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1. SENHORAS E SENHORES, APRESENTAMOS UMA CINQÜENTONA SEDUTORA E DESEJADA

Não, não foi uma megaprodução. Pouco ou nada que lembrasse os shows milionários da atualidade. Pelo contrário, muito improviso e produção em tempo real. Com um detalhe extra: sem programação estruturada para o dia seguinte! Foi assim que, no dia 18 de setembro de l950, se inaugurou o primeiro canal de televisão brasileiro, a TV Tupi de São Paulo. A iniciativa foi do influente empresário Assis Chateaubriand, proprietário dos Diários Associados, um conglomerado de revistas, jornais e estações de rádio. Uma ousadia para a época, tanto é que fomos o quarto país do mundo a implantar tal mídia em seu território.

Esse empreendedorismo de Chateaubriand sintonizava com a São Paulo da década de 50. Com cerca de 2.200.000 habitantes, a cidade já era o maior centro industrial da América Latina, crescendo num ritmo efervescente e descontrolado. Seu cotidiano urbano vivenciava a “força da grana que ergue e destrói coisas belas” (Caetano Veloso). Um grande contingente populacional para lá se dirigia em busca de melhores oportunidades de trabalho e de condições de vida. Em 1950, já eram 500.000 mineiros e 400.000 nordestinos vivendo na cidade (NOSSO SÉCULO, 1980), os quais, somados aos imigrantes italianos, espanhóis e portugueses, a transformavam na Babel brasileira.

Para concretizar seu novo projeto empresarial, Chateaubriand negociou, ainda em 1947, contratos publicitários com quatro grandes empresas nacionais, visando garantir parte dos recursos necessários à compra da estação de TV junto à estadunidense RCA Victor. No ano da inauguração, importou trezentos televisores para comercialização e contrabandeou - ah, o “jeitinho” brasileiro! - outros cem, para presentear amigos e investidores, entre os quais o Sr. Roberto Marinho (BRAUNE; RIXA, 2007).

Embora fizesse um contraponto às teses nacionalistas que dominavam a agenda político-cultural das décadas de 1950 e 1960, Chateaubriand escolheu o nome e o emblema do seu canal de TV, baseado na paixão que nutria pelas temáticas silvícolas (Figura 1). No logotipo, um índio com feições ocidentais trazia no cocar 13

duas antenas, representativas da novidade tecnológica que chegava ao país. Símbolo bastante representativo do que estava por ocorrer no processo histórico brasileiro, pois, com o avanço das fronteiras agrícolas e populacionais para o Norte e o Centro-Oeste, os ecossistemas do cerrado e da floresta amazônica, juntamente com seus povos nativos, sofreriam um dramático aniquilamento. Por outro lado, muitas nações indígenas utilizarão paulatinamente alguns desses novos artefatos para orquestrarem movimentos de resistência. Basta recordarmo-nos do cacique Juruna, que portava um gravador nas conversas com as autoridades, visando cobrar, posteriormente, o cumprimento das promessas feitas.

Figura 1: emblema da TV Tupi Fonte: Hamburger (1998, p. 448).

O canal televisivo se ajustava tanto com o momento histórico de superlativos industriais, urbanos e culturais vividos por São Paulo, que até uma música foi composta para homenagear a inauguração. Hebe Camargo foi indicada para interpretá-la, mas alegou um resfriado e declinou do encargo. Confessou, anos mais tarde, que foi uma desculpa, pois tinha um encontro amoroso; talvez não acreditasse muito naquela novidade. Lolita Rodrigues acabou entoando a canção, cujo enfoque 14

ufanista exaltava os feitos do passado e o progresso do presente, no Estado mais rico da Federação.

Vingou, como tudo vinga, No teu chão, Piratininga, A cruz que Anchieta plantou. E dir-se-á que ela hoje acena, Por uma altíssima antena, A cruz que Anchieta plantou.

(Marcelo Tupinambá e Guilherme de Almeida. NOSSO SÉCULO, 1980, p.51).

A analogia entre o símbolo máximo do cristianismo e a antena transmissora é indicativa das transformações provocadas pela ação catequética jesuítica e pelas mensagens televisivas na sociedade brasileira. A evangelização católica foi extremamente útil aos interesses econômicos do império colonial português, tornando os povos nativos mais dóceis e passivos ao projeto hegemônico da metrópole, exterminando inúmeras nações, não só fisicamente, mas também pela imposição de um “epistemicídio” (SANTOS, 2003), ao destruir saberes milenares, crenças e valores, considerados irrelevantes e descartáveis. Igual impacto sócio- cultural provocou a televisão com sua linguagem audiovisual, crescentemente articulada às necessidades mercadológicas de poderosos grupos econômicos e aos privilégios de oligarquias políticas, imprimindo significativas transformações nos modos de viver e proceder dos brasileiros. No entanto, ambos os empreendimentos – cristianização e televisão – não apenas geraram a sujeição e o conformismo, mas, também, em sua dinâmica social e política ambígua, produziram fendas e brechas para as resistências e reinvenções.

Esse processo histórico que foi credenciando a televisão como veículo de comunicação dominante, apresentou, na década de 1950, uma fase mais experimental, construtora de modelos e estilos, com profissionais oriundos, sobretudo, do teatro, do cinema, do rádio. Até 1960, as transmissões eram em tempo real, exigindo muito esforço e criatividade de quem atuasse nos bastidores ou diante das câmeras. Na sua segunda década de existência, a televisão passou por 15

mudanças mais intensas, resultantes dos novos cenários tecnológicos, políticos, socioeconômicos e culturais.

Durante a inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960, foi utilizado pela primeira vez oficialmente o videoteipe. A industrialização e a urbanização se aceleraram no governo desenvolvimentista de JK, com o conseqüente aumento do consumo de eletroeletrônicos, entre os quais os televisores. Os receptores de TV no país, que, em 1950, eram apenas 1.000, já totalizavam 621.919 unidades dez anos depois (BRAUNE; RIXA, 2007). Portanto, a partir do advento de suas transmissões no Brasil, essa mídia tornou-se uma crescente protagonista na organização do espaço- tempo doméstico (Figura 2).

Figura 2: Uma nova protagonista no espaço-tempo doméstico Fonte: NOSSO SÉCULO (1980, p. 50). Foto: Peter Scheier.

Na segunda metade da década de 60, esse número já era bem maior. Nessa época, residíamos na pequena cidade de Castelo, no Sul do Estado, e nossa família formava a categoria dos “televizinhos”, ou seja, aquelas pessoas que já se encantavam com o novo meio de comunicação, mas não tinham condições financeiras de adquiri-lo, apelando para acompanhar algumas de suas atrações nas residências dos vizinhos mais íntimos e acolhedores. Porém, não tardou muito para 16

que comprássemos uma televisão, no início da década de 70. Em plena vigência do “milagre brasileiro”, esse eletroeletrônico se tornou definitivamente um objeto de desejo para muitos, com as facilidades de crédito estimulando o aumento do consumo. Assim, em 1972, o número de televisores já era superior ao de geladeiras e, desde então, a TV disputa com o rádio o primeiro lugar em preferência nos lares brasileiros. O censo de 2000 contabilizou 39.060.180 aparelhos no país (BRAUNE; RIXA, 2007). Pesquisa recente do Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (Procel), da Eletrobrás, concluiu que os televisores são os eletroeletrônicos mais acessíveis aos consumidores, estando presentes em 97,1% dos lares. A maior parte deles, inclusive, com mais de uma unidade, uma vez que, existem em média 1,41 aparelhos por residência (A TRIBUNA, 2007, p. 30). Até nos lares mais modestos (Figura 3), esse artefato se tornou uma espécie de ícone, disputando com outros símbolos mais tradicionais, como os religiosos, por exemplo, a reverência e a adesão dos sujeitos.

Figura 3: Ícone reverenciado Fonte: Hamburger (1998, p. 441). Foto: Juca Martins/ Pulsar.

Essa onipresença na sociedade brasileira, moldando o imaginário individual e coletivo, transformaram a TV numa referência comportamental e atitudinal para milhões de pessoas. Tanto que a configuração das realidades nacionais e globais, o 17

modo como as pessoas de diferentes classes e grupos sociais percebem essas realidades e nelas se situam, é grandemente mediada pela televisão. Um fato curioso ilustra bem essa relevância social: em 1997, o Superior Tribunal de Justiça decidiu, baseado na Lei 8.009/90, do bem de família, que o televisor passava a ser indispensável ao cidadão brasileiro, tornando-se, desse modo, impenhorável, a exemplo dos imóveis, fogões, alimentos e fotos de casamento (BRAUNE; RIXA, 2007). Nem o Vaticano ficou indiferente a tal influência, indicando uma padroeira para essa mídia, Santa Clara de Assis (Figura 4).

Figura 4: Santa Clara de Assis

Duas imagens provocantes, em lugares separados geograficamente por milhares de quilômetros e totalmente diversos do ponto de vista cultural, mas idênticos na atração pelo conteúdo televisivo, reforçam essa ubiqüidade. A primeira imagem (Figura 5) retrata o morro Dona Marta, no . Nela, uma “selva” paradoxal comporta casebres praticamente inseparados, amontoados precariamente. Entretanto, na maioria dos seus telhados, vemos antenas parabólicas instaladas, conectando-os ao “fantástico show da vida” produzido pela televisão. Na segunda imagem (Figura 6), essas mesmas antenas parabólicas alteram as fachadas dos prédios de um conjunto residencial no Turcomenistão, a ex- república da antiga União Soviética, com uma constituição sócio-histórica enraizada 18

nas crenças islâmicas. Mas aí também a televisão atravessa o cotidiano das pessoas.

Figura 5: Morro Dona Santa Marta. Fonte: Hamburger,1998, p. 487 (Oscar Cabral/ Abril Imagens)

Figura 6: Turcomenistão. Fonte: JORNAL DO BRASIL, 11/5/2007, p. 4.

Não menos importantes são as repercussões educacionais da programação televisiva. Ela desempenha um papel preponderante na constituição das atitudes, hábitos, opiniões e comportamentos das/os alunas/os de nossas escolas. 19

Essas razões nos levaram a escolher como problemática de pesquisa, analisar como se enredam os contextos midiáticos da sociedade globalizada, as políticas públicas de comunicação no Brasil e os conteúdos televisivos, com os saberes- fazeres das(os) estudantes e professoras(es) no currículo vivido/praticado no cotidiano de uma escola de ensino fundamental, séries finais. A linguagem da TV, por sua onipresença nos processos de identificação e na formação de subjetividades das(os) estudantes, ao mesmo tempo atrelada a um modelo de vida consumista, individualista, anti-ecológico e a movimentos singulares por parte de seus usuários, se constitui numa pedagogia cultural e num agenciamento curricular merecedores de uma análise criteriosa dos profissionais da educação.

Desse modo, “mergulhamos” numa escola do município de Cariacica, situada no bairro de Jardim América, para realizar o nosso estudo. Tarefa complexa e desafiadora, mas não menos prazerosa. Os dados foram produzidos, durante quatro meses, pelas estratégias da observação participante e de encontros dos grupos focais com professoras(es) e alunas(os), problematizando as mensagens televisivas presentes nos programas de auditório, nas telenovelas, nos programas humorísticos, nos telejornais, nas propagandas e publicidade, nos reality shows, etc. Atentamos, nas análises desta tese, para os processos de identificação que são engendrados nas questões de classe social, gênero, raça, sexualidade, infância, adolescência e juventude, terceira idade, religião, etc, que, inseridos em esferas político-pedagógicas e culturais, legitimam algumas formas de ser e de proceder e silenciam outras. Salientamos, ainda, a partir das falas dos sujeitos envolvidos nesses momentos coletivos, as possíveis reinvenções curriculares produzidas na prática pedagógica cotidiana, que ampliam o campo de possibilidades de instauração de movimentos instituintes (LINHARES, 2002) na escola, preocupados em gerar novas formas de convivência social e de relação com a natureza, para a construção de uma sociedade menos iníqua.

Registramos também algumas imagens, cenas, eventos e verbalizações, representantes das tessituras estabelecidas entre as linguagens televisivas e as redes de saberes e fazeres nos múltiplos espaços escolares (sala de aula, corredores, sala de professoras(es), pátio de recreio, etc). 20

O primeiro mês de pesquisa foi o mais angustiante. Estávamos cheio de questionamentos e incertezas relativas aos sujeitos daquela escola: o que nós esperaríamos deles? O que eles esperariam de nós? Como seria nossa convivência neste tempo de pesquisa? Quais seriam os resultados deste estudo? Sentíamo-nos “pisando em ovos” ou mergulhando num oceano, mais do que agitado, abissal mesmo, com seres “estranhos” e desafiadores. Logo de início, vivenciamos uma característica muito acentuada por autoras como Oliveira (2003) e Alves (2001), qual seja, a imprevisibilidade de situações e conjunturas no cotidiano escolar. Nossas reações a tais momentos foram as mais diversas possíveis. Mesclavam alegria, entusiasmo, pessimismo, motivação, desânimo, convicção, insegurança...

Gostamos muitíssimo de música, preferencialmente MPB, e praticamente todas as vezes que nos dirigíamos à escola, pela manhã, ficávamos ouvindo as nossas canções preferidas. Duas delas, compostas e interpretadas por Vanessa da Mata, refletiam esse “claro-escuro” que era a pesquisa e o nosso trabalho de aprendiz/pesquisador.

Quando estávamos angustiado/pessimista com as situações experimentadas na escola, recordávamo-nos de um trecho da música Onde ir, que diz o seguinte: “Eu não sei o que vi aqui/ Eu não sei para onde ir/ Eu não sei por que moro ali/ Eu não sei por que estou/ Eu não sei para onde a gente vai/ Andando pelo mundo/ Eu não sei para onde o mundo vai/ Neste breu vou sem rumo”. Em suma, necessitávamos de um norte determinado, sem compreender exatamente que direção dar à pesquisa, que postura adotar, enfim, o que fazer em meio a tantas ambigüidades e incertezas.

Noutros contextos, perante variadas circunstâncias de solidariedade, afeto e resistência ocorridas entre os sujeitos da escola, cantávamos/mentalizavamos A força que nunca seca, lindamente interpretada por Vanessa. Já se pode ver ao longe/ A senhora com a lata na cabeça/ Equilibrando a lata vesga/ Mais do que o corpo dita/ O que faz o equilíbrio cego/ A lata não mostra/ O corpo que entorta/ Pra lata ficar reta/ Pra cada braço uma força/ 21

De força não geme uma nota/ A lata só cerca, não leva/ A água na estrada morta/ E a força nunca seca/ Pra água que é tão pouca.

De fato, em meio a tantos paradoxos, apatias, perplexidades, teríamos que ficar alerta para alguns princípios teórico-metodológicos norteadores da pesquisa. O primeiro implicava um rompimento com alguns dos pressupostos científicos da modernidade, entre os quais o da rejeição de qualquer forma de saber prático, do senso comum, idéia amplamente desconstruída por Santos (2003), que, partindo das considerações de Rousseau, articulando ciência e virtude, advoga uma revalorização [...] do conhecimento dito ordinário ou vulgar que nós, sujeitos individuais ou coletivos, criamos e usamos para dar sentido às nossas práticas e que a ciência teima em considerar irrelevante, ilusório e falso” (p. 18).

Essa perspectiva é tão sedimentada que mesmo as(os) professoras(es) se enxergam, muitas vezes, como meros “aplicadores” de prescrições das propostas curriculares, dos livros didáticos e de outras normas e regras instituídas. Um das nossas maiores instigações foi interagir com esses profissionais de forma horizontal, rompendo com a dicotomia pesquisador (o “doutorando” que veio à escola na condição de expert no assunto, para fazer diagnósticos e prescrever um “receituário” detalhado visando potencializar a ação educativa) e pesquisadas/os (aprendizes que “digerirão” os conteúdos trabalhados para aplicá-los na sala de aula). Num dos encontros de grupos focais, em meio a muitas discussões e polêmicas, uma professora se dirigiu a nós, indagando: “E você, não diz nada?” Era muito tênue o limite entre a diretividade e o espontaneísmo. Nossas intervenções/ponderações deveriam provocar o grupo a repensar práticas e saberes, a externar convicções, sem receio de erro, de considerar que haveria uma “verdade” como modelo, a reavaliar posturas, porém sem cercear a participação ou direcionar os debates para um fim aprioristicamente definido. Era necessário

[...] assumir os sujeitos cotidianos não só como sujeitos da pesquisa, mas também como autores/autoras, reconhecidos em seus discursos [...]. Ou seja, os textos e discursos elaborados e compartilhados por esses sujeitos cotidianos da pesquisa precisam ser pensados não como citações e/ou exemplos dos discursos dos autores/autoras que estudamos nas 22

academias, mas como discursos tão necessários, legítimos e importantes quanto estes (FERRAÇO, 2003, p. 168).

Essa mudança de postura na relação com os sujeitos da pesquisa exigiu de nós uma “humildade epistemológica” (VEIGA-NETO, 2002, p. 34), a fim de desmistificar os super poderes conferidos ao aparato teórico construído na modernidade, seus esquemas de investigação fechados, com regras e métodos de estudo inquestionáveis e dicotômicos.

Para tanto, abdicamos de muitas “bóias” (ALVES, 2001), renunciando à pretensão de nos munir de modo absoluto do instrumental de categorias e conceitos que nos sustentariam perante os imprevistos e surpresas dos estudos de campo. Assim, em vez de lançarmos mão de perspectivas unidimensionais, entrecruzamos múltiplas referências, concretizando diálogos horizontais entre os diferentes autores que pesquisam as interfaces televisão-educação e os saberes e fazeres das/os professoras/es, que tecem redes de conhecimentos entre a escola, a comunidade e a sociedade como um todo, de forma cada vez mais complexa.

As diferentes atrações televisivas constituem-se numa intricada articulação de som, texto e mixagem, visando seduzir e entreter seus telespectadores. Portanto, ao analisarmos coletivamente as mensagens que a televisão nos endereça, bem como as formas como as desconstruímos/reconstruímos na prática pedagógica cotidiana e nos currículos vividos, consideramos sempre o paradigma da complexidade.

O conhecimento pertinente deve enfrentar a complexidade. Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico), e há um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade (MORIN, 2001, p. 38).

Esses variados entrelaçamentos foram fundamentais não só na análise das falas docentes, mas, também nas verbalizações das(os) alunas(os), em seus comportamentos, hábitos, gostos e em suas performances no cotidiano escolar. Nos grupos focais realizados com esses sujeitos, buscamos ter os mesmos cuidados metodológicos efetuados no trabalho com as(os) professoras(es). 23

Ao salientarmos os movimentos singulares produzidos pelas(os) estudantes e docentes no cotidiano escolar dessa escola municipal, nas interfaces com as mensagens da televisão, evitamos sucumbir a uma perspectiva que interpreta esse cotidiano como totalmente independente das forças e agentes externos. Recorrendo à metáfora utilizada por Santos (2002), o qual mostra a interação das regras e dinâmicas sociais da “pequena escala” com os saberes e fazeres da “grande escala”, Oliveira (2003, p. 63) acentua que “[...] o cotidiano é o espaço no qual se realizam as articulações entre as macroestruturas sociais e os fazeres, relativamente autônomos e adequados às circunstâncias, dos sujeitos sociais reais”.

Assim é que, na atualidade, a própria televisão é uma eficiente mediadora entre essas duas dimensões de escala, pois traz para a intimidade do espaço-tempo doméstico inúmeras abordagens de fatos, acontecimentos, subjetividades e grupos sociais, de acordo com uma perspectiva ou enfoque, entre outros possíveis. Acreditamos, no entanto, e nosso estudo confirmou isso, que, na condição de “consumidores culturais” (CERTEAU, 2002), os sujeitos (docentes e discentes, no nosso caso) muitas vezes reelaboram essas mensagens televisivas.

Concordamos com Machado (2005) quando pontua que o termo televisão é plural e amplo, não se resumindo apenas ao descartável e frívolo, pois abarca inúmeras possibilidades de produção, distribuição e consumo de conteúdos de qualidade, em redes públicas e privadas, abertas e pagas, de diferentes alcances geográficos.

Sem desmerecer as análises críticas que nos alertam para a mercantilização generalizada da cultura efetivada por esse artefato, salientamos, em nosso estudo, que há um conteúdo televisivo que não apenas engloba intenções hegemônicas de classes e grupos sociais, mas que, também em sua complexidade e ambigüidade, incita a resistência. Procuramos, assim, nesta pesquisa, concretizar abordagens multifocais que, sem ignorar os contextos históricos mundial e brasileiro que interferem nos discursos televisivos gerando silenciamentos, resignações, estejam atentas às possibilidades de reinvenções, aos interstícios que oportunizam problematizações dos conteúdos que atravessam o espaço-tempo escolar. 24

Essas margens de ação contra-hegemônica estão presentes também na escola. Uma cena sempre nos vem à memória quando refletimos acerca desse aspecto. No caminho para a escola, há um trecho da estrada que margeia o rio Marinho. Como a grande maioria dos cursos d´água urbanos, ele está completamente poluído e fétido, com um aspecto desagradável de se ver. Os moradores vizinhos, porém, plantaram inúmeras árvores nativas e exóticas em suas margens, numa tentativa de humanizar mais a paisagem local. Vez por outra, observamos também garças brancas que voam aqui e acolá em busca de alimento. Portanto, mesmo num quadro de degradação ambiental e desrespeito pela vida em sua dimensão individual e coletiva, a resistência se manifesta, comprovando que a história não é somente produto, mas processo, com a produção humana das brechas para mudanças.

Na escola pesquisada não foi diferente. Em meio a tantas imprevisibilidades e posturas docentes que entrecruzaram indiferença, militância, apatia, compromisso, omissão, interesse, pessimismo, esperança, o caminhar coletivo daquela instituição ia se construindo.

Já no primeiro encontro com as(os) professoras(es), um fato inesperado. Preparamo-nos para fazer um encontro com uma média de dez pessoas e, quando chegamos, os profissionais dos dois turnos estavam presentes. A pedagoga do matutino então nos comunicou que aquele era um dia de planejamento interno; as(os) professoras(es) do turno vespertino ficaram sabendo da temática do encontro que seria realizado, interessaram-se e decidiram participar também. Como ela não conseguiu se comunicar conosco, achou que não haveria problema em incluir o turno oposto também no encontro. E não houve mesmo! Pelo contrário, começamos com o “pé direito”, pois foi um momento coletivo riquíssimo.

Iniciamos expondo a relevância da temática e os objetivos da pesquisa. Em seguida, solicitamos que cada docente socializasse com o grupo, por meio duas palavras, suas percepções acerca do conteúdo televisivo. Queríamos avaliar as múltiplas visões que tinham a respeito da questão. 25

O professor de Matemática 1(01) destacou as palavras “cotidiano” e “fundamental”, reforçando o caráter ubíquo da televisão na sociedade brasileira e na sua família, sem, contudo, abrir mão de uma seleção crítica do que é exibido, orientando a filha a fazer o mesmo. Assim verbalizou sua perspectiva sobre esse artefato cultural:

Fundamental pelo seguinte: porque sou meio que filhote da televisão, eu assisto televisão por gosto, por prazer de assistir. Que tem um outro nicho que tem coisa boa, todo meio de comunicação de massa tem, internet, jornal, tudo tem coisas boas e coisas ruins. Então, televisão pra mim é assim, eu brigo com ela, eu discordo, eu saio às vezes e falo: ‘Alice, que porcaria, minha filha, vai pro computador!’ Não tem jeito não. Ficar sem televisão pra mim é impossível.

Entre as/os professoras/es que destacaram aspectos positivos e negativos, o de Inglês considerou os usos pedagógicos que podem ser feitos do conteúdo da TV. Embora esteja atento aos significados propostos nas abordagens que a TV constrói, questionando-as, busca incorporá-las em seu trabalho cotidiano.

Bom, eu coloquei, as duas palavras que eu coloquei foram entretenimento e banalização. Pra mim, a televisão, ela é entretenimento e pra minha matéria Inglês ela tá trazendo muita coisa. Existe um bombardeio de estrangeirismo, de tudo que vem dos Estados Unidos. Então, eu tenho que defender esse lado, é muito bom pra mim. Dá muito pra trabalhar com música, com filme, muita coisa boa, né!? Agora, existe o problema da banalização, porque eu dou aula, por exemplo, no matutino e os alunos, eles sempre vêm me perguntar coisas, “o que significa isso?” “o que significa aquilo?” e [...] 90%..., não, 100% das palavras são palavras, são palavrões em inglês, ou são alguma palavra de conotação sexual, coisas de baixo calão, geralmente são isso. E eles ouvem isso constantemente. Aí, depois eu vou verificar onde eles ouviram, são [sic] em desenhos animados, mas além de programas para adultos, são programas pra crianças que eles ouvem. Existe o problema da banalização, que é em todos os sentidos. E a falta de senso crítico que a televisão

1 Como os grupos focais realizados envolveram dois professores de Matemática e dois de Ciências, as falas dos professores de ambas as áreas serão identificadas com os números 01 e 02. 26

deixa de dar, ela dá a notícia pronta e ela não te faz pensar, é essa a questão. [...] Ela te dá uma notícia, ela te põe aquilo como verdade, você aceita. Esse é o problema que eu vejo em relação aos alunos.

Outra fala muito interessante foi a de uma professora de História, que realçou uma dimensão positiva. Na sua concepção, as atrações televisivas visibilizam grupos sociais marginalizados e discriminados, que se tornam um “prato cheio” para problematizações em sala de aula. São temáticas polêmicas que vêm sendo abordadas, sobretudo nas telenovelas após as 20h da Rede Globo, as de maior audiência. Para essa professora, a escola e seus profissionais têm aí um instrumento de grande valor pedagógico, com questões enredadas a uma série de fatores socioeconômicos, políticos e culturais.

Bem, entre várias, algumas já foram repetidas, aí eu fiquei com ferramentas. Por quê? Eu vejo a televisão como um importante instrumento pra quem está trabalhando valores em nossos alunos e, ultimamente, principalmente com algumas novelas. Eu não assisto novelas, mas, quando alguma coisa polêmica é levantada, eu gosto de acompanhar pra gente tá discutindo em sala de aula, mesmo porque a minha matéria dá margem a isso. Então, teve algumas minorias, né?, homossexualismo, agora a profissão garota de programa [novela Paraíso Tropical]. Tem gente que só olha aquela figura, né?, ela ali se ostentando. Então, o que se passa por trás disso? Então, tudo isso, o fato social, a formação dessa pessoa que é analisada, as relações, né? até homossexuais, a questão da Síndrome de Down que foi abordada antes, crianças desaparecidas. Eu acho que isso é muito importante, esse serviço que a televisão faz e que a gente pode tá usando. É lógico que ela tem mil coisas negativas, né?, mas aí está o nosso senso de estar ajudando o nosso adolescente a discernir o que serve pra ele, o que não serve, porque às vezes a família não tem condições de ajudar, né? 27

Na categoria dos sujeitos que acentuaram somente aspectos negativos, há posicionamentos que, embora não deixem de evidenciar questões sérias e preocupantes nas mensagens da TV, sucumbem a uma perspectiva maniqueísta que atribui a essas mensagens um irracionalismo responsável direto por inúmeros males brasileiros, cujas causas são complexas e variadas. Deixam, assim, de perceber as margens para ações educativas pertinentes às mensagens televisivas.

Bom, eu tenho pouco tempo pra assistir televisão, mas eu preciso falar uma palavra, e essa palavra que eu pensei foi empobrecimento. Eu penso que o desenvolvimento do ser humano, ele passa por idéias, e idéias construídas racionalmente. Como os pobres, eles não têm dinheiro pra comprar revista, jornal, ir ao teatro, eles só têm mesmo é a televisão. E televisão não permite, ela não dá espaço, ela não te dá tempo pra construir essas idéias. Eu penso que a televisão, ela incentiva muita pobreza e como a pobreza é causadora dos grandes bolsões de miséria, de violência, de desgraça da sociedade em geral, eu prefiro não falar sobre os pontos positivos.

Destacamos essas três perspectivas docentes porque elas acabam por reforçar os principais enfoques nos meios acadêmicos relativos à televisão. O sociólogo italiano Giovanni Sartori (2001), por exemplo, se alinha com aqueles que vêem mais prejuízos intelectuais do que benefícios educativos nessa mídia. A cultura escrita, segundo ele, está perdendo espaço crescente para a cultura televisual, cujos reflexos são a superficialidade e a incapacidade de operações mentais e análises mais abrangentes pelos indivíduos.

Visão oposta tem o pesquisador Martín-Barbero (2004), com a qual concordamos, pois acredita que a linguagem audiovisual contém uma racionalidade tão válida quanto a da linguagem escrita. O desafio é articular complexamente essas duas formas de leitura, oportunizando às(aos) estudantes interpretações plurifacetadas das realidades construídas nas esferas das relações de poder. 28

Há ainda um terceiro grupo que vê a televisão como fenômeno social menor, secundário, sem mesmo considerar a hipótese de estudá-la. Seria mais um meio de alienação das massas, utilizado pelos grupos dominantes para acomodá-las crescentemente. O estudo do seu conteúdo, por conseguinte, é perda de tempo. Vejamos o que diz Bucci (2000) sobre essa postura:

Reconheço que entre nós há uma recusa intelectual à televisão. Para muitos, ainda hoje, TV não é coisa séria. Seria simplória demais, idiotizante demais para ser levada a sério. As telenovelas seriam sempre ruins porque sempre são melodramáticas. O telejornalismo, sempre superficial porque é sempre espetacularizado. Os comerciais, sempre lixo porque só querem vender, e vender porcariada. Quanto aos telespectadores, são sempre idiotas, porque a massa, afinal de contas, como toda unanimidade, é burra. Claro que preciso discordar dessa recusa inflexível. Ela não é como a recusa que havia nos anos 50, principista; ela não pode deixar de levar em conta a TV (pois ignorá-la tornou-se absolutamente impossível), mas teima em desconsiderá-la, em menosprezá-la como fenômeno menor. É uma postura, arrisco-me a dizer, neo-elitista (p. 26-27).

Ficamos surpresos com a quantidade de livros dedicados a este tema, o que parece ser um indício de que esta atitude depreciativa e indiferente tem diminuído, em face da centralidade da tevê na constituição do imaginário brasileiro. Existirá uma onipotência televisiva, que não encontra resistência, que se impõe silenciando e neutralizando os questionamentos e ofuscando os embates, que dissemina e repercute suas perspectivas do conteúdo produzido, numa sociedade inerte e resignada no seu todo, incapaz de reinventar outros significados para as realidades existentes? Julgamos que não, uma vez que inúmeros segmentos sociais têm questionado sobretudo as posturas e estratégias de governos e redes privadas de TV, o que tornou as políticas públicas de comunicação um cenário de antagonismos entre interesses diversificados.

Esse campo de embates, aliás, é salientado no segundo capítulo desta tese, quando analisamos as políticas de comunicação no Brasil, inseridas no contexto da globalização econômica, com ênfase na TV. Realçamos os conflitos que se dão entre o Estado, o mercado e a comunidade no âmbito dos marcos regulatórios desse meio de comunicação. No terceiro capítulo, subdividido em cinco itens, abordamos as interconexões da TV com os processos de identificação contemporâneos. No primeiro item (Televangelismo) são acentuadas as repercussões políticas, econômicas e culturais das mensagens religiosas cada vez mais presentes na 29

programação televisiva, ao passo que, no item seguinte, se discute a publicidade televisiva. Os três itens restantes analisam as questões de família, de gênero, étnico-raciais e de sexualidade, além de algumas atrações da TV muito acentuadas nas falas dos sujeitos da pesquisa, como os reality shows, o seriado Malhação e as telenovelas. No quarto capítulo discutimos como os conteúdos televisivos se enredam com os saberes-fazeres dos sujeitos da escola pesquisada. No quinto capitulo apresentamos algumas considerações a partir do que foi pesquisado, sem a pretensão de indicar receitas, explicitando somente algumas pistas e indícios que talvez potencializem o trabalho da escola e de seus educadores.

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2. “VALE TUDO”? A TELEVISÃO NUMA ARENA DE LUTAS ENTRE O MERCADO, O ESTADO E A COMUNIDADE

Neste capítulo, evidenciaremos as tramas das elites econômicas e políticas brasileiras, que, articuladas e sedentas por vantagens e regalias no âmbito dos meios de comunicação, não medem esforços para barrar qualquer iniciativa de controle democrático pelo Estado ou pela comunidade.

Explicitaremos, assim, os verdadeiros abusos e arbitrariedades cometidos por esses grupos hegemônicos e seus representantes nas esferas do poder estatal. Por outro lado, abriremos espaço para as vozes discordantes, que acreditam numa mudança desse cenário, a partir da pressão da sociedade civil organizada, e para os sujeitos da escola que, cotidianamente, procuram enredar suas práticas a tais movimentos.

Em 1988, num Brasil recém-saído do regime autoritário, estreou uma telenovela escrita por Gilberto Braga e Aguinaldo Silva, autores que se tornariam referência nesse ramo de entretenimento televisivo, e a menos conhecida Leonor Bassères, que lançaram pela Rede Globo a trama Vale Tudo, que retratava a falta de ética e a corrupção na sociedade.

Essas mazelas também se fizeram presentes na trajetória histórica da televisão em nosso país, nos processos de concessão de canais, na tentativa de controle democrático do conteúdo veiculado e na legislação específica, que permaneceu e permanece, em grande medida, como letra morta.

Desde a inauguração de suas transmissões no Brasil, em 1950, mas principalmente a partir da década de 1960, quando foi ampliando a área de abrangência geográfica de sua programação, a TV foi adquirindo um protagonismo crescente no processo político brasileiro. Os governos que se sucederam, tanto os democráticos, quanto os ditatoriais, não tardaram a perceber que esse meio de comunicação seria estratégico como força mobilizadora e de convencimento da população para os seus projetos políticos. 31

Durante o regime militar, por exemplo, o empresário e apresentador Sílvio Santos cantava com seu auditório, num programa dominical, líder de audiência, a que assistíamos na Rede Globo, uma música que divulgava e fortalecia entre o povo brasileiro o ideário ufanista de um Brasil destinado a se tornar uma potência rica e próspera, sintonizada com a doutrina de segurança nacional, norteadora político- ideológica do sistema autoritário em que vivíamos.

Este é um país que vai pra frente, ô, ô, ô. De uma gente amiga e tão contente, ô, ô, ô. Este é um país que vai pra frente De um povo unido e de grande valor É um país que canta, trabalha e se agiganta É o Brasil do nosso amor! (Autoria desconhecida)

De fato, o modelo de desenvolvimento excludente e concentrador de renda implantado no país nesse período histórico agigantou, não as possibilidades de a população brasileira como um todo melhorar suas condições de vida, mas o poder econômico e político dos grupos dominantes, incluídos aí os concessionários das redes comerciais de televisão, que utilizaram a sua crescente influência social como moeda de troca para expandir benesses. Simultaneamente, ocorria um processo de crescente influência desse meio de comunicação, não apenas no Brasil, mas também nos demais países do mundo, o que levou muitos estudiosos a denominá-lo de “Quarto Poder”. Em que consiste sua força persuasiva? Baseia-se no

[...] poder que ela tem de destruir alguém. O poder que tem de influenciar e mudar o processo político. O poder de capacitar, animar. O poder de enganar. O poder de mudar o equilíbrio de forças: entre Estado e cidadão; entre país e país; entre produtor e consumidor. E o poder que lhe é negado: pelo Estado, pelo mercado e pela audiência, cidadão, consumidor, opositores ou resistentes (SILVERSTONE, 2002, p. 236).

Note-se que não se trata de uma capacidade ilimitada, sem contraponto. Esse poder televisivo também é permeável ao dissenso. Embora exerça um papel considerável nas percepções que os sujeitos geralmente têm dos partidos políticos, dos candidatos e ocupantes de cargos eletivos, na construção dos seus discursos e estratégias de propaganda, nas suas performances públicas, no estabelecimento de 32

agendas de discussão, a TV no Brasil não consolidou a sua influência e capacidade de manipulação isenta de conflitos e movimentos contra-hegemônicos.

Assim, debater, analisar e estudar suas mensagens e construções de múltiplas esferas de realidade, não apenas política, mas também cultural e socioeconômica, tornou-se imperativo à ampliação do campo de possibilidades de consolidação de uma democracia de alta intensidade, proposta por Santos (2006), alicerçada na melhoria das condições de vida de tantos despossuídos e no combate a toda forma de discriminação. Na perspectiva analítica desse autor, as democracias contemporâneas, implementadas em sua grande maioria sob a égide neoliberal e formal, são predominantemente de baixa intensidade, ou seja, se configuraram apenas no aspecto jurídico-institucional, sem realmente alterar a exclusão social e a marginalização cultural de amplos setores da população.

Essas democracias se articulam com os projetos socioculturais da modernidade, de matriz européia, liberal, patriarcal e cristã, que, por sua vez, se assentam no pilar da regulação e no pilar da emancipação.

São pilares, eles próprios, complexos, cada um constituído por três princípios. O pilar da regulação é constituído pelo princípio do Estado, cuja articulação se deve principalmente a Hobbes; pelo princípio do mercado, dominante sobretudo na obra de Locke; e pelo princípio da comunidade, cuja formulação domina toda a filosofia política de Rousseau. Por sua vez, o pilar da emancipação é constituído por três lógicas de racionalidade: a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a racionalidade moral-prática da ética e do direito; e a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica. Como em qualquer outra construção, estes dois pilares e seus respectivos princípios ou lógicas estão ligados por cálculos de correspondência (SANTOS, 2001, p. 86).

Ambas as bases apresentam desequilíbrios. No pilar da regulação, ocorreu um desenvolvimento mais acentuado do princípio do mercado. No pilar da emancipação, por outro lado, a racionalidade cognitivo-instrumental tornou-se dominante em relação às outras duas racionalidades. Como a televisão se inseriu nesse processo? A massificação desse recurso midiático no mundo e no Brasil se efetivou no contexto histórico do Estado de Bem-Estar Social, quando houve um maior equilíbrio entre os princípios do mercado e do Estado, embora com variações entre a maioria dos países capitalistas desenvolvidos da Europa Ocidental, juntamente com os EUA, 33

Canadá, Japão e Austrália, onde se consolidou mais, e os demais países do capitalismo periférico. Assim, no Brasil, tivemos a concretização apenas parcial de algumas de suas propostas, com o Estado planejando e implementando grandes obras de infra-estrutura, sem, contudo, oportunizar políticas públicas inclusivas, geradoras de emprego, aumento da renda, reforma agrária, melhor saúde e educação. Entretanto, a televisão se beneficiou grandemente dessas ações estatais. Em 1969, por exemplo, o governo militar implantou, através do Ministério das Comunicações e da Embratel, recém-criados, a Rede Básica de Microondas, o que permitiu a ampliação do alcance territorial da programação ao vivo. Com o início da operação dos satélites Brasilsat, em 1985, as produções televisivas passaram a cobrir todo o território brasileiro em tempo real.

Essas medidas estatais repercutiram positivamente no nível técnico da programação, beneficiando a Rede Globo, em especial, que foi se consolidando como a emissora de maior audiência.

Na segunda metade dessa década de 1980, aliás, quando as transmissões via satélite se tornaram uma realidade nacional, o princípio do mercado retomou com maior intensidade a sua hegemonia sobre os princípios do Estado e da comunidade, o que estimulou e fortaleceu a configuração das democracias de baixa intensidade. No entanto, como salientaremos adiante, esse domínio do mercado não foi absoluto. Ações dissidentes de grupos e movimentos sociais e mesmo na esfera estatal e das redes televisivas comerciais se concretizaram.

Esse processo histórico de fortalecimento do princípio do mercado se deu, inicialmente, com os governos Reagan (Estado Unidos) e Thatcher (Grã-Bretanha); num segundo momento, após a queda do muro de Berlim (1989) e a posterior crise do socialismo real, quando o modelo socioeconômico e político do capitalismo neoliberal se consolidou extensivamente e intensivamente no mundo. No âmbito nacional, sua primazia se confirmou sobremaneira a partir da década de 1990, no primeiro governo FHC. Porém, a televisão, em sua gênese e crescimento no Brasil, foi orientada, via de regra, pelo domínio do principio do mercado. 34

O modelo dominante de globalização em curso compromete a democratização das informações e de formas multifacetadas de apresentar sujeitos, grupos e acontecimentos, ao favorecer e estimular a concentração empresarial por meio de três tendências inter-relacionadas: a integração vertical, motivada pela desregulamentação e competição em escala global, articulando, num mesmo conglomerado, desde corporações internacionais até empresas locais; a globalização do mercado de informação e comunicação, promovendo a circulação de bens simbólicos com uma marca fortemente internacional; a privatização, favorecendo os interesses particulares (ANDI, 2007).

A interação dessas três tendências contemporâneas se processa de modo dinâmico e contraditório. Santos (2006) diferencia quatro formas ou processos de globalização (localismo globalizado, globalismo localizado, cosmopolitismo insurgente e subalterno e patrimônio comum da humanidade), geradoras de dois modos de produção de globalização (hegemônica e contra-hegemônica). O localismo globalizado se efetiva pela disseminação eficaz, em escala planetária, de estratégias, práticas, perspectivas analíticas, organismos e concepções. O uso do idioma inglês como padrão nas transações comerciais, as reformas dos Estados nacionais, erodindo o patrimônio público e verticalizando intensamente empresas nas diferentes escalas geográficas, são exemplos desse processo. O globalismo localizado refere-se às repercussões políticas, socioeconômicas e culturais das ações comandadas pelos centros de poder do capitalismo (Europa Ocidental, EUA e Japão, principalmente) em diferentes lugares do mundo, alterando não só organizações societárias, formas de trabalho e de relação com a natureza, como também a exploração das belezas históricas e paisagísticas, etc.

Esses dois processos articulados constituem a globalização hegemônica, o primeiro modo de produção da globalização, que sujeita povos e Estados do Sul periférico a um estreitamento de horizontes e possibilidades, indicando-lhes como modelo de uma suposta modernização os ditames de organizações multilaterais e empresas sediadas no Norte dominante. Esses processos transformam o sistema-mundo num campo de tensões entre os globalismos localizados e localismos globalizados e as resistências que eles provocam, denominadas por Santos (2006) de globalização contra-hegemônica, alternativa ou globalização “a partir de baixo”. Esse segundo 35

modo de produção de globalização se efetiva por meio do cosmopolitismo subalterno insurgente, enredamento transnacional de movimentos e organizações contrários às práticas e proposições dos globalismos localizados e localismos globalizados. Os Fóruns Sociais Mundiais, coletivizando e potencializando ações de enfrentamento das prescrições do Fórum Econômico Mundial, em Davos, Suíça, exemplificam esse embate. O outro processo que se inclui na globalização contra- hegemônica é o patrimônio comum da humanidade, referente às mobilizações transnacionais em favor da conservação dos recursos naturais e dos ecossistemas, como riquezas mundiais inestimáveis e base de sobrevivência das futuras gerações. Os intensos debates e mobilizações relativos à problemática do aquecimento global fortalecem esse processo.

A televisão brasileira não é isenta nesse campo de lutas. Importantes analistas e apresentadores de telejornais, como Alexandre Garcia, Miriam Leitão e Arnaldo Jabor (Rede Globo), Joelmir Beting (Rede Bandeirantes), são defensores convictos do ideário relacionado aos agentes do globalismo localizado, elaborando argumentações convincentes para torná-lo um consenso social.

Em que pese esse aspecto, a sociedade civil organizada em inúmeros movimentos sociais, os governos progressistas, bem como a instituição escolar, devem atentar para os mecanismos de concentração e verticalização dos órgãos de informação, como uma das estratégias mais eficientes para os atores da globalização hegemônica divulgarem seus ideais de mundo, de ser humano e de sociedade. O cineasta estadunidense Michael Moore, perspicaz observador e crítico das contradições societárias do seu país, afirmou que pelo menos 80% dos seus compatriotas não sabem onde fica o Iraque no mapa, responsabilizando as poderosas emissoras de TV daquele país pelas ações bélicas criminosas contra o povo iraquiano. “Elas ajudaram o presidente Bush a mentir para o povo americano, não fizeram perguntas difíceis, são cúmplices de Bush”, afirmou (ÚLTIMO SEGUNDO, 2007).

O quadro abaixo ilustra bem as proporções dessa tendência global à concentração midiática, embora não abranja a recente fusão entre Sky (Grupo News Corporation) e Directv. Ainda que não seja consensual entre os pesquisadores o número de 36

grandes conglomerados, a maioria das análises utiliza como referência cinco a sete corporações.

OS SETE CONGLOMERADOS NOS ESTADOS UNIDOS Empresa Portal Televi Televi Produ Produ Parques de Tele- Músi Edito Rá Empresa de são são ção de ção de Temáti comuni ca ra dio Internet Aberta Paga Filmes Tevê cos cação Time Warner X X X X X X X X Viacom X X X X X X X Vivendi Universal X X X X X X X X News Corp. X X X X X Disney X X X X X X X Bertelsmann X X X X X Sony X X X

Fonte: THE ECONOMIST, apud ANDI, 2007, p. 83

Observe-se também que todos os conglomerados listados atuam na produção televisiva, sendo cinco os que operam na televisão aberta. Todos eles têm expressiva presença no mercado brasileiro. A Disney, por exemplo, produz mensagens marcantes no imaginário de crianças e adolescentes. Frase atribuída ao presidente desse conglomerado, Michael Eisner, indica os comprometimentos que os interesses mercadológicos em questão podem ter na consolidação de uma democracia de alta intensidade no Brasil e no mundo. Afirma ele: “Nós não temos obrigação de fazer história. Nós não temos obrigação de fazer arte. Nós não temos obrigação de ter um posicionamento. Produzir lucro é o nosso único objetivo” (ANDI, 2007, p. 83).

No âmbito da América Latina, é explícita a ampla concentração de empresas sob o domínio das poderosas Organizações Globo, estendendo sua ação na produção, distribuição e divulgação de bens culturais. O quadro a seguir bem o demonstra.

CONGLOMERADOS DA AMÉRICA LATINA MEIOS GRUPO GLOBO GRUPO CISNEROS GRUPO CLARÍN 37

Venevisión, Chilevisión, Televisão Rede Globo CCN (Caribe), Carocal Canal 13 (Colômbia) TV à Cabo Globocabo GTC Multicanal DTH TV Sky DirecTV, Via Digital Direct Tv Vídeo Globo Vídeo Videomovil Radio Mitre, FM Rádio Rede Globo Radio Chile 100 Gravadoras Som Livre Rodven Jornais O Globo Clarín Revistas Editora Globo AGEA Agências de Notícias Agência Globo DyN Produção de Filmes Globo Filmes Cinematik Patagonik Fundações Fundação Roberto Marinho Promoção Vasglo Distribuição de televisão Globo Internacional Proartel Televisão nos EUA Univisión Univisión, Galavisión Outras Indústrias Pay-TV, TyC Propaganda, Edição, Culturais Esportes, Papel Merchandising, Pay-TV Prensa Pesquisa Marketing, Pesquisa de Marketing Telecomunicações CTI (celular e telefonia fixa) Cidade Internet, Internet Globo.com AOL, Eccelera, El Sítio Cidade Digital

Fonte: MASTRINE; BECERRA, apud ANDI, 2007, pp.85.

Os dados acima não podem ser ignorados por todas(os) aquelas(es) que, na esfera acadêmica, nos movimentos sociais, na atividade educacional, nos partidos políticos progressistas, anseiam e lutam por uma sociedade onde a democracia se concretize numa existência mais digna para o ser humano e no respeito às diferenças culturais. Outro aspecto intrínseco à TV diz respeito às abordagens que ela constrói para a cena política, com seus partidos, os gestores, principalmente do executivo e do legislativo em todos os níveis do poder (municipal, estadual e federal), as campanhas eleitorais, as relações da população em geral com as instituições democráticas e com seus representantes políticos, enfim, ao próprio cenário democrático, com seus enredamentos. 38

Um slogan da Rede Globo nos anos 80, “O que a gente não inventa, não existe”, expressa o papel central dessa mídia nos modos de ser e proceder na atividade política e na construção da democracia. Rubim (2007) chega a denominar esse fenômeno de “telepolítica”. O protagonismo televisivo, como já salientamos, não é absoluto, nem é aceito e assimilado sem divergências pelos sujeitos em seu cotidiano. Porém, nem de longe é ignorado por aquelas(es) que, direta ou indiretamente, estão envolvidos com o exercício do poder; afinal, a mídia, e mais específicamente a televisão, que é o meio que nos interessa, “pode não ser bem sucedida, a maior parte do tempo, em fazer com que as pessoas pensem de determinado modo, mas ela é extremamente bem sucedida em fazer com que o público pense sobre determinados assuntos” (COHEN, apud ANDI, 2007, p. 53). Não por acaso, vivenciamos uma espécie de “midiatização da vida social” (MORAES, 2008), diretamente entrelaçada com essa capacidade de nortear agendas daquilo que será visibilizado, esvaziando, em certa medida, o poder de penetração e mobilização de instituições sociais, como a escola, as igrejas, a família, as diferentes esferas do poder estatal, etc.

Qual a(o) prefeita(o) de uma capital ou centro urbano importante, a(o) governadora(o) de qualquer Estado da federação, ou a/o presidente do país, que ignoraria o papel da televisão nas interações que pode e deve estabelecer com seus respectivos cidadãos? Convenhamos que seria um “atestado de burrice” ignorar esse fato. Tanto é que todas(os) as(os) ocupantes desses cargos têm uma secretaria ou assessoria de comunicação social. Ter visibilidade na tevê, por meio de entrevistas, de obras e de realizações, de performances públicas, é, portanto, uma estratégia muito considerada por dirigentes políticos e assessores.

O desencanto da política transforma o espaço público em espaço publicitário, convertendo o partido em um aparelho-meio especializado de comunicação e o carisma em algo fabricável pela abstrata engenharia midiática. E, ao transformar o povo em público, acentua o caráter abstrato e desencarnado da relação com as audiências. A estas se dirige um discurso político televisionado em busca já não de adesões, mas de pontos na estatística dos possíveis votantes (MARTÍN-BARBERO; REY, 2004, p. 32).

Exemplos não faltam na história recente do Brasil. Nas eleições presidenciais em 1989, Fernando Collor se consolidou no imaginário popular como “caçador de 39

marajás”, graças a uma bem montada estratégia de marketing político da Rede Globo. O próprio Roberto Marinho, em entrevista ao Jornal da Tarde, em 1993, admitiu, sem rodeios, que o atual senador alagoano era o candidato do seu poderoso conglomerado midiático. “Mas o senhor reconhece que a Rede Globo e O Globo influíram para a eleição do Collor?, questionou o repórter. Respondeu Roberto Marinho, sem hesitar: “Sim, nós promovemos a eleição do Collor e eu tinha os melhores motivos para um grande entusiasmo e uma grande esperança de que ele faria um governo extraordinário” (BUCCI, 2000, p. 161).

Anos antes, ainda no período de transição democrática, quando um colégio eleitoral escolheu Tancredo Neves para a presidência da república, um fato revelador da influência política da Rede Globo foi relatado pelo seu vice, o atual senador José Sarney, no livro biográfico de Roberto Marinho.

O Tancredo o consultava, mas ele não indicava. Inclusive o Tancredo falou: “Convide o Antônio Carlos Magalhães para o Ministério das Comunicações”. E o Doutor Roberto disse a ele: “Não, presidente, o senhor convide”. Então, quando soube que o Antônio Carlos Magalhães seria o Ministro das Comunicações, o Ulysses Guimarães disse ao Tancredo: “Hoje o PMDB rompe com você. É inadmissível que seja o Antônio Carlos. O PMDB rompe com o governo”. Aí o Tancredo bateu na perna do Ulysses e disse: “Olha, Ulysses, eu brigo com o papa, eu brigo com a Igreja Católica, eu brigo com o PMDB, com todo mundo, eu só não brigo com o Doutor Roberto (BIAL, apud SANTOS; CAPPARELLI, 2005, p. 87-88).

