DANILO DE ABREU E SILVA

REPASSANDO O PASSADO: PRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO DE SABERES NA ESCOLA DE ANGOLA RESISTÊNCIA

CAMPINAS, 2013

i ii UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM LABORATÓRIO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM JORNALISMO - LABJOR

DANILO DE ABREU E SILVA

REPASSANDO O PASSADO: PRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO DE SABERES NA ESCOLA DE CAPOEIRA ANGOLA RESISTÊNCIA

Orientadora: Profª. Drª. Cristiane Pereira Dias

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem e ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do título de mestre em Divulgação Científica e Cultural, na área de Divulgação Científica e Cultural.

CAMPINAS, 2013

iii Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem Teresinha de Jesus Jacintho - CRB 8/6879

Abreu e Silva, Danilo de, 1985- Ab86r AbrRepassando o passado : produção e divulgação de saberes na Escola de Capoeira Angola Resistência / Danilo de Abreu e Silva. – Campinas, SP : [s.n.], 2013.

AbrOrientador: Cristiane Pereira Dias. AbrDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

Abr1. Capoeira. 2. Comunicação. 3. Cultura popular. 4. Memória. 5. Educação não- formal. I. Dias, Cristiane Pereira. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Bygone being done : production and communication of knowledges at "Resistência" School of Capoeira Angola. Palavras-chave em inglês: Capoeira Communication Popular culture Memory Non-formal education Área de concentração: Divulgação Científica e Cultural Titulação: Mestre em Divulgação Científica e Cultural Banca examinadora: Cristiane Pereira Dias [Orientador] Olga Rodrigues de Moraes von Simson Susana Oliveira Dias Data de defesa: 24-06-2013 Programa de Pós-Graduação: Divulgação Científica e Cultural

iv

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org) v vi RESUMO

A capoeira angola, por meio de sua prática e história de resistência cultural frente às racionalidades hegemônicas, desempenha papéis relevantes para a difusão da cultura afro-brasileira, acompanhado as mudanças históricas, científicas e tecnológicas da sociedade. Assim, sua história e institucionalização nos conduz para uma reflexão em torno das formas e potencialidades da produção e divulgação cultural de seus saberes populares específicos, bem como da própria legitimidade da capoeira angola. Nesse contexto, esta dissertação de mestrado tem como objetivo identificar e analisar quais são os saberes produzidos na Escola de Capoeira Angola Resistência (ECAR); compreender como eles são re-construídos e circulados entre os/as integrantes da Escola; assim como analisar as formas de divulgação interna e externa desses conhecimentos. Procuramos ainda, descrever como a ECAR utiliza os meios tradicionais (oralidade, roda de capoeira, musicalidade) e contemporâneos (internet, fotografias, vídeos) para produzir e divulgar os conhecimentos e as memórias da capoeira angola. Para isso, desenvolvemos teoricamente a discussão sobre a memória e a divulgação do conhecimento popular e científico na atualidade, com vistas à valorização e ampliação da divulgação cultural dos saberes populares. Também discutimos as relações entre a educação formal, informal e não-formal estabelecidas em uma escola baseada nos saberes populares da capoeira angola e na vida cotidiana de seus integrantes. Partindo da metodologia referenciada nos estudos da memória e da história oral, colhemos depoimentos e fotografias dos integrantes da ECAR (Contra-mestre, Professores, Treneis, alunas e alunos) e, somada a uma observação participante (em que o pesquisador também faz parte do grupo pesquisado), construímos uma narrativa por meio do diálogo entre os teóricos acadêmicos e os sujeitos da pesquisa acerca de seus próprios saberes. Dessa forma, a dissertação buscou contribuir com os processos educativos interiores à escola; com o acervo de pesquisas em torno da capoeira angola e dos saberes populares, bem como com o fazer científico pautado em processos solidários e coletivos para re-pensar a educação e a comunicação popular.

Palavras-chave: comunicação; capoeira angola; cultura popular; memória; educação não-formal.

vii viii ABSTRACT

The capoeira angola, through its experience and history of cultural resistance by hegemonic rationalities, plays important rules in the diffusion of the afro-brazilian culture, following the historical, scientific and technological changes of the society. Therefore, its history and institutionalization conduct us to a reflection surrounding production’s forms and potentialities and the cultural propagation of its specific popular knowledges, as well as the legitimacy of the capoeira angola itself. In this context, this dissertation aims to identify and analyze which are the knowledges produced at “Resistência” School of Capoeira Angola (ECAR); understand how they are reorganized and worked between the members of School; as well as examine ways of internal and external disclosure of such knowledges. We also seek to describe how ECAR uses traditional means (orality, capoeira street ritual, musicality) and contemporary (internet, pictures, videos) to product knowledges and memories of capoeira angola. For this, we developed a theoretical discussion about the memory and communication of popular and scientific knowledges today with a view to recovery and wider advertising of cultural propagation of popular knowledges. We also discussed the relationship between formal, informal and non-formal education established in a school based on popular knowledge of the capoeira angola and on everyday life of its members. Based on the methodology referred to memory studies and oral history, we collected testimonials and photographs of the members of ECAR (Contra-mestre, Teachers, Treneis and students) and, added to a participant observation (in which the researcher is also part of the researched group), we constructed a narrative through dialogue between the academic theorists and the researched subjects about their own knowledges. Thus, this dissertation seeks to contribute with educational processes into the School; with the body of research around capoeira angola and popular knowledges, as well as the scientific work guided by solidarity and collective processes to re-think popular education and communication.

Keywords: communication; capoeira angola; popular culture; memory; non-formal education.

ix x SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 1 Capítulo 1...... 17 Saber e cultura popular a partir da memória: repassando a ECAR...... 17 1.1. A memória enquanto produtora de história...... 17 1.2. O início da história da ECAR pela memória de seu fundador...... 21 1.3. Mestre Pastinha e a criação do Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA)...... 27 1.4. Mestre João Pequeno e a criação da Academia de João Pequeno de Pastinha (AJPP)..35 1.5. O trabalho com a capoeira, as viagens e a escolha pela capoeira angola...... 37 1.6. O gueto: espaço para o trabalho e para a roda de capoeira angola...... 41 1.7. Globalização, Estado e Comunidade...... 47 1.8. Saberes compartilhados na capoeira angola: resistência e enraizamento...... 53 1.9. Capoeira angola e educação não-formal: o passado repassado...... 57 1.10. Criticidade científica pela descolonização dos saberes oprimidos...... 60 1.11. Educação popular...... 62 Capítulo 2...... 65 Modos de circulação dos saberes através da cultura da vida...... 65 2.1. Função socioeducativa e graduação na capoeira angola...... 65 2.2. Música, arte e resistência na capoeira angola...... 74 2.3. Práxis e tempo de aprendizagem na capoeira angola...... 86 2.4. Temporalidades, cidadania e projetos de vida no aprendizado da capoeira angola...... 90 2.5. O aprendizado para a vida e para a arte: controle, intuição e calma...... 98 Capítulo 3...... 107 Organização, atividades e simbologias na Escola de Capoeira Angola Resistência...... 107 3.1. A ECAR e sua simbologia: o pan-africanismo e a cultura de encruzilhadas...... 108 3.2. “Escola porque é mais científico, é mais profundo”...... 114 3.3. As aulas na ECAR...... 118 3.4. Percussão, canto e dança afro...... 121 3.5. Os núcleos da ECAR...... 126 3.6. O Núcleo de Estudos e o Cinema Popular...... 131 3.7. Novas mídias de divulgação e seus usos...... 135 3.8. “Quando a gente ama e alguém busca um pouco do nosso saber, a gente quer divulgar.” ...... 140 Considerações Finais...... 143 REFERÊNCIAS...... 147

xi xii AGRADECIMENTOS

São muitas as pessoas que participaram do meu processo de formação durante o mestrado, desde os estudos e dedicação necessária ao meu ingresso, até o difícil momento de concretização deste sonho, com a finalização desta dissertação. Primeiramente agradeço ao meu Mestre Topete quem ensinou, quem me ensina, a capoeira, a liberdade, a resistência, a amizade, a falsidade, a malandragem, roda da vida, da volta ao mundo, que o mundo deu, que o mundo dá, que ainda vai dar! E por contribuir e apoiar a realização desse trabalho. Também agradeço imensamente à ECAR na figura dos e das capoeiristas que se dispuseram a compartilhar comigo suas experiências, seus saberes, suas angústias e malandragens advindas da capoeira: Professor Nico, Professor Leonardo, Trenel Alex, Trenel Fernando, Mariana, Odair, Ewerton, Jesus, Da Silva, Fredy, Gabi, Rodrigo Fujiwara, Toninho, Mestre Jahça, Cassi, Zullo, Ericson, Rodrigo Bosi, Nívea, Adilson, Carlos e os/as demais que contribuíram direta ou indiretamente na pesquisa e contribuem no dia-a-dia da Escola. Esta dissertação só foi possível por e com essas pessoas. Um agradecimento muito especial à Carolina Orquiza Cherfem por me dar forças, alegrias, orientações, ensinamentos, ouvidos e carinho durante todos os momentos que passei na realização dessa pesquisa. Pelo companheirismo mesmo de longe, perto. Sem a ajuda dela esse resultado não seria concluído, ou aconteceria com muito mais dificuldade. Agradeço à Profa. Dra. Cristiane Pereira Dias, pelo acolhimento, orientação, apoio, liberdade e por me ensinar através de sua ampla experiência e conhecimento. Agradeço também às Professoras Dras. Olga von Simsom e Susana Oliveira Dias, banca examinadora, as quais, generosamente e com grande rigor acadêmico, permitiram inúmeras contribuições a este trabalho. Agradeço à minha família que possibilitou toda a estrutura para que eu chegasse até aqui, sempre incentivando os meus estudos, compreendendo meus momentos e acreditando em meu potencial. E, durante toda nossa vida, prezarem pela união e pelo amor. Aproveito ainda para agradecer a todas as amigas e os amigos que me ajudam a ser quem eu sou e que vivenciam comigo todo o aprendizado da vida: à Cristiane Santos Souza pelas leituras, axé e carinho; Fabiana Guerra pela amizade permanente e pela ajuda que me deu na pesquisa do ano de 2006; ao Vinícius Wagner, meu Mestre do software livre, pela amizade e por

xiii me iniciar e acompanhar nesse caminho de liberdade e cooperação; à Patrícia Gimeno pelas altas conversas, indicações e reflexões; agradeço todas as pessoas amigas, colegas, camaradas e conhecidas que se somam na constituição do meu ser. Por fim, agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo importante financiamento concedido a esta pesquisa, bem como ao Instituto de Estudos da Linguagem e ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo, da Universidade Estadual de Campinas, por possibilitarem a realização deste trabalho.

xiv Índice de ilustrações Imagem 1: I Calundub caipira. Arquivo pessoal - 2004...... 3 Imagem 2: Desenho de um aluno do CCI, representando na mata - 2005...... 5 Imagem 3: Desenho de uma aluna do CCI, representando um navio negreiro - 2005...... 5 Imagem 4: Contra-mestre Topete, na época Professor (de regata vermelha), ministrando oficina de construção de na Unesp em Bauru, junto com seus alunos Leonardo (camiseta laranja) e Fernando (bermuda azul), atualmente Professor e Trenel, respectivamente, na ECAR...5 Imagem 5: Trabalho de campo na Roda do Gueto em 2006...... 7 Imagem 6: Mestre Antônio e Mestre Jahça - Arquivo Só Mandinga...... 8 Imagem 7: Escola de Capoeira Angola Resistência, à direita. Acima da escola, o Viaduto Cury. 2011...... 10 Imagem 8: Valdisinei Ribeiro Lacerda, o Contra-mestre Topete. Acervo ECAR...... 21 Imagem 9: Mestre Maya e Mestre Godoy. Acervo ECAR. Década de 1990...... 24 Imagem 10: “Jornal A Tarde”, Salvador, 16 de março de 1936...... 25 Imagem 11: Contra-capa do LP “Curso de Capoeira Regional”, de Mestre Bimba, 1963...... 26 Imagem 12: Retificação do registro do CECA no manuscrito (PASTINHA, 1960)...... 29 Imagem 13: Capa e contra-capa dos manuscritos de Mestre Pastinha...... 30 Imagem 14: Desenhos e observações de capoeira (PASTINHA, 1960)...... 31 Imagem 15: Capa do livro “Capoeira Angola”, de Mestre Pastinha, 2ª ed...... 32 Imagem 16: Parte da comissão de brasileiros indo para o festival de Dakar, em 1966 (Acervo Mestre Gildo de Alfinete)...... 33 Imagem 17: Capa do LP “Mestre Pastinha e sua academia”, 1969...... 33 Imagem 18: “Roda de capoeira”, de Mestre Pastinha, pintura à óleo, s/d...... 34 Imagem 19: Capa do livro "Uma vida de capoeira", de 2000...... 36 Imagem 20: José Nicodemos Cabral, o Professor Nico. Acervo ECAR...... 38 Imagem 21: Treino de capoeira no Jardim Amanda, em Hortolândia. Topete segura o primeiro berimbau (o Gunga) à esquerda. Nota-se a formação da bateria na configuração utilizada na capoeira angola (três , pandeiro, reco-reco, agogô e atabaque). Fotografia cedida por Fredy Colombini, feita entre 1997 e 1998...... 39 Imagem 22: Primeira turma do Topete no CECA, quem ficou com ele em sua mudança para a capoeira angola: Dede, Dani, Nico, Dinda e Fredy. Fotografia cedida por Fredy Colombini, para quem “essa foto merece um carinho especial”, tirada entre 2003 e 2004...... 40 Imagem 23: Jardim dos Cisnes, localizado no centro do Viaduto Vicente Cury, na década de 70. Fonte: Blog Pro-memória de Campinas-SP...... 41 Imagem 24: Local onde era a Praça Lago dos Cisnes, hoje o Terminal Central. (Google Maps)..41 Imagem 25: Roda do Gueto, com a ECAR ao fundo. Arquivo ECAR, 2011...... 43 Imagem 26: Comemoração de 10 anos da Roda do Gueto. Roda realizada na "varanda" da Escola. Acervo ECAR, 2013...... 44 Imagem 27: Aula de capoeira sob o Viaduto Cury, durante evento da ECAR em setembro de 2011. Acervo ECAR...... 46 Imagem 28: Vista aérea do Terminal Central e do Viaduto Cury: 1- Salão abandonado pela Sanasa (hoje a sede da ECAR); 2- Local onde se realiza a Roda do Gueto; 3- Local onde se localizava a banca de capoeira. Fotografia extraída do Google Maps. 2013...... 66

xv Imagem 29: Yukai, com 2 anos, brincando a capoeira "de cabeça para baixo". Fotografia de Trenel Fernando e Mariana. 2012...... 68 Imagem 30: Cartaz/folheto da comemoração de dois anos da Roda do Gueto. Acervo ECAR, março de 2005...... 70 Imagem 31: Roda do Gueto em 2004. Fotografia cedida por Fredy Colombini...... 71 Imagem 32: Roda do Gueto em 2005. Detalhe na loja de calçados Dallas, à direita. Essa loja existiu até 2007, quando foi fechada. Em 2008, seu salão foi demolido, deixando um grande vão embaixo do viaduto. Fotografia de Fredy Colombini. Novembro de 2005...... 72 Imagem 33: Banca onde Topete e Seu Nico vendiam seus artigos de capoeira, roupas, instrumentos, CDs, DVDs, colares e outros adereços. Fotografia de Fredy Colombini. 2006...... 72 Imagem 34: Cartaz/folheto da comemoração de três anos de divulgação da Roda do Gueto. Acervo ECAR, março de 2006...... 73 Imagem 35: Ensaio para a gravação do CD. Fotografia cedida por Fredy Colombini. 2006...... 74 Ilustração 36: Encarte do CD "Angola, capoeira mãe"...... 75 Imagem 37: Trecho do caderno de anotações de Jesus Barbosa, sobre um ensinamento de Contra-mestre Topete durante a Roda do Gueto, em março de 2012...... 77 Imagem 38: Trecho das anotações no caderno de Jesus Barbosa, sobre uma aula de musicalidade e sobre uma reunião da ECAR, em setembro de 2010...... 78 Imagem 39: Desenhos de Jesus Barbosa sobre o "palmeado" utilizado na capoeira e no -de-roda. Acima a descrição dos tipos de palmas. Maio de 2010...... 79 Imagem 40: Desenho de Jesus publicado na primeira edição do Jornal comunitário "A voz do Gueto", em 2010...... 80 Imagem 41: Apresentação de dança no 3º Encontro das Mulheres. Com: Flaviana, Gabriela e Márcia. 2010...... 80 Imagem 42: Banda Nego Mantra, que possui 3 alunos da ECAR entre seus integrantes: Rodrigo (contra-baixo, de azul à esquerda), Tartaruga (Voz e violão, ao centro, de verde) e Professor Leonardo (vocal e berimbau, de laranja). Apresentação na sede do Urucungos, 2011...... 80 Imagem 43: Nívea exibindo a almofada que fez. Ela também produz tocas, bonés e gorros de tricot. 2013...... 80 Imagem 44: Cartaz para a comemoração de 4 anos da Roda do Gueto. Acervo ECAR. Março de 2007...... 83 Imagem 45: Camiseta com o cartaz de 4 anos da Roda do Gueto, impressa em serigrafia. Março de 2004...... 83 Imagem 46: 1: Orquestra de Berimbaus nos camelôs / 2: Roda do Gueto na “varanda” - detalhe na presença de dois Mestres que, posteriormente, serão padrinhos da ECAR: Mestre Bahia, de amarelo; e Mestre Bigo, ao fundo, de camisa branca e pochete. / 3: "Batuque das quebradas". Imagens extraídas do registro audiovisual. 2007...... 84 Imagem 47: Treino realizado em 2004 na casa de Topete, enquanto ele estava na Suécia. Foto 1: Fredy, Dani, Leonardo, Aliethi e Camilo na bateria / Foto 2: Fredy, Camilo, Leonardo e Aliethi na bateria; Dani e William (filho do Topete) agachados. Fotografias de Fredy Colombini. 2004...... 85 Imagem 48: Contra-mestre Topete na sua colação de grau, acompanhado de sua esposa Márcia e seu filho William. Março de 2013...... 88 Imagem 49: Jogo entre Professor Leonardo (de branco) e Mestre Moreno na roda de encerramento do III Encontro das Culturas da ECAR. Essa roda foi realizada em "Cachoeira de Emas", na cidade de Pirassununga, onde há outro núcleo da Escola, coordenado pelo Da Silva,

xvi que aparece na foto tocando pandeiro, de boina. Acervo ECAR. Novembro de 2012...... 99 Imagem 50: Odair mostrando como segurou o punhal do agressor em seu peito. Imagem retirada do vídeo gravado durante a sua entrevista. 2013...... 100 Imagem 51: Logotipo da Escola de Capoeira Angola Resistência. Acervo ECAR, 2009...... 108 Imagem 52: Contra-mestre Topete exibindo os berimbaus e o atabaque (ao fundo), com as cores pan-africanas...... 110 Imagem 53: Bandeira da Etiópia utilizada entre 1897 e 1974, época da criação da OUA por Haile Selassie e que continua popular entre seus seguidores e pelos adeptos do movimento Rastafari...... 111 Imagem 54: Bandeira da Etiópia de 1975 a 1987 e de 1991 a 1996. Apesar de não ser pan-africana na sua concepção, tem influenciado as bandeiras de muitas organizações políticas pan-africanas...... 111 Imagem 55: Bandeira pan-africana adotada pela AUPN em 1920...... 112 Imagem 56: Momento de louvação após o canto da ladainha. Roda realizada em frente à Catedral Metropolitana de Campinas em janeiro de 2013...... 112 Imagem 57: Pérolas formadas no interior de uma ostra...... 116 Imagem 58: Maculelê sendo apresentado no Colégio Doctus, em 2010. Acervo ECAR...... 121 Imagem 59: Maculelê apresentado embaixo do Viaduto Cury, em novembro de 2011, no espaço deixado pela demolição da loja de Calçados ao lado da ECAR...... 121 Imagem 60: Puxada-de-rede sendo apresentada em um evento de capoeira em Valinhos-SP, em 2010. Acervo ECAR...... 122 Imagem 61: Puxada-de-rede sendo apresentada no Quilombo Brotas, em Itatiba-SP. Novembro de 2010. Acervo ECAR...... 122 Imagem 62: Dança-do-fogo no vão lateral da ECAR, sob o Viaduto Cury, durante o evento de novembro de 2011. Acervo ECAR...... 122 Imagem 63: Dança-do-fogo sendo apresentada no SESC Campinas, em 2012. Acervo ECAR..122 Imagem 64: Samba-de-roda após roda de capoeira em frente à Catedral Metropolitana de Campinas, em 2010. Acervo ECAR...... 122 Imagem 65: Samba-de-roda na ECAR, em 2012, com a presença de Mestre Limãozinho, nascido no recôncavo baiano. Acervo ECAR...... 122 Imagem 66: Batucada da Resistência em apresentação no SESC Campinas, em maio de 2012. Acervo ECAR...... 123 Imagem 67: Roda de encerramento das atividades do ano de 2012 no núcleo da ECAR em Hortolândia. Acervo ECAR...... 127 Imagem 68: Roda de encerramento das atividades do ano de 2011 na Unicamp. Essa roda também foi uma homenagem a Mestre João Pequeno, que havia falecido há poucos dias (nota-se no fundo, à esquerda, sua foto e uma vela acesa). Acervo ECAR...... 128 Imagem 69: Núcleo da ECAR em Três Lagoas-MS, durante a visita do Contra-mestre Topete. Foto cedida por Professor Anastácio. 2013...... 129 Imagem 70: Matéria em jornal de Pirassununga anunciando o início da ECAR na cidade, em janeiro de 2011. Acervo ECAR...... 130 Imagem 71: Aula realizada na moradia. Nesse dia, o núcleo recebeu a visita do Contra-mestre Topete. Acervo ECAR, 2013...... 131 Imagem 72: Cartaz de divulgação do Núcleo de Estudos no ano de 2010. Acervo ECAR...... 133 Imagem 73: Cinema Popular em Novembro de 2011...... 134

xvii Imagem 74: Núcleo de estudos de março de 2012. Acervo ECAR...... 134 Imagem 75: Cinema Popular de maio de 2013. Acervo ECAR...... 135

xviii “Sou livre como o vento, A minha linguagem é nobre. Nasci dentro da grandeza Não nasci da raça pobre. Quero que fique sabendo: Desde um dia um cantador, Quando me vejo outra vez, Na arte de professor. A minha obediência Me deu o meu valor. Você diz que tem ciência, Dê uma explicação: O que é que em doze horas Se dá uma transformação? O Sol não é quem se move, E fica em seu lugar. A Terra tá sobre um eixo, O eixo faz rodar. Uma cobra tão pequena, Mata um boi agigantado, camará!”

Ladainha cantada por Mestre Boca Rica

Dedico esta dissertação à Escola de Capoeira Angola Resistência e aos capoeiristas que resistem e re-fazem historias pela capoeira.

xix xx INTRODUÇÃO

As pesquisas na área de Divulgação Científica e Cultural (DCC) têm sido muito importantes no sentido de compreender os papéis da ciência na sociedade e as formas utilizadas para estabelecer a comunicação entre cientistas e entre estes e o público geral. A divulgação e a comunicação da ciência para a sociedade se constitui por diferentes linguagens e meios, que vão desde eventos, revistas e periódicos científicos, destinados à divulgação entre cientistas até a divulgação através de mídias que atingem públicos mais amplos, tais como jornal, rádio, televisão, internet, museus, exposições e experimentações em espaços urbanos. As pesquisas em DCC têm se destinado ao estudo da disseminação de um tipo de conhecimento definido e categorizado como científico pelo modelo de racionalidade presente na ciência moderna. Baseada em valores ocidentais estruturados a partir de uma lógica dominante, essa racionalidade se distingue pelo afastamento e ruptura face aos demais conhecimentos, excluindo as outras racionalidades, considerando-as como “irracionalidades”, como conhecimentos “não-científicos” (Souza Santos, 2007; Santos, 2003; Dussel, 1986). Apresentado como o único e o verdadeiro, esse conhecimento está subordinado aos interesses do sistema e da cultura dominante, que busca os valores do centro, o enriquecimento e o desenvolvimento de acordo com o que o sistema econômico exige, ou seja, de quais serão suas fontes de financiamento. A existência de conhecimentos para além do científico, com características distintas dos produzidos dentro da academia formal e com propósitos diferentes daqueles da ciência ocidental, é o que nos motiva nessa pesquisa a pensar na divulgação destes “outros saberes”, principalmente os saberes populares, e a sua relação com a divulgação cultural, abordagem pouco explorada nas pesquisas em DCC. Nossa proposta, então, é estudar a forma como a produção e a divulgação dos saberes da cultura popular são feitas, ou seja, estudar os saberes produzidos a partir de uma determinada cultura contra-hegemônica, buscando compreender seus objetivos e a maneira como essa cultura se relaciona com a divulgação científica, a partir de um estudo sobre a produção, o ensino e a

1 divulgação de saberes populares. Para tal, abordaremos a cultura e os saberes da capoeira angola1, expressão cultural afro-brasileira que tem se difundido ultimamente, através de uma retomada de suas tradições. Com papéis e posicionamentos importantes para a difusão da cultura afro-brasileira, a capoeira angola tem acompanhado as mudanças históricas, científicas e tecnológicas da sociedade, se estabelecendo como forma de resistência cultural frente às racionalidades hegemônicas. Assim, sua história e institucionalização nos conduz para uma reflexão em torno das formas e potencialidades da produção e divulgação cultural de seus saberes populares específicos, bem como da própria legitimidade da capoeira angola. Nesse contexto, esta dissertação de mestrado tem como objetivo identificar e analisar quais são os saberes produzidos na Escola de Capoeira Angola Resistência (ECAR); compreender como eles são re-construídos e circulados entre os/as integrantes da Escola; assim como analisar as formas de divulgação interna e externa desses conhecimentos. Procuramos ainda, descrever como a ECAR utiliza os meios tradicionais (oralidade, roda de capoeira, musicalidade) e contemporâneos (internet, fotografias, vídeos) para produzir e divulgar os conhecimentos e as memórias da capoeira angola. Para isso, desenvolvemos teoricamente a discussão sobre a memória e a divulgação do conhecimento popular e científico na atualidade, com vistas à valorização e ampliação da divulgação cultural dos saberes populares. Também discutimos as relações entre a educação formal, informal e não-formal estabelecidas em uma escola baseada nos saberes populares da capoeira angola e na vida cotidiana de seus integrantes. Cabe destacar nesta introdução, a minha trajetória de pesquisa e de formação na capoeira angola que me proporcionaram chegar a esta indagação de pesquisa. Durante o meu percurso de graduação em Comunicação Social, com habilitação em Radialismo (Rádio e TV), entre os anos de 2003 e 2006 na Unesp de Bauru, detive meus estudos e trabalhos voltados para as diversas expressões das culturas populares e suas inter-relações com as mídias, como formas de partilhas de saberes a partir da música, das técnicas corporais, da oralidade e de sua transposição para

1 Capoeira angola é um estilo de capoeira que, a partir da década de 1930, se volta para a exaltação de suas origens africanas, em contraposição ao movimento de esportização que a capoeira seria submetida na época.

