidade e pluralidade trevistados acham que emissoras de rádio/TV não na mídia e na sociedade como um todo, contribuin- deveriam ser propriedade de políticos. Do total, 64% do, assim, para o enriquecimento do debate público não querem que apresentadores de rádio e TV se e da própria democracia. candidatem e 69% consideram que ser dono de TV Segundo estudo da Unesco: “É prática comum no ou rádio amplia as chances de eleição. Já 67% são mundo democrático que o conteúdo de radiodifu- contrários à candidatura de donos de emissoras de são seja regulado para garantir, por exemplo, que rádio e TV. as notícias sejam apresentadas da forma mais exa- Enquanto o Ministério legitima a prática, cresce ta e imparcial possível, que haja direito de resposta na população a percepção do conflito de interes- quando forem feitas acusações significativas, que ses e dos danos causados por ela à democracia. Em não seja divulgado material de incitação ao ódio ou 2014, a Campanha “Fora Coronéis da Mídia” mar- incentivo ao crime, que as crianças sejam protegi- cou a Semana Nacional pela Democratização da das de conteúdos nocivos ao seu bem-estar e à sua Comunicação com atos de denúncia em todo o país. formação etc.” (2011, p. 37). Fica cada vez mais claro que o coronelismo midiá- tico compromete a liberdade de expressão, o direi- to ao acesso à informação e o direito de fiscalizar e controlar o exercício do poder estatal. Constitui, enfim, prejuízo à realização de eleições livres e, com isso, à cidadania, ao pluralismo político e à so- berania popular 40 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 41

4.1. REGULAÇÃO E AUTORREGULAÇÃO

A Federal Communications Commission (FCC), nos aplicação depende dos próprios agentes do setor. Estados Unidos, o Conselho Canadense de Padrões O primeiro, por exemplo, acaba sendo direcionado de Difusão, no Canadá, e o Office of Communications apenas ao jornalista, desconsiderando as pressões (Ofcom), no Reino Unido, são exemplos de órgãos exercidas sobre os profissionais pelas próprias em- que regulam o conteúdo da mídia em seus respec- presas de comunicação. O segundo praticamente tivos países. Entre outras atribuições, a FCC proíbe foi esquecido; inclusive é difícil achar referências a veiculação de materiais considerados obscenos, ao Código da Radiodifusão fora dos textos que con- indecentes ou profanos; o Conselho Canadense tam a trajetória da Abert. O Conar, por sua vez, é possui código para conteúdos relativos à violência, lento, pouco conhecido e só age quando pressiona- sexualidade e mesmo sobre independência jorna- do pelo público. lística, imparcialidade e equidade; e o Ofcom aplica diretrizes básicas sobre conteúdo, atende a recla- mações e aplica sanções. 4.2. O QUE DIZ A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA A forma como o conteúdo é regulado varia em cada nação. Em geral, em países democráticos, empre- As lacunas da legislação são perceptíveis quando o sas e setores envolvidos na produção e difusão de assunto é conteúdo. No Brasil, não há, por exem- conteúdos estabelecem regras para o seu funciona- plo, normas sobre a exatidão das notícias e sobre mento e abrem espaços para reclamações do pú- equilíbrio jornalístico. Mesmo o direito de respos- blico, praticando a chamada autorregulação. Eles ta, garantido pelo artigo 5° da Constituição Federal, também são obrigados a respeitar as exigências do está desregulamentado, ainda que isso não impeça país em relação ao cumprimento de padrões, estan- a sua aplicação. do sujeito à regulação e à fiscalização. A ausência de normas mais específicas sobre o No Brasil, as normas sobre conteúdo são pou- conteúdo veiculado por concessionários de radio- cas e estão dispersas em diferentes mecanismos difusão é um dos elementos que leva à ausência regulatórios. Já em relação à autorregulação, o de punição administrativa para as emissoras que Código de Ética dos Jornalistas, o Código de Ética descumprem o que diz a legislação geral. A fim de da Radiodifusão da Abert e o código do Conselho reverter a situação, a Unesco (2011) apontou a neces- de Autorregulamentação Publicitária (Conar) são sidade de novos mecanismos infralegais para detalhar exemplos de mecanismos importantes, mas insufi- as infrações presentes em conteúdos midiáticos. cientes para garantir que objetivos como os aponta- dos pela Unesco sejam alcançados, principalmen- Isso não quer dizer, contudo, que inexistam normas te porque não possuem força de lei e porque sua sobre aquilo que é difundido pelo rádio e pela TV. 42 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 43

