Senhoras E Senhores, Apresento Uma “Cinqüentona” Sedutora E Desejada
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12 1. SENHORAS E SENHORES, APRESENTAMOS UMA CINQÜENTONA SEDUTORA E DESEJADA Não, não foi uma megaprodução. Pouco ou nada que lembrasse os shows milionários da atualidade. Pelo contrário, muito improviso e produção em tempo real. Com um detalhe extra: sem programação estruturada para o dia seguinte! Foi assim que, no dia 18 de setembro de l950, se inaugurou o primeiro canal de televisão brasileiro, a TV Tupi de São Paulo. A iniciativa foi do influente empresário Assis Chateaubriand, proprietário dos Diários Associados, um conglomerado de revistas, jornais e estações de rádio. Uma ousadia para a época, tanto é que fomos o quarto país do mundo a implantar tal mídia em seu território. Esse empreendedorismo de Chateaubriand sintonizava com a São Paulo da década de 50. Com cerca de 2.200.000 habitantes, a cidade já era o maior centro industrial da América Latina, crescendo num ritmo efervescente e descontrolado. Seu cotidiano urbano vivenciava a “força da grana que ergue e destrói coisas belas” (Caetano Veloso). Um grande contingente populacional para lá se dirigia em busca de melhores oportunidades de trabalho e de condições de vida. Em 1950, já eram 500.000 mineiros e 400.000 nordestinos vivendo na cidade (NOSSO SÉCULO, 1980), os quais, somados aos imigrantes italianos, espanhóis e portugueses, a transformavam na Babel brasileira. Para concretizar seu novo projeto empresarial, Chateaubriand negociou, ainda em 1947, contratos publicitários com quatro grandes empresas nacionais, visando garantir parte dos recursos necessários à compra da estação de TV junto à estadunidense RCA Victor. No ano da inauguração, importou trezentos televisores para comercialização e contrabandeou - ah, o “jeitinho” brasileiro! - outros cem, para presentear amigos e investidores, entre os quais o Sr. Roberto Marinho (BRAUNE; RIXA, 2007). Embora fizesse um contraponto às teses nacionalistas que dominavam a agenda político-cultural das décadas de 1950 e 1960, Chateaubriand escolheu o nome e o emblema do seu canal de TV, baseado na paixão que nutria pelas temáticas silvícolas (Figura 1). No logotipo, um índio com feições ocidentais trazia no cocar 13 duas antenas, representativas da novidade tecnológica que chegava ao país. Símbolo bastante representativo do que estava por ocorrer no processo histórico brasileiro, pois, com o avanço das fronteiras agrícolas e populacionais para o Norte e o Centro-Oeste, os ecossistemas do cerrado e da floresta amazônica, juntamente com seus povos nativos, sofreriam um dramático aniquilamento. Por outro lado, muitas nações indígenas utilizarão paulatinamente alguns desses novos artefatos para orquestrarem movimentos de resistência. Basta recordarmo-nos do cacique Juruna, que portava um gravador nas conversas com as autoridades, visando cobrar, posteriormente, o cumprimento das promessas feitas. Figura 1: emblema da TV Tupi Fonte: Hamburger (1998, p. 448). O canal televisivo se ajustava tanto com o momento histórico de superlativos industriais, urbanos e culturais vividos por São Paulo, que até uma música foi composta para homenagear a inauguração. Hebe Camargo foi indicada para interpretá-la, mas alegou um resfriado e declinou do encargo. Confessou, anos mais tarde, que foi uma desculpa, pois tinha um encontro amoroso; talvez não acreditasse muito naquela novidade. Lolita Rodrigues acabou entoando a canção, cujo enfoque 14 ufanista exaltava os feitos do passado e o progresso do presente, no Estado mais rico da Federação. Vingou, como tudo vinga, No teu chão, Piratininga, A cruz que Anchieta plantou. E dir-se-á que ela hoje acena, Por uma altíssima antena, A cruz que Anchieta plantou. (Marcelo Tupinambá e Guilherme de Almeida. NOSSO SÉCULO, 1980, p.51). A analogia entre o símbolo máximo do cristianismo e a antena transmissora é indicativa das transformações provocadas pela ação catequética jesuítica e pelas mensagens televisivas na sociedade brasileira. A evangelização católica foi extremamente útil aos interesses econômicos do império colonial português, tornando os povos nativos mais dóceis e passivos ao projeto hegemônico da metrópole, exterminando inúmeras nações, não só fisicamente, mas também pela imposição de um “epistemicídio” (SANTOS, 2003), ao destruir saberes milenares, crenças e valores, considerados irrelevantes e descartáveis. Igual impacto sócio- cultural provocou a televisão com sua linguagem audiovisual, crescentemente articulada às necessidades mercadológicas de poderosos grupos econômicos e aos privilégios de oligarquias políticas, imprimindo significativas transformações nos modos de viver e proceder dos brasileiros. No entanto, ambos os empreendimentos – cristianização e televisão – não apenas geraram a sujeição e o conformismo, mas, também, em