2 linguagens escritas2. Já no ano de 2003 participei de uma disciplina de Extensão na Unicamp chamada “Introdução ao folclore – conceito e Metodologia de Pesquisa”, o que me levou, no final do mesmo ano, a realizar uma monografia na matéria de Sociologia da Comunicação sobre a música caipira3 e sua relação com as mudanças e adaptações aos diferentes contextos históricos, sociais e tecnológicos. No ano de 2004 realizei, junto com um coletivo de estudantes, um evento chamado Calundub Caipira, cujo objetivo foi discutir questões relacionadas à cultura popular negra e caipira e suas relações com as novas tecnologias e formas de expressão. Na ocasião, levamos representantes acadêmicos e populares para a universidade para discutirem e apresentarem os temas sob diversos aspectos, por meio de oficinas, vídeos, debates, vivências e apresentações musicais.

Imagem 1: I Calundub caipira. Arquivo pessoal - 2004 Além de apresentações tradicionais, como a Folia de Reis, a Catira e os violeiros, tivemos a participação de bandas que misturam ritmos musicais tradicionais do Brasil, como a música caipira, o baião e o forró com ritmos mais modernos com influências internacionais, como o hip-hop, o rock e o reggae. Com isso, percebíamos a dinamicidade da cultura popular, que se

2 ABREU E SILVA, Danilo de. Cordel: educomídia no discurso popular. In: IX CELACOM - Colóquio Internacional sobre a Escola Latino-Americana de Comunicação, 2005, São Bernardo do Campo, SP. Comunicação Digital, 2005. 3 ABREU E SILVA, Danilo de. Música Caipira: raízes resistentes de um campo miscigenado.. In: VII Jornada Multidisciplinar:, 2005, Bauru-SP. VII Jornada Multidisciplinar- Humanidades em Comunicação.. Bauru-SP : Gráfica Editora Sena, 2005. v. 1. p. 36-36.

3 adapta às mudanças históricas e tecnológicas e, ao mesmo tempo, a importância que as culturas tradicionais têm como marcas identitárias entre pessoas de lugares, tempos e cotidianos diferentes, recordando as memórias, costumes e histórias dos seus antepassados. Nesse mesmo ano, mantendo meu interesse pelo tema, cursei a disciplina “Folclore” (que mais tarde passaria a se chamar “Antropologia das Culturas Populares”) com o curso de Educação Artística. Como atividade de campo da disciplina, fomos para o Festival Nacional de Folclore de Olímpia para analisarmos as mudanças e influências que um evento desse gênero levava aos grupos participantes. A docente da disciplina foi a Profª Drª Rosa Maria Araújo Simões que, em meados de 2004, iniciou o Projeto de extensão “A capoeira angola de Mestre João Pequeno de Pastinha”, no qual eu comecei a estabelecer um maior contato com esse jogo-de-luta-dançada, como alguns mestres e estudiosos classificam, a capoeira. Desde o meu início nos treinos da capoeira angola, eu me identifiquei muito com a musicalidade, a movimentação, as histórias e os valores trabalhados na capoeira em seus diversos aspectos, o que me chamou muita atenção para querer pesquisá-la e vivenciá-la cada vez mais. Assim, passei a me dedicar à sua prática e estudo, participando de todos os treinos e buscando cada vez mais fontes para meu aprendizado, que iriam de livros à convivência com outros Mestres e angoleiros4. No ano de 2005 fui bolsista do projeto pela Pró-reitoria de Extensão Universitária (Proex/Unesp), desenvolvendo pesquisas em caráter de iniciação científica e atuando junto ao Centro Esportivo de Capoeira Angola – Academia de João Pequeno de Pastinha (CECA-AJPP), com atividades práticas de extensão, divulgação cultural e educação, participando dos treinos, de eventos e ministrando aulas de expressão corporal e percepção musical através da capoeira angola para crianças de cinco e seis anos do Centro de Convivência Infantil (CCI) “Gente Miúda” da Unesp de Bauru5.

4 Termo utilizado para identificar os capoeiristas que seguem os princípios da capoeira angola, dentro e fora da roda de capoeira, introjetando-os em suas vidas cotidianas. 5 ABREU E SILVA, Danilo de; SIMÕES, Rosa Maria Araújo. A Capoeira Angola de Mestre João Pequeno de Pastinha: uma experiência pedagógica com as crianças do CCI/Unesp In: V Encontro de Arte e Cultura. Bauru: 2006.

4 Imagem 2: Desenho de um aluno do CCI, Imagem 3: Desenho de uma aluna do CCI, representando capoeiras na mata - 2005 representando um navio negreiro - 2005 O contato das crianças dessa faixa etária com esse tipo de atividade proporciona grandes desenvolvimentos relativos à consciência corporal e espacial; à percepção musical; às relações sociais e ao aprendizado da história do Brasil e da cultura brasileira por uma visão muitas vezes ausente nas aulas convencionais. Podemos, aqui, lembrar e reafirmar a frase de Mestre Pastinha, que diz que “capoeira é pra homem, minino e mulhé e só não aprende quem não qué” (ABREU E SILVA & SIMÕES, 2006b)

A partir de 2005, passei a ter contato com o Contra-mestre Topete e seus alunos e alunas de Campinas que também faziam parte do CECA-AJPP e eram referência para o grupo, devido à sua organizado e à qualidade de seu trabalho. Vale ressaltar que, antes de me mudar para Bauru, eu morava com meus pais em Campinas. Então, com eles ainda morando na cidade, ficava mais fácil a minha visita ao núcleo campineiro.

Imagem 4: Contra-mestre Topete, na época Professor (de regata vermelha), ministrando oficina de construção de berimbau na Unesp em Bauru, junto com seus alunos Leonardo (camiseta laranja) e Fernando (bermuda azul), atualmente Professor e Trenel, respectivamente, na ECAR.

5 No ano de 2006, realizei como monografia de conclusão de curso um estudo etnográfico sobre a Roda do Gueto6, uma roda de capoeira angola, organizada desde 2003 pelo CM Topete, que acontece toda sexta-feira a partir das 18h no passeio público do comércio popular do Viaduto Vicente Cury, junto ao Terminal Central de Ônibus Urbano de Campinas. A Roda do Gueto é realizada em uma viela rodeada de camelôs, bares e vendedores ambulantes. É uma das passagens para entrar no terminal, e isso faz com que passem por lá milhares de pessoas por dia, indo trabalhar ou fazer quaisquer outras atividades que dependem do transporte público. (...) É uma “roda de rua” realizada em um grande centro urbano, regrada pelos fundamentos da capoeira angola e aberta a todos aqueles que quiserem participar, mas com “educação” e “respeito” , como afirma o Professor Topete, que tem uma banca no local, onde vende artigos de capoeira, tais como CDs, roupas e instrumentos musicais feitos, na maioria dos casos, por ele e pelo Seu Nico, que trabalha na banca. (ABREU E SILVA, 2006a, p. 5-6) Nesse estudo, observei que os registros etnográficos escritos (feitos em cadernos de campo e anotações) não seriam suficientes para a análise do objeto e que eles limitariam a quantidade de pessoas que teriam acesso aos resultados da pesquisa. Diante deste cenário, busquei fazer a pesquisa utilizando o vídeo7 como uma forma de expressão, um suporte para a elaboração de ideias e linguagens eficazes para abarcar a complexidade de uma pesquisa etnográfica sobre um ritual que envolve múltiplos elementos performáticos, cênicos e polissêmicos como a Roda de Capoeira Angola pesquisada.

6 ABREU E SILVA, Danilo de. A Roda do Gueto: uma etnografia sobre a capoeira no Terminal Central de Ônibus Urbano de Campinas. 2006. 57p. Monografia (Conclusão do Curso de Comunicação Social com habilitação em Radialismo). Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, Unesp, Bauru. 7 DVD: A Roda do Gueto: o gueto da roda. 2006.

6 Imagem 5: Trabalho de campo na Roda do Gueto em 2006 Para isso, busquei referências bibliográficas e metodológicas na Antropologia Visual8 e suas contribuições para o exercício do olhar em um trabalho de campo, revisando métodos e procurando novos olhares para um público diversificado, que iria do “acadêmico” ao “popular” e do “popular” ao “acadêmico”, utilizando o vídeo não somente como uma questão de método de pesquisa para a antropologia, mas como um meio de difusão de um conhecimento sendo produzido em razão da comunicação. Ou seja, nesse estudo já comecei a pensar na forma de divulgação desses saberes produzidos tanto pela universidade como pelo grupo de cultura popular. Assim, o vídeo e as fotografias tiveram grande importância tanto na produção quanto na divulgação desse estudo. Ao realizar esse trabalho, como pesquisador e capoeirista, fazendo parte do grupo pesquisado, percebi que fotografias, textos, cartazes e vídeos fazem parte dos arquivos pessoais dos capoeiristas e que os grupos estavam cada vez mais organizando e divulgando esses materiais nos meios emergentes, aproveitando as facilidades e técnicas da digitalização e do compartilhamento pela internet, através de sites, blogs e das redes sociais. Em 2007 voltei para Campinas e continuei minhas pesquisas e vivências na capoeira, sendo agora aluno do Contra-mestre Topete e um dos responsáveis pelo registro e divulgação do

8 Antropologia visual é uma área de pesquisa antropológica que utiliza a imagem em diversos aspectos: como questão de método; como artefato cultural (objeto de estudo); a linguagem audiovisual como alternativa à etnografia clássica para divulgação de pesquisas; além da própria questão da imagem, em qualquer um dos casos, ser discutida epistemologicamente na prática antropológica.. Vide ABREU E SILVA (2006a)

7 grupo. Mantive também meus estudos acadêmicos em disciplinas isoladas da graduação e da pós-graduação da Unicamp (como aluno especial e aluno ouvinte). Nesse ano Alex Manetta, geógrafo e capoeirista que havia contribuído com minha pesquisa sobre a Roda do Gueto, me convidou para participar como pesquisador colaborador em uma pesquisa financiada pelo Programa “Capoeira Viva” do Ministério da Cultura. A pesquisa, proposta por ele e mais duas pesquisadoras capoeiristas, Cassiana Rodrigues e Marina Milito, seria realizada sobre Mestre Antônio Ambrózio, personagem muito importante na história da capoeira no Estado de São Paulo, responsável pela formação de muitos mestres da velha guarda de Campinas; e um de seus formados, Mestre Jahça – Jacinto Rodrigues da Silva, dançarino popular do Instituto de Artes da Unicamp que trabalha com cultura popular há mais de 30 anos. Cabe destacar que hoje tanto Alex como Cassiana são alunos da ECAR, assim como Mestre Jahça, quem os iniciou na capoeira.

Imagem 6: Mestre Antônio e Mestre Jahça - Arquivo Só Mandinga Com essa pesquisa pudemos estudar mais sobre a história do negro em Campinas e no Estado de São Paulo, através de fotografias, vídeos, matérias de jornais e depoimentos de mestres e mestras da cultura popular. Foi possível construirmos histórias, momentos e amizades ao

8 promovermos encontros entre as pessoas que conviveram com Mestre Antônio e que até hoje convivem com Mestre Jahça , rememorando fatos e eventos marcantes de suas vidas: Pesquisas em fontes orais e documentais foram realizadas e seus resultados embasaram as biografias desses dois Mestres, ilustradas por imagens e depoimentos selecionados. Todo o material coletado e produzido ao longo do projeto está mantido em formato de acervo digital.9

Novamente, estive diante de uma pesquisa envolvendo a capoeira, a ser registrada e divulgada científica e culturalmente, baseada em fontes orais e em arquivos imagéticos pessoais dos capoeiristas (álbuns de fotografias, recortes de jornais, gravações em vídeo, desenhos, etc) que rememoraram a capoeira da região para esse trabalho, inserido no contexto das recentes políticas de incentivo às praticas culturais afro-brasileiras10, através de editais e concursos públicos. A partir dessas pesquisas e da minha atuação no grupo de capoeira angola como responsável, dentre outras funções, pelos registros fotográficos e audiovisuais, fui percebendo como as tecnologias digitais proporcionam novas formas de se construir e pensar a memória, os arquivos, a organização e a divulgação dessa cultura que se mantém e se transmite há séculos embasada na oralidade, na ritualidade, na música e na memória dos mestres. Além disso, a internet possibilitou para a capoeira o acesso a diversos materiais que antes eram de difícil ou nenhum acesso. Vídeos, documentários, programas de TV, imagens feitas por pesquisadores, gravações das décadas de 50 e 60, fotografias, gravações de áudio, estudos e manuscritos escritos por velhos mestres passam a ser disponibilizados e difundidos na rede. O que antes estudávamos por meio de livros acadêmicos ou pela oralidade dos mestres, agora chegava a nós pela oportunidade de assistir, ouvir e ler a produção dos pesquisadores, dos próprios mestres e capoeiristas em geral. Muitos desses materiais são atualmente postados pelos próprios capoeiristas, brasileiros ou estrangeiros, que passam a compartilhar, em sites, blogs e redes sociais, os arquivos e documentos que antes mantinham guardados. Contudo cabe destacar que, se por um lado a internet possibilitou o registro, a divulgação e o acesso a materiais produzidos por sujeitos diversos, por outro ela também pode servir como

9 MANETTA, Alex; MILITO, Marina; RODRIGUES, Cassiana; ABREU E SILVA, Danilo de. Projeto Só Mandinga. (Relatório de pesquisa) Ministério da Cultura. Brasil, 2007. 10 Essas políticas afirmativas, assim como a lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas, são importantes conquistas do Movimento Negro no Brasil nas últimas décadas.

9 instrumento de dominação, seja pela exclusão e dificuldade para seu acesso para populações menos favorecidas, seja pelo predomínio de grandes corporações controlando a infraestrutura e selecionando o que pode e o que não pode ser disponibilizado e armazenado nos seus domínios e provedores. Aprofundaremos essas questões ao longo da dissertação. No que tange ao aspecto positivo, os novos meios permitiram a divulgação da capoeira que, marginalizada durante toda a sua história, manteve sua memória inscrita em diversos suportes, desde a voz e o corpo até pinturas, fotografias, boletins policiais e jornalísticos, fotografias e produções acadêmicas. Com o acesso a novas tecnologias, a capoeira passa a ser registrada e divulgada de outras maneiras, adequando-se aos instrumentos de cada época. No ano de 2009, o então Professor Topete recebe o título de Professor Mestrando, que é o equivalente a Contra-mestre. Assim, com o intuito de desenvolver um trabalho com maior autonomia e liberdade, em um projeto diferenciado, deixa o CECA-AJPP e, no dia 9 de setembro de 2009, funda a Escola de Capoeira Angola Resistência (ECAR). Seu núcleo é localizado no centro da cidade de Campinas-SP, sob o Viaduto Vicente Ferreira Cury, onde também fica o Terminal Central de Ônibus Urbano e de onde saem algumas das principais vias de acesso aos diversos cantos da cidade. A poucos metros do espaço é onde ocorre a Roda do Gueto.

Imagem 7: Escola de Capoeira Angola Resistência, à direita. Acima da escola, o Viaduto Cury. 2011

10 Os treinos realizados na ECAR, de segunda a sábado, em diversos horários, abordam os fundamentos da capoeira angola, sua história, musicalidade, princípios e ritual. Além da capoeira, ocorrem aulas direcionadas para outras expressões culturais de matrizes africanas, com ritmos percussivos (Ijexá, Barravento, Congo-de-ouro, Avamunha), cantos e danças (Maculelê, Puxada de Rede, Samba de Roda, Dança do Fogo). Além das atividades cotidianas da escola, das rodas, dos eventos e das apresentações culturais, a ECAR utiliza outros suportes de registro e divulgação cultural, como o site (www.escolaresistencia.com.br), onde há textos, fotos e vídeos ; a produção de cartazes para divulgação de eventos; produções sonoras e multimídia (CDs e DVDs); e o jornal “A Voz do Gueto11”. Contra-mestre Topete costuma dizer, em suas aulas ou conversas sobre a importância da divulgação na capoeira angola, que “a mídia da capoeira são os próprios capoeiristas”. Ele, capoeirista desde 1986, é considerado por muitos como um grande divulgador dessa expressão cultural. Desde 1993 viaja para eventos de capoeira de dentro e fora do estado de São Paulo, ministrando cursos e oficinas e vendendo artigos de capoeira. Possui uma banca localizada no mesmo espaço da ECAR, onde são vendidos artesanatos, CD's, DVD`s, livros, roupas, instrumentos e outros artigos de capoeira. Nessa direção, Pedro Abib (2005a) reflete sobre os processos de transmissão do saber popular, suas características e os princípios de aprendizagem social dos sujeitos de um grupo, que para tanto se utilizam da memória, da oralidade, da ancestralidade, e da ritualidade. Por um lado, vemos tradições sendo preservadas e recuperadas e o sentimento de pertencimento étnico e identitário sendo reforçado, apesar de todas as contradições que esse processo encerra; por outro, estratégias sendo desenvolvidas por esses mesmos grupos, no sentido de se integrarem cada vez mais ao mercado da sociedade globalizada, como uma necessidade de sobrevivência política e econômica. (ABIB, 2005a, p. 80-81)

Cabe ressaltar que esse estudo de Pedro Abib, “Capoeira angola: cultura popular e o jogo dos saberes na roda” (2005), será utilizado como base para nossa pesquisa, na medida em que ele faz um estudo sobre esses saberes da capoeira angola produzidos nas escolas não-formais, ressaltando as relações entre os mestres e os fundamentos dessa cultura que tem como princípios

11 Jornal coletivo e comunitário de manifestos artísticos e culturais que teve sua primeira edição em julho de 2010. Existiu até a sua quarta edição (duas em 2010 e duas em 2011) e acabou sendo extinto, pela dificuldade em conseguir parceiros para escrever e apoio para as impressões. As edições podem ser acessadas online pelo site http://www.readoz.com/publication?i=1031626 ou pelo blog http://avozdogueto.blogspot.com.br/.

11 a memória, a ritualidade, a ancestralidade e a coletividade, respaldado em alguns conceitos teóricos dos quais também utilizaremos nessa pesquisa. Abib é aluno do CECA-AJPP e, portanto, seu estudo também se baseia na capoeira angola do Mestre Pastinha e do Mestre João Pequeno, a mesma linhagem utilizada como fundamento da ECAR. Contudo, nosso estudo fará as análises para identificações desses saberes, assim como de seu ensino e divulgação, partindo da experiência particular do pesquisador com o grupo, somada aos depoimentos e demais materiais produzidos pelos integrantes da Escola. Assim, a presente dissertação utilizará como metodologia, além da pesquisa bibliográfica, a história oral dos integrantes da ECAR, colhida por meio de entrevistas gravadas em áudio e vídeo, somada ao uso de imagens fotográficas e videográficas produzidas e arquivadas pelos próprios integrantes (assim como pelo pesquisador), que contribuirão para a compreensão e para o registro das visões de mundo dos indivíduos envolvidos na pesquisa. Utilizando as memórias individuais dos integrantes da ECAR, a partir de relatos que possuem a capacidade de acumulação e reserva de um certo grau de memória comum (FERREIRA, 1996), construiremos uma memória da própria escola, tendo como pano de fundo a reflexão sobre os saberes produzidos no processo de aprendizagem dessa instituição de educação não-formal (ou trans-formal, como veremos). Utilizaremos ainda alguns aportes e reflexões da antropologia visual e da pesquisa participante, na medida em que o pesquisador faz parte do grupo estudado e contribui para o mesmo como aluno e como um dos responsáveis pela parte dos registros da ECAR, tanto de fotos quanto de vídeos. Assim, o material constituído pela pesquisa, também será utilizado para a divulgação da Escola, e vice-versa, criando um acervo que contribui para o registro da memória e para a divulgação do conhecimento produzido. Para construir a narrativa da pesquisa, utilizaremos fotografias ou imagens que remetam a algo que está sendo discutido ou analisado. Nem sempre faremos a análise das imagens, porque em alguns casos elas serão somente ilustrativas ou provocativas. As imagens poderão ser fotografias, desenhos, frames de vídeos ou trechos de manuscritos digitalizados. No que tange o uso de imagens para pesquisa e registro, Moreira Leite (1998) explica que, enquanto o texto verbal é consagrado pela tradição europeia e acadêmica como forma prioritária de expressão ocidental e moderna, o texto imagético é associado ao contexto artístico e social. Devido às suas complexidades e ambiguidades interpretativas, acaba não sendo valorizado da

12 mesma forma que o primeiro. Contudo, a autora aponta que a imagem não é restituição, mas reconstrução de uma realidade, com alguma alteração voluntária ou involuntária. O observador a incorpora entre suas imagens mentais e, através dessa associação de imagens, se dá a apreensão de significados. Nas palavras da autora, mecanismos perceptivos e cognitivos ampliam a compreensão das relações entre a imagem e as diferentes formas de memória, que, pelo re-conhecimento e pela re-memoração, constroem a ponte para o texto verbal. Ao que é impossível descrever, torna-se indiscutível a prioridade da imagem visual, por sua capacidade de reproduzir e sugerir, por meios expressivos e artísticos, sentimentos, crenças e valores. (Ibid, p. 44) As atuais facilidades de acesso às novas tecnologias de transmissão de informação cultural, como fotos, vídeos e internet, são assimiladas na ECAR como possibilidades de somar conteúdos no processo de ensino e de aprendizagem da capoeira angola, aliando o conhecimento prático à pesquisa e ao conhecimento teórico. Nossa pesquisa, assim como as atividades da ECAR, busca estabelecer uma comunicação intercultural numa relação tripartite entre a produção do saber, o sujeito desse saber e seu público. Conforme aponta Dominique Gallois (1998), uma comunicação destinada a diversos públicos feita de maneiras críticas e inovadoras, utilizando agentes visuais como meios de difusão de um conhecimento produzido em razão da comunicação. Os processos de educação e transmissão de saberes presentes na ECAR são realizados a partir de uma relação de diálogo entre os alunos no cotidiano da Escola, orientados pelo Contra-mestre Topete. Em relação a este engajamento intencional da educação e da comunicação, fundamenta a possibilidade de conhecer nessas inter-relações entre todos os participantes do processo: O sujeito pensante não pode pensar sozinho; não pode pensar sem a co-participação de outros sujeitos no ato de pensar sôbre o objeto. Não há um 'penso', mas um 'pensamos'. É o 'pensamos' que estabelece o 'penso' e não o contrário. Esta co-participação dos sujeitos no ato de pensar se dá na comunicação (FREIRE, 1975, p. 66).

Durante os encontros, rodas, eventos e apresentações há sempre a preocupação do registro, por meio de um caderno de presença e de fotografias, que são disponibilizadas no site da ECAR. Assim, é construída uma memória fotográfica desses momentos que pode ser acessada e revisitada por meio da internet. Vídeos também são utilizados para o registro e a divulgação. Todos eles são armazenados e alguns também disponibilizados na rede. Dessa forma, esses

13 arquivos podem ser acessados por pessoas de distintos lugares do mundo, entre elas capoeiristas, pesquisadores e admiradores. Buscando alcançar os objetivos de identificar os saberes da ECAR, analisando sua circulação e divulgação, como dissemos, foram realizadas entrevistas com integrantes da Escola, em áudio e vídeo12. Essas entrevistas foram transcritas e articuladas com as temáticas trabalhadas no texto. Para isso, apresentei a proposta de pesquisa aos integrantes da Escola Resistência e pedi, para aqueles que pudessem e quisessem, que contribuíssem com materiais ou depoimentos em entrevistas. Marquei datas e lugares com algumas pessoas que pediram, mas também fui à ECAR em alguns horários para gravar entrevistas com quem estivesse presente e se dispusesse a dar o seu depoimento. Visando não estabelecer um roteiro para as entrevistas – evitando, assim, direcionar ou influenciar as respostas de maneira mais direta - antes da entrevista, eu explicava qual era o objetivo da pesquisa e pedia para que falassem sobre o que a capoeira significava na sua vida; que tipo de conhecimento eles/elas apreendiam na ECAR; por que buscavam aquele conhecimento; o que os “prendia” ali e, ainda, como esse conhecimento influenciava em suas vidas e trabalhos. Por fim, pedia para comentarem o que pensavam sobre a divulgação desses saberes. Em algumas entrevistas eu pouco intervinha. Em outras, eu ia comentando as passagens, como em um bate-papo. Deixava a câmera em um tripé do meu lado, enquanto o(a) entrevistado(a) ficava sentado à frente. Para não ter problemas com o som utilizei, na maioria delas, um microfone direcional, que a pessoa entrevistada escolhia se queria segurar ou não. A partir desse material, assim como da revisão bibliográfica sobre o tema, dividiremos as análises de uma maneira que possamos compreender melhor o que são esses saberes que são construídos, registrados, arquivados e divulgados pelos integrantes da ECAR, através de suportes e linguagens diversas. Assim, no primeiro capítulo, buscaremos identificar e compreender a produção dos saberes da capoeira angola na ECAR, seus limites e deslocamentos entre formalidades, cientificidades e objetividades. Primeiramente faremos uma discussão sobre o conceito de memória enquanto produtora de história para, então, iniciar a construção da história

12 As passagens em vídeo serão disponibilizados em uma versão multimídia dessa dissertação que ficará disponível no site www.escolaresistencia.com.br .

14 da ECAR a partir dos depoimentos de seu fundador e dos demais integrantes. A partir dessas reflexões, buscaremos compreender os valores, princípios e fundamentos que constituem o grupo, assim como as relações que a produção desses saberes têm com o contexto histórico e espacial do cotidiano de seus sujeitos. Abordaremos ainda neste capítulo os conceitos de enraizamento e globalização, bem como de educação não-formal, descolonização dos saberes e educação popular, os quais são fundamentais para as analises realizadas. O segundo capítulo será dedicado a compreender os modos de circulação dos saberes da capoeira angola para um aprendizado da vida. Assim, destacaremos a função socioeducativa que esses saberes podem exercer a partir da arte, da música e de seus aspectos de resistência cultural. Estudaremos, ainda, a relação entre as aprendizagens da capoeira angola e da educação não-formal, destacando seus usos na práxis cotidiana e os modos como podem contribuir para a formação cidadã, para a conscientização política e para a construção de projetos de vida. Nessa relação entre aprendizagens formal, informal e não-formal, destaca-se a valorização da intuição, da paciência e de uma lógica temporal circular, não-linear, que podem contribuir para a construção de diferentes habilidades e conhecimentos em ambos contextos educativos. Por fim, o terceiro capítulo será dedicado ao enfoque às formas de organização, metodologia e simbologias que constituem a Escola de Capoeira Angola Resistência. Num primeiro momento, faremos um estudo sobre o denominado pan-africanismo, movimento de união dos povos africanos e de constituição de movimentos raciais que, como filosofia, influenciará a constituição das aulas e das simbologias da Escola. Já num segundo momento, passaremos para a descrição e análise das formas de organização das aulas da ECAR, além dos estudos realizados em torno da capoeira angola. De um lado esses estudos referem-se a aprendizagem da própria capoeira enquanto um jogo e atividade física que exige dedicação e treino. De outro lado, os estudos mostram a importância da capoeira como forma de conscientização de diferentes relações de dominação. Tal abordagem será feita enfatizando os seus cantos, musica, dança, toques, eventos e diferentes aulas. Por fim, faremos algumas reflexões sobre as formas de divulgação desses saberes, identificando os problemas e as soluções encontradas para a construção da memória coletiva do grupo a partir dos materiais de registro (foto, texto, vídeo, som) utilizados para arquivamento e para comunicação com o público externo.