As previsões são poucas, mas deveriam ser cum- A primeira (Lei nº 11.340/2006, art. 8°) diz que deve pridas. O Código Brasileiro de Telecomunicações, haver “respeito, nos meios de comunicação social, por exemplo, determina (art. 124) que o tempo des- dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, tinado na programação das emissoras à publicidade de forma a coibir os papéis estereotipados que legi- comercial não pode exceder de 25%. Diz (art. 53) que timem ou exacerbem a violência doméstica e fami- constitui abuso, no exercício de liberdade da radio- liar”. A segunda (Lei n° 7.716/1989, art. 20) penaliza difusão, o emprego desse meio de comunicação com reclusão e multa aquele que “praticar, induzir para a prática de crime ou contravenção previstos ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, na legislação, incluindo incitação à desobediência cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Já o às leis ou decisões judiciárias, promoção de campa- Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) afir- nha discriminatória de classe, cor, raça ou religião ma que “o poder público adotará as medidas neces- e veiculação de notícias falsas, com perigo para or- sárias para o combate à intolerância com as religi- dem pública, econômica e social. ões de matrizes africanas e à discriminação de seus LEGISLAÇÃO BÁSICA Já o decreto que regulamenta os serviços de radio- SOBRE CONTEÚDO seguidores, especialmente com o objetivo de coibir difusão proíbe as concessionárias de “transmitir • Constituição Federal (art. 220) a utilização dos meios de comunicação social para a programas que atentem contra o sentimento pú- • Regulamento dos Serviços difusão de proposições, imagens ou abordagens que blico, expondo pessoas a situações que, de alguma de Radiodifusão (Decreto nº exponham pessoa ou grupo ao ódio ou ao desprezo forma, redundem em constrangimento, ainda que 52.795/1963) por motivos fundados na religiosidade de matrizes seu objetivo seja jornalístico” (Decreto 52.795/1963, • Código Brasileiro de Teleco- africanas”. municações (Lei nº 4.117/1962) art. 28). Em casos de desrespeito a essas regras, as • Código Penal (Lei Nº É importante destacar que nenhuma das normas empresas podem ser punidas, pois “a liberdade de 2.848/1940) existentes em nosso país veta previamente a cir- radiodifusão não exclui a punição dos que pratica- • Código de Defesa do culação de conteúdos, o que configuraria censura. rem abusos no seu exercício” (Código Brasileiro de Consumidor (CDC) (Lei n° Aliás, todo tipo de censura de natureza política, ide- 8.078/1990) Telecomunicações, art. 52). ológica e artística é proibido no Brasil (Constituição • Decreto nº 88.067/1983: Há ainda jurisprudência que trata da combinação Altera dispositivos do Re- Federal, art. 220). Por isso, a associação entre cen- entre incitação ao crime e crime de ódio, previs- gulamento dos Serviços de sura e regulação de conteúdo prevista na legisla- tos no Código Penal (art. 286) e na Lei nº 7.716/89, Radiodifusão ção em vigor ou em propostas como a Lei da Mídia tipo de conteúdo comum nos chamados programas • Lei nº 7.716/89: Racismo Democrática é má-fé. Infelizmente, os grandes policialescos (ANDI, 2015). Também a Lei Maria da • Lei Nº 11.340/06: Lei Maria oligopólios midiáticos forçam essa relação com Penha, a Lei de Combate ao Racismo e o Estatuto da da Penha contra violência frequência. Com isso, desinformam a população Igualdade Racial trazem artigos específicos sobre o • Resolução N° 163 do Conan- e interditam um importante debate sobre o con- da: Publicidade abusiva conteúdo difundido nos meios de comunicação. teúdo midiático. 44 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 45

