UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA ARTE

NORMA SUELI DOS SANTOS

AS POSSIBILIDADES DE PERMANÊNCIA DAS EXPRESSÕES DA NUM CONTEXTO GLOBALIZADO

Niterói 2009

NORMA SUELI DOS SANTOS

AS POSSIBILIDADES DE PERMANÊNCIA DAS EXPRESSÕES DA CAPOEIRA NUM CONTEXTO GLOBALIZADO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Arte, do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciência da Arte

Orientador: Prof. Dr. Werther Holzer Co-Orientador: Profa. Dra. Aureanice Correa

Niterói 2009

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

S237 Santos, Norma Sueli dos. As possibilidades de permanência das expressões da capoeira num contexto globalizado / Norma Sueli dos Santos. – 2009. 233 f. Orientador: Werther Holzer. Co-orientador: Aureanice Correa. Dissertação (Mestrado em Ciência da Arte) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e Comunicação Social, 2009. Bibliografia: f. 126 -129.

1. Capoeira. 2. Resistência. 3. Globalização. 4. Patrimônio. 5. Educação. I. Holzer, Werther. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Arte e Comunicação Social. III. Título.

CDD 796.0981

NORMA SUELI DOS SANTOS

AS POSSIBILIDADES DE PERMANÊNCIA DAS EXPRESSÕES DA CAPOEIRA NUM CONTEXTO GLOBALIZADO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Arte da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciência da Arte

BANCA EXAMINADORA

______Prof. Dr. Werter Holzer – UFF

______Profa. Dra. Aureanice Correa – UERJ

______Profa. Dra. Sônia Ferraz – UFF

______Prof. Dr. Andrelino de Oliveira Campos - UERJ

À Dona Rita, minha mãe; Pelo amor incansavelmente dedicado.

AGRADECIMENTOS

A realização desse trabalho se deu com a contribuição e o carinho de muitos. Meus sinceros agradecimentos...

...a Deus, pois, sem Sua ajuda, nada teria sido possível; ...às minhas irmãs Nádia e Beth, pela confiança e pelo apoio; ...aos combativos Mestres de Capoeira de Duque de Caxias que me ensinaram os seus saberes, em especial aos Mestres Gegê, Levi, Barbosa, Monge e Russo; ...ao professor Werther Holzer que por um ato de gentileza aceitou mais este desafio; ...à professora Aureanice Correa que através do seu entusiasmo me mostrou que seria possível; ...à professora Sônia Ferraz pelas suas valiosas sugestões na banca de qualificação; ...aos professores do Programa de Pós-graduação em Ciência da Arte, que contribuíram para a minha formação; ...ao professor Luis Sérgio que, sempre firme, nunca perdeu a candura; ...ao professor Leonardo Guelman pela atenção sempre demonstrada; ...ao querido amigo Edvaldo Filho pela presteza; ...aos queridíssimos amigos Alexandre Marques e Fátima David por dividir o aprendizado; ...à querida amiga Carmen Migueles pelo incentivo; ...às amigas Selma Silva e Isabel de Paula pela compreensão; ...às queridíssimas amigas Joana Figueiredo e Cristiane Guimarães pelo companheirismo; ...às queridas amigas Jeane Cordeiro e Marluce dos Santos pela força; ...a todos os outros queridos amigos, por compreenderem principalmente as ausências; RESUMO

Nos últimos anos percebe-se um interesse por parte das esferas governamentais, sobretudo a federal, em retomar discussões de grande relevância no que se refere à identidade e memória do povo brasileiro, além do reconhecimento da Tradição Oral através da inclusão de algumas políticas públicas que visam reparar a indiferença imputada àqueles que detêm os saberes populares, em especial aos mestres de capoeira. Neste contexto, cabe uma atenção especial à trajetória que a Capoeira vem seguindo nacional e internacionalmente, sobretudo, pela ação direta da indústria cultural num contexto globalizado. Diante desse cenário, a pesquisa propõe-se a refletir sobre as diferentes possibilidades de permanência desta que é uma das mais conhecidas expressões da cultura popular brasileira na sociedade desde o seu reconhecimento enquanto fenômeno cultural urbano no século XIX até a contemporaneidade como expressão artística, apontando ainda, para algumas direções muito pouco exploradas pelos diferentes segmentos estruturadores da sociedade, bem como pelos genuínos representantes da luta/arte.

Palavras-chaves: Capoeira, Resistência, Globalização, Patrimônio Imaterial e Educação Patrimonial

ABSTRACT

In recent years it has been noticed that there is an interest from the part of state and especially federal governments, in the discussions of great relevance with reference to the identity and memory of the Brazilian people, besides the recognition of Oral Tradition through the inclusion of some public policies which aim at compensating the indifference with which those who hold popular knowledge, specially about capoeira, have been treated. In this context, particular attention should be given to the path which capoeira has been taking, not only nationally, but also internationally, due to the direct acts done by the culture industry in a globalized world. Before this scenario, the research carries out a reflection on several possibilities of the permanence of capoeira, which is one of the most well-known expressions of Brazilian folklore in society, acknowledged as an urban cultural phenomenon from the XIX century up to the contemporary time, and as an artistic display heading to some directions, yet very little exploited by certain structured segments of society, as well as by the genuine representatives of this fight/art.

Keywords: Capoeira, Resistance, Globalization, Intangible Heritage and Educational Heritage LISTA DE FIGURAS

FIGURA 01 - Loja de barbeiros ...... p. 36

FIGURA 02 - Negros vendedores de aves...... p. 37

FIGURA 03 - O vendedor de arruda ...... p. 37

FIGURA 04 - Negra tatuada vendendo caju...... p. 38

FIGURA 05 - Largo da Glória. Henry...... p. 38

FIGURA 06 – Rotas do Trafico Negreiro...... p. 40

FIGURA 07 – Diferentes Etnias no Brasil...... p. 40

FIGURA 08 - Diferentes Etnias no Brasil...... p.41

FIGURA 09 - Jogar Capoeira ou Danse de la Gerre...... p. 47

FIGURA 10 - Ginga e mandinga ...... p. 78

FIGURA 11 - Curvas e saltos...... p. 78

FIGURA 12 - 360° ...... p. 78

FIGURA 13 - Pilastra...... p. 78

FIGURA 14 - Gravitat...... p. 79

FIGURA 15 - Aterrissagem...... p. 79

FIGURA 16 - Energia eólica...... p. 79

FIGURA 17 - Compasso...... p. 79

FIGURA 18 - Zéfiro ...... p. 79

FIGURA 19 – Zéfiro I...... p. 79

FIGURA 20 – Vita...... p. 80

FIGURA 21 - Rota...... p. 80

FIGURA 22 – A geografia da capoeira na cidade do ...... p. 88

FIGURA 23 – A Geografia da Capoeira no Mundo ...... p. 100

FIGURA 24 – Mestre Levi e estudantes do IEGRS ...... p. 106

FIGURA 25 – Alexandre Santini iniciando o cortejo festivo...... p. 108

FIGURA 26 – Mestres e contramestre no encerramento da Ação Griô ...... p. 109

FIGURA 27 – O instrutor Coelho joga com um aluno do Ensino Fundamental .... p. 110

FIGURA 28 – Mestres afinam os instrumentos...... p. 112

FIGURA 29 – O Mestre da Tradição Oral e a transmissão dos saberes populares.. p. 113

FIGURA 30 – Evolução entre os experientes...... p. 113

FIGURA 31 – Criança na roda ...... p. 114

FIGURA 32 – A Capoeira invade o espaço acadêmico ...... p. 114

FIGURA 33 – Alunos da FEUDUC dançam o Maculelê ...... p. 115

FIGURA 34 – Ação Griô Nacional – Transmissão dos saberes ...... p. 116

FIGURA 35 – Conversas sobre Capoeira ...... p. 117

FIGURA 36 – Aprendizagem que se faz na prática ...... p. 118

FIGURA 37 – A Regência perfeita ...... p. 119 LISTA DE TABELAS

TABELA 1 – A evolução da população escrava (%) do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX ...... p. 41

TABELA 2 – Grupos de capoeira existentes no Brasil ...... p. 53 LISTA DE GRÁFICOS

GRÁFICO 1 – Cenário da capoeira no Brasil ...... p. 53

GRÁFICO 2 – Diferentes ações culturais realizadas no Brasil ...... p. 54

LISTA DE SITES ACESSADOS http://www.capoeiradobrasil.com.br/confederacao.htm - acessado em fevereiro de 2008 http://www.rabodearraia.com/show/web/ - acessado em fevereiro de 2008 http://www.capoeiranavarra.com/ - acessado em fevereiro de 2008 http://www.aroda.org/ – acessado em fevereiro de 2009 http://www.muzenzaleon.com/ - acessado em fevereiro de 2008 http://www.cdol.co.uk/ - acessado em fevereiro de 2008 http://www.capoeira.jex.com.br/ acessado em novembro de 2007 http://www.youtube.com.br/capoeiraexpressaobrasilshow/bypaulofranco/video/ - acessado em janeiro de 2008 http://www.abadacapoeiraeuropa.eu/index.php?lang=pt/ - acessado em setembro de 2008 http://www.portalcapoeira.com/ - acessado em setembro de 2008 http://www.capoeiracadiz.es/ - acessado em julho de2008 http://www.gruposenzala.com/mestre gato/ - acessado em novembro de 2007 http://www.abadacapoeira.com.br/mestre camisa/ - acessado em abril de 2008 http://www.abadacapoeira.com.br/mestre camisaroxa/ - acessado em abril de 2008 http://www.muzenza.com.br/mestreburgues/ - acessado em abril de 2008 http://www.abada.org/sanfrancisco/ - acessado em setembro de 2008 http://www.sdobrado.com.br/commerce/ - acessado em outubro de 2008 http://skreened.com/ - acessado em novembro de 2008 http://www.muzenzawear.com.br/lojaonline- acessado em novembro de 2008 http://www.youtube.com.br/capoeiraVsMuaythai / - acessado em janeiro de 2009 http://www.youtube.com.br/mestrecesardealabama/thequest / - acessado em janeiro de 2009 http://www.muzenza.com.br/muzenza2009/port/contatos.php/ acessado em fevereiro de 2009

LISTA DE ABREVIATURAS

BBC - British Broadcasting Corporation COB – Comitê Olímpico Brasileiro COI – Comitê Olímpico Internacional CNC – Confederação Nacional de Capoeira FEUDUC – Faculdade de Filosofia, História e Letras de Duque de Caxias FICA – Federação Internacional de Capoeira IEGRS – Instituto de Educação Governador Roberto Silveira MinC – Ministério da Cultura SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 15 I - CAPOEIRA ANTIGA ...... 20 1.1 - OS DIFERENTES MITOS QUE ENVOLVEM A CAPOEIRA ...... 20 1.2 - A CAPOEIRA – IDENTIDADE ÉTNICA E NACIONAL ...... 22 1.3 - A CAPOEIRA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (1800 – 1850) ...... 24 1.4 - TRAJETÓRIA DA CAPOEIRA – DECLÍNIO CARIOCA (1890) HEGEMONIA BAIANA (1890- 945) ...... 26 II - CAPOEIRA MODERNA ...... 28 1.1 CAPOEIRA REGIONAL ...... 28 1.2 - BIMBA – AÇÕES MODERNAS E CONTROVERSAS...... 29 1.3 - A REINVENÇÃO DA CAPOEIRA ANGOLA: UMA RESPOSTA À REGIONAL...... 32 III - A DIFUSÃO DA CAPOEIRA NAS SOCIEDADES OITOCENTISTA E PÓS- MODERNA ...... 35 1.1 - A RELAÇÃO DO CATIVO COM OS ESPAÇOS PÚBLICOS NO CENÁRIO URBANO DA CAPITAL DO RIO DE JANEIRO NO SÉCULO XIX ...... 35 1.2 – CAPOEIRA – ESPAÇOS PÚBLICOS X ESPAÇO PRIVADO ...... 44 1.3 - CAPOEIRA – ESPAÇO RELIGIOSO ...... 54 IV – A PERMANÊNCIA DA CAPOEIRA NUM CONTEXTO GLOBALIZADO ...... 62 1.1 - CULTURA COMO MATÉRIA PRIMA ...... 62 1.2 - O CIBERESPAÇO A TELEVISÃO E O CINEMA DITANDO A GINGA DA CAPOEIRA ...... 66 1.3 - CAPOEIRA COMO MODALIDADE ESPORTIVA OLÍMPICA ...... 74 1.4 – A CAPOEIRA COMO ARTE - A ESTÉTICA DA CAPOEIRA ...... 76 1.5 - RITMOS, MOVIMENTOS E TEATRALIDADE – QUE LUTA É ESTA QUE SE FAZ DANÇANDO? ...... 78 V – RODAS DE CAPOEIRA E RESISTÊNCIA: A EXPERIÊNCIA DA CIDADE DE DUQUE DE CAXIAS ...... 82 1.1 - A EXPERIÊNCIA LOCAL DA CIDADE DE DUQUE DE CAXIAS ...... 82 1.2 – OS MESTRES E SUAS FAÇANHAS - PATRIMÔNIO VIVO NA CIDADE DE DUQUE DE CAXIAS...... 92 1.3 - CAPOEIRA COMO RESISTÊNCIA: DESAFIO, LUTA E SUPERAÇÃO ...... 95 1.4 - A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E OS SABERES POPULARES - A EXPERIÊNCIA LOCAL DA CIDADE DE DUQUE DE CAXIAS ...... 100 1.5 - O ENCANTAMENTO DAS PALAVRAS, DAS HISTÓRIAS E DOS GESTOS – A TRANSMISSÃO DA ANCESTRALIDADE ATRAVÉS DA ORALIDADE POPULAR – AÇÃO GRIÔ NACIONAL EM DUQUE DE CAXIAS ...... 105 1.6 - RECONHECIMENTO DE SABERES E A NECESSIDADE DE CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA ...... 115 1.7 - CAPOEIRA COMO PAIXÃO. ATUAÇÃO SOCIAL COMO COMPROMISSO: O EMPODERAMENTO DOS MESTRES ...... 117 CONCLUSÃO ...... 121 BIBLIOGRAFIA ...... 126 ANEXO A – INSTITUIÇÕES DESPORTIVAS ...... 130 ANEXO B – SHOW E ENTRETENIMENTO ...... 134 ANEXO C – CAMPEONATOS ...... 146 ANEXO D – PERSONALIDADES DA CAPOEIRA ...... 152 ANEXO E – PRODUTOS E SERVIÇOS ...... 160 ANEXO F – A CAPOEIRA NO MUNDO ...... 181 ANEXO G – OUTROS ...... 202 15

INTRODUÇÃO

Grande mérito dos depoimentos é a revelação do desnível assustador de experiência vivida nos seres que compartilham a mesma época; a do militante penetrado de consciência histórica e a dos que apenas buscaram sobreviver. Podemos colher enorme quantidade de informações factuais, mas o que importa é delas fazer emergir uma visão de mundo. (Bosi, 2003, p. 19)

Passaram-se alguns séculos desde a chegada dos primeiros navios negreiros, que atracaram nas inúmeras cidades portuárias brasileiras, até os nossos dias. Essa rota entre Brasil e África foi realizada repetidas vezes, o que ocasionou o transporte para o Brasil de aproximadamente 12 milhões de escravos. Felizmente, apesar da distância e do tempo que nos separa daqueles dias de outrora, marcados principalmente, pela ganância e intolerância da sociedade escravocrata, a partir da diáspora negra, a nação brasileira foi ricamente beneficiada pela generosa contribuição deixada por esse grupo étnico em diferentes segmentos. Podemos destacar algumas das contribuições desse grupo na culinária, nos rituais religiosos e, sobretudo na cultura, através das diferentes representações artísticas como a dança e a música, o que de fato, possibilitou uma ampliação significativa no modo de ser e principalmente na formação de regras de comportamento compostas por uma pitada a mais de criatividade e originalidade. Neste sentido, não podemos deixar de referendar a Capoeira como uma das mais relevantes contribuições aqui desenvolvidas pelo negro. Considerada por muitos estudiosos como um fenômeno cultural urbano, a luta/arte esteve presente nos diferentes segmentos da sociedade, quer como ação de resistência, na opressão sofrida diretamente pelos negros escravos e seus descendentes, quer como luta e ou entretenimento, quando nos referimos aos filhos da aristocracia, que, secretamente, se renderam aos encantos desta ginga nascida em solo brasileiro, quer como espetáculo, que personifica o negro brasileiro numa conotação heróica e ufanista, mas com uma ausência profunda do significado da capoeira como elemento de identidade a partir da diáspora, e continua presente como produto, sobretudo, pelo forte papel desempenhado pela Indústria Cultural na esfera globalizada nos dias atuais, que através da apropriação da capoeira como mercadoria, transforma esta manifestação da cultura popular pertencente ao Patrimônio Imaterial Brasileiro em produto.

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Felizmente, apesar da forte atuação do mercado, percebe-se um esforço relevante de alguns segmentos da sociedade em reconhecer a capoeira como Patrimônio Imaterial no sentido real da palavra, que referenda os saberes coletivos, bem como os seus representantes que, através da oralidade, elegem o seu maior meio de transmissão, e por último, como elemento de relevância na Educação Patrimonial referendada hoje no Brasil por algumas tímidas, mas não menos importantes, implementações de Políticas Públicas de Cultura, reconhecidas pela esfera federal no cenário cultural brasileiro, o que poderá ser constatado nesta dissertação a partir da explanação da experiência local da Cidade de Duque de Caxias, através do Programa Ação Griô Nacional que busca uma interação mais profunda entre os saberes populares e o saber formal, mostrando a complementação entre ambos. Entender os diferentes mitos que envolvem a capoeira e o seu processo num contexto histórico temporal é, inquestionavelmente, o modo mais correto de compreendermos este jogo, luta, dança, representação, em sua plenitude, de forma transparente e completa. A experiência vivida pelos mestres, contramestres, instrutores, aprendizes e simpatizantes na cidade de Duque de Caxias é um grande exemplo da força da militância desses indivíduos no cenário cultural, que contrário a todas as ações de indiferença e desmobilização pelo poder público local, conseguiu arduamente estabelecer uma tênue relação de identidade com a sua população. Este processo de sedimentação das matrizes da tradição oral na cidade em questão foi constituída basicamente pela forte migração nordestina na memória e identidade de Duque de Caxias. Encontrar na cidade representações do patrimônio imaterial como o bumba- meu-boi, e a capoeira é trazer à memória de muitos de seus cidadãos, principalmente os mais velhos, um pedaço do seu território de origem. É justamente graças a essa territorialização, trazida na memória e na alma desses retirantes nordestinos, que hoje podemos vislumbrar um pedacinho do Maranhão do saudoso Mestre Estevão que ao longo de sua trajetória em Duque de Caxias, vislumbrou através de seus saberes e ensinamentos o bailado da Catirina, a musicalidade das matracas, a excentricidade das cores das fitas das indumentárias usadas pelos brincantes, além da doçura das canções entoadas na evolução do boi que nos conduz a terras distantes. Outras experiências com forte resquício de valorização da terra natal se dão com as rodas de capoeira, trazidas por Mestre Barbosa de origem

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pernambucana e Mestre Gegê oriundo das terras de Mãe Menininha do Gantois. Graças às contribuições tão significativas desses ilustres nordestinos e o envolvimento de outros Mestres não menos importantes, a cidade de Duque de Caxias é reconhecida nacional e internacionalmente através da sua capoeira. Duque de Caxias é a cidade onde existe uma das maiores representações da capoeira brasileira, com aproximadamente sessenta grupos, entre os reconhecidos e os não- reconhecidos. Ironicamente, em 2007, apesar de todo o ostracismo imposto pelo Poder Público Local, a cidade recebeu a visita de representantes do Ministério da Cultura, por reconhecerem a importância dos trabalhos desenvolvidos a partir das manifestações populares aqui já apontadas, que possibilitou a implantação do Primeiro Ponto de Cultura da cidade1. Além disso, no ano anterior, esta mesma cidade já havia recebido a visita do Ministro da Educação, Cultura e Esporte da Austrália Mr Hon R.C. (Bob) Kucera que ainda na cidade de Perth, através de referências dadas por Mestre Draga2, tomou conhecimento do belíssimo trabalho desenvolvido pelo Mestre Gegê em Duque de Caxias. O Ministro visitou inúmeras rodas e foi apresentado a muitos mestres, o que lhe causou tamanha impressão. No ano seguinte, a trajetória se deu de forma contrária, Mestre Gegê visitou a Austrália, onde teve a oportunidade de passar um pouco da sua experiência com a capoeira para os mestres brasileiros que residem naquele país3. Um outro dado que caracteriza a importância da militância desses incansáveis mestres foi o lançamento do filme – gênero documentário - “O Zelador”, dirigido pelo cineasta inglês Daren Bartlett que se encantou com a trajetória de vida do Mestre Russo, responsável pela roda de rua mais conhecida no mundo, a “Roda Livre de Capoeira de Duque de Caxias”, o que gerou para a produção cinematográfica, valorosas críticas como nos jornais ingleses “The Mirror” e “The Times”, além da divulgação do filme no programa do crítico da BBC4 radio 1 Gilles Peterson5. O objetivo deste trabalho está calcado numa tentativa de compreender o processo pelo qual a capoeira vem passando ao longo da sua existência, isto é,

1 Sociedade Musical e Artística Lira de Ouro fundada em 1957 – espaço de produção e fruição da cultura na cidade de Duque de Caxias 2 Mestre de Capoeira que atua na cidade de Perth há mais de uma década. 3 Esta informação poderá ser comprovada através das fotografias inseridas no anexo G. 4 Emissora pública de rádio e televisão do Reino Unido fundada em 1922. 5 Gilles Petersen é um famoso disc jockey que apresenta o melhor do jazz, soul, hip-hop, house and funk na rádio 1 da BBC deLondres.

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desde o período que esta foi identificada oficialmente em registros históricos através dos códices policiais datado do século XIX até a sua permanência nos dias atuais. O trabalho está dividido em cinco capítulos que disserta sobre a capoeira antiga, capoeira moderna, capoeira no Rio de Janeiro e na Bahia, cultura como matéria prima e por ultimo, narra experiência local da cidade de Duque de Caxias, que desde o ano de 2008 vem trabalhando o tema em questão numa escola considerada referência no município. A valorização da capoeira no contexto escolar tem levado alguns professores, tanto da escola de ensino médio, como da academia, a introduzir elementos que compõem o conjunto de saberes que possibilitam a criação das manifestações da cultura popular isto é, a Educação Patrimonial como proposta curricular. Certamente o trabalho desenvolvido pelos grandiosos mestres da tradição oral de Duque de Caxias, que apesar das inúmeras dificuldades sofridas por eles ao longo dos tempos, sobretudo, desde os anos setenta em plena ação da Ditadura Militar, não desistiram de difundir as suas memórias. A transmissão dos saberes desses mestres, verdadeiros patrimônios vivos de uma história fortemente marcada pelo preconceito e crueldade, é sem dúvida, uma grande lição para todos nós. Uma lição de continuidade, e de esperança, sobretudo para as novas gerações que pouco ou nada sabem de todo este processo em questão. Certamente, a formulação de aplicação de Políticas Públicas de Cultura e de Educação são de fato uma das mais importantes estratégias de ação para que, neste caso, a cultura popular possa permanecer como algo visto e respeitado pela população por um longo tempo, caso contrário, muito dessa riqueza será esquecida ou totalmente dizimada de nossa memória. Neste trabalho são apresentadas algumas experiências que estão dando certo no que se refere à transmissão dos saberes da capoeira. A fusão entre os saberes populares juntamente com a escola formal e a academia tem sido um processo “antropofágico”, onde mestres, alunos, professores, pesquisadores e simpatizantes se alimentam desse enorme caldeirão. Desta maneira, conclui-se que, apesar das contradições e adversidades, a capoeira ainda possui um valor histórico inigualável, certamente isso se deve ao papel do negro escravo a partir da diáspora, que com muita luta e coragem, fez valer

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a sua história. Além disso, a capoeira, do tada de uma ginga e musicalidade particular, reforçou ainda mais a sua perpetuação no mundo. Cabe aqui, um reconhecimento aos esforços de muitos de seus mestres, juntamente com nossos antepassados, verdadeiros heróis da resistência. Por todas essas razões esta manifestação da cultura popular continua sendo reconhecida como brasileira, bela e faceira, e tem conseguido permanecer nesse cenário caótico da pós-modernidade apesar de todos os esforços contrários. Por tudo aqui explicitado, esse trabalho tem como desafio analisar a trajetória pela qual a capoeira vem se desenvolvendo, desde sua ação como resistência de um povo, passando por diversas transformações, até os dias atuais, compreendendo quais são de fato as suas possibilidades de permanência num contexto globalizado, além de apresentar a experiência local da cidade de Duque de Caxias, que graças ao trabalho desenvolvido por seus combativos Mestres tem possibilitado a experiência, a troca e as vivências. Todas as informações que possibilitaram a realização desse trabalho provêm de fontes diferentes como: levantamento bibliográfico, que permitiu a compreensão da importância da capoeira, sobretudo, na relação do homem cativo do século XIX, buscando a sua sobrevivência diante de um ambiente completamente conflituoso e cruel; a utilização da internet como ferramenta de pesquisa também foi de estrema importância na busca de informações relevantes na concepção dessa dissertação; outras fontes de pesquisa foram jornais e revistas especisalizadas, bem como, entrevistas livres ou orientadas com os preciosos depoimentos dos mestres que foram gravadas em imagem e som, buscando fortalecer a memória desses mais velhos na luta/arte e por último, o trabalho de campo com pesquisa participativa no Instituto de educação Governador Roberto Silveira na cidade de Duque de Caxias através dos trabalhos desenvolvidos pelo Ponto de Cultura Lira de Ouro, contemplado pelo Programa Ação Griô Nacional – MinC que, a partir de ações de salvaguarda da memória e identidade voltadas à tradição oral, tem sinalizado para a construção de Políticas Públicas de Cultura e Educação na promoção dos Patrimônios Material e Imaterial brasileiros.

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I – CAPOEIRA ANTIGA

1.1 - OS DIFERENTES MITOS QUE ENVOLVEM A CAPOEIRA

Passaram-se alguns séculos desde a chegada dos primeiros navios negreiros que atracaram nas inúmeras cidades portuárias brasileiras até os nossos dias. Essa rota entre Brasil e África foi realizada repetidas vezes, o que ocasionou o transporte para o Brasil de aproximadamente 12 milhões de escravos. Felizmente, apesar da distância do tempo que nos separa daqueles dias de outrora marcados principalmente pela ganância e intolerância da sociedade escravocrata a partir da diáspora negra, a nação brasileira foi ricamente beneficiada pela generosa contribuição deixada por esse grupo étnico, nos diferentes segmentos como na culinária, nos rituais religiosos e, sobretudo na cultura, através das diferentes representações artísticas como a dança e a música, o que de fato, possibilitou uma ampliação significativa no modo de ser e principalmente na formação de regras de comportamento compostas por uma pitada a mais de criatividade e originalidade. No cenário da capoeira existem vários níveis de mitificação, muitos desses mitos sem nenhum embasamento em fatos históricos. Geralmente esses mitos são inventados muitas vezes para enfatizar posições ideológicas, por isso não sabemos quem os inventou, nem a sua origem, sabemos apenas que, repetidos exaustivamente, eles acabam por se tornar uma verdade inquestionável. Um dos mitos de maior peso na história da capoeira é justamente aquele relacionado a sua origem. Este diz respeito à existência da capoeira no Brasil Colônia desde o século XVI, o que é significativamente questionado por muitos pesquisadores que enfatizam a existência de documentos históricos que reconhecem a capoeira a partir do século XIX. Um outro mito amplamente divulgado e aceito por muitos se refere à prática da capoeira exercida por milhares de escravos africanos e seus descendentes “crioulos”6 nos sertões adentro com o objetivo de oferecer resistência à escravidão durante o período colonial. Neste sentido o quilombo passa a ser enfatizado como lugar-símbolo de destaque, o que possibilita a associação do quilombo a uma referência geográfica de resistência negra, bem como a figura de

6 Negros nascidos em terra brasileira.

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Zumbi como um exímio mestre de capoeira. Observe a seguinte afirmação “A existência da capoeira parece remontar aos quilombos brasileiros da época colonial, quando os escravos fugitivos, para se defenderem, faziam do próprio corpo uma arma” (REIS, 1993, p. 1). Afirmações desta natureza ainda são referendadas em muitos estudos acadêmicos sérios, no entanto, ainda não foi comprovada a existência de nenhum documento que nos permita concluir que os integrantes do famoso quilombo tenham praticado a capoeira ou alguma outra forma de luta/jogo (ver também ARAÚJO, 1997, p. 200). Outro mito bastante difundido se refere à imutabilidade da capoeiragem, este compartilhado por capoeiristas de todas as escolas, que defendem a capoeira como manifestação de contornos nítidos, cuja essência se manteve quase que intocada com o passar dos séculos. Assim faz-se necessária uma rápida explicação sobre a trajetória da capoeira ao longo do tempo. Cabe ressaltar que esta trajetória é cheia de rupturas, e, conseqüentemente não existe uma seqüência lógica dos fatos, o que dificulta significativamente a nossa compreensão. Esta história começa com os quilombolas do interior, praticantes da capoeira no século XVII, a partir desse ponto ela segue vertiginosamente para a Cidade do Rio de Janeiro dos vice-reis. Muitos afirmam que a mesma capoeira praticada nos quilombos foi difundida para os escravos urbanos e a população livre. No meio urbano foram formadas as maltas, como os Nagoas e Guaiamuns7, e este ciclo finda com a ação de Sampaio Ferraz, chefe de polícia que teria “erradicado” a capoeira do Rio de Janeiro por volta dos idos 1890. Segue-se um novo momento já na Bahia no século XX, mais precisamente com a criação da “primeira” academia de capoeira por Mestre Bimba e a consolidação da capoeira de Angola por Mestre Pastinha. Para Luiz Renato Vieira e Matthias Röhrig Assunção8 alguns problemas são destacados a partir da trajetória seguida pela capoeira: • História da capoeira sensivelmente fragmentada; • As descontinuidades entre os vários fragmentos desta história; • O não enfoque às variações, ou fundamentais diferenças, entre essas manifestações;

7 Bandos que mais se destacavam na época, formados por negros praticantes da capoeira. 8 Luiz R. Vieira Sociólogo, mestre de capoeira do Grupo Beribazu,professor do curso de pós- graduação em capoeira na Escola de Educação Física da Universidade de Brasília (1997-1998) e Matthias R Assunção é Historiador, professor do Departamento de História da Universidade de Essex, Inglaterra. Juntos escreveram o artigo intitulado “Mitos, controvérsias e fatos – Construindo a História da Capoeira.”