15 16 Capítulo 1 Saber e cultura popular a partir da memória: repassando a ECAR

Este capítulo será desenvolvido partindo da memória do Contra-mestre Topete ao nos contar a sua história e a história da Escola de Capoeira Angola Resistência. A essa história, cruza-se as memórias e observações dos estudantes da ECAR, desde os mais antigos que construíram a escola com o Topete, aos mais novos que nos ajudam a identificar os saberes que a Escola consegue consolidar em sua prática. E porque essa escolha teórico-metodológica de partir da memória para a nossa construção teórica?

1.1. A memória enquanto produtora de história A memória permite-nos (re)construir valores e tradições, olhando os fatos a partir dos indivíduos e buscando neles a clareza e a confiança dos acontecimentos e das relações que sustentam suas visões de mundo. Construída a partir de uma leitura do presente, nas condições atuais de produção, a memória é atravessada por acontecimentos históricos-sociais do passado. Olga von Simson explica que memória “é a capacidade humana de reter fatos e experiências e retransmití-los às novas gerações através de diferentes suportes empíricos (voz, música, imagem, textos etc.)” (2003, p.14). A memória organiza a identidade social e coletiva, constrói o sentimento de pertença a um lugar ou a uma coletividade e informa o código simbólico necessário para desvendar, documentar e divulgar a cultura de um corpo social. Essa construção é feita através de “conjuntos documentais racional e tecnicamente tratados” (Ibid., p.18) e “se baseia na cultura de um agrupamento social e em códigos que são aprendidos nos processos de socialização que se dão no âmago da sociedade” (Ibid., p.17). , pensando a cultura do homem a partir do espaço, nos diz que a cultura é uma herança que nos dá a consciência de pertencer a um grupo. Para o geógrafo, cultura é “um reaprendizado das relações profundas entre o homem e o seu meio, um resultado obtido através do próprio processo de viver” (2000a, p.61), a forma de comunicação do indivíduo e do grupo

17 com o universo. Assim, a nossa cultura é o filtro para o processo de seleção e construção da memória da sociedade em que vivemos, como ressalta Iuri Lotman13. Segundo o autor, para uma informação ser patrimônio da memória, ela deve ser codificada para um texto cultural, ou seja, traduzida para um conjunto de signos que organiza tal informação de uma maneira e não de outra, para então poder ser transmitida, reconhecida (decodificada) e conservada. Lotman nos chama atenção que a comunicação só é possível se há algum grau de memória comum e que um texto é um condensador de memória social. O texto tem capacidade de acumulação e reserva de memória e “se define pelo tipo de memória que ele necessita para ser entendido” (FERREIRA, 1995, p.119). O texto, então, contribui tanto para a memória como para o esquecimento. Ou, melhor, tanto a memória como o esquecimento contribuem para o texto. Simson (2003) reforça que a memória, em sua organização, passa por um processo de seleção, pois não podemos guardar tudo o que vivemos e experimentamos e nem há suporte para isso. Na nossa memória individual, retemos aquelas informações e experiências que possuem significado ou importância para nossa existência e decisões futuras e descartamos o resto. Ou seja, é a memória de cada um de nós, constituída pelos processos de socialização que vivenciamos. Já na constituição da memória coletiva, a definição de qual discurso será esquecido e qual será guardado como memória oficial é feita pelos grupos dominantes, que selecionam os fatos e aspectos julgados relevantes para eles e os consolidam como o que seria o passado coletivo, nossa memória oficial. Assim, os grupos dominantes formam um discurso de memória coletiva em que há o apagamento de certas tradições, costumes e conhecimentos e afirmação de outros. Esses discursos são legitimados nos lugares de memória oficiais, tais como “memoriais, monumentos, arquivos, bibliotecas, hinos oficiais, quadros e obras literárias e artísticas” (SIMSON, 2003, p. 14-15), que reforçam as histórias do grupo dominante. Portanto, o processo de dominação também influencia e atua sobre a memória. Lotman ressalta que o esquecimento é o “mecanismo explorado por uma instituição hegemônica, tendo em vista excluir da tradição os elementos indesejáveis da memória coletiva” (FERREIRA, 1995, p. 117).

13 Semiólogo e historiador cultural soviético que viveu entre 1922 e 1993, considerado um dos primeiros estruturalistas. No texto “Cultura é Memória”, de 1995, Jerusa Pires Ferreira faz um apanhado acerca de seus trabalhos e teses, realçando a contribuição de Lotman para os estudos sobre a memória.

18 Porém este discurso e história dominante, por sua vez, encontra resistência por parte dos oprimidos que, percebendo e vivendo a sua realidade, criam símbolos e obras que fortalecem seus compromissos históricos e políticos. Assim, criam e recriam a sua memória coletivamente a partir da convivência no cotidiano da comunidade. Essas comunidades produzem o que Simson chama de memórias subterrâneas ou marginais, que são aquelas produzidas pelos grupos populares e que se encontram guardadas “no âmago de famílias ou grupos sociais dominados nos quais são cuidadosamente passadas, de geração a geração” (2003, p. 15). Por meio da oralidade, de relatos, de contos, de músicas, fotografias e escritos, o grupo retoma momentos ou experiências vividas naquele grupo, mesmo que em tempos e espaços diferentes, o que faz com que vivam aquele presente plenamente. Nesse sentido, Enrique Dussel reflete sobre a diferença de temporalidade presente na memória popular: “O que acontece é que essa memória do povo funciona num ritmo que não é tão entusiasta, em dia e aloucado como o da elite ilustrada. Cresce como plantas; tem que esperar a primavera para crescer e não pode crescer em qualquer momento com cultivo e fertilizantes: sabe esperar. Tem um ritmo que parece a-histórico. (...) Cultura popular é o fruto da vida, do compromisso e da história do povo. (...) A memória popular ‘recorda’ quem é aquele que explora, quem é aquele que suga seu sangue” (DUSSEL, s/d, p. 176)

É essa memória popular que resiste e existe, com suas características, temporalidades e racionalidades próprias, que nos interessa nesse estudo. Ieda Martins (2002) chama atenção, citando Pierre Nora, que os saberes da cultura negra não são resguardados somente nos lugares de memória, mas também a partir dos ambientes de memória, ou seja, dos repertórios orais e corporais das pessoas, dos gestos, dos hábitos, cujas técnicas e procedimentos de transmissão são meios de criação de passagem, produção e reservação dos saberes. As performances rituais, os cerimoniais, os festejos, por exemplo, são férteis ambientes de memória, são atos de inscrição da memória, uma grafia. A autora nos alerta, então, pensando o corpo como lugar de inscrição, resguardo, disseminação e revisão da memória, que não existem culturas ágrafas. Simson reforça que essa convivência para a construção compartilhada da memória constrói fortes laços de relacionamento entre os indivíduos e “constitui uma estratégia muito valiosa nestes tempos em que tudo é transformado em mercadoria e tudo possui valor de troca” (2003, p.16). Ao utilizarmos os “óculos do presente” para reconstruir vivencias e experiências passadas, há um melhor entendimento dos problemas do presente, tornando mais sólidas e realistas as ações futuras e constituímos, assim, uma memória compartilhada. Enfim, ao rever

19 nossa história passada pela palavra e pelo ponto de vista do povo que a viveu, nos enraizamos e buscamos enraizar. Mais conscientes de nossas origens, conseguimos compreender melhor os problemas contemporâneos. “O trabalho com a memória também possibilita uma transformação da consciência das pessoas nele direta ou indiretamente envolvidas, no que concerne à própria documentação histórica, (...) e compreendendo melhor o valor do documento na vida local, passando assim a engendrar novas maneiras de recuperá-lo e conservá-lo” (ibid, p. 17, grifos da autora).

Com essas reflexões, pensando memória como cultura, podemos dizer que a memória é constitutiva da divulgação cultural, já que não há cultura sem memória. Ou seja, divulgação cultural é a comunicação de visões de mundo constituídas em um grupo social, organizadas por um conjunto de signos que formam textos que são guardados e transmitidos por suportes diversos. Segundo Simson, esse trabalho de “coleta, seleção, organização, guarda, manutenção adequada e divulgação da memória de grupos sociais ou da sociedade em geral” (Ibid., p.16) é feito tanto pelo próprio grupo social, quanto por instituições surgidas com esse propósito, como museus, arquivos, bibliotecas e centros de memória. Para o registro, a manutenção e a divulgação da memória são utilizados suportes como: documentos escritos, desenhos, pinturas, materiais de imprensa, fotografia, vídeo, discos, CDs, DVDs, disquetes, dentre outros meios analógicos e digitais. Dessa forma, considera-se fundamental relacionar as diferentes memórias presentes na ECAR para identificar os saberes da capoeira angola que são desenvolvidos, criados e recriados nesta escola de capoeira que é o foco do nosso estudo. Para tal, este capítulo será dividido em duas partes. Na primeira retomaremos a história do Contra-mestre Topete para a formação da ECAR. Nesse percurso identificaremos a história de outros mestres e alguns saberes da capoeira angola levantados nessas reflexões. Na segunda parte, relacionaremos a memória dos outros integrantes da ECAR àquela do Topete e, a partir dela, ampliaremos a identificação dos saberes da capoeira angola e faremos uma discussão desses saberes com os saberes científicos. Também discutiremos os conceitos de educação formal, informal e não-formal como modos pelos quais a capoeira se desenvolve.

20 1.2. O início da história da ECAR pela memória de seu fundador Para falarmos da ECAR temos que falar de Valdisinei Ribeiro Lacerda, o Contra-mestre Topete, seu fundador. Hoje com 42 anos, é casado com Márcia das Graças Ribeiro Lacerda, com quem tem um filho de 15 anos, William Claro Lacerda. Valdisinei nasceu no dia 8 de janeiro de 1971, em Cambira, no Estado de Paraná. Filho de Maria das Graças Ribeiro Lacerda e Francisco Pucinheira Lacerda, logo com um ano e meio, mudou para Sumaré, na Região Metropolitana de Campinas, com seus pais, três irmãs e um irmão, que faleceria em 1989, aos 19 anos.

Imagem 8: Valdisinei Ribeiro Lacerda, o Contra-mestre Topete. Acervo ECAR. Valdisinei começou a trabalhar muito cedo, por causa da dificuldade financeira de sua família. Entre 5 e 7 anos, trabalhou limpando cocheira, limpando canteiros de hortas e vendendo sorvetes. Aos sete anos eu comecei a vir [a Campinas] para vender sorvete. Colocava a caixa nas costas e ia. Só que chegava aqui eu - como um moleque com dificuldade financeira, também passei até necessidade de alimento em casa - eu pegava o sorvete, pegava 30 e chupava 20. E vendia 10. Aí eu chegava para acertar na sorveteria, eu estava devendo. Aí eu pegava mais e vinha. Só que em Campinas tem um órgão que rege as pessoas que não têm registro em carteira, que trabalham por conta, a Cetec. Eu não sabia disso e muitas vezes a Cetec tomava a minha caixa com sorvete e tudo. Aí não deu muito certo. Eu fiquei devendo muito e o homem da sorveteria foi na minha casa falar com a minha mãe e aí ela teve uma baita despesa para acertar com o sorvete. (Contra-mestre Topete, Entrevista, 2013)

21 Nessa época Topete teve as suas primeiras vivências com a capoeira, com um baiano que morava perto de sua casa, no bairro do Matão. Na passagem abaixo, podemos identificar algumas características interessantes da capoeira, que nos remetem à história da capoeira e suas formas de ensino. Eu morava no Matão e tinha um baiano que dizia que era capoeira. Aí ele pegava a gente na rua, no fundo do quintal e passava capoeira. Dizia ele que era capoeira. Só que a capoeira que ele passava não tinha nada a ver. Ele não treinou, porque naquela época na Bahia poucos treinavam. Eles aprendiam de ver, na rua, na roda. (Contra-mestre Topete, entrevista, 2006).

Os primeiros registros de propostas metodológicas para o ensino da capoeira, assim como as primeiras escolas destinadas ao seu ensino, começaram a aparecer no início do século XX. Os capoeiras passaram a produzir seus próprios materiais, organizando e sistematizando a sua prática, tirando-a do âmbito das ruas para o das academias. Antes disso, a capoeira era aprendida de “oitiva”, ou seja, pela observação e convivência com outros capoeiristas, “de ver, na rua, na roda”, como disse CM Topete. A capoeira, perseguida pelas autoridades ligadas às elites da sociedade brasileira desde a sua origem e tida como uma contravenção pelo Código Penal de 1890 entra, na década de trinta, num processo de institucionalização, incluída no plano nacionalista do Estado Novo de Getúlio Vargas. Este regime empregou intelectuais para escrever uma história oficial da nacionalidade brasileira a partir de fatos que exaltasse o nacionalismo. Diante desse processo, o Estado Novo também entenderá a capoeira como um desporto do folclore, uma forma de luta “genuinamente brasileira”, assim como exaltaria o samba. Porém, essa política continuou sendo orientada pela escola europeia, investindo funções educativas oficiais que homogeneizasse e organizasse essas expressões culturais, reinventando suas tradições e selecionando episódios da história do país (BRIAND, 2007).

Segundo Cavalheiro (2008), o fenômeno das academias baianas trará uma nova conformação à própria história da capoeira, “uniformizando (no que tange às tradições, hábitos, costumes, rituais, instrumentação, cantigas etc) sua prática”, especialmente após a migração de mestres para o sudeste brasileiro.

No ano de 1934, a capoeira foi descriminalizada por decreto do presidente Getúlio Vargas. Segundo Reis (2000), o projeto populista que visava a esportização da capoeira, transformou-a

22 em um esporte profissional e competitivo, em detrimento de seu caráter lúdico, de jogo, luta e dança. Nessa época, Mestres Pastinha e Bimba procuraram legitimar a capoeira através da sua sistematização. Mestre Pastinha se voltará para a sistematização da capoeira angola e Mestre Bimba criará a luta regional baiana, sobre as quais falaremos mais adiante. Entretanto, apesar de ser descriminalizada, a capoeira não deixou de ser discriminada. Tanto nos aspectos que a relacionavam à atividade de vagabundos, desordeiros, valentões, como também devida à sua origem negra. Nos depoimentos do Contra-mestre Topete e do Professor Leonardo acerca das reações que suas famílias tiveram ao saber que estavam praticando capoeira, podemos observar que os preconceitos e discriminações acontecem em diversos âmbitos da sociedade, influenciadas por instituições de educação, comunicação ou religião: A gente acabou indo morar no fundo de uma igreja evangélica e a família acabou entrando por esse caminho. E aí, quando eu cheguei em casa e contei que eu tinha ido, tinha feito capoeira naquele dia e tal, nossa, o bicho pegou em casa. "Não, não pode fazer isso, que isso é coisa do diabo e não sei o que... vai fazer oferenda pro diabo, coisas e tal". E aí aquele encantamento, aquela coisa foi reprimida naquele momento e eu fui proibido de continuar indo lá na casa do rapaz. (Professor Leonardo. Entrevista, 2013)

Uma das primeiras pessoas que, quando eu falei que estava fazendo capoeira, foi contra a minha decisão, foi meu próprio pai. Eu falei "pai, estou fazendo capoeira". Ele pegou e me deu uma cintada, me bateu forte mesmo e falou assim: "isso é coisa de marginal. Por que você não vai fazer Senai?" Aí ficou aquele negócio marcado na minha cabeça. Nunca mais eu falei pra ele, mas também não saí da capoeira. (Contra-mestre Topete. Entrevista, 2013)

Assim como muitos capoeiristas, apesar da discriminação, Valdisinei (Valdo ou Valtinho, como era chamado na sua infância) manteve seu interesse na capoeira e, na década de 1980, com 15 anos, foi procurar uma academia de capoeira na cidade de Campinas. Nessa época, os dois únicos grupos de capoeira regional presentes no centro da cidade eram a Associação Beira-mar, com Mestre Tarzan e a Academia Coquinho Baiano, com Mestres Godoy e Maya. No dia 13 de junho de 1986, começou a treinar capoeira e fazer parte da Coquinho Baiano. É importante destacar que Mestre Godoy e Mestre Maya são da linhagem de Mestre Antônio, pesquisado no Projeto Só Mandinga, como citado na nossa introdução.

23 Imagem 9: Mestre Maya e Mestre Godoy. Acervo ECAR. Década de 1990. Primeiro eu fui na Beiramar, que era na [Rua] Visconde de Rio Branco (…) vi uma academia organizada, tudo, e fui perguntar o preço - eu ganhava 70 centavos na época, era Cruzeiro – aí eu fui perguntar o preço e era 70 centavos. Eu andei um pouquinho mais, eu e um amigo meu, cheguei na Rua General Osório, número 754, e vi “Academia de Capoeira Coquinho Baiano”. Não era nem grupo ainda, era academia. A palavra “grupo” vem nos anos 90. Aí eu subi lá em cima e já vi o Mestre Godoy, negro, grande, bravo. Aí eu falei “ah, acho que é aqui mesmo que eu quero aprender”. E aí eu perguntei o valor da mensalidade, era 40 centavos. Falei “poxa, aí sobra trinta pra passagem”. Aí eu comecei a fazer a capoeira, a praticar a capoeira. Foi em 86, dia 13 de junho de 86. (Contra-mestre Topete, entrevista, 2013)

Com dificuldade para conseguir horários para trabalhar, estudar e treinar capoeira, Valdisinei conseguiu emprego em uma indústria química chamada “Colaflex”, entrando às 7h e saindo às 15h. Treinava capoeira das 16h30 às 18h e ia direto para a escola, onde as aulas iniciavam às 19h. Só que a roda era na sexta. E a roda era às 18h. Aí dia de sexta-feira eu não ia mais para a escola, só para ficar na roda. E eu percebi que de noite iam os mestres, que o Mestre Godoy já tinha mestres e professores. Aí eu comecei, muitas vezes, a não ir para a escola para ficar na capoeira. (Idem)

A dedicação de Topete (apelido adotado pelo seu cabelo, na época usado para cima, estilo black power) pela capoeira foi lhe dando o seu valor e reconhecimento. Em pouco tempo, se

24 tornou Instrutor de capoeira regional e começou a participar de encontros e campeonatos. Dentro da [capoeira] regional tinha os campeonatos, que eram os campeonatos entre ligas: liga de Campinas, liga de Ribeirão Preto. Fui campeão. Campeonato municipal, fui campeão. Campeonato Paulista eu também fui campeão. Aí, quando a pessoa é campeã em todos esses lugares, tem o campeonato brasileiro. Aí eu também fui campeão, tive o privilégio de ser campeão. Eu tenho vários troféus e certificados. Aí depois, quem passou pelo campeonato brasileiro, disputa os Jogos Abertos. E eu também fui campeão. (Idem)

Os campeonatos nessa época eram comuns na capoeira regional, continuando o movimento de esportização da capoeira, iniciado no início do século XX quando passou a ser vista como um desporto nacional. Como citado acima, na década de 1930, , o Mestre Bimba14, criou a luta regional baiana, hoje mais conhecida como capoeira regional, passando a incorporar à capoeira movimentos corporais de outras modalidades de luta, como o boxe, o jiu-jitsu e a luta livre. Abaixo, uma reportagem do jornal A Tarde, de Salvador, para o qual Mestre Bimba deu uma entrevista, transcrita em partes na citação:

Imagem 10: “Jornal A Tarde”, Salvador, 16 de março de 1936.

Há dezoito annos que ensino capoeiragem. Adaptei vários golpes á chamada capoeira de Angola, praticada por meu mestre, o africano Bentinho. […]Fica assim lançado o desafio aos que praticam ou conhecem a capoeiragem, como também a qualquer outro luctador (jiu-jitsu etc.). O que quizerem. Eu os enfrentarei com minha capoeira! (BIMBA, 1936)

14 Mestre Bimba nasceu no dia 23 de novembro de 1900, em Engenho Velho de Brotas, Salvador-BA e faleceu no dia 5 de fevereiro de 1975, em Goiânia-GO, vítima de derrame cerebral.

25 Segundo Letícia Vidor Reis (2000), nessa nova modalidade, Mestre Bimba visou a eficiência dos golpes e a capoeira passou por um embranquecimento simbólico. Segundo a historiadora, “para legitimar socialmente a capoeira, mestre Bimba transpõe práticas e rituais acadêmicos (formatura, paraninfo), religiosos (, padrinhos e madrinhas) e militares (as medalhas) para o mundo da capoeira” (p. 108). Mestre Bimba buscou apoio entre as camadas mais abastadas de Salvador. Entre universitários e filhos de personalidades importantes, passou a ensinar capoeira em recintos fechados e criou novas metodologias para o ensino da capoeira, influenciado por tônicas militares (uso de apito, treinamentos para situações reais) e convenções acadêmicas (formaturas, graduações, etc.). Em 1963, Mestre Bimba publicou seu disco com o livreto “Curso de Capoeira Regional”, onde descreveu metodologicamente os movimentos, os toques de berimbau e as regras da sua capoeira.

Imagem 11: Contra-capa do LP “Curso de Capoeira Regional”, de Mestre Bimba, 1963. Sobre os aspectos empregados por Mestre Bimba como metodização da capoeira regional,

26 encontramos diversos estudos. Dentre eles, destacamos os estudos de Héllio Campos15, Muniz Sodré16 e Ângelo Augusto Decânio Filho17. No ano de 1989, Topete passou a treinar capoeira angola com um outro integrante do Grupo Coquinho Baiano, Gidalto Pereira Dias (Mestre Pé-de-Chumbo), que desde 1982 era também aluno do Mestre João Pequeno no Centro Esportivo de Capoeira Angola – Academia de João Pequeno de Pastinha (CECA-AJPP). Em 1989, Mestre Pé-de-Chumbo assumiria exclusividade para a capoeira angola em Campinas e Indaiatuba, abandonando a capoeira regional do Grupo Coquinho Baiano e criando o primeiro núcleo do CECA no estado de São Paulo. Aí eu fui para a Bahia e, quando eu cheguei lá, eu estava começando a fazer capoeira angola, mas eu já dava aula de regional. Eu fui lá no Forte Santo Antônio18, no [Mestre] João Pequeno, aí entrou um aluno do Mestre Marrom da Bahia, chamava Espantalho. Eu levei tanta rasteira, tanto chute. E eu era campeão da regional. Aí eu percebi, despertou: “é essa capoeira que eu quero”. Eu percebi que a capoeira angola não é violenta. Ela é malvada, é perversa. O angoleiro pega na hora que quer. Eu dava meus chutes mas, quando eu vacilava, [ele me] pegava. Aí eu comecei a treinar capoeira angola. (Contra-mestre Topete. Entrevista, 2013)

O CECA foi fundado por Joaquim Vicente Pereira Pastinha, o Mestre Pastinha, considerado o Mestre mais importante para a institucionalização, organização e divulgação da capoeira angola. Cabe aqui, então, um parênteses para falarmos desse grande Mestre, cujas metodologias e ensinamentos serão as bases que constituirá os fundamentos da ECAR, assim como de Mestre João Pequeno de Pastinha, que fundou a AJPP.

1.3. Mestre Pastinha e a criação do Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA) Joaquim Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, nasceu no dia 5 de abril de 1889, em Salvador, Bahia. Começou a praticar capoeira entre os 8 e 10 anos, com um negro africano natural de Angola, chamado Benedito. Aos 12 anos, Mestre Pastinha ingressa na Escola de Aprendizes da Marinha, onde permanece até 1910, ensinando capoeira a seus colegas e aprendendo esgrima, florete, carabina e ginástica sueca (Simões, 2006). Nesse período, Mestre Pastinha também desenvolveu sua escrita, que será fundamental para sua atuação na

15 CAMPOS, Hellio. Capoeira Regional: a escola de Mestre Bimba. Salvador: EDUFBA, 2009; 16 SODRÉ, Muniz. Mestre Bimba: Corpo de Mandinga. : Manati, 2002. 17 DECÂNIO FILHO, Ângelo. A herança de Mestre Bimba. Salvador: Coleção São Salomão, 2ªed, 1997. 18 Forte Santo Antônio Além do Carmo, também conhecido como Forte da Capoeira, em Salvador-BA, onde encontramos diversos grupos e mestres importantes da capoeira baiana. Um dos grupos lá presentes é o CECA-AJPP.

