Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades

Instituto de Letras

Jayme Soares Chaves

Viagens extraordinárias e ucronias ficcionais: uma possível arqueologia do na literatura

Rio de Janeiro 2015

Jayme Soares Chaves

Viagens extraordinárias e ucronias ficcionais: uma possível arqueologia do steampunk em literatura

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Teoria da Literatura e Literatura Comparada.

Orientador: Prof. Dr. João Cezar de Castro Rocha

Rio de Janeiro 2015

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/B

C512 Chaves, Jayme Soares. Viagens extraordinárias e ucronias ficcionais : uma possível arqueologia do steampunk na literatura / Jayme Soares Chaves. – 2015. 128f.

Orientador: João Cezar de Castro Rocha. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras.

1. Ficção científica - Teses. 2. Cinema e literatura – Teses. 3. Verne, Jules, 1828-1905 – Crítica e interpretação – Teses. 4. Ficção steampunk – Teses. 5. Viagens no tempo – Teses. 6. Viagens imaginárias – Teses. I. Rocha, João Cezar de Castro. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III. Título.

CDU 82-311.9

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação desde que citada a fonte

______Assinatura Data

Jayme Soares Chaves

Viagens extraordinárias e ucronias ficcionais: uma possível arqueologia do steampunk na literatura

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Teoria da Literatura e Literatura Comparada.

Aprovada em 26 de fevereiro de 2015.

Banca Examinadora:

______Prof. Dr. João Cezar de Castro Rocha (Orientador) Instituto de Letras - UERJ

______Prof. Dr. Marcus Vinicius Nogueira Soares Instituto de Letras - UERJ

______Profª. Dra. Regina Lúcia de Faria Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro 2015

DEDICATÓRIA

À minha filha Alice, cuja existência é, ela mesma, uma viagem extraordinária.

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. João Cezar de Castro Rocha, por acreditar no meu projeto e pelos conselhos e sugestões, sempre valiosos. À minha esposa Heliana, por seu apoio e infinita paciência; ao meu amigo e colega Pedro Sette-Câmara, que me incentivou a retomar meus estudos. Um agradecimento especial ao Prof. Remo Mannarino Filho, que me presenteou com um livro no qual eu descobri o ponto de partida para minha pesquisa, e aos funcionários da Secretaria de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UERJ, sempre atenciosos e solícitos.

RESUMO

CHAVES, Jayme Soares. Viagens extraordinárias e ucronias ficcionais: uma possível arqueologia do steampunk na literatura. 2015. 128f. Dissertação (Mestrado em Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

A presente dissertação procura examinar o fenômeno do subgênero steampunk na literatura de ficção científica contemporânea, rastreando suas origens e analisando suas definições. O steampunk, em sua forma mais comum, trabalha com projeções contrafactuais do passado vitoriano, criando ambientações retrofuturistas para narrar suas histórias. A partir de indícios levantados por pesquisadores sobre a marcante influência cinematográfica sobre esta vertente, em especial das releituras feitas por Hollywood dos scientific romances britânicos e das de Júlio Verne, procurou-se fazer uma espécie de arqueologia do subgênero a partir do projeto editorial original de Júlio Verne e seu editor Pierre-Jules Hetzel, projeto que, desde o seu início, possuía um caráter interdisciplinar e intertextual e que vai permanecer influenciando a ficção científica desde o seu estabelecimento como gênero literário autônomo. Em seguida, tentou-se demonstrar a afinidade da arte cinematográfica, desde seus primórdios, com esse projeto e abordar suas experiências de tradução visual deste universo como um desdobramento natural do corpo textual. Por último, analisou-se os componentes do steampunk (viagens no tempo, história contrafactual, mundos paralelos, ucronias ficcionais) e contextualizamos a vertente brasileira do subgênero no advento do novo romance histórico e no aumento da demanda por livros de divulgação histórica em virtude da efeméride dos 500 anos do Descobrimento do Brasil.

Palavras-chave: Steampunk. Ucronia. Júlio Verne. Ficção científica.

ABSTRACT

CHAVES, Jayme Soares. Extraordinary voyages and fictional uchronies: a possible archeology of steampunk in literature. 2015. 128f. Dissertação (Mestrado em Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015

This dissertation intends to examine the phenomenon of the subgenre steampunk in contemporary works of science fiction, tracing its origins and analysing its definitions. Steampunk, in its most common form, uses counterfactual projections of the Victorian era, creating retrofuturistic ambiences in order to tell its stories. From evidence gathered by researchers on the profound influence films had on this trend, particularly the interpretations made by Hollywood of British scientific romances and ’s voyages extraordinaires, we attempted an archaeology of the subgenre, also taking into consideration the original editorial project by Verne and his editor Pierre- Jules Hetzel. From its beginnings, the project had an interdisciplinary as well as intertextual character, and would remain an influence on science fiction as a in its own right. After that, we attempt to demonstrate the affinities the art of film had since its very inception with Verne’s and Hetzel’s project, approaching their endeavours to offer a visual translation of that universe as a natural result of the text itself. Finally, we will analyse the components of steampunk (time travel, counterfactual history, parallel worlds, ficctional uchronies) and locate the Brazilian trend of the subgenre within the context of the advent of the new historical as well as the demand for books of historical popularization, which surged soon after the celebrations of the 500 years of the discovery of Brazil.

Keywords: Steampunk. Uchronia. Jules Verne. Science-fiction.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 8

1 GÊNESE DE UMA IRONIA: UMA VIAGEM EXTRAORDINÁRIA ... 19

1.1 Janelas para as profundezas ...... 19

1.2 Cartografias do espaço imaginário ...... 28

1.3 A féerie extravagante ...... 32

1.4 A invenção de um gênero ...... 36

2 UMA INVENÇÃO MORTAL ...... 49

2.1 O fantástico, o extraordinário ...... 49

2.2 Primeiras releituras ...... 55

2.3 Mobilis in mobili ...... 62

2.4 Fantasmas da máquina ...... 70

3 RETROFUTURISMOS ...... 76

3.1 Princípios da crononáutica ...... 76

3.2. Contra facta ...... 78

3.3 Ucronia ficcional e universos paralelos ...... 82

3.4 Punks a vapor ...... 87

3.5 Steampunk como fantasia vitoriana ...... 92

3.6 Steampunk como história alternativa ...... 96

3.7 Steampunk como história contrafactual: o caso brasileiro ...... 100

CONCLUSÃO ...... 117

REFERÊNCIAS ...... 122

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INTRODUÇÃO

Em 1999, uma publicação da America’s Best Comics (ABC) chamou a atenção dos consumidores de histórias em quadrinhos por apresentar aquilo que, em princípio, parecia mais uma variante de um lugar-comum neste meio: aventuras protagonizadas por equipes de super-heróis. O leitor de quadrinhos já está bastante familiarizado com este tema, pois é uma prática das editoras publicar ramificações, ou spin-offs, das histórias de seus heróis, onde estes juntam forças para combater as forças malignas que ameaçam a humanidade. Teóricos que se empenham em pesquisas arqueológicas para rastrear e determinar os antecedentes de determinada prática narrativa tem observado que os super-heróis, em grupo ou isoladamente, descendem diretamente dos heróis mitológicos, cujos poderes e habilidades são replicados nas modernas configurações dos personagens da cultura de massa. No caso das superequipes, seu antecessor mais evidente é a tripulação do Argos, o mítico navio que transportava cerca de oitenta e cinco heróis da mitologia grega, liderados por Jasão, em sua missão de encontrar o Velocino de Ouro. Peter Coogan1 explicita esta relação:

O herói épico muitas vezes luta sozinho ou com um companheiro, mas ocasionalmente forma equipes com outros. A busca do Velocino de Ouro, detalhado no épico de Apolônio de Rodes, A Argonáutica, pode ser visto como um presságio das superequipes dos quadrinhos, por exemplo, os Vingadores ou a Liga da Justiça, equipes que reúnem os maiores heróis de uma cultura ou de uma empresa para formar uma equipe para realizar uma tarefa ou missão. No caso dos Vingadores e da Liga da Justiça, os heróis permanecem juntos como uma equipe; os Argonautas se dispersam em seguida após a conclusão de sua missão. Entre os Argonautas podem ser encontrados precursores de vários tipos de super-herói. Jasão é o líder, análogo a Ciclope, dos X-Men, Capitão América dos Vingadores, ou Batman da Liga da Justiça. O líder não é o mais forte ou herói mais poderoso, mas aquele cujas estratégias levam a equipe até a vitória. Hércules é o “tijolo” da equipe, o mais forte, como o Coisa, o Fera, ou o Hulk. Com as asas nos seus tornozelos, Calais e Zetes, os filhos de Bóreas, o Vento Norte, lembram para o leitor moderno o Príncipe Submarino, mas eles prefiguram heróis voadores mais limitados, como Gavião Negro ou o Anjo. Eufemo mesmo duplica tanto uma das proezas de Flash – correr sobre a água – quanto um dos epítetos do Corredor Escarlate, “o corredor mais rápido do mundo” (Apolônio, 1971, 40). Outras habilidades dos heróis míticos e lendários prefiguram outros superpoderes. (COOGAN, 2006, p. 121)

Mas, no caso da publicação da ABC, as origens devem também ser rastreadas em outro lugar, em outra espécie de mitologia, uma mitologia da modernidade, nascida em meados do século XIX, em meio a revoluções tecnológicas, e que sobrevive e perdura

1 COOGAN, Peter. Superhero: The Secret Origin of a Genre. Austin, MonkeyBrain Books, 2006.

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insistentemente na literatura, no cinema e em várias formas de mídias narrativas. O caso em questão é a minissérie em seis episódios The League of Extraordinary Gentlemen2, escrita por Alan Moore e desenhada por Kevin O’Neill. Trata-se de uma aventura protagonizada por um grupo formado por personagens bem conhecidos dos scientific romances e das voyages extraordinaires do século XIX-Allan Quatermain (de As minas do Rei Salomão, de H. Rider Haggard), o Homem Invisível (de H.G. Wells), Dr. Jekyll (de Robert Louis Stevenson), Mina Harker (de Drácula, de Bram Stoker), e o Capitão Nemo (de 20.000 léguas submarinas, de Júlio Verne) - juntos em uma equipe reunida pelo primeiro-ministro britânico Campion Bond (antepassado de um certo James Bond, criação de Ian Fleming), com o objetivo de derrotar o Dr. Fu Manchu (de Sax Rohmer) e o Professor Moriarty (de Arthur Doyle). No entanto, descobrem que Moriarty na verdade é um agente governamental, que controla o submundo do West End londrino para que o próprio Estado possa monitorá-lo. Fu Manchu, líder do submundo do East End, pretende exercer controle absoluto, e para tanto rouba a “cavorita”, espécie de combustível antigravitacional criado por H.G. Wells no romance First Men in the Moon, com a qual pretende fazer decolar aeronaves para bombardear o West End. A trama é ambientada em 1898, em uma Inglaterra vitoriana alternativa, onde tecnologias então embrionárias, fazem naturalmente parte da paisagem, como podemos observar na página 8 do segundo número: às margens do Tâmisa, em Londres, superpostos a prédios enormes e enfumaçados, grandes e inúmeros guindastes, suspendem e transportam locomotivas e elefantes, enquanto balões e dirigíveis cruzam os céus. Os penhascos de Dover, na segunda página do primeiro número, também são retratados do mesmo modo: uma gigantesca ponte de aço, ornamentada com uma ciclópica estátua de Britânia, em cujo escudo se encontra inscrita a palavra industry, e outra estátua igualmente ciclópica que ecoa os leões de bronze da Trafalgar Square. Abaixo da ponte, gigantescos guindastes operam a construção de um túnel sob o Canal da Mancha, fato que, apesar de ser uma ideia que era discutida no século XIX, concretizou-se apenas em 1994, cem após os eventos narrados na história. A cidade de Paris também é retratada de modo similar. Na página 16 do primeiro número, temos a mesma sensação de claustrofobia provocada pelo acúmulo de prédios enfumaçados, mal havendo espaço no céu para os dirigíveis. Ao fundo, divisamos não uma, mas quatro Torres Eiffel. A série, uma sátira ácida e desencantada das equipes de super-heróis tão comuns nos quadrinhos, fez muito sucesso, gerou um segundo ciclo de aventuras e mais quatro graphic-

2 MOORE, Alan e O’NEILL, Kevin. The League of Extraordinary Gentlemen, n. 1-6. La Jolla, America’s Best Comics, 1999.

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cuja cronologia avançava para além da Era Vitoriana, com histórias ambientadas durante o início do século XX, a Guerra Fria, os anos de 1960, e o ano 2009. Atualmente, Moore e O’Neill dedicam-se a uma série paralela, centrada nas aventuras da filha do Capitão Nemo. Mas as duas séries originais, bem como as subsequentes, primavam por uma concepção pictórica e textual bastante arrojada: quase todos os personagens incidentais na história foram recolhidos da literatura do século XIX e as páginas eram repletas de paratextos visuais (citações, piadas, propagandas de época) que satirizavam a cultura vitoriana. O segundo volume da série mostra a Liga enfrentando uma invasão do planeta Marte, fundindo as versões da civilização marciana descritas nos trabalhos de H.G. Wells, Edgar Rice Burroughs, e C.S. Lewis. A série também inclui, em ambos volumes, um folhetim em capítulos, que apresenta uma aventura paralela à trama principal, da qual fazem parte alguns personagens da aventura principal e outros exclusivos, além de se apropriar de outros temas como a mitologia de Cthulhu, de H.P. Lovecraft. O sucesso da série fez circular entre os leitores de comics, inveterados e ocasionais, a palavra steampunk. Ainda que Moore e O’Neill não utilizassem o termo para caracterizar o seu trabalho, era evidente que o universo ficcional por eles criado possuía estreitas ligações com um subgênero que começou a chamar a atenção do público especializado na literatura de ficção científica (FC) a partir de 1987, quando a palavra foi usada pela primeira vez para englobar os romances e contos escritos de 1978 à 1987 por três autores da Califórnia: James P. Blaylock, K.W. Jeter e Tim Powers. Estes textos chamaram atenção pela semelhança temática: Morlock Night (1979) e Infernal Devices: A Mad Victorian Fantasy ( 1987) de K. W. Jeter, The Ape-Box Affair (1978), The Idol's Cave (1984) e Homunculus (1986) de James P. Blaylock e The Anubis Gates (1983) de Tim Powers3. Todos tinham em comum a ambientação na Inglaterra vitoriana, a coexistência entre tecnologia e ocultismo e a interação entre personagens históricos, fictícios e tomados de empréstimo dos clássicos scientific romances do século XIX. Em abril de 1987 K. W. Jeter escreveu uma carta4 para a revista de FC Locus, respondendo ao crítico Faren Miller, onde ironizava a tendência na FC dos anos 1980, ao mesmo tempo que ressaltava a semelhança temática entre suas obras e as de Blaylock e Powers:

3 POWERS, Tim. Os Portais de Anúbis. Rio de Janeiro, Editora 34,1995.

4 VANDERMEER, Jeff e CHAMBERS, S.J. The Steampunk Bible. Nova York, Abrams Image, 2011, p.48.

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Pessoalmente eu acho que as fantasias vitorianas serão a próxima grande tendência, contanto que possamos chegar a um termo adequado para Powers, Blaylock e eu. Algo baseado na tecnologia própria da época. Como , talvez….

Evidentemente, Jeter ironizava. O subgênero da FC que ele parodiava, o cyberpunk, era considerado a grande tendência da época, com seus enredos ambientados em um futuro não tão distante, dominado pela informática e pela cibernética, em um contexto social de miséria e degradação. Ao classificar as “fantasias vitorianas” que ele seus colegas vinham escrevendo como steampunk, operando um deslocamento do presente computadorizado (cyber) para o passado da Revolução Industrial (steam), Jeter cunhou uma palavra monstruosa, deselegante, cujo destino natural seria cair no esquecimento após viver o suficiente para provocar gargalhadas. Mas não foi o que aconteceu. Como frequentemente ocorre, uma ironia ou um termo pejorativo termina por ser aceito e assumido para designar determinada prática, artística ou não5. E quando o escritor Paul DiFilippo publica em 1995 The Steampunk Trilogy, o termo foi assumido em uma obra literária pela primeira vez. E no ano 2000, ano que marca o início do grande boom do subgênero em todas as mídias e, principalmente, nas subculturas urbanas jovens, uma minissérie em quadrinhos, publicada em doze números, intitulava-se precisamente Steampunk.TrilogiaO salto final para o início da popularização definitiva do subgênero foi a adaptação cinematográfica de 2003, dirigida por Stephen Norrington, da League de Moore e O’Neill. Embora bastante infiel e empobrecida, sem nada da ironia e do cinismo que caracterizava a série original, ajudou a dar visibilidade ao gênero, para o bem ou para o mal. Como acontece toda as vezes que um novo gênero ou subgênero é criado, várias hipóteses são formuladas, não apenas na tentativa de rastrear seus antecedentes e precursores, mas também na tentativa de defini-lo e encontrar as razões de sua existência. Não existe consenso sobre as origens e a definição de steampunk. Jess Nevins, em uma resenha6 publicada no volume 38 da Science-Fiction Studies, em 2011, observou que as tentativas de descrever o subgênero haviam se tornado o que ele chamou uma batalha entre “prescritivistas” e “descritivistas”. Os primeiros, atinham-se a definição original de Jeter em 1987, ou seja, “explorações histórico-dementes” (gonzo-historical) de “fantasias vitorianas” e

5 Existe o caso clássico do Impressionismo. O termo foi utilizado por Louis Leroy para menosprezar o quadro de Claude Monet, Impression, soleil levant, e acabou sendo adotado.

6 NEVINS, Jess. “Prescriptivists vs Descriptivists: Defining Steampunk” in Science Fiction Studies, vol. 38, 2011, p. 513-518.

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“tecnologias alternativas”, definição secundada por Peter Nichols no verbete consagrado ao assunto na edição de 1993 de The Encyclopedia of Science Fiction; os segundos, preferiam uma definição mais abrangente que refletia o “atual (confuso) status” do termo. Até o momento em que Nevins escrevia a sua resenha, os descritivistas estavam ganhando a batalha, uma vez que steampunk servia como “uma designação para tudo”, desde filmes de ficção científica que continham um ou mais elementos anacronísticos, até bandas de rock de visual pseudo-vitoriano:

A luta entre os descritivistas e os prescritivistas não terminou de modo algum – o steampunk, atualmente, é uma moda passageira, mas a partir do momento em que os gurus partirem para outra, o steampunk, muito provavelmente, voltará a ser principalmente uma categoria literária. Até lá, steampunk continuará a ser um termo genérico sem uma definição consensual, e, portanto, um termo de pouca utilidade crítica. (NEVINS, 2011, p. 513)

Mike Perschon7 assume o ponto de vista descritivista, e o defende nos seguintes termos:

Definir o steampunk, associando-o com gêneros narrativos ignora sua evolução a partir de uma expressão puramente narrativa, para o seu uso nas artes visuais, como moda e decoração. Não se fala necessariamente de gêneros ou narrativa ao analisar moda steampunk. Assim, a definição unilateral de steampunk é desafiada pelo aspecto da cultura steampunk que está sendo definido: a literatura, a moda, as obras de arte bricolage, ou a subcultura punk anti-autoritária? (PERSCHON, 2012, p. 74)

O texto de Peter Nichols para o verbete8 de 1995 em The Encyclopedia of Science Fiction, descreve o steampunk sucintamente como “o moderno subgênero cujos eventos de ficção científica ocorrem em um contexto do século XIX.” Mas, atualizado em 16 de janeiro de 2015, menciona o fato do subgênero literário pequeno e insignificante de 1987 ter se transformado em um modo de vida, similar aos movimentos punk e gótico. Em termos estritamente literários, Steffen Hantke9, considera-o um fenômeno, ainda que periférico, pertencente ao neovitorianismo, “este terreno popular e lucrativo (...) que é em si parte da tradição maior e mais antiga do romance histórico”. Duplamente periférico, pois a “localização deste conjunto de textos é realmente marginal em relação ao mainstream

7 PERSCHON, Mike Dieter. The Steampunk Aesthetic: Technofantasies in a Neo-Victorian Retrofuture. Edmonton, University of Alberta, 2012.

8 http://www.sf-encyclopedia.com/entry/steampunk.

9 HANTKE, Steffen. “Diference and Other Infernal Devices: History According to Steampunk” in Extrapolation: A Journal of Science Fiction and Fantasy, vol. 40. n.3, 1999, p. 244-254.

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literário, em parte porque sua lealdade principal não é para com as tradições realistas convencionais, mas à ficção científica”. Triplamente periférico, pois como Hantke observou, o steampunk “constitui um caso especial entre as histórias alternativas, um subgênero da ficção científica que postula um evento fictício de vastas consequências no passado e extrapola a partir deste evento um presente ou futuro fictícios, embora historicamente contingentes” (HANTKE, p. 245). No entanto, nem sempre os exemplos desta literatura se encaixam em uma definição abrangente o bastante para dar conta de todas as suas variações. Existem histórias ambientadas em uma época vitoriana alternativa, existem histórias ambientadas em um futuro que preservou características da época vitoriana, existem histórias ambientadas em um universo paralelo que apresenta características similares à época vitoriana. O que estas histórias poderiam ter em comum, é a ênfase na tecnologia, seja uma tecnologia do passado que extrapola as suas limitações históricas, seja uma tecnologia futura, cujo desenvolvimento em um período histórico passado, cria um ponto de divergência que altera a cronologia tal como a conhecemos, ou um híbrido de tecnologias futuras e passadas em um mundo secundário, ou universo alternativo. Diz Hantke:

Em parte devido à sua íntima ligação com a ficção científica, o steampunk se concentra na tecnologia como o fator crucial para a compreensão e interpretação do Vitorianismo. Ao adotar o nome steampunk, ou seja, em escolhendo a máquina a vapor como o ícone mais adequado do passado para descrever a si mesmo, ele torna a tecnologia o seu principal foco. Sendo o mundo contemporâneo altamente tecnológico, qualquer passado em que ele pudesse ver-se refletido deveria compartilhar, ou melhor, deveria ser feito para compartilhar, a sua agenda cultural. (HANTKE, 1999, p. 247)

Mas nem mesmo a ênfase na tecnologia pode ser um denominador comum que possibilite uma definição mais precisa. Os casos mais notórios são justamente os romances seminais de Jeter, Blaylock e Powers. Morlock Night, o primeiro romance de Jeter identificado com o subgênero, é uma continuação de The Time Machine, de H.G. Wells, misturada a elementos de fantasia medieval arturiana; os contos e romances de Blaylock protagonizados por Langdon St. Ives são pastiches humorísticos de scientific romances; e The Anubis Gates, de Powers, é uma história de viagem no tempo onde o protagonista vê-se envolvido em uma conspiração conduzida por ocultistas egípcios que pretendem restaurar o culto aos antigos deuses e destruir o Império Britânico. Estes exemplos se adaptam melhor à expressão “fantasias vitorianas” do que aos posteriores significados de steampunk, como uma modalidade estrita de ficção científica. Esta evidência, somada aos desdobramentos do steampunk em artes, artesanato, música e moda, parecem confirmar a vitória dos descritivistas

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Por isso, Hantke demonstra certa prudência quando diz que, “considerando a rapidez com que o steampunk se fragmentou em uma desconcertante variedade de estilos, os críticos fariam melhor se considerassem suas próprias definições como hipóteses de trabalho.” (p. 246) Nichols ressalta que, apesar de existirem algumas obras de escritores britânicos que poderiam ser classificadas como proto-steampunk, como The Warlord of the Air10 (1971), de Michael Moorcock, “ao mesmo tempo uma crítica e uma expressão nostálgica do otimismo tecnológico da Era Eduardiana”, é difícil enquadrar romances como esse nesta categoria, porque “em essência, o steampunk é um fenômeno norte-americano, muitas vezes ambientado em uma Londres que é encarada ao mesmo tempo como profundamente estranha e intimamente familiar, uma espécie de corpo estranho incrustado no subconsciente dos EUA”. Nichols observa que o denominador comum em Jeter, Blaylock e Powers não é a ênfase na tecnologia, mas o fato de que, nestes livros, “a Londres dickensiana é, em si mesma, um dos personagens principais.” A referência a Charles Dickens não é gratuita. Para alguns escritores de FC, a Londres vitoriana correspondia a um momento decisivo na história,

(…) um momento particularmente relevante para a própria ficção científica. Era uma cidade de indústria, ciência, tecnologia, comércio e, acima de tudo, finanças, onde o mundo moderno estava nascendo, e uma claustrofóbica cidade de pesadelo, onde os custos desse crescimento foram registrados em sujeira e imundície. Dickens – o grande escritor steampunk original – sabia de tudo isso. (NICHOLS, 1995. n/p)

De qualquer forma, seja encarando o steampunk como gênero ou, como quer Perschon, como uma “estética que pode ser aplicada a muitos gêneros, subgêneros e gêneros híbridos” (2012, p. 12), o olhar para o passado, nostálgico, crítico, irreverente ou desconstrutor, um passado geralmente compreendido entre meados do século XIX e início do século XX, é a nota dominante. Se a Londres de Dickens serviu de contexto primordial, outras referências logo iriam juntar-se ao catálogo de lugares-comuns do steampunk. Embora a ênfase na tecnologia não seja um elemento constitutivo obrigatório, quando ela existe este olhar passadista volta-se para as origens da ficção científica, para o produto cultural resultante do progresso tecnológico e científico da Revolução Industrial e da crítica a esse mesmo progresso. A tecnologia do vapor, o passado, encontra-se, então, com a tecnologia do futuro, do futuro do pretérito. Charles Dickens estende as mãos a H.G. Wells, como já havia feito em Morlock Night, de K.W. Jeter.

10 MOORCOCK, Michael. O Senhor da Guerra dos Céus. Parede, Saída de Emergência, 2009.

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Mas atravessando o Canal da Mancha, talvez pelo hiperbólico túnel imaginado por Moore e O'Neill, ou por Georges Méliès em seu filme proto-steampunk de 1907, Tunnel sous la manche ou Le cauchemar franco-anglais, encontraremos um outro corpo estranho, tão incrustado no subconsciente norte-americano quanto a Londres vitoriana, e, do mesmo modo, profundamente estranho e intimamente familiar. Pois se Dickens e Wells forneceram aos autores steampunk a imagem de uma distopia, Júlio Verne, na França, forneceu a imagem da viagem extraordinária, feita por meio de veículos extraordinários, modernas odisseias do homem industrial. Quando a influência de Dickens é minimizada a partir do momento em que o steampunk transcende a sua primitiva condição de fantasia vitoriana, a obra de Júlio Verne passa a impregnar o imaginário dos escritores e artistas que trabalham com esta estética. Mas não somente o Júlio Verne das obras originais. Existe a influência de um Júlio Verne transfigurado, reinventado, principalmente pelo cinema. Essa reinvenção, bem como suas emulações, transpostas para outros universos ficcionais, desempenharam um papel crucial na formação do imaginário desses escritores, que pelas lentes das câmeras cinematográficas que modificaram ou distorceram as obras originais, constituíram uma visão muito particular dessas obras e seu contexto. Isso não escapou a atenção de alguns estudiosos. Perschon, e outros, ressaltam a importância do universo verniano no steampunk. Por universo verniano, eles entendem os textos e as imagens por ele influenciadas:

Enquanto os textos escritos não podem ser ignorados como antepassados literários do steampunk, a proliferação de adaptações cinematográficas de romances científicos vitorianos após o sucesso de 20.000 Legues Under the Sea da Disney, em 1954, parece ser uma razão mais provável para sua popularidade. O desejo nostálgico semelhante ao que Fredric Jameson fala em relação a Star Wars está ostensivamente em jogo para aqueles cuja experiência nas matinês de sábado incluíram os 20 anos entre 1951 e 1971, quando os filmes baseados em Verne foram realizados regularmente, juntamente com numerosas adaptações de obras de H.G. Wells, Edgar Rice Burroughs, e Sir Arthur Conan Doyle. (PERSCHON, 2012, p. 20)

A influência desses filmes, como diz Perschon (p. 22), tem sido subestimada pela maioria dos comentadores. O cinema, como outros meios audiovisuais, exerce talvez maior influência sobre a literatura fantástica contemporânea do que seus antecedentes literários, as grandes obras do passado. O marco inicial desta nova realidade da literatura de entretenimento pode ser encontrada neste momento específico da indústria do cinema, quando suas câmeras apontaram para o passado da ficção científica.

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O steampunk, hoje, é um subgênero, ou uma estética, disseminado. É altamente popular no segmento de mercado que convencionou-se chamar “literatura Young-Adult”, faixa etária compreendida entre 15 e 29 anos. Basta uma breve busca no site da Amazon.com usando steampunk como palavra-chave, e encontraremos produtos como steampunk fashion, steampunk tarot, steampunk paper dolls, steampunk manga, steampunk erotica, steampunk mistery gay romance, kung fu steampunk , steampunk guide to sex, etc. Qualquer coisa, hoje, pode ser vestida, ou travestida, com uma roupagem steampunk. Steampunk, hoje, é uma palavra que pode significar tudo, ou então ser totalmente vazia de significação. O propósito de nosso trabalho é tentar rastrear, à maneira dos arqueólogos, as origens deste subgênero em sua forma estritamente narrativa. Aceitando a premissa de que o imaginário dos artistas e escritores que se dedicam ao steampunk foi moldado pela interpretação cinematográfica dos scientific romances e voyages extraordinaires do século XIX, no capítulo 1 vamos, inicialmente, demonstrar que a obra de Júlio Verne foi concebida, desde o início, como um projeto editorial interdisciplinar e intermidiático, com especial ênfase na imagem como subtexto e como narrativa paralela. Em seguida mostraremos de que modo o imaginário de Júlio Verne emigrou para os Estados Unidos da América, onde o autor francês foi transformado em “pai da ficção científica”. No capítulo 2, falaremos da invenção do cinema, de como a obra de Júlio Verne e as imagens por ela geradas sempre inspiraram não apenas releituras, mas, principalmente, uma continuidade do projeto literário original. De passagem, mostraremos que as “fantasias vitorianas”, que K.W. Jeter pensava, em 1987, que seria “a próxima grande tendência”, nunca deixaram de ser uma grande tendência na ficção científica e na fantasia. Por fim, no capítulo 3, faremos um resumo dos temas desenvolvidos ao longo da história da FC, e quais desses temas desempenharam papel importante na posterior configuração do steampunk. Abriremos espaço para breves considerações sobre a emulação do gênero no Brasil, que apesar de ter uma circulação limitada ao “gueto” no qual a ficção científica brasileira parece sempre condenada a permanecer, tem demonstrado uma persistência surpreendente, não de todo desvinculada de efemérides nacionais, como parece ser uma prática comum nas artes brasileiras. As considerações serão breves porque os rumos contemporâneos da FC nacional como um todo e o steampunk em particular, ainda padecem de uma falta de definição ou de conceito, e muitas vezes seus praticantes comportam-se com aquela autoindulgência defensiva, característica do mundo da literatura de entretenimento no Brasil. Pois algumas das observações feitas por José Paulo Paes no ensaio “Por uma literatura

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brasileira de entretenimento”11 ainda são pertinentes, como o fato de que, no Brasil, devido às dificuldades de profissionalização do escritor, as condições

são propícias mais ao surgimento de literatos do que de artesãos. Estes não podem dispensar a profissionalização; aqueles se contentam com o prestígio que sua arte lhes dá. (…) Numa cultura de literatos, todos sonham ser Gustave Flaubert e James Joyce, ninguém se contentaria em ser Alexandre Dumas e Agatha Christie. Trata-se obviamente de um erro de perspectiva: da massa de leitores destes últimos autores é que surge a elite de leitores daqueles, e nenhuma cultura realmente integrada pode se dispensar de ter, ao lado de uma vigorosa literatura de proposta, uma não menos vigorosa literatura de entretenimento. (PAES, 1990, p. 37)

Roberto de Souza Causo, escritor e crítico de FC, comentando estas linhas12, vai dizer que

Paes acredita que a literatura de entretenimento de nível médio pode ser um degrau de acesso ao patamar da literatura “séria”, da “alta literatura” e outras bobagens. A proposta em si é razoável e a tarefa de conquistar leitores e conduzi-los a uma literatura de apreciação mais sofisticada é também honrosa, mas o seu engano está em achar que esse patamar mais alto está fora do âmbito da própria literatura popular ou de gênero.

Este ainda é o estado atual da crítica no Brasil sobre essa questão. Ainda que a literatura de entretenimento nacional tenha crescido e alcançado alguma repercussão, inclusive no exterior, a incipiência do mercado e a ausência de discussão e de crítica ainda não tornou possível um salto qualitativo e quantitativo de modo a produzir uma literatura popular de alta qualidade, independentemente das posições assumidas por Causo e Paes. O resultado disso é o fechamento dos gêneros populares em seus respectivos guetos, incomunicáveis, em grande parte formados por fãs de determinado subgênero que também escrevem e satisfazem-se em somente participar de seu universo de eleição. Também não contaremos a história da literatura de FC no Brasil. Ela já é bem conhecida, e somente com o advento da Internet a quantidade de textos produzidos aumentou de maneira significativa, e, poderíamos dizer, incomensurável. Apenas assinalaremos os pontos que nos parecem relevantes para os propósitos de nosso trabalho.

11 PAES, José Paulo. “Por uma literatura de entretenimento” in A aventura literária. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 25-38.

12 CAUSO, Roberto de Souza. “Ficção de gênero como degrau: a crítica de José Paulo Paes”. Disponível em http://noticias.terra.com.br/interna/0,,OI3724126-EI6622,00.html. Acesso em 01/2015

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Devido à escassez de material crítico e teórico em língua portuguesa sobre ficção científica e suas modalidades, a maioria das citações foram traduzidas por nós a partir dos textos originais, salvo indicação em contrário nas referências bibliográficas.

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1 GÊNESE DE UMA IRONIA: UMA VIAGEM EXTRAORDINÁRIA

1.1 Janelas para as profundezas

Em seu texto de apresentação para o Album Jules Verne, editado em 2012 pela Bibliotèque de la Pléiade13, o escritor e ensaísta François Angelier principia com uma afirmação, se não desconcertante, pelo menos inusitada, em se tratando de obras literárias:

Verne! Júlio Verne! Experimente! Basta mencionar o nome do autor de quase duas centenas de romances, poemas, ensaios, peças de teatro, libretos de operetas e opéra-comique, volumes de história e geografia, basta enunciar o sobrenome deste patriarca universal das histórias de aventura e exploração, e ocorre um fenômeno estranho: não são palavras, frases ou alguns trechos narrativos de um capítulo que vêm à memória, mas as imagens. Imagens novamente e ainda imagens. Uma enorme liberação de imagens de todo tipo, um colossal carnaval visual e turbilhão retiniano que empanturram os olhos e saturam a memória. [...] Caso único na história da literatura francesa esse Júlio Verne, cuja obra escrita permite uma ligação “siamesa”, inoperável, com a ilustração: parasitismo ou dependência amorosa. Geminação única de sua espécie, um texto e sua ilustração. Demonstra-o este álbum, onde as imagens emanarão do texto, escaparão das linhas, girando em torno delas como nuvens de aves marinhas a chilrear entre os estaleiros ou a voar em torno das chaminés transatlânticas. (ANGELIER, 2012, n/p)

A eloquente retórica em defesa desta singularidade, desta característica única do autor francês mais traduzido no mundo, com admiradores que incluíam escritores respeitáveis como Mallarmé, Apollinaire, Roussel, Claudel e Gracq, que enxergavam em sua obra algo mais do que apenas uma recreação educativa (diríamos nós, brasileiros: Verne seria mais do que um autor de paradidáticos), será a nota dominante de Angelier em todo o seu avant-propos. E não poderia ser diferente: é como se o conceito de iconographie commentée, que define o propósito da coleção Albums de la Pléiade, tivesse o seu coroamento no volume dedicado à Verne14, este produtor de imagens que escapam incontrolavelmente de suas linhas. Nesta afirmação de Angelier, podemos identificar dois movimentos. O primeiro, do texto para a ilustração, com a qual aquele permanece ligado de modo “inoperável”, e o segundo, o que vai desta união indissolúvel entre texto e imagem para a memória coletiva,

13 ANGELIER, François. Album Jules Verne. Gallimard, 2012

14 Inversamente, pode-se dizer que a obra de Verne foi coroada ao ter quatro de seus romances editados em 2012 pela Gallimard na Bibliotèque de la Pléiade: dois volumes contendo a trilogia composta por Les Enfants du capitaine Grant, Vingt mille lieues sous les mers e L'Île mystérieuse, além de Le Sphinx des glaces.

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movimento este responsável pelo “carnaval visual e turbilhão retiniano” provocado à simples evocação do nome de Verne. Estes movimentos não escaparam à atenção de scholars e escritores. O professor da DePauw University, especialista em Verne e editor da conceituada revista Science Fiction Studies Arthur B. Evans, inicia o seu artigo “The Illustrators of Jules Verne’s Voyages Extraordinaires”15 observando que existem mais de quatro mil ilustrações nos volumes que compõe o seu magnum opus, “mais ou menos sessenta ilustrações por romance, uma a cada 6- 8 páginas das edições originais Hetzel” (EVANS, p.241), tão intrinsecamente ligadas ao texto que continuam a ser publicadas na maioria das edições atuais, permitindo que os leitores modernos consigam evocar “aquela sensação de exotismo distante e temor futurista que os leitores originais uma vez puderam experimentar a partir destes textos”. (EVANS, p.241). Essas ilustrações, da autoria de artistas como Léon Bennet, Édouard Riou, Alphonse de Neuville, George Roux e outros, considerados menores quando comparados a outros mestres franceses como Gustave Doré, Paul Gavarni16 e J.J. Grandville, cumpriram um papel fundamental no projeto literário e pedagógico do editor Pierre-Jules Hetzel, que, a partir de 1864, começou a editar o Magasin d’éducation et de récréation, em cujo primeiro número seria publicado, sob a forma de folhetim, o segundo romance17, ou segunda voyage extraordinaire, de Júlio Verne: Les Aventures du capitaine Hatteras. Na apresentação de Hetzel para edição, o editor elogia em Verne “a precisão científica, o competente conhecimento geográfico, e o persuasivo talento narrativo que fez de seu primeiro livro uma obra única em seu estilo até o momento”. Posteriormente, na edição em livro ilustrada por Édouard Riou, discípulo de Doré, Hetzel escreve um prefácio bastante elucidativo18. Começa por dizer que os livros de Júlio Verne, por oferecerem a melhor resposta aos anseios e tendências da sociedade moderna, cujo destino era desvelar as “maravilhas do universo”, estão “entre os poucos que se pode oferecer, com confiança, às novas gerações”. Depois de elogiar sua originalidade, sua imaginação e sua capacidade de construção dramática e narrativa, Hetzel afirma que Verne havia criado um novo gênero, e

15 Science-Fiction Studies XXV:2 (July 1998): 241-70.

16 Gavarni contribuiu com uma ilustração para Les Châteaux en Californie, peça teatral de 1852.

17 O primeiro, como é sabido, foi Cinq semaines en ballon, publicado em 1863.

18 Appendix C in VERNE, Jules. The Adventures of Captain Hatteras, trad. William Butcher. Oxford, OUP, 2009, p. 358-360.

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que em cada página de seus livros oferecia aquilo que é “tantas vezes prometido e raramente cumprido, educação que entretém e entretenimento que educa”. Após observar o crescimento, na França de sua época, do interesse por palestras e conferências de cunho científico, e que graças a esse interesse os jornais estavam sendo obrigados a publicar os últimos boletins da Academia de Ciências ao lado das críticas de arte e teatro, Hetzel afirma a necessidade de reconhecer que “em nossa época a Arte pela Arte já não é suficiente” e que era chegada a hora da “ciência ocupar o seu lugar na esfera literária”. É dito que os livros de Verne divertem tanto quanto os de Alexandre Dumas, e instruem tanto quanto os de François Arago, e que “jovens e velhos, ricos e pobres, ignorantes e instruídos” terão grande proveito em transformar estes “excelentes livros em amigos da família”, pois o editor confia plenamente não apenas em suas qualidades, como também no “bom gosto do público de todas as classes e idades”. Finalmente, após anunciar alguns futuros volumes da coleção, entre os quais Voyage au centre de la Terre e De la Terre à la Lune, Hetzel expõe, em poucas palavras o impressionante objetivo do empreendimento de Verne: “resumir todo o conhecimento geográfico, geológico, físico e astronômico acumulado pela ciência moderna e consequentemente reescrever, da forma atraente e pitoresca que lhe é própria, a história do universo”. Podemos observar que, trinta e três anos após François Guizot estabelecer e organizar o ensino público francês e quinze anos antes de Jules Ferry secularizar esse mesmo ensino, acabando com o sistema dual então vigente, laico e religioso, Hetzel já concebera todo um projeto pedagógico de cunho secular, cientificista e positivista, coerente com seus ideais republicanos e saint-simonianos. E, ao mesmo tempo, em decorrência do aumento da escolaridade, substituía “uma lógica econômica da demanda social por uma moderna lógica da oferta, em resposta às expectativas do novo público alfabetizado”19. Hetzel formou este público por meio de pesquisas para determinar os gostos e os interesses de acordo com os níveis de alfabetização, ao mesmo tempo em que procurava incrementar as vendas através da publicação dos romances de Verne em três diferentes formatos, destinados a públicos diferentes: como folhetim, como brochura, geralmente sem ilustrações, e depois em luxuosas e coloridas encadernações in-oitavo folheadas a ouro, ilustradas. Esses fatores em conjunto, e não apenas a qualidade de seus textos, contribuíram para o sucesso de Verne.