4.3. VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NA MÍDIA

Independentemente de raça, sexo, nacionalidade, humanos, sobretudo de setores já marginalizados etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição, na sociedade. São frequentes os casos de propa- os seres humanos têm direitos que devem ser res- gandas preconceituosas, programas religiosos que peitados em todos os espaços. A garantia deles é fazem pregações contra religiões de matriz africana condição mínima para que mulheres, população de e conteúdos machistas e homofóbicos nas atrações lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros ditas humorísticas. (LGBT), negras e negros, crianças e adolescentes, Em 2014, o programa Agora É Tarde, apresentado população idosa, pessoas com deficiência, povos e pelo comediante Rafinha Bastos e veiculado todas comunidades tradicionais possam viver livremente as noites pela Bandeirantes, colocou no ar uma en- e de forma digna. Por isso, tais direitos são inviolá- trevista com Alexandre Frota, reprisada no início veis, inalienáveis, imprescritíveis e irrenunciáveis. de 2015, na qual o ator revela – em tom de gozação e deboche – que teria praticado sexo com uma mãe No Brasil, a Constituição Federal de 1988 consagra a de santo contra a sua vontade, ou seja, que a teria cidadania e a dignidade da pessoa humana como fun- estuprado. A vítima teria desmaiado durante o cri- damentos da República. O “Título II – Dos Direitos e me. Na entrevista, Frota narra os detalhes do crime Garantias Fundamentais” e o “Título VIII – Da Ordem entre encenações e gargalhadas do apresentador do Social” reúnem as bases dos direitos civis, políticos, talk show e da plateia, ignorando o que diz o ar- econômicos, sociais e culturais da população, que são tigo 53 do Código Brasileiro de Telecomunicações discutidos em várias outras seções daquela que ficou sobre a promoção de campanhas discriminatórias conhecida como a “Constituição Cidadã”. de classe, cor, raça ou religião. A Constituição também aponta que outros direitos O combate a esse tipo de violação tem sido feito podem ser afirmados por tratados internacionais especialmente pela sociedade civil. Em parceria em que o Brasil seja parte e que essas convenções com o MPF, foram obtidas vitórias contra alguns sobre direitos humanos, quando aprovadas pelo dos programas que violaram direitos humanos. Um Congresso Nacional, tem valor legal no país. Isso caso histórico ocorreu em 2005, quando foi denun- compromete o Brasil tanto internamente quanto ciado o programa Tardes Quentes, da Rede TV!, en- em âmbito internacional diante de omissões e in- tão comandado pelo apresentador João Kléber. frações, bem como o leva à adoção de políticas de Por meio de Ação Civil Pública, o MPF solicitou à promoção de direitos. Justiça um direito de resposta coletivo por discri- Infelizmente, uma breve análise do conteúdo vei- minação e ofensas a mulheres, homossexuais, ido- culado pelas principais emissoras de rádio e tele- sos, deficientes físicos e crianças. A emissora foi visão revela um alto índice na violação de direitos obrigada a veicular 30 horas de programação coor- 46 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 47

denada pelas seis organizações da sociedade civil envolvidas na ação judicial. O programa, intitulado Direitos de Resposta, discutiu um direito humano diferente ao longo de 30 dias, e levou ao ar mais de 400 produções independentes de organizações de todo o Brasil. A história está contada no livro “A Sociedade Ocupa a TV”.