27 institucionalização da capoeira angola, o registro e a divulgação dos seus ensinamentos em livros e manuscritos. Em 1910, após sair da Escola da Marinha, aos 20 anos, Mestre Pastinha fundou sua primeira Escola de Capoeira e ficou até 1922 em um salão localizado no Mirante do Campo da Pólvora, em Salvador. Em 1922, mudou-se para o Cruzeiro de São Francisco (largo localizado no centro histórico da capital baiana), passando a dar aula também para estudantes universitários moradores de repúblicas em Salvador. Além das aulas de capoeira, Mestre Pastinha era exímio artista popular em outras artes (escrevia poesias e pintava a óleo) e, “quando sua arte negava sustento” (REIS, p. 110), fazia trabalhos como garimpeiro, engraxate, jornaleiro e segurança em casas de jogo. Mestre Pastinha se opunha à mistura da capoeira com outras modalidades como fazia Mestre Bimba. Afirmava a raiz africana da luta e utilizava a expressão “capoeira angola” para diferenciar o tipo de capoeira que ensinava (originada a partir dos escravos africanos vindos, de sua maioria, da região de Angola) da modalidade criada por Mestre Bimba. Passou a sistematizar essa modalidade indicado por outros mestres e capoeiristas que organizavam uma roda de capoeira no Bairro de Gengibirra. Passou então a tomar conta da roda e, reunindo os capoeiristas e mestres interessados, fundou o Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA) em 23 de fevereiro de 1941. Porém, o registro só foi oficializado no dia 01 de outubro de 1952, como Pastinha mesmo retificou nessa passagem de seus manuscritos:

28 Imagem 12: Retificação do registro do CECA no manuscrito (PASTINHA, 1960) Mestre Pastinha registrou, em seus manuscritos, todos os fundadores do CECA, assim como a história de sua formação. Como ele mesmo descreve: "Pastinha deu ao Centro de capoeira, mestre de campo, mestre de cantos, mestre de bateria, mestres de trenos, arquivistas, mestres fiscal, contra-mestre" (PASTINHA, 1960). O CECA era, na época, a única instituição de capoeira angola organizada, onde os alunos usavam uniforme - preto e amarelo, referentes às cores do time de futebol Ypiranga, para o qual Mestre Pastinha tinha grande adoração -, recebiam diploma e carteira de identificação. As primeiras críticas não demoraram a aparecer. O reconhecimento dos brancos faz outros mestres angola torcerem o nariz para Pastinha. Waldemar, Cobrinha Verde, Canjiquinha e Caiçara afirmam não concordar com seus métodos, queriam a capoeira dos guetos. Pastinha responde à altura. “Com franqueza, é tempo de zelar pelo esporte”. Os demais tiveram que se adequar à sua didática. Ainda hoje os grupos de capoeira angola, sem exceção, seguem o seu modelo (LYRIO, s/d)

Nos manuscritos, Mestre Pastinha também escreveu sobre os fundamentos e seus pensamentos sobre a capoeira, contando episódios, analisando a capoeira como filosofia e se preocupando com os aspectos éticos e educacionais de sua prática, com a valorização da cultura afro-brasileira. Assim, ensina que “a base fundamental do nosso centro é a boa conduta, educação social, solidariedade humana e sobretudo a prática do bem, não usando a arma poderosa que é a capoeira a não ser em legítima defesa”(apud LYRIO, s/d). Para produzir os manuscritos, Mestre Pastinha utilizou a grafia como a transcrição

29 fonética do linguajar popular do baiano, que Decânio Filho (1997) chama de "dialeto capoeirano afro-brasileiro". Essa linguagem coloquial tende também a ser poética, como nesses exemplos: “Eu nasci no sábado, no domingo eu me criei, na segunda-feira, capoeira eu joguei” e "a ação do corpo, tem relações com sua natureza; ciencia, eu sei que tem na capoeira, é fruto da nossa inteligencia, e tudo que lhe cerca, o meio, e o ambiente" (PASTINHA, 1960). Ao apelidar a obra manuscrita de “Caderno albo”, Mestre Pastinha colocou como título “Quando as pernas fazem miserê”. Na contra-capa aparece o subtítulo “Metafísica e prática da capoeira”, colocado “talvez por influência de Wilson Lins” (DECÂNIO FILHO, 1997, p. 5)19, jornalista e deputado que apoiava politicamente as atribuições do mestre.

Imagem 13: Capa e contra-capa dos manuscritos de Mestre Pastinha.

Para ilustrar os movimentos da capoeira, Mestre Pastinha utilizou desenhos com observações ou com trechos de músicas:

19 Mestre Decânio faz uma análise dos manuscritos de Mestre Pastinha no livro “Herança de Pastinha”.

30 Imagem 14: Desenhos e observações de capoeira (PASTINHA, 1960)

Segundo Alexandre Lyrio (s/d), Mestre Pastinha, com sua fama de artista e intelectual do povo, conviveu com intelectuais da época como Pierre Verger, Pablo Picasso e Paul Sartre, que visitavam sua academia. Pastinha também mantinha boa convivência e amizade com o artista plástico Carybé e o escritor , por quem foi citado em seus romances (“Bahia de todos os Santos”, de 1960). Em 1964 foi lançado o livro Capoeira Angola, por Mestre Pastinha, com prefácio de Jorge Amado e capa de Carybé. Quem editou o livro foi Wilson Lins, com quem Pastinha deixou parte da coletânea dos seus manuscritos para que utilizasse como base para a publicação. Percebemos, porém, uma grande diferença da linguagem e do conteúdo do livro com relação aos manuscritos. Enquanto nos manuscritos encontramos um texto escrito livremente pelo mestre, com linguagem mais poética, metafórica e coloquial, além dos seus desenhos; no livro, encontramos um texto mais descritivo, com uma linguagem direcionada à norma culta e

31 fotografias no lugar dos desenhos, adquirindo um caráter de manual, conforme descrito na nota à terceira edição, de 1988: No caso, importa destacar-se, quanto ao livro de Mestre Pastinha, seu valor de manual, na medida em que informa sobre a prática da capoeira, desde os golpes e os toques, melodias e ritmos, instrumentos musicais e ginga, sem excluir a ética que deve presidir o comportamento de quem conta com arma tão poderosa. Sobre este aspecto, pode-se dizer, Pastinha não ensinou apenas capoeira, mas também contribuiu para a formação de uma consciência, em relação à cultura popular. (PASTINHA, 1988, p. 7)

Imagem 15: Capa do livro “Capoeira Angola”, de Mestre Pastinha, 2ª ed..

Em 1966 Mestre Pastinha liderou a comissão de artistas brasileiros que foi para o 1º Festival Mundial de Arte Negra de Dakar, capital do Senegal. Para Pastinha, seria a realização de um sonho, por poder mostrar para os descendentes dos seus ancestrais a capoeira que havia surgido de sua cultura (LYRIO, s/d).

32 Imagem 16: Parte da comissão de brasileiros indo para o festival de Dakar, em 1966 (Acervo Mestre Gildo de Alfinete) Essa época foi o auge do trabalho de Mestre Pastinha. Em 1969 lançou o disco “Mestre Pastinha e sua academia”, com músicas de capoeira angola (entre composições próprias e de domínio popular) e depoimentos do Mestre sobre sua vida, sobre a capoeira e sobre o CECA.

Imagem 17: Capa do LP “Mestre Pastinha e sua academia”, 1969. Além dessas produções, Mestre Pastinha também participou da gravação de documentários. Entre eles, a película de Alceu Maynard de 1949, talvez o único registro audiovisual em que aparece Mestre Pastinha jogando capoeira e ensinando duas crianças (um menino e uma menina) a brincar a capoeira; um documentário realizado por uma TV Francesa

33 chamado “La Capoeira”, de 195220; o filme “Dança de Guerra”, de Jair Moura em 1968; “Capoeira Angola segundo Mestre Pastinha” por Antônio Carlos Muricy, de 1991, que em 2000 lançou uma nova versão, mais completa, chamada “Pastinha, uma vida pela capoeira”. Mestre Pastinha foi um artista popular que fazia sua arte de muitas maneiras, como filósofo, poeta, capoeira, músico, pintor, etc. Deixou com Carybé uma tela pintada à óleo chamada “Roda de capoeira”: .

Imagem 18: “Roda de capoeira”, de Mestre Pastinha, pintura à óleo, s/d. Em 1971, o prédio do CECA foi fechado para reforma e, embora tenha sido prometido devolvê-lo para Mestre Pastinha ao final da reforma, foi doado ao Patrimônio Histórico da Fundação do Pelourinho, que o vendeu para o SENAC. Mestre Pastinha, velho e cego, foi, então, despejado, sem nenhuma indenização sobre o local e seus materiais lá presentes. Após esse episódio, Mestre Pastinha entrou em uma profunda depressão, em condição de miséria. Segundo Reis (2000, p.117), em 1972, Jorge Amado conseguiu-lhe uma pensão vitalícia do governo da Bahia. Em 1979, sua mulher Maria Romélia de Oliveira, com ajuda de intelectuais, conseguiram um casarão para reabrir sua academia. “O mestre, auxiliado por seus discípulos João Pequeno, João Grande e Ângelo, responsáveis pela parte prática das aulas,

20 Tanto o registro de Alceu Maynard quanto o documentário “La capoeira” podem hoje ser encontrados facilmente na internet.

34 continuaria a falar sobre os fundamentos da capoeira, inclusive corrigindo seus alunos ‘pelo som da queda no taboado’” (Idem). No final de 1979, Mestre Pastinha sofreu um derrame e passou um ano internado. Quando recebeu alta, foi levado para um abrigo, onde morreu, no dia 13 de novembro de 1981, aos 92 anos de idade.

1.4. Mestre João Pequeno e a criação da Academia de João Pequeno de Pastinha (AJPP) Mestre João Pequeno de Pastinha, ou , nasceu no dia 27 de dezembro de 1917, em Araci-BA. Seus primeiros 15 anos de vida foram entre a região de Queimadas e o povoado de Barroca, onde seu padrinho possuía propriedade. Mestre João Pequeno conta que, em 1933, devido a uma grande seca, foram andando de Serrinha para Alagoinhas, ao encontro de seu pai e seu irmão. Após um ano, eles se mudaram para Mata de São João, onde viveram cerca de 10 anos. Foi trabalhador no campo, plantou cana-de-açúcar, foi chamador de boi e foi carreiro (ficava em cima do carro que conduzia os bois). (SIMÕES, 2006, p. 66)

Nesse período, conheceu e teve sua primeira aula de capoeira com mestre Juvenço, que era ferreiro e capoeirista. Em 1943, Mestre João Pequeno mudou-se para Salvador, com 26 anos de idade. Trabalhou como cobrador e como servente de pedreiro. Nessa época, um amigo o apresentou ao capoeirista Barbosa, pedindo a este que ensinasse capoeira para João Pequeno. Barbosa e seus companheiros frequentavam uma roda organizada pelo Mestre Cobrinha Verde, em um bairro chamado Chame-Chame, embaixo de uma mangueira. Certo dia, Mestre Pastinha foi a essa roda e disse a todos que queria organizar a capoeira e convidou, quem estivesse interessado, a comparecer no bairro do Bigode (JOÃO PEQUENO & LIMA, 2000). No final da semana, João Pequeno foi até o local e fez seu registro no CECA, por volta de 1945. Desde então conviveu com Mestre Pastinha que, logo o passou a trenel (aluno responsável em puxar os treinos para o mestre). No ano de 1967 para 1968, quando Mestre Pastinha não estava podendo mais jogar, disse para o João: “toma conta disto porque eu vou morrer, mas eu morro somente o corpo e em espírito eu vivo, enquanto houver a capoeira o meu nome não desaparecerá”.(SIMÕES, 2003, p. 67)

Em 2 de maio de 1982, após a morte de Mestre Pastinha, Mestre João Pequeno funda a Academia de João Pequeno de Pastinha (AJPP) - Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA),

35 no Forte Santo Antônio Além do Carmo (Salvador – BA). Mestre João Pequeno, gravou, junto com Mestre João Grande21, um disco com músicas e depoimentos. Também publicou, mesmo sem saber escrever, o livro “Uma vida de capoeira” (2000), escrito em parceria com pesquisadores que transcreveram suas histórias, coordenados pelo Mestre Luiz Normanha Lima, professor da Unesp de Rio Claro. Pedro Abib, seu aluno, além de sua tese de doutorado, publicada em livro em 2006 (que utilizamos como base para o nosso trabalho), também realizou, em 1999, o documentário “O velho capoeirista: Mestre João Pequeno de Pastinha”. Mestre João Pequeno participou de diversos outros eventos, vídeos e livros, que ajudaram a repassar seus saberes para outras pessoas.

Imagem 19: Capa do livro "Uma vida de capoeira", de 2000. João Pequeno de Pastinha faleceu no dia 09 de dezembro de 2011, prestes a completar 94 anos de idade. É importante notarmos a relevância que Mestre Pastinha e Mestre João Pequeno deram para a Divulgação Cultural da Capoeira Angola, por meio de diversos suportes, assim como a

21 João Oliveira dos Santos, o Mestre João Grande, nasceu no dia 05 de janeiro de 1933, na cidade de Itagi-BA. Outro importante discípulo de Mestre Pastinha, hoje vive em Nova York, nos Estados Unidos, onde tem recebido diversos prêmios e títulos em reconhecimento ao seu trabalho como mestre da cultura popular. João Pequeno e João Grande são considerados dois baluartes, guardiões e difusores dos conehcimentos da capoeira angola de Mestre Pastinha.

36 forma como utilizaram as tecnologias da escrita, das artes plásticas, da música, da fotografia e do audiovisual para a institucionalização, o registro e a manutenção dessa memória. É importante, também, pensarmos nas formas de sistematização que utilizaram para o reconhecimento e o crescimento da capoeira angola em todos os âmbitos da sociedade brasileira e, posteriormente, expandindo-a para o exterior.

1.5. O trabalho com a capoeira, as viagens e a escolha pela capoeira angola Retomado a história do Contra-mestre Topete e a fundação da ECAR, a partir de 1992, o então Instrutor de capoeira regional Topete passou a trabalhar com produção e venda de artigos de capoeira. Nessa época, fitas K7 de áudio, livros, discos de vinil, fitas de vídeo e outras raridades da capoeira eram valorizadas, pois não eram encontradas em lojas em geral e não estavam disponíveis na internet, como viria a acontecer nas décadas seguintes. Então, o trabalho de compra e venda desses materiais era uma das únicas formas de divulgação das produções sobre a capoeira. Topete passou, assim, a circular pelos eventos, não somente como capoeirista, mas agora também vendendo seus artigos e ministrando cursos. Com esse trabalho, Topete teceu laços de amizade com muitos Mestres sendo, assim, cada vez mais (re)conhecido e aumentando sua experiência na capoeira. O contato com outros capoeiristas, de outros estilos, grupos e lugares é um tipo de experiência muito valorizada na capoeira pelo Contra-mestre Topete, que sempre faz questão que seus alunos também tenham esses aprendizados e multipliquem seus conhecimentos, explorando diferentes situações e acontecimentos vivenciados nos diversos eventos e rodas: Você lê um livro, até mesmo um livro que te agrada, você aprende.(...) Mas se você ler um segundo livro, você vai ter um maior conhecimento. Talvez você não consiga interpretar tudo o que está escrito no livro, mas você vai entrar em outro fundamento. Aí, se você ler, você vai conhecendo. Então, o fato de você divulgar a capoeira e o trabalho, vai conhecendo as pessoas e, automaticamente, as pessoas vão conhecendo quem você é e como é que é o seu trabalho. A pessoa vai aprendendo, você está ensinando e, ao mesmo tempo essa pessoa vem com uma cultura, um outro conhecimento, talvez na mesma arte. Então, eu acho que divulgação é conhecimento. Porque quase todo final de semana eu viajo, vou atrás de evento. Se eu não tivesse viajado, ou até mesmo ter viajado para outro país, eu não saberia das culturas desses países que eu fui. Se eu estivesse aqui, só na Resistência, talvez eu não teria o conhecimento, talvez eu não teria nem como contribuir com o Danilo para falar de muitas coisas que eu estou falando. Então, eu acredito que as viagens e as pessoas que eu conheci, os mestres que eu conheci, as aulas que eu tive com outros mestres, isso multiplicou o meu conhecimento (Contra-mestre Topete. Entrevista, 2013).

No dia 12 de dezembro de 1992, Topete formou-se Professor de Capoeira Regional, como

37 lembra: “o Godoy era difícil de dar graduação. Todo mundo demorava 8, 10 anos e eu demorei 6 anos e meio” (Idem). Observa-se, aqui, que a graduação na capoeira segue critérios de tempo, dedicação e experiência na atividade e varia de acordo com o mestre, com o grupo e com a dedicação do capoeirista. Na maioria dos grupos de capoeira regional é utilizado o cordão, com cores diferentes, para designar a graduação do aluno, estagiário, formado, instrutor, professor ou mestre (não necessariamente nessa ordem e denominação). Já na capoeira angola, normalmente não é utilizado nenhum adorno que demonstre a graduação do praticante. Nessa época um aluno do Topete chamado Diógenes, o Dedê, com cerca de 15 anos, passou a acompanhá-lo nas suas viagens para eventos de capoeira. Seu pai, também capoeirista, foi procurar saber com quem seu filho viajava.

Imagem 20: José Nicodemos Cabral, o Professor Nico. Acervo ECAR. José Nicodemos Cabral, o Professor Nico, nasceu em 1953. É mineiro e mora em Campinas desde 1972. Começou a treinar capoeira em 1981 com o Mestre Tarzan (Academia Beiramar), com quem treinou até 1987. Em 1990, Nico passou a treinar com o Pelé, também do Grupo Coquinho Baiano, junto com seu filho Diógenes (Dedê) que, no ano seguinte, passou a treinar com o Professor Topete, acompanhando-o em suas viagens.

38 Assim, entre 93 e 94, Seu Nico conheceu o Topete e também passou a treinar e viajar com ele e seu filho Diógenes para campeonatos de capoeira regional e outros eventos, vendendo artigos de capoeira. Na capoeira regional com o Topete, Seu Nico conquistou duas graduações. Aí nisso que a gente começou a viajar, eu passei a trabalhar com ele, com a capoeira. O Topete saiu da firma que ele trabalhava [Colaflex], eu estava desempregado também, separando da minha família. O Topete falou: “Seu Nico, vamos viajar comigo agora, vamos correr atrás da capoeira. A gente vende material, eu te ajudo...” Quer dizer, ele me ajuda cem por cento a mais que eu ajudo ele, se for ver.(...) E começamos a rodar juntos, trabalhamos com pintura... e treinando capoeira, capoeira regional e angola. (Professor Nico, Entrevista, 2006)

De 1995 a 1998, enquanto o Mestre Pé-de-Chumbo viajou para o exterior, Topete treinou capoeira angola com o Mestre Jogo-de-Dentro, que estava morando em Campinas e também é discípulo do Mestre João Pequeno. Nessa época, Topete ministrou aulas de capoeira em Hortolândia, no Jardim Amanda; em escolas nos bairros Santa Amália, Jardim Denadai, Jardim Bandeirantes e Jardim Aclimação em Sumaré; e na sua casa, localizada no bairro São Judas Tadeu II, no Matão.

Imagem 21: Treino de capoeira no Jardim Amanda, em Hortolândia. Topete segura o primeiro berimbau (o Gunga) à esquerda. Nota-se a formação da bateria na configuração utilizada na capoeira angola (três berimbaus, pandeiro, reco-reco, agogô e atabaque). Fotografia cedida por Fredy Colombini, feita entre 1997 e 1998.

De tanto que eu fiquei curioso e esforçado, eu dava aulas também. Duas vezes por semana era capoeira angola e duas vezes era capoeira regional. Mas eu percebi que meus alunos, por mais que eu tentava mudar a metodologia, ficavam meio perdidos nas metodologias. Aí eu percebi que não dava para treinar as duas coisas. E eu fui só para a capoeira angola. O interessante não é você fazer um monte de coisas, mas uma coisa só, bem feita. (Contra-mestre Topete. Entrevista, 2013)

39 A partir do ano de 2000, Topete também deixou a capoeira regional, saiu do Grupo Coquinho Baiano e passou a se dedicar somente para a capoeira angola, no CECA, sob supervisão de Mestre Bahia, de Indaiatuba, formado na capoeira angola pelo Mestre Pé-de-Chumbo. Eu sempre gostei e gosto da capoeira regional, mas eu me apaixonei pela capoeira angola. E eu percebi, dentro do estudo que, realmente, ela não é violenta, mas ela é perversa e malvada. O angoleiro vence na hora certa. E essa possibilidade, essa união de saberes, esse monte de ritmos, cantos, eu não tinha isso na capoeira regional. Então pra mim foi uma coisa fantástica. (Idem)

Nessa mudança, somente alguns alunos acompanharam Topete na sua nova caminhada. Entre eles, Dani (Daniel Carneiro, um de seus alunos mais antigos), Fredy Colombini, Dinda, José Nicodemos Cabral (Professor Nico) e seu filho Diógenes Cabral (Dede). Então aí nós falamos: “Topete, onde você for a gente vai junto, sem pena e sem dó.” (...) aí não teve jeito. Eu falei: “Pô Topete, capoeira angola é 100, 150 por cento! Vamos Embora!” (...) E nós ficamos: capoeira angola, capoeira angola, vendendo, começamos a fazer caxixi, né Topete? Sozinhos, com Deus e o credo. (Professor Nico, Entrevista, 2006)

Imagem 22: Primeira turma do Topete no CECA, quem ficou com ele em sua mudança para a capoeira angola: Dede, Dani, Nico, Dinda e Fredy. Fotografia cedida por Fredy Colombini, para quem “essa foto merece um carinho especial”, tirada entre 2003 e 2004.

No ano de 2001, Topete recebeu o título de Trenel de capoeira angola. Em 2002, Trenel Topete e Seu Nico conseguiram um local fixo para vender os artigos de capoeira em uma banca nas redondezas do Terminal Central de Ônibus Urbano de Campinas.

40 1.6. O gueto: espaço para o trabalho e para a roda de capoeira angola O Terminal Municipal de Ônibus Urbano de Campinas, mais conhecido como “Terminal Central”, foi construído durante o processo de transformação do Centro de Campinas, iniciando em 1962, com o Plano Prestes Maia. Na década de 80, foram construídos quatro terminais de ônibus urbanos ao longo do centro. Um deles ocupou a parte central do anel viário Miguel Vicente Cury, onde existia uma praça chamada Lago dos Cisnes. No espaço localizado entre o Terminal Central (administrado pelas empresas de transporte) e as ruas do entorno (vias públicas), existe uma área “entre”, abandonada pelo poder público, que foi organizada nos interstícios dos viadutos pelos próprios cidadãos, excluídos pela privatização dos espaços públicos urbanos. Assim, nesse lugar “entre”, há uma organização de pessoas que administram o seu uso, montando as bancas, cobrando pelo uso das mesmas, pela luz e pela segurança.

Imagem 23: Jardim dos Cisnes, localizado no centro do Viaduto Vicente Cury, na década de 70. Fonte: Blog Pro-memória de Campinas-SP.

Imagem 24: Local onde era a Praça Lago dos Cisnes, hoje o Terminal Central. (Google Maps)

41 Segundo Igor Guatelli, “em suma, seria no espaço, não no espaço pré-determinado, mas nos 'entres', nos espaços livres de pré- configurações, que vivenciaríamos estes 'momentos de invenção' e criaríamos condição para o devenir autre [tornar-se outro], indo além dos limites impostos pelo natural (...), pela história construída por discursos dominantes” (2008, s/p). Assim caracterizam-se, portanto, os espaços do entorno do terminal Miguel Vicente Cury, no centro de Campinas, como um lócus de manifestações da economia e da cultura popular informal. Nas redondezas do Terminal, além das bancas de camelôs com produtos eletrônicos, roupas, CDs, frutas, bares e lanchonetes, encontramos rodas de samba, lojas de produtos do norte e do nordeste, tapioca, caldo de cana e outros produtos referentes à circulação de imigrantes de outras regiões do país . “Esse é o nosso habitat. Eu adoro o gueto, adoro estar no meio de todo mundo”, disse um dia o Contra-mestre Topete, apresentando o lugar para um visitante da Roda do Gueto, sobre a qual falaremos a seguir. Nessa afeição pelo lugar, encontramos uma coerência na valorização e na identificação da capoeira em um lugar frequentado por pessoas em situação de rua, imigrantes e trabalhadores da classe popular. Porém, o potencial dessa diversidade é desvalorizado pelo discurso hegemônico, uma vez que, nas reportagens veiculadas pelas grandes emissoras de comunicação, são enfatizados somente os aspectos negativos que também convivem no local, tais como a prostituição, o tráfico e o uso de drogas. Visando fazer uma roda na rua que trouxesse capoeiristas de diversos lugares para um ritual que remetesse às rodas de rua dos grandes mestres do passado e divulgasse a capoeira para a população campineira, no dia 18 de fevereiro de 2003, Topete e seus alunos começaram a realizar uma roda de capoeira angola, toda sexta-feira, a poucos metros de onde era localizada a sua banca. Essa roda acontece em uma das vielas que dá acesso ao terminal, bem próxima à sede da Escola, rodeada de camelôs, cabeleireiros, bares e vendedores ambulantes. É uma das passagens para entrar no terminal, e isso faz com que passem por lá milhares de pessoas por dia (ABREU E SILVA, 2006).

42 Imagem 25: Roda do Gueto, com a ECAR ao fundo. Arquivo ECAR, 2011. Desde o início, nosso objetivo era a criação de uma roda de capoeira onde não houvesse discriminação de forma alguma: de cor, religião, idade, sexo, estilo de jogo; enfim, uma roda onde todos pudessem jogar capoeira, em igualdade, mas respeitando as características próprias de cada um... Decidimos também que essa roda aconteceria toda sexta-feira, sem falhas. (Contra-mestre Topete in Capoeiracada: revista de capoeira, 2006, p. 26)

No início, a roda recebeu diversos nomes, como “Roda do Gengibirra” (em referência à roda realizada em Salvador na época de Mestre Pastinha), “Roda do Topete”, “Roda do Terminal”, mas o nome que permaneceu foi “Roda do Gueto”. Contra-mestre Topete, em seu depoimento, diz que “o gueto é um beco. É um lugar assim que tem várias classes sociais, passando, vivendo junto. Uma... não sei a palavra certa, uma periferia”. Segundo Souza (1999), nas grandes cidades, as pequenas comunidades são recriadas dentro de um contexto de desagregação do espaço urbano e formam os guetos, que conseguem manter sua unidade cultural, preservando a intimidade e a solidariedade do social. A Roda do Gueto é uma roda de rua, aberta, que acontece em um espaço de livre circulação. Assim, adquire características diferentes de algumas rodas que acontecem em academias, ginásios, escolas ou associações, em que há um público conhecido e seleto. Por lá passam muitas pessoas, com diferentes interesses e gostos. Outra diferença é que, por ser uma roda semanal, sua repetição faz com que os seus frequentadores (capoeiristas ou não) passem a incorporá-la à rotina semanal de suas vidas, com a lembrança de que existe a roda, naquele

43 mesmo lugar, toda sexta-feira à noite (e, ainda, com aquelas pessoas). A diferença dela é que ela é uma roda aberta pra qualquer um, simpatizante da capoeira angola ou capoeirista que respeita os rituais da capoeira angola e que queira jogar capoeira. E ela é voltada aos nossos antepassados, nossos mestres, nossos ancestrais, que antigamente as rodas que existia na beira do cais da Bahia, nas praças, na praia, que todo mundo chegava, do trabalho, do estudo pra vadiar, brincar capoeira. (Contra-mestre Topete, entrevista, 2006)

Na Roda do Gueto, não utilizamos o uniforme da ECAR. Vamos para a roda “à paisana” - como brinca o CM Topete -, com a roupa do trabalho, da escola, da festa, enfim, a que quisermos usar, mas desde que seja adequada para uma roda de capoeira angola. Nós angoleiros buscamos vestir calça, camisa ou camiseta (com manga, curta ou longa) e pés calçados (tênis, sapato ou sandália que se prenda ao pé). Dessa maneira, toda sexta-feira ocorre a Roda do Gueto, que nesse ano de 2013 completou 10 anos de existência. Em dias de chuva, a roda também acontece. Porém, é realizada na frente do espaço da Escola, onde há uma cobertura.