19 LEÃO, Andréa Borges. “Vamos ao Brasil com Jules Verne? Processos editoriais e civilização nas Voyages Extraordinaires”, in Sociedade e Estado, vol.27, no. 3, Brasília, UNB, 2012

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Ao mesmo tempo em que a alfabetização se intensificava e gerava esta demanda, intensificava-se igualmente a produção de imagens. Ou, nas palavras da historiadora Vanessa Schwartz, em seu estudo20 sobre os primórdios da cultura de massa na Paris fin-de-siècle:

No momento em que a alfabetização universal se tornou praticamente uma realidade na França, também o foi a saturação das formas de comunicação por imagens. O desenvolvimento da litografia, da fotografia, e das tecnologias que tornaram acessíveis e baratos os livros e a imprensa ilustrados, levaram a uma circulação sem precedentes de representações visuais mundanas. Mas também conectaram palavras e imagens como nunca antes, de modo que os leitores em geral poderiam, pela primeira vez, ler as palavras e depois encontrar diretamente a imagem referenciada. Para o público comum, no século XIX, palavra e imagem foram vinculadas como nunca o foram antes, ainda que os estudiosos tendam a considerá-las como formas culturais distintas, e. por vezes, até mesmo opostas. (SCHWARTZ, 1999, p. 2)

Segundo a historiadora da arte Ségolène Le Men, a educação infantil através de imagens possuía, na França, uma tradição que remontava ao século XVIII, que, por sua vez, derivava da “enciclopédia em imagens” Orbis pictus, do pedagogo tcheco Comênio (Jan Amos Komenský), considerado o primeiro livro ilustrado para crianças. Periódicos como Le Portefeuille des enfants, por exemplo, que circulou de 1783 a 1791, eram normalmente compostos de pranchas com textos explicativos justapostos, cujos temas versavam sobre história natural, história antiga, e geografia. Outros periódicos ilustrados dedicados aos jovens operavam sob o binômio educação/recreação, e no século XIX havia exemplos notáveis como L’Image, versão infanto juvenil da famosa L’Illustration21. A novidade introduzida por Hetzel e Verne foi não compartimentar o conteúdo, não separar a didática do entretenimento. Um romance de Júlio Verne oferecia as duas coisas simultaneamente, e o cuidado com que autor e editor instruíam seus ilustradores22 demonstra a importância da gravura, não apenas como suporte à leitura, mas também como material didático:

Além disso, a importância dessas ilustrações como recurso visual para a intenção didática explícita nas Voyages Extraordinaires de Verne não pode ser subestimada. O número de ilustrações puramente pedagógicas nos romances-aquelas que têm muito pouco a ver com os acontecimentos fictícios narrados no enredo, às vezes é surpreendente: espécies de peixes enumeradas por Conselho no Vingt mille lieues sous les mers, as fases da lua em De la Terre à la Lune, o planeta Saturno e suas luas em Hector Servadac, vários tipos de balões de ar quente e dirigíveis em Robur-le- Conquérant, etc. E mesmo as ilustrações não-pedagógicas, que descrevem a trama ficcional são também altamente educativas para os leitores franceses de meados do

20 SCHWARTZ, Vanessa R. Spectacular Realities: Early Mass Culture in Fin-de-Siècle Paris. University of California Press, 1999.

21 LE MEN, Segoléne. “Hetzel ou la science recreative”, in Romantisme, no. 65, 1989, p. 69-71.

22 Cf. EVANS, op.cit. 1998, p. 244-245

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século 19, especialmente para aqueles que eram semialfabetizados. (EVANS, 1998, p. 244)

Mas, como diz Evans (p.244), ao mesmo tempo em que a presença destas ilustrações na obra de Verne intensificava ambas as dimensões, mimética e didática, dos romances, por outro lado contribuíram para a sua condenação, por parte da crítica da época, como subliteratura, boa apenas para os iletrados. Não parece ser apenas coincidência que após a Grande Guerra, quando as ilusões de um progresso científico capaz de conduzir a humanidade para um futuro glorioso foram definitivamente sepultadas em algum lugar entre Verdun e o Somme, sua obra tenha sido classificada exclusivamente como direcionada para o público infanto juvenil. O crítico de cinema Guy Gauthier, em um ensaio dedicado à relação entre o texto e as gravuras na obra verniana, afirma que entre 1920 e 1960 o desprezo e a indiferença por Verne eram tamanhos que as edições deste período apresentavam um texto mutilado em suas partes tidas por enfadonhas (científicas), consideradas inapropriadas para crianças, além de suprimir as ilustrações originais ou substituí-las por outras, medíocres. Mas esse “purgatório”, para usar a expressão de Gauthier, acabou graças à reavaliação crítica a que a obra de Verne foi submetida, inicialmente com a publicação de um número especial da revista Europe em 1955, o que fez com que ela ressurgisse não apenas em seu aspecto de pioneira da especulação científica, como também com alguns de seus “atributos míticos de origem, emblema de uma época em que a gravura reinava”. Gauthier se pergunta: por que a obra de Júlio Verne, cujo valor estritamente literário não deve nada às ilustrações que a acompanharam originalmente, são quase inseparáveis, na opinião corrente, de gravuras que na melhor das hipóteses poderiam ser consideradas medianamente honestas? Pois havia um padrão dominante nas ilustrações de livros e periódicos do século XIX, devido em grande parte à evolução da técnica empregada. Gauthier nos mostra como a passagem da técnica de gravura em metal (calcografia) para a gravura em madeira (xilogravura) permitiu um aumento considerável da capacidade de impressão, barateando os custos. Em um segundo momento, a xilogravura evoluiu da madeira de fio para a gravura em madeira de topo23, que permitia maior precisão e fineza no tratamento, ao ponto de tudo poder ser convertido em xilogravuras, fossem reproduções de quadros dos grandes mestres, croquis de viajantes e até mesmo fotografias, que só passaram a ser impressas em livros a partir do final do século XIX. Graças à “obsessão pelo mimetismo

23 Inventada por Thomas Benwick (1753-1828), gravador e ornitologista inglês.

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naturalista” e a “fascinação pela exatidão fotográfica”24, a técnica da xilogravura tudo uniformizava, desde as ilustrações da Bíblia até os livros de divulgação científica. Não havia diferença, portanto, no que dizia respeito ao tratamento, entre uma imagem realista e uma imagem fantástica. Esse ponto é extremamente importante, pois pode conter uma pista para tentarmos responder a pergunta de Gauthier. O escritor suíço Georges Borgeaud, ao tentar explicar “o segredo do poder que as ilustrações que acompanham os livros de Júlio Verne exercem”25, diz-nos que

Seu alcance e mistério não provêm apenas da representação de um acontecimento bem delimitado por palavras, por uma frase, mas da inclusão de tudo que o rodeia, a saber: a imensidão do céu, do mar, da terra, de um quarto e, por conseguinte, do tempo. É a anti-prisão. Isso confere às imagens uma dimensão de eternidade, um infinito, um pouco como o que se encontram – não se sabe por que – nos retratos de Nadar, enquanto que o defeito das fotografias e das ilustrações de hoje é serem muito diferentes, estarem muito distantes do texto, ou pior ainda, nos oferecer apenas um instantâneo do texto, recusando assim toda envergadura ao episódio, ao acontecimento. (BORGEAUD, in BELLOUR e BROCHIER, 1969, p.60)

Borgeaud, enfim, conclui: “(….) o universo de Júlio Verne para mim é inseparável de seus ilustradores. Devo a estes a realidade daquele.” (BORGEAUD, 1969, p.61) O poeta belga René Micha, em seu artigo sobre a importância das legendas sob as gravuras, considerava que estas funcionavam como uma “história dentro da história”. História dentro da história é o que também demonstra a análise de Gauthier das ilustrações e legendas do romance Un capitaine de quinze ans, que se apresentam, em certas sequências, especialmente em uma sequência de seis gravuras que ilustram o encontro de um navio com uma baleia, como uma decupagem da sequência narrativa, como seria mais tarde uma prática usual das histórias em quadrinhos.

É perturbador constatar a decupagem da ação pelo uso de uma técnica que permite a captura, em poucos segundos, da totalidade das peripécias. Corte desnecessário, já que seis gravuras ocupam 6 páginas de uma narrativa de 25, e o leitor irá descobri- las ao longo da leitura. Mas o que de fato se passa? A narrativa literária domina, principalmente porque é conduzida por um grande escritor, e absorve a história em imagens. Compreendemos, no entanto, que as duas estão intrinsecamente ligadas ao ponto de não poderem ser separadas, mesmo um século mais tarde. (GAUTHIER, 1984, p. 17)

24GAUTHIER, Guy. “Image et texte: le récit sous le récit”, in Langages, 19e année, n°75, 1984. p. 11-12.

25BORGEAUD, Georges. “Júlio Verne e seus ilustradores”, in BELLOUR, Raymond e BROCHIER, Jean- Jacques: Júlio Verne, uma literatura revolucionária, São Paulo, Documentos, 1969, p.60.

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Gauthier observa que, durante a publicação das Voyages Extraordinaires, até o último volume da série, a função narrativa das ilustrações vai se sobrepondo à função exclusivamente pictórica. E conclui por dizer que tudo isto mostra “que não estamos remontando longe o suficiente, tanto historicamente na civilização do livro, como na análise do processo de leitura, para esclarecer todas as relações profundas entre a escrita e a imagem”. (GAUTHIER, p.18) Como vimos, a “ligação siamesa” entre imagem e texto posiciona as ilustrações das Voyages Extraordinaires para além de uma dimensão meramente paratextual. Isso nos leva para o segundo movimento anteriormente assinalado, que é a marca indelével impressa por esta “geminação única de sua espécie” na memória coletiva, e que, em nosso entender, é resultante da atmosfera onírica presente nestas gravuras, mesmo naquelas mais pretensamente realistas e didáticas. Para Micha, a conjugação entre a legenda e a gravura provocavam um efeito de sonho. De sonhos também nos fala Borgeaud quando escreve: “Não é o texto que define a ilustração, mas a ilustração que define o texto e que transporta o leitor para além... é um catalisador de sonho.” O historiador e especialista em paraliteratura Daniel Compére, citado por Evans, prefere a palavra “ilusão”:

Este comentário via ilustração estabelece uma dialética entre o real e o imaginado. As ilustrações fortalecem a verossimilhança do texto verniano e o seu realismo atua como uma espécie de garantia de veracidade. Mas elas também adicionam uma dimensão de ilusão. (COMPÉRE, citado por EVANS, 1998, p. 247

Mas o próprio Evans volta a insistir no aspecto onírico, reforçado, segundo ele, pela duplicação, por parte das ilustrações, de uma característica do texto verniano que já havia sido salientada por Michel Foucault26: a constante mudança da voz narrativa.

As narrativas de Júlio Verne estão maravilhosamente cheias dessas descontinuidades no modo da ficção. A relação estabelecida entre narrador, discurso e fábula incessantemente se desfaz e se reconstitui segundo um novo desenho. O texto que narra se rompe a cada instante; muda de signo, inverte-se, distancia-se, chega-nos de um outro lugar e como de uma outra voz. Oradores, surgidos não se sabe de onde, introduzem-se, fazendo calar os que o precediam, fazem por instantes seus próprios discursos e depois, repentinamente, cedem a palavra a um outro desses rostos anônimos, dessas silhuetas cinzentas. (...) Em Júlio Verne, temos uma única fábula por romance, mas que é contada por vozes diferentes, superpostas, obscuras, e em confronto e contestação umas com as outras. (FOUCAULT, in BELLOUR e BROCHIER, 1969, p. 12-13)

26 FOUCAULT, Michel. “Para além da fábula” in BELLOUR, Raymond e BROCHIER, Jean-Jacques: Júlio Verne, uma literatura revolucionária, São Paulo, Documentos, 1969.

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Evans aponta uma correlação entre a multiplicidade de vozes narrativas no texto e a multiplicidade de pontos de vista nas ilustrações:

Além disso, o ponto de vista representado por estas ilustrações – semelhantes a voz narrativa nos textos de Verne – é aquele que está em constante mudança, assim como em um sonho. O leitor / espectador oscila entre ver o que os protagonistas estão realmente vendo ou pensando, e o que o narrador pretende apresentar como contexto extra-narrativo. O ponto de vista é, por vezes, ancorado no presente da narrativa, às vezes em seu passado, às vezes em um futuro hipotético. Como uma câmera de cinema ou TV27, às vezes é ampliado para um close-up, às vezes se afasta para uma foto panorâmica, e às vezes (quase como um anúncio publicitário) intercala na ação uma breve passagem pedagógica. Em sua polivalente onipresença – tanto dentro quanto fora da própria narrativa – o ponto de vista representado por estas ilustrações parece se encaixar perfeitamente na orientação ideológica e epistemológica dominante em toda a obra de Verne, ou seja, uma “visão” de totalidade, enumeração e apropriação. (EVANS, 1998, p. 247)

Esse elemento onírico é provocado, em nosso entender, pela dupla sensação de familiaridade e estranheza advinda da uniformização dos padrões pela técnica da xilogravura, esse duplo movimento que ao mesmo tempo reforça a verossimilhança da narrativa e acrescenta-lhe uma dimensão ilusória. Uma passagem do capítulo 14 do romance 20.000 léguas submarinas descreve com perfeição esse mecanismo, além de refletir, na posição do personagem, o ponto de vista do leitor, em um movimento verdadeiramente especular. É o momento em que Aronnax, Conselho e Ned Land, prisioneiros a bordo do Nautilus, contemplam o espetáculo das profundezas que se descortina, teatralmente, ao apagarem-se as luzes do submarino e abrirem-se as escotilhas metálicas laterais que revelam duas janelas panorâmicas. Na narrativa, esta passagem é famosa pela exaustiva enumeração das espécies marinhas e suas classificações – tanto pela voz de Conselho, cujo contraponto cômico são as intervenções bem-humoradas de Ned Land, quanto pela voz narrativa em primeira pessoa de Aronnax – que acabam por provocar um efeito hipnótico no leitor e nos personagens, conduzindo-os para um deslumbramento diante do maravilhoso do mundo submarino e suas miríades de raias, aracanas, balistas, escarídeos, triglídeos, góbios eleotrídeos, escômbridas, azulinos, esparídeos listrados, esparídeos agaloados, aulóstomos, moreias equinoides, etc. Em sequência, três imagens, desenhadas por Alphonse de Neuville e xilografadas por Henri Theophile Hildibrand, ilustram a passagem: a primeira (número 29 da edição original)28,

27 Grifo nosso.

28 Na impossibilidade de recorrer a um exemplar das famosas cartonages Hetzel, reporto-me ao site verniano de Zvi Har’ El, onde as 118 ilustrações originais estão dispostas em sequência:

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intitulada Uma janela para as profundezas inexploradas, mostra os três personagens observando a paisagem submarina. Apesar de reproduzidas de acordo com seus modelos naturais, as criaturas surgem estranhas, fantasmagóricas, efeito realçado pela austera moldura vitoriana da escotilha que as envolve; a segunda (número 30 da edição original) exibe, linearmente, treze exemplares da fauna marinha ao modo de um livro didático de ciências naturais, com seus nomes populares e científicos; e finalmente a terceira gravura (número 31 da edição original) nada mais é que a reprise da anterior, mas agora com o fino e detalhado tratamento estético permitido pela técnica da xilogravura de topo. Após as duas horas em que os personagens se entretêm diante da cena marinha, o espetáculo termina, cai o pano e as luzes se acendem. “Subitamente, as escotilhas metálicas se fecharam e o dia raiou no salão, pondo fim à encantadora visão. Ainda assim, continuei a sonhar (…)”.29 Não poderia haver melhor descrição do efeito que a conjugação do texto com a imagem produziam no leitor, a ilustração funcionando, ela mesma, como uma miniatura da janela que se abre para as profundezas. Mas esse não é um caso isolado na literatura de Júlio Verne. Não escapou a um especialista verniano como Jean-Michel Margot esse mecanismo especular, composto pela interação de texto e imagem, capaz de produzir e prolongar um estado de sonho a posteriori. Em um ensaio dedicado à transformação de Júlio Verne em uma espécie de arquétipo popular30, Margot afirma que

Não nos esqueçamos do gênio de Verne como escritor. Suas histórias possuem uma estrutura de narrativa de aventuras e surgiram em um bom momento, com o novo rótulo de “romances científicos”. A trama dos romances de Verne parece convincente e plausível, mas não pode ter lugar na realidade. Verne vende sonhos e mitologia. Sua escrita é simples e direta. As crianças leem e quando adultas, elas se lembram de ter sonhado as aventuras de Hatteras, de Nemo, ou de Fogg. As ilustrações são parte do sonho. Tão realistas quanto possível, elas imprimem os lugares e as situações na memória do leitor, elas participam da criação de uma aventura perfeita que o texto enfatiza e sustenta. Um dos últimos românticos, Verne utiliza o tema da viagem pontuada de descobertas e aventuras para levar conhecimento às famílias francesas e fazê-las viver vicariamente as emoções geradas pelos “mundos conhecidos e desconhecidos”. Manipulando o seu leitor através de um folhetim ou de um livro, a narrativa proposta por Verne dá a ilusão de encerramento, o fim da aventura iniciática. O leitor acredita que a história terminou quando, de fato, a leitura prossegue em sua fome e sede de conhecimento.

http://jv.gilead.org.il/rpaul/Vingt%20mille%20lieues%20sous%20les%20mers/, ou então ao exemplar digitalizado da edição de 1871 em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6577310x/f8.planchecontact.r=cartonage%20hetzel%20jules%20verne.lang PT

29 VERNE, Jules. 20.000 léguas submarinas. Trad. André Telles. Rio de Janeiro, Zahar, 2011, p.132.

30 MARGOT, Jean-Michel. “Un archetype populaire: Jules Verne” in Verniana vol. 6, 2014, p.81-92. disponível em http://www.verniana.org/volumes/06/A4/Archetype.pdf. Acesso em 10/2014

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Utilizando-se da enumeração para dar a ilusão de conhecimento exaustivo, Verne ameniza a desilusão de seus leitores no decurso de um futuro prometido que o fim do século XIX não poderia imaginar ser pobre e miserável. O desfecho da maioria dos romances (pelo menos dos mais lidos e conhecidos) é um desfecho feliz. Se o steampunk é tão bem-sucedido hoje, pode ser porque o nosso futuro prometido pareça sombrio e pouco otimista. Tudo isso cria a imagem de um Júlio Verne tutelar, que leva um futuro tranquilizador tanto para seus heróis quanto para seus leitores. (MARGOT, 2014. p.86-87)

Em Júlio Verne, graças ao elevado número de ilustrações em toda a sua obra – além de um avançado conceito em paratextos editoriais que possibilitaram a Hetzel e Verne publicar mais de quatro mil diferentes combinações de texto e encadernação, caso único na história editorial31 são possíveis as mais variadas análises de construção da narrativa através do texto mais as imagens e suas legendas. É o caso de, além do trabalho do supracitado Guy Gauthier sobre Un capitaine de quinze ans, Terry Harpold, que se debruçou sobre Le Superbe Orénoque32, ou Rudyard Alcocer, que fez o mesmo com La Jangada33, apenas para ficarmos com alguns exemplos. Não surpreende, portanto, que as imagens geradas a partir dos textos vernianos tenham esse poder de se incrustar na memória coletiva, provocando o fenômeno detectado por François Angelier.

1.2 Cartografias do espaço imaginário

Mas seria um erro supor que o texto sobreviva apenas como reminiscência, ou ressonância, da imagem. Seja qual for o lugar de direito que Júlio Verne ocupe hoje na história da literatura, se sua obra se resumisse apenas a um romanesco antiquado repleto de ciência ultrapassada, seus desdobramentos paratextuais seriam insuficientes para desencadear este processo. “Verne vende sonhos e mitologia”, diz-nos Margot. Foi o filósofo Michel Serres34 quem inseriu as Voyages em uma tradição literária ocidental que remonta a Homero:

31 “O domínio textual-gráfico constituído por esses objetos é inigualável na sua amplitude e variedade; nenhum outro corpus associado a um único autor é comparável.” (HARPOLD, op. cit.) Para uma apreciação da totalidade dos modelos editorias de Hetzel, ver http://vernehetzel.free.fr/index.php. Acesso em 14/10/2014

32 HARPOLD, Terry. “Reading the Illustrations of Jules Verne's Voyages extraordinaires: The Example of Le Superbe Orenoque.”. ImageTexT: Interdisciplinary Comics Studies. 3.1 (2006). Dept of English, University of Florida, 2014.

33 ALCOCER, R. “Along the banks of the Amazon: Ethnicity and crosscultural imaging in Jules Verne's La Jangada”. Reconsidering Comparative Literary Studies, 5(1), 1-17. Georgia State University, 2008, p. 358-360.. Disponível em: http://ejournals.library.vanderbilt.edu/index.php/ameriquests/article/view/112. Acesso em 14/10/2014.

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a aventura pedagógica, o romance de viagem que é, ao mesmo tempo, um romance de ciência e uma aventura mitológica, iniciática. Serres demonstra que, nas Voyages, Verne desenha e superpõe três cartografias A primeira é a geográfica, o nível “ordinário” da viagem extraordinária, “no espaço (terrestre, aéreo, marítimo, cósmico) ou no tempo (….) de um determinado ponto a um outro desejado, por todos os meios de locomoção”, trajeto “circular, tal como o tempo que o mede ou que lhe serve de campo; o pensamento do Eterno Retorno34 o domina, e o futuro só está presente através de um perfil à cavaleira”.paratextual (SERRES, 1969, p.25). É ao redor desta estrutura ponto-círculo que as imagens se agrupam, e que são traduzidas nas formas de polo, centro, vulcões, ilhas, redemoinhos. Em Hatteras, o ponto matemático do Polo Norte se encontra no centro de uma cratera, que por sua vez se encontra no centro de uma ilha. Em Viagem ao centro da terra, o itinerário se dá através de duas ilhas vulcânicas, na tentativa de atingir o centro. O início, em um vulcão extinto, de onde os personagens se dirigem para a pré-história, o início dos tempos; o fim, em um vulcão ativo, o retorno à História, configurando um círculo espaço-temporal perfeito. A segunda cartografia, à qual corresponde o segundo nível das Voyages, Serres chama de “mapa-múndi da enciclopédia”, estrutura igualmente circular, mas agora trata-se de um “círculo do saber”, semelhante à Odisseia homérica: “a Odisseia (verniana) é circular, percorre o círculo do saber. O objetivo do percurso é um lugar privilegiado onde é possível experimentar diretamente uma teoria científica ou resolver um problema” (SERRES, 1969, p. 26). Alhures34, Serres reforça a comparação das viagens na obra verniana e a viagem homérica, mostrando como esta última também superpõe os mapas do deslocamento físico e do conhecimento científico:

Homero não escreveu apenas “Então, os companheiros de Ulisses abriram as velas”. Ele explica com qual cabo eles amarram a vela e como tecer a tela, de onde sopram os ventos, sua força e a estação de sua maior ação. Se a Odisseia nos faz viajar em terras e mares conhecidos e desconhecidos35, ela explora também o conjunto do saber da época de Homero. Dupla viagem de exploração do espaço e da enciclopédia: assim, a Odisseia passa o tempo todo da literatura de viagem à pedagogia. (SERRES, 2007, p. 29-30)

Como era explicitamente declarado no projeto editorial de Hetzel, as Voyages, em sua dupla função de education e récréation, dão continuidade, segundo Serres, a essa tradição

34 SERRES, Michel. Júlio Verne, a ciência e o homem contemporâneo. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2007, p. 29-30.

35 “Viagens Extraordinárias por mundos conhecidos e desconhecidos” era o título completo da série editada por Hetzel.

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pedagógica homérica. Os poucos exemplos levantados por Serres são suficientes: o conhecimento geológico é a principal ferramenta na descida ao centro da terra; o conhecimento biológico prepara a sua própria expansão na descoberta das profundezas marinhas; o conhecimento astronômico será posto à prova na viagem à Lua; e em A ilha misteriosa, o leitor aprende como construir uma civilização em ambiente selvagem e desabitado, a-histórico (ou seja, como “reescrever a história do universo”), a partir de todo o conhecimento humano acumulado até então. A terceira (e decisiva) cartografia desenhada por Verne é chamada por Serres de “um mapa misterioso do espaço imaginário ou virtual, onde Orfeu desce aos infernos, onde Telêmaco procura seu pai.” (SERRES, 2007, p. 24). A viagem, estão, deixa de ser uma mera excursão espaço-temporal, “ordinária”, para se tornar de fato extraordinária, mitológica e religiosa. Serres traça um paralelo, bastante rigoroso, entre Aventuras de três russos e três ingleses com a narrativa do Êxodo (SERRES, 2007, p. 69-72); As Índias Negras com o mito platônico da caverna (SERRES, 2007, p. 73-75 e 79-80); Viagem ao centro da Terra com a descida ao Hades e ao labirinto do Minotauro (SERRES, 1969, p. 22-24); Miguel Strogoff com o mito de Édipo ou o episódio bíblico de Tobias guiado pelo Anjo; Os filhos do Capitão Grant com a Telemaquia (SERRES, 1969, p.27).

É enfim e sobretudo uma Viagem Iniciatória, sob o mesmo aspecto do périplo de Ulisses, do Êxodo do povo hebreu ou do itinerário de Dante. O círculo espaço- temporal e o ponto sublime, o ciclo enciclopédico e a experiência científica, suportam uma marcha de uma ordem bem diferente, que é a única a explicar o interesse estranho e apaixonado que todos (para si) sentem por essa obra, apesar das fraquezas artísticas e intelectuais. Júlio Verne, que eu saiba, é o único escritor francês recente que recolheu e que ocultou sob os sedimentos de um exotismo pitoresco e um saber ao gosto do dia (no entanto irrisório, e, de fato, bem atrasado), a quase totalidade da tradição europeia em matéria de mitos, de esoterismo, de ritos iniciatórios e religiosos, de misticismo. (SERRES, 1969, p.26)

A imagem de Axel Lidenbrock em sua descida ao centro da Terra, como Orfeu nos infernos, Ulisses amarrado ao mastro, “o sábio que se tornou o homem de ciência e que avalia as idades do planeta”, mas “sobretudo o postulante aos arcanos, vitorioso das provações da iniciação pela água, pelo fogo e pelo abismo”, é a síntese do homo viator, expressão que Serres prefere em vez de homo sapiens: a viagem como elemento essencial da condição humana, cujos objetivos e finalidades ultrapassam a cultura e a pedagogia. Mas a reescritura da história do universo através da viagem, da ciência e do mito alcançam o seu ponto máximo na obra de Verne, sem dúvida, em A ilha misteriosa: fugitivos da Guerra Civil Americana, fugitivos da História, a bordo de um balão, são atirados em uma ilha desconhecida e não-

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habitada, em estado pré-adâmico, a-histórico. Devem construir uma civilização a partir do nada, auxiliados de quando em vez pela Providência, simbolizada por um Capitão Nemo velho e agonizante, que se esconde em uma caverna submarina com o seu Nautilus. Mas todos os anos de trabalho irão se perder: a ilha está condenada a desaparecer em uma erupção, bem como o velho capitão. “Sobre a ilha-microcosmo, essa micro-humanidade exemplar retoma por conta própria eras e estágios evolutivos bem conhecidos, até o mundo perfeito, a morte do Deus-Nemo, e a escatologia vulcânica”. (SERRES, 1969, p. 23) A História é restaurada e encerrada, o círculo se fecha, a história do universo é reescrita. Muito haveria ainda por dizer sobre todos fatores que contribuem para esse “interesse estranho e apaixonado” pela obra de Verne. Projeto literário e editorial sui generis, seu complexo sistema de relações entre imagem e texto, entre o familiar e o maravilhoso, entre a tradição e a modernidade e entre o mito e a ciência – capaz de gerar um corpus imagético que alimentou e continua alimentando o imaginário coletivo de artistas e público, e que explica o interesse por formas nostálgicas e retrofuturistas de narrativa, como o steampunk. Se é verdadeiro afirmar que as origens do steampunk, seja como gênero, seja como estética, se encontram na interpretação visual feita pelo cinema norte-americano dos anos cinquenta e sessenta do século XX da obra dos precursores da science-fiction do século XIX, é igualmente verdadeiro reconhecer que, no caso de Verne, esta interpretação visual é um desdobramento natural do seu projeto literário e editorial. Os romances de Verne, em seu poder de criar imagens, de narrar por imagens, e reinventar mitos, por sua vez geram novas imagens e novos textos, através dos tempos, em diferentes mídias e que passam a integrar o corpus verniano. Esse poder é de ordem fundamentalmente mitológica, e é por isso que, a despeito das intenções originais do editor Hetzel, Michel Serres pode declarar que “a única ciência em que se pode reconhecer Verne como mestre é a Mitologia”. (SERRES, 1969, p.27) O Olimpo moderno onde sobrevivem os mitos já foi o Cinema, como anteriormente havia sido o Teatro. Verne escreveu a sua obra em um momento de franca trasladação das imagens, dos ícones, para esses modernos templos do culto secular. Sua obra inspirou esse processo, e mais do que isso, participou dele. Veremos agora como esse movimento de trasladação é nada mais que um desdobramento absolutamente natural na obra verniana, dada a natureza do projeto e de seu momento histórico.

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1.3 A féerie extravagante

O projeto de Verne e Hetzel, como vimos, já nasceu interdisciplinar e – é necessário que se diga agora – de certa forma, transmidiático. A questão da conjugação de imagem e texto já estava presente na obra de Verne antes mesmo dele iniciar sua carreira de romancista e publicar a sua primeira voyage extraordinaire. Descrevemos anteriormente o episódio da “janela para as profundezas” de 20.000 léguas submarinas como um espetáculo teatral, com luzes que se apagam e acendem e “cortinas” que sobem e descem. Metáfora legítima, que não escapou a Jean-Paul Sartre, que ao rememorar as suas leituras de infância, descreveu os livros editados por Hetzel como “pequenos teatros cuja capa vermelha de borlas de ouro representava o pano de boca: a poeira de sol sobre as bordas, constituía a rampa. Devo a estas caixas mágicas – e não as frases equilibradas de Chateaubriand – meus primeiros encontros com a Beleza.”36 A metáfora se torna ainda mais legítima quando atentamos para o fato de que, inicialmente, as pretensões artísticas de Verne estavam voltadas para o teatro, tanto o teatro em prosa quanto o teatro musicado, seja na forma de óperas, operetas ou ópera- comique37. Entre 1847 e 1867, vinte e seis obras dramáticas de sua autoria foram escritas, publicadas e encenadas, com pouco ou nenhum sucesso. O seu fracasso neste mister não impediu que, mesmo mudando de orientação e passando a dedicar-se à escrita de romances, Verne conserve características nitidamente teatrais em sua prosa. Como observa Timothy Unwin38:

O teatro continua a ser uma presença constante na escrita de Verne: não apenas em seu espírito e em seus velozes crescendos, em seus confrontos dramáticos, em suas inversões e surpresas, suas soluções complicadas mas elegantes, e seus desfechos felizes; mas também em seu virtuosismo artificial e artificialidade teatral, seu senso de humor e jogos de palavras, seus diálogos coloridos e personagens excêntricos, suas circunvoluções lúdicas, seus ritmos de disfarces, revelação e reconciliação. A pura autoconsciência teatral da escrita de Verne nas Voyages extraordinaires muitas vezes leva-a para fora do assim chamado modo “realista” e de volta para o mundo simulado e artificial do vaudeville. (UNWIN, 2005, p. 96)

O fracasso transformou-se em sucesso a partir de sua mudança de rumo, transformando-o em dos mais bem-sucedidos autores de teatro de seu tempo ao adaptar alguns

36 SARTRE, Jean-Paul. As palavras. São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1967.

37 Gênero tipicamente francês, com origem no século XVIII, semelhante ao singspiel alemão, onde o diálogo falado se alterna com as árias musicais.

38 UNWIN, Timothy. Jules Verne, Journeys in Writing. Liverpool University Press, 2005

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de seus romances mais famosos para o palco. Este curioso processo de resgate do dramaturgo pelo romancista teve início com a estreia, em 7 de novembro de 1874, da versão teatral de A volta ao mundo em oitenta dias, escrita em parceria com Adolphe Dennery. “Empreendimento, para a época, pioneiro e insensato” (ANGELIER, p.191), era uma produção sem precedentes: complexa maquinaria cênica, que fazia uma locomotiva a vapor cruzar o palco, um navio gigantesco naufragar em uma réplica do canal de Suez, inúmeras mudanças de cena que alternavam paisagens exóticas, incluindo uma necrópole hindu e uma gruta repleta de serpentes (reais), enorme contingente de figurantes que representavam faquires, peles-vermelhas e selvagens de todas as etnias, sem contar o corpo de baile, e coroando a performance, um elefante de verdade em cena. Um absoluto sucesso, com quatrocentas e quinze representações apenas no primeiro ano de temporada, contabilizando mais de duas mil récitas da data de estreia até o ano de 1900. Jean Cocteau, Julian Green, Victor Hugo, Alphonse Daudet e outros ficaram maravilhados. Stéphane Mallarmé, no quarto número de sua famosa revista Le Derniére Mode39, recomendou a peça classificando-a de “conto de fadas, este drama, este atlas geográfico vivo”. No quinto número, o poeta de Un coup de dés torna a enfatizar a “magnificência da Volta ao mundo, seus incríveis cenários, drama e cenas de multidão”. E nos derradeiros sétimo e oitavo números, Mallarmé continuou a promover a peça:

Porte-Saint-Martin: Le Tour du monde en 80 jours vai fazer o Tour do ano em Paris. O que podemos dizer sobre isso? Ele deve ser visto. “A Caverna das Serpentes”, “Suttee indiano”, “Explosão e naufrágio de um navio”, “Índios Dawnie40 atacando um Trem”: são títulos maravilhosos, mas são eclipsados pela coisa real, por aquilo que eu chamo de teatro de conto de fadas! (MALLARMÉ, in FURBANK e CAIN, p. 202)

O teatro tornou Verne um homem rico, que chegou a receber, por ano, o triplo que o seu contrato com Hetzel proporcionava. O espetáculo inaugurou um novo gênero francês, a pièce à grand spectacle, entretenimento feérico e extravagante, que após o desastre da Guerra Franco Prussiana, tornou-se o divertimento escapista por excelência da burguesia parisiense. Segundo Jean-Michel Margot, “por décadas os parisienses assistiam essas peças exatamente como o público de hoje vai ao cinema assistir blockbusters” e que os espetaculares efeitos de cena poderiam ser considerados “os precursores dos efeitos especiais que Hollywood oferece

39 FURBANK, P.N., e CAIN, Alex. Mallarmé on Fashion: a Translation of the Fashion Magazine La Derniére Mode with Commentary. Oxford, Berg, 2004.

40 Mallarmé provavelmente queria dizer “pawnee”.

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atualmente ao público.”41 Nada mais natural que, ao levar este romance às telas de cinema em 1956, o produtor Michael Todd tenha traduzido a estrutura da féerie parisiense para a linguagem cinematográfica, valendo-se de todos os recursos que o recém-inventado sistema widescreen Todd-AO poderia amplificar42. É interessante observar outro fato que parece confirmar o caráter transmidiático da obra de Júlio Verne. A volta ao mundo em oitenta dias foi concebida simultaneamente como romance e peça teatral. Verne criou o enredo em 1871 e o dramaturgo Edouard Cadol escreveu um roteiro em 1872 com base nesse enredo, ao mesmo tempo que Verne escrevia o romance. Diante da recusa de vários diretores teatrais em produzir o espetáculo, começou a publicar a versão romanceada, primeiro como folhetim no jornal Le Temps, e mais tarde em livro, editado por Hetzel. O grande sucesso do romance tornou viável uma nova tentativa de levar a história aos palcos, mas dado o temperamento difícil de Cadol, Verne substituiu-o por Adolphe Dennery, dramaturgo de sucesso, especialista em féeries, cujo nome abria as portas dos teatros mais conceituados de Paris43. Outras voyages extraordinaires foram adaptadas para o palco, e a dupla Verne e Dennery estava entre as mais produtivas da época, tornando-se uma marca registrada no teatro comercial parisiense44. A última delas, realizada em 1882, não é exatamente uma adaptação, mas se vale de elementos de vários romances de Verne e é considerada a mais interessante de todas. Trata-se de Voyage à travers l’impossible, uma história original e a única das peças escritas por Verne e Dennery que pode ser classificada de fantasia e ficção científica. O personagem principal é o barão Georges de Travental, filho do capitão Hatteras. Em sua viagem extraordinária, desce ao centro da Terra no primeiro ato, ao reino submarino de Atlântida no segundo e dirige-se ao desconhecido planeta Altor no terceiro. Seu inimigo é o Doutor Ox, personagem de uma novela curta de Verne, protótipo da figura do cientista louco. Seu aliado é um Anjo Guardião chamado Volsius, que no primeiro ato aparece sob a forma de Otto Lidenbrock, no segundo como Capitão Nemo e no terceiro como Michel Ardan, protagonista de Viagem ao redor da Lua. Antecipando uma prática comum da literatura steampunk, Verne se utiliza aqui dos procedimentos da ficção recursiva, ou transficcionalidade, misturando personagens de seu próprio universo romanesco. “É

41 MARGOT, Jean-Michel. “Jules Verne, Playwright”, in Science-Fiction Studies XXXII:1 (March 2005), p. 154.

42 Around the World in 80 Days, dir. Michael Anderson. Michael Todd Company/Warner Brothers, 1956

43 UNWIN, Timothy. Jules Verne, Journeys in Writing. Liverpool University Press, 2005, p. 189-190.

44 CHARLE, Christophe. A gênese da sociedade do espetáculo. São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 144.

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irônico que a narrativa mais evidentemente de ficção científica em toda a vasta obra de Verne seja uma peça, e não um romance, e que permaneça amplamente desconhecida nos dias de hoje” (MARGOT, 2005, p. 156). Mas nenhuma das peças da parceria Verne-Dennery alcançou sucesso tão estrondoso e tão duradouro quanto Le Tour du monde. Verne acompanhava todo o processo de encenação, assistia os ensaios e interferia na escolha dos atores que encarnariam seus personagens. Demonstrava uma preocupação e um interesse pelas questões práticas da adaptação cênica de seus romances análogos aos que demonstrava no tocante às ilustrações de seus livros. Sua obra foi produzida em um momento histórico peculiar, em uma Paris que era verdadeiramente uma “sociedade do espetáculo”, onde romances transformavam-se em peças teatrais e vice-versa, onde os dispositivos visuais como panoramas e dioramas – antecessores do cinematógrafo – espalhavam-se pela cidade45, e onde a imprensa ilustrada, como já vimos, desenvolveu-se de forma notável. Embora a reabilitação da qualidade especificamente literária da obra de Júlio Verne já venha sendo feita desde a década de 50 e inúmeros estudos importantes tenham insistido neste ponto, como o já citado livro de Timothy Unwin, para os propósitos de nosso trabalho é fundamental assinalar as características transmidiáticas de sua obra. Podemos então concordar com Françoise Schiltz quando afirma que, do mesmo modo que Verne “reconheceu o potencial de suas histórias para as mídias visuais, ele também estava consciente de que seus romances, peças e contos eram uma fonte popular para os primeiros cineastas” e que “existe uma importante ligação entre Verne, a prática das adaptações e a emergência do cinema.”46 E de fato, em 1902, dois anos após a versão teatral de La Tour du monde ultrapassar o número de duas mil apresentações, havia chegado a hora da recém-nascida arte cinematográfica prestar o seu tributo à obra de Verne. George Méliès realiza o filme Voyage dans la lune, cujo roteiro, também antecipa uma prática comum da literatura steampunk: é inspirado tanto em Verne, texto e ilustrações, quanto no romance First Men in the Moon, de seu rival britânico H.G. Wells. O fato de Méliès se reportar constantemente as gravuras originais para compor os cenários confirma a tese de Arthur B. Evans sobre o caráter cinematográfico embutido em sua concepção. Em Méliès, a “janela para as profundezas”, ou para o espaço sideral, já abandona o proscênio e se transfigura no écran onde o cinematógrafo imprime suas imagens em movimento. Méliès ainda adaptaria outros romances e peças de

45 TOULET, Emmanuelle. O cinema, invenção do século. Objetiva, n/d. Na página 27, são listados vinte e oito sistemas anteriores ao cinematógrafo e posteriores ao panorama e ao diorama.