Nas duas eleições que conduziram Fernando Henrique Cardoso ao poder (1994 e 1998), não foi muito diferente. Mais uma vez a Rede Globo, principalmente, realizou uma cobertura bastante tendenciosa a favor desse candidato. Focamos tais exemplos de coberturas parciais dos fatos nessa rede televisiva, pela audiência bem superior que obtém em comparação com as concorrentes. Todavia, as demais emissoras também são atravessadas por estratégias e abordagens unilaterais, no que tange aos variados aspectos da vida social.

A própria posição de centralidade da mídia em geral, principalmente a televisão, alterou significativamente as campanhas eleitorais. Haja vista, o crescimento do marketing político, sobretudo a partir da década de 70, e sua crescente relevância na construção da imagem dos candidatos junto ao eleitorado. Até a década de 60, 40

quando o rádio ainda era dominante como meio de comunicação de massa, as interações candidato-eleitor eram mais diretas; os partidos coligados, cabos eleitorais, lideranças locais tinham um papel fundamental no êxito de uma campanha política. A marcante presença da TV nos mais diferentes recantos do país impactou essa tradicional dinâmica, dando-lhe outras configurações. A mídia televisiva se transformou, ela própria, num importante ator político.

Essa interação da tevê com seu público é paradoxal. Pode estar distante geograficamente, mas suas imagens e narrativas adentram as salas e quartos das residências, os bares e botequins e outros espaços, estando frente a frente com os telespectadores. Essa reciprocidade se fortalece à medida que os vínculos sociais das pessoas muitas vezes se fragilizam, repercutindo no princípio da comunidade. Há um distanciamento crescente dos indivíduos em relação às instituições representativas, ao contrário da televisão, que se faz cada vez mais íntima, próxima e familiar dos seus anseios, sonhos e desejos. Sarlo (2004) chama essa interação “democratismo televisivo” (Figura 7). A presença do público é constante dentro das atrações: seja nos programas de auditório, como Domingão do Faustão, Domingo Legal, em que a presença é real e direta, ao vivo e a cores, seja em outras atrações como o Fantástico, o e demais programas em estúdio, nos quais a participação é mais virtual.

[...] o público fala de igual para igual com as estrelas, dirige-se a elas pelo primeiro nome, confia nelas porque estão eletronicamente próximas e porque as estrelas, em vez de basearem seu carisma na distância e na indiferença, procuram-no na proximidade de ideologia e sentimentos (p. 77). 41

Figura 7: “Democratismo televisivo”. Fonte: Folha de São Paulo (Ilustrada), 18/11/2007, p. E9

O imaginário paternalista sai reforçado nesses entrelaçamentos público-TV. Os telespectadores se dirigem a esse meio de comunicação na esperança de verem concretizada alguma reivindicação pessoal ou coletiva com maior rapidez e eficácia do que ocorreria ao se dirigirem às instituições político-jurídicas tradicionais, com seus trâmites, prazos, formalismos, engessamentos. No cenário televisivo, ao contrário, tudo parece mais rápido, transparente, satisfatório. O antigo político ou líder populista já não medeia tão intensamente, nos grandes centros urbanos, os pleitos das comunidades perante os órgãos públicos. Agora a televisão é a grande interlocutora do público, que visualiza nela o espaço simbólico para suas reivindicações e anseios.

O chamado “telejornalismo comunitário”, por exemplo, onde pessoas e comunidades postulam melhorias diversas por parte dos poderes públicos, espelham bem essa mediação direta da tevê entre povo e governo. As administrações de alguns municípios que constituem a região metropolitana, como a própria capital Vitória, além de Vila Velha, Cariacica e Serra, organizam em suas gestões as assembléias 42

dos orçamentos participativos, oportunizando que as comunidades definam democraticamente as obras prioritárias em seus respectivos bairros. Certa vez, acompanhamos, num desses programas, a reivindicação de uma moradora do nosso bairro que solicitava melhorias urgentes em sua rua, pois era a única que não era pavimentada. O representante da prefeitura esclareceu, então, que ela deveria se organizar junto com os vizinhos e pleitear na assembléia do seu bairro a realização da obra. Em vez de utilizar a mobilização coletiva como forma de pressão, a fim de obter o serviço urbano, a moradora optou pela mediação direta da tevê.

Os significados atribuídos pela televisão promovem igualmente uma personalização da política. De modo geral, os enfoques e perspectivas tendem a evidenciar a pessoa do candidato ou do gestor público, não dos partidos e de seus projetos e alternativas políticas para a sociedade.

As discussões muitas vezes são superficiais e tendenciosas. Na rede Globo, sobretudo, não se oportuniza a discussão das questões político-partidárias sob abordagens multilaterais, colaborando para que o público forme uma opinião embasada e consistente.

Silverstone (2002) argumenta que a indústria midiática constrói uma retórica visando persuadir o público a assumir certas atitudes e valores. Assim, elabora suas mensagens da forma mais sedutora e convincente possível, articulada a uma intencionalidade política, econômica e cultural. Segundo o pesquisador, “[...] nossa preocupação deve ser com os mecanismos pelos quais isso é feito: com as maneiras pelas quais os anunciantes realizam seu trabalho, [...] mas também com a maneira pela qual a mídia factual alega suas verdades e suas realidades” (p. 66). Daí a necessidade de explicitar as artimanhas e vontades das emissoras televisivas no Brasil, para que nós, profissionais da educação, tenhamos uma maior clareza de como essa mídia muitas vezes vem atuando na contramão dos interesses coletivos e democráticos.

E, por falar em educação, como os sujeitos da escola pesquisada vêem essas questões? No segundo encontro do grupo focal, discutimos as possíveis inter- 43

relações entre democracia e televisão. Para estimular o debate, apresentamos alguns gráficos que mostravam como as concessões de canais no Brasil foram loteadas entre grupos políticos regionais e algumas famílias muito poderosas e influentes economicamente.

Um professor destacou, logo de início, o poder político da Rede Globo que, na sua concepção, é incontrolável. Esse poder também se estende à seleção e construção das informações veiculadas, que vão de encontro aos interesses hegemônicos. Segundo o professor,

[...] a televisão vem de classe alta; então, por exemplo, a Globo, ela bota no poder quem ela quer e tira também quem ela quer. Mostra aquilo que está errado quando quer e deixa de contar aquilo quando quer. Tem as novelas, você vê, os telejornais totalmente tendenciosos.

Fatos históricos envolvendo a televisão brasileira e notadamente esse canal de tevê, comprovam que a sociedade não é tão uniformemente passiva e indiferente a essa influência. Se, por um lado, já ocorreu a imposição desse poder - os exemplos que citamos anteriormente, da nomeação de Antônio Carlos Magalhães para o Ministério das Comunicações e das eleições de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, comprovam isso -, é necessário considerar que outros fatores também forçaram esses acontecimentos, pois o poder da televisão não é incontestável.

A campanha das Diretas Já, em 1984, ilustra bem isso. Uma ampla mobilização popular coordenada pelos partidos de oposição se iniciou visando pressionar o Congresso Nacional a aprovar uma proposta de Emenda Constitucional do deputado Dante de Oliveira que estabelecia a eleição direta para presidente da República a partir de 1985. Comícios reunindo milhares de pessoas foram realizados em diversas cidades, inclusive Vitória.

Apesar disso, a Rede Globo praticamente ignorou, em sua cobertura jornalística, as manifestações pró-diretas. Somente após 90 dias de silêncio quase total, a emissora cedeu à pressão de diferentes setores da sociedade e realizou uma ampla cobertura 44

do grandioso comício final, realizado no Rio de Janeiro, reunindo todas as forças oposicionistas. Numa entrevista concedida em 2005, o ex-diretor da Rede Globo José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, admitiu que ocorreu uma dupla censura na emissora: a do regime militar, importante aliado político das organizações Globo, e uma censura interna do próprio Roberto Marinho (LIMA, 2006).

Como se vê, a pressão da sociedade organizada em movimentos, partidos, sindicatos e outros forçaram uma mudança de postura.

Um exemplo mais recente de que o poder da tevê e, em especial, da Globo não é imbatível ocorreu nas eleições presidenciais de 2006. No dia 29 de setembro, às vésperas do primeiro turno, o delegado da Polícia Federal Edmilson Pereira Bruno convidou quatro jornalistas, da Folha de São Paulo, de O Estado de São Paulo, do jornal O Globo e da rádio Jovem Pan, para uma conversa reservada, na qual comunicou que tinha um CD com 23 fotos do dinheiro apreendido com dois membros do PT, o qual seria utilizado para comprar um dossiê incriminando os candidatos do PSDB, José Serra e Geraldo Alckmin.

O delegado, que desconhecia que a conversa estava sendo gravada, pediu que os repórteres explicassem que alguém havia roubado as fotos e lhes tinha entregado. Afirmou também que se justificaria perante seus superiores, dizendo que jornalistas haviam furtado as fotos que estavam em seu poder. O delegado expressou outra preocupação: “Tem alguém da Globo aí?”, obtendo uma resposta afirmativa. Destacou igualmente: “Tem de sair hoje à noite na tevê. Tem de sair no Jornal Nacional”.

No dia 29, véspera das eleições, as fotos foram divulgadas no JN. Neste mesmo dia, porém, houve a queda de um Boeing da Gol, que deveria chegar a Brasília às 18h12. Apesar da relevância do fato, nenhum espaço lhe foi reservado na edição daquele dia. O noticiário eleitoral destacando as fotos do dinheiro dos petistas monopolizou praticamente o tempo de veiculação. Uma postura editorial questionável, já que o site Terra noticiou a tragédia com o Boeing às 20h10, bem como a edição do Jornal da Bandeirantes. Não há como ignorar que o enfoque dado ao fato pela mídia, especialmente a Rede Globo, omitindo informações fundamentais 45

na divulgação do dossiê, contribuiu também para levar a eleição presidencial ao 2º turno. Contudo, o candidato petista venceu o pleito com uma diferença de votos maior ainda sobre Geraldo Alckmin (CARTA CAPITAL, 2006).

Em outros países da América Latina, essa cobertura parcial e antidemocrática da mídia também se fez presente. É o que concluíram os estudos realizados pelo C3 – Centro de Competência em Comunicación, sediado em Bogotá, Colômbia, e ligado à social-democrata Fundação Friedrich Ebert (FES), Alemanha, que analisou a postura midiática em 11 eleições presidenciais realizadas na América Latina, entre novembro de 2005 e dezembro de 2006. Entretanto, os resultados obtidos também reforçam que há outros fatores mediando as percepções dos eleitores, além dos meios de comunicação. Em pelo menos seis dos onze processos eleitorais estudados - Bolívia, Chile, Brasil, Nicarágua, Equador e Venezuela -, a decisão dos eleitores contrariou os desejos e expectativas da mídia. Nas outras cinco eleições – México, Peru, Costa Rica, Colômbia e Honduras -, houve uma perda de credibilidade e legitimidade dos órgãos midiáticos, mesmo com a vitória dos candidatos que defenderam (LIMA, 2007). Sem contar que, no México, por exemplo, a diferença de votos entre os dois candidatos no segundo turno foi mínima, com acusações do derrotado, representante das forças sociais mais da esquerda, de que ocorreu fraude.

Outro estudo realizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNDU) e publicado no final de 2004, envolvendo 231 líderes políticos, econômicos e intelectuais da América Latina, revelou, de acordo com a perspectiva das(os) entrevistadas(os), os três poderes reais, ameaçadores da consolidação democrática na região:

l. limitações internas decorrentes da proliferação de controles institucionais inadequados e da multiplicação de grupos de interesse que funcionam como poderosos lobbies, e externas oriundas do comportamento dos mercados internacionais, das avaliadoras de risco (de investimento) e dos organismos internacionais de crédito; 2. a ameaça do narcotráfico; e 3. os meios de comunicação (LIMA, 2007, p. 02).

Observe-se que, para as(os) líderes consultadas(os), o poder de erosão democrática da mídia se iguala ao de agentes centrais da globalização hegemônica, como o FMI 46

e o Banco Mundial, o G8 e a OMC. Quando indagadas(os) sobre quem de fato exerce o poder na América Latina, 79,8% das(os) entrevistadas(os) deram como primeira resposta “os grupos econômicos/empresários/o setor financeiro”, enquanto 64,9% delas(es) indicaram como segunda resposta “os meios de comunicação”.

Se analisarmos os enfoques veiculados pela TV comercial brasileira, relativos aos presidentes da Venezuela, Hugo Cháves, e da Bolívia, Evo Moráles, constataremos o quanto procede essa segunda resposta. Recentemente, realizou-se, na Venezuela, um plebiscito no qual a população deveria opinar sobre uma série de questões. Os noticiários televisivos das tevês privadas, via de regra, focaram suas informações tão somente na questão da possibilidade de reeleição indefinida do presidente Cháves, quando, na realidade, havia outros aspectos importantes na proposta governamental, como uma maior democratização do acesso à terra e a criminalização da homofobia. Numa das edições do Jornal Nacional a que assistimos, o apresentador Willian Bonner noticiou, em tom jocoso e irônico, o discurso de Evo Moráles na ONU, quando este fez uma análise histórica das relações opressivas que os povos nativos da Bolívia viveram com os conquistadores espanhóis e, mais recentemente, com as nações e grupos dominantes. Evo Moráles falou também da sua responsabilidade e compromisso com esses compatriotas, sobretudo por ser ele próprio um descendente dos indígenas bolivianos. No entanto, aquele telejornal considerou uma perda de tempo o discurso, acentuando a apatia e o desinteresse dos representantes diplomáticos de outros países.

No Brasil não tem sido muito diferente. O escândalo do mensalão foi pretexto para uma onda de denuncismo que se propagou na mídia, criminalizando pessoas e instituições sem uma investigação isenta e séria. Não podemos ignorar a existência do caixa dois no primeiro governo do presidente Lula, prática tão daninha e enraizada nas relações dos poderes executivo e legislativo em governos anteriores, tanto na esfera federal, quanto nas esferas estaduais e municipais. Houve, contudo, um nítido preconceito e parcialidade dos grupos hegemônicos contra o presidente brasileiro, traduzidos nas abordagens e enfoques midiáticos, o que se deveu, entre outras coisas, a sua origem social. 47

Lula não foi nenhum governo revolucionário na eleição. Ele tentou o tempo todo contemporizar os grandes ganhos dos grandes empresários com certa distribuição para setores sociais subalternos, excluídos. [...] Não fez essa distribuição tirando recursos das classes dominantes, não criou nenhum grande enfrentamento para essas classes. Os setores dominantes tiveram lucros fantásticos durante o governo dele, como não tiveram no governo passado, inclusive. No entanto, no momento da eleição, apesar de eles não terem seus interesses agredidos – e muito pelo contrário, algumas medidas do governo foram feitas para agradar esses interesses dominantes -, a mídia claramente mostrou sua posição de classe ao se definir por um determinado candidato naquele momento (RUBIM, 2007, p. 06).

A filósofa Marilena Chauí endossa essa análise, questionando as estratégias de agremiações políticas conservadoras e com práticas fisiológicas e clientelistas, que se arrogaram o papel de vigilantes da ética governamental e se utilizaram da mídia para desestabilizar a administração petista.

Não é que não há corrupção, é obvio que há, mas se a causa da crise fosse a corrupção os seus promotores estariam preocupados com a moralização dos costumes públicos, e neste caso os arautos e as vestais da República não poderiam ser exatamente aqueles sobre os quais pesam graves denúncias de corrupção. [...] Essas considerações me reforçaram na idéia de que houve a invenção midiática da crise, sob a regência dos partidos de oposição na tentativa de um golpe branco (CHAUÍ, 2005, p. 31).

Em recente entrevista, o jornalista Paulo Henrique Amorim criticou a letargia e a insegurança do governo Lula diante do poder da mídia brasileira, sem construir ainda no primeiro mandato um projeto de democratização dos meios de comunicação no Brasil.

[..] o Lula “frangou” a mídia, não peitou a mídia. O Lula e o PT têm medo da Globo. Aí veio o golpe, veio a passagem do primeiro para o segundo turno. E o governo Lula tomou um susto, “esses caras vão me derrubar”. E fez aquilo que na minha avaliação é uma fuga pra frente: criou a televisão pública, em vez de peitar a Globo. A Marilena Chauí tem uns conselhos maravilhosos no meu site, quando perguntei pra ela: “Como a senhora avalia a reação do governo Lula à atuação da mídia no episódio da TAM?” “Fraca e decepcionante, como no caso do mensalão. Demorou para se manifestar e, quando o fez, se colocou na defensiva.” “O que teria sido politicamente eficaz e adequado?” “Já na primeira hora entrar em rede nacional de rádio e televisão e expor à população o ocorrido, as providências tomadas e a necessidade de aguardar informações seguras” (CAROS AMIGOS, 2007, p. 38).

Também na escola pesquisada, essa parcialidade e arrogância da mídia brasileira não passaram despercebidas. Enquanto a fala docente anterior salientou o poder hegemônico da tevê, outra professora lembrou que uma alternativa contra- 48

hegemônica a essa onipresença é justamente o trabalho educativo na formação crítica da(o) estudante, embora essa fala apresente uma perspectiva um tanto messiânica, desconsiderando que há outras redes de socialização presentes nos processos de subjetivação dos indivíduos.

O professor, cabe a gente educar, enquanto você não educar o povo não vai adiantar. Você tem que educar pra você depois ta falando sobre ética. A gente tem que tomar atitudes pra que eles não parem, não adianta a gente reclamar e ser parados, entendeu? Quando você pega o telefone pra saber quem é que vai ficar no Big Brother, por que então o povo não é educado pra usar em outras situações? Ele votou novamente numa pessoa que ele sofreu conseqüências, sabe disso, mas o povo não tem memória.

A professora de História que estava no encontro utilizou os gráficos mostrando a concessão de canais televisivos a grupos econômicos e políticos privilegiados, em sua aula na 7ª série, que empregamos no segundo encontro com as(os) professoras(es). Em seguida, solicitou que as(os) alunas(os) falassem “sobre a importância da televisão na construção da democracia” (atividade escrita). Quando ela comentou conosco que havia trabalhado essa questão com a turma, pedimos se seria possível nos arranjar os textos produzidos.

Infelizmente, a professora nos repassou as produções de apenas seis alunas/os. Nelas, é quase unânime a referência às propagandas eleitorais, com posicionamentos variados. Uma aluna pontuou que a tevê “nos ajuda com as propagandas de políticos para nós não ficarmos com dificuldade de votar”, opinião compartilhada pela colega, segundo a qual “algumas pessoas só adquirem informações pela televisão, quando alguém vai votar precisa escolher um candidato e a televisão ajuda muito a pessoa a escolher um candidato certo”. Realmente, tais propagandas transmitidas por um veículo de massa com enorme penetração social podem auxiliar o indivíduo a comparar propostas e projetos políticos. Por outro lado, o marketing eleitoral tem uma enorme capacidade de mostrar “lobos como cordeiros”, o que exige astúcia do telespectador para perceber tais estratégias. Foi o 49

que acentuou um aluno, que lembrou as “propagandas políticas que tentam nos convencer de votar neles”, ressaltando que nem sempre os sujeitos são dóceis perante essas mensagens. Para outra aluna, a tevê é importante “pelas propagandas eleitorais que nos mostram o que se passa no Brasil e o seu desenvolvimento”.

As outras duas alunas emitiram posicionamentos mais abrangentes. A primeira salientou que essa mídia não é neutra, pois geralmente é controlada por grupos políticos dominantes, o que torna suas mensagens contraditórias.

A televisão pode até ajudar os cidadãos na hora de votar, mas às vezes atrapalha. Nem tudo o que os políticos prometem eles cumprem. Como estava no gráfico, os partidos que dominam é o PMDB e o PFL [atual DEM], porque muitas vezes a televisão rebaixa os outros partidos. Muitas vezes, também, a TV ajuda com as mensagens passadas por algumas novelas e alguns filmes.

A segunda atentou para os significados construídos pela televisão para a atividade política, bem como a influência das representações atribuídas à Rede Globo, o que acaba repercutindo no processo democrático.

Bem, eu acho que tem a ver sim com a construção da democracia, mas de uma forma negativa porque as pessoas, ao invés de ir pela própria opinião, vão pela imagem que a televisão monta, não só da política, mas com qualquer programa. A emissora que tem mais credibilidade é a Globo, então a gente acaba indo pelo que a Globo monta, achando que aquela opinião é a correta.

Outra questão enredada com a articulação democracia-tevê e debatida nos grupos focais de docentes e de discentes foi a instituição, pelo Ministério da Justiça, da classificação indicativa (Portaria nº 1220, de 11/07/2007), forma de monitoramento dos conteúdos televisivos, visando coibir abusos na exibição e abordagens 50

inadequadas para determinados horários e faixas etárias e subsidiando, com isso, pais e educadores na orientação das crianças e das(os) adolescentes.

Críticos dessa portaria governamental, principalmente os representantes das emissoras comerciais, afirmaram que a tarefa de escolher o que as crianças e adolescentes vêem na tevê é dos pais; à família cabe uma espécie de censura doméstica. O que os docentes pensaram a esse respeito?

A professora de Ciências (01) ponderou que, embora seja importante um diálogo dos pais com os filhos acerca do que a televisão exibe, é necessária uma regulação oficial, que obrigue as emissoras a seguirem certos padrões éticos na programação, já que elas são tão influentes socialmente.

Concordo que a programação da televisão deve ser discutida no seio familiar. Cabe aos pais orientar seus filhos e criar um ambiente em que a televisão não seja a única forma de entretenimento. Mas isso não isenta as emissoras de televisão de terem um compromisso com a sociedade que ajudam a construir. Portanto, acho que se faz necessário um direcionamento maior do que é apresentado.

Outra colega sua enfatizou que as condições materiais da vida de muitas famílias brasileiras não permitem um maior acompanhamento dos programas a que as(os) filhas(os) assistem. Manifestou, porém, o temor de que a medida se transforme em censura, com o tempo.

Eu penso que a classificação desses programas seria mais cômoda para os pais, uma vez que estes nem sempre conseguem acompanhar o cotidiano de seus filhos. Por outro lado, essas classificações correm o risco de virar censura.

O pesquisador Antonio Albino Canelas Rubim, da Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância), reforça essa preocupação da professora com as fragilidades socioeconômicas das famílias no Brasil. Muitas delas não têm condições mínimas de 51

acompanhar o que as(os) filhas(os) vêem na tevê, o que demanda uma regulação estatal que ampare crianças e adolescentes. A retórica dos concessionários de emissoras comerciais, segundo a qual o controle é papel da família, ignora o pluralismo de situações e contextos familiares no Brasil, elegendo uma representação idealizada, típica de classe média e do modelo nuclear tradicional (pai, mãe, filhos), que oportunizaria um diálogo mais freqüente relativo aos programas a que as(os) filhas(os) assistem.

As tevês argumentam que, se os pais não querem que os filhos assistam a um determinado programa, basta mandar a criança para o quarto. Mas de que lugar eles falam? Em grande parte dos lares brasileiros a televisão ocupa um espaço central e não há tantos cômodos assim para isolar os menores. Além disso, milhões de famílias são compostas pela mãe, que cumpre extensas jornadas de trabalho, e os filhos, que ficam sozinhos em casa. Como proteger essas crianças? (CARTA CAPITAL, 2007, p. 22).

Aliás, a portaria governamental que instituiu a classificação indicativa dos conteúdos televisivos chegou com um atraso de quase vinte anos! O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90) já previa no artigo 74 que seria tarefa do Estado regular “[...] as diversões e espetáculos públicos, informando sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada”. Esse dever do poder público brasileiro para com a infância e adolescência também está explícito na Constituição Federal, que, no seu artigo 21, determina que “compete à União exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão”. Portanto, não há nada de arbitrário ou impositivo na atitude do Estado brasileiro, ao contrário do que a falácia empresarial do segmento televisivo quis fazer a sociedade acreditar.

O Ministério da Justiça procurou sempre dialogar com as concessionárias de tevê; porém, a discussão franca e transparente sobre o seu papel social, a autocrítica relativa às suas linguagens, estéticas e representações, não são práticas comuns nessa mídia. Qual foi a grande rede de tevê comercial que abriu espaço/tempo em sua programação para informar e esclarecer o público acerca dessa questão? O único debate realmente democrático a que assistimos na televisão foi no programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, que reuniu representantes do governo, do setor de radiodifusão, de movimentos sociais e intelectuais, onde tivemos o desgosto de ouvir um colega geógrafo combatendo a Portaria. De resto, esses 52

empresários preferiram agir à surdina, acionando seus aliados no Congresso e no governo, objetivando protelar ao máximo essa medida democrática que já é praxe em inúmeros países.

Prova disso é que a determinação governamental ainda não está valendo legalmente. Quando foi publicada em julho de 2007, estipulava um prazo de 180 dias para a adequação das emissoras aos diferentes fusos horários. Vencido esse período de tempo no último dia 9 de janeiro, o Ministério da Justiça adiou a vigência da Portaria por mais 90 dias, gerando protestos e questionamentos. O Secretário Nacional de Justiça, Romeu Tuma Júnior, justificou a prorrogação, salientando que as emissoras alegaram dificuldades financeiras e técnicas para operarem dentro das novas regras.

Uma reportagem do jornal Folha de São Paulo (09/01/2008), informava, no entanto, que as redes televisivas SBT, Record e Bandeirantes já estavam prontas para transmitir suas programações de acordo com o estabelecido na regulamentação governamental. A maior resistência vinha, ao que tudo indica, da Rede Globo. É que, no primeiro trimestre do ano, é veiculado nessa rede de tevê o programa Big Brother, detentor de elevados índices de audiência e, conseqüentemente, polpudos contratos publicitários (BRANT, 2008). Foi esse o verdadeiro motivo do adiamento?

De qualquer modo, a atitude do órgão estatal não ficou imune a reações da sociedade civil e de instituições. Quando escrevíamos esta tese, obtivemos a informação de que o Ministério Público Federal, por exemplo, se reuniria com o Ministério da Justiça, visando obter esclarecimentos mais detalhados sobre a prorrogação para a vigência da Portaria. Procuradores de vários Estados, coordenados por Ela Wiecko, chefe da Procuradoria Federal dos Direitos dos Cidadãos, estariam na audiência (FÓRUM NACIONAL DE DEMOCRATIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO, 2008).

Como se vê, os embates entre Estado, mercado e comunidade, na esfera das políticas públicas de comunicação, se inserem num campo de tensões entre movimentos instituídos/instituintes. E os estudantes da escola pesquisada, como analisaram essa questão nos seus cotidianos domésticos? 53

Num encontro dos grupos focais com alunas(os) da 8ª série, um aluno destacou, como aspectos negativos da programação televisiva, as linguagens e cenas apelativas das novelas.

Essas novelas têm muitos gestos obscenos, que pode ter crianças menores que tão assistindo, e isso não pode acontecer e criança ainda vai crescendo, vai crescendo com isso, aí fica meio que no caminho errado, né? [...] Coisas que eu não gosto também é novela que fala muito palavrão, igual aquela novela das oito agora [Paraíso Tropical], fala muito da vida daquela prostituta que fica na rua, aí isso pra mim não tenho interesse de ver não.

Após essa fala do aluno, pontuei que a novela citada já trazia, em sua introdução, lembrete de que era desaconselhável para menores de 14 anos. Indaguei, então, se pela vivência delas(es), os pais/responsáveis observavam aquela recomendação. O mesmo aluno respondeu:

Muitos pais nem ligam para aquilo, acho que nunca viram aquilo ali, acham que passa por nada, só querem prestar atenção na novela e aquilo ali fica por fora mesmo. Tem muitos pais que não vêem, mas tem criança pequena que vê o que os pais não vê.[...] Elas assistem uma coisa que o pai não sabe, que pode ter alguma coisa errada naquela, tipo a novela que tem muita coisa errada, drogas, armas, e os pais nem sabem que vê aquela novela.

O posicionamento desse aluno reforça as considerações de Rubim (ANDI), já destacadas. As realidades socioeconômicas adversas em que vivem milhões de famílias brasileiras expõem seus responsáveis a jornadas de trabalho extenuantes, pois a distribuição de renda em nosso país está longe de ser considerada pelo menos razoável. Some-se a isso outros fatores agravantes: a distância entre os locais de trabalho e os bairros residenciais; a precariedade dos transportes coletivos, aumentando consideravelmente o tempo gasto no trajeto residência- 54

trabalho e vice-versa; as deficiências quantitativas e qualitativas dos sistemas públicos de educação, com centros de educação infantil que ainda não atendem à demanda e escolas de ensino fundamental sem horário integral. São condicionantes estruturais que repercutem na qualidade de vida das crianças e adolescentes e que desafiam os responsáveis por eles. O que farão esses menores, quando não estiverem na escola? Como ocuparão seu tempo livre, se, na maioria das vezes, as periferias não oferecem opções de lazer e a violência nas ruas é uma ameaça constante? A televisão surge como alternativa acessível, pelo menos para atenuar tantas carências e dificuldades, tornando-se muito presente no cotidiano desse segmento populacional. Pesquisa realizada pelo instituto Eurodata TV Worldwide em nove países (Brasil, Estados Unidos, Indonésia, Itália, África do Sul, Espanha, Reino Unido, França e Alemanha) concluiu que as crianças brasileiras são campeãs em permanência na frente da TV, onde ficam durante cerca de três horas e meia por dia (MÍDIAComDEMOCRACIA, 2007).

A mesma questão da classificação indicativa foi debatida com alunas/os da 5ª série. Um deles considerou que as emissoras deveriam ser mais responsáveis ao exibir cenas de sexo nas novelas, uma vez que, na sua opinião, a recomendação da idade mínima para assistir a determinados programas tem um efeito limitado nas famílias.

Bom, eu acho que eles não deveriam ter mostrado isso, porque mesmo passando lá menor de 14 anos muitos pais não proíbem, igual o meu caso, deixam assistir, aí eu acho que criança assiste [...], eu acho que se fosse eu, eu não colocava cenas assim, esses temas assim na novela. [...] Minha mãe fala bem assim: “ se eu soubesse que ia passar isso, eu não ia deixar você assistir não”. Ai ela fala isso, mas só que eu acho que é nessas cenas assim, eu acho que não deveriam mostrar, porque muitos menores assistem, muitos mesmo.

É interessante como esse aluno percebe a necessidade de um controle externo mais rigoroso da programação televisiva, já que, nas famílias, os contextos são heterogêneos e complexos, e as atitudes dos responsáveis pelas crianças e adolescentes variam do controle rigoroso daquilo a que assistem até a mais 55

completa liberdade para acompanharem os seus programas preferidos por horas a fio, independentemente do horário.

Outra aluna dessa turma acentuou que sua mãe não a deixa assistir certas atrações televisivas, “mas eu fico com vergonha de ver essas coisas, mesmo”, declarou. Por outro lado, conversa sempre com ela sobre certas situações e fatos que são mostrados nas novelas. Por isso, essa aluna considera que “se uma mãe tiver consciência, não deixa assim, vai explicar, vai falar sobre, como minha mãe fala tudo comigo, tem que explicar pra eles não fazer esse tipo de coisa errada”. Criticou também a ênfase nas cenas de sexo. “Deus falou que a boca é pra botar comida, não certos tipos de coisas, que aquilo tá errado, devia passar em outros tipos de horário”, concluiu. Já seu colega teve opinião contrária.

Ah, eu acho assim mesmo, pra mim eu acho normal ficar acordado até mais tarde assim, eu vejo, mas só que quando a minha avó ta perto assim, ela pega, troca de canal, assim pra não ver, ela fica falando depois lá, aí eu pego e vejo, [...] mas eu acho mesmo pra criança pequena assim que vê, acho que não deveria passar não.

Cremos que, diante de posturas tão diferenciadas das(os) alunas(os) e responsáveis perante os conteúdos televisivos, compete mais do que nunca ao Estado, em sintonia com os interesses coletivos, elaborar normas regulatórias rigorosas. Os profissionais das escolas também exercem um papel fundamental, no sentido de problematizar as atitudes, crenças, hábitos, enfim, as formas de ser e proceder, visibilizadas, legitimadas e, muitas vezes, naturalizadas pela tevê. Se é correto que os sujeitos da escola entrecruzam os saberes/fazeres dessa mídia com outros saberes/fazeres, não sendo apenas receptores passivos, é também essencial e recomendável que a sociedade, em seus movimentos organizados e suas instituições, imponham limites à arrogância dos concessionários, que geralmente se julgam acima e à margem das regras de controle democrático. 56

[...] a mídia é a grande arena em que os projetos de sociedade são disputados e, se tal fato é incontestável, esta arena deve ser sempre um espaço plural e diverso, nunca apropriado por interesses privados ou de governo (BARBOSA, 2006, p. 311).

A Portaria do Ministério da Justiça, que é mais um episódio nesse campo de embate, não estabelece análises prévias das produções televisivas, incumbindo as emissoras de fazer a autoclassificação do que será exibido ao público e encaminhá- la ao órgão governamental para análise. Caso haja uma discordância da classificação determinada pelas concessionárias relativa a certos programas, o Ministério da Justiça procederá uma nova classificação. Foram criadas as seguintes faixas etárias/horários para a programação: livre e 10 anos (qualquer horário), 12 anos (exibição após as 20 h), 14 anos (exibição após as 21 h), 16 anos (exibição após as 22 h) e 18 anos (exibição após as 23 h). Logicamente, é complexa a tarefa de segmentar as atrações da TV, pois as famílias têm critérios diferenciados para decidir aquilo a que crianças e adolescentes assistirão; contudo, isso não descredencia a medida governamental em sua relevância, se considerarmos que “muitas vezes a imprensa se move apenas sob pressão” (AZJEMBERG, apud ANDI, 2007, p. 160).

Outro exemplo recente dos embates pelo controle democrático das ações dos concessionários de TV deu-se com a adoção do sistema digital. A grande mídia reduziu o debate acerca da implantação desse novo padrão de transmissão a uma perspectiva mais técnica do que política, indicando alternativas dicotômicas para a sua concretização. Assim, destacaram-se duas opções extremas: ou se importava o sistema completo (padrão japonês, padrão europeu, padrão estadunidense), ou se produzia tudo localmente, um reducionismo que ignorou a possibilidade de se entrecruzarem contribuições tecnológicas estrangeiras com as pesquisas de alternativas nacionais, o que estimularia a indústria e a produção científica brasileira. Além dessas contribuições, outras ressonâncias políticas seriam importantes, no sentido de democratizar o conteúdo produzido, uma vez que, dependendo do sistema adotado, se oportunizaria a inserção de mais canais de TV, atraindo produtores de conteúdo com outros enfoques e perspectivas diferentes daqueles já produzidos pelas emissoras privadas e estatais, como sindicatos, associações, ONGs, movimentos sociais, etc. 57

Contrariando os desejos dos múltiplos setores sociais, o padrão japonês foi o escolhido. Defendido pela Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), é o mais caro; porém, ele monopoliza, nas redes de TV atuais, a veiculação do conteúdo também para os receptores portáteis (celulares, por exemplo). Portanto, impede que as empresas de telecomunicações intermedeiem essa operação, o que comprometeria os interesses comerciais dessas redes de TV.

2.1 “É DANDO QUE SE RECEBE”: A LEGISLAÇÃO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMUNICAÇÃO

A história da televisão no Brasil, no que tange a seus princípios regulatórios, mostra um panorama marcado por omissões, arbitrariedades, desmandos, abusos do poder econômico e político, pois não tardou muito para que setores dominantes da sociedade brasileira percebessem o quanto essa mídia poderia ser útil aos seus projetos e intenções. Entre nós, houve e ainda há uma troca de favores, para conceder vantagens ao mercado ou com o objetivo de atender interesses de grupos sociais influentes, prejudicando as demandas coletivas. Desse modo, ainda temos uma série de obstáculos para que esse meio de comunicação seja de fato um instrumento a serviço da democracia de alta intensidade no país.

Por outro lado, a prepotência dos grupos dominantes que se apossaram das concessões de canais gerou ações contra-hegemônicas de instituições e movimentos sociais, inconformados com tais abusos e privilégios, o que transformou a política de comunicação no Brasil numa esfera de lutas entre o Estado, o mercado e a comunidade. Assim, essas três instâncias sociais se entrecruzam, ora com interesses comuns, nas situações em que o Estado assume e defende os anseios da comunidade, como explicitamos anteriormente na classificação indicativa, ora em campos antagônicos, quando governos se tornam cúmplices das gulas do mercado midiático. No âmbito dessas políticas de comunicação, o Poder Público geralmente emprega três formas de regulação. Como proprietário, 58

disponibiliza à população espaços como bibliotecas e centros de documentação; é o gestor do espectro eletromagnético –considerado internacionalmente um bem público a ser administrado – e possui emissoras de rádio e televisão, diretamente exploradas por órgãos estatais específicos.

Como promotor, “formula e implementa as políticas, os planos e as estratégias públicas para o desenvolvimento do setor. Além disso, faz investimentos na infra- estrutura e concede incentivos e subvenções”.

Como regulador, “fixa regras de instalação e operação de infra-estruturas e serviços, com o intuito de que sejam eliminados os desequilíbrios e as incertezas prejudiciais aos investimentos e à atuação empresarial, assim como à ação das organizações públicas” (ANDI, 2007, p. 75).

Historicamente, no que se refere à televisão, o Estado brasileiro foi mais eficaz na segunda ação reguladora (promotor), garantindo as condições objetivas favorecedoras da sua expansão e qualificação, se bem que muito mais sintonizado com os interesses mercantis das emissoras privadas do que com o importante papel social dessa mídia nas diferentes realidades nacionais.

Na regulação como proprietário, o Estado fundou inúmeros canais educativos, que produziram conteúdos de excelente qualidade, apesar das limitações orçamentárias e muitas vezes do uso político do espaço da programação. Aqui cumpre destacar o caráter de patrimônio público do espectro eletromagnético, que é concedido a terceiros para exploração. Portanto, os canais televisivos são uma concessão ou outorga do Estado, que permite, em nome da sociedade, a exploração de um serviço de utilidade pública por grupos empresariais. Esses não são donos, mas apenas administradores temporários de um bem coletivo.

Existe, nessa esfera regulatória, uma iniciativa governamental que merece destaque pela relevância histórica e pelos campos de possibilidades que abre para um maior equilíbrio de forças entre as emissoras públicas e privadas de tevê, permitindo que os conteúdos audiovisuais retratem toda a heterogeneidade sociocultural do país e que haja uma audiência menos concentrada. Por meio de Medida Provisória editada no dia 11 de outubro de 2007, o Executivo federal constituiu a Empresa Brasileira de 59

Comunicação (EBC), marcando a criação oficial da TV Brasil (nome provisório). A Secretaria de Comunicação Social do Planalto assumiu a responsabilidade pela organização da estrutura funcional da nova tevê pública, que começou a operar oficialmente através da fusão das TVs Educativas do Rio de Janeiro e do Maranhão e TV Nacional do Distrito Federal, além de dois canais em São Paulo. No final de dezembro (2007), formalizou-se a Rede Brasil de Televisão, que estreou sua nova estrutura no primeiro semestre de 2008, transmitindo a programação para 22 Estados, através de outras emissoras educativas, culturais e universitárias.

Para o diretor de relacionamento da EBC, operadora da TV Brasil, Mário Borgneth, esse empreendimento “não é uma iniciativa do governo, é um esforço para criar um instrumento público de comunicação” (OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, 2007, p.1). Os docentes da escola pesquisada consideraram viável a criação desta TV pública? As opiniões se dividiram, acentuando questões que estão sendo debatidas também por variados setores sociais. Inicialmente, a professora de Ciências (01) se posicionou de forma contrária à iniciativa, alegando que o Estado deveria cobrar uma melhor qualidade das emissoras comerciais em termos de programação. Segundo ela, é necessário.

Exigir das emissoras que melhorem a qualidade, exigir das emissoras que melhorem a qualidade como uma proposta. Ele não tem uma proposta pra TV pública? Então, esse sistema que ele ta falando poderia então se exigir das emissoras que tivessem um tempo “passando” o que o governo acha que é, o que ele tá fazendo na TV dele, na TV pública.

O professor de Matemática (01) ponderou que essa não é uma tarefa fácil, principalmente no contexto brasileiro, onde as redes de TV privadas se acostumaram a ditar as regras e práticas das políticas de comunicação, com fortes aliados no poder legislativo e sem problematizarem seus próprios conteúdos de forma transparente, perante o público. Desse modo,

[...] vai mexer com muita gente grande, nem sei se eles estão dispostos a isso, os nossos políticos. Já pensou mexer com a 60

Rede Globo, tendo que impor situações que elas devam fazer, ‘ah, vocês têm que passar 4 horas de programação X’, entendeu? Também, eles nem iam querer comprar essa briga.

Há, nesses posicionamentos, um aspecto que merece ser analisado, que são os significados atribuídos aos conceitos de público e estatal. As discussões nesse campo têm sido intensas, mas existe um consenso entre os setores sociais progressistas, interessados nas políticas públicas de comunicação, de que o Estado tem a tarefa de concretizar o suporte financeiro, técnico e operacional da TV pública, bem como de normatizar o seu funcionamento; é seu papel específico. Entretanto, isso não pode representar um controle do que é produzido e veiculado, para os interesses do grupo no poder, anulando ou limitando o pluralismo de visões, pertinentes às realidades nacionais, como fazem geralmente as emissoras comerciais. Cabe, então, ao Estado, garantir mecanismos de uma gestão democrática da TV pública, a fim de que os diferentes grupos sociais brasileiros, sobretudo os marginalizados e discriminados, tenham voz e vez em sua programação. Portanto, um sistema verdadeiramente público de televisão deve romper com os discursos e representações unilaterais, tendenciosos, que silenciam inúmeras situações e contextos de vida presentes em nosso país, tendo sempre presente que “[...] é um estatuto, um não-lugar em construção” (MARINI, 2007, p. 17). O ex-ministro da cultura Gilberto Gil fez a seguinte distinção entre a emissora pública e a de caráter estatal: “O que difere a televisão pública da estatal é que a primeira é definida pelo público, e a segunda, pelo Estado. Queremos uma TV pública plural, definida e apropriada pelo público, que reflita a diversidade de nosso país” (AREDE, 2007, p. 14).

O mesmo professor que fez as considerações anteriormente pontuou também sua concordância com a proposição governamental, no sentido de que ela enriquecerá a programação.

[...] Eu acho assim válido essa iniciativa de você diversificar as coisas que estão colocadas na TV, não ser só novela, igual é na Globo, só filmes americanos, entendeu? Pra que a gente 61

conheça mais realmente o nosso povo, né?, aquilo que nós temos de bom também.

O professor de Inglês reforçou essa perspectiva, afirmando que a TV pública potencializará novas formas de linguagem audiovisual, que retratem melhor a diversidade brasileira.

Bom, eu acho uma iniciativa bacana, eu acho sim. Se a coisa for bem aplicada, vai divulgar mais as questões regionais de cada região do país, eu acho que a proposta é essa, não é? É você valorizar os trabalhos, as produções, até mesmo rituais de cada região, não é isso? Eu acho que vai valorizar as pequenas produções em detrimento das grandes, eu acho que o público vai escolher, eu acho bacana. [...] Vai ser superlegal, porque a gente vai ter contato com as outras regiões do país e até ver de uma forma diferente o nosso país, vai desviar até desses focos de violência e tudo mais, eu acho que tem grandes produções que a gente não tem acesso.

Esse é um desafio crucial, embora não possamos esquecer o caráter híbrido do conteúdo televisivo, ou seja, mesmo sob condições desvantajosas, os processos de identificação brasileiros se entrelaçam com outros significados para o ser e estar no mundo. Assim, a hegemonia do que é exógeno ao país não é isenta de misturas com outras percepções produzidas internamente. Temos excelentes produções, tanto nas TVs públicas, quanto nas TVs privadas, que comprovam isso. O que falta, certamente, é uma interação mais horizontal entre essas perspectivas culturais. Numa pesquisa realizada em 2005, Castro (2007) reforçou estudos anteriores, concluindo que a produção cinematográfica brasileira ainda é pouco veiculada nas TVs abertas, se comparada ao espaço de divulgação reservado aos filmes estrangeiros, principalmente os estadunidenses.

Outro fator inquietou as(os) professoras(es) quando debatemos a TV pública: a questão do financiamento. A professora de Ensino Religioso verbalizou essa preocupação com “[...] a questão do dinheiro, são milhões de um orçamento. Aí vai 62

vir de onde? Não vai criar novos impostos, mas vai tirar dinheiro de algum lugar”, resumiu. Segundo cálculos do governo, a dotação orçamentária da TV Brasil será da ordem de R$ 350 milhões. Virão de que fontes? Uma parte do próprio orçamento da União, o restante de fontes alternativas em estudo, tais como fundos setoriais dos Ministérios da Cultura, da Ciência e Tecnologia e das Comunicações. Outras opções são o patrocínio de empresas públicas e privadas, já utilizado com êxito pela TV Cultura de São Paulo, e a venda de serviços para terceiros, a exemplo da TVE, que assessora o MEC, com a produção da TV Escola. Existe, igualmente, a possibilidade de destinar uma parte dos impostos já recolhidos sobre equipamentos audiovisuais, como os televisores, para esse empreendimento.

Esse é um aspecto que provocará debates aguerridos no Congresso, onde será discutida e votada a Medida Provisória. As redes privadas de televisão vêem nesse projeto uma ameaça aos usos e abusos que fazem de suas concessões e aos vantajosos lucros que obtêm com os patrocínios de empresas públicas, como a Petrobrás, o Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal. Isso, sem falar nos órgãos e empresas estaduais e municipais, com os quais muitas vezes são assinados contratos publicitários extremamente danosos aos cofres públicos. Reportagem do jornal O Estado de São Paulo, por exemplo, informava que, em 2000, a prefeitura de Salvador, na época sob o comando de aliados do senador Antônio Carlos Magalhães, gastou mais em publicidade (14 milhões de reais) que em ensino fundamental (12,6 milhões de reais), engordando os lucros do jornal e TV administrados por sua família (SANTOS; CAPPARELLI, 2007).

Não por acaso, as forças conservadoras aliadas às redes privadas de televisão já se mobilizaram para inviabilizar essa proposta do Poder Executivo. Parlamentares do DEM e do PSDB ingressaram com uma ação de inconstitucionalidade (Adin) no STF contra a Medida Provisória. Certamente argumentarão que é um despropósito investir recursos públicos numa televisão, com tantas demandas sociais para atender no país. Consideramos, todavia, que esse argumento não se sustenta, pois tão relevante quanto oportunizar o acesso à saúde e educação, ao trabalho formal e a terra, é democratizar informação, numa sociedade onde ela é tão parcial e manipulada. 63

O discurso dos partidos de oposição contrários à criação da EBC não se sustenta. Os gastos com o veículo do Poder Executivo não devem ser vistos como desperdício do dinheiro do cidadão, mas como investimento na garantia de um espaço de comunicação que veicule informações de qualidade, plurais e diversas [...] Além disso, vale lembrar que o cidadão já paga indiretamente às redes privadas, seja nos produtos cujo custo de publicidade está embutido no preço, seja através dos tributos que viabilizam mais de R$ 1 bilhão de reais que são gastos nas propagandas do Governo Federal (INTERVOZES, 2007).

Riscos existem nessa iniciativa, não há dúvida. A viabilização financeira é um deles. Criar meios transparentes e estáveis de captação de recursos é uma condição fundamental para garantir um padrão técnico de qualidade e independência em relação a qualquer grupo econômico ou político. A qualidade audiovisual e de conteúdo, aliás, foi outro aspecto lembrado por dois professores no grupo focal. O professor de Matemática (01) salientou que ótimas imagens e sons atraem a sua audiência.

Bom, essas coisas assim, essas novidades, eu fico sempre com o pé atrás, principalmente falando de televisão. Televisão vem a ser o quê? Visual. Por que a Globo comanda há alguns anos? [...] Se não tiver qualidade de imagem, pra mim não tem importância nenhuma, desvio dela, só vou passar por ela.

A sua colega de Língua Portuguesa foi mais adiante, pontuando a qualidade do que já é apresentado numa TV educativa e que poderá se aprimorar mais ainda com a rede pública de TV.

[...] assisto TVE, e quando eu acho que a programação é uma programação que justifica você mudar de canal, você muda de canal, entendeu, é uma verdade. Por exemplo, o programa da Leda Nagle, que é o Sem Censura, é um programa que já tá há quanto tempo no ar? É um programa que não perde a audiência por nada, nem pelo Faustão, que no domingo ele é no horário do Sem Censura, entendeu? 64

Essa professora lembrou também o papel da escola e das(os) educadoras(es) na divulgação dos conteúdos que possam ser trabalhados com as/os alunas/os intra e extra-classe.

Na hora que a gente começar, né?, [a socializar e debater os programas veiculados] porque teve aquela TV Escola, mas não vingou porque você tem uma programação, você tem um monte de coisa, a televisão tem que ter isso, tem que ter aquilo, acabou que a gente não usou na escola. Então, se você não direciona pra usar, entendeu, não vai usar agora. Quando você começa a ver, as pessoas começam a falar, começa a ter uma programação que interessa àquele público, né?, porque aí vai ter todo um investimento em cima disso, espera-se. Então, eu acho que ela é válida.

A possibilidade de maior investimento e espaço para as produções regionais, qualificando-as mais, foi lembrada pelo professor de Inglês como uma tarefa relevante da TV pública. Na sua acepção, esse é um fator que contribuirá para equilibrar mais a audiência entre as emissoras.

[...] se nós formos tirar, por exemplo, toda a programação nacional e deixar só a programação local nas TVs [...] você vai ver que programas da TV Gazeta são um lixo [...]. O programa lá que passa depois do Fantástico, que é imitação do Altas Horas, é terrível (às vezes o Em Movimento é interessante). É o único, Em Movimento é legal, agora a questão é que é tudo porcaria. O jornal daqui é legal da TV Gazeta, mas o da TV Vitória é muito melhor, que passa no horário de almoço, eu não sei quem tem o costume de assistir. [...] É muito melhor o jornal da TV Vitória, inclusive a TV Vitória ganhou como melhor emissora local do país, e realmente os programas são de qualidade muito superior aos da TV Gazeta, muito melhor, entendeu? [...] Mas a gente tá tão vidrado aqui na Globo, a gente acaba assistindo tão assim, que até Raul Gil 65

(apresentador da Rede Bandeirantes) fala assim, que a Globo dá audiência com a televisão desligada.

Como já foi ressaltado na introdução deste item, no âmbito das políticas de comunicação, o Estado desempenha as funções de proprietário e promotor, atuando igualmente como regulador. Nesse último papel, contudo, há um grande déficit do Estado brasileiro. Os concessionários, via de regra, adotam uma postura de proprietários, rejeitando prontamente qualquer tentativa de regulamentação governamental. Existe uma legislação específica, mas sem mecanismos de aplicação eficazes, o que a torna frágil e irregular para coibir abusos.

O processo histórico bem o demonstra. Em 1962, foi aprovado no Congresso Nacional o Código Brasileiro de Telecomunicações, contendo normas regulatórias para a organização e o funcionamento das mídias, já que a legislação vigente, organizada no Governo Vargas (1931), estava defasada em relação às novas realidades sociais, em que a televisão e a telefonia se expandiam rapidamente. Todavia, a discussão e a aprovação desse Código marcaram um conflito de interesses entre o Estado e os empresários do setor. Após análise do texto que tramitava no Congresso Nacional, o presidente João Goulart realizou 52 vetos, sendo mais da metade deles voltados para a defesa de uma maior regulação estatal do setor.

Um exemplo de como o texto do legislativo era benevolente com os interesses privados refere-se ao parágrafo 3º do art. 33, que normatizava as concessões. Eis o seu teor:

Os prazos de concessão e autorização serão de 10 (dez) anos para o serviço de radiodifusão sonora e de 15 (quinze) anos para o de televisão, podendo ser renovados por períodos sucessivos e iguais, se os concessionários houverem cumprido todas as obrigações legais e contratuais, mantido a mesma idoneidade técnica, financeira e moral, e atendido o interesse público.