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• O não reconhecimento da capoeira como um processo através do qual os diversos elementos vão se estruturando e mudando ao longo dos anos, mas trata a capoeira como tendo uma “essência”, para cuja “pureza” é preciso voltar.

Vieira e Assunção comentam que a necessidade de legitimação pelas origens remotas por parte de muitos mestres e seus discípulos é tão grande que pode chegar à manipulação das fontes e dos fatos. Eles exemplificam esta afirmação a partir da atitude de um mestre que utilizou na capa do seu CD a famosa gravura de Rugendas, que retrata homens jogando capoeira – “Jogar Capoeira” ou “Danse de la Guerre” e que originalmente é representada por apenas um instrumento musical, um pequeno tambor. A necessidade de legitimar algumas referências da capoeira dos nossos dias fez com que o referido mestre de capoeira adulterasse grosseiramente o trabalho artístico do pintor incluindo na gravura um nas mãos de um outrora passivo espectador, como representação da capa aludida. Concluímos que nenhum berimbau, agogô, pandeiro ou reco-reco foi retratado por Rugendas, visto que todos esses instrumentos foram introduzidos na prática da capoeira moderna, não existindo uma referência temporal para a introdução desses instrumentos. Um outro mito bastante difundido por muitos pesquisadores, mestres de capoeira e seus discípulos é o fato de que grande parte dos registros relacionados à capoeira foram queimados por Rui Barbosa, Ministro da Fazenda da época. Neste sentido é importante esclarecer que de fato alguns documentos foram queimados, sobretudo, aqueles relacionados às matrículas de escravos, criadas pela Lei do Ventre Livre (1871), cuja destruição dificultaria a exigência de indenização por parte dos ex-proprietários de escravos, o que o Ministro da Fazenda da época temia (VIEIRA e ASSUNÇÃO, 1998, p. 7).

1.2 - A CAPOEIRA IDENTIDADE ÉTNICA E NACIONAL

Antes de qualquer coisa é importante compreender a questão da origem da capoeira em terra brasileira. Na verdade, não existe nenhuma comprovação histórica que identifique a sua origem. Muitos capoeiristas e pesquisadores atribuem a existência da capoeiragem no Brasil como herança dos escravos Angola. Os

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defensores deste pensamento insistem que a capoeira origina-se de um antecessor direto, como o N`Golo9. Diferentemente dos outros estados, existiu uma divisão étnica na capoeira ainda no século XIX no Rio de Janeiro. As famosas maltas cariocas dos Nagôas e Guaiamus corresponderia à divisão étnica entre escravos africanos e crioulos (SOARES 1994, p. 93-87). Com a difusão da capoeiragem por todas as classes urbanas pobres, incluindo os portugueses e até mesmo a elite, além das conseqüentes mudanças ocorridas na segunda metade do século XIX, a capoeira deixa de ser uma prática exercida única e exclusivamente por negros. Na Bahia, talvez devido à força do candomblé como referência da identidade daquele povo, a capoeira continuou a ser identificada como negra, neste sentido a luta/arte tornou-se um dos mais fortes sustentáculos da identidade negra na Bahia, e por extensão, em todo o Brasil. Seguem abaixo outros fatores significativos que também contribuíram para a perpetuação tanto do candomblé quanto da capoeira no cenário sócio-cultural brasileiro: • O abrandamento da repressão policial; • A sistematização da defesa da cultura negra que teve como idealizador o professor Édison Carneiro; • A organização do 2° congresso Afro-Brasileiro, na Bahia, em 1937; • O papel desempenhado pelos Mestres Pastinha e Bimba na difusão da capoeira. A partir de 1945 as autoridades reconheceram e elevaram a capoeira à condição de uma “luta nacional” ou “luta própria do Brasil” (MORAIS FILHO, 1979, p. 257, 263). É digno de nota que as famosas apresentações de Mestre Bimba para as autoridades, primeiro no Palácio do Governador Juracy Magalhães (Bahia, na década de 1930) e depois diante do Presidente Getúlio Vargas (no Rio, em 1953) ratificam o novo processo pelo qual a capoeira estava passando, esta hegemonia teve continuidade na ditadura militar de 1964-80.

9 O N´Golo foi descrito pelo escritor Neves de Souza, na década de 1960, como uma dança de iniciação numa região de Angola, onde se usava o pé para atingir o rosto do adversário. Câmara Cascudo foi o primeiro a atribuir a origem da Capoeira ao N´Golo, seguido por muitos capoeiristas. Entretanto falta até hoje uma descrição mais detalhada desta “dança das zebras” que continua a inspirar grande número de praticantes da capoeira. Outros possíveis ancestrais seriam uma luta de pescadores chamada bássula e uma dança de nome umudinhu (cf. SOARES, 1995, p.24).

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Associar a capoeira à resistência do negro e consequentemente à “origem africana” foi o discurso étnico dos difusores dessa expressão da cultura popular na década de 1980. Certamente, o crescimento significativo do movimento negro na sociedade brasileira acabou por influenciar a valorização desta etnia na capoeiragem. Neste momento percebe-se claramente a substituição do malandro urbano, visto até então como o capoeirista por excelência, pelo quilombola capoeirista, o que historicamente nunca foi comprovado. É justamente neste período que a capoeira Angola é redescoberta como uma linha mais propícia para veicular um discurso étnico, ultrapassando os paradigmas estabelecidos pela capoeira Regional.10

1.3 - A CAPOEIRA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (1800-1850)

Um dos assuntos que causa mais polêmica numa roda de capoeiristas é falar sobre a origem da capoeira. Apesar de toda a difusão de estudos sistemáticos sobre esse tema, ainda hoje, muitos mestres e curiosos acreditam que a capoeira nasceu na Bahia. No entanto, foi na cidade do Rio de Janeiro onde ficaram registradas as primeiras manifestações da capoeira em solo brasileiro. Até que se prove o contrário, não é sabido por ninguém a existência de qualquer documento do Brasil Colônia ou Império que comprove a prática da capoeira na Bahia anteriormente àquela praticada no Rio de Janeiro. Um dos maiores especialistas da história da Bahia no século XIX, o pesquisador João Reis desconhece qualquer tipo de referência à capoeira ou outra dança/luta no estado baiano durante aquele século. As primeiras referências que legitimam a existência da capoeira no Brasil a partir do século XIX foram na cidade do Rio de Janeiro, isto é, ali começam os estudos sistemáticos sobre a capoeira (VIEIRA E ASSUNÇÃO, 1998, p. 20). A capoeira como luta aparece nas fontes massivamente a partir da segunda metade do século XIX. Refere-se a capoeira a um conjunto de técnicas de combate que envolvia o uso de armas (facas, navalhas, cacetes, sovelões11, pedra e fundos de garrafa) como também o uso de golpes com as pernas ou a cabeça.

10 Referência ao trabalho desenvolvido pelo Cativeiro, um grupo surgido dentro da capoeira regional paulista, que se reorientou ultimamente em direção à capoeira Angola (ver análise de Letícia Reis, 1993, p. 117-200). 11 Instrumento de ferro ou de aço, em forma de haste cortante e pontuda, que os sapateiros e correeiros usam para furar o couro a fim de coser.

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Inicialmente era praticada em sua maioria por escravos africanos, muitos provinham de áreas de cultura bantu (HOLLOWAY, 1989b. p. 660-661). Odiados pelas autoridades da época, os eram considerados “malfeitores” que andavam pelas ruas portando armas, causando medo, atentando contra a ordem pública. Neste sentido é importante ressaltar que não existe nos registros da época nenhuma alusão à capoeira como uma atividade lúdica ou de lazer. Para a pesquisadora norte americana Mary C. Karasch12 os escravos da cidade do Rio de Janeiro forjaram uma extraordinária tradição cultural. Karasch acredita que não podemos reduzir a capoeira do século XIX apenas como folclore. Considerada como o maior fenômeno cultural urbano, esta manifestação da cultura popular, foi praticada inicialmente por negros escravos13 e livres, crioulos, e mais tarde, por volta da segunda metade do século XIX, a capoeira passa a ser refúgio de uma camada popular composta por trabalhadores marginalizados, imigrantes portugueses, brancos pobres e indivíduos vindos de regiões mais distantes do país, irmanados pela camaradagem dos grupos de rua (SOARES, 2004, p. 25). Neste sentido a capoeira passou a ser a porta de entrada na cidade para os estranhos, forasteiros desamparados... uma babel de nacionalidade escondia-se nas sombras da capoeiragem. Constituída por africanos em terras brasileiras, a capoeira vai ter seu destino marcado pelo caráter cosmopolita da capital do Império (SOARES, 1995, p. 177). A rápida difusão da luta acaba por permitir a fuga desta ao seu contexto original, o que possibilita a sua prática por jovens de alta estirpe, conhecidos como “cordões elegantes”, comprovando a dificuldade em associar a capoeira apenas com as classes populares e ratificando a sua classificação como fenômeno cultural urbano (SOARES, 2004, p. 77). Esta rápida mudança que envolve os diferentes segmentos da sociedade do século XIX permite que os praticantes da capoeira sejam analisados a partir das referências de que em 1890 aproximadamente um terço das detenções por capoeiragem representavam que 10% eram estrangeiros, sendo 6,8% portugueses (BRETAS, 1991, p.242; SOARES, 1995, p. 144-145) Muitos praticantes da capoeira eram pagos por comerciantes, empresários, e outros para ameaçar, coagir e assassinar aqueles que se tornavam inimigos dos

12 Professora da Universidade de Michigan apresentou através da sua Tese de Doutorado A vida dos escravos no Rio de Janeiro, defendida em 1972 e publicada em 1987, o mais abrangente panorama da história da escravidão na cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX. 13 Estes, quando pegos em flagrante e presos em calabouços, recebiam aproximadamente 300 chibatadas, e eram mantidos no cárcere por pelo menos três meses.

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poderosos. Geralmente os atos de vingança por encomenda eram realizados durantes as festas populares de rua ou religiosas, daí o temor sofrido pela população referente aos capoeiras. Certamente, a figura do capoeira causava temor à população, isto é, compartilhar o mesmo espaço de uma pessoa que dominava a mandinga da vadiagem era, no mínimo, correr um grande risco, uma vez que a balburdia poderia começar de repente e, sem que ninguém esperasse, o indivíduo puxava a navalha ou um outro instrumento cortante qualquer e começava ali mesmo a carnificina. “As novenas e festas religiosas, os cavalos marinhos e outras funções públicas tornaram-se o teatro predileto dos temíveis ajustes de conta ou torneios de capoeiragem, não obstante a mais tenaz perseguição policial” (ARAUJO, 1898,p. 55).

1.4 – TRAJETÓRIA DA CAPOEIRA - DECLÍNIO CARIOCA (1890) E HEGEMONIA BAIANA (1890 -1945)

Com o fim da monarquia em 1889 os republicanos passam a dominar o cenário político brasileiro, é justamente neste período que a capoeira na capital da república passa a sofrer uma das mais contundentes repressões da história. As autoridades têm, na pessoa do novo chefe de polícia, Sampaio Ferraz, o maior perseguidor da capoeira dos tempos modernos. O algoz da capoeira carioca entra para a história como o responsável pelo término da capoeiragem no Rio de Janeiro através da deportação massiva de centenas de capoeiristas (líderes das maltas) para a ilha de Fernando de Noronha. Com esta ação a luta arte entra em um período de declínio no Rio de Janeiro que só voltará a se reerguer a partir da década de 1930 com o surgimento da capoeira moderna. Com o declínio da capoeira no Rio de Janeiro a partir de1890, o cenário desta expressão cultural popular transfere-se para a Bahia, onde viverá uma das mais significativas experiências até 1945. A difusão da capoeira a partir deste período de hegemonia baiana é tão intensa que se tornou senso comum acreditar que a capoeira nascera na Bahia, daí até os dias de hoje presenciarmos discussões calorosas sobre a origem da capoeira. A prática da capoeira sempre esteve ligada à tradição oral, não existia um manual ou academias onde aqueles interessados em desenvolver as habilidades desta luta/arte pudessem recorrer para dominá-la, daí a capoeiragem de rua ter sido

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a mais real representação na história da capoeira. Desde o século XIX a prática da capoeiragem sempre se deu informalmente. As pessoas se encontravam principalmente nos becos e ruelas onde a vadiagem14 começava. Até o início dos anos 30, o jogo da capoeira aparecia integrado às práticas do cotidiano das classes populares, assim como a “pelada”15. Na capoeira a passagem de conhecimento se dava a partir da troca de experiência entre os praticantes antigos no jogo com o aprendiz no exercício prático da luta. Não havia uma exigência quanto à técnica do jogo, o que era necessário era a compreensão do ritual da roda. O domingo à tarde era o dia dos pontos de encontro tradicional, no entanto, qualquer ocasião de encontro era propícia à realização da roda. A vadiagem sempre se dava em bares, praças, mercados, feiras, enfim palcos de rodas inesperadas. Diferentemente das rodas de hoje, a capoeira não exigia de seus praticantes uniformes. As pessoas entravam no jogo do jeito que estivessem; apenas aos domingos ou nas festas de largo, os capoeiristas mais destacados faziam questão de se apresentar trajando ternos de linho branco. Estes eram capazes de entrar na roda sem sujar a roupa, mostrando, desta forma, habilidades com o jogo. Tal ato implicava na admiração dos que assistiam à exibição, o que de fato era bastante positivo, uma vez que, mesmo com mais espaço que o Rio de Janeiro, ainda assim a vadiagem baiana continuava a sofrer perseguição das autoridades locais. A existência de um público assistente era a prova de que a prática parecia ser aceita socialmente.

14 Forma como as autoridades classificavam a prática da capoeira. 15 Jogo de futebol informal de final de semana em “campo” de terra.

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II – CAPOEIRA MODERNA

1.1 - CAPOEIRA REGIONAL

Quando falamos sobre Capoeira é quase impossível não fazer referência aquele considerado um dos mais importantes expoentes da capoeira moderna, , o idiossincrático Mestre Bimba que, na Bahia, desenvolve a capoeira Regional, primeira modalidade da capoeira a ser praticada em todo o Brasil e no exterior. Para Bimba a capoeira baiana possuía nível técnico deficitário, principalmente se esta prática fosse comparada com outras lutas e artes marciais, que começavam a ser introduzidas no Brasil16. Em 1932 Mestre Bimba inaugura a sua primeira academia de capoeira na cidade de Salvador, transferindo a prática de rua da Capoeira para um recinto fechado, isto é, aquela que foi considerada um fenômeno cultural urbano, praticada pelos mais diferentes tipos sociais no século XIX, passou a ser confinada. Além disso, com a prática de Bimba, a capoeira passa a ser fragmentada em “exercícios fundamentais”, que deveriam ser praticados diariamente, sequencialmente. Uma das inovações de Bimba, muito criticada, foi a introdução de golpes de outras lutas (orientais), além disso, introduziu uma seqüência de golpes e movimentos denominada “cintura desprezada” isto é, uma técnica que consistia em contato físico direto para treinar a flexibilidade e o equilíbrio do capoeirista. Bimba criou um método formal para uma prática eminentemente informal. Em 1937, a Secretaria de Educação, Saúde e Assistência Pública do Estado da Bahia reconhece oficialmente a academia deste mestre e outorga-lhe o certificado de professor de Educação Física. Bimba conquistou uma relação estreita com o poder, era comum a realização de apresentações de seus alunos para as autoridades da época, como o interventor baiano Juracy Magalhães e o Presidente Getúlio Vargas. Um outro dado que merece destaque nesse contexto de proximidade de Bimba com o poder, foi o fato do mais novo titulado em Educação Física ter ministrado aulas de capoeira para os oficiais no Forte do Barbalho.

16 As primeiras apresentações de jiu-jitsu, incluindo enfrentamentos com capoeiristas, tiveram lugar no início do século XX no Rio de Janeiro e em Belém do Pará. Sobre o tema ver Vieira (1995, p. 154-156).

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A Relação de Mestre Bimba com o poder sempre gerou uma situação desconfortável para o velho mestre dentro do contexto da capoeiragem. O anseio de difundir a luta fora do meio de origem ao mesmo tempo em que lhe trouxe fama e reconhecimento, também gerou desconfiança e reprovação de muitos que antes o respeitavam. Apesar do grande esforço feito por Bimba para a difusão da capoeira bem como o retorno financeiro de todo o seu trabalho, o mestre baiano morreu na miséria assim como quase todos os outros mestres de sua época.

1.2 - BIMBA – AÇÕES MODERNAS E CONTROVERSAS

É inquestionável o papel de Mestre Bimba como responsável pela difusão da capoeira a partir de 1930. A introdução de novos métodos na prática da capoeira foi sem dúvida um ato de coragem e ousadia, sobretudo quando pensamos que essa alteração refere-se a uma expressão da cultura popular até então ligada única e exclusivamente à tradição oral. Se por um lado, Bimba foi o grande responsável pela difusão da capoeira no Brasil e no exterior (a partir da introdução da Regional no cenário cultural) por outro, o legado de controvérsias e críticas que o velho baiano gerou, tem causado discussões calorosas até os dias de hoje. Para o pesquisador Alejandro Frigerio (1989) as mudanças introduzidas por Bimba acabaram por resultar na esportização da arte, a partir da: • Crescente burocratização da capoeira; • Incorporação de elementos das artes marciais orientais; • Co-optação ideológica e política pelo sistema; • Concepções evolucionistas subjacentes.

Mestre Bimba recebeu intenso apoio do governo na difusão da prática da capoeira. Sua academia em Salvador passou a ser um espaço de fruição das classes mais abastadas com discípulos que não pertenciam à etnia original da luta/arte. Por este motivo, Bimba foi extremamente criticado pelos diferentes setores, que o responsabilizavam pelo embranquecimento daquela expressão da cultura popular. A capoeira também sofre uma descaracterização deixando de ser uma prática de rua para ser introduzida em um espaço fechado, passa a ter um valor de

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mercado e atende aos interesses de uma classe que paga para consumi-la. Na academia de Bimba com ares mais elitizados a classe média de Salvador passou a ter contato com aquela antes considerada uma arte menor e predominantemente praticada por crioulos. O governo queria institucionalizar a capoeiragem e assim, passa a considerá-la como uma arte predominantemente nacional a partir deste novo conceito imputado à dança/luta. Certamente, travestida de um novo paradigma social, a luta não podia estar ligada a um comportamento marginal e subversivo. Muitos acreditaram que o Estado encontrou em Bimba um excelente aliado para difundir os novos conceitos que deveriam ser seguidos a partir de então. Novos comportamentos e atitudes foram exigidos por parte do aprendiz de capoeira para o ingresso na academia de Bimba. Agora o aprendiz era obrigado a apresentar a carteira de trabalho, uma exigência de caráter político que Bimba executava sem apresentar nenhum questionamento. Esta prática por parte do velho Mestre, acabou por possibilitar uma interpretação de caráter contundente, empregada por muitas pessoas da Bahia e de outros estados do Brasil, muitos inclusive, afirmavam que Bimba sofria influência de ideologias autoritárias, sobretudo por parte de alunos17 que vinham de origens sociais diferentes, bem como eram possuidores de uma consciência ideológica definida. O melhor exemplo é a saudação da capoeira Regional (o “Salve” de braço esticado, ainda hoje utilizado em algumas academias do interior) de clara inspiração fascista, daí aquele comportamento corporativista e repressivo quanto à prática da capoeira. Para piorar a situação, Bimba foi instrutor de capoeira do batalhão de Exército de Salvador, o que provavelmente deve ter aviltado os ânimos de muitos dos seus críticos. Para o pesquisador Édison Carneiro, que defendia a capoeira negra e “autêntica”, “A capoeira popular, folclórica, legado de Angola, pouco, quase nada tem a ver com a escola de Bimba”. O escritor , comungou do mesmo pensamento de Carneiro quando classificou a Regional de “deturpação” que não merecia confiança (REGO, 1968, p. 269, 285-287). A capoeira dos primórdios era admirada justamente pelo seu caráter aglutinador, onde abraçava pessoas de diferentes estirpes, sobretudo o negro escravo e livre. A capoeira apesar de sua identidade negra, possibilitava espaço para o branco pobre e marginal. Agora era muito difícil compreender este novo olhar por parte de Bimba que dava a entender ver no indivíduo desempregado uma

17 O Salve foi introduzido por alunos de Bimba na Bahia. Ele mesmo teria preferido o termo “Axé”. Sobre a origem do Salve ver Decânio (1996c, p. 26).

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ameaça para a luta arte. A Capoeira de Bimba, no decorrer do tempo, passou a ser admirada também como espetáculo, sendo vista inclusive por líderes políticos. Neste sentido percebe-se como a capoeira Regional tem sido o cerne de inúmeros debates sobre o processo de re-significação desta, num contexto ainda maior, de identidade e modernização da cultura nacional. Não podemos esquecer, entretanto que Bimba na década dos anos quarenta já vivia num contexto social onde a valorização da raça branca encontrava-se em plena hegemonia, sobretudo pelas autoridades que, entre as décadas de 20 e 30, já haviam consolidado o ideal de branqueamento da nação brasileira, diferentemente do século XIX onde os negros nas cidades portuárias dominavam o cenário, ainda que num contexto conflituoso, onde a valorização do homem branco e sua cultura ainda não havia se dado como paradigma social. É no século XX que:

ampliam-se então os preconceitos quanto à participação dos negros nos espaços públicos, acentuam-se os mecanismos discriminatórios e impõe-se a tese do branqueamento, conciliando a crença na superioridade branca com a busca do progressivo desaparecimento do negro, cuja presença era interpretada como um mal para o país.18 É neste contexto que Bimba tenta sobrepor a todas as adversidades existentes. Neste período, diferentemente do século anterior, quando os brancos já dominavam todos os espaços e cenários, cabia ao negro aceitar as condições já estabelecidas ou rebelar-se, sem chances de sucesso. É justamente a partir deste ponto que precisamos analisar a postura de Bimba, enquanto um agente da cultura nacional negra. Considerado por muitos um homem especial, justamente por sua perspicácia, isto é, conseguia enxergar além do óbvio, o que certamente o diferenciou de muitos outros mestres, que possuíam um conhecimento extraordinário do jogo, mas não conseguiam adequar as idéias e conhecimentos sob um olhar pedagógico.19 Talvez ele tenha utilizado o que muitos chamam de co-optação ideológica, isto é, muitos acreditavam que Bimba se submetia às diretrizes imputadas pelas autoridades políticas da época, como exigir a carteira de trabalho daquele que quisesse ingressar na sua academia, ou dar treinamento a oficiais do exército, por exemplo, como um ato de resistência, e não como subserviência às autoridades. Neste sentido, não podemos esquecer

18 IPEA- Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Comunicado da Presidência n°4 Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição – 13 de maio de 2008 19 Ver o depoimento de muitos mestres e pesquisadores sobre o trabalho de Bimba no filme – Mestre Bimba – A capoeira Iluminada – de Luiz Fernando Goulart

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que mesmo no século XX os negros ainda viviam as sequelas oriundas da crise da escravidão, que converteu os negros e mulatos num setor marginal da população. É justamente neste contexto que as ações de Bimba podem ser encaradas como uma estratégia de sobrevivência e é o que Florestan Fernandes define como tirar proveito das atitudes ambivalentes dos brancos e das possibilidades de aceitação diferencial aberta pelo mecanismo da “exceção que confirma a regra”. (FERNANDES, 2007.p.85). Certamente essas eram armas que Bimba naquele momento em especial não poderia abrir mão, isto é, como uma linha de ação baseada em uma logística de continuidade implementada pelo velho negro capoeirista no mundo dos brancos, caso contrário a capoeira não teria resistido com mais de seis milhões de praticantes só no Brasil, ou não tivesse chegado a mais de 150 países, superando questões ideológicas, étnicas, sociais e religiosas até os nossos dias.

1.3 – A REINVENÇÃO DA CAPOEIRA ANGOLA: UMA RESPOSTA À REGIONAL

A figura de maior destaque dentro da capoeira Angola é Vicente Ferreira Pastinha (1889-1981), conhecido popularmente como Mestre Pastinha. A trajetória de vida de Pastinha não foi muito diferente daquela dos jovens na virada do século, exceto pela prática da capoeira. Pastinha foi iniciado na vadiagem20 por um senhor que ele denominava ”um velho africano”. Entre os anos de 1920 e 1922, Pastinha já ensinava capoeira a seus amigos aprendizes da Marinha, e depois para estudantes que viviam nas redondezas. Por motivos desconhecidos, o mestre angoleiro deixou de ensinar por muitos anos, só retornando à luta/arte por volta de 1941, em pleno desenvolvimento da capoeira Regional. Coube ao Mestre Pastinha o mérito de ter percebido a necessidade de alavancar novamente a capoeira Angola, que estava adormecida, como uma concorrência viável à Regional de Bimba. Acredita-se que se não fosse por ele e alguns outros mestres, como Valdemar de Pero Vaz e Canjiquinha, a prática da Angola não existiria mais em nossos dias.

20 Denominação amplamente utilizada pelas autoridades da época para se referir à prática da capoeira.

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Pastinha percebeu que a Angola só poderia ser de fato uma alternativa à Regional se fossem introduzidas inovações à tradição capazes de fomentar o interesse das pessoas. Por essa razão, assim como Bimba, Pastinha passou a denominar a sua arte de esporte, seu objetivo era distanciá-la da marginalidade legitimando o seu ensino; adotou uniforme; fomentou um espírito de grupo entre os alunos; além de introduzir a graduação formal para mestre. A Angola também se transformou em espetáculo, Pastinha passou a apresentar-se com o seu grupo em todo o Brasil entre as décadas de 40 e 60. Ele pode contar também com ajuda de alguns intelectuais na difusão e fruição da capoeiragem. A ação da Angola teve que ser intensa para acompanhar a Regional e consequentemente justificar a sua existência. Percebendo que alguns aspectos como teatralidade, espiritualidade, ritualidade e tradição estavam se dissipando dentro do contexto da Regional, os representantes da Angola investiram significativamente neles, tentando buscar uma analogia mais próxima da capoeiragem antiga. Diferentemente de Mestre Bimba, Pastinha se definia como tradicionalista, não colocava em evidência as inovações que introduziu na capoeira Angola. O estilo de Pastinha a partir da década de 80 foi ganhando popularidade, com movimentos e cadências mais lentas, assim como uma dança, ou um balé, a Angola conseguiu reverter aos poucos a situação desfavorável. Neste sentido alguns aspectos merecem destaque como: • Resgate das tradições afro-brasileiras • Convergência com o crescente Movimento Negro; • Evolução da Regional para estilos cada vez mais violentos; • Paciente trabalho desenvolvido pelos mestres angoleiros; • Difusão da Angola em todo o país. O trabalho de Pastinha junto com outros mestres angoleiros foi fundamental para a capoeira moderna, principalmente quando reconhecemos a grande herança deixada para toda a sociedade. A temática de Bimba, apesar de questionada em algumas situações, merece destaque pela sua ousadia e determinação, além disso, não podemos negar que a herança deixada pela Angola é fruto de um desequilíbrio causado no contexto da capoeiragem pela Regional, que de certa forma, despertou a Angola de um sono profundo.

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Com a ampla difusão da capoeira no Brasil e no exterior, percebe-se nos dias de hoje um panorama mais complexo. É impossível distinguir a capoeira como Regional ou Angola, sobretudo na região sudeste, onde têm surgido estilos intermediários, denominados “Contemporânea” ou “Angonal”. Os defensores desses novos estilos afirmam que a capoeira é uma só, e dividi-la em estilos é apostar no enfraquecimento desta manifestação que perdura desde o século XIX. Atualmente uma das grandes tendências da capoeira está ligada a uma proposta mais livre, onde não exista relação da luta a nenhuma das duas escolas, o que ainda vai gerar muita confusão e descontentamento, sobretudo dos “puristas” que defendem a prática ortodoxa da capoeira, praticada outrora pelos negros das ruelas e becos da Corte Imperial.

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III - A DIFUSÃO DA CAPOEIRA NAS SOCIEDADES OITOCENTISTA E PÓS- MODERNA

1.1 - A RELAÇÃO DO CATIVO COM OS ESPAÇOS PÚBLICOS NO CENÁRIO URBANO DA CAPITAL DO RIO DE JANEIRO NO SÉCULO XIX

Quando falamos ou pensamos na escravidão sempre nos vem à mente cenas e imagens, na maioria das vezes veiculadas pela televisão e pelo cinema, que, introjetadas no imaginário popular nos remetem ao trabalho rural escravo e ao cárcere. Lembro-me claramente das imagens das novelas “Escrava Isaura” e “Sinhá Moça” 21, só para citar o poder imagético dessas, veiculadas em todo o território nacional por uma grande emissora da televisão brasileira, onde diariamente entravam em nossas salas a dor e o sofrimento do negro a partir da diáspora. Certamente tais imagens relacionavam-se à escravidão rural onde o processo de trabalhos forçados era o mais deplorável possível. Não podemos negar que fundamentalmente os negros trazidos para o Brasil a partir do tráfico foram diretamente para as fazendas de café, açúcar, algodão, fumo, e posteriormente enviados ao trabalho da pecuária e da extração do ouro e do diamante. Percebe-se que nas áreas rurais a relação do negro com o espaço público não existia, a sua trajetória diária era da senzala para a lavoura e vice versa, o que possibilitou a formação de quilombos como protesto aquele tratamento sub-humano que eles recebiam. Mesmo nas aulas de História dos Ensinos Fundamental e Médio, essa imagem do negro cativo rural é amplamente enfatizada, aquele que é torturado no tronco, a preta velha cozinheira da fazenda ou as amas de leite dos filhos dos senhores na casa grande. Raramente nos é ensinado, ou simplesmente falado, sobre a história da escravidão atlântica vivenciada em cenários urbanos, talvez pelo fato de um número significativo de escravos terem sido absorvidos pelo trabalho rural. Neste sentido, quando pensamos nas áreas urbanas, ainda que sejam aquelas que remontam ao início do século XIX, pensamos em homens e mulheres trajando roupas elegantes, como ternos bem recortados e vestidos bem armados, carregando grandes leques para abrandar o calor tropical. Raramente identificamos outros segmentos sociais diferentes da sociedade senhoril.