46 SCHILTZ, Françoise. The Future Revisited: Jules Verne on screen in 1950 s America. Gosport, Chaplin Books, 2011.

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Verne, como Voyage à travers l’impossible (1904), 20000 lieues sous les mers (1907), muito livremente inspirada no romance homônimo, e À la conquête du pôle (1912), considerado por alguns críticos a sua obra-prima, e no qual trabalha temas retirados de quatro romances de Verne: Robur, o conquistador, O senhor do mundo, Capitão Hatteras e A esfinge dos gelos. E a partir da data de estreia de Voyage dans la lune até o presente ano de 2014, a obra de Verne inspirou pelo menos 156 filmes,47 alguns inclusive realizados por seu filho, Michel48. Ou seja, a longeva tradição de adaptações cinematográficas da obra de Verne começou ainda em vida do escritor. Mas foram necessários cinquenta e dois anos após a experiência pioneira de Méliès para que o cinema novamente produzisse imagens poderosas o suficiente para serem entronizadas no panteão da iconografia verniana, ocupando uma posição de destaque no “colossal carnaval visual” de que fala Angelier, ao ponto de, em sua concepção, originar e definir todo um subgênero da ficção científica, como veremos mais adiante.

1.4 A invenção de um gênero

Como demonstramos, a obra de Verne possui esta capacidade singular de gerar imagens a partir dos textos, e que por sua vez geram novas imagens e novos textos, em diferentes mídias, que passam a integrar, por sua vez, o corpus verniano. Um exemplo de acréscimo – ou deslocamento de sua posição original – de uma imagem a este corpus é o suposto aeróstato utilizado por em sua volta ao mundo em oitenta dias. Não existe tal meio de transporte no romance, a não ser como breve menção no capítulo XXXII, justamente sobre a impossibilidade de sua utilização: “Mas era preciso dar um jeito de atravessar o Atlântico de barco, a não ser que o atravessassem de balão, o que teria sido bastante ousado, porém impossível.”49Mas como a estreia literária de Verne se deu com uma aventura balonística, o produtor teatral Bolossy Kiralfy, especialista em musical extravaganzas50 e responsável pela estreia norte-americana da versão teatral, pensou que a

47 http://www.imdb.com/name/nm0894523/. Acesso em 10/2014

48 TAVES, Brian. “The Novels and Rediscovered Films of Michel (Jules) Verne”. Journal of Film Preservation, No. 62, 2001

49 VERNE. Júlio. A volta ao mundo em oitenta dias. São Paulo, Melhoramentos, 1996, p. 263.

50 Seria o equivalente norte-americano da féerie parisiense.

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inserção deste veículo – vale dizer: desta imagem – seria de um efeito cênico irresistível: “Quando Verne me contou a sua história pela primeira vez, eu pedi que ele acrescentasse uma viagem de balão através das montanhas. Nós a simulamos com um balão real de gás hélio controlado por fios invisíveis”51. O famoso filme de Michael Anderson produzido por Michael Todd em 1956, que traduziu para a linguagem do cinema e para o sistema de projeção widescreen a estrutura da extravaganza, imortalizou a imagem do balão associada à aventura de Fogg, mas, como ficou demonstrado, o principal responsável por isso havia sido o próprio Verne. A clássica versão cinematográfica de 20.000 léguas submarinas, dirigida por Richard Fleischer e produzida pelos estúdios Disney em 1954, acontece em um momento peculiar da recepção da obra de Verne nos países de língua inglesa, em particular nos Estados Unidos. Como já havíamos assinalado, no período imediatamente posterior a Primeira Guerra Mundial os livros de Verne conheceram um certo ostracismo na França devido à descrença dos europeus no discurso científico otimista. Discurso que o próprio Verne, a partir da publicação de Robur-le-Conquérant em 1886 ou mesmo do romance distópico Les Cinq Cents Millions de la Bégum em 1879 já não subscrevia. Antes deste processo de esquecimento, em 1914, o filho de Hetzel vendeu os direitos de publicação das Voyages Extraordinaires para a editora Hachette, que procurando aumentar suas vendas, editou os romances mais populares de forma substancialmente abreviada na Bibliothèque Verte, coleção destinada às crianças do sexo masculino, cuja contraparte feminina era a Bibliothèque Rose. Esta estratégia mercadológica foi altamente bem-sucedida financeiramente, de modo que a crítica literária francesa, a partir deste momento, começou a construir o mito de Júlio Verne como escritor infantil, o que contribuiu enormemente para desqualificar sua obra e alijá-la do cânone literário. Teriam os editores da Hachette se inspirado em seus colegas ingleses e norte- americanos? Pois o direcionamento da obra de Verne para o público infanto juvenil sempre foi a primeira realidade nos países de língua inglesa, seus livros sempre sofreram com traduções problemáticas, drasticamente reduzidas, onde o teor científico era tão adulterado que nem mesmo uma boa reputação de divulgador da ciência lhe era concedida. Em um ensaio52 sobre os problemas das traduções de Verne para o inglês, Arthur B. Evans observa:

51 KILRAFY, Bolossy e BARKER, Barbara M. Bolossy Kiralfy, creator of great musical spectacles: an autobiography. UMI Research Press, 1988, p. 98.

52 EVANS, Arthur B. “Jules Verne’s English Translations” in Science Fiction Studies XXXIII: 1, N. 95. Greencastle, DePawn University, 2005. p. 80-104.

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Editores americanos e britânicos adotaram muitas das bem-sucedidas estratégias de Hetzel, mas eles optaram por promover as traduções em língua inglesa de Verne exclusivamente para um público juvenil. E o fizeram de três maneiras: em elegantes edições de luxo encadernadas a pano que poderiam ser oferecidas como presentes de Natal, em edições colecionáveis como as da série “Every Boy’s Library” da Routledge, ou em revistas seriadas como The Boy’s Own Paper (um periódico popular para adolescentes que teve início no final dos anos 1870 e lembra um pouco o próprio Magasin d’Education et de Récréation de Hetzel). Teriam os editores dessas editoras de língua inglesa deliberadamente reduzido, simplificado e “limpado” as narrativas de Verne, a fim de realçar o seu apelo a esse público jovem? Ou foram os manuscritos da tradução que eles receberam para publicação, considerados tão pouco sofisticados em conteúdo e estilo, que apenas os adolescentes e pré-adolescentes poderiam razoavelmente ser os seus leitores-alvo em potencial? É impossível saber. Mas seja qual for a sequência desses eventos, o resultado foi o mesmo: as obras de Verne foram comercializados principalmente para meninos britânicos e americanos. E, até muito recentemente, sua reputação literária entre os leitores adultos sofreu proporcionalmente. (EVANS, 2005, p. 83)

Mas como observou o escritor e crítico de ficção científica Brian Stableford53, estas edições, a despeito de todos os problemas, ajudaram a popularizar o escritor, produziram várias imitações destinadas majoritariamente ao público infantil e, ao mesmo tempo, influenciaram não apenas as dime novels norte-americanas, histórias de aventuras direcionadas para meninos e oferecidas a preço irrisório, como forneceram os alicerces para o desenvolvimento posterior da pulp science fiction. O gênero predominante das primeiras dime novels era o , e a primeira dime novel de ficção científica, publicada em 1868, portanto um ano depois de o New York Weekly editar a primeira tradução americana de um livro de Verne, From Earth to the Moon54, foi The Steam Man of the Prairies, de Edward S. Ellis. Esta história de um homem mecânico movido a vapor55 em um cenário de faroeste era supostamente baseada em um fato: em janeiro de 1868, na cidade de Newark, Nova Jersey, os inventores Zadoc P. Dederick e Isaac Grass fizeram uma demonstração de uma carruagem puxada por um autômato a vapor56. Em 1876 esse personagem foi plagiado pelos escritores Harry Enton e Frank Tousey na novela Frank Reade and His Steam Man of the Plains, que deu origem às séries Frank Reade e Frank Reade Jr., esta última escrita por Luis Philip Senarens, escritor de origem cubana, alcunhado o “Júlio Verne da América”. De fato, uma das

53 STABLEFORD, Brian. Science Fact and Science Fiction. New York, Taylor and Francis Group, 2006, p. 550.

54 EVANS, Arthur B. A Bibliography of Jules Verne's English Translations in Science Fiction Studies XXXII:1 N.95, 2005, p.108.

55 Robôs e veículos a vapor serão uma constante nas dime novels de ficção científica, daí a tese de que estas publicações seriam a origem do gênero steampunk.

56 NOCKS, Lisa. The Robot: The Life History of a Technology. Greenwood Press, 2007, p. 50.

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aventuras escritas por Senarens, Frank Reade, Jr., and His Queen Clipper of the Clouds data de 1893, seis anos após a publicação da primeira tradução de Robur-le-conquérant, cujo título em inglês era justamente The Clipper of the Clouds. As treze ilustrações desta dime novel não deixam nenhuma dúvida quanto a natureza do projeto: trata-se de um plágio da obra de Verne, e apenas a ilustração da capa não é idêntica às gravuras originais de Léon Bennet57, que teve a sua assinatura apagada em todas as outras. Os editores não viram nenhum inconveniente, por exemplo, em plagiar uma ilustração que mostra o Albatroz sobrevoando Paris e escrever uma legenda dizendo tratar-se da Cidade do México! Diante disso, a tese do escritor e historiador da ficção científica David A. Kyle, citado por Roberto de Souza Causo em sua Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950, que tenta provar que Luis Senarens influenciou Verne na concepção de La Maison à vapeur (1879) e Robur-le-conquérant dificilmente se sustenta58. No caso de Robur, o plágio de Senarens é indiscutível. Com relação a La Maison à vapeur, o próprio Kyle admite que a primeira versão do Steam Man passou desapercebida no mercado americano, vindo a ser plagiada por Enton e Tousey oito anos depois e retomada por Senarens no mesmo ano em que o romance de Verne era publicado na França. Não há provas de que Verne tenha tomado conhecimento desses textos e nem provas de que Verne tenha escrito uma “carta amigável” para Senarens59. Podemos até admitir alguma influência deste tipo de dime novel no steampunk, mas a sombra de Júlio Verne, texto e imagem, é por demais evidente para ser ignorada. O período de ouro das dime novels, segundo The Encyclopedia of Science Fiction60 foi entre 1880 e 1900, quando a fama de Verne já estava consolidada e seus livros já eram

57 O site da biblioteca da University of South Florida disponibiliza estas dime novels digitalizadas: http://digital.lib.usf.edu/frankreadelibrary/all. Para comparar as ilustrações, ver Frank Reade Jr. and the Queen Clipper of the Clouds, em http://scholarcommons.usf.edu/cgi/viewcontent.cgi? article=1033&context=litbookarts_pubs e Robur-le-conquérant, em http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6512278z/f1.planchecontact.r=Robur-le- conqu%C3%A9rant%20%20par%20Jules%20Verne. Acesso em 16/10/2014

58 Esta tese é endossada por Sam Moskowitz em Explorers of the Infinite (1963), por Garyn G. Roberts em The Prentice Hall Anthology of Science Fiction and Fantasy (Longman, 2000, p. 370), e pelo site do escritor Paul Guinan, http://www.bigredhair.com/frankreade/family.html, que atualizou as aventuras do personagem Frank Reade. Guinan, inclusive, abre um link para as gravuras de Frank Reade, Jr., and His Queen Clipper of the Clouds, aparentemente sem se dar conta de que elas são da autoria de Léon Bennett e pertencem, de fato, à Robur-le-conquérant.

59 CAUSO, Roberto de Souza. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950. Belo Horizonte, UFMG, 2003, p. 129.

60 NICHOLS, Peter. “Dime Novels and Juvenile Series” in The Encyclopedia of Science Fiction, New York, Doubleday & Company, 1979, p. 171.

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praticamente traduzidos, ainda que de maneira problemática, no mesmo ano em que eram lançados na França. Com o declínio das dime novels, surgiu um novo tipo de literatura de entretenimento, fundamental para o estabelecimento do gênero da ficção científica nos Estados Unidos: os pulp magazines. Diferentemente das dime novels, que apresentavam histórias completas em trinta e duas páginas, os pulps continham uma média de cinco histórias seriadas, escritas por diferentes autores, em um total de duzentas páginas. Desde o início do século XX, existiam pulps dedicados quase que exclusivamente a “romances científicos”, como por exemplo o All- Story Magazine, que em 1912 publicou a primeira aventura do “ciclo marciano” de Edgar Rice Burroughs, Under the Moon of Mars61. Mas foi apenas em 1926 que o escritor Hugo Gernsback deu o passo decisivo não apenas para a consolidação do gênero nos Estados Unidos, mas também para cunhar o seu nome definitivo, com a publicação do primeiro número da Amazing Stories, cujo subtítulo era The Magazine of Scientifiction. Na capa desta edição, Gernsback anunciava histórias de H.G.Wells, Jules Verne e Edgar Allen (sic) Poe. Seu conceito de scientifiction se apoia nesta tríade de escritores, sendo este o primeiro passo para conceituar e estabelecer uma história do gênero que, na prática, ele acabava de inventar. Em seu ensaio para The Cambridge Companion to Science Fiction62, Brian Attebery comenta:

A Amazing de Gernsback, no entanto, foi pioneira não apenas em limitar o seu conteúdo a histórias de extrapolação científica e aventuras espaciais, mas também a primeira a tentar definir o gênero que o seu editor inicialmente denominou scientifiction, mas que em 1929 começou a chamar de science fiction. Um editorial no primeiro número clamava por mais exemplos de “histórias típicas de Jules Verne, H.G. Wells e Edgar Allan Poe – romances fascinantes misturados com fatos científicos e visão profética”. Ao destacar e republicar alguns destes escritores, Gernsback os transformou em autores de FC a posteriori, inventando uma tradição para apoiar suas ambições. Ele esperava que tais histórias poderiam “fornecer um conhecimento que não poderíamos obter de outra forma – e fornecê-lo de uma forma bastante palatável”. Em outras palavras, a FC, como ele entrevia, era primordialmente uma ferramenta de ensino, mas que não tornava o seu ensino óbvio. (ATTEBERY in JAMES e MENDELSOHN, 2003, p. 33)

Duas coisas ficam bastante evidentes a partir desta análise. A primeira, sem sombra de dúvida, é a semelhança do projeto de Gernsback em 1926 com o projeto de Hetzel em 1864. Como vimos, Hetzel afirmou, em seu prefácio para a edição em livro de Voyages et Aventures

61 BOYER, Alan-Michel. A paraliteratura. Porto, Rés-Editora, n/d, p. 99

62 ATTERBERY, Brian. “The magazine era: 1926-1960” in JAMES, Edward e MENDELSOHN, Farah. The Cambridge Companion to Science Fiction. Cambridge University Press, 2003.

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du capitaine Hatteras que Verne havia criado “um novo gênero”. Vejamos o que diz Gernsback no editorial de apresentação do primeiro número de Amazing Stories63:

Outra revista de ficção! A princípio parecia impossível que pudesse haver espaço para outra revista de ficção neste país. O leitor pode se perguntar: “Já não há o bastante, com as várias centenas que agora estão a ser publicadas?” É verdade. Mas esta não é “outra revista de ficção,” AMAZING STORIES é um novo tipo de revista de ficção! É inteiramente nova, completamente diferente, algo que nunca foi feito antes neste país. Portanto, AMAZING STORIES merece sua atenção e interesse. (GERNSBACK, 1926, p. 3)

Após lembrar da “sempre crescente demanda por este tipo de história”, Gernsback esboça pela primeira vez os pressupostos de uma história da literatura de ficção científica, citando os nomes ilustres de Edgar Allan Poe (ao qual atribui o título de “pai da scientifiction”), Júlio Verne e H.G. Wells como founding fathers. E fazendo um apelo similar ao que Hetzel fizera sessenta e dois anos antes, quando este escreveu que devido ao aumento do interesse público pelas conquistas científicas, era chegado o momento da “ciência ocupar o seu lugar na esfera literária”, de modo “atraente e pitoresco”, oferecendo “educação que entretém e entretenimento que educa”, Gernsback utiliza uma retórica mais exuberante, mais otimista e, por que não dizer, mais americana:

É preciso lembrar que vivemos em um mundo inteiramente novo. Há duzentos anos, histórias deste tipo não seriam possíveis. A ciência, através dos vários ramos da mecânica, eletricidade, astronomia, etc., entra tão intimamente em nossas vidas hoje, e estamos tão imersos nesta ciência, que nos tornamos um pouco propensos a tomar como certas as novas invenções. Todo o nosso modo de vida mudou com o progresso atual, e não é de admirar, portanto, que muitas circunstâncias fantásticas- impossíveis há 100 anos – são trazidas hoje. É nestas circunstâncias que os novos romancistas encontram a sua grande inspiração. Estes contos incríveis não apenas tornam a leitura tremendamente interessante – eles também são sempre instrutivos. Eles fornecem um conhecimento que não poderíamos obter de outro modo – e o fazem de uma forma bastante palatável. Pois os melhores destes escritores de scientifiction tem o dom de transmitir conhecimento, e até mesmo inspiração, sem que nos tornemos conscientes de que estamos sendo instruídos. (GERNSBACK, 1926, p. 3)

Se os europeus em geral, e franceses em particular, não tinham nenhum motivo para, nas primeiras décadas do século XX, aceitar o “romance científico”64 como instrumento didático da mesma forma que o aceitaram na segunda metade do século XIX, o mesmo não se

63 GERNSBACK, Hugo. “A New Sort of Magazine” in Amazing Stories n.1, vol.1. New York, Experimenter Publishing, 1926. Exemplar digitalizado disponível em http://www.pulpmags.org/default.htm.

64 O termo scientific romance era usado, geralmente, na Grã-Bretanha para designar a proto-ficção científica de um H.G. Wells, por exemplo. Os livros de Julio Verne eram denominados voyages extraordinaires. Mais tarde, como veremos, a crítica francesa, no sentido de reabilitar a obra de Verne, vai falar em roman scientifique.

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pode dizer dos norte-americanos. “O romance científico (na Europa) começou o seu declínio nos primeiros anos do século vinte, consumado na Primeira Guerra Mundial, quando as esperanças expressadas pela ficção futurística pré-guerra se tornaram absurdas” (STABLEFORD, 2006, p. 468). Mas na América a visão era diferente. “O surgimento e o sucesso da ficção científica americana na década de 1920”, diz Françoise Schiltz, “coincidiu com o aceleramento da industrialização e da pesquisa científica, expressando a fé e a confiança dos americanos em uma sociedade materialista” (SCHILTZ, 2011) E Brian Stableford, alhures65, arremata:

Pelo fato de os Estados Unidos terem entrado tardiamente na Primeira Guerra Mundial e permanecido afastado dos campos de batalha, a interrupção da tradição americana de ficção especulativa foi menos pronunciada. E, ainda mais importante, o efeito da guerra nas atitudes dos americanos perante o progresso tecnológico foi muito menos cáustico. (STABLEFORD in JAMES; MENDELSOHN, 2003, p. 28)

Pode-se, portanto, estabelecer uma analogia, guardadas as devidas proporções, entre a crença no progresso científico professada na França da Terceira República e o entusiasmo norte-americano por esse progresso no pós-guerra. Deixando claro desconfiar das “generalizações simplistas dos historiadores sociais”, Gary Westfahl em seu estudo sobre The Time Machine66, divide, “para fins de argumentação”, a história da América do Norte e da Europa Ocidental, a partir da data de publicação do romance de Wells, em três períodos. Neste ponto, interessa-nos o primeiro:

O tempo entre 1895 e 1930 pode ser chamado de Era de Otimismo Científico: todos os tipos de novas maravilhas tecnológicas – dispositivos elétricos, rádio, automóveis, aviões – tinham aparecido de repente, um grande número de inventores amadores, seguindo o exemplo de Thomas Alva Edison, estavam explorando as possibilidades criadas por essas inovações e as perspectivas para futuras melhorias em todas as áreas da vida pareciam ilimitadas. Em seguida, a Grande Depressão de 1929 e o colapso da economia mundial, aparentemente eliminaram todas as chances para soluções rápidas e fáceis, científicas ou não, para os problemas fundamentais, de modo que as pessoas foram obrigadas a retornar para os atributos de seus antepassados: trabalho duro, violência contra os inimigos, e uma vigilância constante contra possíveis ameaças. (WESTFAHL, 2000, p. 129)

65 STABLEFORD, Brian. “Science Fiction before the genre” in JAMES, Edward e MENDELSOHN, Farah. The Cambridge Companion to Science Fiction. Cambridge University Press, 2003.

66 WESTFAHL, Gary. “Partial Derivatives: Popular Misinterpretations of H.G. Wells’s The Time Machine” in ___, Science Fiction, Children’s Literature and Popular Culture. Westport, Greenwood Press, 2000.

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É certo que, abstraindo a própria generalização feita por Westfahl “para fins de argumentação”, o período de otimismo compreendido entre 1918 e 1930 só pode dizer respeito, como já vimos, aos Estados Unidos. E Gernsback, ele mesmo um inventor e empresário do ramo da eletrônica, tendo começado a sua carreira editorial com publicações técnicas que também abrigavam textos de ficção, foi um dos mais ativos divulgadores desta “nova era”. E é interessante analisar rapidamente o conteúdo do primeiro número da Amazing Stories. Em primeiro lugar, vemos uma propaganda de um curso de rádio por correspondência ministrado pelo National Radio Institute de Washington, DC. Depois, na folha de índice, um desenho da escultura tumular de Júlio Verne, com a seguinte legenda: “Jules Verne’s Tombstone in Amiens portraying his immortality”. Este desenho e sua legenda vão encimar a folha de índice do periódico por, pelo menos, dois anos, não deixando dúvidas quanto ao patronato intelectual do projeto. No índice, coluna da esquerda, três histórias dos founding fathers, eleitos por Gernsback, do novo gênero da scientifiction: - or Hector Servadac67, de Júlio Verne, publicada em duas partes; The New Accelerator, de H.G. Wells, e, encerrando o primeiro número, The Facts in the Case of Mr. Valdemar, de Edgar Allan Poe, além de três republicações de contos de autores hoje esquecidos. Na coluna da direita, anuncia-se o conteúdo do segundo número: a conclusão de Off on a Comet, a primeira parte de A Trip to the Center of the Earth68, de Verne; The Crystal Egg, de Wells, e mais dois contos inéditos, um deles de Murray Leinster. Ao final do número, uma propaganda dos cursos (presenciais) da Coyne Electrical School, de Chicago. Embora nenhum texto de Poe seja anunciado, o segundo número publicou o conto Mesmeric Revelation, e nenhum de Wells. Anuncia mais um conto de Poe para o terceiro número, mas temos Wells de volta com The Star e nenhum de Poe. No quarto número, os três retornam juntos mas, a partir do quinto número, Poe deixa de ser publicado e a partir do nono, segundo o levantamento feito pelo estudioso canadense Andrew Nash69, Verne também deixará de ser publicado por um ano, voltando em dezembro de 1927 e após quatro números, somente em 1929 por mais três números. Em 1933, a revista publica Master Zacharius e, em 1934, por sugestão de um leitor, apresenta a já famosa ilustração da tumba de Verne na capa. Este número marca as últimas

67 Embora Gernsback não informe o nome do tradutor, ele utilizou o texto da edição inglesa da Sampson Low, de 1877, traduzida por Ellen E. Frewer e republicada nos Estados Unidos em 1911 por Charles F. Horne. Ver EVANS, Arthur B. “A Bibliography of Jules Verne's English Translations” in Science Fiction Studies XXXII:1 N.95, 2005, p.122

68 Tradução de autoria desconhecida, publicada pela primeira vez em 1871, pela Griffith & Farran em Londres, e abreviada por Charles F. Horne em 1911. Ver EVANS, 2005., p. 106.

69 http://www.julesverne.ca/jvpulp.html.

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aparições de histórias de Verne na Amazing Stories: Measuring the Meridians (Aventures de trois Russes et de trois Anglais dans l’Afrique australe), dividida em quatro partes. Apesar de, no editorial do primeiro número, Gernsback anunciar o propósito de publicar todos os romances de Verne (GERNSBACK, 1926, p. 3), é a imagem do seu sepulcro que será mais longeva. Como observa Mike Ashley em seu livro The Time Machines: The Story of the Science-Fiction Pulp Magazines from the Beginning to 1950, “era uma firme convicção de Gernsback – e ela sempre assim permaneceu – que os leitores seriam instruídos através da ficção científica. Infelizmente, era difícil sustentar esse princípio com textos de qualidade” (ASHLEY, 2000, p. 50). Ao longo dos primeiros quinze anos, Gernsback mudaria a sua ênfase em histórias que fossem simultaneamente divertidas e instrutivas, e passaria a privilegiar o entretenimento antes de qualquer outra coisa. Os leitores, segundo Ashley, “queriam mais do que ficção educativa. Eles queriam entretenimento, escapismo, experimentar aquele sentimento de terror e maravilhamento que a boa ficção visionária provoca” (ASHLEY, 2000, p. 50) Isto já estava claro, apesar do editorial, logo no primeiro número:

A primeira edição foi um mix razoável. A escolha da história de Verne foi, talvez, estranha, mas se era necessário qualquer prova de que Gernsback estava abandonando a precisão científica em favor da aventura era esta. Off on a Comet— or Hector Servadac é sem dúvida um dos romances menos cientificamente plausíveis de Verne. Gernsback admite isso em sua sinopse introdutória: “o autor aqui abandona sua costumeira atitude escrupulosamente científica e dá a sua fantasia a mais livre rédea”. Após resumir o enredo do livro, Gernsback diz: “Todos estes acontecimentos pertencem ao domínio do reino das fadas” (...) A história de H.G. Wells escolhida foi The New Accelerator e, em mais de um sentido, é o ideal de história de Gernsback. Ela não apenas descreve uma nova invenção – uma droga que acelera as percepções de quem a toma – mas encaixa-se como uma “história fascinante”. Wells era, obviamente, um mestre nisto, e não é de surpreender que Gernsback tenha selecionado uma história de Wells para cada um dos primeiros 29 números. (ASHLEY, 2000, p. 50-51)

Portanto, por razões históricas e comerciais, as semelhanças entre o projeto de Gernsback e o de Hetzel terminam aí. Mas o destino do gênero inventado por Gernsback foi, de certa forma, semelhante ao de Verne no pós-guerra: do mesmo modo que, por obra de edições abreviadas e/ou mal traduzidas, Verne passou a ser identificado como um autor para o público infanto juvenil, as capas sensacionalistas e de cores berrantes da Amazing Stories, desenhadas por Frank R. Paul, desqualificavam prontamente as intenções sérias e didáticas professadas inicialmente por Gernsback, além de provocar “impressões erradas nos pais,

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sugerindo que esta era uma literatura prejudicial para seus filhos, o mesmo público que Gernsback queria estimular” (ASHLEY, 2000, p. 55). A segunda coisa que fica evidente no projeto inicial de Gernsback para quem se pretenda pesquisar as origens e definições do steampunk é que, ao inventar um novo gênero70 e, consequentemente, dar os primeiros passos na invenção de sua árvore genealógica71, ele também fornece o primeiro esboço daquilo que, posteriormente, será considerado parte integrante de uma árvore genealógica do steampunk. Pois os founding fathers da ficção científica como um todo, eleitos por Gernsback, não são outros que não aqueles que, ao lado de Conan Doyle, Edgar Rice Burroughs, Bram Stoker e outros, formarão o paideuma da literatura steampunk, em um movimento reversivo bastante curioso. Pois, em princípio, não parece fazer sentido que Verne, Wells e Poe sejam os “pais da ficção científica” e ao mesmo tempo, os “pais do steampunk”, a não ser no sentido de este último ser uma modalidade muito específica do primeiro, estando portanto, contido naquele. Mas quando Gernsback estabelece esta paternidade, ele olha para a frente, a partir desta ilustre progenitura, enquanto o steampunk olha para trás, de volta às origens, tentando fazer do passado um futuro hipotético, ou “um re-visionamento do passado com a percepção hipertecnológica do presente”, segundo o anônimo editorial do primeiro número do periódico Steampunk Magazine. De qualquer forma, graças à Gernsback, foi Júlio Verne quem permaneceu indiscutivelmente, na memória coletiva, como o “pai da ficção científica”, mesmo que menos de um quarto de sua obra possa ser de fato classificada como tal. Não esqueçamos que Gernsback salientou a importância da “visão profética” à qual o nome de Verne é até hoje associado, ao contrário de Poe e, em um certo sentido, Wells. A importância de H.G. Wells no desenvolvimento da ficção científica e do imaginário associado ao steampunk é incontestável, e é óbvio que suas distopias não carecem de “visão profética”. Mas no contexto histórico da criação do gênero através de pulp magazines como os de Gernsback, em plena Era do Otimismo Científico, “visão profética” tinha uma conotação eminentemente positiva, significava a antevisão das maravilhas por vir, por obra e graça do progresso científico.

70 Em 1923, Gernsback havia usado a expressão scientific fiction em um número especial da revista Science and Invention. Com o lançamento da Amazing Stories, passa a se referir ao gênero como scientifiction. A expressão science fiction será utilizada pela primeira vez na seção de cartas dos leitores na edição de junho de 1927 da Amazing, e a partir da publicação da revista Science Wonder Stories, seu uso será generalizado e consagrado para designar o gênero (cf. ASHLEY, 2000, p. 66)

71 Fredric Jameson, em Pós-Modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio, ironiza o fato de que a FC é um subgênero que tanto pode ser “expandido e dignificado pelo acréscimo de toda a literatura satírica e utópica a partir de Luciano”, mas também “restringido e degradado para incluir apenas os romances de aventura sensacionalistas”

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Gernsback sustentou esta posição mesmo no período da Grande Depressão. Seu editorial para o número de julho de 1931 da revista Wonder Stories, intitulado “Wonders of the Machine Age”72, ridicularizava as previsões catastróficas enunciadas pelos inimigos da tecnologia, que atribuíam à Era das Máquinas a responsabilidade pelo desemprego e o caos social. Fazendo uma extensa lista de previsões alarmantes que, até 1931 não haviam se cumprido, como o fim do trigo, o fim do petróleo, o fim dos empregos e das ferrovias e até mesmo o fim dos cavalos, Gernsback investe contra os autores de FC pessimista e distópica:

E o que tudo isso tem a ver com ficção científica? Apenas isto: a ficção científica é baseada no progresso da ciência; ESTE É O SEU VERDADEIRO FUNDAMENTO. Sem isso, não pode haver ficção científica. (...) nos últimos meses nós temos recebido certo número de histórias de ficção científica, provavelmente alimentadas pelo clima de desemprego, e que eu tenho rejeitado porque elas distorcem os fatos e, em muitos casos, são pura propaganda contra a Era das Máquinas. (...) A trama usual subjacente é que, por causa da concentração capitalista da riqueza, as máquinas serão, no fim das contas, controladas por uns poucos poderosos que escravizarão o mundo inteiro em detrimento da humanidade. (...) esta situação ainda não aconteceu e, pelas experiências passadas, sabemos que nunca acontecerá. E é por esta razão que a WONDER STORIES, no futuro, não publicará este tipo de propaganda que tende a inflamar um público irracional contra o progresso da ciência, contra máquinas úteis, e contra invenções em geral. (GERNSBACK, 1931, p. 151, 284-286)

Gernsback, obviamente, estava errado. Justamente porque a Era do Otimismo Científico havia se encerrado ao longo da sucessão de eventos históricos pouco auspiciosos como a Grande Depressão, Segunda Guerra Mundial, Guerra Fria e a ameaça de uma terceira guerra com armas nucleares, a ficção científica renovou-se e tomou caminhos diversos dos que ele preconizava. Este é, talvez, outro ponto de semelhança com o ideário de Pierre-Jules Hetzel. O segundo romance escrito por Verne, Paris au XXe siècle, foi rejeitado pelo editor francês sob a alegação de imaturidade para tratar do tema. Trata-se de uma trágica história futurista, ambientada em uma Paris distópica na década de 60 do século XX, uma espécie de Brave New World avant-la-lettre, surpreendente na antevisão de vários problemas da sociedade contemporânea, como o rebaixamento das artes, a massificação da educação com propósitos utilitários, a robotização do ser humano, a masculinização da mulher e o poder político concentrado em corporações multinacionais. Alguns críticos alegam que Hetzel havia recusado o romance por este, em sua visão sombria do futuro, não se enquadrar em sua

72 GERNSBACK, Hugo. “Wonders of the Machine Age” in Wonder Stories, vol. 3, n. 2. New York, Stellar Publishing, 193, p. 151, 284-286.

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proposta editorial e pedagógica. Não há provas de que tenha sido assim73, e a carta de Hetzel à Verne fala apenas que o livro está “abaixo do nível de Cinco semanas em um balão”, que nele “não há uma única questão sobre o futuro real que esteja devidamente resolvida, nenhuma crítica que já não tenha sido feita e refeita antes”, que é “sem brilho e sem vida” e que se fosse publicado “seria um desastre para a sua (de Verne) reputação”. E, em uma anotação feita no manuscrito original, Hetzel afirma: “Meu caro Verne, mesmo que você seja um profeta, ninguém hoje em dia vai acreditar em sua profecia..simplesmente não há interesse”74. O Hugo Gernsback de 1926 concordaria com Hetzel, mas o Hugo Gernsback de 1931 teria motivos para acreditar que, diante da crise pela qual o mundo passava, “um público irracional” não deveria ser “inflamado” com esses pensamentos pessimistas. Mas não se pode ignorar que a leitura que Gernsback fez de Verne é bastante parcial. Paris au XXe siècle, publicado apenas em 1995, se deixa bastante claro que o seu autor não era desprovido de “visão profética”, também deixa muito claro que ele não era exatamente o apóstolo da ciência que a mitologia popular, alimentada por Gernsback e outros, consagrou. E mesmo que o manuscrito original nunca viesse a ser encontrado, percebe-se na obra de Verne publicada a partir de 1880 uma mudança de tom, um viés mais sombrio, uma desconfiança da capacidade do ser humano em fazer um bom uso da tecnologia. Esse segundo Verne se torna mais próximo de Wells, e vai pavimentar os caminhos que a ficção científica tomará, incluindo os subgêneros cyberpunk e steampunk. Pois, como diz ainda Françoise Schiltz, “as diferentes interpretações da obra de Verne em diferentes épocas e em diferentes países mostram que a produção de sentido não depende de um único significado do texto em si, mas da situação na qual ele é consumido e das necessidades e valores que ele incorpora para seus leitores” (SCHILTZ, 2011). Uma última palavra sobre o criador da Amazing Stories: Gernsback, como lembra Schiltz (2011), inventou, promoveu e exemplificou um gênero a partir da seleção e da republicação de certas obras, entre as quais se encontravam textos de Júlio Verne, a quem foi atribuída a paternidade deste gênero. Ao fazer isso, continuou a formar um público para a literatura de ficção científica, dando prosseguimento ao trabalho iniciado por Hetzel no seu Magasin em 1864. Ironicamente, o epíteto “pai da ficção científica” terminou por ser

73 Mas Hetzel exercia algum controle sobre o conteúdo ideológico dos escritos de Verne. Demonstra-o, além da correspondência trocada entre eles, o fato de que, após a morte do editor em 1886, Verne adota uma perspectiva mais pessimista em relação à ciência, cf. EVANS, Arthur B. “Hetzel and Verne; Collaboration and Conflict” in Science-Fiction Studies, XXVIII, 1, n. 83, 2001, p. 97-106.

74 EVANS, Arthur B. “The ‘New’ Jules Verne” in Science Fiction Studies, XXII:1 #65, 1995, p. 37.

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atribuído, com justiça, ao próprio Hugo Gernsback, cujo nome inspirou a criação do famoso Hugo Awards em 1953, prêmio conferido anualmente pela World SF Society. Gernsback ganhou um Hugo especial em 1960 como “The Father of Magazine Science Fiction”. E, como diz Gary Westfahl no verbete consagrado à Gernsback na Science Fiction Encyclopedia75,

A citação de Gernsback como pai é precisa. Foi ele quem convenceu o mundo de que uma forma de literatura chamado FC de fato existia. Sua preocupação com o rigor científico e clareza, para melhor ou pior, estabeleceu a natureza distinta do gênero FC; sem ele, essa literatura e sua crítica teriam tomado uma forma significativamente diferente. (WESTFAHL in CLUTER; NICHOLLS, 1999)

A partir da iniciativa pioneira da Amazing Stories, os escritores de FC puderam desenvolver, nos últimos noventa anos, uma série de temas como as utopias, as distopias, a , a viagem no tempo, a vida extraterrestre, a colonização espacial, a ficção apocalíptica e pós-apocalíptica, a Terra agonizante, a Terra oca, história alternativa, mundos paralelos, a inteligência artificial, mutações genéticas, o cyberpunk, o steampunk, e outras centenas de variações. O projeto pedagógico de Hetzel e Gernsback foi ultrapassado pela realidade da história, mas a ficção científica, liberta das amarras do otimismo científico, pode expandir seus horizontes. Escritores como Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e outros da assim chamada Golden Age76 ainda carregaram consigo alguns elementos desta fase, mas mudaria com o advento da New Wave77 nas décadas de 1960 e 1970. É precisamente nesta última que as bases da ficção retrofuturista, steampunk incluso, serão fundamentadas. Mas antes de abordar essa questão, é necessário enfocar o papel das mídias audiovisuais na construção desse imaginário retrofuturista, tão importantes, a nosso ver, quanto seus desdobramentos literários.

75 CLUTER, John e NICHOLS, Peter. “Gernsback, Hugo” in The Encyclopedia of Science Fiction, Orbit Books, 1999. Disponível em http://www.sf-encyclopedia.com/entry/gernsback_hugo.

76 Período compreendido entre 1938 e 1945, quando o gênero começou a chamar a atenção do grande público, imediatamente posterior ao período dos pulps nas décadas de 1920 e 1930. Predominava durante a Golden Age a ficção científica hard, de temática tecnocientífica.

77 Período no qual normalmente são enquadrados autores como Michael Moorcock, Brian Aldiss, Philip Jose Farmer, Ursula K. LeGuin e Philip K. Dick, entre outros. Mais ambicioso literariamente, aberto a experimentações, e de temática humanista, mais voltada para questões filosóficas, psicológicas, históricas e políticas. Os três primeiros autores citados nesta nota vão produzir alguns exemplares que costumam ser classificados como proto-steampunk.