TRATADOS INTERNACIONAIS PROTEGEM DIREITOS NA MÍDIA A Declaração Universal dos Direitos incitamento à discriminação racial, na difusão de informação, nem por em âmbito internacional que tratam Humanos, o Pacto Internacional so- assim como quaisquer atos de violência quaisquer outros meios destinados a também da comunicação. bre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), ou provocação a tais atos” (art. 4°). obstar a comunicação e a circulação “A diversidade cultural somente o Pacto Internacional sobre Direitos Já Convenção Americana sobre Direitos de ideias e opiniões” (art. 13). poderá ser protegida e promovida Econômicos, Sociais e Culturais (PI- Humanos (Decreto n° 678/1992) reitera Outras convenções caminham no se estiverem garantidos os direitos DESC) são algumas das importantes a defesa de que toda pessoa tem direito mesmo sentido de equilibrar o exer- humanos e as liberdades fundamen- convenções que conferem compro- à liberdade de expressão (art. 13), cujo cício dos direitos, a fim de garantir tais, tais como a liberdade de expres- missos ao país. exercício “não pode estar sujeito à cen- todos eles. A Convenção sobre a são, informação e comunicação, bem Pela Convenção Internacional sobre sura prévia, mas a responsabilidades Eliminação de Todas as Formas de como a possibilidade dos indivíduos a Eliminação de todas as Formas de ulteriores”, inclusive para assegurar a Discriminação Contra a Mulher, a de escolherem expressões culturais” Discriminação Racial (promulgada reputação das pessoas. Estas devem ter Convenção de Belém do Pará, a Con- (art. 2°), diz um trecho do pacto sobre pelo Decreto nº 65.810/1969), os Esta- direito de resposta, o que não elimina venção sobre os Direitos da Criança, diversidade. Diante de tamanha im- dos-partes devem “tomar as medidas outras possíveis responsabilidades a Convenção Internacional sobre os portância, ele é claro ao defender que apropriadas para eliminar a discri- legais (art. 14). Contra a censura, afirma Direitos das Pessoas com Deficiência, as partes adotem “medidas objetivan- minação contra a mulher praticada que “Não se pode restringir o direito de Convenção Contra a Tortura e Outros do promover a diversidade da mídia, por qualquer pessoa, organização ou expressão por vias e meios indiretos, Tratamentos ou Penas Cruéis, Desu- inclusive mediante serviços públicos empresa” (art. 2°) e também “declarar tais como o abuso de controles oficiais manos ou Degradantes e a Conven- de radiodifusão” (art. 6°). Mãos à como delitos puníveis por lei qualquer ou particulares de papel de impren- ção sobre a Proteção e Promoção da obra! É hora de fazer o que precisa e difusão de ideias baseadas na supe- sa, de frequências radioelétricas ou Diversidade das Expressões Culturais pode ser feito. rioridade ou ódio raciais, qualquer de equipamentos e aparelhos usados são exemplos de textos celebrados 48 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 49

4.4.Policialescos: POLICIALESCOS: estigmatização ESTIGMATIZAÇÃO e medo E MEDO

Na busca incessante pelo lucro, a mídia tradicio- Apesar da inexistência de uma legislação nacional nal costumeiramente vale-se da espetacularização que tipifique o crime de incitação ao ódio e outras de situações de vulnerabilidade, da exploração de condutas observadas, o estudo aponta que esses estereótipos e de práticas que violam direitos, a programas infringem pelo menos 12 leis brasileiras exemplo da exposição de pessoas em situação sus- e 7 dispositivos multilaterais em vigor no país, en- peita. Assim, acaba servindo como palco para vio- tre os quais a Constituição Federal e a Declaração lações e como estímulo para que elas sejam pratica- Universal dos Direitos Humanos. das no dia a dia. Os impactos são diretos e atingem setores que já tive- Bastante representativos dessa prática, os progra- ram direitos negados, em especial jovens negros sus- mas de cunho policialescos ganharam popularida- peitos de terem entrado em conflito com a lei, que em de ao longo dos anos 1990 e hoje estão presentes em geral figuram como alvos das lentes e dos microfones todo o Brasil, tanto no rádio quanto na televisão. desses programas. Dada a grande presença dos poli- Eles adoram um modelo que combina a exploração cialescos em todo o Brasil, não é de se estranhar que da estética do grotesco, a inserção de merchandi- o discurso que prega a redução da maioridade penal sing e ações assistencialistas, que muitas vezes tenha crescido tanto nos últimos anos. acabam dando projeção e viabilizando a eleição de A fim de enfrentar essa situação, o Estado pode seus apresentadores. Marcelo Rezende pediu ao vivo que valer-se das regras existentes, como das apon- Pesquisa da ANDI – Comunicação e Direitos agentes da PM atirassem em suspeitos tadas pela Andi. Para tanto, o Ministério das durante perseguição policial, em 2015 (2015), em parceria com o Intervozes, a Artigo 19 Comunicações precisa romper com sua postura e Ministério Público Federal, analisou o conteú- omissa. Infelizmente, não é o que ele tem sinaliza- do desse tipo de programa e constatou a ocorrên- do. Em junho de 2015, o órgão recebeu do Intervozes cia das seguintes violações: desrespeito à presun- A pesquisa que mapeia denúncia sobre a transmissão, ao vivo, de uma per- ção de inocência; incitação ao crime e à violência; as legislações desrespeitadas seguição policial a dois suspeitos, que terminou por esses programas está dis- incitação à desobediência às leis ou às decisões ponível em: . A segunda cobertura, o apresentador Marcelo Rezende, do raça, cor, etnia, religião, condição socioeconômi- parte do relatório traz análises sobre esses programas e pode Cidade Alerta, fez declarações como “atira, meu fi- ca, orientação sexual ou procedência nacional; ser acessada em: . Ronda Ostensiva Com Apoio de Motocicletas da 50 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 51