21 A primeira, baseada no romance de Bernardo Guimarães, e a segunda, no romance de Benedito Rui Barbosa.

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Não podemos esquecer que o Brasil recebeu entre 10 e 12 milhões de escravos desde o século XVI, mais precisamente de 1570 até meados do século XIX e que muitos desses negros e negras comporiam o cenário urbano de muitas cidades, as chamadas Cidades Negras22, aquelas cidades portuárias onde os navios negreiros aportavam para descarregar a sua carga, homens, mulheres, jovens e crianças, massacrados pelos maus tratos sofridos ao longo da viagem. Como já foi dito (SOARES, 2008; MOREIRA et al, 2006) grande parte desses negros eram levados para as regiões rurais, uma outra parte de proporções menores acabava por ficar nos centros urbanos, onde o trabalho escravo também era essencial. Ao longo do tempo, milhares de africanos foram comprados pelos senhores que residiam nas cidades devido ao crescimento urbano que começava a despontar (MOREIRA et al, 2006). Era necessária a mão de obra especializada, como marceneiros, barbeiros, lavadeiras, alfaiates, sapateiros, além dos escravos de ganho que gozavam de uma falsa liberdade, uma vez que, eles precisavam sair e ficar dias e mais dias distantes do contato com o seu senhor para comercializar os produtos e retornar com o dinheiro23 para fazer a prestação de contas ao seu donatário.

Figura 1 - Loja de Barbeiros, 1821. Aquarela sobre papel Jean Baptiste Debret24 - Rio de Janeiro Museu Castro Maya/IPHAN Fonte: http://www.bibvirt.futuro.usp.br. Acesso em 12/02/2009.

22 O termo Cidade Negras possui um duplo sentido. O primeiro refere-se àquelas cidades portuárias onde os navios aportavam da África trazendo os negros para serem escravizados no Brasil no período escravocrata entre os séculos XVI ao final do século XIX. O segundo relaciona-se ao domínio territorial por parte dos negros nessas cidades, uma vez que, eles viviam nas ruas, negociando, articulando, lutando e brincando. 23 Pagamento conhecido como Jornais, feito pelo escravo de ganho e quituteiras aos seus senhores pelas vendas realizadas. Geralmente os jornais já tinham um valor definido pelo Senhor e a sobra poderia ficar com o escravo. Muitos poupavam essa soma com o intuito de comprar a sua liberdade. 24 Cenas Urbanas da Cidade Negra - Rio de Janeiro - sob o Olhar de Jean Baptiste Debret e Henry Chamberlain.

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Figura 2 - Negros vendedores de aves, 1823. Aquarela sobre papel. Jean Baptiste Debret. Rio de Janeiro Museu Castro Maya/IPHAN. Fonte: http://www.dezenovevinte.com.br. Acesso em 12/02/2009.

Figura 3 - O vendedor de arruda. Litogravura do tomo III da viagem Pitoresca e História ao Brasil. - Jean Baptiste Debret. Fonte: http://www.dezenovevinte.com.br. Acesso em 12/02/2009.

Um outro ofício muito comum, que o negro precisava exercer diretamente nas ruas, era o das quitandeiras, escravas africanas e crioulas – que andavam pelas ruas oferecendo seus quitutes. Essas podiam ser facilmente encontradas entre outros lugares, nas calçadas do Senado da Câmara, local de passagem de centenas de transeuntes (MOREIRA et al, 2008 p. 67). As quitandeiras que viviam da venda de seus doces e iguarias, assim como os negros de ganho, precisavam prestar contas geralmente as suas senhoras. Nas cidades, isto é, nos espaços públicos

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esses negros gozavam de uma vida onde a troca de experiência, a socialização e sobretudo, a negociação entre os iguais e os diferentes desenvolveram-se por uma necessidade da própria população branca, uma vez que o desenvolvimento urbano crescia rapidamente.

Figura 4. Negra tatuada vendendo caju, 1827 Aquarela sobre papel. Jean Baptiste Debret. Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br. Acesso em 12/02/2009.

Figura 5 - Largo da Glória. Henry Chamberlain. 1822. Gravura em metal, 21,4 X 28,3 cm. Rio de Janeiro. Museu Castro Maya/IPHAN Fonte: http://www.saladepesquisacapoeira.blogspot.com. Acesso em 17/02/2009.

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Nas Cidades Negras como Rio de Janeiro, Recife, Salvador, São Luis, Belém, os africanos e seus descendentes tiveram uma participação fundamental tanto nas relações de trabalho quanto na formação cultural urbana do século XIX. A partir da intervenção desses negros urbanos, que foi desenvolvida por uma necessidade natural de socialização entre os iguais e os diferentes, afinal de contas existiam comunidades escravas de diferentes nações25, eles foram capazes de superar as diferenças linguísticas e étnicas. Além disso, tiveram como desafio redefinir suas identidades, memórias e territórios a partir da reinvenção de suas culturas e valores, dando origem a muitas irmandades que mantiveram vivas a essência e, porque não dizer, a permanência que superou a segregação outrora sofrida por esse povo num dos momentos mais dramáticos da história da humanidade, que foi a diáspora negra. Para exemplificar a dramaticidade da escravidão atlântica em terras Brasileiras podemos citar o questionamento e a surpresa de muitos viajantes estrangeiros que por aqui passaram como o Evolucionista Charles Darwin a bordo do navio Beagle, em 1832. Darwin ficou chocado em presenciar na cidade do Rio de Janeiro, um dos pontos de sua rota marítima pelo mundo, como a população negra era tratada nesse país, ele chegou a dizer que nunca mais voltaria ao Brasil, pois não queria ser novamente testemunha ocular daquele cenário bizarro, tamanha a crueldade dos homens (brancos) imposta à população negra, conforme o texto referenciador publicado na Revista Boa Viagem sobre as rotas percorridas pelo cientista no Brasil.26

25 Os negros foram capturados e trazidos para o Brasil oriundos de diferentes regiões da África como: África Meridional, África Ocidental e outras. Era predominante o número de africanos angola, benguela, moçambique, congo e cabinda na cidade do Rio de Janeiro. 26 Informação sobre as rotas marítimas de Darwin apresentada pela Revista Boa Viagem – O Globo de 11 de junho de 2009, p.12 – “Um jovem cientista nas matas do estado” – artigo apresentado no anexo G desta dissertação.

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Figura 6 – Rotas do Tráfico Negreiro Fonte: http://www.umbandasemmedo.blogspot.com. Acesso em 28/05/2009.

Figura 7 – Diferentes Etnias Africanas no Brasil - Escravos de Cabinda, Quiloa, Rebola, Mina, Benguela, Angola, Congo e Monjolo Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Afro-brasileiro. Acesso em 28/05/2009.

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Figura 8 – Diferentes Etnias Africanas no Brasil - Escravos de Benguela, Congo e Moçambique Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Afro-brasileiro. Acesso em 28/05/2009.

Para facilitar o entendimento do contingente da população escrava urbana da primeira metade do século XIX segue abaixo tabela com dados numéricos (MOREIRA et al, 2008, p 27).

FREGUESIAS 1821 1838 1849 Sacramento 44,3 34,4 34 São José 42,6 35,3 37,8 Candelária 65 42,5 68,7 Santa Rita 49,4 39,2 38,7

Tabela 1 - A Evolução da População Escrava (%) do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX 27

O Rio de Janeiro possuía a maior concentração de escravos nesse período na América, o que nos permite concluir que o negro escravo, para não citar os livres e libertos, “usufruíam”, isto é, faziam parte daquele cenário público urbano

27 Em 1821 os escravos representavam 45,6% da população das Freguesias Urbanas, isto é, um acima de 50 mil escravos.

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oitocentista. Era comum encontrar os negros espalhados pelas ruas das diferentes Freguesias da Corte Imperial. O famoso Jean-Batiste Debret, pintor francês que veio para o Rio de Janeiro a convite do governo português conseguiu retratar magistralmente o cotidiano do cenário urbano dessa cidade onde percebemos clara e amplamente a presença constante do negro, o que nos faz concluir então que o negro escravo, livre ou liberto assim como pardos, gozavam amplamente dos espaços públicos. Quando o Rio de Janeiro é classificado como Cidade Negra, isso não se dá apenas pelo fato dela ter sido uma cidade portuária (continua sendo até os dias atuais), mas principalmente porque era um território habitado, vivenciado, desfrutado pela população negra da época, onde as trocas, as vendas, as negociações e os conflitos aconteciam regularmente, contrariando as autoridades da época. Certamente essa relação com o espaço público não se dava de maneira calma e tranquila. O deslocamento dos cativos pela cidade gerava grande preocupação para as autoridades, para eles a segurança precisava ser reforçada (MOREIRA et al, 2006, p.70). Segundo os autores em questão, os negro na cidade viviam constantemente perseguidos, ora pelos senhores escravocratas, ora pela guarda imperial que, por qualquer motivo ou até mesmo na ausência desses, conduzia-os para as prisões, os famosos calabouços, onde eram aplicados aos negros toda a sorte de maus tratos e torturas das piores espécies, o que ocasionavam, em muitas situações, sequelas irreversíveis, em alguns casos incluindo o óbito. Apesar da aparente liberdade vivenciada nas cidades negras, a vida nos espaços públicos era desgastante, uma vez que, ao mesmo tempo em que era necessária a permanência dos negros naqueles espaços como peça fundamental tanto na manutenção do setor financeiro dos brancos, quanto no setor urbanístico, devido ao crescimento das cidades, era imprescindível que as negociações entre negros, autoridades, senhores e outras instituições fossem realizadas, daí a importância do negro no contexto urbano brasileiro. Alguma concessão fez-se necessária, não por bondade, compaixão ou consciência, mas essencialmente, pela dependência da força de trabalho daquela população. Independentemente das perseguições sofridas pelos negros africanos escravos, livres, libertos, crioulos e pardos dos diferentes gêneros, é justamente nesse espaço público que esse segmento extra oficial da sociedade vai construir as suas relações de identidade e reinvenção de sua cultura. Surgem os batuques, as

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irmandades, as maltas, a capoeira as manifestações religiosas e outras expressões da cultura escrava, além das casas de angu28, que apesar de funcionarem no interior de casas aparentemente pequenas e insalubres, isto é, em espaços privados, eram dotadas de uma arquitetura bastante complexa e confusa compondo um cenário urbanístico que desafiava as autoridades da época e intriga os estudiosos da atualidade. É bem provável que muitas das negociações, articulações e logísticas entre negros, crioulos e pardos para a edificação desses espaços, bem como para a evolução de grande parte das expressões da cultura escrava urbana possivelmente se deram a partir dos encontros nas ruas, becos, travessas, ruelas, chafarizes e tabernas, sacristia das igrejas e posteriormente, no século XIX, nos terreiros de candomblé, freqüentados por aquele segmento social subestimado e ignorado pela sociedade escravocrata. Os espaços públicos do Rio de Janeiro oitocentista nos remontam a Roma de Adriano por volta dos anos 118, onde o dia-a-dia da cidade se dava a partir de redes de relações onde o favorecimento, as gorjetas os agrados pessoais e a realização de pequenos negócios acabavam por construir laços de mútua dependência entre os diferentes segmentos sociais como funcionários públicos, lojistas, militares e comerciantes, gerando uma intricada teia de relações de clientelismo. (SENNET, 2006. p. 87). Assim como a Roma de Adriano foi capaz de construir redes de relacionamento entre grupos de interesses diferentes, da mesma forma, deu-se com o Rio de Janeiro do século XIX onde, contrário aos desejos dos brancos, uma vez que o escravo urbano ao longo de sua permanência na cidade foi capaz de desenvolver uma relação que envolvia redes de comunicação entre quilombolas, comerciantes e fazendeiros (MOREIRA et al, 2006, p. 36), foi possível construir uma articulação que conduziu essa etnia a uma organização social de extrema relevância a todas as conquistas alcançadas. Tudo isso nos leva a crer que o papel do espaço público urbano das cidades brasileiras, especialmente com a presença do negro no cotidiano vivido pela escravidão entre cooperação e conflitos, é que pode ter sido decisivo na permanência da tradição oral e da manutenção das matrizes de representações africanas até os nossos dias.

28 Conhecido inicialmente como Zungu era um tipo de moradia para mulheres e homens negros. Espaço de invenção de práticas culturais reprimidas pelas autoridades. Esconderijo composto por uma imensidão de corredores e becos de labirintos urbanos.

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Concluímos que o negro tornou-se um grande negociador que devido às necessidades desenvolveu mecanismos de comunicação capazes de superar as diferenças de línguas e dialetos referentes às inúmeras nações representadas pelos milhões de africanos extirpados de suas terras e que aqui aportaram. Apesar de todo esforço empregado pela autoridade da época, o Rio de Janeiro era uma cidade representada, e muito, pelos anseios da comunidade negra. Era o negro que estava na rua, aquele que brincava, negociava, articulava, vendia e seduzia. O cotidiano de senhores e cativos da cidade eram compostos por acordos, convênios, concessões e pactos, sobretudo se o cativo fosse de ganho (MOREIRA et al, 2006, p.79). Certamente é imperativo reconhecermos a importância do cenário público das cidades negras, como um contexto de recriação, resignificação e territorização a partir da diáspora, que apesar de todas as adversidades conseguiu convergir para uma gama de valores, significados e tradições, graças à insistência, coragem e determinação desse povo, mantido até os dias de hoje, na memória cultural brasileira.

1.2 – CAPOEIRA – ESPAÇOS PÚBLICOS X ESPAÇOS PRIVADOS

Apesar de todas as transformações ocorridas ao longo do tempo, sobretudo quando pensamos no conceito de espaço público e espaço privado, não podemos negar que o primeiro ainda preserva, mesmo que remotamente, a definição da antiguidade clássica que considerava a ágora como espaço inserido na polis com a função de representar o espírito público desejado pela coletividade da população, espaço ideal para o exercício da cidadania. Em contrapartida, já existia também o conceito de espaço privado, regido por uma minoria, destinado ao particular, ao indivíduo. Passados muitos séculos, a partir de inúmeras transformações, principalmente na relação entre sociedade, estado e poder, percebemos claramente a apropriação exercida pelas grandes corporações no que se refere ao espaço público, transformando este em espaço publicitário. “... os cidadãos que as freqüentam não o fazem mais na qualidade de cidadãos, mas como consumidores” 29 (DUPAS, 2000, p124)

29 Gilberto Dupas Caderno de Pesquisa, v35m 124, jan/abr, 2005

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Certamente a afirmação de Dupas é extremamente coerente, sobretudo quando nos deparamos com as grandes avenidas e parte das ruas das grandes metrópoles, tanto no Brasil quanto no exterior, invadidas por uma imensidão de outdoors, busdoors, painéis eletrônicos, divulgando as logomarcas das grandes empresas multinacionais. Tudo isso nos remete às preciosas críticas de Ridley Scott através de seu filme Blade Runner, onde podemos ver uma Los Angeles futurista no ano de 2019 diante de um tráfego aéreo intenso, com vôos frenéticos de sofisticadas naves espaciais, sob a luz intensa dos inúmeros painéis eletrônicos, e a imagem cinematográfica de alta resolução estampando as logomarcas e os vídeos publicitários das grandes corporações internacionais. Ainda que timidamente, retomemos o sentido de espaço público como espaço de coletividade para falarmos um pouco sobre a prática da Capoeira no início do século XIX. Em seu livro Capoeira Escrava e Outras Tradições Rebeldes no Rio de Janeiro (1808 – 1850) Carlos Eugênio Líbano Soares, que pesquisou exaustivamente os registros policiais da época, aponta a grande predileção dos adeptos dessa luta em praticá-la nos espaços públicos como ruas, praças, largos e becos. “A festa popular de rua era local de predileção da maltas”30 ( SOARES, 2004, p.37), o que comprova a presença massiva de negros nas ruas, sobretudo os escravos de ganho que dependiam dos espaços públicos para comercializar seus produtos e retornar ao senhor a produção do seu trabalho. No entanto, sempre que oportuno, os negros interrompiam um pouco os seus afazeres para se deliciarem com o jogo da capoeira. “reunidos nas tabernas, nas mais baixas ruas ou nos terrenos devolutos, os pretos africanos e os mestiços do país [...] exercitavam-se em jogos de agilidade e destreza corporal” (ARAUJO, 1898, p.37). Isto nos remete ao pensamento de Michel Foucault que, já na fase final de sua vida, pesquisou sobre os prazeres corporais que não se deixam aprisionar pela sociedade (SENNET, 2006, p.25). Certamente, a capoeira praticada no século XIX seria um objeto de estudo que comprovaria as pesquisas do conceituado autor, partindo do princípio de que o jogo envolvia corpo e prazer, ludicidade e poder. A partir dos trechos da Pesquisa de Líbano Soares podemos perceber claramente que a capoeira era praticada essencialmente na rua. Tomemos como

30 Grupos de capoeira organizados em várias partes da cidade, como fim principal de proteger seus territórios e participantes.

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exemplo uma das funções de um negro doméstico: manter os vasilhames de água de uma casa sempre cheios. Os locais onde os negros pegavam a água para abastecer as casas da corte eram os chafarizes públicos. De repente no meio da confusão para ver quem enchia o seu vasilhame primeiro, chegava um negro mais apressado, para aumentar ainda mais a disputa. Perpetuava-se naquele momento uma relação de poder e disputa, o que acabava por gerar conflito e consequentemente o confronto, isto é, a roda começava (MOREIRA, 2006, p.77). Era vasilhame quebrado de um lado, pernadas e cabeçadas para o outro, e a confusão estava instalada. Na verdade, não existiam outros espaços disponíveis para que a luta fosse praticada, sobretudo pelo seu caráter de contravenção, imputado pela polícia da época. O autor acima citado refere-se à Capoeira como a “cultura escrava de rua”, isto é, “o nascedouro da cultura capoeira” (SOARES, 2004, p.37), o que ratifica o espaço público como o lugar de origem da capoeira, e não as senzalas e ou quilombos como muitos afirmam. Através do relato citado podemos imaginar uma vasta demonstração dos inúmeros capoeiras pelas ruas, ruelas e becos do Rio de Janeiro do início do século XIX demonstrando a qualquer hora do dia, e às vezes da noite, longe dos olhos atentos das autoridades policiais e seus senhores, a mobilidade dos corpos ágeis e atléticos através daquela considerada um fenômeno urbano. “Bastava que as hostes policiais deixassem por um instante sua vigília para que ruas centrais, como a da Vala ou o Largo da Carioca, fossem testemunhas dos passos do jogo.” (SOARES, 2004, p.77). Essa descrição do autor nos remonta à belíssima gravura do Pintor Johann Moritz Rugendas, denominada “Jogar Capoeira”31, que com muita sensibilidade consegue retratar a beleza dos movimentos da luta dança: um registro de grande valor para os estudiosos de hoje.

31 Jogar Capoeira ou Danse de la Gerre. João Maurício Rúgendas Dess. d'ap. nat. par Rugendas -- Lithographie de Villeneuve, fig. par Wattier. 16ème livraison (avril 1835)

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Figura 9 - Jogar Capüera ou Dance de la Guerre - Johann Moritz Rugendas Fonte: http://www.centroreferenciacapoeiracarioca.net/filosofia.php. Acesso em 28/05/2009.

Certamente não podemos negar que o espaço público: ruas, ruelas, becos, praças, largos e outros, teve um papel fundamental na difusão da prática da capoeira apesar de todas as adversidades sofridas pela comunidade escrava, bem como livres e alforriados no século XIX, período em que a capoeira torna-se de fato uma representação da cultura escrava em nossa sociedade.

Holloway distingue com precisão a questão no século XIX daquela da atualidade... Ele também aponta as dificuldades de definir a sua origem no tempo, mas acredita que no século XIX repousam suas raízes – em discordância com muitos pesquisadores que teimam em acreditar que ela remonta aos primeiros séculos da colonização, como o XVI e o XVII. (SOARES, 2004, p.67). Neste sentido, cabe-nos fazer o seguinte questionamento: Apesar de ter nascido nas ruas, ruelas e becos da cidade do Rio de Janeiro, por que é tão difícil encontrarmos grupos representantes desta manifestação da cultura popular, considerada um fenômeno da cultura escrava no século XIX, nos locais onde esta se originou? Por que os representantes da manifestação das expressões da capoeira no século XXI aparecem a cada dia menos nas ruas e praças das cidades? Por que crianças e jovens não conseguem mais praticar a capoeira nas ruas ou praças do

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seu bairro? Que processo é esse pelo qual a capoeira tem passado que a impede de ser representada no espaço público, mas passa a ser amplamente difundida nos espaços privados, isto é, dentro das academias ou espaços específicos à prática da capoeira? Por que vemos hoje um embranquecimento profundo das rodas de capoeira, sobretudo dentro das academias? Por que muitas pessoas, sobretudo os estrangeiros, têm demonstrado interesse profundo em se tornar mestre ou contra- mestre de capoeira? Está este desejo relacionado à valorização da tradição ou existem outros interesses por trás disso? Inquestionavelmente essas indagações precisam ser analisadas de forma profunda para tentarmos compreender o processo pelo qual a capoeira vem passando nos últimos tempos e entendermos de fato quais são as possibilidades de permanência das expressões da capoeira num contexto globalizado. Quando pensamos em espaço privado, não podemos deixar de mencionar o pensamento aristotélico que relacionava tal espaço às esferas de labor e trabalho. Para Hannah Arendt, que pesquisou profundamente o pensamento do já citado filósofo grego, desigualdade e violência estão intrisecamente ligados às esferas do privado. Para ela diante das necessidades de conservação da situação, os homens não dispõem de escolha, se eles são escravizados, é natural que escravizem outros, obrigando-os a laborar para eles, e esse será o preço a pagar pela sua liberdade. Enquanto a esfera pública estava diretamente ligada à ação, consequentemente, o seu compromisso era com a liberdade, para Arendt “ [...] não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outros é também não comandar. [Isso] não significa domínio, como também não significa submissão” (ARENDT,1947, p.42) portanto, a esfera privada, ligada ao labor relaciona-se à necessidade. Neste sentido, observemos o espaço público dos nossos dias relacionando-o à máxima do pensamento aristotélico. Baseados nos fundamentos arendtianos pensemos na sociedade pós- moderna com toda a sua efemeridade no que se refere ao consumo, criando todas as necessidades para o “animal laborans”, sobretudo o ter e o possuir, desejos muito comuns na pós-modernidade. O escravo nessa relação de desigualdade com as forças que geram o mercado é caracterizado pelo mestre de capoeira como aquele que detém todo o conhecimento da prática desta cultura. Por outro lado, existem os outros escravos que desejam adquirir/consumir aquele produto, isto é, a prática da

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capoeira. Uma vez gerada a necessidade, principalmente pela indústria cultural e de entretenimento de massa, a relação de desigualdade e violência acima citada pela filósofa alemã passa a ser estabelecida como forma mais implacável na relação de poder na sociedade capitalista. É imprescindível criar uma relação de dependência com aqueles que admiram o produto a ser consumido (neste caso específico, a capoeira). É justamente neste momente que a capoeira perde o seu caráter de resistência, tradição e identidade e passa a ser vista como objeto de consumo. O espaço privado é inquestionavelmente o contexto relevante nessa relação de perpetuação da capoeira como produto mercadológico. Certamente é neste cenário que a luta/arte passa a ser totalmente banida das ruas, becos, praças e outros, isto é, dos espaços públicos e passa a ser evoluída entre quatro paredes, dentro das academias, tornando-se, juntamente com outras modalidades esportivas, uma das representações mais importantes da pós-modernidade, onde o corpo é cultuado obsessivamente, e a busca da beleza e da perfeição atingem o mais alto grau da paranóia urbana. Tais academias que podem ser de caráter esportivo e ou “cultural”, específicas da prática da capoeira, estão espalhadas por toda a cidade nas diferentes regiões, desde a mais simples, localizada na Baixada Fluminense, até as mais sofisticadas, encontradas nos Fitness Centers localizados na Zona Oeste do RJ, mais precisamente, na Barra da Tijuca, referência de consumo da cidade do Rio de Janeiro. Certamente, para praticar a capoeira, introduzida neste cenário frequentado, sobretudo pela classe média, é imprescindível que o consumidor pague o preço estipulado pela mercadoria, gerando assim a relação mercadológica entre produto e consumidor. Não podemos deixar de salientar que do ponto de vista aristotélico a necessidade criada pela esfera privada estava diretamente relacionada à manutenção da vida. No entanto, o teor desta necessidade vem se transformando ao longo do tempo. Pensemos na pós-modernidade com toda a sua efemeridade e esquizofrenia vivida pelas pessoas, mais precisamente, pelos consumidores. A partir daí, o sentido desta necessidade explicitada por Aristóteles perde totalmente a sua essência, visto que na atualidade as necessidades são criadas para preservar o que há de mais importante na pós-modernidade, isto é, a efemeridade e a volatilidade do produto consumido. Harvey irá enfatizar, a partir de suas críticas à sociedade pós- moderna, a criação dessas necessidades como perpetuação do capital/mercado e, sobretudo, a relação entre produto, espaço e tempo como aspectos fundamentais de

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tais necessidades. “De fato, boa parte da cor e do fermento dos movimentos sociais, da vida e da cultura das ruas e das práticas artísticas e outras práticas culturais deriva precisamente da infinita variedade da textura de oposições às materializações do dinheiro, do espaço e do tempo em condições de hegemonia capitalista.”(HARVEY,1996, p.217) Percebemos que tais consumidores são, na verdade, aquela categoria que Arendt vai chamar de escravizados dentro da esfera privada. É nesta relação, que notamos de fato a desigualdade e a violência com a qual a sociedade pós-moderna invade, criando a necessidade e consequentemente alterando, o modo de vida das pessoas. Nesse paradoxo criado entre espaços públicos e privados no que se refere à prática da capoeira, percebemos claramente a imposição do mercado em transformá-la em algo meramente consumível fazendo com que essa, que foi considerada um dos mais importantes fenômenos culturais da comunidade escrava desde o século XIX, transforme-se em um mero produto sem representatividade, exposto às mais variadas espécies de transformações. A prática cultural mais difundida nas ruas do Rio de Janeiro no século XIX hoje só possui algumas representações que, com muita determinação e convicção, ainda insistem em mantê-la em seu mais alto grau de autenticidade, isto é, o jogo de rua, como demonstração da valorização da prática da cultura escrava urbana, elemento de resistência deste povo. Neste caso destacamos o trabalho do Mestre Russo de Duque de Caxias que, incansavelmente, todos os domingos apresenta uma das rodas de capoeira mais conhecidas no contexto da capoeiragem, conhecida como: “Roda Livre de Capoeira de Duque de Caxias”. “ Em 13 de junho de 1973 [...] resolveram que manteriam a capoeira semanalmente, na Praça do Pacificador[...} acabou por inaugurar a roda de capoeira de rua mais tradicional do estado” (RUSSO,2005, p.44). Ali todas as pessoas envolvidas na roda ou transeuntes podem, sem o menor constrangimento, fazer parte do jogo e evoluir os seus movimentos independentemente de dominar a técnica ou não. Assistir as evoluções realizadas pelos amantes da capoeira de forma livre é de fato uma demonstração incondicional de envolvimento com uma capoeira que mais se aproxima do caráter de autenticidade de representação de resistência, uma vez que, mestre Russo, impondo sua personalidade contundente, e justamente por isso é severamente criticado pelos diferentes setores da expressão da capoeira, evita

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qualquer tipo de rótulo, vínculo e envolvimento com elementos e grupos que possibilitem a descaracterização da autenticidade das ações por ele desenvolvidas. Neste sentido cabe também destacar, apesar de não demonstrar o mesmo rigor e rebeldia do primeiro mestre, a roda do Mestre Levi do Grupo Casa de Engenho que, sempre no primeiro sábado do mês, apresenta a sua roda, uma representação da capoeira de Angola32 na Praça da Emancipação, mais conhecida como Praça do Relógio, também no município de Duque de Caxias há mais de 20 anos. Seus componentes reverenciam o trabalho desenvolvido por uma referência da capoeira no cenário nacional, o saudoso Mestre Pastinha33. Além dessas duas rodas, existe uma roda de rua que acontece na Praça da República em São Paulo e outra no Mercado Modelo na cidade de Salvador/Bahia.34 É de extrema relevância retratarmos neste trabalho a importância desses Mestres que incansavelmente lutam contra todas as adversidades e pressões impostas pelo mercado na manutenção e perpetuação da prática da capoeira como resistência étnico-social de uma minoria excluída e marginalizada que foi o negro escravo, bem como a devolução, a reapropriação, além do despertar do sentimento de pertença dos verdadeiros proprietários dessa tradicão pelos negros e mestiços brasileiros. Aprisionar a capoeira nos espaços privados é, no mínimo, limitar esta expressão popular a algo fora da realidade, isto é, é reduzí-la a um espaço de ocultamento ao qual apenas um indivíduo ou um grupo muito restrito ou privilegiado tem acesso, e não o coletivo. Para Arendt “[...] até mesmo a meia luz que ilumina a nossa vida privada e íntima deriva, em última análise, da luz muito mais intensa da esfera pública”(ARENDT,1981, p.61). Vale a pena refletirmos profundamente a respeito da prática da capoeira a partir da reflexão feita pela filósofa alemã buscando compreender a sua relação entre as diferentes esferas aqui estudadas. É imprescindível questionarmos neste contexto a importância da permanência da capoeira como expressão de identidade e referência cultural de um povo. Neste aspecto cabe a seguinte indagação: aprisioná-la em espaços fechados, destinados às classes mais favorecidas da sociedade a partir do estímulo apenas ao consumo de uma arte marcial, modismo,

32 Capoeira de Angola – Criada por Mestre Pastinha na cidade de Salvador. BA, não existe mistura de outras lutas, é considerada uma linha pura pelos adeptos da Capoeira. 33 Mestre Pastinha - Vicente Ferreira Pastinha Fundador da Capoeira de Angola 34 Entrevista dada pelo Mestre Joel à Revista Praticando Capoeira Raridades. Ano I. N°1. Editora D+T Ltda.