A justificativa para o veto presidencial acentuava que deveria ser uma prerrogativa do Poder Público definir os prazos de concessão, segundo critérios que atendessem aos reais interesses da coletividade. A reação dos empresários não tardou. 66

Fundaram, no dia 27 de novembro de 1962, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e de Televisão (Abert), no sentido de se fortalecerem contra as tentativas do governo de ampliar a regulação estatal na radiodifusão brasileira. Resultou desse poder de articulação e pressão a derrubada pelo Congresso Nacional de todos os 52 vetos presidenciais. A votação foi nominal, o que revela a despreocupação dos parlamentares com uma possível repercussão negativa dos seus posicionamentos na sociedade.

Com o advento do regime militar, a televisão se tornou um setor estratégico e, como já salientamos, a Rede Globo transformou-se numa porta-voz de confiança dos interesses dos governos autoritários, projetando-se como a maior do Brasil. Como não havia um ambiente democrático no país que oportunizasse maior mobilização da sociedade civil e das instituições políticas para fazer as mudanças necessárias na legislação, o mercado televisivo brasileiro sofreu um violento processo de concentração.

A Constituição de 1988 estabeleceu uma série de princípios para um funcionamento democrático da radiodifusão, mas sem uma aplicação satisfatória. Aliás, foi durante o processo de discussão e elaboração da carta magna que se presenciou a transformação das outorgas públicas em moeda de troca para os mais daninhos interesses privados. Uma versão antiética da máxima franciscana, “é dando que se recebe”, foi concretizada nas negociatas do governo Sarney (1985-1989) com grupos econômicos e elites políticas locais e regionais, funcionando pela seguinte regra: “me conceda essas regalias, que eu o recompenso da melhor forma possível no Congresso e nos canais televisivos”.

Durante os trabalhos de elaboração da Constituição pelo Congresso Nacional, foram distribuídas 1.028 concessões, sendo 82 de canais televisivos. Destas, 43 foram dadas no ano de votação da emenda constitucional. Os parlamentares de partidos aliados ao Governo ficaram com 30 outorgas, elevando para 146 o número dos que eram concessionários de veículos de radiodifusão. Isso num Congresso constituinte de 559 membros. Antônio Carlos Magalhães, na época ministro das Comunicações, se autoconcedeu sete geradoras de TV, enquanto o presidente Sarney, três concessões (CAPPARELLI; SANTOS, 2005). 67

Aprovado o texto constitucional, criou-se um paradoxo entre o proclamado no documento e a realidade. O capítulo V, Da Comunicação Social, que legisla acerca de aspectos relativos à concessão, propriedade e programação dos serviços de radiodifusão, ilustra bem isso. O art. 223, por exemplo, normatiza as regras para a outorga ou cancelamento das concessões, devendo ser “[...] observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal” (BRASIL. Constituição (1988), 2002, p. 128).

Ao contrário dessa recomendação, o que ocorre na prática é uma enorme concentração econômica, sob o controle de oligarquias unidas por laços sanguíneos e elites políticas locais e regionais, que se constituem em verdadeiros feudos da comunicação, numa competição extremamente desigual com os canais comunitários e estatais.

Nos Estados, alguns grupos familiares, em sua maioria afiliados da Rede Globo, praticamente dominam todo o cenário de televisão, aberta ou por assinatura, como são os seguintes casos: família Câmara, em Goiás; família Coutinho, em Minas Gerais e São Paulo; grupo Zahram, no Mato Grosso do Sul; Organizações Rômulo Maiorana, no Pará; famílias Lemanski e Cunha, no Paraná; e, com maior destaque, famílias Sirotsky, na Região Sul, e Daou, em toda a Região Norte do país (CAPPARELLI; SANTOS, 2006, p. 87).

Entre grupos políticos locais e regionais, o quadro é absolutamente antidemocrático. Os gráficos 1, 2, 3, 4, 5 e 6, revelam como oligarquias políticas do Nordeste, sobretudo, controlam importantes concessões. No Rio Grande Norte (Gráfico 1), a família do senador Garibaldi Alves, presidente do Senado, abocanha sozinha mais de um quarto do mercado; em Alagoas (Gráfico 2), são os familiares do ex- presidente e atual senador Fernando Collor, do qual guardamos triste memória, que dominam também um quarto das concessões (certamente esse fator pesou em sua eleição para o senado); em Sergipe (Gráfico 3), o quadro é mais grave, com o cacique político Albano Franco controlando metade do mercado e transmitindo a programação das duas redes de maior audiência no país; na Bahia (Gráfico 4), a família ACM, em sua terceira geração, com Antônio Carlos Magalhães Neto, do DEM, também dominando metade do mercado televisivo. Porém, a gula dessa oligarquia baiana não cessa aí, estendendo seus tentáculos de poder sobre 68

[...] parte da única operadora de TV a cabo da capital, com outorga também em Feira de Santana; parte de uma operadora de MMDS, com outorgas na capital, em três cidades do interior da Bahia e em Petrolina (PE), afiliadas à franquia Net Brasil, também da Rede Globo; duas emissoras e uma rede de rádio FM; um selo fonográfico; uma editora musical; um jornal diário; uma gráfica; e, por fim, uma empresa de conteúdo e entretenimento (CAPPARELLI; SANTOS, 2005, p. 89-90).

No Pará (Gráfico 5), o ex-governador e ex-senador Jáder Barbalho, envolvido em inúmeros escândalos de corrupção, controla uma parte menor do mercado (10%). Finalmente, no Maranhão (Gráfico 6), a família do ex-presidente e senador José Sarney controla um quarto das concessões.

Gráfico 1 - Concessões Gráfico 2 - Concessões TV em AL TV no RN Família Alves Família Collor (Globo - RN) 29% Outros (Globo - AL) 80% 20% Outros 71%

Gráfico 3 - Concessões Gráfico 4 - Concessões TV em SE BA na TV Família Antônio

Albano Outros Carlos Magalhães Franco Outros (Globo e 50% (Globo - BA) 50% SBT - SE) 50% 50%

Gráfico 5 - Concessões Gráfico 6 - Concessões TV no PA TV no MA Família Jáder Babalho Sarney (Bandeirantes) (afiliada 10% Globo) 27%

Outros 90% Outros 73%

Fonte: Ministério das Comunicações - Siscom 2003. Apud GUARESCHI; BIZ, 2005, p. 89-90

Os vínculos de elites políticas com outorgas midiáticas, contudo, não se restringe a esses caciques políticos. O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), que, com ares de “político sério”, tenta se firmar como uma liderança de oposição ao atual governo, 69

também aderiu à festança do abuso de poder. Sozinho, ou em parceria com o irmão, é proprietário “de um grupo de comunicações que inclui uma operadora de MMDS, com 2 outorgas; 3 operadoras de TV a cabo, com uma outorga cada; uma geradora de televisão, afiliada ao SBT; 31 retransmissoras; e 3 FMs” (CAPPARELLI; SANTOS, 2005, p. 93-94).

Além da avidez por concessões no campo da radiodifusão, muitos parlamentares ainda fazem questão de controlar canais de TV da Rede de maior audiência, a Globo, o que aumenta seus poderes de acordos escusos, altamente lesivos à consolidação democrática. O Quadro 3 ilustra bem isso.

Afiliadas da Rede Globo vinculadas a políticos

Geradora Retransmissora Estados Total (%) Quantidade Total (%) Quantidade AL 100 1 100 8 BA 100 6 100 311 CE 100 1 100 58 GO 100 8 100 85 MA 100 4 100 97 MG 25 2 22 13 PA 66,6 2 - 0 PB 100 2 100 5 PE 66,6 2 66,6 4 PI 100 2 - - RJ 40 2 30 6 RN 100 1 100 3 SE 100 1 100 16 SP 28,5 4 32,6 31 TO 100 2 100 68 TOTAL 39,6 40 49,5 705

Obs.: Outorgas em nome próprio ou de parentes. Fonte: Santos, 2005, p. 92

Podemos observar que, em todos os estados nordestinos, com exceção de Pernambuco, o controle é total, não só das geradoras, como das retransmissoras. Nos importantes estados de Minas Gerais e São Paulo, chega a um quarto do total. Com relação às redes de tevê de uma maneira geral o cenário não é menos preocupante. Há um significativo monopólio, sobretudo nos Estados do Norte e Nordeste. 70

Outorgas de televisão controladas por políticos

Geradoras Retransmissoras Estados Quantidade Total (%) Quantidade Total (%) AC 2 40 1 1,06 AL 3 60 14 12,84 AM 3 42,85 72 29,75 AP 2 50 5 15,15 BA 8 57,14 392 55,44 CE 5 55,5 103 30,11 DF 1 9,1 3 11,53 ES 1 9,1 1 0,50 GO 10 62,5 213 42,68 MA 8 72,7 178 58,74 MG 13 27,65 37 2,66 MS 1 9,09 8 3,22 MT 3 33,3 23 8,07 PA 4 40 43 14,19 PB 3 50 12 13,04 PE 2 20 6 3,87 PI 4 57,14 53 56,38 PR 15 41,6 131 27,75 RJ 5 26,31 33 8,22 RN 6 85,71 13 12,74 RO 2 33,33 37 24,02 RR 2 100 3 6,81 RS 2 7,69 16 2,08 SC 5 25 76 9,88 SE 2 50 21 35,00 SP 13 20,63 56 3,22 TO 3 60 81 52,25 TOTAL 128 33,6 1765 18,03

Fonte: Santos, 2005, p. 95

Se considerarmos os partidos políticos aos quais esses parlamentares são filiados, teremos uma hegemonia considerável de grandes agremiações, como o PMDB, o PSDB e o DEM, como bem o demonstra o Gráfico 7. 71

Gráfico 7 - Partidos com outorgas de TV aberta

OUTROS PR 10 PTB 3 PMDB 4 25 PP 7

DEMOCRATAS PSDB 23 25

Fonte: Santos, 2005, p. 97

Esses dados justificam o desinteresse político de uma parte considerável do Congresso em discutir e aprovar medidas que potencializem o Estado para uma regulação democrática dos meios de comunicação e que facilitem a visibilidade de grupos sociais discriminados e excluídos em nosso país.

Outro artigo constitucional, o de número 221, define os princípios norteadores para a programação das emissoras de radiodifusão. O inciso II desse artigo, por exemplo, recomenda a “promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação”, enquanto o inciso III defende a “regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei” (BRASIL. Constituição (1988), 2002, p. 128). O projeto de lei 256/1991, da deputada federal Jandira Feghali (PC do B-RJ), que regulamenta esses preceitos, tramita no Congresso há 15 anos! Segundo a parlamentar, a resistência das grandes emissoras comerciais e o desconhecimento de boa parte da sociedade brasileira do conteúdo e da relevância dessas questões, contribuem para tamanha morosidade (ANDI, 2007). Conseqüentemente, na programação televisiva, ainda há pouco espaço para a diversidade cultural, obstruindo a coletivização das múltiplas formas de ser, viver e proceder no território nacional, bem como os diálogos mais horizontais entre diferentes processos de identificação. 72

O inciso II do parágrafo 3º do art. 220 da Constituição determina a seguinte competência da legislação federal:

Estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio ou televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.

Inúmeros são os instrumentos para se garantir esse direito a indivíduos, grupos e instituições; as experiências internacionais são variadas. Uma delas é o direito de resposta, que geralmente é classificado em duas categorias: ex ante e ex post. Como sugerem os termos, é o direito de questionar os conteúdos midiáticos antes de sua veiculação ou após serem divulgados, o que, via de regra, é realizado por meios legais.

No Brasil, essa garantia é assegurada pela Constituição. Entretanto, a sua regulamentação ainda é feita pela Lei de Imprensa, implantada durante o regime autoritário, em 1967. Este aspecto dificulta a aplicação dessa Lei, pois a conotação de censura, explícita em seus dispositivos, a tornou anacrônica num contexto de normalidade democrática, como este em que vivemos. Recentemente, em abril de 2008, o Supremo Tribunal Federal revogou 20 de seus 27 artigos, alguns dos quais (20, 21, 23) puniam crimes de injúria, calúnia e difamação. Medida contraditória, uma vez que as grandes empresas midiáticas tendem a ampliar reportagens denunciatórias sem a devida cautela e comprovação dos fatos (KUCINSKI, 2008).

Contrastando com essa ineficácia brasileira, o direito de resposta já se institucionalizou em inúmeros outros países, como Alemanha, Áustria, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Noruega e Suécia. A legislação austríaca, por exemplo, data de 1922, estendendo essa garantia democrática para toda a mídia eletrônica a partir de 1981.

Há, também, inúmeras formas de regulação democrática dos conteúdos televisivos exercidas mundo afora. Na África do Sul destaca-se a preocupação com a proteção dos direitos de minorias políticas. Países como Alemanha, Argentina, Austrália, Holanda, Nova Zelândia, Portugal, Suécia e Canadá estabelecem rigorosa 73

classificação indicativa da programação. No Chile há um monitoramento sistemático do que é exibido. Já na Suécia, Noruega, Itália, Irlanda, Grécia, Dinamarca e Bélgica, concretizaram-se inúmeros limites à publicidade infantil (ANDI, 2007).

Outra forma de regulamentar o art. 220 da constituição brasileira, que já é praticada em países como Alemanha, França, Inglaterra, Espanha, Portugal e Holanda, é o chamado direito de antena. Trata-se de oportunizar a diferentes grupos sociais e políticos a prerrogativa de socializarem seus pontos de vista na programação televisiva, tornando-a mais plural e democrática. No Brasil, apenas os partidos políticos têm esse direito garantido pela legislação eleitoral, que precisa ser ampliado a outros atores sociais. A televisão brasileira, por sua onipresença e alcance geográfico, potencializa mensagens, idéias, visões de mundo, representações das realidades, tornando-se um relevante instrumento de defesa da igualdade e diversidade de grupos discriminados e excluídos, que não dispõem de recursos financeiros e tecnológicos como os dessa mídia, para a defesa dos seus interesses. Temos que reconhecer que, “[...] é possível gritar na praça pública, mas o que possui repercussão social é uma transmissão televisiva em rede nacional” (MIGUEL, apud ANDI, 2007, p. 136).

Outra iniciativa com impactos positivos num maior controle democrático da mídia por parte da sociedade é a criação do cargo de ombudsman (ouvidor), cuja principal tarefa é mediar as relações dos órgãos de imprensa com o público, oportunizando críticas e reclamações pertinentes aos conteúdos divulgados. Contudo, no Brasil, essa iniciativa não se multiplicou o suficiente, estando restrita aos jornais O Povo (Fortaleza-CE), Folha de São Paulo e à TV Cultura de São Paulo.

Ainda no art. 224, da parte do texto constitucional que legisla sobre o setor de telecomunicações, há a seguinte recomendação: “Para os efeitos do disposto neste Capítulo, o Congresso Nacional instituirá, como órgão auxiliar, o Conselho de Comunicação Social, na forma da lei”. É outro instrumento de regulação democrática desse setor de atividades que vem encontrando fortes resistências, sobretudo dos grupos empresariais, para cumprir efetivamente o seu papel. 74

Prova essa resistência, o ato de criação do Conselho apenas três anos após a promulgação da Constituição, pela lei nº 8.389, de 30 de dezembro de 1991. A eleição dos seus membros só foi realizada pelo Congresso Nacional em junho de 2002; assim mesmo, mediante acordo que condicionava a sua instalação após ser aprovada a Medida Provisória que permitia a participação de capital estrangeiro nas empresas televisivas. Em novembro de 2004, nova eleição para compor o Conselho foi implementada pelo Congresso Nacional. Dessa vez, porém, a composição beneficiou nitidamente os representantes das emissoras privadas.

O jornalista Carlos Chagas, que presidiu o Conselho em sua primeira composição, apontou o principal motivo para um esvaziamento do seu papel como órgão regulador, promovendo um controle mais democrático da mídia brasileira. Para ele os principais mentores desse processo de descredenciamento “[...] foram os donos dos meios de comunicação, entendendo que o Conselho poderia representar uma interferência em seus negócios” (ANDI, 2007, p. 142). Por conseguinte, suas atribuições lhe reservam um papel apenas coadjuvante, já que o Congresso continua com a função de normatizar ou cancelar concessões. Com tantas limitações, não é surpresa o fato de que o Conselho não funcione realmente. De acordo com o texto constitucional, mesmo que o Congresso não renove alguma concessão, a decisão final tem que ser ratificada por um juiz (parágrafos 2º e 4º do art. 223). Trata-se de uma norma extremamente lesiva aos interesses democráticos, pois não é remota a hipótese de o concessionário televisivo influenciar a opinião pública contra a decisão do Estado, enquanto concessor. Sem falar no absurdo de que uma medida de tamanha importância fique dependente da resolução de uma única pessoa, o juiz, representante de um poder marcado por tantas decisões parciais, tendenciosas e contraditórias.

2.2 NA “SELVA DE PEDRA”2 DO CENÁRIO TELEVISIVO BRASILEIRO, A SOCIEDADE ORGANIZADA CONSTRÓI A RESISTÊNCIA

2 Telenovela de grande audiência, exibida pela Rede Globo em 1972. 75

Apesar de a hegemonia do princípio do mercado na televisão brasileira obstruir enormemente o princípio do Estado e, mais ainda, o princípio da comunidade, ricas práticas de resistência concretizadas por movimentos organizados e órgãos oficiais ampliam campos de possibilidades de pressionar a tevê brasileira para uma maior responsabilidade ética e abertura à veiculação de informações e conteúdos, que oportunizem ao público olhares multilaterais sobre as realidades próximas e distantes. São práticas instituintes e articuladas que denunciam arbitrariedades, desmandos, manipulações, abusos de poder político e econômico, propondo e ampliando outros horizontes para a democratização da comunicação, passíveis de se concretizar mediante a ação coletiva e horizontal de sujeitos e instituições, potencializando o princípio da comunidade como norteador de novos modelos de vida e organização social.

Apesar de estar ele próprio muito colonizado pelo princípio do Estado e pelo princípio do mercado, o princípio da comunidade rousseauniana é o que tem mais virtualidades para fundar as novas energias emancipatórias. A idéia da obrigação política horizontal, entre cidadãos, e a idéia da participação e da solidariedade concretas na formulação da vontade geral são as únicas susceptíveis de fundar uma nova cultura política, e em última instância, uma nova qualidade de vida pessoal e coletiva assentes na autonomia e no autogoverno, na descentralização e na democracia participativa, no cooperativismo e na produção socialmente útil (SANTOS, 2003, p. 263).

Essas práticas emancipatórias no campo da comunicação indicam que são possíveis outras realidades para o funcionamento das mídias no Brasil, inclusive a televisão, resistindo nas bordas e fendas da gigantesca fábrica de lucros em que se transformou esse meio de comunicação. Destacaremos o trabalho de algumas das organizações que atuam não somente na esfera da comunidade, mas também, internamente, no aparelho estatal. A maioria delas já foram referenciadas neste segundo capítulo de nossa tese.

Figura 8: Práticas instituintes nas mídias (1) Fonte: www.observatoriodaimprensa.com.br, 27/1/2008 76

A primeira é o Observatório da Imprensa, ONG fundada pelo Projor – Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo, a partir do projeto original do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Preocupa-se em analisar o desempenho da mídia brasileira, com presença regular na internet desde abril de 1996. Aos poucos, foi ampliando e diversificando seu espaço midiático, ganhando um site na web, em maio de l998, e versão radiofônica transmitida pela rádio Cultura FM de São Paulo, rádios MEC AM e FM do Rio de Janeiro, e rádios Nacional AM e FM de Brasília (2005). Já possui também uma versão televisiva, produzida pela TVE do Rio de Janeiro e TV Cultura de São Paulo e transmitida semanalmente pela Rede Pública de Televisão. Emite importantes análises de variadas temáticas pertinentes à mídia brasileira, buscando avaliar o seu desempenho enquanto serviço público, pois o seu produto, a informação, é um bem essencial à sociedade.

Figura 9: Práticas instituintes nas mídias (2) Fonte: www.andi.org.br, 27/1/2008

A ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Infância, criada em 1993 pelos jornalistas Âmbar de Barros e Gilberto Dimenstein, tem seu foco de ação na promoção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Sua ação organizacional se pauta em três eixos estratégicos: o primeiro deles é a Mobilização, defendendo junto à sociedade uma maior democratização da informação, sobretudo no que tange aos direitos da criança e do adolescente, estimulando novas abordagens para os conteúdos midiáticos, que incluam também em suas pautas as questões de gênero e etnia. Isso demanda uma ação de Monitoramento, segundo eixo estratégico, avaliando permanentemente o que é veiculado em seus enfoques e significados. No terceiro eixo estratégico, a Qualificação, busca capacitar profissionais da mídia, com subsídios que os habilitem a produzir conteúdos de 77

melhor nível, mais abrangentes e multilaterais. Organizou e publicou, em parcerias com outras instituições, relevantes estudos sobre a comunicação no Brasil, dentre os quais destacamos Remoto Controle: linguagens, conteúdo e participação nos programas de televisão para adolescentes (2004), Mídia e direitos humanos (2006) e Mídia e políticas públicas de comunicação (2007).

Figura 10: Práticas instituintes nas mídias (3) Fonte: www.fndc.com.br, 27/1/2008

O Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação (FNDC) surgiu em julho de 1991, transformando-se em entidade constituída em 1995. Ao longo de sua história de lutas, passou por crises, desarticulando-se em 1997. Voltou a se organizar a partir de meados de 2001, atuando, no momento, em nove estados, por intermédio de 15 entidades nacionais.

A entidade entende que a luta pela democratização dos meios de comunicação no Brasil se enreda numa totalidade de outras aspirações e reivindicações visando a um modelo societário mais justo. Assim, os objetivos norteadores de sua ação contemplam variados aspectos políticos, socioeconômicos e culturais, necessários à consolidação de uma comunicação mais democrática. 78

Figura 11: Práticas instituintes nas mídias (4) Fonte: www.eticanatv.org.br, 21/1/2008

A campanha Quem financia a Baixaria é contra a Cidadania se originou a partir de uma deliberação da VII Conferência Nacional de Direitos Humanos. Seu foco de atuação, ao contrário dos movimentos sociais anteriores, é a defesa dos direitos humanos e do respeito aos princípios éticos apenas na televisão. A campanha é uma iniciativa da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, em parceria com entidades da sociedade civil.

Na página desse movimento na internet, ficamos sabendo, através do Ranking das Denúncias, que já tinham sido realizadas, até agosto de 2007, um total de 1.875 reclamações. O reality show 7 (Rede Globo) liderava o ranking, com 200 denúncias, seguido pelas seguintes atrações televisivas: Pra Valer (Rede Bandeirantes, 82 denúncias), Pé na Jaca (Rede Globo, 75 denúncias), A Tarde é Sua (Rede TV!, 73 denúncias) e Paraíso Tropical (Rede Globo, 70 denúncias ). No ano anterior (2006), as reclamações somaram 2.175 registros, ficando quase empatadas, como campeãs, as novelas da Rede Globo Cobras e Lagartos (320 denúncias) e Páginas da Vida (316 denúncias).

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Figura 12: Práticas instituintes nas mídias (5) Fonte: www.intervozes.org.br., 27/1/2008 79

O Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social é uma ONG constituída juridicamente em 2003. Suas preocupações centrais atualmente são:

Formular, difundir e disputar um sistema público integrado de comunicação para o Brasil; dedicar esforços para construir um movimento de base em defesa do direito à comunicação; e ampliar o diálogo permanente com outros movimentos sociais e grupos organizados da sociedade para fortalecer a luta por uma sociedade mais justa e igualitária (INTERVOZES, 2008, p. 01).

Vê-se, por esses objetivos, que a organização concebe a luta por uma comunicação mais democrática e plural não desarticulada de outras lutas igualmente relevantes, ligadas às questões de gênero, raça, etnia, orientação sexual, meio ambiente, moradia, terra, etc.

Além desses e outros movimentos organizados da sociedade civil, merece destaque aqui a ação do Ministério Público Federal, que, recentemente, garantiu uma vitória expressiva contra o vale-tudo da TV. Em novembro de 2005, a Justiça Federal de São Paulo suspendeu por 60 dias o programa Tarde Quente, apresentado por João Kleber na Rede TV!, denunciado por grupos sociais organizados que o acusaram de incitar a violência contra mulheres, pobres, homossexuais, idosos e deficientes físicos. A Justiça concedeu ainda um espaço de 30 dias na emissora, em que foram exibidos programas intitulados Direito de Resposta, abordando questões relativas aos direitos de grupos sociais marginalizados. Essa rede televisiva teve que pagar ainda R$ 200 mil para a produção dos programas e outros R$ 400 mil de indenização, depositados num fundo para o financiamento de programas de direitos humanos em todo o Brasil.

Sérgio Gardenghi Suiama, Procurador Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo, foi um dos responsáveis por essa ação. Ele ressaltou que o Ministério Público Federal pode exercer a fiscalização ou monitoramento do sistema de radiodifusão porque [...] atua em tudo aquilo que diz respeito à garantia de direitos constitucionais e à proteção de interesses sociais e coletivos. A comunicação diz respeito a toda a coletividade, assim como os conteúdos veiculados. Neste caso, não podemos atuar como um censor, mas para garantir os princípios que estão na Constituição, assim como para dirimir 80

eventuais conflitos entre a liberdade de expressão e os outros direitos garantidos na lei (ANDI, 2007, p. 164-165).

Não é, porém, só nos altos escalões do Judiciário ou em ONGs articuladas nacionalmente, que se constroem movimentos instituintes seguindo na contramão dos abusos políticos e econômicos praticados pelas grandes concessionárias de TV. Nas periferias das grandes cidades ou nas zonas rurais, em igrejas e sindicatos, associações de moradores ou escolas, em variadas categorias de movimentos sociais, emergem iniciativas que potencializam os espaços-tempos para problematizar questões pertinentes à mídia no Brasil.

No Jardim Ângela, por exemplo, bairro pobre da zona sul paulistana, quatro jovens moradores – Anderson, aluno de Economia na PUC, Rogério, que faz Comunicação Multimeios, e Juliana, estudante de Letras, também na PUC, beneficiados pelo ProUni (Programa Universidade para Todos), além de Tiago, vestibulando para Relações Internacionais, fundaram a ONG Papel Jornal, que, em meio a dificuldades e conquistas, vem publicando o Jornal Becos e Vielas – a voz da periferia, entre outras iniciativas. Nascidos e criados no Jardim Ângela, esses jovens não se desligaram dos problemas vividos em sua comunidade, sobretudo a partir do momento em que participaram de um projeto idealizado pela fotógrafa Marlene Bérgamo e a disigner Joana Brasileiro, objetivando ensiná-los a fazer um jornal.

Desde então, procuram envolver os moradores do bairro em atividades ligadas à comunicação. Numa delas, organizaram a exibição do filme Cidadão Kane, um clássico de Orson Welles que narra a história do dono de um império de comunicação nos Estados Unidos, Charles Foster Kane. O cartaz-convite para o evento já procura contextualizar o conteúdo do filme: “A história de um bam-bam- bam da mídia americana. Roberto Marinho? Talvez!”. O público não é dos maiores, mas isso não desanima os idealizadores. “A gente tenta mostrar alguma coisa diferente daquilo que mostra a grande mídia. Eles sempre passam a visão que eles têm daqui, que nem sempre tem a ver com a realidade”, comenta Anderson ao questionar as abordagens unilaterais dos meios de comunicação. Juliana reforça esse posicionamento: “Quem vê o Cidade Alerta acha 81

que o Jardim Ângela é um procriador de assassinos, ladrões e futuros PCCs” (CARTA CAPITAL, 2006, p. 16-17).

Tiago acredita que este tipo de trabalho ajude as pessoas a realizarem leituras mais criteriosas e apuradas das mensagens televisivas. “A gente tenta funcionar como um grupo disseminador de idéias. Depois de saber de algumas coisas o cara vai assistir ao Jornal Nacional de um jeito diferente”, explica. Talvez sim, talvez não, entretanto esse fator não descredencia tal movimento instituinte.

Essas e outras iniciativas reforçam aquilo que procuramos destacar ao longo deste e dos próximos dois capítulos, qual seja, como as políticas de comunicação no Brasil se constroem em meio a embates e conflitos entre o Estado, o mercado e a comunidade, desmistificando a idéia de que a realidade presente desse setor é estática e imune a mudanças.

3. REDES QUE SE ENTRECRUZAM: CONTEÚDOS TELEVISIVOS E PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO

A questão da diferença é intrinsecamente relacionada à produção das identidades culturais. Trata-se de um processo socialmente concretizado; daí o seu caráter relacional, pois a constituição do ser mulher, ser homem, ser negro, ser adolescente, 82

etc. se dá a partir da referência a um padrão dominante construído no âmbito das relações de poder e autoridade. Em conseqüência, no capitalismo e mesmo no socialismo real, a diferença implicou, via de regra, a discriminação de inúmeros grupos sociais e a sua exclusão de direitos básicos para uma existência digna.

Neste capítulo, analisaremos as múltiplas interconexões dos conteúdos televisivos e suas linguagens audiovisuais com esses processos de identificação, salientando também os posicionamentos dos sujeitos da escola pesquisada em relação às formas como as questões de gênero, raça, etnia, sexualidade, religião, dentre outras, são abordadas pela televisão. Tais processos são metamórficos, dinâmicos, contraditórios, sobretudo no âmbito da globalização atual, cuja gênese se deu nas conquistas européias do final do século XV e início do século XVI. Essa espécie de europeização do mundo representou à tentativa de padronizar culturalmente povos, os mais diversos em suas maneiras de viver, a partir do modelo construído naquele continente (branco, cristão, patriarcal), folclorizando a diferença ou, simplesmente, silenciando-a.

Sob a égide contemporânea da globalização do mercado, essa estratégia se intensifica.

O ocidente quer impor doravante ao mundo inteiro, sob a cobertura do universal, não os seus valores, completamente desconjugados, mas justamente a sua ausência de valores. Por toda parte onde sobrevive, onde persiste alguma singularidade, alguma minoria, algum idioma específico, alguma paixão ou crença irredutível, e, sobretudo alguma visão de mundo antagônica, é preciso impor uma ordem indiferente – tão indiferente quanto somos em relação aos nossos próprios valores. Distribuímos generosamente o direito à diferença, mas, em segredo, e desta vez de modo inexorável, trabalhamos para construir um mundo exangue e indiferenciado (BAUDRILLARD, 2005, p. 24).

No entanto, em que pese o seu caráter padronizador, sua força de discurso que deseja ser único e consensual, essa ação hegemônica do Norte se processa em meio a inúmeras tensões entre as forças globais que desejam se impor e as divergências locais. Variados grupos sociais marginalizados estão em luta pelo direito à diferença, exigindo o reconhecimento social e político de outros significados produzidos por eles para o ser e estar no mundo. A cultura torna-se, assim, uma 83

esfera central de lutas entre diferentes atores sociais. Aqui entendemos cultura como

[...] conjunto complexo e diferenciado de significações relativas aos vários setores da vida dos grupos sociais e das sociedades por eles historicamente produzidas (as linguagens, a literatura, as artes, o cinema, a TV, o sistema de crenças, a filosofia, os sentidos dados às diferentes ações humanas, sejam estas relacionadas à economia, à medicina, às práticas jurídicas, e assim por diante) (FISCHER, 2003, p. 25).

A televisão, como um desses conjuntos que historicamente elabora significados, tem um papel relevante nos processos de identificação cultural atuais, nos quais as formas de ver e conhecer o mundo são dinâmicas e plurais, com variados e complexos entrelaçamentos que transgridem as lógicas binárias dominante/dominado. É que essas significações têm um caráter sócio-histórico, se inventam-reinventam permanentemente. Para Hall (2003), a globalização em curso repercute sobre as identidades culturais de três maneiras. As identidades nacionais se fragilizam e desintegram, cedendo aos ditames da homogeneização cultural do mercado global. Simultaneamente, ocorre a resistência das identidades locais a essas forças hegemônicas. Resultantes desse embate, as identidades híbridas se constituem. Ocorre, então, aquilo que o autor denomina deslocamento ou descentração dos indivíduos.

A perspectiva homogênea, coerente, universal e fixa do sujeito, construída a partir do Iluminismo, já não consegue explicar os variados processos ambíguos, contraditórios e abrangentes em que se combinam muitas identidades num vir-a-ser permanente. As identidades são multifacetadas, sem um centro estático ou determinante; estão mais para um mosaico do que para um bloco monolítico. Não têm um contorno final, definitivo, mas se redesenham perenemente.

As teorias mais aceitas e estudadas, relativas ao povoamento do continente americano, reforçam esse enfoque. Tanto os povos que atravessaram o Estreito de Bering no Alasca quanto os que aqui chegaram pela costa oeste da América do Sul e foram ocupando lentamente esse território se mesclaram a outros povos vindos de outras regiões ou lugares ou que aqui já viviam. Portanto, nem faz sentido falar em culturas como algo puro, homogêneo, pois todas elas se constituem/reconstituem 84

por entrecruzamentos variados. Os próprios conquistadores portugueses que chegaram aqui em 1500 já resultavam de um intenso processo de miscigenação que englobava os celtas, os romanos, os vândalos, os suevos, os visigodos e os árabes (FREIRE-MAIA, 1981).

O interessante filme A guerra do fogo bem demonstra os inúmeros enredamentos entre diferentes povos com níveis de evolução e identidades culturais heterogêneas. É válido e significativo que os grupos indígenas da América, por exemplo, lutem pelo direito às singularidades, mas eles nunca foram ou serão imunes aos hibridismos. A questão nuclear, em nossa perspectiva, é garantir o direito de pensar, de existir e de conhecer o mundo, sem coações, constrangimentos ou servilismos, decorrentes da imposição sutil (como ocorre, muitas vezes, através da mídia e/ou publicidade) ou opressiva de modelos culturais externos.

As lutas para defender a autonomia regional na administração da cultura continuam sendo necessárias frente à subordinação que as empresas transnacionais buscam. Mas em geral todos reformulam seus capitais simbólicos em meio a cruzamentos e intercâmbios (CANCLINI, 2006, p. 354).

Tomemos como exemplo a constituição das identidades estadunidenses, na maior potência econômica e política do mundo. Na Balada para os Americanos, Paul Robeson entoa um hino que ilustra bem os entrecruzamentos culturais que formam os Estados Unidos: Sou americano? Sou um pouco irlandês, negro, judeu, italiano francês e inglês, espanhol, russo, chinês, polonês, escocês, húngaro, lituano, sueco, finlandês, canadense, grego e turco e tcheco e cem por cento americano... (O CORREIO DA UNESCO, 1973, p. 34).

Na esfera da América Latina os hibridismos culturais também são presentes, resultando na “...sedimentação, justaposição e entrecruzamento de tradições indígenas (sobretudo nas áreas mosoamericana e andina), do hispanismo colonial católico e das ações políticas, educativas e comunicacionais modernas” (CANCLINI, 2006, p. 73). 85

Como a televisão participa desses processos de identificação cultural? Seja pela sua onipresença no cotidiano da maioria da população latino-americana e brasileira, moldando seus imaginários, seja pelas variadas significações que constrói, esse artefato tem um papel relevante. Na escola em que realizamos este estudo, as(os) estudantes externaram algumas opiniões bastante elucidativas dessa influência televisiva. Num daqueles imprevistos freqüentes no cotidiano escolar, para cobrir a ausência da professora de Língua Portuguesa, a coordenadora solicitou que as(os) alunas(os) da 6ª B e 7ª A fizessem uma redação com o seguinte tema: Em que a mídia televisiva interfere em nossas vidas?

Posteriormente, a referida professora nos entregou algumas dessas redações. Uma aluna da 6ª B escreveu o seguinte: “A mídia influencia muito na nossa vida. Às vezes a gente tem um estilo e o muda só porque uma atriz usa uma roupa bonita. Imitamos até na casa, a cor da parede, no sofá etc”.

Referindo-se a dois personagens das novelas América e Paraíso Tropical, destacou também como se tornaram referência atitudinal para os adolescentes. “Outra coisa é quando uma prostituta se dá bem, ou uma pessoa sai do Brasil ilegalmente, sempre tentamos imitar, e acabamos nos dando mal”.

Sua colega de turma reforçou essa influência, embora pontuando um suposto caráter avassalador dessas padronizações culturais para as formas diferenciadas e locais de processos de identificação. “As pessoas imitam o jeito de se vestir, de falar e até de pensar dos seus ídolos televisivos, desta forma, destruindo sua cultura regional”, escreveu ela. Outra aluna seguiu também essa linha de pensamento, acentuando que tal mídia “interfere em tudo, pois nós muitas vezes tentamos imitar o que se passa na televisão, em programas, em novelas etc. Nós passamos a pensar como os personagens de programas de televisão. Isso é o que eu acho”.

A ubiqüidade desse veículo de comunicação no cotidiano adolescente foi pontuado pelo aluno da outra turma (7ªA), declarando o seguinte: “A TV é uma coisa que não falta no meu dia-a-dia. Ela me informa, me diverte, me ajuda a passar o tempo e me faz companhia quando estou sozinho”. 86

Outro aspecto que chamou a nossa atenção foi que, das treze redações que a professora nos passou, cinco avaliavam o conteúdo televisivo em suas contradições e emaranhados políticos e éticos, sem sucumbir à ingenuidade ou ao maniqueísmo. Uma aluna da 6ª B, por exemplo, expressou essas ambigüidades, salientando que a TV “interfere porque passa violência, gente matando a outra etc. E passa coisas boas, com as pessoas ajudando as outras, incentivando para não fazer o mal etc. E também tem gente que deixa de fazer coisas importantes para ficar a frente da televisão e isso interfere muito em nossa vida”.

Sobressaiu igualmente nas opiniões desses cinco estudantes a rejeição aos contextos e imagens violentos.

Alguns exemplos de coisas boas são os jornais que trazem notícias do mundo todo até as nossas casas, programas interativos, programas de culinária, novelas que, em alguns casos, nos trazem lições de vida etc. Há também coisas ruins como filmes não adequados para algumas pessoas, algumas novelas que mostram muitas cenas de violência etc.

Na mesma linha de pensamento dessa aluna da 6ª B, um colega de turma declarou que “tem algumas coisas que nem tem [sic] que passar na televisão, como o cara que sacou o dinheiro e poucos minutos depois foi esfaqueado. Essas coisas que não devem passar na televisão”. Em síntese, as redações a que tivemos acesso indicam que os estudantes geralmente demonstram a capacidade de diferenciar os aspectos positivos dos aspectos negativos, contidos nas mensagens televisivas. O discurso de outra aluna dessa sala expressa bem isso, embora com uma moral religiosa implícita.

A televisão influencia as pessoas a fazer várias coisas, como por exemplo, responder pai e mãe, roubar, fugir de casa, namorar escondido, matar aula, fumar etc. E também coisas boas como estudar, ser alguém na vida, trabalhar, ser obediente, não responder pai e mãe, ser amiga, não ser falsa etc. Enfim, a televisão influencia várias coisas, entre elas boas 87

e ruins. Só temos que saber quais os programas que podemos assistir.

Entre as(os) professoras(es) foram inúmeros os relatos enfatizando a presença dos conteúdos televisivos nos processos de identificação das(os) estudantes. Por ora, destacaremos apenas uma fala, pois nos itens posteriores deste capítulo muitas outras aparecerão.

A professora de Artes relatou o pedido insistente feito por algumas alunas da 7ª D para provar roupas bastante ousadas. Uma delas, após experimentar a saia, afirmou que faria muito sucesso no Big Brother com ela. A professora revelou-se um tanto perplexa com a postura das alunas, mas a pedagoga da escola complementou a sua fala, destacando como as imagens e performances dos artistas da TV se tornaram referência comportamental para as alunas, estabelecendo entre elas trocas e cumplicidades.

Eu ainda perguntei: ‘Professora, é dentro da sua aula de Artes que você está trabalhando teatro?’ Como o fato de estar na questão da experimentação o que é interessante é o que o colega traz para o outro. Então, o que essa imagem passa? Você percebe muito na televisão essa troca de afetividade né?, eles passam isso mesmo. Eles passam a cumplicidade e essa cumplicidade vem para a sala de aula, principalmente nessa idade. Então, já que eu tenho, isso vai me fazer ficar parecido com, eu te empresto , porque em mim não fica tão bem porque eu não tenho as pernas tão grossas ou tão compridas, ou tenho elas grossas demais. Então, vai ficar melhor em você, você tem o corpo mais ou menos ideal, então eu posso te emprestar porque no seu corpo você vai idealizar a imagem que está na mídia.

Vê-se, pelos discursos dos sujeitos dessa escola, a relevância da TV nos processos de identificação cultural. A questão da diferença, por exemplo, tão intrínseca a esses processos, perpassa o conteúdo televisivo em inúmeras 88

situações. Na novela Páginas da Vida, por exemplo, tivemos a emergência de questões relevantes no campo cultural, como a médica negra rejeitada pela enteada, o doente soropositivo enfrentando a recusa no hospital católico, o casal homossexual masculino que desejava adotar uma criança, a menina com Síndrome de Down e suas dificuldades de ser aceita na escola, etc., entrelaçadas com os clássicos esquemas folhetinescos que polarizam bons e maus. Muitas vezes, a forma como são focadas essas e outras diferenças é estereotipada, caricata, grotesca. Outras tantas vezes há uma padronização do ser mulher, do ser criança, do ser adolescente, do ser negro etc., elegendo-os como modelos, silenciando e discriminando outros processos de identificação. De qualquer modo, esses enfoques híbridos apresentados se constituem em conteúdos a ser problematizados, o que demanda

[...] a necessidade de uma crítica capaz de distinguir entre a indispensável denúncia da cumplicidade da televisão com as manipulações do poder e dos mais sórdidos interesses mercantis – que seqüestram as possibilidades democratizadoras da informação e as possibilidades de criatividade e de enriquecimento cultural, reforçando preconceitos racistas e machistas e nos contagiando com a banalidade e a mediocridade apresentada pela imensa maioria da programação – e o lugar estratégico que a televisão ocupa nas dinâmicas da cultura cotidiana das maiorias, na transformação das sensibilidades, nos modos de construir imaginários e identidades (MARTÍN – BARBERO; REY, 2004, p.26).

Reconhecer esse protagonismo cultural da televisão bem como analisar criticamente o seu papel no processo histórico da sociedade brasileira é tão necessário quanto estar atento às fendas e interstícios que abrem campos de possibilidades para socializar aprendizagens consolidadoras da democracia de alta intensidade. Não podemos enxergar na programação televisiva apenas as estratégias hegemônicas, aderindo àquelas perspectivas unidimensionais e dualistas. Pelo contrário, faz–se necessário estudar o conteúdo desse veículo de comunicação no seu caráter hibrido, em que se entrecruzam elementos eruditos e populares, modernos e pós- modernos, instituídos e instituintes.

Chico Buarque de Hollanda, poeta atento e sensível aos múltiplos contextos brasileiros, compôs uma música, em 1967, intitulada Televisão, a qual, num tom nostálgico e lastimoso, reflete sobre os impactos socioculturais de tal artefato na sociedade brasileira. Um sujeito anônimo constata que as rodas de samba nas ruas 89

e bares já não são presentes no cotidiano da cidade, pois a televisão magnetizou as atenções. A Lua já não inspira poetas e namorados, uma vez que as mensagens televisivas seduzem mais.

A cultura televisiva, de fato, provocou um impacto crescente nos hábitos, nos sentidos, nos valores, nas atitudes, nas crenças e nos gestos das populações dos centros urbanos, como o Rio de Janeiro, cidade natal de Chico Buarque, na qual vive o “homem da rua”, retratado na música. Entretanto, as rodas de samba se redesenharam nas ruas, praças e botecos, reinventando também os processos de identificação dos seus compositores, poetas e boêmios. O mesmo ocorreu com o samba, enquanto manifestação popular carioca. Hoje o indivíduo que se conecta à televisão, que “fala só com seus botões”, que “samba só com seus botões”, assiste ao desfile das agremiações cariocas, que sofreu um processo de empresarialização, transformando-se num espetáculo global dos mais lucrativos. Por outro lado, o “batuque diferente que vem lá da televisão” entrecruza e justapõe vários significados construídos pela tradição do samba, pelas concepções artísticas eruditas, pela manifestações culturais contemporâneas da periferia, reinventando-os. O desfile das escolas de samba em 2007 ilustrou bem tais hibridismos. A Viradouro, por exemplo, transformou suas alegorias em palco para ousadas e criativas performances, que empolgaram o público. Por outro lado, resgatou-se, em muitas agremiações, uma tradição dos desfiles antigos, o pede passagem, representado com faixas e pequenas alegorias. As culturas são, portanto, formadas e re-formadas,

[...] oferecendo-nos uma coisa agora, outra depois; aqui, acolá, em toda parte, enquanto vagueamos, nômades, pelo tempo e pelo espaço. Somos vistos como foliões num carnaval sem fim; num baile de máscaras no hiperreal, e cercados por ele (SILVERSTONE, 2002, p.83).

É nesse contexto de superprodução do ”real” que as identidades culturais se reconstroem em seu perene caráter de ambíguas e impuras. Isso ocorre também com os conteúdos televisivos, que mesclam diferentes gêneros e formatos. Nesta pesquisa realizada numa escola municipal de Cariacica, emergiram as percepções e os significados que os seus sujeitos (docentes e discentes) atribuem às atrações de maior audiência dessa mídia, bem como questões extremamente atuais que 90

atravessam os imaginários individuais e coletivos, participando dos processos de identificação. É o que analisaremos nos itens subseqüentes.

3.1 TELEVANGELISMO: “A FÉ REMOVE MONTANHAS” E ERGUE IMPÉRIOS ECONÔMICOS

Em recente estudo, Castro (2007) evidenciou a presença crescente na televisão brasileira de uma programação religiosa, sobretudo nos últimos vinte anos. Esse fenômeno, cunhado de tele-evangelismo ou entretenigreja, se faz presente no formato de conteúdos tão híbridos quanto os laicos, mas, em nossa ótica, fortemente articulados a interesses de variados grupos religiosos em luta por maior visibilidade social e política.

Em que contexto mundial e brasileiro emerge essa tendência? Como professoras/es e alunas/os externam seus posicionamentos acerca da presença crescente da religiosidade nas mensagens televisivas? Neste item, abordaremos tais aspectos. Concordamos com Castro quando defende uma análise detalhada desse fenômeno, visto que o percebemos em variados momentos durante os quatro meses de nossa pesquisa na escola municipal de Cariacica.

Acreditamos que qualquer estudo do televangelismo deva se enredar com o crescimento do fundamentalismo religioso em todo o mundo e no Brasil. Em que consiste essa postura? Segundo Leonardo Boff (2002, p. 25),

Não é uma doutrina. Mas uma forma de interpretar e viver a doutrina. É assumir a letra das doutrinas e normas sem cuidar de seu espírito e de sua inserção no processo sempre cambiante da história, que obriga a contínuas interpretações e atualizações, exatamente para manter sua verdade essencial. Fundamentalismo representa a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista.

O teólogo ainda distingue três formas contemporâneas de fundamentalismo: o protestante, o católico e o islâmico. Interessam-nos aqui apenas as duas primeiras manifestações, visto que são elas que se fazem presentes na realidade e na televisão brasileira. 91

O fundamentalismo protestante teve sua gênese nos Estados Unidos em meados do século XIX, como uma reação aos avanços técnico-científicos da modernidade conjugados com o liberalismo moral. Ele parte de uma interpretação literal, essencialista e universalista da Bíblia, rejeitando leituras mais abertas e plurais, que dialoguem com os dinamismos do processo histórico e de construção/reconstrução dos modelos societários. Para os fundamentalistas, sendo uma coleção de livros inspirada por Deus, a Bíblia é infalível, verdade absoluta, que tem um valor em si própria, acima e além de qualquer interpretação humana. “Como Deus é imutável, sua Palavra e suas sentenças também o são. Valem para sempre” (BOFF, 2002, p. 13).

A partir da década de 50, o fundamentalismo protestante adquiriu grande impulso. Como? Por meio das “Electronic Church”, nas quais pastores famosos utilizaram o rádio e a televisão para divulgar suas versões dogmáticas dos textos bíblicos. Perceberam logo a eficácia dessas mídias para os seus propósitos.

Esse enfoque religioso chegou ao Brasil principalmente por meio das igrejas evangélicas pentecostais, como Assembléia de Deus, Deus é Amor e, mais recentemente, Igreja Universal do Reino de Deus. Alguns representantes dessas denominações religiosas se tornaram figuras constantes na televisão. É o caso do pastor evangélico Romildo Ribeiro Soares, cujos programas televisivos estão no ar há mais de 25 anos. Atualmente ele apresenta dois programas diários de orações na Rede Bandeirantes: um pela manhã, com duas horas de duração, e outro no horário nobre, com 52 minutos, bancados com as contribuições dos fiéis.

As idéias desse pastor, externadas numa entrevista, ilustram bem a versão fundamentalista do protestantismo brasileiro, revelando, também, a inspiração estadunidense para seus marketings religiosos.

Uma vez eu fui a uma igreja na favela da Rocinha. Sentei-me no meio do povo e o pastor gritou: “Romildo, vem pra cá!”. Quando me levantei, um moreninho também se levantou. Eu falei: “Ai, Jesus!”. Amanhã eu me torno pastor e esse cidadão também se torna. Os dois vão ser pastor Romildo. Vamos dizer que ele fizesse alguma coisa errada. Meu medo é que poderiam dizer: “Foi o pastor Romildo quem fez”. Vamos dizer que ele tivesse se tornado um adúltero. Iam dizer que o pastor Romildo é adúltero. Daí eu é que poderia pagar o pato. Falei: “Jesus, tenho de mudar isso”. Então lembrei que 92

os americanos usam muito as siglas. Pensei em RR Soares. Se alguém colocar, tá me imitando. Eu saí na frente (VEJA, 1/10/ 2003, p. 2).

Suas interpretações dos textos bíblicos reforçam uma leitura “ao pé da letra”, originada no fundamentalismo protestante estadunidense. Está escrito na Bíblia, ponto final! Não há o que contextualizar ou relativizar. Sobre a homossexualidade, por exemplo, é taxativo, aderindo a interpretações homofóbicas, questionadas nos próprios meios cristãos.

A Bíblia disse que Deus fez o macho e a fêmea. Não fez o terceiro sexo. O Velho Testamento faz referência aos rapazes escandalosos. Eles eram até mortos. A Bíblia fala em dez grupos de pessoas que não herdarão o reino de Deus. Entre eles estão os efeminados e os sodomitas. [...]. Deus criou o sexo para procriação, além do prazer. Os homossexuais querem o sexo só para o prazer. No Apocalipse está escrito que essas pessoas não herdarão o reino de Deus (VEJA, 1/10/2003, p. 2).

A sua perspectiva ortodoxa das narrativas bíblicas, também se manifesta quando o tema é sexo fora do matrimônio.

O sexo antes do casamento não deve existir. Isso a Bíblia chama de fornicação. O Apocalipse diz que os fornicadores provarão a segunda morte, que é a separação eterna de Deus (VEJA, 1/10/2003, p. 3).

Portanto, toda a verdade já está contida nos textos sagrados. Basta apenas cumpri- las fielmente! “ [...] Sobre as regras, é só seguir o que a Bíblia diz. Não temos de inventar absolutamente nada. Tudo foi escrito, tudo foi registrado” (VEJA, 1/10/2003, p. 4).

Aqui cabe uma ressalva. Tanto os credos evangélicos quanto a religião católica não podem ser tomados como blocos homogêneos. Em ambas as correntes do cristianismo, há leituras bastante progressistas da Bíblia, articuladas aos movimentos reivindicatórios de grupos sociais marginalizados. Assim, o fundamentalismo religioso não é consensual nem isento de confrontos com interpretações bíblicas antenadas com os sinais dos tempos. Apesar disso, não deixa de ser preocupante a sua expansão, fruto de um ativismo que impressiona.

Na escola, essa temática gerou discussões riquíssimas entre docentes e discentes, reforçando a tese de que geralmente esses sujeitos, na condição de praticantes da 93

vida cotidiana, enredam as mensagens e idéias religiosas divulgadas pela televisão com outras leituras e conhecimentos, reinventando-as.