Polícia Militar de São Paulo (Rocam). Ele e José ções de direitos humanos na mídia. Prova disso é Luiz Datena, à frente do programa Brasil Urgente, que apenas duas emissoras de TV foram multadas usaram termos como “bandidos”, “marginais” e “cri- por violações cometidas por programas policiales- minosos” em referência aos suspeitos. Na acusação, cos entre 2013 e 2014: a TV Band Bahia, multada o Intervozes apontou que houve desrespeito à pre- em R$ 12.794,08, e a TV Cidade de Fortaleza, que sunção de inocência e incitação à desobediência às pagou R$23.029,34. No primeiro caso, a apresenta- leis ou decisões judiciais. dora Mirella Cunha humilhou um suspeito negro por oito minutos. No segundo, dois programas da Em resposta encaminhada pelo Departamento Faixa de ato realizado emissora veicularam o estupro de uma menina de de Acompanhamento e Avaliação de Serviços em Fortaleza (CE) para nove anos de idade. Nas duas situações, a ação do de Comunicação Eletrônica, o Ministério das cobrar responsabilização de Ministério ocorreu após denúncia e pressão por Comunicações disse que segue analisando denún- emissora de TV que exibiu estupro de criança, em 2014 parte da sociedade civil. cia, mas que o Poder Judiciário deveria ser procura- do em busca de reparação. Segundo o comunicado, “só depois de ocorrer a condenação do culpado, é que o Ministério das Comunicações poderá, com a 4.5. A ALMAA alma DO do NEGÓCIO negócio sentença condenatória transitada em julgado, ins- taurar processo administrativo contra a entidade Por ser vista como mercadoria e não como direito, a detentora da outorga para executar o serviço de ra- propaganda é a “alma do negócio” de mídia no Brasil. diodifusão, ‘por abuso no exercício da liberdade de Comerciais, telecompras, merchandising e vários ou- radiodifusão por ter sido este meio utilizado para tros mecanismos de venda ocupam um bom espaço prática de crime’.” (grifos originais). O órgão acres- nas emissoras de rádio e televisão. A submissão da centou ainda que ele tem competência legal apenas pera “fiscalizar o cumprimento da organização de publicidade às finalidades educativas e culturais da programação específica, conforme previsto na re- radiodifusão (Código Brasileiro de Telecomunicações, gulamentação do serviço, sem, contudo, poder cen- art. 38, d) está longe de ser comum, como não nos dei- surar matéria veiculada pelas emissoras”. xam esquecer as propagandas de cunho consumista, sexista ou preconceituoso. Essa não é a primeira vez que o Ministério recua de seu poder fiscalizador e sancionador. A pesquisa- Muitos grupos chegam a descumprir o limite legal dora Bia Barbosa (2013) mostra que em diversos ca- de até 25% da programação diária para publicida- sos houve omissão ou restrição da ação do órgão ao de comercial. Estudo do Observatório do Direito à considerar apenas dois dispositivos legais do Código Comunicação, realizado em 2007, analisou um dia de Brasileiro de Telecomunicações para analisar viola- conteúdo de quatro canais de televisão aberta de São 52 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 53