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excentricidade ou uma tendência gerada pela indústria cultural e de entretenimento de massa sem recuperar o que há de mais importante em seu conteúdo hitórico- etnico-social é, de fato, a forma mais eficaz de difusão da capoeira? De acordo com o pensamento arendtiano percebemos a importância da esfera pública como espaço de troca, pluralidade e de valorização da liberdade. É justamente neste contexto que a capoeira precisa ser novamente introduzida de forma livre e de fácil acesso aqueles a quem esta dança/jogo/luta/arte/manifestação popular sempre pertenceu, isto é, ao povo. “[...] é este o significado da vida pública, em comparação com a qual até mesmo a mais fecunda e satisfatória vida familiar pode oferecer, somente o prolongamento ou a multiplicação de cada indivíduo, com os seus respectivos aspectos e perspectivas. A subjetividade da privatividade pode prolongar-se e multiplicar-se na família; pode até tornar-se tão forte que o seu peso é sentido na esfera pública; mas esse “mundo” familiar jamais pode substituir a realidade da soma total de aspectos apresentados por um objeto a uma multidão de espectadores” (ARENDT, 1981, p.67). Partindo do pensamento acima citado podemos perceber que para Arendt, apesar de reconhecer o mérito da esfera privada, é somente na esfera pública que a multidão terá acesso ao conhecimento e à informação, a luz da descoberta do conhecimento é muito mais intensa a partir do público, pois apenas esta esfera tem um caráter de prática do coletivo, isto é, da democratização em seu sentido real. Faz-se necessária uma intervenção dos diferentes setores comprometidos com a valorização da cultura, do conhecimento e da informação, a partir da implementação de Políticas Públicas de Cultura, sobretudo, as instituições de caráter eminentemente público, como as esferas Municipal, Estadual e Federal, no sentido de legitimar as nossas referências culturais e preservar o nosso patrimônio imaterial, assim como a nossa história. Talvez esta poderá ser uma alternativa que nos resta como garantia de manutenção de nossos valores culturais, caso contrário estaremos perdendo a nossa referência da pequena porção que ainda nos resta de identidade e tradição a partir das diferentes interferências que, infelizmente já existem, e são extremamente fortes, sobretudo o poder avassalador do mercado, do consumo e do capital. Seguem abaixo quadros demonstrativos baseados em pesquisas realizadas pelo Ministério da Cultura relacionadas às ações do Programa Capoeira Viva durante 2006, ano em que foi divulgado e colocado em prática o primeiro edital relacionado a

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esse programa. A partir dessa análise realizada por uma instituição de ordem pública, identificamos o percentual relacionado à prática da capoeira por regiões, bem como, a existência de 2.716 (dois mil setecentos e dezesseis) grupos de capoeira em atividade no Brasil. Certamente, a maioria desses grupos realiza tais ações em espaços fechados, e não nas ruas ou praças públicas, o que enfatiza claramente a utilização do espaço privado na difusão e fruição da prática da capoeira. Através dessa pesquisa pudemos identificar que no ranking das ações de caráter cultural realizada em todo o território nacional a capoeira ocupa um lugar de destaque, vindo abaixo apenas de ações de banda, dança, manifestação tradicional popular (isso inclui todas as manifestações) e artesanato, o que deixa a capoeira numa posição privilegiada, sobretudo, se a compararmos com as demais práticas das inúmeras manifestações das expressões populares aqui existentes.

Gráfico 1 – Cenário da Capoeira no Brasil Fonte: Ministério da Cultura

A Presença da Capoeira nas Regiões Brasileiras Regiões Grupos Existentes %

NORDESTE 1.064 39,18 % SUDESTE 847 31,19 % SUL 344 12,67 % CENTRO OESTE 248 9,13 % NORTE 213 7,84 % BRASIL - Total 2.716 100,00 %

Tabela 2 – Grupos de Capoeira Existentes no Brasil Fonte: Ministério da Cultura

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0,54 %

4,17 %

9,18 % 10,55 % 12,10 %

Gráfico 2 - Diferentes Ações Culturais realizadas no Brasil Fonte Ministério da Cultura – Programa Capoeira Viva35

1.3 – CAPOEIRA ESPAÇO RELIGIOSO

Muitos foram os fatores que favoreceram e fizeram do Brasil uma referência no que diz respeito à religiosidade, assim como as práticas profanas e principalmente a feitiçaria e a bruxaria, isto é, o sobrenatural. Dentro desse contexto de possibilidades e reinvenções a história da formação do povo brasileiro é sem dúvida o aspecto de maior relevância quando o assunto se insere no campo do sagrado ou do místico. A receita para chegarmos ao resultado brasileiro é relativamente simples. Tomemos três etnias completamente diferentes, como exemplo: o indígena representado por diferentes tribos, o branco e, para apimentar essa receita, o negro também representado por etnias de diferentes nações, permitindo a fusão delas, com todas as suas diferenças, crendices e superstições. Mexa tudo isso e está pronta a mestiçagem mais idiossincrática que o mundo já teve notícia em terras do Atlântico.36 Independentemente do período, o sobrenatural sempre foi cultuado pelos diferentes povos que aqui viveram primeiramente como os indígenas com suas danças e rituais em homenagem aos deuses representados em sua maioria pelos

35 Os gráficos e a tabela podem ser acessados em: http://www.capoeiraviva.org.br/download/edital_ capoeiraviva_ 2007.pdf. Acesso em 20 de Março de 2007. 36 Um exemplo claro desse entrelaçamento étnico-cultural está muito bem representado pela bolsa de mandinga. Utensílio eclético, utilizado pelos diferentes povos, onde podemos ver representados as diferentes culturas religiosas num único contexto.

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quatro elementos da natureza, além de suas representações de pajelança voltadas ao tratamento e à cura de doenças a partir de seu conhecimento fitoterápico. Depois, chegaram aqui na Terra de Santa Cruz os portugueses com suas receitas e orações do ritual católico aliando tais palavras a atos de feitiços e bruxarias que, ora invocavam os santos do clero episcopal, ora o satanás e seus demônios das profundezas do inferno na tentativa de curar doentes, descobrir o paradeiro de negros fujões, além de conseguir prosperidade e vida longa. E por último, os negros com seus batuques, rituais e oferendas eram constantemente procurados para trazer o amado ou a amada de volta, vingar um desafeto ou curar um mal que a medicina reconhecida pela igreja não conseguia sarar. Essa história perdurou por séculos, desde o Brasil colônia, passando pela república e chegando aos nossos dias em plena globalização, onde ainda vemos a procura de pessoas em desespero tentando resolver os mesmos problemas que já afligiram a sociedade em tempos de outrora, seguindo os mesmos princípios, os chamados atos de feitiçaria e bruxaria. Tomar garrafadas37 para combater um mal genital, impotência, infertilidade, ou receber um assopro ou um chupão/sucção, banhos de ervas, unguentos e outros procurando levar o conforto ou a cura a pessoas doentes sempre foi uma constante no Brasil escravocrata. Uma outra prática comum utilizada na busca da cura era a utilização de palavras invocando Deus e a Ave Maria, acompanhadas de movimentos representando a cruz (muito praticado nos dias de hoje pelas rezadeiras das regiões norte e nordeste) para combater o quebranto, mau olhado e erisipela. É importante ressaltar que as ações também poderiam ser feitas para levar o mal para alguém como doenças, sofrimento e até a morte, geralmente por ciúme e inveja. Outra prática bem utilizada era a da adivinhação, os feiticeiros38 da época frequentemente utilizavam copos d´água, tesoura e chapim, balaio e tesoura, peneira, chave e livro de horas de Nossa Senhora (SOUZA, 1993, p.160 e 162), e outros utensílios, além de outras práticas como as de enterrar e desenterrar coisas para descobrir que tipo de feitiço foi empregado à pessoa e o que poderia ser feito para inviabilizar o mal, isto é, o antifeitiço.

37 Bebida feita por curandeiros, rezadeiras mães e pais de santo geralmente composto por ervas, casca de frutas, aguardente e outros elementos da natureza utilizados para cura de problemas de saúde. 38 Palavra comumente usada para representar negativamente aquelas pessoas que utilizavam forças e poderes sobrenaturais para atender aos apelos, sobretudo, da sociedade colonial e que foram exaustivamente perseguidos pela Igreja.

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Essas foram ações mais comuns realizadas entre os feiticeiros da época, o que ilustra significativamente a popularidade alcançada pelas diferentes práticas entre índios, negros e, em menor escala, pelos brancos, sobretudo no período colonial, o que não quer dizer que elas não foram praticadas nos séculos XVIII e XIX com maior evidência pelos negros representantes diretos das manifestações afrobrasileiras. É importante ressaltar que os diferentes segmentos da sociedade procuravam as práticas amplamente combatidas pela igreja para resolverem os seus problemas, inclusive padres, freis e senhores, daí a popularidade alcançada por esses rituais. Certamente coube ao negro, sobretudo aqueles que viviam nas cidades negras e, principalmente, por manter quase que inalteradas as suas práticas religiosas e seus rituais, o estigma de carregar até os dias de hoje a fama de bruxo, feiticeiro, macumbeiro e outras denominações pejorativas utilizadas pela sociedade. A resistência em manter viva a prática religiosa dos antepassados custou ao negro perseguição, maus tratos e até a morte. A valorização do sagrado e do sobrenatural na cultura afrobrasileira foi capaz de sair do campo religioso e perpassar por diferentes esferas culturais representadas por essa etnia. Para sermos mais específicos, tomemos como exemplo o universo da capoeira que, na maioria das vezes, é vista por muitas pessoas como uma manifestação lúdica que envolve movimento e dança. Quando falamos em capoeira imediatamente atrelamos o sentido de sua prática a um caráter genuinamente cultural, como expressão popular, ligada diretamente à tradição oral que herdamos da contribuição étnica deixada pelos milhões de negros africanos que foram escravizados em solo brasileiro. No entanto, quando olhamos mais atentamente para a prática desta defesa amplamente maquiada por movimentos de dança, e que foi imprescindível para a resistência escrava, percebemos um pouco mais sobre a sua multidimensionalidade, no que diz respeito à cultura, arte, sociabilidade e religião. Quanto ao caráter religioso, um dado relevante é compreendermos que a prática da capoeira deu-se originalmente nas ruas, largos, becos e ruelas do Rio de Janeiro do século XIX, espaços também destinados às consagrações religiosas ligadas à Igreja Católica, o que certamente pode ter contribuído para a afinidade da capoeira com os cultos religiosos, isto é, como ritual que perpassa uma série de significados, simbólicos e místico-religiosos entre outros.

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Numa visão contemporânea, a relação da capoeira com a religião sempre foi difundida relacionando-se esta prática cultural com a cultura religiosa afrobrasileira, em especial o Candomblé, o que não deixa de fazer sentido, uma vez que, a cultura negra sempre esteve impregnada de simbologias e significados relacionados aos antepassados, além da necessidade de perpetuação das histórias dos diferentes grupos étnicos que constituíram a população negra a partir da diáspora no Brasil. Reinventar, estabelecer território, agregar e, sobretudo, negociar sempre foram práticas comuns dos representantes das diferentes nações africanas no Brasil, que constituíram e traduziram esse conjunto de ações de valores sociais, culturais, artísticos, religiosos, e por que não dizer, profanos em comportamento. Certamente, tal relação se deu a partir da difusão desta expressão da cultura popular na Bahia, sobretudo após a grande repressão sofrida pela sua prática na cidade do Rio de Janeiro a partir de 1890, e por encontrar na Bahia todas as possibilidades para a sua difusão, em especial por não existir neste estado uma lei que criminalizasse o jogo. Além disso, ambas as manifestações, uma de caráter artístico-cultural e outra de cunho eminentemente religioso, possuíam a mesma origem étnica e se desenvolveram neste país pelo mesmo motivo, isto é, a diáspora negra. Neste sentido é importante ressaltar que foi na Bahia que a capoeira reforçou o seu caráter semi-religioso, iniciado no século XIX, por compartilhar do mesmo espaço geográfico das festas religiosas de largo. Assim, a capoeira intrinsecamente ligada à tradição, como o Candomblé, após a roda, valoriza o momento de celebração da sociabilidade e, muitas vezes, de reconhecimento aos orixás e santos católicos sincretizados pelos devotos. Os capoeiras antigos sempre estiveram cercados de uma mística sobrenatural, eles usavam patuás – amuletos que continham orações e os protegiam dos perigos – conhecidos também por “bolsa de mandinga”39. Assim como no candomblé, o chão, a terra são sagrados para o capoeirista, por isso ele se abaixa e reverencia todos os componentes da roda e, em especial, ao mestre que está conduzindo a manifestação. Sabemos que nos momentos de perseguição da capoeira, inclusive na capital baiana, era justamente nos terreiros dos babalorixás e das ialorixás que as

39 Os mandingas, ou malinquês, habitavam o reino do Mali e foram convertidos ao islamismo no século XIII, mas permaneceram conhecidos como detentores de crenças e tradições fetichistas associadas à feitiçaria. Por isso os patuás também eram conhecidos como Bolsa de mandinga.

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portas se abriam para que os capoeiristas pudessem se esquivar das autoridades, bem como, exibir a agilidade, força e destreza dos movimentos desta que é uma referência mundial da cultura afrobrasileira.40 Geralmente atribui-se à formação da roda de capoeira um caráter de resistência, negociação, difusão da prática corporal africana. No entanto, esquecemos, ou não somos treinados a perceber, os signos, símbolos, rituais que envolvem esta luta. Certamente, se quisermos compreender a capoeira em sua totalidade, não podemos desprezar o seu caráter místico-religioso. Pensemos na capoeira como algo maior e dissociado de uma prática doutrinária, que comumente é confundida como o conceito maior que envolve a religião. No início, quando nos baseamos nas gravuras de Rugendas e registros da época, chegamos à conclusão que o jogo da capoeira se dava de uma forma espontânea e natural. A introdução da formação da roda se deu posteriormente à prática da luta/arte. A partir deste argumento, chegamos à conclusão que, talvez, até inconscientemente, a introdução da formação da roda foi uma necessidade humana de consagração do espaço, do território, isto é, construir ritualisticamente o espaço sagrado, repleto de simbologia e representações, que já estava arraigado no seio de seus adeptos e até mesmo na memória do corpo, e que ainda não tinha sido introduzido de forma espacial. Quando observamos a formação da roda da capoeira, percebemos que aquela roda vai se construindo de forma lenta, rítmica e natural, cada um procura o seu par, sempre ao ritmo dos toques dos atabaques e , cânticos e ladainhas que são entoados de forma melódica, como um chamado à congregação, assim como um mantra, uma oração... e os capoeiristas neste ínterim se concentram em um ritual de magia e adoração, reverenciando mesmo que no íntimo de cada um de seus integrantes (este espaço sagrado não é institucionalizado) os santos, os orixás e os antepassados. Neste sentido, não podemos negar que no momento do jogo a roda é um espaço sagrado, pois para os jogadores é naquele exato momento que aquele espaço se difere dos demais. A roda é na verdade um espaço de força e de valores que eleva o homem acima de si mesmo, transformando- o para um meio distinto daquele no qual transcorre sua existência. Para a pesquisadora Zeny Rosendhal o fenômeno da construção do espaço sagrado implica num comportamento religioso de conquista e ocupação de

40 Este comportamento também se deu na cidade do Rio de Janeiro.

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algo que não é nosso, transfigurando e isolando o espaço sagrado do espaço profano (ROSENDHAL,1996, p.31,). Apesar de seu caráter artístico, a capoeira após a formação da roda, passa a ser um espaço de celebração, onde todos comungam o espiritual, o ritual, as forças, o sobrenatural. A vadiagem, a malandragem e a irreverência perdem espaço para a concentração, a reverência aos mestres mais antigos (muitos já pertencentes a uma outra esfera) e ao etéreo. A revelação de um espaço sagrado permite que se obtenha um “ponto fixo”, ponto de toda a orientação inicial, o “centro do mundo”. Na roda de capoeira o centro desse território significa o limite que separa os dois espaços, indicando ao mesmo tempo, a comunicação, a passagem do espaço profano para o espaço sagrado. Essas passagens vêm acompanhadas de inúmeros ritos, como o toque do berimbau, a posição do berimbau reverenciando os mestres mais velhos e até os que se foram, além do toque do atabaque e variados gestos que exprimem os sentimentos dos capoeiristas e outros. É neste momento que a comunhão com o divino ou o esotérico torna-se possível. No meio da roda, o capoeirista joga, dança, evolui num misto de força física e agilidade, parecendo estar possuído por forças sobrenaturais, isto é, em transe. É justamente neste momento que compreendemos o espaço da roda como um campo santo, sagrado, onde as figuras do mestre, dos ancestrais e do cosmo precisam ser respeitados e absorvidos por todos. Obviamente, a roda não é somente um lugar de reunião dos componentes, é sobretudo, o espaço protegido das influências dos meios profanos. É na roda que o capoeirista atinge uma relação transcendental com o sobrenatural. Por ser uma manifestação da cultura popular urbana é importante compreendê-la neste contexto, interpretando a roda como o templo dos capoeiristas, o que faz a conexão entre o urbano e o sagrado, o público e o religioso. Sabemos que a capoeira é constituída por um conjunto de ações que acabam por compor um cenário lúdico, sociocultural e religioso baseado em concentração, organização espacial, movimentos, música, canto, reverências a todos ali envolvidos, física e espiritualmente. A constituição da roda de capoeira se dá a partir do som dos instrumentos comumente utilizados neste contexto, como atabaque, berimbau, agogô, pandeiro e outros. Ao longo de sua construção, a roda vai incorporando uma atmosfera de ares sagrados, e a partir daí, o toque do berimbau é seguido do canto. Na capoeira

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Angola este cântico é conhecido como ladainha, isto é, um lamento que invade aquele universo. A platéia fica em pé em silêncio e os dois jogadores, agachados ao “pé” do berimbau, permanecem ali em sinal de respeito e reverência . Entre os diferentes temas abordados pelo canto, é dado destaque para aqueles de ordem religiosa em homenagem aos santos e orixás, a África mítica e os capoeiras lendários. O tom de lamento das ladainhas faz com que os espectadores o associem a uma prece “ê maior é Deus/ ê viva meu mestre/ quem me ensinou/ ê a capoeira.” Depois deste momento os capoeiristas que estavam agachados se benzem e começam a jogar. Neste momento pequenas canções são entoadas, compostas por dois ou quatro versos, que são repetidos pelo povo da roda. “Valha-me Deus, senhor São Bento/ Buraco velho tem cobra dentro” – São Bento é o santo padroeiro de Angola, o que é representado por dois toques de berimbau na roda. É a São Bento que se pede autorização para um visitante jogar, o que representa o pensamento sacro-religioso por parte dos que compõem aquele espaço. Este ritual é seguido até mesmo para encerrar o jogo de uma dupla, geralmente caracterizado por repetidas batidas no arame do gunga41. É neste momento que os capoeiristas se cumprimentam apertando as mãos e dando lugar a outra dupla “Adeus, adeus/ Já vou embora /Eu vou com Deus/ E Nossa Senhora”, e todo o ritual se repete. Uma questão interessante, que não podemos descaracterizar como um precioso aspecto religioso nas rodas de capoeira Angola, é a utilização de três berimbaus, referência ao universo religioso do Candomblé, além da utilização dos três tambores de afinação diferente: rum, rumpi e lé42, assim também como os demais instrumentos que fazem parte da roda, que são comuns ao ritual religioso das matrizes africanas, como: atabaque e agogô. Na capoeira Regional, amplamente difundida por um dos mestres mais conhecidos neste contexto cultural, Mestre Bimba, a figura de caráter religioso que representa este segmento da capoeira é o rei Salomão, monarca da região hoje conhecida como Etiópia, este manteve-se presente na memória e tradição oral dos

41 Berimbau de som mais grosso faz o papel de contrabaixo: marca o ritmo e faz a marcação do toque, tem uma cabaça maior e raramente executa uma virada durante a melodia; 42 Os atabaques são chamados de Ilubatá ou Ilú na nação Ketu, e Ngoma na nação Angola, mas todas as nações adotaram esses nomes Rum, Rumpi e Le para os atabaques, apesar de ser denominação Jeje.

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africanos, o que claramente pode ser identificado como um símbolo sagrado, utilizado por Bimba, que depositava na estrela de cinco pontas envolta por um círculo, toda a sua fé e reverência, que posteriormente foi passada para os seus seguidores. A partir da reflexão realizada após esses apontamentos, percebemos a importância do papel do espaço público como contexto essencial à prática da capoeira enquanto uma atividade de resistência, uma vez que, era na rua que a evolução da luta se dava e se disseminava pela e para a população negra escravizada da época. Além disso, percebe-se a transformação sofrida por esta expressão da cultura popular, a partir do momento em que o espaço privado passa a monopolizar a capoeira, ditando um novo comportamento arraigado a valores de bens e consumo e, finalmente, a esfera religiosa, vivenciada por aqueles que até os dias de hoje compõem o ritual da roda. Sabemos que essa atmosfera composta de misticismo e experiências ligadas ao desconhecido não é vivenciada por todos, no entanto reconhecemos que a experiência com o sobrenatural dentro da roda ainda fascina e impregna os corações de velhos e novos, num ritual de magia e encantamento. Certamente esse é o grande mistério da roda que intriga muitos de nós.

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IV – A PERMANÊNCIA DA CAPOEIRA NUM CONTEXTO GLOBALIZADO

1.1 – CULTURA COMO MATÉRIA PRIMA

Inquestionavelmente a revolução industrial possibilitou profundas transformações em todo o mundo. Tais alterações interferiram direta e indiretamente nos mais diferentes setores de produção. Formas de produção agora consideradas rudimentares e primitivas, como a artesanal passam a ser consideradas coisas do passado, substituídas pela produção em série, o homem testemunha a construção de novas cidades que mais tarde se transformarão em metrópoles como Londres, Milão, Frankfurt e muitas outras que as sucederão. Os trabalhadores surgem de todas as partes, movidos pelo impulso da modernidade. A matéria prima ganha um lugar de destaque nesses novos tempos, passando a ser valorizada como elemento imprescindível à produção dos novos bens de consumo. O lema deste novo momento que segue as trajetórias ditadas pelo novo modelo econômico, isto é, o capitalismo, está diretamente ligado ao consumo incessante do produto, além da produção de excedentes, o que de fato vai garantir as transações comerciais entre os países que o produzem e aqueles que apenas o consomem, bem como a formação de novas cidades e consequentemente novos consumidores. Dentro desse contexto não podemos deixar de ressaltar que tendo como fundamento primordial o consumo, o modelo econômico em questão incrementou a transformação de muitas coisas em produto, além disso, possibilitou a reificação de muitas outras, que jamais pensávamos na possibilidade dessas serem utilizadas como produto mercadológico, como por exemplo, a cultura. Na sociedade moderna a cultura deixa de ser um bem ligado diretamente à formação do conhecimento humano e passa a ser identificada como matéria prima. Surge neste cenário mercadológico a Indústria Cultural, um personagem de extrema importância no que diz respeito à produção de bens de consumo da área cultural. Neste sentido, a cultura passa a ser um produto permutável por dinheiro e consumida como qualquer outro. A partir do século XVIII a cultura passa por um processo de reificação, deixando de ser vista e valorizada como fonte, intrinsecamente ligada à livre expressão do conhecimento do homem, para ser

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submetida a um modelo de produção de algo que vai ser desejado e valorizado como uma jóia, um perfume ou um automóvel. Segmentos ligados à arte tais como: artes plásticas, música, teatro e dança, outrora conectados ao universo etéreo, sobretudo na formação e desenvolvimento do homem enquanto elemento de extrema importância para o equilíbrio do universo, passa por um processo de re-significação, conduzindo este mesmo homem a uma esfera onde o consumo passa a ser o centro de todas as coisas. Tão grande foi esse processo de reificação da cultura que, em nossos dias, dissociá-la do mercado é algo fora da realidade. Na verdade, as atividades culturais, incluindo aqui as práticas corporais (dança, artes cênicas, e outras ações que envolvem movimento) fazem parte de um conjunto de ações ligadas diretamente à indústria do entretenimento e, por conseguinte ao exercício do consumo na sociedade contemporânea. Para compreendermos mais detalhadamente os paradigmas que norteiam a indústria cultural, consideremos primeiramente o acordo de livre comércio estabelecido entre o Canadá e os EUA no início dos anos 90 que se refere, entre outros segmentos que compõem esta indústria, à televisão. No que tange a esse meio de comunicação que atinge o maior número de pessoas no mundo, destacamos o seguinte texto: “A comunicação radiofônica ou televisiva em aberto (broadcast), por assinatura ou sistema pay per view, TV a cabo, transmissões por satélite”. (COELHO, 1997, p.216): Em outras palavras, a atividade aqui descrita entre as diversas atividades existentes nesse acordo, legitima o papel da televisão em seus diferentes setores, ratificando o poder desta em difundir as imagens dos diferentes acontecimentos que ocorrem no mundo, o que claramente evidencia a transformação de notícia em espetáculo em tempo real. Um dado curioso que retrata muito bem esta afirmação foi, por exemplo, a divulgação das imagens vistas ao vivo do bombardeio da guerra do Golfo e, mais recentemente, as Guerras do Afeganistão e do Iraque, além das extraordinárias imagens da queda do World Trade Center em 11 de setembro de 200143. Voltando à questão cultural para compreendermos de fato os paradigmas que dão as diretrizes à cultura como bem de consumo, peguemos como exemplo a

43 Conseqüência da guerra terrorista que vem assustando o mundo. Uma das imagens mais impactantes de todos os tempos.

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transmissão dos XXIX Jogos Olímpicos em agosto de 2008 diretamente da cidade de Pequim. Um espetáculo que foi visto por aproximadamente 4 bilhões de pessoas e transmitido para aproximadamente 205 países44. O exemplo acima citado cabe no contexto cultural porque estamos tratando de um assunto que envolve a prática corporal, sobretudo nesse espetáculo específico, onde pudemos detectar claramente a inclusão de segmentos ligados à arte como: dança, artes cênicas e música entre outras. Voltando à questão que envolve as práticas corporais, cabem algumas considerações no papel da indústria cultural como a grande “redentora” que tira tais atividades do ostracismo e as colocam novamente no seio da sociedade, sempre com o mesmo argumento, o de resgate da identidade, da cidadania, e valorização da tradição. Neste sentido podemos identificar, por exemplo, o “resgate” feito pelos diferentes meios de comunicação na difusão do , ou da capoeira, para sermos mais precisos. Antes de tudo é importante termos bem dimensionados o conceito de tradição, identidade e resistência nos dias de hoje. Não podemos ter a falsa idéia unicamente por capricho ou uma nostalgia inconseqüente em defender que os moldes de cultura vividos nos dias de hoje sejam idênticos aqueles vivenciados no século passado. É imperativo compreendermos que tudo já foi alterado, repensado e re-significado. No caso da capoeira, até a introdução de instrumentos musicais na roda como berimbau, agogô, atabaques e outros, foi um advento da capoeira mais recente e não daquela jogada pelos negros escravos e livres no século XIX. 45 Neste contexto vale ressaltar que estamos falando de uma re-significação tolerável de processos naturais que acontecem em função do tempo e do espaço, aquilo que Stuart Hall vai chamar de desalojamento do sistema social (HALL, 2004, p. 15) o que é perfeitamente compreensível, e não uma fragmentação na expressão cultural como, por exemplo, fundir movimentos da capoeira com aqueles das lutas marciais de origem asiática como o jiu jitsu, encontrados na capoeira regional. Certamente é imprescindível que seja feita uma reflexão mais apurada sobre o papel da indústria cultural na difusão dos diferentes segmentos ligados às artes/cultura para que compreendamos de fato qual é o seu verdadeiro objetivo. Peguemos o exemplo da capoeira para desenvolvermos tais reflexões. A ação direta

44 Pagina on line da Globo.com – Olimpíadas de Pequim – 2008. 45 A Capoeira Escrava e Outras Tradições Rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850).

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da indústria cultural no cenário nacional e internacional na divulgação da luta arte através de produtos como filmes, CDs, DVDs, vestuário, voltados à prática da capoeira, venda de instrumentos musicais, matrícula em academias de capoeira no Brasil e no exterior, leitura especializada, shows e eventos vendidos como atração folclórica brasileira, que podem ser encontrados e consumidos através dos diferentes sites de capoeira46 exibidos em diversos idiomas existentes na rede internacional de informação, além de canais televisivos de venda e centrais telefônicas, podem ser considerados ferramentas essenciais de uma transformação significativa da capoeira. Cabe aqui fazer a seguinte indagação: O trabalho estimulado pelo Estado, e mais tarde sendo apropriado pela indústria cultural, com o objetivo de formar arquivos audiovisuais a partir da primeira metade do século XX graças às pesquisas de campo realizadas por Carlos Vega, Isabel Aretz e Mario de Andrade47 sobre o folclore brasileiro, contribui verazmente para preservar a memória da tradição e, conseqüentemente a valorização da identidade nacional e da resistência cultural, além de facilitar a difusão de relevantes informações quanto à importância do Patrimônio Cultural nas escolas brasileiras? As mensagens contidas nas centenas de DVDs e CDs48 produzidos no Brasil e no exterior estão de fato comprometidas com a valorização da contribuição específica da etnia negra na formação do povo brasileiro, ou são meramente produtos descartáveis, como os milhares produzidos, por exemplo, para que as pessoas percam peso ou façam a dieta milagrosa que transforma o corpo de uma pessoa de 100 quilos num outro corpo, cheio de vitalidade e forma em cinco dias? Certamente, não desejamos discutir aqui o valor moral da indústria cultural, entretanto, não podemos ratificar uma posição hipócrita que veicula uma idéia de valorização do patrimônio imaterial, como muitos insistem. Devemos sim, ter o cuidado de não subestimar o poder de persuasão ao qual a indústria cultural juntamente com outros setores nos impõe a cada dia. A pós-modernidade, evidentemente, tem contribuído com grande eficácia na execução dessa indústria que, com o seu poder avassalador, nos ilude e acaba por contaminar a sociedade com uma miopia severa, beirando a cegueira. Massificar os seus paradigmas de consumo ditados pela formatação mercadológica em expansão, que ruge como uma

46 Esses produtos e serviços poderão ser confirmados através do ANEXO E. 47 Metamorfoses das Tradições Performáticas Afro-brasileiras. 48 A comercialização desses produtos podem ser constatados no ANEXO E.