Imagem 26: Comemoração de 10 anos da Roda do Gueto. Roda realizada na "varanda" da Escola. Acervo ECAR, 2013

Essa é uma roda de capoeira angola e não apenas uma roda de angoleiros. Todos os que quiserem jogar, que respeitem os fundamentos da Angola e também aqueles que querem descobrir esses fundamentos, podem participar da roda. Agora, quanto à bateria, para participar dela, é preciso que o capoeirista tenha domínio dos instrumentos e ritmo (...) (Contra-mestre Topete in Capoeiracada: revista de capoeira, 2006, p. 27)

A bateria da capoeira angola na ECAR é constituída por oito instrumentos: três

44 berimbaus: o Gunga (com o som mais grave), o Médio e o Viola (o mais agudo); dois pandeiros; um agogô; um reco-reco e um atabaque, dispostos nessa sequência, se observados de frente. O berimbau Gunga (o mais grave) é sempre o principal instrumento das rodas de capoeira, hierarquicamente superior aos demais, geralmente tocado pelo mestre (guardião) ou alguém mais próximo do mestre: Contra-mestre, Professor, Trenel ou o aluno mais experiente, seguindo a hierarquia do grupo. Assim, é o berimbau Gunga quem comanda o ritmo da roda. Com base nele é que o Médio e o Viola farão seus toques, assim como os outros instrumentos. É função do Gunga, também, iniciar a roda, chamar a atenção dos jogadores, encerrar o jogo, parar a bateria, aumentar ou diminuir o ritmo, parar ou mudar o jogo. A maioria das pessoas que participam da roda são os integrantes da ECAR e demais capoeiristas de Campinas e região. Amigos, familiares e capoeiristas de lugares mais distantes também vêm visitar a Roda do Gueto. Muitos Mestres importantes já passaram por ela. Agora, quando algum mestre de capoeira Angola está presente, é ele que vai ter a prioridade no comando da roda. Sabe como é: a capoeira Angola tem seus princípios, seus valores, sua educação, sua hierarquia. Nela, o mestre mais velho, o mais experiente, possui seus direitos, seus privilégios. É um respeito, uma obrigação que os mais jovens devem aos mais velhos. (...) Se o professor ou mestre de Regional domina e respeita os toques, o ritmo, os cantos e o ritual da Angola, ele pode participar da bateria. (Professor Topete in Capoeiracada: revista de capoeira, 2006, p.28)

Para o Professor Leonardo Lopes (também membro da ECAR, formado pelo Contra-mestre Topete), a roda de rua é muito importante, porque a capoeira nasceu na rua, das classes menos favorecidas e, se hoje a capoeira “tem reconhecimento social, está dentro das universidades, está no teatro, está no cinema, está em várias esferas sociais, diferentes da sua origem, é pela luta de pessoas que vieram dessa origem, que é o pessoal do gueto mesmo, o pessoal pobre e, se a gente se esquecer disso, é aquela coisa: ‘planta sem raiz, morre’” (Professor Leonardo, entrevista, 2006). Para ele, a roda de rua retoma a essas origens, na “contra-mão” do que a capoeira e as culturas estão passando atualmente, sendo transformadas em mercadorias. Para Mestre Guanabara (José da Guanabara), que também frequentou a roda, vindo de Londrina: Realmente esse é um trabalho de resistência de importância muito grande, porque isso é uma tradição da capoeira. E a roda de rua é um resgate de tudo aquilo da capoeira, da malandragem da capoeira, da mandinga, daquela capoeira teatral, daquela capoeira maliciosa, daquela capoeira que: “se cochilou, o cachimbo cai”. (Mestre Guanabara, entrevista, 2006)

A partir do ano de 2011, a ECAR passou a realizar eventos ocupando, também, o vão deixado ao lado do espaço da escola, onde antes era uma loja de calçados que no ano de 2010 foi

45 demolida. Nesse local, são realizadas aulas abertas de capoeira angola, além de apresentações culturais, como samba-de-roda, puxada-de-rede, dança do fogo e maculelê, manifestações afro-brasileiras estudadas pela Escola Resistência. Aos sábados, alguns moradores de rua e frequentadores da região improvisam, também, partidas de futebol ou outras atividades, fazendo de um espaço vazio, sem funcionalidade oficial, um local de convivência e atividades de integração social.

Imagem 27: Aula de capoeira sob o Viaduto Cury, durante evento da ECAR em setembro de 2011. Acervo ECAR. Assim, observamos que essas ações de ocupação, transformação e ressignificação dos espaços públicos, realizadas através de iniciativas populares, nos entre-lugares da cidade, tratam de práticas cotidianas e formas locais autênticas de resistência cultural do povo frente aos padrões hegemônicos. Segundo Guatelli, “conceitua-se essa disposição do novo fazer à qualidade do 'entre', ruptura do restrito, formal, do programado e pragmático, 'cultura' do espaço imaginário, do espaço em transformação e do porvir, da escala de quem faz e não do que a função restrita programa” (2008, s/p). Nesses espaços ocorrem a diferenciação e a negociação dos interesses e o intercâmbio de valores colaborativos da comunidade, em um ato de sobrevivência social, de reafirmação da identidade, através da memória, e de reconstituição de práticas e de tradições vindas do passado, como podemos observar na Roda do Gueto. Através da roda de capoeira, do lazer, da memória,

46 da festa e do encontro entre as diferenças, cria-se novas sociabilidades e atribui-se àquele espaço características distintas daquelas proclamadas pelas atividades que reafirmam a tendência predominante de modernização excludente, seletiva e incompleta, que são características do processo de globalização, como veremos a seguir.

1.7. Globalização, Estado e Comunidade No processo de globalização, segundo Milton Santos (2003), os usos dos novos sistemas técnicos e da ciência, condicionados pelas instituições do capital e precedidos pelas técnicas informacionais, tendem a separar os estados da técnica do estado da política. Isso faz com que a tecnociência influencie diversos aspectos da existência humana (a vida econômica, a vida cultural, as relações interpessoais e a própria subjetividade). Esse processo tem como centralidade o dinheiro e o consumo - sustentado agressivamente por uma informação ideológica de mercado, de competitividade e de vontade de potência – e distorce os sentidos da vida, do trabalho e do lazer, deixando a humanidade, o território, o Estado-nação e a solidariedade social como elementos residuais. Milton Santos (2000b) aponta que o uso privilegiado do território e dos meios de comunicação em função dos poderes hegemônicos conduz a uma fragmentação geográfica e social do território e ao enfraquecimento das instituições passíveis de controle social e político locais. A rede de dependências do mercado tende a adquirir rapidamente um âmbito mundial pelo “jogo de interesses individualistas e conflitantes das empresas”, que “comandam verticalmente o território e a vida social, relegando o Estado a uma posição de coadjuvante ou de testemunha” (Ibid., p. 23). Nesse mesmo sentido, Zigmunt Bauman (2003) coloca que “o poder, enquanto incorporado na circulação mundial do capital e da informação, torna-se extraterritorial, enquanto as instituições políticas existentes permanecem, como antes, locais” (p.89). Esse processo leva ao enfraquecimento do poder político do Estado-nação, que se rende às estratégias de desregulamentação e abre mão do controle dos processos econômicos e culturais, entregando-os às forças do mercado. O Estado é, então, privado de seu antigo status de poder supremo, soberano. Esse esvaziamento institucional faz com que as pessoas, que antes tinham o

47 Estado-nação como segurança existencial, busquem novas filiações identitárias com maior liberdade (porém menor segurança22) para novas histórias, reformuladas e experimentadas. Para Santos, o discurso de menos Estado é o discurso de mais empresa e um Estado flexível a seus interesses. Segundo o autor, a retirada do Estado do processo de regulação da economia, fato colocado como sendo um benefício para a sociedade, “está, de fato, relacionada com a possibilidade de a empresa comandar a sociedade, porque é ela que acaba comandando a vida social, com o apoio das instituições internacionais e, em certos casos, como no Brasil, também com o apoio do Estado” (2000b, p. 29). Trata-se, então, conforme aponta Bauman (2003), de uma decadência da democracia moderna, causada pela separação entre o poder e a política. O Estado não tem mais poder suficiente para manter as promessas que fez aos cidadãos em sua “era de ouro” da democracia ideal (30 anos pós-guerra) e consegue oferecer cada vez menos a eles. Muitas vezes, o Estado subcontrata funções que deveria desempenhar e coloca nas mãos de empresas privadas (cujo objetivo é o lucro) atividades que deveriam ser feitas e controladas pelo poder público. Bauman não crê que a estrutura do Estado-nação possa defender sozinha o futuro da democracia. Assim, ele sugere a invenção de equivalentes globais da democracia moderna como solução radical, formadas por instituições de escala maior e não mais vinculadas às necessidades do Estado-nação. Nesse mesmo sentido, Litz Vieira (2001) aponta para uma política pós-nacional, com a emergência da Sociedade Civil Global e a “criação de novas instituições e entidades políticas que correspondem à amplitude transnacional dos desafios atuais, enquanto atendem às demandas dos cidadãos por governos democráticos responsáveis” (p. 216). Entretanto, Milton Santos (2003) sugere que a globalização não é irreversível e que a mudança deve vir dos países subdesenvolvidos, onde as populações não têm total acesso aos consumos ocidentais e a globalização é relativizada ou recusada. Assim, o “desafio do sul” seria criar alternativas para uma “globalização de baixo para cima”, cada país com suas características próprias, mas no sentido da cooperação em detrimento da competição entre potências permitindo, assim, [...] a implantação de um novo modelo econômico, social e político que, a partir de uma

22 Segundo Bauman (2009), esses dois valores (segurança e liberdade), ambivalentes e essenciais no entendimento da modernidade, são sempre um dilema sem solução perfeita. Cada vez que você tem mais segurança, entrega um pouco de sua liberdade e cada vez que você tem mais liberdade, entrega parte de sua segurança.

48 nova distribuição dos bens e serviços, conduza à realização de uma vida coletiva solidária e, passando da escala do lugar à escala do planeta, assegure uma reforma do mundo, por intermédio de outra maneira de realizar a globalização (ibid, p. 170)

Em outras palavras, o autor expressa a ideia da constituição de uma federação de lugares, endógena e gerada a partir da célula local, que reconstruiria a federação nacional de baixo para cima, ao contrário da tendência arrastada pela globalização. Assim, o território nacional estaria compartimentado, mas sem estar fragmentado. No contexto da globalização, há a influencia de uma cultura de massas que age na verticalidade unificadora de homogeneizar e impor o mercado. Tal dominância é também portadora da racionalidade hegemônica, que busca a unificação e a homogeneização vertical. Ao se referir a esta verticalidade, Santos se remete a exemplos como a ação de empresas globais que se instalam em determinados locais, sem considerar o seu entorno, “perturbando e sendo perturbadas” pela horizontalidade. Esta, por sua vez, é representada pela vizinhança, pela coabitação, pela coexistência do diverso em um espaço contraditório em que “se realiza a vida coletiva, onde os que mandam e os que não mandam, os ricos e os pobres, os poderosos e os não poderosos estão presentes” (2000a, p. 53). A esse espaço o autor denomina “espaço banal”, que atua em oposição ao espaço econômico. Para ele, esse jogo explica a realização do global e do local, “um jogo entre o local, que busca um sentido, e o global, que busca um resultado” (idem). Esse processo é permanentemente reconstituído segundo uma nova definição e impede que o poder, sempre crescente e cada vez mais invasor dos atores hegemônicos, consiga eliminar o espaço banal. Para o autor, nesses espaços “se recria a ideia e o fato da Política, cujo exercício se torna indispensável, para providenciar os ajustamentos necessários ao funcionamento do conjunto” (Ibid, p. 111) Para Santos, a tentativa de homogeneização da modernidade jamais é completa, pois encontra a resistência e as reações das culturas preexistentes, cuja base se encontra no “território e na cultura local e herdada” (2003, p.144). Essa resistência se dá pelo uso da cultura popular de instrumentos, que na origem seriam de uso das culturas de massas, para exercer sua qualidade de discurso dos “de baixo”, “pondo em relevo o cotidiano dos pobres, das minorias, dos excluídos, por meio da exaltação da vida de todos os dias” (Idem). Dessa forma, as horizontalidades agem como contra-racionalidades a despeito da racionalidade hegemônica típica da verticalidade, “regida por um único relógio, implacável”

49 (Ibid., p. 111). Nas horizontalidades funcionam, “ao mesmo tempo, vários relógios, realizando paralelamente diversas temporalidades” (idem) e sustentando uma organização em segundo nível, que mantém uma vontade permanente de desorganização dialética frente aos atores hegemônicos. Milton Santos nos alerta que essas contra-racionalidades são chamadas de “irracionalidades” do ponto de vista da hegemonia dominante. Porém, nas palavras do geógrafo, “a conformidade com a Razão Hegemônica é limitada, enquanto a produção plural de 'irracionalidades' é ilimitada. É somente a partir de tais irracionalidades que é possível ampliação da consciência” (SANTOS, 2003, p. 115). Para o autor, a consciência é alcançada ao ultrapassar a descoberta da diferença, autorizada pelo cotidiano no território, que demonstra a não-autonomia das ações e dos seus resultados frente à razão dominante. Santos sugere, então, pensar em uma pedagogia da existência, pois “é fundamental viver a própria existência como algo unitário e verdadeiro, mas também como um paradoxo: obedecer para subsistir e resistir para poder pensar o futuro” (Ibid., p. 116). A existência é, então, produtora de sua própria pedagogia. Frente à perversidade da globalização, que produz cada vez mais pobres e expande de maneira acelerada a escassez e as desigualdades, a tomada de consciência encontra maior campo fértil entre os países mais pobres, cada vez mais numerosos, lugares em que esses efeitos são mais sensíveis. Em oposição ao senso comum da pretensa racionalidade dominante e autoritária que vem acompanhada de uma perda da razão sugerida pelas suas fábulas e pelo encantamento das técnicas, nos países pobres, sobrevivem e criam-se novas técnicas não-hegemônicas em uma gradativa recuperação do bom senso, “em oposição à pretensa racionalidade sugerida tanto pelas técnicas em si mesmas como pela política do seu uso” (Ibid., p. 119). Santos (1979; 2003) aponta, assim, para a aurora de um novo período histórico, o período demográfico ou popular23, em que há uma nova significação da cultura popular, tornada capaz de rivalizar com a cultura de massas, com a racionalidade e com a temporalidade hegemônica. Segundo ele: Os 'de baixo' não dispõem de meios (materiais e outros) para participar plenamente da cultura moderna de massas. Mas sua cultura, por ser baseada no território, no trabalho e

23 Milton Santos colocou, já em 1979, que estava havendo uma substituição gradual da “variável autônoma tecnologia por outra variável, a população” (1979, p. 96), anunciando o nascimento de um novo período histórico, um novo sistema temporal e que a evolução do fenômeno demográfico começava já a se configurar como ameaça ao funcionamento integral do sistema tecnológico. Nos anos 2000, Santos reafirma a ascensão desse período como variável essencial por uma outra globalização.

50 no cotidiano, ganha a força necessária para deformar, ali mesmo, o impacto da cultura de massas. Gente junta cria cultura e, paralelamente, cria uma economia territorializada, uma cultura territorializada, um discurso territorializado, uma política territorializada. Essa cultura da vizinhança valoriza, ao mesmo tempo, a experiência da escassez e a experiência da convivência e da solidariedade. (SANTOS, 2003, p. 144)

O autor nos explica que essa cultura, endógena, tem seus símbolos manifestados na fala, na música e no intercurso de um processo de solidariedade entre as pessoas. A prática da vida e a existência de todos é o ponto de partida para esse novo período, que tem o homem e a mulher colocados “no centro das preocupações do mundo, como um dado filosófico e como uma inspiração para as ações” (Ibid., p. 145), estimulando e assegurando a compaixão das relações interpessoais, a solidariedade social a partir da mistura intercontinental e intranacional de povos, raças, religiões e gostos. Abolindo a regra da competitividade como padrão essencial de relacionamento, o período demográfico ou popular abandonaria as “lógicas infernais que, dentro dessa racionalidade viciada, fundamentam e presidem as atuais práticas econômicas e políticas hegemônicas” (Ibid., p. 146). É a partir dessa convivência territorializada que se desenvolve a vida em comunidade onde, segundo Bauman (2003), se constrói um entendimento comum que precede todos os acordos e desacordos, estabelecendo fronteiras que garantem segurança, acolhimento e integração entre seus membros. Citando Geoff Dench, Bauman aponta para o comunitarismo como filosofia dos fracos que exige uma “obrigação fraterna” de “partilhar as vantagens entre seus membros, independente do talento ou importância deles” (DENCH apud BAUMAN, 2003, p.56), em uma ação de caridade “dos que estão dispostos” dirigida “aos que têm necessidades” (Ibid., p.57). Nessa direção, Enrique Dussel (2007) explica que o ser humano é um ser vivente e originalmente comunitário que carrega um instinto ancestral de sobrevivência, do querer-viver e da vontade-de-vida como tendência originária de potência positiva (ao contrário do poder como “dominação” no pensamento político da modernidade eurocêntrica). Se as vontades dos membros de uma comunidade forem um consenso, ou seja, puderem chegar a acordos de unir seus objetivos e seus fins estratégicos como uma “vontade-de-viver-comum”, alcançarão maior potência. A vida em comunidade contrapõe a forma de vida que Bauman chama de nova elite global, cosmopolita, seletiva e extraterritorial, que habita uma “bolha sociocultural” em que

51 preza pelo privilégio e pela virtude pública. Essa elite global se isola das diferenças em lugares cercados, comprados e construídos artificialmente para manter a distância de intrusos e celebrarem a irrelevância do lugar, em que “não importa onde estamos, o que importa é que nós estamos lá” (BAUMAN, 2003, p. 55). Nesse sentido, o sociólogo reflete sobre como os membros dessa elite interagem com os outros “globalizados” virtualmente idênticos que vivem a mesmice de uma uniformidade de secessão coletiva, com um público homogêneo e padrões de conduta rígidos. Segundo ele, para os de “dentro do portão”, não há fracos, não há raízes e muito menos responsabilidades para com os “de fora”. No mundo acolchoado, maleável e informe da elite global dos negócios e da indústria cultural, em que tudo pode ser feito e refeito e nada vira sólido, não há lugar para realidades obstinadas e duras como a pobreza, nem para a indignidade de ser deixado para trás, nem tampouco para a humilhação que representa a incapacidade de participar do jogo do consumo. (ibid., p.59)

O mais forte sentido de comunidade, e nisso concordam Bauman e Santos24, costuma vir dos grupos que percebem as premissas de sua existência coletiva ameaçadas e por isso constroem uma comunidade de identidade que lhes dá uma sensação de resistência e poder. Incapazes de controlar as relações sociais em que se acham envolvidas no mundo global, as pessoas encolhem o mundo para adaptá-lo ao tamanho de suas comunidades e agem politicamente a partir dessa base. Inserida no contexto da globalização, a ECAR se constitui pelo saber popular local, gerado a partir do cotidiano da vida, do trabalho e do lazer das pessoas que a integram. Embasada em valores de uma vida coletiva solidária, gera uma cultura endógena que valoriza ações de caráter criativo e subversivo, com a capacidade de criação e de novos usos dos equipamentos públicos da cidade. A ECAR se configura, então, no circuito cultural flexível da cidade que, segundo Alex Manetta (2003), “por não ser ligado diretamente a grandes corporações capitalistas, este circuito vive mesmo o dia-a-dia, se reorganizando cotidianamente e com recursos próprios, adaptando a cidade rígida às necessidades de encontro, troca de idéias e trabalho” (p. 65). Já o circuito cultural rígido, representa objetos, técnicas e mensagens vinculados a uma ação distante movida

24 Cabe ressaltar que não encontramos nas obras de Milton Santos a definição da palavra “comunidade”, mas sim as características de grupos sociais com essas especificidades descritas.

52 por interesses econômicos. Representa interesses globais exógenos ao lugar, interligado por sistemas de objetos técnicos e vinculado à produção de novas necessidades (ibid, p.3-4). O circuito cultural rígido é o conduzido pela indústria cultural (ou cultura de massas) que, embasada na verticalidade do mercado, ignora quaisquer heranças e realidades locais e impõem lógicas culturais homogeneizantes. Já no circuito cultural flexível, está a cultura popular, que representa a resistência à homogeneização. A cultura popular também se difunde utilizando-se de meios próprios da indústria cultural, não de modo rígido e alienado, mas exaltando a vida, o cotidiano e a memória, pois tem sua base no lugar (SANTOS, 2003). Em um movimento dialético, a novidade convive com as heranças dos tempos passados, se complementam e se contrapõem. Porém, a cultura popular se enraiza pela memória de seus antepassados e, ao (re)lembrar o passado, reforça-se a resistência cultural e a preservação da solidariedade orgânica entre o povo do lugar. Encontramos, assim, consonância com o conceito de enraizamento, na medida em que, para se identificarem, faz-se necessário que as pessoas se sintam parte de um local, diante do global e resgatem, assim, a memória do passado (GONÇALVES FILHO, 1988).

1.8. Saberes compartilhados na capoeira angola: resistência e enraizamento Partindo da memória dos integrantes da ECAR é possível pensar em como a capoeira angola valoriza a troca de conhecimentos que se realiza entre as pessoas, entre os capoeiristas e no âmbito da educação não-formal. Tal como abordaremos nesta parte do capítulo. Começamos retomando a história do Contra-mestre Topete, quando teve seu primeiro contato com a capoeira através de um baiano que “passava” a capoeira no fundo do quintal. Essa história se aproxima à história do Professor Leonardo Lopes, que também teve o primeiro contato com a capoeira com um capoeirista que morava perto de sua casa e que se dispôs a ensiná-lo: Na minha infância, quando eu estava por volta de uns 10, 11 anos de idade [meados da década de 1980], a gente morava em um bairro, na cidade de Hortolândia, em que tinha uma fazenda no fundo, tinha um canavial e tal. E todo dia, no final da tarde, tinha um rapaz que ficava dando saltos, fazendo coisas, gingando. E a gente, a molecada, ficava lá do bairro olhando aquilo, ficava interessada. Num belo dia eu conheci o irmão daquele rapaz e ele me levou na casa deles, que ele era irmão, e aí esse rapaz abriu lá a sala da casa dele, pôs um toca-disco, começou a rolar um som e começou a me ensinar, dar uns passos da capoeira. E aí eu fiquei muito contente, no final do dia voltei pra casa todo feliz. (Professor Leonardo. Entrevista, 2013)

53 Como podemos ver, muitos capoeiristas começam a aprender a capoeira com outros capoeiristas que, fora de espaços ou tempos determinados, ensinam um pouco do que sabem aos amigos, parentes ou qualquer outra pessoa interessada. De um lado, os próprios capoeiristas sentem a necessidade de difundir e preservar a cultura apreendida, proporcionando a troca de saberes com o outro enquanto ensina e estabelecendo novos vínculos que promovam a capoeira. Por outro lado, a capoeira é mais disseminada por meio de iniciativas da sociedade civil do que por meio de instituições de ensino formais (públicas ou privadas) pela falta de políticas públicas que coloquem seu ensino em instituições formais e devido à discriminação que ainda hoje a capoeira sofre, que tende a mantê-la marginalizada. Quando eu comecei a treinar a capoeira angola, por exemplo, ainda na Unesp de Bauru, a Professora Rosa (coordenadora do projeto) não podia ir a todos os treinos e quem ministrava muitas das aulas era Maurício Lordello, capoeirista que já fazia parte do Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA) há algum tempo, vindo de São Carlos25 para fazer mestrado em Bauru. Ele não recebia financeiramente por isso, só o prazer de ter mais um amigo com quem ele pudesse jogar, cantar, tocar, falar sobre a capoeira. E isso já é um grande valor na capoeira: ter pessoas próximas que compactuam os mesmos ideais, gostam de coisas em comum e fazem, assim, o ensino e aprendizagem ser prazeroso e produtivo. Esta forma de repassar os aprendizados da capoeira de modo informal entre os amigos acaba sendo repetida por aqueles que também aprenderam a capoeira dessa maneira, formando um ciclo de aprendizado em que há o compartilhamento dos valores de solidariedade presentes na capoeira. Minha história particular também ajuda a ilustrar essa observação. Entre 2005 e 2006, eu morei em uma república com mais 10 estudantes e, quando treinava em casa, colocava músicas para acompanhar e começava a fazer os alongamentos e os movimentos da capoeira. Alguns dos demais moradores da casa sentiam vontade de treinar e acabávamos treinando em conjunto, em 5 ou 6 pessoas. Dessas pessoas que começaram treinando no quintal da casa, três continuam na capoeira até hoje, morando em outras cidades e até mesmo desenvolvendo trabalhos e pesquisas em torno da capoeira. Podemos dizer, então, que a experiência de trocas de conhecimentos entre capoeiristas já é

25 O Centro Esportivo de Capoeira Angola, antes de Bauru, já tinha outros núcleos no Estado de São Paulo, como em São Carlos, Campinas e Indaiatuba..