Paulo – Rede Brasileira de Informação (RBI), MixTV, quer natureza, a que incite à violência, explore o PlayTV e ShopTour – e confirmou que todos eles vio- medo ou a superstição, se aproveite da deficiência lavam a legislação. No caso deste último, toda a progra- de julgamento e experiência da criança, desrespeita mação era preenchida com conteúdos publicitários. valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou As infrações também já motivaram ação judicial, perigosa à sua saúde ou segurança”. com decisão favorável em primeira instância. Não é de se admirar. Quem já “zapeou” na TV, espe- Considerado um dos mais avançados do mundo, cialmente à noite, sabe do que estamos falando. o texto destaca que essa medida objetiva proteger O Ministério das Comunicações, contudo, ignora segmentos vulneráveis, em especial crianças e ado- a existência de verdadeiros “supermercados ele- lescentes, alvos de um mercado extremamente di- trônicos”. Devido à frequente omissão, o MiniCom versificado. Embora não sejam as responsáveis pe- chegou a ser apontado como réu de uma Ação Civil las compras, elas influenciam bastante as escolhas Pública movida pelo Intervozes juntamente com a dos pais; por isso muitas vezes mesmo propagan- Rede de Advogados e o Escritório Modelo da PUC- das que não vendem produtos destinados ao públi- SP. Depois, pediu para se somar à acusação. Bom co infantil utilizam crianças. Elas geram empatia e, mesmo seria se cumprisse seu papel, fiscalizasse e quem sabe, compras. atuasse diante do óbvio. Mesmo datando de 1990, a existência do Código de Defesa do Consumidor não impediu que as crian- ças recebessem inúmeros apelos ao consumo ou 4.6. INFÂNCIA DESPROTEGIDA que terminassem vítimas de venda disfarçada ou casada. Assim, vimos apresentadoras de programas A publicidade, segundo o Código de Defesa do infantis “brincarem” com marcas, logo então ofer- Consumidor (CDC), deve ser facilmente identificá- tadas aos telespectadores, e comidas fast food ou vel como tal. Por isso, são proibidos mecanismos ovos de Páscoa sendo vendidos juntamente com que possam causar confusão quanto à natureza brinquedos que atraem as crianças. desse conteúdo, bem como a inserção implícita de Para reforçar a demanda pela adoção de políticas publicidade em matéria jornalística, científica, reli- protetivas, em 2013, foi aprovada a Resolução n° giosa ou por qualquer outro meio. 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e O CDC (art. 37) também proibiu a propaganda en- do Adolescente (Conanda). O texto considera abu- ganosa e a publicidade abusiva. No segundo caso, sivo o direcionamento de publicidade e de comu- trata-se da publicidade “discriminatória de qual- nicação mercadológica à criança “com a intenção 54 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 55

4.7. EDUCAÇÃO ESTÁ FORA DA TELINHA

A regulação de conteúdo também aponta aquilo que necessariamente deve ser veiculado. Para você per- ceber como isso já é praticado no país, basta ligar o rádio às 19h e ouvir o programa “Voz do Brasil”, cuja veiculação é obrigatória desde 1962. Na mesma de persuadi-la para o consumo de qualquer produto data, também foi estabelecido o Horário Eleitoral ou serviço”. E aponta haver abusividade quando os Gratuito (HEG) para partidos políticos. anúncios usam linguagem infantil, trilhas sonoras O Código Brasileiro de Telecomunicações determi- de músicas infantis ou desenho animado e quan- na que as emissoras de radiodifusão destinem um do ocorre promoção de distribuição de prêmios ou mínimo de 5% de seu tempo para transmissão de brindes colecionáveis com apelo ao público infan- serviço noticioso e reservem 5 horas para progra- til, entre outros aspectos. Já poderia, portanto, ser mas educacionais por semana. Apesar de mínimos, usado pelo Ministério das Comunicações para as empresas mostram dificuldade para cumprir es- coibir a difusão deste tipo de anúncio na televi- ses parâmetros. Elas também não priorizam as fina- são brasileira. lidades educativas, artísticas, culturais e informa- As medidas propostas vão no mesmo caminho de tivas dos meios de comunicação, embora isso seja vários países que adotam regras sobre publicidade apontado como central pela Constituição Federal e infância. Na Suécia, qualquer publicidade na tele- (art. 221). visão dirigida a pessoas com menos de 12 anos não SAIBA MAIS É o que mostra o Informe de Acompanhamento pode passar antes das 21h. Canadá, Estados Unidos, DIREITO DE ANTENA do Mercado da TV Aberta, produzido pela Ancine Inglaterra, Alemanha, Noruega, Irlanda, Bélgica, Direito de Antena. Em em 2014. A partir do monitoramento da programa- Áustria, Grécia, para citar algumas nações, também países como Portugal, as or- ção veiculada em São Paulo pelas cabeças-de-re- possuem regras para regular esse tipo e comercial. ganizações sindicais, profis- de da Band, Rede CNT, Rede Globo, Rede Record, sionais e representativas de Sem cuidar disso, o Brasil permite que o processo RedeTV!, SBT, TV Brasil, TV Cultura e TV Gazeta, atividades econômicas, bem a agência verificou o tempo e o percentual de ho- formativo das crianças seja desrespeitado e que como outras organizações elas cresçam pautadas por hábitos consumistas, sociais de âmbito nacional, ras de veiculação de cada tipo de conteúdo (publi- alimentação industrializada e, muitas vezes, pela têm garantido acesso aos citário, informativo, educativo, de entretenimento própria supressão da infância, como ocorre com o meios no serviço público de e outros) e concluiu que há predomínio do gênero rádio e de televisão, o cha- entretenimento. convite à sexualização precoce de meninos e me- mado direito de antena. No ninas. Regular a publicidade infantil é caminhar no Brasil, a força dos políticos No período analisado, primeiro semestre de 2014, sentido da proteção e da afirmação de crianças e tradicionais limitou esse obras da categoria Entretenimento ocuparam 49,4% adolescentes como sujeitos de direitos. direito aos partidos. 56 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 57