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2 UMA INVENÇÃO MORTAL

2.1 O fantástico, o extraordinário

Como já havíamos antecipado no primeiro capítulo, o alvorecer do século XX assistiu as primeiras manifestações de uma nova forma de entretenimento popular, então conhecida como cinematógrafo. Por isso, nunca é demasiado observar que, desde as primeiras experiências, duas vertentes surgiram e se desenvolveram paralelamente, configurando a gramática fundamental com a qual o cinema trabalharia posteriormente: a realista e documental, objetivo inicial de Louis Lumiére, e a fantástica, ficcional e não-realista, incluindo aquilo que viria a ser conhecido como ficção científica. E foi justamente Lumiére quem produziu os primeiros exemplares de ambas as vertentes, quando em 1895 filmou La Sortie des Usines e, em 1897, aquele que será considerado o primeiro filme de ficção científica da história: Charcuterie mécanique, que em quarenta e quatro segundos mostra uma curiosa máquina movida a manivela, onde um porco vivo é colocado dentro de um compartimento à direita e transformado automaticamente em salsichas e outras partes, que são retiradas de outro compartimento, à esquerda. Desprovido de enredo, o curta-metragem apenas faz uma demonstração de um dispositivo mecânico inexistente, cujo efeito era similar aos clássicos truques de mágica, populares nos teatros da época: uma coisa transforma-se em outra. Também no mesmo ano, o mágico profissional George Méliès já havia iniciado sua carreira de cineasta desde que, em 1895, atendendo a um convite de Antoine Lumiére, pai dos irmãos Louis e Auguste, deixou o seu escritório no Theatre Robert-Houdin para comparecer a uma sessão do Cinematógrafo Lumiére, instalado no Salão Indiano do Grand Café, em Paris. Quando começa a fazer filmes, descobre por acaso, graças a um problema mecânico que fez a película ficar presa no aparelho, o truque de fazer coisas desaparecerem ou transformarem-se em outras. Em 1897, emprega conscientemente essa técnica pela primeira vez no filme Escamotage d’une dame chez Robert-Houdin78. Nascia a partir deste momento o cinema fantástico e seus efeitos especiais. Vimos no capítulo anterior que a pièce au grand spectacle, cujo primeiro exemplo notável foi a versão teatral para A volta ao mundo em oitenta dias, derivava da féerie,

78 TOULET, Emmanuelle. O cinema, invenção do século. Objetiva, 1988, p. 13, 61-62.

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espetáculo cênico de caráter fantástico, que surgiu na França após a Revolução. Em um ensaio onde estabelece as relações entre o cinema de Méliès e a féerie79, Katherine Singer Kovács descreve esta forma teatral de um modo que poderia, sem dúvida, descrever o próprio cinema de Méliès:

Os enredos das féeries eram geralmente adaptados de contos de fadas, em que criaturas sobrenaturais intervinham na vida dos homens. Estas criaturas usavam talismãs mágicos para efetuar a metamorfose repentina de pessoas ou coisas, e a rápida substituição de um cenário por outro diante dos olhos do espectador (“les changements à vue”). As aparições, desaparecimentos e transformações que eram práticas normais de peças de conto de fadas encantaram e surpreenderam as audiências que não estavam familiarizadas com a maquinaria teatral que facilitava estas mudanças. Para elas, as ações que testemunhavam eram uma espécie de magia. Gautier comparava-as a sonhos. (KOVÁCS, 1976, p. 1-2)

A féerie e seus derivados e sucedâneos, incluindo o cinema de Méliès, sempre estiveram, de uma forma ou de outra, ligados à obra de Júlio Verne. Em 1875, um ano após a estreia de La Tour du monde, Jacques Offenbach estreou sua ópera-féerie La Voyage dans la Lune, vagamente baseada no romance de Verne com algumas cenas inspiradas em Viagem ao centro da terra, sem autorização do autor e sem o reconhecimento dos créditos. A imprensa apontou o que Verne chamou de “empréstimos” (ANGELIER, 2012), mas, aparentemente, plagiadores e plagiado terminaram por chegar a algum acordo, visto que dois anos depois Verne colaboraria com Offenbach em outra opereta baseada em seus escritos: Le Docteur Ox. Méliès, nascido em 1861, cresceu sob a influência tanto da féerie parisiense quanto das Voyages Extraordinaires vernianas. Quando no liceu, “como todos os rapazes de sua idade, lia Júlio Verne abertamente e Baudelaire em segredo.”80 Provavelmente, entrou em contato com Edgar Allan Poe via Baudelaire, como o próprio Verne havia feito. Seu filme mais famoso, Le voyage dans la Lune, se não foi o primeiro exemplo de ficção científica do cinema, é sem dúvida um marco na história do cinema mundial. O fato de um filme desta importância estar ligado, de um modo ou de outro, ao nome de Verne, não pode ser ignorado nesta nossa tentativa de rastrear a evolução do imaginário oriundo das Voyages

79 KOVÁCS, Katherine Singer. “Méliès and the ‘féerie’” in Cinema Journal vol. 16 n. 1, University of Texas Press, 1976, p. 1-13.

80 PUISIEUX, Hélenè. “Un voyage a travers l´histoire: une lecture sociale des films de Méliès” in Méliès et la naissance du spectacle cinematographique, Paris, Klincksieck, 1984, p. 25.

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Extraordinaires, para o estabelecimento de um corpus transmidiático decisivo na fundamentação do steampunk. Dizemos que o filme de Méliès está ligado a Verne “de um modo ou de outro” porque existem polêmicas a respeito desta filiação, bem como a respeito da definição do gênero ao qual o filme pertenceria. Polêmicas semelhantes foram abordadas no primeiro capítulo, concernentes ao gênero a que pertencem os romances de Verne, se poderiam ou não ser classificados como ficção científica antes da constituição do gênero ex post facto. Em um interessante artigo a respeito do somatório das influências que resultaram em Le voyage dans la Lune, Thierry Lefebvre81 não aceita que o filme de Méliès seja uma adaptação do romance de Verne, simplesmente porque os enredos diferem. O próprio cineasta declarou em 193082 que a ideia havia sido, de fato, retirada do livro de Verne, com a diferença que, em seu filme, a viagem atinge o seu objetivo, para que fosse possível “compor uma série de originais e divertidas imagens feéricas dentro e fora da lua” e “mostrar alguns monstros, habitantes da lua e adicionar um ou dois efeitos artísticos (mulheres representando estrelas, cometas, etc.)”, mas preservando o processo concebido por Verne, “um canhão e um projétil”. Isso não foi suficiente para evitar que Lefebvre considerasse essa autodeclaração um argumento “fraco”, e sua conclusão, um senso comum (LEFEBVRE, p. 53). O principal alvo da argumentação de Lefebvre é a afirmação surpreendentemente incorreta do historiador do cinema Georges Sadoul, que em seu livro Lumiére et Méliès, diz que este último “na segunda parte do filme, adaptou H.G. Wells tão fielmente como o fez com Júlio Verne na primeira” (SADOUL, citado por LEFEVBRE, 2011, p. 58). Lefebvre argumenta que as influências de Méliès são complexas e heterogêneas, e ao longo de seu artigo, enumera e analisa em detalhes todas elas: Verne, a ópera-féerie de Offenbach, a atração do parque de diversões montado para a Pan-American Exposition em Buffalo, Nova York, em 1901, intitulada precisamente Trip to the Moon, e o clássico As aventuras do Barão de Munchausen. O papel do romance de H.G. Wells, First Men in the Moon, que havia sido publicado em francês em 1901, não sendo impossível, portanto, que Méliès o tenha lido, é descartado quase totalmente por Lefebvre. Lefebvre atribui mais importância à segunda e terceira influências, posto que mais semelhantes ao filme em termos de enredo e estrutura. Em relação a atração de Buffalo, Lefebvre, assumidamente, apenas conjectura:

81 LEFEBVRE, Thierry. “A Trip to the Moon: A Composite Film” in SOLOMON, Matthew (org.):Fantastic Voyages of the Cinematic Imagination: Georges Méliès’s Trip to the Moon. Albany, SUNY Press, 2011, p. 49- 64.

82 MÉLIÈS, Georges. “Reply to Questionary, 1930” in SOLOMON Op. Cit., p. 233.

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Seria surpreendente, para não dizer inacreditável, se Georges Méliès, obcecado como foi com “truques” e novidades espetaculares, desconhecesse a atração de Thompson e Dundy e o seu sucesso sem precedentes. Além disso, como relata Charles Musser, em maio de 1901 James White e Edwin Porter filmaram vários curtas-metragens sobre as principais atrações da exposição de Buffalo, em particular, o Aerio-Cycle e a Trip to the Moon. Nesta ocasião Edison publicou um “Pan-American Supplement”, infelizmente perdido, que dava uma descrição detalhada de cada filme. Será que Méliès teve acesso a este folheto e aos filmes que ele descreve? Sem provas, estamos reduzidos a conjecturas. (LEFEBVRE, 2011, p. 52)

Com relação a Offenbach, Lefebvre parece esquecer-se que a ópera-féerie inspirava-se nos romances de Verne, o que foi notado pelo próprio e pela imprensa. Homem de teatro como o era Méliès, influenciado pela tradição das féeries, é perfeitamente plausível que o espetáculo de Offenbach tenha, por sua vez, sido fonte de inspiração. Se Méliès tencionava, como declarou, “compor uma série de originais e divertidas imagens feéricas dentro e fora da lua”, obviamente não poderia ser totalmente fiel ao enredo original de Verne. Offenbach, cujas intenções eram praticamente as mesmas, também não poderia. É compreensível que Méliès optasse por uma, por assim dizer, maior “fidelidade” para com Offenbach. É preciso considerar a natureza do empreendimento de Méliès e como ele serviu-se de Verne para poder realizá-lo. Diz J.P. Telotte83:

Influenciado pelas voyages extraordinaires de Júlio Verne, Méliès evitou sua ênfase na exposição e na explanação, no jogo da razão e da ciência, em prol de imagens e eventos fantásticos: homens lunares explodindo, um trem voador, monstros submarinos, viagens interplanetárias. No entanto, mais do que simples espetáculos, estes esforços demonstram a sua contribuição para o desenvolvimento da relação entre o novo gênero e a própria tecnologia do cinema. Para criar seus mundos maravilhosos, Méliès contribuiu para um crescente arsenal de efeitos especiais (a câmera stop-motion, maquetes, o uso de miniaturas, dupla exposição, esteiras primitivas e fotografia com filtro), que criou um padrão que continua a informar os filmes de ficção científica, ainda que esses avanços não o tenham levado a desenvolver narrativas mais complexas, mas a moldar novas e mais fantásticas visões, permitindo que o público vivenciasse coisas impossíveis em sua realidade muito menos fantástica. Em suma, com Méliès vemos como o desenvolvimento da tecnologia do filme inspiraria tanto o imaginário como as técnicas da ficção científica. (TELOTTE, 2009, p. 43)

O que talvez tenha escapado ao minucioso trabalho comparativo de Lefebvre em seu artigo é que Le voyage dans la Lune não foi a única adaptação de uma obra de Júlio Verne feita por Méliès: a esta seguiram-se mais três, sem contar outros filmes que, se não são diretamente inspirados, pelo menos remetem ao imaginário criado pelo escritor, evidenciando

83 TELOTTE, J.P. “Film, 1895-1950” in BOULD, M., BUTLER, A. M., ROBERTS, A. e VINT, S. (eds). The Routledge Companion to Science Fiction. Abingdon, 2009, p. 42-51.

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a importância de Verne em sua obra e, consequentemente, no desenvolvimento da ficção científica no cinema. Verne “informa” Méliès. É impossível, ao assistir as cenas da trajetória do projétil no espaço, não rememorar as ilustrações de Émile-Antoine Bayard e Alphonse de Neuville para Autour de la lune, particularmente a sequência de gravuras 21 a 3984. Não é por acaso que um dos fundadores dos Cahiers du Cinema, Joseph-Marie Lo Duca (1952), em breve nota sobre Méliès no décimo número da revista, intitulada “Georges Méliès, pai do cinema, filho de Júlio Verne”, observa que quando o cineasta, em seus filmes, trocava o “fantástico de laboratório pelo fantástico geográfico ou sideral”, Júlio Verne era uma espécie de leitmotiv. Existe algo de familiar entre as duas obras, e ao olhar de perto as gravuras do romance e os desenhos de Méliès, o ar familiar se acentua e percebemos haver ali “mais do que um encontro…”. E não apenas em Le voyage dans la Lune. Mesmo a sua nada fiel versão das aventuras do Capitão Nemo, filmada em 1907, que do romance original guarda apenas o título e o submarino, a referência visual é sempre a arte de Riou e de Neuville. É curioso que, nesta mesma nota, Lo Duca rememore uma conversa pessoal com o cineasta, na qual este teria declarado, ao contrário de seu depoimento de 1930, que a única coisa em comum entre o seu filme e o livro é a Lua, mas que Verne não a havia inventado. E Lo Duca conclui que o “orgulho amável de Méliès” não poderia escamotear todos os “empréstimos” feitos ao universo de Verne85. De 1902 até o início da década de 1930, quando Hugo Gernsback consolida o gênero da ficção científica através de publicações como Amazing Stories, foram produzidas vinte adaptações de romances de Júlio Verne para o cinema. De 1895, ano da realização da Charcuterie mécanique, até a mesma data, oitenta e cinco filmes que poderiam ser classificados como ficção científica foram realizados. Vários, se não explicitamente baseados em Verne, faziam uso de elementos de seu universo. É fácil perceber o leitmotiv de Júlio Verne repetindo-se tanto nos textos que estavam sendo publicados, como nos filmes: aeroplanos, dirigíveis, submarinos, viagens à Lua e outros planetas, cometas que se chocam contra a Terra, etc. E não apenas Verne: o alvorecer da arte cinematográfica coincidiu com o estabelecimento de um corpus textual apropriado para os desafios técnicos que esta arte encontrava no intuito de maravilhar os espectadores. Este corpus, posteriormente, se tornará parte importante, para não dizer seminal, das referências do steampunk.

84 http://jv.gilead.org.il/rpaul/Autour%20de%20la%20lune/.

85 LO DUCA, Joseph-Marie. “Georges Méliès, père du cinéma, fils de Jules Verne” in Cahiers du Cinema, n. 10. Paris, Les Editions de L’Etoile, 1952, p. 52-53.

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Se aceitarmos a hipótese de que Méliès se utilizou do argumento de Wells, 1902 também seria o ano em que pela primeira vez o escritor inglês foi levado às telas. Descartando esta hipótese, como quer Lefebvre, Wells aparece no cinema pela primeira vez em 1909 com um filme baseado em The Invisibilize Man. Em 1900 foi produzida a primeira adaptação das aventuras de Sherlock Holmes, Sherlock Holmes Baffled, dando início à longa série de aparições do detetive criado por Arthur Conan Doyle na película: quase trezentas, se incluirmos as produções televisivas. Edgar Allan Poe estreou nas telas em 1908, e de modo bastante curioso: atrelado ao personagem de Doyle. Trata-se de um exercício transficcional, caro aos escritores steampunk, baseado em Murders in the Rue Morgue, intitulado Sherlock Holmes in the Great Murder Mistery. Em 1899, H. Rider Haggard apareceu nas telas com uma adaptação de She; Bram Stoker teve o seu Drácula adaptado na Hungria86 em 1921, antes que F.W. Murnau realizasse o seu famoso Nosferatu um ano depois; o Frankenstein de Mary Shelley, considerado por alguns críticos o primeiro romance de ficção científica, surge no cinema pelas mãos de Thomas Edison em 1910; Edgar Rice Burroughs vê o seu Tarzan filmado em 1917 com The Lad and the Lion. Até o início da década de 30, foram produzidos cerca de treze filmes baseados em escritos de Wells, oitenta e nove filmes baseados em escritos de Conan Doyle, vinte e seis em Poe, dezenove em Haggard, dez em Burroughs, cinco em Shelley e dois em Stoker. Essa estatística demonstra, além da popularidade infatigável de Sherlock Holmes, que no terreno do fantástico e do scientific romance, Verne só é superado por Poe em número de adaptações cinematográficas, o que não foi suficiente para abalar sua reputação como father. No caso de Burroughs, Stoker e Shelley, pode surpreender o pequeno número de filmes, mas há que se considerar o fato de que o auge dos filmes com Tarzan se deu entre as décadas de 1930 e 1970, e que após as aparições de Drácula e do Monstro de Frankenstein pela Universal Pictures em 1930, o período de maior popularidade destes personagens foi nas décadas de 1960 e 1970. Entre 1902 e 1954, ano da produção de Twenty Thousand Leagues Under the Sea, foram realizadas trinta adaptações cinematográficas das Voyages Extraordinaires. Dentre estas, a obra mais popular entre os produtores é Michel Strogoff87, com sete versões, seguida por Vingt mille lieues sous les mers, com cinco (não contando as paródias, a maioria em

86 Drakula halála, dirigido por Károly Lajthay, teve como um de seus roteiristas um certo Kertész Mihály, que mais tarde construiria uma brilhante carreira em Hollywood com o nome de Michael Curtiz.

87 É difícil não supor que a popularidade do Correio do Czar se deva à exaltação da Rússia pré-revolucionária. Uma das mais famosas versões para o cinema, dirigida por Viktor Tourjansky em 1926, era uma produção franco-alemã cujos produtores, atores principais, roteiristas, fotógrafos e diretor eram russos brancos refugiados na Europa.

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desenhos animados), e L'Île mystérieuse, com três. O imaginário produzido por histórias de viagens extraordinárias, especulações científicas, mistério e terror escritas a partir da segunda metade do século XIX continuava a povoar a mente de artistas e público através do cinema, que ainda hoje não cessou de servir-se desta fonte de inspiração, fato que permite aproximar os primórdios do cinema do gênero tratado nesta dissertação.

2.2 Primeiras releituras

“Filmes sobre o futuro tendem a ser sobre o futuro dos filmes”. Esta frase do crítico Garrett Stewart, citada por Telotte88, resume perfeitamente a questão concernente ao desenvolvimento da técnica cinematográfica e sua relação com a ficção científica, seja ela ambientada no futuro ou não. Os primeiros filmes a explorar o material produzido pelos escritores especulativos das eras Vitoriana e Eduardiana enfrentavam o problema de tornar críveis, aos olhos do espectador, as maravilhas técnicas que seus enredos retratavam. Assim, aquilo que era originalmente apenas especulativo e ganhava existência potencial apenas na letra do autor, ou ainda nas ilustrações que porventura a acompanhassem, no cinema necessitava avançar um passo em direção a uma existência concreta. Em outras palavras, o espectador precisava ver em movimento aquilo que estava sendo descrito ou mostrado. Não é por acaso que os primeiros filmes baseados na obra de Júlio Verne tinham de se defrontar com o problema de tornar reais, aos olhos do espectador, a materialização de suas utopias tecnológicas. Em 1916, após as experiências de Méliès, a primeira grande adaptação de um romance de Verne chegou às telas, trazendo uma significativa contribuição para a evolução das técnicas de filmagem e dos efeitos especiais: Twenty Thousand Leagues Under the Sea, dirigido por Stuart Paton, foi o primeiro longa-metragem de ficção a realizar filmagens submarinas, desenvolvidas pelo Capitão Charles Williamson e seus filhos John Ernest e George Maurice. O dispositivo era engenhoso, uma vez que ainda não era possível fazer uma câmera entrar em contato direto com a água. O crítico Brian Taves89 assim sintetizou o modus operandi do aparelho:

88 TELOTTE, J.P. . Cambridge, Cambridge University Press, 2004, p. 24.

89 TAVES, Brian. “A Pioneer Under the Seas” in Library of Congress Information Bulletin, vol. 55, n.15, 1996. Disponível em http://www.loc.gov/loc/lcib/9615/sea.html.

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John Ernest Williamson (1881-1966) foi ativo no cinema por quase 50 anos. Seu pai era um capitão que tinha inventado um tubo de alto-mar, feito de uma série de anéis de ferro concêntricos e interligados, que se estendiam como uma sanfona. Suspenso a partir de um navio especialmente equipado, este cabo marítimo permitia fácil comunicação e um suprimento abundante de ar para profundidades de até 250 pés. Quando conectado a um aparelho de mergulho, o tubo poderia ajudar em reparos subaquáticos e operações de resgate. Em 1912 o jovem Williamson, na época um jornalista, percebeu que o mecanismo do seu pai também poderia ser usado para obter fotografias submarinas. Com uma luz atada ao navio para iluminar o mar em frente ao tubo, fotografias tiradas das profundezas ao largo de Hampton Roads, VA, foram tão bem-sucedidas que Williamson foi instado a tentar imagens em movimento. Para facilitar o novo propósito do tubo, "J.E." (como era conhecido) projetou uma câmara de observação esférica com uma grande janela de vidro em forma de funil, com 5 metros de diâmetro e uma polegada e meia de espessura. Williamson chamou este dispositivo de "fotosfera", que foi ligada à extremidade do tubo. O equipamento foi levado para as Bahamas, onde a luz solar chegava até a uma profundidade de 150 pés nas águas claras, aumentando as possibilidades fotográficas. Uma barca especial foi construída para transportar o tubo e a fotosfera, e batizada de Jules Verne em homenagem a inspiração de Williamson. (TAVES, 1996)

John chegou a construir um submarino, um Nautilus real, que media cerca de trinta metros de comprimento e era bastante fiel ao desenho original de Riou. Filmado em parte nas Bahamas, em parte nos estúdios da Universal, chegou às telas no momento em que submarinos alemães torpedeavam seis navios nas proximidades de Nantucket90. Dez anos antes de Hugo Gernsback fazer sua apologia à Era das Máquinas, a realidade da Grande Guerra já havia se imiscuído nesta nova metamorfose do texto verniano, o que não escapou aos críticos. A resenha do jornal de Ohio The Newark Advocate, de cinco de junho de 1917, reconheceu que “toda a terrível verdade do submarino e seu torpedo de cabeça branca está neste momento retratada nesta aparentemente impossível produção cinematográfica.”91 O roteiro do filme de Stuart Paton se baseava tanto em 20.000 léguas submarinas quanto em A ilha misteriosa. Este último livro, em vez de uma continuação do anterior, foi tratado como uma história paralela, em conexão com o passado do Capitão Nemo. E foi justamente este romance que inspirou um filme de 1929 que, apesar de pouco conhecido e pouco apreciado, será peça importante no futuro desenvolvimento de uma arqueologia da estética steampunk, tanto em seu aspecto recursivo, transficcional, como em seu aspecto

90 SOISTER, J.T., NICOLELLA, H., JOYCE, S. e LONG, H.H. “Twenty Thousands Leagues under the Sea” in American Silent Horror, Science Fiction and Fantasy Feature Films, 1913-1929. Jefferson, McFarland and Company, 2012, p. 590.

91 Idem, p. 591.

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contrafactual, ucrônico92. E, assim como o filme de Paton, também foi uma espécie de laboratório para futuras técnicas empregadas no cinema. foi uma produção conturbada. O diretor escalado inicialmente para dirigi-la, Maurice Tourneur, foi substituído por Benjamin Christensen, que por sua vez cedeu o lugar para Lucien Hubbard. Seu roteiro foi reescrito várias vezes e, devido a inúmeros contratempos, levou três anos para ser concluído. John Ernest Williamson deveria, mais uma vez, ser o responsável por filmagens submarinas, mais uma vez nas Bahamas. Terminou por afastar-se do projeto e, consequentemente, a maioria das cenas submarinas foram filmadas em um tanque. O grande apelo publicitário, além dos nomes de Júlio Verne e do ator principal, Lionel Barrymore, era um trunfo tecnológico: seria o primeiro filme falado fotografado em Technicolor93. O que terminou por se tornar uma meia-verdade: o filme era um híbrido, com apenas dez minutos de diálogos falados e intertítulos, e com várias cenas filmadas em preto-e- branco94, o que contribuiu para a morna recepção do filme, apesar das críticas geralmente favoráveis. O que torna este filme interessante para o espectador interessado ou familiarizado com as tendências mais recentes da ficção científica, como o retrofuturismo ou o steampunk, é que seu roteiro baseia-se exclusivamente em um único determinado trecho do romance original, ignorando o resto. O trecho, que consta no capítulo XVI da terceira parte de L’île mystérieuse, é a narrativa das origens do Capitão Nemo, príncipe indiano cujo nome verdadeiro era Dakkar, filho do rajá do Bundelkund, território então independente do domínio inglês. Apesar de educado na Europa e aparentemente levar uma vida ociosa, transitando pela alta sociedade internacional, acalentava secretamente o sonho de libertar a nação indiana do jugo britânico. Principal mentor, na ficção contrafactual de Verne, da Revolta dos Sipaios de 1857, sua família foi massacrada e sua cabeça posta a prêmio. Homem de ciência, milionário, construiu o submarino Nautilus e afastou-se da vida em terra, passando a desbravar as profundezas do oceano e apoiar as nações que lutavam por independência.

92 Esta questão do steampunk como uma forma de ucronia será tratada no terceiro capítulo.

93 O primeiro filme falado filmado em Technicolor foi o musical On with the Show, realizado no mesmo ano.

94 Recentemente foi descoberta, no Czech National Film Archive, a única cópia que mantém as cenas em Technicolor. Ver http://www.radio.cz/en/section/arts/us-film-historians-find-treasure-in-czech-archive.

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A verdadeira identidade do Capitão Nemo foi, desde o início, motivo de conflito entre Verne e o seu editor Hetzel, como se pode constatar no artigo de Arthur B. Evans95 sobre a publicação, no ano de 2001, da correspondência inédita entre os dois:

Verne originalmente retratara Nemo como um brilhante cientista polonês conduzido à violência por seu intenso ódio ao czar russo, que havia massacrado sua família (uma referência à sangrenta supressão russa da insurreição polaca cinco anos antes). Mas Hetzel estava profundamente preocupado com as possíveis consequências diplomáticas de tal caracterização ficcional, bem como com a probabilidade do livro ser proibido na Rússia, um mercado lucrativo para os livros de Verne. Então, por razões políticas e comerciais, ele propôs que Nemo fosse retratado como um inimigo jurado do tráfico de escravos, proporcionando assim uma justificativa ideológica clara para os ataques impiedosos de Nemo contra determinados navios. Verne discordava fortemente. No final, nem Verne nem Hetzel cederiam. E assim, na versão final de Vingt mille lieues sous les mers, os motivos exatos de Nemo permanecem intrigantemente obscuros, pelo menos até o seu reaparecimento mais tarde nos capítulos finais de L’Île mystérieuse, onde sua verdadeira identidade como Dakkar, Príncipe da Índia e inimigo implacável dos britânicos, seria finalmente revelada. (EVANS, 2001, p. 100)

Verne ainda diria em carta a Hetzel, de forma irônica, que não conseguiria reconhecer seu próprio personagem se aceitasse as modificações sugeridas pelo editor, e que, em sua opinião, se Nemo quisesse vingar-se dos escravagistas, “bastava alistar-se no exército de Grant” (EVANS, 2001, p. 101). Mas, mesmo se aceitarmos que os motivos de Nemo sejam “intrigantemente obscuros” no primeiro livro, pistas esparsas permitem determinadas ilações. Não entraremos aqui, no tocante à identidade de Nemo, nas questões levantadas por pesquisadores como William Butcher, que examinou detidamente os manuscritos originais de Vingt mille lieues sous les mers96 que fazem parte da coleção da Societé de Géographie, que se encontra na Bibliothèque Nationale de Paris. Estes manuscritos descrevem um Nemo francês, revolucionário e republicano, combatendo as forças do Segundo Império. Na introdução escrita para a edição da Oxford World’s Classics, Butcher lança a hipótese de Verne ter se inspirado na figura do cientista e revolucionário Gustave Flourens para compor o personagem97. Essa ideia evoluiu para um Nemo polonês, participante da Revolta de Janeiro

95 EVANS, Arthur B. “Hetzel and Verne; Collaboration and Conflict” in Science-Fiction Studies, XXVIII, 1, n. 83, 2001, p. 97-106.

96 BUTCHER, William. “Hidden Treasures: The Manuscripts of Twenty Thousand Leagues” in Science-Fiction Studies, XXXIII, 1, n. 95, 2005, p. 43-60.

97BUTCHER, William. “Introduction” in Twenty Thousand Leagues Under the Sea. Oxford University Press, 1998, p. xiii. Esta hipótese é contestada em KALLIVETRAKIS, Leonidas. “Jules Verne’s and French Revolutionary Gustave Flourens: A Hidden Character Model?” in The Historical Review, vol. 1. Atenas, Institute of Historical Research, 2004, p. 207-243.

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de 1863 contra os russos. O Nemo indiano98, apesar de surgir somente em L’Île mystérieuse, pode ser vislumbrado em uma passagem do romance anterior, no final do capítulo III da Segunda Parte, quando ao ser indagado por Aronnax das razões que o levaram a arriscar a vida para salvar um pescador de pérolas hindu dos dentes de um tubarão, Nemo responde: “Este indiano, professor, é um habitante do país dos oprimidos, e ainda sou, e serei até o último suspiro, desse país!” (VERNE, 2012, p. 250). É claro que esta frase pode ser interpretada tanto literal quanto figuradamente. Mas se Hetzel aceitou a nova nacionalidade do personagem em L’Île mystérieuse, isso mostra que ele não se preocupava em ferir as suscetibilidades dos britânicos, o que não impediu os editores das traduções inglesas de censurar drasticamente as passagens pouco favoráveis à política colonial da Rainha99. E o que tudo isso tem a ver com o filme de 1929? Como já havíamos dito, o roteiro final do diretor Lucien Hubbard baseia-se exclusivamente no referido trecho de L'Île mystérieuse em que Nemo revela a sua história. Mas em vez da Índia, temos o fictício reino eslavo de Hetvia; Dakkar tem André como prenome e é um Conde; em sua ilha-fortaleza, uma espécie de estado paralelo, constrói não apenas um único submarino, mas dois, e nenhum deles se chama Nautilus. O problema político é um golpe de estado liderado pelo Barão Falon, que procura apropriar-se dos submarinos e utilizá-los como armas de guerra. As cenas da invasão da ilha pelos hussardos leais a Falon remetem ao visual do cinema soviético em voga na época. O início, em particular, descreve Hetvia como um país “turbulento como as ondas que se quebram em suas costas rochosas”. As imagens das ondas fundem-se com imagens de camponeses em revolta, um truque de montagem típico do cinema produzido na antiga URSS, embora realizado de modo menos sofisticado. Em sequência, durante a fuga de Dakkar em um dos submarinos, temos a descoberta de um reino nas profundezas, habitado por estranhos antropoides aquáticos, polvos gigantes e répteis pré-históricos. Após a derrota dos revoltosos, Dakkar, ferido de morte e desgostoso com o provável uso maléfico de suas invenções, destrói seus laboratórios e embarca sozinho em um dos submarinos, desaparecendo sob as águas.

98 Existe também a hipótese de Nemo ser inspirado na figura histórica de Nana Sahib, o verdadeiro líder da Revolta dos Sipaios de 1857. Ver DASGUPTA, Swati. “Jules Verne Re-discovered” in India International Centre Quaterly, vol. 32, n. 1. Nova Delhi, India International Centre, 2005, p. 87-106.

99 EVANS, Arthur B. “Jules Verne’s English Translations” in Science-Fiction Studies, XXXII, 1, n. 95, 2005, p. 92-93. Na tradução de W.H. Kingston de 1875, a história do Príncipe Dakkar é parcialmente adulterada para mostrar o colonizador inglês por uma ótica mais favorável.

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O interessante no enredo é, antes de mais nada, a recuperação parcial da ideia inicial de Verne: Dakkar é um nobre, se não polonês, pelo menos eslavo. A Rússia surge no filme metaforizada como um país fictício, mas as alusões estéticas ao cinema soviético deixam evidente que o reino de Hetvia é a Rússia comunista. Em segundo lugar, o filme cria uma versão alternativa da história original, prática recorrente da literatura steampunk, e também uma versão alternativa do século XIX. E, por último, antecipa outra prática recorrente da literatura e do cinema de entretenimento contemporâneos: abolindo todo o enredo do romance com exceção do pequeno trecho onde as origens de Nemo são narradas, cria uma história pregressa, um prequel da história original. Pois não fica claro, ao final da película, se Dakkar de fato morreu. Pode-se especular sua futura ressurreição como Capitão Nemo, que rompe com a humanidade e passa a habitar as profundezas dos mares, aliás como acontece de fato na história de Verne. Teriam os produtores do filme algum conhecimento da conturbada história da caracterização de Nemo? A resposta, em nosso entender, é: provavelmente não. A correspondência entre Verne e Hetzel onde o assunto é tratado permaneceu esquecida nos arquivos da Bibliothèque Nationale de Paris, e só veio a ser publicada em 1999, graças aos esforços dos pesquisadores Olivier Dumas, Piero Gondolo della Riva e Volker Dehs100. O que apenas torna a questão ainda mais fascinante. O poder da conjugação entre imagem e texto na obra de Verne é tamanho, que em 3 de maio de 1941, pouco mais de um mês antes das tropas alemães iniciarem a Operação Barbarossa, o Studio Odessa lançava nos cinemas da União Soviética o filme Tainstvennyy ostrov, outra adaptação de L'Île mystérieuse. Dirigido por Eduard Adolfovitch Pentslin, é um filme notável por várias razões, mas apenas duas serão suficientes. A primeira razão diz respeito ao fato de, ao contrário das anteriores versões cinematográficas, norte-americanas ou europeias, dos romances de Verne, esta produção se destaca por ser extremamente fiel ao texto original. E em segundo lugar, seguindo a tradição iniciada por Méliès e continuada posteriormente pelos magníficos trabalhos do cineasta tcheco Karel Zeman, o filme se reporta várias vezes às ilustrações originais de Jules-Descartes Férat. Mais: são transpostas para a tela com uma exatidão assombrosa, e aí está um dos maiores trunfos do filme. Longe de parecer uma cópia servil de uma imagem preexistente, o diretor Pentslin ousou fazer a experiência de ampliar determinadas ilustrações e ressaltar o seu caráter cinematográfico, assinalado por Evans. O movimento implícito da gravura impressa torna-se explícito no écran. O exemplo

100 Conforme EVANS, op. cit. 2001, p. 97-106.

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mais notório é a replicação da gravura 142, intitulada Un long objet fusiforme flottait à la surface des eaux…101, que mostra o Nautilus ancorado no interior de uma caverna. Neste quadro, a sensação de estranheza e familiaridade que constituem a própria natureza do efeito provocado pelas ilustrações originais, é redobrada pela ampliação desta ilustração no formato de filmagem 1.37:1. Temos a sensação de estarmos vendo pela primeira vez algo que já foi visto inúmeras vezes, ou que pela primeira vez determinado aspecto daquilo que já era conhecido foi finalmente desvelado. A busca pela realização desse efeito se tornará um processo fundamental na elaboração do icônico design do Nautilus para a produção realizada pela Disney em 1954 (mesmo quando parece romper com a tradição imagética inaugurada nas edições Hetzel), bem como na estética retrofuturista steampunk como um todo. A década de 50 foi particularmente importante para o desenvolvimento da ficção científica. O pós-guerra foi o período de transição da Era das Máquinas para a Era Atômica. Paralelamente ao desenvolvimento tecnológico, os temores de uma guerra nuclear adicionaram novos elementos à literatura especulativa e, como explica Rob Latham102, aumentaram o seu público.

O que explica essa crescente popularidade e visibilidade cultural da ficção científica? Mais obviamente, a revolução tecnológica que acompanhou a Segunda Guerra Mundial em uma série de invenções, das bombas atômicas à televisão, cuja existência havia sido prevista nos pulps de 1920 e 1930. O ritmo acelerado do desenvolvimento científico no período do pós-guerra, com todos os tipos de novos dispositivos conspirando para transformar ou ameaçar as vidas das pessoas, fez a FC parecer não apenas presciente, mas excepcionalmente relevante, uma vez que um dos temas-chave do gênero tem sido sempre a realidade inevitável da mudança tecnológica. Enquanto a FC nos meios de comunicação de massa foi mais amplamente popular do que a FC impressa (na verdade, os anos 1950 foram um período de bonança para o filme de FC), o fato de que o mercado podia sustentar, durante os seus anos de pico, dezenas de revistas e séries em brochura, indicou que o campo não estava crescendo apenas como um mercado especializado, mas como gosto do consumidor em geral. A escalada do programa espacial americano na sequência do lançamento, em 1957, do satélite soviético Sputnik, só aumentou o apelo da FC, preparando o mercado para os best-sellers que emergem do gênero durante os anos 1960. Até este ponto, a iconografia cujo apelo tinha sido largamente confinado ao público do gênero há mais de três décadas – de foguetes às pistolas de raio, de alienígenas a robôs – impregnou a cultura popular britânica e americana. (LATHAM in BOULD, BUTLER, ROBERTS e VINT, 2009, p. 85-86)

Neste processo de ampliação do público, os founding fathers da ficção científica e seus aparentados foram parte importante, graças ao surgimento de revistas como The Magazine of Fantasy and Science-Fiction, publicada desde 1949 até a presente data. A

101 http://jv.gilead.org.il/rpaul/L%E2%80%99%C3%8Ele%20myst%C3%A9rieuse/.

102 LATHAM, Rob. “Fiction, 1950-1963” in BOULD, BUTLER, ROBERTS e VINT, op. cit. 2009, p. 80-89.

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estratégia da revista, que, segundo Latham (2009, p. 81), era “uma publicação elegante e erudita”, consistia em uma visão “católica”, isto é, universal, de sua área de atuação, editando indiscriminadamente histórias de FC, fantasia e horror, e republicando autores clássicos como Lord Dunsany e Robert Louis Stevenson ao lado dos mais inventivos autores da nova geração, como Philip K. Dick, Alfred Bester e Richard Matheson. Por exemplo, em um rápido exame na lista de autores traduzidos103, constatamos um ecletismo que compreende autores como Tchekhov, Mérimée, Appolinaire e Bulgakov, ao lado de escritores de ficção científica como Kurd Lasswitz, Rosny-ainé, Yefremov, Zamyatin e o sempre infalível Júlio Verne, com dois contos bastante incomuns: Gil Braltar (1887), publicado no número de julho de 1958, e que conta a satírica e quase surrealista história de um espanhol que, no intuito de ocupar uma fortaleza britânica na colônia de Gibraltar, disfarça-se de macaco e lidera uma invasão acompanhado de um grupo de outros macacos. O ataque é rechaçado por um general inglês de aparência tão horrorosa que os macacos o tomam por um deles e passam a obedecer-lhe. Verne conclui com a certeza de que no futuro, para assegurar a permanência britânica na colônia, somente os generais mais feios serão enviados para Gibraltar. O outro conto, publicado em novembro de 1959, é Frritt-Flacc (1892), história de horror com toques de Allan Poe, sobre um médico argentário que atende apenas quem pode pagar. Em uma noite de tempestade, após recusar dois clientes sem dinheiro, decide-se a atender o chamado da esposa de um pescador que sofreu um ataque cardíaco, assegurando-se antes de que ela possuía dinheiro suficiente. Quando entra no quarto do doente, descobre horrorizado que este não é outro senão ele mesmo, que morre em suas mãos.

2.3 Mobilis In Mobili

O interesse pela ficção científica do século XIX perdurou no cinema da década de 50 do século XX. Após roteirizar o seu próprio livro em Things to Come, dirigido por William Cameron Menzies em 1936, e ver toda uma série produzida pela Universal nas décadas de 30 e 40 a partir de The Invisible Man, H.G. Wells retorna às telas em 1953, com The War of the Worlds, dirigido por Byron Haskin, em versão modernizada, ambientada na própria época de sua produção para aproveitar o clima de paranoia induzido pela Guerra Fria, responsável por

103 https://www.sfsite.com/fsf/bibliography/fsftranslationswhen01.htm.

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uma série de filmes sobre invasões alienígenas104. Até meados do século XX, uma característica da maioria dos filmes americanos baseados em scientific romances ou aventuras exóticas escritos no século anterior era a modificação da época histórica original para o tempo presente, isto é, para o mundo contemporâneo à realização do filme. The War of the Worlds não foi exceção, e substituir as trípodes marcianas descritas por Wells por discos voadores de visual futurista fazia parte do processo. Mas talvez este tenha sido um dos últimos filmes importantes de FC a adotar este procedimento, pois um ano depois Hollywood redescobriria a Era Vitoriana do romance científico em seu contexto próprio, ainda que não isento, obviamente, de um olhar contemporâneo. Esta redescoberta terá como marco inicial o filme que é considerado uma das melhores versões para o cinema de uma obra de Júlio Verne e a melhor versão de Vingt mille lieues sous les mers já filmada. A partir da realização deste filme, a representação cinematográfica do passado vitoriano e eduardiano idealizada por determinada leitura do scientific romance e da voyage extraordinaire vai tornar-se praticamente um subgênero no cinema. De 1954 à 1978, podemos observar um fluxo constante de filmes com temática verniana e wellsiana, ou mesmo de filmes que evocam o contexto histórico, científico e tecnológico em que estas obras foram gestadas. Trata-se de um fenômeno na história do cinema que ainda não chamou a atenção dos estudiosos, com exceção de um ou outro comentário sintético, normalmente sobre este ou aquele filme, mas que não comporta uma visão global do problema e nem abarca a totalidade do fenômeno. O que existe em comum entre todos estes filmes, para além dos períodos históricos enfocados e para além dos gêneros nos quais eles são comumente classificados, como comédia, aventura, fantasia ou FC, é a presença daquilo que Arthur B. Evans chama de “utopia veicular”. Segundo Evans105, ao contrário da maioria das utopias e distopias criadas pelos escritores de ficção especulativa, que, de um modo ou de outro, prestam tributo à tradição iniciada por Sir Thomas More em 1518, as verdadeiras utopias presentes nos romances de Júlio Verne são utopias móveis, “veiculares”, ainda que alguns traços das utopias tradicionais possam ser encontrados em determinadas histórias.

104 Sem esquecer, é claro, a famosa transmissão radiofônica de Orson Welles em 1938, que causou pânico em várias cidades norte-americanas. Welles admitiu em entrevista a Peter Bogdanovitch que inspirou-se em outra transmissão radiofônica feita pela BBC em 1926, concebida pelo padre e escritor Ronald Knox, que simulava uma revolução comunista na Inglaterra, e que também causou pânico entre os ingleses.

105 EVANS, Arthur B. “The Vehicular Utopias of Jules Verne” in SLUSSER, G., ALKON, P.K., GAILLARD, R. e CHATELAIN, D. Transformations of Utopia: Changing Views of the Perfect Society. Nova York, AMS Press, 1999, p. 99-108.

