A vida e obra de desde a óptica ibero-americana Número 8 Novembro - Dezembro de 2008 Edição em português Mundo ISSN: 1996-7454

A ciência nas Especial obras lunares Os mil olhos de Tarrieu

A obra de À procura Secessão de... Verne

Verne e o povo Inca

Disponível em: http:// jgverne.cmact.com/Misc/MVActual.htm O resumo de um ano de celebrações, Sumário viagens no grande ecrã e crítica de arte Universo verniano 3

Termina 2008 e impõe-se fazer outro verniano, Robert Pourvoyeur, A imagem e semelhança 5 um balanço de matéria verniana. constitui algo irreparável desde o Neste ano que está a terminar ce- ponto de vista humano e investiga- Uma viagem ao extraordinário 6 lebramos o 180º aniversário do nas- tivo. A obra de Secessão cimento do escritor a quem se dedi- No final do ano também apare- cam estas páginas. ceu, na Suíça, o Espaço Jules Verne, Esboços ibero-amercianos 10 Verne e o povo dos Incas Na minha opinião, o sucesso do a que se dedicam algumas palavras, ano no que toca a Verne e ao seu de forma especial, neste número da Influências 14 universo foi, sem dúvida, a publica- revista. Ler Verne na escola ção em Setembro e Outubro de uma A comunidade verniana na Inter- recompilação de artigos do escritor net cresce mais a cada dia e alguns Terra Verne 17 para a exposição de Paris de 1857. entusiastas animam os fóruns da A ciência na aventura lunar Dois livros, duas maneiras de ver rede cibernauta. Os exemplos são: o material, uma única fonte. Dessa Cristian no mundo hispânico, Frede- À fala com... 20 forma podemos catalogar as duas rico nos países de língua portuguesa. À procura de... Verne versões que recebemos, primeiro de Sobretudo, satisfaz-me muito ao ver Os mil olhos de Tarrieu 24 Bill Butcher e depois de Volker Dehs. a grande quantidade de jovens que O livro sobre o Salón de 1857 apre- estudam Verne. Sem publicação prévia 25 senta Verne numa nova faceta nunca Mundo Verne fecha o ano com O cerco a Roma. Capítulo 3 antes vista: crítico de arte. uma nova secção. Alexandre Tarrieu Por outro lado, o ATV Jules Verne, aceitou, de forma muito amável, pu- Cartas gaulesas 30 veículo da estação espacial interna- blicar na revista a sua secção, Os mil A Pierre, em outubro de 48 cional cumpriu a sua missão depois olhos de Tarrieu, que apareceu pela de cinco meses no espaço aéreo, le- primeira vez em 2000, no número © 2008. Mundo Verne. vando no seu interior várias edições 10 (pertencente ao segundo semes- Revista bimestral em castelhano e originais de Hetzel e um mapa do tre desse próprio ano) da Revue JV, português sobre a vida e obra do céu desenhado pelo próprio Verne. que o Centro Internacional Jules Ver- escritor francês Jules Verne. Um novo filme baseado em Via- ne edita. Trata-se de uma secção de Director e desenhador gem ao Centro da Terra estreou no curiosidades e temas interessantes Ariel Pérez. Verão, com críticas favoráveis, in- relativas ao cosmos vernianos e sua Conselho editorial cluindo a de Brian Taves que foi pu- criação. Ariel Pérez Cristian A. Tello blicada nesta mesma revista. Sem adiantar o nome nem o as- Yaikel Águila. Em Fevereiro deste ano, lançou- sunto, informo que Volker, numa en- Tradução portuguesa se online, pelas comemorações do trevista que se publica nesta edição, Frederico Jácome seu aniversário, a revista eletrónica revelará o nome de um texto inédito Carlos Patricio. Verniana com uma publicação anual de Verne que será, seguramente, gra- Edmar Guirra Internet a partir de colaborações da comuni- tificante ler um dia. http://jgverne.cmact.com/Misc/ dade. Mundo Verne e toda a sua comu- Revista.htm O seu fundador, Zvi Har’El, morreu nidade deseja a todos um feliz fim de Correo electrónico poucos dias antes da sua saída para o ano e um próspero 2009! [email protected]. Distribuição gratuita. ciberespaço. A sua perda como a de Os artigos colocados expressam Sobre a imagem da capa exclusivamente a opinião dos autores. É permitido copiar, distribuir, mostrar e fazer Extraída do livro À volta da Lua. A imagem ilus- trabalhos derivados dos materiais que estão tra o momento em que se resgatam os passa- nesta revista, sempre que se cite a fonte de onde foi obtida, não se pode retirar material geiros do voo lunar logo depois de ter chega- para produzir produtos com fins comerciais do a Terra. Uma bandeira ondulava sobre uma e se se fizerem trabalhos derivados deve-se espécie de bóia: é o projétil, que havia regres- compartilhá-los com esta mesma licença. Publica-se sob a licença Creative Commons sado à superfície depois de submergir até às profundezas do oceano.

2 No v e m b r o - De z e m b r o d e 2008 Universo verniano Universo verniano

A secção abandona hoje o seu formato Um fim-de-semana em Yverdon* habitual e, de forma especial, traz o relato de Volker Dehs** Volker Dehs sobre o evento de Yverdon, ocorrido em Outubro passado.

Nada tinha predestinado a pequena A inauguração deste espaço teve viagens ao fundo do mar, a conquis- cidade de Yverdon-les-Bains, paci- lugar no curso do memorável final ta do espaço, a utopia, etc. As vitrinas ficamente situada nas margens do de semana de 4 a 5 de Outubro de mostram outros aspectos da obra lago Léman na Suíça, que iria alber- 2008, mesmo a tempo de festejar o verniana tais como o teatro e as ma- gar um dia o museu mais importante septuagésimo primeiro aniversário quetas das suas máquinas mais fa- da Ficção-Científica, da utopia e das de Jean-Michel. Nesse fim-de-sema- bulosas. Alguns cartazes justapostos viagens extraordinárias. Mas um dia na reuniram-se um grande número em cinco filas passeiam através de apareceu (ao estilo do misterioso de aficionados e vernianos que che- sistemas giratórios perante os olhos maestro Effarane de Kalfermatt) o garam de todos os cantos da Europa dos espectadores. Do outro lado da escritor Pierre Versins (1923-2001) e e Estados Unidos para assistir a este sala podemos ver um vídeo com en- tudo mudou. Em 1976, ele consegui- evento rodeado de uma variedade trevistas de vernianos francófonos ra com que a sua coleção de livros, de espetáculos num ambiente cor- bem conhecidos como Michel Butor, revistas e objetos chegasse à cidade dial. Entre as atrações realizaram-se Jean-Yves Tadié e Jean Demerliac. A na condição que fosse instalada num adaptações de obras de Verne repre- projeção é por vezes interrompida e museu público. Depois de um alo- sentadas em palco, circularam no ar mostra fragmentos de filmes mudos jamento temporário, o museu abriu óperas baseadas em Docteur Ox e na sua maioria desconhecidos e mui- definitivamente em 1989 no centro Voyage dans la Lune de Offenbach na to raros… fabuloso! Já vale a pena ir histórico da localidade, na antiga pri- Maison d’Ailleurs, os inevitáveis dis- a Yverdon só por este espetáculo são e tomou o nome (a propósito de cursos, os brindes, um colóquio de O primeiro piso é reservado aos um edifício semelhante) de Maison três horas numa sala do antigo cas- investigadores e conserva a impor- d’Ailleurs1 . telo, organizado por Terry Harpold e tante coleção de Margot que contém Foi em 2003 que outro mestre que mostrou diferentes aspectos da publicações internacionais, teses e Effarane (mas menos diabólico), o obra verniana… Tudo havia sido pre- dissertações de mestrado, muitas de- verniano de origem suíça, com domi- parado para assegurar a este even- las inéditas, cópias de manuscritos, cílio nos Estados Unidos, Jean-Michel to a estrutura adequada, graças ao assim como cerca de 8 000 artigos Margot, decidiu ceder sua fabulosa empenho de Patrick Gyger, o atual e recortes de imprensa, alguns com coleção de Jules Verne à cidade de diretor da instituição (e velho Yverdon. Desde esse momento de- amigo de Jean-Michel), ajuda- senvolveram-se importantes esfor- do por Jennifer Bochud e por ços para criar um Espaço Jules Verne, numerosos voluntários. que albergasse e deixasse acessíveis A arquitetura do espaço por ao público os vinte mil objetos e do- si só me pareceu um êxito re- cumentos da sua coleção. tumbante. Instalada no primei- ro piso de um edifício histórico adjacente ao outro lado da rua, ** Tradução do francês por Ariel Pérez a partir está uma pequena ponte para de um texto enviado pelo autor. pedestres que assegura a co- ** Volker Dehs (nascido em 1964, em Bremen, Alemanha) enriqueceu, com mais de 120 ar- municação do Espaço ao edi- tigos, os conhecimentos sobre a vida e obra fício principal. A sala divide-se de Jules Verne. Fez a síntese das suas inves- em dois níveis separados entre tigações numa biografia crítica em alemão eles por uma pequena escada. publicada em 2005 em Dusseldorf que é con- siderada como a mais completa e profunda O piso térreo mostra ao gran- que se fez até hoje. É co-editor (junto com de público as edições originais Olivier Dumas e Piero Gondolo della Riva) da Hetzel, cuidadosamente pro- correspondência Verne-Hetzel publicada em tegidas atrás de um vidro nas 5 volumes. Prepara neste momento um de- prateleiras, e outros livros e do- talhado catálogo bibliográfico das obras de Verne. cumentos iconográficos rela- 1 Literalmente, Casa em outro lugar. O cionados com as Viagens extra- Jean-Michel Margot em Yverdon nome dá sentido de um lugar de coleção de ordinárias, ordenados e expostos objetos que constituem uma viagem pela por tópicos: o mito da Terra oca, fantasia humana. (N do T.)

Nú m e r o 8 3 valor desigual, mas cuja importância A Suíça pode-se felicitar por pos- de tudo o que contém. Parece-me documental não se questiona. suir, a partir de agora, este imenso que um catálogo posto online seria É apresentado tudo o que foi pu- fundo verniano que apenas tem muito bem-vindo a este projeto que blicado sobre Verne desde 1860 até equivalência nas coleções de Amiens passaria a ser internacional. aos nossos dias, o que permitiu a (o material recompilado da família Enquanto se espera, agradece- Jean-Michel publicar anteriormente, Compère, no Centro Internacional de mos a Jean-Michel Margot pelo seu em 1989, a Bibliographie documen- Amiens, desafortunadamente inaces- gesto único de generosidade e a to- taire sur Jules Verne (Amiens: Centre sível na atualidade, e a antiga coleção dos os responsáveis por terem reali- de documentation Jules Verne, 334 de Piero Gondolo della Riva na Biblio- zado aquilo que, ao começo, parecia p.) que continua ainda a ser uma das teca municipal) e Nantes (biblioteca só uma vaga ideia. ferramentas mais preciosas para um e museu). Cada uma destas coleções As atas do colóquio a 5 de Outu- investigador que se interesse pela constitui um pequeno universo em bro vão ser editadas em livro, ao que vida e obra de Verne. A estas juntam- si mesmo, conservando, por sua vez, se adicionará um grupo de contribui- se numerosos trabalhos, jornais, re- um carácter muito particular. Faz-se ções dos amigos vernianos que Jean- vistas e outras publicações (muitas agora o inventário, um imenso traba- Michel tem em todas as partes do delas que já não se encontram) que lho que, sem dúvida alguma, irá to- mundo… o que constitui também serviram de documentação e inspi- mar muito tempo, mas que irá bene- uma viagem extraordinária cheia de ração a Verne para escrever as suas ficiar e explorar todos esses tesouros, sucesso histórias. e que será útil para se fazer uma ideia

Outubro de 2008 Maison d’Ailleurs

4 No v e m b r o - De z e m b r o d e 2008 A imagem...e semelhança

Se fala de... os irmãos Texar Quinze anos antes do Estado do Texas se rebelar contra o México e formar parte da União, dois meninos foram abandonados e educados pela caridade pública. Igno- rava-se a que famílias pertenciam, e dos vinte aos trin- ta anos tinham vivido separados sem que se tivessem notícias deles. Por vezes encontravam-se e exerciam o ofício de contrabandistas de escravos. O trabalho era o de transportar carregamentos de negros desde as cos- tas africanas aos estados do Sul. Foi então que decidiram aproveitar-se das suas enormes parecenças, para realizar delitos donde saíam livres utilizando sempre pretextos que se baseavam nas suas semelhanças físicas. Os Texar, personagens principais de Norte contra Sul, tinham nascido numa cidade algures no Texas, e era daí que derivava o seu nome. A origem espanhola da que descendem não é bem qualificada por Verne, que ao lon- go da sua produção inclui poucos personagens da dita nacionalidade. Os aventureiros gémeos chegam à Flo- rida, atraídos pela contínua luta feroz, sustentada pelos índios semínolas contra os americanos e a povoação da Texar tinha trinta e cinco anos, era de cidade, constituída na sua maioria por «espanhóis como estatura media, constituição vigorosa, eles». adquirida por uma vida ao ar livre Apenas a questão da escravidão dividiu os Estados e aventureira. A sua fisionomia indicava Unidos em duas metades, Texar apresentou-se como um homem audaz e violento. o mais decidido defensor secessionista, aumentando a ambição dos agitadores leais à sua causa, empurrando- os para o roubo, o incêndio e até o assassinato dos ha- bitantes ou colonos que partilhavam as ideias do Norte. Esta ideologia converte-o no inimigo do abolicionista James Burbank, a quem tenta eliminar sistematicamente durante o trama. O refúgio que abrigava os Texar era um forte abandonado numa recôndita lagoa: Enseada Ne- gra. Apenas Squambó, um índio semínola aos seus servi- ços, conhecia o segredo daquela existência. Quando um se ausentava, o outro substituía-o nas suas funções. Todavia, a paixão da fraternidade é um elevado senti- mento que está até nos indivíduos mais canalhas como os Texar, que partilham uma solidariedade até à morte. No momento da execução em que um deles se dis- põe a morrer, surge um homem do bosque e, com um salto, coloca-se a seu lado. É o segundo Texar. A impres- sionante parecença confunde o oficial, pois apenas um deles pode ser o culpado de uma matança de militares federais. Alguém acredita poder identificá-lo por uma tatua- gem que levava no braço, mas ambos mostram idênticas tatuagens. Depois, quando o oficial pergunta: “Qual de vocês é o autor da matança de Kissimmee?”, os dois res- Há que fuzilar o autor da matança de pondem em uníssono «eu». E caem fuzilados, irmanados Kissimmee. na morte como o estiveram em vida - Qual de vocês foi? - Eu!- responderam em uníssono os dois irmãos Texar.

Nú m e r o 8 5 Uma viagem ao extraordinário

Com o decorrer da guerra civil norte-ameri- A obra de Secessão cana, Verne inspirou-se na luta entre o sul agrário Cristian Tello e o norte industrial para ambientar uma das suas obras menos conhecida.