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fera enjaulada, é sem dúvida o seu principal objetivo. Para o pesquisador José Jorge de Carvalho

Isso faz sentido, sobretudo porque o entretenimento é um dos pilares de nossa forma urbana capitalista de viver. [...] entreter significa deter o tempo, suspender o ter para sonhar com o ser – ou, melhor, sonhar que se é (porque se tem) aquele ser que o outro é. É fazer um parêntese entre duas atividades de trabalho que exigem atenção concentrada e que desgastam a utopia da vida. Enquanto se faz uma pausa, assiste-se a um show de duas 49 horas e pode-se, em seguida, regressar à mesma vida de antes. (CARVALHO,2005,p.8) Com base no pensamento do antropólogo acima citado, fica um pouco mais claro compreender qual é a verdadeira preocupação da indústria cultural quando essa proclama o seu interesse em “difundir e possibilitar a fruição da capoeira” e outras formas de expressão da cultura popular como patrimônio imaterial. Na verdade, o que identificamos é uma grande preocupação em situar esses temas como algo meramente consumível. Tanto o cinema, quanto a música e o teatro com suas performances na maior parte das vezes copiadas ou meramente simuladas sem nenhum comprometimento com a história e seus verdadeiros autores, nos dão a falsa sensação de estarmos engajados a partir da nossa assistência a ações que, na verdade, conhecemos e valorizamos muito pouco.

1.2 O CIBERESPAÇO A TELEVISÃO E O CINEMA DITANDO A GINGA DA CAPOEIRA

Reconhecida precisamente no dia 15 de julho de 2008 como Patrimônio Cultural Brasileiro a capoeira passa a fazer parte oficialmente do quadro de manifestações da cultura popular como patrimônio imaterial. Segundo relatório emitido pelo Ministério da Cultura em 2006 a capoeira é uma das mais conhecidas expressões da cultura popular brasileira, no Brasil e no exterior. Não podemos negar que esse mérito é fruto do trabalho de alguns mestres e pessoas interessadas que sempre respeitaram a capoeira independentemente da promoção pessoal ou ganhos financeiros. Essas pessoas acreditaram na capoeira como ferramenta eficaz na formação do indivíduo através do desenvolvimento de programas sociais atrelados principalmente ao terceiro setor e, mais recentemente, ao Governo Federal

49 José Jorge de Carvalho é Professor Titular do Departamento de Antropologia Universidade de Brasília.

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através de programa público de difusão da capoeira, além do seu caráter de valorização do povo negro. No entanto, não podemos deixar de mencionar a contribuição da indústria cultural, sobretudo da televisão e do cinema, na veiculação da prática da capoeira. O fascínio que o cinema e, principalmente, a televisão exercem sobre as pessoas permite que esses meios massivos de comunicação ditem regras e comportamento. A televisão, através de uma estética massificada, além de técnicas rebuscadas, transformam lixo em luxo, e mediocridade em genialidade. Certamente, nem tudo o que é veiculado na televisão é ruim, mas até o ruim se torna extraordinário a partir da sua intervenção. O poder que a televisão possui em ditar gostos, tendências e, sobretudo mercado é algo, no mínimo, assustador pois interfere diretamente na vida de bilhões de pessoas em todo o mundo. A hegemonia da televisão na veiculação da notícia, do espetáculo e de outros não acontece abruptamente. Em menos de cinqüenta anos a televisão no Brasil atingiu índices de popularidade jamais vistos comparando-se a um outro aparelho doméstico. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Estatística, 87,5 % das casas brasileiras possuem pelo menos um aparelho de televisão e 82,5% um outro eletrodoméstico. “Uma novela vale o ônus de ver a comida estragando na cozinha” (PEREIRA JR, 2002, p.57), se compararmos a popularidade da televisão com a geladeira, a afirmação acima faz bastante sentido. No Brasil, o cidadão comum assiste em média 3,9 horas de TV por dia, o que possibilita a 50 exibição de aproximadamente 2 mil comerciais por semana . Na verdade, a receita da televisão é relativamente simples, investimento em eventos e programas é retorno certo em audiência, que resulta em prestígio e, conseqüentemente, em anunciantes. Após esta explanação fica claro compreendermos por que entre todos os segmentos/ferramentas utilizadas pela indústria cultural, a televisão ainda é um dos trunfos mais poderosos quanto à formação de opinião no que se refere à produção de bens de consumo. Ela vai penetrando gradativamente na vida das pessoas sem que elas se dêem conta do seu poder persuasivo. Um exemplo bem interessante neste sentido foi o salto que o setor editorial obteve com o advento das adaptações literárias para a TV. Apenas para ilustrar, a primeira edição de “Os Maias” de Eça de Queirós, lançado no Brasil

50 Revista Screen Digest.1996. p.9 - 16

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em 1999 pela Editora Ática, tinha atingido a marca de 6 mil exemplares vendidos, mas depois da minissérie exibida em 2001 pela Rede Globo, a venda do livro atingiu marcas que esvaziaram os estoques brasileiros. A história se repetiu com o romance do mesmo autor, “Primo Basílio”, que vendeu 5.695 (cinco mil seiscentos e noventa e cinco) exemplares até 1987, atingindo a marca de 15.328 (quinze mil trezentos e vinte e oito) exemplares em 1988, ano em que foi lançada a minissérie na TV. O mesmo ocorreu com o romance “A Muralha”(Globo, 2000) de Dinah Silveira de Queiroz, além de “Memorial de Maria Moura” (Globo, 1994) de e “Comédia da Vida Privada” (Globo) para citar apenas alguns. Retomemos a discussão situando a capoeira nesse contexto televisivo, que na última década tem recebido uma atenção especial por parte desse badalado meio de comunicação, quer via comercial publicitário, novela, clipe musical, programas de caráter social e outros, contemplados pelos canais abertos e fechados de forma generalizada. No dia 16 de julho de 2008 a capoeira recebeu uma atenção especial por parte do Jornal Nacional que destinou 1minuto e 51 segundos à manifestação da tradição oral, precisamente neste dia, a capoeira tornou-se Patrimônio Cultural Brasileiro51. Para quem entende a linguagem da televisão, podemos considerar esse tempo significativo, com duração maior que muitos filmes de curta metragem. Na mesma semana foi ao ar uma cena da novela do horário nobre da TV Globo “A Favorita” onde o personagem Damião vivido pelo ator Malvino Salvador aparece vestido com a indumentária de capoeirista, desenvolvendo um projeto social na 52 cidade de “Triunfo” . Essa imagem de um dos galãs da novela desenvolvendo o jogo da capoeira vem sendo mostrada periodicamente, ratificando a prática da capoeira no cenário televisivo. Além disso, vários comerciais de caráter publicitário veiculam a imagem da roda e de capoeiristas no jogo, sempre atrelando a imagem a mensagens contendo teor de vida saudável, esporte, alimentos, jovialidade, carro, turismo, sucesso e outros. A série “Malhação” já mostrou várias cenas veiculando a prática da capoeira, assim como outras linguagens da comunicação como: busdoor, outdoor, revistas de circulação nacional como “Marie Claire”, “Boa Forma” e outras além daquelas especializadas no assunto, para citar apenas algumas.

51http://www.cultura.gov.br/site/2008/07/18/capoeira-vira-patrimonio-cultural-do-brasil/ acessado em 25 de janeiro de 2009 52 Cidade ficcional onde acontece parte do enredo da novela.

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Deixando a televisão um pouco de lado, vamos nos ater agora a um outro meio de comunicação muito em voga no cenário nacional e internacional e que vem alcançando os diferentes segmentos da sociedade, bem como as diferentes faixas etárias existentes. Estamos nos referindo ao computador e seu espaço virtual de execução. Não podemos negar que a descoberta da tecnologia da informação/Internet e sua principal ferramenta, o computador, possibilitaram uma profunda transformação na vida das pessoas. Os ciberespaços são encontrados em cada quadra que percorremos, tanto de um grande centro urbano, como a cidade de São Paulo, bem como de um pequeno centro de uma cidade do interior, uma comunidade quilombola ou uma aldeia indígena. Sem dúvida estamos presenciando a conexão do mundo em tempo real. É importante compreendermos como a maior rede de informação já existente em todo o mundo funciona para darmos continuidade a nossa discussão.

A Internet é um conglomerado de redes em escala mundial de milhões de computadores interligados pelo Protocolo de Internet que permite o acesso a informações e todo tipo de transferência de dados. De acordo com dados de março de 2007, a Internet é usada por 16,9% da população mundial (em torno de 1,1 bilhão de pessoas)53. A Era da Informação, impulsionada pelo avanço das telecomunicações e informática, vem gerando um aumento significativo do número de usuários ligados à rede, até 2012 o número de usuários de computador vai dobrar, chegando a 2 bilhões. A cada dia, 500 mil pessoas entram pela primeira vez na Internet54, a cada minuto são disponibilizadas 13 horas de vídeo no YouTube e a cada segundo um novo blog é criado55. Em 1982 havia 315 sites na Internet56. Hoje existem 165 milhões57. Neste sentido, fica mais claro compreendermos o motivo pelo qual a Internet é uma das ferramentas mais eficientes quando pensamos em marketing digital. Cada vez mais cresce o número de produtos e serviços ofertados no mercado, justamente para atender a uma demanda que ultrapassa 1 bilhão de internautas. A tela do computador passa a ser uma vitrine irresistível; uma vez que já estamos diante do computador, a compra pode ser feita de forma rápida e automática. Além disso, são oferecidas outras facilidades como: desconto, frete

53 Para maiores informações: http://pt.wikipedia.org/wiki/Internet. Acesso em 11/11/07. 54 Segundo Michael Dell em entrevista ao G1. Acesso em 09/11/07. 55 Dados do site blog oficial Google BR. Acesso em 16/07/08. 56 Segundo dados do canal G1. Acesso em 16/10/07. 57 Segundos dados da FGV/G1. Acesso em 30/04/08.

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gratuito, entrega em casa, pagamento parcelado pelo cartão de crédito, o que possibilita o consumo diário de milhões de mercadorias. Na Internet o consumidor encontra qualquer produto, isto é, desde uma simples agulha até um sofisticado avião, qualquer compra é perfeitamente realizável. Com o advento do marketing digital, impulsionado, sobretudo pela Internet, o fetichismo da mercadoria, atingiu índices alarmantes. Apenas para ilustrar tal afirmação, no Brasil, o comércio eletrônico no primeiro semestre de 2008 possibilitou transações relevantes, as compras obtiveram aumento de 45% em relação a igual período de 2007, somando R$ 3,8 bilhões. São 11,5 milhões de consumidores, com um gasto médio de R$ 324,00 (trezentos e vinte e quatro reais), ou seja, 87% dos internautas utilizam a rede para pesquisar produtos e serviços58. Tudo isso nos leva aos seguintes questionamentos: Como podemos situar a capoeira no cenário do ciberespaço? Será que a capoeira pode ser comercializada assim como produtos como, celulares, i-pods, livros e outros? A resposta pode ser encontrada nos inúmeros sites existentes destinados à prática da capoeira. Dentro de um contexto com aproximadamente dez mil (10.000) sites, que veiculam informações a respeito da capoeira, é pertinente afirmarmos que o seu papel como produto já foi legitimado. Através da Internet qualquer usuário pode participar de discussões sobre capoeira, consultar tabelas de competições ao longo de todo o ano através da Confederação Brasileira de Capoeira. Estão também disponibilizadas na rede páginas dos grupos mais importantes responsáveis por introduzir a capoeira no cenário internacional como: Muzenza, Senzala, Abadá, Capoeira Brasil, que oportunizam a seus visitantes páginas em português e em outros idiomas, e com uma variedade de opções de busca que permite o consumo da luta/arte através dos inúmeros produtos existentes, como instrumentos musicais, CDs, DVDs, livros, peças de vestuário infantil e adulto, masculino e feminino, instrumentos musicais, souvenirs, bijuterias, atrações performáticas, enfim tudo em torno do tema capoeira.59 Um outro dado interessante e que merece destaque são as inúmeras imagens disponibilizadas na página do YouTube relacionadas à prática da capoeira. Existem milhares de imagens de rodas que são realizadas nas diferentes cidades

58 Dados da Agência Reuters: “Publicidade na internet ameaça a da TV”. Acesso em 17/06/08. 59 Isso pode ser constatado em alguns sites como amazon.com; www.mezenza.com.br, www.rabo dearraia.com.br, www.sdobrado.com.br, www.cdol.co.uk e muitos outros.

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espalhadas pelos quatro continentes, bem como campeonatos de capoeira pelo mundo, além da divulgação de shows e eventos sobre esse tema. 60 Certamente tudo isso caracteriza a ampla divulgação da capoeira no cenário nacional e internacional. Através das imagens apresentadas pelo YouTube, o que parece ficar explicitado é o caráter dado à capoeira como uma prática com uma ligação maior ao conceito de luta marcial do que expressão de uma cultura de um povo, o que é perfeitamente aceitável e compreensível, se observarmos com mais precisão o processo pelo qual o conceito de identidade tem se transformado ao longo dos anos. Os diferentes elementos culturais, por exemplo, antes pertencentes às diferentes sociedades são agora apropriados pelos mais variados grupos existentes. A efemeridade que domina o mundo possibilita que conceitos, valores, arte, cultura, circulem livremente e em tempo real. Não existe mais uma associação exclusiva em um contexto de comunidade nacional, (CANCLINI, 2005, p.131) aquilo que é observado não pode mais ser levado em consideração pela diferença, mas principalmente pela hibridização. A capoeira sendo, portanto um objeto que possibilita a interação entre os povos, uma vez que essa prática é desenvolvida em mais de 190 (cento e noventa) países, passa também por um processo de transformação, o que certamente vem definindo a sua permanência no cenário em trânsito e mundializado. Neste sentido cabe uma outra indagação: Qual é o caráter da capoeira num contexto globalizado? Na internet podemos encontrar, por exemplo, academias de mestres brasileiros espalhados pelo mundo inteiro. Será que esses “mestres” que vivem da capoeira, sobretudo no cenário internacional estão de fato difundindo a capoeira como patrimônio cultural brasileiro? Estão eles difundindo a capoeira como uma manifestação da cultura popular ligada à resistência de uma etnia? É a capoeira vista e valorizada como uma luta voltada à resistência da comunidade escrava ou possuidora de um caráter meramente esportivo? Para compreendermos como a capoeira permanece no mundo globalizado é imprescindível considerarmos questões dessa natureza. Não podemos nos iludir que o trabalho dessas pessoas é o de perpetuação da tradição e da ancestralidade, no entanto, não podemos negar que apesar da existência do papel desses muitos comerciantes da capoeira dentro e principalmente fora do país, existem alguns mestres comprometidos em imputar

60 É um site na internet que permite que seus usuários carreguem, assistam e compartilhem vídeos em formato digital.

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um caráter de seriedade aos trabalhos desenvolvidos. Esses combativos mestres, comprometidos em difundir a capoeira tem como objetivo enfatizar a importância da tradição como elemento essencial de recuperação da identidade e memória do nosso povo. Para esses verdadeiros heróis da resistência um capoeirista brasileiro precisa fazer a diferença e ser reconhecido como brasileiro representante de uma história ancestral em qualquer parte do mundo. O cinema, um outro segmento da Indústria Cultural, na maioria das vezes, apresenta a capoeira como apenas uma luta e a coloca no mesmo nível que as demais lutas marciais, sem lhe atribuir o devido crédito quanto ao seu papel de resistência e identidade no processo escravocrata brasileiro. Talvez isso ocorra com maior freqüência porque tais películas são realizadas por cineastas estrangeiros que valorizam muito mais as imagens e as cifras que irão alcançar com elas, do que com a sua história, o que pode ser analisado a partir das imagens do filme “O Protetor”61, disponível nas locadoras brasileiras, onde a figura do capoeirista é extremamente caricaturada na cena onde este luta com um oriental. Depois de vários movimentos gritos e chutes, o oriental golpeia o capoeirista, que é ridiculamente vencido. Imagens como essa descrita acima, são corriqueiras em filmes de lutas com astros como Van Dame, Charles Chin e outros. Isso evidencia claramente como a imagem da capoeira no mundo cinematográfico internacional é representada. Para piorar a situação a cena apresentada no site do Youtube vem acompanhada de um fundo musical cantada por Mestre Camisa, um conceituado mestre de capoeira, aprendiz de Mestre Bimba, que representa o Grupo Abadá no mundo inteiro, o que torna a situação mais delicada ainda, uma vez que o referido mestre divulga frequentemente o seu compromisso com a capoeira que representa a resistência e a identidade do povo brasileiro. Um outro exemplo de película que retrata o olhar estrangeiro diante da capoeira é o filme “The Quest – Combate Mortal”62 de 1996, estrelado e dirigido pelo ator Belga Jean Claude Van Dame e que tem no seu elenco atores consagrados como Roger Moore.

61 Esta cena específica da luta entre o capoeirista e o lutador oriental pode ser comprovada no site http://www.youtube.com/watch?v=CsbVyGtQo4g&feature=PlayList&p=31607CCD66544F0E&index =0 ou na imagem do vídeo retratada no anexo “E” em produtos e serviços. 62 Acesse http://www.youtube.com/watch?v=Y_BR6QmF4AM e veja a cena referida no texto. A imagem da luta está retratada no anexo “E” em produtos e serviços.

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A cena que envolve a luta do capoeirista com dois orientais é a repetição da cena do primeiro filme “O Protetor” já ilustrado nesta dissertação. Primeiramente o personagem capoeirista é anunciado, logo em seguida aparece a bandeira nacional brasileira num close de destaque. O oponente do capoeirista é apresentado e a luta começa. O representante brasileiro, muito bem representado por um ator miscigenado, participa da primeira luta e vence o seu adversário. Na segunda luta ele é facilmente derrotado pelo lutador de Kung Fu e sai de cena imediatamente, sem chance de recuperação. O olhar do cinema eurocêntrico em relação ao terceiro mundo e suas representações étnicas já se tornou óbvio no cinema internacional. Na primeira luta o capoeirista tem como oponente um boxer do ocidente, que é eliminado facilmente. É justamente na segunda luta que esse olhar eurocêntrico é latente, uma vez que é freqüente a ênfase dada nesses filmes à supremacia das lutas orientais pelas ocidentais. O terceiro mundo é sempre visto como menor, vulnerável e mal sucedido. Muitos outros filmes dentro da categoria de artes marciais apresentam a cultura brasileira sempre como algo exótico, mas sem nenhuma importância. Certamente, o objetivo desses grandes produtores é apenas introduzir elementos diferenciados em suas películas com o intuito de aumentar o poder de entretenimento para a platéia assistente, com o intuito de se tornar o mais visto, o que ficou mais tempo em cartaz e consequentemente, o que gerou mais lucro. O cinema, assim como outros segmentos da Indústria Cultural, continua a dar destaque a elementos da cultura popular que, de uma forma ou de outra, já alcançaram um lugar de destaque na mídia, neste caso específico a capoeira. Em outubro de 2009 será lançado em super produção o filme “Besouro”63 dirigido por João Daniel Tikhomiroff e produzido pela Mixer e pela Globo Filmes, e distribuído pela Miravista. O prestigiado diretor de “Besouro” possui reconhecimento internacional no mundo da publicidade. O carioca Tikhomiroff já ganhou 41 Leões conquistado no Festival Internacional de Publicidade de Cannes, sendo 11 deles de ouro. Neste sentido, espera-se uma produção em que não faltará apelo visual. Muitos já dizem que “Besouro” é uma versão ocidentalizada do filme “O Tigre e o Dragão” do prestigiado diretor Ang Lee. Para a produção de “Besouro” o cinesta brasileiro contou com a colaboração do renomado coreógrafo chinês Huen Chiu Ku

63 http://www.youtube.com/watch?v=FXiob6SamEE. Leia a matéria na íntegra disponibilizada no anexo “E” em produtos e serviços.

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que trabalhou na coreografia de “Kill Bill” do diretor Quentin Tarantino e “The Matrix” dirigido pelos irmãos Wachowski e protagonizado por Keanu Reeves. A missão do coreógrafo chinês é fazer o capoeirista do Recôncavo Baiano voar. Se Tikhomiroff vai ser fiel à história da vida do capoeirista Besouro - Cordão de Ouro, não sabemos, no entanto, as cifras investidas no projeto não foram reveladas, mas com certeza, esta já é a maior produção da história do cinema brasileiro.

1.3 – CAPOEIRA COMO MODALIDADE ESPORTIVA OLÍMPICA

Da marginalidade aos dias de hoje a capoeira passou por um longo processo de transformação. Inicialmente era reconhecida como uma prática voltada à resistência, uma vez que essa estava intrinsecamente ligada às aspirações de liberdade dos negros cativos. Hoje essa luta, diferentemente dos tempos de outrora, é admirada por seus belos movimentos e seu ritmo envolvente, calcada numa estética de rebeldia aliada a um conceito de boa forma, saúde e beleza. Além disso, a capoeira passou a ser institucionalizada por grupos, federações e confederações que acabaram por legitimá-la como prática esportiva. A Confederação Brasileira de Capoeira é um bom exemplo disso: como entidade nacional de administração desportiva, ela representa os capoeiristas do Brasil. Foi fundada em 23 de outubro de 1992, e é hoje a única a ser reconhecida pelo Comitê Olímpico Brasileiro - COB. Filiada à recém-criada Federação Internacional de Capoeira - a FICA, fundada em 06 de junho de 1999, a Confederação é uma entidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos encarregada da padronização técnica, cultural, desportiva, educacional e administrativa da capoeira em todo o mundo. Apesar de provocar muita polêmica entre os representantes da capoeira no cenário nacional, existe um grupo de defensores que lutam pela introdução da capoeira como prática olímpica composta principalmente por mestres de capoeira graduados em Educação Física, assim como aconteceu com o judô em 1964 quando a Ásia recebeu os Jogos Olímpicos pela primeira vez na cidade de Tóquio64. Não podemos deixar de mencionar os níveis de organização que tais instituições vêm alcançando ao longo do tempo. Anualmente acontecem os campeonatos

64 33 recordes mundiais nos Jogos da informática e do judô. http://olimpicos2008.publico.clix.. aspx?id=2578.

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mundiais, com representantes de diferentes gêneros e categorias, o que nos leva a crer que o caminho para as Olimpíadas está mais próximo do que muitos imaginam. A reivindicação de inclusão da capoeira como esporte oficial foi feita durante os Jogos Olímpicos de Atenas em 2004. Muitos apostavam na introdução da capoeira como esporte oficial nos Jogos Olímpicos de Pequim65. No entanto, alguns dirigentes do COI já haviam esboçado que a ação mais viável é que a modalidade ingresse no programa olímpico em 2012, quando provavelmente, uma cidade européia, mais precisamente Londres, organizará os Jogos, o que faz razoável sentido, uma vez que a capoeira já vem sendo difundida nesse continente há mais de duas décadas. Se esse é um assunto polêmico entre aqueles que defendem a capoeira como uma prática esportiva e aqueles que a defendem como uma representação da cultura popular, não existem dúvidas. No entanto temos que concordar pelo menos em um ponto: o caráter comercial que a inclusão da capoeira poderá gerar se essa, assim como a luta marcial asiática, for de fato incluída como modalidade esportiva olímpica. Podemos imaginar quanto a Confederação passará a arrecadar de cada filiado no período em que esses mudarem de cores do cordão, assim como acontece com o judô, na troca de faixas, algo em torno de R$ 1.500,00 (mil e quinhentos reais) por faixa. Além disso, não podemos esquecer a quantidade de produtos que serão desenvolvidos e vendidos, além daqueles já existentes, como por exemplo, a faixa da marca Adidas que o campeão olímpico usa no cabelo, a calça da Reebok, a camisa da Nike, os protetores de joelhos e cotovelos e outros materiais e peças de vestuário de outras marcas também reconhecidas no mercado internacional. Certamente calcular essas vendas nos levaria a cifras exorbitantes. É inquestionável que a institucionalização da capoeira vem contribuindo significativamente para a sua organização, sobretudo enquanto prática esportiva. Com uma freqüência maior vemos nos dias atuais ações bem mais estruturadas que têm como objetivo primordial a difusão da capoeira no cenário competitivo. Instituições como a Confederação Brasileira de Capoeira, Federação Internacional de Capoeira, além de uma ação efetiva do Comitê Olímpico Brasileiro, reforçado pelas instituições governamentais como: Secretarias de Esporte e Turismo das diferentes esferas da administração pública e, principalmente, o apoio irrestrito do

65 Capoeira reivindica reconhecimento olímpico.

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Ministério do Esporte, sem dúvida alguma, possibilitará a inclusão desta que foi considerada o maior fenômeno cultural urbano brasileiro como mais uma modalidade do cenário esportivo mundial. Apesar das adversidades acima citadas, sobretudo, pela caracterização mercadológica relacionada à prática da capoeira, podemos destacar alguns pontos positivos como a inserção pela primeira vez na história dos jogos olímpicos de uma modalidade esportiva de origem negra, uma vez que, a capoeira seja de fato incluída no mais importante segmento esportivo internacional. Um outro aspecto muito interessante será a possibilidade real dos representantes dos órgãos públicos e do terceiro setor que lutam pela igualdade racial no Brasil, de se apropriarem de todas as vantagens possibilitadas pela divulgação promovida pela mídia nacional e internacional relacionada à capoeira. Neste sentido os diferentes grupos poderão trabalhar mais efetivamente no seio da sociedade a Lei 10.639 de 09 de janeiro de 2003 que altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Além disso, os grupos de atuação poderão desenvolver uma série de medidas vinculadas ao programa de Ações Afirmativas voltadas à população negra no Brasil trabalhando mais significativamente valores identitários desta população em especial. Certamente, os resultados positivos ou negativos desse possível acontecimento só poderão ser medidos e avaliados através do tempo.

1.4 – CAPOEIRA COMO ARTE – A ESTÉTICA DA CAPOEIRA

Inúmeras pessoas no Brasil e no mundo, praticantes ou não da capoeira, constantemente devem indagar-se a respeito dessa curiosa manifestação que recebe várias classificações e que geralmente se altera dependendo do tempo, espaço, grupo e território que ocupa. Em alguns momentos para um determinado grupo ela é luta composta de defesa e ataque, em outras situações ela será representada por um jogo, rica em ludicidade e entretenimento, e em uma outra região com outro grupo de pessoas esta manifestação passa a ser espetáculo. No entanto, em todos os momentos, independentemente da região ou do grupo em evolução, ela será sempre referendada pela dança. Como uma única expressão

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corporal pode ser tão rica e versátil? A pergunta que indaga a todos é: que luta é essa que se manifesta através da dança? Que luta é essa que se desenvolve dançando e que vem encantando uma legião de admiradores? Quando refletimos fria e calculadamente, fica muito difícil aliar luta ou combate à dança. A resposta provavelmente já está contida na pergunta. É justamente a dança o que indubitavelmente faz da capoeira uma manifestação popular detentora de uma estética própria. É desconhecido o fato de um capoeirista, ou um aprendiz de capoeira, entrar na roda sem, preliminarmente, passar pelo ritual da ginga. Na verdade essa será a primeira lição que qualquer pessoa envolvida no universo da capoeira irá aprender. Composta por essa ginga exageradamente cheia de movimentos que, logo ao se iniciar, embala o capoeirista, assim como o pescador pelo balanço do mar, é que, pra lá e pra cá, vão se revelando os poderes do corpo, numa teia de espontaneidade, improviso, ousadia, relaxamento, além de uma luminosidade que não pode ser conhecida, apenas vivenciada, experimentada. No contexto estético a capoeira, isto é, este fenômeno cultural, que através da expressão transmite aqueles que a observam uma estética gestual que supera as barreiras da performance motora, possibilita uma dimensão magistral do gesto no campo da performance da arte. Certamente tal compreensão nos possibilita perceber o motivo pelo qual a capoeira se evoluiu através da dança, referendada é claro, no limiar da arte.

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1.5 - RITMOS, MOVIMENTOS E TEATRALIDADE - QUE LUTA É ESTA QUE SE FAZ DANÇANDO?

Figura 10 – Ginga e Mandinga Figura 11 - Cia. de Dança Parson - Foto: autor desconhecido Curvas e Saltos – Foto: autor desconhecido Fonte: www.steadyhealth.com Fonte: globo.com

Figura 12 – 360° Figura 13 – Pilastra Foto: autor desconhecido Foto: Erivan Moraes Fonte: www.wordpress.com Fonte: www.olhares.aeiou.pt

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Figura 14 –Gravitat Figura 15 - Aterrissagem Foto: Autor desconhecido Foto: Isabel Gouveia Fonte: fabcapu.zip.net Fonte: www.atarde.com.br

Figura 16 - Energia Eólica Figura 17 - Compasso Foto: autor desconhecido Foto: Autor desconhecido Fonte: www.edu.research Fonte: www.ballet.com.uk

Figura 18 – Zéfiro Figura 19 – Zéfiro I Foto: Reinaldo Cordeiro Foto: Autor desconhecido Fonte: www.jornale.com.br Fonte: www.blogspot.com

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Figura 20 - Vita Figura 21 - Rota Foto: autor desconhecido Foto: Autor desconhecido Fonte: www.gettorock.com Fonte: www.atarde.com.br

Qualquer pessoa, que detenha o mínimo de informação sobre a capoeira, concorda que esta expressão multifacetada é composta por uma estética própria, justamente por ela possuir princípios técnicos que a qualificam como tal, diferentemente de outras expressões da cultura artístico cultural. Para o pesquisador argentino Alehandro Frigério a capoeira de Angola possui uma estética própria, entre outros motivos, por esta ser detentora de elementos significativos como: movimentos bonitos, harmonia, perfeito controle do corpo, gestualidade envolvente das mãos e braços e ginga mais dançada numa cadência geral dos movimentos (FRIGÉRIO, 1989, p.3). Assim como no Candomblé que pertence à tradição oral, o ritual na capoeira também é muito valorizado no jogo da Angola. Reconhecer os gestos certos, os movimentos precisos e a simbologia do jogo dentro de tempos e espaços determinados configura de fato uma outra característica estética dessa luta arte. Um outro ponto que merece destaque para o pesquisador argentino é o fato de muitas pessoas, erroneamente, considerarem a teatralidade, um dos aspectos estéticos mais importantes da capoeira Angola, como algo meramente folclórico (FRIGÉRIO,1989, p.4). Para ele, o disfarce, elemento pertencente à teatralidade, é composto por movimentos e gestos que representam medo, alegria e que convida o adversário à luta. Neste sentido, é a teatralidade que faz dessa luta uma representação, isto é, é o elemento de fusão entre jogadores e espectadores, uma vez que, essa característica estética está presente nos dois mundos, isto é, o de dentro e o de fora da roda.

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A partir desta estética, composta por todos os elementos acima mencionados, é que a capoeira vai constituindo o sujeito e, dentro da experiência vivida por cada indivíduo, isto é, a sua maneira, todo esse aprendizado é traduzido em valores que irão enfatizar a esperteza do corpo. O reconhecimento da técnica é de extrema importância, no entanto, os paradigmas do capoeirista devem obedecer a uma poética do movimento, onde corpo e mente se complementam, possibilitando ao capoeirista uma experiência artística.