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Um importante novo paradigma na história da especulação utópica nasceu no século 19, na Europa, durante este período de mudança social dramática que hoje chamamos de Revolução Industrial. Este novo paradigma utópico era o conceito de mobilidade ilimitada. Na França, como as ferrovias continuaram a se multiplicar por toda a área rural e navios a vapor cruzavam os mares em direção a portos cada vez mais distantes, o foco utópico da burguesia francesa do Segundo Império e da Terceira República rapidamente começou a mudar com os tempos. A tradicional utopia do “lugar nenhum” foi logo substituída por um potencial “em qualquer lugar”, o cenário pastoral pelo industrial; a ética pessoal pelo expansionismo competitivo; e, talvez tão importante, os fins utópicos pelos meios utópicos. A melhoria dos meios de transporte tornou-se um corolário a priori para todo o “Progresso” real. O maior sonho? Veículos que poderiam maximizar a velocidade (maximizando assim o comércio, lucro e lazer), minimizando o tempo desperdiçado no trânsito; veículos que poderiam aumentar o conforto pessoal, eliminando o tédio; veículos que poderiam exalar poder, eficiência e praticidade e ainda permanecerem elegantes para os olhos e calmantes para os sentidos; veículos que poderiam “ir onde nenhum homem jamais esteve”, proporcionando um antídoto caseiro ao contínuo dépaysement de ambientes estrangeiros. E, acima de tudo, veículos que poderiam ser a propriedade privada exclusiva de seus proprietários que, sozinhos, decidiriam o seu destino e utilização final. Tal era o novo ideal: facilidade de circulação em um mundo em movimento. “Mobilis in mobili”, como o Capitão Nemo do Nautilus diria. (EVANS, 1999, p.99)

Esta passagem do “lugar nenhum” para o “qualquer lugar” é realizada pela concepção de veículos “hiperbólicos”, “máquinas de sonho”, que Evans vê como sendo as verdadeiras utopias vernianas, ainda que alguns romances descrevam formas utópicas tradicionais, como a Ilha Lincoln de L'Île mystérieuse e Franceville de Les Cinq cents millions de la Bégum, ou distopias, como o Stahlstadt do mesmo livro, ou a Paris de 1961 em Paris au XXe siècle. Os veículos idealizados por Verne possuem a característica de serem indevassáveis em seu aspecto exterior, como o submarino fusiforme, o projétil de alumínio que é enviado para a Lua ou o Albatroz de Robur-le-Conquérant, descrito por Verne como uma “locomotiva aérea”, cujo exterior é formado por folhas de papel “impregnadas de dextrina e amido e comprimidas na prensa hidráulica”, formando um material “duro como o aço”. Isolados do ambiente externo, são providos em seu interior de todo o conforto material e espiritual almejado pela burguesia do século XIX:

Confortavelmente isolados do exterior, esses veículos também são suntuosamente equipados no interior: luxuosa mobília vitoriana, obras de arte, sala de jantar, uma biblioteca bem abastecida, para não mencionar itens indispensáveis como serviçais dedicados e uma fonte quase inesgotável de provisões para proporcionar o máximo de conforto físico, emocional e intelectual. O interior luxuoso do Nautilus de Nemo é um exemplo óbvio, como o são os mais compactos, mas igualmente confortáveis aposentos a bordo da sonda lunar de Barbicane, ou "vagão-projétil", como o autor preferiu chamá-lo. (EVANS, 1999, p. 101)

O mundo exterior, para estes privilegiados habitantes de utopias móveis, é sempre um espetáculo a que se assiste, segura e confortavelmente, através de alguma espécie de janela

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que funciona como um observatório-cinematógrafo. Evans observa que “estas janelas servem para demarcar a fronteira entre o ‘nós’ e o ‘eles’, entre a segura familiaridade do conhecido e a implícita ameaça do ‘Outro’, seja ele os elementos, nativos hostis ou perigosas fauna e flora” (1999, p. 102). O episódio da “janela para as profundezas”, mencionado no capítulo anterior, é característico deste processo, bem como, em La Maison à vapeur, as janelas laterais do Gigante de Aço, formidável paquiderme mecânico movido a vapor que cruza o subcontinente indiano conduzindo luxuosos vagões tripulados por ingleses, e que proporciona aos viajantes um passeio pela geografia e pela história do Raj, paisagens vislumbradas nas gravuras de Léon Benett. Mais uma vez podemos perceber o movimento especular provocado pela relação imagem-janela-gravura, onde o viajante dos “mundos conhecidos e desconhecidos” é o leitor. Isso mostra, e Evans não deixou de o notar, que a fixação por estruturas de “clausura106 e conforto” são o próprio coração do projeto pedagógico de Verne e Hetzel, onde “o resumo da totalidade do conhecimento” se dá exatamente por meio dessas estruturas:

Mas se o objetivo social desta série de romances foi a transmissão de um corpo fixo de conhecimentos, o meio didático para este fim foi a viagem ficcional. E é aqui, como mencionado, que encontramos a verdadeira inovação de Verne, acrescentando uma dimensão inteiramente nova para os elementos utópicos tradicionais de clausura, autonomia e conforto: as utopias veiculares de Verne não são apenas autossuficientes e acolhedoras, elas também são extremamente móveis – transportando rapidamente seus passageiros para locais em constante mudança e proporcionando-lhes continuamente novas, exóticas paisagens para contemplar e aprender. Além disso, elas também servem na maioria das vezes como cabinets de travail ambulantes, suprindo as necessidades não só do corpo e do espírito, mas também do intelecto – fornecendo aos cientistas vernianos uma plataforma inigualável para o seu trabalho contínuo de mapear o universo e descobrir os mais profundos segredos da Natureza. (EVANS, 1999, p. 105)

E por último, e não menos importante, as “máquinas de sonho” vernianas também são retratadas como “objets d’art tecnológicos”:

Eles atuam como trampolins fictícios para a imaginação do leitor aventurar-se não apenas em novas dimensões do espaço físico, mas também em novos padrões de apreciação estética. O dispositivo mecânico em si é visto como um objeto de Beleza, levando consigo os seus próprios critérios de forma e função: sutileza de design, precisão de movimentos, força de material, retidão de linha, amplitude de efeito, etc. A função poética destes veículos é ainda mais enfatizada pelo fato de que eles nunca são retratados como entidades econômicas (como na obra de Zola, por exemplo): eles não criam empregos, nem os substituem; eles não produzem “mais-valia”, no sentido marxista; eles não fabricam matéria-prima; eles não são comprados e vendidos. Eles servem apenas para tornar possível o impossível, o fantástico, real, e o improvável,

106 O tema da “clausura” em Verne foi abordado por Roland Barthes em seu ensaio “Nautilus e Bateau Ivre”, em Mitologias.

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crível. A sua principal razão de ser é criar para o leitor um espaço interior imaginário para explorar, ao lado de heróis da ficção de Verne, as fronteiras ultraperiféricas do real. (EVANS, 1999, p. 106)

Voltaremos mais tarde aos brilhantes insights de Arthur B. Evans. Por ora, será suficiente demonstrar em nossa viagem pelas obras cinematográficas que, de 1954 a 1978, evocaram o grande momento histórico das “utopias veiculares” e foram responsáveis pela construção do universo mental dos artistas e escritores steampunk, o estranho fenômeno da duplicação regressiva destas utopias. Pois se em uma primeira leitura pareceria evidente que as máquinas extraordinárias de Verne não poderiam conservar o seu caráter utópico cem anos após a sua concepção, em uma segunda leitura seria igualmente evidente que os desejos (ou ilusões) de isolamento, conforto, autonomia, mobilidade e beleza permanecem contínuos e imutáveis. E o marco inicial da atualização, no século XX, da utopia veicular verniana foi, como já dissemos, em 1954. Este ano funciona como uma espécie de máquina do tempo, onde o viajante se desloca do presente para um passado alternativo, ucrônico, passado reestruturado pela percepção tecnológica do presente. Senão, vejamos: em 21 de janeiro de 1954, o primeiro submarino movido a energia atômica, o USS Nautilus (SSN-571), foi batizado e lançado nas águas do rio Thames, em Connecticut; em 23 de dezembro do mesmo ano, estreou nos cinemas dos Estados Unidos uma produção dos estúdios Walt Disney, Twenty Thousands Leagues Under the Sea, baseada no livro homônimo de Júlio Verne, dirigida por Richard Fleischer, e que apresentava para as plateias o mais famoso design do Nautilus do Capitão Nemo, uma releitura retrofuturista da ideia original de Verne e Alphonse de Neuville. Esta imagem, obra do artista Harper Goff, permanece indelevelmente impressa na memória coletiva, ao ponto do crítico Brian Taves declarar107 que nos dias de hoje, “a leitura de todo entusiasta de Verne das obras originais é obrigada a estar interligada com a visão dos filmes. O ‘texto’ verniano não é mais simplesmente os seus romances, mas o acúmulo de impressões adquiridas através de várias versões nas artes do espetáculo” (TAVES, 1996, p.205). Goff era um talentoso desenhista de produção que já havia trabalhado para a Warner Brothers em vários filmes importantes da história do cinema, como Midsummer’s Nights Dream de Max Reinhardt; Captain Blood, The Charge of the Light Brigade e Casablanca, todos dirigidos por Michael Curtiz; Sergeant York, de Howard Hawks, entre outros. Em 1952, tendo abandonado o estúdio desde o final da década de 1940 para trabalhar como freelancer e como ilustrador de periódicos, o acaso fez com que ele encontrasse Walt Disney em uma loja

107 TAVES, Brian. “Hollywood’s Jules Verne” in TAVES, Brian e MICHALUK, Stephen. The Jules Verne Encyclopedia. Metuchen, Scarecrow Press, 1996, p. 205-248.

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de ferromodelismo em Londres108. Sendo um grande admirador do trabalho de Goff, Disney convidou-o para trabalhar no projeto da Disneylândia, e mais tarde incumbiu-o da tarefa de assistir alguns filmes feitos no laboratório marinho do Instituto de Tecnologia da Califórnia para a série de documentários sobre a vida selvagem, que Disney então produzia. Enquanto desenhava storyboards a partir dos filmes, Goff começou a esboçar cenas inspiradas pelas memórias de suas leituras do livro de Júlio Verne na infância e do filme de 1916, assistido aos seis anos de idade. Disney viu os esboços e foi o bastante para reacender uma velha ideia: filmar Twenty Thousands Leagues Under the Sea. Seria a primeira produção americana em live-action dos estúdios Disney109, uma superprodução em Technicolor e CinemaScope, com James Mason interpretando o Capitão Nemo e Kirk Douglas como Ned Land. O primeiro problema enfrentado pela produção foi a construção do roteiro a partir do romance. O diretor Richard Fleischer estava consciente de que a problemática tradução norte- americana, ao contrário do original francês, não continha uma história concreta, apenas uma série de incidentes. Então, ele e o roteirista Earl Fenton tiveram de fazer o que Fleischer chamou de “trabalho de detetive” para preencher as lacunas, principalmente em relação ao caráter de Nemo. Duas modificações significativas foram feitas: o anarquista revolucionário de origem nobre que rompe todos os laços com a humanidade da história de Verne foi transformado, em primeiro lugar, em um pacifista, ansioso por dividir seus segredos e conhecimentos com o resto da humanidade, caso esta renuncie as suas inclinações guerreiras e opressivas. Já vimos que a década de 1950 vivia sob o terror de uma nova guerra com armas nucleares, e o fantasma do fim dos tempos assombrava as mentes do público e dos artistas que se dedicavam à ficção especulativa. Em segundo lugar, Nemo é um justiceiro que, tendo sido ele mesmo um escravo no passado, luta com todas as suas forças contra a prática do tráfico de escravos. Ou seja, mais uma vez, desde a produção de Mysterious Island em 1929, e de modo igualmente surpreendente, estamos de volta ao debate entre Verne e Hetzel a respeito das origens e motivações de Nemo! E mais uma vez não podemos afirmar que os envolvidos na produção tivessem algum conhecimento deste debate, pelos mesmos motivos anteriormente apresentados.

108 FRAZIER, Joel e HATHORNE, Harry. “20.000 Leagues Under the Sea” in Cinefantastique vol.14, n. 3. 1984, p. 32-52. Todas as citações, diretas ou indiretas, referentes ao processo de concepção e realização deste filme são referenciadas neste artigo. Disponível em http://www.disneysub.com/pub/harry.html.

109 Disney já havia produzido alguns filmes históricos em live-action de baixo orçamento na Inglaterra. O primeiro foi Treasure Island, de 1950, baseado em Stevenson. Em seguida vieram The Story of Robin Hood and His Merry Men (1952), The Sword and the Rose e Rob Roy: The Highland Rogue (1953).

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O segundo problema enfrentado na adaptação do livro foi a transformação de um romance científico de propósitos educativos em algo que mantivesse o interesse da plateia ao longo da projeção. “No romance, Aronnax, Conseil e Ned simplesmente agem como observadores”, explicava Fleischer. “Você não pode fazer isso por muito tempo no cinema”. Então Fenton chegou a conclusão de que o filme deveria ser sobre o clássico tema da fuga da prisão, em si mesmo um subgênero cinematográfico. Aronnax deseja permanecer para conhecer cada vez mais as maravilhas do oceano e os segredos de Nemo; Conseil e Ned Land querem fugir do Nautilus, e passam todo o tempo de duração do filme criando estratégias e planos de fuga. Três incidentes no romance, considerados pelo diretor e pelo roteirista como “os mais memoráveis”, foram aproveitados: o funeral submarino, o ataque dos canibais de Papua e o combate contra a lula gigante. Tendo por estabelecido o fato de que, graças às traduções medíocres, a maioria do público nunca havia lido o original com a devida atenção, Fleischer e Fenton apostaram na aceitação da história que estava sendo proposta. E de fato, como ressalta Fleischer, “a história que é hoje conhecida pela maioria dos jovens é aquela que inventamos para a tela.” (FRAZIER e HATHORNE, 1984) Mas havia ainda um terceiro desafio, e este é fundamental para entendermos a natureza da ficção retrofuturista como um todo, e do steampunk em particular. Fleischer assim o resume:

Tivemos que modernizar a história, a fim de criar uma sensação de coisas futuras. O desafio da nossa história era manter a sensação de ficção científica em algo que já não era mais ficção científica. Tivemos de pegar um objeto familiar – o submarino – e torná-lo um objeto de espanto e fantasia. Nosso objetivo foi colocar o público em uma posição de nunca ter visto ou ouvido falar de um submarino antes, e conduzi-lo através das maravilhas deste artefato pela primeira vez. (FRAZIER e HATHORNE, 1984)

Nenhuma descrição da literatura retrofuturista e ucrônica, da qual o steampunk faz parte, poderia ser mais precisa: devolver para a ficção científica o que já não é mais ficção científica; tornar o familiar, fantástico e espantoso; o conhecido, desconhecido. O que nos leva diretamente à concepção do design do submarino. Além de ser movido a energia atômica, como o seu homônimo da marinha americana, de modo a atualizar o caráter premonitório ou “visão profética” do romance, o Nautilus de Harper Goff foi modificado em relação ao modelo original a partir de suas próprias características, tal como descritas no livro de Verne:

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Goff acreditava que a história de Verne, sem as maravilhas mecânicas do submarino, teria sido simplesmente outro conto padrão de aventuras. Embora a história tenha sido criada em meados do século XIX, o Nautilus tinha que fazer coisas que eram impossíveis mesmo para o submarino moderno. Por exemplo, ele tinha que arremeter contra navios a uma velocidade tremenda, sem sofrer danos irreparáveis em seu casco. Portanto, tinha que ser extremamente pouco convencional em termos de design e operação. O primeiro desafio de Goff foi projetar um submarino que tivesse a aparência de um monstro marinho. Lembra Goff: "O livro diz que o Nautilus foi confundido pelos observadores com um monstro marinho aterrorizante. Eu sempre pensei que os temíveis tubarões e crocodilos pareciam bastante mortais dentro da água, então eu baseei o meu projeto em suas características físicas. O corpo aerodinâmico do submarino, barbatana dorsal e cauda proeminente simulavam os traços do tubarão. Os pesados padrões de rebite sobre as placas de superfície representavam a pele áspera do crocodilo, enquanto as janelas frontais e os holofotes na parte superior representavam seus olhos ameaçadores

Goff e Disney tiveram o seu momento de discordância, semelhante ao de Verne e Hetzel. Com as ilustrações de Riou e Neuville em mente, Disney mostrou a Goff um tubo de alumínio para charutos, dizendo ser este o modelo de Nautilus que tinha em mente. Disney queria um visual futurista. Goff discordou, enumerando uma série de argumentos, desde as rudes condições em que Nemo teria construído o submarino em sua base secreta, até o padrão de chapas rebitadas utilizado na construção naval da época. Uma importante mudança que os roteiristas fizeram na história pregressa de Nemo era o fato do submarino ter sido construído a partir de sobras e destroços resgatados de navios naufragados. Isso impossibilitaria a fabricação de um objeto fusiforme, de superfície lisa, conforme a concepção de Disney, além de não oferecer nenhum estímulo visual para as plateias. Goff não cedeu e sua concepção acabou prevalecendo. E ele estava certo. Retomando o conceito de Evans, a ameaçadora indevassabilidade do Nautilus de Goff permite o perfeito isolamento e mobilidade ao cidadão da utopia veicular, que encontra em seu interior o espaço ideal para exercer sua autonomia e seu gosto pela beleza. Goff compreendeu que, ao tornar a aparência do Nautilus mais terrível, seu interior, por contraste, deveria ser ainda mais suntuoso do que sugerem as descrições de Verne e as gravuras de Riou e Neuville. Persuadido de que nada seria tão atraente quanto “a combinação de ferro áspero e elegantes objetos de luxo”, Goff projetou o interior do Nautilus como uma combinação entre máquinas futuristas acionadas por meio de pistões e elegante mobiliário estilo império, que se adequava à estrutura tubular de ferro que o circundava. Em Verne, Nemo é um homem rico. As partes que constituem seu submarino são encomendadas separadamente nas melhores indústrias do mundo, e montadas em sua base secreta, que ao término do trabalho é destruída. As obras de arte, os livros e o órgão de tubos que adornam o grande salão do submarino foram comprados e colecionados nos dias opulentos de sua vida terrestre. O Nemo de Fleischer e Fenton é um ex-escravo que constrói a

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sua utopia veicular com restos e destroços coletados de naufrágios, inclusive os livros, as obras de arte e o órgão. O Nautilus, como toda utopia veicular verniana, é uma obra de arte em si mesmo. Mas o Nautilus de Harper Goff vai mais além: seja em sua forma externa, terrível, ameaçadora, de uma beleza apavorante, seja pelo ecletismo dos elementos que compõe a sua forma interna, é uma obra de arte moderna. O Nautilus de Goff/Nemo é um produto de bricolagem, de um do-it-yourself, de uma “estética do refugo”, como diria Andy Wharol. Em outras palavras, mais do que somente uma estética punk, trata-se de uma possível arqueologia do gênero privilegiado nesta dissertação: o steampunk.

2.4 Fantasmas da máquina

O sucesso do filme serviu não apenas para atualizar e perpetuar o imaginário relacionado à Verne para as plateias da Era Atômica, um público que tinha a sua disposição uma literatura e uma cinematografia de ficção científica em franco desenvolvimento, graças aos esforços pioneiros de Pierre-Jules Hetzel e Hugo Gernsback. Serviu também para catapultar toda uma série de filmes que lançavam um olhar retroativo para a grande época das utopias veiculares. Apreciemos panoramicamente este mosaico. Em 1956, Michael Todd produz Around the World in Eighty Days, dirigido por Michael Anderson, filmado em Todd-AO, sistema widescreen que concorria com o CinemaScope. O filme, transpondo para as telas a estrutura da féerie parisiense e da musical extravaganza americana, estilos de espetáculo teatral para os quais o romance de Verne já havia sido anteriormente adaptado, é uma espécie de apoteose das utopias veiculares, onde Phileas Fogg, apenas para ganhar uma aposta, investe toda a sua fortuna para exercer plenamente os seus ideais de conforto, autonomia, isolamento, mobilidade e beleza. Um dos grandes achados do filme é a conexão que, em sua ouverture, é feita entre o passado e o futuro do cinema: o filme inicia-se com La Voyage dans la Lune, de Méliès, que surge diminuto em seu aspecto de filmagem 1.33:1 na imensidão de uma sala de cinema equipada com tela widescreen, para em seguida, através de um efeito de montagem, conectar a cena da viagem espacial com imagens reais feitas por satélite, momento em que a janela de projeção se abre para o espetacular 2.20:1 do sistema Todd-AO. Em 1958, Byron Haskin dirige From Earth to the Moon, retratando o “vagão-projétil”, funcional por fora, elegante por dentro. Assim como no caso de Twenty Leagues Under the

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Sea, o enredo original foi modificado para explorar as ânsias da Era Atômica: Barbicane inventa uma nova fonte de energia, a qual chama de Power X, no intuito de fabricar novas e poderosas armas de guerra. A viagem à Lua, neste contexto, é apenas um teste para suas reais motivações. No mesmo ano, o cineasta tcheco Karel Zeman realizará uma das grandes homenagens cinematográficas tanto ao universo de Júlio Verne quanto ao de Georges Méliès: Vynález zkázy, ou The Deadly Invention, ou ainda The Fabulous World of Jules Verne. Trata-se de uma adaptação de Face au Drapeau, com elementos de Vingt milieus e Robur. Um dos marcos do sempre notável cinema de animação tcheco, este filme é uma criativa colagem das mais variadas técnicas, antigas e modernas, para reproduzir o sense of wonder que caracterizava a era do romance científico. Nas palavras de Pauline Kael110,

Assim como Méliès, Zeman emprega quase todos os truques possíveis, combinando ação ao vivo, animação, fantoches, e cenários pintados que são um triunfo do primitivismo sofisticado. A variedade de truques e sobreposições parece infinita; assim que você consegue assimilar um efeito, surge outra imagem para confundi-lo. Por exemplo, você vê um desenho de meia dúzia de marinheiros em um barco em mares tempestuosos; os marinheiros em seus pequenos trajes listrados são escorçados pelo que parece ser a mão de um artista primitivo. Em seguida, as ondas se movem, o barco se eleva sobre as águas, e quando ele aporta, os pequenos marinheiros – que são atores vivos – andam para fora, ainda reduzidos. Há cenas subaquáticas em que os peixes que nadam são tão rigidamente modelado como no desenho de uma criança (ainda que eles também sejam desenhos perfeitamente precisos). Há mais listras, mais padrões de roupas, de cenários, e na própria imagem, do que uma pessoa em sã consciência poderia facilmente imaginar. O filme cria a atmosfera dos livros de Júlio Verne, que está associada na mente dos leitores com as gravuras de Bennet e Riou; ele é projetado para se parecer com este mundo-que-nunca-foi ganhando vida, e Zeman preserva a antiga característica de faz de conta pelo uso inteligente de fracas linhas horizontais sobre algumas das imagens. Ele sustenta o tom vitoriano, com o seu prazer na magia da ciência, que faz Verne parecer tão ludicamente arcaico. (KAEL, 1991, p. 179)

Zeman recupera para o cinema o universo das ilustrações das Voyages Extraordinaires, dando prosseguimento ao que já havia sido iniciado por Méliès e por Eduard Pentslin. Ele ainda voltaria ao universo de Verne em mais três filmes. Baron Prášil, de 1961, ou The Fabulous Baron Munchausen, onde as técnicas anteriormente empregadas são ainda mais depuradas, adicionando com maestria o uso da cor e tendo Gustave Doré como principal referência visual, além do uso de extravagante transficcionalidade, método comum na estética steampunk, para estruturar o roteiro: um astronauta desembarca na Lua e descobre os destroços do “vagão-projétil” verniano. Na Lua, ele encontra-se com o Barão de Munchausen, Cyrano de Bergerac e os três astronautas do romance de Verne. O filme seguinte, de 1967, é

110 KAEL, Pauline. “The Deadly Invention” in 5001 Nights at the Movies. New York, Henry Holt and Company, 1991, p. 179.

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Ukradená vzducholod, ou The Stolen Airship, livremente baseado em Deux ans de vacances e L’Île Mystérieuse. E por último, Na kometě, ou On the Comet, de 1970, baseado em Hector Servadac. Voltando na cronologia, após esse apanhado da obra verniana de Karel Zeman, em 1959 foi produzido o filme Journey to the Center of the Earth; em 1960, aquele que pode ser considerado outro marco na atualização das utopias veiculares, ainda que desta vez não se trate de Júlio Verne: The Time Machine, dirigido por George Pal, que já havia visitado o universo de H.G. Wells como produtor de The War of the Worlds em 1953. Ao contrário do filme anterior, Pal não transpôs a história original para o século XX. Realizou um filme de época (pelo menos no início, antes do protagonista iniciar sua viagem temporal), com preocupações diferentes das que mobilizaram a equipe de Twenty Thousands Leagues Under the Sea. Ao contrário de um submarino, uma máquina do tempo permanece, e talvez sempre permaneça, um artefato do reino da ficção científica. George Pal rememorou111 a questão pragmaticamente:

Nós modernizamos The War of the Worlds porque os discos voadores eram um lugar- comum naquela época. Em The Time Machine não o fizemos porque tivemos um problema diferente. Ali o problema era convencer o público de que a máquina do tempo era real. Então nós a colocamos no passado, na virada do século, e mostramos incidentes que o público sabia que haviam acontecido, como as mudanças na moda feminina, a Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra Mundial, etc. Até este ponto as pessoas acreditavam, então prosseguiram acreditando que havia coisas no futuro como pequenas pessoas loiras na superfície e monstros albinos abaixo.

O design da Máquina, obra do próprio Pal e do diretor de arte William Ferrari, se tornou outro ícone cinematográfico, talvez não tão influente quanto o Nautilus de Harper Goff, mas igualmente memorável, com sua elegância vitoriana e um certo charme antiquado. A construção do modelo também seguiu os padrões da “estética do refugo”, do do-it-yourself: uma cadeira de barbeiro Berninghaus112 do fim do século XIX foi adaptada dentro de uma estrutura metálica que lembrava um trenó puxado por cavalos, reminiscência de infância de Pal. No prefácio à sua tradução de The Time Machine, Bráulio Tavares113 explica a diferença entre a Máquina de Wells e os veículos de Verne:

A máquina de Wells, contudo, é de uma natureza literária diferente do submarino do Capitão Nemo ou do balão do dr. Ferguson. Sua descrição lembra menos um veículo do que um objeto decorativo ou artístico, como uma caixinha de música ou um ovo

111 http://colemanzone.com/Time_Machine_Project/pal_Time%20Machine.htm.

112 http://colemanzone.com/Time_Machine_Project/berninghaus.htm. 113 WELLS, H.G. A máquina do tempo. Rio de Janeiro, Objetiva, 2010, p. 7-13.

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Fabergé. A adaptação cinematográfica de George Pal (1960) recriou essa máquina (com design de William Ferrari) transformando-a numa espécie de trenó metálico, com um painel de controle, um assento e, num detalhe ausente do livro, um enorme disco rotatório por trás do assento, disco que se põe a girar quando a máquina é acionada. É um dos mais belos artefatos do cinema steampunk e reforça o sentido art noveau, ornamental e puramente estético do engenho imaginado por Wells. Não é um maquinismo utilitário, é uma obra de arte com peças mecânicas.

Talvez a Máquina do Tempo deva ser melhor classificada como uma “distopia veicular”. Sua mobilidade é limitada àquilo que Wells nos habituou a considerar como sendo o Tempo, ou seja, a quarta dimensão; ela não é confortável, não fornece autonomia e não protege o viajante de perigos externos. É apenas bela. Mas de uma beleza desconfortável, pois sua função é antecipar ao seu usuário as tragédias vindouras, o futuro desalentador. O ano de 1961, segundo Brian Taves114 foi o auge das adaptações de Verne para o cinema, com cinco filmes, sem contar as produções televisivas115: Master of the World, baseado em Robur, estrelado por Vincent Price, Valley of the Dragons, adaptação de Hector Servadac, Le triomphe de Michel Strogoff, o já mencionado Baron Prášil e Mysterious Island, mais uma versão do romance, desta vez bastante infiel, mas acrescida de estranhas e fantásticas criaturas concebidas pelo mestre da animação stop-motion Ray Harryhausen. Um detalhe interessante é o design do Nautilus neste filme, explicitamente influenciado por Harper Goff.Em 1962, mais duas adaptações vernianas: Five Weeks in a Baloon, e o retorno dos estúdios Disney a Júlio Verne: In Search of the Castaways, baseado em Les Enfants du capitaine Grant. O primeiro segue a tradição verniana das utopias veiculares, mostrando ao público um estilizado balão de listras brancas e vermelhas, que sustenta uma gôndola estilo império cuja proa é adornada com a cabeça de um unicórnio. Se o filme não é memorável, a imagem deste balão permaneceu. Em 1964, uma adaptação de H.G. Wells retorna às telas com First Men in the Moon, novamente com Ray Harryhausen à frente dos efeitos especiais. O design da espaçonave esférica revestida de chapas de um metal antigravitacional chamado “cavorita”, que permite a ascensão à Lua, evoca o Nautilus de Goff com seu padrão de aço rebitado. Seu interior, apesar de compacto, é elegante e acolchoado. Um fino artefato vitoriano. Dois filmes de 1965, duas comédias, uma produção britânica e uma produção americana, evocaram o fim da era em que os romances científicos foram gestados, embora não tenham se baseado em nenhum deles. Estrearam nos cinemas quase simultaneamente.

114 TAVES, Brian. “Hollywood’s Jules Verne” in TAVES, Brian e MICHALUK, Stephen. The Jules Verne Encyclopedia. Metuchen, Scarecrow Press, 1996, p. 227.

115 As produções televisivas não estão sendo contabilizadas neste trabalho.

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Those Magnificent Men in Their Flying Machines or How I Flew from London to Paris in 25 hours and 11 minutes, dirigido por Ken Annakin, assim como The Great Race, de Blake Edwards, costumam ser considerados exemplos de um obscuro subgênero cinematográfico, normalmente referido como “comédia épica dos anos 60”, embora não haja nenhuma espécie de elaboração teórica que explique, afinal, o que isto quer dizer. Para os propósitos de nosso trabalho, é suficiente reconhecer que desde 1954, após a realização de quatorze filmes em dez anos, cujo ponto de convergência é a evocação das maravilhas tecnológicas tal como foram imaginadas e descritas nos romances científicos e nas viagens extraordinárias, é impossível não olhar hoje para estas comédias sem incluí-las no mesmo fenômeno. Ambas são impressionantes e apoteóticas representações dos primórdios da Era das Máquinas: The Great Race, com suas intermináveis sucessões de balões, dirigíveis, foguetes, automóveis, aeroplanos, locomotivas e submarinos, procura emular as antigas comédias de Mack Sennet da era silenciosa, conhecidas como slapstick116, para contar a história de uma corrida automobilística de Nova York à Paris (inspirada em uma famosa competição que ocorreu em 1908 e que seguiu o mesmo trajeto), onde os competidores tentam suplantar um ao outro por meio de trapaças e curiosos dispositivos mecânicos. Those Magnificent Men, ambientada em 1910, também retrata uma corrida, mas uma corrida de aeroplanos entre Londres e Paris. Vinte réplicas de biplanos, triplanos e monoplanos foram construídas, sendo que seis podiam voar. O filme é estruturado de forma semelhante a Around the World in Eighty Days: foi também filmado em Todd-AO e em sua ouverture apresenta velhos filmes silenciosos que documentavam as primeiras e canhestras tentativas de fazer um aeroplano voar. Ambos os filmes possuem hoje o status de cult, apesar de The Great Race não ter sido um sucesso na época, ao contrário de Those Magnificent Men, cujo sucesso gerou em 1967 uma adaptação cômica de De la Terre à la Lune, Jules Verne´s Rocket to the Moon, também conhecido como Those Fantastic Flying Fools. O próprio Ken Annakin filmou em 1969 uma sequência de seu filme, Monte Carlo or Bust! ou Those Daring Young Men in Their Jaunty Jalopies, desta vez inspirado no histórico rally de Monte Carlo que aconteceu em 1911. Neste meio tempo, filmes como Chitty Chitty Bang Bang, The Lost Continent (1968) e Captain Nemo and the Underwater City (1969) eram produzidos. Em 1970 Billy Wider dirige sua brilhante história contrafactual envolvendo o detetive criado por Conan Doyle, The Private Life of Sherlock Holmes, onde espiões do Kaiser Guilherme II tentam roubar um

116 Estilo de humor, com raízes na commedia dell'arte, que enfatiza o exagero, a fisicalidade e tensão entre o controle e o descontrole de determinada situação. Ver http://www.filmreference.com/encyclopedia/Romantic- Comedy-Yugoslavia/Slapstick-Comedy.html.

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submarino experimental da marinha britânica no Lago Ness. Finalmente, entre 1975 e 1977, o diretor Kevin Connor adapta três histórias fantásticas de Edgar Rice Burroughs, sendo que a segunda, At the Earth’s Core, apresentava a Toupeira de Ferro, veículo metálico sobre esteiras com a parte frontal em forma de perfuradora, brutal por fora, elegante e sofisticado em seu interior, e no qual os protagonistas descem ao centro da Terra para encontrar o reino de Pellucidar. Esta amostra, um tanto exaustiva, e provavelmente incompleta, é suficiente para mostrar que, a partir do marco inicial representado pelo Nautilus de Harper Goff em 1954, durante vinte e três anos a indústria cinematográfica explorou continuamente as imagens produzidas pelos escritores de fantasia e ficção científica de fins do século XIX e início do século XX, Júlio Verne à frente. Estes filmes eram constantemente exibidos nos canais de televisão e povoaram a imaginação de milhares de pessoas. Quando, em fins da década de 1960 e início da década de 1970, começaram a ser publicados os primeiros romances que, mais tarde, viriam a ser considerados como proto-steampunk, já existia um substancial corpus fílmico evocativo das primeiras eras da ficção científica. Em 1979, quando K.W. Jeter publica o livro que, em conjunto com os romances de James Blaylock e Tim Powers, daria início ao subgênero steampunk propriamente dito, Nicholas Meyer produz o filme Time After Time, onde H.G. Wells é representado como o inventor da máquina do tempo e empreende uma viagem para o futuro (1979) para caçar Jack, o Estripador117. Não deixa de ser irônico, após demonstrarmos um movimento contínuo que se inicia com a publicação das Voyages Extraordinaires dos scientific romances, e atravessa o teatro, a ópera e o cinema desde o seu surgimento, em mais de cem anos de escritas, reescritas e releituras, pensarmos na carta de Jeter à revista Locus, em que ele, jocosamente, cunhou o termo steampunk para designar aquilo que ele então chamou de “fantasias vitorianas”, e que, segundo ele, seriam a “próxima grande tendência” (the next big thing). Talvez não estivesse muito claro para ele que, mais do que a próxima tendência, era apenas o próximo passo.

117 Meyer já havia escrito um romance onde Sherlock Holmes encontrava-se com Sigmund Freud, e que também foi filmado em 1976: The Seven-Per-Cent-Solution.

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3 RETROFUTURISMOS

3.1 Princípio da Crononáutica

Em março de 1921, no décimo oitavo número da revista Littérature, o surrealista Jacques Rigaut publicou um breve texto, que chamou de roman, dedicado a André Breton, intitulado Un brillant sujet118. Texto inegavelmente humorístico, mas com uma urgência desesperada, iconoclasta e brutal, característica da vida e da obra do autor, descreve as viagens no tempo do “jovem sentimental” Palentête, a bordo de um dispositivo em formato de ovo gigante, que graças a concepção de uma linha de tempo em espiral, e não em linha reta, consegue viajar para o passado simplesmente se locomovendo em oposição a rotação terrestre119. Nestas viagens, Palentête modifica a História de maneira radical, inúmeras vezes: envenena o Menino Jesus; mutila o nariz de Cleópatra, ainda criança, com um alicate; ocupa o lugar dos profetas bíblicos e dos deuses pré-colombianos; ensina o dogma do suicídio obrigatório aos vinte anos em cinco continentes; e presenteia Homero com um exemplar de La deuxième Aventure céleste de Monsieur Antipyrine, de Tristan Tzara. Após enfrentar as consequências de uma longa série de paradoxos temporais, morre idoso dentro do ovo, no momento de sua construção. Foi H.G. Wells, em 1895, quem legou para o mundo das artes, o dispositivo mecânico de viajar no tempo. A partir da publicação de The Time Machine, a viagem no tempo deixou de “depender dos recursos fantasistas clássicos (um sonho, uma visão, uma poção mágica, uma hibernação prolongada, um transporte involuntário por meios desconhecidos) para instituir, modernistamente, a possibilidade de um mecanismo controlado pelo passageiro” (TAVARES in WELLS, 2010, p. 8). Poderíamos mencionar também o famoso golpe de pé de cabra na cabeça, que faz narrador protagonista de A Connecticut Yankee in King Arthur's Court, de Mark Twain, desmaiar e acordar em Camelot, no século VI. Mas o ano de 1895 marca o surgimento de uma outra espécie de máquina do tempo, como já vimos: o cinematógrafo. “Duas máquinas do tempo que brotaram de um mesmo caldo cultural de

118 http://fr.wikisource.org/wiki/Un_brillant_sujet. Acesso em 12/2014

119 Ideia semelhante será usada cinquenta e sete anos depois no filme Superman-The Movie (1978), no qual o herói, para anular a morte de sua amada, voa ao redor da Terra à velocidade da luz, forçando o planeta a girar em sentido contrário e assim reverter o tempo.

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ideias, dois sintomas de um fim de século em que o homem começou a se sentir capaz de acelerar o Tempo, retardá-lo, fixá-lo, fazê-lo retroceder.” (TAVARES in WELLS, p. 7). A máquina do tempo criada por Lumiére permitiu a retenção da imagem do passado, sua sobrevivência através dos tempos. Suas imagens já pertencem ao passado no momento mesmo em que são produzidas. Este processo é duplicado quando estas imagens do passado reencenam, por sua vez, outro passado ainda mais distante, caso do olhar retrospectivo que o cinema voltou, no período abordado no capítulo anterior, para a era dos scientific romances, das voyages extraordinaires, para os primórdios da Era das Máquinas. A máquina do tempo concebida por Wells permitiu que aquilo que viria a constituir o que chamamos hoje de literatura de ficção científica, expandisse e estabelecesse uma conexão entre dois subgêneros que passariam a ser por ela abarcados: a viagem no tempo propriamente dita, e a história alternativa. Neste ponto teremos que fazer uma espécie de intermezzo para algumas considerações sobre história alternativa e história contrafactual, entre outros temas, para que possamos estabelecer suas ligações com o passado da ficção científica e a reestruturação deste passado operada por subgêneros relativamente recentes como o steampunk. Pois estas ligações existem, em que pesem algumas objeções por parte de escritores, artistas e acadêmicos que se debruçaram sobre este assunto. Até o momento, ao rastrear os elementos que compõe o quadro de referências do steampunk, introduzimos a questão pelo meio do caminho, isto é, aceitando a hipótese de que a origem do subgênero se encontrava em uma imagem, a releitura estética de uma “utopia veicular”, o submarino Nautilus, feita por Harper Goff para o filme de 1954. Em seguida, procuramos demonstrar que este processo já estava implícito no próprio projeto literário e editorial de Júlio Verne e Pierre Jules Hetzel, que promovia uma conjugação de texto e imagem onde ambos formavam narrativas paralelas e complementares, receptivas de serem traduzidas para outras mídias, como o teatro, a ópera e, mais tarde, o cinema (e por que não dizer, a história em quadrinhos). Também mostramos, segundo a leitura de Michel Serres, que todo esse processo era impulsionado pelo caráter mítico- pedagógico da obra de Verne, cujo ponto de partida era a intenção de “reescrever a história do universo”. Júlio Verne, tendo sobrevivido através das décadas e se tornado o pai de um gênero inventado a posteriori, foi constantemente reinventado pelo cinema, que já nasceu sob sua influência. E sendo ele mesmo arauto e produto de uma era científica, sua obra – e a de seus contemporâneos e sucessores imediatos – foi relida pela lente dos novos paradigmas

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estabelecidos pela ficção científica produzida na Era das Máquinas e na Era Atômica, o que teve como efeito exatamente aquilo que um texto coletivo do primeiro número do periódico Steampunk Magazine, ao tentar definir o steampunk, chamou de “um re-visionamento do passado com a percepção hipertecnológica do presente”120. Verne anunciava um mundo novo, e foi justamente no Novo Mundo que sua obra sofreu as revisões mais radicais, desde as reduções drásticas de seu texto até a devolução de suas utopias veiculares à esfera da ficção científica, não em uma simples modernização de seu texto, mas na criação de um verdadeiro passado alternativo. Assim, se considerarmos a obra de Verne e seus desdobramentos como uma linha, ela convergirá, junto a outras linhas para um ponto. Esse ponto, por sua vez, deseja o movimento de retorno para as origens, mas não poderá fazê-lo impunemente, pois nele já convergiram tudo que essas linhas, em sua trajetória, absorveram e acumularam. Do primeiro número da Amazing Stories de Hugo Gernsback, passando pela proliferação de pulps, periódicos, brochuras e filmes, a ficção científica desenvolveu uma série de temas que se tornariam lugares-comuns: viagens no tempo, história contrafactual, história alternativa, mundos possíveis, mundos paralelos, mundos ficcionais. Estes temas são estas linhas, linhas que convergirão para a constituição do steampunk como novo subgênero. No caminho, estas linhas vão adquirir características que servirão como croquis na elaboração deste futuro subgênero. Estes croquis são aquilo que costuma-se chamar proto-steampunk.