Os Estados Unidos de Amé- pelos movimentos políticos e sociais da rica apenas estavam «uni- sua época. dos» há pouco mais de oi- Algumas das suas obras foram escritas tenta anos quando a nação com este tema como pano de fundo. O iní- foi sacudida pela guerra cio de A ilha misteriosa, por exemplo, tem civil. como marco a Guerra de Secessão, quan- Os dois grupos que se do cinco prisioneiros fogem de uma prisão enfrentavam eram os Esta- federal em Richmond usando um balão, dos do Norte, contra os re- no momento que ocorria o conflito. cém formados Estados Con- O escritor também faz referência ao federados, integrados por tema na Da Terra à Lua. Ali fala-nos do Gun- treze Estados do Sul que Club, um grupo de notáveis artilheiros fun- tinham proclamado a sua dado em Baltimore durante a guerra. independência. Os membros deste singular clube, diri- Inspirado na Guerra Era na realidade a luta entre dois tipos gidos pelo seu presidente Impey Barbica- de Secessão, Verne escreveu vários dos seus relatos. de economias totalmente distintas, uma ne (o seu carácter e fisionomia foi inspira- Norte contra Sul é a industrial-abolicionista por parte dos nor- do em Lincoln), depois de terminados os obra dedicada integralmente tistas, e outra agrária-escravista por parte combates, concebem o audaz projeto de a este acontecimiento. dos sulistas. viajar à Lua utilizando um potente projétil Nela, o autor evidencia as suas simpatias pela Esta guerra teve lugar entre 1861 e disparado pelo Columbiad, um canhão de causa abolicionista. 1865, com cinco anos de batalhas, com a proporções gigantescas. vitória para o exército do Norte, liderado Outra história de Verne em que aparece pelo general Ulisses Grant e o presidente a Guerra de Secessão é a obra Os violado- Sobre o autor Abraham Lincoln, frente aos regimentos res do bloqueio, que narra as complicações sulistas comandados pelo general Robert de um barco comercial que tenta trocar o E. Lee. seu carregamento de armas por algodão, Cabe realçar que a literatura influen- material escasso na Europa devido à con- ciou também o aumento da tensão entre flagração norte-americana. A história con- o Norte e o Sul durante o período anterior ta também a luta de uma jovem que tenta ao da guerra civil, com a aparição em 1852 salvar o seu pai, um jornalista abolicionis- de, A cabana do tio Tom, obra da escritora ta, da prisão. abolicionista Harriet Beecher Stowe, a qual Das obras citadas anteriormente, ne- Cristian Alexander Tello de la Cruz (Lima, contribuiu para a divergência política en- nhuma desenvolve a Guerra de Secessão Peru, 1977) tre os Estados. como tema central. Em todas elas, o confli- [email protected] Outro acontecimento que agudizou a to é usado como ponto de partida ou mo- Engenheiro perua- crise, foi a rebelião de escravos organizada tivo do trama. no, mantém um site em 1859 por John Brown, um famoso már- No entanto, fiel ao seu estilo, Verne de- sobre Verne desde tir cujos esforços por acabar com a escra- dicou uma obra completa, como era de se 2004. É um dos ver- vidão foram realçados por Verne em várias esperar, a esta confrontação bélica. nianos mais ativos obras suas. Sob o sugestivo título de Norte contra na América-latina. Brown, o herói da libertação da raça ne- Sul, o autor apresenta-nos a dramática Já escreveu artigos gra norte-americana, acabou enforcado no história de um camponês anti-escravista, sobre o escritor que patíbulo, e podemos encontrar o seu retra- cuja fazenda está localizada no Sul norte- publicou no seu site. Também já traduziu to colocado na galeria de pinturas do Nau- americano e que é roubada por um grupo vários textos inédi- tilus, junto ao de Abraham Lincoln, como de bandidos liderados por um antigo con- tos do escritor fran- representantes das causas libertárias pro- trabandista de escravos, conhecido por ter cês para castelhano. pugnadas pelo mítico capitão Nemo. escapado impunemente de crimes ante- É dos fundadores da A guerra civil criou um marco na história riores. Mundo Verne. de Estados Unidos e não passou inadverti- da para Jules Verne, que sempre foi atraído

6 No v e m b r o - De z e m b r o d e 2008 Estados Unidos: símbolo Para criar Norte contra da liberdade Sul, o autor francês não fez Capas das edições castelhanas mais que recolher as ideias Verne, em toda a sua prolífica pro- do seu meio social, já que na dução literária, não perde a opor- segunda metade do século tunidade de atacar a escravidão e XIX, as sociedades industriais elogiar aqueles que lutaram pela sua eram anti-escravistas, mas abolição, mas é a Guerra de Secessão ao mesmo tempo «racistas». que permite desenvolver, com maior A imagem favorável que se ênfase, a sua simpatia pelos Estados forma dos Estados Unidos Unidos como uma terra de liberda- é, portanto, um resumo das de. Para ele, a disputa entre federais suas convicções políticas. e confederados, é «a guerra que tem Este país da liberdade, cuja sido o triunfo da justiça e da lei». O evolução ocorreu devido à escritor junta-se ao lado dos norte- emancipação dos negros, o liberdade.» A sua caraterização da nhos, anti-escravistas, abolicionistas agrada e sintoniza com o seu espírito guerra também é referida no roman- e federais e mostra-se contrário às individualista de discretas simpatias ce ao considerá-la como uma «guerra ideias defendidas pelos sulistas, es- libertárias. lamentável e gloriosa para sempre.» cravistas, secessionistas e confede- Parece que a atitude contra a Glorioso para o escritor, no sentido rados. escravidão daquela época foi mais em que acabou com a escravidão Aos olhos de Verne, os Estados pela degradação moral que repre- dos negros americanos; ainda que a Unidos não é só o país da expansão senta para os brancos apoiantes dos verdadeira luta pelos seus direitos ci- económica do país e do progresso, é direitos humanos, do que pela pró- vis tenha sido ganha um século mais também uma terra de liberdade, vi- pria condição servil dos negros. Os tarde, na década de 1960, enquanto são que o vincula a outros grandes escravos e criados de cor são consi- que o Apartheid da África do Sul se- admiradores franceses da América derados como seres inferiores com ria totalmente abolido em 1991. do Norte dos meados do século XIX. mentalidade de criança, por isso, no Na sua opinião é essa liberdade que Norte contra Sul, os negros libertados Características e estrutura da fundou o poderio da nação america- pelo «amo generoso que se preocu- obra na, uma terra onde o aparato repres- pa pelo seu bem-estar», quebram a sivo do Estado e as restrições sociais sua cédula de libertação para poder Norte contra Sul, foi publicada em são menores. Sob esta perspectiva, é continuar a seu mando. Situação que fascículos na Magasin d’Education et a tradição da revolução de 1848 na se repete em A ilha misteriosa, quan- de Récréation, de 1 de Dezembro de Europa, democrática e republicana, o do Nab, um jovem criado negro ao 1887. Em Maio, aparece a primeira que lhe faz simpatizar com os povos serviço de , que, depois parte em formato de livro, e em iní- que enfrentam as monarquias impe- de ter sido declarado «homem livre» cios de Novembro, o segundo volu- riais, e não a tradição sansimoniana pelo bondoso engenheiro, decide me. Em meados deste mês publica- representada nas suas obras pelas permanecer junto a ele desafiando se a versão completa em edição du- sociedades perfeitas baseadas no os perigos de sua aventura, uma vez pla acompanhada das ilustrações de trabalho em conjunto, no progresso que sempre se sentiu tratado de igual Leon Benett. A obra foi escrita entre industrial e na fraternidade. por igual pelos seus companheiros. 1885 e 1886, época em que Verne A ideologia política de Ver- manifesta uma tendência de escre- Capas das edições francesas ne em torno da escravidão é ver sobre temas políticos, pois em mostrada em Norte contra Sul, 1887 também publica O caminho de ao se referir a James Burbank, o França e Gil Braltar. abolicionista dono da fazenda Não é surpreendente, então, que Camdless Bay: «Os seus negros o escritor se apresentasse às elei- eram-lhe absolutamente fiéis, ções para conselheiro da cidade de e ele esperava com grande im- Amiens, em 1888, atraído, segundo paciência, que as circunstâncias as suas palavras, pelo «serviço públi- permitissem a libertação deles.» co» e não pelos interesses políticos E noutra passagem afirma que de qualquer partido. A sua gestão «lutar por esta causa, era com- como membro da comissão que tem bater pela libertação de uma a seu cargo a educação, belas artes, raça humana e, em suma, pela museus, teatros e as festas, será reco-

Nú m e r o 8 7 nhecida pelos cidadãos que o reele- de índios semínolas, que, depois de assistiram a um leilão de escravos e geram por mais dois mandatos. terem sido derrotados e praticamen- entre os dois disputaram Zermah, Norte contra Sul é também o livro te exterminados, se dedicavam a as- uma negra que Burbank queria como que ajudou Verne a combater a de- saltos e pilhagens de propriedades madrasta para a sua jovem filha Dy. pressão. Foi o companheiro das se- privadas. Finalmente Burbank compra Zermah manas e meses seguintes ao ataque Norte contra Sul foi laureado pela juntamente o seu marido Mars. Além do seu sobrinho que o deixou semi- Academia Francesa de Literatura disso, Texar havia sido expulso várias coxo, e ao falecimento da sua mãe e pela sua contribuição à educação e à vezes da sua propriedade, por ser um do seu editor Hetzel. cultura. O seu argumento, dedicado homem de reputação suspeita. Daí o Trata-se de uma ambiciosa saga inteiramente ao refletir do aconteci- rancor de Texar por Burbank e sua fa- do velho Sul norte-americano du- mento mais importante da história mília. rante a Guerra de Secessão. A sua americana daquele século, poderia O espanhol era conhecido na Flo- história tem lugar na Florida e des- resumir-se na advertência já estipu- rida por ter escapado impunemente creve um nortista que possui escra- lada na sua obra Paris no século XX: a muitos crimes, mediante álibis ha- vos e que está à espera do momento «Olhe para os americanos e para essa bilmente construídos. Defensor da em que possa libertá-los. Na obra, o terrível guerra de 1863» escravatura, Texar procurava no meio autor aproveita a oportunidade para da guerra, derrubar as autoridades dar largas aos sentimentos que a es- O argumento de Jacksonville. cravatura lhe inspira e à sua não dis- Uma vez proprietário do conda- simulada simpatia pela causa aboli- No decorrer da guerra civil norte- do, teria o campo livre para exercer cionista. americana, perto de Jacksonville, Flo- as suas vinganças pessoais com a No entanto, é necessário apon- rida, reside James Burbank, que, em- ajuda dos seus amigos e dos vários tar que Verne deixa entrever várias bora vivendo no sul do país, nasceu índios semínolas. manifestações racistas em algumas em Nova Jersey, um estado do Norte, Procurava vingança contra Bur- passagens da obra. No que diz res- e fazia vinte anos que havia estabele- bank, pois era quase certo que o seu peito aos escravos, um personagem cido sua plantação conhecida como filho prestava serviço no exército fe- a favor da escravatura afirma que Camdless Bay com a sua família. deral. «um negro deve ser parte integrante Dada a sua proveniência nortis- Os juízes, pressionados por Texar, do domínio com os mesmos títulos ta, era a favor da abolição da escra- ordenaram que Burbank compare- dos animais ou das ferramentas para vatura e esperava a intervenção das cesse perante o Palácio da Justiça de o cultivo (...) um negro que não é es- tropas federais na Florida a fim de Jacksonville para que este respon- cravo vai contra a natureza». libertar os setecentos escravos que desse às graves acusações que o in- Texar, o contrabandista da obra, trabalhavam dentro dos seus do- dicam como simpatizante nortista e é apresentado como o líder dos ho- mínios, situação que incomodava a anti-escravista. mens mais detestáveis da cidade. O seus vizinhos. Burbank reconhece a sua posição, perigoso malfeitor era um «espanhol Entre os rivais de James, destaca- e também admite que o seu filho fa- de nascimento que não mentia a sua se Texar, um antigo contrabandista zia parte da conspiração, pelo que origem.» Entre os seguidores de Te- de escravos de origem espanhola. resolve abolir a escravidão dos seus xar estavam também de um grupo Há um tempo atrás, Texar e Burbank homens, feito que nunca havia acon-

As personagens da obra • James Burbank, 46 anos. Rico colono, proprietário • Edward Carrol, cunhado de James Burbank, encar- de Camdless Bay, uma plantação de três mil hec- regado da contabilidade da plantação. tares. • Walter Stannard, viúvo e amigo de James Burbank. • Gilbert Burbank, 24 anos. Filho de James ao servi- Reside em Jacksonville. ço do exército federal pronto a atacar Florida. • Alice Stannard, 19 anos. Filha de Walter e noiva de • A senhora Burbank, esposa de James. Gilbert. • Diana, «Dy». Filha pequena de Burbank, 6 anos. • Perry, administrador geral da plantação. Partidá- • Texar, 35 anos. Chefe do partido avançado dos es- rio da escravatura. cravistas da Florida. • Pigmalião, «Pig», jovem negro escravo de 20 anos. • Squambó, índio semínola ao serviço de Texar. Ridículo, vaidoso, preguiçoso, mas de quem, por • Zermah, 31 anos. Negra escrava criada de James. bondade, os seus amos toleravam muitas coisas. • Mars, 35 anos. Marido de Zermah e companheiro • O senhor Harvey, correspondente de James. de Gilbert no exército federal. • John Bruce, empregado do senhor Harvey.

8 No v e m b r o - De z e m b r o d e 2008 tecido em nenhum estado do sul. de, libertando o pai e o filho. No ata- cialmente aparece o destacamento O furioso grupo, liderado em se- que, Texar é capturado, mas não ad- federal que procurava Texar, ocorren- gredo por Texar, ataca Camdless Bay, mite a autoria do sequestro da filha e do deste modo a sua captura. mas James junto com os seus escra- empregada de James Burbank. No momento em que um dos Te- vos decide enfrentá-lo apesar da in- Com todas as evidências, organi- xar seria fuzilado, o outro, consciente ferioridade numérica e de armamen- za-se uma expedição em busca de da condição do primeiro, junta-se a to. Zermah e Dy. ele num ato de fidelidade. Ambos se No entanto, com a ajuda de um Durante a procura, Gilbert e Mars confessavam pelas mortes dos fede- empregado do senhor Harvey, o cor- encontram o refúgio do espanhol e rais em Kissimmee. respondente de James que apenas lá veem uma nota deixada por Zer- Com o objetivo de identificar o teria de o informar, pode tirar Alice, mah onde diz que foi Texar quem verdadeiro Texar, Zermah argumen- a Sra. Burbank, Dy e Zermah, atra- as sequestrou e as levou para a ilha ta que este tinha um braço tatuado, vés de uma passagem secreta. Mas Carneral, localizada nos pantanosos mas depois de inspecioná-los, vê-se em plena batalha ouvem-se tiros terrenos dos Everglades. que ambos o tinham. Os irmãos deci- provenientes das balas dos canhões Mais tarde eles encontraram ves- diram morrer juntos de mãos dadas. de Jacksonville, sinal da chegada do tígios de uma tropa que descia até os Após o incidente, todos voltaram a exército federal à cidade e alerta para Everglades. Camdless Bay e a plantação recupe- a retirada dos bandidos. Eram uns duzentos soldados nor- rou a normalidade. Os beligerantes A plantação foi devastada e os tistas que queriam vingar a morte ainda lutaram mais três anos. Em negros dispersos, enquanto que Dy dos vários oficiais assassinados por 1863, Lincoln aboliu a escravatura, e Zermah são raptadas por Texar um grupo de confederados destina- apesar de a guerra ter terminado em ao tentarem escapar através do tú- dos a organizar o bloqueio do litoral. 1865, quando o General Lee se ren- nel. Ambas são levadas pelo índio Também eles perseguiam Texar, deu com todo o seu exército ao ge- Squambó, colaborador principal de que era o autor da emboscada rea- neral Grant. Texar, para a Enseada Negra, uma lizada alguns dias antes em Kissim- Foram cinco anos de incansável sombria e recôndita lagoa que servia mee, um local situado a umas du- luta entre Norte e Sul, que matou como refúgio ao espanhol. zentas milhas de onde mantinham mais de meio milhão de homens, Por outro lado, enquanto Bur- prisioneiras Zermah e Dy. mas o supremo objetivo que moti- bank e Edward Carrol tentavam en- Como é possível que Texar pudes- vou a guerra ganhou-se, ao ser aboli- contrar Texar explorando as ilhas e as se estar em dois lugares ao mesmo da, definitivamente, a escravatura na margens do rio San Juan, sem êxito, tempo? Pensava-se que o espanhol América do Norte surgem subitamente Gilbert e Mars, não poderia ser o autor do atentado que haviam abandonado a flotilha aos oficiais federais, visto que se en- arriscando as suas vidas. contrava na Enseada Negra. Bibliografia A frota federal não avançava por No entanto, Zermah pode reco- causa da falta de água no rio, pelo nhecer que duas pessoas falavam • Verne, Jules. Norte contra que Gilbert e Mars pretendiam re- com o mesmo tom de voz do outro Sur. Editorial Aguilar, Madrid, gressar a ela antes do amanhecer. lado da parede da sua cela. Havia 1978. Mas no regresso ambos são desco- descoberto o seu segredo, tratava-se • Chesneaux, Jean. Una lectura bertos pelos homens de Texar que de dois irmãos gémeos que utiliza- política de Julio Verne. Siglo logo capturam Gilbert, e este, não vam a sua extraordinária semelhan- XXI Editores, 1973 podendo negar as acusações do es- ça física como um álibi para encobrir • Navarro, Jesús. Sueños panhol, é condenado à morte. O co- seus muitos crimes! Portanto, por ter de Ciencia. Universitat de mité corrupto declara James, como visto os irmãos Texar, significava para València, Valencia, 2005 também o seu filho, culpado, sendo ela a pena de morte. • Pérez, Ariel. Los movimientos detido e condenado também à pena Perante a sua angustiante situa- políticos y los Viajes de morte. ção, Zermah tenta escapar da cela Extraordinarios. On line, Ao amanhecer do dia da execu- em que estava presa, e o consegue http://jgverne.cmact.com/ ção, a frota federal, graças à subida usando uma faca com a qual fura a Articulos/MPoliticos.htm águas, aportou finalmente em frente parede. Num ato heróico, durante a • Wikipedia. Guerra Civil de Jacksonville. Em poucos minutos, sua fuga, lança-se a um rio infestado Estadounidense. On line, a milícia evacuou a cidade e Mars, de crocodilos a fim de se escapar das http://es.wikipedia.org/ que se acreditava ter-se afogado, re- balas disparadas por Texar e seus ho- wiki/Guerra_Civil_ apareceu. Foi então que os ex-juízes mens. Quando as fugitivas estavam Estadounidense recuperam a sua usurpada autorida- prestes a ser capturadas, providen-

Nú m e r o 8 9 Esboços ibero-americanos

Verne e o povo dos Incas Verne, apaixonado pela geografia, pelo mar e por viagens a países distantes, se inspirou no Peru, Cristian Tello na sua história e em seu povo para escrever vários de seus textos. Aqui, um retrato da verdadeira relação entre Verne e da terra dos Incas.

