Art Barbosa.Indd
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A Mulher Na Capoeira Maria José Somerlate Bar- as últimas décadas, a divulgação da capoeira no bosa é professora de litera- mundo tem sido rápida e constante e o número de tura e cultura brasileiras publicações sobre o assunto tem se multiplicado na Universidade de Iowa. aN olhos vistos. No entanto, as referências a mulheres capo- Publicou os seguintes livros: eiristas são esparsas e de pouco vulto e não há uma análise Clarice Lispector: Spinning the Webs of Passion (1996), sistemática da sua participação ativa nos círculos de capoeira. Mutações Faiscantes / Spa- Num esforço para diminuir esse vácuo, este estudo traça a rkling Mutations (1997) trajetória da mulher na capoeira, enfocando as mudanças e Clarice Lispector: Des/ ocorridas nos últimos anos e os fatores que lhe propiciaram fiando as Teias da Paixão uma participação mais significativa nas rodas, academias e (2001). Organizou Passo e agremiações. Estabelece também uma visão panorâmica das Compasso: Nos Ritmos do atividades e contribuições femininas para a divulgação da Envelhecer (2003) e tem capoeira, no Brasil e nos Estados Unidos, sem perder de vista publicado extensivamente os obstáculos que a mulher ainda enfrenta. em coletâneas e revistas especializadas no Brasil e 1 nos Estados Unidos. Sua A Presença da Mulher na Capoeira pesquisa atual se concentra na cultura e na literatura É difícil precisar a influência que a mulher exerceu no afro-brasileiras. desenvolvimento da capoeira como jogo/luta/dança/ritual ou traçar com exatidão o histórico da sua participação ativa porque a capoeira era de tradição ágrafa e de domínio quase que exclusivamente masculino. Alguns estudos levantam a hipótese de que a coreografia dos movimentos da capoeira possa ter se originado numa dança de iniciação feminina. Luiz da Câmara Cascudo foi o primeiro a estabelecer uma conexão entre essa dança angolana e a capoeira2: Entre os Mucope do sul de Angola, há uma dança da zebra, N’golo, que ocorre durante a Efundula, festa da puberdade das raparigas, quando essas deixam de Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies Volume 9, 2005 10 Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies ser muficuenas, meninas, e passam reservados aos homens que se destacaram à condição de mulheres, aptas a na capoeira na mesma época. Os esparsos casamento e à procriação. comentários publicados sobre as atividades O rapaz vencedor no N’golo dessas mulheres referem-se geralmente a tem o direito de escolher a esposa seu comportamento “masculino” e/ou a sua entre as novas iniciadas e sem pagar o dote esponsalício. O N’golo é a destreza, como alguns dos apelidos revelam capoeira. (Folclore 184-85) (Maria Homem, Júlia Fogareira, Maria Pé no Mato). Parece importante também ressaltar que a documentação escrita é Apesar de significante, essa associação entre extremamente escassa para que se possa a origem da capoeira e um ritual de iniciação traçar um perfil e/ou avaliar com precisão feminino mostra apenas que, como a N’golo o desempenho feminino no âmbito da estava restrita aos rapazes, as mulheres ti- capoeira nas décadas anteriores a 1970. Seria nham uma participação indireta. arriscado e impróprio tanto simplificar a Carlos Eugênio Líbano Soares afirma contribuição feminina, reduzindo-a a umas que até o século XX, “as mulheres que têm poucas capoeiristas, como assegurar que um papel fundamental na cultura escrava urbana número significativo de mulheres tenha estavam, de acordo com todos os indícios, participado ativamente das rodas ou do jogo banidas do universo da capoeira, pelo menos antes dos anos 70, pois não há suficiente indiretamente” (A capoeira 121). Mas, o documentação escrita para que se estabeleça próprio autor encontrou uma notícia sobre qualquer um dos dois argumentos. a repressão aos capoeiristas que menciona Embora o “impacto” feminino no duas mulheres: “Isabel e Ana passam a jogo da capoeira, anterior à década de 70, vida a brigar; e para isso desafiam quem seja um aspecto de difícil comprovação, as lhes dirige qualquer palavra desagradável e, mulheres sempre estiveram presentes nas quando empenham qualquer luta, mostram rodas que se formavam nas ruas de Salvador ser peritas na capoeiragem” (A negregada e do Rio de Janeiro. Em City of Women, 303).3 Trata-se, entretanto, ao que tudo estudo em que descreve a mulher como indica, de casos isolados e de pouco vulto, elemento catalisador da cultura de Salvador, principalmente quando comparados ao Ruth Lande menciona que geralmente as número de capoeiristas do sexo masculino rodas de capoeira se formavam em lugares que se destacaram na época. onde havia uma “baiana” vendendo acarajé, Alguns estudiosos e pesquisadores doces ou outras comidas. No Rio de da história da capoeira no século XX Janeiro, as “quitandeiras”—especialmente