3.2 Contra Facta

História contrafactual é definida de modo sucinto pelo historiador Richard J. Evans como a elaboração de “versões alternativas do passado em que uma alteração na linha do tempo leva a um resultado diferente daquele que sabemos que de fato ocorreu”121. História alternativa, ou ucronia, é essencialmente a mesma coisa. A diferença, no caso, é a mesma que existe entre não-ficção e ficção. Após vários exemplos esparsos que remontam desde a Ab urbe condita, ou História de Roma de Tito Lívio, passando por Uchronie (l’utopie dans l’histoire): esquisse historique apocryphe du développement de la civilisation européenne tel

120 CATASTROPHONE ORCHESTRA AND ARTS COLLECTIVE (NYC). “What, then, is Steampunk?” in Steampunk Magazine n. 1, p. 4. Disponível em http://www.combustionbooks.org/downloads/SPM1- printing.pdf.

121 EVANS, Richard J. Altered Pasts: Counterfactuals in History (The Menahen Stern Jerusalem Lectures). Lebanon, Brandeis University Press, 2014, p. 1.

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qu’il n’a pas été, tel qu’il aurait pu être…, publicado em 1857, onde o filósofo Charles Renouvier inventa a palavra “ucronia” no sentido de “utopia da História”, desde a década de 1990 o contrafactualismo vem se afirmando como uma corrente importante dos estudos históricos, ainda que seja passível de várias críticas por parte de alguns historiadores, sejam eles deterministas ou não. Consagrou-se, entre os historiadores adeptos desta prática, a fórmula inicial what if..?. E se Napoleão não fosse derrotado em Waterloo? E se os Estados Unidos não tivessem se envolvido na Segunda Guerra Mundial? A partir desta pergunta inicial, os contrafactualistas criam cenários hipotéticos, possibilidades alternativas a partir de um assim chamado “ponto de divergência”, às vezes um detalhe, que poderia desencadear uma tal mudança no rumo dos acontecimentos que suas consequências poderiam alterar o curso da história por décadas, talvez séculos. Ou por outro lado, uma determinada mudança no curso da história que não modifica, ou, pelo menos, não substancialmente, o resultado conhecido. Os primeiros historiadores não se furtaram em exercer algum tipo de contrafactualismo. Um exemplo clássico é Tito Lívio, que em sua História de Roma imagina possibilidades alternativas para as conquistas de Alexandre Magno. Ou Tucídides, que em sua História da Guerra do Peloponeso elabora mais de vinte alternativas para o resultado dos confrontos. Ou Edward Gibbon e sua famosa especulação sobre os minaretes de Oxford, consequência de uma hipotética derrota de Carlos Martel na Batalha de Poitiers. Mas os exercícios contrafactuais permaneceram, por um longo período de tempo, desde o século XVIII, geralmente como textos satíricos, semi-ficcionais. Um retrospecto histórico e crítico do contrafactualismo é feito pelo historiador Niall Ferguson, no ensaio “Virtual History: Towards a ‘chaotic’ theory of the past”, introdução ao volume por ele organizado, Virtual History: Alternatives and Counterfactuals122. Ferguson deplora dois fatos que, segundo ele, teriam contribuído para o pouco apreço do contrafactualismo no meio acadêmico. O primeiro, evidentemente, é a longeva prática ficcional neste domínio, tanto na literatura como no cinema.

Pensemos, por exemplo, no recente romance de Robert Harris, Fatherland, uma história de detetive situada em uma Europa imaginária, vinte anos após uma vitória nazista. Como esses livros costumam ser, é bem pesquisado. Mas é irremediavelmente ficcional, na medida em que a narrativa segue o padrão clássico de um thriller popular e assim, tende a diminuir a plausibilidade do cenário histórico. Em vez de ser uma catástrofe que quase aconteceu – e para evitá-la, milhões pereceram – uma vitória nazista na Segunda Guerra Mundial torna-se apenas um pano de fundo excitante para uma boa história de se ler na sala de

122 FERGUSON, Niall. “Virtual History: Towards a ‘chaotic’ theory of the past” in ______Virtual History: Alternatives and Counterfactuals. New York, Basic Books, 1999, p. 1-90.

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embarque do aeroporto. Inúmeras outras obras de ficção afirmam essas premissas históricas contrafactuais: Kingsley Amis, em The Alteration, que desfaz ansiosamente o Reforma Inglesa, é outro bom exemplo. Mas eles não têm mais a ver com a história do que os livros de “futurologia”, que a Biblioteca de Londres educadamente classifica como “história imaginária”. Futurólogos oferecem adivinhações sobre qual das alternativas plausíveis que nos confrontam hoje vai prevalecer nos próximos anos, e geralmente baseiam suas previsões na extrapolação de tendências passadas. A julgar pela exatidão de tais obras, no entanto, elas poderiam muito bem ser baseadas em astrologia ou cartas de tarô. (FERGUSON, 1999, p. 7-8)

O segundo fato deplorado por Ferguson, é o caráter amadorístico e excêntrico dos primeiros exercícios de história contrafactual. Seu principal alvo é a primeira antologia de ensaios contrafactuais, organizada por Sir John Collings Squire em 1931, intitulada If It Had Happened Otherwise. Notável não apenas pelo ineditismo, mas também pela qualidade dos ensaístas: Hillaire Belloc, G.K. Chesterton, Winston Churchill, Ronald Knox, Emil Ludwig e André Maurois, entre outros. Curiosamente, a maioria dos colaboradores era antes composta de escritores e jornalistas do que de historiadores de fato, produzindo um híbrido de literatura e estudo histórico que, evidentemente, serviu para tornar a fronteira entre a ficção e a não- ficção, em matéria de counterfactuals, bastante tênue. Ferguson lamenta a suposta falta de seriedade desta primeira iniciativa:

O tom do If It Had Happened Otherwise de Squire era auto-depreciativo; era inclusive subtitulado “lapsos de história imaginária”. Nem todos os seus colaboradores, Squire admitiu desde o início, tinham escrito “precisamente no mesmo plano da realidade. Alguns misturam mais sátira em suas especulações do que outros”. De fato, algumas de suas fantasias lembraram-no da observação de Johnson que “em inscrições tumulares, o homem não está sob juramento”. Infelizmente, a própria introdução de Squire era em si mesma uma espécie de inscrição tumular. História contrafactual “não ajuda muito”, concluiu sem jeito, “como, aliás, ninguém ficará sabendo.” Não é de admirar que o volume tenha sido logo morto e enterrado. Será que o livro de Squire desacreditou a noção de história contrafactual para uma geração? Certamente, algumas das contribuições ajudaram a explicar por que ela passou a ser vista por muitos historiadores como um mero jogo de salão.

“Jogo de salão”, parlour game, é a expressão usada pelo historiador E.H. Carr para desdenhar a prática do contrafactualismo (FERGUSON, 1999, p. 4). E.P. Thompson é ainda mais agressivo: para ele, “ficções contrafactuais” são apenas “Geschichtswissenschlopff, merda anti-histórica” (FERGUSON, 1999, p. 5). Apesar de entendermos a posição de Ferguson, que pretendia defender o contrafactualismo de ataques como esses, cremos que desmerecer Fatherland, uma obra de ficção, como “irremediavelmente ficcional” depõe contra a seriedade de seu propósito. Ferguson parece desejar que os escritores e os artistas de Hollywood deixem a história alternativa em paz para que os historiadores possam trabalhar

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seriamente. E quanto a antologia de Squire, é preciso compreender que o contrafactualismo, na época, estava de longe de qualquer pretensão científica e metodológica, e foi apenas com a aplicação bem-sucedida deste modelo em outras áreas, como a economia (FERGUSON, 1999, p. 17), que alguns historiadores, Ferguson inclusive, começaram a estudar suas possibilidades. Sem a ausência de plausibilidade em favor do humor, sem o jeu d’esprit, e a explicação reducionista dos primeiros ensaios, que tanto incomodam Ferguson, talvez não houvesse um ponto de partida para uma reflexão posterior, mais profunda (e aqui não nos furtamos em fazer a nossa própria especulação contrafactual). Nem tudo na antologia de Squire é considerado desprovido de valor histórico por Ferguson. O engenhoso relato de Churchill, If Lee Had Not Won the Battle of Gettysburg foi escrito a partir do ponto de vista de um narrador-historiador que, vivendo em um mundo alternativo no qual os estados do Norte foram derrotados na Guerra Civil Americana, imagina o que teria acontecido se o Sul não tivesse vencido. Churchill ainda vai mais longe e traça um panorama mundial em que o Império Britânico se torna um mediador entre os Estados Unidos da América e os Estados Confederados da América, resultando numa união das três potências denominada English Speaking Association, a qual impede a Primeira Guerra Mundial. Ferguson considera os questionamentos de Churchill “interessantes”, assim como os de Maurois e Emil Ludwig, mas faz ressalvas ao “wishful thinking retrospectivo” (FERGUSON, p. 11) que norteia suas especulações, isto é, o desejo de ter evitado as calamidades da Grande Guerra. Ao contrário de Ferguson, Richard J. Evans, um crítico do contrafactualismo, vê uma convergência entre este e a literatura de ficção, particularmente a ficção científica que se dedica a tais especulações123:

Reescrever o passado tem sido apreciado pelos autores de romances de ficção científica e de filmes que envolvem viagens no tempo. De fato, história alternativa é um subgênero reconhecido no mundo da ficção científica. Todas essas obras notáveis de ficção e não-ficção compartilham algo em comum na virada cultural pós-moderna que começou no final do século passado. O colapso das grandes ideologias do século 20, sobretudo do marxismo, abriu o passado a uma multiplicidade de trajetórias possíveis. (...) O pós-modernismo encorajou uma indefinição das fronteiras entre passado e presente, entre verdade e ficção; ele enfraqueceu conceitos lineares de tempo e introduziu uma forte ênfase na subjetividade do historiador. (...) A história contrafactual pertence essencialmente a este novo mundo de realidades alternativas, mesmo que seus proponentes possam rejeitar abordagens pós-modernas do passado.

123 EVANS, Richard J. “O passado que não aconteceu” in BBC History Brasil n. 2. São Paulo, Alto Astral, 2014, p. 32.

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Enquanto Ferguson procura separar o contrafactualismo dos exercícios satíricos e ficcionais, de modo a configurar uma metodologia, Evans, recusando essa metodologia, não vê diferenças entre eles. Ambos consideram que a maior parte do que já se produziu no tema é apenas fantasia, desprovida de rigor científico. O que os coloca em direções opostas é que Ferguson, ao contrário de Evans, defende a possibilidade de uma metodologia séria. A questão é espinhosa, e aqui termina o nosso intermezzo historiográfico, uma vez que analisar questões de ordem histórica e suas metodologias não faz parte dos objetivos deste trabalho. Apenas julgamos necessário um breve resumo das discussões mais recentes, de modo a contextualizar o papel da ficção neste debate.

3.3 Ucronia ficcional e universos paralelos

Em ficção, “irremediável ficção”, a história alternativa é uma espécie de negativo do romance histórico. Se Evans não vê diferença entre um exercício de especulação histórica e uma obra de ficção, é porque, nos melhores exemplos, deve existir um grau de plausibilidade que torne o enredo crível. Isaac Asimov, em seu prefácio para o romance Agent of Byzantium124 (1987), de Harry Turtledove, um dos mais prolíficos praticantes do gênero, alerta para a dificuldade de construir um what if…? convincente, em todas as suas possíveis variantes:

Não é fácil escrever uma história de um “se” da história. Uma pequena alteração pode originar outra e ainda outra, até um período posterior se tornar radical, quase incrivelmente diferente do que hoje consideramos ser a realidade. Ou, em alternativa, pode gerar uma diferença que, através de qualquer espécie de inércia social, consiga convergir até um período posterior quase idêntico ao que chamamos realidade, exceto algumas mudanças curiosas – ou irônicas. (ASIMOV in TURTLEDOVE, s/d, p. 7)

É o caso do ensaio de Churchill. É também o caso do livro de Turtledove, um volume composto de pequenos contos independentes mas interligados, que em conjunto podem ser lidos como um romance, conhecidos como fixups, onde são narradas as aventuras de um funcionário do Império Bizantino em uma realidade alternativa na qual o islamismo nunca foi criado, pois Maomé converteu-se ao cristianismo, sendo inclusive canonizado. O Império Persa não sucumbiu e o catolicismo romano permaneceu uma dissidência sem grande

124 ASIMOV, Isaac. “O ‘se’ da História” in TURTLEDOVE, Harry. Agente de Bizâncio, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, p. 7-9.

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influência política em face do cristianismo ortodoxo dominante. Outro romance do mesmo Turtledove, Ruled Britannia125 (2002), ambienta-se em uma Inglaterra dominada pela Espanha após a vitória da Invencível Armada, de modo que William Shakespeare, convivendo com a ameaça da Inquisição, tem de se decidir a escrever uma peça teatral com o intuito de estimular os ingleses à revolta. Em certos romances, o ponto de divergência acontece em um momento ainda mais remoto, provocando aquela cadeia de alterações assinalada por Asimov. Por exemplo, Tunnel Through the Deeps (1972), de Harry Harrison, é uma história alternativa na qual os americanos perderam a Guerra Revolucionária, George Washington foi executado como traidor, e os Estados Unidos ainda estão, em 1973, sob o controle do Império Britânico. O ponto de divergência entre este mundo e o nosso próprio ocorreu muito mais cedo, quando os mouros venceram a batalha de Las Navas de Tolosa na Península Ibérica, em 16 de julho de 1212. Assim, a Espanha foi incapaz de se unificar, devido à presença islâmica em seu território, e, portanto, não pôde financiar a expedição de Cristóvão Colombo em 1492. Em vez disso, foi John Cabot126 quem descobriu a América, poucos anos mais tarde. Quando a ficção científica se apropria do contrafactualismo para construir um passado que nunca houve, a tese de Fredric Jameson sobre a relação entre o romance histórico, no século XIX, e a ficção científica na pós-modernidade, encontra um novo desafio. Para Jameson, a FC “pode ser considerada uma forma historicamente nova e original que nos oferece uma analogia com a emergência do romance histórico no começo do século XIX.” Partindo da interpretação de Lukács127, que vinculava o surgimento do romance histórico com a necessidade da nova classe burguesa de narrar o seu passado, sua história, de modo distinto da aristocracia feudal, Jameson afirma que tanto o romance histórico quanto outras manifestações correlatas, como o filme de época, caíram em desgraça e se tornaram raros (o texto é de 1997) “não apenas porque na era pós-moderna não contamos mais nossa história dessa maneira, mas também porque não mais a experimentamos assim, ou talvez não mais a experimentemos de modo algum.”128A ficção científica, portanto, ao encenar o futuro, manteria uma relação estrutural e dialética com o romance histórico, que reencena o passado.

125 TURTLEDOVE, Harry. O dilema de Shakespeare. Parede, Saída de Emergência, 2006.

126 Giovanni Caboto (1450-1499), navegador italiano conhecido como John Cabot, pois sob as ordens de Henrique VII da Inglaterra descobriu, em 1497, a ilha canadense Newfoundland.

127 LUKÁCS, György. O romance histórico. São Paulo, Boitempo, 2011.

128 JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo, Ática, 1997, p. 289.

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Mas quando é a ficção científica que reencena o passado, como no caso das ucronias e desta ucronia específica que é o steampunk, temos um caso diferente, daí a dificuldade não apenas de definir o que é o steampunk, mas de rastrear suas origens, de fazer a arqueologia deste subgênero, uma vez que os sítios arqueológicos onde as pistas se encontram estão saturados de peças de naturezas díspares, como o grande salão do submarino de Nemo. Como vimos, Wells introduz na literatura o recurso ao dispositivo de viajar no tempo. Un brillant sujet, o curto texto de Jacques Rigaut com que abrimos este capítulo, foi pioneiro em descrever alterações no passado histórico pelo uso deste dispositivo129. Mas seu enredo, como era de se esperar, não se preocupa com consequências a longo prazo destas alterações. Isto, evidentemente, estava longe do horizonte de intenções de Rigaut. Seu texto é uma pilhéria extravagante, bem ao gosto surrealista, que poderia tranquilamente figurar na Anthologie de l'humour noir de Breton. É o ano de 1939 que marca em definitivo o surgimento da primeira história de ficção científica onde a viagem no tempo é parte da causa de uma alteração histórica profunda: Lest Darkness Fall130, de L. Sprague de Camp, onde um arqueólogo em Roma sofre um deslizamento temporal (timeslip) e é transportado para a Roma do século VI, próxima ao seu declínio e queda. Seu objetivo então é realizar implementações tecnológicas no intuito de evitar a chegada da Idade Média. Outro recurso que a ficção científica vai utilizar para desenvolver histórias alternativas é a ideia de “mundos paralelos”. Brian Stableford e David Langford, na Science Fiction Encyclopedia assim a definem:

Um mundo paralelo é outro universo situado “ao lado” do nosso, deslocado a partir dele ao longo de uma quarta dimensão espacial (mundos paralelos são muitas vezes referidos na FC como “outras dimensões”). Embora universos inteiros possam estar paralelos nesse sentido, a maioria das histórias se concentram em Terras paralelas. A ideia de mundo paralelo constitui um quadro útil para a noção de História Alternativa, e muitas vezes é usada dessa forma131. A maioria dos “mundos secundários” da fantasia moderna são mundos paralelos explícitos ou implícitos. (...) A ideia de que outros mundos se encontram paralelos ao nosso e, ocasionalmente, se conectam com ele, é uma das mais antigas ideias na literatura especulativa e na lenda; Os exemplos vão desde o País das Fadas ao “plano astral” dos espíritas e místicos. Há dois temas folclóricos básicos ligados a essa noção; no primeiro, um

129 Jorge Luis Borges, por outro lado, intuiu um sentido contrafactual implícito em The Time Machine de Wells, no ensaio “A flor de Coleridge”. O Viajante do Tempo retorna com uma flor murcha do futuro. Borges medita na “flor futura, a contraditória flor cujos átomos agora ocupam outros lugares e ainda não se combinaram”. A hipótese de a marcha da História poder ser modificada pela simples presença de um objeto do futuro é a inversão do “efeito borboleta” de Ray Bradbury em “A Sound of Thunder”. Ver BORGES, Jorge Luis. “Outras Inquisições” in Obras Completas, São Paulo, Globo, 1999, p. 17.

130 DE CAMP, L. Sprague. A luz e as trevas. Lisboa, Livros do Brasil, 1987.

131 Grifo nosso.

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ser humano comum é transportado para uma terra fantástica onde ele / ela passa por aventuras e pode encontrar o amor e satisfação que permanecem fora de alcance na Terra; no segundo, uma comunicação ou visitação do outro mundo afeta a vida de um indivíduo deste mundo, muitas vezes, ferindo ou destruindo essa pessoa. Ambos os padrões são muito evidentes na ficção imaginativa moderna, moldando toda uma gama de subgêneros. (http://www.sfencyclopedia.com/entry/parallel_worlds)

Uma Terra paralela, se não for o exato espelho da nossa, frequentemente possui uma cronologia paralela. Em uma ucronia tradicional, imaginamos uma linha do tempo diferente daquela que a História registra. Em uma Terra paralela, podemos ter uma linha de tempo divergente que não altera a existência da nossa, a não ser que o ficcionista crie alguma espécie de portal, que à maneira das cavernas que levam ao Hades, estabeleça uma comunicação entre os dois mundos, o que necessariamente afetará o funcionamento de ambos. É o caso de uma história pioneira na utilização deste conceito, The Sidewise of Time (1934), de Murray Leinster, que conta a história de um cataclismo que provoca o intercâmbio entre várias linhas de tempo alternativas, fazendo com que surjam legiões romanas nas periferias de St. Louis, e drakkars vikings aportem em Massachussets. Esta ideia pode ser expandida indefinidamente, como no conceito de multiverso, onde temos não apenas um mundo paralelo, mas uma série infinita de mundos com linhas de tempo diferentes. The Worlds of Imperium132, de Keith Laumer, que o artista gráfico e estudioso do steampunk Krzysztof Janicz considera133 o primeiro romance representativo deste subgênero, trabalha com esse conceito. Um outro tipo de mundo paralelo, também referenciado pela Science Fiction Encyclopedia, é aquele que comporta a existência de mundos ficcionais, indistinguíveis do mundo real, e que, em consonância com a história alternativa, afetam ou modificam a cronologia. É uma modalidade de ficção recursiva, ou transficcionalidade. Segundo o conceito134 de Richard Saint-Gelais,

Dois (ou mais) textos apresentam uma relação transficcional quando eles compartilham elementos como personagens, locais imaginários, ou mundos ficcionais. A transficcionalidade pode ser considerada como um ramo da intertextualidade, mas geralmente esconde esta ligação intertextual porque nem cita, nem reconhece as suas fontes. Em vez disso, ele usa o cenário e /ou os personagens

132 LAUMER, Keith. Mundo alternante. Lisboa, Livros do Brasil, s/d.

133 Janicz começou a organizar uma Steampunkopedia, infelizmente interrompida em 2010. Seu quadro cronológico é extenso e abarca todas as formas de mídia. Disponível em: http://efanzines.com/SAC/Steampunkopedia.pdf.

134 SAINT-GELAIS, Richard. “Transfictionality” in HERMAN, David, JAHN, Manfred & RYAN, Marie-Laure. Routledge Encyclopedia of Narrative Theory. London and New York, Taylor & Francis e-Library, 2010, p. 612- 13.

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do texto-fonte como se eles existissem de forma independente. (SAINT-GELAIS, in HERMANN, JAHN, RYAN, p. 612)

O steampunk, como veremos, usa e abusa deste ramo da intertextualidade, uma vez que opera com as referências do universo ficcional gestado no século XIX e no início do século XX, de Júlio Verne aos pulps, passando por suas releituras midiáticas, e não se contentando apenas em entrelaçar mundos ficcionais, mas também entrelaçá-los com o nosso mundo e com mundos paralelos, reencenando o passado e construindo histórias alternativas, ao mesmo tempo que desfaz as fronteiras entre realidade e ficção. Um bom exemplo é um dos romances de FC considerado como proto-steampunk, Frankenstein Unbound135, de Brian Aldiss, publicado em 1973. O jogo intertextual já começa no título, pois O moderno Prometeu é o subtítulo do romance original de Mary Shelley, e Prometheus Unbound é o título de um drama lírico de Percy Shelley. Como no conto de Leinster, uma série de choques de linhas do tempo de Terras paralelas, causados por fendas abertas em decorrência de combates aéreos com armas nucleares na estratosfera, alteram a geografia e a noção de tempo do nosso mundo, no ano de 2020. Joe Bodenland, o protagonista, vê-se repentinamente na Genebra do ano de 1816, e para seu espanto, presencia o julgamento da governanta Justine Moritz, acusada do assassinato de um menino, William. São personagens do romance de Mary Shelley. Bodenland descobre que, neste mundo paralelo, os personagens do romance existem realmente, e dividem o mesmo plano de realidade com sua autora, a qual encontra na companhia de Lord Byron e Percy Shelley. O choque produzido pela constatação da existência desses planos de realidade, principalmente quando Bodenland se vê frente a frente com o próprio Barão Victor Frankenstein, o levam à seguinte reflexão: “O meu ego superior tinha assumido o comando – chamem-lhe o resultado do choque temporal, se quiserem, mas a verdade é que me sentia na presença de um mito e, por associação de ideias, aceitava-me como sendo uma personagem mítica!” (ALDISS, 1988, p. 43). Tunnel Through the Deeps, de Harry Harrison, além de ser uma história alternativa, como já vimos, também opera no nível da transficcionalidade e interliga mundos ficcionais com o mundo real: um dos personagens é um detetive chamado Richard (Dick) Tracy, e Harrison ainda homenageia de forma jocosa seus colegas de profissão, criando personagens como Lord (Kingsley) Amis e o Reverendo (Brian) Aldiss. É também um jogo proposto ao leitor, ou espectador, que desafia as questões de autoria e de unidade do corpus textual. Saint-Gelais exemplifica:

135 ALDISS, Brian. Frankenstein libertado. Lisboa, Livros do Brasil, 1988.

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A perspectiva mundos possíveis/ficção insiste na acessibilidade entre os reinos fictícios e na relação ambígua entre os respectivos componentes. A relação entre o Sherlock Holmes de Conan Doyle e o Holmes em, digamos, o pastiche de Michael Dibdin The Last Sherlock Holmes Story é obviamente mais forte do que a simples homonímia, mas muitos leitores provavelmente se recusarão a interpretá-la como rigorosamente idêntica, uma vez que isso implicaria que as aventuras do último se tornem parte da biografia “autêntica” do primeiro. A solução aqui pode estar em considerar as versões transficcionais como contrapartes, ou seja, como habitantes de diferentes mundos possíveis, tendo estreita relação com o seu original, mesmo que possa parecer contraintuitivo fixar o original e a versão em mundos separados. Pode-se também perguntar que grau de semelhança é necessário para sustentar essa relação de contrapartida. Quantas – e quais – propriedades do original podem ser modificadas, adicionadas ou suprimidas na versão, sem que esta última possa ser considerada uma entidade completamente diferente, em vez de uma contraparte (...)? (SAINT-GELAIS, in HERMANN, JAHN, RYAN, p. 612)

O supracitado Brian Taves já havia advertido que, em relação às adaptações e apropriações dos enredos e personagens de Verne, seu texto “não é mais simplesmente os seus romances, mas o acúmulo de impressões adquiridas através de várias versões nas artes do espetáculo.” Poderíamos também dizer, das várias versões, adaptações, apropriações e crossovers do universo de Verne e de outros, como temos demonstrado desde o início de nosso trabalho. Estas linhas, estas tendências da ficção científica irão se amalgamar para formar aquilo que será mais tarde conhecido como steampunk. Mas o problema de definir o subgênero steampunk é semelhante ao problema de definir a ficção científica. Todo novo gênero procura seus antecessores. E frequentemente acontece de nem todos se parecerem entre si, como os precursores de Kafka, que Jorge Luis Borges, com seu humor peculiar, “premeditou” examinar136. Já vimos como três escritores bastante diferentes entre si – Verne, Wells, Poe – se tornaram os “pais da ficção científica” por obra de seu criador, Hugo Gernsback. Novamente como no texto de Borges (1990), o trabalho de um escritor “modifica nossa concepção de passado, como há de modificar a de futuro.”

3.4 Punks a vapor

136 BORGES, Jorge Luis. “Kafka e seus precursores” in Outras Inquisições. São Paulo, Globo, 1990, p. 96-98.

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Pois seguir os passos de Gernsback para rastrear os antecessores do steampunk foi justamente o que fez Krzysztof Janicz, responsável pelo site polonês Retrostacja137. Realizou o trabalho notável de organizar uma cronologia de tudo que pudesse ser considerado ou associado ao steampunk, seja na literatura, no cinema, nos quadrinhos e nos jogos, eletrônicos ou não. Sua Steampunkopedia é referência obrigatória para os interessados na matéria. Mas mesmo um trabalho desta envergadura padece de alguns problemas de ordem conceitual. Diz Janicz:

A Cronologia Steampunk, o elemento central da Steampunkopedia, foi provavelmente a primeira tentativa de reconstruir uma história e uma evolução do gênero. Meu objetivo era reunir tudo o que abrange a definição contemporânea de steampunk (ou as muitas definições coexistentes – ver p.72): da moderna FC, fantasia e horror ambientadas no século 19 e histórias alternativas retrofuturistas, a loucos crossovers, pastiches e mash- ups. Sendo um trabalho em progresso permanente, a lista tem rapidamente multiplicado seu número inicial de 500 títulos, atingindo uma massa crítica depois de100 relatórios de atualização quinzenais em julho de 2007. Nessa altura o Dieselpunk entrou em destaque, o que deu a chance de dividir a Cronologia em dois arquivos separados (ver p.57). Depois de mais de 100 relatórios (semanais, devido à popularidade do gênero ter atingido o pico- ver p.56) o projeto foi cancelado e removido em Maio de 2010. (JANICZ, 2010, p. 1)

A cronologia de Janicz nos mostra claramente que, de 1962 à 2010, existe um crescimento progressivo de “fantasias vitorianas” na literatura de ficção científica e em outras mídias, com o exemplo inicial solitário de Keith Laumer e seu The Worlds of Imperium, passando por um período importante que vai de 1971 à 1974, com The Warlord of the Air, de Michael Moorcock (1971); Tarzan Alive (1972), The Other Log of Phileas Fogg (1973), Doc Savage: His Apocaliptic Life (1973), The Adventures of a Peerless Peer (1974), todos de Philip José Farmer; e os supracitados Tunnel Through the Deeps (1972), de Harry Harrison e Frankenstein Unbound (1973), de Brian Aldiss. Farmer, por exemplo, é considerado uma grande fonte de inspiração pelos artistas steampunk. Nesta série de quatro livros, ele deu início ao universo ficcional Wold Newton Family, no qual ele explora as coincidências biográficas de vários personagens icônicos da literatura fantástica e de aventuras do século XIX e início do século XX, criando teias de relações inclusive familiares entre Sherlock Holmes, Lord Greystoke (Tarzan), Doc Savage, Phileas Fogg e outros. O nome Wold Newton Family originou-se de um fato: a queda de um meteorito próximo à aldeia de Wold Newton, no condado de Yorkshire, em 1795. Esse meteorito, segundo a fantasia contrafactual de Farmer, teria propriedades radioativas e afetou um grupo de pessoas que estavam próximas ao local da queda em uma carruagem, provocando mutações genéticas que dotaram seus

137 http://steampunk.republika.pl/main.html.

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descendentes de faculdades excepcionais, tais como extrema inteligência, força física incomum e grande capacidade de arquitetar empreendimentos benéficos ou maléficos. Farmer deu início ao projeto com a publicação de uma falsa biografia de Greystoke, Tarzan Alive, seguido de outra falsa biografia, desta vez de Doc Savage, personagem de pulps, criado na década de 1930. Podendo ser classificado como um “louco crossover, pastiche ou mash-up”, como quer Janicz, este universo ficcional criado por Farmer é influência direta para experiências steampunk mais recentes, como Anno Drácula138, de Kim Newman, publicado em 1992, que se vale de setenta e dois personagens retirados da literatura, dezenove personagens cinematográficos e treze personalidades históricas para contar uma história alternativa do Drácula de Bram Stoker; ou a saga em quadrinhos de Alan Moore e Kevin O’Neill, The League of Extraordinary Gentlemen139, de 1999. Examinando a cronologia de Janicz, percebemos que o número de “fantasias vitorianas” permanece razoavelmente estável de 1974 à 1978, quando surge o conto “The Ape-Box Affair”, escrito por um autor associado diretamente ao steampunk, James P. Blaylock, que marca o início da série protagonizada pelo personagem Langdon St. Ives. Em 1979, temos a publicação de outro romance diretamente associado ao steampunk, Morlock Night, de K.W. Jeter. Nesse ínterim, Thomas F. Monteleone publica The Secret Sea, sua versão alternativa da história do Capitão Nemo, e Brian Aldiss prosseguiria com a temática iniciada em Frankenstein Unbound e publica em 1980 Moreau’s Other Island140. E em 1983, The Anubis Gates de Tim Powers, chega às livrarias. Quando Jeter publica Infernal Devices em 1987, a palavra steampunk entra em circulação, mas só será assumida como um subgênero em 1995, quando Paul DiFilippo publica The Steampunk Trilogy, volume contendo três histórias. Antes disso, em 1990, William Gibson e Bruce Sterling publicam um dos mais comentados romances associados ao subgênero, The Difference Engine, uma releitura contrafactual de Sybil (1845), de Benjamin Disraeli. No mesmo ano, Aldiss escreve a sua terceira ucronia ficcional envolvendo o fantástico vitoriano, Dracula Unbound141. O fluxo de “fantasias vitorianas”, agora confortáveis sob o rótulo steampunk, continua a aumentar e, em 1999, com a publicação do primeiro número da minissérie em quadrinhos

138 NEWMAN, Kim. Anno Dracula. São Paulo, Aleph, 2009

139 Moore declara em entrevista para o site newsarama. que Farmer foi uma influência fundamental. Cf. http://www.newsarama.com/2776-mondo-moore-sinclair-s-norton-remembering-farmer.html. Acesso em 12/2014

140 ALDISS, Brian. A outra ilha do Dr. Moreau. Lisboa, Livros do Brasil, 1986.

141 ALDISS, Brian. Drácula libertado. Lisboa, Caminho, 1994.

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The League of Extraordinary Gentlemen, de Alan Moore (texto) e Kevin O’Neill (arte), o steampunk atinge um público mais amplo, populariza-se. E a partir deste momento, como podemos ver na cronologia de Janicz, até o ano de 2010 – quando é interrompida – vemos um aumento progressivo e considerável de livros, jogos, quadrinhos e filmes142 bem como o surgimento de toda uma subcultura que procura emular a Era Vitoriana através de moda, artesanato e ourivesaria. O elemento punk aí se encontra mais presente, uma vez que os produtos e objects d’art manufaturados por estes artesãos seguem a lógica DIY, do-it- yourself. É evidente que, quando o objetivo declarado de Janicz é reunir tudo que abrange um amplo leque de definições de determinado objeto, corre-se o risco de nada definir, ou ainda, que o objeto em questão não é definível, de modo a comportar um compósito de elementos. O primeiro exemplo na cronologia de Janicz ilustra bem o problema: The Worlds of Imperium, de Keith Laumer, publicado em 1962, é considerado por Janicz o primeiro romance steampunk. É a história de Brion Bayard, diplomata americano em Estocolmo, que é sequestrado pela tripulação de um veículo que viaja através de mundos paralelos. Estes mundos fazem parte de um complexo denominado “A Teia”, que é definida como “o complexo de linhas alternativas que constituem a matriz de toda a realidade simultânea” (LAUMER, p. 19). Os tripulantes do veículo pertencem a uma Terra paralela, onde a principal potência política é o Império Anglo-Germânico, em um século XIX alternativo. Outras Terras paralelas foram destruídas em guerras nucleares, com exceção da nossa, e de outra, semelhante a uma ditadura militar do Oriente Médio, que se torna uma ameaça ao Império, uma vez que seus habitantes também descobriram uma forma de viajar através das realidades alternativas, e preparam uma grande invasão, munidos de armas atômicas. O propósito do sequestro de Bayard deriva de que, neste mundo beligerante, o seu duplo alternativo é o líder político responsável pelos planos de guerra. A ideia é assassiná-lo e instalar Bayard em seu lugar, para salvaguardar a paz entre os mundos. Mas a trama política é mais complexa do que os estrategistas do Império imaginam, e o confronto de Bayard com o seu duplo revelará um sórdido ardil perpetrado por traidores e espiões. Como podemos ver, se o termo steampunk foi inventado para abrigar as “fantasias vitorianas” que três escritores californianos estavam produzindo entre o final da década de

142 O cinema, a partir do fim do século XX, vai redescobrir as “fantasias vitorianas” graças ao aumento da visibilidade do steampunk na mídia. A nova série de aventuras de Sherlock Holmes dirigidas por Guy Ritchie e protagonizadas por Robert Downey Jr., ou o Van Helsing (2004) de Stephen Sommers, são apenas alguns exemplos.

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1970 e meados da década de 1980, o interessante enredo do romance de Laumer contém apenas um elemento que poderia ser classificado como tal: o fato de existir um império vitoriano em uma realidade paralela que desenvolveu uma tecnologia para viajar de uma realidade para outra, inexistente em qualquer período do nosso mundo. Pois se a simples presença deste elemento é suficiente para garantir ao romance esta alcunha, então poderíamos ir ainda mais longe e considerar o próprio Júlio Verne, ou o próprio H.G. Wells, como escritores steampunk, o que seria um despropósito. Mais grave é a inclusão das comédias cinematográficas de 1965, Those Magnificent Men e The Great Race, como exemplos de cinema steampunk. Como dissemos no capítulo anterior, estes filmes são evocações cômicas, nostálgicas e hiperbólicas dos primórdios da Era das Máquinas. Dizer simplesmente que são exemplos de cinema steampunk é não compreender aquilo que já afirmamos: que o passado da ficção científica sempre foi uma tendência da ficção científica; que a ficção científica sempre olhou para o passado tanto quanto olhou para o futuro. E mesmo no período conhecido como Golden Age, se a literatura privilegiava quase que exclusivamente o futuro, o cinema, cumprindo à perfeição o seu papel de máquina de explorar o tempo, voltou suas lentes para o século XIX, e acima de todos, para Júlio Verne e suas voyages extraordinaires. O que podemos perceber, seguindo a linha de raciocínio que desenvolvemos desde o início deste trabalho, é que existe uma tradição na literatura de ficção científica – e aqui deveremos utilizar o termo “literatura” em um sentido amplo, que comporta imagem e texto, teatro e cinema – uma linha contínua que começa com Júlio Verne, passa por todos os modernos criadores de mitos do século XIX e avança até o século XXI, uma linha que, quanto maior é o seu avanço, mais ela olha para trás, para aquele período de descobertas e especulações, cujo impacto na vida das pessoas nós hoje mal podemos vislumbrar. Curiosamente, aquele que é o verdadeiro antepassado ilustre da estética steampunk, como demonstramos no capítulo anterior, é justamente aquele que se encontra ausente da cronologia de Janicz: a desconstrução operada por Fleischer, Fenton e Goff para o Twenty Thousand Leagues Under the Sea dos estúdios Disney, assim como as colagens surrealistas de Karel Zeman, embora, com relação a este último, Janicz admita a lacuna (JANICZ, p. 1). Outro exemplo ausente da cronologia, desta vez um exemplo literário, é o romance Bring the Jubilee143, de Ward Moore, publicado em 1953. É uma das melhores e mais

143 MOORE, Ward. E tudo o tempo levou. Lisboa, Classica Editora, 1988. Note-se a engenhosidade do título lusitano: é um trocadilho com E tudo o vento levou, que é como o livro de Margaret Mitchell e o filme de Victor Fleming, Gone With the Wind, são conhecidos em Portugal. Tratando-se de uma história de viagem no tempo e Guerra Civil Americana, a tradutora Ana Paula Gouveia, (ou o editor) não pensou duas vezes.

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famosas histórias de viagem no tempo, ucronia e retrofuturismo, e uma das mais engenhosas reconstruções contrafactuais da Guerra Civil Americana. A trama inicia-se em 1938, em uma realidade alternativa na qual os estados confederados do Sul venceram a guerra civil e tornaram-se uma superpotência. Nesta realidade, os principais meios de transporte são locomotivas e automóveis movidos a vapor e dirigíveis, uma vez que o motor a combustão nunca foi inventado, e o telégrafo ocupa o lugar do telefone como meio de comunicação doméstico. Bring the Jubilee deu origem a uma tradição de romances steampunk ambientados na Guerra Civil Americana, período histórico de grande desenvolvimento tecnológico nos Estados Unidos. Não haveria nenhum motivo para este romance não ser incluído em uma cronologia cujo conceito fosse tão abrangente quanto o de Janicz. Uma possível solução para o problema talvez seja considerar todos esses exemplos como pertencentes à categoria de “retrofuturismo”, da qual o steampunk seria uma das vertentes. Mas é provável que esta solução apenas torne a questão ainda mais complexa, já que o steampunk é multifacetado, como veremos nos exemplos a seguir.