Não existe qualquer canto do planeta entre os quais, a Terceira Medalha de governo conturbado de Agostinho que não tenha sido alcançado de for- Honra na Exposição de Belas Artes em Gamarra (Gambarra na ortografia de ma precursora pela imaginação fértil Paris, com o seu belo quadro Colom- Verne), o relato enlaça uma intriga de Verne, um trabalhador que não bo diante dos sábios de Salamanca, amorosa com uma revolta de índios descansava e regular leitor de todas obra conservada em Lima, adquirida que explode no dia da festa popular as publicações científicas e geográ- pelo governo do presidente Balta. de Amancaes. ficas de seu tempo. E, como espera- Segundo Chevalier-Pitre, diretor do O jovem índio Martin Paz, um do, a longínqua América do Sul não Musée des familles, Merino havia trazi- dos mais corajosos descendentes de podia escapar de sua incomparável do do Peru um álbum de aquarelas e Manco Capac, é o filho do líder de sede de descoberta. Martin Paz, obra autorizou aos distribuidores da revis- um grupo de insurgência indígena de 1852, é uma curiosidade na sua ta a publicar que prepara uma revolta vasta produção literária: ambienta-se reproduções para tomar o poder. Na no Peru. Uma curta novela de juven- das melhores história, Martin se apaixo- tude que corresponde à época de pinturas desta na por Sara, uma bela mu- sua iniciação como novelista, antes coleção inédi- lher espanhola, prometida de ganhar o prestígio que lhe deram, ta. ao rico mestiço André Cer- mais adiante, seus livros futuristas. As gravu- ta e, como se crê, filha de Mas não se pense que esta foi a ras do Peru Samuel, um agiota judeu. única vez em que Verne dirigiu seu daquela épo- Em uma de suas ações, Paz olhar à terra ancestral dos Incas, pois, ca serviram fere a Certa e foge e conse- como veremos, a sua relação com o de inspiração gue encontrar refúgio na país peruano é muito maior do que a Verne para casa de um generoso mar- se supõe. escrever um quês espanhol. Enquanto outro conto. A novela colonial Desta vez, sua Capa de Martin Paz, relato história seria histórico de Jules Verne, Desde 1850, o jovem provinciano ambientada ambientado no Peru. Foi publicado em 1852. Verne, de 22 anos, ganhava sua vida no Peru colonial. Portanto, o escritor em Paris, escrevendo peças de teatro documentou-se mais sobre a história de pouca importância. Em 1851, Ver- e os costumes do país e falou com isso, seu pai inicia a revolta contra ne consegue que a revista Musée des todos os turistas vindos de Lima com líderes brancos. familles publique seu primeiro con- os quais teve acesso para recolher in- O pai de Sara a vende para André to, Os Primeiros Navios da Marinha formações mais confiáveis, conforme Certa e lhe revela que é, na realidade, Mexicana, a primeira história escrita seu método de trabalho. Desta for- uma cristã. Sara é, na verdade, a filha sob a influência de seu bom amigo ma, em meados de 1852, o Musée des do marquês espanhol. Jacques Arago, cujo irmão Jean par- familles publicou Martin Paz, sua pri- Acontece que, em anos anterio- ticipou da guerra independência do meira obra narrativa, na qual colocou res, o judeu Samuel tinha salvado México, onde foi nomeado general em cena os personagens coloniais Sara de um afogamento, quando do exército. Neste trabalho inicial, criados por Ignacio Merino em suas esta era uma criança e, desde então, Verne já deixa transpareceralgum aquarelas. No entanto, para a data de ele fez com que ela se passasse por conhecimento da geografia do Peru. sua publicação, parece que as infor- sua filha, escondendo a sua verda- Descreve que «o vasto planalto de mações que Verne tinha sobre o Peru deira identidade. Apesar de Martin Anahuac é uma sucessão de planí- ainda não eram muito sólidas, pois o conseguir convencer Sara a fugir cies, muito mais amplas e não menos autor menciona que, em nossa pá- com ele, não o consegue ao ser preso monótonas que as do Peru e de Nova tria, o sol se põe atrás das montanhas pelo marquês. Granada». dos Andes, e que o mar de Chorrillos Depois desse fato, Paz adere à re- Naquela época, Ignacio Merino, o está infestado de tubarões. belião, mas quando tenta proteger ilustre pintor peruano, retorna à Eu- Ambientado no início da Repú- Sara dos índios, seus irmãos de raça ropa e ganha seus maiores prêmios, blica, em Lima, em 1830, durante o e seu próprio pai se viram contra ele.

10 No v e m b r o - De z e m b r o d e 2008 Martin Paz é morto quando tenta sal- regiões em que podem chegar a um cas foram derrotados, explicando que var. Sara, que também morre, batiza extraordinário desenvolvimento». os conquistadores ibéricos tiveram a o índio antes de seu último suspiro. No entanto, a referência mais sorte ao seu lado, para tirar partido Samuel fica com o dinheiro pago a importante que Verne faz dos Incas das imbatíveis condições em que ele e continua explorando com sua pode ser encontrada na História das chegaram ao Peru: «Não é uma coisa usura os aristocratas da cidade de grandes viagens e dos grandes viajan- estranha de perceber que, tanto no Lima. tes, um trabalho de fundo histórico e Peru como no México, os espanhóis Este argumento parece ser um ar- geográfico publicado entre os anos foram favorecidos por circunstâncias tifício copiado de Romeu e Julieta, de de 1878 e 1880, que custou ao autor absolutamente excepcionais? (...) No Shakespeare, onde Verne utilizando muitos anos de estudo e investiga- Peru, a luta feroz entre os dois fra- o pretexto de uma história de amor ção. ternos inimigos impediu que índios entre dois lados em disputa, destaca Esta obra, voltassem todas as suas forças os graves conflitos inter-raciais do pouco conhe- contra os invasores, que po- Peru colonial entre espanhóis, índios cida, descreve deriam facilmente ter exter- e mestiços. de forma bem minado». resumida a O desconhecido história da As Viagens historiador dos Incas conquista extraordinárias ao Peru do Impé- O visionário romancista tinha conhe- rio Inca e São muitos os livros em que cimentos enciclopédicos dos quais as guerras Verne partilha o assunto Peru se serviu para descrever, ao longo da civis que se ou peruanos, com importân- sua produção, diversas cultu- sucederam cia relativa. Já em 1861, an- ras da humanidade. Sua tes de alcançar a fama com constante preocupação as suas Viagens Extraordiná- pela história dos povos rias, Verne cita nosso país como conquistados, faz com Limeña e índio peruano da um dos lugares que desejava que o autor francês época colonial. visitar. Trata-se de Misérias fe- mencione algumas ve- Gravuras de Ignácio Merino. lizes de três viajantes na Escan- zes o Império Inca que, dinávia, um romance escrito a como se sabe, foi colo- entre Pizarro e partir de uma nota real de viagem. nizado pelo exército es- Almagro. Na obra ele comenta: «Cheguei a panhol. Ao fazer um es- O livro serve estar absolutamente de acordo com tudo de seus romances, de vitrine para os grandes viajantes, cujos traba- encontraremos algu- expor uma de lhos absorvia (...) tomavam posse em mas alusões aos Incas e suas muitas qua- nome da França, das ilhas em que seus costumes. lidades: a de his- plantavam sua bandeira (...) Sempre Em Vinte mil léguas toriador. e por toda a parte francês, quer fos- submarinas, a autor Verne faz, sem as Ilhas Labrador, México, Brasil, narra que, no fundo da neste relato, uma Guiné, Congo, Groenlândia, Peru ou baía de Vigo, o mítico Capitão Nemo crítica sistemática a esta tirania e Califórnia». abastecia-se de suas necessidades e ambição com que os espanhóis in- A jangada é uma outra novela que carregava o submarino Nautilus com vadiram Peru: «Maldades das mais se ambienta, em parte, em território todas as riquezas dos navios espa- hediondas e das mais odiosas feitas peruano. Nela se recria uma viagem nhóis afundados lá. Descreve que pelos espanhóis na América, onde numa espécie de balsa gigante atra- «para ele apenas tinha entregue à se mancharam com todos os crimes vés do lendário rio Amazonas. América seus metais preciosos. Ele imagináveis!». Na travessia, que começa em Iqui- era o único herdeiro direto de to- Enquanto que de Francisco Pizar- tos, Peru, e culmina em Belém, Brasil, dos os tesouros arrancados dos In- ro, disse que «ele reconhece sua as- os personagens de Verne alternam cas e vencidos por Hernan Cortez». túcia e sua perfídia, que são as mais a contemplação das paragens por Da mesma forma que, em Os filhos notáveis características da sua perso- onde vão passando com a discus- do Capitão Grant nos faz menção nalidade». são que consiste em demonstrar-se ao «condor, este magnífico pássaro, Embora se mostre severo com os a inocência de um acusado de ho- adorado em outros tempos pelos In- conquistadores, o autor expressa sua micídio mediante decifração de um cas, é rei das aves meridionais do sul, insatisfação com a rapidez que os in- documento, além de gerar a bordo,

Nú m e r o 8 11 simultaneamente, dois românti- aconteceu no nosso país: «Em 1745, cos idílios. A obra é, por outro lado, no Peru, La Condamine, Bouguer, o meio utilizado pelo escritor para e Godin, ajudados pelos espanhóis confirmar que o Amazonas nasce no Juan e Antonio Ulloa, acusaram cin- nosso país: «Hoje, não há dúvida que quenta e seis mil setecentos e trinta o Amazonas nasce no Peru, no distri- e sete pés como o valor do arco pe- to de Huaraco, intendência de Tarma, ruano». e que parte do Lago Lauricocha (...) O autor ainda surpreende com Alguns pretendem que este nasce na seu conhecimento de um dos símbo- Bolívia, mas na verdade, estão o con- los da pátria peruana, como em Nor- fundindo com o Ucayali». te contra Sul, um romance baseado Em seu popular romance Da Ter- na cruel Guerra de Secessão, onde ra à Lua, o Peru é mencionado tam- descreve: «Aqui e ali cresciam grupos bém como um dos países que apoia de arbustos de quina que eram sim- financeiramente o extravagante pro- ples plantas arborescentes, em vez jeto dos membros do Gun-Club, que de serem esplêndidas árvores como concebem um plano de viagem para as cultivadas no Peru, seu país natal». a Lua através de um projétil que será Neste caso, Verne enaltece a quina, a disparado pelo Columbiad, um enor- árvore que representa, no brasão na- me canhão construído para o lança- cional, a rica flora peruana. mento espacial. Quando ocorrem eventos fan- Para Verne, o Peru encabeça as lis- tásticos em suas histórias, Verne diz tas dos países da América do Sul com frequentemente que, no Peru, está- o Chile, o Brasil, a Colômbia e as pro- vamos cientes deles. Assim, temos víncias de La Plata, que contribuíram que o Albatros, a “nave” que surpre- com um total de três mil dólares para endente o mundo em Robur, o Con- o intento. quistado, curiosamente também é Outra referência ao Peru está vista em nosso país: «Os peruanos, nas Histórias de Juan María Cabidou- na ponta da flecha metálica de sua lin, romance que narra a história de catedral, podiam ver uma bandei- um velho marinheiro acostumado a ra flutuando sobre cada um destes semear o pânico entre a tripulação pontos dificilmente acessíveis». dos barcos em que trabalhava, espa- Assim também, em O Testamen- lhando a lenda da existência de uma to de um excêntrico, onde estão as grande serpente marinha. aventuras de sete rivais que jogam o Nesta obra, Verne relata, utilizan- popular jogo do ganso, no qual cada do como fonte de informação o quo- casa corresponde a um Estado da tidiano Journal du Havre, que «no União, disse com respeito ser a eu- Oceano Pacífico tinha-se produzido foria que desatou o jogo: «Esta cor- Ilustrações originais de Martin Paz, o seguinte fenômeno (...) Depois de rente foi canalizada não somente nos por Jules Férat.. um enorme terremoto na costa do Estados Unidos (...) difundia-se logo Peru, uma grande ondulação no oce- para a América do Sul: Colômbia, Ve- barcar, pergunta: «Queira dizer-nos ano se estendeu até a costa Austra- nezuela, Brasil, Argentina, Peru, Bolí- com mais precisão onde estamos. Na liana». Nós peruanos sabíamos desse via e Chile». costa do Peru, creio eu? - Não amigo, tremor de terras em nossas costas? Em alguns romances, o autor ten- um pouco mais a sul (...) - Nós esta- Nas Aventuras de três ingleses e três ta levar seus heróis a terras peruanas mos muito distantes de Lima? - Oh! russos na África Austral, história que e, em outros, envolve personagens Até Lima é um longo caminho... Por conta a viagem de uma delegação peruanos em suas histórias. Por ali, ao norte». científica para a África do Sul com o exemplo, temos Dick Sand, persona- Em Uma cidade flutuante, um ro- objetivo de medir o arco de um meri- gem principal de Um capitão de quin- mance inspirado em uma jornada diano, o autor afirma que, até então, ze anos, que tenta levar o navio sob pessoal de Verne aos Estados Unidos, foram particularmente estudiosos seu comando para a costa sul-ame- a bordo do gigantesco navio Great franceses que trataram dessa medi- ricana. Dick, no final, acreditava ter Eastern, o escritor narra que entre ção. Verne descreve que uma destas chegado ao Peru, já que ao desem- os passageiros haviam alguns pe-