54 uma forma de divulgação dessa cultura. Pensando assim, observamos que a divulgação da capoeira é intrínseca aos seus valores, visto que ela colabora para essas trocas, favorecendo um ambiente de ensino/aprendizado voltado às raízes de uma ancestralidade africana, à preservação da ritualidade, estética e pedagogia apoiadas na tradição, como coloca Pedro Abib (2005b). Outros alunos da ECAR também mencionaram terem tido as primeiras vivências com a capoeira por meio de amigos capoeiristas. Entre eles, Trenel Fernando e Mariana, que hoje são companheiros e residem na Moradia da Unicamp, junto com o filho Yukai. Tanto eles como o Professor Leonardo começaram (ou re-começaram) a capoeira na década de 1990, quando faziam parte do movimento anarco-punk, atuando em Campinas e região, criando espaços culturais contra-hegemônicos. E um tempo depois eu vim conhecer a capoeira, aqui mesmo em Campinas, por uns amigos de São Paulo que vinham e passavam uns treinos num espaço cultural que a gente tinha lá no Boa Vista. E ali foi um dos primeiros passos da capoeira. (Trenel Fernando. Entrevista, 2013)

É bom que o Fernando lembrou como é que ele conheceu a capoeira porque eu conheci também próxima dessa mesma realidade, de os amigos que mostraram para ele, ele e outros amigos mostraram para mim, e foi uma corrente de informação muito legal que se formou. (Mariana. Entrevista, 2013)

Um desses espaços, mencionado pelo Trenel Fernando, se chamava "Espaço Cultural Dona Tina", criado em um local alugado por jovens do movimento de Hortolândia e de Campinas. Localizado na Vila Boa Vista, um bairro da periferia com uma realidade perpassada por intenso tráfico de drogas, o espaço tinha como proposta “intervir com eventos culturais, trazer oferta de oficinas, de coisas assim para a molecada do bairro”. (Professor Leonardo. Entrevista, 2013). Os saberes compartilhados no espaço Dona Tina eram constituídos a partir de intercâmbios entre agentes de outros espaços que visitavam Campinas, ou dos contatos que as pessoas de Campinas tinham com espaços de outras cidades: “E aí a gente começou a buscar essa coisa da capoeira também com o objetivo de propor a capoeira como uma intervenção no nosso trabalho também” (Idem). Ao perguntar o porquê da capoeira angola inserida no movimento desse espaço, Professor Leonardo respondeu: A gente vem com esse propósito porque o nosso movimento era um movimento que buscava mesmo raiz das coisas, tinha uma radicalidade, uma vontade de ir ao fundo das coisas, em tudo o que a gente se envolvia. A capoeira angola representava e representa a raiz de quem a gente é

55 como pessoa: gente da periferia, gente pobre, migrantes, negros, pessoas que vêm de uma realidade difícil e que tem esse encontro com a capoeira angola, que é a raiz, uma revolta que surge justamente desse povo, dos nossos ancestrais, de pessoas que, como nós, vivenciaram as dificuldades, vivenciaram essa experiência com a violência do sistema, a violência do Estado, a violência de toda uma sociedade e a exclusão, o apartamento dessa população, do nosso povo, das coisas. E é por isso que a gente tem essa escolha mesmo.(Idem)

Para Jesús Martín-Barbero (1997), a emergência do popular nos movimentos anarquistas se dá pelos modos como os libertários pensam suas formas de luta em continuidade com o processo de gestação do povo, em que a ação política se constitui pelas diferentes articulações do próprio povo, envolvendo todos os que estão sujeitos à opressão. Segundo o autor, é através da memória das lutas que os anarquistas se ligam à cultura popular, como valorização e instrumentalização, pois “se a luta política não assumia as expressões e os modos do popular, o próprio povo é que acabaria sendo usado”(p. 34). Outra conexão se dá pela elaboração de uma estética anarquista baseada na continuidade da arte com a vida, “encarnada no projeto de lutar contra tudo o que separe a arte da vida. Já que mais do que nas obras, a arte reside é na experiência”(Ibid, p.35, grifos do autor). Os anarquistas, contra a obra-prima e os museus, proclamam uma estética de arte antiautoritária baseada na imaginação e na espontaneidade, que não se limite a expressar a subjetividade individual: “o que faz autêntica uma arte é sua capacidade de expressar a voz coletiva” (p.35). Vemos, então, o enraizamento, a busca das origens, do sentido fundador de sua memória, como forma de resistência do povo à realidade violenta. Nessa identificação com a resistência histórica da capoeira, como revolta contra a opressão sofrida com o sistema escravocrata de exploração desumana, é que as pessoas passam a encontrar, nessa expressão, uma forma de libertação e transformação na forma de viver e enxergar o mundo. Essa libertação se dá a partir da formação de redes de solidariedade e da coletividade entre os participantes de movimentos contra-hegemônicos, que desenvolvem uma racionalidade, uma contra-racionalidade, diferente da dominante baseada na individualidade e na competitividade. Cabe destacar que a capoeira não está aquém da ideologia da competitividade presente na sociedade capitalista. A capoeira é desenvolvida nesta mesma sociedade que oprime, que desenraiza, que discrimina o negro e que leva a uma individualidade excludente. Logo, essa contradição, de um lado, faz parte dela, na medida em que se observa pessoas se promovendo com a capoeira, usando-a para benefício próprio e individual, não a ensinando de modo solidário

56 ou utilizando-a como forma de sustentar valores de competitividade, no seu caráter esportivo. Mas, de outro lado, essa contradição também a alimenta como uma forma de fazer o praticante se entender como sujeito nesse mundo desigual e buscar seu enraizamento, “a raiz de quem a gente é como pessoa”, como apontou Leonardo. Enquanto o desenraizamento é reforçado pela modernidade, que apaga a memória do passado na tentativa de subverter jeitos de viver e de ser, impondo condições, impondo novos papéis sociais e excluindo identidades, o enraizamento, ao contrário, busca manter vivas as tradições, as origens que sustentam visões de mundo e que fortalecem os indivíduos em suas relações a partir da memória. Assim, permite-nos olhar o fato a partir dos indivíduos e reencontrar neles a clareza e confiança dos acontecimentos. “Quem é desenraizado, desenraiza. Quem é enraizado, não desenraíza” (GONÇALVES FILHO, 1988, p. 103).

1.9. Capoeira angola e educação não-formal: o passado repassado Observamos que, muitas vezes, as trocas de conhecimentos da capoeira acontecem em espaços informais (casa, quintal, rua) e de educação não-formal (Ongs, espaços culturais, associações, clubes) e tem caráter de entretenimento e lazer, porém, com um plano de fundo de sociabilidade e educação. Tal como descrevem Simson, Park & Fernandes, ao falarem das trocas de conhecimentos presente na educação não-formal, “a transmissão de conhecimento acontece de forma não obrigatória e sem a existência de mecanismos de repreensão em caso de não-aprendizado, pois as pessoas estão envolvidas no e pelo processo ensino-aprendizagem e têm uma relação prazerosa com o aprender” (2005, p.10). Segundo as autoras, em uma atividade não-formal, para a qual a pessoa se dedica por vontade e interesses próprios, os temas tendem a lhe agradar, criando e fortalecendo laços de afetividade entre os sujeitos envolvidos no processo educativo. Essas características diferem, muitas vezes, do aprendizado da educação formal escolar, em que o conteúdo obrigatório nem sempre é agradável ao educando, por não estar contextualizado com sua realidade ou pelo educando não compreendê-lo como algo de seu interesse. No caso da capoeira, existe um aprendizado/conteúdo necessário para o seu desenvolvimento que ocorre perpassados pelas bases da educação não formal, tendo uma

57 organização e uma estrutura (distintas da escola) que pode levar a graduação e certificação. Possui também uma flexibilidade de tempo e de adaptação das formas de ensino, abordagem e contextualização de acordo com o grupo adotado, características da educação não-formal, segundo Afonso (1989). Porém, a capoeira também está presente em escolas formais, seja como componente de projetos integrantes do currículo da escola, de caráter interdisciplinar (Abib, 2005b); no cumprimento da lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas; ou, ainda, nas faculdades, em disciplinas de Graduação em Dança (danças populares, afro-brasileiras), Educação Física (luta, artes marciais) etc. Além desses aspectos que perpassam a educação formal e a educação não-formal, a capoeira angola, como veremos, é apreendida a partir da vivência do dia-a-dia, do cotidiano e dos locais em que as pessoas vivem e frequentam, na forma de educação definida como informal, como aprendemos nesse depoimento do Professor Nico, refletindo sobre como se aprende a capoeira: É a vivência da capoeira. Se você não viver... A capoeira angola é uma coisa engraçado porque se você não viver a capoeira angola o dia-a-dia, não tem como você aprender só no olhar. Você tem uma visão, mas aprender a malandragem, a vida, o que é a capoeira... É aquele negócio: não tem como você chegar, pegar um abacaxi e chupar o abacaxi. Você tem que descascar o abacaxi, tem que retalhar e ver o sabor que ele tem. Aí naquele sabor é que você vai saborear "que delícia!" Aí você pega uma uva. Poxa, o sabor da uva! Mesma coisa é a capoeira angola, você vai pegando conhecimento do dia-a-dia. É muito bom. A oralidade é uma delícia, porque o que você pega na oralidade, você não esquece.(...) Então esse trabalho é como se fosse uma didática mesmo. É uma coisa engraçada você aprender a capoeira, [porque] se você não passa no dia-a-dia, você não consegue pegar a essência. Você aprende, mas você tem que estar sempre junto com alguém daquele meio, você tem que estar sempre envolvido (Professor Nico. Entrevista, 2013).

O aprendizado do dia-a-dia se transpõe a partir da informalidade da oralidade, que permite essa “delícia” do aprendizado e das metáforas e poesias geradas nas palavras, nas músicas e nos movimentos corporais dos capoeiras. Essa forma poética de ver e expressar o mundo atravessam, trans-passam pelos su-postos limites entre vida-escola-trabalho, entre sonho-realidade, enfim, entre jogo-luta-dança-brincadeira da roda da vida, o que faz o capoeirista (praticante de capoeira) se torne Capoeira, com todos os valores, “sabores” e aprendizados introjetados na sua vida, nas suas ações cotidianas, na sua relação com o mundo e com os outros, estando “sempre envolvido” com sua arte. Assim, apontamos para o caráter trans-formal da capoeira, uma vez que seu aprendizado

58 perpassa entre todos esses âmbitos educacionais (formal, informal e não-formal), possibilitando a transformação social dos sujeitos que participam do processo. Consequentemente, essa trans-formação interfere na história e no próprio processo educativo, por meio de reflexão e de conscientização social, atuando no seu meio de maneira coerente com os valores e ideais de libertação e emancipação, imanentes à capoeira. Como diz Contra-mestre Topete: “quando você acha que atinge um saber que pode mostrar, você quer mostrar para o seu irmão, para o seu amigo, para a sua amiga, para as pessoas do seu bairro, para a sua cidade” (Entrevista, 2013). Dessa forma, com uma pequena experiência, o capoeirista já consegue ensinar e difundir seu conhecimento. Essa difusão acontece de maneira particular para cada capoeirista e para cada contexto que ele ou ela encontram para transmitir seu conhecimento. Seja pelo canto, pelo toque de instrumento, pela ginga ou pela oralidade, a capoeira é multiplicada, pelos próprios capoeiristas, de diferentes formas. Eu penso assim: se você sabe alguma coisa, você consegue passar, porque ninguém é dono do conhecimento. Ele aprendeu com alguém. E o conhecimento é para ser passado. Conhecimento significa saberes e estudo. E dentro do estudo, é pra se passar de geração para geração. Você passando, você vai aprendendo mais. Então eu acho que isso entra na parte da filosofia da capoeira angola. Você tem que passar. Vem da ancestralidade: tataravô, bisavô, avô, de pai pra filho. Se o tataravô passou pro meu avô, meu avô passou para o meu pai, então já é uma divulgação de saberes e conhecimentos. (Idem. Grifo nosso)

Encontramos nessa fala do Contra-mestre Topete, de maneira muito clara, a ligação da capoeira com o passado, nos diversos sentidos que essa palavra pode tomar. Ao gingar com as palavras dos Mestres, o conhecimento nos liga ao passado (enquanto pretérito) de nossos ancestrais e esse “conhecimento é para ser passado” (enquanto ensinamento) entre as gerações. Daí a intenção do título dessa dissertação (“repassando o passado”): o passado, desde o passado, é e sempre foi repassado. Daí, então, a importância do compartilhamento de saberes na capoeira. Afinal, “ninguém é dono do conhecimento. Ele aprendeu com alguém”. Segundo Contra-mestre Topete, ao comunicar nosso conhecimento para outras pessoas, também estamos aprendendo: “A pessoa vai aprendendo, você está ensinando e, ao mesmo tempo essa pessoa vem com uma cultura, um outro conhecimento, talvez na mesma arte. Você também aprende” (Idem). Outro ponto importante é a afirmação de que esse compartilhamento faz “parte da filosofia da capoeira angola” pois, ligada à ancestralidade, a capoeira já traz consigo a transmissão dos seus saberes “de geração para

59 geração”. Com essa questão também concorda o Professor Nico: O gostoso é você aprender a crescer. Você não pode dizer que o que você sabe é lei. Ninguém é dono da sabedoria. A sabedoria está pra todos e você não pode guardar. Você não pode ir numa faculdade, aprender e guardar pra você, falar "não, eu não posso falar isso". Como? Como alguém vai saber se você aprendeu? O que você sabe? É só divulgando. E a divulgação na oralidade, na escrita, na fotografia, em tudo. Isso é muito interessante. (Professor Nico. Entrevista, 2013)

Essa ideia hoje é muito discutida nas questões ligadas à cultura digital, com relação aos direitos autorais e à propriedade intelectual, que é a de compartilhamento de arquivos e de conhecimentos. Essa preocupação se dá no âmbito das artes e também das ciências. Apontamos, então, para uma forma mais livre de compartilhamento de saberes na capoeira angola, levantada tanto pelo Contra-mestre Topete quanto pelo Professor Nico: “ninguém é dono da sabedoria. A sabedoria está para todos”. Assim, ele também nos ensina que, para o aprendizado ser prazeroso, ele deve ser compartilhado, divulgado, e não reservado, patenteado.

1.10. Criticidade científica pela descolonização dos saberes oprimidos Outra questão importante levantada pelo Professor Nico é a negação de que “o que você sabe é lei”. Ou seja, o reconhecimento de que há saberes diferentes, concepção presente na capoeira angola e nos processos de educação não-formal até aqui verificados. Esta concepção contradiz a ideia do saber presente no campo do “cientificismo”, tal como denominado e criticado por Enrique Dussel (2001), ao desenvolver uma teoria em torno do pensamento moderno ocidental tido como único saber válido e reconhecido socialmente. O ponto nodal da crítica do autor é o fato de o saber científico estar subordinado aos interesses da cultura dominadora, tendendo a mascarar os seus próprios condicionamentos econômicos, políticos e sociais e, ao mesmo tempo, correndo o risco de fazer crer que seu exercício tem valor universal. Para ele, nesse momento, o saber científico torna-se “cientificismo” e impede uma interpretação crítica de si. O autor sugere, baseado na concepção de Marx, uma “ciência crítica”, não aprisionada a um único ponto de vista, ou seja, no ponto de vista dos dominadores. Com isso, o filósofo propõe que a ciência crítica seja questionadora e construída por uma junção de saberes em que o saber científico também existe e tem um lugar importante, mas que ele esteja pautado na relação com os outros saberes, tais como os populares,

60 saberes locais, os saberes na América Latina, do colonizado. Cabe destacar que Dussel alerta para o fato de que “cientificidade” não é o mesmo que “criticidade” científica, que tampouco tem a ver com juízo de valor, ou valorações, já que não se opõe à “ciência”, mas à ciência “não crítica” (Ibid, p. 310). Para ele, uma ciência crítica deve partir da alteridade, ou seja, partir da própria cultura local, considerando a história, a realidades e os problemas locais. Segundo o autor, para a construção de uma ciência crítica, é necessário abrir-se a novos paradigmas, desenvolver novos programas de investigação partindo de feitos não-observados, de territórios que despertem interesses práticos que possibilitem novos feitos e descobertas de um novo mundo observável cientificamente. O que conhecemos não é a realidade concreta, mas a “aparência do real”. Então, se não nos abrimos ao novo, visto por outros pontos de vista, teremos sempre uma cultura imitativa e a-crítica (DAMKE, 1995). Nessa direção, Dussel entende que a construção de uma ciência que relaciona os diferentes saberes é, antes de tudo, uma opção ética. É a priori constitutiva da “criticidade” científica pois, ao deslocarmos nossa subjetividade para outro lugar social, podemos enxergar o novo (o não-observável no horizonte existencial) e tomar atitudes “prático-críticas” para a construção de novos paradigmas e novos métodos explicativos (DUSSEL, 2001, p. 312-313). Dussel aponta que a opção ética por um método crítico tem um peso significativo para a formação da consciência porque, ao mesmo tempo, funda teoricamente a luta social e política do sujeito. Dessa forma, os métodos críticos, científicos ou dialéticos, podem ser instrumentos ou mediações para projetos libertadores. Com esse raciocínio do autor, entendemos que o método crítico que ele propõe para se pensar a ciência é também uma mudança do lugar de observação da ciência, saindo de seu modelo ideológico ocidental, dominante, para pensarmos a ciência crítica e conscientemente partindo da América Latina. Para isso, torna-se necessário propor novas categorias históricas e filosóficas que levem ao des-cobrimento dos saberes e das culturas suprimidas pelas políticas de dominação cultural europeias e, assim, iniciar o processo de descolonização26 do conhecimento

26 Para Dussel, o conhecimento não é produzido de uma posição neutra e universal, mas de diferentes posicionamentos dos atores num padrão hierárquico de poder, que determina uma colonialidade do poder, do ser e do saber. Assim, a descolonização efetuaria uma leitura desconstrutora de textos colonialistas, capaz de identificar os contra-discursos e as resistências reconstruindo, assim, os conceitos, a história, o discurso sob a perspectiva do colonizado.

61 latino-americano. Em outras palavras, o autor propõe um nova ciência crítica partindo do fazer com o Outro, partindo da cultura do Outro e dos ensinamentos que o Outro pode proporcionar para o fazer científico. Cabe destacar que é esta a visão teórico-metodológica de ciência que nos leva a considerar os saberes populares para o fazer científico neste trabalho. Partindo, então, das ideias e concepções de mundo dos mestres e demais praticantes da capoeira, desenvolvemos esta dissertação priorizando o dialogo entre teóricos acadêmicos e sujeitos da pesquisa.

1.11. Educação popular Então assim, se você fica na sua casa, você não sai, você não sabe que a sua rua tem esquina, porque você não sai da sua casa. Mas quando você acaba saindo do seu quintal pra fora, dentro da sua rua, você vê que tem esquinas, que tem vários quintais, várias casas, e nessas casas tem pessoas, moradores, cada um com um conhecimento, uma cultura. Você aprende. (Contra-metre Topete. Entrevista, 2013)

A oralidade e a possibilidade de participação, características da cultura popular, propiciam o entendimento que vimos discutindo neste texto de que a verdade não é universal. Ao “divulgar” e não “guardar” um saber, como proposto, este é colocado em contato com outras realidades e saberes, de cada um dos participantes, que partilham suas experiências cotidianas oralmente e, juntos, constroem outros saberes, compreendidos a partir de seu próprio contexto local e em comunhão com seus próximos. As pessoas entrevistadas neste trabalho indicam esse processo na prática, pois todo tempo eles estão mostrando a relação dos saberes com a vida cotidiana, o que nos ajuda a questionar a ciência a-crítica e enriquecê-la com os conhecimentos da cultura popular. Paulo Freire, ao falar do “Movimento de Cultura Popular” (MCP) e dos trabalhos dos “Círculos de Cultura”, em que um grupo popular propõe temáticas para serem discutidas em encontros do MCP, diz que: “há uma sabedoria popular, um saber popular que se gera na prática social de que o povo participa, mas, às vezes, o que está faltando é uma compreensão mais solidária dos temas que compõem o conjunto desse saber” (FREIRE & BETTO, 2000, p.14). O aprender, segundo Carlos Brandão, é uma atividade que nos acompanha por toda a nossa vida, em diálogo e comunicação com as outras pessoas e com o mundo. “Assim como a informação serve

62 ao conhecimento e o conhecimento serve à compreensão, a compreensão deve servir à comunicação e, através dela, à comunhão” (BRANDÃO, 2005, p. 45). Dessa forma, a educação popular nos ajuda a refletir sobre o fazer coletivo, buscando fortalecer as potencialidades do povo, valorizar a cultura popular, a conscientização, a participação e a ação política, a partir da troca de saberes e da inserção crítica das classes populares na realidade. Segundo Freire (1987), em uma integração coerente entre teoria e prática, a educação popular desvela o mundo oprimido e transforma a realidade em um processo de permanente libertação da humanidade. Luiz Eduardo W. Wanderley, em uma concepção, segundo ele, ousada, ambiciosa e utópica, nos ensina que a educação popular é, antes: uma educação de classe – exige uma consciência dos interesses das classes populares; histórica – depende do avanço das forças produtivas; política – se conjulga com outras dimensões da luta global das classes populares; transformadora e libertadora – luta por mudanças qualitativas e reformas estruturais (reformas não reformistas); democrática – antiautoritária, antimassificadora, antielitista; relaciona a teoria com a prática; relaciona a educação com o trabalho; objetiva a realização de um poder popular (WANDERLEY, 2010, p. 22. Grifos do autor)

Segundo o autor, a cultura é popular quando é comunicável ao povo, ou seja, quando seus valores, ideias, obras e significações são destinadas efetivamente ao povo e respondem às suas necessidades concretas e imediatas, com intencionalidades transformadoras carregadas de empenho e utopia. Nessa mesma direção, Paulo Freire explica a educação popular como uma ética humana centrada nos valores de solidariedade, autonomia, humildade, tolerância, amorosidade, perseverança e respeito à diversidade (WANDERLEY, 2010). Para Freire, a luta por um inédito-viável27 é o motor que movimenta a práxis libertadora, algo que o sonho utópico sabe que existe e que o esforço coletivo desenvolve as possibilidades para que eles se concretizem. Para o educador, onde não há utopia, sonho, não há lugar para a educação, e sim para o adestramento. Freire (1987) nos explica que a conscientização (de si, do mundo, dos outros, da historia) deveria ser intrínseca à educação, pois aprender é também constatar o mundo e tem como meta construir e reconstruir, ou seja, agir para modificá-lo, o que não se faz sem lutas. A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, tem dois momentos, inter-relacionados. O

27 Conforme nos explica Cherfem, “O inédito viável é algo que ainda não aconteceu, mas que é possível e pode acontecer, é algo que está porvir na busca do ser mais. Daí a necessidade dos homens e mulheres em inserirem-se criticamente e conhecerem a realidade em que se encontram pra poder superá-la.” (2009, p. 40-41)

63 primeiro é o desvelamento do mundo da opressão e o comprometimento com a práxis, ou seja, com a sua transformação. O segundo momento é quando, uma vez transformada a realidade opressora, essa pedagogia “deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens no processo de permanente libertação” (Ibid, p. 41) Enrique Dusel nos diz que a cultura popular é o “centro mais incontaminado e irradiatico da resistência do oprimido contra o opressor” (s/d, p. 277). Entendemos, assim, que a educação popular é, em sua essência, contra-hegemônica. Freire (1987) explicita que, para enfrentar a cultura dominante, a introjeção de seus valores pelos oprimidos exige sua extraprojeção. Para ele, há uma contradição na relação opressores-oprimidos, pois os opressores, ao violentar e impedir os oprimidos de serem mais acabam, eles mesmos, não sendo, ou seja, não se reconhecendo no outro. Então, os oprimidos, ao libertarem-se, podem libertar também os opressores porque “lutando por ser, ao retirar-lhes o poder de oprimir e de esmagar, lhes restauram a humanidade que haviam perdido no uso da opressão” (Ibid., p. 42). A partir da busca por um conhecimento que tenha como base a humanização em contraposição ao conhecimento centrado no mercado capitalista e na ética individualista, podemos observar aproximações entre Freire, Dussel e Santos. Essa superação intelectual implica um reposicionamento ético necessário para a ciência e a cultura reconhecerem a dialética do processo ensino-aprendizagem, em que ninguém sabe tudo nem ninguém ignora tudo, promovendo, assim, um diálogo de saberes. Rompendo fronteiras entre saberes acadêmicos e populares, racionais e intuitivos, podemos observar uma tendência integrativa que preserva a autonomia individual e que também indica caminhos para uma ação coletiva e solidária.

64 Capítulo 2 Modos de circulação dos saberes através da cultura da vida

Dando continuidade ao trabalho de produção da memória da ECAR, esse capítulo dedica-se à composição de sua história, a partir da identificação dos próprios saberes da capoeira, mas sobretudo, sobre as formas e os espaços de circulação desses saberes. Abordaremos, portanto, a noção de tempo na capoeira e a possibilidade de ampliação e transformação da perspectiva de uma temporalidade circular entre seus praticantes; a importância da capoeira em processos pedagógicos de projetos de inserção social; as formas de educação e de avaliação presentes na ECAR; as dificuldades para manter suas atividades; assim como a maneira que esses saberes são introjetados na vida dos capoeiristas, no trabalho, nos estudos, nas produções artísticas e nas relações pessoais da vida cotidiana. Para isso, retomaremos e seguiremos a cronologia trabalhada, que será composta a partir de fotografias, materiais gráficos (cartazes, camisetas e panfletos), vídeos que registram diferentes eventos e momentos da ECAR, produzidos pelos integrantes da Escola, além de seus depoimentos.

2.1. Função socioeducativa e graduação na capoeira angola Como vimos no primeiro capítulo, Topete e Seu Nico arrumaram uma banca nas mediações do Terminal Central de Ônibus Urbano de Campinas (Viaduto Cury), local rodeado de camelôs, onde passaram a vender os artigos de capoeira. Próximo de onde estava localizada essa banca, e de onde acontece a Roda do Gueto, havia um salão utilizado como posto de atendimento da Sanasa (Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento S/A.). Esse salão foi abandonado no ano de 2003.

65 Imagem 28: Vista aérea do Terminal Central e do Viaduto Cury: 1- Salão abandonado pela Sanasa (hoje a sede da ECAR); 2- Local onde se realiza a Roda do Gueto; 3- Local onde se localizava a banca de capoeira. Fotografia extraída do Google Maps. 2013. No ano de 2004, visando ocupar o salão para levar os treinos de capoeira para o centro de Campinas, próximo à banca e à Roda do Gueto, Topete e Seu Nico se reuniram com João Carlos da Mata, o Paraná, presidente da ACCAMP (Associação Comunitária e Cultural de Apoio aos Meninos de Campinas), buscando apoio para a ocupação do espaço. Nessa época, Seu Nico realizava um trabalho voluntário no projeto de alfabetização de jovens e adultos chamado “Letra Viva”28. Assim, com o intuito de continuar o projeto de alfabetização e inserir a capoeira angola no espaço, criaram o Projeto Cultural Assistencial “Vivência e Saber”, que passaria a atender, além do projeto de alfabetização de jovens e adultos, a instituição “Casa da Criança Luz do Amanhecer”, que levaria cerca de 90 crianças por dia ao espaço. Esse número de crianças era dividido em três períodos, para terem aulas de capoeira angola, com Trenel Topete e música, hip-hop e dança de rua, com outros professores. Cabe aqui destacar que a capoeira tem se constituído historicamente também como promotora de reinserção social, em projetos educativos não-formais voltados às classes populares e a crianças e adolescentes em situação de risco. Outras pesquisas relacionadas à capoeira também evidenciam esta relação. Na pesquisa de Pedro Abib (2005a), por exemplo, ele descreve

28 O projeto Letra Viva do qual Seu Nico participava, baseado no método Paulo Freire, acontecia no Palácio dos Azulejos, também no Centro de Campinas. Sobre o projeto, ver o Diário Oficial de Campinas, do dia 06/09/2003, disponível em .