Inicialmente, o professor de Matemática (02), evangélico, considerou válida a divulgação das mensagens bíblicas nessa mídia. Porém, se, por um lado, criticou a parcialidade de algumas abordagens, por outro lado, ignorou que as religiões são empreendimentos humanos repletos de intencionalidades políticas, sociais, econômicas e culturais, isentas de uma aura neutra. Portanto, seus discursos relativos aos textos bíblicos se inserem na visão de mundo, de sociedade e de ser humano que possuem. Assim, em vez de nos referirmos à “palavra de Deus” no singular, melhor seria falar em verdades historicamente construídas pelas diferentes religiões cristãs a partir de uma certa leitura da Bíblia. Vejamos o que nos fala o professor:

Aí tem a posição, primeiro a citação da palavra de Deus. Então, quem não tem a possibilidade nem de ler, nem de assistir em lugar nenhum, é uma possibilidade. Então, nesse ponto eu acho muito positivo. Agora, o ponto negativo é quando parte pra uma tendência, né?, de grupos, que aí eu não gosto, embora que [sic] eu receba o que é bom, que é a palavra de Deus, essa é inquestionável. Questiona-se, de repente, o procedimento de um, de outro. “Ah, é Batista, fica falando que fulano de tal...”, mas a palavra de Deus é boa pra todo mundo. Então, nesse sentido, é muito bom, e o público precisa disso. O ser humano precisa do manual do Criador. Não tem o manual do fabricante? O manual do Criador é a Bíblia. Então, se você não lê, mas pelo menos ouve, pode gerar em você fé. Aí vem o lado espiritual da coisa.

Visão diversa externou o professor de Inglês, que também é evangélico, explicitando críticas ao caráter mercantilista de parte da programação religiosa, que explora a boa fé das pessoas. 94

Olha, sinceramente eu não vejo com bons olhos não. Embora eu seja evangélico, acho os programas assim, em geral, cômicos, porque muita coisa que eles falam eu não concordo e geralmente envolve dinheiro no meio né?, pedindo dinheiro, vai explorando. Aceitar isso eu não concordo [...] Concordo que quem não pode ler, pode ouvir, mas desse jeito também, ouvir dessa forma, ouvir errado também. Eu tô falando dos programas religiosos que eu vejo no geral aí [é, a maioria deles é pedindo muito dinheiro].

A esfera educacional é um dos setores em que a Igreja Católica, sobretudo, mais concentra esforços no sentido de garantir espaço curricular para o Ensino Religioso. Embora o enfoque proposto seja ecumênico e se insista na sua relevância para a formação ética dos estudantes, na prática, sua implementação é extremamente contraditória, comprometendo o princípio da laicidade do Estado e da escola brasileira. Na Grande Vitória, por exemplo, a disciplina Ensino Religioso já integra a grade curricular nos municípios da Serra, de Cariacica e de Vila Velha, além da rede pública estadual.

A professora dessa disciplina na escola em que realizamos a pesquisa não mediu críticas a uma verdadeira guerra religiosa que se trava, muitas vezes, na televisão e que acaba por prejudicar o seu trabalho, já que adota uma linha de ação que não elege nenhum credo religioso como o genuíno representante dos ensinamentos cristãos, combatendo igualmente o preconceito contra as religiões de matriz africana.

Eu, pra ser sincera, não consegui até hoje assistir um programa. Infelizmente, vai mudar o canal, você vê o R. R. Soares em 5 canais ao mesmo tempo, é o cúmulo do absurdo. É uma lavagem cerebral, eu vejo uma lavagem cerebral. A minha função, o meu trabalho como professora é jogado no chão. A partir do momento que eu passo todo o trabalho com o menino, com as crianças, mostrando que Jesus não deixou a igreja, que Jesus não deixou a religião, esse programa vai 95

fazer a lavagem cerebral, afirmando que Jesus deixou essa igreja, Jesus deixou essa religião. Ele critica as outras religiões, fala que quem não pertence a essa religião não é filho de Deus e essas coisas. [...] Meu Deus, então vai contra tudo que eu prego como professora de religião, [...] tanto que a maioria dos meus alunos não usa mais a palavra macumba, porque eles aprenderam que isso aí é um ritual de uma religião afro- brasileira.

De fato, mensagens hostis e depreciativas endereçadas a esses credos têm se intensificado ultimamente nas programações religiosas veiculadas na TV. A Igreja Universal do Reino de Deus, liderada pelo poderoso e influente bispo Edir Macedo, dono da Rede Record, encarna bem essa tendência, se bem que não voltada exclusivamente para as religiões afro-brasileiras.

No dia 12 de outubro, dedicado a Nossa Senhora Aparecida, uma patética cena foi protagonizada pelo bispo Sérgio Von Helde num programa da TV Record, no ano de 1995. Desferindo uma série de pontapés na imagem de Nossa Senhora, afirmava, em tom agressivo, que aquilo era tão somente um monte de barro, “um bicho tão feio, tão horrível, tão desgraçado” (HOINEFF, 2008, p. 2).

As reações que se seguiram foram estrondosas tanto por parte da Igreja Católica, seguida, pelo menos formalmente, pela maioria da população brasileira, quanto de outros veículos de comunicação, principalmente a Rede Globo, que, a partir desse incidente, desfechou uma grande campanha contra a Igreja Universal, divulgando imagens dos seus bispos planejando estratégias para tomar mais dinheiro dos fiéis e denunciando o enriquecimento ilícito de seus membros. Além disso, exibiu a minissérie Decadência (1995), de Dias Gomes, certamente inspirada na vida de Edir Macedo, apresentando-o como um líder evangélico interesseiro e corrupto. Subjacente a esse antagonismo, que pouco ou nada tem a ver com convicções religiosas, há uma disputa pela audiência, como destacaremos mais adiante.

No caso das mensagens agressivas dirigidas às religiões afro-brasileiras, as demonstrações de indignação têm sido mais locais, de menores proporções, 96

repercutindo menos em nossa sociedade como um todo. Isso se explica em parte pelo generalizado preconceito existente contra tudo o que diz respeito aos afro- descendentes do Brasil, mas, principalmente, às manifestações religiosas.

Em 2003, por exemplo, entidades do movimento negro requereram ao Ministério Público Federal abertura de ação civil pública contra a programação religiosa da Rede Record e da Rede Mulher, esta segunda controlada, na época, também pela Igreja Universal. O televangelismo, desse modo, acabou reforçando o desrespeito contra as formas múltiplas de viver e de se relacionar com o transcendente que não se enquadram no padrão europeu, branco e cristão. Edir Macedo já escreveu o livro Orixás, Caboclos e Guias – Deuses ou Demônios?, no qual afirma que umbanda, candomblé, quimbanda e kardecismo são os “principais canais de atuação dos demônios, principalmente em nossa pátria” (FOLHA ONLINE, 2008). Por determinação judicial, a obra foi tirada de circulação em 2005. Em consequência, ainda são corriqueiras situações como as descritas por um estudioso da questão.

Se um filho ou neto vai procurar trabalho usando colar de contas, símbolo de nossa religião, não consegue emprego. Se está empregado e se veste de branco na sexta-feira, para louvar Oxalá, também perde o emprego. Nossos rituais, por exemplo, são proibidos nos hospitais. (SILVA JR. apud FOLHA ONLINE, 14/12/2003).

Em 2003, oito babalorixás (pais-de-santo) ingressaram com ações na Justiça baiana contra mensagens evangélicas divulgadas na mesma Rede Record, acusando-as de discriminar símbolos e elementos do candomblé, entre outras coisas. Isso num Estado que conta com 7.000 terreiros! (FOLHA ONLINE, 2003).

Tais iniciativas, contudo, parecem não ter intimidado a Igreja Universal. Em janeiro de 2004, o judiciário baiano condenou essa instituição religiosa ao pagamento de uma indenização de R$ 1.372 milhão à família da ialorixá (comandante de terreiro) Gildásia dos Santos, a mãe Gilda. Isso porque uma foto sua com tarja preta nos olhos foi publicada pelo jornal “Folha Universal”, porta-voz da igreja homônima, sem autorização. Acompanhando a imagem, uma legenda: “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”. Ambas se inseriam numa reportagem relativa a pessoas que cobram para predizer o futuro. De acordo com seus familiares, mãe Gilda entrou em depressão com as críticas constantes, falecendo em 21 de janeiro 97

de 2000, vítima de um enfarto. Essa data foi transformada pela Câmara Municipal de Salvador em Dia Contra a Intolerância Religiosa. Em maio de 2005, cerca de 50 mães, pais e filhos-de-santo da Bahia, representando 40 terreiros de candomblé de Salvador, realizaram um protesto em frente à sede do judiciário estadual, exigindo o cumprimento da sentença (FRANCISCO, 4/5/2005).

Recentemente configurou-se mais um capítulo dessa guerra religiosa televisiva. Na novela Duas Caras, a personagem Edivânia, retratada como uma evangélica fundamentalista, invadiu a residência do gay Bernardinho, da ex-drogada Dália e do garçom Heraldo, que viviam um triângulo amoroso. Portando a Bíblia, convocou a multidão que a acompanhava para uma cruzada anti-Lúcifer: “Pelas trombetas de Jericó, vamos extirpar o demônio da Terra. Quem for por Deus que me siga”. Deparando-se com Dália, grávida de um dos personagens, ainda profetizou: “Vamos tirar a besta do Apocalipse que mora nesse corpo”. A cena se concluiu com uma agressão física à gestante e a destruição do colchão king-size adquirido pelo trio. No capítulo seguinte, Juvenal Antena (Antônio Fagundes) impediu a tentativa de linchamento contra Bernardinho e Heraldo (VEJA, 19/3/2008).

A resposta não tardou. No programa Domingo Espetacular (Rede Record), apresentado pelo jornalista Paulo Henrique Amorim, várias críticas foram dirigidas às cenas, acusando a novela global de retratar os evangélicos como fanáticos e preconceituosos. O diretor da Central Globo de Comunicação, Luís Erlanger, rebateu as contestações, afirmando que a emissora evangélica confundiu simulação com realidade. “Chute na santa, campanha para acabar com as festas de São João etc., isto sim, é coisa da vida real. O que se passa em Duas Caras é só uma ficção”, ressaltou (FOLHA ONLINE, 2008). Para acirrar mais ainda os ânimos com o segmento evangélico, outra cena foi ao ar com a personagem Dália gerando o filho em meio a um matagal, após escapar da fúria de Edivânia e seus seguidores. Diante do perigo, a gestante clamou: “Nossa Senhora salve esta criança!” no que foi plenamente atendida (VEJA, 2008, p.). Embora em nenhum momento da novela a personagem Edivânia e sua comunidade religiosa tenham sido adjetivados de evangélicos, ficou claro, pelas posturas e discursos, que representavam tais correntes desse segmento religioso. 98

Na realidade, por trás desse embate Globo x Record, situam-se interesses bem terrenos, mais precisamente comerciais. Desde que foi comprada pela Igreja Universal em 1989, por 45 milhões de dólares, naquela que foi considerada a maior transação do setor de comunicações que já ocorreu no país até aquele momento, a Rede Record vem redimensionando a sua grade de programação com iniciativas ousadas que chamam a atenção da poderosa Globo. Se, na fase inicial da emissora, o televangelismo dominou a programação, posteriormente, cedeu lugar a atrações apelativas e grotescas, como Cidade Alerta e Programa do Ratinho. A partir de 2004, contudo, começaram a ser realizadas novas mudanças no conteúdo, tendo como parâmetro a “qualidade global”. Foram injetados grandes investimentos no telejornalismo e na teledramaturgia. Hoje a emissora possui um núcleo de produção de novelas, o RecNov, composto por oito galpões com tecnologia de ponta, no qual foram investidos 300 milhões de reais (VEJA, 10/10/2007). A meta é atrair uma audiência com maior poder de compra, elevando o preço dos comerciais, o que parece estar surtindo efeito, já que, em agosto de 2007, a emissora desalojou o SBT do segundo lugar em todas as faixas de horário, superando a quantia de 1 bilhão de reais em faturamento publicitário. O próprio enredo das novelas inclusive contradiz alguns aspectos doutrinários da Universal. Na primeira versão da novela Caminhos do Coração, por exemplo, abundaram cenas de vampiros, lobisomens, sereias e outros mutantes, além de muitos corpos seminus. Também havia um personagem homossexual. Em função do êxito de audiência está sendo exibida a sua segunda versão.

Boa parte desses vultosos recursos investidos provém do dízimo e de outras contribuições dos adeptos da Igreja Universal. Os números chamam a atenção por indicarem o poderio construído por essa corrente religiosa em tão pouco tempo de existência. São injetados 300 milhões de reais anualmente para a compra de horários na programação, geralmente da madrugada. Para o uso de cada hora nesse período do dia, são pagos 140.000 reais, enquanto a Globo não arrecada mais que 40.000 reais, por uma audiência quatro vezes maior. Assim, 30% do faturamento da Record se originam na madrugada. Na gestão da emissora, também é nítida a presença de membros da Igreja Universal, tanto nos altos como nos baixos escalões. O vice-presidente e responsável pela programação artística, por 99

exemplo, é o bispo licenciado Honorilton Gonçalves, homem de confiança de Macedo. Entre os seguranças e faxineiros, a maioria também é da Universal.

O livro autobiográfico O Bispo – A História Revelada de Edir Macedo, escrito por dois jornalistas da Record e lançado no final de 2007 com a tiragem recorde de 700.000 exemplares, atesta, com base em dados, essa força. Ainda que tenha sido escrita sob encomenda e controle do líder da Igreja Universal, a obra fornece alguns dados impressionantes sobre essa denominação religiosa. Já são 4.748 templos e 9.660 pastores, com um patrimônio econômico que abrange construtoras, seguradoras, uma empresa de táxi aéreo, agências de turismo e consultorias, além, é claro, de emissoras de rádio e TV. No plano internacional, a igreja possui representações em 172 países, deixando para trás marcas globais como a McDonald’s, presente em 118 países. Entretanto, além do poder religioso e econômico, demonstra igualmente força política, com a fundação de uma agremiação, o PRB (Partido Republicano Brasileiro), do qual fazem parte 7 deputados federais, 19 deputados estaduais, 91 vereadores e 1 senador (Marcelo Crivella, candidato a prefeito do Rio de Janeiro), todos integrantes da Igreja Universal, potencializada em influência pela filiação do vice-presidente José Alencar. No entanto, já existe uma concorrente. Trata-se da Igreja Universal do Poder de Deus, uma espécie de dissidência da Universal, mas com similar poder econômico. Recentemente, comprou 22 horas diárias do Canal 21 da Rede Bandeirantes, por meio de um contrato de cinco anos, além de já pagar 1 milhão de reais à Rede TV!, para a veiculação de programas diários das 5h às 8h30 da manhã. Embora os valores não tenham sido revelados, o contrato com a Bandeirantes gira em torno de 3 milhões de reais mensais (CARTA CAPITAL, 2008).

São dados que precisam ser problematizados também no espaço-tempo escolar. A professora de reforço da aprendizagem, que é católica, referindo-se à fala de sua colega de Ensino Religioso, salientou que as/os alunas/os não assimilam passivamente tais discursos e estratégias do televangelismo, pois convivem com outras perspectivas sobre o assunto, inclusive nas aulas dessa disciplina. Também criticou a Rede Canção Nova, de tendência pentecostal e ligada à Igreja Católica, por adotar, em muitos dos seus programas, um tom sentimentalista, grosseiro. 100

Pelo que você está falando, pela sua maneira de colocar, ele não consegue não [R. R. Soares], porque o aluno, você dando o fundamento, aluno é esperto, ele com certeza não vê o que ele fala. Pode às vezes até influenciar um ou dois, mas não é todos. Você tá passando uma consciência e isso não se joga fora. [...] Então, tem algumas coisas que são muito apelativas. São os evangélicos, são os católicos, todos, é uma apelação muito grande. Assisti umas vezes a Canção Nova, tem algumas coisas boas, mas tem algumas coisas apelativas demais também que, sinceramente, eu acho que um teólogo ou um padre, ou sei lá, não poderiam falar certas coisas, não poderiam. Isso é questão de bom senso.

Os preconceitos relativos às religiões afro-brasileiras não partem apenas das emissoras católicas ou evangélicas. As outras redes comerciais de televisão constroem imagens depreciativas desses credos e de suas formas de viver e de conhecer o mundo. Foi o que pontuou a professora de Língua Portuguesa, que também é católica. O importante para ela é que o telespectador compare as abordagens, formando uma opinião mais embasada e crítica.

Eu sou católica e assisto Rede Vida e Rede Canção Nova e sempre que tenho oportunidade assisto outros canais também religiosos pra ver a programação. Os telejornais desses canais não devem nada aos outros telejornais, mas não têm tempo de mostrar muita coisa, por falta de maiores recursos. Mas, em termos de informação, não devem muito. A questão da tendência, já cansei de ver o Sérgio Chapelin e o Cid Moreira fazerem tipo gozação quando se fala de religião dos outros. Eu já vi um programa falando de espiritismo, candomblé, alguma coisa assim, no Globo Repórter, quando o Cid Moreira debochou, nem da religião exatamente, mas da questão afro, da cultura africana. Eu não tenho o direito de debochar de ninguém, nem das suas crenças, assim com os índios, que 101

eram politeístas e houve um deboche, tipo assim, não acreditam naquilo, entendeu?

Essas duas últimas falas nos indicam alguns aspectos do fundamentalismo televisivo em sua versão católica. Ele se insere num movimento maior de Restauração e Integrismo (BOFF, 2003), levados a cabo nessa denominação religiosa. Após um intenso movimento de renovação promovido a partir do Concílio Vaticano II, na década de 1960, presenciamos, a partir da eleição do papa João Paulo II, inúmeras ações de um fechamento doutrinário e defesa ortodoxa de princípios e regras. Abandonou-se, de certo modo, um diálogo mais horizontal com o mundo secularizado, taxando-o insistentemente de relativista e opondo-se às novas idéias e concepções científicas em variados campos do conhecimento humano, principalmente das relações de gênero e da sexualidade. Desse modo, combate-se o uso dos contraceptivos e dos preservativos, a prática da homossexualidade e da masturbação, bem como o sexo fora do matrimônio. A castidade e os relacionamentos monogâmicos são apontados como antídotos para as doenças sexualmente transmissíveis, sobretudo a AIDS.

O documento Dominus Jesus (2000), assinado pelo cardeal Joseph Ratzinger, atual papa Bento XVI, deixa claro que a Igreja Católica é a que foi verdadeiramente fundada por Cristo, sendo a única que conduz à salvação. Em nome da fé e da tradição, acentua-se a disciplina e a obediência total à hierarquia eclesiástica, subordinando mulheres e leigos às decisões dos clérigos. Há uma nítida preocupação com a perda de fiéis para as igrejas pentecostais, recorrendo-se a estratégias que aumentem a visibilidade e a influência da Igreja Católica nos comportamentos, crenças e valores da sociedade brasileira.

Vivemos, esta é a nossa perspectiva, uma verdadeira guerra religiosa pela manutenção e ampliação da hegemonia social, política e cultural iniciada com a conquista portuguesa. Nessa lógica, a mídia televisiva é um espaço-tempo fundamental. Atualmente já são duas as redes de televisão católicas que ampliam consideravelmente, a cada ano, a sua cobertura geográfica: Canção Nova e Rede Vida. Incentiva-se a presença crescente, na televisão, sobretudo de padres fiéis às orientações do Vaticano, para fazer frente aos pregadores evangélicos televisivos, 102

como R. R. Soares e Edir Macedo. O padre Marcelo Rossi é o melhor exemplo dessa estratégia e, diga-se de passagem, com excelentes resultados. Atualmente, ele é uma figura religiosa com presença constante, não só em emissoras católicas, mas também comerciais. Em 2006, o seu CD Minha Bênção foi o campeão absoluto de vendas, com 870 mil cópias comercializadas, deixando bem para trás o veterano e freqüente 1º colocado, Roberto Carlos, com 250 mil cópias (ROLLING STONE BRASIL, 2007).

Outro expoente dessa igreja televisiva é o padre Jonas Abid, fundador da rádio e TV Canção Nova, influente movimento religioso de tendência pentecostal e ortodoxa. Há dois anos, assistimos ao trecho de um programa nesse canal de TV, cujo tema era conversão. Um senhor aparentando em torno de 50 anos, profissão bancário, nitidamente constrangido, afirmava que o excesso de trabalho o havia tornado dependente de um grave vício, que ele conseguiu superar com a ajuda desse movimento: a masturbação!

Essa e outras práticas, como o uso de preservativos, as relações sexuais livres, a homossexualidade, o gosto pelo rock, etc., são consideradas desvios morais, que devem ser corrigidos por quem deseja ser cristão de fato. Tal mídia católica comercializa uma camisa esportiva para jovens onde se lê em letras grandes: “CASTIDADE, VOCÊ PODE”.

Entre os adeptos do catolicismo, essas mensagens parecem, todavia, não ressoar com a eficácia desejada pelo Vaticano. Pesquisas realizadas pelo Ibope junto aos católicos brasileiros, quando da visita de Bento XVI ao país, demonstraram que a maioria dos entrevistados são favoráveis ao uso da camisinha para evitar a gravidez e as doenças sexualmente transmissíveis (96%) e ao sexo fora do casamento (79%) (A TRIBUNA, 2007). A professora de Língua Portuguesa, católica praticante, cuja fala explicitamos anteriormente, expressou bem como os sujeitos praticantes dessa e outras religiões cristãs filtram muitas vezes as mensagens recebidas, enredando- as com outros discursos e práticas. Ela condenou enfaticamente a homofobia presente nas pregações televisivas, revelando uma vivência do transcendente bastante híbrida e macroecumênica. 103

Eu entro em perfeito desequilíbrio quando alguém, eu peço desculpas, mas tem três assuntos que me desequilibram ainda; um dia talvez eu me cure. Quando alguém fala de homossexual, quando alguém critica homossexual, colocando assim que é uma vontade própria, o que não acredito, porque eu convivo muito de perto com isso, quando alguém fala de preconceito, principalmente racial e igreja. É uma coisa que me ofende, porque eu assisto televisão, mais programas que estão relacionados à igreja, seja ele o canal 51, a Record, etc. Na minha vida eu faço uma divisão assim do que é bom, do que é ruim, porque as pessoas têm um lado bom e um lado ruim, entendeu? E, até peço desculpas, assim, eu respeito muito a religião dos outros, há uma contradição muito grande na vida. Eu sou católica e trabalho numa casa espírita como voluntária e até hoje eu não vi nada nessa casa espírita, que dasabonasse nada que eu aprendi na minha religião. Muito pelo contrário, lá na casa espírita, eu aprendi muito mais quem é Jesus para mim. Eu assisto televisão, como todas as outras coisas, separando o que é bom do que é ruim. Eu assisto à novela das 8, vendo o que eu posso tirar pra minha vida, que me dá proveito. O que eu posso passar pra alguém mandando assistir, pedindo que assista. [...] A minha igreja critica severamente qualquer coisa que seja, assim, da filosofia oriental, essa questão da ioga e tal. Eu faço ioga e acho que ela me ensina uma técnica de respiração que eu não aprendi em lugar nenhum, nem com fono eu consegui aprender. E me ensinou a fazer massagem, me sinto muito bem quando eu vou à casa de alguém como eu vou agora. O telefone tocou agora foi exatamente pra eu ir fazer massagem numa pessoa que está precisando das minhas mãos e vou usá-las acompanhadas das orações que eu aprendi na minha igreja. Então, sinceramente, eu acho que televisão pra mim é você saber fazer uma peneira e ali você separar o que é bom pra você do que é ruim. 104

Entre as(os) estudantes da escola, as mensagens religiosas veiculadas pela televisão, principalmente no campo moral, aparecem como justificativa para avaliar certos comportamentos de artistas e alguns gêneros musicais. Uma aluna da 7ª série A, por exemplo, fã da banda Rbd (Rebeldes), ao avaliar a postura de um dos membros do grupo que assumiu publicamente, na mídia em geral, sua homossexualidade, usou argumentos religiosos para justificar que essa orientação sexual deva ser apenas tolerada, mas não aceita como correta.

Bem, é... é difícil falar porque eu levo pros dois lados. Porque se ele acredita que é desse jeito a homossexualidade dele, a escolha é dele. Mas, por outro lado, eu penso: “Deus fez o homem e a mulher pra que ele... ele deveria seguir como homem”. Mas já que ele quis, eu aceito.

Outra aluna dessa turma, ao apontar os clipes musicais como o que mais gosta de ver na televisão, sobretudo do conjunto NX Zero, e explicar o motivo que levou seu pai a quebrar o CD que tinha dessa banda, revelou a influência da programação evangélica de TV no comportamento dele. Segundo essa aluna, “ele fala que o rock veio do inferno, é isso que ele fala”. Sua colega de sala demonstrou um temor significativo pertinente à demonização generalizada que, segundo alguns padres e pastores evangélicos, fundamentalistas e televisivos, subjaz ao rock.

O meu maior medo mesmo é de servir, por exemplo, a bandas de rock que fazem seitas satânicas. Existe muito, né? Então, o meu medo é servir a uma coisa que vai me levar direto pro inferno, porque eu também sou religiosa... Assim, o maior medo de todo mundo é servir coisas que são erradas aos olhos de Deus.

Para Santos (2003, p. 318), o crescimento do fundamentalismo religioso, tanto no centro, como na periferia do capitalismo, revela um desencanto relativo aos compromissos de modernização e progresso não cumpridos, havendo, “[...] uma grande desconfiança face às instituições que se proclamaram arautos dessas 105

promessas, sobretudo o Estado e o mercado”. Ilustra bem esse fenômeno a placa na traseira de uma caminhonete, com a qual cruzamos no trânsito, que dizia: “Jesus, nele você pode confiar”. Recorre-se, desse modo, a religiões com propostas messiânicas, numa forma de resistir geralmente ao abandono social e ao vazio de perspectivas e horizontes.

Esse fenômeno, que atravessa cada vez mais o cotidiano de nossas salas de aula, inclusive no ensino superior, tem na televisão um espaço-tempo fecundo, interferindo, em certa medida, na constituição das mentalidades, atitudes, crenças e valores dos sujeitos. Daí a importância de estudá-lo. Se, por um lado, suas nuances são complexas e heterogêneas, por outro, apresenta alguns enfoques obscurantistas que repercutem em diferentes setores da vida social, transformando certas práticas religiosas numa negação das diferentes formas de viver e conhecer. Leonardo Boff (2001) nos relata o trecho de um diálogo que manteve com o líder budista tibetano Dalai-Lama, no qual o inquiriu maliciosamente, mas também com interesse teológico, sobre qual seria a melhor religião. A sábia resposta nos alerta de que, nas relações com o transcendente, os caminhos são plurais; não podem nos tornar preconceituosos, fanáticos e avessos à autocrítica e ao diálogo. Eis o que nos lembra o Dalai-Lama.

A melhor religião é aquela que te faz melhor. Aquilo que te faz compassivo, [...] aquilo que te faz mais sensível, mais desapegado, mais amoroso, mais humanitário, mais responsável... A religião que conseguir fazer isso de ti é a melhor religião (2001, p. 34).

3.2 “SUA VIDA ME PERTENCE”?3 A PUBLICIDADE TELEVISIVA E AS FORMAS DE SER E ESTAR NO MUNDO

No documentário Mundo Cola: água, açúcar e marketing, uma das cenas iniciais mostra uma peça publicitária da Coca-Cola, produzida para a TV. Nela, pessoas de

3 Primeira telenovela brasileira, exibda em 1951 na TV Tupi. 106

diferentes raças, etnias e recantos do planeta se reúnem numa ampla área livre, e vão cantando juntas: “Eu queria comprar um lar para o mundo. E mobiliá-lo com amor”. O semblante desses homens e mulheres transmite harmonia, felicidade, congraçamento e, como afirma uma psicóloga ao analisar o comercial, há um clima de oração! Todas(os) estão unidos e entrelaçados com uma garrafa de Coca-Cola nas mãos, a qual, desempenhando o papel de um ícone religioso, as(os) mantém coesas(os) e integradas(os) no ideal de um mundo melhor!

Os vultosos investimentos dessa empresa em publicidade tornaram a marca Coca- Cola a mais reconhecida da Terra. Essa conjugação perfeita de som, imagem e fascínio se concretiza principalmente na TV, um espaço-tempo privilegiado para a espetacularização do consumo, induzindo ao deleite, à satisfação, ao agrado do corpo e da mente.

Após exibirmos um pequeno trecho desse documentário para o grupo de professoras(es), a pedagoga da escola avaliou as estratégias publicitárias na televisão, salientando esse poder de atração nos imaginários das pessoas, mobilizando seus sentidos, principalmente a visão e a audição, participando dos seus processos de identificação, por meio dos significados que esse e outros produtos de consumo transmitem.

A gente pensa o seguinte, a imagem é vendida por quê? Porque ela funciona enquanto controle do cérebro do indivíduo. Então, a grande pesquisa passa em eu saber como esse cérebro funciona. Com isso, nós sabemos que a grande maioria das pessoas são visuais, nós temos outras, né?, outras formas de ver e de sentir, mas está provado que a questão do visual é a questão que mais marca dentro do seu registro cerebral [é agradável]. Exatamente, é bonita, é agradável, e esse registro, a questão das diversas cores, a amplitude de cores, quer dizer, quanto mais colorido, mais mexe com você. Então, os atrativos da propaganda da Coca-Cola são todos, vocês podem ver, são sempre muito coloridos, sempre lugares muito bonitos. E o que eles associam aí? Eles associam a 107

música porque a música é relaxante, a música é transcendente, né?, a gente até coloca que música é uma coisa extremamente divina, porque ela passa o que vocês transcendem, então, faz um religare aí. Por isso, talvez, a questão da religiosidade, da fé, onde passa em alguns momentos ali, porque a música transcende. Então, vem essa questão da espiritualidade, do religare. E como isso é usado enquanto satisfação pessoal, eu tenho que ser visto, ter a noção de pertencimento, que, se eu não for pertencente, eu estou isolado. Então, nessa questão do pertencimento, eu preciso pertencer a um grupo, e qual grupo? Grupo Coca-Cola.

A partir, sobretudo, das décadas de 1930 e 1940, ocorreu o que Santos (2003) denominou “industrialização da ciência”, qual seja, uma subjugação crescente das pesquisas e descobertas científicas, bem como dos seus profissionais, aos parâmetros do poder econômico e político, tanto no capitalismo como na esfera do socialismo real. Processo histórico contundente, que encontrou na publicidade terreno fértil para se consolidar. Um dos estudos no campo da atividade cerebral, por exemplo, ao qual se referiu a pedagoga, concluiu que a região do córtex pré- frontal médio é decisiva nos processos cognitivos, captando com maior sensibilidade os estímulos externos. Não demorou muito para que as grandes agências publicitárias canalizassem tal descoberta para finalidades comerciais. Surgia o neuromarketing, cujas técnicas já são empregadas por uma centena de empresas no mundo (BÉNILDE, 2007).

Essas táticas publicitárias atuam no sentido contrário do dualismo cartesiano, que opõe o racional ao emocional. Assim, na publicidade televisiva, ocorre um entrelaçamento perfeito entre a dimensão física e psíquica, visando ao desfrute, ao prazer. A máxima “Penso logo existo” é atualizada para “Consumo, logo existo”. Contudo, a plena a satisfação do sujeito nunca é concretizada. A estratégia midiática entrecruzada com os interesses lucrativos prescreve o desejar nunca consumado, o aspirar constante aos novos prazeres oferecidos pelo mercado. Essa estratégia é tão ubíqua que o consumo medeia as nossas relações com os objetos, com as outras pessoas e com o mundo. 108

A professora de Língua Portuguesa refletiu sobre as pequenas comemorações cotidianas na escola, onde fica patente a hegemonia da Coca-Cola e o significado de status dessa marca sobre as demais, nas inter-relações entre os sujeitos.

A impressão que se tem da Coca-Cola é questão de poder. Por exemplo, se você vai numa festinha de escola, o menino compra vários refrigerantes, aqueles refrigerantes que não têm nem nome, mas a Coca-Cola ele guarda, mesmo que ele não goste do professor, mas a Coca-Cola ele guarda para o professor. O “refrigereco” é pra qualquer um, é pra eles, agora, para o professor, se for aniversário, é a Coca-Cola que ele guarda.

Sarlo (2004) afirma que o indivíduo na sociedade pós-moderna é uma espécie de “colecionador às avessas”. Ao contrário do colecionador tradicional que seleciona e organiza acervos de selos raros, de miniaturas, de obras de arte, etc., que têm um valor em si, seja histórico, afetivo, seja financeiro, esse tipo de colecionador se satisfaz mais com a ação processual de adquirir os produtos disponibilizados pelo mercado, num verdadeiro ritual ao mesmo tempo efêmero - já que se pode perder o interesse pelo objetivo logo após comprá-lo – e permanente, visto que a necessidade de consumir é insaciável. Os estadunidenses chamam esse fenômeno de “[...] shopping spree [...] uma espécie de bacanal de compras na qual uma coisa leva a outra até o esgotamento que encerra o dia nos cafés das grandes lojas. [...]. Trata-se, ao pé da letra, de uma coleção de atos de consumo na qual o objeto se consome antes sequer de ser tocado pelo uso” (p.27).

Todavia, numa sociedade desigual como a nossa, os despossuídos que mal conseguem garantir a sua sobrevivência física constituem, segundo a autora, os “colecionadores imaginários”. São aquelas(es) que apenas contemplam os objetivos nas vitrines das lojas ou nos anúncios publicitários da TV, alimentando os seus sonhos e fantasias de um dia ter condições de adquiri-los. Se bem que, mesmo essa categoria de colecionadores tem suas artimanhas para ingressar nessa festa consumista, ou pelo menos ter a sensação de participar dessa festa. Certa vez, 109

numa palestra para educadoras(es) da rede municipal de Vitória, a professora Marisa Vorraber (UFRGS E ULBRA) apresentou inúmeras fotos tiradas em suas pesquisas nas escolas públicas de Porto Alegre. Algumas delas, num centro de educação infantil, mostravam variadas mochilas penduradas nas paredes e pertencentes às(aos) estudantes. Todas elas com figuras de super-heróis ou da boneca Barbie e outros, personagens tão ao gosto do público infantil, e com marcas famosas, mas adquiridas no comércio popular. Uma ex-aluna nossa do curso de Pedagogia nos relatou que sua filha lhe entregou uma quantia razoável em dinheiro, solicitando que ela comprasse uma calça de marca num shopping de Vitória. Essa aluna atendeu prontamente ao desejo de sua filha, porém, a seu modo. Foi ao Pólo de Confecções da Glória (Vila Velha) e comprou uma calça jeans básica, à qual adicionou uma etiqueta de grife famosa adquirida numa loja especializada da Rua Sete de Setembro, no centro de Vitória. Pronto! Estava realizado o sonho da jovem! São comuns, nas ruas de nossas cidades e nas feiras livres, os vendedores ambulantes que comercializam cópias de uma gama de marcas famosas de bolsas, DVDs, CDs, tênis, etc. Portanto, os dois grupos de colecionadores são envolvidos, nos seus respectivos contextos socioeconômicos, nos processos de identificação articulados aos atos de desejar/comprar os produtos de consumo.

[...] ambos pensam que o objeto lhes dá (ou daria) algo de que precisam, não no nível da posse, mas sim no da identidade. Assim, os objetos nos significam: eles têm o poder de outorgar-nos alguns sentidos, e nós estamos dispostos a aceitá-los.[...]. Os objetos são os nossos ícones, quando os outros ícones, que representavam alguma divindade, demonstram sua impotência simbólica; são os nossos ícones porque podem criar uma comunidade imaginária (a dos consumidores, cujo livro sagrado é o advertising, e cujo ritual é o shopping spree, e cujo templo é o shopping, sendo a moda seu código civil) (SARLO, p. 28).

Esses processos de significação presentes nos rituais em que interagem consumo e lucro são onipresentes nas estratégias das grandes redes privadas de televisão do Brasil. Ao analisar a inserção de mensagens comerciais durante a exibição das novelas, a professora de Ciências enfatizou os proveitos financeiros aí gerados. “Isso reverte em quê? Reverte em lucro, porque tem contrato com os patrocinadores, é vender esse produto pra poder ter como desenvolver melhor o trabalho”, concluiu ela. 110

Nas famílias de menor poder aquisitivo, os responsáveis pelas(os) estudantes se vêem em situações extremamente complexas e difíceis para lidar com os impulsos de consumo dos seus dependentes. A professora de Geografia relatou uma dessas situações, a partir de suas vivências com essas famílias, mostrando o sacrifício que fazem para manter os filhos longe das contravenções que os rondam.

Elas morrem de medo deles se envolverem com o tráfico. Eu ouvi isso de uma mãe numa escola. Elas usam esse termo: ‘Ah, eu faço o que posso pra comprar o que ele quer, o que os amigos dele já têm, pra ele não precisar pegar dos outros, pra ele não precisar ficar se sentindo inferior aos outros’. Elas têm sentimento, assim, muito forte em relação a essa questão do consumo.

Sua fala foi complementada pela pedagoga, que salientou a interferência dessa relação das(os) adolescentes com o consumo, mediada pelos responsáveis, que transformam a realização dos desejos das(os) filhas(os) de ter algo em moeda de troca, para atender às expectativas que têm delas(es). Isso, segundo a pedagoga, interfere nos seus processos de identificação, se bem que ela adote uma visão muito homogênea de identidade.

Na realidade, quando ela fala isso: ‘olha o que eu faço por você’, o que essa família está colocando? Ela está é, de uma certa forma, falando com ele: ‘eu estou comprando de você o comportamento ou a personalidade ou a pessoa que eu quero que você seja’. Então, na realidade é isso, quer dizer, ela também não dá de graça, a mãe, ninguém dá de graça, é uma troca. Então, nesse momento, ela coloca: ‘eu estou comprando você, então você tem que ter aquilo que eu espero que você me deixe’. Então, na realidade, você tem que, de novo, perder a sua identidade, o seu eu pra ser um eu novo.

E as(os) alunas(os), como se comportam diante do jogo de sons, imagens e performances, que repetem sem cessar: compre! Suas reações, pelo menos as 111

explicitadas nas falas, mesclam desejo, frustração e questionamento. Um aluno da 8ª A, por exemplo, ao analisar a autocrítica do personagem Goiaba (Malhação) acerca de sua postura consumista, declarou o seguinte:

O diálogo é a realidade, né?, que todo mundo hoje que vê uma coisa nova quer comprar já. Eu confesso, sou um pouco assim. Aí, tudo que é novo você quer comprar. Às vezes você não tem dinheiro, aí você fica nervoso, aí complica, né?. Você não tem o dinheiro, dinheiro só no final do mês.

Seu companheiro de turma reforçou esse interesse em desfrutar de coisas sempre novas e atraentes, principalmente se os colegas já as possuírem. “Meu colega tem um computador, eu quero comprar um também. Então, eu acho que eu sou um pouco consumista. Adoro consumir roupas de marca e internet”, declarou. Outra aluna dessa sala destacou os limites socioeconômicos que impedem muitos adolescentes pobres de concretizar as aspirações de consumo incitadas pelas publicidades e conteúdos da TV.

O mundo hoje em dia não é assim. Isso é só uma ficção, isso não acontece geralmente. Acontecer, acontece, entre os ricos, né?, mas eles fazem isso porque são ricos mesmo. A gente não pode mesmo. Muitas pessoas não têm nada pra fazer, não têm dinheiro pra gastar, não têm nada, não têm comida, moram debaixo da ponte, não têm nada. A gente não deve seguir o exemplo deles.

No âmbito da alimentação, a ascendência da publicidade televisiva é preponderante, agravando em muito os maus hábitos alimentares. Recente pesquisa da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica, envolvendo 2.179 pessoas de todas as classes sociais nas cinco regiões do país, concluiu que 63,1% dos brasileiros estão acima do peso, em decorrência principalmente do consumo de produtos que levam à obesidade (açúcares, gorduras e proteínas). Um dos piores hábitos para a saúde alimentar, seguido, de acordo com a pesquisa, por 43% dos entrevistados, é fazer as refeições diante da televisão (FOLHA DE SÃO PAULO, 2008). 112

Na escola pesquisada, contudo, tivemos uma feliz evidência do quanto a ação educativa pode fazer um contraponto a essa lógica publicitária, estimulando as(os) alunas(os) a práticas mais saudáveis de alimentação. A cantina foi extinta, evitando uma competição com a merenda oferecida pela escola, que, aliás, geralmente faz muito sucesso entre as(os) alunas(os).

Figura 13 Figura 14

O minúsculo refeitório estava sempre lotado (Figura 13), havendo, inclusive, uma numerosa fila para a repetição (Figura 14).

Circulando pelo pátio diversas vezes durante o recreio, observamos poucas(os) alunas(os) consumindo aquelas guloseimas pobres em nutrientes, como biscoitos recheados e chips (Figuras 15 e 16).

Figura 15: guloseimas Figura 16: guloseimas 113

Conversando informalmente com algumas(alguns) delas(es) no pátio, verificamos que as merendas preferidas eram cachorro quente, feijão tropeiro, mingau, arroz doce, bolo e salada de frutas. Embora sejam, via de regra, muito calóricas, são bem mais saudáveis do que a maioria dos produtos alimentícios anunciados na TV. Outro aspecto que chamou a nossa atenção foi a ausência de vendedores ambulantes no portão da escola, durante a entrada e saída das(os) alunas(os).

Outra situação que vivenciamos durante a pesquisa de campo, bastante emblemática das frustrações e desencantos das(os) adolescentes mais pobres, diante da impossibilidade de realizarem seus sonhos de consumo, aconteceu na 7ª série A, quando uma aluna, fã da banda RBD (Rebeldes), apontou a dificuldade financeira como obstáculo que a impediu de ir ao show desse grupo musical em Vitória. Com os olhos lacrimejantes, afirmou: “eu chorei muito porque eu queria ir, mas minha mãe não tinha condições de me levar. Fiquei muito triste”.

Para compensar tais limites objetivos de muitos consumidores brasileiros, uma das táticas mais utilizadas pela publicidade televisiva é o acesso fácil ao crédito, mas com juros altíssimos embutidos, seduzindo muitos que não hesitam em comprar os produtos desejados. Uma armadilha que se transforma num círculo vicioso, acarretando dívidas constantes para o indivíduo. Isso exige avaliação criteriosa e prudência. Foi o que acentuou outra aluna dessa 8ª série.

Só os comerciais que passam na televisão já dão vontade de você pegar e comprar na hora. Igual quando passa a parte que tem um computador novo, um lançamento que é do outro mundo. Aí já dá vontade de você ir lá comprar. Mas não é assim, tem que esperar e achar o dinheiro. Juntando dinheiro até pode comprar, porque no final você acaba, assim, entrando em dívida. O consumo é uma área que atrapalha muito a gente. Antes de comprar uma coisa, a gente tem que ter dinheiro pra pagar. Muitas vezes, a gente tem que pedir empréstimo, e empréstimo pra poder comprar essas coisas. Mesmo assim, fica devendo o empréstimo, você paga, mas você fica devendo. Aí você vai, tem que correr atrás. Outras 114

vezes você deixa de comprar uma coisa em casa, um alimento, pra você pagar aquele produto que você comprou.

Apesar de todos esses obstáculos citados pela aluna, as vendas parceladas de roupas, calçados e outros produtos continuam atraindo consumidoras(es) adolescentes e suas famílias, subvertendo os limites de nível socioeconômico. Pesquisa realizada em 2003 pelo instituto Ipsos-Marplan indicou que 71% das(os) adolescentes das classes A e B e 48% das classes C, D e E fazem compras em shoppings. Esses dados confirmam estudos anteriores da ONU (2002), apontando que sete de cada dez teens brasileiros apreciam o ato de comprar (FOLHATEEN, 2007). A figura 17 ilustra bem esse fenômeno. Os valores das peças de vestuário utilizadas pelo jovem estudante agregam valor em função dos significados de status que oferecem aos seus usuários. 115

Figura 17: “Bolso vazio, armário cheio”. Fonte: Folha de São Paulo (Folhateen), 21/5/2007, p. 6-7. Foto: Ivan Amorim/Folha Imagem

Segundo o psicoterapeuta Carlos Eduardo Carvalho Freire, faz-se necessário problematizar a concepção hegemônica que coloca a juventude e o consumismo como dimensões inseparáveis. “É importante proporcionar aos adolescentes experiências nas quais o ato de consumir possa ser pensado apenas como uma possibilidade de comportamento, entre outras”, declarou (Folhateen, 2007, p. 7).

A televisão participa ativamente na naturalização dessa perspectiva dominante. Numa das raras entrevistas que concedeu, o apresentador e empresário Sílvio Santos, proprietário do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), ao ser questionado acerca da responsabilidade desse meio de comunicação, como concessão pública, em divulgar uma programação de melhor qualidade cultural, respondeu sem maiores rodeios e de forma pragmática:

O brasileiro é um povo humilde. A televisão é a sua única diversão. Esse povo não quer a televisão para ter aula ou ter cultura. [...] Nós, empresários, podemos ir a Miami, podemos ir à França ver ópera. Mas o pobre, que não tem dinheiro nem para ir ao circo porque tem de comprar cachorro quente para seus filhos, quer é diversão grátis.Temos de dar ao povo o que povo quer. Se for samba, será samba. Se for mulher com pouca roupa será mulher com pouca roupa (VALLADARES, 17/5/2000, p. 154).

Vê-se, por essas declarações, o quando a mercantilização comanda as mensagens das TV. A meta permanente é conseguir bons índices de audiência, a fim de atrair patrocinadores com altas contas de publicidade. Assim, os lucros ficam garantidos. Numa outra resposta, o empresário e apresentador garantiu que não interfere nos conteúdos dos programas. São os apresentadores que os definem; o que se exige são resultados satisfatórios na receptividade do público, não importando se o que o que é mostrado e narrado é grotesco, preconceituoso ou apelativo. “Eu não falo nada. Quem fala é o número. Quem dá ibope pode mostrar o que quiser”. 116

Na concorrente do SBT, a poderosa Rede Globo, a rainha dos baixinhos Xuxa Meneguel “tem a capacidade singular de transformar tudo o que toca em ouro” (MELO, 21/1/1998, p. 76). A gestação e o nascimento de sua filha Sasha, fruto de um relacionamento afetivo com o empresário Luciano Szafir, rendeu bons dividendos. Dos 18 milhões que a sua empresa, Xuxa Promoções e Produções Artísticas, faturaria em 1998, cerca de 30% seriam provenientes dos licenciamentos com produtos infantis. Essa gravidez foi também um grande ato performático, tão comum hoje na televisão, que se tornou palco eletrônico onde os mais diversos fatos e acontecimentos, sujeitos e grupos constituem o cenário de espetáculos de atuação e desempenho, repercutindo na produção social de sentidos.

A midia fornece os recursos: os instrumentos e a fantasia. Aulas práticas. Oportunidades. O mundo é performado dentro de nossa mídia diariamente. E nós, seu público, performamos ao lado dele, como jogadores e participantes, imitando, apropriando-nos e refletindo sobre as verdades e falsidades dele (SILVERSTONE, 2002. p.136).

Ocorre, conseqüentemente, segundo esse autor. “[...] o encorajamento e o reforço de uma cultura da exibição, que incorporamos em nossas vidas cotidianas e é continuamente sustentada em telas e por alto-falantes”. A busca obsessiva pela aparência ideal é um dos reflexos desse fenômeno, sendo amplamente encorajada pela mídia, sobretudo a televisão. Excesso de peso, flacidez e rugas tornam-se, desse modo, verdadeiras aberrações que precisam ser eliminadas a qualquer custo. No meio artístico, principalmente entre as mulheres, a regra quase que geral é submeter-se a uma série de cirurgias estéticas. Essa cultura da exposição alimenta a indústria de produtos estéticos, que investe pesado na pesquisa e produção de uma infinidade de cremes, sabonetes e loções para cada parte do corpo. Isso muitas vezes gera comportamentos patológicos.

A modelo capixaba Sheyla Almeida, 26 anos (Figura 18), corporifica essa tendência. Já realizou duas lipoesculturas na barriga, coxas, costas, pernas, braços e abdômen; nessas três últimas partes do corpo, já fez também lipoaspiração. Além disso, operou o nariz e fez preenchimento definitivo dos lábios; substituiu as próteses de 750ml (na mama direita) e 735ml (na mama esquerda) por outras de 117

1.035ml (mama direita) e 1000ml (mama esquerda); implantou 180ml de silicone em cada nádega e retirou duas costelas para deixar a cintura mais fina (A TRIBUNA, 2006). Suas peripécias estéticas mereceram amplo destaque na mídia, inclusive na TV.

Figura 18: Metamorfose estética Fonte: A Tribuna, 2006, p. 12

Como diversos setores da mídia sabem explorar muito bem o excêntrico e grotesco, em abril de 2007 exibiu, em 20 fotos sensuais, numa revista masculina, o resultado de tantas ações tirando aqui, acrescentando ali, modificando acolá (Figura 19).

118

Figura 19 – Siliconada Fonte: A Tribuna, 13/04/2007, p.11.

A televisão é, certamente, a mídia que mais influencia socialmente nessa busca obsessiva por um padrão de beleza e na constituição de uma “comunidade estética” (BAUMAN, 2003). Em seu conteúdo, há uma profusão de modelos-atores que seduzem o público com seus corpos esculturais obtidos por meio de cirurgias estéticas e implantes, de variadas atividades físicas e dietas. São belos e magnéticos rostos, ditando modelos do que vestir e como vestir; que cortes de cabelo adotar; quais acessórios usar; o que comer; que produtos de beleza utilizar; enfim, como se comportar numa sociedade em que a aparência é um valor absoluto. A fascinação que exercem interfere permanentemente nos processos de identificação dos sujeitos, numa construção/reconstrução perene dos seus anseios e interesses, de suas formas de ser e viver no mundo. Atração insaciável, conveniente à lógica mercantilista que perpassa a quase totalidade dos conteúdos televisivos.

A necessidade da comunidade estética gerada pela ocupação com a identidade é o campo preferencial que alimenta a indústria do entretenimento: a amplitude da necessidade explica em boa medida o sucesso impressionante e contínuo dessa indústria (BAUMAN, 2003, p. 63).

A TV, contudo, não apenas propaga e dita normas e padrões de beleza, mas também se vale também das estéticas sociais para se manter atualizada com a sociedade. Um exemplo bastante elucidativo dessa estratégia foi a personagem Rebeca, interpretada por Elizabeth Savalla (Figura 20) na novela Sete Pecados da Rede Globo. O seu figurinista se inspirou nos fartos seios siliconados da modelo capixaba, Sheyla Almeida para incorporá-los à personagem da atriz. Assim, a própria televisão satirizou a busca narcisista pela forma ideal, fenômeno contemporâneo em que essa mídia desempenha um papel determinante, embora as suas interações com a sociedade sejam circulares. 119

Figura 20: Inspiração capixaba Fonte: A Tribuna (AT2), 28/7/2007, p. 1

Esse apelo estético da TV atravessa também as percepções dos(as) estudantes. Um aluno da 8ª série ressaltou como o aspecto exterior das pessoas é valorizado nos relacionamentos; porém, relativizou essa ênfase, afirmando que as qualidades interiores sobressaem muitas vezes.

Na verdade, na verdade, todo mundo olha a aparência da pessoa, pra depois olhar a pessoa por dentro. Mas tem casos que, você flertando ali com a pessoa, aí você acha a pessoa legal, “pá”, aí você nem se preocupa com a aparência. Você se sente bem com aquela pessoa, aí cada um é cada um, cada um tem sua posição.

Sua colega de turma externou como é doloroso para as mulheres se sentirem discriminadas em razão desses paradigmas de beleza, acentuando, no entanto, a importância da auto-estima na superação dos estereótipos.

As pessoas às vezes me discriminam porque eu posso ser gorda, eu posso ser feia, mas as pessoas não me conhecem. 120

Se as pessoas me conhecessem por dentro, por dentro que eu falo, pela amizade, pela conversa... Eu falo bem assim: “se eles me acham pouco bonita, problema é deles!”. Mas eu tenho que me achar, eu tenho que me gostar pros outros gostarem de mim. Os outros têm que gostar do jeito que eu sou, não do jeito que eles querem que eu seja.