12 No v e m b r o - De z e m b r o d e 2008 ruanos: «Eles logo embarca- ram, californianos, peruanos, O Peru é um país situado a hispano-americanos, britâni- oeste da América do Sul. É cos, alemães e muitos france- limitado ao norte pelo Equa- ses». Incluí-se, no desenrolar dor e Colômbia, a leste pelo da história, a presença em Brasil, ao sudeste com a Bo- cena de um jovem casal pe- lívia, e para o sul com o Chi- ruano: «Nos distraiu, naquele le e a oeste com o Oceano momento, um jovem casal Pacífico. Tem uma complexa peruano que parecia profun- geografia dominada princi- damente aborrecido. – São palmente por elevações da peruanos, me disse o médico, Cordilheira dos Andes e as casados há um ano. Passaram correntes do Pacífico, o que sua lua-de-mel em todos os configura climas e paisagens horizontes do globo». tão amplamente variadas Ávido leitor da mais im- como a costa desértica, as portante revista do seu tem- pontas do elevado Andes ou po, o Le tour du monde, Verne a floresta tropical da bacia do estava a par de todas as ex- Amazonas, todos ambientes pedições realizadas no mar. que identificam o país como Não surpreende também que um território de grande va- tenha conhecido as viagens riedade de recursos naturais. realizadas por alguns barcos Até ao século XVI, o Império peruanos, assim como o mo- No livro histórico de Jules Verne, História das Grande Inca desapareceu e a região vimento comercial desta par- Viagens e dos Grandes Viajantes, o autor francês foi conquistada pelos colo- te do mundo. descreve Pizarro como pérfido e ambicioso. nizadores espanhóis com o Em Mistress Branican, a comércio que se estende para o Mé- apoio das etnias inimigas do única novela em que a personagem xico, Peru, Chile, Brasil, Europa, Ásia e domínio Inca. principal é uma mulher que vai em todos os Ilhas do Pacífico». A Espanha estabeleceu assim busca de seu marido perdido no mar, E, em Os filhos do Capitão Grant, um Vice-reinado que incluiu relata: «Alguns anos antes, La Sonora, toma como referência o principal a maior parte das suas colô- uma escuna peruana, havia afunda- porto de Callao: «Não foi preciso pro- nias sul-americanas. do na entrada de Coronado Beach e curar por um longo tempo, pois logo Em 28 de julho de 1821, o a tripulação foi considerada perdida disse com um sotaque de satisfação: movimento libertador diri- até que se estabelecesse contato do 30 de maio de 1862! Peru! O Callao, o gido pelo general argentino barco com a terra». carregamento para Glasgow, a fraga- José de San Martín, vindo do Outro navio peruano é mencio- ta Britannia, Capitão Grant!» Chile, declarou independên- nado em Dois anos de férias, um ro- Como se viu, sem dúvida em nos- cia e estabeleceu um novo mance em que um grupo de crian- so país que convergiram as primeiras Estado: a República do Peru, ças compõem uma pequena colônia inquietações literárias de Verne, um cujo nome consigna tacita- após naufrágio em uma ilha deserta escritor que, embora nunca tenha vi- mente ao ato de indepen- no Oceano Pacífico: «Na verdade, sitado a nossa terra, nos dedicou da dência deste país. Mas foi em embora os vapores não tenham en- sua distante terra natal, a França, não 1824, que o general venezue- contrado a Sloughi, recolheram pelo apenas uma história ambientado na lano Simón Bolívar conseguiu menos alguns dos seus restos, tais íntegra aqui, mas também um estu- expulsar definitivamente as como os destroços dos tombadilhos do da história dos Incas e numerosas tropas realistas com base nas caídos no mar após a colisão com o referências ao Peru e seu povo dentro montanhas Sul após as bata- transatlântico peruano Quito». de sua prolífica obra, mostrando toda lhas de Junín e Ayacucho, em Além disso, em seu mais bem su- a riqueza natural e histórica destas 6 de agosto e 9 de dezembro cedido romance, A volta ao mundo paragens; feito que reflete também, de 1824, respectivamente. Os em oitenta dias, , Passe- além de sua capacidade visionária, primeiros anos de indepen- partout e chegam à América a figura de um homem que sempre dência se desenvolveram sob numa das docas em San Francisco, procurou cumprir a obra de sua vida: lutas caudilhescas. onde «se acumulam produtos de um «terminar de pintar a Terra»

Nú m e r o 8 13 Influências

Ler Verne na escola Neste artigo exploraremos um conjunto de propostas que permitem trabalhar em aula a expe- Joan Manuel Soldevilla riência de leitura que têm realizado os alunos e que poderia ser aplicada igualmente a toda a série de romances do escritor francês.

Verne é uma leitura oportuna para se de- que permitem trabalhar em sala de aula a As reflexões e propostas senvolver nos últimos anos do ensino pri- experiência de leitura realizada pelos alu- se ordenam seguindo a mário? Verne tem realmente uma grande nos e que poderia ser aplicável de igual organização do sistema educacional espanhol - o variedade de romances, e se é verdade maneira tanto a um determinado título qual conhecemos - mas que algumas histórias podem ser dema- quanto a todas as novelas. intuímos que, em linhas siadamente longas, complexas ou difíceis As nossas propostas, em conjunto, são gerais, todo o exposto é para meninas e meninos entre dez e doze aplicáveis dentro das áreas de conheci- aplicável a qualquer sis- tema. anos, também o é que alguns títulos - Dois mento que o aluno desenvolva ao longo anos de férias, A volta ao mundo em oitenta dos cursos de ensino primário em seu ciclo dias, Vinte Mil Léguas Submarinas, Viagem superior (10/12 anos), apesar do fato de ao Centro da Terra ou Miguel Strogoff, entre que antes dessa idade, o estudante pode Sobre o autor muitos outros - poderiam apaixonar esses ter ficado mais perto dos romances de Ver- jovens leitores. Não se atrevem muitos de- ne – e talvez tenha feito o mesmo em seu les com os enormes volumes de J. K. Ro- tempo livre, ainda que através de filmes ou wling? Tolkien não é lido com paixão por desenhos animados – é claro que alguns muitos pré-adolescentes? Vinte Mil Léguas aspectos – a complexidade das aventuras, submarinas ou o enciclopédico Os Filhos a ocorrência frequente de dados de divul- do Capitão Grant poderiam ser livros ex- gação científica, etc. aconselham a come- cessivos para muitos alunos, mas também çar a trabalhar Verne a partir dos 10 anos, é verdade que aqueles que já descobriram quando os fundamentos da alfabetização Joan Manuel Soldevi- lla Albertí (Barcelona, o prazer da leitura e são vorazes leitores estão plenamente consolidados. Espanha, 1964) encontrariam nestes livros um espaço ma- [email protected] ravilhoso para explorar e para crescer. Lingua Verne não é um autor para crianças, Lecionou na Univer- mas também pode ser um grande escri- sidade de Girona e, A área de língua é o local de formação pri- há anos, é profes- tor para quem, às portas da primeira fase vilegiado onde, mais intensamente, Verne sor no Instituto de juvenil, comece a ter o hábito da leitura pode atuar. Seus romances são isso, ro- Ramon Muntaner como uma de suas atividades favoritas em mances, e é a partir disso que desde a aula de Figueres. Foi cu- seu tempo livre. de língua é onde se podem trabalhar estas rador da exposição Suspeitamos que cada leitor tenha seu propostas destinando os esforços a desen- Verne, ficções (Koldo Verne, através da proposta de títulos que volver as competências linguísticas dos Mitxelena, Donostia, o professor pode escolher, com a ajuda de alunos ao mesmo tempo em que se tente 2005) e tem servido certas pistas que serão propostas e com a desenvolver neles o interesse pela leitura. como arquivista na cumplicidade que pode ser estabelecida Embora possa ser interessante que cada exposição Món Verne com os alunos, acreditamos que é possível (Institut de Cultura aluno escolha um romance de Verne –op- de Barcelona, Ajun- reivindicar a narrativa Jules Verne desde os ção que desaconselhamos-, acreditamos tament de Barcelo- últimos anos do ensino primário. que a tarefa do educador será significati- na, 2005) e Merci, Ao longo dos vários livros que com- vamente simplificada se concentrar todos Jules, (Museu del põem a narrativa de Verne encontramos os seus esforços em uma leitura comum Cinema de Girona, um conjunto de eixos que compõem a para todos os alunos. Museu de la pesca espinha dorsal de seu universo ficcional; Palamós, Museu del cada livro, ainda que seja uma unidade Compreensão oral e escrita Joguet da Catalunha fechada, uma experiência cultural de ex- Na primeira fase, a ligação essencial / Figueras, 2005). Ele trema complexidade e indelével intensi- mas não a mais simples: que o aluno leia, é autor, com M. M. dade, a verdade é que este experiência é Cuartiella, da novela mas que o aluno compreenda. Não é pe- Capitán Verne (Barce- enriquecida quando integrada ao corpo quena nem simples tarefa. lona, Editorial Sirpus, de sua narrativa. A estrutura episódica dos romances 2005). Nesta grelha de reflexões transversais facilita em parte o trabalho. A maioria dos ordenamos um conjunto de propostas romances de Verne foi publicada no Maga-

14 No v e m b r o - De z e m b r o d e 2008 sin illustré d’éducation et de récréation leitores e oradores conhecem e uti- de ser meras representações gráficas e é por isso que a maior parte dos lizam – narração, descrição, diálogo e se tornam espaços concretos expe- capítulos não são muito extensos, e exposição, desta forma potenciali- rimentados através da leitura, mares mantendo uma inegável unidade de zando as nossas habilidades comuni- e continentes onde a aventura é pos- espaço, tempo e ação, e muitas vezes cativas. sível. acabam em um momento emocio- nante que conduz à leitura do próxi- Conhecimento do Meios de transporte mo capítulo. meio social e cultural A viagem é um dos principais te- Desta perspectiva pode-se ofere- mas vernianos e este é possível gra- cer aos alunos uma leitura individual Os romances de Jules Verne são uma ças aos meios de transporte que, ao de um desses segmentos- leitura que bela porta de entrada para o mun- longo do século XIX viram um excep- pode ser desenvolvida em sala de do; desde a sua concepção o autor cional desenvolvimento. Veículos de aula ou em casa- e avaliar esse pro- francês estava ciente de que muitos caminho-de-ferro, embarcações que cesso através de um breve controle dos seus leitores seriam jovens e que variam desde veleiros a navios tran- oral ou escrito que ajude a consoli- seus livros possuiriam uma dimensão satlânticos, passando por baleeiros, dar a leitura. pedagógica e formativa. escunas, submarinos, balões, aviões, Durante mais de cem anos, milha- foguetes... todos os meios imaginá- O recolhimento e a seleção res de meninos e meninas de todos veis povoam as páginas dos roman- da informação os países têm descoberto o mundo ces levando os leitores aos lugares Dicionários, enciclopédias, e, evi- através das palavras escritas por Ver- mais desconhecidos. dentemente, a Internet devem tor- ne, que esboçaram um excepcional O aluno da escola primária a partir nar-se companheiros de viagem que retrato da realidade. de sua experiência pessoal e através envolvem a leitura dos romances de O estudante de hoje dia conhece de seus estudos em anos anteriores Verne. o mundo através não só do ensino, conhece a diversidade e a importân- Diferenciar a utilização de cada mas também através dos meios de cia dos meios de locomoção; sugeri- um destes instrumentos, praticar a comunicação audiovisual, principal- mos que os estudantes aproximem- busca rápida de palavras, ampliar o mente da televisão e da Internet; não se dos artefatos criados por Verne, vocabulário e aumentar o conheci- obstante, a palavra do autor francês que entendam através deles como mento de muitos campos da realida- continua tendo uma capacidade de este campo no século XX sofreu uma de e da ciência que temos diante de evocação tão intensa que o mundo, série de transformações espetacula- nós são os valores inquestionáveis através de suas palavras, ainda é um res que tiveram sua origem na época que os alunos devem ver reforçados lugar maravilhoso que podemos des- em que o autor francês viveu: com- na medida em que desenvolvem o cobrir através da leitura. parar as máquinas de Verne com os prazer pela leitura. meios de hoje em dia, classifica-los Geografia universal como meios de transporte reais ou Tipologias textuais O filósofo francês Michel Serres imaginados, compreender as difi- No processo de leitura de um se recorda de como «desde a idade culdades e riscos que, para os mais texto um estudante percebe, sem de oito anos, Jules Verne me acom- de cem anos, significava viajar são dificuldades, talvez intuitivamente, panhou pelo mundo. Era impossível muitas as possibilidades que nos são a existência de diferentes tipos de para romances como Os filhos do Ca- oferecidas e que sempre estão ao al- texto. pitão Grant, Miguel Strogoff, Vinte mil cance do educador e o material que Às vezes a ação avança, por vezes léguas submarinas e muitos outros, pode preparar e selecionar previa- se detém, retratando uma exótica proceder a leitura sem a análise de- mente. paisagem e, muitas vezes, falam en- talhada de um atlas: graças a ele me tre si os personagens: o aluno dirá, tornei um apaixonado geógrafo». Conhecimento do conforme o caso e seus gostos, que o A geografia, a mais romântica das meio natural relato é muito emocionante, que às ciências, é uma das principais pai- vezes é muito lento que, por vezes, xões que sustentam a obra de Verne. Os romances de Jules Verne são ex- nada acontece, que é como um do- Ler seus romances como fazia Serres traordinárias enciclopédias da na- cumentário. quando criança, acompanhado de tureza. Quando seus personagens Esta diversidade que o aluno en- um atlas, é uma experiência maravi- viajam pelo mundo, o fazem acom- contra na sua leitura particular per- lhosa que não apenas intensifica o panhados por um narrador que vê mite desenvolver uma série de exer- prazer de leitura, mas permite que o o mundo fascinado e descreve com cícios destinados a caracterizar cada aluno tenha uma aproximação pes- minúcia e rigor as características do um dos modelos textuais que os soal com o território; estes deixam ambiente natural em que se encon-

Nú m e r o 8 15 tram. os ajudam a crescer como pessoa e olhar vivo, ansioso para aprender Em um momento, o século XIX, desenvolverem-se como seres so- com os outros. Mais de que os de- em o que a cidade está se tornando ciais que são. Para além das muitas talhes específicos de muitos de seus núcleo da vida econômica, política aplicações específicas que temos de- romances, é nessa atitude aberta ao e social, em uma época em que ar- senvolvido até agora, ao longo desta mundo que nós encontramos valo- tistas descobrem as possibilidades guia didática, os livros de Jules Verne res que podem assumir a proposta artísticas da realidade urbana, Verne, são também uma escola de valores. de uma leitura excitante. através de seus livros, sai da cidade Todas as aventuras mostram uma e se lança à exploração de territórios luta contra a injustiça, uma preocu- A amizade ainda virgens, daquelas áreas que pação em preservar a amizade, uma Raramente os personagens de ainda estavam em branco nos ma- defesa daqueles que são fracos, uma Verne viajam sozinhos pelo mundo; pas, lugares nos quais nenhum car- denúncia da opressão e da falta de um parente, um empregado e, na tógrafo havia se atrevido pisar. liberdade. maioria dos casos, um amigo - por A diversidade da fauna e da flora Mostrar aos alunos esses valores vezes, duas destas coisas ocorrem e dos ecossistemas é tão avassalado- e fazê-los pensar sobre o seu signi- em uma única personagem- acom- ra que qualquer abordagem à sua ficado é algo que não só os ajudará panham os protagonistas em suas narrativa representa uma descober- a compreender melhor os livros que viagens extraordinárias. ta fascinante do mundo que nos ro- leram, mas principalmente, irá ajudá- Hans, um indivíduo parco em pa- deia. los a crescer como pessoas. A seguir lavras, acompanha até o coração do estão alguns dos valores que pode- planeta com professor Lidenbrock e Educação artística riam ser trabalhados em sala de aula seu sobrinho Axel em Viagem o cen- a partir da leitura dos livros. tro da terra; Ned Land, o professor Desde o seu surgimento, o mundo Aronnax e o fiel Conseil sofreram e de Jules Verne sempre esteve acom- Do racismo a multicuturalidade desfrutaram juntos o cativeiro no panhado da imagem. O mundo em que Verne viveu foi Nautilus, que viajou Vinte mil léguas A segunda metade século XIX, um mundo que hoje qualificaríamos sob o mar; A ilha misteriosa é, entre está experimentando um notável de racista; negar esta evidência seria outras muitas coisas, um hino à ami- desenvolvimento tecnológico que uma deformação da realidade em zade e à capacidade que os indivídu- permitiu a difusão de imagens im- que o autor francês viveu e de alguns os têm para ajudar uns aos outros. E pressas com uma intensidade desco- aspectos que aparecem nos seus ro- assim tantos e tantos exemplos. nhecida até hoje; jornais, periódicos, mances. Praticamente não há romance de os semanários satíricos e as primeiras É inegável que a Europa do final Verne sem uma intensa relação de publicações infantis começaram a ter do século XIX estava muito deficien- amizade, chegando a ser, até mesmo, um grande desenvolvimento graças te de alguns aspectos de nossa atual a espinha dorsal da história. a popularização da imagem e a in- percepção da diversidade de raças A leitura das aventuras de uma tensidade da linguagem gráfica uti- e culturas que existem no planeta; gangue de jovens náufragos em Dois lizada pelos autores desse momento para o europeu de então, há mais de anos de férias nos mostra um dos mo- histórico, que aproveitavam as van- dez décadas existia uma cultura su- tivos principais, as tensões que sur- tagens oferecidas por este novo ca- perior: a do homem branco ocidental gem entre um grupo de meninos de nal de comunicação de massa. e, abaixo, uma série de povos inferio- uma escola que se vêem obrigados a Analisar as recreações gráficas de res que deveriam ser colonizados (os conviver por muito tempo em meio a Verne, contemplar com olhar crítico povos africanos, as tribos americanas condições extremas. e, ao mesmo tempo, fomentar a cria- do norte e do sul) ou dos quais deve- Só a amizade, generosa e desin- tividade dos alunos, são atividades ria se defender (o Império Otomano teressada, os permitirá sobreviver e que podem não só completar leitura ou os enigmáticos orientais). superar as muitas dificuldades que dos textos, mas também ajudar a re- Mas apesar de tudo isto até agora, vão encontrar. fletir criticamente sobre os mesmos. classificar Verne como sendo racista O aluno da escola primária conhe- seria uma imperdoável simplificação; ce a importância que tem a amizade Educação em valores Verne é o filho de seu tempo, mas em em nossas vidas. muitos de seus romances, há nuan- Ler Verne é proporcionar que este Integrados nas diversas áreas de co- ces emocionantes que permitem tema surja em sala de aula e gere nhecimento e nas relações interpes- leituras mais complexas do que sim- um território de reflexão de onde os soais que se estabelecem na escola, plesmente reducionistas. alunos possam integrar suas experi- os alunos trabalham diariamente na Talvez o seu olhar não seja tole- ências vivenciais com as leituras das sala de aula uma série de valores que rante nem multicultural, mas é um obras do francês

16 No v e m b r o - De z e m b r o d e 2008 Terra Verne

A ciência na aventura lunar O presidente da Sociedade Catalã Jules Verne chega com uma interessante análise sobre a ciência Pasqual Bernat nas obras lunares, qual o seu papel nelas e alguns dos pontos que as fazem ainda interessantes depois de muitos anos.

