A Mulher Na

Maria José Somerlate Bar- as últimas décadas, a divulgação da capoeira no bosa é professora de litera- mundo tem sido rápida e constante e o número de tura e cultura brasileiras publicações sobre o assunto tem se multiplicado na Universidade de Iowa. aN olhos vistos. No entanto, as referências a mulheres capo- Publicou os seguintes livros: eiristas são esparsas e de pouco vulto e não há uma análise Clarice Lispector: Spinning the Webs of Passion (1996), sistemática da sua participação ativa nos círculos de capoeira. Mutações Faiscantes / Spa- Num esforço para diminuir esse vácuo, este estudo traça a rkling Mutations (1997) trajetória da mulher na capoeira, enfocando as mudanças e Clarice Lispector: Des/ ocorridas nos últimos anos e os fatores que lhe propiciaram fiando as Teias da Paixão uma participação mais significativa nas rodas, academias e (2001). Organizou Passo e agremiações. Estabelece também uma visão panorâmica das Compasso: Nos Ritmos do atividades e contribuições femininas para a divulgação da Envelhecer (2003) e tem capoeira, no Brasil e nos Estados Unidos, sem perder de vista publicado extensivamente os obstáculos que a mulher ainda enfrenta. em coletâneas e revistas especializadas no Brasil e 1 nos Estados Unidos. Sua A Presença da Mulher na Capoeira pesquisa atual se concentra na cultura e na literatura É difícil precisar a influência que a mulher exerceu no afro-brasileiras. desenvolvimento da capoeira como jogo/luta/dança/ritual ou traçar com exatidão o histórico da sua participação ativa porque a capoeira era de tradição ágrafa e de domínio quase que exclusivamente masculino. Alguns estudos levantam a hipótese de que a coreografia dos movimentos da capoeira possa ter se originado numa dança de iniciação feminina. Luiz da Câmara Cascudo foi o primeiro a estabelecer uma conexão entre essa dança angolana e a capoeira2:

Entre os Mucope do sul de Angola, há uma dança da zebra, N’golo, que ocorre durante a Efundula, festa da puberdade das raparigas, quando essas deixam de

Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies Volume 9, 2005 10 Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies

ser muficuenas, meninas, e passam reservados aos homens que se destacaram à condição de mulheres, aptas a na capoeira na mesma época. Os esparsos casamento e à procriação. comentários publicados sobre as atividades O rapaz vencedor no N’golo dessas mulheres referem-se geralmente a tem o direito de escolher a esposa seu comportamento “masculino” e/ou a sua entre as novas iniciadas e sem pagar o dote esponsalício. O N’golo é a destreza, como alguns dos apelidos revelam capoeira. (Folclore 184-85) (Maria Homem, Júlia Fogareira, Maria Pé no Mato). Parece importante também ressaltar que a documentação escrita é Apesar de significante, essa associação entre extremamente escassa para que se possa a origem da capoeira e um ritual de iniciação traçar um perfil e/ou avaliar com precisão feminino mostra apenas que, como a N’golo o desempenho feminino no âmbito da estava restrita aos rapazes, as mulheres ti- capoeira nas décadas anteriores a 1970. Seria nham uma participação indireta. arriscado e impróprio tanto simplificar a Carlos Eugênio Líbano Soares afirma contribuição feminina, reduzindo-a a umas que até o século XX, “as mulheres que têm poucas capoeiristas, como assegurar que um papel fundamental na cultura escrava urbana número significativo de mulheres tenha estavam, de acordo com todos os indícios, participado ativamente das rodas ou do jogo banidas do universo da capoeira, pelo menos antes dos anos 70, pois não há suficiente indiretamente” (A capoeira 121). Mas, o documentação escrita para que se estabeleça próprio autor encontrou uma notícia sobre qualquer um dos dois argumentos. a repressão aos capoeiristas que menciona Embora o “impacto” feminino no duas mulheres: “Isabel e Ana passam a jogo da capoeira, anterior à década de 70, vida a brigar; e para isso desafiam quem seja um aspecto de difícil comprovação, as lhes dirige qualquer palavra desagradável e, mulheres sempre estiveram presentes nas quando empenham qualquer luta, mostram rodas que se formavam nas ruas de Salvador ser peritas na capoeiragem” (A negregada e do . Em City of Women, 303).3 Trata-se, entretanto, ao que tudo estudo em que descreve a mulher como indica, de casos isolados e de pouco vulto, elemento catalisador da cultura de Salvador, principalmente quando comparados ao Ruth Lande menciona que geralmente as número de capoeiristas do sexo masculino rodas de capoeira se formavam em lugares que se destacaram na época. onde havia uma “baiana” vendendo acarajé, Alguns estudiosos e pesquisadores doces ou outras comidas. No Rio de da história da capoeira no século XX Janeiro, as “quitandeiras”—especialmente costumam mencionar o nome de sete as que se localizavam no Largo da Sé— mulheres que ficaram famosas antes da desempenharam um papel semelhante incursão feminina sistemática nos círculos ao das “baianas” (cf. Soares, A capoeira de capoeira: Maria Homem, Júlia Fogareira, 175). As cantigas de capoeira, de domínio Maria Cachoeira, Maria Pernambucana, público, confirmam a presença da mulher Maria Pé no Mato, Odília e Palmeirona nas proximidades das rodas, como se pode (Bola Sete 27; Araújo, “Sou” 133). No verificar no seguinte corrido: “Dona Maria, entanto, mesmo que algumas capoeiristas o que vende aí? / É coco e pipoca que é do tenham se tornado figuras lendárias, Brasil. /Coro: Dona Maria, o que vende aí?” não gozam do prestígio e da admiração (Citado em Bola Sete 127). Maria José Somerlate Barbosa 11

Para impor ordem e autoridade, visibilidade nas rodas, nos grupos ou nas esquadrões atuavam contra os grupos academias revelam que, com raras exceções, de capoeira e os candomblés, e a polícia ela era vista quase exclusivamente como registrava as prisões dos capoeiristas e uma peça de apoio na estrutura social do descrevia suas atividades. Nesse contexto jogo/luta/dança/ritual ou como participante repressivo, os capoeiristas contavam com da resistência cultural afro-brasileira. o apoio de outros grupos marginalizados Tais argumentos não são suficientes para como as prostitutas e trabalhadores de rua, determinar ou explicar uma participação que se uniam para fugir da perseguição da “ativa” da mulher, enquanto capoeirista, ou polícia (Soares, A negregada 336). Segundo estabelecer as razões que redimensionaram a Waldeloir Rego, na , “as mulheres sua posição e o seu lugar na capoeira. de saia, como eram chamadas as negras Enquanto os homens se beneficiam africanas ou descendentes” tornavam-se do fato de que a capoeira tem uma longa cúmplices e aliadas dos capoeiristas, pois tradição masculina e de mestres que servem além de avisar os homens da aproximação de modelos para as gerações de rapazes e da polícia, escondiam armas perigosas meninos, só nas últimas décadas, as mulheres (geralmente uma navalha ou uma faca de começaram a ganhar sistematicamente tal ticum) que retiravam da cabeça, do cabelo projeção e apoio. Mesmo não se podendo e do torso e entregavam aos capoeiristas no precisar com acuidade a participação tangível exato momento em que eles delas precisavam da mulher na trajetória histórica do jogo, é para atacar ou se defender (297). inegável que a partir dos anos 70, ela tem Nas décadas posteriores ao estabeleci- atuado de forma muito mais ativa e, desde mento das academias de capoeira (meados os anos 80, a sua presença nas rodas, nos dos anos 30), nota-se que a presença da grupos e nas academias se faz cada vez mais mulher nos círculos da capoeira se manifesta numerosa. É o que explica Rosângela Costa também em forma de um apoio logístico ou Araújo, Contra-Mestre Janja, co-fundadora serviçal. Desde que a capoeira começou a do Instituto Nzinga de Estudos da Capoeira sair das ruas e se estabeleceu em academias, Angola e Tradições Educativas Banto no é muito comum que a aluna capoeirista seja Brasil (INCAB), dirigente da Orquestra a secretária e/ou coordenadora do grupo Nzinga de Berimbaus de São Paulo e a que ela está afiliada. Por isso, Frederico diretora da revista Toques de Angola: Abreu considera que “se a mulher não trouxe uma contribuição para a ‘forma’ de jogar A mulher deixou de ser vista como capoeira, trouxe a organização, cuidando de “novidade” nos grupos, academias assuntos burocráticos” (entrevista pessoal, e rodas de capoeira. […] Novidade Salvador, 03 de agosto de 2002). mesmo é o fato da sua atual represen- tação numérica e qualitativa; ou seja, Ainda que haja referências à mulher o fato delas representarem hoje cerca nas cantigas, que ela atue como elemento de 40% dos praticantes de capoeira, catalisador da roda, ou que seja parte de um numa distribuição mundial, indica todo social na capacidade de organizadora que tanto a capoeira, no geral, quan- ou secretária, este tipo de participação indica to os grupos, academias, mestres, apenas que a sua “presença” nos círculos da contra-mestres, professores, etc., no capoeira era constante. As referências a sua particular, não podem mais insistir 12 Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies

em ignorá-las, ou mesmo em reduzir se atraídas pelo jogo porque já estudaram seus papéis e participação na prática dança, ioga, educação física ou uma arte e nas atividades destas organizações. marcial. Grande parte das entrevistas que (“Contra-Mestre” 18) fiz no Brasil e nos Estados Unidos, bem como outras referências encontradas em Ao escolher o nome Nzinga para o gru- depoimentos e entrevistas com mulheres que po e a orquestra, Contra-Mestre Janja e os se destacam na capoeira, confirmam que a co-fundadores, Paulinha e Poloca, prestaram maioria delas associa a linguagem corporal e uma homenagem à rainha angolana que, no a concentração ritualística da capoeira com século XVII, lutou contra os portugueses, movimentos da ioga, da dança ou das artes chegando a expulsá-los temporariamente marciais. Por exemplo, em um depoimento da costa de Angola e que, durante as lutas sobre Suellen Einarsen, Mestra Suelly (a pela independência no século XX naquele primeira mulher nascida nos Estados Unidos país, passou a representar um símbolo de a atingir o grau de mestra), resistência contra o colonialismo (Rosângela (Mestre Acordeon) declara que, tão logo Costa Araújo, entrevista pessoal, São Paulo, ela entrou para a sua academia, ele percebeu 13 de julho de 2002; Paula Cristina da Silva que “a alta qualidade dos seus movimentos Barreto, entrevista pessoal, Salvador, 10 de refletiam muitos anos de técnica de dança” agosto de 2002). A herança histórica e a (“Mestra” 2).4 A própria Mestra Suelly resistência que a Rainha Nzinga representa confirma que seu treinamento em dança sempre estiveram simbolicamente presentes moderna ajudou-a a entender melhor os nas práticas de origem africana no Brasil, movimentos da capoeira e a aprender mais pois como afirma Cascudo, cada navio facilmente uma nova linguagem corporal de escravos que chegava ao Brasil trazia (United 2).5 “invisível e lógica a Rainha Jinga (sic)” Mesmo que a maioria das meninas, (Made 40). Portanto, com a escolha do moças e mulheres que se interessa por nome Nzinga para seu grupo, os fundadores capoeira no Brasil e nos Estados Unidos tenha do Instituto e da Orquestra homenagearam estudado dança e ioga, feito educação física as suas raízes africanas, estabeleceram uma ou praticado alguma arte marcial antes de associação entre a resistência angolana jogar capoeira, há instrutoras e discípulas sem e a sobrevivência cultural da capoeira, nenhuma experiência anterior com qualquer direcionaram atenção para os feitos guerreiros dança, esporte ou arte marcial. Em alguns femininos, enfatizaram a capacidade de casos, há um movimento inverso: o interesse liderança da mulher e destacaram o lugar pela capoeira leva o/a aluno/a a buscar outros importante que ela atualmente ocupa na meios afins, com a intenção de validar a capoeira. sua participação no jogo. É o que confirma Fátima Colombiana, Mestra Cigana (nascida A Participação da Mulher no Rio de Janeiro, sagrada mestra nos anos na Capoeira 70, e até agora a única mulher a presidir a Federação Brasileira de Capoeira), que para Muitas vezes, o interesse inicial da poder ensinar capoeira na escola secundária mulher pela capoeira se faz por uma via acabou se matriculando numa universidade oblíqua, ou seja, muitas mulheres sentem- onde estudou educação física: Maria José Somerlate Barbosa 13

Eu quis dar aula de capoeira [quando tinha mais tempo para as aulas, condições já era mestra]. Procurei uma escola e financeiras de pagar mensalidades e o poder a diretora me disse: “Quê! […] Onde de legitimá-la como “esporte brasileiro.” já se viu capoeira na escola?” Fiquei Refiro-me, neste caso, à divulgação da tão magoada com aquilo que entrei Capoeira Regional e dos estilos híbridos na Faculdade de Educação Física para poder me vingar e voltar a dar nos anos 70, pois a partir dos anos 80, os aula de capoeira naquela escola. Eu seguidores da Capoeira Angola fizeram um me formei em 1982. Dito e feito. A esforço para “reafricanizá-la.” Os angoleiros tal escola que era de classe média alta, costumam rejeitar o rótulo de “esporte” estava precisando de um professor de e evitam associar a capoeira com as artes educação física. Eu fui dar aula lá, marciais. Araújo, por exemplo, considera mas não lecionei Educação Física; que a Capoeira Regional “nasceu para as só dava aula de capoeira. (Entrevista elites brasileiras, como sendo um esporte pessoal, Rio de Janeiro, 24 de maio exótico ou uma manifestação folclórica” de 2003) e analisa tal desenvolvimento como um “branqueamento” da capoeira tradicional A maioria das meninas, moças e (“Sou” 42). mulheres que estuda balé, danças modernas, Segundo Letícia Vidor de Sousa Reis, ioga ou artes marciais em academias são a partir dos anos 70, houve um esforço para oriundas de classes sociais economicamente homogeneizar, nacionalizar, globalizar a mais privilegiadas. É raro que uma menina capoeira e transformá-la na “arte marcial que vive numa favela ou num bairro carente brasileira” (170). É nesta fase que a capoeira no Brasil, ou num projeto residencial nos Regional ganha reconhecimento e grande Estados Unidos, tenha condição financeira divulgação. Se a tentativa de transformar a de pagar tais cursos. Com raras exceções, as capoeira num esporte, teve o efeito negativo longas jornadas de trabalho das meninas e de “desafricanizá-la” e desapropriá-la da sua moças pobres—que se esforçam para garantir herança negra (Reis 170), serviu também o seu sustento próprio ou para ajudar a para garantir-lhe uma maior divulgação família—não lhes permitem a oportunidade e respeito. Se nos anos 70, a “diáspora de se matricular em academias. A grande baiana” (a expressão é de Reis) sentiu a ironia é que uma forma de resistência necessidade de mudar o jogo para poder cultural afro-brasileira domesticou-se dentro ganhar a atenção da classe média brasileira, dos contornos espaciais das academias, estabelecer-se no mercado e competir com tornando-se, por isso, de acesso mais difícil as lutas orientais, nos anos 80 e 90 houve a muitos afro-descendentes cujos ancestrais um esforço consciente para “reafricanizar” cuidaram de preservá-la por muitos séculos, a capoeira e, com isto, a Capoeira Angola em espaços públicos e abertos, como uma ganhou mais força. É nesta época também forma de expressão africana no Brasil. que a mulher começa a participar mais Até certo ponto, a capoeira acabou se ativamente nos círculos capoeiristas. legitimando nos grandes centros urbanos A divulgação da Capoeira Angola brasileiros e estrangeiros através da classe contribuiu para que muitas meninas e moças média. O fator econômico teve assim papel estudassem capoeira, principalmente no importante na sua propagação, pois a classe Brasil. É comum que as mulheres, em fase média era o segmento da sociedade que iniciante da aprendizagem, sintam-se mais 14 Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies

à vontade com a Capoeira Angola, pois capoeira; 11) a organização de encontros, consideram-na menos agressiva, violenta ou torneios, workshops e conferências; 12) o acrobática pelos seus movimentos rasteiros. impacto positivo de capoeiristas que estão No entanto isto não significa que a capoeira afiliadas a universidades de prestígio no Brasil Angola seja “melhor” para o corpo feminino. e no exterior, levando a capoeira para os Há de se convir que em qualquer estilo meios acadêmicos; 13) o crescente número de de capoeira, pode haver violência e que publicações sobre capoeira; e 14) a inclusão tal prática é prejudicial tanto para o sexo da capoeira em programas educacionais e masculino quanto para o feminino. Nesse eventos públicos tanto no Brasil como no caso, os capoeiristas usam os movimentos exterior. como forma de dominação, de exibição Embora o feminismo não seja dire- física ou de atletismo, transformando o jogo tamente responsável pela presença da mulher numa competição, enfatizando, assim, o na capoeira, ele legitimou a reivindicação de aspecto de luta da capoeira. igualdade entre os sexos, deu impulso a Além do crescimento da classe média vários debates sobre a paridade de gêneros no Brasil, da sua contribuição para legitimar e garantiu novas propostas de vida para as a capoeira como esporte e da divulgação mulheres. Portanto, o grande número de da Capoeira Angola, há também outros mulheres que participam ativamente de fatores que influenciaram uma participação esportes, que colocam a sua energia e o seu mais efetiva da mulher no âmbito geral poder aquisitivo no mercado de trabalho desse jogo/luta/dança/ritual. É possível que e que lutam pelos direitos da mulher teve esses fatores adicionais tenham ajudado papel decisivo na sua infiltração na capoeira, a aumentar a divulgação da capoeira no pois os homens capoeiristas já não podiam Brasil e no exterior e que, por extensão, facilmente segregar e discriminar a ala tenham contribuído para incrementar o feminina. número de mulheres capoeiristas, a saber: 1) Além da igualdade de direitos pro- a maior emancipação das mulheres, graças pagados pelos movimentos feministas e aos movimentos feministas; 2) o apoio que da participação da classe média, os outros intelectuais dos grandes centros urbanos fatores citados também contribuíram deram à expansão de capoeira no Brasil; substancialmente para aumentar o número 3) a modernização da família brasileira; 4) de mulheres interessadas na prática da a política do Estado que elevou a capoeira capoeira. Como afirma Reis em O Mundo à categoria de esporte nos anos 70, e que, de Pernas para o Ar: A Capoeira no Brasil, nos anos 80, incorporou-a oficialmente ao os intelectuais de São Paulo tiveram um projeto estatal como patrimônio cultural; papel singular na divulgação e aceitação 5) a maior infiltração da cultura negra na da capoeira por parte da classe média. Ao mídia; 6) a penetração da capoeira nas abraçar o jogo/luta/dança/ritual, pessoas escolas; 7) a expansão de grupos folclóricos de destaque nos grandes centros urbanos e shows culturais; 8) a propagação e a do Brasil, especialmente em São Paulo e divulgação da capoeira na internete e a sua no Rio de Janeiro, colaboraram para que globalização; 9) o estabelecimento de ela fosse menos estigmatizada e para que academias de capoeira no exterior; 10) a ganhasse uma maior divulgação nacional e atitude mais aberta e menos machista dos internacional. Ao adotá-la, esses intelectuais mestres, contra-mestres e instrutores de emprestaram-lhe o nome e o prestígio, o que Maria José Somerlate Barbosa 15 contribuiu para retirá-la da sua condição cultural afro-brasileiro e angariar a simpatia marginalizada, abrindo espaço também para da classe média, Mestre Bimba fundou uma participação mais ativa da mulher. a primeira academia formal de capoeira A crescente aceitação da capoeirista denominando-a Centro de Cultura Física e por um público geral e/ou pelo círculo Capoeira Regional. Retirou a capoeira das familiar contribuiu para elevar o número ruas e projetou-a como “a ginástica nacional de mulheres jogando capoeira. Com raras brasileira” (Rego 291-92). Em 1937, a sua exceções, até a década de 70 era muito difícil “escola” recebeu reconhecimento oficial para uma mulher ser capoeirista. Mestra ao ser registrada na Inspetoria do Ensino Cigana discute as dificuldades encontradas, Secundário Profissional (Abreu, Bimba afirmando que existia um preconceito 29; Lewis 32; Rego 268-70, 282). Mestre geral contra a capoeira e que as famílias Bimba conseguiu realizar um sonho de classificavam o jogo/luta/dança/ritual como muitos brasileiros, pois a idéia de considerar uma atividade de malandro: “Era o maior a capoeira como “esporte nacional” era bem vexame para a família. Uma mulher que mais antiga. Por exemplo, de 1910 a 1928, o fosse treinar capoeira, seria ‘mulher à-toa,’ escritor Coelho Neto, dentre outros, insistiu vagabunda. Uma menina de ‘boa’ família numa “proposta pedagógica de inclusão não podia nem assistir, quanto mais treinar” da capoeira nas escolas civis e militares,” (entrevista pessoal, Rio de Janeiro, 24 de utilizando o argumento de que a capoeira maio de 2003). Tanto a sociedade como a era uma excelente ginástica tanto para o família da capoeirista costumava rejeitar o corpo como para o caráter (Reis 65-66). jogo/luta/dança/ritual com medo de que Em 1972, a capoeira foi “reconhecida a filha perdesse a feminilidade. É o que oficialmente como esporte, conforme também explica Edna Lima, que em 1981 portaria expedida pelo o Ministério da recebeu o título de mestra e hoje ensina Educação e Cultura (MEC), iniciando-se Capoeira ABADÁ em Nova Iorque. Nasceu então um processo de institucionalização em Brasília e começou a praticar capoeira aos e burocratização que visou homogeneizar doze anos, a princípio, ocultando tal fato da e normatizar a capoeira em todo país, família por medo de que fosse desencorajada estabelecendo-se torneios e simpósios a continuar: “Depois de uma semana de nacionais” (Reis 125-27). Essa “apropriação aula, percebi que não havia meninas lá, oficial” da capoeira reflete uma tendência fiquei um pouco confusa e pensei que talvez geral do Estado autoritário, “biologizante a capoeira não fosse para mulheres” (Perry e tecnicista” dos anos 70. Nesse contexto, 6). Lima é um dos exemplos felizes em que a capoeira ganhou o status de “esporte” e a mente aberta da mãe acabou incentivando foi então criada a Federação Brasileira de a garota, mesmo quando outras pessoas Capoeira (Reis 128-30). Marilena Chauí insistiam que a capoeira não era “coisa de afirma que “em 1982, o Ministério da menina” (Perry 6). Educação e Cultura (MEC) apresentou um Estigmatizada pelo Código Criminal plano trienal para a cultura e a educação do Império (1830) e pelo Código Penal cuja novidade encontra-se no fato de que, da República dos Estados Unidos do pela primeira vez desde 1964, a Cultura Brasil (1890), a capoeira permaneceu Popular foi incorporada oficialmente ao na ilegalidade até 1932. Para fugir da projeto estatal” (87). A função do MEC era perseguição da polícia, legitimar um espaço promover os “bens culturais,” valorizando a 16 Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies

participação comunitária, incentivando as feminino. Os torneios, encontros, workshops manifestações regionais e convertendo “o e reuniões são propagados mais facilmente e popular em patrimônio nacional” (Chauí de maneira mais eficiente via internete. Os 89).6 Tal decisão certamente contribuiu para sites de capoeira e o uso de emails facilitam validar todas as grandes expressões da cultura e disseminam a comunicação, divulgam os popular brasileira como as escolas de samba, eventos e atraem números mais elevados o futebol, a capoeira e as festas populares. O de participantes para as atividades, rodas, reconhecimento formal do Estado garantiu academias, agremiações e grupos de capoeira. uma maior aceitação da capoeira por um De maneira que a internete desempenha um público mais amplo e contribuiu para que papel importante na divulgação da capoeira fosse menos estigmatizada. Nesse contexto, e, por extensão, na participação feminina, abriu-se mais espaço para a participação pois tem ajudado muitas mulheres a ver que feminina nas rodas, nos grupos e nas o jogo/luta/dança/ritual já se tornou prática academias de capoeira. comum em várias partes do mundo para A penetração e a divulgação mais ambos os sexos. sistemática da cultura negra na mídia A presença de grandes mestres nos ajudaram também a legitimar o espaço da Estados Unidos e em outras partes do capoeira no Brasil e no mundo e a projetar mundo (em caráter permanente, como algumas mulheres. Quando começou a ser visitantes periódicos, ou como convidados incluída em grupos folclóricos ou shows especiais de grupos de capoeira e academias) culturais, a capoeira foi vista mais como contribuiu para atrair tanto homens como exibição do que luta. Por conseguinte, passou mulheres para o estudo da capoeira. a ser considerada menos ofensiva ou violenta e Como o contingente feminino de alunos o estigma vigente (“capoeira é coisa de macho, de capoeira nos Estados Unidos tem sido de malandro, de desordeiro”) diminuiu. bastante alto, desde o início, a participação Deve-se muito essa divulgação à “diáspora da mulher nesses grupos causou um impacto baiana” que, a partir dos anos 70, consolidou positivo, pois os mestres, contra-mestres, a capoeira em São Paulo, renovou o interesse professores e instrutores convidados do pelo jogo/luta/dança/ritual no Rio de Janeiro Brasil conviveram com um maior número (onde a capoeira sofrera perseguição ferrenha de mulheres capoeiristas, podendo assim da polícia no século XIX), e foi propagada no reavaliar as regras do jogo no tocante à exterior, principalmente em Nova York e na linguagem e à atitude misógina das canções Califórnia. Essa maior divulgação da capoeira e das rodas. No entanto, isto não significa abriu novos horizontes para as mulheres e que todos aqueles que ensinam ou estudam viabilizou sua participação mais ativa. capoeira nos Estados Unidos têm uma A organização de encontros, torneios, mente aberta ou são mais afeitos a respeitar a workshops e conferências no Brasil e no igualdade de sexos melhor do que no Brasil. exterior tem levado a mulher a mostrar as Indica apenas que, como o movimento suas habilidades e o seu talento. A rede de feminino sempre foi mais forte nos Estados comunicação estabelecida contribuiu para Unidos, há nos círculos de capoeira norte- disseminar informações mais rapidamente americanos um esforço mais consciente para e para fomentar um maior diálogo entre os não desrespeitar os direitos da mulher, em capoeiristas tanto do sexo masculino como do parte para evitar possíveis ações judiciais, Maria José Somerlate Barbosa 17 possivelmente para aderir à tendência do nacional. Essa divulgação da capoeira e a sua “politicamente correto,” ou para manter as implantação nos currículos escolares servem academias funcionando de maneira eficaz. para legitimá-la e, conseqüentemente, atrair Sabe-se que, desde o final da década crianças e adolescentes de ambos os sexos de 70, é comum que os mestres, contra- para os grupos de capoeira. mestres, professores e instrutores de capoeira, No Brasil, o projeto de lei 10.639 residentes no exterior, viagem com seus para a inclusão de estudos afro-brasileiros alunos ao Brasil para pequenas temporadas no primeiro e segundo graus (aprovado de estudo e treinamento. Ao conviver com em janeiro de 2003), cumpre também a as mulheres estrangeiras que participam função de romper com vários estigmas ativamente das rodas, as populações locais, relacionados à capoeira, viabilizando uma principalmente dos centros urbanos maior participação feminina. No entanto, menores (como é o caso de várias cidades mesmo anterior a este projeto de lei, a do Recôncavo Baiano), começaram a capoeira já era ensinada em algumas escolas perceber que não há estigma em ser uma como parte das aulas de educação física no capoeirista. É claro que nem sempre o Brasil. Nos Estados Unidos, o sistema de modelo alienígena é visto de uma maneira recreação nos parques (Parks and Recreation) positiva, pois existe certa desconfiança com de muitas cidades incorporou o jogo da relação a mulheres estrangeiras que praticam capoeira, encorajando a participação de capoeira. O segmento mais conservador da crianças e jovens de ambos os sexos, o que sociedade brasileira ainda costuma descrever com certeza acabará por ampliar o horizonte essas estrangeiras como “menos femininas participativo da mulher. (É semelhante ao ou menos graciosas” que as brasileiras, pois que acontece com o futebol [soccer] nos consideram que a capoeira e o futebol são Estados Unidos). Algumas universidades atividades “masculinas.” norte-americanas também incluíram a À medida que o horizonte da capoeira capoeira no seu currículo de educação física no Brasil e no mundo se ampliou e conquistou ou dança, reconhecendo o seu valor. um espaço diferenciado, a mulher passou a Deve-se ainda considerar o impacto ser incluída em programas educacionais. No positivo que pesquisadores afiliados a Brasil, muitos professores de educação física universidades de renome, de ambos os sexos, já adotaram a capoeira e o governo brasileiro têm dado à capoeira. O número crescente tem liberado algumas verbas para a sua de teses de mestrado e de dissertações inclusão no sistema educacional. Programas de doutorado sobre capoeira, tanto no sociais de recuperação do menor de grande Brasil como no exterior, bem como livros visibilidade como “Criança Esperança,” da publicados por casas editoriais de prestígio, Rede Globo de Televisão em parceria com contribuem para legitimar a capoeira como UNICEF, também incluem a capoeira no objeto de pesquisa acadêmica.7 Ao ensinar seu currículo. Alguns praticantes de capoeira ou publicar sobre a capoeira, os professores contam receber de Gilberto Gil, Ministro da e pesquisadores afiliados a universidades Cultura do Governo Lula, um apoio mais no Brasil e no exterior também emprestam sistemático à implantação da capoeira nas a projeção do seu nome para a divulgação escolas, já que, desde 1982, a cultura popular da capoeira e ajudam a legitimar o espaço brasileira tem sido considerada patrimônio da mulher nos círculos capoeiristas. Esses 18 Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies

estudiosos desempenham hoje um papel Sinto-me pouco confortável com semelhante ao que os intelectuais paulistas jogos agressivos e fisicamente inten- tiveram nas décadas de 70 e 80. sos e confrontadores […] Também me distancio do deboche de alguns jogos, quando assumem o caráter A Dinâmica de Gêneros de condescendência e arrogância. na Capoeira Acredito que esses jogos são tão agressivos como os que admitem um Às vezes, a violência é uma das formas soco no rosto. É muito frustrante que os homens usam para amedrontar para a capoeirista ser confrontada por aqueles que não respeitam ou as mulheres e afugentá-las das rodas e levam a mulher a sério na capoeira, das academias. Mestra Suelly confirma algumas vezes assumindo atitudes tal argumento ao discutir os tipos de condescendentes, tais como tratar dominação física e psicológica encontradas a parceira com cavalheirismo desa- na capoeira e ao considerar que “a violência propriado. Ou, no outro extremo, às vezes é intencional, pois busca afastar as mas na mesma categoria, aqueles mulheres do jogo” (United 2). É também que querem impor o seu peso, des- o que explica Mestra Cigana ao relatar a considerando a performance técnica sua experiência numa academia do Rio da mulher para mostrar que podem, de Janeiro, com um rapaz “de um metro e de qualquer maneira, dominar a sua oponente. (United 1) noventa mais ou menos” que se recusou a aceitá-la na roda e na academia: Se a violência dentro das rodas de ca- poeira costuma afastar algumas mulheres, a “Quando eu saí no aú, ele me deu violência urbana acabou contribuindo para uma chapa lateral no diafragma que a mulher estudasse capoeira. Mesmo que me jogou a três metros. Eu caí que nenhuma das pessoas que entrevistei lá sem ar, mas depois voltei para a roda. A partir daí, eu pus na minha ou que responderam ao meu questionário cabeça que devia evitar violência, tenha associado a aprendizagem de capoeira mas que precisava me treinar como diretamente à autodefesa, muitas delas atleta para não apanhar.” (Entrevista confessaram-me que se sentem mais seguras pessoal, Rio de Janeiro, 24 de maio e capazes de se defender em caso de ataque. de 2003). Admitiram que, face à violência dos grandes centros urbanos e ao medo recorrente Há ainda um outro tipo de preconceito. de estupro, viam mais esta vantagem no Trata-se de uma discriminação velada e sutil aprendizado da capoeira. e, por isso, até mais perigosa. Refiro-me A grande maioria das mulheres que às atitudes de condescendência e de falsa entrevistei ou as que responderam ao meu proteção existentes nas rodas e nos círculos questionário descreve as suas relações de capoeira em que se exclui a mulher, com seus mestres em termos afetivos e usando-se um cavalheirismo exagerado. respeitosos, enfatizando que, durante o Mestra Suelly interpreta essas duas faces do treinamento, não sofreram discriminações machismo existente nas rodas como uma nem tiveram privilégios por serem mulheres. desconsideração e um desrespeito ao talento Um grande número de pessoas entrevistadas e à experiência da jogadora: afirmou que os grandes mestres dispensam Maria José Somerlate Barbosa 19 um tratamento igualitário aos alunos. Não devotam mais tempo e energia pude comprovar se tal deferência é um fato acabam sendo os jovens rapazes que real ou se os entrevistados consideram que [...] podem continuar a sua tradição. seria difamatório estabelecer uma diferença (Entrevista pessoal, Tucson, 29 de entre a teoria (“todos são iguais na capoeira”) junho de 2000) e a prática (“há uma preferência pelos alunos Apesar dos avanços da mulher nos do sexo masculino que se destacam e que círculos de capoeira, em muitos casos, poderão continuar o trabalho do mestre”), ela ainda é vista como um pequeno especialmente em se tratando de figuras complemento da função masculina. Essa lendárias ou quase lendárias na capoeira. atitude de superioridade que o homem Esta incerteza também se manifestou costuma assumir e o papel secundário porque as pessoas me confessaram que casos reservado para a mulher estão resumidos nas amorosos entre os mestres e as discípulas metáforas do pandeiro (instrumento musical são freqüentes e que eles, às vezes, utilizam de importância na capoeira) e no significado a sua posição de autoridade para se envolver das palmas (função complementar na romanticamente com as alunas ou para Capoeira Regional e nos estilos híbridos) exercer controle sobre elas. Em alguns casos, da seguinte canção tradicional, de domínio as alunas se deixam fascinar pela figura do público, muito cantada nas rodas de professor/pai e os relacionamentos amorosos capoeira: entre mestres e alunas servem para incentivá- las a se desenvolver dentro da capoeira. Em outros casos, bloqueiam-lhes o crescimento, Minha mãe ‘tá me chamando, pois muitas acabam desistindo de continuar Oh! que vida de mulher! aprendendo o jogo de capoeira quando a Quem toca pandeiro é homem, Quem bate palmas é mulher. (Citado por relação perde a intensidade ou se acaba. Letícia Vidor de Souza Reis, entrevista Há também que se considerar que, pessoal, São Paulo, 12 de julho de 2002) mesmo sendo pessoas de um grande conhecimento da filosofia da capoeira e de sensibilidade apurada, a formação É também o que verifiquei nas minhas pessoal dos grandes mestres foi forjada observações de rodas e workshops de capoeira nos parâmetros da sociedade patriarcal e nas análises das conversas, entrevistas e brasileira que discriminava a capacidade depoimentos que coletei. Por exemplo, física e intelectual da mulher. É bastante um contra-mestre de Capoeira Angola nos comum que os mestres encorajem mais os Estados Unidos ficou irritado quando eu discípulos do sexo masculino a continuar lhe disse à queima-roupa que notara que ele dispensara mais atenção aos rapazes a aprendizagem da capoeira. É o que explica Anne Pollack (Luar do Sertão), do que às moças durante o seu workshop. Presumivelmente, para mostrar a sua fundadora do “Grupo Capoeira Mandinga do Sertão”: irritação ou para retaliar, respondeu que as mulheres na roda de capoeira ainda são Mesmo os mestres que dizem, ‘todos “adornos ou representações simbólicas” e que os meus alunos são metade homem “não são levadas tão a sério quanto os homens” e metade mulher,’ dão mais atenção (conversa que tive com Eric Johnson, Contra- aos homens. Aqueles a quem eles Mestre Pererê, em Iowa City, 15 de outubro 20 Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies

de 2001). Tal revelação me surpreendeu, número elevado de mulheres praticantes de pois metade dos alunos que participavam capoeira, a atitude dos mestres, contra-mestres do seu workshop naquela ocasião eram e instrutores não parece ser extremamente mulheres. No entanto, observei também machista, pois há mais camaradagem e que as alunas pareciam não se aborrecer com companheirismo nas rodas de capoeira do as “regras” do jogo. A figura do pai/mestre, que em muitos outros setores da sociedade. ou contra-mestre, professor, ou instrutor, Se ainda há alguns mestres, contra-mestres, representa a autoridade do conhecimento professores e instrutores de capoeira que da história, filosofia, malícia e treinamento insistem em separar as mulheres dos homens físico da capoeira. É possível que elas sintam ou em tratá-las de maneira diferenciada, de que questionar esta autoridade significa pôr um modo geral, há respeito e consideração em xeque o poder e o conhecimento do e, em muitos casos, as mulheres recebem líder, o que poderia levá-los a se indispor dos encarregados das academias, das contra elas. (Deve-se notar, no entanto, agremiações e dos grupos de capoeira um que a obediência ao mestre ou instrutor tratamento condigno ou até especial. é uma das características dos grupos de Mesmo que, em certos círculos na capoeira e não se aplica apenas às mulheres. capoeira, haja um duplo sistema de valores, Reflete o sistema das sociedades patriarcais de muitas formas simplesmente ecoa o em que, mesmo que a ala masculina tenha que acontece na sociedade com um todo. mais regalias ou receba um tratamento A experiência da mulher na capoeira e as diferenciado do patriarca, ele é obedecido discriminações que sofre não divergem muito por todos inquestionavelmente). do que acontece em outras agremiações, na Baseando-me tanto na reação do escola ou no trabalho. Isto não significa que contra-mestre à minha pergunta, como em seja louvável ignorar as atitudes machistas ou outros depoimentos, entrevistas e conversas a moral dupla existente em alguns círculos que tive durante os três anos desta pesquisa, de capoeira. Qualquer tipo de discriminação concluí que muitos homens costumam ver a é deplorável e um exame da dinâmica de mulher capoeirista em dois níveis. No nível gêneros, em termos comparativos, não serve superficial, abrem espaço para a mulher, para desculpar o comportamento misógino; incorporando-a nas rodas e nas academias. serve apenas para explicar que a dinâmica Num nível mais profundo, um número de gêneros na capoeira não é atípica nem de mestres, contra-mestres, professores e anômala. instrutores ainda vêem a capoeira como algo Deve-se ainda considerar o impacto de domínio masculino e, portanto, buscam positivo que as mulheres do alto escalão encontrar outros rapazes e meninos que da capoeira (por exemplo, mestras e possam dar continuidade ao seu trabalho. contra-mestras como Edna Lima, Suelly, De certa forma, os menos esclarecidos ainda Fátima Colombiana, Márcia “Cigarra,” acreditam que a função simbólica e real da Marisa Cordeiro, Janja e Paulinha) têm tido mulher na capoeira é a de “bater palmas,” na dinâmica de gêneros na capoeira. Essas ou seja, ficar do lado de fora da roda, mulheres oferecem um apoio inusitado à incentivando os jogadores ou servindo de ala feminina nas rodas, nas agremiações e elemento catalisador. nas academias. O suporte que elas dão às Como um contraponto, pode-se capoeiristas (cerca de 50% dos seus alunos são argumentar também que, considerando-se o do sexo feminino) é também um fator muito Maria José Somerlate Barbosa 21 decisivo para um maior respeito à presença especialmente para os companheiros do sexo da mulher na capoeira e para estabelecer um masculino, que são competentes, que sabem maior equilíbrio entre as relações de gênero. tocar berimbau, que conhecem os cantos e Se a barreira social que discriminava a que dominam os movimentos e a malícia capoeira como uma atividade exclusivamente do jogo, principalmente quando a grande masculina já foi desmoronada, pelo menos maioria dos jogadores na roda são homens. em parte, há ainda outros fatores que Rosa Maria Araújo Simões considera que constituem um empecilho para que a isto se deve ao fato de que, apesar da grande mulher não compita com o homem em penetração da mulher na capoeira, há uma termos de igualdade numérica nos escalões defasagem cultural e temporal: “Temporal mais avançados da capoeira. Algumas porque a mulher entrou na capoeira muito mulheres se sentem desencorajadas a mais tarde e cultural porque até hoje a continuar porque acham que os homens mulher é considerada mais frágil” (99). têm mais força e domínio físico do corpo A inferioridade numérica e a defasagem do que elas e que, portanto, competem em temporal e cultural da mulher na capoeira condições de desigualdade. Sabe-se que, em indicam que há muito a conquistar, portanto, qualquer ambiente de estudo, quando as não é surpreendente que elas ainda estejam condições são menos favoráveis, o normal definindo seu espaço dentro do universo é que o/a aluno/a acabe abandonando da capoeira. Até mesmo mulheres que já ou adiando o curso que estava fazendo. alcançaram altos níveis de treinamento Enquanto nas aulas iniciantes de capoeira, (como a Graduada Pimentinha, ganhadora o número é quase igual de participantes do do título de Melhor Mulher Capoeirista sexo masculino e feminino, ainda existe em 1999 nos Jogos Mundiais de Capoeira uma predominância de homens em grupos ABADÁ no Rio de Janeiro) admitem mais avançados de capoeira. Por isso, que “as mulheres muitas vezes se deixam comparativamente, são poucas as mulheres intimidar porque pensam que os homens que conseguem chegar a altos níveis na são mais fortes e associam isto com jogar capoeira. No entanto, o modelo estabelecido melhor” (Delgado 2). Grosso modo, seja na por aquelas que já atingiram altos níveis capoeira ou em outros setores, mesmo que a de aprendizagem ajuda outras mulheres mulher ainda exiba certa timidez ou medo a perceber que elas também podem ter nos círculos marcadamente masculinos, grande destreza e rapidez, leva-as a ver já avançou com passos largos nessas duas que é possível neutralizar a força física e a últimas décadas. violência masculinas nas rodas de capoeira Se, por um lado, a capoeirista com- com sagacidade, artimanha e treinamento e, partilha uma história de opressão patriarcal principalmente, com a malícia do jogo. com outras mulheres, por outro, pode Ainda que a mulher tenha questionado chegar a ter maiores afinidades como os a mitificação em torno do papel do homem homens do grupo a que pertence devido na capoeira e mapeado novos terrenos, as ao estilo de capoeira a que se afiliou. Nesse entrevistas que conduzi, os depoimentos que caso, a mulher tende a se aproximar dos coletei e a literatura publicada sobre a mulher seus colegas de academia ou do seu grupo na capoeira revelam que as capoeiristas ainda de prática. É um caso semelhante ao que sentem necessidade de se auto-afirmar. Há aconteceu com o movimento feminista ou uma urgência em provar para si mesmas e, com qualquer grupo marginalizado que 22 Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies exige direitos igualitários. Por exemplo, isso, dentro das academias e das agremiações ainda que todas as mulheres de descendência de capoeira, a identificação mais ampla das africana tenham algo em comum com mulheres se faz principalmente em termos outras mulheres na luta pela reivindicação do estilo de capoeira que se joga. Dentro de de direitos, uma mulher negra de uma cada estilo, haverá, num segundo momento, camada carente da sociedade, por causa do maior ou menor identificação em termos seu passado histórico ou da sua experiência de raça, classe ou idade, como acontece em sociocultural, pode ter mais afinidades com grande parte das associações, esportes, ou um homem de descendência africana da até mesmo nas escolas. sua comunidade do que com uma mulher A proliferação de academias e grupos branca de alta classe média. Portanto, a de capoeira por todo o Brasil e pelo mundo mulher que joga a Capoeira Angola, a afora, em pequenos e grandes centros Regional ou a ABADÁ pode se sentir mais urbanos, é um sinal da sua aceitação ou, pelo próxima de um homem do seu grupo do menos, demonstra que a capoeira ocupa um que de outra mulher que pratique um estilo novo espaço social onde os problemas que diferente. No entanto, agora que a fase de a mulher ainda enfrenta estão muito mais estabelecimento dentro da capoeira já se ligados à questão de gênero do que de raça. concretizou, nota-se que começa a haver Isto não significa que o preconceito racial no uma maior mobilização das mulheres para Brasil tenha sido eliminado. Significa apenas criarem as suas próprias agremiações. Tem que quando ele existe, atinge capoeiristas havido um esforço, dentro de cada estilo de ambos os sexos. Considerando-se a de capoeira, para estabelecer um espaço, história da capoeira (acossada pela polícia, marcar a presença da mulher na capoeira e estigmatizada como uma “luta de escravos” globalizar a sua atuação como capoeirista. e considerada uma prática cultural inferior), Se, num âmbito mais amplo, pode- a discriminação racial obviamente atinge se pensar na mulher-capoeirista como um as mulheres também. Portanto, num plano grupo que juntou forças para impor a sua mais amplo, fora das academias, pode-se presença nas rodas e agremiações e exigir falar em múltipla discriminação: uma o respeito que lhes é devido; num âmbito mulher negra ou mestiça pode ser relegada mais restrito, uma vez estabelecida a sua a um plano inferior por ser mulher, negra e capacidade e habilidade de brilhar nos capoeirista. No entanto, nenhuma daquelas domínios da capoeira, sentiu a necessidade com quem conversei ou que participou da de pluralizar a sua presença e participação, minha pesquisa levantou o problema de buscando tanto uma expressão pessoal raça “dentro do seu grupo de capoeira.” como uma afirmação do estilo de capoeira Rosângela Costa Araújo, por exemplo, a que se afiliou. Uma vez estabelecida a sua aborda a questão racial no seu estudo sobre identidade como capoeirista, as mulheres capoeira de forma abrangente (“Sou” 96-98, começaram a formar coalizões. Veja, por 135-53). Atualmente a capoeira goza de exemplo, o caso dos encontros internacionais prestígio nos meios populares, não é mais realizados pela Federação Internacional de perseguida pela polícia e é muito menos Capoeira Angola (FICA) e, dentro dessa marginalizada pela sociedade em geral. Federação, as mulheres estabeleceram sua Portanto, o racismo que existia de “forma identidade feminina ao instituir a FICA generalizada” contra a capoeira é parte do International Women’s Conference. Por seu passado histórico e não era direcionado Maria José Somerlate Barbosa 23 apenas às mulheres, como se pode ver nas mulheres jogam capoeira; não para mudar o publicações que analisam o assunto (cf. jogo, mas para deixá-lo refletir as mudanças Almeida, Araújo, Bola Sete, Lewis, Rego, e movimentos do corpo feminino,” pois Reis, Soares, Tigges e Talmon-Chvaicer). acredita que, em vez de “imitar os homens,” as mulheres deveriam integrar “a energia e A Consolidação da Presença o toque feminino à roda” (United 3). Esta é Ativa da Mulher na Capoeira uma das discussões que costuma surgir nos encontros, conferências e workshops em que Para se atingir níveis elevados de a presença da mulher é bastante forte. aprendizagem na capoeira há a exigência Muitas mulheres de renome na área de tempo e dedicação. É semelhante ao que acadêmica têm contribuído para alargar acontece com a prática de qualquer esporte o espaço da mulher naqueles círculos, ou outras atividades afins. Muitas mulheres ajudando a legitimar o estudo de capoeira levantaram esta polêmica, ponderando que dentro e fora da roda e servindo de modelo. a maternidade e outros papéis e afazeres na Outras mulheres vêem nelas um espelho vida pessoal e profissional não lhe permitem de como é possível acumular uma função uma dedicação exclusiva à capoeira. Neste profissional de prestígio, ser uma boa caso, existe um paralelo também entre a capoeirista e desempenhar os seus papéis posição da mulher na capoeira e a que ela normais de mulher e cidadã, como é o caso ocupa no mercado de trabalho em geral. das mulheres citadas neste estudo. No Brasil, Apesar das dificuldades, há um número acompanhei de perto o trabalho de Paula crescente de mulheres que conseguem Cristina da Silva Barreto, professora na conciliar outras funções e se dedicar à prática Universidade Federal da Bahia, de Rosângela e/ou ao ensino da capoeira. Costa Araújo, historiadora e funcionária da É importante notar também que Universidade de São Paulo que defendeu testemunhos e depoimentos de mulheres uma tese de mestrado sobre capoeira na capoeiristas indicam que a gravidez, a USP, e de Letícia Vidor de Sousa Reis, menstruação e outras condições do corpo antropóloga, também formada pela USP e feminino não constituem grandes obstáculos que publicou sua dissertação de doutorado ao jogo de capoeira. Muitas das mulheres sobre a capoeira. Nos Estados Unidos, entrevistadas revelaram que não vêem chamaram-me atenção duas professoras a biologia como um empecilho e que é universitárias que também têm interesse comum que as capoeiristas continuem a na capoeira: Anne Pollack, pesquisadora na jogar durante a gravidez, principalmente área de câncer da University of Arizona e nos jogos menos acrobáticos. Anne Pollack, fundadora do “Grupo Capoeira Mandinga por exemplo, acredita que o fato de ter do Sertão” e Barbara Browning, professora praticado capoeira até os últimos meses de e diretora do departamento de Performance 8 gravidez ajudou-a a ter um parto mais fácil e Studies na New York University. a recuperar a forma física mais rapidamente As mulheres do meio acadêmico, após o nascimento da sua filha (entrevista como muitas outras por todo o mundo, pessoal, Tucson, 29 de junho de 2000). servem de modelo positivo para as novas Mestra Suelly indica que “gostaria de ver gerações e contribuem para que se dissipe mais feminilidade na maneira como as o estigma de pária social e de inferioridade 24 Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies

cultural que se conferia ao capoeirista. É o alunas sentem-se mais à vontade para pedir caso, por exemplo, de uma contra-mestra ajuda e/ou fazer perguntas; vêem na mestra, e de duas mestras brasileiras, radicadas contra-mestra ou professora um modelo a nos Estados Unidos, que têm contribuído seguir e estabelecem coalizões femininas. de uma maneira substancial para mudar Além das aulas tradicionais de o perfil conservador da capoeira. Em capoeira, em 2004, Lima lançou um método Chicago, destaca-se Contra-Mestra Marisa de malhação, o “Capoeira Workout,” que Cordeiro, nascida em Minas Gerais e tem sido alvo tanto de elogios quanto de ex-dançarina do grupo “Oba, Oba,” de críticas. Se, por um lado, o “Workout” é Oswald Sargentelli. É diretora do grupo uma forma de disseminar e popularizar “Gingarte Capoeira” desde 1991 e ensina os movimentos da capoeira, por outro, capoeira como atividade extracurricular também é visto como uma descaracterização estudantil na University of Chicago e na da capoeira, pois “dispensa a roda,” baseia-se University of Illinois em Chicago. Em São nos princípios de “uma sessão tradicional Francisco, Mestra Márcia Treidler “Cigarra” de ginástica” e seu aquecimento é feito dá o exemplo de excelência na capoeira e “ao som de samba-reggae,” em vez do de cidadania. Ela começou a sua carreira som de atabaques e berimbaus (Bergamo em 1987 trabalhando com crianças de rua 58; Chatham E50; Esteves 123-24). De do Rio de Janeiro. Em 1991, mudou-se qualquer maneira, o “Workout” tem elevado para os Estados Unidos onde fundou o a popularidade de Lima, ajudado a projetar ABADÁ Capoeira São Francisco e, em a imagem da mulher capoeirista, propagado 1997, criou o Brazilian Cultural Center, o os movimentos da capoeira e atraído mais primeiro centro daquela cidade dedicado mulheres para as rodas e academias. às artes culturais brasileiras. É organizadora A divulgação da capoeira e, conseqüen- de eventos culturais e diretora artística da temente, a abertura de um maior espaço ABADÁ-Capoeira Internacional (ABADÁ, para as mulheres, faz-se também através “Mestranda” 1). de publicações ocasionais sobre feitos Mestra Edna Lima tornou-se a mulher femininos em revistas de grande circulação capoeirista mais conhecida e renomada de como Praticando Capoeira, Coleção Grandes Nova York (comemorou seu 30o aniversário Mestres, Ginga Capoeira: Letras e Movimentos na capoeira em 2004), acumulando uma e Revista Cordão de Ouro. Eventos como série de prêmios nacionais e internacionais. o Aulão Aberto I e II, ambos realizados Seu prestígio atrai alunos de ambos os sexos em São Paulo no Ibirapuera e no Vale para as aulas de capoeira, karatê e danças do Anhangabaú, em 25 de maio e 15 de africanas que ela ensina em Nova York e setembro de 2002, atraíram milhares de nos Departamentos de Dança e Ciência pessoas, dentre elas centenas de mulheres que do Esporte em Long Island University e marcaram presença nesses acontecimentos no Hunter College (ABADÁ, “Edna” 1). históricos. Os encontros internacionais O número elevado de mulheres nas suas realizados pela Federação Internacional aulas (mais de 50% dos seus alunos são do de Capoeira Angola (FICA International sexo feminino) parece confirmar a suspeita Women’s Conference) e pela “Annual de que muitas mulheres se sentem mais Capoeira Angola Women’s Conference,” os confortáveis com uma instrutora. Muitas prêmios “Nzinga para a Mulher Brasileira” Maria José Somerlate Barbosa 25 e a “Maratona Cultural Afro-Brasileira” e serão implementadas ou se outro estilo de vários torneios e encontros realizados pelo capoeira surgirá. O fato das mulheres se Grupo Capoeira ABADÁ, em várias partes mobilizarem para desenvolver conferências do mundo, cumprem o papel de divulgar e workshops constitui um dado importante a capoeira e solidificar o espaço da mulher na história da capoeira e um sinal de que nesse meio. elas ganham espaço social e reconhecimento Uma análise das mudanças ocorridas histórico. O fato também de grandes centros nas letras das canções de capoeira também de capoeira no Brasil, nos Estados Unidos e é um indício das transformações positivas em outros países reservarem lugar de mestres que começam a tomar corpo desde que a e contra-mestres para algumas mulheres é um presença feminina se tornou mais marcante indicador de que a mediação de gênero está nas rodas. As cantigas têm a função de se estabelecendo. conectar a energia da roda, redimensionando Considerando-se as mudanças sociais os movimentos e representando a malícia ocorridas desde os anos 70 e todos os fatores do jogo. Muitas mulheres acabam fazendo que influenciaram na abertura de um lugar mudanças em algumas letras e questionando para a presença feminina bem definida na ou se recusando a cantar certas canções capoeira, é possível concluir que a mulher tradicionais que denigrem a imagem da contemporânea já mapeou um espaço real mulher. Há várias das cantigas mais novas que nos círculos da capoeira. Como todo bom foram compostas por mulheres e apresentam capoeirista, ela incorpora a duplicidade do uma voz feminina. Tais canções questionam papel de sedutora e seduzida: sua energia a ideologia do descaso, desmascaram o aliciadora atrai o parceiro/adversário para discurso patriarcal e estabelecem modelos a jogada, ao mesmo tempo que ela se lança femininos, como é o caso da ladainha “Força na viagem, fascinada pelo magnetismo do Guerreira” de Ively Viccari. As letras das jogo. Sintagmas como “embarcar” no jogo/ canções servem de termômetro cultural da barco, referências a sereias (representantes capoeira no Brasil e no mundo pois, através do princípio da sedução e uma metáfora delas, é possível medir as mudanças ocorridas da malícia do próprio jogo) bem como a nível da dinâmica de gêneros e avaliar as expressões populares (“ver o jogo”) e a transformações que a mulher trouxe para as associação estabelecida entre navio/corpo no rodas e academias de capoeira. mar/roda de capoeira são muito freqüentes nas cantigas de capoeira, como se pode Conclusões observar no seguinte corrido: Se você quiser me ver À medida que o debate e a discussão Jogue seu navio no mar, marinheiro. sobre o papel e o lugar da mulher na Marinheiro, quando em vela capoeira começam a ganhar destaque, o As sereias cantam no mar, marinheiro. espaço real dela também se amplia. O Saia do mar, marinheiro, número de mulheres capoeiristas cresce e o Saia do mar, estrangeiro. (Citado em Bola reconhecimento da sua participação no jogo Sete 130) ganha destaque. Como só mesmo a partir dos anos 80 o contingente feminino na capoeira Se tomarmos o mar como representação aumentou substancialmente, ainda é cedo da capoeira, podemos concluir que, apesar para se prever com exatidão quais mudanças de todo preconceito contra a mulher, ela já 26 Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies

“jogou o seu navio no mar” e se inseriu na Notas ambigüidade do jogo/luta de capoeira, pois 1 Agradeço ao National Endowment for é ao mesmo tempo a sereia que canta para the Humanities pela bolsa de pesquisa que atrair o parceiro/adversário e a marinheira me concedeu em junho e julho de 2001 para que embarcou no jogo com sua coragem, coletar e analisar cantigas de capoeira, material sua malícia, sua ginga e sua astúcia. Através que me impulsionou a pesquisar o papel das dos movimentos do seu corpo e dos seus mulheres na capoeira. Meus agradecimentos cantos, com sagacidade, a mulher pode especiais a Frederico José de Abreu, Rosângela traçar novas linhas do contexto cultural Costa Araújo, Paula Cristina da Silva Barreto, da capoeira, estabelecendo um processo de Fátima Colombiana, Anne Pollack e Letícia mediação e recodificando a interação dos Vidor de Sousa Reis pela ajuda, pelas conver- jogadores.9 Tanto no Brasil como em outros sas, pelo material e pelos contatos. A todas as outras pessoas que me concederam entrevistas, países, as rodas de capoeira têm se tornado um que responderam ao meu questionário, ou que espaço de mediação social em que sexo, idade e conversaram comigo sobre capoeira entre 2000 raça não são empecilhos para a integração dos e 2003, aqui registro os meus mais profundos e participantes. É o que ensinam os primeiros sinceros agradecimentos. versos da ladainha “Os Erês Curumins,” 2 Há ligeiras referências a essa dança de ini- cantada pelos Mestres João Pequeno e Miguel ciação nos estudos de Downey 218; Esteves 46; Machado, em que repetem a filosofia e os Soares, A negregada 34-35; e Tigges 31. ensinamentos de Mestre Pastinha: “A capoeira 3 Essa notícia foi publicada no Rio de Janeiro, no é para homem, menino e mulher / Só não Jornal do Commércio, em 29 de janeiro de 1878. 4 aprende quem não quer” (s.p.). Efetuei esta tradução e todas as outras dos Como discutido, a mulher não é mais textos citados que foram originalmente publi- cados ou gravados em inglês. uma novidade nas rodas de capoeira; a sua 5 Sobre a transição da dança para capoeira, defasagem temporal e cultural está diminuindo veja também Carvalho 16-19. e a sua timidez nos círculos masculinos começa 6 Embora Chauí não analise a capoeira, a se esvair de forma bastante rápida. Não pode os argumentos que usa para discutir as outras ser vista apenas como um elemento de apoio manifestações da cultura popular (as escolas de ao homem capoeirista, considerada um mero samba, o futebol e a festa do Círio de Belém) elemento catalisador das rodas ou analisada podem ser aplicados à capoeira. como uma simples peça na engrenagem das 7 Veja, por exemplo, algumas das publicações atividades das organizações e academias. citadas neste estudo (Araújo, Barbosa, Brow- Mesmo que novos parâmetros para o jogo ou ning, Downey, Lewis, Reis, Salvadori, Simões, Soares, Talmon-Chvaicer e Tigges). outros estilos de capoeira não se desenvolvam, 8 Esta lista é uma apenas uma amostra. Refle- não há mais dúvidas de que a mulher te alguns destaques, selecionados por publicações demarcou seu tempo e espaço nos círculos da de livros ou e/ou por trabalhos de divulgação capoeira e tem contribuído substancialmente da capoeira, principalmente em universidades para estabelecer um equilíbrio de energia nas brasileiras e americanas de destaque. Como a rodas. O tempo se incumbirá de demarcar as minha pesquisa se debruça principalmente sobre mudanças ocorridas. Quaisquer que sejam a capoeira no Brasil e nos Estados Unidos, não as transformações futuras, é inegável que apresento um estudo detalhado do trabalho de a mulher ocupa um lugar diferenciado e outras mulheres em outros continentes. diferenciador na capoeira. 9 Veja também Barbosa, “Capoeira.” Maria José Somerlate Barbosa 27

Obras citadas Campos, Hélio. Capoeira na universidade: Uma trajetória de resistência ABADÁ Capoeira. “Edna Lima: Biography.” . Salvador: SCT, 30 Jan 2005 . Carvalho, Letícia Cardoso de. “Professora Ursula ABADÁ Capoeira: São Francisco. “Mestra Márcia brilha na Cidade Luz e conquista os fran- Praticando Capoeira Treidler Cigarra.” 13 Dec 2002 . 17 (2001): 16-19. Folclore do Brasil Abreu, Frederico José de. Bimba é bamba: A Cascudo, Luís da Câmara. (Pesquisas e notas) capoeira no ringue. Salvador: Instituto Jair . Rio de Janeiro: Editora Moura, 1999. Fundo de Cultura, 1967. Made in África ———. Entrevista pessoal. Salvador, 03 de ———. . São Paulo: Global, agosto de 2002. 2001. Almeida, Bira. (Mestre Acordeon). Capoeira: Chatham, Catharine. “Too Beautiful to Be a A Brazilian Art Form: History, Philosophy Fight and Much Too Graceful to be Dan- New York Times and Practice. Berkeley, CA: North Atlantic gerous.” 22 Dec. 2000: Books, 1986. E50. Conformismo e resistência: ———. “Mestra Suelly: The Making of a Mes- Chauí, Marilena. Aspectos da cultura popular no Brasil tra.” United Corporation Association: Jogo de . São Corpo. 07 Nov 2003 . Colombiana, Fátima (Mestra Cigana). Entre-vista Araújo, Rosângela Costa. “Contra Mestre pessoal. Rio de Janeiro, 24 de maio de 2003. Janja.” Entrevista. Revista Cordão de Ouro Delgado, Julie. “Female Champion of Capoeira 1 (s.d.):18-21. Teaches in New York: Interview with Gra- ———. Entrevista pessoal. São Paulo, 13 e 14 duada Pimentinha.” Planet Capoeira Maga- de julho de 2002. zine 25 July 2002 . tre me deu lição’: Tradição e educação entre Downey, Greg. Learning Capoeira: Lessons in os angoleiros baianos (anos 80-90).” Diss. Cunning from an Afro-Brazilian Art. Ox- Universidade de São Paulo (USP), 1999. ford: Oxford U P, 2005. Barbosa, Maria José Somerlate. “Capoeira: A Esteves, Acúrsio Pereira. A “capoeira” da indús- gramática do corpo e a dança das palavras.” tria do entretenimento do corpo, acrobacia e Luso-Brazilian Review 42.1 (2005): 78-98. espetáculo para “turista ver.” Salvador: A. P. Barreto, Paula Cristina da Silva (Contra-Mestra Esteves, 2004. Paulinha). Entrevista pessoal. Salvador, 10 Gingarte Capoeira --- Capoeira Cordão de Ouro. de agosto de 2002. “Marisa Cordeiro.” 01 Jan 2005 . Rio de Janeiro: Pallas, 1997. Johnson, Eric (Contra-Mestre Pererê). Entre- Brazilexplore.com. “ABADÁ Capoeira–Making a vista pessoal. Iowa City, 15 de outubro Better World (Mestranda Cigarra).” 03 No- de 2001. vember 2003 . McMillan Company, 1947. Browning, Barbara. “Headspin: Capoeira’s Lewis, Lowell J. Ring of Liberation: Deceptive Ironic Inversions.” Samba: Resistance in Discourse in Brazilian Capoeira. Chicago: Motion. Bloomington and Indianopolis: U of Chicago P, 1992. Indiana U P, 1995. Loria, Keith. “Edna Lima: ’s Little Weapon.” Capoeira Sdobrado. Vídeo. Aulão Aberto I e II. 13 Aug. 2005 . 28 Arizona Journal of Hispanic Cultural Studies

Nzinga Capoeira Angola. CD. São Paulo: Novo- Soares, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira Disc Brasil, 2003. escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Pequeno, Mestre João e Mestre Miguel Macha- Janeiro (1808-1850). 2ª ed. rev. e ampl. do. “Os êres curumins.” Ginga Capoeira: Campinas, SP: Editora da UNICAMP/ Revista dos Mestres 11 (s.d.): s.p. Centro de Pesquisa em História Social da Perry, Susan. “Interview: Mestra Edna Lima.” Cultura, 2002. 13 Dec 2002