5. o que fazer para lutar pelo direito à comunicação das grades de programação da TV aberta. Em se- gundo lugar, estava a categoria Outros (20,1%), que engloba os programas religiosos. Em terceiro, a Informação (19,3%), seguida por Publicidade (7,7% - mas não considera comerciais e chamadas na con- tagem) e Educação (3,5%). 1. Veja a mídia criticamente O levantamento apontou que os programas edu- cativos sequer estavam presentes na Rede Record O primeiro passo para reagir às violações do direi- e no SBT. Band e Rede TV! dedicaram à educação to à comunicação é observar a mídia criticamen- menos de 1% do tempo percentual de sua progra- te. Questionar o sistema de mídia do país, buscar mação. Na Rede CNT e na TV Gazeta, eram menos conhecimento dos fatos a partir de fontes diversas, de 2%. Segundo a Ancine, o percentual mínimo era analisar as reportagens, checar as informações e respeitado pela Rede Globo (5,6%), Cultura (9,2%) construir seu próprio entendimento sobre o que é e TV Brasil (12,5%). As duas últimas, vale destacar, noticiado são ações fundamentais para a vivência são emissoras públicas. do direito à comunicação.

2. Produza comunicação!

Nada sobre nós sem nós. A frase, comum aos mo- vimentos feministas, antirracistas e às pessoas com deficiência, também deve ser lembrada quando o tema é comunicação. Levante sua voz! Produza blogs, televisões e rádios comunitárias, audiovisu- al, fanzines, cordeis e outras mídias. Atente para não reproduzir a pauta e a estética dos veículos da grande mídia. Reflita sobre o que ocorre ao seu re- dor e mereceria ser conhecido. Assim, você estará contribuindo para a ampliação da diversidade e da pluralidade nos meios. 58 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 59

3. Denuncie violações

Denuncie as violações do direito à comunicação junto e, por fim, descreva a sua reclamação. O órgão pode aos órgãos reguladores. O principal deles é o Ministério pedir esclarecimentos às emissoras e ao Ministério das Comunicações (MiniCom). O ministério recebe de- das Comunicações, instaurar Procedimento núncias pelo correio eletrônico denuncia@comunica- Administrativo ou Inquérito Civil Público, fazer coes.gov.br. Também é possível enviar correspondência recomendações, firmar Termo de Ajustamento de ao Departamento de Acompanhamento e Avaliação de Conduta ou propor Ação Civil Pública. Serviços de Comunicação Eletrônica (Endereço: Esplanada Também é possível procurar o Ministério Público dos Ministérios, Bloco R, Ed. Anexo 3º Andar, sala 301, Estadual da localidade da empresa que praticou a Brasília/DF – CEP: 70044-900). As denúncias em geral não violação. Nesse caso, não há um destinatário co- são anônimas, mas é possível solicitar o sigilo da identidade. mum, mas em geral o site do MPE é www.mp[sigla Quando se tratar de denúncia sobre o uso do espectro ele- do estado].mp.br. O MP do Ceará, por exemplo, pode tromagnético, é possível procurar a Agência Nacional de ser acionado por meio do endereço www.mpce.mp.br. Telecomunicações (Anatel). Você pode ligar diretamente para a Dica! Sugerimos que você descreva a violação e dê in- Central de Atendimento da agência, no telefone 1331 (chamada formações como: emissora, dia e horário da veiculação. gratuita). Encaminhamentos de documentos podem ser feitos para a sede da Anatel (Endereço: SAUS Quadra 6 Blocos C, E, F e H, Brasília/DF - CEP: 70.070-940. 5. Procure conselhos de direitos