Viajar até à Lua foi sempre um sonho co- ção norte-americana de antigos artilheiros Publicadas originalmente biçado pela humanidade ao longo da his- ociosos pela inatividade que representou em fascículos sucessivos tória. A Lua e o espetáculo do céu noturno o fim da recente Guerra da Secessão. Os no Journal des débats e se- tem sido uma constante fonte de inspira- artilheiros abatidos pelo tédio passam o paradas entre si por qua- ção de artistas e literatos. tempo recordando os bons tempos. De tro anos, Da Terra à Lua e À volta da Lua estão entre Durante o século II, o escritor grego Lu- repente, este estado de letargia muda ra- as obras mais representa- ciano de Samosata escreveu uma narração dicalmente. Impey Barbicane, presidente tivas dos romances de an- sobre uma viagem fantástica à Lua e ao Sol. do clube, irrompe com uma proposta que tecipação científica. Ariosto (1474-1533), no canto XXXIV do seu aumenta os ânimos de todos os sócios: ir à Alguns anos depois de poema Orlando Furioso (1516), faz com que Lua com uma bala de canhão. Sem duvidar ter publicado a primeira, aparece a continuação Astolfo viaje à Lua na companhia do após- da viabilidade do projeto, os membros da do drama da Lua que é tolo João, de Enoque e de Elias. Francis Go- sociedade põem mãos à obra e começam a considerada por muitos dwin (1562-1633) escreveu a obra O homen desenhar o projétil, o canhão que irá lançá- uma história aborrecida na Lua, ou Relato de uma viagem por lá por la e o telescópio que seguirá a trajetória da e cheia de descrições, sendo o relato que nos Domingo González, na qual o protagonista, bala. dá a conhecer o final da um cavalheiro de Sevilha, chega, graças a Todo o país se mostra entusiasmado missão do Gun Club, as- um grupo de gansos, a uma Lua habitada com o projeto. Só um homem, o capitão Ni- sim como uma completa por seres hospitaleiros e afáveis. Cyrano de choll, um perito construtor de placas para digressão pelas paisagens Bergerac (1619-1655) blindagem de navios lunares. Conhecer a Lua lendo a história de Verne em O outro mundo, ou e rival de Barbicane, converte-a numa leitura Os Estados e Impérios se opõe. Seguindo obrigatória. da Lua faz com que o a lógica do antago- protagonista chegue nismo entre projétil à Lua graças a um bál- e blindagem, Nicholl Sobre o autor samo de medula de dedica-se a atacar o vaca, substância que projeto do Gun-Club segundo o autor é com todo o tipo de fortemente absorvida argumentos. pelo satélite terrestre. Quando os pre- Já no século XIX, parativos do lança- Edgar Allan Poe mento já estão muito Pasqual Bernat (Barce- (1809-1849) com Uma adiantados, recebem lona, 1958) Aventura sem paralelo um telegrama de um [email protected] de um certo Hans Pfa- aventureiro francês, É Doutor em História al e Alexandre Dumas Michel Ardan, anun- da ciência pela Uni- pai (1803-1870) com ciando a sua vontade versidade Autónoma O universo ilustrado e de viajar até à Lua no de Barcelona e mem- Uma viagem à Lua são interior do projétil. bro da Sociedade os antecedentes lite- Depois de um intenso Catalã Jules Verne. rários mais próximos debate sobre a pos- Já escreveu nume- de Da Terra à Lua de sibilidade de enviar rosos artigos sobre Jules Verne, obra que Os preparativos do lançamento da homens ao espaço e a história da ciência bala numa das ilustrações difere de todas as ante- de se terem feito diver- e atualmente está a do livro publicado por Hetzel. começar uma inves- riores pois nela aparece sas provas, o projétil é tigação sobre a obra o rigor dos conceitos científicos. disparado indo no interior os antigos rivais verniana e as suas re- Antes de começar com a análise dos –agora reconciliados- Barbicane e Nicholl. lações com a ciência conteúdos científicos da aventura lunar Desde o observatório construído nas do século XIX. de Verne vejamos resumidamente o argu- montanhas Rochosas, J. T. Maston, o secre- mento. A narrativa começa com a apresen- tário perpétuo do Gun-Club, e uns quantos tação do pitoresco Gun-Club, uma associa- sócios, seguem a trajetória da bala. No iní-

Nú m e r o 8 17 cio as nuvens não deixam ver nada zir o conhecimento científico num do seu primo Henri Garcet, professor e perde-se o rasto da nave. Quando contexto literário onde a aventura e de matemática no liceu Henri IV de finalmente as condições de visibili- as peripécias dos protagonistas, fre- Paris, uma das instituições francesas dade melhoram, descobre-se que o quentemente conduzidos ou acom- onde se preparavam os exames de projeto foi retido pela atração lunar panhados por uma personagem acesso aos centros superiores que e orbita como se fosse um satélite à com uma sólida formação científica, forneciam as elites do Estado fran- volta da Lua. A novela finaliza com a conseguiam aquilo que o próprio Ju- cês. incerteza do futuro dos cosmonau- les Hetzel, editor de Verne, afirmava: Os conteúdos científicos da histó- tas. Apenas J. T. Maston acredita no «ensinar entretendo». ria vão aparecendo de forma gradual, regresso à Terra dos seus atribuindo as informações audazes companheiros. ao observatório de Cam- O suspense não se bridge ou aos artilheiros. desvendou até 1872 com Assim, no caso das condi- o aparecimento da se- ções de lançamento, Cam- gunda parte, À volta da brige informou que seria Lua, que relata as peripé- necessário uma velocida- cias dos três tripulantes de superior a 12 000 jardas em torno do satélite e por segundo (uns 11,2 km do seu regresso à Terra. por segundo) para que um Os leitores inteiram-se objeto conseguisse esca- que a aproximação de par do campo de atração um meteorito ao projétil da Terra. É um cálculo ideal foi a razão do desvio da já que não se tem em con- sua trajetória levando a ta a passagem do objeto orbitar em torno da Lua. pela atmosfera. Verne tinha Os astronautas, depois consciência da ação da at- de numerosas peripécias mosfera mas minimiza-a nas quais chegaram in- fazendo Barbicane afirmar clusive a observar a face que, com uma velocidade oculta da Lua, voltam a de 12 000 jardas por segun- ser alvo de perturbações do, o projétil atravessaria a de um novo meteorito atmosfera em menos de que modifica o rumo da cinco segundos, tornando nave permitindo o seu a ação da atmosfera «insig- regresso à Terra. Final- nificante». mente, os nossos prota- A informação de Cam- gonistas amararam no bridge continua com da- Pacífico, a uns quatro- dos relativos à orbita da centos quilómetros da Lua e da distância entre costa californiana, num esta e a Terra. local onde casualmente A gravidade como um dos elementos da ciência Após cálculos minucio- se encontrava um barco nas obras lunares do escritor francês Jules Verne. sos conclui-se que o projétil que os pode resgatar. O re- demoraria a chegar à Lua, lato termina com o passeio 4 dias, 1 hora, 17 minutos e triunfal dos viajantes pelos Estados Na expedição lunar de Verne este 20 segundos. Cambridge aconselha Unidos. objetivo é plenamente alcançado. que a distância percorrida pelo pro- Um dos elementos mais notáveis A narração está recheada de conte- jétil seja a menor possível. Por isso, o e que melhor carateriza a obra de údos científicos e constantemente lançamento terá que se efetuar ver- Verne é a sua proximidade à Ciência. nos apercebemos de uma vontade ticalmente no preciso momento em O objetivo científico é claro na maio- pedagógica e divulgação explícita. que faltem à Lua 4 dias, 1 hora, 17 ria das suas obras e obedece a uma Verne sempre se documentava e se minutos e 20 segundos para chegar vontade do escritor que desde os aconselhava muito cuidadosamente ao zénite. A fim de melhorar o lança- inícios literários havia construído o antes de escrever as suas obras. No mento, o observatório informa que que ele mesmo nomeou como «obra caso da viagem à Lua pediu a ajuda este terá que estar entre o 28º de la- da ciência». Tratava-se de introdu- aos matemáticos Joseph Bertrand e titude norte e o 28º de latitude sul. É

18 No v e m b r o - De z e m b r o d e 2008 assim pois o eixo de rotação da Terra a um aparelho idealizado por Rei- do Cabo Canaveral; o telescópio que está inclinado 23º27’ em relação ao set e Regnaut em que aquecendo a tem que seguir a sua trajetória e que plano da eclíptica, e a órbita da Lua 4 000 ºC o clorato de potássio se ob- está situado no mesmo lugar no qual faz um ângulo de 5º com este plano. tém oxigénio. Com uns recipientes se encontra agora o Monte Palomar; Apenas entre estas latitudes se pode com hidrogénio de sódio pousados o diâmetro do telescópio é pratica- conseguir um lançamento vertical no chão do projétil absorva-se o di- mente idêntico com uma diferença do projétil até à Lua, se se escolher óxido de carbono. Com estas reações de centímetros; J. T. Maston subme- o momento adequado. Nos te-se a uma prova dentro do veículo, Estados Unidos, a península o que antecipa os treinos actuais dos da Florida e o sul do estado cosmonautas; o cair no pacífico no do Texas estão dentro desta regresso a Terra; e muitas outras pre- franja de latitudes. Verne, visões que tornariam esta lista dema- depois de encenar a rivali- siado grande. Esta verosimilitude fez dade dos dois estados, si- com a narração se converta, apesar tuou o local do lançamento dos seus elementos fantásticos, num na Florida. relato altamente crível. Da Terra à Lua Verne teve que abordar foi publicada em capítulos no perió- também a questão do con- dico Le journal dês débats, com um tragolpe do lançamento inesperado êxito. para tornar a sua narração Quando se publicou o episódio verosímil. em que Michel Ardan fez chegar ao No lançamento, o pro- Gun-Club o seu telegrama, chega- jétil sairia do canhão com ram ao jornal telegramas e cartas de uma aceleração 26 000 ve- leitores que se ofereciam como vo- zes a da aceleração da gra- luntários para ir também à Lua. Este vidade na superfície terres- feito é uma amostra do impacto que tre. Isso significaria que os esta história causou na opinião pú- nossos astronautas ficariam blica francesa de então. Um interes- fulminados no momento se que na época se tornou extensivo do lançamento. Verne ten- ao resto da obra verniana e que hoje tou resolver este problema ainda continua vivo tanto entre os jo- criando um sistema com- vens como entre os adultos de todo plexo, feito com tábuas de o mundo madeira e água depositada O projétil sai do canhão com uma aceleração de no fundo da bala com o obje- 26 000 vezes a aceleração da gravidade tivo de atenuar o golpe desta na superfície terrestre. Bibliografia enorme aceleração. Apesar desta solução não • Clamen, M. Jules Verne et les resolver o problema, há que reco- químicas consegue-se o equilíbrio sciences. Cent ans ans après. nhecer o esforço de Verne em supe- gasoso que garante a normal respi- Belin, Paris, 2005. rar, de uma forma fundamentada, ração dos astronautas. Para que não • De la Cotardière, P. Jules este obstáculo. haja nenhuma dúvida, Verne testou Verne. De la science à A sobrevivência dos viajantes no este sistema antes da descolagem. l’imaginaire. Larousse, Paris, interior do projétil era assegurada É então quando J. T. Maston passa 2004. mediante uma série de dispositivos alguns dias asilado no interior do • Navarro, Jesús. Somnis de engenhosos. projétil fechado hermeticamente e ciència. Un viatge al centre de A respeito da respiração, Verne, com o dispositivo químico ativado. O Jules Verne. Alzira. Edicions depois de explicar detalhadamente resultado: Maston sai são e salvo mas Bromera. Barcelona, 2005 a mecânica do intercâmbio de gases com uns quilos a mais devido à sua • Verne, Jules. De la Terra a la produzida nesta função fisiológica, inatividade. Lluna. Barcanova. Barcelona. chega à conclusão que a tripulação Não deixa de ser surpreendente 1992. necessita consumir uns 2 400 litros ao leitor que muitas das provisões de • Verne, Jules. Al voltant de la de oxigénio por dia. Verne são exatas: a trajetória do pro- Lluna. Barcanova. Barcelona. A regeneração do ar faz-se com jétil, o seu peso e altura; o projétil que 1993. procedimentos químicos e graças é lançado desde a atual localização

Nú m e r o 8 19 À fala com...

À procura de... Verne Mundo Verne entrevista um dos grandes investigadores atuais da vida e obra do autor de Ariel Pérez Viagens Extraordinárias. Volker fala sobre o presente e o futuro da investigação em torno do tema e da sua paixão pelas pesquisas.

Trabalha em casa na sua obra li- Sobre o autor terária, convive desde há muito tempo com o seu companheiro de apartamento que tem um filho de cinco anos e que está a maior parte do tempo com eles. Além de Jules Verne, o seu escritor preferido, gosta de ler Dostoievski, Maupassant e Sta- Ariel Pérez Rodríguez nislaw Lec e tem um gosto apai- (Santa Clara, Cuba, xonado pela música clássica. 1976) Nasceu há quarenta e qua- [email protected] tro anos na cidade alemã de Licenciado em Ciên- Bremen e é um dos principais cias da Computação. investigadores nos círculos ver- Desempenha a fun- nianos. Um dos mais profundos investigadores vernianos, ção de informático na Volker Dehs, na sua casa. Empresa Nacional do Graças ao seu trabalho de Software em Cuba. Já recompilação devemos-lhe a bi- Verne onde surgiam esses animais. Foi então trabalhou como ad- bliografia do escritor francês no sítio de Zvi quando se propôs a ler os citados livros, sem- ministrador de rede, Har’El. pre à procura dos dinossauros… que nunca programador e de- Este trabalho apenas é uma amostra de encontrou, é preciso dizer, na quantidade senhador de páginas um mais detalhado que deve aparecer em esperada. Porém, mantém o gosto pelos li- Web em diferentes breve. Os cinco volumes com as cartas de vros de Verne até aos dias de hoje. O humor empresas desde há Verne devem-se a um trabalho em conjunto e as descrições vernianas da Natureza, são mais de dez anos. de dois reconhecidos especialistas. Publicou Desde 2001, é dono os dois elementos que mais aprecia na sua de um sítio na Web em 2005, lamentavelmente só em alemão, relação com o escritor francês, que auto- dedicado a Jules, que uma das biografias mais completas sobre classifica como um pouco excêntrica ou fora hoje é uma referência Jules até à data. do normal. De Verne prefere O raio verde, internacional. Já pu- O seu primeiro artigo referente ao tema Aventuras do magnífico Antifer, Viagem ao blicou imensos arti- apareceu numa revista, em 1977, mas as Centro da Terra e O Chancellor, sem esque- gos que exploram as- suas primeiras investigações de forma siste- cer os contos Uma fantasia do Doutor Ox e pectos da vida e obra mática remontam a 1980. Ele é Volker Dehs e Frritt-Flacc. de Verne em Espanha, é o nosso convidado. Entre as adaptações cinematográficas México, Argentina e Para falar de Volker, teríamos que falar prefere uma de 1981: Fitzcarraldo de Werner Cuba. É membro do das suas investigações, da sua exatidão, da Fórum Internacional Herzog. Ainda que não seja uma adaptação Jules Verne. Em Agos- sua excelente memória, da grande quanti- no real sentido da palavra, encontra-se lá a to de 2007 fundou a dade de dados que possui, da sua paixão na obsessão do capitão Hatteras com a paixão revista digital Mundo procura de textos desconhecidos nas biblio- de Castelo dos Cárpatos e a estrutura de A Verne da qual é actu- tecas ou nos centros que dedicam os seus es- Jangada. Entre os seus bons momentos, de almente seu director e tudos ao autor das Viagens Extraordinárias. muitos que passou neste universo verniano, desenhador. Tem em Para ele a investigação é o número um, o em mais de 25 anos, diz que o seu primeiro li- processo editorial um ponto de partida, de desenvolvimento e de- vro é sempre o mais importante e lembrado. livro de ensaio sobre o senlace. Dedica horas, dias e anos na busca No entanto, para um homem que deve ter escritor francês. Já tra- do absoluto na matéria verniana. tido poucos momentos desafortunados, con- duziu para castelhano Volker conta que o seu primeiro encontro muitos textos de Ver- ta com muita tristeza uma das suas maiores ne inéditos em espa- com Jules foi aos seis anos enquanto, no seu decepções e que está relacionada com uma nhol tendo-os publi- ambiente, gozava de uma boa reputação colaboração recente com outro investigador cado no seu sítio. como especialista em dinossauros. Via fil- verniano que não chegou a um feliz término mes na televisão, feitos a partir das obras de acabando abruptamente.