3.5 Steampunk como fantasia vitoriana

Morlock Night144, de K.W. Jeter, é um exemplo perfeito do que ele chamou de “fantasia vitoriana”. É um romance bastante imperfeito, e raros são os comentadores que se dispõe a um gesto benevolente para com este livro que, não fosse por mais nada, iniciou todo esse movimento. No entanto, por trás da aparente incongruência de seu enredo e suas ideias, encontramos alguns pontos importantes para o posterior desenvolvimento da estética steampunk, bem como de seus paradoxos. Sequência de The Time Machine, de H.G. Wells, o livro começa quase exatamente onde seu predecessor termina, ou seja, ao final da espantosa narrativa do Viajante no Tempo, perante uma plateia de incrédulos convidados. O personagem principal, retirado do próprio romance original, é descrito pelo narrador de Wells como um homem “que eu não conhecia: um indivíduo tímido e tranquilo, de barba, e que, pelo menos ao que pude observar, não disse uma só palavra a noite inteira.” (WELLS, 2010, p. 30). Este trecho é a epígrafe do romance de Jeter, evidenciando o seu recurso. Este

144 JETER, K.W. Morlock Night. Nottingham, Angry Robot, 2011.

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personagem, narrador da história, é identificado por Jeter como sendo Edwin Hocker, estudioso de antigas línguas celtas, que achava-se presente durante a narrativa do Viajante. Voltando para casa, Hocker percebe caminhando ao seu lado outro homem que estava presente na reunião, embora não se lembrasse dele. Ao contrário de Hocker, que manteve-se cético, o desconhecido não apenas acreditou na narrativa do Viajante, como manifesta a Hocker seu temor de que os morlocks se apropriem da Máquina do Tempo e recuem para o ano de 1892, no intuito de preparar uma invasão que assegure o seu futuro domínio sobre a Terra, tal como testemunhado pelo Viajante em sua jornada ao ano de 802.701. Diante da incredulidade de Hocker, o desconhecido, que não é outro que não Ambrosius Merlinus, o mago Merlin em pessoa, enfeitiça Hocker e o transporta para o futuro, onde ele se vê em meio a guerra impiedosa entre a humanidade e os morlocks. Merlin o traz de volta e explica que a única esperança da humanidade é o prometido retorno do Rei Artur, o único capaz de enfrentar a ameaça. Neste ponto da história, o leitor precisa de um alto coeficiente de suspension of disbelief para prosseguir na leitura. Afinal, não se espera encontrar Merlin e Artur em uma história de ficção científica que se pretende uma continuação de H.G. Wells. Mas isto é apenas o começo. Ao longo da leitura, o leitor irá se deparar, entre outras coisas, com uma população de miseráveis que vive nos esgotos de Londres, se alimentando de ratos, e convivendo em meio aos restos de uma avançada civilização atlante (incluindo um submarino intacto: Wells encontra-se com Verne no início da estética steampunk) e que serão os progenitores dos futuros morlocks. E então, a revelação inesperada: o narrador, Edwin Hocker, é ele próprio a reencarnação do Rei Artur que derrotará os morlocks, o que de fato ocorre. Ao final, destruída a ameaça, Merlin comunica a Hocker que sua vida chegou ao fim, e que Artur deve retirar-se para o seu sono, aguardando o momento em que ele seja novamente necessário. Antes de morrer, as palavras com que Hocker encerra sua história são: “Apenas alguns momentos haviam se passado quando a escuridão dobrou-se sobre mim como a mais suave e mais calorosa das mortalhas. E então, neste tempo e lugar – o ano do Senhor de 1892 na Inglaterra de Vitória – eu nada mais vi.” (JETER, p. 321-322) Ficamos sabendo por esse trecho ao final do livro, que o narrador, desde o início, era o Rei Artur em seu sono vigilante. Mas de onde ele narra? Por que meios? Jeter, sabiamente, não explica. Uma das explicações para tal enredo “histórico-demente” é fornecida por Tim Powers em seu prefácio (p. 7-11) a reedição de 2011. Inicialmente o livro foi concebido para fazer parte de uma série britânica cujo tema era precisamente o retorno de Artur. O projeto não foi

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adiante, mas Jeter escreveu o livro mesmo assim. Embora a justaposição de elementos tão díspares possa incomodar o leitor menos benevolente, alguns pontos devem ser destacados. Estes pontos dizem respeito a uma intertextualidade menos evidente, e a um aspecto da subcultura steampunk relacionado à prática de artes e ofícios, ao do it yourself dos artesãos e artistas plásticos identificados com essa estética. O primeiro é uma observação do crítico e escritor Adam Roberts, que assina o posfácio (p. 325-332) da edição de 2011: a aparente incoerência do enredo deve-se ao fato do livro ser “um imaginativo contraponto textual” a A Connecticut Yankee in King Arthur's Court, de Mark Twain. O livro de Twain, como sabemos, conta a satírica história de uma viagem no tempo, através da qual o protagonista volta à Inglaterra do século VI, para a corte arturiana. Roberts admite que sua teoria não se baseia em nenhuma evidência, mas aponta uma curiosa correlação: o livro de Twain é sobre o sofrimento dos pobres sob o jugo da aristocracia cavalheiresca, no passado; o livro de Wells é sobre o devoramento desta aristocracia, ociosa e fragilizada, pelos antigos proletários, brutalizados e vivendo nos subterrâneos, no futuro. O segundo ponto diz respeito a um dos elementos mais importantes da cultura vitoriana, estreitamente relacionado com o processo de industrialização responsável pela clássica imagem da Londres do século XIX tal como interpretada e descrita por Dickens: a recusa desta modernidade por parte de um grupo de artistas, poetas e pintores, conhecidos como pré-rafaelitas. Diz Elizabeth Jenkins em seu livro Os mistérios do Rei Artur145:

Na segunda metade do século XVII, Artur ainda foi um nome usado para chamar a atenção; já no século XVIII, Artur era um assunto preservado por antiquários, não sendo levado muito a sério por leitores comuns. Quando voltou a ser assunto de interesse literário sério, os ingleses haviam passado por uma mudança sem limites na estrutura da vida diária, na sua forma de pensar, consequência do desenvolvimento da Revolução Industrial. Os ingleses sentiam que, com a força e a rapidez da Revolução Industrial, estariam para sempre separados da longa história de seu passado; e, de fato, isso significa, hoje, pertencer a apenas uma pequena parte dessa história, representada pelos últimos cento e cinquenta anos. (…) O crescimento acelerado de uma população em rápido desenvolvimento e a escala veloz de expansão dos bens manufaturados disponíveis para o consumo, uso e lazer, refletia-se no Catálogo Ilustrado da Exposição Internacional, de 1862. Seu prefácio dizia: “Podemos não ser mais virtuosos, criativos ou educados que nossos ancestrais, mas temos o vapor, o gás, as ferrovias e os teares e, apesar de sermos em maior número, temos mais dinheiro para gastar”. O desenvolvimento industrial ultrapassou a consciência social: às condições chocantes de trabalho nas minas, fábricas e moinhos somava-se a vida nos bairros pobres – antros de vício e sofrimentos – e a falta cuidados sanitários, que levaram à eclosão violenta de cólera, tifo e difteria em Londres, nos anos 1850. (JENKINS, 1994, p. 172-174)

145 JENKINS, Elizabeth. Os mistérios do Rei Artur. São Paulo, Melhoramentos, 1994.

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O estado de espírito de muitos jovens artistas dessa época, ecoava as palavras de Mathew Arnold, que em seu poema de 1853, The Scholar Grey, falava sobre essa “estranha doença da vida moderna” (JENKINS, p. 177). Um ano depois, Charles Dickens escreveu Bleak House, cujo primeiro capítulo é famoso por sua descrição do nevoeiro de Londres. No mesmo ano, Dickens publica Hard Times, que descreve o “canal negro e um rio que deslizava violáceo de tanto corante malcheiroso” na cidade de Coketown, e seus “vastos aglomerados de edifícios cheios de janelas que tilintavam e tremiam o dia inteiro, onde os pistons das máquinas a vapor se moviam monotonamente, para cima e para baixo, como a cabeça de um elefante em pleno surto de neurastenia melancólica”146. Ao lado de toda essa desumana feiura industrial, existia na Inglaterra a convicção “de que a nova Beleza do século XIX deve se expressar através das forças da ciência, da indústria e do comércio, destinadas a suplantar valores morais e religiosos que no passado exerceram um predomínio doravante exaurido”147. É pela recusa a essa estética, e aos efeitos perversos da mesma ciência que deveria criar a nova beleza, que os teóricos pré-rafaelitas, partidários de um retorno à simplicidade medieval, vão atualizar a imagética arturiana em pinturas, vitrais e poemas. E é pela recusa da civilização das máquinas e seus produtos industrializados que William Morris vai fundar a Central School of Arts and Crafts, “com sua glorificação da Beleza artesanal e sua proposta de um retorno ao trabalho manual” (ECO, 2010, p. 368). Morris, segundo Carl E. Schorske148, era uma espécie de “ludita estético”, que “direcionou sua ‘guerra santa’ contra a fábrica e seus produtos, contra todo o ambiente deplorável da Inglaterra industrial” (SCHORSKE, p. 110). Do medievalismo inicial de sua juventude, quando pertencia à Irmandade Pré-Rafaelita, Morris torna-se na velhice um ativista político, socialista, mas que conseguiu unir as duas pontas da sua vida no romance utópico News from Nowhere, publicado em 1890, seis anos antes de sua morte e cinco anos antes de The Time Machine. Schorske diz que, neste romance, “Morris preenche o futuro socialista com aquela imagem romântica da Idade Média tão típica da época de sua juventude”.

Imagina a Londres futura, a Londres de 1962: um amontoado de pequenas aldeias novamente. Não existem mais fábricas. Há salmões no Tâmisa e os homens passam

146 DICKENS in ECO, Umberto. História da feiúra. Rio de Janeiro, Record, 2007, p.336. A comparação dos pistons da máquina a vapor com a cabeça de um elefante pode, talvez, ter influenciado Verne em La Maison a vapeur.

147 ECO, Umberto. História da beleza. Rio de Janeiro, Record, 2010, p. 366.

148 SCHORSKE, Carl E. “A busca do graal: Wagner e Morris” in Pensando com a história: indagações na passagem para o modernismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 108-123.

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seu tempo no jogo criativo de artesãos felizes. As câmaras do Parlamento são um mercado de esterco, seus antigos poderes foram tomados pelo cisco local. Os trajes são do século XIV, e encantadores; a língua da boa gente é o neochauceriano do próprio Morris. Sobretudo, a Inglaterra socialista é uma comunidade – semelhante à que ele descobriu na mitologia nórdica, porém mais suave; uma comunidade semelhante àquela com que o jovem Wagner gostava de sonhar, porém mais divertida. Uma comunidade como a que os planejadores de novas cidades da Inglaterra do pós-guerra, filhos de Morris, esperavam criar para redimir a civilização industrial. (SCHORSKE, 2000, p. 123.)

O Viajante no Tempo de Wells levanta a hipótese de os morlocks terem sido “os servos encarregados das tarefas mecânicas”, exilados por uma “aristocracia privilegiada” para os subterrâneos, o Mundo Inferior, “para longe do bem-estar e da luz do sol”(WELLS, p. 90). Morris foi influenciado por John Ruskin, que em seu ensaio “A natureza do gótico”, alertava para o perigo da desumanização do homem na sociedade industrial, para a sua transformação em mera ferramenta. Os morlocks são exatamente isso, o subproduto da Revolução Industrial. Do ponto de vista de um romance que se pretende uma “fantasia vitoriana histórico-demente”, encenar uma guerra entre o Rei Artur, um dos símbolos adotados pelos pré-rafaelitas em sua recusa da modernidade, e os morlocks do futuro, estágio final do horror da civilização das máquinas, é absolutamente coerente. O surpreendente é que, no afã de condenar o aparente despropósito do romance de Jeter, esta relação ainda não tenha sido feita. O paradoxo da subcultura steampunk, no caso, é que os artistas e artesãos que dedicam-se a fabricação de objetos retrofuturistas que remetem à estética industrial do século XIX, vão valer-se justamente dos princípios dos inimigos desta estética, os fundadores da Arts and Crafts. Recuperando conceitos de beleza estética das máquinas, não apenas dos ornamentos, internos e externos, com que Júlio Verne adornava suas utopias veiculares, mas recuperando a própria beleza de seu funcionamento, de suas engrenagens, e, ao mesmo tempo, recusando sua produção em escala industrial e tentando restituir a “aura” de cada artefato construído, esta prática cria um paradoxo: é como se William Morris decidisse humanizar o maquinário industrial e retirar sua característica intrinsecamente materialista e desespiritualizada.

3.6 O Steampunk como história alternativa

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Leviathan149, de Scott Westerfeld, é a primeira parte de uma trilogia steampunk para jovens cujo cenário contrafactual é a Primeira Guerra Mundial. Em sentido estrito, não faria sentido falar em steampunk a propósito desta obra, uma vez que sua trama não tem o século XIX e nem a época vitoriana como pano de fundo. Mas o subgênero, multifacetado, produziu uma série de ramificações que transcenderam a camisa de força do neovitorianismo, de modo a configurar cenários ucrônicos e retrofuturistas em outros períodos da história. Além disso, podemos considerar o século XIX como um período que termina, de fato, com o fim da Primeira Guerra150. A sanha classificatória já cunhou outros termos para definir estas novas vertentes, e palavras como clockpunk (retrofuturismo renascentista) e dieselpunk (retrofuturismo do entreguerras), já entraram para o vocabulário da ficção científica. Em princípio, Leviatã poderia classificar-se no segundo, mas de fato é um romance de transição entre a era do vapor e a era do diesel. Ilustrado por Keith Thompson, com um traço inequivocamente contemporâneo, mas que evoca as gravuras das Voyages Extraordinaires, o livro imagina uma Europa de 1914 dividida entre nações darwinistas e nações mekanistas (clankers, no original), que conceberam formas diferentes de utopias (ou distopias) veiculares. Os darwinistas, liderados pelo Império Britânico, desenvolveram um tipo de biotecnologia a partir da descoberta do DNA por Charles Darwin. Essa descoberta possibilitou a manipulação das cadeias vitais para a criação de novas espécies, e, mais importante, a criação de veículos e máquinas de guerra que são híbridos orgânicos, verdadeiros seres vivos, como o Leviatã do título, uma espécie de baleia-zepelim que respira hidrogênio, de modo a inflar-se e transportar uma tripulação suspensa por uma gôndola em seu ventre. Por outro lado, os mekanistas, liderados pelo Império Austro-húngaro e o Império Alemão, optaram pelo desenvolvimento industrial, mecânico, que possibilitou a construção de gigantescas máquinas a vapor e a diesel. Existe uma sutil questão teológica na narrativa, uma vez que os mekanistas consideram a manipulação genética pura heresia. O mapa geopolítico da Europa, nesta obra, apresentado na capa interna, segue a tradição satírica dos mapas zoomórficos e antropomórficos, que remonta à Idade Média, mas

149 WESTERFELD, Scott. Leviatã. Rio de Janeiro, Record, 2012.

150 FERREIRA, Rachel Haywood. The Emergence of Latin American Science Fiction. Middletown, Wesleyan University Press, 2011, p. 12.

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que no período entre 1870 e 1914 foi largamente utilizada para fins de propaganda151. Exemplos clássicos são os mapas concebidos por Frederick W. Rose, principalmente o Serio- Comic War Map de 1877 com sua famosa representação da Rússia como um gigantesco polvo, André Belloguet com L'Europe animale152, de 1882, e o anônimo Hark! Hark! The Dogs do Bark!153 de 1914. Neste último, a Rússia é um trator sobreposto a um urso. O mapa desenhado por Keith Thompson para Leviatã é a paródia da paródia: as nações darwinistas são representadas por grotescos animais híbridos, e as mekanistas por intricados maquinismos bélicos. O Leviatã, “maior que a catedral de São Paulo” é assim descrito por Westerfeld e contemplado pela personagem Deryn Sharp:

O Leviatã foi o primeiro dos grandes respiradores a hidrogênio fabricados para rivalizar com os zepelins do kaiser. Alguns poucos monstros cresceram mais desde então; no entanto, nenhum outro havia feito a viagem de ida e volta à Índia ainda e quebrado os recordes das aeronaves alemãs durante todo o percurso. O corpo do Leviatã fora feito a partir da cadeia vital de uma baleia, mas uma centena de outras espécies formou o emaranhado do projeto, inúmeras criaturas encaixadas como as engrenagens de um cronômetro. Revoadas de pássaros fabricados voavam ao redor dele — batedores, guerreiros e predadores para conseguir comida. Deryn viu lagartos mensageiros e outros monstros correndo sobre a pele do aeromonstro. De acordo com o manual de aerologia de Deryn, os grandes respiradores de hidrogênio eram projetados nas pequeninas ilhas sul-americanas onde Darwin fizera suas famosas descobertas. O Leviatã não era apenas um monstro, mas uma enorme teia de vida em eterno equilíbrio. Os motores de propulsão alteraram o curso e empinaram o nariz da criatura. O aeromonstro obedeceu, os cílios ao longo dos flancos ondulando como um mar de grama ao vento — um monte de pequenos remos impulsionando-o para trás, diminuindo a velocidade do Leviatã até quase pará-lo. (WESTERFELD, 2012, p. 64)

As forças mekanistas, por outro lado, além dos convencionais aeroplanos e zepelins, possuíam gigantescos encouraçados e fragatas terrestres, monstros metálicos de seis, oito ou dez patas, equipados com canhões e metralhadoras Spandau, além de veículos de menor porte. Em sua aparência, ao que tudo indica inspirada nos primeiros tanques de guerra alemães A7V Sturmpanzerwagen, pareciam mimetizar os odiados híbridos darwinistas:

Ele era mais alto do que o telhado do estábulo, e os dois pés de metal afundavam no solo do cercado. Parecia um dos monstros darwinistas à espreita na escuridão. Aquela não era uma máquina de treinamento como outra qualquer — era um

151 BARRON, Roderick. “Bringing the map to life: European satirical maps 1845-1945” in Belgeo 3-4. Société Royale Belge de Géographie, 2008, p. 445-464. Disponível em http://belgeo.revues.org/11935.

152 http://earthinvision.com/blog/2012/12/leurope-animale-physiologie-comique-1882/.

153 http://bibliodyssey.blogspot.com.br/2008/08/dogs-of-war.html.

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verdadeiro artefato de guerra, um Ciclope Stormwalker. Havia um canhão montado no ventre, e os canos curtos e grossos de duas metralhadoras Spandau brotavam da cabeça, que era tão grande quanto um defumadouro. (WESTERFELD, 2012, p.13)

A trama segue os passos de dois jovens, a inglesa Deryn Sharp, que se disfarça de homem para ingressar na força aérea britânica, e o príncipe austríaco Aleksandar de Hohenberg, filho do arquiduque Franz Ferdinand e Sophie de Hohenberg. Aqui já começa a fantasia contrafactual de Westerfeld, uma vez que os filhos históricos do casal chamavam-se Sophie, Maxmilian e Ernest. Em Westerfeld, Aleksandar é filho único. Existe outro ponto de divergência no romance: Franz Ferdinand conseguiu, em 1912, junto ao Papa Pio X, um documento que anulava a condição morganática de seu casamento, garantindo a Aleksandar a sucessão do trono Habsburgo. Isso provoca uma conspiração, urdida pelo império alemão após o assassinato do arquiduque e sua esposa em Sarajevo, para matar Aleksandar e dominar o Império Austro-húngaro. Entre as “utopias veiculares” descritas na trilogia, existe uma curiosa ressonância do Júlio Verne de La Maison à vapeur na segunda parte, Behemot154. Quando os protagonistas chegam à cidade mekanista de Constantinopla, com seus palácios de pedras claras e mesquitas espremidas contra prédios modernos, sob uma mortalha de fumaça cuspida por fábricas e motores incontáveis, encobrindo andadores metálicos nas ruas estreitas e biplanos e girocópteros nos céus (p. 88), deparam-se com um howdah, um elefante mecânico:

A máquina avançou de maneira desajeitada sobre patas imensas, as presas balançando de um lado para o outro ao caminhar. Quatro pilotos em uniformes azuis estavam sentados em selas que se projetavam das ancas, cada um operava os controles de uma pata. Uma tromba mecânica, dividida em uma dezena de segmentos de metal, ia de um lado para o outro, como o rabo de um gato adormecido. (…) O sol bateu no andador quando ele saiu do arvoredo, e a carapaça de aço escovado reluziu como espelhos. A plataforma na traseira estava coberta por um guarda-sol no formato do capuz de um gavião-bombardeiro. Havia um punhado de homens em uniforme de gala na plataforma, enquanto um quinto piloto se aboletava na frente, no controle da tromba. As enormes orelhas de metal do elefante batiam devagar e agitavam as tapeçarias cintilantes penduradas nos flancos. (WESTERFELD, 2013, p. 92-93)

Quando Deryn Sharp indaga a razão de uma nação mekanista como o Império Otomano construir máquinas zoomórficas, a Dra. Nora Barlow, neta de Charles Darwin, responde: “A diplomacia se resume a símbolos (…) Elefantes significam realeza e poder; de acordo com a lenda, um elefante previu o nascimento do profeta Maomé. As próprias máquinas de guerra do sultão são feitas no mesmo formato”. E arremata: “Nossos amigos

154 WESTERFELD, Scott. Beemote. Rio de Janeiro, Record, 2013.

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otomanos podem ser mekanistas, mas eles não se esqueceram da teia de vida à nossa volta. É por isso que tenho esperança” (2013, p. 93) Outro exemplo de síntese entre a tecnologia mekanista e o design zoomórfico na configuração de uma utopia veicular é o Expresso do Oriente, tal como descrito no livro:

Algo enorme e agitado aguardava depois da cerca, algo que bufava e soltava vapor no ar fresco da noite. Então a coisa começou a se mexer, uma máquina colossal apareceu lentamente. O motor à frente tinha o formato da cabeça de um dragão, e os braços de carga estavam dobrados nas costas como asas negras de metal. Nuvens brancas de vapor rolavam das mandíbulas arreganhadas. (…) O Expresso parecia um estranho cruzamento entre o design alemão e o otomano. A locomotiva sugeria o rosto de um dragão, com uma grande língua que se estendia das mandíbulas, mas os braços mecânicos que se desdobravam dos vagões de carga não tinham enfeites e se moviam com a mesma delicadeza de um gavião em voo. Os braços se esticaram para as pilhas de carga e ergueram peças de metal, bobinas de fios e isoladores de vidro no formato de enormes sinos translúcidos. O trem começou a se carregar por conta própria, como um monstro ganancioso que atacava um tesouro. De repente, o único olho do dragão ganhou vida e virou um farol dianteiro ofuscante. (WESTERFELD, 2013, p. 272)

Westerfeld, no posfácio, diz que “Leviatã aborda tanto futuros possíveis quanto passados alternativos. O livro vislumbra o futuro, quando as máquinas parecerão com criaturas vivas, e criaturas vivas poderão ser fabricadas como máquinas (…) Esta é a natureza do gênero steampunk, misturar futuro e passado”.

3.7 O Steampunk como história contrafactual: o caso brasileiro

A história editorial de Júlio Verne no Brasil começa com a chegada do editor Baptiste Louis Garnier no Rio de Janeiro, em 1844. Conforme Andréa Leão155,

É longa a carreira editorial de Júlio Verne no Brasil. Em 1876, Garnier publica A Ilha mysteriosa – O Segredo da Ilha, em tradução de Fantasio, que podia ser tanto um pseudônimo de Joaquim Carlos Travassos ou do poeta simbolista Guimarães Passos. No catálogo da editora para esse mesmo ano, havia ainda 16 titulos de Verne Os Filhos do Capitão Grant, Ao Redor da lua, Da terra a lua, Cinco semanas em um balão, Viagem ao centro da terra, Viagens e aventuras do Capitão Hatteras, entre outros. No catálogo para o ano de 1883, encontramos mais uma tradução de J.

155 LEÃO, Andréa Borges. “O Brasil de Ségur e Verne--transferências e apropriações de modelos culturais para a infância” in 32 Encontro Anual da ANPOCS, 2008, Caxambu. São Paulo: Zeta Studio, 2008. v. 1. p. 112. Disponível em http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=378&Itemid=230.

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M. Vaz Pinto Coelho do livro Os viajantes do século XIX. O exame dos documentos da livraria carioca de Baptiste Louis Garnier nos chama a atenção para as relações comerciais entre o francês e o editor de Verne em Paris, Pierre Jules Hetzel, que, por sua vez, tinha todo o interesse e cuidado na expansão de seus negócios para a América do Sul. (LEÃO, 2008)

Segundo Laurence Hallewell156, Garnier pagava entre 250 e 280 mil réis pela tradução de um volume de Júlio Verne, que era o autor mais rentável, seguido por Xavier de Montepin e Émile Gaboriau. Mas, paralela a iniciativa de Garnier, Júlio Verne desembarcou no Brasil pelas mãos do editor português David Augusto Corazzi, que em 1883, em Portugal, publicou sua obra em 39 volumes157. Era natural que Corazzi se empenhasse em traduzir e publicar os livros de Verne, pois o seu maior sucesso editorial foi justamente uma coleção que, semelhante ao projeto de Pierre-Jules Hetzel, pretendia resumir o conhecimento universal, com o propósito de educar portugueses e brasileiros para a modernidade. Era a Biblioteca do povo e das escolas, cujo primeiro volume veio ao lume em 1881:

A coleção se propunha a ser “propaganda de instrução para portugueses e brasileiros” – como aparecia no frontispício de cada um dos volumes –, uma vez que seus editores entendiam haver “na sociedade moderna uma incontestável tendência para a vulgarização dos conhecimentos humanos em todos os seus ramos variadíssimos”. O propósito da coleção era claramente iluminista e o seu caráter eminentemente enciclopédico: “A Biblioteca do povo e das escolas vem acudir a uma falta que já, desde tempos, outros países tais como a Inglaterra, a França, a Itália, a Alemanha e os Estados Unidos têm tratado de remediar dando a público, por módico preço, coleções no gênero da que ora sai a lume” (…) O editor dava, assim, à série de livros a natureza de um empreendimento civilizador que buscava inocular gradualmente o espírito das pessoas com o germe de noções indispensáveis à modernidade do final do século XIX. (...) Indiscutivelmente, o modelo da coleção era inspirado em muitos similares que circularam desde o século XVIII em países como Inglaterra, França, Itália, Alemanha e Estados Unidos – considerados, à época, como sendo a vanguarda da civilização. A indústria era vista como uma das mais fortes características do século, enquanto a máquina a vapor era tida como a mais importante expressão da indústria: “A máquina de vapor representa o brilhante predomínio da intelectualidade humana sobre as forças brutas da natureza inconsciente. Na máquina a vapor se consubstancia verdadeiramente a civilização do século XIX”. (CARVALHO DO NASCIMENTO e DOS SANTOS, 2006, p.148- 149)

Esta coleção, bem como os livros de Júlio Verne, foram publicados por Francisco Alves a partir de 1913, após comprar a editora de Corazzi. Essas edições, tanto da Garnier como de Corazzi, deixaram profundas impressões no público alfabetizado. Olavo Bilac conta

156 HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil. São Paulo, T.A. Queiroz, EDUSP, 1985, p. 137 e 146.

157 CARVALHO DO NASCIMENTO, J., DOS SANTOS, V.. “Geografia geral para portugueses e brasileiros: a biblioteca do povo e das escolas” in Revista da Faced, n. 10, 2006, p. 141-158. Disponível em: http://www.portalseer.ufba.br/index.php/entreideias/article/view/2711/1921. Acesso em: 01 Fev. 2015.

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em uma crônica de 1907, precisamente intitulada “Júlio Verne”158, o efeito que a visão de um estudante, lendo sofregamente a Viagem ao redor da Lua na Biblioteca Nacional, provocou em seu espírito. Bilac realiza uma verdadeira anamnese a partir desta visão.

Agora, no lugar que estava vazio diante de mim, naquele lugar ha pouco ocupado pelo leitor da “Viagem à roda da lua”, — estava eu ainda vendo um mocinho pálido e nervoso, sonhando e sofrendo. Era o mesmo de ha pouco? era e não era….Era o símbolo de uma idade: era um desdobramento de mim mesmo, era eu mesmo, era a minha pessoa recuada até a adolescência. (BILAC, 1916, p. 30)

Bilac rememora as angústias da juventude, as incompreensões, as injustiças, principalmente as injustiças perpetradas pelo sistema escolar. Júlio Verne surge na adolescência do poeta como um “encantador de almas”, cuja “piedade” abria “mundos radiantes” à sua imaginação, único consolo para seus sofrimentos de infância

No colégio, todos nós liamos Júlio Verne; os livros passavam de mão em mão; e, à hora do estudo, no vasto salão de paredes nuas e tristes, —- enquanto o cônego dormia a sesta na sua vasta poltrona, e enquanto o bedel, que era charadista, passeava distraidamente entre as carteiras, combinando enigmas e logogrifos, — nós mergulhávamos naquele infinito páramo do Sonho, e encarnávamo-nos nas personagens aventureiras que o romancista dispersava, arrebatados por uma sede insaciável de perigos e de glórias, pela terra, pelos mares e pelo céu. (BILAC, 1916, p. 32)

As impressões de Bilac são um testemunho que confirma a análise de Jean-Michel Margot, que citamos no primeiro capítulo: Verne faz o leitor viver vicariamente as emoções geradas pelos mundos conhecidos e desconhecidos; Bilac, adulto relembra suas “vivências” de criança:

Oh! os homens e as cousas que vi, as paisagens que contemplei, os riscos que corri, os amores que tive, os sustos que curti, os combates em que entrei, os hinos de vitória que cantei e as lágrimas de derrota que chorei, — viajando com Júlio Verne, conduzido pela sua mão sobre-humana! Quase morri de frio no polo, de fome numa ilha deserta, de sede na árida solidão do centro da África, de falta de ar no fundo da terra, de deslumbramento na proximidade da lua! Atravessei areais amarelos e infinitos, beijei com os olhos oásis esplendidos, dormi à sombra das tamareiras da Síria e à sombra dos pagodes da índia, contemplei o lençol intérmino das águas dos grandes nos, cacei tigres e crocodilos na Ásia e na África, arpoei baleias no mar alto, perdi-me em florestas virgens, naveguei no fundo do mar entre vegetações fantásticas e animais imensos, ouvi o estrondo" da queda do Niagara, enjoei com o balanço de um balão no meio do céu formigante de astros, e quase fui comido vivo pelos Peles Vermelhas!….E, quando os meus olhos pousavam sobre a última linha de um desses romances, quando eu me via de novo no salão morrinhento e lúgubre, quando ouvia de novo o ressonar do cônego e as passadas do bedel charadista, — havia em mim aquela mesma súbita descarga de força nervosa, aquele mesmo

158 BILAC, Olavo. “Julio Verne” in Ironia e Piedade. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1916, p. 29-34.

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afrouxamento repentino da vida, aquele mesmo alívio misturado de tristeza, a que, ha poucas semanas, na sala da Biblioteca Nacional vi sucumbido o rapazola que lia a “Viagem à roda da lua”. (BILAC, 1916, p. 32-33)

E quando a leitura terminava, Bilac sentia o “desmoronamento dos mundos, o eclipse dos sóis, a ruína dos astros: era o pano de boca que descia sobre o palco da ilusão, matando a fantasia e ressuscitando o sofrimento….” Desprezando a suposta virtude da “visão profética”, que Hugo Gernsback, vinte anos depois, vai supervalorizar, Bilac insiste, em suas considerações finais, que a importância maior de Verne é a de “fecundador de imaginações” e neste ponto o poeta faz uma afirmação categórica de cunho pedagógico:

Todas as puberdades são tristes…. Dir-se-ia que, ao chegar a essa idade perigosa, a criança tem uma antevisão e uma pré-sensação do que vai sofrer na vida: como que a sua alma se recolhe, hesitante, numa angustia vaga, numa timidez doentia, procurando alguma cousa que a proteja e console. Nessa crise do corpo e da alma, é preciso que o cérebro receba uma excitação saudável, que lhe ative a germinação da força criadora. A razão virá depois: nessa idade, o que precisa de desenvolvimento é a imaginação. (BILAC, 1916, p. 34)

Dezesseis anos depois, em 1923, Monteiro Lobato se expressará de modo semelhante em Mundo da Lua159, reunião de fragmentos memorialísticos da época em que cursava Direito. O trecho é curto, reproduzimo-lo na íntegra:

Recordando minha vida colegial vejo quão pouco os mestres contribuíram para a formação do meu espírito. No entanto, a Júlio Verne todo um mundo de coisas eu devo! E a Robinson? Falaram-me à imaginação, despertaram-me a curiosidade – e o resto se fez por si. Júlio Verne levou-me a Humboldt, e depois à Geografia e às demais ciências físicas e sociais. Foi o aperitivo. Entreabriu-me as cortinas do mundo como coisa viva pitoresca, composta de paisagens e dramas. De posse dessa visão, e esporeada pela imaginativa, a inteligência “compreendeu e quis saber”. Que menino, após a leitura de Keraban o Cabeçudo, não corre espontaneamente a abrir um atlas para ver onde fica o Bósforo? A inteligência só entra a funcionar com prazer, eficientemente, quando a imaginação lhe serve de guia. A bagagem de Júlio Verne, amontoada na memória, faz nascer o desejo do estudo. Suportamos e compreendemos o abstrato só quando já existe material concreto na memória. Mas pegar de uma pobre criança e pô-la a decorar nomes de rios, cidades, golfos, mares, como se faz hoje, sem intermédio da imaginação, chega a ser criminoso. É no entanto o que se faz!….A arte abrindo caminho à ciência: quando compreenderão os professores que o segredo de tudo está aqui? (LOBATO, 2008, p. 32)

Três anos depois, em 1926, Lobato publicará o seu polêmico romance de ficção científica, nitidamente influenciado por Wells: O choque das raças, mais tarde rebatizada

159 LOBATO, Monteiro. “Recordando” in Mundo da Lua. São Paulo, Globo, 2008, p. 32.

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como O presidente negro160. Não entraremos aqui nas questões que o livro suscitou e ainda suscita. Para os propósitos de nosso trabalho, interessa-nos determinado trecho do capítulo III, muito apropriadamente intitulado “O Capitão Nemo”. Neste trecho, o personagem Ayrton é introduzido no gabinete do professor Benson, onde se encontra o “porviroscópio”, aparelho que permite ver o futuro. O gabinete, saturado de “reentrâncias, afunilamentos que se metiam pelos muros como cornetas de gramofone, lâmpadas elétricas dos mais estranhos aspectos, grupos de fios que vinham aos quatro, aos cinco, aos vinte e de repente se sumiam pelo muro a dentro”, evoca no personagem as lembranças de suas leituras de Júlio Verne:

Eu lera em criança um romance de Júlio Verne, Vinte Mil Léguas Submarinas, e aquele gabinete misterioso logo me evocou várias gravuras representando os aposentos reservados do capitão Nemo. Lembrei-me também do professor Aronnax e senti-me na sua posição ao ver-se prisioneiro no 'Nautilus'. (LOBATO, 1946, p. 141-142)

Além de uma simples descrição evocatória, o trecho demonstra e confirma o efeito provocado pela associação do texto com a imagem, não apenas no personagem, mas, sem dúvida, no próprio Lobato. Prova-o as ressonâncias da obra de Verne no ciclo do Sítio do Picapau Amarelo, a mais curiosa em Viagem ao Céu161, de 1932, onde os personagens chegam a Lua por meio do pó de pirlimpimpim e encontram-se com São Jorge. O santo, admirando-se do prodígio, comenta:

– Estimo muito, mas saiba que inúmeros homens têm tentado vir à Lua e bem poucos o conseguiram. O último veio dentro duma bala de canhão, num tiro mal calculado. A bala passou por cima da Lua e ficou rodando em redor dela. Não sei quem foi esse maluco. – Eu sei!-gritou Pedrinho. Foi um personagem de Júlio Verne, no romance DA TERRA À LUA. Vovó já nos leu isso. (LOBATO, 1958, p. 47-48)

De qualquer modo, em que pese essa popularidade da obra de Verne no Brasil, não foi suficiente para criar entre nós uma tradição em scientific romances. É óbvio: no século XIX, enquanto os franceses acorriam para as conferências científicas, como dizia Hetzel, e os ingleses desenvolviam-se, literalmente, a todo vapor, o Brasil era um país rural e atrasado. Quando Garnier publica a primeira tradução de Júlio Verne no Brasil, em 1876, a escravidão ainda não havia sido abolida. Mesmo após o golpe republicano, os ideais de ordem e progresso estavam longe de se concretizar. Roberto de Souza Causo, em seu livro sobre a

160 LOBATO, Monteiro. A onda verde e O presidente negro. São Paulo, Brasiliense, 1946.

161 LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu. São Paulo, Brasiliense, 1958.

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literatura fantástica no Brasil162, dá três exemplos significativos (p.124-127) da pouca receptividade das ideias científicas em nosso meio. O primeiro, do padre Landell de Moura, que em 1905 tentou inutilmente fazer o presidente Rodrigues Alves se interessar pelo seu emissor de ondas de rádio, que ele pretendia doar ao governo brasileiro, junto com as patentes; o segundo, de Alberto Santos-Dumont, que em 1917 escreveu inutilmente uma carta ao presidente Venceslau Brás no intuito de convencê-lo a desenvolver uma frota aérea; e o terceiro, de Oswaldo Cruz e a campanha de vacinação compulsória, que apesar do apoio oficial, ficou em meio ao fogo cruzado entre a falta de esclarecimento popular e a truculência autoritária do governo republicano. Diante deste panorama, inciativas editoriais como as de David Corazzi, por mais interessantes que fossem, não estavam respondendo a uma mudança social profunda, como era o caso de Hetzel e o seu Magasin. Mesmo Olavo Bilac, diferentemente de Monteiro Lobato, vai apreciar a obra de Verne não pelo seu teor científico ou pedagógico, mas quase que exclusivamente pelas suas características escapistas:

Ha quem diga que a glória maior do talento de Júlio Verne consiste em haver vaticinado, sob a forma de sonhos, alguns sucessos e algumas conquistas que a ciência mais tarde realizou. Pode ser!…. Mas, pensando bem, considero quanto seria preferível que todos esses sonhos permanecessem no estado de sonhos, — e que Nansen nunca chegasse ao polo, e os submarinos franceses não tornassem exequível a utopia do Nautilus, e Santos Dumont não chegasse a aperfeiçoar o balão em que o alegre Joe atravessou a África…. (BILAC, 1916, p. 33)

É nesse contexto que o primeiro scientific romance brasileiro será publicado, em 1875: O Doutor Benignus, de Augusto Emílio Zaluar, claramente influenciado por Júlio Verne. E, como diz José Murilo de Carvalho em seu prefácio para a edição de 1994163, apesar de ignorado pelos principais críticos literários do século XIX, como José Veríssimo e Sílvio Romero, “o romance apresenta uma originalidade incontestável: é o primeiro em nossa literatura a tomar a ciência como tema de fabulação”, precedendo inclusive o primeiro trabalho brasileiro de divulgação científica, publicado em 1879 pelo biólogo Louis Couty. Causo observa, de modo bastante pertinente, que ao contrário dos romances científicos franceses, ingleses e norte-americanos, os primeiros exemplos brasileiros notabilizam-se por uma exposição científica tímida e uma ação física quase inexistente. Carvalho também salienta essa diferença: Verne era fascinado pela tecnologia e pelo empreendedorismo norte- americano, e fez de seu romance Viagem ao redor da Lua um “hino à engenharia americana”

162 CAUSO, Roberto de Souza. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950. Belo Horizonte, UFMG, 2003

163 ZALUAR, Augusto Emilio. O Doutor Benignus. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1994.

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(p. 9). O Doutor Benignus é um cientista que apenas observa e explica a natureza, não interfere e nem a transforma. O ato de observar, e não interferir, também é encontrado em O presidente negro: os personagens, ao contrário do Viajante no Tempo de Wells, apenas observam o futuro pelo “porviroscópio”. A mesma estrutura se encontra em um romance de Érico Veríssimo de 1939, Viagem à aurora do mundo, onde o passado e o futuro da humanidade é apenas contemplado através de uma máquina. Essa característica de espectadores, e não atores, que marca os personagens dos primeiros romances de FC no Brasil, é interpretada por Causo como devida à

(…) imobilidade social própria do mesmo aspecto colonial que determinou a ausência de instituições e do pensamento científico no Brasil. Imobilidade social e ausência de perspectivas imediatas de mudança, mudança em geral promovida pelo avanço científico e técnico. O Brasil do século XIX e início do século XX era uma nação espectadora, e não agente, nesse processo. E aventura pressupõe ação, a presença de agentes que se posicionam na linha de frente da mudança. Nesse sentido, o elemento romanesco de Wells foi bem menos incorporado que os elementos discursivos, retóricos. (CAUSO, 2003, p. 145)

A comparação com alguns clássicos do romance científico deixa claro, segundo Causo, a forma como a ciência é contextualizada. Nos romances brasileiros, a ciência é sempre solitária, abnegada, e “parece não ter instituição que a abrigue”. Ao contrário, a ciência em Verne, Wells e Conan Doyle é quase sempre respaldada por prestigiosas instituições, discussões em periódicos e coberturas pela imprensa. Talvez porque, como dizia Vilém Flusser, “os processos que ocorrem no Brasil se dão à margem da história, e se história significa ‘tornar consciente’, os processos em curso no Brasil se dão à margem da consciência inclusive, ainda, do próprio brasileiro”164. A partir destas primeiras tentativas, a ficção científica brasileira seguirá um caminho acidentado, permanecendo sempre um gênero marginal em nossa literatura. Não será necessário, como já dissemos, resumir aqui essa história. Apenas observaremos o fato de que, na década de 1960, época da famosa geração GRD165, ou “primeira onda” da ficção científica no Brasil, o editor Paulo Matos Peixoto publicou pela primeira vez, em tradução brasileira, a

164 FLUSSER, Vilém. Fenomenologia do brasileiro. Rio de Janeiro, EDUERJ, 1998, p. 53.

165 GRD eram as iniciais de Gumercindo Rocha Dórea e o nome de sua editora, responsável pela publicação de vários autores brasileiros de ficção científica, começando pelo livro Eles herdarão a Terra, de Dinah Silveira de Queiroz. Fausto Cunha, Walmir Ayala, André Carneiro e Antonio Olinto estavam neste grupo.