costumam mencionar o nome de sete as que se localizavam no Largo da Sé— mulheres que ficaram famosas antes da desempenharam um papel semelhante incursão feminina sistemática nos círculos ao das “baianas” (cf. Soares, A capoeira de capoeira: Maria Homem, Júlia Fogareira, 175). As cantigas de capoeira, de domínio Maria Cachoeira, Maria Pernambucana, público, confirmam a presença da mulher Maria Pé no Mato, Odília e Palmeirona nas proximidades das rodas, como se pode (Bola Sete 27; Araújo, “Sou” 133). No verificar no seguinte corrido: “Dona Maria, entanto, mesmo que algumas capoeiristas o que vende aí? / É coco e pipoca que é do tenham se tornado figuras lendárias, Brasil. /Coro: Dona Maria, o que vende aí?” não gozam do prestígio e da admiração (Citado em Bola Sete 127). Maria José Somerlate Barbosa 11 Para impor ordem e autoridade, visibilidade nas rodas, nos grupos ou nas esquadrões atuavam contra os grupos academias revelam que, com raras exceções, de capoeira e os candomblés, e a polícia ela era vista quase exclusivamente como registrava as prisões dos capoeiristas e uma peça de apoio na estrutura social do descrevia suas atividades. Nesse contexto jogo/luta/dança/ritual ou como participante repressivo, os capoeiristas contavam com da resistência cultural afro-brasileira. o apoio de outros grupos marginalizados Tais argumentos não são suficientes para como as prostitutas e trabalhadores de rua, determinar ou explicar uma participação que se uniam para fugir da perseguição da “ativa” da mulher, enquanto capoeirista, ou polícia (Soares, A negregada 336). Segundo estabelecer as razões que redimensionaram a Waldeloir Rego, na Bahia, “as mulheres sua posição e o seu lugar na capoeira. de saia, como eram chamadas as negras Enquanto os homens se beneficiam africanas ou descendentes” tornavam-se do fato de que a capoeira tem uma longa cúmplices e aliadas dos capoeiristas, pois tradição masculina e de mestres que servem além de avisar os homens da aproximação de modelos para as gerações de rapazes e da polícia, escondiam armas perigosas meninos, só nas últimas décadas, as mulheres (geralmente uma navalha ou uma faca de começaram a ganhar sistematicamente tal ticum) que retiravam da cabeça, do cabelo projeção e apoio. Mesmo não se podendo e do torso e entregavam aos capoeiristas no precisar com acuidade a participação tangível exato momento em que eles delas precisavam da mulher na trajetória histórica do jogo, é para atacar ou se defender (297). inegável que a partir dos anos 70, ela tem Nas décadas posteriores ao estabeleci- atuado de forma muito mais ativa e, desde mento das academias de capoeira (meados os anos 80, a sua presença nas rodas, nos dos anos 30), nota-se que a presença da grupos e nas academias se faz cada vez mais mulher nos círculos da capoeira se manifesta numerosa. É o que explica Rosângela Costa também em forma de um apoio logístico ou Araújo, Contra-Mestre Janja, co-fundadora serviçal. Desde que a capoeira começou a do Instituto Nzinga de Estudos da Capoeira sair das ruas e se estabeleceu em academias, Angola e Tradições Educativas Banto no é muito comum que a aluna capoeirista seja Brasil (INCAB), dirigente da Orquestra a secretária e/ou coordenadora do grupo Nzinga de Berimbaus de São Paulo e a que ela está afiliada. Por isso, Frederico diretora da revista Toques de Angola: Abreu considera que “se a mulher não trouxe uma contribuição para a ‘forma’ de jogar A mulher deixou de ser vista como capoeira, trouxe a organização, cuidando de “novidade” nos grupos, academias assuntos burocráticos” (entrevista pessoal, e rodas de capoeira. […] Novidade Salvador, 03 de agosto de 2002). mesmo é o fato da sua atual represen- tação numérica e qualitativa; ou seja, Ainda que haja referências à mulher o fato delas representarem hoje cerca nas cantigas, que ela atue como elemento de 40% dos praticantes de capoeira, catalisador da roda, ou que seja parte de um numa distribuição mundial, indica todo social na capacidade de organizadora que tanto a capoeira, no geral, quan- ou secretária, este tipo de participação indica to os grupos, academias, mestres, apenas que a sua “presença” nos círculos da contra-mestres, professores, etc., no capoeira era constante. As referências a sua particular, não podem mais insistir 12 Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies em ignorá-las, ou mesmo em reduzir se atraídas pelo jogo porque já estudaram seus papéis e participação na prática dança, ioga, educação física ou uma arte e nas atividades destas organizações. marcial. Grande parte das entrevistas que (“Contra-Mestre” 18) fiz no Brasil e nos Estados Unidos, bem como outras referências encontradas em Ao escolher o nome Nzinga para o gru- depoimentos e entrevistas com mulheres que po e a orquestra, Contra-Mestre Janja e os se destacam na capoeira, confirmam que a