20 No v e m b r o - De z e m b r o d e 2008 O prestigioso investigador alemão Desde a década de 60, a descoberta sobre Verne (infelizmente nunca o aceitou compartilhar com os leitores dos manuscritos originais e de muitos conheci) e Cécile Compère do an- alguns dos seus pontos de vista sobre o textos inéditos veio impulsionar as in- tigo Centro de documentação Jules mundo verniano e da sua atualidade. vestigações na área. Qual acredita ser Verne, hoje Centro Internacional. Ela Entrando no assunto de Verne e a sua o descobrimento que mais contribuiu fez muito pelos outros, por estimular aceitação, perguntei, como vê o futuro para o conhecimento verniano nestes as investigações em detrimento das do autor? Será lido e procurado pelas últimos tempos? suas próprias publicações. futuras gerações? A colocação online dos manus- O ensaio de Michel Butor sobre Le Acredito que Verne se encontra critos de Nantes (prevista finalmen- point suprême dans quelques oeuvres entre os autores que serão sempre te para os finais deste ano, já com de Jules Verne que data de 1949 me lidos pois as suas obras apresentam atraso devido a razões técnicas) e a parece o primeiro estudo sério sobre questões fundamentais sobre o ho- publicação da correspondência de a obra de Jules. Vários estudos se ins- mem e o mundo, sobre o seu com- Verne com os seus editores. piraram nesses textos que ainda não portamento na e com a Natureza. E Depois, a publicação de Paris no passaram de moda, ao contrário de além disso, a sua obra po- muitos textos mais re- de-se adaptar facilmente centes que sim. aos novos tipos de meios. E dos investigadores Neste sentido e para justifi- contemporâneos? car que Jules pode interes- Se responder, isso sar aos leitores do século dará lugar a uma XXI, basta ler a obra Fora guerra de rivalidades, dos Eixos e se saberá que polémicas e quem este escritor é um dos mais sabe, de injurias, e atuais. portanto não seria Na sua opinião, que re- bom para ninguém. gião geográfica do planeta Também é certo que o leva o prémio em relação às campo é muito vasto: investigações ou estudos so- existem aqueles que bre Verne? se interessam apenas A comunidade francó- pela biografia, outros fona, sem dúvida, mas a In- pela obra, bibliografia ternet ajuda muito e, daqui ou tradução, sem fa- em adiante, outras regiões lar daqueles que, sem também o farão. serem investigadores, Como vê a recepção de animam os sítios na In- Verne na Ibero-América? ternet e outros locais Sobre isso sei pouco, (em Nantes, Amiens e como da recepção do au- Yverdon). Todos têm tor na Ásia ou Gronelândia. um rol complementar Mas tenho a impressão que e considero artificial e, os ibero-americanos têm portanto, improdutivo uma relação muito emo- criar uma lista «o me- cional e sensível com Jules. lhor de…» ainda que Há vinte anos conheci em Frente ao computador em trabalho isso esteja na moda. Paris, num hotel, um poeta chi- e, no fundo, a sua vasta biblioteca. É um profundo inves- leno, Teodoro El-Saca, que aca- tigador de Verne; gosta bava de publicar um livro de poesia, século XX foi um tremor de Terra ben- sê-lo ou prefere, por exemplo, a tra- sendo uma delas dedicada a Verne e feitor. dução ou outro trabalho relacionado ao Castelo dos Cárpatos. Apesar das Na sua opinião, quem foi o melhor com a temática? diferenças de idiomas, entendemo- investigador de Verne, vida e obra? A procura nos arquivos, nas bi- nos bem e recordo sempre a forma O maior, o mais rigoroso, o me- bliotecas, nos alfarrabistas é uma muito direta e franca pela qual me lhor… Não me atrevo a dizer quem paixão. Acumulo os resultados, por falou sobre Verne, como se falasse de é. Mas, estimo de forma muito pes- vezes, durante muitos anos antes alguém próximo e que lhe fora muito soal Charles-Noël Martin que o foi o de começar a escrever sobre eles. Se querido. pioneiro da investigação biográfica lesse apenas as notas, convertia-me

Nú m e r o 8 21 com certeza num violoncelista muito tado bastante decepcionante. De raisonné… ou seja, Catálogo funda- reputado… mas isso será para outra uma maneira geral, Verne não teria mentado das obras de Verne para os vida. o talento analítico e crítico, e isso nosso leitores lusófonos. Porquê esse No passado traduziu para o ale- pode-se apreciar também nas en- nome de «fundamentado»? mão alguns textos de Jules Verne. Qual trevistas, na correspondência ou no É um termo especial que se apli- resultou ser o mais interessante que seu estudo sobre Poe. Quando se lê ca a este género de publicações que fez? E pode dizer, como tradutor de o texto sobre o Salón de 1857, fica-se pretendem seguir uma ordem siste- Verne, qual o texto que considera que com a impressão que fez o trabalho mática e metódica. pudesse ser o mais difícil para levar de forma precipitada, Se bem que Quais são os seus projetos em curso para outra língua? começa o texto com algumas piadas, para o futuro no que respeita à publi- Sem dúvida, Aventuras da família o texto degrada-se cada vez mais e cação de artigos ou livros sobre Jules Ratão e Frritt-Flacc são os textos de se perde em enumerações que não Verne? Verne que considero mais interes- são de todo muito divertidas. Isso Durante algum tempo, tive a in- santes. Em relação à segunda per- não quer dizer que não seja um texto tenção de deixar Verne para os ou- gunta, sem dúvida, a obra de teatro importante para a investigação pelo tros e não ocupar-me mais da sua Os castelos na Califórnia e o conto O seu próprio carácter deficitário. obra oficialmente, mas esse é um matrimónio do senhor Anselmo dos Há 18 anos está a escrever uma im- projeto que se tornou irrealizável. Tillos, são os textos mais difíceis a tra- portante bibliografia dos trabalhos de Ouvi notícias da formação de um duzir pelos seus complicados jogos Verne. Quando pensa que estará pron- grupo que terá a seu cargo a edição de palavras e voltas. ta para publicação? Há algum editor crítica de um volume com as obras de Tem a reputação de ser organiza- interessado? Verne conhecida como Corpus vernien. do nas suas investigações. Comporta- Sim, tenho o editor desde há oito Participa nesse projeto? se assim com outros aspectos na sua anos, ao menos que a esta altura te- Há uma equipa de cinco ou seis vida? nha perdido o interesse. Um traba- pessoas, entre elas eu, que se vão Sim, onde for necessário. Ao con- lho deste tipo não pode jamais ser ocupar de um primeiro grupo de 5 trário, a mesa e o quarto onde traba- algo definitivo ou exaustivo porque obras para conhecer melhor as di- lho sempre estão dispostos de uma sempre se encontrarão coisas novas, ficuldades do projeto ou para pro- forma que pode ser considerada ca- mas antes de publicá-lo quero ter a por, por assim dizer, os modelos que ótica. convicção subjetiva de estar conten- mostrem aos colaboradores futuros Recentemente, publicou um texto te e de ter feito o máximo que podia. as condições de trabalho e o nível que mostra Verne como crítico de arte. Esse momento chegará, creio, na pri- que é necessário respeitar. Depois de ter lido esses seis artigos so- mavera ou verão de 2009. Sem ser Limitamos esse trabalho inicial, bre a exposição de Paris, acredita que profeta, acredito poder dizer que o primeiro que nada, a nós, visto que ele teve sucesso nesse papel? livro será publicado em 2010. ainda estão por resolver muitas ques- Pessoalmente, considero o resul- O nome desse trabalho é Catalogue tões: em primeiro lugar, as financei-

Os livros que Volker publicou relacionados com a temática Verne

Jules Verne. Reinbek: Jules Verne. Tradução Jules Verne: Die Jules Verne: Aventures de Jules Verne: Un Fils Rowohlt 1986, 158 p . espanhola do libro de Abenteuer der Familie la famille Raton. Paris: adoptif. Paris: Société 1986. Madrid EDAF. Raton. Ein Märchen. Société Jules Verne 1989, Jules Verne 2002, 48 p. 2005, 230 p. Frankfurt a.M.: Fischer 56 p. Edição francesa. Edição comentada, com 1989, 89 p. Tradução Ilustrada. ilustrações. alemã. Ilustrada.

22 No v e m b r o - De z e m b r o d e 2008 ras; depois as técnicas e jurídicas. É Volker, de entre todos os documen- textos inéditos e muitos outros por importante não se ter ilusões e ver tos disponíveis na biblioteca de Amiens encontrar. se os resultados desses ensaios são ou Nantes, qual era o que gostaria de E de entre todas as coisas desco- positivos para continuar com o pro- compartilhar com o público? nhecidas que puderam ter sido escritas jeto que necessitará de alguns anos L’étron et le dévoiement1, uma pe- pela mão de Verne, qual é a que queria e muitas colaborações. Daqui a dois quena fábula ao estilo de la Fontaine, encontrar um dia no meio das suas in- conhecerão-se os primeiros resulta- por vezes escabrosa e muito moralis- vestigações? dos. ta, uma pequena jóia ainda inédita. O texto intitulado Confitebor, Volker, se o nomeassem, por exem- Existem ainda um bom número de opúsculo sobre o primeiro campo- plo, presidente da Sociedade Jules Ver- 1 É interessante falar do sentido destas nês francês segundo a primeira bio- ne, que era a primeira coisa que faria? palavras. Étron é um pequeno acumular de grafia de Charles Lemire e cuja exis- Dar esse posto ao vice-presiden- fezes fecais de forma consistente como as tência parece mítica. O que também te. Sinceramente, é um lugar que não que produzem, por exemplo, os cães, os se- me agradaria muito seria a aparição me interessa, não estou preparado res humanos, etc… No caso de dévoiement, de um quarteto a cordas, de prefe- é o sentido das fezes fecais num estado bem para esse género de atividades. Pre- mais líquido, como a que se produz quando rência na menor ou mi bemol maior. firo a investigação e deixar a direção se está doente do estômago. Pode-se então E se o manuscrito estivesse dedicado das instituições a outros. Acredito imaginar o porquê desta poesia não ter sido «a Volker», ficaria literalmente encan- que seria necessário haver reformas, publicada na época. É importante e, por sua tado! vez, curioso, ver como um texto inédito de não apenas cosméticas, a essa que- Verne completamente desconhecido, pode Depois de ter partilhado com os lei- rida e velha dama que gosto tanto tratar de um tema vinculado a questões mo- tores desta publicação a «notícia em apesar do todo o mal que muitos fa- ralistas dentro da sociedade: as fezes sólidas primeira mão» sobre os textos inéditos lam dela. que são orgulhosas e burlam das miseráveis de Verne e conhecer que ainda há mui- Ao chegar a este ponto da conversa fezes líquidas, devem misturar-se com estas tas coisas por descobrir, qual é a sua ultimas quando, durante uma tempestade, na que Volker respondeu amavelmen- a água num fosso transborda e as põem, mensagem, recomendação para todos te a todas as minhas perguntas, decidi por assim dizer, em igualdade de condições aqueles que leem estas páginas? lançar-me mais a fundo e investigar, à quando se misturam. Isto faz recordar o tema Já que esta revista com grande minha maneira, dentro da biblioteca de uma fábula de La Fontaine bem conhe- entusiasmo existe, aproveitem para cida em França. Neste caso, este texto pode de um investigador que pode ter, como ser comparado em relação à censura, quiçá, enriquecê-la com as vossas impres- muitos outros, novas cartas dentro ao da poesia Lamentations d’un poil de cul de sões, críticas e contribuições. As da manga que esperam o momento femme. Apenas adicionar que os manuscritos ideias novas só surgirão através do apropriado para serem lançadas sobre de que forma parte o poema referido na en- intercâmbio de ideias, por mais con- a mesa. trevista, não foram ainda publicados por falta traditórias e diferentes que sejam de autorização.

Os livros que Volker publicou relacionados com a temática Verne

• Em 2005, Volker colaborou com Ralf Junkerjürgen para editar um volume em alemão com artigos acerca da obra de Verne. • Juntamente com Piero Gondolo della Riva e Olivier Dumas publica, entre 1999 e 2006, cinco volumes com as cartas de Verne aos seus editores. Correspondance inédite Guide bibliographique Jules Verne. Eine kritische Jules Verne. Stimmen • A sua Guia bibliográfica de Jules et de à travers la critique Biographie. Düsseldorf: und Deutungen zu de 2000 contém avec l’éditeur Louis-Jules vernienne 1872-2001. Artemis & Winkler 2005, seinem Werk. Wetzlar: referências a textos Hetzel (1886-1914). Tomo Wetzlar: Förderkreis 547 p. Fördergreis Phantastik em alemão e francês. I (1886-1896). Genéve: Phantastik 2000, 438 p. 2005, 367 p. Está prevista uma nova Slatkine 2004, 293 p. atualização deste livro.

Nú m e r o 8 23 Os mil olhos de Tarrieu

São os da documentação. Esta secção foi aberta a todo o tipo de curiosidades e documen- tação sobre o escritor. Entre parênteses, os nomes dos «descobridores». Se não citados, são da própria inspiração de Tarrieu..

Alexandre Tarrieu (Amiens, França, 1978). Estudou Letras Modernas e Filosofia, sendo atualmente professor. Publicou o seu primeiro artigo sobre Verne aos 12 anos. É membro da Sociedade Jules Verne e do CIJV onde é administrador e secretário adjunto. É membro do Comité de Redação da Reveu JV na que já publicou artigos desde 1988. Também já publicou vários artigos em diversas revistas. Participou nas correções de obras biográficas. Lançou, em colaboração com Jean-Paul Dekiss e Philippe de la Cotardière, Jules Verne de la science à l’imaginaire, assim como Jules Verne, le poète de la science juntamente com Samuel Sadaune.

O Bulletin de la Société Jules Verne publicou, em 2006, Les Fiancés Breton descoberto por Volker Dehs. É certo que não se pode provar que o texto seja de Jules Verne, mas é importante destacar que uma das personagens se chama Eva. Contudo, em Voyage à travers l’impossible onde muitos dos personagens de Verne reaparecem, existe também uma Eva. Uma simples coincidência?

O campeão do mundo de xadrez de 1886 a 1894 chamou-se Wilhelm Steinitz (1836- 1900). Era austríaco e ficou louco no final da sua vida, desafiou Deus oferecendo-lhe a vantagem de um peão. Jules Verne inspirou-se certamente nele (perante a proximida- de dos nomes) para escrever a obra O segredo de Wilhelm Storitz.

O vulcão de ouro é uma realidade. Um cientista americano, Fraser Goff pro- vou, em 1993, que o vulcão Galeras (Andes) lançava pepitas de ouro desde há 560 000 anos.