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obra quase completa de Júlio Verne, em 48 volumes166. E foi a GRD que, em 1961, ano marcante em adaptações cinematográficas de romances de Verne, lançou a primeira antologia de contos brasileiros de FC. Subgêneros como o steampunk, que se notabilizam pelo duplo olhar para o passado, o passado histórico e o passado da ficção científica, para estabelecerem-se no Brasil de forma original, teriam que desenvolver características muito particulares, que levassem em conta esta dupla ausência, a ausência de um passado enquanto sujeito da história, e, consequentemente, a ausência de uma tradição sólida em ficção científica. Ao contrário do steampunk norte-americano, que inicialmente surge como “fantasia vitoriana” para depois configurar-se como história alternativa, ucronia ficcional e mitopoética, o steampunk brasileiro sempre esteve estreitamente ligado ao subgênero história alternativa, que, no Brasil, começou em 1989 com a publicação de A casca da serpente, de José J. Veiga. Este exemplo isolado, obra de um dos poucos autores canônicos brasileiros relacionados à literatura fantástica, apenas recentemente foi considerado como um possível representante deste subgênero167, que, como vimos, possui uma longa tradição na literatura anglo- americana. Mas o estudioso da ficção científica Darko Suvin usa um termo que, em nossa opinião, traduz melhor o espírito do livro de Veiga: fantasia historiográfica168. Apesar de, provavelmente, Veiga não ter pretendido inserir-se nesta corrente, o romance respeita a condição básica para a criação de enredos ucrônicos, ou seja, o estabelecimento de um ponto de divergência histórica que, no caso, é a sobrevivência de Antônio Conselheiro na Guerra de Canudos e a posterior fundação de uma nova e utópica comunidade. Mas Veiga também faz o Conselheiro contracenar com vários personagens históricos: James Connolly, sindicalista, republicano e líder socialista irlandês, nascido em Edimburgo em 1868 e executado em 1916 após a fracassada Insurreição da Páscoa, em Dublin; Patrick Pearse, professor, poeta e ativista nascido em Dublin em 1879 e morto na mesma ocasião que Connolly, em 1916; Militão Augusto de Azevedo (1837-1905), fotógrafo, autor do Álbum Comparativo de Vistas da Cidade de São Paulo (1862-1867); Francisca Edwiges Neves Gonzaga, a Chiquinha Gonzaga

166 Uma curiosidade desta edição, fácil de se encontrar em alfarrabistas, são as ilustrações de um certo “Salambô”, de quem nada se sabe, mas que simplesmente plagiava as ilustrações originais das edições Hetzel, pelo expediente de sobrepor-lhes um traço mais primitivo, “moderno”, e adicionar-lhes a cor.

167 Os estudos acadêmicos mais recentes sobre esse livro normalmente o analisam sob a perspectiva daquilo que Linda Hutcheon chamou “metaficção historiográfica”. O site dedicado a compilação de um banco de dados para história alternativa, uchronia.net, o classifica nesta última categoria. Ver http://www.uchronia.net/bib.cgi/label.html?id=veigcascad. Acesso em 03/02/2015.

168 ANGENOT, Marc, GOUANVIC, Jean-Marc e SUVIN, Darko “L'Uchronie, histoire alternative et science- fiction” in Imagine..., n. 14, 1982, p.28-34.

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(1847-1935), compositora; Orville Adalbert Derby (1851-1915), geólogo e geógrafo norte- americano e o príncipe Pyotr Alexeyevich Kropotkin (1842-1921), filósofo anarquista russo. Todos esses personagens têm a sua biografia ficcionalizada um pouco ao modo da História Universal da Infâmia de Jorge Luis Borges, que em seu Um ensaio autobiográfico, ao salientar a diferença entre o seu livro e Vidas Imaginárias de Marcel Schwob, do qual se confessa devedor, diz que leu sobre a vida de pessoas conhecidas e modificou e deformou tudo, ao seu bel-prazer, enquanto Schwob inventou “biografias de homens reais sobre os quais há escassa ou nenhuma informação”169. Este livro, diferente de tudo que Veiga havia escrito antes, não apenas marca o início da ucronia na literatura brasileira, mas também o início da nova voga do romance histórico e dos livros populares de divulgação histórica no Brasil. Pois foi precisamente no mesmo ano, 1989, que Ana Miranda publicou Boca do Inferno, considerado oficialmente o romance que inaugurou a retomada desta tendência. Diz Renato Cordeiro Gomes170:

O romance histórico, que vem ganhando fôlego a partir da publicação de Boca do inferno (1989), de Ana Miranda, afasta o olhar do complexo presente do País e volta-se para o passado, a fim de detectar aí mitos, heróis, traços característicos, que nos ajudem a ver-nos, hoje. Temos uma tradição a ser resgatada e preservada e que, em sua continuidade, pode fornecer elementos de (re)construção de nossa identidade abalada, num momento em que não estamos coincidindo com nós mesmos (…) Neste revival, que tem tido boa acolhida da crítica e do público, levando as editoras, de olho no mercado consumidor, a aumentar o número de títulos do gênero, vê-se o resgate da memória nacional ligado a uma certa desesperança quanto ao futuro do país, na opinião de Luiz Schwarz, da prestigiosa Editora Companhia das Letras, que praticamente inaugurou a onda com o primeiro romance de Ana Miranda. (GOMES, 2006, p. 123)

Paralelo ao advento deste novo romance histórico, verifica-se também um aumento na oferta de livros de divulgação histórica. Antonio Roberto Esteves171 também notou a mobilização do mercado editorial em torno dessa temática:

Bastaria uma observação mais atenta para constatar o apelo produzido pelo elemento histórico. As livrarias expõem nos lugares mais visíveis uma grande quantidade de best-sellers que tratam de fatos ou personagens históricos. Nunca se viram tantas biografias, seja de personagens históricos mais recentes e nacionais, seja de

169 BORGES, Jorge Luis. Um ensaio autobiográfico. São Paulo, Globo, 2000, p. 102. Cumpre ressaltar que, no caso da passagem no primeiro capítulo em que o Conselheiro rememora a sua peregrinação solitária pelo sertão e sua transformação espiritual, a narrativa biográfica se aproxima mais de Schwob.

170 GOMES, Renato Cordeiro. “O histórico e o urbano: sob o signo do estorvo”. In: Revista de Literatura Comparada. Rio de Janeiro: Abralic, 2006, p. 121-131.

171 ESTEVES, Antonio Roberto. “Considerações sobre o romance histórico (no Brasil, no limiar do século XXI) in Revista de Literatura, História e Memória, vol.4, n.4. Unioeste/Cascavel, 2008, p.53-66.

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personagens que trazem à tona tempos longínquos ou lugares distantes e exóticos. Proliferam romances históricos, nos mais diferentes formatos e dos mais variados autores e procedências. Da mesma forma, disputam lugar com livros cuja classificação como história ou ficção não oferece dúvidas, aqueles claramente híbridos que mesclam elementos fictícios e históricos. São histórias romanceadas ou romances que tratam diretamente de certos episódios históricos ou que têm como protagonistas personagens que ocuparam a linha de frente na história. São, ainda, crônicas de viagem, biografias, autobiografias, livros de memórias, romances- reportagem, muitos dos gêneros claramente híbridos que conquistaram a preferência do público leitor. (ESTEVES, 2008, p. 57)

Atesta-o, por exemplo, o sucesso em 1995 da biografia Mauá, Empresário do Império, de Jorge Caldeira, da série de Eduardo Bueno, iniciada em 1998 com A Viagem do Descobrimento, e mais recentemente, Lira Neto e sua biografia de Getúlio Vargas em três volumes e a trilogia de Laurentino Gomes e sua concentração em datas-chave da história brasileira-1808, 1822 e 1889. Sem falar no grande número de periódicos que abundam nas bancas de jornais. Do mesmo modo que o cinema norte-americano havia antecipado, entre as décadas de 1950 e 1970, as releituras dos scientific romances na literatura de ficção científica, a televisão brasileira também adiantou-se na exploração do filão histórico: das vinte e uma minisséries produzidas pela Rede Globo na década de 1980, apenas sete não eram de temática histórica172. E, curiosamente, o número de minisséries históricas foi diminuindo na década de 1990 e na primeira década do século XXI, ao mesmo tempo em que a temática crescia na mídia impressa. Exceção sintomática, A Invenção do Brasil, escrita por Jorge Furtado e dirigida por Guel Arraes, foi exibida entre 19 e 21 de abril de 2000, um dia antes do aniversário de 500 anos do descobrimento do Brasil. E é justamente esta efeméride o motivo mais evidente para essa febre histórica. É a opinião de Esteves, citada por Cristiano Mello de Oliveira: “Nesse fim de milênio as comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil, mais interessadas em fazer circular mercadorias que discutir os sentidos do descobrimento, movimentaram os meios culturais do País, e evidentemente também o mercado editorial”173. Oliveira também cita o crítico Seymour Menton, que em seu livro La Nueva Novela Histórica de La América Latina 1979-1992, emite parecer idêntico: “A mi juicio, el fator más importante em estimular la creación y la publicación de tantas novelas históricas em los três últimos lustros há sido la aproximación del quinto centenário del descubrimiento de America.” (OLIVEIRA, p. 25)

172 http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries.htm. Acesso em 04/02/2015.

173 OLIVEIRA, Cristiano Mello de. “O romance histórico brasileiro na atualidade” in Revista Vozes dos Vales, n. 6, ano III, UFVJM, 2014, p. 25.

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É no mínimo curioso que 1989 tenha sido o ano inaugural tanto dessa nova leva de romances históricos, quanto de seu negativo, de sua contraparte contrafactual, representada por A casca da serpente. Pois esse é um fenômeno ainda não pesquisado, e nem comentado: paralelamente ao aumento da oferta de romances históricos e de livros e revistas de divulgação (ou vulgarização) histórica, surgiu uma corrente de histórias alternativas, ou ucronias, que por sua vez deu origem ao steampunk entre os escritores de FC brasileiros. A relação entre todos esses elementos é óbvia demais para ser ignorada. Em 1992, o último número da edição brasileira de Isaac Asimov Magazine de Ficção Científica publicou o conto “A Ética da Traição”, de Gerson Lodi-Ribeiro. É o primeiro exemplo autoconsciente de ucronia em literatura brasileira, e Lodi-Ribeiro é um dos mais prolíficos escritores brasileiros no gênero, tendo inclusive reunido, em versão eletrônica, diversos ensaios publicados sobre o assunto ao longo dos anos174. O conto foi republicado no mesmo ano na revista francesa Antarès, traduzido por Jean-Pierre Moumon175 e mais tarde publicado novamente em uma antologia do próprio autor, Outros Brasis, de 2006176. O enredo passa-se em 1992, em uma realidade alternativa configurada por um ponto de divergência: a derrota do Brasil na Guerra da Tríplice Aliança. Como consequência desta derrota, o Império foi dissolvido e o território brasileiro dividido em três partes: ao norte, a República de Pernambuco, “a última ditadura militar remanescente no subcontinente” (2006, p. 176); ao sul, a Federação do Brasil, rica e industrializada graças as reformas econômicas impostas pelas forças de ocupação paraguaias; e no centro-oeste, o Protetorado del Mato Grueso, sob domínio direto da Gran República del Paraguay, que devido a vitória, continuou sua revolução industrial até transformar-se na maior potência das Américas. A “maciça influência cultural paraguaia” alcançou a Europa, em consequência de sua aliança com a Alemanha, decisiva para a vitória na Grande Guerra, em 1927, e do posterior plano de auxílio econômico empreendido por Assunción às nações europeias do pós-guerra” (p. 168). Neste cenário contrafactual, o narrador, físico brasileiro, mulato, bisneto de um ex- escravo radicado no Paraguai que serviu nas tropas de Solano López, liderava um projeto de pesquisa na Universidade de São Paulo em torno das “dobras espaçotemporais”, no intuito de

174 LODI-RIBEIRO, Gerson. Ensaios de História Alternativa. Scarium Ebook, 2006. Disponível em http://www.scarium.com.br/e-books/sebook3_06_03.html. Acesso em 07/12/2013.

175 HENRIET, Eric B. L'histoire revisitée: panorama de l'uchronie sous toutes ses formes. Amiens, Encrage, 2003, p. 255.

176 LODI-RIBEIRO, Gerson. Outros brasis. São Paulo, Unicórnio Azul, 2006, p. 159-207.

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tentar rastrear “fluxos de perturbação temporal” e visualizar “conjuntos de eventos passados nas proximidades de um objeto material” (p. 171), no caso, o próprio planeta Terra. Constrói, então, um “holovisor temporal”, espécie de contraparte do “porviroscópio” de Lobato, que lhe revela imagens de um passado completamente diferente: um passado em que o Paraguai perdeu a guerra e arruinou-se como nação, onde o Brasil manteve a sua hegemonia no continente, onde houve duas guerras mundiais e os Estados Unidos impuseram a sua influência, cultural e econômica, em grande parte do mundo. Mais: o Brasil, apesar de manter a sua integridade territorial, tornou-se uma nação assolada pela miséria, pelo racismo e pela injustiça social. O personagem, é óbvio, observa a nossa linha temporal, tal como realmente aconteceu. O governo brasileiro encarrega seus cientistas de elaborar um plano para fazer as linhas temporais dos dois universos alternativos coincidirem (e nesse ponto temos uma série de explicações científicas baseadas em recentes teorias da física), na intenção de evitar a derrota e o desmembramento do país. Horrorizado diante da possibilidade de viver em um universo injusto, onde pessoas de sua condição social e racial jamais teriam as oportunidades que ele teve, o narrador destrói o laboratório, mata cinco pessoas (dois amigos próximos) e foge para o Paraguai, o paraíso na terra. É possível detectar várias influências neste conto: os universos alternativos, tema clássico na FC, e a possibilidade de superposição de linhas temporais, derivam de narrativas como The Worlds of the Imperium, de Keith Laumer; a construção de uma realidade histórica alternativa e a possibilidade de uma reversão para a realidade tal como a conhecemos nos faz pensar em Bring the Jubilee, de Ward Moore; a ideia de que determinado ponto de divergência no passado poderia melhorar o nosso presente, e também o futuro, existe desde os primeiros exercícios de história contrafactual: é o wishful thinking deplorado por Niall Ferguson. Mas o problema maior de “A Ética da Traição” é a aceitação acrítica de toda a mitologia que se construiu em torno da Guerra do Paraguai desde o final da década de 1960, única explicação para o autor ter desenvolvido uma linha temporal tão improvável, e até risível177. Lodi-Ribeiro escreveu, posteriormente, o conto “Crimes patrióticos: uma crônica de guerras perdidas”, que, publicado em Outros Brasis ao lado de “A Ética da Traição”, vai fazer parte de um arco de histórias intitulado Pax Paraguaya. Outro ciclo de histórias alternativas

177 Essa mitologia será contestada pelo historiador Francisco Doratioto em Maldita guerra: nova história da Guerra do Paraguai, publicado em 2002 pela Companhia das Letras. Mas o próprio Doratioto assinala que, dois anos antes de Lodi-Ribeiro publicar o seu conto, Ricardo Salles já a havia contestado em Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do exército, publicado pela Paz e Terra em 1990.

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elaborado pelo autor é O Agente de Palmares (paródia de Agente de Bizâncio, de Turtledove?), ambientada em uma realidade alternativa onde o Quilombo dos Palmares se torna uma república independente. Roberto de Souza Causo, comentando esses contos, diz que apesar de ficar claro o quanto o autor investiu nestas histórias, elas são prejudicadas pelo excesso de informação, além de serem “escritas de maneira deselegante e com caracterização superficial, não sustentando aquilo que a originalidade do conceito demanda” (CAUSO, 2003, p. 118). Cremos que a mesma crítica pode ser feita aos contos “paraguaios”, e mesmo à boa parte da produção brasileira recente de literatura fantástica. De qualquer forma, estava aberto o caminho para as narrativas ucrônicas no Brasil. Tanto que, após algumas histórias publicadas aqui e em Portugal em fanzines, antologias e periódicos diversos, em 2000 a editora Ano-Luz edita Phantastica Brasiliana: 500 anos de histórias destes e doutros Brasis178, coletânea de doze contos de autores portugueses, brasileiros e norte-americanos, organizada por Lodi-Ribeiro e Carlos Orsi Martinho. Na Internet, Lodi-Ribeiro assume a efeméride como o principal motivo do lançamento do livro: “Com a aproximação do quinto centenário do Descobrimento do Brasil, dando continuidade a sua política mercadológica oportunista (no bom sentido), a editora Ano-Luz decidiu lançar uma antologia comemorativa de contos fantásticos cujas temáticas se relacionassem de algum modo à história do Brasil”179. Quatro destes contos são ucronias, cada um deles acompanhado, ao final, de uma cronologia histórica alternativa. O mais interessante é o primeiro, “Folha Imperial”, de Ataíde Tartari, uma história bem-humorada, descontraída e despretensiosa, que acompanha as desventuras de dois repórteres do tabloide sensacionalista Folha Imperial, que se dedica a perseguir o príncipe herdeiro D. João em suas conquistas amorosas pelo Rio de Janeiro. Nesta realidade alternativa, a monarquia não foi abolida. Imaginar a sociedade brasileira contemporânea, com o seu culto às celebridades alimentado pelos meios de comunicação, proporciona bons momentos humorísticos:

Meses antes, a Folha Imperial tinha lançado a nova bomba: o príncipe estava a fim da Lady Di. Eles tinham sido vistos--e fotografados!-juntos numa praia do Caribe. Ambos vestidos, infelizmente. E acompanhados por outras pessoas. Mas isso não era importante; o importante era que a ideia estava lançada, a semente estava plantada. A partir daquela foto, centenas de páginas da Folha puderam ser preenchidas durante meses. Graças à Folha não se falava em outra coisa no Império; as pessoas

178 LODI-RIBEIRO, Gerson, e MARTINHO, Carlos Orsi. Phantastica Brasiliana: 500 anos destes e doutros Brasis. São Caetano do Sul, Ano-Luz, 2000.

179 http://members.tripod.com/~gerson_lodi/pb.htm.

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discutiam por causa dos preparativos imaginários do casamento, dos nomes que teriam seus filhos (se em português ou inglês), das implicações constitucionais para ambas as monarquias (sendo ela princesa de Gales e do Grão-Pará ao mesmo tempo), e até por causa da imaginária fusão do Reino Unido ao Império do Brasil. E tudo isso por causa de uma foto! O poder da Folha Imperial espantava até aos seus próprios autores. (TARTARI in LODI-RIBEIRO e MARTINHO, 2000, p. 8)

No mesmo ano, o jornalista Ruy Castro lançou o seu primeiro romance: Bilac vê estrelas. É uma fantasia historiográfica com um certo espírito steampunk (embora, provavelmente, não fosse a intenção do autor) envolvendo Olavo Bilac e José do Patrocínio em uma conspiração francesa para roubar os planos de um dirigível que Patrocínio construía em um hangar no bairro de São Cristóvão. Antonio Olinto, em resenha para a Tribuna da Imprensa, chama o livro de “narrativa de espionagem com tons surrealistas” e chama a atenção para a montagem cinematográfica do romance180. Arriscamos aqui a hipótese de que a supracitada comédia de Blake Edwards, The Great Race, tenha servido de inspiração para o humor slapstick do romance. Uma pequena pausa na cronologia brasileira: em 2001, a extinta editora Pandora lançou, em três edições, a minissérie em quadrinhos de Alan Moore e Kevin O'Neill, com o título em português As aventuras da Liga Extraordinária. Edição empobrecida, com seus elementos intertextuais e paratextuais suprimidos, ainda assim serviu para fazer circular no Brasil, entre um público mais amplo, a palavra steampunk. Também serviu para apresentar a esse mesmo público um exemplo de ucronia ficcional, em que pese o fato de que The Other Log of Phileas Fogg, de Philip José Farmer, já havia conhecido duas edições no Brasil, a primeira em 1974, pela Global, e a segunda em 1987, pela Francisco Alves. E em que pese, também, o fato de que a ucronia ficcional já era praticada por Monteiro Lobato, que em 1936 criou todo um universo alternativo e recursivo em Memórias da Emília, fazendo com que Eduardo VIII, Peter Pan, Roosevelt, Capitão Gancho, Hitler, Alice Liddell, Popeye, Mussolini, D. Quixote e Shirley Temple compartilhassem graus equivalentes de realidade. Em 2006, além do já mencionado Outros Brasis, Octavio Aragão publica A mão que cria181, ucronia ficcional explicitamente inspirada em Moore, Farmer, e, sobretudo, Kim Newman e seu Anno Dracula, além das fontes primárias Júlio Verne e H.G. Wells. Como costuma acontecer neste meio, um subgênero pode alcançar popularidade através de mídias não-literárias. Desde 1988 os jogadores de RPG, role playing games,

180 OLINTO, Antonio. “Ouvir estrelas”. Disponível em http://www.academia.org.br/ABL/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm? from_info_index=10&infoid=1718&sid=394

181 ARAGÃO, Octavio. A mão que cria. São Paulo, Unicórnio Azul, 2006.

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conhecem o universo das fantasias vitorianas, principalmente através de jogos como Space:1889, Castle Falkenstein e GURPS Steampunk. Este último é mencionado pelo fundador do Conselho Steampunk, Bruno Accioly, como sendo o seu primeiro contato com esse universo182. O Conselho foi fundado em 2008 para divulgar esta estética, embora Accioly já o fizesse desde o ano anterior na Internet. O Conselho foi responsável pela formação da subcultura steampunk no Brasil, e basta uma consulta na cronologia de Janicz para percebermos o aumento exponencial das manifestações do subgênero em todas as mídias, entre 2003 e 2009, ano em que foi lançada a primeira reunião de contos brasileiros steampunk. Steampunk: histórias de um passado extraordinário183, publicado pela extinta editora Tarja, reúne nove contos, alguns de escritores de FC brasileiros que já podiam considerar-se veteranos, como Lodi-Ribeiro, Causo, Fábio Fernandes, e de novatos como Romeu Martins e Flávio Medeiros Jr. De um modo geral, é visível um certo descompasso entre o desejo de emular o subgênero e sentir-se parte de um universo ficcional, e a sua realização concreta. A maioria dos contos é desprovida de refinamento literário, e, mais grave, não consegue contar uma boa história. A influência das imagens geradas por obras como a de Júlio Verne é patente, mas os textos perdem-se em deslumbramentos quanto as possibilidades contrafactuais e transficcionais. Queiramos ou não, os personagens dos romances científicos do século XIX tornaram-se ícones universais, modernos heróis míticos. Não é por uma decisão arbitrária do ficcionista que personagens clássicos da nossa literatura como Quincas Borba, Isaías Caminha, Leôncio ou Rita Baiana podem tornar-se, impunemente, heróis de narrativas de ficção científica. O efeito, na maioria das vezes, é risível, principalmente porque estes personagens, e seus livros de origem, ainda existem “sob o signo da obrigatoriedade”, e estão atrelados “à esfera dos deveres escolares” (PAES, 1994, p. 38). Um exemplo é “Cidade Phantástica”, de Romeu Martins, cuja trama é protagonizada por personagens de Verne, Conan Doyle, e Leôncio Almeida, de A escrava Isaura. A presença deste último produz um efeito cômico involuntário, pela inadequação, e pela imagem associada ao personagem em decorrência do sucesso da telenovela. O conto que fecha a coletânea, “Por um fio”, de Flávio Medeiros Jr., é o mais bem-acabado: uma ucronia ficcional envolvendo uma escaramuça entre o Capitão Nemo e Robur na costa da Irlanda. É nítido que o autor sente-se à vontade neste universo, e utiliza as referências com uma elegância que falta aos outros participantes,

182 http://www.steampunk.com.br/2010/09/02/steampunk-o-conselho-e-o-movimento/.

183 CELLI, Giampaolo (Org.). Steampunk: histórias de um passado extraordinário. São Paulo, Tarja Editorial, 2009.

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inclusive veteranos. A ampliação deste universo temático em Homens e Monstros: A Guerra Fria Vitoriana confirma isso. Abrindo mão de qualquer necessidade de afirmação patriótica, ele escreve sobre o que gosta e entende. Seus personagens são retirados de textos de Conan Doyle, Poe, Verne, Wells, Stevenson, Conrad, Jack London, Robert E. Howard e Leopoldo Lugones. Seu universo alternativo concentra ucronias europeias e norte-americanas, exceção aberta para um Império Asteca alternativo. O Brasil é mencionado de passagem, como “aquelas terras banhadas de sangue”, onde tropas ibéricas enfrentam incas e astecas pelo controle do território. A emulação do steampunk no Brasil é um fenômeno de fandom. Esta palavra, derivada da expressão fan kingdom, pode servir para caracterizar quase toda a produção de literatura fantástica contemporânea no Brasil, e, como tal, satisfaz-se, na maioria dos casos, somente em participar de seu universo ficcional favorito, relegando as preocupações estéticas para um segundo plano. A partir deste marco inaugural até o presente momento, que coincidiu com a formação da subcultura e o aumento do pico de popularidade identificado por Janicz, uma antologia brasileira steampunk foi lançada quase anualmente. Em 2010 tivemos Vaporpunk: relatos steampunk publicados sob as ordens de Suas majestades e em 2011, Dieselpunk: arquivos confidenciais de uma bela época, ambos pela editora Draco, ambos organizados por Lodi- Ribeiro; também em 2011, foi lançado pela Draco um romance de dark fantasy184 com estética steampunk, O Baronato de Shoah, de José Roberto Vieira, cujo segundo volume foi publicado em 2014; em 2013, a Tarja lançou Retrofuturismo, com dez contos ambientados em períodos diferentes da história, um deles steampunk, e a Draco, Homens e Monstros: a Guerra Fria Vitoriana, de Flávio Medeiros Jr., interessante ampliação do universo criado em “Por um fio”; e em 2014, a Casa da Palavra publicou o romance A lição de anatomia do temível Dr. Louison, de Enéias Tavares, e a Draco editou o segundo volume de Vaporpunk. Este último volume inova ao apresentar um escritor experiente em uma abordagem inédita no subgênero, com resultados artísticos superiores. Trata-se de Luiz Bras, que participa com um interessante experimento em metaficção, “Mecanismos precários”, no qual o autor, interpretando o papel de Narrador Onisciente, interfere arbitrariamente no confronto físico e emocional de seus personagens, um casal vitoriano em crise, que se metamorfoseia em vários engenhos de guerra. Bras utiliza sem pudores todo um arsenal de imagens

184 Termo difícil de definir, geralmente empregado para descrever fantasias épicas com elementos de horror.

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tecnofantásticas da estética steampunk, em estilo épico e hiperbólico, ecoando por vezes a prosa alucinante de José Agrippino de Paula:

Eu imagino o homem puxando outra alavanca no painel de controle do canguru SS Great Western. Eu imagino os cabos de aço escorregando novamente nas roldanas, fazendo surgir no casco duas poderosas asas de libélula. Canhões de grosso calibre brotam no convés. O homem levanta voo. Do alto ele começa a disparar contra a adversária. A planície treme novamente. Eu imagino o canguru SS Great Eastern também ganhando asas de libélula e canhões, depois voando pesadamente ao encontro do adversário. Eu imagino o grito agudo do vento nas agulhas de aço, o estresse das fornalhas e das chaminés – muito carvão, muita fuligem –, a adrenalina pressionando pistões dentro de cilindros coléricos. Explosões. As nuvens rodopiam, os dirigíveis fogem. Cem metros abaixo, a metrópole vitoriana sofre mais com os disparos do que os próprios oponentes. Rebites supersônicos atravessam toldos e sombrinhas. Canos flamejantes dispersam as carruagens e os tílburis. O engenho humano golpeando o engenho humano. As paredes de uma loja de departamentos vêm abaixo. Vão pelos ares cartolas e espartilhos. Eu imagino pinças de caranguejo e presas de morsa trespassando e dobrando fios e placas. Eu imagino o dia recuando, a noite empurrando o crepúsculo pra fora do palco, o clarão dos lampiões a gás desenhando quadriláteros no mapa urbano, as máquinas de guerra tingindo a face da lua cheia com rojões e girândolas multicoloridas. Eu só não podia imaginar que o homem e a mulher, no auge da batalha, o tabuleiro pegando fogo, bispo contra rainha, peão contra rei, xeque, enfim eu só não podia imaginar que os dois olhariam pra cima. Para as estrelas. Em minha direção. (BRAS in FERNANDES, 2014, p.)

Acreditamos que experimentos como o de Luiz Bras podem renovar de modo significativo o steampunk brasileiro, de modo a oferecer ao leitor alternativas à simples imitação inábil de algo que vem sendo feito com competência por escritores profissionais europeus e norte-americanos.

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CONCLUSÃO

É importante notar que o marco inaugural de 2009, a edição da primeira antologia steampunk no Brasil, ocorre um ano após as comemorações de outra efeméride: os 200 anos da chegada da Família Real ao Brasil. Pois do mesmo modo que o steampunk começou como uma fantasia vitoriana imaginada nos Estados Unidos, sua versão brasileira deveria eleger um período histórico que estivesse tão incrustado no subconsciente dos brasileiros como a Era Vitoriana no subconsciente dos norte-americanos. E o período de eleição foi, naturalmente, o Império, particularmente o Segundo Reinado, como aliás já havíamos visto nos primeiros exemplos brasileiros de ucronia. Em cada antologia acima mencionada, um terço dos contos é ambientado no Segundo Império ou em uma linha de tempo alternativa onde a monarquia não foi abolida, o restante dividindo-se entre o Brasil republicano, países estrangeiros e mundos alternativos. As visões contrafactuais do Segundo Reinado parecem tentar reverter, na ficção, o atraso científico e tecnológico que impossibilitou o estabelecimento de uma tradição em scientific romances no Brasil. A temática imperial tem se mostrado particularmente popular entre o público e os historiadores. As razões dessa popularidade podem residir em um certo desconforto da sociedade com os ideais republicanos. Existe um inegável dado simbólico no fato de nossa primeira ucronia literária, A casca da serpente, ser justamente uma “retificação da Guerra de Canudos”, um dos primeiros e menos memoráveis eventos da nossa República. A respeito desta nostalgia pelo passado monárquico, valem estas considerações de Esteves sobre o novo romance histórico:

É difícil estabelecer as causas de tal fenômeno. Possivelmente, os meios de comunicação consigam que determinada obra fique em evidência por certo período. Também é provável que o desejo de fuga de um cotidiano hostil, em busca de uma felicidade utópica perdida em illo tempore, faça com que o leitor ou o espectador queira se refugiar num passado longínquo. Da mesma forma, há quem diga que o passado pode ser usado como exemplo a ser seguido ou evitado, de acordo com os objetivos dos autores ou do momento histórico presente. É possível que nenhuma dessas causas atue sozinha, sendo a realidade bem mais complexa. De qualquer modo, faltam pesquisas que apontem para uma resposta mais conclusiva para a pergunta em questão. Enquanto isso não ocorre, o leitor ou o espectador, consumidor, enfim, desse tipo de produção artística variada, inclusive com respeito à sua qualidade estética, segue deleitando-se com as aventuras ou desventuras de seus antepassados. (ESTEVES, 2008, p. 57)

O escritor Isaías Pessotti arriscou uma explicação psicanalítica para o fenômeno. Em artigo para a Folha de São Paulo de 11 de setembro de 1994, cujo título, “Vantagens do

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turismo temporal”185, seria excelente para um conto de ficção científica, diz que a ficção histórica procede de modo inverso ao da tragédia grega: em lugar da katá strophé, do “retorno à serenidade após as emoções intensas do pathos”, da “reordenação de fatos e personagens numa harmonia racional, sublimada”, que “abolia as ansiedades e emoções que a tragédia suscitara”, temos “o retorno a um passado, já sublimado e racionalizado, para reativar as emoções, as ansiedades ou, numa palavra, o pathos. Episódios e personagens revivem para recriar paixões, emoções, ansiedades.”

Então, o romance histórico restabelece a vivência patética de episódios passados, para além da ordenação racional e sublimadora que é o conhecimento propriamente histórico. Como explicar, então, o charme, a sedução de obras como O Nome da Rosa, em que o leitor se defronta com medos, perigos e situações cruentas? Ocorre que o passado que se ressuscita, mesmo repleto de terrores, é vivido como uma aventura já consumada. É até relatada pelo protagonista. E, portanto, inofensiva. Na verdade, o novo pathos é vivido sem impotência, sem angústia: por mais conflituosa ou trágica que seja, a trama é vivida com a segurança, inconsciente até, de que tudo retornará ao plano do sublime ou do racional em qualquer momento.

Isto pode ser válido para o novo romance histórico stricto senso, mas não parece-nos válido para as ucronias em geral, e para o steampunk, em particular. Pois se é verdade que as emoções podem ser vividas vicariamente pelo leitor, como aliás opinou Margot em relação as voyages extraordinaires, a aventura contrafactual é impossível de ser consumada. Posto que ainda não foi feita, no Brasil, uma séria pesquisa histórica que possibilite a criação de cenários contrafactuais instigantes e verossímeis, a maioria das projeções para o passado (retroprojeções?) permanecem no nível do wishful thinking, tão criticado por Niall Ferguson.

A literatura steampunk brasileira está completando cinco anos de existência, e não dá mostras de esgotamento. Em 2011, os escritores Jeff Vandermeer e S.J. Chambers lançaram um interessante coffee table book, The Steampunk Bible, onde a produção brasileira no subgênero ganhava bastante destaque186. Agora, a publicação do segundo volume de Vaporpunk, traz um prefácio de Chambers, o que pode aumentar a visibilidade internacional do steampunk brasileiro. Isto, somado à abertura proporcionada por este livro para a inclusão de autores como Luiz Bras, acena para a possibilidade de um amadurecimento literário, importante para que possam realizar aquilo que, vinte anos atrás, José Paulo Paes defendia: uma cultura integrada, com uma vigorosa literatura de proposta, e uma não menos vigorosa

185 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/9/11/mais!/10.html. Acesso em 01/2015

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literatura de entretenimento. Uma literatura de entretenimento, capaz de operar em camadas míticas tão profundas como Júlio Verne, seria possível? O filósofo Michel Serres, escreveu em seu livro Jouvances, Sur Jules Verne, a seguinte dedicatória: “Adulto há pouco tempo, adulto há muito tempo, eu quis vasculhar os vagos vestígios do cadáver amargo que trago em mim: a criança.” Quando confrontado por Jean-Paul Dekiss, na longa entrevista que constitui o livro Júlio Verne, a ciência e o homem contemporâneo, fala da importância que literaturas como a de Júlio Verne tinham para o amadurecimento dos leitores:

Muitos de seus livros narram um começo na vida, uma “telemaquia”, esta saída, para Telêmaco, da condição de filho de Ulisses. O adolescente amadurece viajando: sob seus olhos, o mundo e os homens mudam, e ele se transforma ao mesmo tempo….O velho mundo se renova, a criança se metamorfoseia e renasce. (SERRES, 2007, p.12)

Em seguida, Serres afirma: “Minha dedicatória canta essa passagem tocante sobre como o adulto se separa da criança” (SERRES, 2007, p. 14). Alain-Michel Boyer lembra que o “gosto da leitura nasce e se desenvolve, como o comprovam certos inquéritos e várias autobiografias de escritores, nesses livros excluídos do mundo escolar e entendidos como divertimentos extraliterários” (BOYER, p. 8), que

(….) põe em ação um imaginário partilhado por grupos de pessoas importantes, com o aparecimento de figuras míticas (Bufalo Bill, Tarzan, James Bond); neles se libertam imagens e temas tantas vezes afastados da literatura legitimada e algumas vezes exprimindo, com processos rudimentares, talvez (poder-se-ia escrever: em estado bruto), o que certos poetas, na mesma época, tentam formular. (BOYER, intr., p. 8-9)

Mas seriam esses esforços de recriação literária, tanto do passado histórico como do imaginário da paraliteratura produzida entre meados do século XIX e as primeiras décadas do século XX, uma tentativa de renovar o velho mundo, de mais uma vez metamorfosear e fazer renascer a criança? Ou se trata de uma revisão crítica, de intenção indubitavelmente parodística, cuja intenção é colocar em cheque os valores finisseculares que fizeram a humanidade acreditar, por um momento, que estava destinada a uma era de paz e prosperidade? O historiador David Fromkin, em seu livro O último verão europeu186, descreve o maravilhamento causado pelas novas conquistas da ciência, cujos marcos para o

186 FROMKIN, David. O último verão europeu: quem começou a grande guerra de 1914? Rio de Janeiro, Objetiva, 2005

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grande público foram as feiras internacionais de Chicago, em 1893, e Paris, em 1900. “Antes de o século XIX começar, os homens olhavam para trás, para uma época de ouro. Então, eles passaram a olhar para a frente, para poder vislumbrá-la” (FROMKIN, p.43). Foi esse estado de espírito, segundo Fromkin, esse fascínio com as especulações sobre o futuro, que permitiu o surgimento de uma literatura como a de Verne e Wells. O que esse almejado futuro nos deu, todos sabemos. Comemoramos, em 2014, o centenário do fim de uma suposta inocência, que na mente dos homens que o viveram, como bem observou Barbara Tuchman187, transformou- se no fim daquela época de ouro, que acreditaram que ainda estava por vir. Resgate da “telemaquia”, da voyage extraordinaire, ou paródia niilista? Cory Gross, no primeiro número do Steampunk Magazine188, divide este subgênero em duas categorias: o steampunk nostálgico e o steampunk melancólico: no steampunk nostálgico, “de longe o mais popular”,

(…) encontramos a criação da Era Vitoriana como um mito romântico infundido com desejos utópicos e, geralmente, ignorando a história verdadeira da época, mais desconfortável. O steampunk nostálgico – que pode operar sob as formas da maioria dos outros termos para steampunk, tais como ficção científica vitoriana, scientific romance, ficção científica da Era Industrial e assim por diante – transforma a tecnologia no portal da exploração elegante, em vez do suplício industrial dos pobres, bem como bravos soldados e cientistas da Coroa que promovem expedições que não escravizam e nem destroem as culturas que encontram. (GROSS, p. 62)

O steampunk melancólico, ao contrário,

permanece enraizado nos dias de hoje, olhando para trás, para o passado, mas através das lentes dos dias de hoje, e da perda desse passado. Com o steampunk melancólico, vemos as mesmas coisas que o steampunk nostálgico tenta arduamente ignorar, trazidas à luz do sol. Nós vemos a corrupção, a decadência, o imperialismo, a pobreza e a intriga. E nós os vemos não tanto como uma acusação da era vitoriana, mas como uma acusação de nossa própria era, seja diretamente, seja decepando da nossa sociedade essas raízes vitorianas. (GROSS, p. 63)

Ambos são formas de kitsch. E, ao falar de kitsch, Gross utiliza o conceito de Celeste Olalquiaga, para quem o kitsch “é uma cápsula do tempo com um bilhete de ida e volta para o reino do mito – terra coletiva ou individual dos sonhos. Aqui, por um segundo ou talvez até mesmo por alguns minutos, reina uma ilusão de completude, um universo desprovido de passado e futuro, um momento cuja intensidade pura é em grande parte baseada em sua própria inexistência.” (GROSS, p. 60-61).

187 TUCHMAN, Barbara. A torre do orgulho: um retrato do mundo antes da Grande Guerra (1890-1914). Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990.

188 GROSS, Cory. “Varieties of Steampunk Experience” in Steampunk Magazine n. 1. Strangers In A Tangled Wilderness, 2007, p. 60-67.

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Isso nos faz perguntar: escolha do Segundo Reinado como cenário de boa parte da produção steampunk brasileira se dá apenas pela equivalência cronológica à Era Vitoriana, ou esse período da nossa história possui força simbólica semelhante, que suscite essa mistura de atração, repulsa e o desejo de nostalgia de um passado esteticamente glorioso?

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