A psicóloga Mara Cristina de Lucia, diretora da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas de São Paulo e coordenadora de estudos com pacientes de distúrbios alimentares e de imagem, cita uma pesquisa realizada com 162 homens e 184 mulheres sadios, indagando se eles(elas) se preocupavam com a aparência e se perdiam pelo menos uma hora por dia pensando que não pareciam bem. Cerca de 68% das(os) entrevistados(as) responderam que sim (57% dos homens e 80% das mulheres). Perguntou-se também se ficavam deprimidos, zangados ou frustrados com algum aspecto da aparência que não lhes agradava.

Nada menos que 62% responderam afirmativamente. A psicóloga citou o caso também de um individuo atendido por seu grupo no Hospital das Clínicas que, apesar de ter um câncer no fígado e problemas renais, ainda utilizava anabolizantes. Era um vigoréxico; mesmo estando musculoso ainda se achava longe da forma ideal (ISTOÉ, 13/7/2005, p.7-13).

Nas academias não faltam exemplos desse “vale tudo” pela perfeição física. Depoimentos colhidos numa reportagem sobre o assunto atestam isso. “Passei seis meses à base de pão integral, coca light, aminoácidos e anabolizantes”, declarou um adolescente de 17 anos. Outro freqüentador assíduo de academias, também com 17 anos, afirmou que o lema dos “ferreiros” é: “se machucar, não vá ao médico, ele vai pedir pra você parar”. “Normalmente tenho dor no cotovelo. Deve ser algum tendão ou ligamento, mas nunca vou ao médico”, contou (FOLHATEEN, 2003, p. 6-7). Será esse um fenômeno presente apenas nos espaços esportivos de regiões nobres? Acreditamos que não, pois, nos bairros populares, as academias se multiplicaram nos últimos anos, com preços bastante acessíveis, sem falar nas que são gratuitas. Quantos “jeitinhos” não darão suas(seus) freqüentadoras(es) para atingir os objetivos estéticos desejados? 121

Essa cultura da aparência e da performance afeta igualmente as dimensões temporais de nossas vidas. Generaliza-se a estética do efêmero. As tendências da moda, por exemplo, se transfiguram constantemente. Desse modo, temos as coleções primavera-verão e outono-inverno, as roupas casuais, o vestuário para os diferentes tipos de festas e eventos, para as práticas esportivas e assim por diante, num processo de descartabilização permanente. O mercado torna-se o regulador do tempo, enquanto o consumo é simultaneamente contínuo e passageiro. Há os canais televisivos específicos para compras e o comércio informatizado, que extrapolam os limites prescritos pelos dias e noites, feriados e finais de semana. Em todo o tempo e nos mais variados lugares, o apelo à festa consumista está presente.

A mídia medeia entre tempo e consumo. Fornece estruturas e exortações. A mídia é, ela mesma, consumida no tempo. Modas são criadas e anuladas. Novidades proclamadas e negadas. Compras feitas e recusadas. Anúncios vistos e ignorados. Ritmos sustentados e rejeitados. Consumo. Conveniência. Extravagância. Frugalidade. Identidade. Exibição. Fantasia. Anseio. Desejo. Tudo refletido e retratado nas telas, páginas e sons de nossa mídia. A cultura de nossa época (SILVERSTONE, 2002, p. 160-161).

Um aluno da 7ª série B, analisou essa ascendência da TV, dos padrões de moda que ela dita por meio dos ídolos que ajuda a consolidar, rejeitando, porém, a idéia de uma repercussão absoluta em sua forma de ser.

É, igual quando a novela Rebelde né?, era sucesso, todo mundo começou a andar de gravatinha, menina começando a andar de sainha curta e calcinhas com aquelas botas enormes assim. Tá fazendo sucesso, aí vai lá se vestir também pra ficar igual ao visual da pessoa. O visual é muito influenciado pelos famosos, pelos artistas. Por exemplo, igual saiu a moda de andar sem calcinha, essa moda no Brasil. Eu mesmo vi pessoas que falaram assim: “Ah, eu vou começar a andar sem calcinha também, é chique, é famoso”. Então, se a outra tá fazendo isso, eu vou fazer também. Algumas meninas até me falaram isso. Pra mim também é besteira, né? Eu não vou sair por aí sem cueca só porque o tal famoso tá fazendo. Eu sou eu, ele é ele, cada um cuida da sua vida como deve, 122

como acha que é correto, né? Pra mim a TV influencia muito também isso.

Foi o que salientou sua colega da 7ª série A, embora ignorando que as adolescentes, ao usarem tais modelos de roupas, estão aderindo mais a uma performance do que ao estilo de vida do personagem televisivo.

Eu acho que a TV é muito influenciável [sic], tudo que eles fazem é pra influenciar as pessoas, tipo essas roupas aí da Bebel...[personagem da novela Paraíso Tropical, em exibição na época] Assim, se as pessoas até de Angola já estão usando é porque elas estão sendo influenciadas pela TV. Eles estão até tentando passar um jeito cômico dela, mas não conseguem, porque é perigoso passar esses negócios na TV porque influencia. Se a gente sai com uma roupa que ela veste o pessoal vai falar: “ah, aquela ali é vadia”, entendeu? Nem a Camila Pitanga mesmo usa uma roupa daquela. Porque é só pra influenciar, é só pra gente usar. Ela só usa quando vai fazer o personagem, depois tira e coloca uma roupa normal, mas a gente não, a gente vai estar usando mesmo a roupa, a gente vai estar usando na vida real.

A televisão é pródiga em explorar a exaustão a imagem dos ídolos, seja para alavancar a audiência seja para abrir espaço para um sem número de campanhas publicitárias e produção de artigos de consumo. A Banda RBD (Rebeldes, figura 21), ilustra bem essa tendência. O grupo musical surgiu numa novela homônima, exibida no SBT desde agosto de 2005, fazendo enorme sucesso entre crianças e adolescentes. Salta aos olhos a erotização das personagens, além da aparência física, que privilegia a referência européia. A forma física também é padronizada, com exceção de uma personagem mais “cheinha”, que ficou escondida na foto. 123

Figura 21: Rebeldes Fonte: A Gazeta (Revista da TV), 2006, p. 2

A banda, que era fictícia nessa produção da rede mexicana Televisa, passou a atuar de verdade e a lançar discos. O sucesso foi estrondoso, com cinco milhões de cópias vendidas no mundo, sendo 1,5 milhão no Brasil. Existem mais de 500 produtos que exploram a imagem da banda. No Brasil, 160 mil bonecas já foram vendidas (REVISTA DA TV, 2006).

Não é surpresa, aliás, que atualmente a TV seja o veículo dominante no mercado publicitário, com 56,1% das verbas (EPCOM, 2003). Contudo, desde a década de 60, suplanta as outras mídias. Assim, as práticas consumistas, efêmeras e incessantes, tão disseminadas no Brasil, têm no espaço-tempo das diferentes polegadas dos aparelhos televisivos uma expressiva centralidade.

3.3 “LABIRINTO”4 DE ABORDAGENS: OS MODELOS DE FAMÍLIA, AS QUESTÕES DE GÊNERO, ÉTNICO-RACIAIS E DE SEXUALIDADE NA TV

Questões pertinentes à família atravessam a todo momento o cotidiano escolar e os conteúdos televisivos. Nesse meio de comunicação, praticamente todas as 4 Telenovela exibida na Rede Globo em 1998. 124

problemáticas familiares já foram ou são evidenciadas, sob diferentes enfoques ou significados. Na escola não é diferente, pois conflitos socioculturais entre pais e filhos, violências domésticas contra as(os) estudantes, indiferenças ou dificuldades objetivas da família no acompanhamento da vida escolar, entre outros, interferem em grande medida na aprendizagem, desafiando-a, por intermédio de seus profissionais, na busca de alternativas para atenuar ou contornar tais dificuldades. Aliás, a maioria dos diálogos que presenciamos na sala das(os) professoras(es) e que destacaremos adiante, se referiam basicamente a problemas disciplinares ou de baixo rendimento escolar das(os) estudantes, entrecruzados com a esfera da família. Santos (2003) distingue quatro tipos de espaços estruturais que vigoram ou circulam na sociedade capitalista e que, embora não sejam os únicos, adquirem maior relevância pelas complexas e entrelaçadas relações sociais que apresentam. São eles, o espaço doméstico, o espaço da produção, o espaço da cidadania e o espaço mundial. No espaço-tempo doméstico, as relações sociais são norteadas pelo patriarcalismo e se concretizam entre os membros da família.

De acordo com o sociólogo, não há como analisar esses espaços estruturais sem enredá-los. Nesse sentido, novamente a TV adquire um papel importante, pois já realçamos anteriormente o quanto essa mídia contribui para disseminar o consenso com a globalização capitalista e neoliberal em curso, bem como a intensa publicidade de bens e produtos necessários à maximização produtiva, com a conseqüente superexploração da força de trabalho e da natureza, além de atribuir determinados significados políticos ao exercício da cidadania e à gestão da coisa pública. As famílias certamente não ficam à margem de tais mecanismos e dinâmicas. A professora de Ensino Religioso salientou o quanto esses fatores interferem no convívio familiar, superficializando as trocas afetivas, distanciando física e emocionalmente os membros do espaço-tempo doméstico, tomando como exemplo a sua própria família. Segundo ela,

Não existe família, existem pessoas morando na mesma casa. Tem casas aí que você chega lá e pergunta por uma pessoa, ninguém sabe falar onde que ela tá, que dia que volta e que horas ela volta. Então, [...] não existe 125

mais troca na família, porque não existe família mais, existem pessoas morando sob o mesmo teto. [...] Eu, por exemplo, minha nora mora comigo, eu vejo a minha nora no domingo. Eu saio 5 horas da manhã e chego às 11h30 da noite. Ela sai 6h30 e chega às 10h. Então, quando eu chego, ela tá dormindo, quando eu saio ela tá dormindo. É o que acontece com a gente que tem um estudo, que tem um nível ainda um pouquinho melhor. Imagine o que tá acontecendo com essas famílias mais pobres.

O professor de Matemática (01) foi mais diretivo em sua fala, destacando o quanto a TV, especificamente, e outras mídias como o computador, atrelados a uma cultura consumista e individualista, acabam determinando a organização do espaço-tempo doméstico, alterando as interações entre os sujeitos que ali vivem.

Eu vejo o seguinte, hoje você não tem só um aparelho de televisor em casa, a maioria das pessoas têm mais de um. A gente chega, a gente vai pro quarto e assiste televisão no quarto. Então, quer dizer, isso reflete a fragmentação da família, ninguém mais assiste televisão junto, né?, ninguém mais senta na sala pra assistir televisão. Quando você assiste, você vai falar, vai fazer um comentário, ‘fica quieto, deixa eu ouvir lá a notícia, fala no comercial’. Aí dá o horário do comercial, sai pra beber água, pra ir ao banheiro, acabou, não tem conversa. Então, quer dizer, existe essa fragmentação, você tem microondas, você esquenta a sua comida, você vai lá esquenta sua comida e pronto. Ou seja, cada um come num horário, ninguém senta na mesa pra almoçar, ninguém se encontra pra jantar, ninguém se encontra pra conversar. Todo mundo vai pro seu núcleo, pra sua minicasa, pro seu quarto com televisão ou com computador ou alguma coisa do tipo. Então, eu acho que isso acaba refletindo nessa violência toda, porque os pais não sabem o que ocorre com os filhos. 126

Opinião parecida teve o seu colega, também professor de Matemática (02), ao considerar que a TV, em função da centralidade que assumiu no espaço-tempo doméstico, com seus fortes apelos à aquisição desmensurada de bens, erodiu alguns valores básicos para a vida familiar, adjetivando-os de ultrapassados e anacrônicos.

A TV influencia tanto que é por isso que estamos conversando sobre isso. Eu acho que ela influencia demais, ela mudou realmente o tradicionalismo da família e aí perdemos alguns aspectos que eram positivos, como na escola tradicional, quando a gente fala é o “bicho papão”, não existem aspectos na escola tradicional positivos. Então, o que a televisão traz é aquilo que ela quer trazer. Ela traz uma mudança na sociedade que ela quer, que é o consumismo; a família vai ficando de lado. Então, se você tem aquele objeto que ocupa o melhor espaço da sua casa, bem no alto, a família acaba ficando em segundo plano.

Se analisarmos, entretanto, mais detidamente, as abordagens televisivas para questões familiares, com suas múltiplas relações de gênero, raça e vivências da sexualidade, constataremos que essa perspectiva, que endereça à TV o papel de corrompedora de lares, é por demais generalizante, uma vez que a crise da família abarca uma série de facetas emaranhadas e intricadas. As novelas, por exemplo, produções de grande sucesso da televisão brasileira, foram paulatinamente, sobretudo a partir da redemocratização do país no final da década de 1970 e início da década de 1980, entrelaçando com os já clássicos esquemas folhetinescos, outras abordagens para essas questões, sintonizadas com os novos cenários socioculturais no país e no mundo. Embora não fosse novela, mas uma série, ou seja, com episódios geralmente semanais que não são necessariamente dependentes uns dos outros, Malu Mulher (Rede Globo, 1979) se tornou um marco nesse aspecto. A personagem principal, interpretada por Regina Duarte, vivia uma socióloga separada que criava sua filha em meio a variados preconceitos e dificuldades. Versou sobre temas considerados tabus para a época, 127

como o sexo fora do casamento, a homossexualidade masculina e feminina, o divórcio, etc. A própria atriz Regina Duarte desconstruiu, a partir dessa série, aquela imagem de “namoradinha do Brasil”, ingênua, desprotegida, sofredora e piegas, para retratar uma mulher destemida, que luta pelo reconhecimento social, que assume o desejo e o prazer sexual como uma dimensão importante da feminilidade, rompendo os estreitos limites do espaço-tempo doméstico, sob o controle do poder patriarcal.

As novelas que se seguiram, principalmente as da Rede Globo, que apresentam maior audiência e repercussão social, não cessaram de evidenciar problemáticas importantes relativas à família, relações de gênero, raça e sexualidade, notadamente no horário nobre, após as 20h30. Só para citar alguns exemplos, já que discutiremos esse gênero televisivo mais adiante, em Mulheres Apaixonadas (2003), abordou-se a agressão contra mulheres, o comportamento obsessivo no amor, o preconceito contra os idosos, a dependência química do álcool, o lesbianismo. Em Duas Caras, a última novela desse horário, foi mostrada a relação inter-racial entre um negro, morador de uma favela, e uma branca, residente na zona Sul do Rio de Janeiro. É lógico que as perspectivas de abordagens para tais situações são muitas vezes unilaterais, preconceituosas, apelativas, superficiais, articuladas com as lógicas e dinâmicas hegemônicas, mas não deixa de ser relevante a visibilidade que lhes é dada nessas produções, com margens para movimentos instituintes na escola, preocupados com a problematização e permeáveis a outras significações para essas problemáticas.

Num dos encontros com as(os) educadoras(es), a professora de Ensino Religioso externou o quanto as(os) estudantes transpõem para o cotidiano da sala de aula as mensagens transmitidas pela TV. A indisciplina e a permissividade sexual são, no seu ponto de vista, uma decorrência clara da influência dessa mídia nos comportamentos e atitudes discentes.

Eu, no meu entendimento do que ocorreu com os alunos, eles recebem passivamente [conteúdos televisivos], no sentido de transportar aquilo pra vida deles, no dia-a-dia deles [...] e vivem aquilo como se fosse a coisa mais normal. Desacatar autoridades, desacatar professor, aquilo que eles transportam 128

pro dia-a-dia deles, né? É a tal da Malhação, a liberdade efetiva na questão do sexo, tudo isso aí. Então, pode tudo, pode de qualquer jeito com qualquer pessoa, né?, não importa o lugar que seja, não há respeito. Então, a gente vê que transportam e vivem aquilo, eu acho que é ativamente.

Por outro lado, indicou possibilidades de a escola problematizar essas mensagens, acentuando que, por meio de uma ação pedagógica coletiva e articulada, são viáveis práticas instituintes que explicitem outros enfoques e significados para o que é exibido na TV.

A gente percebe, né?, o professor ali é um trabalho de formiguinha, e, se não tiver, como a gente já em outro momento falou, o trabalho em conjunto, um projeto onde todos estejam envolvidos, fazendo a mesma coisa, falando sempre as mesmas coisas, pra que haja pelo menos uma, um equilíbrio nessa guerra, pra que eles possam pensar de outra maneira, aí essa luta tá perdida.

Nesse mesmo encontro, a pedagoga da escola relatou uma situação ocorrida no outro estabelecimento de ensino em que atua no turno vespertino (educação infantil), que, embora atenda uma faixa etária diversa, ilustra bem o quanto é problemática muitas vezes essa onipresença da TV no espaço-tempo doméstico, enredada com os infortúnios socioeconômicos, fragilizando e obstruindo a presença dos responsáveis na educação das crianças e adolescentes. Interessante foi o papel da escola nesse momento, no sentido de pensar, conjuntamente com a família, em outras formas de convivência com a produção audiovisual dessa mídia e dos seus membros entre si, mesmo sob condições materiais restritivas.

Eu tive uma experiência no ano passado, em que ao questionar muito isso [mensagens da TV] com uma família, esses pais me trouxeram a seguinte resposta: ‘meus filhos são órfãos de pais vivos.’ Essa foi a palavra da família. Quando a gente começou a mostrar pra eles a grande agressividade que aquela criança 129

tava trazendo, não que a criança é agressiva, mas ela se comporta com agressividade. Por quê? Porque ela vive num mundo de violência. Não só do cotidiano do mundo, do mundo em que ela está inserida, como no cotidiano do mundo que ela vê, né?, enquanto os valores verdadeiros, que é o que passa na TV. Então, ela me respondeu isso, pai e mãe, ‘nós somos pais, somos pais vivos, mas estamos mortos, meus filhos são órfãos de pais vivos’. Então, o que nós colocamos pra eles é que, se o problema é a televisão e vocês não têm tempo pra ficar com eles por causa da televisão, ela pode vir pra outro espaço dessa casa, pra vocês estarem junto com ele, analisando o que ele faz, o que ele está assistindo. Aí essa mãe falou assim: ‘vou fazer uma tentativa’[...] Aí, numa outra oportunidade, falou pra mim: ‘N, eu trouxe a televisão pra cozinha, porque eu chego do trabalho, vou fazer janta, vou lavar vasilha, vou arrumar a casa, então o espaço que eu mais fico é a cozinha, onde eu estou preparando o lanche ou a janta pra ele e é o momento que ele fica lá, então eu trouxe’. A partir daí, ela colocou pra mim que ela pode então estar selecionando com ele alguns filmes ou alguns desenhos que ele assistia nesse espaço, e já conversando com ele.

Em seguida, pontuou que um trabalho similar pode ser feito nas séries finais do ensino fundamental, onde a escola e suas(seus) educadoras(es) problematizem certas verdades produzidas pela TV e que acabam se cristalizando no imaginário e no comportamento adolescente. Acredita, desse modo, que, por meio da interação escola-família, como espaços-tempos educativos, as(os) estudantes “conseguem desfazer essas verdades”.

Essa articulação, todavia, é ambígua e conflituosa, como bem o demonstram algumas situações que vivenciamos no cotidiano da escola pesquisada. A pedagoga não dispõe de um espaço específico para atender alunas(os) e familiares. Assim, na maioria das vezes, recorre à sala das(os) professoras(es) para tais momentos, o que 130

é bastante inconveniente devido ao “entra e sai” e à conseqüente falta de privacidade.

Presenciamos três cenas que refletem bem o quanto são plurais e complexos os contextos familiares em nossa sociedade, geralmente silenciados, simplificados ou deturpados pelas novelas e outras atrações televisivas, mas igualmente atravessados por elas com maior ou menor intensidade.

Na primeira delas, ocorreu o diálogo tenso entre uma mãe negra e evangélica com sua filha, aluna da 7ª série. Após uma fala inicial dessa educadora, salientando alguns problemas da aluna nas aulas, a mãe pôs-se a “debulhar o milho”, afirmando que não suportava mais o procedimento da filha, a forma como se dirigia às outras pessoas, o vocabulário e o tom de voz que utilizava no convívio familiar diário. Tivemos ai um típico exemplo de desencontros familiares provocados por questões religiosas. A conversa entre as duas foi se tornando extremamente nervosa. A aluna, em prantos, afirmou, dirigindo-se à pedagoga: “N, não adianta, com a minha mãe não há diálogo”, e ouviu, como resposta, que precisavam se compreender melhor. A mãe, em seguida, acentuou, num tom de voz trêmulo, que não toleraria mais esses comportamentos da filha e que não pensaria duas vezes em lhe dar uma boa surra, mesmo sabendo das conseqüências legais desse ato. De acordo com a pedagoga, essa família é inflexível na educação da filha, proibindo tudo que contradiga seus valores religiosos.

Outra situação foi a de uma mãe cujos dois filhos (uma de 15 anos, na 6ª série, e outro de 13 anos, na 3 ª série) apresentam problemas de baixa freqüência às aulas, o que interfere no aproveitamento escolar deles. A pedagoga ressaltou também, na conversa com essa senhora, a ênfase do corpo docente no comportamento apático e introspectivo dos filhos dela. A mãe então argumentou que a maioria das faltas à escola ocorreram nas situações em que precisou levar um deles ao médico, tarefa que é sempre sua. Como isso geralmente é feito no período da manhã, precisa sair bem cedo de casa para conseguir uma ficha de consulta, levando todos as(os) filhas(os) juntos (cinco ao todo), pois não tem com quem deixá-los. Nesse momento, a pedagoga defendeu que nessas situações, a filha mais velha, de 15 anos, poderia perfeitamente vir à escola com o outro irmão, já que moram próximo, questionando o 131

que considera um comportamento superprotetor da mãe, que acaba podando e limitando pequenas iniciativas e o amadurecimento de quem está sob sua responsabilidade. Pudemos constatar, na fala e na postura daquela jovem senhora, que não aparentava já ter tantas(os) filhas(os), a tentativa de resistir, à sua maneira, aos medos urbanos, como a violência e as drogas, que assolam e vitimam tantos adolescentes e jovens. Implícitamente, ao se defender dos questionamentos da pedagoga, mostrava as táticas de superação de muitas inseguranças e angústias a que estava sujeita na tarefa de educar as(os) filhas(os).

A presença familiar na escola, contudo, não se restringiu apenas a situações tensas e conflituosas. Houve o caso, por exemplo, de um pai que procurou a pedagoga a fim de se informar sobre a aprendizagem escolar do filho, aluno da 8ª série. Demonstrando sincero interesse e preocupação em fazer um acompanhamento sistemático de todos os aspectos concernentes à vida do filho, indagou à pedagoga de forma simpática e cordial, buscando inúmeras informações. Revelou, inclusive, alguns projetos futuros para o filho, como a matrícula num curso técnico e a abertura de uma pequena Lan House que ficaria sob sua responsabilidade. Após a conversa, dirigiu-se à sala do filho, retornando, em seguida, para confirmar com a pedagoga as informações que esse lhe passou.

Vê-se, portanto, como são heterogêneos os contextos da presença da família na escola, entrecruzando contentamento, preocupação, ausência, choro, alegria, resistência, etc., o que, geralmente, embora seja parcialmente retratado, sobretudo nas novelas, seriados e outros gêneros semelhantes, termina com o tradicional e invariável final feliz.

No caso dos significados atribuídos à maternidade, o papel social feminino mais enaltecido, constatamos, pelo menos num momento anual em que é amplamente exaltada pela publicidade televisiva e numa determinada atividade discente produzida, o quanto ela ainda é padronizada no imaginário estudantil, com alguns interstícios para problematizações. A professora de Língua Portuguesa solicitou que as(os) alunas(os) confeccionassem cartazes alusivos ao dia das mães, os quais foram expostos no corredor da escola. Nota-se, de imediato, a nítida influência da propaganda midiática nas imagens e frases neles evidenciadas 132

Figura 22: Super mãe

No primeiro deles (Figura 22), aparece um grande coração vermelho com o rosto de uma mãe loira abraçada com um casal de filhos, desenhado dentro. Ao redor dos dois desenhos, adjetivações exaltando qualidades maternas que nos dão a impressão de que as mães são seres celestiais: “defensora, elegante, linda, simpática, carinhosa, graciosa, legal, amável, delicada”. Não queremos, obviamente, afirmar que a maternidade não possua tais significados, porém, reduzi-los apenas a isso é um exagero que idealiza um ser humano sujeito a contradições como qualquer outro. O esgotamento e a irritação daquela mãe negra que quase se atracou com a filha da 7 ª série, bem como a insegurança e a possessividade da outra mãe cujos filhos têm baixa freqüência na escola passaram ao largo nesse cartaz, que, aliás, é bastante infantil para uma turma de 7 ª série. 133

Figura 23: “Mãe, amiga para sempre”

No outro cartaz, também de um grupo dessa série, a mesma idealização, com o desenho de uma menina loira, cercada de pássaros, borboletas, flores, e a frase “Mãe, amiga para sempre” (Figura 23). É oportuno ressaltarmos o quanto essa significação atribuída à maternidade, é atravessada pela nossa tradição cristã, havendo uma similaridade com Maria, a mãe de Cristo. Bastante sedimentados no imaginário de nossas crianças e adolescentes, bem como das(os) educadoras(es) em geral, esses significados ainda têm muito do que é simbolizado para a maternidade numa antiga canção sobre o tema, que era presença obrigatória nas homenagens das quais participávamos em nossa vida escolar, nas séries iniciais do ensino fundamental (da 1ª à 4ª série).

Andei por todos os jardins/ Procurando uma flor pra te ofertar/ Em lugar algum eu encontrei/ A flor perfeita pra te dar/ Ninguém sabia aonde estava/ Essa flor, mimosa perfeição/ Ela se chama flor mamãe/ E só nasce no jardim do coração/ Enfeita nossos sonhos/ Perfuma nossa ilusão/ Flor divina, eu suponho/ Faz milagres em oração/ Neste dia de carinho/ Quero senti-la no peito/ Inebriando minha alma/ Flor mamãe, amor perfeito! (Autoria desconhecida) 134

Esses enfoques perfeitos da figura materna são extremamente eficazes para a publicidade televisiva, pois, ao produzirem apenas significados positivos e enaltecedores, estimulam o desejo e até a obrigação de comprar algo que agrade às genitoras. Mesmo aquelas(es) que não têm recordações muito amenas da convivência com suas mães se sentem quase que coagidos a adquirir um presente. Não por acaso, o dia das mães foi instituído no governo de Getúlio Vargas, a partir de uma solicitação do setor comercial, gerando um movimento nas lojas apenas inferior ao do período natalino.

Figura 24: Amor perfeito

Porém, nem tudo foi idílico nos cartazes produzidos. Num deles (Figura 24), constava um grande coração vermelho, com os dizeres, “É gostoso dizer eu te amo”, referente a uma propaganda de chocolates, acompanhado de muitos outros corações desenhados. Continha, também, várias figuras de mães, todas bem vestidas e maquiadas, representando as classes média e alta, brancas (apenas uma delas tinha cabelo mais encaracolado e pele morena, indicando uma ascendência afro-brasileira) e em situações de visível alegria e contentamento. No mesmo cartaz, mais uma exaltação ufanista: “A dona do melhor sorriso”. Na parte inferior do cartaz, todavia, dois corações desenhados, mostrando dimensões 135

da maternidade que se enredam a todo momento: alegria, frustração, responsabilidade, indiferença, preparo, improviso, paciência, irritação, etc. Num deles, a frase “Mãe, te amo”; no outro coração, a frase, “Mãe, te odeio”(Figura 25).

Figura 25: Contradições maternas

Ambos os dizeres nos recordam que os processos de identificação maternos, num cenário socioeconômico e cultural tão iníquo e abrangente como o nosso, são marcados por ambigüidades merecedoras de análises mais aprofundadas e complexas.

Figura 26: Mediação feminina 136

Já num outro cartaz (Figura 26), elaborado por estudantes da 5ª série, em meio a figuras que retratam praticamente os mesmos significados para a maternidade, enfatizados no cartaz anterior, a frase “Mãe, o melhor presente é o conhecimento”, nos remete à mediação feminina na aprendizagem de saberes e práticas que podem ser importantes na formação das(dos) adolescentes.

Muitas(os) estudantes que participaram dos grupos focais salientaram a relevância de mães e pais mediarem as múltiplas interações dos filhos, como telespectadores, com as mensagens televisivas. Fizeram-no, ora pontuando a indiferença ou ausência dos responsáveis nessa tarefa, ora enaltecendo uma maior preocupação com esse aspecto. Uma aluna da 6ª série A, por exemplo, ressentiu-se da falta de diálogo no espaço-tempo doméstico referente a essas mensagens.

Eu acho que os pais às vezes não têm aquela coisa de ficar se abrindo com os filhos. Minha mãe mesmo e meu pai não chegam, não conversam comigo. Eu acho que está faltando isso também, ter uma convivência melhor entre os pais e os filhos, conversando e explicando melhor algumas coisas. Por exemplo, quando você está vendo alguma coisa ali, eles poderiam chegar e falar ‘ah!, filha, isso você não deveria estar assistindo agora’, ir te orientando. Pegando uns programas legais e assistindo com você.

Convém lembrar que, muitas vezes, essa postura dos responsáveis não é intencional, mas fruto, ou de uma falta de clareza da relevância dessas conversas mútuas, ou da dificuldade de estabelecer tal diálogo, uma vez que essa onipresença contemporânea da mídia atravessa de maneira desconcertante e perturbadora os processos de identificação das crianças e dos adolescentes, gerando desnorteamentos e perplexidades acerca das atitudes mais convenientes na educação familiar. Daí, o sentimento de impotência, muitas vezes, para interferir mais detidamente nessas interações dos filhos com a TV, ou a adoção de um discurso moralista e repressor, de resultados duvidosos e oscilantes. 137

Sua colega de turma, ao contrário, ressaltou a participação dos pais nessa tarefa e disse como se sente mais segura com essa postura.

Eu acho assim, que tem vários pais também que não falam com os filhos o que deve fazer e o que não deve. Meus pais, se eu for assistir um filme que eles acham que não vai ser bom pra mim, eles me mandam dormir. Se eles vêem que esse filme vai ser bom pra mim, para abrir meu entendimento, para servir de alerta, eles botam para eu assistir na marra. Que nem jornal, passa várias coisas ótimas, alertando que vizinho levou o filho de carona e fez outras coisas... Aí meu pai e minha mãe botam para assistir isso, para eu ficar alerta, eu e meu irmão.

O professor de Matemática (02) narrou a sua vivência familiar, objetivando possibilitar ao filho, desde cedo, um discernimento qualitativo na programação da TV. A exemplo dos pais da aluna da fala anterior, sua esposa, que passa mais tempo com o filho, observa esse aspecto criteriosamente, dando-lhe a chance de construir critérios de seleção para os programas a que vai assistir.

Meu filho tem 4 anos, ele é fixo em televisão, direto. A minha esposa tá em casa, então ela geralmente programa na TV Cultura e SBT o que ele assiste. Ele gosta mais da TV Cultura. Então, se vocês forem ver os desenhos da TV Cultura, aquelas coisas bem infantis mesmo. [...] Quando tem cena de briga, ele fala, ‘mãe, tá passando coisa ruim agora’. Então, ele já tá aprendendo isso aí. Um beijo, aquela cena insinuante, então pra ele não tem nada de errado. Aí, minha esposa foi, explicou que não é pra idade dele ainda. Então, tendo um acompanhamento, ele já aprende na idade apropriada para aprender mesmo. Então, a gente assim, tem esse trabalho com dificuldade, né?, de, uma vez que a gente colocou no mundo, a gente cuidar. Eu tenho esse ponto de vista e digo isso, né?, é difícil hoje em dia você ter alguém, um homem ou uma mulher 138

dedicado, né?, mas a sociedade tá do jeito que tá porque também a família se desestruturou muito.

Já acentuamos no capítulo 2, quando analisamos a classificação indicativa, e na introdução deste item, com as considerações de Santos (2003), o quanto a globalização econômica atual, sob a ditadura do mercado e da intensificação do lucro, deteriora as condições de trabalho, com a flexibilização ou a perda de direitos sociais, interferindo na qualidade de vida no espaço-tempo doméstico, restringindo o convívio entre os seus membros e limitando as interações afetivas. A professora de Ciências lembrou bem o atravessamento desses fatores no cotidiano escolar, seja diretamente na vida das(dos) estudantes, ou através dos conteúdos televisivos, enfatizando igualmente as táticas de resistência desses sujeitos escolares diante de tantas carências e falta de perspectivas.

A gente tem muitos programas que mostram esses conflitos da família e aqui na escola a gente vê isso todo dia. Um dia desses eu tive uma discussão na sala sobre família, porque uma aluna tava chorando muito, porque a mãe disse umas coisas para ela, que ela não gostou. Então, na sala, as meninas viraram para mim e falaram: ‘professora, que ajuda essa aluna precisa?’ Tipo assim, de vocês, delas. Falei: ‘ela precisa agora de apoio da escola, ela não tem matéria, ela não tá sabendo, perdeu o rumo das histórias. Senta com ela, tenta organizar esse material, seja solidário dessa forma. Essa coisa de você na hora do auê ficar todo mundo em volta dela, daqui a pouco passa, faça uma ajuda, mas uma ajuda que vai surtir efeito’. Então, como que a dor entre os adolescentes, ela é trabalhada de uma forma assim interessante, porque eles estão vivendo todos esses conflitos, são muito iguais, porque as famílias estão com problemas, as pessoas estão tristes, estão estressadas, tão trabalhando muito, tá faltando dinheiro.

Presenciamos outras três situações, no cotidiano dessa escola, que respaldam esses movimentos de resistência diante de tantos infortúnios a que estão sujeitos 139

as(os) adolescentes das periferias brasileiras e as(os) educadoras(es) que trabalham com eles. Estávamos conversando informalmente com uma aluna da 7ª série no pátio, quando, em certo momento, ela nos confidenciou que o pai é dependente químico do álcool e já foi internado inúmeras vezes. Para enfrentar esse sofrimento, que não deve ser fácil, sobretudo para uma adolescente que demonstrava tanta inteligência e sensibilidade como ela, recorria ao seu diário, onde registrava todas as suas dificuldades e anseios mais íntimos, e a um grupo de três amigas da mesma série, inseparáveis, tanto durante as aulas, quanto no recreio, fãs incondicionais dos clipes musicais dos canais de TV aberta, como evidenciaremos adiante. Além disso, segundo ela própria, estava muito apaixonada por um aluno da 6ª série, o que a deixava contente, apesar dos problemas familiares.

Na outra situação, bem mais dramática e, infelizmente freqüente em muitas escolas públicas, uma adolescente da 8ª série, de 14 anos engravidou. Isso gerou uma série de movimentos docentes e discentes de solidariedade à aluna e de discussão da temática “gravidez na adolescência”, em diferentes contextos da vida escolar. Numa reunião de pais, por exemplo, a mãe dessa aluna fez um depoimento das dificuldades que estava enfrentando com essa situação inesperada, ela que também enfrentou uma gravidez precoce. Os colegas não mediram esforços para apoiá-la, seja na condução dos estudos, seja na realização de um grande chá de bebê, no qual foram arrecadados inúmeros artigos necessários para a futura mãe e seu filho. Na sala das(os) professoras(es) também vivenciamos um momento desses. Ao chegarmos à escola para mais um encontro dos grupos focais, encontramos a porta desse compartimento escolar fechada. Quando a abrimos, ficamos um tanto surpresos, pois as(os) educadoras(es) estavam de pé ao redor da mesa e, nesse momento, a professora de Língua Portuguesa sugeria que fizessem uma oração de agradecimento e de pedido, citando algumas intenções, quais sejam, a recuperação e o retorno da diretora, que havia se submetido a uma cirurgia de emergência e reassumia naquele dia suas funções e a melhora do estado de saúde do cunhado do professor de Matemática, que estava muito doente. Além disso, citou os variados problemas enfrentados pelos discentes e suas famílias, a fim de que as(os) educadoras(es) tivessem muita força e coragem para apoiá-los minimamente, recordando também a satisfação pela nossa presença na escola, com a pesquisa, as aprendizagens mútuas que estavam ocorrendo nos encontros e em outros 140

momentos informais. Naquele dia não houve encontro, porque o aviso aos responsáveis de que as(os) estudantes sairiam mais cedo não foi confeccionado.

Ainda segundo a professora de Ciências, apesar de tantas contradições no espaço- tempo doméstico, as(os) estudantes manifestam o desejo e a necessidade da referência de apoio do grupo familiar, aspiram a vivenciar o carinho e o afeto com uma ou mais pessoas nessa esfera privada. Contudo, para a educadora, as abordagens televisivas sobre as problemáticas familiares são falhas, devido à unilateralidade e à superficialidade com que geralmente encaminham as situações mostradas.

Tem o sonho do amor, tem o sonho da família, que independente de você não ter, você quer. [...] Mas esse sonho é inerente nas pessoas, mesmo com o sofrimento, todo mundo quer amor, todo mundo quer ter filho. Você pergunta pra qualquer uma delas, elas querem ter, mesmo não tendo esse entendimento da família, porque a família era incompleta. Você chama a mãe, a mãe quer justificar as suas falhas pro filho e não age como mãe. Então, é muito complicado trabalhar na escola essas questões familiares e eu acho que a televisão deixa a desejar também. Ela mostra, mas ela não encaminha essas histórias; ela coloca, ela não finaliza isso, ela não finaliza essas discussões, ela não coloca um terceiro pra poder interagir ali, pra poder ajudar, pra poder mostrar.

Assim, em que pesem tantas situações conflituosas e difíceis no espaço-tempo doméstico, como agressões físicas e verbais, abusos sexuais, dificuldades variadas para estabelecer o diálogo entre os membros da família e muitos outros desencontros, tanto no plano objetivo, quanto no subjetivo, e apesar de a TV geralmente dificultá-las mais ainda, não faltam ocasiões, no cotidiano dessa escola, em que, impelidos por tantos dramas discentes e docentes, os seus sujeitos concretizam a solidariedade e o apoio mútuo para enfrentá-los, apostando que, na família e na escola, é possível desejar e buscar a prática da amorosidade, da interlocução, do companheirismo. 141

Com arranjos muito plurais e complexos, as famílias brasileiras desenvolvem formas bastante variadas de lidar com os conteúdos televisivos dentro de casa. O mesmo professor de Matemática (02) que se manifestou anteriormente reconheceu o quanto é instigante para mães e pais lidar com essa e outras questões na educação dos filhos.

O que eu vejo nessa questão de criação é que é muito difícil. A gente hoje é pai, já foi só filho, então, era tudo mais fácil, né? A gente fica naquela questão de querer proteger, querer se guardar, de não acontecer as mesmas coisas que a gente já viveu, mas a questão é despertar a consciência mesmo, desde a pequena infância, desde a meninice.

Em alguns casos, o controle familiar é rigoroso, como nos relatou um aluno da 6ª B. “Minha mãe tira a tomada do gancho lá e coloca tipo um negocinho assim perto da tomada... Aí eu não posso assistir e não vou ligar a televisão”, declarou. Seu colega de turma vivencia a mesma censura doméstica, principalmente em relação àquelas atrações televisivas consideradas violentas. “Minha mãe me controla até demais. Ela não gosta que eu assista filme de muita violência, de porrada, essas coisas...as outras coisas ela deixa eu assistir”.

Nem sempre, todavia, o governo familiar nesse âmbito do conteúdo da TV surte o efeito desejado. Certa vez, ao chegarmos à escola, encontramos a professora de Ciências no corredor, acompanhada por um grupo de alunas da 7ª série, folheando uma revista totalmente dedicada ao conjunto teen, NX Zero. Paramos para conversar com elas e perguntamos onde tinham conhecido esse grupo musical. Uma delas nos respondeu que foi no canal 44 da TV aberta (MIX TV), cuja programação é repleta de clipes musicais. As quatro alunas, muito simpáticas e, segundo a professora de Ciências, consideradas excelentes nos estudos, demonstravam visível deslumbramento ao se referir ao conjunto. Convidamo-las, então, para uma conversa mais reservada, na qual uma delas revelou as artimanhas que realiza para driblar a vigilância, sobretudo do pai, que não vê com bons olhos o seu gosto por esse grupo. Isso ocorre, de acordo com a aluna, porque ele é 142

evangélico, adepto da Igreja do Tabernáculo, uma denominação religiosa em evidência midiática na época, devido à construção de uma espécie de condomínio fechado para os membros, num bairro de Vitória, uma vez que acreditam estarmos vivendo no ocaso dos tempos, com o conseqüente retorno de Cristo à Terra. Assim, devem se isolar do restante da sociedade, vivendo numa comunidade, preparando- se para esse momento. Quando se referiu à religião do pai, a aluna, um tanto constrangida, se apressou em afirmar que ele segue uma tendência dentro da Igreja que não aprova essa prática. Em seguida, ao justificar a rejeição paterna à sua preferência musical, explicitou a forma como burla essa inflexibilidade.

Eu gosto muito do NX Zero. Eles são uma banda de rock e eu gosto por causa das músicas do rock lento. Às vezes, tem umas músicas com muito palavrão, mas é legal [...]Meu pai não gosta muito que eu ouça o rock, mas a minha mãe é bem liberal com as coisas comigo, o tipo de música que eu ouço. O funk também não dá, mas eu ouço. O NX Zero, meu pai quebrou o meu CD, porque ele não gosta que eu ouça. Ele já tinha brigado comigo, quebrou meu CD, eu, teimosa, fui lá e gravei outro. Tá lá em casa, eu ouço pouco, não igual eu ouvia o outro, mas tá lá, né?! Ele fala que o rock veio do inferno, é isso que ele fala. Só que depende do rock também. Aqueles rocks internacionais que os caras comem cabeça de rato, ficam falando um monte de coisa em uma língua endemoniada lá... então, eu não curto isso não. Eu curto mais o rock lento, é por aí...NX Zero mesmo.

E no âmbito da sexualidade, como as(os) estudantes percebem os conteúdos televisivos e reagem às restrições e/ou liberdades concedidas pelos responsáveis no espaço-tempo doméstico? Um aluno da 7ª A lembrou um aspecto crucial que praticamente passou despercebido nas outras falas discentes, qual seja, a responsabilidade ética das emissoras de TV nos momentos em que veiculam imagens, diálogos e situações pertinentes à sexualidade. 143

Acho que as pessoas hoje em dia têm que ter mais respeito [...] A pessoa que tá lá na televisão, poxa, vai ter que dar o exemplo, vai ter que mostrar pras pessoas que não é isso, que não é só sexo assim. Tem que ajudar, porque hoje em dia os adolescentes, menina de 13 anos engravida. Isso influencia, entendeu? Poxa, então, eu não posso fazer isso de qualquer jeito, entendeu, não é assim as coisas né?, a gente tem que ajudar, não atrapalhar.

Seu colega de turma acentuou o que considera uma repercussão ruim dessa abordagem geralmente apelativa e banal do sexo realizada pela TV, a gravidez na adolescência, que se tornou um grave problema de saúde pública em nosso país.

Aqui na escola tem uma menina que eu acho que tem 12 ou 13 anos, que tá grávida. Ela já tá quase ganhando, vai nascer nesses dias. Então, acho que foi influenciada por ela também [TV], tipo, vou dar uma rapidinha ali com o menino, [...] tava tipo no cio.

Outro aluno complementou, enfatizando que a prática sexual sem os devidos cuidados pode acarretar problemas mais graves ainda, como as doenças sexualmente transmissíveis. “Foi uma gravidez, pior se fosse uma doença, né?, que é muito mais pior, né? Então, eu acho que tem que pensar, né?”, concluiu. Reforçando essa ascendência da TV sobre o comportamento sexual, dois alunos da 6ª A se posicionaram da seguinte forma: o primeiro, considerando que “essas cenas de sexo influenciam muito. Tem alguns homens que fazem sexo sem camisinha e pegam o vírus HIV e nem sabem”; o segundo, pontuando a dubiedade desses enfoques televisivos, que prejudica as(os) adolescentes e, simultâneamente, deixa- os de sobreaviso quanto aos perigos de uma prática sexual inconseqüente.

Eu acho que ao mesmo tempo influencia e ao mesmo tempo te dá alerta também. Porém, você deve saber qual lado você deve seguir, se é para praticar o bem ou para praticar o mal. 144

Eu acho que influencia muito, mas ao mesmo tempo é um alerta para todos nós.

O que não pode ou não deveria ocorrer é as abordagens sexuais da TV atravessarem o espaço-tempo doméstico à revelia de uma análise conjunta entre filhos e responsáveis, relativas aos seus possíveis significados. Foi o que ressaltou outra aluna dessa turma.

Eu acho que tem alguns pais que escondem a realidade dos filhos. Tem muitos pais que não falam abertamente com os filhos o que o mundo oferece e o que o mundo não oferece. Tem pais que têm vergonha de falar, que esperam eles crescerem para aprender. Eu acho que tem que começar desde a idade certa para começar a falar. Se a mãe e o pai não ensinam, e ele não aprende, o mundo ensina pior.

De fato, exemplos não faltam em qualquer escola pública, que é o espaço-tempo que nos interessa aqui, de situações inesperadas, surpreendentemente ruins e até cômicas, vividas na esfera familiar, decorrentes de tantos desencontros e silenciamentos na educação sexual das(dos) adolescentes. Praticamente toda(o) educadora(dor) tem alguma história para contar nesse campo das experiências humanas.

Certa vez, estávamos na sala das(dos) professoras(es), quando a professora de Ensino Religioso nos relatou uma situação muito engraçada e ao mesmo tempo desconcertante para a família, intimamente relacionada à televisão. Essa educadora também é pedagoga há 18 anos na rede municipal de Cariacica e, na outra escola em que atua nessa função, havia uma aluna cursando a 8ª série, permanentemente vigiada pela mãe, principalmente naqueles momentos de namoro com um rapaz de 18 anos. Num trágico dia para essa senhora, eis que surge uma “novidade”: a filha estava grávida! Atônita e perturbada com o acontecimento, a mãe se dirigiu à escola e conversou com a pedagoga, em busca de uma explicação acerca de como e quando o neto foi gerado. Com muita habilidade, essa educadora conversou longamente com a aluna e “matou a charada”! Enquanto sua mãe estava na sala, 145

absorvida e atenta à telenovela, a adolescente e seu namorado praticavam as sugestivas e excitantes cenas sexuais divulgadas nesse gênero televisivo. Mas nada com afobamento ou improviso, pelo contrário, tudo feito confortavelmente na cama de casal dos pais dessa aluna!

Sem dúvida, a penetração social da TV entre diferentes classes e grupos não pode ser responsabilizada sozinha pela crescente erotização de crianças e adolescentes, nem pela trivialização sexual que presenciamos nos comportamentos, atitudes, verbalizações, tanto na sociedade, quanto nas escolas. Porém, acreditamos que ignorar sua influência nesse fenômeno é contraproducente.

Rompem-se formalismos, regras, normas, com muita naturalidade, nas formas de vivenciar a sexualidade. As carícias e performances insinuantes nos espaços- tempos públicos e até a socialização desmesurada das intimidades sexuais são corriqueiras nas escolas. A professora de Ciências salientou esse aspecto.

Eu vejo nos relacionamentos deles, né?, vejo os alunos no dia- a-dia, a forma de se vestir, a forma de abordar um ao outro. É com tamanha liberdade, não existe nenhum tipo mais de cerimônia pra dizer eu quero, eu gosto, eu vou fazer, eu não vou. A questão da sexualidade também. Eles não têm nenhum pudor, nenhuma vergonha de dizer eu transo, eu transei ou eu fiquei. Pra eles, isso daí é comum, não existe nenhum tabu que vai fazer assim algum tipo de cerimônia pra falar dessas coisas, desses assuntos. Então, se uma aluna é, há pouco tempo tinha uma aluna aqui na escola que correu o risco de estar grávida. Todo mundo sabia, pra ela aquilo ali não precisava ser escondido. Ela ter relação sexual também é uma coisa que não precisa estar mais escondido. Eu posso dizer que antes a gente né? preservava, até o primeiro beijo, o primeiro namoro, tinha todo um ritual, né? Hoje em dia eles não têm esse rótulo. 146

Por outro lado, de acordo com essa professora, há uma contradição nesses comportamentos estudantis, pois, nos momentos em que se aborda e se abre uma discussão acerca dos múltiplos aspectos emaranhados na sexualidade durante as aulas, ocorre uma retração, ou seja, poucas(os) manifestam abertamente suas dúvidas, inquietações e perspectivas sobre essa temática. Isso exige muita habilidade docente, no sentido de criar um clima propício ao debate franco.

Eles se envergonham, é diferente, por exemplo, eu dizer que eu transo, eu posso dizer. Mas, se eu for falar, abordar essa transa, ou abordar o corpo dela, de uma aluna dessa, questionar alguma coisa sobre o corpo dela, sobre os órgãos sexuais, sobre a menstruação, sobre o ciclo menstrual, ela se intimida. Então, falar, eles podem falar que transam, tudo, por exemplo, transar com um cara lá ela pode me contar. Mas,se eu for dizer pra ela que no meio disso existe um ciclo menstrual, se ela conhece os órgãos dela, se ela conhece o próprio corpo, se ela já se tocou, ela morre de vergonha. Então, ela pulou uma etapa, que é o conhecimento do corpo. [...] Então, é um contra-senso à sexualidade, é um negócio incrível. Aí, o que eu faço, esse assunto requer intimidade, porque intimidade você não consegue abordar. Agora eu sei que posso entrar com eles [no assunto], antes eu não podia, porque eu vou falar, eu vou falar, e eles não me ouviam. Mudaram isso, mas é um contra-senso. Eu posso transar com um cara lá, te contar, ‘eu transei’, corro o risco de estar grávida, mas se eu tocar nessa intimidade, ela tem vergonha. Então, por onde passa isso? Pelo próprio conhecimento do corpo.

Outra problemática que gerou bastante debates entre as(os) educadoras(es), foi a potencialidade e/ou limites da família e da escola na formação ética das futuras gerações. Num dos encontros dos grupos focais, lemos conjuntamente uma crônica sobre a agressão física de quatro jovens cariocas de classe média-alta contra uma doméstica e uma garota de programa na Barra da Tijuca, fato que mereceu ampla cobertura da televisão e intensos debates na mídia em geral. A coordenadora da 147

escola se mostrou impressionada com a declaração do pai da doméstica violentamente agredida: “eu tenho muita pena deles, porque eles têm tudo e estragaram a vida deles”, sem externar sentimentos de ódio ou rancor. Considerou também exemplar a postura do pai de um dos acusados, ao afirmar que o filho teria que pagar pelo que fez. Concluiu sua fala, acentuando que

nós, como professores, educadores, temos que trazer para as salas de aula e tá discutindo com os nossos alunos. A gente tem a mania de dizer assim: ‘lá no Rio de Janeiro, lá não sei aonde’. Não, é aqui, Região Sudeste, são vizinhos nossos.

A diretora da escola pontuou as dificuldades de articular os currículos prescritos com as mensagens televisivas e os problemas e obstáculos enfrentados pelas(os) estudantes, tanto em nível local, quanto nacional, criticando o formalismo e a indiferença de muitos docentes que não assumem também o papel de incorporar, em seus conteúdos disciplinares, essas realidades. Destacou, assim, que a sugestão dada pela coordenadora esbarra, em certa medida, na falta desse compromisso profissional, para se concretizar.

A professora tava falando aqui que ela trabalha muito cedo falando sobre a família e tal, e uma outra professora chegou, da mesma disciplina, e falou, ‘eu tô trabalhando a história das religiões e a 8ª série não quer nada’. Eu falei :“por que você não usa o contexto deles no seu conteúdo ou então muda o assunto?’ ‘Não vou sair fora do meu conteúdo, não’, ela respondeu. Falei, então, que a 8ª série é o último ano deles com a gente, eles tão com a sexualidade à flor da pele, meninas estão grávidas, só falam nisso. Ela disse assim: ‘eu não sou mãe deles’. Aí, eu falei assim: ‘você é educadora’. Isso me deixa muito triste, sabe por quê? Porque, enquanto você rema, você quer remar pra frente, as pessoas querem remar pra trás, tipo assim ‘eu só vou lá, vou fazer meu papel, vou dar minha aulinha, jogar meu conteúdo no quadro e tô zarpando. No final do mês, meu dinheirinho tá lá na conta’. Isso me deixa 148

muito triste, porque muitas vezes as pessoas não olham o lado do aluno.