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V – RODAS DE CAPOEIRA E RESISTÊNCIA: A EXPERIÊNCIA DA CIDADE DE DUQUE DE CAXIAS

1.1 - A EXPERIÊNCIA LOCAL DA CIDADE DE DUQUE DE CAXIAS

Ainda no período da Ditadura Militar no Brasil, mais especificamente no final da década de 60, algumas cidades brasileiras foram consideradas Áreas de Segurança Nacional. No ano de 1971 o Município de Duque de Caxias sofreu intervenção militar sendo considerada uma daquelas áreas. Por onze anos, isto é, de 1971 a 1982, o que valia era a interferência do governo militar na administração desse município. Os prefeitos eram interventores militares, o que obviamente, cerceava ainda mais, a liberdade da população de Duque de Caxias. Apesar de ser reconhecida como “luta brasileira” desde 194166 e como atividade desportiva pelo Conselho Nacional de Desportos67 1972, os praticantes da capoeira ainda carregavam um estigma imputado a eles desde o século XIX, isto é, ainda eram tratados como “marginais”, “vadios” e “vagabundos” em todo o território nacional pelos órgãos de repressão social da época. Em 1972, incentivado por parte da Confederação Nacional de Capoeira, instituição controlada por militares de alta patente, foi criada uma Portaria que passou a vigorar em 1° de janeiro de 1973 e permitiu o surgimento de associações de capoeira, possibilitando assim a prática da luta em academias. Era necessário controlar aquele “bando de malandros68 que viviam de pernas e braços para o ar praticando a luta dos crioulos escravos”. A criação da CNC foi uma estratégia utilizada para não perder os capoeiristas do foco de investigação dos órgãos militares. Qualquer movimento realizado em lugar público, era motivo de alerta, fazia-se necessário o controle social do governo militar, sobretudo as manifestações populares. Na tentativa de controlar, identificar e cadastrar os capoeiristas, através da CNC foi realizado o Encontro Nacional de Capoeiristas na cidade do Rio de Janeiro69. Muitos deles filiaram-se à Federação de Pugilismo e passaram a portar

66 Lei Federal 3.199 de 1941. 67 Deliberação 071 do Conselho Nacional de Desportos. 68 Denominação comum utilizada pelos militares para identificar os capoeiristas. 69 Este encontro foi realizado no Campo dos Afonsos, Vila Militar – e reuniu, com toda estrutura oferecida pelas Forças Armadas capoeiristas de todo o país e nele foram criadas algumas das

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documentos de federados, podendo exercer funções semelhantes às de professores de Educação Física. A partir desse controle, foi determinado que apenas as associações e academias cadastradas poderiam difundir a prática da capoeira, além de limitar a sua instrução aqueles mestres que haviam sido cadastrados no Encontro Nacional de Capoeira de 1972. Certamente, a cidade de Duque de Caxias, seguiu à risca a nova determinação, o que possibilitou a institucionalização da luta com o surgimento de academias e associações. Muitos capoeiristas, a partir da institucionalização, puderam instalar-se em academias de Duque de Caxias, ou da Zona da Leopoldina,70 ou criando associações. Apesar do controle por parte do regime militar, é extremamente importante salientar que alguns praticantes da cidade de Duque de Caxias, na contramão da institucionalização, preferiram introduzir os fundamentos da capoeira em sua forma original, mantendo-se à margem do controle social determinado pelos generais, o que gerou muita preocupação e sofrimento, como perseguição, prisão, tortura, além dos praticantes serem vistos como subversivos. Certamente, o preço pago pelos capoeiristas considerados subversivos foi alto, tudo isso pode ser constatado nas buscas e autuações sofridas pelos mestres como por exemplo: a quase prisão de Waldir Salles71 por vadiagem, o que foi impedido pelos Mestres Zé Pedro e Mentirinha (este último provou ser do Conselho Nacional de Educação Física), além das inúmeras perseguições sofridas pelos Mestres Russo72, Gegê e Levi nas rodas que freqüentavam. A partir de 1974, seguindo as orientações dos militares, surgiram algumas academias na cidade, entre elas destacamos a de Josias da Silva73, localizada num

determinações que regem o funcionamento das Federações, associações e graduações de capoeira até os dias atuais. 70 Nesta época destacava-se a Academia Guaiamuns e Nagôs, em Bonsucesso, onde atuava o Mestre Artur Emídio. 71 Waldir Salles, Mestre Salles, dono da Academia Salles, que funcionava na Avenida Nossa Senhora das Graças, 1.102 – Centro – São João de Meriti, local que iniciou vários capoeiristas da Baixada Fluminense. Foi aluno de Artur Ermídio e atualmente reside em Minas Gerais. Em sua academia havia a inscrição que dizia que quem entrasse para jogar capoeira e dissesse que nunca havia apanhado era um mentiroso. 72 Jonas Rebelo, nascido em 1956 no bairro da Penha – Rio de Janeiro que se tornou amplamente conhecido pela prática da capoeira. 73 Esta academia foi criada em 1974 e funcionava na Associação de Imprensa de Duque de Caxias/Associação Fluminense de Imprensa, no subsolo do Shopping Center.

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centro comercial denominada “Shopping Center de Duque de Caxias”74, na Associação de Imprensa. Entre seus alunos merecem destaque Raimundo75, Cobra Mansa76, Jurandir77, Camaleão e Monge.78 Todos os esforços do Mestre Josias em manter a Academia em funcionalidade perdurou até os anos oitenta, quando por problemas financeiros, sem condições de manter o aluguel e o pagamento dos instrutores, foi obrigado a fechar as portas. Existiram outras academias como a Líder79, a Estilo80 e a Zum-Zum- Zum81, também de grande importância para a difusão da capoeira. Esta última foi criada em 1971 e já contava com a colaboração de Durão, Silva, Lessa, Quinho, Daniel, Barba Branca, Barbarral, Paulo Brasa e Rubens. Por ela também passaram Moraes82, Rogério83, Levi, Pedrinho84, Russo, Marcos85 entre outros. Como em toda a história da capoeira, os ânimos e conflitos, não se desenvolveram diferentemente em Duque de Caxias, onde facilmente podiam ser percebidas as diferenças, sobretudo, entre os capoeiristas federados e aqueles que optaram em viver na clandestinidade. Havia também muita rixa e divergência devido às questões ideológicas, e geográficas, como por exemplo, entre 1976 e 1977 quando a Academia Zum-Zum-Zum recebeu alguns capoeiristas da região da Leopoldina da cidade do Rio de Janeiro, já federalizados e com uma visão marcial de sua prática, comportando-se de forma superior na tentativa de desmobilizar os capoeiristas da Baixada. Entre eles destacavam-se Touro e Corisco, ambos da Penha que possuíam um jogo extremamente violento.

74 Um aglomerado de pequenas lojas, onde funciona uma das três rodoviárias existentes na cidade. Possui esse nome desde a sua fundação, no entanto não segue os modelos arquitetônicos do que reconhecemos hoje como Shopping Center. 75 Mestre Raimundo atualmente mantém sua roda no Shopping de Santa Cruz da Serra e coordena o Grupo Vermelho. 76 atualmente está em Washington – EUA, e coordena a FICA, Federação Internacional de Capoeira Angola. 77 Atualmente Jurandir reside na Califórnia. 78Aldecy de Oliveira, Mestre Monge, é considerado uma referência da capoeira em Duque de Caxias. Podemos considerá-lo um ativista dessa manifestação da cultura popular, ligado ao Grupo Vermelho, Mestre Monge mantém sua roda na Sociedade Musical e Artística Lira de Ouro. 79 A Academia Líder localizava-se na Praça do Pacificador ao lado do Cine Santa Rosa. 80 A Academia Estilo funcionava na Rua Nilo Peçanha na esquina com a Rua José Veríssimo. 81 Academia Zum Zum Zum,, pertencente ao Mestre Barbosa, funcionava no Center Clube. 82 Mestre Moraes, que residiu por um período na casa de mestre Barbosa e atualmente reside na cidade de Salvador, criou o Grupo Capoeira Angola do Pelourinho. Foi um dos maiores incentivadores para que os mestre da cidade se apresentassem no exterior. 83 Mestre Rogério reside na Alemanha. 84 Mestre Pedrinho reside no México. 85 Mestre Marcos atualmente está afastado da capoeira e se dedica ao comércio.

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Apesar de todos os esforços empregados pelos generais do governo militar na tentativa de controle social, foi surpreendente a coragem e a determinação de muitos praticantes da capoeira da cidade de Duque de Caxias. Essa resistência podia ser caracterizada ora por questões ideológicas, uma vez que eles acreditavam que a capoeira não deveria perder a sua essência, ou seja, aquela originada no século XIX praticada pelas maltas, negros forros, libertos e escravizados, ora, por falta de condições financeiras e não possuírem posses para frequentar uma academia, sob essas condições muitos deles continuavam utilizando as praças, ruas e as festas populares para se reunirem e ao som dos berimbaus, atabaques e pandeiros para realizarem suas rodas. Uma ocasião muito valorizada pelos capoeiristas “vagabundos” de Duque de Caxias era a Festa de Santo Antonio, quando acontecia a Feira da Comunidade. No meio de tanto movimento e transeuntes, longe das vistas da repressão, era comum a realização das rodas na atual Rua Manoel Telles ou nas adjacências da Igreja. Independentemente da Festa de Santo Antônio, os capoeiristas utilizavam uma estratégia para despistar a busca militar, e consequentemente, evitar a repressão. Eles não possuíam local certo para a roda, geralmente variavam as ruas e praças, além disso, alguns deles costumavam utilizar a identificação de militar, federado ou associado de alguns praticantes ou simplesmente “agradavam” os repressores recolhendo entre eles um pequeno valor em dinheiro para repassar aos policiais. Apesar de todas as estratégias utilizadas pelos capoeiristas, foi inevitável que alguns de seus praticantes, como Mestre Barbosa, Mestre Russo e outros fossem detidos pela força policial. Já a “Roda de Caxias”, após exaustivas investidas dos praticantes, recebeu a recomendação policial de só ser realizada aos sábados após as 20 horas com a justificativa de não atrapalhar o comércio. Devido às inúmeras divergências entre aqueles que se intitulavam “acadêmicos”86 e aqueles que preferiam a informalidade, a linguagem popular, e que rejeitavam a uniformização, surgiu nos anos 70 um racha entre os dois grupos, o que possibilitou o surgimento em 1973 da “Roda de Caxias” e, posteriormente, da formação do Grupo Cosmos de Capoeira.87. Não devemos esquecer entretanto que a cidade vivia uma intervenção, isto é, o “racha” entre os capoeiristas em Duque de

86 Capoeiristas que se reuniram nas academias com uniforme, padronização dos movimentos das cordas e dos graus, e que tinham composições de músicas ufanistas de exaltação ao regime militar e aos “heróis nacionais.” 87 Este grupo foi criado por Mestre Russo na comunidade do Parque São José.

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Caxias se deu em função das determinações do governo militar que tentava regulamentar a prática da luta, principalmente após o encontro realizado em Campo dos Afonsos. Antes da regulamentação, o ritual de reconhecimento de um novo mestre baseava-se na autorização ou no convite deste em participar de uma roda de confraternização com mestres mais antigos, ou pelo reconhecimento demonstrado pela valentia do indivíduo nas rodas. Após a regulamentação passa a prevalecer a graduação e o símbolo da troca de cordas, o que de fato possibilitou o controle mais rígido sobre os capoeiras provocando entre eles um dissenso e a obrigatoriedade de se buscar novos espaços de sociabilidade. Na contramão desse movimento recentemente criado pelos capoeiristas anti-academicistas, outros espaços passaram a abrigar as rodas como, o Clube Recreativo Caxiense e o Center Clube, ganhando destaque no contexto da capoeiragem. Em 1974 foi criada a Academia Josias da Silva e na mesma época surgiu o Grupo Feitiço88. Nos anos 80 Mestre Levi criou a Casa do Engenho, Mestre Raimundo reorganizou o Cruzeiro do Sul que depois passou a denominar-se grupo Vermelho além do já citado Grupo Cosmos, criado por Mestre Russo. Mestre Gegê, após organizar vários rodas e grupos informalmente, registrou em 1997 a Associação Maragojipe de Capoeira. O Grupo Feitiço foi formado basicamente por alunos oriundos da Academia do Center Club, muitos desses integrantes pertenciam também à “Roda de Caxias”89. Por atuarem nas ruas e praças da cidade eram constantemente provocados por capoeiristas de outras regiões e incomodados pelas forças de controle social. Nas rodas realizadas por este grupo havia muitas contendas entre eles e os capoeiristas da Zona da Leopoldina. Muitos de seus membros tiveram como destino a 59ª Delegacia de Polícia ou o 15° Batalhão da Polícia Militar. No início os participantes combinaram que a roda deveria ser realizada aos sábados. A princípio ela foi assumida por Mestre Russo e por Mestre Marcão e, eventualmente, por Mestre Levi.

88 Este grupo foi formado por capoeiristas que se iniciaram no Center Club e segundo relatos entre eles ocorriam muitos conflitos. 89 Esta “Roda”, desde sua criação, é realizada na Praça do Pacificador.

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Segundo Mestre Russo a roda coordenada por ele sofria perseguição daqueles praticantes cooptados pelo sistema acadêmico, composto particularmente pelos capoeiristas filiados à Confederação de Pugilismo do Rio de Janeiro, que queriam a prática de uma forma organizada, com uniforme, cordas e outras indumentárias estabelecidas no encontro de Campo dos Afonsos. Enquanto que, na “roda livre” as pessoas poderiam participar da forma que quisessem. Na opinião de Russo, os Mestres Bambada e Josias eram contrários à capoeira de rua. A Casa do Engenho tem sua origem ligada à Associação de Capoeira Cruzeiro do Sul, fundada nos anos 70, sediada no Rio de Janeiro e comandada por Mestre Khorvo. É importante ressaltar que essa influência originou-se diretamente da relação entre Mestre Levi e Mestre Khorvo, este último foi aquele que iniciou Levi no universo da capoeira. Além de Levi, Mestre Khorvo foi responsável pela formação de outros capoeiristas como Luiz Lua, Khorvinho, Amarelinho, Montana, Marlon. Em 1986 o saudoso mestre responsável pela iniciação de importantes nomes da capoeiragem falece e, em sua homenagem, dez anos após a sua morte, em 1996, Levi cria a Associação de Capoeira Casa do Engenho. Certamente, a proposta de Mestre Levi, assim como a de muitos outros mestres que priorizavam a capoeira como a mais autêntica herança deixada pelos antepassados, assume a postura de permitir a prática dessa reconhecida manifestação cultural a todos aqueles interessados, sem distinção de cor, raça, gênero ou credo. Para Levi primeiramente era necessário permitir a inserção do indivíduo nesse universo e, posteriormente conscientizá-lo de que sua permanência como praticante deveria durar o máximo de tempo possível, sempre em busca da perfeição, até o indivíduo atingir o ponto de ser considerado mestre pela comunidade que o apoiasse. Esse era o grande diferencial e consequentemente, a característica marcante da Associação Casa de Engenho, que seguia piamente a máxima do pensamento daquele que foi a referência de Levi, Mestre Korvo, “a capoeira se faz com o tempo, e esse tempo vai demorar”. Desde a sua criação as rodas da Associação Casa de Engenho são realizadas sempre no primeiro sábado do mês, uma representação fiel da capoeira de Angola, às 20 horas na Praça da Emancipação, conhecida popularmente como Praça do Relógio. O trabalho realizado por Mestre Levi possibilitou a formação de alguns mestres como: Mucunguê Baiana, Leopoldina, Anzol, Travassos e muitos outros. Nos anos 70 alguns espaços da Cidade de Duque de Caxias, tornaram-se espaços de grande relevância no contexto da capoeiragem, isto é, foram espaços

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que garantiram a troca de experiência e a sociabilidade entre os capoeiristas. Entre aqueles mais frequentados, merecem destaque a tradicional Praça do Pacificador, o Bloco Carnavalesco “Sai Como Pode”, com sede localizada no bairro Centenário, o “Morro de Leão” e o “Bar Berimbau”90, este último, após a realização das rodas, era considerado o espaço predileto onde os capoeiristas conversavam, descontraíam, bebiam cerveja ou cachaça, petiscavam e, obviamente, falavam dos acontecimentos mais recentes da última roda. Um dos freqüentadores mais assíduos era o Mestre Dentinho. Fora de Duque de Caxias os espaços de sociabilidade dos capoeiras eram os arredores da Igreja da Penha, Bonsucesso, Cinelândia, Quinta da Boa Vista, Central do Brasil e a região das Docas, a estiva. Foi ali que Barbosa e Gegê tornaram-se amigos de Mestre Leopoldina. Algumas dessas rodas, de certa forma, tornaram-se fonte de renda dos capoeiristas. Essas trajetórias percorridas entre um lugar e outro, marcaram alguns capoeiristas como andarilhos.

Figura 22 – A Geografia da Capoeira na cidade do Rio de Janeiro Fonte: CIDE - Elaboração: Joana Lima Não podemos deixar de mencionar a relevância das rodas de rua como referência de formação moral, espaços de educação não-formal e de ascensão social na experiência local da cidade de Duque de Caxias com a Capoeira.

90 Este bar localizava-se na Avenida Plínio Casado, próximo ao atual Mercado do Produtor, no prédio que abrigava o Supermercado Champion.

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Certamente, alguns fatores fazem-nos perceber claramente a importância do espaço público como espaço de perpetuação de troca de saberes e aprendizado. Neste sentido, podemos considerar como valor preponderante naquele momento a transformação da capoeira em produto, com o surgimento das academias que, a partir da prática de preços mais elevados, acabaram por segregar muitos jovens simpatizantes da luta/arte. Um outro fator que pode ser considerado significativo foi a falta de incentivo por parte do poder público local que nunca reconheceu a capoeira como manifestação cultural, além da comum comparação entre capoeira e candomblé, sobretudo numa população que despontava para a crescimento do protestantismo, apenas para citar alguns fatores. De certa forma as rodas de rua, ao incorporarem praticantes que não queriam ou não eram aceitos nas academias, contribuíram para manter algumas de suas tradições culturais tais como a escolha das madeiras para confeccionar os berimbaus, a tradição oral dos Mestres, os rituais de iniciação e de passagem e a solidariedade de seus Mestres. Este último aspecto fica bastante visível nos relatos dos Mestres da cidade quando recordam que, na roda feita na Praça do Pacificador,91 foram várias vezes enfrentados pelos praticantes de capoeira que vinham da Zona da Leopoldina para simplesmente acabar com as rodas ou manter uma contenda. Na década de 70 ficou acertado entre os praticantes da capoeira que cada Mestre assumiria a roda por um sábado. Mestre Levi escolheu o primeiro sábado e Russo a assumiu aos domingos. Mestre Nogueira levou sua roda para Campos Elíseos. Gegê, que era funcionário da FIAT, antiga FNM, passou a realizar uma roda dentro da Fábrica em Xerém e outra em Jardim Primavera. Posteriormente Gegê teve o apoio do diretor do Colégio Barão de Mauá, também em Xerém, para ali realizar uma roda. Dos Mestres que se iniciaram nas rodas de Duque de Caxias destacam-se: Branco, Medeiros, Ailton, Angoleiro, Angolinha, Anizia, Bahia, Bambada, Barba Rala, Borracha, Caiçara, Caita, Camaleão, Daniel Advogado, Dudu, Esquilo, Fininho, Gato, Gol, Índio, João de Piabetá, Jorge, Jorge Coca, Julinho, King, Luete, Maguila, Manoel Bom Cabelo, Manuel Jurandir, Marcos Negão, Naval 92, Nelsinho,

91 Sobre a Praça ver material desta série. 92 Alexandre dos Santos Costa, graduado em Educação Física, atua como professor da rede pública estadual.

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Nilton, Nogueira, Pantera, Paulo Brasa, Peixe, Pelé, Pitter, Popota, Porte, PQD, Luizão, Pita, Sapateiro, Serra Pelada, Silvan e Silvani Canuto Lemos 93, Silvio Azulão, Tinandu, Velho, Zumbi. Nos anos 80 muitos mestres e praticantes de capoeira instalaram-se em áreas afastadas do centro da cidade e lá mantiveram a tradição. Dentre eles podemos destacar Mestre Ganga Zumba94 que atuava em Santa Cruz da Serra e Jorge Coca, seu aluno, que atuava em Frango Dourado e Santa Cruz da Serra. A partir do final da década de 80, com a distensão política no país que repercutia na cidade e com o surgimento de novas discussões sobre a cultura brasileira, houve um maior entendimento entre os mestres e uma maior identificação da população com seus locais de atuação. No início da década seguinte com a abertura democrática, com as novas discussões trazidas pelo movimento negro, pelos movimentos culturais e ativistas da cultura atenuou-se o preconceito e reduziu- se a ação policial. As rodas de Duque de Caxias passaram a exportar vários mestres, a “Roda de Caxias” e a “Roda da Casa do Engenho”, realizadas na Praça do Relógio, passaram a exercer forte atração sobre a população. O meio acadêmico universitário contribuiu para diminuir a estigmatização, e a abertura destes espaços tornou-se, para muitos mestres, uma forma de reconhecimento. Tudo isso possibilitou a valorização do Mestre e, consequentemente o seu empoderamento diante de seu conhecimento prático, baseado numa memória viva, isto é, a tradição oral. A participação de vários capoeiristas nas filmagens do filme “Quilombo” aparece freqüentemente nas memórias dos Mestres como auto-reconhecimento da cultura da capoeira, com destaque para a presença de Ganga Zumba, que atuava na região de Santa Cruz e frequentemente é relacionado à violência institucional na cidade. A presença de muitos deles na apresentação de um espetáculo no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, no desfile da Escola de Samba Mangueira, que tinha como tema a capoeira, o lançamento do CD “Velha Guarda da Capoeira”, ao final da década de 90 em Duque de Caxias, e o encontro de capoeiristas, realizado no

93 Filhos de Santos Lemos, foram alunos de Mestre Barbosa e não chegaram a se formar em Mestres. Envolvidos com a criminalidade, eles acabaram presos e mortos. Santos Lemos foi repórter que trabalhou para os jornais “Última Hora” e “Luta Democrática”, exerceu os cargos de escrivão e delegado, formou-se em Direito e foi um dos fundadores da Academia Duquecaxiense de Letras e Artes, participou da União Brasileira de Trovadores e da Sociedade e Cultura Artística de Duque de Caxias. 94 Nascido em Minas Gerais chegou a Duque de Caxias vindo de São Paulo. Era policial civil e atuava como segurança. Morreu assassinado.

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Teatro Procópio Ferreira – Câmara Municipal de Duque de Caxias – são outros fortes e significativos sintomas desta nova fase da capoeira na cidade. Foi naquele período que muitos capoeiristas da cidade se fixaram no exterior. Outros Mestres se fixaram em outros estados brasileiros, como Moraes95 e Angoleiro na Bahia, o que lhes possibilitou uma nova configuração. Muitos mestres iniciaram suas práticas nas rodas de Duque de Caxias e estão hoje dando a “volta ao mundo”. No início do novo milênio os mestres de Duque de Caxias ganharam o mundo, sendo convidados a se apresentar em várias cidades do Brasil e do exterior. A “Roda de Caxias” tradicionalmente no mês de agosto recebe visitantes de várias partes do mundo. A roda do Mestre Levi, na Praça do Relógio, manteve a tradição da capoeira na cidade, uma autêntica representação da luta perpetuada por Pastinha, assim como a roda do Mestre Russo, ambas ganhando visibilidade significativa. O poder público local passou a promover algumas ações que contemplam alguns Mestres, mas, que ainda não se transformaram em políticas públicas. Destacamos algumas ações promovidas pelo Governo Federal muito recentemente e que tem possibilitado a difusão e a fruição da capoeira na cidade de Duque de Caxias, como:

• Aprovação do Projeto Ponto de Cultura – Sociedade Musical e Artística Lira de Ouro em 2006 (Primeiro Ponto de Cultura na Cidade de Duque de Caxias); • Aprovação do Projeto Capoeira Viva em 2007; • A criação da Liga Municipal de Capoeira em 2008; • A realização do Encontro Regional de Capoeira e apresentação da peça “Água de Beber” no Teatro Raul Cortez em 2008; • O desenvolvimento da Ação Griô96 pelo Ponto de Cultura Lira de Ouro; • O lançamento do filme “O Zelador”; • A Realização pela TV Brasil da filmagem do grupo de capoeira comandado por Mestre Monge no Ponto de Cultura Lira de Ouro.

95 Mestre Moraes residiu por certo tempo na casa de Mestre Barbosa. Fixou-se na Bahia e criou o Grupo de Capoeira Angola Pelourinho. 96 Griô - sujeitos que adquiriram conhecimentos de antepassados e os repassam contando estórias.

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O meio acadêmico voltou o seu olhar também para estas rodas e seus mestres tornando-os objetos de pesquisa e convidando-os a se apresentarem como palestrantes em diversos encontros. No exterior muitos deles se radicaram na Califórnia, em várias cidades da Europa, principalmente em Londres, Madri, Lisboa e Paris, e na Austrália. Nestas cidades os mestres ingressaram em universidades e academias para lecionarem sobre a arte da capoeira.

1.2 – OS MESTRES E SUAS FAÇANHAS - PATRIMÔNIO VIVO NA CIDADE DE DUQUE DE CAXIAS

De acordo com registros mais antigos encontrados nos escritos do cronista Santos Lemos, identificamos referências à capoeira neste município a partir da década de sessenta. As referências de Santos Lemos à capoeira foram confirmadas no I Encontro de Capoeiragem de Duque de Caxias97 pelos mais antigos praticantes dessa expressão da cultura popular, isto é, Mestres Barbosa, Gegê e Levi. O trabalho exaustivo produzido por esses mestres mais antigos, possibilitou a formação de muitos outros mestres, contramestres, e simpatizantes, além da difusão dessa prática, o que possibilitou o reconhecimento da Capoeira de Duque de Caxias como referência mundial. Neste sentido merecem destaque: • Mestre Barbosa98 - como José Barbosa da Silva. Nascido em Recife no ano de 1945, como quase todo o nordestino de sua faixa etária, foi para São Paulo com 12 anos de idade na tentativa de uma vida melhor, o que provavelmente não aconteceu. A Trajetória da vida em busca da felicidade o conduziu aos 19 anos a cidade de Duque de Caxias em 1964. José Barbosa instalou-se na “Casa dos Padres” 99 na Vila São Luiz e trabalhou no bairro Copacabana na cidade do Rio de Janeiro, onde conheceu Arthur Ermídio. Com esse novo amigo, Barbosa aprendeu o ofício de colocador de papel de parede, além de ter sido iniciado naquela que seria a sua referência de vida: a Capoeira. Após o seu longo envolvimento com a capoeira, e já considerado mestre pela comunidade dos capoeiristas, Barbosa passa a atuar como mestre em espaços de formação de capoeiristas como as Academias

97 Este encontro foi realizado em abril de 2007 na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Duque de Caxias e foi patrocinado pelo Ministério da Cultura através do projeto Capoeira Viva. 98 José Barbosa da Silva, Mestre Barbosa, o capoeirista mais antigo de Duque de Caxias e Mestre da Tradição Oral - da Ação Griô Nacional. 99 Esta casa se localiza na Rua Muriqui – bairro da Vila São Luiz.

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Líder100, Estilo e no Center Clube101. Em 1973, totalmente independente como mestre e cidadão, Barbosa inaugura a sua própria academia, a Zum-Zum-Zum, com o objetivo de se dedicar unicamente à capoeira, isto é, na Zum Zum Zum respirava- se capoeira, a academia era a única a dedicar todos os seus horários ao ensino da capoeira. Para aprender outra luta, o indivíduo deveria procurar outra academia. Segundo relatos, em 1967, Barbosa foi o primeiro capoeirista a realizar rodas de rua, sendo o Mestre Dentinho102 o primeiro a freqüentá-la. Tradicionalista não permitia que se praticasse capoeira sem camisa. Juntamente com Waldyr Salles e Travassos entrou no Livro Guiness. Tem como referencia os Mestres Leopoldina e Mario da Bonfim.

• Mestre Gegê 103 – batizado como Geraldo da Costa Filho, nordestino assim como Mestre Barbosa, oriundo de Maragojipe, cidade baiana, foi aluno de colégio interno onde estudou música e aprendeu a profissão de torneiro mecânico. Em 1964 Geraldo Costa desembarca na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Apaixonado pelo esporte desde cedo esse baiano desejava ser jogador de futebol. Aos quinze anos, Geraldo já apresentava um biotipo de jogador de futebol acompanhado de sua mãe, sua eterna incentivadora, apresentou-se ao Clube de Regatas do Botafogo, mas sua história com o futebol não rendeu muitos frutos. O adolescente Geraldo assim como muitos nordestinos, no ano seguinte instalou-se definitivamente na cidade de Duque de Caxias, juntamente com seu irmão104 Jorge Negreiros da Costa, também capoeirista, no Bairro do Pilar e depois de um tempo mudou-se para o bairro Gramacho também em Duque de Caxias. Em 1978 entrou na Marinha do Brasil atuando como torneiro mecânico. Foi transferido para Brasília e outras cidades brasileiras. Com a capoeira a trajetória do menino Geraldo foi travada ainda na Bahia com sete anos de idade, na praia de São João, que hoje tem uma feira com o mesmo nome, Geraldo Costa travou contato com Mestre Sete. Passados alguns anos e algumas histórias, em 1968 Geraldo passa a freqüentar, no bairro de

100 A Academia Líder foi criada em 1954 e seu nome está ligado a uma fábrica de sinuca e a um cinema que tinham este nome e pertenciam a sua família. Ela se localizava na Avenida Presidente Kennedy, em frente à Fortaleza de Tenório Cavalcanti onde atualmente está localizada uma rodoviária e depois foi transferida para a Rua José de Alvarenga. Ela pertencia a “Seu” Antonio, baiano, incentivador da capoeira na cidade. 101Funcionava na Rua Tenente José Dias onde atualmente está instalado um templo da Igreja Universal. 102 Alcino de Oliveira, Mestre que residia na Penha. 103 Geraldo da Costa Filho, Mestre Gegê, Graduado em História e Especialista em História Social do Brasil, Membro do Conselho Superior da Confederação Brasileira de Capoeira e da Federação Internacional de capoeira, Registrado no Conselho Regional de Educação Física. 104 Seu irmão foi aluno de Mestre Pastinha e passava conhecimento a quem o procurava. Formou-se em Matemática e retornou à Bahia onde é professor universitário.