sua dinâmica social e política ambígua, produziram fendas e brechas para as resistências e reinvenções. Esse processo histórico que foi credenciando a televisão como veículo de comunicação dominante, apresentou, na década de 1950, uma fase mais experimental, construtora de modelos e estilos, com profissionais oriundos, sobretudo, do teatro, do cinema, do rádio. Até 1960, as transmissões eram em tempo real, exigindo muito esforço e criatividade de quem atuasse nos bastidores ou diante das câmeras. Na sua segunda década de existência, a televisão passou por 15 mudanças mais intensas, resultantes dos novos cenários tecnológicos, políticos, socioeconômicos e culturais. Durante a inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960, foi utilizado pela primeira vez oficialmente o videoteipe. A industrialização e a urbanização se aceleraram no governo desenvolvimentista de JK, com o conseqüente aumento do consumo de eletroeletrônicos, entre os quais os televisores. Os receptores de TV no país, que, em 1950, eram apenas 1.000, já totalizavam 621.919 unidades dez anos depois (BRAUNE; RIXA, 2007). Portanto, a partir do advento de suas transmissões no Brasil, essa mídia tornou-se uma crescente protagonista na organização do espaço- tempo doméstico (Figura 2). Figura 2: Uma nova protagonista no espaço-tempo doméstico Fonte: NOSSO SÉCULO (1980, p. 50). Foto: Peter Scheier. Na segunda metade da década de 60, esse número já era bem maior. Nessa época, residíamos na pequena cidade de Castelo, no Sul do Estado, e nossa família formava a categoria dos “televizinhos”, ou seja, aquelas pessoas que já se encantavam com o novo meio de comunicação, mas não tinham condições financeiras de adquiri-lo, apelando para acompanhar algumas de suas atrações nas residências dos vizinhos mais íntimos e acolhedores. Porém, não tardou muito para 16 que comprássemos uma televisão, no início da década de 70. Em plena vigência do “milagre brasileiro”, esse eletroeletrônico se tornou definitivamente um objeto de desejo para muitos, com as facilidades de crédito estimulando o aumento do consumo. Assim, em 1972, o número de televisores já era superior ao de geladeiras e, desde então, a TV disputa com o rádio o primeiro lugar em preferência nos lares brasileiros. O censo de 2000 contabilizou 39.060.180 aparelhos no país (BRAUNE; RIXA, 2007). Pesquisa recente do Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (Procel), da Eletrobrás, concluiu que os televisores são os eletroeletrônicos mais acessíveis aos consumidores, estando presentes em 97,1% dos lares. A maior parte deles, inclusive, com mais de uma unidade, uma vez que, existem em média 1,41 aparelhos por residência (A TRIBUNA, 2007, p. 30). Até nos lares mais modestos (Figura 3), esse artefato se tornou uma espécie de ícone, disputando com outros símbolos mais tradicionais, como os religiosos, por exemplo, a reverência e a adesão dos sujeitos. Figura 3: Ícone reverenciado Fonte: Hamburger (1998, p. 441). Foto: Juca Martins/ Pulsar. Essa onipresença na sociedade brasileira, moldando o imaginário individual e coletivo, transformaram a TV numa referência comportamental e atitudinal para milhões de pessoas. Tanto que a configuração das realidades nacionais e globais, o 17 modo como as pessoas de diferentes classes e grupos sociais percebem essas realidades e nelas se situam, é grandemente mediada pela televisão. Um fato curioso ilustra bem essa relevância social: em 1997, o Superior Tribunal de Justiça decidiu, baseado na Lei 8.009/90, do bem de família, que o televisor passava a ser indispensável ao cidadão brasileiro, tornando-se, desse modo, impenhorável, a exemplo dos imóveis, fogões, alimentos e fotos de casamento (BRAUNE; RIXA, 2007). Nem o Vaticano ficou indiferente a tal influência, indicando uma padroeira para essa mídia, Santa Clara de Assis (Figura 4). Figura 4: Santa Clara de Assis Duas imagens provocantes, em lugares separados geograficamente por milhares de quilômetros e totalmente diversos do ponto de vista cultural, mas idênticos na atração pelo conteúdo televisivo, reforçam essa ubiqüidade. A primeira imagem (Figura 5) retrata o morro Dona Marta, no Rio de Janeiro. Nela, uma “selva” paradoxal comporta casebres praticamente inseparados, amontoados precariamente. Entretanto, na maioria dos seus telhados, vemos antenas parabólicas instaladas, conectando-os ao “fantástico show da vida” produzido pela televisão. Na segunda imagem (Figura 6), essas mesmas antenas parabólicas alteram as fachadas dos prédios de um conjunto residencial no Turcomenistão, a ex- república da antiga União Soviética, com uma constituição sócio-histórica enraizada 18 nas crenças islâmicas. Mas aí também a televisão atravessa o cotidiano das pessoas. Figura 5: Morro Dona Santa Marta. Fonte: Hamburger,1998, p. 487 (Oscar Cabral/ Abril Imagens) Figura 6: Turcomenistão.