Simultâneamente, reconheceu a abrangência das demandas que são endereçadas à escola, exigindo múltiplos papéis das(os) educadoras(es).

Então, pra gente, enquanto escola, é muito complicado, porque a gente não é só professor. A gente tem que ser amigo, tem que ser mãe, tem que ser dominador até às vezes. Então, é muito complicado. Eu vejo a escola assim, como uma coisa muito complexa, a nossa função é muito complexa, não sei se os colegas compreendem a idéia.

Nesse sentido, a professora de Língua Portuguesa lamentou os obstáculos de ordem objetiva, como o número excessivo de aulas por docente, o calendário escolar sem espaço-tempo adequado para planejamentos coletivos, enfim, o ativismo que sobrecarrega todos os sujeitos dessa instituição, obstruindo em muito a elaboração de um projeto pedagógico coletivo. Ainda assim, as(os) professoras(es) e a escola têm um valor significativo para as(os) estudantes; em que pesem essas fragilidades que comprometem o êxito do trabalho educativo, elas(eles) encontram ali, geralmente, um apoio maior do que no espaço-tempo doméstico, ressaltou essa professora.

O que mais me entristece é que a escola não pára, não tem parado pra fazer um projeto de aprendizado. Todo dia eu falo isso, todos os dias em todas as escolas. Às vezes o aluno, ele tem a gente. Sabe o que um aluno falou comigo ontem? (me desculpe, José Américo, mas eu falo). ‘Professora, mas eu vou sair cedo de novo amanhã?’ [nos dias dos grupos focais, os estudantes eram liberados mais cedo] Eu falei: ‘não’. Aí ,ele: ‘meu Deus do céu, eu tô ficando triste com esse negócio de sair cedo’. Aí, você olha, não é que ele queira estudar, o lugar mais agradável que ele tem, com todos os problemas, os atropelos, ainda é a escola, com toda a grosseria, 149

principalmente. Eles ainda, as pessoas que eles têm pra conversar somos nós. Então, de fazer um projeto, de conversar e ajudá-los, eles só têm a gente mesmo, né? E a gente fala, fala, fala, mas não paramos pra fazer esse projeto. [...] Você percebe ,com a diretora, que há essa necessidade de tá com os alunos, mas a escola tendo abertura pra gente fazer esses projetos, parar e fazer mesmo, sabe? Então, o que eu posso ajudá-los? Qual a gotinha que eu posso ser nesse oceano?

O professor de Matemática (02) complementou a fala da colega reforçando a necessidade de não secundarizarem as dúvidas e anseios das(os) estudantes, ainda que não estejam aparentemente relacionados às suas disciplinas. É proveitoso, na sua opinião, que analisem as questões que instigam as(os) alunas(os), sob diferentes perspectivas.

Pra 8ª série, o que a gente pode tá trabalhando né?, a 8ª série tem a sexualidade à flor da pele, eu acho que não pode deixar de se falar. Mas, assim, eu falo sozinho, individual, dentro do conteúdo que eu dei agora. Justamente todo mundo vai falar através dos valores que tem. Me perguntaram, por exemplo: ‘professor, é errado sexo antes do casamento?’ ‘Olha, pelo dia a dia, pelas programações que você vê na televisão e o contexto com que você convive, é certíssimo. Mas, agora, pelos meus valores cristãos, é errado. E eu vivo isso, infelizmente eu experimentei’. Aí, fui relacionando as minhas experiências e tal. Aí, eles se sentiram até mais confiantes pra fazer perguntas.

No âmbito das questões de gênero, a TV brasileira visibiliza vários significados para a masculinidade e a feminilidade, embora segundo os seus critérios, geralmente mais preocupados com a audiência e o conseqüente retorno comercial, do que propriamente com a tarefa de informar e formar de maneira responsável e ética. Para a professora de Língua Portuguesa, as mensagens televisivas ainda reforçam sobremaneira uma cultura machista, ao explorarem o corpo feminino numa 150

perspectiva apelativa e desdenhosa . Por conseguinte, os meninos desenvolvem uma moral dualista, separando as meninas em duas categorias: as “direitas” e as “descartáveis”.

Entre os meninos não mudou nada, as meninas ainda levam o mesmo apelido de corrimão, de sabonete, e eles ainda olham muito bem quem eles beijam na boca só por beijar e quem eles querem ficar pra ter um compromisso, um pouco ficar mais, entendeu? Tem aquela que pra ficar mais, pra levar ao cinema, mostrar pros colegas, é uma, e aquela que beija, assim, todo mundo, que faz fila, é outra. Não mudou absolutamente nada! Eu converso com eles, eu vejo os textos deles sempre falando isso, que é o maior sabonete, o maior corrimão, alça de caixão [risos], inclusive os mesmos nomes de quando eu era da idade deles. [...]. Os homens não mudaram um milímetro, e as mulheres se perderam tentando achar um lugar ao sol, e foram sem roupa e não levaram protetor solar nem nada [risos].

A julgar pela forma como são abordadas situações e fatos envolvendo mulheres e homens famosos na mídia como um todo, especialmente a TV, conclui-se, sem muita dificuldade, que o sexismo ainda prevalece. Basta ver a divulgação obtida pelas dançarinas rotuladas com nomes de frutas. Até onde temos conhecimento, eram a melancia, a jaca, o morango, o melão e a maçã. A “mulher melancia”, inclusive, fez enorme sucesso num ensaio para a revista Playboy, obtendo grande visibilidade também na TV. Atentos que somos às cenas do cotidiano, ouvimos, numa academia de ginástica que freqüentávamos, três mulheres comentando o ensaio fotográfico. Ao ser indagada se havia visto a “performance” da “mulher melancia” na revista, uma delas afirmou, em tom bem humorado, que só se interessaria se fosse o “homem cenoura”! Em que pese o fato de o corpo masculino já ser bastante explorado na TV, ainda estamos longe de um equilíbrio. É como afirmava o título de uma reportagem sobre o assunto no The New York Times (2008): “Homens são homens, mulheres são caça”. Segundo Ribeiro (2004, p. 196), ocorre um pool entre as novelas e as revistas eróticas masculinas, beneficiando ambas e alimentando o imaginário masculino brasileiro. Argumenta, também, que, 151

juntamente com o corpo exibido, se divulgam os cuidados e reparos estéticos, para atingir tal resultado, num entrecruzamento do processo com o produto. “Deixa de haver a vergonha de ser objeto, ou melhor, ser objeto deixa de ser sinônimo de ser coisa. A mulher nua se orgulha da nudez (desde, claro, que bela, que televisualizável)”.

As cenas que observamos na escola, durante os festejos do dia da criança, indicam que a erotização acentuada que se verifica entre crianças e adolescentes, foco de inúmeros estudos acadêmicos e assunto freqüente de conversas entre educadoras(es), se evidenciou mais no grupo feminino, reforçando a opinião da professora de Língua Portuguesa, pelo menos no campo sexual, de uma maior exposição do corpo da mulher. Entre as muitas brincadeiras realizadas no pátio, com duas camas elásticas e jogos variados, as(os) alunas(os) tiveram a liberdade de organizar números de danças para apresentação no refeitório. Lamentavelmente, as fotos que registramos desses momentos foram deletadas pelo computador, mas vamos narrá-las, pois foram ricas de indícios da presença televisiva no imaginário e nos comportamentos estudantis.

Num dos números musicais, alunas da 5ª série dançaram ao som da música Adoletar, interpretada por Kely Key, com movimentos corporais bastante insinuantes. Essa cantora ganhou notoriedade após um envolvimento afetivo com o não menos requebrante Latino, intérprete da sexual Festa do apê, enorme sucesso massificado nas estações de rádio e de TV. A 8ª série apresentou três números de dança, o primeiro ao som da música Estátua, cantada por Xuxa, elevada à condição de diva de baixinhos e baixinhas pela rede Globo; o segundo, embalado por um sucesso da banda RDB (Rebeldes), êxtase entre crianças e adolescentes brasileiros, em grande parte elaborado pelas telas do SBT. Na última apresentação, novamente Kely Key, dessa vez com a insinuante Cachorrinho, hit na TV e rádio, cujo refrão, “Venha cá, que agora estou chamando, vem meu cachorrinho, a sua dona tá mandando”, foi cantado em uníssono por todas(os) as(os) estudantes. Nas duas últimas apresentações, foi nítido o apelo erótico, não só da coreografia, como também da maquiagem e do vestuário, focados majoritariamente nas meninas. A única exceção ficou por conta de um aluno dessa série, que corporificou o personagem principal de Cachorrinho. O último número musical foi protagonizado 152

por um casal de adolescentes da 5ª série, ao som de Embranado, sucesso italiano da trilha sonora da novela N. Extremamente performáticos, os dois maquiaram os rostos caprichosamente e impressionaram a todas(os) pela concentração com que se apresentaram.

O professor de Matemática (01), na condição de pai de duas filhas, reforçou a opinião da sua colega de Língua Portuguesa, acentuando que, embora a TV apresente algumas situações diferenciadas, ainda prevalece uma ambivalência entre a educação de meninos e a de meninas.

Veja bem, como professor, né?, a gente tem vários contatos. Como pai, eu tenho duas meninas também, e vejo que ainda existe a diferença ,sim. Tratamento com menina é um, tratamento com menino é outro, apesar de que muitas vezes a televisão tenta mostrar de forma diferente. Aí, você vai falar: ‘mas como você sabe, se não tem menino?’ Mas tenho sobrinhos, e meninos ainda podem mais. Nós vivemos ainda numa sociedade machista, por mais que tentemos estar igual, não tá não! [...] A menina hoje tá mais solta, vai pra festa sozinha, talvez alguns anos atrás não iria, mas os pais ainda se preocupam mais com as filhas, pela situação de violência, não é mais a preocupação de virgindade ou de beijo.

Essas dicotomias para os significados de ser homem e ser mulher, na sociedade, nos recordam uma música de Chico Buarque de Hollanda, chamada Umas e outras, na qual compara a vida de uma beata com a de uma prostituta, ambas muito infelizes, “enjauladas” dentro de estereótipos e padrões de identidades rígidos e cristalizados. A primeira, devendo ser reservada, discreta, passiva, dependente, praticante atenta de ditames moralistas, para não ficar “mal falada”; a outra, “atirada”, sedutora, amante insaciável, expansiva, desinibida, sempre pronta a satisfazer os prazeres masculinos mais íntimos. O autor conclui que ambas “se cruzam pela mesma rua, olhando-se com a mesma dor”. Nada mais reducionista, parcial e opressivo, visto que os processos de identificação da masculinidade e da feminilidade na sociedade contemporânea são múltiplos, enredados, acêntricos. 153

[...] homens e mulheres não se constituem, apenas, por suas identidades de gênero, mas também por suas identidades de classe, de raça, de etnia, de sexualidade, nacionalidade, idade...Homens e mulheres são, ao mesmo tempo, muitas “coisas”. As várias identidades podem construir solidariedades, cumplicidades e oposições que atravessam os gêneros; conseqüentemente, a concepção de uma condição masculina dominante e de uma condição feminina dominada só pode ser compreendida como uma simplificação (LOURO, 2003, p. 86).

Os conteúdos televisivos são ambíguos nesse aspecto; por um lado, cedem muitas vezes a uma abordagem das questões de gênero, raça e sexualidade que ignora esses entrecruzamentos, silenciando uma gama de situações, contextos e formas de ser e existir; contrariamente, visibilizam outros significados para ser homem, ser mulher, ser negro, ser pobre, ser idoso, etc., que estimulam o respeito pelas diferenças. A professora de Ciências (02) exemplificou essa segunda forma de abordar os processos de identificação na TV, com o casal homossexual, retratado sem caricaturas ou estereótipos na novela Paraíso Tropical.

Eu acho que, na televisão, uma coisa que tá acontecendo nas novelas, é que há um tempo atrás até explodiram um shopping em Torre de Babel porque tinha duas mulheres homossexuais. Aí, parece que teve pressão, acabaram explodindo o shopping pra matar as mulheres. Quando eram homens que eram homossexuais, eles se travestiam, eles tinham que parecer mulher, isso é uma coisa que eu sempre questionei, por que o homem que tem uma outra opção, ele tem que se vestir de mulher? Ele não é mulher, ele é um homossexual, né? Aí, agora a novela tá colocando um casal de homens, aí a minha filha fala assim: ‘meu Deus, olha, mãe, a cara deles, que lindos que eles estão’. Dois homens bonitos, bem sucedidos [...]. Parece que eles tão querendo mostrar como, dependendo da opção do casal, que a coisa é normal, que você é o que você é. Então, você faz isso, diz na sua testa o que você é. E eles botaram uma pessoa assim, eles são contidos, mas não são contidos no sentido de, sabe, ficar enrustido, porque eles 154

fazem carinho um no outro, eles se relacionam, igual a gente faz normalmente.

A professora de Língua Portuguesa questionou o termo “opção” usado por sua colega para a homossexualidade. Pontuou igualmente o espaço dado pela TV para as diversas formas de vivenciar essa orientação e a relevância da escola nos processos de identificação do indivíduo, enquanto lugar onde se percebem essas e outras diferenças.

Não existe opção sexual, você nasceu pra ser mulher, você nasceu. Então, a coisa mais errada que alguém pode dizer em relação ao homossexualismo é dizer opção. Ninguém opta pra ser marginal, ninguém opta pra estar à margem de nada. Eu não optei por ser negra, se eu pudesse nascer no Brasil, com modelo de beleza européia, eu teria 1,80m e olhos azuis. Então, ninguém opta. A televisão mostra a diferença que há dentro do homossexualismo, há uma série de diferenças, né? Eles são classificados das mais diversas formas: uns são drag queens, outros são travestis, outros são o que não sei lá, não sei o que. [...] É difícil demais na adolescência até ele se aceitar, até ele perceber. Ele percebe isso na escola, é o primeiro lugar que ele percebe realmente. A escola é o lugar que você percebe que é diferente de todo mundo. É o lugar que tem festa de pai, você percebe que não tem pai, é um lugar que tem família, que você percebe, ‘não tenho família ou tenho’, é o lugar que você percebe, ‘sou pobre, sou rico, tenho isso, tenho aquilo’. Na escola, você percebe, ‘poxa, os meus colegas gostam de garotinha, eu vejo bonito o meu colega, se eu pudesse, eu ficaria com ele, que que é isso?’.

De uma maneira geral, os posicionamentos das(dos) alunas(os) fizeram um contraponto em relação às considerações das professoras. Uma aluna da 7ª série A, por exemplo, ao analisar o trabalho do ator Bruno Cagliasso, interpretando um 155

homossexual na novela América, nivelou essa orientação sexual com problemas considerados doenças, como a dependência química.

Eu acho que é o trabalho dele, né? Se ele aceitou ser ator, ele tem que fazer o que pedirem lá, drogado, alcoólico, homossexual...É o trabalho dele, eu acho que ele tem que atuar. Se eles falarem bem assim: ‘ah, você vai ter que ser isso’, ele tem que ser isso.

Sua colega de sala foi mais explícita, fundamentando-se no discurso religioso para rejeitar a exibição, na TV, dessas temáticas, bem como de cenas correlatas.

Eu acho que não, não devia ser mostrado. Deus fez o homem e a mulher, o homem pra mulher e a mulher pro homem. Aí, é como se a TV tivesse influenciando a pessoa a ser...Entendeu? A experimentar... É isso, eu acho que não deveria ser mostrado não, como eu acho que não foi.

Outra aluna da 6ª série A também condenou a divulgação de relacionamentos homossexuais na TV, considerando-os maus exemplos para as novas gerações, práticas a serem evitadas.

Então, eu acho que isso influencia, sim, porque alguns jovens vão muito pelo que a televisão mostra, o que a televisão indica. Que nem esse casal de gays que tem agora em Paraíso Tropical, que eu não assisto muito porque indica muitas coisas erradas. Aquele casal de gays lá, assim, eles não falam muito, mas o jeito deles já mostra, entendeu? Assim... coisa errada.

O professor de Matemática (02), que é evangélico, baseou-se também nas interpretações que faz das narrativas bíblicas para desaprovar tanto a exibição televisiva quanto a prática da homossexualidade, polarizando, de um lado, a verdade inquestionável dos escritos sagrados, sempre no singular, e, de outro, as 156

pesquisas científicas, que problematizam os discursos religiosos nessa esfera da moral e os reconhecimentos jurídicos pertinentes à questão.

O respaldo que eu tenho não é na ciência, porque a ciência vai comprovando muitas coisas que estão escritas, né?, na própria Palavra. Em relação a isso, só há uma condenação na Bíblia, a Bíblia realmente condena. Condena no Velho Testamento e no Novo Testamento a posição de homossexuais. Então, eu acredito nisso, eu acredito na Palavra; se eu não acreditar nesse ponto também, eu rasgo a Bíblia e não acredito mais nela. Então, eu tenho essa posição clara, que, embora os outros tão querendo botar leis pra casar, aquelas leizinhas, é inevitável que o mal cresça, no sentido de fazerem leis favorecendo essa questão também. Mas eu, particularmente sou contra, não particularmente porque escolhi, porque essa é a Palavra. Agora, não tem uma explicação científica, porque nem o próprio cientista tem, né? Agora, se o próprio Deus fez homem e mulher, eu não sei o que aconteceu pra se desdobrar na questão do homossexual, embora a gente não tenha uma explicação científica, né?

No âmbito das questões étnico-raciais, as opiniões, posturas e comportamentos registrados se diversificaram. A professora de Língua Portuguesa ateve-se à questão do quantitativo de afro-descendentes na programação da TV, o qual, no seu ponto de vista, fica muito aquém do justo, mais para atender exigências legais, que, na verdade, não existem. Num país onde parcela considerável da população tem ascendência negra, essa visibilidade televisiva ainda é restrita à musica, pontuou.

Eu vejo assim, eu analiso a questão da proporção. Em termos de proporção, eu acho que há uma minoria de negros na televisão. Onde tem mais negro na televisão é na música. [...] Agora, quanto ao jornal, por exemplo o telejornal, há uma minoria. Se você observar, assim, em termos de quantidade, parece que eles estão até seguindo uma lei que é obrigado a 157

ter um negro numa propaganda, ter um negro em cada lugar. Então, parece que as emissoras seguem isso, um mínimo de negros possível, porque é preciso ter, é uma ordem, é uma lei. Mas, se eles pudessem, acho que substituíriam por branco. E tem que ser muito bom.

O professor de Inglês concordou com a colega nesse aspecto, mas salientou que os próprios telespectadores valorizam e apreciam mais o padrão estético hegemônico, de matriz branca e européia, não querendo ver aquelas(es) que fogem a esse modelo.

Eu penso também na proporção. A proporção de população negra no país não corresponde à proporção de negros nas novelas, principalmente no telejornalismo. Novela, agora a gente está começando a ver, acredito que por causa da lei... nem sei se por causa da lei, também vou defender um pouco a televisão. Acho que as próprias pessoas não querem ver o negro lá, entendeu? Porque a televisão trabalha com a imagem, a imagem daquilo que o pessoal quer, daquilo que o povo quer. Às vezes, talvez seja a própria população que queira ver pelo estereótipo que já existe de beleza européia. Outro dia, estava assistindo o programa Ídolos, que é um programa de música né?, de cantores, de calouros, e tinha um rapaz negro que cantava que todo mundo via que ele era o melhor. Cantava muito bem, era o melhor que tinha ali, e ele concorreu na final com uma moça branca e perdeu. Inclusive os jurados ficaram surpresos, a moça jurada até chorou, porque não era pra ele sair, todo mundo viu que ele era o melhor, mas como a eleição é feita pela população, a maioria foi pela imagem, com certeza, não só eu achei. Meu irmão estava assistindo e também achou, porque não foi o primeiro caso, tiveram outros, não na final, mas tiveram outros também que a gente foi reparando, que sempre os negros saíam, que nem chegavam na final e eles eram melhores mesmo, pra 158

música, pra cantar. Eles têm um timbre diferente, uma voz diferente, e eles não chegavam na final. Então, a gente tava reparando nisso, é um racismo inconsciente ou subconsciente, é uma coisa, assim, que não é declarada.

Esse mesmo professor acentuou igualmente a contradição que há entre o discurso e as posturas e ações concretas das pessoas, quando ainda se surpreendem ou se chocam, por exemplo, com o envolvimento afetivo entre brancos e negros.

É um racismo inconsciente, a gente fala muito... as pessoas falam muito, mas na hora de... da prática mesmo né?... é complicado... o casamento, por exemplo, quando tem um branco com negro, as pessoas sempre olham de lado, por mais que... não tem jeito, não tem jeito. Eu tenho uma colega que ela é loira e ela é casada com negro. Ela falou que qualquer lugar que ela vai... qualquer restaurante, o pessoal fica olhando e reparando, entendeu?, e pessoas negras também reparam. Então, é isso, acho que a televisão, ela trabalha com a imagem e os próprios jovens telespectadores, às vezes, não querem ver o negro lá.

A professora de História foi outra que considerou a presença dos afro-descendentes na TV ainda ambígua e insuficiente. Contudo, enfatizou que isso ocorre não apenas em relação a esse grupo social, mas, de modo geral, em relação a todas(os) aquelas(es) que não se inserem nos arquétipos construídos histórica e culturalmente pela ótica hegemônica.

A televisão, de modo geral, ela padroniza não apenas a questão da etnia, mas também com a beleza. Importantes são sempre aqueles brancos, loiríssimos que estão dentro do padrão, magros, altos, bonitos, e os negros, os asiáticos, os índios, normalmente, eles sempre são vistos com papéis secundários, jamais são protagonistas. Ultimamente, eles estão colocando assim... ‘o negro está conseguindo um espaçozinho 159

maior’. A gente vê isso principalmente em novelas, mas ele coloca o negro como o delegado, aquele político, agora morando numa favelinha, que consegue sair. Essa novela que está passando agora, Duas Caras, é o exemplo bem claro disso. Então, o Evilásio, que é o representante do afro- descendente e que está conseguindo aparecer. Mas vai aparecer como? Graças ao apoio de uma figura branca, um líder, um coronel líder de uma favela [Juvenal]. No mais, tem as negras belíssimas, porém, o que elas são? Ou são domésticas – as três que apareceram, uma consegue se casar com um ‘filhinho de papai’, um ‘mauricinho’, mas com toda aquela rejeição. Então, a mídia, infelizmente, mostra uma imagem que ainda quem tem a vez na televisão é o branco, é aquele que tem o padrão. A mesma coisa: ‘Ah!, é baixo, é gordo, é feio, só pode ser doméstico, só pode ser favelado, só pode morar em periferia’. Outra coisa, questão da cultura nas universidades: na universidade, você vê a – na universidade particular – quem que aparece naquela universidade? A única negra que aparece lá é a irmã do Evilásio, que é a Gislayne, porque o resto é uma universidade toda de pessoas brancas. E o ‘filhinho de papai’, que é o revolucionário, que também é um descendente de negro com o incremento de um ‘olhão’ azul. Mas na novela não fica muito claro se aquilo ali é lente. No mais, os papéis são sempre secundários e o preconceito parte daí. Na questão das novelas de época, a situação é ainda pior. Eles fazem questão de mostrar a pouca habilidade do negro, a capacidade dele sempre inferior, ele continua sendo o empregado doméstico. Pior ainda que nas novelas atuais, porque nas novelas atuais eles ainda dão uma ‘canja’ de vez em quando.

Em 2006, a Rede Globo exibiu, no horário das 18 horas, a novela de época Sinhá Moça, que foi alvo de algumas contestações do promotor do Ministério Público da Bahia, Almiro de Sena Soares Filho, para o qual os personagens negros eram representados com enorme passividade e subserviência em relação, por exemplo, à 160

heroina branca, protagonista da novela e contrária à escravidão. O promotor questionava também o modo simplista e enviesado como os quilombos eram mostrados (VEJA, 2006).

De fato, a presença de artistas negros nos papéis principais, foi bastante irregular ao longo da tragetória histórica das telenovelas brasileiras. Essa estréia ocorreu ainda em 1953, com o ator Arnaldo Lima, mais conhecido como Azeitona, na novela Os Anjos não têm Cor (TV Tupi-SP), que abordava a questão racial brasileira em seu enredo principal. Entretanto, demorou mais de uma década (1965) para que uma atriz negra voltasse a ser a protagonista de uma novela; foi com outra produção da Tupi, A cor da sua Pele (BRAUNE; RIXA, 2007). Desde então, atores do nível de Jonas Melo e Ruth de Souza ocuparam papéis coadjuvantes nas tramas televisivas. Assistimos certa ocasião, inclusive, a uma entrevista da atriz Ruth de Souza, na qual ela externava a sua mágoa pelo tratamento secundário que recebia da mídia em geral, pois nunca havia sido capa de uma revista de entretenimento. O preconceito nas telenovelas, no entanto, se estende igualmente aos povos nativos brasileiros, como salientou a professora de Ciências (02).

Uma outra coisa interessante também é com relação ao índio, o índio eu ainda não vi nenhum, nada de destaque. Também de novela, novela de época, por exemplo, a índia era chamada de “bugra” por muito tempo. Ela era “bugra” porque era filha de uma índia e quando ela começou a ficar bem respeitada na novela, ela mudou a aparência, ficou com aparência de madame. Então, ela acaba não mostrando alí também quem ela é.

No caso da publicidade, segundo essa educadora, o contexto não é muito diferente, pois a maioria dos modelos ainda são pertencentes ao padrão étnico-racial dominante, com mínimas presenças de negros, a fim de atender às exigências legais, que, na realidade, não existem.

Normalmente, como tem que ter os 30%, então, tem uns menininhos e tem um moreninho no meio lá. Tem que ter um 161

loirinho, um moreninho... Até porque hoje as pessoas estão cobrando mais. Então, às vezes, pode até ser uma forma de você discriminar a loja se ela não tiver. Na verdade, a grande maioria que compra não é europeu, e aí, nessas lojas de “povão”, é importante pra eles, acredito, que tenha essa visão de que: ‘Ó, seus iguais estão aqui fazendo propaganda’.

E as(os) alunas(os) da escola, como vêem essa questão? Conversamos com um grupo delas(es) e percebemos sentimentos e percepções diferenciados. Uma aluna negra da 6ª série, por exemplo, muito bonita de rosto, declarou não ser objeto de brincadeiras relativas à sua condição étnico-racial, mas pela sua estatura elevada, bem acima da média da turma. “Nem tanto pela minha cor, e sim pela minha altura. Rola brincadeira de mau gosto e eles ficam me chamando de tsunami, por causa daquela onda enorme, esses tipos de brincadeiras”, revelou. Quanto à presença do negro na televisão, emitiu opinião contrária: “Pra mim tem atores e atrizes que sofrem muito preconceito. Eu já vi uma atriz [não se lembrou do nome] que trabalhava na Globo, que saiu da Globo porque ela era negra”.

Outra aluna da 8ª série, de cor parda, considerou que a participação dos afrodescendentes nas atrações televisivas poderia ser mais expressiva.

Eu acho que os negros podiam ter uma presença maior nas novelas, porque é mínima. Na música a gente ainda vê mais negros, e o papel que eles pegam muitas vezes na televisão é sobre escravos. Então, a gente podia ver mais negros na televisão, porque, no Brasil, a gente não tem só brancos, a gente tem afrodescendentes também, e tem muito preconceito ainda no Brasil.

Quanto à escola, a aluna nunca vivenciou aí situações de preconceito e discriminação. “Comigo aqui na escola e nos outros lugares não, porque, como eu tenho amigos da minha cor e amigos mais claros que eu, comigo não tem isso. Eu também não vejo assim, não acho que tem preconceito”, pontuou. 162

Figura 27: Estéticas afro-descendentes.

Nas estéticas adotadas por alguns alunos afrodescendentes, o uso de adereços de forma mais discreta, ou em profusão, com brincos, pulseiras e anéis (Figura 27), pode revelar uma estratégia de auto-afirmação e de valorização da própria beleza, acompanhando, também, uma tendência visibilizada na TV, relativa, sobretudo, a cantores de pagode, funk e jogadores de futebol, reinventando, igualmente, à sua maneira, tais estéticas.

Essas posturas das(dos) alunas(os) não são, contudo, homogêneas, variando bastante o nível de auto-aceitação, assim como na TV são plurais os contextos da presença negra nos conteúdos produzidos. Um aluno da 7ª série, por exemplo, alto, magro e de tez muito negra, chamou a nossa atenção. A coordenadora da escola nos informou que era filho de um professor de Matemática, imigrante da Guiné Bissau, país africano de colonização portuguesa. Sua mãe também era professora de História e já havia trabalhado naquela unidade de ensino. Segundo a coordenadora, ela reclamava do relacionamento com as(os) alunas(os )e colegas de profissão, por se sentir discriminada (também era negra). Ficamos observando a postura daquele aluno nos corredores, durante o recreio e nas aulas de Educação Física, sempre bastante quieto, cabisbaixo, transmitindo-nos um sentimento de inferioridade expressivo. Certa vez, ele estava no corredor sentado e nos aproximamos para uma conversa, indagando-o acerca da percepção que tinha do negro na TV. Respondeu unicamente : “Vejo bem”. Insistimos novamente, 163

perguntando se não existia, na sua opinião, nenhum preconceito, ao que respondeu novamente com poucas palavras, timidamente e de cabeça baixa: “Não, tá tudo certo, não existe não”. Questionamos mais três vezes se ele não enfrentava nenhum tipo de preconceito, brincadeira, apelido na escola, obtendo como resposta apenas um “não”.

A postura desse aluno nos inquietou. Será que a sua condição de negritude acentuada, filho de um pai oriundo do continente tão estigmatizado na TV como sendo palco somente da pobreza, da fome, dos conflitos étnico-raciais, das doenças, filho de uma mãe ressentida pelos olhares depreciativos que as pessoas lhe lançavam, era internalizada com tanta naturalidade assim? Ou seria uma forma submissa de resisitir à dor de ser mais “diferente” do que as(os) outras(os) diferentes da escola? Ficamos pensando também na responsabilidade ético-política da TV e dessa instituição, no sentido de construir outros significados para a diferença na sociedade, que vão além da inferiorização (Figura 28), como na foto de uma senhora negra, representada com uma tarja preta sobre os olhos, vítima de bócio endêmico, provocado pela alimentação precária, que ilustrava um trabalho de Ciências afixado no corredor daquele estabelecimento de ensino.

Figura 28 – Inferiorização

Existe a tarefa sempre desafiadora, tanto para a escola quanto para a TV, de abordar e vivenciar a diferença, não como um fardo ou castigo que deva 164

necessariamente afligir e denegrir o ser humano, mas como um valor que nos enriquece mutuamente, que nos recorda que é na(no) outra(o) que nos completamos, que acumulamos aprendizagens.

Figuras 29 e 30: Aceitação das diferenças

Duas belas imagens que registramos de um trabalho de Artes sobre o grafismo indígena brasileiro, com mãos (Figura 29) e corpos (Figura 30) lindamente coloridos, nos provocam para a atitude de aceitação das diferenças. “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” (Caetano Veloso), mas a segunda sensação pode se sobrepor à primeira, a partir de um maior empenho dos sujeitos, instituições, governos e mídia, mediante o autoquestionamento e a cobrança social.

Por tantas polêmicas envolvidas nas questões de gênero, raça e sexualidade, abarcando modos heterogêneos e muitas vezes antagônicos de ser e estar no mundo, de produzir crenças, atitudes, convicções, significados, os conteúdos televisivos necessitam democratizar ao máximo as múltiplas vozes e leituras, os anseios e aspirações dos diferentes grupos sociais, geralmente silenciados e estigmatizados como anormais, patológicos, desviantes, perturbadores da ordem estabelecida por aquelas forças dominantes que os segregaram na condição de inferiores, de sujeitos menos capazes de exercitar suas singularidades. Um belo poema centrado na condição feminina fala dessa necessidade de se estabelecerem diálogos horizontais entre todas e todos, lutando-se contra toda forma de opressão, o que se aplica também às lutas por reconhecimento nas questões étnico-raciais, da sexualidade e outras. Esses movimentos instituintes fazem emergir múltiplas perspectivas e enfoques para viver e conhecer o mundo, opostos à massificação 165

cultural, tão ao gosto da globalização hegemônica, que tem na TV um de seus principais agentes propagadores.

Ouço as mulheres do Rio/ elas tentam falar/ das crianças de rua assassinadas/ e meu coração se parte./ Ouço as mulheres de Chernobyl/ falando dos rostos infantis e inexpressivos/ envelhecidos e sem vida,/ e meu coração se parte./ Ouço as mulheres de Bhopal/ murmurar sobre o caráter grotesco/ da deformidade e da doença,/ e meu coração se parte./ Ouço as mulheres de Adis-Abeba/ dar a descrição da fome e da seca;/ e meu coração se parte./ Ouço as mulheres de Chipre,/ da Irlanda, Sri Lanka/ e da África do Sul./ Ao ouvir sobre o sofrimento do conflito,/ meu coração se parte./ Mas também/ ouço as Madres, as Mulheres de Preto/ e as mães africanas./ Ouço as jovens da Ásia e da orla do Pacífico./ Ouço as vozes femininas da África do Norte/ do Oriente Médio e do Leste Europeu./ E ouço o Poder de Toda Mulher,/ Em toda parte./ Então, me regozijo,/ Tenho esperança,/ Tomo coragem (CLIFT, s/d, p. 253-254).

3.4 TELENOVELAS E MALHAÇÃO

Nas verbalizações docentes e nos comportamentos e falas das(dos) estudantes que registramos no cotidiano da escola pesquisada, sobressaiu uma referência constante às novelas e ao seriado Malhação. Em decorrência, julgamos procedente analisá-los na esfera dos variados interelacionamentos concretizados entre o que é veiculado pela TV e as reproduções/problematizações praticadas por esses sujeitos.

Como gênero televisivo, as novelas começaram a ser produzidas já no ano seguinte ao da estréia da televisão no país, embora com menor prestígio na programação do que os teleteatros. Em dezembro de 1951, a TV Tupi paulista exibia ao vivo, e apenas duas vezes por semana, a trama Sua Vida me Pertence. Somente em 1963 é que essas atrações passaram a ser transmitidas diariamente (TV Excelsior), com a apresentação de uma novela de nome curioso, 2-5499 Ocupado, protagonizada pelo par romântico Tarcísio Meira & Glória Menezes, que se tornaria clássico na TV.

A partir daí, seguiu-se uma trajetória de sucessos, com a profusão de novelas em diferentes horários e emissoras, principalmente na Rede Globo, na qual se tornaram um produto extremamente lucrativo. Para se ter uma idéia dessa relevância comercial, novelas como Escrava Isaura e Terra Nostra já foram exportadas para mais de oitenta países. A primeira, inclusive, fez estrondoso sucesso na Rússia e na 166

China, conseguindo interromper as batalhas entre bósnios e sérvios (antiga Iugoslávia), nos momentos de sua exibição! (BRAUNE; RIXA, 2007).

Hamburger (2005) identifica três períodos históricos diferenciados na televisão brasileira: uma primeira fase, sob o domínio da TV Tupi, que vai até o final da década de 60, na qual as novelas tiveram uma repercussão incipiente, pois, como foi dito no capítulo 1, esse veículo de comunicação ainda não havia se massificado tanto na sociedade brasileira como o rádio, por exemplo. Em que pese esse fator, o folhetim O Direito de Nascer (1964)mobilizou o público em grandes cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro e , ganhando até uma marchinha de carnaval: “Ah, Dom Rafael/ Eu vi ali na esquina/ O Albertinho Limonta/ Beijando a Isabel Cristina/ A Mamãe Dolores falou:/ ‘Albertinho, não me faça sofrer. Dom Rafael vai dar a bronca/ E vai ser contra o direito de nascer’” (BRAUNE; RIXA, 2007, p. 129).

A segunda fase destacada pela pesquisadora marca a hegemonia da Rede Globo, consolidada sobretudo a partir da década de 70 e prosseguindo nos anos 80 e 90. Nesse espaço de tempo, as novelas assumiram uma posição de centralidade na programação global, com audiências expressivas, juntamente com a multiplicação da presença de televisores nos lares brasileiros. São desse período novelas de grande sucesso, como Irmãos Coragem (1970), um marco no gênero, com a conquista do público masculino, e a chorosa Selva de Pedra (1972), que chegou a registrar, num de seus capítulos, 100% de audiência no Rio de Janeiro. Roque Santeiro (1985), outro enorme êxito dessa fase, teve uma audiência média de 80% (BRAUNE; RIXA, 2007).

Quanto ao período atual, ocorre, segundo Hamburger(2005), uma diversificação dessa mídia, surgindo a TV paga, o que provoca uma ligeira queda na audiência das novelas e o enfraquecimento da liderança global. Mesmo assim, os folhetins do horário nobre, após as 20h30, ainda marcam índices médios de 40% ou mais. A novela Duas Caras, por exemplo, teve, de acordo com dados da própria Rede Globo, a sintonia de seis em cada dez televisores ligados (RIO MÍDIA, apud OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, 2008). 167

Não surpreende, portanto, a onipresença das temáticas e mensagens das novelas no imaginário, nas atitudes e nos questionamentos de educadoras(es) e alunas(os) da escola pesquisada. De modo geral, os estudantes verbalizaram as ambiguidades contidas nos enredos desses gêneros de TV. Uma aluna da 6ª série, por exemplo, opinou o seguinte: “Eu gosto de algumas novelas, porque às vezes dão muitas lições de vida para a gente, ensinam muitas coisas, o que é certo e errado. Mas também tem muitas coisas que não são apropriadas nas novelas”. Dentre os enfoques negativos mais apontados pelos estudantes, está a ênfase das novelas nas cenas e contextos violentos. “Muita violência não é legal. Naquela novela que acabou de passar agora, Vidas Opostas, tinha muita violência”, pontuou outra aluna dessa turma. Foi o que acentuou igualmente o professor de Inglês, revelando o quanto as cenas violentas mostradas nessa novela prenderam as atenções das(dos) alunas(os), principalmente do turno noturno.

Eu dou aula em Vitória à noite num bairro violento, né?, e vai dando dez horas, ‘professor, eu tenho que ir embora assistir Vidas Opostas’. Quer dizer, é uma realidade que eles convivem dia-a-dia, né?, tráfico de drogas, homicídio, e eles assistem. Assim, é a única novela que eu vejo eles falarem, comentarem.

A sua colega de Lingua Portuguesa revelou que o autor dessa novela hesitou em determinar qual seria o destino do vilão, tamanha a identificação de parcela considerável do público com ele.

Eu vi esta semana, no jornal, que o autor não sabe o que fazer com o destino desse bandido, tamanha a audiência, a popularidade dele. No início da novela, esse bandido ia morrer, mas agora ele tá sofrendo a pressão de alguns comandantes do tráfico pra não matar.

Também salientou que o autor da novela quis mostrar o eudeusamento do vilão, que ocorre atualmente na sociedade brasileira, citando o exemplo de um fenômeno verificado com certa freqüência no sistema prisional capixaba. Mencionou igualmente a problematização que realizou, em sua prática docente, de um tema 168

bastante evidenciado na TV, o aumento do tráfico e do consumo de drogas em nosso país.

A intenção do autor da novela, no início, era exatamente fazer uma denúncia. Por exemplo, a denúncia das mulheres que tão namorando os bandidos hoje, e que são de classe média alta. Você passa de madrugada em Viana, as meninas estão esperando pra fazer visita íntima a presos. Elas são de classe média alta, inclusive são bilíngües, quer dizer, porque, por causa do contato, uma ‘euzinha’ qualquer que vai lá, uma menininha que não sabe nada, não serve mais pra ser amante de preso, não, sabe?, ela tem que manter o contato. Então, no início, eles tiveram a intenção de fazer uma denúncia, e agora não tão segurando, porque a audiência é quem? São exatamente essas pessoas, e elas vão querer, ‘não, ele não pode se dar mal, tem que se dar bem’. Agora o autor entrou numa coisa que ele não sabe como sair, mas eu acredito que essa foi a melhor maneira que ele encontrou, a princípio, pra fazer uma denúncia, como a Glória Perez sempre faz, a Glória Perez tem contribuído bastante, querendo ou não. Eu comecei a trabalhar, a fazer um debate com os meus alunos sobre drogas, e descobri que alguns sumiram da sala. Fui procurar saber onde eles estavam, e a menina mandou o seguinte recado: ‘professora, a aula da senhora começa a ficar perigosa, não podemos assisti-la mais’.

Ao comentar uma crônica lida, em que o autor faz uma analogia entre Adriane Galisteu, com suas opiniões fúteis e individualistas, e uma médica cardiologista que fundou uma ONG para crianças com problemas cardíacos, e em que ele faz uma crítica ao espaço que a primeira tem na mídia, sobretudo na TV, ao passo que o engajamento e o compromisso social da segunda é praticamente ignorado, a professora de Ciências (01) questionou a ênfase que se dá, nesse meio de comunicação, às idéias, atitudes e posturas egocêntricas. Fez também uma autocrítica, ressaltando o quanto nos deixamos envolver muitas vezes por esse tipo 169

de enfoque televisivo, e defendeu a necessidade de enredamento das significações construídas pela TV para certas realidades, com outras fontes de informação de perspectivas diferentes. Por fim, salientou o fato de ter feito, com as (os) alunas(os), um exercício de problematização acerca de temáticas bastante relevantes:

Eu li uma vez um texto fazendo um comparativo entre a Adriane Galisteu, sempre preocupada em se dar bem, e uma médica que fundou uma instituição para atender crianças que têm problemas cardíacos. Mas aí não tem ibope, não aparece isso na Globo, não aparece isso na televisão. O autor do texto faz essa crítica. Então, não há preocupação da mídia televisiva de tá focando isso, é incrível, porque não dá ibope. E apesar de ser contra essas características voltadas para a corrupção, nós temos que primeiro dá o ‘braço a torcer’. Nós, seres humanos, não podemos desenvolver esse lado, a gente tem que entender isso, sim, e ter a humildade para reconhecer e tentar contrapor isso aí de alguma forma. Agora, como eu vou pensar coisas diferentes, se entra na minha cabeça, só há esse tipo de informação? Não tem como pensar outras coisas, eu também preciso ter outro tipo de informação. Esse debate que estamos fazendo aqui, serve pra quê? Pra divulgar, nossas mentes se abrem, né?, pra gente poder se posicionar, pra fazer algo contrário do que a gente tá vendo e ouvindo. Aí, vem um papel importante que eu acho que a escola tem, eu acho que esse trabalho aqui a gente não pode deixar se perder. Eu gosto muito de fazer esse tipo de debate com os nossos alunos. Eu tava falando com alguns colegas, ali na sala dos professores, que eu fiz um debate com os alunos, deixei eles falarem à vontade sobre gravidez na adolescência, e entramos em aborto, rejeição familiar, são tantas e tantas situações que eles nunca pararam para pensar, e fizeram perguntas íntimas, perguntas assim. Eu respondi, e eles se sentiram bem pra fazer essas perguntas. Então, eu acho que é um lugar ótimo, 170

mas aí a gente fica preso a ter que dar conteúdos, a limitação da própria escola.

Sem dúvida, este é um papel importantíssimo do espaço-tempo escolar: provocar o dissenso, fazer a contraposição àquilo que, via de regra, é padronizado, naturalizado pela TV, oportunizar às/aos estudantes o contato com pontos de vista diferenciados sobre as problemáticas sociais, entrecruzar concepções diversas pertinentes a essas questões. Para Santos (2006), a estratégia do capitalismo moderno objetivando administrar e manter sob o seu estrito controle a desigualdade e a exclusão, se concretiza no universalismo, fundamentado na perspectiva essencialista do ser humano. No seu enfoque antidiferencialista, esse universalismo adquire um perfil homogeneizante e uniforme, depreciando e secundarizando as identidades que não se enquadram no modelo estabelecido como hegemônico. Já na sua outra versão, a diferencialista, opera pela ênfase nas diferenças, só que de modo simplista e abstrato, ignorando lógicas e dinâmicas singulares e complexas, constantes dos processos de identificação.

As novelas geralmente sucumbem aos dois enfoques, com maior ou menor intensidade, dependendo do enredo e dos personagens. Por outro lado, têm o mérito de visibilizar aspectos que se enquadram nas relações de gênero e sexualidade, nas questões étnico-raciais, nos conflitos entre classes e grupos sociais, nas convicções religiosas etc., que se tornam um “prato cheio” para as(os) educadoras(es) colocarem em dúvida as formas como são abordadas tais questões. Isso também não passou despercebido por alguns estudantes, como um da 7ª A que, embora seja um aficionado do gênero, não deixa de questionar as mensagens e conteúdos difundidos.

Novela eu gosto, sou noveleiro de plantão [...]. Tem novela também que eu não gosto, novela que fica com muita mentira, você vê assim, igual Malhação, eu não suporto, porque tem aquele monte de mimado, que não sei o quê, que perdeu o amor, que isso e aquilo, eu não gosto. Rebelde também eu odiava, gostei um pouco, mas, assim, começou com besteira, 171

não gosto. Gosto da novela, assim, que passa mais a vida humana, que mostra o que acontece com as pessoas mesmo.

Sua colega da 6ª B seguiu a mesma postura, rejeitando certas perspectivas adotadas com as quais não concorda. “Eu gosto de algumas novelas, porque às vezes dão muitas lições de vida para a gente, ensinam muitas coisas, o que é certo e errado. Mas também tem muitas coisas que não são apropriadas nas novelas”. Uma delas, bastante lembrada pelas(os) alunas(os) ouvidos, diz respeito às cenas de sexo muito apelativas. “O que eu gosto na televisão são os desenhos e algumas novelas de época. O que eu não gosto, são aquelas novelas escrotas que mostram tudo. Isso influencia a cabeça de crianças e adolescentes a fazer o que não presta”, pontuou uma aluna da 6ª A.

O posicionamento de um aluno da 8ª série seguiu também essa perspectiva de rejeição ao apelativo.

Essas novelas têm muitos gestos obscenos, que pode ter crianças menores que tão assistindo, e isso não pode acontecer. A criança vai crescendo, vai crescendo com isso, aí fica meio que no caminho errado, né? Coisa que eu não gosto também é novela que fala muito palavrão, igual àquela novela das oito agora [Paraíso Tropical], fala muito da vida daquela prostituta que fica na rua, aí isso pra mim não tenho interesse de ver não.

Aliás, a personagem Bebel, uma garota de programa, interpretada pela atriz Camila Pitanga nessa novela, repercutiu bastante nos posicionamentos das/os estudantes. Uma aluna da 7ª A refutou a postura daquelas(es) que buscam na prostituição uma alternativa de renda e sobrevivência, sugerindo que lutem por um emprego decente, como fazem tantas(os) em nosso país, mesmo sem conseguir os resultados desejados muitas vezes.

Gente, Deus fez o corpo da mulher e do homem, não pra ser vendido pra qualquer um, vendido por cinco reais, isso é 172

horrível. Se quer um emprego, se quer sustentar a família, corre atrás. Tem muito jovem correndo atrás de emprego, ficam horas em fila pra fazer entrevista, pra não passar, mas pelo menos ter tentado.

Outra aluna dessa turma problematizou a forma como o autor da novela conduzia a personagem, com a conseqüente ascensão social que foi obtendo através da prostituição, o que, no seu ponto de vista, é um exemplo ruim para os adolescentes.

Nessa novela, a Bebel sempre se dá bem, e não é assim, gente. Eu tava lendo numa revista que as prostitutas sofrem, apanham, humilhação, e a Bebel não, cada dia ela tá subindo mais na vida. Então aquilo ali é uma coisa irreal, uma coisa da novela. Não tem essa de ser proibido pra menores de 15 anos, não tem impacto nenhum, a minha mãe me deixa assistir, eu que não assisto porque não gosto, porque eu não gosto mesmo da novela. Eu acho, assim, influencia porque tá todo mundo vendo que a Bebel tá se dando bem, ‘então, porque eu não posso me dar?’ Aí, vai se prostituir e vê que a vida não é assim. Então, a Bebel tá fazendo a cabeça de muito adolescente, vai piorar cada vez mais, porque não é assim.

Pelo menos na estética de muitas alunas influenciou. A professora de Artes nos relatou que certo dia, ao entrar na sala da 7ª B, formada apenas por alunas, teve dificuldade para iniciar sua aula, pois uma parte delas provava roupas inspiradas na personagem Bebel, com visível entusiasmo. Embora o uso obrigatório do uniforme tenha limitado sensivelmente variações estéticas nos trajes das(os) alunas(os), dentro dar margens de possibilidades, não faltaram exemplos de cópias/reinvenções no visual. Uma das alunas nos confidenciou que se inspirou nas novelas para usar os fartos brincos argolados.

Aliás, a atriz Regina Casé realizou uma série de reportagens muito interessantes para o Fantástico, sobre as periferias do mundo. Numa delas, enfocou Luanda, capital de Angola, mostrando várias lojas nas quais os estilos de vestuário de Bebel 173

faziam enorme sucesso de vendas. Uma aluna dessa turma rejeitou a adesão de tantas colegas ao estilo visual da personagem.

Eu acho que a TV é muito influenciável, tudo que eles fazem é pra influenciar as pessoas, tipo essas roupas aí da Bebel. Assim, se as pessoas até de Angola já estão usando, é porque elas estão sendo influenciadas pela TV. Eles estão até tentando passar um jeito cômico dela, mas não conseguem, porque é perigoso passar esses negócios na TV porque influencia. Se a gente sai com uma roupa que ela veste, o pessoal vai falar ‘ah, aquela ali é vadia’, entendeu? Nem a Camila Pitanga mesmo usa uma roupa daquela, porque é só pra influenciar, é só pra gente usar. Ela só usa quando ela vai fazer a personagem, depois ela tira e coloca uma roupa normal. Mas a gente não, a gente vai estar usando mesmo a roupa, a gente vai estar usando na vida real.

Correto ou não, o fato é que tais padrões estéticos propostos nessa novela e em outras atrações televisivas adentram geralmente o espaço-tempo escolar, através da adesão das alunas (Figura 31).

Figura 31

Um aluno da 8ª A série externou igualmente a preocupação com o fato de essa novela divulgar não apenas o tipo de vida que Bebel levava mas também a história 174

de um casal gay, defendendo que essa trama fosse exibida mais tarde, pois assim, seria menos provável que as crianças, por exemplo, assistissem, na sua visão, práticas tão incorretas.

Essa novela tem muita coisa assim, igual lá, eu chego em casa, falo em casa que esses dois são homossexuais, igual àquela prostituta. Aí, chego em casa, pergunto pro pai, ‘pai, que que é isso? Que que é homossexual? Que que é prostituta?’ Aí, vai e pergunta, aí o pai vai ficar sem jeito de responder. ‘Mas onde você viu isso meu filho?’ ‘Ah, eu vi na novela’. ‘Mas, você não pode ver, aquilo ali é uma coisa errada, você não vai aprender, você tá pequeno ainda e não pode aprender’. Pra mim isso aí não tinha que passar não, tinha que passar, assim, bem de noite, mais tarde, umas 10h30, quando tem criança que dorme cedo. Pra mim criança não teria que ver aquilo ali não.

Após a sua fala, uma colega de turma opinou que a divulgação de tais práticas tinha o mérito de reduzir o preconceito.

Eu acho que esse negócio de homossexual aí já mostra também pra não ter discriminação, porque muitas vezes tem gente que discrimina pelo fato da pessoa ser homossexual. Eu acho que isso, assim, tem o seu lado positivo, já que tá mostrando pra não ter discriminação, tanto com a prostituta, tanto com os homossexuais.

Para outro aluno da 7ª C, entretanto, essa difusão de comportamentos homossexuais, principalmente nas últimas novelas do horário nobre da Globo, também se transforma num modismo que ressoa entre as(os) adolescentes.