Ferdinand Brunetière (1849-1906) membro do comité de redação de Magasin d’Éducation et de Récréation de 1902 era também diretor da Revue de deux mondes. Crí- tico literário, oponha-se ao romantismo, simbolismo e naturalismo em nome do classi- cismo. Era muito hostil a Verne.

Em Kéraban, o cabeçudo (1/ XVII), Jules Verne copia pa- Jules Verne situa France-ville em Os lavra por palavra uma frase quinhentos milhões da Begum nos 43° 11’ 3’’ de do relato da viajante Carla latitude norte e 124° 41’ 17’’ de longitude ao Serena (De la Baltique à la oeste de Greenwich, ficando em pleno ocea- Caspienne, 1875) para falar no Pacífico, próxima ao Cabo de Arago. Jules de Abjasia, indicando a sua Verne, admirador de Arago não selecionou fonte. esse lugar à sorte! (Jean- Yves Paumier, Jules Em 1888, encontramos Verne voyageur extraordinaire, Glénat 2005, p. numa obra de um certo A. 209). Chevalier, Les Voyageuses au XIXème siècle (p.252), exacta- mente a mesma frase..

Em Fora dos Eixos, Jules Verne comete um erro no capítulo II ao escrever Willoughi por Willoughby (1510-1554) e data a visita do navegador à Nova Zelândia em 1739 em vez de 1553-1554.

24 No v e m b r o - De z e m b r o d e 2008 Sem publicação prévia

O cerco a Roma* Capítulo onde se descreve a situação real do cerco à cidade. Lições de tática militar, defesa e ata- O cerco que na guerra. Sem muito avanço na trama princi- Jules Verne pal, mas, sem dúvidas, válido para dar mais protago- nismo ao contexto no qual ela se insere.

O Embaixador da França1 em Roma compostas por um regimento de forte Sant’Angelo. Mais além a inter- havia perseguido as negociações lanceiros e uma legião de infantaria cepta a velha muralha aureliana, que de forma ativa; porém, encurralado com seis mil homens. A seu redor se forma por trás do cerco uma grande pelas intrigas dos triunviratos, en- agrupavam os Lombardos – cujos jo- linha de trincheiras interiores, que contrava-se, quase sem sabê-lo, com vens oficiais pertenciam às melhores vai desde o Portese até o portal San disposições por demais republicanas famílias da Lombardia – os dois re- Pancrazio. Desse modo, esse lado de para um poder tão revolucionário. gimentos da União Romana, os dra- Roma, protegido por dupla muralha, Por isso, apresentou ao conselho de gões e carabineiros do Papa, a guar- é muito mais forte que a outra par- generais um tratado que não tinha da civil que fazia o serviço no interior te da cidade, rodeada somente pela nada de honrado para a França. O du- da cidade e, por último, os artilheiros velha muralha. Parecia mais natural, que de Reggio, por sua vez, descon- suíços, os melhores atiradores da portanto, atacar por um dos pontos certado pelas tortuosas eloquências Europa, que vinham do cerco a Bolo- do flanco esquerdo. Entretanto, ape- diplomáticas, quis firmar o tratado nha, de onde haviam detido, durante sar da opinião da artilharia, o general de seu próprio punho e letra, quan- algum tempo, os austríacos. Deste Vaillant demonstrou que o ataque do a misteriosa influência de seu pró- modo, Roma se achava valentemen- pelo flanco direito era mais lógico prio génio fez sentir sua dominação, te defendida. Seus arsenais estavam e seguro, apesar de mais extenso e aquela da qual não havia como se lotados de munições e cento e vinte difícil. Com efeito, as comunicações arrepender. peças de canhão mostravam-se em com o exército estavam asseguradas O tratado foi rechaçado e a trégua suas muralhas. e, quando o Janículo fosse ocupado, se rompeu. A ordem de atacar che- Não se sonhava sitiar a cidade, a cidade seria tomada, uma vez que, gou de Paris. Uma vez o armistício de- nem fazer com que se rendesse pela dominada pelo inimigo, poderia ser nunciado, correu pelo acampamento fome. O exército francês só contava castigada por suas bombas, enquan- a notícia que o ataque começaria em com um efetivo de vinte mil homens to que, uma vez franqueada a mu- 4 de junho. Os romanos deixaram-se nesse momento e era impossível cer- ralha esquerda, os soldados iriam prender e surpreender, pois as colu- car uma cidade de dezoito quilóme- levar os romanos a uma interminável nas francesas começaram a se por tros de circunferência, ainda perfei- guerra de barricadas e a um massa- em movimento no dia 3 de junho, às tamente abastecida de mantimentos cre. Por fim, seria necessário estar em quatro da manhã. e munições. Quando a ideia do cerco acordo com os austríacos e napoli- Roma era defendida por outras foi afastada e a questão do ataque tanos acampados a leste da cidade. tropas que não eram romanas. O decidida, a discussão tratou sobre o Na França, fingia-se que a escolha do triunvirato Armellini, Mazzini e Saffi tema do ponto de entrada, com a ex- ataque pelo Janículo tivesse como havia escolhido Garibaldi como seu plicação das magníficas concepções principal propósito salvar os monu- general. Este aventureiro piemontês do general Vaillant. mentos de Roma. A realidade era que não havia preocupação alguma com era dotado de imenso talento orga- A nova Roma compreende toda essas delicadezas arqueológicas, e nizacional, criava saídas estupendas a antiga, estendendo-se ademais atacou-se pela ribeira direita porque em meio às mais insuperáveis bar- sobre seus dois flancos. Uma das assim é que devia ser. reiras e disciplinava sem dificulda- montanhas mais elevadas é o monte des os homens mais indisciplinados. Janículo. Esta colina parece inexpug- O general de artilharia omitiu-se à Esse Fra Diavolo republicano, vestido nável, está situada a direita do Tibre opinião do general Vaillant. Em caso em cores vivas e vestes dramáticas, e domina toda a cidade. É defendida castelo, era de fundamental importância dominava pelo terror e pelo prestí- por uma muralha fortificada que vai desde os tempos antigos até os tempos mod- gio. Suas tropas particulares eram desde a ribeira e o portal Portese2 ao ernos. Tratando-se de um grande império como o Romano, que sempre esteve sob * Tradução do francês por Ariel Perez. 2 Os Portais de Roma, situado em sua maio- ameaça ou envolvido em grandes guerras, Extraído do livro San Carlos et autres récits ria nas muralhas da cidade, serviam basica- insurreições e golpes de Estado eram impre- inédits, publicado por Le Cherche-midi edi- mente para a estratégia militar e para con- scindíveis. Por isso, com a construção dessas teur, Paris, 1993. trolar o acesso à cidade em tempos normais. muralhas, essas vias de acesso à cidade esta- 1 Ferdinand de Lesseps (1805-1894) que, Eram fundamentais em casos de crise de vam guarnecidas e bem cuidadas. De agora mais tarde, deveria construir o canal de Suez saúde pública, quando ocorriam epidemias e em diante, todas as notas são do tradutor, a inaugurado em 1869 pela imperatriz Eu- pandemias, como as pestes. Cercar a cidade não ser que se especifique o contrário. gênia. com muralhas, como se fossem um imenso

Nú m e r o 8 25 de desacordo, o general-em-chefe de engenheiros haviam saído a fazer contravam as magníficas vilas Pam- teria voz preponderante. Sonhava- um trabalho de reconhecimento dos phili, Valentini e Corsini, e a igreja de se também em se apoderar do forte muros de Roma. Encontraram o por- San Pancrazio. Na extremidade direi- Sant’Angelo. Essa era a opinião de tal de San Pancrazio e as defesas vizi- ta, erguia-se o Monte Verde. Entre es- Louis Napoleão Bonaparte, presi- nhas embarreiradas e protegidas por ses dois pontos, a meseta Corsini e o dente da república francesa, que por sacos de terra. Haviam feito algumas Monte Verde, devia desenvolver-se a ter morado durante muito tempo em frestas sobre os muros, e no meio linha de ataque, num trecho de apro- Roma, devia estar bem informado. dessas pequenos cestos de vender ximadamente mil e trezentos metros. Segundo ele, os romanos somente frutas que os romanos haviam reu- Ao norte da meseta Corsini estavam acreditariam na derrota com a ocu- nido aos milhares. Formidáveis bate- acampadas as tropas de Mattei. Ao pação desta fortaleza. Não obstante, rias se elevavam sobre o monte Tes- sul do Monte Verde, as de Santucci, este projeto foi rechaçado e, final- taccio e sobre o Sant’Aventin, perto o quartel-general. Dessa forma, as mente, devia-se escolher o ponto de da igreja de Sant’Alessio. Essa igreja operações de cerco, perfeitamente ataque sobre o Janículo. está situada na margem esquerda regulares e matemáticas, estavam Um princípio geral é atacar por do Tibre na altura do portal Portese. concentradas sobre os pontos sa- uma saliência3 e não pela frente. E O Testaccio é uma elevação de cen- lientes do Janículo e compreendidas abrir uma brecha primeiro, em um to e vinte pés de altura, formada por entre a rota de Civittavecchia e a via bastião na cortina4 que reúne os uma considerável quantidade de ve- Portuense. Monte Verde estava situa- bastiões5, uma vez que estes se flan- lhas olarias amontoadas, e se ergue do somente a uns oitocentos metros queiam mutuamente e, ao cruzar quinhentos metros ao sul do monte de San Carlo, onde estava acantona- seus fogos, deixam inacessíveis as Sant’Aventin. Os terrenos que o exér- do o corpo de engenheiros. proximidades da cortina. Deve-se cito francês ocupava se inclinavam Era sobre esse terreno acidenta- igualmente atacar o mais distante para a margem. Essas diversas bate- do, com alguns caminhos intercep- possível dos portais que facilitem a rias iriam, portanto, ser esmagadas tados, coberto de barracas de cam- saída. Mas, afinal, qual seria a posi- sem obstáculos. panha, cheio de grandes vinhedos e ção? Pouco a pouco, os romanos ar- hortas, que deviam ser executados A ponta do Janículo é uma sali- maram quatro bastiões. O primeiro, os magníficos movimentos do cerco, ência, ladeada por dois bastiões e que ficava à direita do portal de San dirigidos pelo general Vaillant. O ata- defendida por uma meia-lua, numa Pancrazio, na saída da cidade, e os que começou com a eliminação das espécie de entrincheiramento à fren- três que se sucediam à sua esquerda. tropas de vanguarda. te da cortina, e dominado por ela. Os dois últimos estavam localizados Em 3 de junho, às três da manhã, Apesar de sua força, essa saliência foi exatamente na saliência do Janículo, a brigada do general Jean Levaillant, escolhida como o ponto de ataque. e os primeiros ataques deveriam ser dirigida pelo comandante do corpo Está situada a igual distância dos dirigidos contra eles. O espaço com- de engenheiros Frossard, adiantou- portais Portese e San Pancrazio, que preendido entre a muralha fortificada se para ocupar a meseta sobre a qual estão separados um do outro por e a velha muralha aureliana foi com- se elevam as três vilas: Corsini, Valen- sete bastiões. pletado por trincheiras e tomado por tini e Pamphili. Nesta última, os ro- Enquanto isso, os romanos não trabalhos de defesa. Algumas novas manos, ocupados com a bebida, fo- haviam permanecido inativos duran- baterias, diante da igreja de São Pe- ram surpreendidos pela chegada dos te a trégua. Eles construíram enor- dro, em Montorio, vieram a apoiar- franceses. Por meio de uma bolsa de mes barricadas na cidade, de modo se no velho muro, e dali os romanos pólvora, os artilheiros fizeram uma que todas as ruas de entradas foram poderiam destruir seus próprios bas- brecha nas paredes da muralha. O interrompidas por fossos e bloque- tiões, caso esses fossem capturados efeito dessas explosões é prodigioso, adas com escavações revestidas de de assalto pelo inimigo. À esquerda sendo necessária apenas uma bol- grades, e banquetas para os artilhei- dessas baterias, a cem metros do sa de oito quilogramas de pólvora, ros. Por ordem do general Vaillant, portal San Pancrazio, erguia-se a casa sobre a qual se repousa uma pedra, um coronel, um capitão e o corpo na qual Garibaldi havia estabelecido uma prancha, um corpo qualquer, seu quartel-general. a fim de se concentrar a ação para 3 Quando um lado da linha frontal se curva até o inimigo, forma-se uma saliência, ou seja, Tratava-se de assegurar a linha de destruir-se um portal com dez cen- uma zona vulnerável pois pode ser atacada ataque, e para isso, ocupar as duas ex- tímetros de espessura. Os franceses desde vários flancos. tremidades. Faltava então apoderar- deslizaram pela brecha e os romanos 4 Em termos militares, trecho de muralha se da meseta que se situava junto ao foram repelidos a golpe de baione- que está entre dois baluartes. Janículo, e que devia ser cercada. No ta. A explosão havia dado o alarme, 5 Obra de forma pentagonal que sobressai lado esquerdo desse planalto se en- a defesa se organizava, os voluntá- no encontro de duas cortinas de muralha.

26 No v e m b r o - De z e m b r o d e 2008 rios lombardos se retiraram até as - Então, vamos! garam aos trezentos e cinquenta mi- vilas de Corsini e Valentini. A brigada Desceram precipitadamente e, lhões, não bastaram para pagar um francesa se lança à carga e invade junto com os soldados, refugiaram- capelão. dois novos pontos, mais próximos da se atrás da casa. As baterias do Mon- Haviam passado as ações compa- praça. Porém, de forma rápida, as ba- te Aventin e de Testaccio troavam rativamente mais mortíferas. Roma terias do portal de San Pancrazio os sem cessar e os escombros choviam deveria ser matematicamente toma- castigaram a golpes de balas e obu- sobre os homens de Annibal, que da e sem grande derramamento de ses. Os franceses se viram obrigados em vez de olharem para cima a fim sangue. Uma pequena casa diante a evacuar as vilas e os lombardos re- de se esquivar deles, os recebiam es- de San Carlo se converteu em pon- gressaram intrepidamente. Quatro tupidamente sobre as cabeças. O te- to de reunião. Ali havia um ambula- vezes se tomaram e retomaram essas nente os chamou de avestruzes, mas tório, assim como em Pamphili e na posições. O general Regnault Saint- ao ver que a posição não poderia ser igreja San Pancrazio, e dois hospitais Jean-d’Angely luta como um simples defendida por muito mais tempo, de campanha ainda existiam, um em soldado, e ao ver a hesitação de uma abandonou a casa, deixando uma Monte Mario e outro em Santucci, companhia, dispôs-se a arrastá-los sentinela de guarda e retornou à quartel-general. até o combate. Enfim, às cinco, a Cor- casa das janelas verdes. Todas as edi- Por fim, as trincheiras se abriram. sini é tomada em definitivo, manten- ficações por trás da linha que unia as Para alcançar sem perigo a mura- do-se em poder dos franceses que se vilas à casa das janelas verdes caíram lha de uma cidade sitiada, deve-se estabeleceram tão solidamente que em poder dos sitiadores. A ocupação cavar paralelamente aos muros uma não mais se preocupavam com o ca- do patamar Corsini e do Monte Ver- fossa profunda, de seis a sete pés, nhão da praça. O ponto de partida de também asseguraram a linha de em que se amontoe a terra do lado das operações à esquerda, a meseta ataque que deveria cobrir a ponta do inimigo. Essa trincheira deve ser su- Corsini, estava, portanto, ocupado. Janículo. ficientemente larga para dar espaço Durante esse tempo, resolveu-se Para enganar os assediadores e aos veículos de artilharia, de tal sorte apoderar do Monte Verde, que deve- ocultar por mais tempo o conhe- que as baterias possam estabelecer- ria assegurar o ponto de partida dos cimento do ponto ameaçado, o se nos pontos necessários. Enquanto trabalhos à direita. A companhia do general-em-chefe enviou as tropas que a primeira paralela6, do mesmo primeiro regimento do corpo de en- acampadas em Ponte Molle sobre a modo, é escavada normalmente a mil genheiros, da qual Annibal formava parte oposta da vila. Entretanto, os metros do local, perfuram-se galerias parte, abandonou San Carlo às três, romanos construíram no ângulo do externas que avançam até a cidade, comandada pelo capitão de Jouslard bastião mais próximo do Monte Ver- para escapar da visão dos pontos e chegaram a uma casa situada a se- de uma bateria que, na manhã de 4 mais perigosos. Depois, traça-se uma tecentos metros do acampamento de junho, abriu fogo contra a casa segunda e uma terceira paralelas, que e a seiscentos metros da praça. Esta das janelas verdes. O capitão de Jou- se estreitam cada vez mais até o pon- casa era composta por um pavimen- slard, que a ocupava, ordenou que to de ataque. Entende-se, desde en- to térreo, com escadaria de pedra seus soldados se refugiassem atrás tão, que as baterias, sucessivamente que levava a um piso com seis jane- dos muros. No momento em que An- mais próximas, possam aproveitar de las que se voltavam a Roma. Era cha- nibal descia pela escadaria, uma bala forma útil as brechas. Ir-se a um lugar mada de a casa das janelas verdes. acertou, em pleno peito, um oficial perigoso, assim, é escavar um fosso Ali os franceses se entrincheiraram. de marinha que seguia a campanha de maneira que não seja alcançado Annibal tinha como encargo ocupar como aprendiz, um soldado foi atin- pelos projéteis que partem desse lu- uma pequena casa sobre a direita, gido na cabeça e outro teve a mão gar. Em uma palavra, se trata de traçar que dominava o vale do Tibre e dei- quebrada. Quando os romanos nada uma perpendicular a essas linhas de xava ver uma parte de Roma. viram, acreditaram que a casa havia tiro. Dessa forma, se explicam esses Depois de haver posicionado suas sido evacuada e cessaram fogo. múltiplos zigue-zagues que apresen- sentinelas, apossou-se da casa e, se- Esses combates isolados, necessá- tam as galerias e trincheiras, que em guido por seu segundo tenente, pre- rios para a ação no cerco do Janículo, suas marchas se afastam, se desviam, tendia fixar-se no primeiro piso. De cobraram vidas humanas. Duzentos regressam, avançam, retrocedem e repente, uma bala de canhão atra- e oitenta homens e catorze oficiais por suas curvas propositadas fazem vessou a habitação e cobriu-os de foram as baixas do dia. Muitos des- frente a todos os pontos perigosos. escombros. ses desgraçados, ao cair, suplicavam Estás ferido? -– perguntou An- - a presença de um sacerdote, mas 6 No âmbito militar e de fortificações, nibal. morriam sem consolo ou orações. chama-se paralela a trincheira com parapeito - Não -respondeu seu camarada. Os orçamentos de guerra, que che- que o sitiador abre paralelamente às defesas de uma praça.