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Pero Vaz – Salvador, o terreiro dos Mestres Waldemar da Paixão e Traíra com quem aprendeu muito da manha da capoeira. Morou também no Largo do Tanque onde travou relações com Mestre Aberê. Em 1974 retorna ao Município de Duque de Caxias e ingressa na FIAT105. Nesta fábrica ministrou aulas de capoeira no antigo abrigo antiaéreo, fora do horário de expediente e sem autorização dos diretores. Através de seu irmão conheceu os Mestres Touro da Penha, Paulão, Silas e Khorvo, todos alunos de Mestre Mentirinha. Seu último Mestre foi José Pedro do Grupo Guaiamuns106. Sua participação num encontro ocorrido no Méier para selecionar os melhores capoeiristas da Zona Norte o levou a conhecer Cosme, Mestre de Judô. Esta seleção o qualificou, em 1976, a se apresentar no Colégio Barão de Mauá, em Xerém. Nesta Escola travou relações de amizade com Jonas e Josimar Pedrosa, diretor e vice-diretor respectivamente. Em 1974 criou o Grupo Maragojipe de Capoeira. Mestre Gegê tem trabalhado exaustivamente na difusão e fruição da capoeira na cidade de Duque de Caxias.

• Mestre Levi – batizado como Levi Tavares de Souza foi um dos principais alunos de Mestre Barbosa. Filho de ferroviário, Levi nasceu na cidade de Campos de Goitacazes. Durante a sua infância viveu na cidade de Macaé e depois, com 11 anos, chegou à cidade de Duque de Caxias instalando-se no bairro Pilar. O menino Levi passava horas contemplando os saltos e movimentos espetaculares de um praticante da capoeira conhecido por Jorge. Durante a sua adolescência, assim como o menino Geraldo (Mestre Gegê), Levi queria ser jogador de futebol, no entanto, era estimulado pelo seu pai a seguir a carreira de motorista de madame. Em 1968 aquele sentimento de encantamento pela capoeira guardado em sua memória, cheia de ludicidade, que inconscientemente reverenciava a luta a partir dos movimentos do capoeirista Jorge lá do bairro Pilar, ganha força e estímulo. Foi justamente nesse período que o jovem Levi travou conhecimento com Mestre Barbosa, que o inicia no contexto da capoeiragem, mais tarde esse conhecimento é transformado numa grande amizade, que perdura até os dias atuais. Levi freqüentou a Academia de Josias da Silva, onde conheceu Mestre Raimundo Filho uma referência da capoeira na cidade de Duque de Caxias. Praticou a capoeiragem nas academias Zum e a academia de Waldir Salles, onde conheceu Mestre Khorvo. Na

105 Antes de pertencer à FIAT esta fábrica pertencia primeiramente à Fábrica Nacional de Motores e depois à Alfa Romeo. Em 1982 ela foi fechada e transferida para Betim, Minas Gerais, deixando muitos funcionários desempregados. 106 Guaiamuns era uma das maltas de capoeira que controlavam as ruas do Rio de Janeiro no século XIX. A malta que lhe era oponente era a dos Nagoas.

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sua trajetória, freqüentou algumas academias da Zona da Leopoldina, tornando-se uma referência no jogo iniciado por Pastinha.

Mestre Russo Batizado como Jonas Rebelo, nascido em 1956 no bairro da Penha – Rio de Janeiro, filho de uma família de nove filhos conseguiu concluir seus estudos até o antigo ginasial. Atuou na Academia Líder, onde foi aluno do Mestre Crioulo e no Center Clube, onde foi aluno do Mestre Barbosa. Em 1975 foi vencedor da semifinal do Torneio Estadual de Capoeira. Nesta época foi um dos fundadores da “Roda de Caxias” onde atua até hoje como mestre responsável. Atuou por muito tempo como Bombeiro Brigadista, antes de se dedicar por completo à capoeira. É conhecido no meio da capoeira como o “Zelador” da Roda de Caxias. Em setembro de 2008 foi lançado o filme “O Zelador” que narra a sua trajetória e a da sua respectiva roda.

• Mestre Monge – batizado como Aldeci de Oliveira nasceu em 06 de julho de 1956. Foi iniciado na arte da capoeira em 1976. Em 1984 Monge participa de alguns espetáculos, ainda no mesmo ano integra o grupo “Oju Oba Axé”, além de eventos organizados pelo Mestre Suassuna. Em 1985 pelas mãos do Mestre Raymundo Filho torna-se Mestre. Eventualmente participa das rodas de capoeira promovidas por outros mestres como: Raymundo Filho, Levi e Russo. Atualmente vem desenvolvendo seu trabalho no Bairro da Vila São Luís, sendo um dos mais antigos Mestres de Capoeira de Duque de Caxias. Atua também como mestre da roda da Sociedade Musical e Artística Lira de Ouro, único Ponto de Cultura instituído pelo Governo Federal em Duque de Caxias, ministrando oficinas de capoeira para crianças e adolescentes.

1.3 - CAPOEIRA COMO RESISTÊNCIA: DESAFIO, LUTA E SUPERAÇÃO.

A história da capoeira como fenômeno cultural urbano, sobretudo no século XIX, viveu a sua essência na cidade do Rio de Janeiro. Apesar desta expressão da cultura popular vivida e experimentada por uma minoria, ora como dança, ora como luta, ora como jogo... a capoeira sempre esteve intrinsecamente ligada à história da formação da sociedade do Rio de Janeiro justamente pelo seu poder de determinar comportamentos, uma vez que sua prática foi difundida nos diferentes segmentos sociais vigentes. Todo o esforço exercido para coibir a prática da luta, principalmente a partir do início do século acima mencionado, de nada adiantava. Era muito comum a

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qualquer hora do dia, presenciar a evolução nas ruelas e becos enlameados ou escondidos da cidade aquela manifestação, considerada “coisa de bandido, marginal, vadios, muitas vezes utilizados para resolver diferenças, atingir desafetos, realizar vinganças, denominada capoeira” (SOARES, 2004, p. 37). Existem muitos mitos em relação à capoeira, daí a complexidade em compreender e identificar esse universo plural que permeia esta manifestação da cultura popular. Sabemos, entretanto que, depois do boxe, a capoeira é a modalidade de luta não oriental de maior projeção no Ocidente. Mas para chegar a este patamar de difusão não só pelo Brasil, mas pelo mundo afora, a capoeiragem passou por vários processos de identificação e re-significação de que já se ouviu falar. Mas o que falar de uma cidade que construiu um trabalho de resistência composta por uma população com uma história de identidade e memória bastante fragmentada? Levantamentos preliminares e observações não-sistemáticas indicam que a população de Duque de Caxias, hoje com aproximadamente 900 mil habitantes, não desenvolveu uma relação profunda de identidade com a região e, consequentemente, não conseguiu apropriar-se de uma identidade cultural. O sentimento da não-apropriação deve-se à desestruturação nas redes de sociabilidade cultural, além do crescimento no número de adeptos das religiões evangélicas e ainda, a desvalorização das tradições das Culturas Populares por parte do poder público local. Identificamos, um intenso decréscimo dos movimentos das Culturas Populares a partir de sua catalogação e registros em locais de guarda de acervo e de pesquisas107. Contraditoriamente, a Capoeira ainda possui um poder de resistência muito forte, quer pela tradição oral realizada incansavelmente pelos grandes mestres, nas rodas livres, nas feiras, nas escolas, nas praças, nos pontos de cultura quer em outros diferentes espaços de expressão artístico-cultural. Quando fazemos um paralelo entre Cultura Popular e o município de Duque de Caxias, percebemos imediatamente a relação intrínseca existente entre a capoeira e a história desta cidade. Neste sentido nos indagamos a que se deve tal peculiaridade?

107 Secretaria Municipal de Cultura; o Centro de Memória, Pesquisa e Documentação da História da Baixada Fluminense, o PINBA e o Instituto Histórico de Duque de Caxias.

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O Município de Duque de Caxias possui uma particularidade que, sob nosso ponto de vista, muito contribuiu para esta forte ligação com a luta dança. Certamente foi o trabalho de resistência empregado por muitos dos mestres que viveram nesta cidade, que favoreceu significativamente a difusão desta e consequentemente foram formados alguns dos mais importantes mestres da capoeira no cenário nacional, o que faz deste município um centro de referência da capoeira no Brasil e, por que não dizer, no mundo. Ao longo do tempo muitos estudos e observações foram estruturados tendo como base o conceito de “Cultura como Tradição”. Quando pensamos ou refletimos sobre Cultura, concluímos imediatamente que este é um processo que se recebe e se transmite. Se avaliarmos com um pouco mais de profundidade o tema, logo nos remeteremos a questões mais complexas como resistência, memória coletiva, relação dialógica e outros aspectos que estão diretamente ligados à Cultura como Tradição. Compreende-se por Resistência Cultural a ação responsável pela transmissão de valores culturais que conseguem ultrapassar uma série de obstáculos presentes ao longo do tempo. Tal ferramenta ao ser utilizada por um grupo social, quer como manifestação cultural, quer como forma de denúncia, permite que a capoeira consiga de fato se perpetuar por séculos, como uma das representações culturais de maior resistência e como responsável pela transmissão de conhecimentos e valores de nossos antepassados. Neste sentido tomemos como base o pensamento de Renato Ortiz, para ele:

“A memória de um fato folclórico existe enquanto tradição, e se encarna no grupo social que a suporta. É através das sucessivas apresentações que ela é realimentada. Isto significa que os grupos folclóricos encenam uma peça de enredo único que constitui sua memória coletiva, a tradição é mantida pelo esforço de celebrações sucessivas, como no caso dos ritos afro-brasileiros”. (ORTIZ, 1994, p.134) O pensamento de Renato Ortiz nos conduz à seguinte reflexão: quando pensamos em resistência cultural, automaticamente esta situação nos remete a três aspectos básicos que norteiam o objeto de estudo. Tal objeto está intrinsecamente ligado à Tradição, Memória e Identidade quanto à formação cultural do povo brasileiro. Baseados na afirmação de Ortiz podemos compreender que através dos ritos e manifestações, sobretudo aqueles remanescentes de uma minoria étnica, nos

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é permitida uma aproximação maior dos antepassados, isto é, nos lembra que a origem, enquanto procedência seja sistematicamente vivenciada. Ao citar o pensamento de Goffman108 “É na trama da interação social que o teatro da memória coletiva é atualizado”, Renato Ortiz confere à memória coletiva um papel de destaque quanto aos movimentos de resistência cultural. Tal atualização se dá mediante sucessivas manifestações que serão gradativamente assimiladas pelas pessoas, o que permitirá a construção de linhas de apropriação e pertencimento de uma identidade cultural. Certamente, a partir desta reflexão, podemos interpretar que o significado de memória coletiva deve necessariamente estar vinculado a um grupo social determinado. Na verdade, o mecanismo de conservação deste grupo social, neste caso específico, (mestres da tradição oral, aprendizes e simpatizantes da capoeira) está diretamente ligado ao ato de resistência deste grupo em relação à cultura dominante. Portanto, é através da contínua revificação dos ritos e manifestações dos antepassados que se dará a manutenção do grupo, o que caracteriza uma relação simbiótica entre o grupo social e Tradição, isto é, este processo de dependência existente entre ação e Tradição permitirá de fato a conservação das culturas populares como representação dos valores passados, enquanto prática que se manifesta no cotidiano das pessoas. “A memória popular (...) deve, portanto se transformar em vivência, pois somente desta forma fica assegurada a sua permanência através das representações teatrais”. (ORTIZ. 1994, p. 133) Num breve relato da trajetória da capoeira no Município de Duque de Caxias merece destaque o trabalho de vanguarda desenvolvido pelos Mestres Barbosa e Josias na década de sessenta, que contribuiu de fato para introduzir a arte da capoeiragem neste município. Coube a estes mestres a institucionalização da capoeira com a chamada Capoeira Acadêmica109. Além disso, quando pensamos na capoeira como manifestação de resistência e tradição, visando à valorização da cultura do negro e o seu papel na sociedade, não devemos esquecer da corajosa iniciativa de alguns mestres, que na década de setenta, rompendo com todos os conceitos e paradigmas de hierarquização e institucionalização desta, e seguindo os seus instintos de liberdade

108 I. Goffman, A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis. Vozes, 1975 109 A Capoeira ensinada nas academias e clubes.

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e valorização da tradição, inauguraram a roda de capoeira de rua mais tradicional do estado. Conhecida como “Roda Livre de Capoeira de Caxias”, apesar de inúmeras perseguições, conflitos diretos com a polícia, deflagrando lutas, derramamento de sangue, tortura e prisões, esta é até hoje, uma das expressões mais evidentes do reconhecimento e do sentimento de pertencimento110, símbolo da resistência, presenciada por todas as pessoas que passam no domingo à tarde pela Praça do Pacificador, no centro deste município, até os dias de hoje. As rodas de rua possuem um papel de grande destaque quando pensamos na capoeira enquanto elemento da tradição e da resistência, visto que, a partir de ações desta natureza, os praticantes que não aceitavam a capoeira acadêmica passavam a ver a capoeira de rua como um abrigo das suas necessidades socioculturais. Este processo facilitou a perpetuação da tradição oral exercida pelos mestres e griôs111 responsáveis pela capoeiragem livre. Nessas rodas a comunicação entre o mestre e os iniciados fluía seguindo uma linha lúdica e original. Isso permitia a sociabilidade de muitos jovens excluídos, sobretudo pelo poder público local, devido à precária oferta de aparelhos culturais, o que ainda é muito comum na Baixada Fluminense. Celeiro da capoeira no estado do Rio de Janeiro, o Município de Duque de Caxias consegue ser contemplado em sua totalidade por esta que é uma referência da Cultura Popular. Graças à atuação dos incansáveis mestres e colaboradores como: Ganga Zumba, Monge, Jorge Coca, Levi, Russo, Gegê, Raimundo e muitos outros, a população deste município tem acesso às mais variadas linguagens, ritmos, movimentos, gestos etc que compõem as diferentes linhas da capoeiragem. Na segunda metade da década de noventa, com a capoeira em plena difusão, percebe-se a construção de uma interface entre Duque de Caxias e o cenário internacional. Aqueles jovens que ingressaram na capoeiragem por volta dos 12 anos de idade, na década de setenta, começaram a alçar novos vôos, e muitos deles agora são representantes oficiais da capoeira no exterior. Neste sentido, destacamos Cobra Mansa (presidente da Confederação Internacional de Capoeira Angola) EUA, Jurandir

110 Por sentimento de pertencimento entendemos o “estudo e a análise dos elementos da sociabilidade, onde se incluem os modos de inserção social, as solidariedades territoriais e a variação das áreas de diferentes práticas, cujo objetivo é o de se definirem os espaços sociais concretos que compõem o espaço de integração global da aldeia”. (Costa, 2002, p. 42) 111 Griô é o “abrasileiramento” da palavra francesa griot, usada por jovens africanos que foram estudar em universidades francesas. Movidos pela preocupação com a preservação de seus contadores de histórias, que carregam consigo a tradição oral (“a morte de um griot representa um incêndio em uma biblioteca”) diziam os estudantes.

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- EUA, Rogério - Alemanha, Pedrinho - México, Peixe - Argentina e muitos outros (RUSSO. 2005, p.53,54) Hoje a capoeira é praticada em todos os continentes, e a

Cidade de Duque de Caxias ocupa um lugar de destaque neste contexto cultural.

Figura 23 – A Geografia da Capoeira no Mundo Fonte: CIDE - Elaboração: Joana Lima

1.4 – A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E OS SABERES POPULARES - A EXPERIÊNCIA LOCAL DA CIDADE DE DUQUE DE CAXIAS.

Quando pensamos no conjunto de saberes que possibilitam a criação das manifestações da cultura popular como o artesanato, o jongo, o bumba-meu-boi, a capoeira ou as diferentes maneiras de pescar, caçar, plantar, bem como a utilização de plantas como alimentos ou remédio, além de outros elementos do patrimônio cultural brasileiro como objetos históricos e artísticos, os monumentos representativos da memória nacional, ou os centros históricos, já consagrados e protegidos pelas instituições vigentes, não nos damos conta da importância de tais informações como elementos de extrema relevância para a formação da identidade e da memória de uma nação e, consequentemente do seu povo.

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É justamente neste contexto que introduzimos a importância da Educação Patrimonial como um processo permanente e sistemático de uma ação educacional centrada no patrimônio cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento do indivíduo e do grupo ao qual este pertence (HORTA et al, 1999, p.6) Infelizmente o Brasil ainda não desenvolveu uma linha sistemática de ação pedagógica voltada à inclusão da Educação Patrimonial no currículo escolar. Para a pesquisadora Lygia Segala, “nas escolas em geral, o tratamento das especificidades culturais brasileiras faz-se a partir de tipos idealizados consagrados no mito das três raças: o branco, o negro e o índio” (SEGALA. 2006, p. 107). Para a pesquisadora, a discussão sobre a forma como esses diferentes tipos étnicos se atualiza na história é extremamente deficiente. Ela indaga, por exemplo, sobre o conteúdo que é debatido no curso de formação de professores, ou o que mostram os livros didáticos sobre as sociedades indígenas, ou sobre as culturas ibéricas e africanas no país. Questionamentos como as experiências de deslocamento, fluxos migratórios e a dinâmica cultural desses variados tipos étnicos nunca são levantados. Na verdade, as questões mais relevantes nunca são discutidas, de modo geral os temas são abordados de forma muito superficial, oscilando as discussões em uma perspectiva de miserabilidade, sempre vitimando os atores da cultura popular, e ou posicionando-os num contexto romântico, como “cultura autêntica”, redentora, anunciadora, mas muito pouco valorizada” (SEGALA. 2006, p.108). Na verdade, o que mais importa é compreendermos o papel desses atores socioculturais na nossa história e na nossa formação. É fundamental entendermos as especificidades desses processos culturais, levando em consideração alguns aspectos como: Quem são esses sujeitos sociais que atuam em processos não institucionalizados? Quais são suas ações, seus pensamentos, seus saberes, suas criações e recriações? Muitas pesquisas foram realizadas na tentativa de compreender mais profundamente o universo da cultura popular com o intuito de formar as novas gerações numa consciência de brasilidade. Destaque deve ser dado para os trabalhos realizados por Amadeu Amaral e Mário de Andrade (SEGALA, 2006, p.108) no movimento folclórico dos anos 40 e 50. Neste período, muitos professores, distribuídos em todo o território nacional, foram convocados a participar dessa pesquisa cultural, através do levantamento de informações, com a responsabilidade de transmitir tais conhecimentos.

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Infelizmente essa prática de transmissão de conhecimento da cultura popular na escola obedecia a uma linha ideológica dominante como recurso didático para inculcar conteúdos como compilação de curiosidades brasileiras (SEGALA, 2006, p.108). Para piorar a situação, isto é, para cristalizar tal conteúdo, em 1965, dentro de um contexto militar onde a repressão política e cultural imperava, criou-se o Dia do Folclore, comemorado até os dias atuais, sempre no mês de agosto. Desde então, a cultura popular passou a ser celebrada como festa em data específica na escola, o que infelizmente permitiu a perda do interesse da escola neste campo de estudo. Na verdade, percebe-se que o folclore no meio escolar, desde o ensino fundamental até o médio, é utilizado como recurso didático ou divertimento. Para Segala, é preciso introduzir uma proposta de recuperação da história cultural brasileira nos currículos, nos projetos de pesquisa, nos trabalhos de sala de aula, abrindo a escola para esses saberes locais que compõem o cenário da cultura popular, sobretudo, se esses saberes fazem parte do cotidiano do lugarejo, da vila ou da cidade de nossas crianças e jovens. Algumas tentativas têm sido implementadas por algumas Secretarias de Cultura de algumas cidades e do Ministério da Cultura, que veem na cultura popular uma oportunidade de propiciar a realização de projetos de aprendizagem recíproca, de circularidade de saberes, recontextualização e ampliação do processo de produção de conhecimento. Um desses projetos de valorização dos saberes populares está sendo desenvolvido pelo Ministério da Cultura, através da “Ação Griô” que tem como objetivo principal a valorização dos velhos mestres da cultura popular, sobretudo, através da difusão e fruição desses saberes. Algumas considerações precisam ser admitidas como relevantes na superação de alguns obstáculos quanto à valorização dos saberes populares locais e, consequentemente a sua difusão. Para Segala, (2006, p.109) o papel do Estado é essencial na garantia da comunicação entre essas experiências e projetos, com o objetivo de ampliar as possibilidades de troca de informação, através da mobilização de redes locais, nacionais e internacionais, como os projetos desenvolvidos entre Brasil e países africanos, europeus e latino-americanos. Um outro dado que também precisa ser levado em conta no debate entre a cultura popular e a escola é o crescimento significativo da presença de professores evangélicos no ensino fundamental, ressaltando que não podemos esquecer que a cultura brasileira foi

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fortemente marcada pelo catolicismo ibérico e pelas tradições africanas (SEGALA. 2006, p.109). Para a autora em tela, é no contexto acima sinalizado que, através de reflexões e debates sérios e respeitosos, precisamos diferenciar o real significado entre compreender e participar na transmissão do saber, uma vez, que as diferenças religiosas acabam por influenciar em muito o território112 que, por direito, deveria ser compreendido como laico, isto é a Escola. Retomando a questão que envolve o papel do Estado na difusão da cultura popular e, consequentemente sobre a sua fruição, sobretudo por aqueles indivíduos que compõem a camada mais jovem da sociedade113, refletimos sobre a experiência que vem sendo desenvolvida na cidade de Duque de Caxias, fortemente marcada pelas manifestações das matrizes africanas, e em especial a capoeira. No ano de 2007 foi aprovado o projeto sobre a capoeira da cidade de Duque de Caxias114 desenvolvido pelo professor Alexandre Marques115 para integrar o Programa Ação Griô Nacional116 promovido pelo MinC. Esse projeto tem como meta principal a valorização dos saberes populares através do reconhecimento dos velhos mestres, verdadeiros patrimônios vivos da nossa cultura. Neste programa são apresentadas as categorias de griô e suas definições, a saber117:

• Mestre da Tradição Oral: pessoa reconhecida em sua comunidade como líder espiritual com a sabedoria da cura ou da iniciação para a

112 Consultar Correia, A.M.(2004) Irmandade da Boa Morte como manifestação cultural afro-brasileira: de cultura alternativa à inserção global. Neste trabalho a autora apresenta sua discussão sob a ótica geográfica do conceito de território. 113 Consideramos como população mais jovem a faixa etária entre 15 a 19 anos, composta na presente pesquisa por alunos do Curso de Formação de Professores do IEGRS. 114 Esse projeto faz parte de um conjunto de ações culturais desenvolvidos pela Sociedade Musical e Artística Lira de Ouro. 115 Historiador da Cidade de Duque de Caxias. Devido a sua dedicação e seriedade em implementar a Ação Griô em Duque de Caxias foi convidado pelo MinC a ocupar o posto de Coordenador Geral da Ação Griô no Estado do Rio de Janeiro. É membro do Conselho Municipal de Cultura e atua na Secretaria Municipal de Cultura de Duque de Caxias. 116A Ação Griô consiste em estimular a tradição oral nas comunidades, realizada por “contadores de estórias”, sujeitos que adquiriram conhecimentos de antepassados e os repassam contando estórias, os chamados griôs (“abrasileiramento” da palavra francesa griot, usada por jovens africanos que foram estudar em universidades francesas e que se preocupavam com a preservação de seus contadores de histórias e que carregam consigo a tradição oral). A principal proposta da ação Griô, do Programa Cultura Viva, é reaprender com os griôs e mestres da tradição oral o jeito de construir o conhecimento integrado à ancestralidade. 117 As definições especificando as categorias de Griô foram extraídas do Edital de Divulgação N° 02, 27 de junho de 2008 – Bolsas de Incentivo Griô – Secretaria de Programas e Projetos Culturais/Ministério da Cultura. Disponível em http://www.cultura.gov.br/site/wp- content/uploads/2008/07/edital.pdf

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vida, buscado por pessoas de diversas regiões; conhecedor e fazedor de conhecimentos, iniciado ou iniciador das artes e ofícios de tradição oral; pessoa com história de vida de tradição oral que se identifica com a figura do sábio e do mestre; idade mínima de 50 anos.

• Griô da Tradição Oral: líder e/ou participante de grupos artístico- culturais e associações locais que trabalham com as tradições orais e/ou animação popular de sua região; pessoa com facilidade para transmitir a sabedoria da tradição oral por meio da palavra como uma arte ou magia; músico instrumentista e animador de festas; pessoa com história de vida de tradição oral que se identifica com a figura do caminhante viajante e contador de histórias; idade mínima de 40 anos.

• Griô Aprendiz: pessoa com experiência e pesquisa em mobilização cultural, diálogo e mediação política; líder e/ou participante de grupos artístico-culturais e associações locais que trabalham com as tradições orais; pessoa com facilidade para transmitir a sabedoria da tradição oral por meio da palavra (oral e escrita) como uma arte ou magia; pessoa com formação ou experiência em educação, letras, história, antropologia, artes cênicas, jornalismo e outras áreas afins; educador comunitário iniciado em facilitação de vivências em grupo; participante de rituais e/ou atividades de iniciação com um Mestre de tradição oral de sua escolha; escolaridade mínima de ensino médio.

A partir desse projeto foram definidos os quatro mais antigos mestres de capoeira da cidade por Alexandre que respeitou a antiguidade na prática e na difusão da capoeira, que definiu Mestre Barbosa como Mestre da Tradição Oral e os Mestres Gegê e Levi e Monge como Griôs da Tradição Oral, além da ocupação da função de Griô Aprendiz pelo próprio Alexandre. Após o trabalho de entrevistas e reconhecimento dos saberes que esses mestres detinham, o professor Alexandre desenvolveu um trabalho voltado à Educação Patrimonial com as Professoras Fátima David e Kátia Veillard, regentes do Curso de Formação de Professores do Instituto de Educação Governador Roberto Silveira (IEGRS) na cidade de Duque de Caxias. Esse trabalho consiste na aplicação do conjunto de ações pedagógicas baseadas em contação de história, apresentações de cantigas e ladainhas, os fundamentos da capoeira relacionados à expressão cultural e outras atividades, que possam levar às futuras professoras, informações quanto à importância da transmissão desses saberes populares e, sobretudo, a valorização do conhecimento dos nossos antepassados como peça relevante da nossa memória e identidade.

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1.5 - O ENCANTAMENTO DAS PALAVRAS, DAS HISTÓRIAS E DOS GESTOS – A TRANSMISSÃO DA ANCESTRALIDADE ATRAVÉS DA ORALIDADE POPULAR – AÇÃO GRIÔ NACIONAL EM DUQUE DE CAXIAS.

Entre todas as manifestações da cultura popular existente no município de Duque de Caxias, a capoeira, é sem dúvida, aquela que através da coragem, determinação e resistência de seus velhos mestres conseguiu manter viva a chama de sua existência, diferentemente da folia de reis, do bumba-meu-boi, e das pastorinhas que durante as décadas de 60 e 70 tiveram significativa representatividade no cenário cultural desse município, e que hoje são lembrados apenas com um saudosismo melancólico, durante as festividades do dia do folclore. Neste sentido, é extremamente importante ressaltar o trabalho desenvolvido no Curso de Formação de Professores do Instituto de Educação Governador Roberto Silveira que, graças à atuação de professores sérios e envolvidos na prática pedagógica como prática de vida, vem gradativamente incorporando conceitos e valores referentes aos saberes populares e à ancestralidade, na contramão do contexto globalizado para o qual a cada dia a cultura digital e seu ciberespaço vem colaborando com a desvalorização do cotidiano simples de nossos antepassados e seus saberes considerados ultrapassados. A experiência no Curso Normal118 tem legado esperança e otimismo a esses valentes profissionais que acreditam nas expressões da cultura popular como referência de vida. O encantamento vivido pelos alunos, além da expressividade e espontaneidade através dessas aulas extracurriculares, onde o envolvimento com a capoeira como referência de corpo e a sua musicalidade marcando o compasso e o ritmo das aulas tem sido também uma surpresa e ao mesmo tempo uma confirmação de que a valorização da cultura popular precisa ser estimulada também e sobretudo, pela escola. O trabalho desenvolvido pelo Griô Aprendiz Alexandre junto aos Mestres, permitindo ao aprendiz a apropriação da linguagem da capoeira tem estimulado e muito novas descobertas, propiciando a concepção de um projeto que perpassasse os saberes da educação não formal e o currículo empregado na formação docente, o que gerou, o que Alexandre passou a chamar de, “diálogos de saberes”.

118 Curso para formação de professores do Ensino Médio.

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A experiência no IEGRS junto às educadoras Fátima David e Kátia Veillard acolheu Mestre Levi, o griô aprendiz, assim como, o colaborador Claudio Marê. Nesse encontro Mestre Levi apresentou às alunas a simbologia da capoeira e a sua musicalidade.

Figura 24 – Mestre Levi e alunos IERGS - aula expositiva sobre capoeira Foto: Fátima David, set. 2008

A cada novo encontro que acontecia semanalmente eram apresentadas ao público alvo novas letras e músicas e conceitos da capoeira que se integrassem ao contexto escolar, sobretudo nas séries iniciais da escola básica. Seguem abaixo as estratégias de ação estabelecidas neste encontro apresentadas pelos mestres e sistematizadas pelos professores envolvidos no processo: • Forma-se o círculo. - O Mestre inicia a vivência somente com o som do berimbau, com o toque de São Bento Grande. - Algum tempo depois ele inicia o seguinte canto: Me ensina iô, iô Me ensina iá, ia Me ensina iô, iô, Me ensina Vem, vem me ensinar. - Após a ladainha ser repetida por duas vezes há uma parada e os presentes saúdam o Mestre, reverenciam um ancestral ou uma pessoa, que eles consideram importante, e se inicia novamente o canto. Isso se repete até todos se apresentarem.