Nessa novela aí que eu já ouvia falar que tem dois personagens homossexuais , na Paraíso Tropical, e como nesse ano é um assunto que tá sendo mais assim discutido, 175

parece que virou moda, entendeu?, como eu já assisti no SuperPop. Parece que algumas pessoas heterossexuais, adolescentes, 14 anos, assim, vê a novela e acha legal, acha que é moda. ‘Ah, eu vou tá na moda, vai ser maneiro’, e, mesmo não gostando, acaba ficando garoto com garoto e garota com garota, mesmo sabendo que são heterossexuais.

Além das novelas, o seriado Malhação foi muito citado e comentado, tanto pelas(os) educadoras(es) quanto pelas(os) estudantes. Criado em 1994 na Rede Globo, com o objetivo de ser uma opção de entretenimento para o público adolescente, adota o esquema teledramático das soap operas estadunidenses, sem um final e alternância de temáticas, personagens e perfis.

Nos quatro primeiros anos de exibição, a trama era ambientada numa academia de ginástica na Zona Sul carioca, com um enredo que versava sobre o universo existencial e estético característico da classe média alta, como a preocupação com a beleza corporal, as paqueras e as diversões típicas da juventude desse segmento social. Algumas mudanças ocorreram, no entanto, quando completou cinco anos no ar. Uma escola privada de ensino médio se tornou o espaço-tempo básico para o desenvolvimento dos roteiros, agora mais preocupados com as problemáticas humanas e sociais, norteadas pelo politicamente correto.

Ao gravarmos um pequeno trecho de um dos capítulos do seriado, para debater com docentes e discentes, ficamos surpresos com a variedade de questões abordadas. Um adolescente, filho adotivo de uma família de classe média alta, apelidado de Goiaba, questionava com a professora de Filosofia suas próprias posturas consumistas, recorrendo às idéias e práticas do pensador asceta Diógenes; um jovem tentou reatar o namoro, após constatar que a paralisia que afetava os membros inferiores da parceira era temporária; um homem e uma mulher com mais de 50 anos desenvolviam um relacionamento amoroso; duas amigas se reconciliavam após uma delas “aprontar” com a outra; na sala de aula, o professor de História analisava o conflito entre judeus e palestinos. 176

São, portanto, temáticas importantes, que dão margem a muitas discussões e questionamentos, com expressiva audiência entre as(os) alunas(os), conforme verificamos em conversas informais e nos grupos focais. Não por acaso, a coordenadora da escola reproduzia a totalidade dos episódios, visando subsidiá-la em sua função na escola e como aluna do curso de Pedagogia.

Gravo todos e assisto, por causa da coordenação, pra mim ver o que eu posso tá fazendo, pra tá ajudando vocês, então eu gravo. [...] Quando eu tinha tempo, eu assistia pra minha vida profissional e pra minha vida familiar, eu tinha filhos adolescentes. Hoje eu gravo porque eu tenho que tá atualizada, lá no meu curso eu sempre tenho que tá atualizada, a gente tem um momento de fazer essa discussão. E também pra escola, que a realidade da escola hoje é outra. Então, pra mim tá entendendo os alunos, eu tenho que tá vendo isso, que é esse o programa que eles vêem, como eles falaram pra você, eles falaram pra mim quando eu entro na sala.

Baseada nessa convivência diária com as(os) estudantes, a coordenadora enfatizou o quanto os enredos dessa atração teen influenciavam os padrões estéticos delas(es), bem como outras atitudes manifestas, defendendo uma mediação docente que articule os conteúdos veiculados com os currículos das diferentes áreas do conhecimento. Na sua perspectiva, esse é um aspecto primordial no êxito da prática pedagógica das(os) educadoras(es).

Fica bem claro que isso é básico da idade, dessa faixa etária; é na hora da sala de aula, naqueles momentos da sala de aula, que acontece muito, principalmente com os nossos alunos de 5ª a 8ª. O professor tá lá dando aula, e eles estão se maquiando, se penteando. Então, como que nós poderíamos tá enfrentando, porque são coisas que são normais, né?, estar enfrentando, mas não partindo para o ‘imprensamento’, né? Como enfrentar uma situação dessas, porque é o nosso cotidiano, porém não de forma de enfrentamento, porque não 177

adianta, você acaba perdendo; mas ser permissivo também não, porque se você passa a ser permissivo, todo mundo vai fazer da sala de aula o quê? Um grande salão de beleza, né?, então você aproveita, se for inteligente, aproveita tudo aquilo ali e muda o seu conteúdo. Se é Matemática, você vai fazer trabalhar é o dinheiro, o gasto necessário; se é Geografia, você trabalha, aí vem a interdisciplinaridade ali, você aproveita na hora, porque as nossas turmas estão desse jeito. Você trabalhar o conteúdo como ele precisa ser trabalhado, você tem que ter um professor que tenha uma maturidade muito grande e ter uma, como é que a gente falava no meu tempo, gente? Um domínio de classe, que hoje em dia eu bato palma pra quem tem, que a maioria não tem mais. Então, quando o aluno fala que respeita fulano e respeita siclano, eu volto lá no meu tempo, aonde se você não tivesse domínio de classe, não permanecia em rede nenhuma.

Consideramos essa sugestão da coordenadora bastante oportuna, visto que, apesar da reorientação nas histórias veiculadas, com uma maior incorporação aos roteiros de problemáticas humanas e sociais, a trama não é imune a padronizações e estereótipos articulados aos objetivos comerciais da Globo. Isso compromete uma versão mais complexa e abrangente dessas questões, ignorando, desse modo, as diferenças de ordem social, cultural e étnica tão marcantes em nosso país.

O professor de Matemática (02), reconheceu que muitas das situações divulgadas na trama são propícias a questionamentos e debates com as(os) alunas(os), porém a falta de tempo da maioria das(os) educadoras(es) limita um pouco essa intencionalidade.

Eu acho, assim, que a gente pode até tirar alguma coisa proveitosa do que a gente viu. Pra isso, tem que ter tempo de tá assistindo, coisa que a gente não tem. No caso, por exemplo, do menino que adotou uma posição super-radical em relação ao consumo, a gente pode tá mostrando pra eles que é 178

possível ser feliz sem copiar as pessoas a qualquer custo. ‘Meu colega tinha tal negócio e eu fiquei com vontade de comprar’. E é isso, você é medido pelo que você tem ou pelo que você pode ter. Então, são situações que você também pode tá trazendo, porque é a realidade deles.

Para uma aluna da 7ª A, tal problematização docente é necessária, pois muitas circunstâncias mostradas nessa opera soap têm uma relevância ética na formação das novas gerações, oportunizando a internalização de atitudes mais responsáveis.

Eu gosto porque tem várias pessoas que fazem coisa errada e aprendem. Tem também uma menina que dirigiu o carro e matou o próprio irmão, só que ela não assumiu aquilo que ela fez, botou a culpa em outro menino. Malhação é uma novela, assim, com a mesma história todo ano, mas nessa mesma história eles ensinam muito, entendeu? O que o jovem está passando, o mundo do jovem, em geral, assim...bebida.

Contrariamente, para o seu colega de turma, há, nos roteiros produzidos, mais contravalores, levando o público juvenil a ser mais consumista e adepto de modismos desnecessários.

Eu acho que o Malhação não incentiva ninguém, é só pra ficção mesmo, assim, só pra os outros assistir e gostar. Acho que não ensina nada, por isso que eu não assisto. Só influencia pra fazer coisa errada, porque tem muita safadeza ali, muita cola na prova, eu acho, é por isso que eu não assisto. Não vejo nada de legal, de bom, mas acho que o Malhação incentiva a gente a gastar dinheiro. As roupas que eles têm, a gente quer ter, igual a Carol do Big Brother, aquele brinquinho que ela tinha. Então, todo mundo quer ter as coisas que eles têm. 179

Quanto à escola, que é o ambiente principal em que se processam as histórias da trama, trata-se apenas de um espaço-tempo secundário, que não é discutido em seus problemas e contradições. Foi o que observou o professor de Inglês.

Eu acho que o maior problema de Malhação é o seguinte: eles têm uma história e o pano de fundo é a escola. Entendo, porque é uma condição, é uma televisão, você tem que fazer assim mesmo. Nós estamos na escola real, e os alunos querem agir da mesma forma que eles vêm em Malhação, entendeu? Esse é o grande problema, aqui o foco central é a escola, lá é pano de fundo, eles confundem isso, esse eu acho que é o maior problema.

Uma aluna da 7ª A lembrou outra diferença entre a escola do seriado e a grande maioria das escolas públicas brasileiras: o perfil sociocultural das(os) estudantes, que, por exemplo, não usam uniforme (aliás, pelas roupas que utilizam, parece terem saído de um desfile da São Paulo Fashion Week).

Tem o colégio, que é o Múltipla Escolha, que só vai quem tem dinheiro, porque é uma escola particular. Tem agora o André, que é o Rômulo Arantes Neto, que está fazendo um personagem que é pobre e que ganhou a bolsa, entendeu? Sempre, todo ano é a mesma história: ganha a bolsa um aluno que não tem condição, mas o resto tem condição, pode pagar. Então, muita gente não pode pagar uma escola particular.

Esse posicionamento do aluno que foi reforçado pelo seu colega de turma, que destacou o incentivo ao consumismo, por meio dos gostos e comportamentos das(os) alunas(os).

É verdade, por isso que eles não usam uniforme, entendeu? Eles já mostram a roupa pra incentivar os adolescentes a querer o mesmo, ‘poxa mãe, eu quero aquela roupa linda, maravilhosa’. Eles não usam uniforme por isso, pra fazer a 180

propaganda já, entendeu, pra comprar, ‘ah, eu quero isso, eu quero a bolsa da Malhação, quero esse CD’. Eles já fazem a propaganda na novela.

Como já foi evidenciado na introdução desta tese, os sujeitos da escola pesquisada, na condição “consumidores culturais” (CERTEAU, 2002), entrecruzaram posturas e significados heterogêneos e complexos perante os conteúdos televisivos. Hamburger (2005, p. 168), ao analisar a interação do público com as novelas, tece algumas considerações que reforçam essa perspectiva e que também se aplica a Malhação.

A dinâmica interativa desigual de construção e recepção de novelas capta e expressa os mecanismos distorcidos de construção de significados no Brasil contemporâneo. Esse produto da indústria cultural envolve uma lógica de sedução, identificação e empatia que produz não os sujeitos desencantados e passivos construídos nos trabalhos teóricos seminais (que cunharam o conceito) ou os sujeitos ativos que encontrariam na cultura um caldo propício à resistência (imaginados na literatura inspirada no pensamento de Gramsci), mas configurações inesperadas e muitas vezes aberrantes de cidadãos consumidores.

Portanto, o modo como estudantes e professoras(es) decodificaram as mensagens da TV vai além das lógicas polarizadas, caracterizando-se por um emaranhado de posturas que englobam aceitação, questionamento, concordância, divergência, apatia, contraponto, adesão, ceticismo.

3.5 REALITY SHOW

Ao contrário do que muitos possam imaginar, a existência desse gênero televisivo não é recente. Ainda no final dos anos 1940, já era criada a primeira versão na TV estadunidense, vindo a consolidar-se na programação no começo da década de 181

1970. No continente europeu, as emissoras públicas, dominantes nas sociedades nacionais da época, produziam reality shows no final da década de 1960 e início dos anos 1970, sendo ampliada a veiculação do gênero com a fundação das TVs comerciais nos anos 1990.

Entre nós, a variante de maior êxito na audiência, o Big Brother Brasil (Rede Globo), se originou por iniciativa da empresa holandesa Endemol (2000), proprietária dos direitos de comercialização. A inspiração para o programa veio do projeto científico Biosfera 2 realizado no Arizona (EUA), em 1991, que manteve, por quase dois anos, oito pesquisadores isolados numa esfera de cristal, reprodução em miniatura do planeta (CASTRO, 2006).

Embora, no plano real, a iniciativa não tenha prosseguido, no âmbito televisivo, acumulou, desde então, uma capacidade ímpar para mobilizar a atenção do público, ressoando, também, entre os docentes e discentes da escola pesquisada. Quais as razões para tanto envolvimento das(os) estudantes com esse programa de TV? De acordo com a professora de Português, seria um modo de fugir das realidades tão problemáticas vivenciadas pelas(os) brasileiras(os) em geral, os quais as(os) submetem a múltiplas carências objetivas e subjetivas. O reality show se torna uma válvula de escape, um relaxante mental em meio a tantas contradições. “Como explicar isso?” indagou.

Explicar a vida vazia que a gente tem e que não tem pra onde ir, sem dinheiro não tem como sair. A gente ganha pouco, então, ainda é o que resta. É a mesma explicação que se dá porque assiste Faustão no domingo, por causa do quê? Não tem opção. [‘Mas, eu não assisto’, interrompeu o professor de Inglês]. Você falou ‘eu não assisto’, aí eu falo pra você, ‘eu também não’. Eu sou uma pessoa que, na hora do Faustão, durmo. Agora, nós estamos falando de outras pessoas que dão audiência a esses programas. [...] Tem horas que você precisa de um besteirol; tem hora que você não precisa falar besteira? 182

Em seguida, o professor de Inglês complementou a fala da colega, reforçando a sua opinião de que as pessoas geralmente acompanham essas atrações televisivas por não terem outra alternativa de lazer para ocupar o tempo livre. Por outro lado, acentuou a sedução que o reality show exerce sobre as(os) alunas(os) com os quais trabalha.

Bem, eu ia falar que eu não assisto o Faustão, porque não dá pra eu assistir, a não ser quando tem Dança dos Famosos lá, que é interessante. Mas fora isso, o programa dele é muito ruim, entendeu? O Big Brother também, mas só que o Big Brother, tem dia que você chega tão cansado, você bota uma bobeira qualquer, aí liga a televisão e assiste. Mas não é aquela coisa acompanhada devidamente, eu não consigo entender gente que acompanha isso. Quando tava passando Big Brother, eu reparei meus alunos, era o comentário geral deles, todo dia eles comentavam, chegava de manhã, a primeira aula, ‘ontem, o que aconteceu, aposto que vai acontecer isso, não sei o que, fulano vai fazer isso’, quer dizer, como se fosse uma história. Na verdade aquilo não é história, é o dia-a-dia, mas acaba se montando uma história, porque na edição eles montam como se fosse uma história, que tem o vilão, tem o protagonista. Então, acaba tendo os elementos de uma história que envolvia os alunos. Eles perdiam a hora, chegavam na primeira aula sem bolsa, porque é tarde que passa, até 11h30 eu acho que passava.

De fato, esse tipo de reality show apresenta características pertinentes às novelas, mas não se restringe somente ao gênero. Castro (2006) salienta o caráter híbrido do programa, o qual entrelaça variados formatos bastante explorados pela televisão. Das telenovelas, por exemplo, adotam a estratégia de apresentação diária, a fim de relatar o cotidiano das pessoas, com o tradicional happy end evidenciado na formação de pares românticos e na premiação. Dos talk shows e programas de auditório, assimilam os comentários sobre a vida dos participantes, expondo igualmente ao público seus familiares e amigos. Também não deixam de ser um 183

programa de concurso, posto que resultam num vencedor, que é recompensado com o prêmio máximo. Ao socializarem a vida dos competidores, seus amigos, familiares, bem como os lugares onde vivem, adquirem o enfoque dos documentários. Por fim, ao inserirem, em variados horários da grade de programação, entrevistas com familiares, amigos e ex-participantes do programa, recorrem a uma estratégia do jornalismo.

A professora de Lingua Portuguesa enfatizou a incorporação dos esquemas típicos dos folhetins televisivos pelo Big Brother Brasil. Segundo ela,

...o aluno acaba percebendo que aquilo ali não passa de uma novela. Ultimamente, eles já não viam mais como um programa relacionado à vida, mas, sim, a uma novela, onde eles arranjam tipos, como uma pessoa que é ‘barraqueira’, que era uma mulher, eu não assisto, eu tenho dificuldade de falar. Era algo que ela vendia, era vendedora ambulante, alguma coisa assim, não era? Era uma sacoleira que arrumava o maior barraco, criava confusão com todo mundo. Então, os alunos tão vendo o Big Brother por falta de opção, não tem onde ir por causa da violência na rua, não tem o que fazer, aí não tem nada pra aquele horário, aí ele assiste o Big Brother. Mas assiste como uma novela, com os atores de uma novela. Tem tipos, já sabe quem vai ganhar no primeiro programa. Você vê aquele mocinho, pode acontecer milhões de coisas com ele, mas no final ele não vai morrer, ele não pode morrer. O Alemão [vencedor do BBB 8], pode acontecer mil coisas, vai pro paredão, vai não sei o que lá, mas é ele quem vai ganhar. [...]. Então, você já sabe de cara quem são as últimas pessoas que conseguem, no primeiro programa a gente já sabe quem vai ficar. Então, para os alunos se passa uma novela.

Algumas educadoras(es) reconheceram que esse enredamento de variados gêneros televisivos no Big Brother acaba por atrair a audiência das(os) alunas(os), interferindo nos significados que atribuem para o ser e estar nas realidades 184

cotidianas. A pedagoga da escola chegou a falar numa troca de identidade, na esfera do imaginário, que se processa entre o telespectador adolescente e os participantes do programa.

Querendo ou não querendo, quando eu assisto um determinado programa, eu me identifico em determinados momentos com ele. E quando eu me identifico com aquele personagem, eu perco a minha identidade de N e passso a ter a identidade daquele ser que tá lá. Então, eu me vejo muito mais bonita, me vejo mais jovem, me vejo mais aceita.

Em outro momento do grupo focal, a mesma educadora pontuou a transposição de fronteiras que há, das existências concretas do público, sujeitas a regras e normas muitas vezes estratificadas, às rotinas entediantes e anônimas, para a dimensão dos desejos, fantasias e aspirações realizados no espaço-tempo da casa, onde os participantes ficam confinados, e que transgridem tais parâmetros comportamentais.

A questão aí também, é que você tá entre o real e o imaginário e, naquele momento que eu estou ali, eu não estou supostamente na minha vida real, então, eu posso tudo. Então, os padrões do pudor são vencidos, porque ali eu vivo uma outra vida que não é a minha vida de padrões aqui do lado de fora. [...] Por que lá eu posso? Porque lá eu estou além do real, eu estou numa outra instância [e se você não sai desse real, você sai do programa]. Exatamente, porque é o que acontece. Então, lá eu sou um outro ser, é uma outra personalidade, lá é um outro local, lá é um outro mundo, lá é um mundo em que eu só vou poder ser se eu entrar nele.

Essa, aliás, é uma das razões do êxito dos reality shows, uma vez que “abrem as portas do mundo dos sonhos e da imaginação às audiências, ofertando à esperança imaginária que isso – o reconhecimento, o sucesso imediato, do dia para a noite – poderia ocorrer também com quem assiste ao programa” (CASTRO, 2006, p. 55). Esse é um desejo que seduz audiências com matizes culturais os mais diversos. No 185

Iraque, cenário de um conflito interminável, cuja sociedade é norteada pelos rigorosos preceitos islâmicos, ocorreu uma disseminação de reality shows na programação televisiva. Um deles, The Cops Show, era transmitido semanalmente no Norte do país, tendo como foco o trabalho dos policiais, oportunizando ao público a crítica ou o questionamento, via telefone, das ações desenvolvidas. Na ótica do diretor do canal de TV que transmitia a atração, era uma prova inequívoca dos ares democráticos que arejavam aquele país. “Não podíamos fazer perguntas, nem falar mal da polícia. Agora qualquer um pode ligar. Esta é a diferença. Isto é liberdade” (OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, 2005).

Todavia, o leque de opções não se encerrava aí. Num dos canais de TV da capital, Bagdá, era exibido, desde 2004, o programa Materials and Labor, que oferecia aos moradores a possibilidade de reconstruírem suas moradias destruídas pela guerra. Essa mesma emissora também veiculava semanalmente o programa Congratulations!, que auxiliava jovens casais pobres a contraírem o matrimônio. O canal concorrente planejava levar ao ar o Iraq Star, uma competição entre cantores amadores, similar ao estadunidense American Idol (OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, 2005).

O potencial dos reality shows para extrapolar fronteiras geográficas e culturais, se deve em grande parte, à gama de formatos que apresentam. No âmbito dos canais abertos de TV do Brasil, algumas versões com abordagens variadas se tornaram êxito de audiência, como Ídolos (SBT), O Aprendiz (Record), Supernanny (SBT), além, é claro, do Big Brother (Globo), o de maior fôlego comercial, que já vai para sua nona edição. Porém, nos canais pagos, a presença desse gênero é ainda mais evidente, ocupando mais de 200 horas nas grades de programação. Os baixos custos de produção também atraem as emissoras comerciais de TV, pois a exibição mensal do Big Brother, por exemplo, tem um custo quinze vezes menor do que a veiculação, por idêntico período, de uma novela no horário nobre (após as 20h), e com um excelente retorno financeiro (VEJA, 2007). O “BBB 8” ilustra bem esse aspecto, pois, apesar de uma queda mínima de audiência, foi recordista em merchandising, com mais de 80 ações previstas, 30% superior a 2007 (FOLHA DE SÃO PAULO, 2008). O professor de Matemática (01), lembrou o quanto esses resultados lucrativos comandam absolutos os roteiros organizados para o programa. 186

Se eu fosse o diretor da Globo, eu investiria maciçamente no Big Brother. Por quê? Porque eu quero audiência, como diretor da Globo eu quero audiência. Não importa se o programa é bom ou ruim, se der 90% de audiência é bom. Por que eu vou colocar lá o N, que entende de Matemática pra caramba, falando sobre integrais, derivadas? Quem vai assistir? Eu acho que nem ele.

Nas emissoras por assinatura, os atrativos comerciais são até maiores, pois arcam somente com os custos de exibição dos formatos importados.

Resultados positivos como esses, de um gênero televisivo por excelência, não passam ao largo dos gostos estudantis. Na escola pesquisada, a maioria das opiniões mesclaram elogios e restrições simultaneamente, num mesmo posicionamento. Uma aluna da 8ª A se expressou da seguinte forma:

Ah, eu gosto porque é divertido pra mim né? Porque tem algumas pessoas que não gostam. Tem algumas coisas que não são divertidas, as brigas...tem outras que são divertidas, as provas. Tem pessoas que têm necessidade e se inscrevem pra ver se têm a chance de ganhar um milhão.

Seu colega de turma reprovou muitas situações mostradas no programa, e que são inadequadas para os menores que assistem à TV naquele horário.

Não gosto não...Muito ruim. Além de passar tarde, tem várias coisas que criança não pode ver. Aquele negócio lá que as mulheres ficam debaixo da cama, e também bebendo. Uma criança, um jovem, repete e faz a mesma coisa no dia-a-dia.

São exatamente essas “armações” que atraem a atenção de uma aluna da 7ª D, que afirmou gostar “de ver o que eles fazem, o que eles aprontam”. Foi acompanhada por um colega, que indicou exatamente a exposição insinuante do corpo feminino 187

como o principal atrativo do Big Brother. “Eu gosto de ver por causa da mulherada...Bonita, filé (sic)”, salientou. Esta tem sido uma característica marcante do gênero reality show, a exaltação de um padrão estético para o corpo de ambos os sexos, contrário às imperfeições de nascença ou que vão surgindo com o passar dos anos. Valem, conseqüentemente, todos os sacrifícios e meios para atingir tal fim, ou seja, a beleza perene. “Assim, a juventude é um território onde todos querem viver indefinidamente” (SARLO, 2004). O público, atraído por esse endeusamento, enxerga, nos desvios de tais referências, anomalias a serem corrigidas.

Trata-se de um modelo de homem e de mulher que não quer envelhecer, que deseja seguir sempre jovem para amar e desfrutar o presente, um tempo que nunca muda na televisão. Nos reality shows, há estímulo aos finais felizes, à formação de casais e à renovação através do corpo, seja pelo emagrecimento, pela realização de provas de habilidade para manter o corpo sempre em forma ou por meio de operações plásticas (CASTRO, 2006).

Esse culto à beleza física certamente intervém na escolha dos participantes do programa. Foi o que enfatizou a professora de Ciências, segundo a qual opções por determinados competidores, feitas intencionalmente, descredenciaram todo o processo seletivo anunciado pela Globo.

As pessoas tinham aquela ilusão que se você mandasse uma fita era selecionado, você era escolhido pela fita que mandava. Até eu estava tentando mandar uma fita para o meu sobrinho. Neste último programa, isso caiu por terra, porque se descobriu que puseram lá o Alemão, a Carol e outros mais, após serem escolhidos em boates. Dizem, inclusive, que o Alemão já foi pra ganhar, ele já era o que ia ganhar. Eu acho que isso vai até desestimular muitas pessoas de quererem participar. A pessoa cria aquele imaginário de que qualquer um pode ser famoso, ‘então, eu posso me inscrever, eu posso até um dia chegar lá’, e, sabendo que isso não é verdade, daqui a pouco eles vão acreditar que ninguém é escolhido por fita. [...] Então, nesse último programa [BBB 7], ficou claro que não era assim. As pessoas são bonitonas, de cara bela, não tem ninguém simples, comum, do povão. São escolhidos a dedo pra entrar 188

no reality show. Então, eu acho que a tendência é desestimular.

Outra aluna da 7ª B também apreciou o conteúdo do “BBB”, embora tenha criticado os desentendimentos em excesso. “Antes eu não gostava não, mas este ano que teve, eu assisti e o que mostraram lá eu gostei, aquelas partes lá que o pessoal se junta assim. Agora, o mal deles é que eles brigam muito”. Sua colega da 8ª A reprovou igualmente a ênfase nesses conflitos, além das cenas muito erotizadas.

Eu gosto mais ou menos, porque passa tarde e a gente tem que acordar cedo. Algumas coisas que eu gosto, as festas e as provas são legais, mas tem discussões, brigas, que eu não gosto de ficar vendo. Eles ficam lá debaixo da cama fazendo coisas e fica mostrando, entendeu? Por isso que eu não gosto.

Qual a influência que os contextos e situações veiculados exercem nas(os) estudantes? Para as(os) discentes da 8ª A, essa possivel ascendência precisa ser relativizada em função de algumas variáveis que com ela se entrelaçam. Um aluno externou o seguinte ponto de vista.

Depende da pessoa, do objetivo que ela quer seguir na vida. Se ela achar que estar lá dentro da casa dá pro objetivo dela, ela segue. Para mim, nada eu vou tirar de lá. O que eu posso ver é a personalidade da pessoa, para eu melhorar no meu dia- a-dia, se eu estou bem ou estou mal. É a única coisa que eu mais reparo assim.

Outra aluna da referida turma pontuou ser capaz de rejeitar o que for negativo no conteúdo do programa, internalizando apenas o que considerar correto.

Eu acho que tem algumas pessoas que influencia. Vê a coisa lá dentro e fala, ‘ah, vou fazer o mesmo, eles se deram bem’, mas pra mim não, eu sou do jeito que eu sou mesmo. Se alguma coisa lá dentro for certo, eu olho assim e vou mudar 189

também. Mas eu acho que tem muitas coisas erradas, a mim não influencia não.

Mais dois reality shows foram lembrados pelas(os) docentes da escola: O Grande Perdedor (SBT) e O Aprendiz (Record). No caso da primeira atração televisiva, uma professora salientou que “O Grande Perdedor tem muito mais valor do que o Big Brother: fala lá a dieta, a caloria do que eles estão fazendo, tem todo um trabalho de ciência; o professor de Ciências deve assistir, mas só pelo título a gente não assiste”.

A pedagoga da escola, que ainda não tinha assistido a O Grande Perdedor, opinou acerca dos dois enfoques que um programa desse tipo pode ter, quais sejam, os parâmetros meramente estéticos ou, antes de mais nada, a preocupação com o bem estar-físico e psíquico das pessoas obesas.

Olha, eu não posso dizer porque eu nunca vi, nem sabia que tava passando. Agora, eu teria que saber como é que é esse conteúdo, se é na questão da saúde, da ciência, ou se é no padrão da beleza. Se for na questão da saúde, cientificamente como manter, né?, eu acho que eles têm um caminho e faz um certo público. Agora, se for enfatizando a beleza, a estética, essa que está em voga agora, que estão agora fazendo teste pra saber quem rebola mais de acordo com o seio, a cintura e o quadril, matematicamente falando, que eu vi no Fantástico domingo, então, se for enfatizando isso, ele vai caminhar pra um outro estágio.

Em seguida, a professora de Ensino Religioso respondeu à pedagoga que, na sua ótica, a primeira edição do programa não se baseava na exaltação de um modelo de beleza física (magro, “sarado”) como padrão. “Pelo menos o primeiro não foi estética não, foi baseado na intenção de ensinar a pessoa a se alimentar, fazer a ginástica, fazer ioga”, revelou. A pedagoga socializou com o grupo o seu temor relativo a programas desse tipo, no sentido de aumentarem a cobrança social que as pessoas com esse perfil físico sofrem por não se encaixarem no modelo estabelecido como 190

ideal. Por conseqüência, sentem-se inferiores às demais, o que repercute na auto- estima.

Eu tenho medo desses programas porque as pessoas olham pra gente como se tivesse culpa de ser gordo. Acham que, quando uma pessoa é gorda, é relaxada, que come demais, você é cobrado 24 horas. Você quer ver, olha, eu não sou uma pessoa gorda, gorda, eu chego num lugar pra tomar sorvete, eu vejo os olhares. A pessoa que tá do seu lado, que é magrinha, dá uma olhada como se dissesse: ‘você não tem vergonha na cara de tá tomando esse sorvete?’ Você vai num restaurante, se você pegar uma colher de macarrão, a pessoa olha e pensa assim: ‘comendo macarrão, por isso que tá assim, entendeu?’ Eu não assisto esse programa, porque ele começa com essa questão de saúde, e aí uma pessoa, meu Deus do céu, ela entra numa paranóia, que ela não consegue fazer aquela dieta, ela pode desenvolver uma ansiedade [e aí vai engordar mais ainda] e ela pode engordar mais ainda. É uma tristeza profunda, a gente já tem depressão ‘a rodo’ vendo por aí, às vezes que não sabe de onde é. A pessoa vai fazer ioga, quem tem dinheiro pra fazer ioga. E quem não tem dinheiro? Quem tem dinheiro pra fazer uma massagem localizada está perdendo mais peso, e quem não tem?

Vê-se, pelas polêmicas relacionadas a esses gêneros televisivos, que eles provocam no público múltiplas percepções do que é veiculado, além de magnetizarem a audiência com as cenas e diálogos. Um repertório que, à revelia da autorização docente, adentra o espaço-tempo escolar no imaginário e em variadas posturas das(os) alunas(os).

191

4. ESCOLA E TELEVISÃO: MUNDOS OPOSTOS?

A interessante cena introdutória do filme Hairspray, em busca da fama, abarca, em nossa perspectiva, os complexos e ambíguos entrecruzamentos entre os conteúdos televisivos e a escola, com seu cotidiano repleto de nuances e arestas tensionadas entre si, muitos dos quais já explicitamos em páginas anteriores. Atravessam o enredo dessa obra cinematográfica alguns aspectos do fervilhante cenário socioeconômico, político e cultural da década de 1960, com a emergência de movimentos reivindicatórios de mulheres, negros, homossexuais, estudantes, pacifistas, etc., pelo reconhecimento da diferença e o direito a uma vida menos opressiva e medíocre, desvencilhada da sobrecarga de preconceitos e segregações de toda espécie, além da presença crescente da TV, articulada a uma padronização do consumo.

A passagem do filme que nos interessa, refere-se a uma das personagens principais, Tracy, jovem aluna do ensino médio numa escola estadunidense, seduzida e empolgada com os conteúdos e performances de um programa vespertino de TV, intitulado Corny Collins Show, embalado por inúmeras músicas de rock e variadas apresentações de danças, com o patrocínio exclusivo do laquê Ultrafirme.

Contrariamente, para essa jovem, estar na escola todos os dias assistindo a aulas de diferentes disciplinas, era uma tarefa entediante, que a fazia manter os olhos fixos no relógio, ávida pelo horário de saída. Assim, na aula de Geografia, por exemplo, não conseguia disfarçar o desinteresse enquanto a professora falava sobre o Monte Everest. Um aluno, sentado na cadeira atrás de Tracy, ergueu o braço e afirmou que não conseguia ver a lousa, pois o penteado de sua colega, encorpado por muito laquê Ultrafirme, o impedia. A professora, dirigindo-se à aluna, falou em tom senhoril, de autoridade inquestionável:

- “Tracy, se receber outra advertência por penteado inapropriado, você ficará de castigo”. Ao que a aluna respondeu imediatamente: - “Srta. Wimsey, o que devo fazer? O cabelo não pode ficar pendurado como se fosse um bicho morto”. 192

Influenciada pela nova moda amplamente divulgada na TV, a jovem estudante não abdicava do direito de corporificar seu encantamento pelos novos estilos de beleza e sua adesão a eles, nem que para isso fosse preciso transgredir as regras e normas escolares. Encerrada a última aula, saiu correndo ansiosa da escola rumo à sua casa, junto com a colega inseparável, Penny, a fim de assistirem a mais uma edição do programa tão apreciado. Numa das cenas introdutórias, várias(os) jovens aparecem no camarim, diante do espelho, retocando o penteado com o laquê patrocinador.

Já no palco, o apresentador com pinta de galã dirigiu-se à audiência em tom festivo: “Bela moçada branca que adora ditar moda”. É que, na época, existia a segregação entre brancos e negros na sociedade estadunidense, fazendo com que apenas jovens do primeiro grupo aparecessem no programa. Uma vez por mês, era realizado o “Dia do Negro”, quando os representantes desse segmento social se apresentavam. Na escola que Tracy freqüentava, essa discriminação também ocorria. Certa vez, Tracy foi mandada para uma sala onde ficavam as(os) alunas(os) de castigo, sendo ela a única branca naquele recinto bastante cheio. Lá, todas(os) dançavam ao som de músicas bastante envolventes, com movimentos corporais que refletiam as reinvenções produzidas por aquelas(es) jovens negras(os).

Em ambos os programas, dos brancos e dos negros, os dançarinos eram esbeltos, segundo os padrões estéticos determinados pela emissora de TV, sintonizados com os valores hegemônicos da época. Tracy, que era obesa como a mãe, não se intimidava com sua condição, nutrindo o grande sonho de se tornar dançarina do programa. Eis que surgiu uma vaga para essa função, e ela resolveu se candidatar. A mãe, belamente interpretada pelo ator John Travolta, a qual vivia reclusa dentro de casa, numa espécie de automarginalização por ser gorda, se opôs, justificando: “Essa gente da TV não escolhe gente como Tracy ou eu. Eles vão magoá-la”. Aquela senhora já percebia o quanto as(os) “diferentes” não eram bem-vindos e incluídos no mundo de fantasias e deleites daquele meio de comunicação.

A jovem, entretanto, se arriscou, conquistando a vaga e empolgando o apresentador do programa, que ficou fascinado com os movimentos de sua dança, os quais enredavam coreografias brancas e negras. Ao saber da vitória de Tracy, sua mãe 193

afirmou em êxtase: “Imagine, minha filha finalmente será regular!” É que o aparecimento na TV se constituiria num passaporte de maior reconhecimento e aceitação para aquela jovem. “Qual seria seu primeiro ato como presidente?”, lhe perguntou o apresentador, ao que Tracy respondeu convicta: “Todo dia seria ‘Dia do Negro’”, revelando elos de solidariedade com aquelas(es) que, a seu exemplo, eram quase invisíveis para essa mídia.

As relações díspares de Tracy com a escola e a TV nos falam do quanto foi impactante, sobretudo para essa instituição e para a família, a influência de tal meio de comunicação nos processos de subjetivação e identificação das novas gerações, colocando em xeque formas congeladas, essencialistas e universais de ser criança, de ser adolescente e de ser jovem, além das autoridades materna, paterna e escolar. Para Hall (2003, p. 75), as identidades contemporâneas se tornaram “desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos”, processo esse mediado pelas lógicas e dinâmicas do mercado global, que intensificaram os fluxos de pessoas, de mercadorias, de informações, num enredamento complexo e multidimensional. Em decorrência, ocorreu uma rápida e desconcertante erosão das relações de poder entre os membros da família e das(os) professoras(es) com as(os) estudantes. As referências mais estáveis, até então, do certo e do reprovável, do adequado e do inconveniente, do desejável e do contraproducente, desmoronaram, em grande parte, diante dos sedutores incitamentos à transgressão de regras, normas e costumes, efetivados, sobremaneira, pela TV e pela publicidade, no rastro do consumo permanente e festivo. Desse modo, o poder coercitivo de mães, pais e docentes já não ressoa como outrora.

As estratégias para definir o permitido e o proibido entraram em crise. A permanência, que era um traço constitutivo da autoridade, foi rompida pelo fluir da novidade. Se é quase impossível definir o permitido e o proibido, a moral deixa de ser um território de conflitos significativos para converter-se num elenco de enunciados banais: a autoridade perdeu seu aspecto terrível e intimidatório (que potencializava a rebelião) e só é autoridade costuma fazer, com indesejável freqüência) quando exerce a força repressiva (como (SARLO, 2004, p. 39-40).

De acordo com Certeau (1995), o poder cultural, nuclearizado na escola em tempos idos, se disseminou em múltiplos espaços-tempos com a massificação da TV. Em 194

conseqüência, a instituição escolar situa-se numa posição contraditória na sociedade contemporânea, pois o Estado continua lhe atribuindo a função de socializar um modelo cultural por ele sistematizado e estabelecido e, contrariamente, ela se vê coagida e minada pela cultura difundida na mídia, especialmente a TV.

As falas do apresentador do programa retratado no filme Hairspray ilustram muito bem os aspectos salientados pelos três estudiosos. Na música de abertura, endereça ao público estudantil a seguinte mensagem provocativa: “Toda tarde largue tudo. Quem precisa ler e escrever se pode dançar e cantar? Esqueça álgebra e cálculo. Faça sua lição no ônibus. Não sei diferenciar verbo e substantivo”. Depois, é ainda mais transgressivo e categórico, ao afirmar: “Quem quer dormir se pode cochilar na escola? Jamais farão faculdade, mas vão estar na moda. Não precisam de diploma se são a turma mais legal da cidade”.

Enfim, que sentido tem a escola, se a cultura midiática, com seu ritmo frenético, a tornou tão maçante e anacrônica? Até certo ponto, a ansiedade e a sensação de impotência docente se relacionam a essas tensões entre o que se pratica e vivencia no espaço-tempo escolar e o conteúdo audio-visual difundido nas mídias. Esse conteúdo suscita no imaginário do público estudantil desejos, sonhos, anseios, geradores de comportamentos, valores, frustrações, que, levados para as salas de aula das escolas, provocam, em seus profissionais, atitudes variadas de perplexidade, inconformismo, sujeição, enfrentamento, apatia, buscas, indiferença, etc.

Na escola pesquisada essas posturas foram verbalizadas pelas(os) professoras(es) em diferentes momentos, como foi visto. No que diz respeito especificamente ao papel da escola, numa sociedade em que a onipresença da televisão é tão evidente ainda, as falas denotaram inúmeros aspectos merecedores de realce.

O fascínio que a imagem exerce entre as(os) alunas(os) chamou a atenção da professora de Ciências (01), que destacou, também, o quanto rejeitam a linguagem escrita, com suas exigências de concentração e análise. Esse aspecto a incita para um autoquestionamento, uma vez que ele interfere no processo ensino- aprendizagem. 195

Eu vi, ontem, as alunas no corredor vendo a revista de um grupo musical que elas adoram, adoram o som. Tinha uma reportagem falando de cada integrante e o que eles pensam da vida. E elas não leram a reportagem, elas queriam ver as imagens que tavam na revista, só isso, não precisava dizer mais nada. Há uma crise na sala de aula, eu tenho que tá mostrando o tempo todo, né?, associando, e eu não tendo recursos, eu fico no blá, blá, blá. Com certeza, é muito difícil, porque ainda mais a Ciência, a linguagem precisa desse momento da escrita, do entendimento, da leitura. É uma disciplina que requer isso, não tem jeito, não adianta eu só mostrar uma planta. Mostrar um bicho, se eu não falar um pouco da história, de entender como aquilo foi classificado, ou mesmo o corpo humano. Eu posso mostrar as imagens, mas esse entendimento, o funcionamento, exige um pouco mais de aprofundamento. E eles gravando a imagem, o que é cada órgão pra eles, já é o suficiente. Contando de alguma doença que tem na família, já posso trocar de sistema, é frustrante. Assim, às vezes eu teimo na indisciplina deles, às vezes eu fico brava e fico brava comigo também, entendeu?

De fato, a emergência e a massificação das novas tecnologias de informação e comunicação interferiram crescentemente nos processos de subjetivação dos adolescentes que foram ingressando na escola, o que gerou um fosso desconfortante entre essa instituição, com seus ritos e ritmos consolidados por anos, e as atordoantes linguagens audiovisuais.

Em plena era das multimídias eletrônicas e de seus múltiplos, velozes e fragmentados mosaicos de sons, formas, cores e palavras, nosso preparo escolar e acadêmico ocorre quase exclusivamente na esfera do verbal, do conceitual, do linear. Do mesmo modo, a esfera das sensações, emoções e sentimentos não costuma merecer a importância - vital – que demanda, na formação que nos é proporcionada, tanto pessoal quanto profissionalmente (FISCHER, 2003, p. 116).

Outra questão salientada na fala da professora refere-se à dificuldade de enredar os saberes da prática, que as(os) estudantes trazem para as salas de aula, e os 196

saberes científicos. Um cartaz afixado no corredor da escola (Figura 32), referente à presença dos conhecimentos matemáticos na vida cotidiana, nos remete a esse que é um dos maiores desafios educacionais contemporâneos.

Figura 32

Tem um porquê também do tédio acontecer, que às vezes eu tô falando de uma coisa complexa que requer uma concentração maior. Eles precisam daquela leitura, daquele entendimento, porque senão você não vai entendendo, alinhando, alinhavando as coisas, e eles já estão cheios. No meu caso, de Ciências, o que eu enfrento é o seguinte: se eu for deixar, eu não consigo concluir as coisas, porque eles querem falar só do dia-a-dia, um caso da família, uma planta que tem lá na casa e coisas assim. Então, cada dia seria um tema aleatório, mas acadêmico eu não conseguiria dar pra esse grupo de alunos; hoje a gente não consegue dar. Então, às vezes eu me pego, assim, brava com eles, e às vezes eu fico brava comigo também, pois eu tô dando uma aula que, caramba, é extremamente chata pra eles, pra 197

mim não é, é extremamente maravilhoso, eu entendo que aquilo ali é importante, mas pra eles não.

Mesmo quando utilizou imagens de um modo mais interativo e motivador, no laboratório de informática, por exemplo, a professora de Ciências (01), sentiu dificuldade em articular as duas linguagens (visual e escrita), dado o desinteresse dos estudantes pela segunda forma. Porém, não será a imagem, em si, portadora igualmente de um conteúdo acionador de mecanismos cognitivos estimuladores da aprendizagem entre as(os) alunas(os)? E a oralidade, não merece ela igualmente uma atenção maior no processo educativo?

Só que também quando eu uso o recurso da imagem é frustrante. Por quê? Quando eu trouxe aqui pra trabalhar os sistemas, a N tava presente, né, N? [coordenadora do laboratório de informática]. Tavam todos os sistemas aqui, imagens lindas, eles querem ver aquilo ali, mas entender, entendeu? Eles querem ‘zoar’, então, isso dificulta muito, porque eles já viram a imagem, ‘ah, isso é coração, isso é pulmão, o coração tá aqui, isso é uma artéria, isso aqui é uma veia’, pra eles isso é o suficiente, então, o conteúdo pra eles é totalmente dispensável.

Acreditamos que, fragmentar a escrita, a oralidade e a imagem como dimensões hierarquizáveis da linguagem, atribuindo à primeira uma centralidade, uma primazia, que relegaria as outras duas tão somente a um papel complementar, coadjuvante, não seja a postura pedagógica mais adequada. Os méritos e deficiências podem se disseminar nas três, tudo depende das mediações realizadas entre o sujeito e essas formas de linguagem. 198

Figura 33

Um quadro pintado, pendurado atrás da mesa da coordenadora da escola (Figura 33), tinha justamente nos símbolos visuais o seu maior destaque. Eram vários círculos coloridos, com a palavra “paz” escrita no centro, recordando-nos os logotipos das redes de TV. Aquele quadro nos comunicou que o caminho para uma convivência mais justa entre as pessoas e as sociedades passa necessariamente pelo respeito à diferença. A sala da coordenação realmente era o lugar mais propício para colocá-lo, uma vez que fica localizada logo na entrada da escola, sendo palco de muitos conflitos entre familiares, alunas(os), professoras(es), entremeados de choros, discussões e risos, como presenciamos muitas vezes.

Creio que a linguagem da imagem é tão boa quanto a da escrita. Parece-me um argumento falso de intelectuais ilustrados isso de que ‘vamos voltar ao que a espécie humana fazia antes’. Somos videns, somos ludicus e somos sapiens!!!! E somos eroticus etc, e somos tudo isso simultaneamente (GÓMEZ, 2004, p. 60).

O professor de Inglês também lamentou o fato de não encontrar uma resposta positiva das(os) alunas(os) quando varia a metodologia de suas aulas. Externou, conseqüentemente, a frustração que sente nessas situações, indicando que essa é uma questão a ser muito estudada e debatida entre as(os) docentes, qual seja, como romper com o verbalismo repetitivo, com os rotineiros e abstratos exercícios escritos, oportunizando metodologias criativas e motivadoras, sem, contudo, sucumbir ao “oba-oba”, numa aula sem regras e limites, o que leva a(o) 199

professora(or) a pensar duas vezes antes de ousar uma mudança de postura metodológica.

Eu acho, assim, é uma questão muito complexa de você falar. [...] Você também deixar as coisas correrem do jeito que querem e não passar o conteúdo, a própria educação a gente tem que ver também, porque acho que tem que haver uma mudança de mentalidade, uma maturidade por parte deles, que eles ainda não têm, por causa da idade, por conta de uma série de fatores. Porque eu acho, quando você faz uma aula diferente, pra eles é festa, na cabeça deles isso não é aula, é um divertimento, entendeu? Então, não é conteúdo. É diferente, quando, por exemplo, eu dou aula à noite, que eu lido com adultos, né?, que eu faço uma aula diferente. Igual ontem, eu fiz vários jogos, coisa que não dá pra fazer nada de manhã, aí eles falaram: ‘que legal, a gente aprende muito mais assim’. Mas, por que aprende? Porque eu tô fazendo a minha parte e o aluno está fazendo a parte dele, entendeu? Agora, se só eu faço a minha parte, eu faço uma aula de jogos e eles, acabou, ninguém aprendeu nada, eu saio péssimo, porque não deu nada certo, porque eles não têm maturidade ainda, boa mentalidade. Deixa a gente cair também naquele tradicional e é difícil mudar.

A pedagoga da escola buscou atenuar a ansiedade manifestada pela professora de Ciências e pelo professor de Inglês, encorajando ambos a persistir na variação das metodologias de ensino, apesar dos obstáculos. Acentuou, também, a importância do emprego das imagens em todas as disciplinas, pois elas já abarcam em si um conteúdo tão merecedor de pesquisa e estudo quanto os textos escritos.

Eu quero retomar a fala do N [professor de Inglês] quando ele falou que, às vezes, se sente frustrado na questão dos jogos, e que o aluno não consegue enxergar o objetivo que ele havia buscado, o que seria realmente melhor, porque, nós 200

professores e responsáveis, temos todos os objetivos voltados pro aluno. É acreditando no que é melhor pra ele, aí eu quero colocar pro N não ficar com toda essa angústia, N. [...] Nós trabalhamos com o lúdico, é necessário trabalhar, e é necessário trabalhar com o lúdico inclusive com o adulto, né?, porque nós somos ludicidade, todos nós somos, e se aprende muito melhor. Por isso as imagens, professora N [Ciências], que você dá são muito mais proveitosas do que as aulas quando você pensa só naquele conteúdo, e eu te dou parabéns por isso, tá? [...]. Quem disse que eu não posso trabalhar os biomas, né?, fazendo o quê? Fazendo uma seleção de imagens, refazendo, recriando, como se eu tivesse trabalhando um Portinari nas aulas de Artes, né?, eu posso recriar, repensar aquele bioma, aquele ecossistema.

Ressaltou, em seguida, o quanto ainda é arraigada a cultura docente, segundo a qual as atividades exclusivamente práticas ou relativas ao uso dos recursos audiovisuais (imagens fixas, filmes, documentários, trechos de atrações televisivas, etc.) são secundárias em relação aos textos escritos, ou seja, apenas complementares a esses. Externou igualmente a convicção de que é necessário valorizar os pequenos êxitos no cotidiano do processo educativo, transformando-os em nossos motivadores para ousar outras possibilidades e alternativas na qualificação da aprendizagem das(os) alunas(os).

Isso é uma questão nossa mesmo. Se nós vamos para um curso, aonde o curso é muito mais oficineiro do que conteudista, nós acreditamos que aquele curso não tem tanto valor, porque ele não foi conteudista. Nós somos conteudistas, agora podemos ser conteudistas dentro dos jogos, dentro da ludicidade.[...]. Então, eu acredito que, muitas vezes, essa angústia que a gente tem e esse desacreditar no outro é uma coisa muito nossa. Isso a gente também tem que trabalhar, e a gente tem que valorizar aquilo que a gente faz, e não é valorizar com queixas, é valorizar o pouco que o outro 201

conseguiu avançar, porque, se ele conseguiu sair dessa cadeira pra outra, ele já teve um progresso. A gente tem que avaliar e botar isso como um objetivo, porque foi a sua postura de profissional que fez com que ele enxergasse a outra cadeira pra sentar.

Ser responsável por uma disciplina que não atribui nota, aspecto que, mal ou bem, ainda é utilizado pela escola e pelas famílias, visando pressionar as(os) alunas(os) para os estudos, angustia a professora de Ensino Religioso, que pontuou igualmente o desinteresse delas(es) pela leitura, buscando compreender de forma mais abrangente e aprofundada as idéias e mensagens dos textos.

Antigamente os alunos se preocupavam pelo menos com nota. Hoje em dia não se preocupam com nota nem com aprender, e eles não querem nada. Tudo o que você começa a dar, ‘vale quanto?’ ‘Eu preciso de mais quanto?’ Então, na minha área, que não tem nota [que não tem nota é pior ainda], eles dizem assim: ‘eu não vou fazer isso não, porque não tem nota. Pra que eu vou pesquisar, se não tem nota? Por que eu quero saber então, por que eu vou assistir sua aula?’ Quer dizer, eles não vêem o valor, né? [...]. Ontem, na 6ª B, por exemplo, uma aluna entendeu o texto, uma aluna de 36, entendeu o texto e questionou, trocou idéia, debateu. Mas ninguém quer nem saber, sabe?, aí eu falo: ‘lê fulano, eu já li’. Eles não lêem não, eles correm os olhos, eles não lêem pensando. ‘Eu já li, professora, o que que eu vou fazer agora?’ ‘Você lê, analisa, pra você poder responder essas perguntas’. Aí eles começam, você passa, pede pro aluno responder, foi sim ou não, aí eu falo: ‘todo sim tem um porquê, todo não tem um porquê’. Aí eles respondem: ‘mas sim é sim, não é não, professora’. Eu vejo isso.

Foi complementada em sua fala pela colega de Língua Portuguesa, que se disse apreensiva com a falta de conhecimentos elementares por parte das(os) alunas(os). 202

Só pra complementar o que ela falou aí, o que me preocupa é que conhecimentos, assim, rotineiros, coisas de rotina, tipo assim, o que que é vertical, o que que é horizontal, tem alunos, eles param, eles não sabem. Então, isso me assusta, pois um dia desse a aluna perguntou pra mim: ‘professora, o que é continente, que eu nunca consegui entender o que é continente’? Então, isso é preocupante.

Linhares (2001, p. 48) constata que, em seus múltiplos diálogos com as(os) professoras(es), na condição de palestrante-pesquisadora, sobressaem inúmeros desnorteamentos, que nos remetem aos contextos de violência que adentram a escola, aos perfis subjetivos das(os) alunas(os), cada vez mais desconcertantes e fora dos padrões clássicos, ao sentimento de orfandade, às múltiplas dificuldades de interação no processo educacional, entre outros.