66 como a capoeira angola pode fazer parte de um projeto político-pedagógico para a valorização da identidade étnica de crianças e adolescentes em situação de risco, a partir da relação mais próxima da história de seu povo e de sua cultura. Segundo Abib (idem), a capoeira como atividade em que se inverte, “de pernas para o ar”, e subverte o olhar, com seu caráter de contestação do estabelecido, pode articular essas práticas da roda com a vida cotidiana em sociedade, contribuindo para o enfrentamento das dificuldades e obstáculos da vida e para a construção da própria cidadania e da autonomia de indivíduos. Em sua pesquisa, o autor verificou que, através da consciência crítica e reflexiva sobre a realidade, instaurada e ressignificada a partir da memória das tradições populares, a capoeira, caracterizada enquanto luta de libertação e resistência do povo oprimido, também contribui para a valorização da auto-estima e da autonomia entre seus praticantes. Mestre Pastinha, logo nas primeiras páginas de seus manuscritos, também identificou essa possibilidade de conscientização e ampliação dos olhares sobre a sociedade e sobre o ser-humano nesta sociedade a partir da capoeira: “amigos, o corpo é um grande sistema de razão, por detrás de nossos pensamentos acha-se um Sr. Poderoso, um sábio desconhecido. Corrijo-me as realidades, pela inversão natural da ordem lógica, transformando passado em futuro” (Mestre Pastinha, 1960, p. 1b). Vemos, então, a chamada de Mestre Pastinha para a forma como a capoeira permite inverter essa lógica e buscar a correção das realidades, “transformando passado em futuro”, ou seja, a partir da memória ancestral transcrita e movimentada pelo “sábio desconhecido” corpo. Durante a entrevista com a capoeirista Mariana e com Trenel Fernando, também foi possível identificar a capoeira como forma de ver o mundo “de cabeça para baixo”, contribuindo como ato de resistência e contestação do estabelecido: Eu compreendo hoje que ficar de cabeça pra baixo é você resistir contra o mundo uniformizado que a gente vive, contra as imposições da linha reta, do militarismo de viver, da postura, do comportamento exigido, dos papéis sociais exigidos. (Mariana. Entrevista, 2013)

Mariana também pesquisa sobre a capoeira, na sua vida e na graduação em Pedagogia, buscando compreender como a capoeira pode contribuir na formação da identidade e autonomia das pessoas. Ela e Trenel Fernando têm um filho, Yukai, que atualmente tem três anos, o que os faz pensar e falar com propriedade sobre suas experiências com a capoeira na infância:

67 Imagem 29: Yukai, com 2 anos, brincando a capoeira "de cabeça para baixo". Fotografia de Trenel Fernando e Mariana. 2012. Essa coisa de ver as coisas de cabeça pra baixo é uma coisa bem legal, porque é uma forma que existe da resistência na capoeira. Mas por que, só ficar de cabeça para baixo? Não. Pelo seguinte: desde pequeno a gente começa a ser castrado, começam a cortar as nossas asinhas. Se você vê uma criança, uma criança adora andar com a mão no chão, adora correr no meio da rua, adora fazer um monte de coisas que depois, com o passar do tempo, vai ficando feio, já não vai mais servir pra ela, já fica inadequado. Não devia estar correndo, deveria estar estudando, fazendo outra coisa. Então, a capoeira resgata isso e é interessante, porque a gente fica tanto tempo podado que depois a gente começa do zero, tem que reaprender as coisas. Um equilíbrio com a parada de mão, as macaquices aí que a gente faz na roda, coisas que, se a gente não é castrado, podado quando a gente é pequeno, a gente estaria muito melhor. Por isso, quem nasce no meio da capoeira, tem muita chance de ser uma boa capoeirista, um bom capoeirista, porque com certeza o pai, a mãe, não vão dar esse tipo de poda para a criança. (Trenel Fernando. Entrevista, 2013)

A partir deste relato, podemos identificar que a movimentação da capoeira pode contribuir para a construção de outras formas de relação com o corpo e com o olhar do praticante, que vão além da “cabeça para baixo”. Rosa Simões (2006), em sua tese29, ressalta que os movimentos corporais do jogo de capoeira no ritual da roda mantêm um processo contínuo e dinâmico que vai da inversão à re-inversão do olhar. Assim, esse movimento fluente da capoeira, partindo de diversos pontos de vista, de um olhar multiperspectival, possibilita a formulação e constituição de

29 SIMÕES, Rosa Maria Araújo. Da inversão à re-inversão do olhar: ritual e performance na capoeira angola. São Carlos: UFSCar (tese de doutorado), 2006.

68 “novas ordens”, de “novos olhares” (p. 160). O trabalho com a capoeira em projetos de educação não-formal voltados para as populações de baixa renda, para os sujeitos das camadas excluídas e marginalizadas da população, podem ter efeitos positivos, pois propiciam sua própria identificação com a história e a abordagem educativa desenvolvida por essa manifestação, o que permite uma “sedução pedagógica” e a sensibilização desses jovens, que identificam em seu cotidiano os elementos do universo cultural e simbólico da capoeira (Abib, 2005). Entretanto, os projetos que envolvem esse tipo de trabalho pedagógico, para serem voltados para o atendimento de um número maior de pessoas, dependem de investimentos e de políticas públicas que garantam o apoio financeiro e estrutural para os educadores, educandos e demais profissionais envolvidos nas atividades, valorizando-os e dando-lhes condições para o seu desenvolvimento e continuidade. Após o período de um ano, o projeto “Casa da Criança Luz do Amanhecer” perdeu seus apoios institucionais e encerrou seus trabalhos no local. Mesmo com o fim desse projeto educativo, Topete e Seu Nico assumiram o espaço para que as aulas de capoeira angola fossem mantidas, sendo agora a sede do CECA-Campinas. Entretanto, para isso, teriam que arcar com os custos do salão. Essa verba viria da mensalidade cobrada dos alunos e das alunas, e assim acontece até hoje. A Roda do Gueto também se manteve ininterruptamente durante esse tempo, recebendo diversos capoeiristas e se estabelecendo no seu local de realização. Abaixo está o seu primeiro panfleto, que teve a intenção de divulgá-la para a população campineira que quisesse conhecer e participar da mesma, assim como marcar e comunicar seus dois anos de existência:

69 Imagem 30: Cartaz/folheto da comemoração de dois anos da Roda do Gueto. Acervo ECAR, março de 2005. Os cartazes e os trabalhos gráficos para divulgação são feitos por alunos e alunas do grupo. Nessa época, eram feitas pelo Fredy Colombini (designer) e, a partir de 2007, também passariam a serem feitos pela Gabriela Pardim, a Gabi (Programadora Web), além de outros alunos e alunas que também vão contribuindo da forma como podem, dependendo do momento e das especialidades de cada um. A divulgação dessa roda sempre foi muito importante para trazer mais capoeiristas para participar e contribuir para que ela continue a existir, a ser realizada todas as semanas, além de divulgar a importância dessa manifestação específica desse local, com suas singularidades e problemas, já retratados no nosso primeiro capítulo.

70 Imagem 31: Roda do Gueto em 2004. Fotografia cedida por Fredy Colombini. Em julho de 2005, Trenel Topete conquistou o título de Professor de capoeira angola, no II Encontro Internacional de Capoeira Angola promovido pela Academia de João Pequeno de Pastinha no Forte Santo Antônio (Forte da Capoeira), em Salvador-BA, tendo como padrinhos30 Mestre Boca Rica, Mestre Bigodinho, Mestre Brandão e Mestre Mala, importantes mestres da Velha Guarda da capoeira da Bahia. O título de Professor de capoeira angola, como já dito, é conquistado segundo os critérios de cada grupo e mestre. Porém, um capoeirista só atinge esse patamar após passar pelas graduações anteriores com dedicação, estudo, prática e ensino da capoeira. No caso da ECAR, o Professor deve ter passado pelo 1º ao 5º estágio, assim como pelo estágio de Trenel, quando pode treinar alunos sob supervisão de seu Mestre. Ainda assim, o Mestre (ou Contra-mestre) responsável convida outros Mestres, mais velhos e considerados, para atestar e confirmar a graduação do Professor ou da Professora31. Nesse ritual de passagem, normalmente realizado em um evento promovido pelo grupo, o candidato a receber o título passa por algumas avaliações em presença dos mestres convidados, conduzindo a roda de capoeira e jogando com os Mestres anciãos, por exemplo. No caso do Professor Topete, foi emitido um diploma do CECA com as assinaturas dos Mestres, formalizando a sua graduação. 30 Vemos aqui que a capoeira angola, assim como a citada capoeira regional, também adota algumas características de rituais religiosos e acadêmicos, como padrinhos e formaturas. 31 Na maioria dos casos, o mesmo ocorre para a titulação das outras graduações, com o “graduando” sendo avaliado por capoeiristas mais velhos e experientes. Porém, ressaltamos que essas fomas de avaliação também podem mudar de grupo para grupo, de Mestre para Mestre.

71 Imagem 32: Roda do Gueto em 2005. Detalhe na loja de calçados Dallas, à direita. Essa loja existiu até 2007, quando foi fechada. Em 2008, seu salão foi demolido, deixando um grande vão embaixo do viaduto. Fotografia de Fredy Colombini. Novembro de 2005. Em 2006, agora como Professor, Topete continuou desenvolvendo seu trabalho, dando aulas e estabelecendo-se no espaço do Terminal, vendendo seus artigos na banca alugada no “camelódromo” informal do Terminal Central, com a companhia de Seu Nico, assim como em eventos de Campinas e região.

Imagem 33: Banca onde Topete e Seu Nico vendiam seus artigos de capoeira, roupas, instrumentos, CDs, DVDs, colares e outros adereços. Fotografia de Fredy Colombini. 2006.

72 Com o grupo mais estruturado na sede própria no Terminal Central, seus integrantes passaram a ter uma agenda de treinos e eventos, para movimentar culturalmente e dar visibilidade ao espaço. Algumas das datas que desde essa época são comemoradas pelo grupo em eventos anuais e rodas especiais são: aniversário da Roda do Gueto e o Dia Internacional das Mulheres, em março; aniversário do Mestre Pastinha, em abril; e a semana da consciência negra, em novembro.

Imagem 34: Cartaz/folheto da comemoração de três anos de divulgação da Roda do Gueto. Acervo ECAR, março de 2006.

No ano de 2006, realizei a pesquisa sobre a Roda do Gueto32 e, no final do ano, após concluir a graduação em Bauru, voltei a morar em Campinas e passei a treinar com o Professor Topete, sendo seu aluno a partir de então. Com a pesquisa utilizando imagens fotográficas e audiovisuais, Professor Topete observou a importância desse trabalho para o registro e o arquivo da história do grupo, assim como para rever os materiais para recordar e para a auto-avaliação pelos próprios sujeitos dessa história sobre suas atividades, movimentações e características das manifestações. A partir dessa constatação, também me deixou como responsável pela produção desses materiais, que já era feita com as fotografias. Assim, passaríamos a registrar, arquivar e divulgar, também em vídeo, os momentos do grupo.

32 ABREU E SILVA, Danilo de. A Roda do Gueto: uma etnografia sobre a capoeira no Terminal Central de Ônibus Urbano de Campinas. Trabalho de Conclusão do Curso de Comunicação Social com habilitação em Radialismo. Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. Unesp, Bauru, 2006.

73 2.2. Música, arte e resistência na capoeira angola Ainda em 2006, foi gravado o CD “Angola, capoeira mãe”, com músicas de autoria do então Professor Topete, Seu Nico, Leonardo, Mestre Bahia, Dona Eva (que foi aluna do CM Topete até 2008) e de outros integrantes do Centro Esportivo de Capoeira Angola (CECA) do Estado de São Paulo.

Imagem 35: Ensaio para a gravação do CD. Fotografia cedida por Fredy Colombini. 2006. A produção do CD foi totalmente independente. Cada um dos participantes contribuiu com uma parte para custear a gravação do CD, que foi feita na casa de um amigo do Topete, o qual possuía equipamento para gravação. A arte gráfica foi desenvolvida pelo Fredy e a reprodução e a impressão feitas pelo Professor Topete em lojas do centro de Campinas.

74 Ilustração 36: Encarte do CD "Angola, capoeira mãe".

Cabe aqui destacar o significado da composição deste CD, produto de um trabalho coletivo, uma vez que ele representa o esforço de cada membro do grupo em partir das suas experiências pessoais somadas à capoeira para compor suas músicas, tendo em vista que as musicas são também uma forma de registrar e divulgar a memória e a cultura local. A partir das musicas, conta-se historias, rememorando ritmos e tempos passados en-cantados no presente, fazendo florescer o potencial poético e artístico dos(as) capoeiras. Odair Felix, aluno da ECAR, Ogan33 há mais de 15 anos, com uma vivência muito profunda com a cultura negra, no candomblé, na umbanda e no samba-de-roda, também comentou sobre como a música pode estimular, mandar recados, mexer com o sentimento das pessoas: Essa capoeira angola, ela mexe com a gente. Ela é uma coisa de sentimento. E é legal quando você fala "é pra mim". A cantiga quando ela bate no coração da gente, fala... às vezes ela não precisa ser tudo pra você, mas um pouquinho ela serve. Um pouquinho para cada um. (…) Um ponto cantado, dependendo do ponto, você faz alguma coisa. Você cura, você ajuda, você faz a pessoa levantar, faz a pessoa se sentir bem. Uma cantiga estimula as pessoas. Você vê que sempre o Contra-mestre fala isso. (Entrevista, 2013)

Podemos compreender a importância e significado da música na capoeira (percussão e canto) pela função primordial que a música exerce na roda de capoeira, indicando rumos para o jogo ou para os toques, dando conselhos, criticando, elogiando e/ou cantando histórias com fundos metafóricos (ou diretos) que podem dizer muito aos jogadores presentes, como nos ensina

33 Conforme explica Abdias Nascimento, “os ogans funcionam como espécie de patronos honorários do candomblé, em geral pessoas com prestígio bastante para proteger o terreiro, seu corpo sacerdotal e seus frequentadores-crentes, da violência costumeira das autoridades públicas” (2002, p. 155). O ogan é quem toca os atabaques e entoa os pontos cantados em um terreiro de candomblé.

75 Contra-mestre Topete: A capoeira tem uma coisa que é muito rica para a vida do ser humano, que é a musicalidade. E a musicalidade ela canta paz, ela canta guerra, ela serve como terapia - tem gente que usa a música como terapia - a música serve pra arrumar namorada, a música também pode fazer amor. Enfim, a música é riqueza. A capoeira tem a música. A música é alimento para o ser humano. E a musicalidade é o alimento para a nossa alma, o alimento para os capoeiristas. (...) Agora, você tem que saber qual música que é pra cada aspecto desse. Por isso que a colocação da música é muito interessante. (Entrevista, 2013)

Como ressaltou CM Topete, a capoeira se enquadra também em dança e o que determina o ritmo e, digamos, a “temática” dos movimentos dançados, é a música tocada e a cantiga cantada. Contudo, o cantador e o tocador34 devem saber da responsabilidade que têm nessa sua função para, assim, saber conduzir a roda da capoeira, com atenção para evitar acidentes, mantendo toques e o cantos que dêem um bom andamento à roda, estimulando seus participantes e se adequando às mudanças ocorridas no decorrer dos jogos e do ritual como um todo: [Para saber] qual música, você tem que estudar a capoeira mesmo, por isso que ela se enquadra em dança, porque canta uma música pra você dançar, essa parte de dançar. Nos cantos da capoeira, você canta paz, a pessoa fica tranquila; e canta guerra, que é um jogo mais pesado, que provoca briga, estímulo. E eu posso dizer que os cantos da capoeira, na manifestação, as pessoas que muitas vezes são bravas, são violentas, dependendo do ritual da capoeira, ela fica mansa. A turma não entende: "Pô, o cara é tão violento, o jogo é tão duro..." Porque o estímulo dele deu de paz. (Entrevista, 2013)

34 Aqui nos referimos, principalmente, ao tocados do berimbau “Gunga”, que é quem determinará o ritmo de toda a bateria da capoeira, começando, terminando e conduzindo os jogos.

76 Imagem 37: Trecho do caderno de anotações de Jesus Barbosa, sobre um ensinamento de Contra-mestre Topete durante a Roda do Gueto, em março de 2012.

Jesus Barbosa é um dos poucos alunos que faz o uso intensivo do caderno de anotações na ECAR, prática sugerida a todos pelo CM Topete. Capoeirista há anos, sambista e sambador, Jesus é um aluno da ECAR que se dedica muito a aprender a capoeira e desenvolver seu lado artístico. Nesse caderno, ele escreve os pontos importantes das aulas, faz atas sobre as reuniões, registra as falas das pessoas, as movimentações treinadas nos treinos, as músicas cantadas, os ensinamentos apreendidos.

77 Imagem 38: Trecho das anotações no caderno de Jesus Barbosa, sobre uma aula de musicalidade e sobre uma reunião da ECAR, em setembro de 2010. Como podemos observar em suas anotações, Jesus também utiliza desenhos para ilustrar os aprendizados das aulas. Ao longo de seu caderno de anotações encontramos vários deles, que enriquecem ainda mais esse material e faz com que Jesus desenvolva suas habilidades ao registrar os saberes de maneira acessível e didática:

78 Imagem 39: Desenhos de Jesus Barbosa sobre o "palmeado" utilizado na capoeira e no samba-de-roda. Acima a descrição dos tipos de palmas. Maio de 2010. Nas aulas, Contra-mestre Topete incentiva seus alunos e alunas, além de tocar e cantar músicas de domínio público e de outros Mestres, a criarem suas próprias cantigas, como forma de se expressar e desenvolver um repertório de cantos e improvisos próprios a serem utilizados na roda. Incentiva, também, outras atribuições artísticas, como artesanato, pintura, teatro, poesia, etc. “O capoeirista, o angoleiro35, é artista, ele pode ser percussionista, ele pode ser artesão, ele pode ser um cantor. Ele pode chegar, através dos ensinamentos, mas não significa que todos os angoleiros são” (Contra-mestre Topete. Entrevista, 2013). Abaixo alguns exemplos de aptidões artísticas de integrantes da ECAR:

35 Praticante de capoeira angola.

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Imagem 41: Apresentação de dança no 3º Encontro das Mulheres. Com: Flaviana, Gabriela e Márcia. 2010

Imagem 40: Desenho de Jesus publicado na primeira edição do Jornal comunitário "A voz do Gueto", em 2010.

Imagem 42: Banda Nego Mantra, que possui 3 Imagem 43: Nívea exibindo a almofada que fez. Ela alunos da ECAR entre seus integrantes: Rodrigo também produz tocas, bonés e gorros de tricot. (contra-baixo, de azul à esquerda), Tartaruga 2013. (Voz e violão, ao centro, de verde) e Professor Leonardo (vocal e berimbau, de laranja). Apresentação na sede do Urucungos, 2011.

Partindo dessa constatação, entendemos que o desenvolvimento artístico também dependerá da dedicação e decisão dos(as) angoleiros(as) em agregar esses ensinamentos à sua vida e aos aspectos artísticos que podem suscitar. Antônio Bueno, também aluno da ECAR, trabalha como serralheiro e nos falou sobre como a capoeira auxilia no trabalho e na criatividade do dia-a dia: Então [na capoeira] tem muita área artística e a gente pode utilizar isso na vida, no trabalho, para quem está estudando, musica, artes, cinema... Eu acho que a capoeira tem um pouco de tudo. E o ser humano desconhece um pouco essas faculdades mentais, artísticas, e isso ajuda muito na criatividade do dia-a-dia, no trabalho, na sociedade, na família, para a saúde do corpo, saúde da mente. Eu vejo que aqui a gente pode encontrar um pouquinho de tudo. (…) A gente vê o povo, hoje, muito ansioso, com pressa, com problema de grana, com problema de saúde...

80 Só que elas também não buscam formas de tentar melhorar. Eles vão atrás da cura. A hora que está ruim, vai atrás de um médico, mas não procura uma forma de fazer um exercício mental. Não digo exercício físico, mas procurar reuniões, algum curso que não tenha nada a ver com a sua área. "Ah, mas isso não tem nada a ver com a minha área", mas o que importa é que você está ali, trabalhando, utilizando um pouco da sua criatividade. (Antônio. Entrevista, 2013)

A capoeira pode favorecer a criatividade e o exercício físico e mental de seus praticantes, segundo Antônio, justamente por deslocar nossa atenção para áreas e questões que não estão diretamente ligadas ao nosso trabalho, o que propicia a criatividade e pode prevenir problemas de saúde ligados à ansiedade e ao estresse, por exemplo. Assim, nessa concepção, a capoeira também atuaria como uma função terapêutica, em um processo de libertação corporal e mental das neuroses, que são frutos de mecanismos disciplinadores e de controle social36. Professor Leonardo (na capoeira), pedagogo (na formação universitária) e educador social (na profissão), trabalha em instituições voltadas para ações socioeducativas com crianças e adolescentes. Em seu trabalho, utiliza a arte-educação para atuar com os educandos e educandas, tendo como uma das perspectivas de educação os saberes da capoeira angola, que está sempre presente em suas relações de vida e de trabalho. A arte e a cultura são o que impulsionam a vida. Quando a gente tem a possibilidade de transformar o que a gente sente, materializar isso de alguma forma, seja com um movimento corporal, um gesto, uma dança, uma luta, um pincel sobre um pedaço de papel, uma tela, uma palavra escrita, rabiscada no chão da rua mesmo, ou também em um papel, eu acho que a gente consegue viver a vida com uma profundidade maior. Quando a gente consegue materializar o que a gente sente sobre o mundo e sobre a gente mesmo, a gente vive mais intensamente. Acho que a gente consegue exercer a existência com um poder. A gente consegue sentir o poder que a gente tem para transformar a realidade, para transformar o que é o mundo a nossa volta, o que é a gente, o que é a nossa casa, o que é o nosso espaço de trabalho, o que é a escola que a gente estuda, o que é a nossa rede de amigos, nossos camaradas, nossas amigas, nossos companheiros, companheiras... Eu acho que a arte, a cultura, possibilitam a gente ser transformador. Transformador de si e do mundo. Eu acho que é isso que faz toda a diferença. Onde eu estou eu sempre tenho essa perspectiva de estar sendo transformador de mim junto com as pessoas com as quais eu estou.(Professor Leonardo. Entrevista, 2013)

Nessa passagem, de maneira muito bonita, Professor Leonardo fala sobre a arte na (da) vida, de como ela pode ser trans-formadora em situações in-tensas e aprofundadoras de vivência e de existência poderosa que mexe de dentro para fora e de fora para dentro, em contextos e momentos trans-formais. A roda de capoeira é um espaço propício para despertar essas experiências artísticas de

36 A respeito da capoeira angola como terapia para as neuroses, ver o trabalho da Somaterapia, criada por Roberto Freire, que tem como proposta uma terapia anarquista baseada nas teorias do austríaco Wilhelm Reich (1897-1957). http://www.somaterapia.com.br/

81 libertação e expressão corporal, musical, gestual, marcial e espiritual. Ela é fundamental para o aprendizado do/a capoeirista, pois é nela que ele/a vai colocar em prática os conhecimentos adquiridos nas aulas e expressar aqueles vividos na vida, participando do ritual como um todo, com canto, toque e jogo. Tendo em vista essa importância, durante seis anos, de 2005 até 2011, Contra-mestre Topete manteve duas rodas por semana, sendo uma dentro do salão, às quintas-feiras, e uma fora, às sextas-feiras, a Roda do Gueto. Porém, para o ritual de capoeira angola ser executado com qualidade e plenitude, é interessante que tenha pelo menos 10 pessoas (8 na bateria mais 2 jogadores), ou mais. A reunião dessa quantidade de alunos e alunas nem sempre é fácil, o que dificulta a execução do ritual com a qualidade ou com a periodicidade desejada. Na Bahia, nem todos os trabalhos tem roda toda semana, semanal. É de 15 em 15 dias e, em alguns trabalhos grandes é uma vez por semana. Na minha escola, teve período que a gente fazia roda 5ª e 6ª. Quinta dentro da academia, sexta a Roda do Gueto. E aí, por motivo de poucas pessoas mesmo, porque dois dias de roda por semana, eu falei para os meus alunos: "não dá para fazer dia de quinta, vamos concentrar só dia de sexta" (Contra-mestre Topete. Entrevista, 2013).37

É muito difícil um trabalho de capoeira ter rodas semanais, ainda mais difícil é manter duas rodas por semana. No decorrer dessa pesquisa, realizei trabalhos de campo na Bahia e em outras cidades do Estado de São Paulo, a partir dos quais pude constatar que, em alguns grupos, há somente rodas mensais, ou quinzenais. São raros os que mantêm maior quantidade de rodas e, se mantêm, outra dificuldade é ter que contar com capoeiristas de fora para ter uma boa quantidade de pessoas para “fechar a roda”, como comenta CM Topete: “tem rodas de mestres na Bahia que eles vão fazer a roda, faz a bateria, mas nem todas as pessoas que estão na bateria são alunos deles. De grandes nomes da capoeira angola”(Idem). E aqui novamente a importância da divulgação, de convidar outros grupos, da dedicação para manter a roda. Apesar de todas as dificuldades para mantê-la, no ano de 2007 a Roda do Gueto completou quatro anos, sendo realizada toda sexta-feira:

37 A partir de 2011, não teríamos mais as rodas de quinta-feira, porém manteríamos a Roda do Gueto, semanalmente.

82

Imagem 44: Cartaz para a comemoração de 4 Imagem 45: Camiseta com o cartaz de 4 anos anos da Roda do Gueto. Acervo ECAR. da Roda do Gueto, impressa em serigrafia. Março de 2007. Março de 2004.

Observamos no cartaz que nessa época já estavam presentes a Orquestra de berimbaus e o "Batuque das quebradas" (que atualmente chamamos “Batucada da Resistência” e existe com uma outra configuração), duas atividades ainda desenvolvidas na ECAR, além da capoeira angola. Essas atividades se mantêm até os dias de hoje, somadas a outras como: samba-de-roda, puxada-de-rede, maculelê e dança-do-fogo, como veremos adiante. Outra questão interessante é o "4 anos de Resistência", referindo-se à Roda do Gueto, pois nessa época ainda não existia a Escola de Capoeira Angola “Resistência”. Essa concepção de Resistência significa ressaltar que, apesar de todas as dificuldades, a Roda do Gueto persistiu e existe, resistindo aos percalços e oposições, assim como a história da capoeira, a história do Contra-mestre Topete e o que será a própria história da ECAR. E eu sou muito feliz em ter esse trabalho e durante esse trabalho muito obstáculo e oposição existiu, mas a gente está aqui. Então, por isso esse nome de Resistência. A minha vida, as dificuldades com a Roda do Gueto, as dificuldades com o trabalho... Hoje tem 20 anos que, em conjunto do artesanato da capoeira, que é considerado artesão, com as aulas de capoeira, é a minha renda do mês e eu sou feliz. (…) Tudo isso é resistência. É resistência no momento financeiro, é resistência de eu vir dar aula aqui e ter um aluno, eu dou a minha aula, tem 10 alunos eu dou aula; é você começar na Roda do Gueto sem aluno nenhum, precisando de outros capoeiristas amigos pra fazer. (Contra-mestre Topete. Entrevista, 2013)

Esse cartaz também foi transposto para camisetas pelo método de serigrafia38, ou

38 Antiga técnica de impressão, originada no oriente, em que a tinta emulsiva fotosensível é vazada, pela pressão de um rodo, para uma tela (normalmente de seda, nylon ou poliéster) e, a partir de um processo de

83 silk-screen impressas por Leonardo, que trouxe essa experiência de sua época no movimento anarco-punk. As camisetas possibilitam uma divulgação muito interessante das atividades e do grupo, assim como também servem para rememorar esses momentos, pois elas são utilizadas durante muitos anos pelos capoeiristas, nas rodas e no dia-a-dia. Nesse dia de comemoração dos quatro anos da Roda do Gueto, estava chovendo e a roda teria que ser realizada na “varanda” em frente ao salão-sede do núcleo, saindo do seu lugar “original”. Antes de sairmos para o cortejo (acompanhamento sonoro) pelo meio do Terminal Central com a Orquestra de Berimbaus, Contra-mestre Topete reuniu todos no salão para dar as primeiras palavras e agradecimentos e comentou sobre a chuva e as dificuldades, inclusive climáticas, de manter o trabalho com a capoeira representado pela Roda do Gueto: Hoje está um tempo chuvoso, mas nem por isso [não vamos fazer a roda], temos nossa varanda aí na frente. Mas não fiquem chateados porque uns precisam de chuva para ganhar o seu dinheiro, o seu sustento; outros precisam de sol para tirar o sustento. Então, fez sol, quem depende do sol já ganhou o seu dinheiro. Então, com certeza, alguém está precisando de chuva para o seu trabalho. Isso está ajudando alguém. Essas pessoas que estão precisando de chuva, em lavoura, no sertão, elas estão felizes, vão tirar o seu sustento. Então é assim mesmo. 'O pouco com Deus é muito, o muito sem Deus é nada'.