O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) 4. Acione a Justiça mantém a Comissão sobre Direito à Comunicação Se você se sentir prejudicado por conteúdos impró- e Liberdade de Expressão, que tem a atribuição de prios (racistas, homofóbicos, machistas, agressivos, atuar na promoção desses direitos, bem como rece- preconceituosos e outros), procure a Justiça para obter ber e processar denúncias. Elas podem ser enviadas direito de resposta. O Poder Judiciário também pode pelo email: [email protected]. ser acionado para que atue em casos relacionados ao Em alguns estados e cidades, existem conselhos sistema de comunicação de forma geral, como a posse de direitos humanos, cultura e de grupos específi- de veículos por políticos, a concentração midiática, o cos, como a população LGBT, que podem abordar excesso de publicidade e o descumprimento de obri- o tema da comunicação, embora muitos não te- gações relacionadas ao conteúdo. nham caráter deliberativo. Na Bahia, está ativo o É simples! Em âmbito federal, basta fazer uma de- Conselho de Comunicação Social, que tem entre núncia ao Ministério Público Federal pelo site ci- suas atribuições “atuar na defesa dos direitos difu- dadao.mpf.mp.br. Em seguida, clique em “Registrar sos e coletivos da sociedade baiana no que tange denúncia ou solicitação”, depois insira seus dados à comunicação social” e “receber e reencaminhar de- 60 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 61

6. BIBLIOGRAFIA núncias sobre abusos e violações de direitos humanos nos veículos de comunicação no Estado da Bahia”.

ALIMONTI, Veridiana. Entre mercadoria e demo- 6. Lute pelo direito à comunicação! cracia nas políticas para televisão no Brasil: lições e fundamentos para uma regulação democrática e con- Todas essas ações podem ser fortalecidas com atu- vergente. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Direito, ação coletiva. Existem diversos coletivos, grupos Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014. de estudantes, ativistas, organizações e movimen- BARBOSA, Beatriz C. Violações de Direitos Humanos tos sociais que lutam pela democratização e pelo e Regulação de Conteúdo na TV: Brasil em perspectiva direito à comunicação. Muitos estão organizados comparada com França e Reino Unido. 161 f. Dissertação em torno do Fórum Nacional pela Democratização (Mestrado em Gestão e Políticas Públicas) da Escola de da Comunicação (FNDC) e de seus comitês locais. Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Saiba como integrá-los acessando http://www. Getúlio Vargas. São Paulo, 2013. fndc.org.br/. ARAÚJO, Bráulio Santos Rabelo de. A transferência de Convidamos você também a conhecer o Intervozes, outorgas de radiodifusão e a comercialização de tempo coletivo que atua na defesa do direito à comunica- de programação. Revista de Direito Administrativo, Rio ção em cerca de quinze estados brasileiros. Visite de Janeiro, v. 268, p. 249-292, jan./abr. 2015. nossa página e nos acompanhe no Facebook e no BOLAÑO, César. Mercado brasileiro de televisão. 2a ed. Twitter. Conheça também o Observatório do Direito São Paulo: EDUC, 2004. à Comunicação e o blog do Intervozes. BOLAÑO, César. Qual a lógica das políticas de comuni- Sem mídia democrática não há democracia! cação no Brasil? São Paulo: Paulus, 2007. CAPPARELLI, Sérgio e SANTOS, Suzy. Coronelismo, radiodifusão e voto: a nova face de um velho conceito. In: BRITTOS, Valério Cruz e BOLAÑO, César (org.). Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia. São Paulo: Paulus, 2005, vol.1, p. 77-101. DANTAS, Marcos. A lógica do capital-informação: a fragmentação dos monopólios e a monopolização dos fragmentos num mundo de comunicações globais. 2a ed. : Contraponto, 2002. HERZ, Daniel, 1987. A História Secreta da Rede Globo. , Editora Tchê. 62 Caminhos para a luta pelo direito à comunicação no Brasil Intervozes 63

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