As conversas e entrevistas com professores brasileiros falam de que eles se sentem começando a cada dia. Nunca sabem o que vai acontecer. Que estão sempre estreando no enfrentamento de novos perigos, para os quais nunca foram preparados. Que nestes últimos anos os discursos sobre a escola se desencontram fortemente das práticas escolares. Que os interlocutores dos professores e estudantes mudaram, mudaram muito.

São aspectos de grande amplitude e pertinência, que têm sido debatidos e estudados por inúmeros teóricos. O cenário sociocultural contemporâneo corrói e estilhaça as bases conceituais e organizacionais em que se constituiu a escola. Essa instituição que se firmou sobretudo na modernidade, com as revoluções liberais e a consolidação dos estados nacionais, possui uma estrutura e um funcionamento lineares, compartimentados e hierarquizados em séries e disciplinas, que gravitam em torno da leitura e da comunicação impressa. Ela concebe igualmente as(os) alunas(os) que atende, como portadores de uma identidade abstrata, generalizante e desencarnada, imune às intensas mestiçagens atuais nas maneiras de ser e de viver. Assim, a seriação baseada nas fases de 203

desenvolvimento mental e a avaliação da aprendizagem, determinante da promoção para as séries subseqüentes, centram-se consideravelmente na prática da escrita e da leitura. Ignora-se a ubiqüidade da imagem no cotidiano das(os) alunas(os), com as novas tecnologias de informação e de comunicação, principalmente o computador e a TV e suas diferenciadas formas textuais.

Perante esse novo desafio histórico, freqüentemente a escola e seus profissionais, bem como os órgãos gestores, não fazem uma autocrítica, um reexame de suas práticas pedagógicas, ignorando também que os modos de as novas gerações perceberem e compreenderem o mundo com seus fenômenos naturais e sociais, em contextos nitidamente imagéticos como os nossos, precisam ser mais intensamente pesquisados e estudados. As imagens adentram as escolas, com o uso de multimídias, mas, via de regra, ainda numa perspectiva muito instrumental, secundária e acessória, complementando os textos escritos.

Reforçando essas posturas anacrônicas, há um desprezo pela oralidade, predominante nesse artefato, bem como nas culturas negras e nativas, que tanto se entrecruzaram no passado e atualmente, configurando processos híbridos de identificação. Além disso, mesmo a centralidade da leitura e da escrita no cotidiano escolar muitas vezes se burocratiza, sucumbindo à repetição inócua, distanciando- se das práticas cotidianas dos adolescentes. Esse conjunto de desafios complexos e enredados impõe a todos os sujeitos envolvidos direta ou indiretamente no trabalho escolar uma série de questionamentos.

Que atenção estão prestando as escolas, e inclusive as faculdades de educação, às modificações profundas na percepção do espaço e do tempo vividas pelos adolescentes, inseridos em processos vertiginosos de desterritorialização da experiência e da identidade, apegados a uma contemporaneidade cada dia mais reduzida à atualidade, e no fluxo incessante e embriagador de informações e imagens? Que significam aprender e saber no tempo da sociedade informacional e das redes em que se inserem instantaneamente o local no global? Que deslocamentos cognitivos e institucionais estão exigindo os novos dispositivos de produção e apropriação do conhecimento a partir da interface que enlaça as telas domésticas da televisão com as laborais do computador e as lúdicas dos videogames? (MARTIN-BARBERO; REY, 2004, p. 58).

São inadiáveis o estudo e a análise dessas interrogações, se não quisermos ampliar mais ainda o mal-estar e a angústia docentes com a entrada na escola de alunas(os) 204

cujas identidades socioculturais ambíguas e impuras exigem a reinvenção permanente da prática pedagógica. Temos, portanto, “alienígenas na sala de aula” (GREEN; BIGUM, 2001, p. 211), com sujeitos mutuamente estranhos entre si, que muitas vezes não interagem o suficiente, visando produzir aprendizagens socialmente relevantes.

Com tantas demandas e desafios endereçados à escola, somos, por vezes, tentados a questionar o seu próprio sentido como espaço-tempo ao qual historicamente se atribuiu o papel de formar as novas gerações para a vida social. “Há futuro sem escola? Há escola sem futuro?” (LINHARES, 2000, p. 44).

Para as(os) responsáveis das(os) alunas(os) que freqüentam a escola pesquisada, as possibilidades de concretizar uma vida sem tantas penúrias e carências, configurando um horizonte vindouro com melhores condições de vida, passa necessariamente pela instituição escolar. Certa vez, quando nos dirigíamos a essa unidade de ensino, lemos, num adesivo afixado na traseira de um táxi, a seguinte frase: “Filho de rico é playboy, filho de pobre é motoboy”. Ficamos refletindo acerca dos significados contidos na afirmativa, que engloba constatações e vivências de tantas(os) brasileiras(os) vitimadas(os) por toda sorte de arbitrariedades socioeconômicas, políticas e culturais, como o desemprego e o subemprego, os baixos salários, pela justiça, que muitas vezes dicotomiza dois pesos e duas medidas, dependendo da origem social da pessoa, pela ausência de perspectivas ou oportunidades menos ordinárias de inserção no mercado de trabalho, pelos programas de TV apelativos e pelas seções dos jornais sensacionalistas que as(os) transformam em destaques de tristes histórias, etc.

No entanto, eis que, nas margens desse quadro sombrio, a escola surge como um espaço-tempo no qual se busca resistir a tantos abusos e privações, arejando a esperança de dias melhores. Assim, as familias dessas(es) adolescentes não medem sacrificios para mantê-los estudando. Presenciamos um desses atos cotidianos de persistência, quando inúmeras(os) alunos(os) chegavam para um dia de estudos, transportados em ônibus (Figura 34) e outros veículos menores (Figura 35). 205

De acordo com a coordenadora da escola, são cinco ônibus, pelo menos outras cinco vans, sem falar em algumas kombis e outros veículos menores que transportam as(os) alunas(os).

Figura 34 Figura 35

O estabelecimento de ensino, fundado em 1950, fica situado num dos principais bairros de Cariacica, próximo à rodovia que dá acesso ao centro da capital e de população com nível socioeconômico médio e alto. É um dos mais tradicionais desse município da região metropolitana de Vitória, e pertencia à rede estadual até 2004, quando foi municipalizado. Tais fatores explicam parcialmente a grande afluência de estudantes de outros bairros de Cariacica, que superam numericamente aquelas(es) que residem no bairro sede. Após um levantamento que realizamos na ficha individual de cada estudante, que fica arquivada na secretaria, constatamos que alunas(os) de 16 bairros diferentes freqüentavam a 8ª A; na 8ª B eram 18 bairros de origem, enquanto na 7ª A e 7ª B, 14 bairros. A 6ª A (12 bairros), a 6ª B (9 bairros) e a 5ª A (10 bairros) também acompanhavam essa tendência de variação quanto aos locais de residência.

Em conversas informais com algumas(alguns) estudantes e com a coordenadora, que lá atua desde 1974, concluímos que o bom conceito da escola junto à população do município é outro aspecto que atrai sujeitos de procedências geográficas tão heterogêneas. As realidades estruturais desfavoráveis, todavia, são, em nossa perspectiva, o principal fator que leva as(os) responsáveis por essas(es) alunas(os) a não poupar esforços para matriculá-las(los) nessa unidade de ensino. Os bairros onde mora a maioria das(os) alunas(os) são expostos a muitas mazelas sociais que atormentam as periferias das grandes cidades brasileiras, como a 206

violência, o tráfico, a precariedade dos serviços públicos, a pobreza, entre outros, e que, com maior ou menor intensidade, atravessam o cotidiano das escolas públicas neles situadas. Assim, desejam que suas(seus) dependentes estudem num espaço- tempo menos sujeito a tais dramas, vivenciando outras possibilidades de uma vida menos sofrida e desamparada e enxergando, no tempo que ali passam, o exercício fundamental para construir trajetórias pessoais e profissionais mais justas.

Aqui no Brasil, a educação escolar vem sendo exigência crescente da população, seja para ter um lugar ‘protegido’ para seus filhos (contra as drogas e outras ameaças), seja para permitir que consigam ‘uma vida melhor’ (com maior possibilidade de emprego e de ganhos diversos, inclusive respeito social), ou, ainda, como lugar de trocas sociais para si mesmo (ALVES, 2003, p. 100).

Em meio a tantos relatos docentes que explicitaram a aflição e a perplexidade perante um contexto tão complexo e contraditório, o professor de Matemática (02), voltou a insistir na necessidade de o coletivo escolar construir um projeto político- pedagógico que enfrente esses e outros desafios, o que já enfatizara em outro encontro anterior. Apesar das dificuldades objetivas na escola, do calendário anual engessante, das quase sempre cansativas jornadas do trabalho docente, o professor defendeu uma atitude mais participativa e engajada dos seus pares, objetivando potencializar a ação educacional, burlando, inclusive, algumas normas instituídas.

Eu penso assim, que o desafio da escola é muito grande, a gente chegou a conversar nos primeiros encontros, chegamos à conclusão que, se a escola não se organizar pra fazer um projeto em conjunto, primeiro os professores, nós que estamos tendo essa conscientização, até eu cheguei a comentar isso, trabalhar realmente essas questões, nós não vamos resolver todos os problemas, porque eu acho que os pais têm maior responsabilidade sobre os filhos, o que tão vendo, deixando de ver, mas também temos parcelas de contribuição nessa educação da sociedade. Agora, tá havendo a questão da falta de atitude, é geral, em todas as escolas eu vejo isso e eu cobro isso. Na verdade, se a gente não tiver um projeto onde faça o aluno pensar, cobrar isso dele, cobrar mesmo, ser assim 207

rigoroso no sentido dessa cobrança, vai continuar tudo como está. A gente não quer cobrar muito, a gente fica naquela questão de não cobrar, porque adoece cobrar demais, nos faz estressar. [..]. Então, nós estamos desgastados, várias horas pra alcançar essas coisas, muitas horas, não só minutos, muitas e muitas horas. Mas, se todos fizerem, toma força. Então, por isso que eu falei na questão desse projeto no início. Nós temos que primeiro entender, e a escola tem que querer fazer, porque é difícil. Eu trabalho em três, quatro escolas, dou aula em três horários diferentes, vocês também a mesma coisa, eu sei disso. A escola, se ela proporcionar isso, a gente tem a possibilidade de fazer, porque senão, se a gente ficar preso aos 200 dias letivos e às 800 horas, as coisas vão se repetir.

O professor concluiu a sua fala, manifestando-se um tanto cético quanto à possibilidade de mudanças significativas no contexto social presente, mas apostanto nas ações educativas da pequena escala, a partir do espaço-tempo escolar, onde julga ser possível alargar brechas para movimentos instituintes que repercutam socialmente.

A gente tem que trabalhar junto pra tentar resolver alguma coisa, porque eu, pra ser franco, eu tô incrédulo em relação à reversão desse quadro que a sociedade se encontra também. Mas não sou incrédulo em que alguns objetivos podem ser alcançados, isso não, eu acho que onde a gente tá, a gente tem que procurar fazer a diferença, a gente tem que cooperar, dar a nossa contribuição, isso eu acredito. Eu tenho que, no dia-a-dia aqui, tentar ajudar, porque eu ajudando aqui, pode chegar lá, eu penso assim.

As considerações desse professor nos alertam que a escola é uma “arena de lutas” (ARANHA, 2001), com possibilidades significativas de colaborar na concretização de uma democracia de alta intensidade, articulando-se a outras instâncias e 208

movimentos sociais. Desse modo, com seus sujeitos praticantes, é um espaço- tempo no qual se tensionam e misturam permanentemente as práticas que cristalizam a reprodução e o conformismo e os movimentos e experiências instituintes, que ousam reinventar outras formas de mediação entre as(os) alunas(os) e as realidades cambiantes e desafiadoras que as(os) cercam.

A professora de Ciências (01), por exemplo, buscou, por meio de uma atividade escrita, mediar a interação das(os) alunas(os) com o que é veiculado nesse meio de comunicação. Assim, em cinco turmas com as quais trabalhava (6ª A, 6ª B, 7ª A, 7ª B e 7ª C), ela indicou cinco questões a que deveriam responder, pertinentes a alguns aspectos que considerou importantes com relação aos conteúdos televisivos. Eis o teor das questões:

1.Anote os nomes e horários de programas de televisão.

2.Consegue separá-los por tipo de entretenimento?

3.Escolha um programa a que assiste e faça um texto relatando do que gosta e do que não gosta.

4.Qual tipo de programa você acha que falta na televisão?

5.Você gosta da programação que a televisão apresenta?

Analisamos as respostas fornecidas pelas(os) das(os) alunas(os), somente nas questões 3, 4 e 5, que apresentavam dados mais relevantes ligados ao que estávamos investigando. Chamou nossa atenção a variabilidade dos gostos, preferências e sugestões externados, porém com uma ênfase para Malhação e as novelas (os números indicados entre parênteses quantificam as vezes que os programas foram citados). Na 6ª A, quase metade das(os) alunas(os) escolheram a atração teen (9) e as novelas (5), de um total de 22 respostas para a questão 3 (“Escolha um programa a que assiste e faça um texto relatando do que gosta e do que não gosta”). As outras opções foram para programas diversificados, como Domingão do Faustão, Caldeirão do Hulk, Beija Sapo, TV Xuxa, Fantástico, Curtindo com Reais e Mix TV. Na 6ª B, as novelas (3) e Malhação (2) prevaleceram num 209

conjunto de 9 respostas. Os clipes musicais e o Vídeo Show completaram esse total. Na 7ª A, houve um empate nas atrações mais escolhidas, sendo Malhação (4) e as novelas(4) as mais votadas, numa soma de 22 respostas. As outras opções foram de desenhos animados (2), Beija Sapo (2), seriados (2) e de programas humorísticos, esportivos, policiais e telejornalísticos, Domingão do Faustão e Sessão da Tarde, com uma escolha cada um, além de outras duas respostas que registraram o gosto por tudo o que é exibido. Na 7ª B, a liderança também ficou dividida entre Malhação (4) e as novelas (4), de um total de 19 respostas, seguidas pelo Mix TV (2), seriados como Eu, a patroa e as crianças, Casos de família e a Grande Família, e outros programas, como Domingo Legal, Zorra Total, Vídeo Show, Globo Esporte, Programa da Tarde, com uma escolha cada um; um estudante afirmou gostar de tudo. As preferências da 7ª C foram as mais equilibradas, pois, de um conjunto de 16 respostas, Malhação (3) e desenhos animados (3) empataram, seguidos por Mix TV (2) e TV XUXA, Zorro, Globo Repórter, Vídeo Show, Eu, a patroa e as crianças, Beija Sapo e “tudo”, com uma escolha cada um. É oportuno registrar que a grande maioria das atrações citadas faz parte da grade de programação da Rede Globo.

Quanto à questão de número 4 (“Qual tipo de programa você acha que falta na televisão?”), na 6ª A, os programas educativos foram os mais lembrados (10), seguidos de atrações mais focadas nos adolescentes e jovens (3). As outras escolhas variaram bastante, como programas de luta, de ação, infantis, mais seriados e menos novelas com “pultaria”, como foi salientado numa resposta. Na 6ª B, as opções se diversificaram mais, com respostas que iam dos programas educativos (2), futebol para crianças (2), nenhum (2), até filmes, funk (“Furacão 2000”) e seriados, com uma escolha. “Faltam mais filmes brasileiros e programas com mais respeito às pessoas”, acentuou uma resposta. Na 7ª A, os programas educativos voltaram a se destacar (8), seguidos por “nenhum” (4). As outras opções destacaram filmes de comédia (2), filmes de ação, programas de humor, clipes evangélicos, seriados estadunidenses (1). Duas respostas salientaram uma necessidade, qual seja, “um programa que coloque os jovens de classes diferentes, tipo jovens com preconceito. Isso ia ser bom para acabar com as diferença sociais”. Na 7ª B, a resposta mais externada foi a de que não falta nada à programação televisiva (5), seguida da ênfase à necessidade de programas exclusivamente 210

adolescentes (4) e dos programas educativos (3). As outras opções recaíram sobre as atrações humorísticas (2), desenhos no horário noturno, programas de moda, um programa de basquete de rua, programa de informação sobre o Brasil, “um que as pessoas aprendam a ter respeito e confiança umas nas outras” e “um canal falando mais sobre o sexo, para todos nós ficarmos por dentro”. Na 7ª C, as(ao) alunas(os) foram bastante econômicos em suas respostas, elegendo os desenhos como a atração que merece maior espaço (5), seguido por programas educativos (2) e nenhuma outra atração (2). Com um destaque, apareceram programas de diferentes gêneros, como filmes, de carros, humorísticos, de jogos, sobre o racismo, de censura livre, mais diversificados.

Numa relevante investigação realizada pela ANDI (Agência de Notícias dos Direitos da Infância) em conjunto com o Unicef, focada nas produções televisivas destinadas aos adolescentes e jovens brasileiros, verificou-se que

Por um lado, raramente essa programação consegue expressar as diferenças sociais, étnicas e culturais dos adolescentes brasileiros. Em contrapartida, mesmo no contexto das emissoras comerciais, marcado por uma disputa de vida ou morte pela audiência, é possível nos depararmos com uma série de experiências inventivas, que abrem um campo de prospecção rumo a um cenário que consiga aliar relevância social e criatividade (ANDI, 2004, p. 7).

Nesse estudo, foram analisados programas cuja irregularidade de exibição foi uma marca. As atrações adolescentes Altas Horas e Malhação (Rede Globo), são as únicas, de que temos conhecimento, a permanecer no ar. Buzzina MTV (MTV) mudou de formato e de horário; Sexualidade, Prazer em Conhecer (Canal Futura), Fazendo Escola (TV Cultura), eram séries fechadas, com um número determinado de edições, e Interligado Games (Rede TV!), Intim@ção (Rede Vida), Subcontrole (Band) e Meninas Veneno (MTV) foram suspensas.

Vê-se, portanto, que as(os) alunas(os), na condição de telespectadores, não têm muitas opções de qualidade audiovisual e de conteúdos que lhes sejam especificamente endereçados de forma criativa, instigante e educativa, sem ser enfadonhos ou monótonos. Ainda que existam atualmente programas com esse perfil, são de pequena audiência e não chegam a mobilizar o interesse em larga escala dos adolescentes. Restam, então, apenas as duas atrações da Rede Globo, 211

o que, em nosso ponto de vista, é uma das razões do sucesso de Malhação junto a esse segmento, o que já evidenciamos em páginas anteriores.

No que se refere à pergunta número 5 (“Você gosta da programação que a televisão apresenta?”), a 6ªA mostrou-se, no geral, bastante criteriosa, pois, mesmo tendo a maioria respondido “sim” (12), foi feitas algumas ressalvas: “Sim, existem coisas ruins, mas também tem coisas boas que a gente pode guardar com a gente”, destacou uma resposta. Outras respostas afirmativas enfatizaram a variedade de opções, dando a entender que o sujeito busca selecionar aquilo a que assiste: “Sim, porque tem filmes, programas, novelas de comédia e terror”. No grupo das(do)s que responderam “mais ou menos” (8), houve uma ênfase no aspecto de que o conteúdo apresentado não é indistintamente bom: “Às vezes, porque tem coisas muito ruins e também tem coisas muito boas”, pontuou uma das respostas. As/os alunas(os) que optaram pelo “não” (2), apresentaram como justificativa o excesso de cenas violentas: “Não, porque tem programa que traz muita má influência que nem a novela Vidas Opostas”, ou o fato de não assistir à TV costumeiramente: “Não, porque eu não vejo muita televisão”. Já na 6ª B, a satisfação parcial com o conteúdo veiculado foi a percepção majoritária (6), como bem o demonstra uma das respostas:

Depende, de tudo não, porque tem desenhos que passam de madrugada, às 4 horas da manhã, tem filmes violentos e ruins ainda que passam cedo. Tem algumas coisas legais na TV, mas também tem muita coisa ruim, programas que eu não gosto passa um monte.

O “sim” sem maiores explicações (3) e o “não” (1) vieram em seguida. Na 7ª A, verificou-se um equilíbrio nas opiniões “sim” (11) e “parcialmente” (9); o “não” foi pontuado somente uma vez. Nessa turma, chamaram a nossa atenção as respostas nitidamente “enxutas”, sem maiores justificativas. Na 7ª B, ao contrário, o “sim” predominou (13), sem nenhuma razão para as respostas, seguido do “mais ou menos” (6), pouco comentado; o “não” (2) foi justificado por um aluno sem maiores explicações: “falta muita coisa”, afirmou, sem detalhar exatamente o quê. Na 7ª C, a exemplo da 6ª A, embora o “sim” tenha sido o mais acentuado (10), houve 212

igualmente a preocupação em não absolutizá-lo, em quatro dessas respostas: “Sim, algumas coisas são boas, mas tem umas que ninguém merece. Só tem coisa chata e que não presta, em vez de ensinar, piora as coisas. Por isso que o mundo está assim hoje”, externou uma delas. Nas opções pelo “mais ou menos” (5), as justificativas praticamente inexistiram, aspecto que também marcou o único “não” respondido. Pela riqueza de dados e informações contidos nas opiniões das(os) alunas(os), dando margem a inúmeros debates, é possível percebermos o quanto são relevantes iniciativas como essas da professora de Ciências, no sentido de uma mediação escolar que oportunize a problematização dos conteúdos televisivos.

A mesma professora de Língua Portuguesa que anteriormente se mostrou cismada com os parcos conhecimentos discentes na atualidade evidenciou a falta de autojulgamento que tantas(os) educadoras(es) demonstram em relação às suas práticas pedagógicas relativas à escrita e à leitura, focando somente nas(nos) alunas(os) suas apreciações valorativas e diagnósticas.

Nós vemos muita crítica ao aluno, mas eu fico olhando o comportamento, às vezes, do professor, é aquele que mais critica o aluno. Eu observo depois o comportamento dele como é igual aos alunos, como os professores têm um comportamento igual aos alunos sobre a escrita. Fui fazer um curso na Ufes exatamente sobre a leitura e a escrita. [...]. Nesse curso, eu escutei uma pessoa falando meia hora sobre o pendrive, o pendrive era a salvação do mundo, ele não precisa levar uma palestra na maleta, ele leva a palestra dele no bolso. Pois na hora de fazer a palestra, o pendrive falhou e o professor teve que ler, e quando o professor lia, os professores ficavam numa posição tão confortável quanto a da N [coordenadora do laboratório de informática], quando na sala ela exige que o aluno esteja com a coluna pregada na cadeira, né?

Em seguida, a professora assumiu publicamente também como suas tais deficiências pedagógicas, quando se trata de motivar as(os) alunas(os) para leituras 213

e escritas mais aprofundadas e complexas, contentando-se com o aligeiramento que ocorre nesse âmbito. Teceu igualmente algumas críticas à falta de alternância nas aulas dadas nas escolas, centradas nas falas da(do) professora(or), que ainda assume um papel dominante nesse espaço-tempo, submetendo geralmente as(os) alunas(os) a funções coadjuvantes e subalternas.

Então, a escrita é reflexo do que o aluno vive, dessa superficialidade em que eu me encarrego muitas vezes de passar textos pros meus alunos, porque eu também muitas vezes perco a coragem de fazer o que eu já fiz antes, que é de trabalhar realmente o meu aluno, o que ele tem de bom. Eu nivelo o aluno por baixo, eu sufoco aqueles que sabem. Então, o que me angustia é ver o que eles escrevem, eles escrevem o que eles vêem, eles escrevem também o que nós passamos, porque eu vejo a nossa aula muito igual, eu vejo a gente ainda no feudalismo, eu vejo a gente antes da Revolução Francesa.

Posteriormente, a mesma professora reconheceu essa relevância da escrita, mas não poupou críticas a muitos de seus colegas de área, explicitando o medo e a insegurança que demonstram em relação à composição de textos, bem como o desinteresse que têm em planejar aulas mais dinâmicas e cativantes.

Então, a escrita é o retrato né?, ninguém escreve, se você pegar um professor, vamos selecionar aqui o professor de Português, manda um professor de Português fazer uma redação, ele treme nas bases. Eu trabalhava numa escola de leitura e redação pra vestibular, onde o professor era obrigado a escrever redações. Você podia matar, dar tiro, que o professor não pegava aula de redação pra dar, que ele era obrigado a escrever redação, tá. [...]. Se você pegar o professor que reclama que o aluno escreve mal e pedir a ele, ‘faça uma redação’, ele não tem concordância, ele morre de medo. De seis professores que você juntar, eu te garanto que, com segurança, você vai encontrar três fazendo uma redação 214

sem medo. [...]. Então, é assim, eu acho que tá faltando a gente ser um pouco menos hipócrita nas nossas reclamações e acompanhar um pouco mais de perto as pessoas, e fazer das nossas aulas umas aulas mais decentes. Aí, voltando ao curso que eu fui fazer, tinha gente dormindo, gente fazendo não sei o quê. Tava lá pra ‘plantar bananeira’ e reclamando da aula do professor, que em nada é diferente do que eles são. É muito melhor, porque ele ainda levou um assunto, mas quando o professor começou a ler, começou a fazer não sei o que lá, quer dizer, muitos queriam imagens, porque é lá na faculdade, queriam que o professor trouxesse uma coisa fantástica. Quando o professor deu uma aula que era a cara deles, saíram e foram embora, somos assim.

A professora pontuou ainda o quanto as linguagens audiovisuais da mídia estão ausentes das práticas pedagógicas, assim como estilos musicais tão ao gosto adolescente (funk, rap, hip hop, etc.) e outras formas de expressão artística apreciadas por esse segmento social. No caso da TV, salientou que o seu conteúdo ainda não é adequadamente incorporado pelas(os) professoras(es) em suas metodologias de ensino, embora se incluam geralmente na audiência cativa da sua programação.

Eu vejo que a gente critica muito os meios de comunicação, mas a gente não entra nos meios de comunicação, não se utiliza deles. Eu acho que se eu usasse nas minhas aulas as músicas que os meus alunos ouvem, e eu tirasse a minha máscara, querendo que o aluno ouça comigo Chico Buarque, querendo que o meu aluno assista comigo Muito Além do Jardim, já seria uma mudança. [...] Vemos a televisão como um bicho, como algo que vem trazer coisa ruim pra dentro da nossa casa, e, na primeira oportunidade, estamos diante dela, porque é muito mais fácil, que é muito isso, que é muito aquilo, e todos nós gostamos de facilidade, então, falta usá-la mais na sala de aula. 215

Nesse sentido, outro desafio docente que destacou, a exemplo de sua colega de Ciências, foi a necessidade de enredar os conhecimentos práticos das(os) alunas(os) com os conteúdos prescritos das disciplinas.

Nós somos acomodados, temos medo de pegar o que o aluno tem e transformar em aula. Eu confesso a vocês que nem sempre pego o que o aluno tem e transformo na minha aula; eu ainda continuo usando a gramática que o aluno lia, com os mesmos verbos transitivos direto e indireto, sem muitas vezes pegar dos alunos o que eles têm.

Com tantas demandas pedagógicas geradas por um emaranhado de fatores dentro e fora da escola, é fundamental o envolvimento dos familiares das(os) alunas(os) que, articulados com os profissionais dessa instituição, potencializarão o trabalho educativo. Foi o que externou a professora de Artes, ressaltando a urgência de se viabilizarem espaços-tempos coletivos para o debate dessas questões e as possíveis ações instituintes. Assim, defendeu a necessidade de

Conscientizar a família, porque é importante pararmos pra melhorarmos os filhos deles, a nós próprios, porque, enquanto nós estamos motivados e ordenados naquilo que estamos fazendo, todo mundo vai ver uma certa ordem também naquilo que os filhos estão aprendendo. Os pais não têm essa consciência, pra eles é péssimo parar, mas, se a gente parar com eles, de repente, eles vão entender. Eu acho que a escola tem que ir pra esse lado.

Sua colega de Geografia, no entanto, pontuou que não basta somente uma formação contínua das(os) professoras(es) e a parceria com as famílias das(os) alunas(os). Se não houver um compromisso ético-político das(os) educadoras(es), as práticas instituintes no cotidiano escolar não se ampliarão. 216

Eu acho que eu também não faço a capacitação, mas capacitação não é tudo, porque precisa de força de vontade, a gente pode ser tão capacitado e não querer fazer nada. Então, precisa de força de vontade, precisa de dar incentivo, ou vem de dentro ou nada vai ser mudado. E aí precisa de uma conscientização muito maior do que uma capacitação.

Sem desmerecer ou ignorar o fato de que as(os) docentes já enredam seus respectivos conteúdos disciplinares com alguns aspectos das mensagens televisivas, o que já foi evidenciado neste e nos capítulos anteriores, cremos que exista ainda um enorme campo de possibilidades para ações pedagógicas centradas naquilo que a TV produz e socializa. Fischer (2003) nos chama a atenção para algumas tarefas pedagógicas relevantes nessa esfera de entrelaçamentos da educação, da cultura e da sociedade. A autora sugere operações de “desmanche” relativas ao conteúdo da TV.

Isso implica trazer para a escola e as salas de aula todo o repertório variado das produções televisivas, como novelas, telejornais, seriados, propagandas, atrações infantis e adolescentes, reality shows, humorísticos, entre outros, submetendo suas cenas, diálogos, gestos, performances, cenários, enfoques, frases de efeito, vocabulários, significados, etc. a problematizações que privilegiem leituras multilaterais e complexas de suas visões e abordagens. Embora não fosse uma sala das séries finais do ensino fundamental (5ª a 8ª), encontramos um cartaz afixado na turma da 2ª série, com a letra da música Alfabeto da Xuxa (Figura 36), que bem exemplifica o uso de um conteúdo televisivo, na tentativa de melhorar a aprendizagem discente.

217

Figura 36

Transformar tais conteúdos, portanto, num constante foco de pesquisa que nos subsidie na prática pedagógica, pode ser uma das alternativas de viabilização de movimentos instituintes na escola. A TV brasileira, como já acentuamos, em alguns dos seus produtos de maior audiência, como as novelas, tem o mérito de visibilizar certas problemáticas humanas e sociais que podem se tornar excelentes conteúdos para estudos, debates e pesquisas no espaço-tempo escolar, pois aguçam a curiosidade, inquietam, seduzem, induzem, enfim, provocam as mais variadas posturas e reações em nossas(os) alunas(os). Todavia, como nos recorda Certeau (1994), diante de tais mensagens e apelos, “posta-se uma produção de tipo totalmente diverso, qualificada como ‘consumo’, que tem como característica suas astúcias, seu esfarelamento em conformidade com as ocasiões, suas ‘piratarias’, sua clandestinidade’ (p. 94). Ou seja, na condição de telespectadores, as(os) alunas(os) nem sempre se comportam passivamente, internalizando acriticamente tudo o que vêem e ouvem na TV, mas enredam seus conteúdos com as aprendizagens cotidianas no espaço-tempo doméstico, com os círculos de amizades, na internet, nas religiões que frequentam, na própria escola etc. Muitas falas e imagens discentes já explicitadas nesta tese bem o comprovaram. Esta constatação, entretanto, não exime a escola de potencializar o seu significado e presença nas múltiplas tessituras de saberes-fazeres em que as(os) alunas(os) se 218

inserem, oportunizando, por exemplo, abordagens multifocais das mensagens televisivas, como realizou a professora de Língua Portuguesa do turno vespertino da escola em relação as notícias jornalísticas (Figura 37).

Figura 37

Por decorrência, é mais que oportuna a mediação docente, objetivando desnaturalizar esses conteúdos da TV, favorecendo às(aos) alunas(os) a compreensão de que tais produções não pairam acima e além das contradições históricas, mas supõem uma escolha, uma intencionalidade, atravessadas por relações de poder hierarquizadas, em meio a tantas alternativas de múltiplas construções narrativas das realidades.

Intrínseca a essas tarefas pedagógicas, se encontra a dimensão curricular. A televisão verdadeiramente atrai suas audiências, pois articula com eficiência ímpar os conteúdos a serem transmitidos com as formas de endereçá-los. Desse modo, seleciona cuidadosamente as imagens, os sons, os textos, os ritmos de transmissão, as(os) apresentadoras(es), visando interpelar os sujeitos para a fruição, o prazer e mobilizando, para isso, sentimentos, crenças, valores, expectativas. Seus conteúdos se constituem, portanto, num currículo e numa pedagogia cultural, que medeia a relação das(dos) adolescentes consigo mesmas(os), com as outras pessoas e com as realidades que as(os) cercam. Padronizam determinados significados para os inúmeros contextos políticos, sociais, econômicos, culturais em que se inserem, interferindo sobremaneira na constituição de suas identidades e 219

subjetividades. Apresentam, conseqüentemente, algumas similaridades com o currículo escolar, se o compreendermos como

[...] o espaço onde se concentram e se desdobram as lutas em torno dos diferentes significados sobre o social e sobre o político. É por meio do currículo, concebido como elemento discursivo da política educacional, que os diferentes grupos sociais, especialmente os dominantes, expressam sua visão de mundo, seu projeto social, sua ‘verdade’ (SILVA, 2001, p. 10).

A exemplo do currículo escolar, que geralmente se torna um meio de consolidação dos interesses de grupos sociais hegemônicos, com o “currículo” televisivo pode ocorrer o mesmo. Numa sociedade campeã de má distribuição de renda como a nossa, onde o fosso entre os mais afortunados e a maioria pobre ou miserável praticamente se cristalizou, em que a outorga de grande parte dos canais de TV está sob o controle de poderosos grupos econômicos e políticos, há uma intencional naturalização de fatos, idéias, situações e perfis subjetivos favoráveis à manutenção de vantagens, que perpetuam injustiças de classe, de gênero, étnico-raciais, de sexualidade, entre outras. Constituem-se, portanto, por meio das estratégias de endereçamento que utilizam, em “verdades” que obstruem significativamente a consolidação da democracia de alta intensidade no Brasil, pois constroem significados nos imaginários adolescentes fortalecedores das relações sociais e de poder assimétricas e verticais. Em decorrência, os conteúdos televisivos

Pelos imensos recursos econômicos e tecnológicos que mobilizam, por seus objetivos – em geral – comerciais, [...] se apresentam, ao contrário do currículo acadêmico e escolar, de uma forma sedutora e irresistível. [...]. É precisamente a força desse investimento das pedagogias culturais no afeto e na emoção que tornam seu ‘currículo’ um objeto tão fascinante de análise para a teoria crítica do currículo. A forma envolvente pela qual a pedagogia cultural está presente nas vidas de crianças e jovens não pode ser simplesmente ignorada por qualquer teoria contemporânea do currículo (SILVA, 2000, p. 140).

Na camisa de formatura das(os) alunas(os) da 8ª A (Figura 38), constava a seguinte frase: “Nós jovens não somos loucos, apenas não temos motivos para sermos normais”. 220

Figura 38

De fato, são tão insanas e irracionais as situações e contextos vivenciados pelas(os) alunas(os) das camadas populares no Brasil, que somos, por vezes, levados a questionar as fronteiras entre loucura e normalidade naquilo que nós educadoras(es) experienciamos nos cotidianos escolares. Há o absurdo e a insensatez de tantos dramas contemporâneos, decorrentes de uma ditadura do “Estado Oco”, que nega outras alternativas de organização societária, que não sejam pela via do mercado, degradando as condições de trabalho, afunilando as probabilidades de melhores empregos e de uma remuneração mais digna, transformando o trabalhador em fantoche de um cenário comandado pelas estratégias lucrativas de grandes corporações econômicas. Somem-se a isso as relações verticais de exploração entre o Norte e o Sul, uma visão utilitarista do progresso, que dilapidou a natureza, gerando problemas de escala planetária gravíssimos como o aquecimento global, além das mídias articuladas a um modo de vida consumista e estéril. Todos esses condicionantes históricos fragilizam potencialmente crianças, adolescentes, jovens e idosos, agrupados em diferentes modelos de famílias, devendo inquietar também a nós, educadoras(es), para o sentido que a escola e seus currículos terão num cenário tão complexo e perverso. 221

Figura 39

A camisa de formatura da 8ª B (Figura 39) nos recorda que “O importante não é sermos inteligentes, mas nunca perder a capacidade de aprender”. Assim, aguçar nossa compreensão dos contextos extra-escolares, bem como desmistificar o caráter aparentemente neutro daquilo que é visto e ouvido na TV, discernindo possíveis contribuições das banalidades que nada acrescentam, é uma atitude docente que denota a perspicácia tão útil quanto necessária ao tempo presente, compreendendo que

[...] a televisão é e será aquilo que nós fizermos dela. Nem ela, nem qualquer outro meio, estão predestinados a ser qualquer coisa fixa. Ao decidir o que vamos ver ou fazer na televisão, ao eleger as experiências que vão merecer a nossa atenção e o nosso esforço de interpretação, ao discutir, apoiar ou rejeitar determinadas políticas de comunicação, estamos, na verdade, contribuindo para a construção de um conceito e uma prática de televisão (MACHADO, 2005, p. 12).

Tal agudeza implica também, na esfera pedagógica, não se conformar com o estabelecido de modo autoritário nas normas e prescrições legais para a educação, articuladas, normalmente, aos interesses do mercado. Justifica, portanto, subverter os currículos verticalmente estabelecidos, construir/desconstruir/reconstruir práticas discursivas contra-hegemônicas e criar formas criativas e alternativas do saber-fazer docente. 222

Orofino (2005) nos recorda que, no espaço-tempo escolar, já ocorre a mediação situacional, com alunas(os) conversando e trocando percepções em momentos informais, nos corredores e no pátio acerca do que as(os) interpela nas mensagens televisivas. Suas performances corporificadas nos gestos, atitudes, vocabulários, estéticas também revelam muitas vezes a ascendência dessa mídia. Aliás, até mesmo as(os) educadoras(es) participam desse processo mediador. Em determinada ocasião, ouvimos o seguinte comentário da professora de Ciências na sala das(os) professoras(es): “Sônia Abraão é fantástica, pois consegue falar por duas horas de um assunto tão banal quanto a briga de Siri e Alemão (participantes do Big Brother)”. Contudo, à escola cumpre o desafio de potencializar uma mediação institucional, incorporando nas aulas das diferentes disciplinas, nas reflexões e ações docentes coletivas, no projeto político-pedagógico, enfim, nas redes de saberes-fazeres tecidas no cotidiano da instituição, os conteúdos socializados pela TV.

Indispensável a essa segunda forma de mediação é a(o) educadora(or) olhar os fatos e acontecimentos, as lógicas de raciocínio e as opiniões, os discursos e narrativas, pela perspectiva da complexidade (não por acaso, a coruja com sua visão penetrante e multidimensional, simboliza a nossa profissão), evitando as ambivalências do tipo certo/errado, verdadeiro/falso, bom/ruim, a fim de compreender, da melhor forma possível, os múltiplos atravessamentos no cotidiano da escola e no cotidiano da história. Portanto, é essencial perceber que

[...] nem toda a assimilação do hegemônico pelo subalterno é signo de submissão, assim como a mera recusa não é de resistência, e que nem tudo o que vem de cima são os valores da classe dominante, pois há coisas que vindo de lá respondem a outras lógicas que não são as da dominação (MARTÍN-BARBERO, apud OROFINO, 2005, p. 59-60).

Não se trata, certamente, de assumir o posicionamento de uma(um) “iluminada(o)”, que conduzirá as(os) alunas(os) à terra prometida, ou que libertará, via escola, a sociedade de tantas mazelas. Importa, isso sim, mergulhar no cotidiano dos variados espaços-tempos de atuação educacional (órgãos gestores, instituições formadoras de educadoras(es) e escolas), e, no cerne de suas contradições, coletivamente, articulados com seus sujeitos, alargar as possibilidades dos movimentos instituintes, na certeza de que as inquietações e dilemas contemporâneos não são obras do 223

destino ou fatalidades naturais, mas resultantes das ações conflituosas de classes e grupos sociais no processo histórico. Desse modo, passíveis de transformações. “Como disse Sartre, antes de ser concretizada, uma idéia apresenta uma estranha semelhança com a utopia. Nos tempos que correm o importante é não reduzir a realidade apenas ao que existe” (SANTOS, 2006, p. 470). 224

5. TRAJETÓRIAS COMPLEXAS, ESTRADAS MÚLTIPLAS: OS RISCOS E PROMESSAS DA CAMINHADA

Na segunda metade da década de 1960 e início da década de 1970, surgiram os Festivais de Música Popular Brasileira na programação televisiva. O primeiro foi realizado em 1965, na extinta TV Excelsior, quando uma das maiores cantoras que o país já teve, a inesquecível Elis Regina, interpretou a música vitoriosa, chamada Arrastão. Outras(os) grandes cantoras(es) e compositores brasileiras(os) se projetaram por meio dessas produções televisivas, cujo período áureo foi de 1965 a 1968, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Ivan Lins, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Milton Nascimento, etc.

No Festival de Música da TV Record, realizado em 1967, a música A Estrada e o Violeiro, composta por Sidney Miller, ficou entre as primeiras colocadas, sendo interpretada pelo autor, acompanhado da cantora capixaba Nara Leão. Utilizaremos alguns trechos dessa bela música para tecer as considerações finais de nossa pesquisa, que objetivou analisar como se enredam os contextos midiáticos da sociedade globalizada, as políticas públicas de comunicação no Brasil e os conteúdos televisivos, com os saberes-fazeres das(os) estudantes e professoras(es) no currículo vivido/praticado no cotidiano de uma escola de ensino fundamental, séries iniciais.

Embora este estudo tenha focado especificamente o turno vespertino de uma escola municipal, tivemos sempre presente em nossa análise a preocupação de observar/vivenciar o cotidiano daquele espaço-tempo, por intermédio das falas e posturas dos sujeitos, suas percepções e prováveis redesenhos dos conteúdos televisivos socializados, enredando-os com os contextos extra-escolares relativos às esferas culturais, políticas e socioeconômicas.

Assim, o âmbito da “pequena escala” (SANTOS, 2003) com suas regras e dinâmicas sociais, as políticas públicas para o setor da comunicação, transformaram-se num campo de embates e conflitos entre o Estado, o mercado e a comunidade. Em que pese o abuso do poder econômico no processo histórico de criação, expansão e consolidação da TV como mídia dominante no cotidiano das(os) brasileiras(os), 225

contando geralmente com a cumplicidade do Estado para a concretização de sua gula lucrativa, a comunidade, por meio de movimentos organizados de variadas configurações e perfis (ONGs, sindicatos, igrejas, associações comunitárias, etc.), busca fazer um contraponto nesse jogo de forças desiguais, articulando práticas instituintes que ampliem os interstícios de resistência a toda ordem de arbitrariedades na outorga dos canais e no combate à propriedade cruzada. Outras frentes de militância e atuação se referem à criação de normas reguladoras dos conteúdos produzidos, que inibam as abordagens parciais, discriminadoras e depreciativas, lutando por uma maior horizontalidade entre as produções estrangeiras, nacionais e regionais e por maiores limites à publicidade abusiva.

A música a que nos referimos anteriormente salienta o diálogo entre a estrada e o violeiro, perpassado por dilemas, incertezas, autoquestionamentos, esperanças e convicções. Num dos trechos, a estrada adverte o violeiro:

Guarde sempre na lembrança que esta estrada não é sua/ Sua vista pouco alcança, mas a terra continua/ Segue em frente, violeiro, que eu lhe dou a garantia/ De que alguém passou primeiro na procura da alegria/ Pois quem anda noite e dia sempre encontra um companheiro.

Como a estrada da música em questão, esses movimentos instituintes persistem na caminhada histórica pela democratização da comunicação, em meio a mobilizações e esvaziamentos, crises e avanços. Por meio de redes solidárias e horizontais, obviamente não isentas de contradições, mas com propósitos ético-políticos de enfrentamento da colonização imposta pelo princípio do Estado e pelo princípio do mercado de que nos fala Santos (2003), apostam na articulação e no fortalecimento do princípio da comunidade como estratégia de ampliação da democracia de alta intensidade.

Na esfera das questões religiosas e da publicidade televisiva, das questões familiares e de gênero, étnico-raciais e de sexualidade, os significados atribuídos pelos conteúdos televisivos para o ser e o viver no mundo, atravessam os processos de identificação das(os) alunas(os) e professoras(es), mesclando adesão- 226

problematização-reinvenção, de forma não linear e sistemática, em cenários escolares complexos, ambíguos e plurais.

Com relação ao televangelismo, fenômeno político e religioso cada vez mais visível na TV, impressiona a intensidade com que atravessa o imaginário e as percepções dos sujeitos escolares. As teses desses variados grupos religiosos geralmente se baseiam numa leitura fundamentalista e ortodoxa da Bíblia, com uma crescente influência e protagonismo no princípio do Estado, financiando campanhas ou elegendo membros das inúmeras denominações religiosas, como é o caso da Igreja Universal do Reino de Deus, que chegou a fundar um partido político específico (PRB), com práticas bastante clientelistas e fisiológicas.

Em que pese o caráter mercantilista, principalmente de muitos credos religiosos, articulados ao princípio do mercado e aglutinadores do princípio da comunidade para seus interesses corporativistas, há movimentos dissidentes endógenos e exógenos a essas denominações, questionando pressupostos e práticas preconceituosos e discriminatórios, antagônicos à consolidação de uma democracia laica, inclusiva e justa. Tais contrapontos também atravessaram algumas narrativas e posturas de alunas(os) e professoras(es) da escola pesquisada.

No âmbito da publicidade televisiva, as lógicas e estratégias de endereçamento sedutoras e envolventes interferem sobremaneira nos processos de identificação dos sujeitos. Como acentuou Sarlo (2004), na sociedade contemporânea a onipresença da publicidade categoriza os indivíduos em dois grupos: os “colecionadores às avessas” e os “colecionadores imaginários”, tão caros ao princípio do mercado pelos lucros que propiciam e com implicações significativas nos seus comportamentos, gostos, atitudes e perspectivas. Formam, segundo Bauman (2003), uma “comunidade estética”, incitando constantes reinvenções nas subjetividades, fortalecendo a produção de bens de consumo, sobretudo. Diversamente, no espaço-tempo escolar, há frestas para problematizações que devem ser potencializadas, uma vez que, dentro e fora dessa instituição, os sujeitos não são totalmente subjugados e atraidos pelas estratégias publicitárias; estabelecem outros enredamentos, constituitivos de significados diferenciados para viver e proceder. 227

No que tange às questões familiares e de gênero, étnico-raciais e da sexualidade, foram abundantes as situações, cômicas e dramáticas simultaneamente, as cenas e os relatos, vivenciados na escola pesquisada. Pela complexidade e ambigüidade que apresentaram, revelam o quanto é fundamental o papel da televisão, no sentido de visibilizar, de forma não enganosa e vulgar, em seus conteúdos socializados, pobres, afro-descendentes, índios, homossexuais, mulheres, portadores de deficiências, obesos, idosos e outros grupos sociais que se sintam marginalizados por apresentarem processos de identificação que destoam dos arquétipos hegemônicos. Isso vale, igualmente, para os arranjos familiares que não se igualam ao modelo nuclear padronizado (pai, mãe, filhos), decorrentes de condições socioeconômicas adversas ou de outros significados culturais construídos, cada vez mais presentes na sociedade brasileira. A abrangência dessas questões nos alertam sobre o quanto é importante que diferentes movimentos instituintes intra e extra- escolares se potencializem e se articulem horizontalmente, fortalecendo o princípio da comunidade, pressionando o Estado, a fim de ele que estabeleça os marcos regulatórios, já salientados, democratizando ao máximo o acesso e a produção/veiculação de conteúdos que respeitem as diferenças de toda ordem e coibam a voracidade do principio do mercado.

Por conseguinte, tanto no cotidiano do espaço-tempo escolar, como na sociedade em geral, sujeitos individuais ou coletivos transformam seus dramas subjetivos, frutos das tramas hegemônicas que os discriminam e, muitas vezes, silenciam, em motivo de resistência perante as mensagens padronizadoras, socializadas, entre outros meios, pela TV, e/ou, contrariamente, resignam-se e adaptam-se a eles.

“Minha estrada, meu caminho, me responda de repente/ Se eu aqui não vou sozinho, quem vai lá na minha frente?”, indagou o violeiro à sua interlocutora, na música A estrada e o violeiro, obtendo como resposta: “Tanta gente, tão ligeiro, que eu até perdi a conta/ Mas lhe afirmo, violeiro, fora a dor, que a dor não conta/ Fora a morte quando encontra, vai na frente um povo inteiro”.

Desse modo, as mágoas e os pesares daquelas(es) consideradas(os) “diferentes” do que os protótipos dominantes determinam como aceitáveis para o ser e estar no mundo, são naturalizados, muitas vezes, pelos conteúdos televisivos, principalmente 228

as novelas e seriados, ópera soaps, como Malhação, reality show, programas humorísticos e outros. Por outro lado, como enfatizamos por meio das considerações de Hamburger (2005), o modo como estudantes e professoras(es) decodificaram as mensagens dessas atrações, que foram muito citadas, vai além das lógicas ambivalentes, caracterizando-se por um emaranhado de visões que englobam aceitação, questionamento, concordância e divergência. Quando problematizadas, existe a probabilidade de essas visões se transformarem, no cerne das trajetórias históricas, em forças propulsoras de práticas instituintes dentro e fora da escola, pressionando essa mídia, a fim de que ela contemple, em sua programação, abordagens multilaterais e inclusivas.

Quanto ao espaço-tempo escolar, atravessado cotidianamente pelas mensagens da TV, tão presentes nos processos de subjetivação das(os) alunas(os), fato ignorado e/ou reconhecido com maior ou menor intensidade pelas(os) educadoras(es) em geral, percebemos uma heterogeneidade na percepção do que é transmitido, externada nas falas e atitudes dos sujeitos inseridos nesse espaço-tempo. Essa evidência confirma as análises de Certeau de que os sujeitos não são totalmente passivos, assimilando indiscriminadamente as perspectivas e significados elaborados por essa mídia para os fatos e acontecimentos. Ou seja, entrecruzam tais mensagens com outras redes de saberes-fazeres dos espaços-tempos domésticos, religiosos, dos círculos de amizade, da internet, etc., percebendo que os caminhos para viver, proceder e conhecer não são unidirecionais, mas ligados a uma gama de possibilidades, porosos a resistências, rupturas e reinvenções, como o percebeu o violeiro em relação aos caminhos já trilhados e ainda por construir, nas dimensões individual e coletiva.

Se este rumo assim foi feito, sem aprumo e sem destino/ Saio fora desse leito, desafio e desafino/ Mudo a sorte do meu canto, mudo o norte dessa estrada/ Em meu povo não há santo, não há força, não há forte/ Não há morte, não há nada que me faça sofrer tanto.

À escola cumpre a tarefa de potencializar, em sua ação pedagógica, em seus currículos praticados-vividos nas diferentes áreas do conhecimento, uma mediação institucional que, articulada a outras práticas sociais, amplie as possibilidades de um 229

empoderamento do princípio da comunidade diante dos atos arbitrários e excludentes do princípio do Estado e do princípio do mercado, ressoando na concretização da democracia de alta intensidade, para uma sociedade mais justa e aberta ao exercício das diferenças subjetivas. Finalizando a música A estrada e o violeiro, a primeira personagem também se dispõe, como o seu interlocutor, a realizar a aventura contraditória, desafiadora e complexa de arriscar outros caminhos e alternativas para uma vida menos opressiva, afirmando convicta: “Vai, violeiro, me leva pra outro lugar/ Que eu também quero um dia poder levar/ Tanta gente que virá/ Caminhando, procurando/ Na certeza de encontrar”.

Portanto, sem ignorar que as estradas da existência individual e histórica mesclam trechos retos e sinuosos, esburacados e pedregosos, poeirentos e cansativos, pavimentados e seguros, atravessados por tempos de céu claro e neblinas arriscadas, dias de verão e chuvas torrenciais, cumpre manter a firmeza e persistir nos múltiplos e contraditórios trajetos a serem realizados. Pois, como nos recorda Certeau (2002, p. 183), “caminhar é ter falta de lugar. É o processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio”. 230

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