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• O Mestre apresenta algumas observações sobre o berimbau, o atabaque, a roda e outras simbologias. • Para finalizar cantamos “Adeus, Adeus”. - Nesta despedida o Mestre incentiva os improvisos. • Foram apresentados os vídeos “Sou Negro” e “Capoeira no mundo”. • Foram expostas pinturas e fotos relacionados ao tema do encontro do dia. Durante a apresentação, os mestres sempre enfatizam a importância do saber ouvir e o momento certo de falar. As educadoras empregam nesses encontros algumas técnicas voltadas à troca de afeto, como abraços, toque no rosto, nas mãos e nos braços e movimentos de expressão livre. As alunas também são estimuladas a produzirem desenhos ou frases relacionadas ao tema em questão. Durante as aulas, seguindo o currículo formal, ministradas em sala de aula, as professoras estimulam o debate sobre a Lei 10.639 e orientam as (os) alunas (os) a pesquisar sobre a História da capoeira. Foi apresentado no último encontro o resultado das pesquisas feitas pelas alunas em cartazes, flanelógrafos, além da apresentação de biografias e músicas compostas por elas, a partir do desdobramento das oficinas realizadas com os Mestres. O ator Alexandre Santini, Griô Regional, que participou do encerramento dos trabalhos em novembro de 2008, vestido como um andarilho, acompanhado de uma bolsa e de uma gaita, estimulou um “cortejo” que percorreu todos os corredores da escola e foi acompanhado por vários alunos (as) e professores (as).

Figura 25 – O ator Alexandre Santini iniciando com os alunos o cortejo festivo. Foto: Fátima David, nov. 2008

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Luana Bezerra, aluna do Curso de Formação de Professores, encantada com as oficinas, com a musicalidade e com os cortejos comentou: “A capoeira contribuiu bastante, pois com ela eu pude entender melhor o seu significado. E vou poder ensinar aos meus alunos e com isso não deixarei eles pensarem que a capoeira trata de uma religião como muitos acreditam”. O encantamento de Mariete Silva de Mendonça, aluna do mesmo curso, foi proferido da seguinte maneira: “O projeto de capoeira foi super importante e ficou melhor quando as crianças do ensino fundamental se juntaram ao grupo e começaram a participar, deu pra perceber o quanto as crianças gostam, este projeto melhoraria a auto-estima deles, melhoraria o comportamento, sem contar que a música exerce um certo fascínio sobre a criança, eles aprendem mais rápido”.

Figura 26 – Mestres e Contra-mestres no encerramento das atividades da Ação Griô Foto: Fátima David, nov. 2008

A realização dessas oficinas aconteceu concomitantemente com as entrevistas dadas pelos mestres. Essa segunda parte seguia o seguinte roteiro: local de nascimento; onde e como foi sua infância; o que mais lembra dela; como chegou a Duque de Caxias; como se aproximou da capoeira; quais os Mestres que participaram de sua formação; quais os Mestres que ainda são importantes para sua formação; quais foram os espaços de sociabilidade para os capoeiristas de Duque de Caxias; é a capoeira tradição ou espetáculo?

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Estes registros visuais assim como todo o material doado pelos mestres encontram-se na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Duque de Caxias (FEUDUC) à disposição de pesquisadores e da comunidade em geral. A Faculdade cedeu uma sala com DVD e TV para aqueles que queiram assistir às entrevistas ou aos filmes.

Figura 27 – O Instrutor Coelho joga com um aluno do Ensino Fundamental Foto: Fátima David, nov. 2008

“Ensina-se a quem estiver interessado em aprender, independentemente de cor, sexo, idade ou classe social. Demonstrando interesse e dedicação o aprendiz mostra respeito e, sobretudo, ganha o respeito de quem o ensina.” Eduarda Daudt de Souza. (Estudante do Curso de História – FEUDUC) Certamente, no final do trabalho realizado percebe-se um grande vislumbre tanto pelos alunos quanto pelos professores e mestres envolvidos no processo. As expectativas são as melhores possíveis, uma vez que os principais objetivos foram alcançados, como: a construção de diálogos e a apropriação do universo simbólico e da cultura ligado à tradição; o desenvolvimento de uma oralidade rica e própria; a promoção de camadas populares que, através de seus saberes, descobrem a importância de sua atuação junto às escolas das séries iniciais. A partir deste abrir de olhos, o Instituto de Educação Governador Roberto Silveira e a FEUDUC, que também foi contemplada com a Ação, constituem-se em dois importantes espaços de formação de educadores. O primeiro forma educadores que atuarão nas séries iniciais do Ensino Fundamental, enquanto a FEUDUC forma quem atuará com alunos do quinto ao nono ano do Fundamental e no Ensino Médio.

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Após toda essa trajetória junto à escola de ensino médio e a faculdade, cabe aos organizadores repensarem as suas propostas e ações visando a continuidade dos trabalhos já iniciados no ano anterior, viabilizando o seu desdobramento nos projetos-pedagógicos a serem implementados na rede pública de ensino para que incorporem este conhecimento. Certamente, depois de todo o trabalho realizado por todos esses atores sociais, conclui-se que é perfeitamente possível ampliar os conceitos e a informação na prática diária que envolve o ensinar e o aprender relacionando novos saberes ao currículo formal. É neste sentido que urge a necessidade de discutir o papel da Educação Patrimonial como um conjunto de ferramentas essenciais nessa relação. Para o Griô Aprendiz Alexandre Marques e as Professoras Fátima David e Kátia Veillard, é necessário nesse momento de efervescência e transformação de posturas e atitudes referendadas pela Lei 10.639 e as Ações de Políticas Afirmativas, planejar uma ampla discussão junto aos órgãos de Educação e Cultura tanto nos âmbitos Estaduais e Municipais propondo um encontro de educação para apresentar as propostas da Ação Griô e neles apresentar temas para discussão que levem às mudanças nos conteúdos programáticos, visando a introdução da Educação Patrimonial como um conjunto de ferramentas essenciais à cultura e à cidadania de nossas crianças e jovens nos currículos e nos projetos pedagógicos das escolas. Uma proposta que esse grupo tem colocado em prática em 2009 é a de divulgar letras e músicas do cancioneiro popular, nesse caso específico, a capoeira, bem como promover uma exposição permanente de todos os trabalhos desenvolvidos pelos alunos envolvidos pela Ação Griô Nacional na cidade de Duque de Caxias, no Centro de Tradições Populares ou no Instituto de Educação Governador Roberto Silveira. A observação da aluna Mariete Silva de Mendonça, sintetiza com muita propriedade os objetivos apresentados pelos profissionais acima citados: “... melhoraria a auto-estima deles, melhoraria o comportamento, sem contar que a música exerce um certo fascínio sobre a criança, eles aprendem mais rápido. Eu sinceramente acho que deveria ser incluído no currículo escolar”. O incentivo por parte do poder público, neste caso específico, as Secretarias de Educação e Cultura em parceria com outras instituições dentro do contexto acadêmico, também seria uma proposta bastante interessante para atingirmos as faixas etárias adultas como a promoção de prêmios para monografias

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que tenham como tema os Patrimônios Material e Imaterial; pesquisas sobre memória, tradição oral, os saberes e fazeres mantidos pelas pessoas, valorizando o conhecimento que é transmitido de geração a geração; a produção cinematográfica como curta-metragem sobre a cultura popular do município e outras ações.

Figura 28 – Mestres afinam os instrumentos Foto: Fátima David, nov. 2008

Certamente, o cortejo realizado no encerramento do projeto e que contou com a participação do Griô regional Alexandre Santini ao longo da oficina “Cantos e Encantos da Capoeira”, foi a mais desafiadora e ao mesmo tempo, a mais encantadora das ações desenvolvidas durante o projeto. Desafio maior aos olhos do griô aprendiz, acostumado mais intensamente com a docência acadêmica e para os mestres capoeiristas, que atuam em espaços predominantemente freqüentados por homens. O cortejo apresentado por Santini realizou-se no auditório do IEGRS, ao som de sua gaita e acompanhado dos Mestres, do Griô Aprendiz e de vários colaboradores, além dos alunos envolvidos no processo. Com instrumentos afinados e com o canto apurado os Mestres e as estudantes interagiram no coro e nos vários movimentos corpóreos. De repente, Santini conclama aos participantes a descer as escadas, passar pelos corredores e visitar as salas onde estavam ocorrendo as aulas. Muita música! Muita animação! Os berimbaus, o atabaque, o pandeiro e o agogô não paravam! Um imenso coro foi se formando, e apesar das críticas dos professores que estavam ministrando as aulas naquele momento, foi impossível conter os alunos que estavam alijados a participar daquele processo. Muitos alunos, contrariando as ordens dos professores, como num transe, contagiados pela música e pela brincadeira, entraram no cortejo, engrossando ainda mais a massa que já estava formada. Tamanha foi a surpresa de todos, quando muitos professores que inicialmente criticaram a ação, foram vencidos pela manifestação e também compuseram a massa. Para o griô aprendiz, Alexandre Marques e as professoras

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envolvidas nos trabalhos, a culminância das ações, finalizadas pelo cortejo, foi sem dúvida, o momento mágico daqueles três meses de atividades.

Figura 29 – O Mestre da Tradição Oral e a transmissão dos saberes populares Foto: Fátima David, nov. 2008

A culminância do cortejo se deu na quadra da escola, lá podiam ser vistos professores, a direção da escola, alunos das diferentes faixas etárias, inclusive, os pequeninos da pré-escola, evoluindo ao som do berimbau e demais instrumentos da luta/ arte, isto é, um número significativo dos integrantes da escola estava presente. Naquele momento foi iniciada uma grande roda envolvendo todo o grupo. Foi justamente neste momento, lá na “roda” que a diretora da escola percebeu a importância da Ação por ela criticada anteriormente, e convidou os Mestres a continuarem os trabalhos no ano de 2009.

Figura 30 – Evolução entre os experientes Foto: Fátima David, nov. 2008

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A experiência com a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Duque de Caxias/FEUDUC foi extremamente gratificante. Similarmente ao IEGRS, foi realizado um cortejo, durante as comemorações do Dia Nacional da Cultura e o Dia Nacional do Samba. A oficina intitulada “Capoeira: História e Musicalidade” organizou uma roda de capoeira que contou com a participação de todos os Mestres da Ação e muitos outros que foram convidados. Assim como na Escola de Formação de Professores, o som dos berimbaus e dos atabaques chamou a atenção de vários alunos e professores.

Figura 31 – Criança na roda Foto: Fátima David, nov. 2008

Figura 32 – A capoeira invade o espaço acadêmico - FEUDUC Foto: Autor Desconhecido, agosto 2007

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A animação aumentou quando foi organizada uma apresentação de maculelê que contou com a participação de alunos vestidos com a indumentária da dança e que acompanharam o cortejo, evoluindo o ritmo e ancestralidade negra. O cortejo saiu pelo corredor da faculdade até chegar à área onde estava sendo montada uma roda com o grupo “Colher de Samba”.

Figura 33 – Alunos da FEUDU dançam Maculelê Foto: Autor Desconhecido, agosto 2007

“Oh boa noite pra quem é de boa noite! Oh bom dia pra quem é de bom dia! Abenção, meu papai abenção. Maculelê é o rei da valentia!”

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1.6 - RECONHECIMENTO DE SABERES E A NECESSIDADE DE CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA. Se você for Lá em Duque de Caxias Vai jogar a noite e o dia Tocar atabaque e berimbau... (Mestre Levi, 2008)

A capoeira estava adormecida, às vezes virava de um lado para o outro, mas continuava hibernando profundamente. O processo de redescoberta da capoeira se deu com a aprovação do projeto instituído pelo MinC, conhecido como “Ponto de Cultura” pela Sociedade Musical e Artística Lira de Ouro em 2006. A transformação da Lira de Ouro em Ponto de Cultura, foi de fato um divisor de águas no cenário cultural da cidade de Duque de Caxias. A partir desse reconhecimento, muitas outras ações foram desenvolvidas atreladas a esta instituição e, sobretudo com o aval do MinC, que tem possibilitado a realização de pequenos projetos em prol do fortalecimento dos patrimônios Material e Imaterial Brasileiro. Neste sentido, merece destaque a Ação Griô que em Duque de Caxias possibilitou não só um espaço de encantamento, mas também de articulação de uma rede que fortalece a aplicação de políticas públicas que valorizam o saber dos mestres, como também, a longo prazo, contribuam para a modificação, percepção e transformação hegemônica de nossa identidade nacional, sobretudo pelo redescobrimento dos principais atores sociais que têm possibilitado essa busca e esse debate.

Figura 34 – Ação Griô Nacional. Transmissão dos saberes Foto: Fátima David, out. 2008

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Figura 35 - Conversas sobre a Capoeira - Mestre Levi e alunos do IEGRS Foto: Fátima David, out. 2008

Com o Centro de Referência Patrimonial e Histórico de Duque de Caxias coordenado por Marlúcia Santos de Souza desenvolvemos várias atividades relacionadas à educação patrimonial e registro de memórias de moradores da cidade. Nelas inserimos as questões culturais e particularmente as da capoeira e as do candomblé. Com Fátima David Bitencourt, com a qual atuamos na direção do Sindicato dos Professores e em outras atividades relacionadas à educação desenvolvidas no Instituto de Educação Governador Roberto Silveira e no Centro de Memória da Educação de Duque de Caxias e da Baixada Fluminense encontramos um espaço para inserir a discussão sobre a educação não-formal e a importância da Tradição Oral nos currículos escolares e nos projetos político-pedagógicos. Neste mesmo Centro encontramos a parceria de Márcia Montilio que desenvolve atividades ligadas à memória da educação na cidade. Com elas houve a troca de experiências pedagógicas e principalmente àquelas relativas ao “fazer” da Pedagogia Griô. A musicalidade, a corporalidade e, principalmente, o “ouvir” pra contar. O abrigo institucional permitiu que a Ação entrasse na rede de Memória Local formada pelas instituições parceiras e outras que não foram relacionadas, tais como: Memória em Rede, Rede de Museus, Café com história, Instituto Histórico e outros.

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1.7 - CAPOEIRA COMO PAIXÃO. ATUAÇÃO SOCIAL COMO COMPROMISSO: O EMPODERAMENTO DOS MESTRES.

“Ninguém está aqui de bobeira. A gente está aqui para construir.” Ruth. Encontro Griô. Agosto de2008.

Figura 36 – A aprendizagem que se faz na prática Foto: Fátima David, out. 2008

Quando o poder público não atua de maneira eficaz oportunizando à sua população melhores condições de vida, incluindo a formação e informação através do estímulo do conhecimento, cabe à Sociedade Civil organizada, amparada por instituições de caráter governamental e não governamental a busca e realizações de ações em prol de sua melhoria de vida. O exemplo que podemos constatar a partir dos trabalhos realizados pela comunidade cultural de Duque de Caxias - no caso específico, a capoeira - nos prova que a participação dos grupos organizados, pode ser uma saída bastante eficaz na busca do reconhecimento e valorização de tais trabalhos. A partir da Ação Griô Nacional, foi possível constatar que alguns avanços foram conquistados, como a ocupação de espaços políticos, outrora desocupados; a inclusão de instituições lideradas pelos Mestres no contexto cultural para além das discussões de políticas públicas voltadas à difusão e fruição da capoeira, nunca antes desenvolvidas na cidade.

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Figura 37 – A regência perfeita Foto: Fátima David, out. 2008

O Mestre Gegê um incansável divulgador da capoeira, foi convidado pelo Ministério da Cultura da Austrália a apresentar a proposta Griô. O objetivo deste convite era inserir essa prática nas escolas australianas que trabalham com crianças e jovens aborígines119, e que já foram iniciados na capoeira informalmente. Essa aproximação ocorreu antes da Ação propriamente dita, mas somente após o seu início e da apropriação do Mestre de alguns fundamentos e práticas pedagógicas é que a Mestre Gegê foi feito o convite formal para visitar aquele país. Um reconhecimento por manter viva essa que é uma das expressões da cultura popular mais conhecidas no Brasil e no mundo. O Mestre Barboza, depois de longo tempo mergulhado num ostracismo que o afastara das rodas, talvez desanimado pela indiferença e falta de reconhecimento, voltou a freqüentá-las. Agora reconhecido como Mestre Griô, foi convidado a fazer palestras sobre o seu papel na Ação, bem como, a divulgação de sua experiência e trajetória de vida. Foi entrevistado pelo Museu da Pessoa e participou de várias discussões sobre o Inventário Nacional da Capoeira. A constante presença de Mestre Levi na Secretaria Municipal de Cultura o levou a se candidatar ao Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial e Étnica. O Griô Aprendiz conseguiu fortalecer o Núcleo de Patrimônio Histórico e Cultural, principalmente no que se refere ao Patrimônio Imaterial, e

119 Nativos da Austrália.

119 vem sendo procurado pelos Mestres de Folias, pelos que atuam com “ervas e garrafadas” e por representantes da Velha Guarda da Grande Rio para desenvolver projetos semelhantes ao da capoeira com esses grupos. Além disso, ele desenvolveu um roteiro étnico que passa pelas rodas de capoeira, pelos terreiros de candomblé e pelas ruínas de um quilombo, evidenciando dessa forma, o seu total comprometimento com a difusão e a fruição da capoeira em Duque de Caxias. Agora no início de 2009, mais precisamente no mês de abril, Alexandre foi convidado pela Secretaria de Programas e Projetos Culturais, órgão vinculado ao Ministério da Cultura a se tornar o representante da Ação Griô Nacional em todo o estado do Rio de Janeiro, convite esse que ratifica o seu excelente desempenho na função de griô aprendiz da capoeira do já citado município. Para o ano de 2009, o Griô aprendiz Alexandre Marques tem como meta, juntamente com o pessoal que compõe a Liga Municipal de Capoeira a apresentação de uma proposta à Secretaria Municipal de Educação que possibilite a inclusão da capoeira como atividade extracurricular nas escolas que compõem a Rede Pública Municipal de Ensino. Um dado que merece destaque foi a presença de vários Mestres no “IV Encontro: Capoeira como Patrimônio Imaterial”, realizado no Teatro Raul Cortez, onde pela primeira vez muitos deles “ouviram dizer” que está sendo desenvolvida uma política pública nacional para a difusão e fruição da capoeira. A presença dos mestres e a temática do evento em questão sinaliza e também referencia esse novo momento de revitalização da identidade e memória da capoeira. Ressaltamos também como ação positiva a presença dos Mestres na peça “Água de Beber”, apresentada no Teatro Raul Cortez, que para alguns deles foi a primeira oportunidade que tiveram para entrar em um espaço cultural dessa natureza, apontando para a eficácia das ações que estão embasadas na idéia de Democracia Cultural.120 Além de todas as situações já mencionadas uma conquista de grande relevância para os capoeiristas da cidade foi à criação da Liga

120 Segundo Teixeira Coelho, o conceito de Democracia Cultural baseia-se na discussão sobre quem controla os mecanismos de produção cultural e na possibilidade do acesso à produção de cultura em si mesma.

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Municipal de Capoeira, após anos de luta, manifestações e reivindicações. Esse foi inquestionavelmente, um grande avanço para esta manifestação da cultura popular se considerarmos a falta de sensibilidade e percepção da formação cultural da população, sobretudo, por parte da administração municipal. Esse processo de formação política e intervenção social pode ser apreendido pela fala do Mestre Levi: “não gosto que me chamem pelo nome. Gosto que me chamem de Mestre. Mestre Levi. Demorei muito tempo para chegar até aqui.” Certamente o processo é muito longo, exaustivo e cheio de percalços, no entanto, os resultados de trabalhos dessa natureza podem ser comprovados pelo sorriso espontâneo de um adolescente, pelo encantamento despertado naqueles que já não acreditavam que seria possível, pelo envolvimento daquele que a princípio olhou a capoeira com os olhos do preconceito e, pela credibilidade total e verdadeira dos pequeninos da educação infantil e que com gestos livres e mente solta já foram iniciados na luta/arte de Pastinha, de Bimba, de Valdemar da Paixão de João Grande e João Pequeno e de todos aqueles que lutaram e que ainda lutam pela perpetuação da capoeira ao longo dos tempos e sobretudo, pela coragem e força de nossos irmão negros, livres e forros que em algum dia pisaram nesse chão eternizado pela ancestralidade de seu povo. Acreditando que o aprendizado é dialógico, interativo e transformador seguimos o que diz Mestre Nogueira: “Capoeira encanta quem vê. Fortalece quem pratica”. “Adeus, Adeus Boa viagem! Eu vou embora Boa viagem! Eu vou com Deus Nossa Senhora. Adeus! Adeus, Adeus!...

(Aprendido e vislumbrado por nós na convivência e nas “rodas” com os Mestres)

Salve! Salve! Axé! Axé!

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CONCLUSÃO

A realização desse trabalho foi, na verdade, uma tentativa de compreender como a capoeira apesar de sua difusão, tanto no Brasil quanto no exterior, foi perdendo espaço naquele território considerado o seu nascedouro, isto é, a rua. Este espaço público oriundo da prática da capoeira no século XIX foi gradativamente perdendo o seu lugar para o espaço privado, o que dificulta a identificação de grupos de rua em nossos dias.

Este questionamento foi de fato, o responsável pela concepção dessa dissertação que, na medida do possível, tenta compreender como a capoeira permanece neste contexto globalizado, sobretudo pela interferência direta das diferentes ferramentas que compõem a Indústria Cultural como cinema, teatro, televisão, Internet, meio editorial e outros, onde a espetacularização dessa manifestação da cultura popular brasileira que, aliada ao advento da globalização, vem se popularizando na contramão de ações que heroicamente tentam lhe imputar um caráter de resistência e genuinidade.

As informações que possibilitaram a realização desse trabalho provêm de fontes diferentes, como: levantamento bibliográfico, que permitiu a compreensão da importância da capoeira, sobretudo na relação do homem cativo do século XIX, buscando a sua sobrevivência diante de um ambiente completamente conflituoso e cruel; a utilização da internet como ferramenta de pesquisa também foi de extrema importância na busca de informações relevantes na concepção dessa dissertação; outras fontes de pesquisa foram jornais e revistas especializadas, bem como, entrevistas livres ou orientadas com os preciosos depoimentos dos mestres que foram gravadas em imagem e som, buscando fortalecer a memória desses mais velhos na luta/arte e por último, o trabalho de campo com pesquisa participativa no Instituto de Educação Governador Roberto Silveira na cidade de Duque de Caxias através dos trabalhos desenvolvidos pelo Ponto de Cultura Lira de Ouro contemplado pelo Programa Ação Griô Nacional/MinC que, a partir de ações de salvaguarda da memória e identidade voltadas à Tradição Oral, tem sinalizado para a

122 construção de Políticas Pública de Cultura na promoção dos Patrimônios Material e Imaterial brasileiros.

Certamente este estudo em primeira análise, permitiu-me identificar os mitos que envolvem esta expressão da tradição oral brasileira, e a compreender o papel desta em sua origem como uma ação de resistência e de união entre os “iguais” em terra estrangeira, passando por outros processos ao longo dos séculos. Na segunda parte deste capítulo proponho uma análise histórica referendando a capoeira como um ato de resistência e sua trajetória na cidade do Rio de Janeiro.

No segundo capítulo detenho a análise no período em que esta manifestação da cultura popular ficou adormecida, ressurgindo com mais força já no século XX, com os trabalhos desenvolvidos por Bimba e Pastinha.

Cabe nessa dissertação, mais precisamente no terceiro capítulo, uma análise sobre a capoeira em alguns territórios, como os espaços público, privado e o religioso, na tentativa de compreendermos como esta vem se perpetuando ao longo dos tempos e como esses espaços, mais especificamente, o seu espaço de origem, isto é, o espaço público, foi substituído pelo espaço privado na sociedade pós-moderna.

Ainda na Pós-modernidade, já no quarto capítulo, tento situar a forte interferência da indústria cultural como o mais relevante personagem na transformação de um segmento do Patrimônio Imaterial, neste caso, a capoeira, em mais um produto consumido mundialmente. Ainda neste contexto, apresento dois fortes aliados da indústria cultural que são a televisão, o cinema e o ciberespaço que através de um discurso persuasivo reforça o consumo da capoeira como qualquer outro produto. Neste sentido, não podemos negar que a capoeira na sociedade pós-moderna, assim como, todas as manifestações pertencentes ao cenário cultural, também se tornou um produto que pode ser facilmente adquirido, desde que o indivíduo pague o valor estabelecido pelo mercado. Além disso, tudo que advém da capoeira como instrumentos musicais, indumentária, DVDs, CDs, livros, T-shirts, relacionadas ao tema, e outros vestuários dos diferentes gêneros e tamanhos, podem ser facilmente encontrados em lojas especializadas, ou nas lojas virtuais existentes nos

123 milhares de sites de capoeira espalhados pela rede, ratificando desta forma, o poder avassalador do mercado. O cinema, um outro segmento da Indústria Cultural, na maioria das vezes apresenta a capoeira como apenas uma luta e a coloca no mesmo nível que as demais lutas marciais, sem lhe atribuir o devido crédito quanto ao seu papel de resistência e identidade no processo escravocrata brasileiro. Talvez isso ocorra com maior freqüência porque tais películas são realizadas por cineastas estrangeiros que valorizam muito mais as imagens e as cifras que irão alcançar com elas, do que com a sua história, o que pode ser analisado a partir das imagens do filme “O Protetor”, disponível nas locadoras brasileiras, onde a figura do capoeirista é extremamente caricaturada na cena onde este luta com um oriental. Ainda no contexto da permanência, analiso também o papel da capoeira como esporte, isto é, mais precisamente a sua inserção no cenário olímpico. Nesta parte, apresentamos as vantagens e desvantagens deste fato, e enfatizamos o lado positivo desse feito com a atuação mais efetiva da Lei 10.639, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", possibilitando dessa forma um cenário profícuo para a realização de ações afirmativas que estejam envolvidas com a valorização das práticas culturais de segmentos da sociedade brasileira historicamente relegada a uma invisibilidade social. No final do capítulo quatro, me reporto à capoeira como uma expressão artística através da sua estética de movimento e teatralidade. Constato a importância relacionada à condição de arte reservada à capoeira, uma vez que estamos falando de uma luta relacionada diretamente à dança, onde elementos estéticos de movimento, deslocamento, flexibilidade, agilidade, destreza, equilíbrio, coordenação e teatralidade são diretamente voltados à busca da coreografia, o que é de fato um fator positivo para a capoeira, pois é justamente neste contexto que a luta ganha conotação de arte, o que a difere de outras lutas marciais nas quais são detectados apenas força, agilidade e técnica. No entanto, não considero relevante o papel folclórico que muitos tentam legitimar à capoeira. Na verdade, por muitos anos, sobretudo aqui no Brasil, a capoeira foi caracterizada apenas como uma representação folclórica, o que possibilitou a aparição de muitos grupos compostos por dançarinos, sambistas e capoeiristas que foram levados ao exterior para mostrar o folclore

124 brasileiro. Através de conversas informais travadas com muitos mestres ao longo desse trabalho, concluí que um número significativo de pessoas pertencentes a esses grupos de apresentação folclórica chegou até o exterior denominando-se mestre de capoeira, o que, em muitos casos, não era verídico. Eram apenas pessoas que dominavam alguns movimentos da capoeira, e que desejavam fixar residência em países como EUA, Alemanha, Inglaterra, França e outros, mas usaram desse artifício para conseguir trabalho e dinheiro em terra estrangeira. Uma vez que a capoeira era bem aceita no exterior, muitos acabaram conseguindo o seu intento e abandonaram os grupos de origem, tornando-se verdadeiros, “capoeiristas” de forma ilegal, pois eles recebiam apenas o visto de trabalho, com validade limitada de permanência no exterior. Neste sentido, a capoeira serviu como porta de saída para muitos brasileiros que idealizavam construir uma vida melhor no exterior. Assim, com ou sem técnica a capoeira foi aos poucos sendo difundida em outros países, sobretudo os da Europa. Depois de um algum tempo, pessoas já com uma técnica mais rebuscada da luta, como mestres e contramestres, engrossaram a comunidade brasileira no exterior. Segundo mestre Gegê, um renomado Mestre de capoeira da cidade de Duque de Caxias, foi justamente neste período, mais precisamente na “década de 80 que muitos mestres rumaram para o estrangeiro, buscando uma vida melhor”. Tudo isso nos faz compreender como a capoeira conseguiu chegar a mais de 150 (cento e cinqüenta) países, ultrapassando barreiras sociais, étnicas e culturais. Certamente, a iniciativa desses grupos folclóricos contribuiu para a difusão da capoeira no exterior, isso se pensarmos friamente, sem muitas reflexões. Resta saber se a continuidade dada pelos verdadeiros mestres quanto à difusão da capoeira, que posteriormente seguiram a mesma trajetória dos artistas, possibilitou um esclarecimento maior aos praticantes estrangeiros, no que tange a historicidade da luta.

No último capítulo, procuro fazer uma análise do papel da capoeira como Patrimônio Imaterial Brasileiro a partir das experiências relatadas pelos mestres do município de Duque de Caxias, que através da Ação Griô Nacional vem desenvolvendo um trabalho de valorização da capoeira em parceria com o Instituto de Educação Governador Roberto

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Silveira, neste caso específico, com alunos do Curso de Formação de Professores e com os alunos da Faculdade de Filosofia, História e Letras de Duque de Caxias. Este trabalho é composto de oficinas sobre a história da capoeira, história da roda, apresentação dos instrumentos, contação de histórias ligadas à ancestralidade, composição de músicas para as rodas e evolução das danças. Certamente a contribuição dos mestres foi de extrema relevância quanto às descobertas e constatações aqui apresentadas. As experiências em loco nas rodas e nos encontros na Unidade Escolar ratificaram a importância de inserirmos a escola como mais um espaço de troca e aprendizagem. Algumas dificuldades puderam ser identificadas nesses ricos momentos de convivência, uma delas foi a grande dificuldade encontrada pelos mestres em responder ao questionário com perguntas relacionadas à capoeira como: produto; a relação do capoeirista estrangeiro com a capoeira; a permanência da capoeira num contexto globalizado; a importância da manutenção de espaços públicos quanto à prática da capoeira; a relação dos mestres com a resistência X produto; e outras. As dificuldades relacionadas às resistências dos professores e alunos da Unidade foram gradativamente superadas, o que acabou por reforçar o comprometimento de muitos.

Como análise final, acredito que muitas perguntas foram respondidas ao longo dessa pesquisa, possibilitando novos esclarecimentos e, sobretudo corrigindo erros conceituais quanto à luta/arte. Certamente algumas outras questões que foram surgindo com o desdobramento do processo, ficarão para uma análise posterior, o que possibilitará a continuação desses estudos. Espero profundamente que esse trabalho possa contribuir para a reflexão quanto à prática da capoeira como um legado deixado por nossos antepassados e difundido por nossos mestres da tradição oral detentores de um saber valioso e comprometido com a história de nosso povo.

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