Nú m e r o 8 27 Para o serviço de trincheira o cor- ponder vigorosamente às baterias respondiam incessantemente. A ar- po de engenheiros se dividiu em três do Testaccio e do Monte Aventin. tilharia se ocupou em selecionar a brigadas, sob as ordens de um oficial, Protegidas por um parapeito no qual localização das baterias destinadas a compostas por mil e duzentos traba- se armaram duas linhas, a primeira castigar as brechas, construindo uma lhadores e mil e quinhentos homens com duas peças de 16 e um obus, a terceira no trecho médio da parale- de guarda. O general Rostolan, com segunda com duas peças de 24 e um la, a uns duzentos e vinte metros da o restante das tropas, ficou a cargo obus, puderam abrir fogo intenso a praça. Era composta por morteiros do centro de operações, a fim de sus- partir da manhã de 5 de junho. próprios para lançar bombas até os tentar os pontos ameaçados. Durante a noite se cavaram as bastiões e foi armada durante a noite O contorno da primeira paralela trincheiras, que foram ocupadas du- de 7 para 8 de junho. Ao mesmo tem- se mostrava desde a igreja de San rante o dia e, ainda que o fogo dos po, à direita da paralela, fez-se um Pancrazio até a pequena casa que romanos fosse intenso, os soldados pequeno rodeio, de maneira que ela fora ocupava por Annibal, e tinha se acostumaram facilmente a escapar pudesse estar fora do alcance do Tes- uma extensão de mil e trezentos das balas, que passavam por cima de taccio e do Monte Avenin. As galerias metros. Dividiu-se o ataque em duas suas cabeças. Fora isso, tinham pou- intermediárias, que deviam conduzir frentes: a da esquerda foi confiada ao cos perigos a correr. Logo os sitiados o caminho da segunda paralela, ser- comandante Galbaud Dufort e ao ca- se deram conta de que as tropas de penteavam até a praça. Os trabalhos pitão Boissonet; a da direita deveria infantaria eram trocadas regular- foram interrompidos como conse- ser dirigida pelo comandante Goury mente as quatro da tarde e durante quência das tempestades; entretan- e o capitão de Jouslard. a madrugada. Dirigiram então seus to, sua boa execução lhes garantia a Desde que a noite de 4 para 5 de canhões sobre as brigadas que che- continuidade. junho cobriu, com trevas favoráveis, gavam ou saíam das trincheiras. Para Para amortizar o contínuo fogo a cidade e o acampamento, os traba- evitar esse perigo construiu-se, na dos romanos durante o dia, os caça- lhadores, com pás e picaretas e um noite de 5 para 6 de junho, um cami- dores de Vivienne se posicionaram na fuzil às costas, alcançaram silenciosa- nho coberto atrás da paralela, que se igreja de San Pancrazio, em Corsini e mente a casa de janelas verdes e fo- conectava ao ponto de reunião, de nas trincheiras. De mais de seiscen- ram distribuídos sobre o traçado da maneira que os soldados puderam tos metros, esses admiráveis atirado- paralela, plano que havia sido discu- dedicar-se, sem problemas, a seu tra- res matavam os artilheiros romanos tido anteriormente com os membros balho. através de estreitos vãos. Suas cara- do corpo de engenheiros. A uma or- Henri, ainda retido no ambulatório binas, montadas com rara perfeição dem, cada trabalhador golpeava o de San Carlo, sofria por seu ferimen- e dotadas de uma escala graduada solo, cavava um buraco no qual se to. Seu sangue, quente pela emoção que calcula instantaneamente o des- instalava, o aprofundava, ampliava e e pelo desespero, irritava sua ferida e vio das balas para cada alcance, lhes prolongava com a mais estrita ordem a impedia de cicatrizar. Enquanto não permitia vencer distâncias incríveis. e completa segurança. Durante esse estivesse de serviço, Annibal passava Esses hábeis soldados não tardaram tempo, as tropas de Ponte Molle, todo o tempo a seu lado. Henri não a ser esmagados sobre os escombros como treino, simularam um ataque duvidava de que o bravo Jean Taupin da Corsini, e fez-se uma trincheira pelo portal Del Popolo. Um propósito houvesse sido vítima de sua devoção atrás desse ponto, de onde se pudes- atrevido e uma empresa perigosa era e os sonhos febris que ele alimenta- se atirar ao abrigo de um canhão da a de traçar essa paralela a tão pouca va, continuamente, na recordação da praça. distância da praça, posto que alguns obre louca, falavam-lhe também do Durante a jornada de 9 de junho, pontos do caminho não distam mais desafortunado soldado. até as oito da noite, os sitiados inten- de duzentos metros. Porém, o habi- - Ele veio até aqui para morrer! taram sair pelo portal San Pancrazio. lidoso general Vaillant sabia que ini- – dizia Henri. Uma espécie de barricada insólita, migos enfrentava. Sua prudência era feita de tonéis que rolavam diane de- - Não – respondia o tenente – ao mesmo tempo atrevida e astuta. les, lhes permitiam apossar-se dos vi- ele caiu para vingar-te! A artilharia começou imediata- nhedos, de onde iniciaram um mor- A confiança parecia não se apo- mente a posicionar suas baterias. A tal tiroteio. Entretanto, uma espanto- derar do coração do jovem capitão, primeira, construída diante da casa sa tempestade os forçou a regressar que se retorcia de dor em sua cama. de janelas verdes, deveria se contra- a Roma. por à bateria do bastião que flanque- Os trabalhos de ampliação con- Os movimentos continuaram pe- ava à direita da saliência do Janículo; tinuavam sem cessar. Agora, as ba- las noites seguintes. Certas ocasiões, a segunda foi montada na extremi- terias romanas tinham vigorosos os planos não foram seguidos ao pé dade direita da paralela, a fim de res- adversários, que as ocupavam e da letra, e as trincheiras encurraladas,

28 No v e m b r o - De z e m b r o d e 2008 por vezes, pelas baterias do Vaticano, O posicio- em outras pelas das muralhas, eram namento das completamente destruídas. Porém, três baterias os bravos soldados não desanima- de brecha foi vam. A noite seguinte lhes permi- detido e elas tia reparar o erro e a cidade, sem o não chegaram saber, se encontrava cada vez mais a ser armadas acossada. por causa dos Os trabalhos foram quase todos caminhos in- executados por escavações7 volan- transitáveis. tes8. Os trabalhadores tratavam de Deste modo, empurrar diante deles alguns ga- as operações biões cheios de terra, e atrás desse de cerco se breve abrigo cavavam seus buracos c o n d u z i a m e neles se escondiam, enquanto os de forma ma- estendiam. A escavação plena9, que temática e só se faz com couraça e casco mineiro, podiam levar, não foi suficientemente rápida para portanto, a suas impaciências. um resultado Na noite de 10 para 11 de junho, positivo. a marcha foi detida por um muro. Era À uma da no formato de uma meia lua, como madrugada, havia previsto o general Vaillant, e os sitiados defendia a cortina situada entre os lançaram um dois bastiões, contra os quais se con- enorme ata- centrava o ataque. que contra A artilharia, por sua vez, não ha- a ponte de via permanecido inativa; na noite de Passera. Este 8 para 9, próximo aos morteiros, se foi contido a havia construído uma quarta bate- tempo e al- ria situada a cento e setenta e cinco guns golpes metros da praça, que deveria abrir a de canhão brecha no bastião da direita. não tardaram mesmo ferido não descansava, exci- em sufocá-lo. Durante a noite de 10 para 11, tado por essas detonações próximas, uma quinta bateria se ergueu a cen- Em grande parte, se havia che- foi ao local de encontro e combateu to e vinte e cinco metros para rodear gado à segunda paralela. A partir da como um herói, um louco, um deses- o flanco direito do bastião da esquer- saliência de meia lua havia-se ido a perado ao lado do coronel do corpo da. Por fim, à direita da vila Corsini, toda extensão do pequeno muro da de engenheiros Niel, que dirigia a foi destinada uma sexta bateria para esquerda. O trabalho foi realizado de defesa. combater o flanco esquerdo do mes- forma tranquila. Nada podia prever Durante três quartos de hora de mo bastião. um próximo ataque dos romanos, e luta, seu braço não cessou de gol- a noite se destacou pela tomada de pear. Finalmente, os romanos, que 7 Escavação de galeria subterrânea ou à oitenta veículos de munições, víve- deixaram uns quarenta na praça, flor do solo. res e vinho – dos quais se apoderou recuperaram a cidade e os trabalha- 8 Colocava-se uma fila de cestos cheios o general Morris a frente de sua ca- dores, depondo seus fuzis negros de de terra escavada que servia de proteção ao valaria – e um batalhão de infantaria. trabalho de escavação das trincheiras. As ba- pólvora, retomaram os trabalhos de terias da primeira trincheira podiam ser leva- Entretanto, às oito da manhã, quatro ampliação. companhias do regimento da União, das em parte ou totalmente para a segunda, Na noite de 12 para 13 de junho, a fim de romper fogo a menor distância da que haviam avançado cobertas pelo a segunda paralela completamente fortificação inimiga. muro em meia lua, saltaram sobre terminada tornou-se praticável às 9 Para o caso da escavação plena, em vez uma trincheira da qual se apodera- tropas artilheiras e, segundo a pro- de um trabalho simultâneo, realizava-se um ram momentaneamente. O tiroteio sucessivo, marchando à frente uma furadeira messa do general, as três baterias de se desencadeou entre essas tropas e num carro com duas rodas e uma lança para brecha e a bateria de morteiros se o 55o de linha. Henri Formount, que manejá-lo, e atrás dele ia-se formando a «ces- prestaram a abrir fogo tonada».

Nú m e r o 8 29 Cartas gaulesas

A Pierre, final de outubro de 48* Continuamos com a publicação das cartas en- Jules Verne dereçadas a sua família e esta, de final de outubro de 1848, em que fala a seu pai do dinheiro que necessita para poder sobreviver na capital e aproveita a oca- sião para dar detalhes da sua vida parisiense.

[Quarta-feira] 27 outubro de 18481 a avó e para meu tio Prudent. Vou fazer um pacote com todas estas cartas para envia-las ao senhor. Acho que é o Meu querido pai: melhor que posso fazer. Esta não é uma carta de despedida de ano, porque Minha saúde é boa, só me queixo das cólicas de vez estaria chegando muito cedo. No entanto, será lida antes em quando, como se fossem os últimos relâmpagos de da morte deste infame 1848, que gostaria de enterrar o uma tempestade. Três refeições por dia me fazem mui- mais breve possível2. Para que você não fique preocupa- to bom efeito. E um pouco de carne na parte da manhã. do com minhas funções de cortesia3, em primeiro lugar, Como já disse, isto aumenta o custo com os alimentos: o meu objetivo para 1849: vou escrever para o meu tio aumente-se em 2,75 francos por dia. Não sei muito de Chateaubourg e a meu Tio Auguste. Levarei milhares de multiplicação mas, são cerca de 2,75 por 30, pois existem coisas para a família Tronson. Por outro lado, desejarei alguns centavos. Quanto ao resto, as despesas têm au- um feliz ano novo em Provins, enviando cartas especiais. mentado. Além disso, faltarão os presentes de fim de ano Eu acho que isso é tudo que me resta a fazer! Minha tia do garçom e do porteiro. É por isso que eu gostaria de ter Charuel ainda não chegou ao campo, e isso é sério. um pouco mais de dinheiro antes do dia 1 de janeiro de Te digo, de forma confidencial, meu querido pai, que 1849. Por essa razão, gostaria que o senhor me respon- de bom grado teria mandado presentes para minhas desse assim que receber minha carta5. irmãs, mas não sei como enviá-los. Sinto uma grande Estou quase chegando ao final do meu exame. Sinto- pena, mas vejo que não há nenhuma maneira. Se você me feliz porque, não sendo difícil, é muito chato. Só po- pudesse dar-lhes alguma coisa em meu nome, uma coisa derei presta-lo de 20 a 25 de janeiro e depois terei todo o simples, me faria um imenso prazer! O senhor vai pensar tempo necessário para ter minhas férias. no assunto, não é assim, meu querido pai? Estou com pressa de terminar e a hora está se aproxi- Enfim, as cartas não custarão mais do que 4 soles4. É mando. Domingo, comi na casa do Sr. Braheire e lá li, no ganância dos correios. Correio de Nantes, sobre o desaparecimento do Lutin6 no A propósito, esqueci-me que eu deveria escrever para mar. No dia seguinte, eu jantei com o senhor Champion- nière em sua casa, onde fui bem recebido, e com muitos * Tradução do francês por Ariel Pérez. Extraída do livro Jules Verne, convites para voltar. Eles são excelentes pessoas e sua escrito por Olivier Dumas e publicado por La Manufacture, em Lyon, filha, que a primeira vista, tem um ar um pouco duro, se em 1988. comportou com uma amabilidade encantadora. 1 No canto superior esquerdo, Pierre Verne rascunhou uma conta que somava um total de 150 francos. Essa seria, efetivamente, o mon- Adeus, meu querido pai, beijos para mãe, para as me- tante da nova pensão de Jules. Eis o texto: ninas, para todo o mundo. Dentro de três dias, uma carta Casa 35 oficial. alimentação 75 b 2,50 Seu filho que te ama, suplt de 25 e 7,50 117,50 22,50 J. Verne 140 10 diversos 5 Este parágrafo é resumido em L’Echo de la Loire, em uma frase: «Eu 2 O ano do casamento de Herminie. gostaria de ter um pouco de dinheiro antes do final do ano, porque 3 Cortesía se interpreta como «política» em L’Echo de la Loire. queria dar prendas de final de ano ao porteiro e ao garçom.» A carta 4 Em outubro de 1848, se tinha avisado ao povo que, a partir de 1 de continua com um texto diferente. janeiro de 1849, o imposto postal seria ajustado para 20 cêntimos por 6 O três mastros em que Paul Verne havia sido enviado como um carta. Na mesma data, foram postos em serviço os selos postais. aprendiz de piloto.

No próximo número de Mundo Verne poderá ler Destacamos A meteorologia Outros temas de interesse nas obras de • Cristian Tello analizará a obra A estrela do Sul. Verne. • Como Jules Verne conquistou Portugal? José M. Viñas • O quarto capítulo de O cerco a Roma.

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