Imagem 46: 1: Orquestra de Berimbaus nos camelôs / 2: Roda do Gueto na “varanda” - detalhe na presença de dois Mestres que, posteriormente, serão padrinhos da ECAR: Mestre Bahia, de amarelo; e Mestre Bigo, ao fundo, de camisa branca e pochete. / 3: "Batuque das quebradas". Imagens extraídas do registro audiovisual. 2007. A partir dessa época, reconhecido pela sua experiência e didática com a capoeira, convidado por alunos do CECA de outros países, Topete fez viagens para fora do Brasil. Em 2005, passou três meses na Europa, ministrando aulas na Suécia, além de oficinas e workshops na Dinamarca, Alemanha, Noruega e Holanda; em 2006, ficou um mês no México; e, em 2007, três meses nos Estados Unidos. Segundo ele, além de poder conhecer outras culturas e lugares, essas viagens foram muito importantes porque, visitando outros grupos e capoeiristas no exterior, pôde

fotosensibilidade, a imagem é impressa.

84 saber como a capoeira está se desenvolvendo em outros países39. Outra questão importante foi o reconhecimento que recebeu, tanto em termos financeiros (vendas de artigos, pagamentos pelas aulas e pelas viagens) como em termos de amizades e de divulgação de seu trabalho internacionalmente. No período em que Topete estava fora do país, os alunos mais avançados ficaram responsáveis por manter as atividades em Campinas, tanto as aulas quanto as rodas. Isso também acontece quando Topete está ausente por outros motivos: um Professor fica responsável; na ausência dele, um Trenel e assim por diante, de acordo com a hierarquia do grupo. Essa forma de trabalho, colaborativa, faz com que o grupo não dependa sempre do Mestre para funcionar, assim como, ajuda na preparação dos alunos mais avançados e no respeito dos iniciantes para com eles.

Imagem 47: Treino realizado em 2004 na casa de Topete, enquanto ele estava na Suécia. Foto 1: Fredy, Dani, Leonardo, Aliethi e Camilo na bateria / Foto 2: Fredy, Camilo, Leonardo e Aliethi na bateria; Dani e William (filho do Topete) agachados. Fotografias de Fredy Colombini. 2004. Porém, antes de assumirem as responsabilidades, durante os treinos e com a presença do Mestre, os alunos são preparados: “às vezes eu gosto de pôr os alunos mais velhos e também os alunos mais novos pra ir aprendendo a ministrar aulas e o aluno pegar, aprender a pegar aula com esses alunos mais velhos e respeitá-lo, porque ele ainda vai ser Professor, um Trenel” (Contra-mestre Topete. Entrevista, 2013). Vemos, então, que essa preocupação do Mestre em preparar os alunos para assumir algumas responsabilidades é uma forma de deixar a Escola com uma certa autonomia na sua ausência, mas também uma forma de avaliação para a graduação de seus alunos e alunas.

39 Hoje a capoeira está presente em mais de 150 países. Segundo o “Dossiê: Inventário para Registro e Salvaguarda da Capoeira como Patrimônio Cultural do Brasil” emitido pelo Ministério da Cultura, essa “globalização” da capoeira foi feita sem incentivo governamental, ocorreu devido às “errâncias dos capoeiristas, verdadeiros embaixadores informais da cultura brasileira.” (Brasil, 2007)

85 Quando voltou da sua última viagem, aos Estados Unidos, em 2007, Professor Topete sentiu a necessidade de retomar seus estudos e fazer faculdade40, a fim de se especializar ainda mais na sua área: Através da capoeira, eu terminei o ensino médio, foi supletivo em 6 meses no Colégio Evolução de Campinas. Aí eu falei "eu quero fazer uma faculdade. Eu tenho que fazer uma faculdade". Dentro da capoeira, eu tive oportunidade de viajar para 9 países, trabalhando com capoeira, dando aula. Tem muitas pessoas que tem uma educação, um curso superior e nunca saiu do país. Eu tive essa felicidade de viajar com a capoeira. No último país que eu estive, foi nos Estados Unidos, eu tive muita dificuldade com a cultura, aprender a cultura deles, principalmente o idioma. Aí eu falei "eu tenho que estudar" (Contra-mestre Topete, entrevista, 2013)

2.3. Práxis e tempo de aprendizagem na capoeira angola Em 2009, Professor Topete iniciou sua graduação em Educação Física, área que sempre gostou: “Eu não sei dizer o quanto que eu gosto de fazer capoeira angola, de me exercitar. Por isso que eu quis fazer educação física. Eu queria fazer outros cursos, mas na minha cabeça, eu sempre pensei na Educação Física pelo motivo dos treinos, de exercitar, de fazer exercício” (Idem). Assim, trabalhando o dia todo com construção de instrumentos, compra e venda de mercadorias, aulas de capoeira e todo o tipo de situação que pode ocorrer para coordenar um grupo, Topete passou a frequentar a faculdade durante as manhãs. Professor Nico nos conta como isso foi possível com a dedicação e força de vontade do Contra-mestre Topete: … voltando da última viagem que ele fez, ele conversou comigo e falou, os alunos ajudaram. Direta ou indiretamente, cada um ajudou um pouquinho e ele é muito agradecido por isso. Ele fala muito e a gente vê o esforço que o cara tem. "Nico, eu preciso fazer faculdade" eu falei "pode ir que eu seguro. O que der pra eu fazer aqui eu faço". E a gente ficou junto, ele foi pra faculdade. Um guerreiro que faz tudo pela capoeira e satisfatoriamente fez tudo para aprender e terminar a faculdade. Não viajou, viajava só aqui no Brasil. Viajava sexta, sábado e domingo. Nós chegávamos de madrugada. No outro dia ele chegava: "Nico, eu fui na faculdade". (…) Fez quatro anos de faculdade e não faltou um dia. (Professor Nico. Entrevista, 2013)

No final de 2011, após cumprir todas as disciplinas, sem faltas, e ainda fazer estágios em escolas da Rede Pública de Ensino, Professor Topete se formou em licenciatura, com a Monografia “Capoeira na Escola”, em que teve como objetivo mostrar os benefícios da capoeira na educação escolar, como podemos observar nessa passagem: Embora a capoeira seja uma prática antiga, ainda carece de reconhecimento no processo

40 Do ano de 2006 até hoje, além do CM Topete, outros integrantes da ECAR também voltaram aos estudos para cursar faculdade, como o Professor Leonardo, que cursou Pedagogia de 2007 a 2010 na Faculdade Anhanguera; a Mariana, que também cursa Pedagogia na Unicamp; Aliethi cursa Química na Unicamp; Diego, cursa Filosofia na Pucc.

86 educativo, no âmbito da educação física escolar. Ela tem o potencial de oferecer aos alunos um desenvolvimento físico (agilidade, lateralidade, ritmo, flexibilidade, esquema corporal e coordenação motora entre outros), benefícios sociais (cooperação, interação e integração social), equilíbrio psíquico e físico, além de ser uma prática interdisciplinar que envolve história, música, instrumentos, poesia e dança. Através do estudo da capoeira, se aprofunda o conhecimento histórico do nosso Brasil, desenvolvendo a parte intelectual do indivíduo. (LACERDA, 2011, p. 9)

Em 2012, formado em licenciatura, Contra-mestre Topete continuou seus estudos para concluir, também, o Bacharelado, com a Monografia “Capoeira na Terceira Idade”, onde estudou sobre como a prática da capoeira na terceira idade pode promover bem-estar, qualidade de vida e a autoestima: A capoeira oferece benefícios tanto físicos como sociais, melhorando o condicionamento, proporcionando socialização e, ao estimular o indivíduo, é possível que diminua certos problemas associados ao envelhecimento, como por exemplo, problemas de memória e de perda do equilíbrio. A filosofia da capoeira respeita os anciões, na capoeira existe a figura do mestre, que é mais valorizado quanto mais vivido, pois o velho tem mais conhecimento e pode oferecer sua sabedoria, dando confiança aos mais novos. (LACERDA, 2012, p. 11)

A sua trajetória na capoeira fez com que o Contra-mestre Topete voltasse a estudar e fizesse uma graduação na educação superior formal. Estando na universidade, ele manteve seus estudos sobre a capoeira, relacionando seus trabalhos acadêmicos, pesquisas e estágios, ao seu trabalho e vida na capoeira. Com sua forma orgânica de se colocar politicamente nos locais frequentados, como representante bem formado na sua arte, Contra-mestre Topete divulgou a capoeira para outras pessoas, ministrando aulas e fazendo apresentações na Faculdade, além de contribuir para seu estudo acadêmico, desenvolvendo as monografias de conclusão de curso também sobre a capoeira. Assim, relacionamos sua atuação com características orgânicas de um intelectual vindo das classes subalternas e atuando coerentemente com suas origens e posicionamentos políticos.

87 Imagem 48: Contra-mestre Topete na sua colação de grau, acompanhado de sua esposa Márcia e seu filho William. Março de 2013. Eu não sou o melhor educador físico, mas também não sou o pior. Eu consegui aprender alguma coisa. E eu estou muito feliz, porque a capoeira angola me fez enxergar e, até mesmo, através das minhas dificuldades, juntando com a necessidade, eu estudei, eu me formei em Educação Física na Faculdade Anhanguera. E eu sou muito feliz, tenho um trabalho (Contra-mestre Topete, entrevista, 2013).

Para Antonio Gramsci (2004), os intelectuais orgânicos estão conectados com o mundo do trabalho, da política e das relações sociais, que os vincula profundamente ao modo de produção do seu tempo. Conscientes de seus vínculos de classe e especialistas na sua profissão, elaboram uma concepção ético-política que os habilita a exercer funções culturais de diversas formas: no trabalho, no interior da sociedade civil, na sociedade política e na manutenção do poder do seu grupo social, com ações educativas e organizativas que asseguram a hegemonia social e o domínio estatal da classe que representam (Gramsci, 2004, p. 311). Para o autor, a função desse intelectual, orgânico à dinâmica da sociedade e à conquista da hegemonia da sua classe, consiste na interpenetração entre conhecimento cientifico, filosofia e ação política. Assim, a interconexão do mundo do trabalho com o universo da ciência, com as humanidades e a visão política de conjunto formam o princípio educativo e a base formativa do intelectual orgânico. Gramsci valoriza o saber popular, defendendo a socialização do conhecimento e recriando a função dos intelectuais, conectando-os às lutas políticas dos

88 “subalternos” (Ibid, p. 299). O intelectual orgânico deve, então, ser um “construtor, organizador, educador permanente”, de modo que “da técnica-trabalho se chegue à técnica-ciência, à concepção humanista histórica, sem a qual se permanece ‘especialista’ e não se chega a ‘dirigente’ (especialista+político)” (Ibid, p. 344). Essa preocupação de Topete em se especializar, estudar e desenvolver novas metodologias e formas de ensino influenciaram diretamente seu trabalho com a capoeira. Dessa forma, desde o início de seu curso, agregou novas dinâmicas nas suas aulas, modificou sua relação com os alunos, implantou novas formas de avaliação e de sistematização dos saberes, cada vez mais construídos, estudados e repassados em conjunto com seus alunos e alunas. Percebemos, assim, que os saberes apreendidos no ensino formal contribuem para ampliar os saberes populares, assim como os saberes populares, da vida, do cotidiano, do trabalho, da capoeira, contribuem para a apreensão e aplicação dos saberes adquiridos na educação formal. Aliando um ao outro, torna-se mais fácil e interessante a práxis de uma consciência crítica e coerente com a realidade vivida. Em julho de 2009 aconteceu outra edição do Encontro Internacional de Capoeira Angola promovido pelo CECA-AJPP. Nesse evento, tendo como padrinhos Mestre Bigo, Mestre Augusto Januário e Mestre Zé do Lenço, Professor Topete conquistou o título de Professor Mestrando de capoeira angola, nomenclatura adotada pelo CECA-AJPP que corresponde a Conta-mestre, na nomenclatura tradicional da maioria dos grupos de capoeira. Destacamos que esse intervalo de tempo, relativamente curto, de Topete entre as graduações da capoeira angola (Trenel em 2002, Professor em 2005 e Contra-mestre em 2009) se deu devido à sua experiência de mais de 20 anos com a capoeira (desde seu tempo na capoeira regional), a mais de 15 anos lecionando, bem como pelo reconhecimento adquirido como consequência de sua dedicação, esforço e autonomia nos seus trabalhos. Na educação formal, como a faculdade que cursou, existe um tempo mais fixo e determinado e, com cerca de quatro anos (mais ou menos, dependendo do curso), passando pelos processos avaliativos, o aluno sai diplomado para exercer a profissão, como ressaltou Professor Leonardo: E aí acho que é uma coisa mesmo muito interessante, que na capoeira angola é uma coisa que a gente não se vê como acabado. Então é um conhecimento que a gente sempre vai estar buscando, melhorando, aprofundando, aprimorando. E aí as pessoas vêm para cá [ECAR] e estão sempre voltando, voltando e voltando, porque há uma necessidade mesmo de aprimorar o que elas sabem e aprofundar, e conhecer mais. E é diferente de uma instituição de ensino oficial

89 em que tem uma coisa fechada, uma grade, um tempo determinado: em 4, 5 anos, você se forma, você é um pedagogo, você é um professor de educação física, você é um biólogo ou sei lá o que. Na nossa cultura, é uma formação permanente, não acaba. Mestre João Pequeno, com 94 anos, dizendo que estava aprendendo, sempre, sempre aprendendo. (Professor Leonardo. Entrevista, 2013).

Sobre essa questão das diferenças do tempo de aprendizagem na educação formal e na educação não-formal, Ewerton Carvalho, que é professor de Geografia para o Ensino Médio em uma escola particular que atua em Campinas e região, além de cursar mestrado na sua área e ser integrante da ECAR, também faz uma reflexão: O tempo de aprendizado é diferente. Eu tenho três anos - três anos sendo generoso, eu tenho um ano, dois semestres - para preparar um garoto, uma garota, para entrar numa universidade. Aqui você tem todo o tempo que você quiser. Dependendo da forma como o seu Mestre pensa, porque hoje, com as imposições do mercado, você tem formações muito rápidas dentro do universo da capoeira. Mas o tempo, por exemplo, na oitiva, era a observação. Simples. De tempos em tempos, eu vou colocar uma escala: de domingo a domingo. Domingo antes da missa, depois da missa, você aprendia capoeira, olhando. E esse seu interesse, essa manifestação de interesse é o que fazia um mestre olhar ali e dizer: "aquele moleque está prestando atenção. Vou ensinar ele. Vem cá, vou te ensinar". Então, o tempo é muito mais largo no universo da capoeira, no aprendizado, no ensino, do que no ensino formal, pro vestibular, ou pro mercado de trabalho, enfim, qualquer coisa do tipo. Entra a questão de você ter paciência e tranquilidade pra esperar o seu desenvolvimento acontecer quase que de forma natural. Por que quase que de forma natural? Porque nós forçamos esse desenvolvimento com a metodologia criada a partir da repetição de movimentos. Então, nós forçamos um desenvolvimento. E ele é quase natural. Mas, de certa forma, ele é forçado. (Ewerton. Entrevista, 2013)

Então, vemos que o tempo de aprendizagem, além de depender do Mestre reconhecer o desenvolvimento do aluno ou da aluna, depende do tempo de cada um, a partir de suas histórias, escolhas, possibilidades e condições de se dedicar para o aprendizado da capoeira.

2.4. Temporalidades, cidadania e projetos de vida no aprendizado da capoeira angola Essa concepção de tempo de aprendizagem mais flexível e que respeita o tempo de cada educando difere das concepções presentes nas sociedades ocidentais e que orientam os processos de aprendizados formais. Como comenta Mestre Moraes: “O tempo para o africano, o tempo necessário para absorver o conhecimento...é...o tempo necessário para absorver o conhecimento ! Somos parte da natureza e a natureza é que rege o nosso corpo...o tempo de aprender é o tempo da natureza de cada um...e tem que ser respeitado !” (apud Abib, 2005, p. 184). Aí está a questão da “naturalidade” apontada acima por Ewerton, de que “o tempo é muito mais largo no universo da capoeira”. Esse tempo é mais largo porque tende a respeitar o tempo de aprendizagem do

90 aluno, sem colocar pressões como provas para “passar” ou “repetir de ano”, prazos para cumprimento e finalização do curso para que não haja “jubilamento” ou ainda, em instituições particulares, o preço que se paga em mensalidades ou em provas substitutivas. Ressaltamos que, nas instituições de capoeira, também há exigências e formas de avaliação que, assim como foi comentado sobre os processos de graduação, dependem de cada Mestre ou grupo. Como Contra-mestre Topete disse em uma reunião interna com os integrantes da ECAR, no início de 2013, “para eu estar dentro de uma instituição, eu tenho que seguir as normas da instituição. Para que? Para que essa instituição seja cada vez mais forte e o participante também”. Porém, nem todas as formas de avaliação serão totalmente aceitas pelos integrantes dos grupos, assim como as regras e normas de “boa conduta”. A decisão de permanecer em um grupo ou procurar outro (ou simplesmente deixar de praticar a atividade) é feita pelo próprio aluno, já que não há uma obrigatoriedade para esse ensino ou para a sua permanência. Cabe ao capoeirista aceitar as imposições dos Mestres ou, se for de seu interesse permanecer no grupo, tentar alguma forma de negociação e acordo. Essas possibilidades mais ampliadas de diálogo são um diferencial encontrado em atividades de educação não-formal. Muitas vezes, o capoeirista pode não concordar com tudo o que o Mestre diz ou propõe, como acontece particularmente comigo em alguns momentos. No entanto, tento entender (aceitando ou não), com o intuito de continuar sendo seu aluno e, com o tempo, adquirir maior experiência e consideração dentro do grupo para, cada vez mais, me posicionar com minhas opiniões. É sempre um acordo, é a capoeira, é um jogo. Contra-mestre Topete normalmente propicia essa situação de questionamento por meio do diálogo com os alunos e alunas. Como diz Professor Nico, falando sobre as singularidades que ele vê na ECAR: O diferencial está na liberdade. (…) Se você vai fazer capoeira e você tem uma interrogação na hora que você chega, você já coloca uma dificuldade para você atuar. Então, o que é gostoso é você ter liberdade, fácil acesso e amizade. Isso é o interessante. E a liberdade pra você dar opinião também. Porque ninguém sabe tudo o tempo todo. Em alguma coisa você falha.” (Entrevista, 2013)

Então, a amizade e a abertura que CM Topete proporciona são fundamentais para esse tipo de relação, de “fácil acesso”, o que nem sempre é encontrado em outros grupos, como eu já presenciei e ouvi de outros capoeiristas. Porém, essa relação não é imediata e nem sempre é fácil. Nesse sentido, a entrevista de Mariana tece comentários importantes sobre esse tipo de

91 negociação que fazemos, de acordo com nossos interesses e opiniões: eu consigo chegar pro mestre e falar: “tudo bem”, tem coisas que eu consigo, sim, burlar: "eu faço isso então", pra poder conseguir algo que pra mim é muito maior, que é esse conhecimento, essa oralidade, essa experiência, ou então ter acesso à tradição, ao fundamento. Mas também transformar, acreditar que isso está vivo e não está morto, petrificado, e que a gente pode transformar. Eu oscilo nesse paradoxo. Eu estou dentro, mas quero estar fora (Mariana. Entrevista, 2013)

Para termos acesso a esses saberes (citados como tradição, fundamento, conhecimento, experiência), além de nos adequarmos e negociarmos com o Mestre e os demais integrantes do grupo (que também nos ensinam e ensinarão muitos desses saberes), temos também que assumir certas responsabilidades e funções no grupo. Dessa forma, ajudamos a construir e a constituir o grupo, tendo papéis mais influentes e decisivos e, com isso, aprendermos mais e adquirirmos mais espaços para colocar nossos pontos-de-vista, dando vida, transformando e moldando nossas relações com a capoeira nesse grupo. Quanto mais experiência e opinião dentro do grupo, maiores serão as cobranças e responsabilidades., o que nos indica para a contribuição que a capoeira pode ter como espaço de construção, reflexão e exercício da própria cidadania. Pensando nas “pressões sociais” que diferenciam as formas e tempos de aprendizados em escolas formais e não-formais, Ewerton também comenta, relacionando-as com o seu trabalho de educador: Uma das diferenças que eu vejo entre essas duas formas de ensino, de transferência de conhecimentos, a gente pode tratar dessa forma, é o que se espera de um jovem matriculado no ensino formal e de um jovem que se dispõe a vir até aqui aprender um pouco da capoeira. O que se espera de cada um deles? Aí eu acho que envolve o que a sociedade espera de um capoeirista e o que a sociedade espera de um garoto prestes a prestar o vestibular. Qual que é a pressão sobre um garoto prestes a prestar um vestibular e sobre um garoto prestes a se tornar um trenel de capoeira, ou seja, com condições de transmitir esse conhecimento? Eu acredito que a pressão que se espera desse garoto que tá saindo, que tá indo pra universidade, é muito maior. A pressão da família, a pressão da sociedade, enfim, a pressão do entorno. Porque a pressão que se tem sobre o capoeirista é da comunidade da capoeira, é a cobrança que você vai ter após a sua formação, porque aumenta a sua responsabilidade. Muito bem, ótimo, é assim que tem que ser. Agora, a pressão que tem sobre um jovem, um adolescente, uma criança, enfim, que tem que decidir o que ele vai fazer pro resto da vida... Então eu acho que é a visão social sobre essas duas funções sociais específicas. Qual que é a pressão sobre alguém que opta por engenharia? qual que é a pressão sobre alguém que opta por treinar capoeira? A forma como isso acontece também é completamente diferente. Se eu estou no ensino formal, hoje, eu estou preocupado com duas coisas: ou preparar um garoto - no sentido amplo que eu estou querendo dizer - preparar o indivíduo para entrar na universidade, ou criar condições para esse indivíduo buscar uma melhor posição no mercado de trabalho, mesmo com o ensino médio, por exemplo, ou o ensino técnico. Então, eu crio condições para isso, é o que eu costumo dizer da minha atividade. (Ewerton Carvalho. Entrevista, 2013)

A partir desta fala, Ewerton aponta que na realidade é a “visão social” em torno de uma

92 “função social” dominante que acaba por definir uma “pressão do entorno” colocada sobre o sujeito. Na sociedade ocidental, o que se valoriza numa pessoa é a sua posição social, o status quo, definida de acordo com a classe social, a família ou o tipo de profissão exercida pela pessoa. Na sociedade capitalista, esse status é considerado a partir da capacidade de consumo que a pessoa possui, como por exemplo, a roupa que veste, os lugares que frequenta, o lugar onde mora, o carro que utiliza, etc. As condições para o indivíduo atingir maiores status são, em grande parte, dependentes de “uma melhor posição no mercado de trabalho” e, como ressaltado, é para isso que a escolarização formal se destina. Esse tipo de escolarização é criticada por Tião Rocha, ex-professor de Antropologia da Universidade Federal de Ouro Preto, que abandonou a universidade para se dedicar ao Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento41, buscando maneiras diferentes e inovadoras de educar, alfabetizar e gerar renda. Para ele, a escola formal não serve para educar, mas sim para escolarizar: “ela dá um determinado tipo de informação e de conhecimento que atende um determinado tipo de demanda, um determinado tipo de modelo mental de uma sociedade que aceita, convive e não questiona” (Rocha, 2007, s/p)42. Segundo o educador, essa demanda que a escola atende é a formação para o mercado e não para um projeto de vida. “A lógica da vida não é ter um emprego” (idem). Propõe, então, que a escola incorpore valores dignos que condicionem a ciência e a tecnologia, e não que a ciência e a tecnologia condicione os valores humanos. A escola não permite inovação. Ela é reprodutora da mesmice. A escola formal não está só na forma. Ela está dentro da fôrma. O pior é quando ela está dentro do formol. É um cadáver. O conteúdo da escola está pronto e acabado. Os meninos que vão entrar na escola no ano que vem, independentemente de quem sejam, aprenderão as mesmas coisas, do mesmo jeito. Aprendem o que alguém determinou que tem que ser aprendido. (Idem)

Para Tião, é possível uma educação de qualidade fora da escola, feita em qualquer lugar, desde que se tenha bons educadores gerando processos permanentes de aprendizagem valorizando a cultura popular tradicional de cada contexto e não repassando conteúdos tecnicistas. Em consonância com os conceitos de territorialidade e enraizamento, já trabalhados no nosso primeiro capítulo, Tião salienta que o afastamento das pessoas de seus locais, de suas

41 Organização não-governamental criada em 1984, por Tião Rocha, na cidade de Belo Horizonte-MG, que atua na área de educação popular e desenvolvimento comunitário sustentável, tendo a Cultura popular local como instrumento de trabalho, pedagógico e institucional. http://www.cpcd.org.br/ 42 ROCHA, Tião. Para educador, escola formal não serve para educar. Entrevista para Uirá Machado. Jornal Folha de São Paulo, 26/11/2007. Disponível em . Acesso: 19 de maio de 2013.

93 realidades e tradições culturais, trazem problemas na formação identitária dos indivíduos, transformando-os em massa de manobra. “A grande questão é a ideia de as pessoas se sentirem parte integrante do território. Sentir que pertencem a algum lugar e que esse lugar está ligado e eles. Eles não estão soltos. A cultura popular e tradições trazem a identidade das pessoas para transformar indivíduos em pessoas” (Rocha, 2013, s/p). Tal constatação de Tião Rocha tem consonância, também, com a crítica que Enrique Dussel faz sobre a colonialidade do nosso saber, em que modelos e métodos de ciência e de educação vindos de uma ideologia imperialista, europeia ou norte-americana, foram e são colocados como referência principal de forma imitativa e subordinada aos valores do centro, numa relação de dominação e dependência cultural43, ou seja, a dominação de uma cultura pela outra. Segundo o autor (s/d), a cultura europeia se pretende universal (um universalismo abstrato), pois nega todo valor, particularismos e exterioridade das outras culturas. Para isso, utiliza o mecanismo pedagógico de dominação cultural, com o intuito de educar o rude, o não-civilizado de forma imperial, impondo-se por seu intermédio e vontade. Essa pedagogia da dominação do império é, então, mediada pela cultura ilustrada das elites, feita através de instituições educativas, onde prioriza-se o texto de uma ideologia dominante, carregada de estereótipos de classe, sexo e raça, por exemplo, que se colocam de forma distante das realidades de cada contexto, “porque se ensinam e se potencializam instituições alienadas e alienantes” (Ibid., p.265), dentre elas a Escola e a Igreja. Para Tião Rocha (2007), a escola formal, apesar dos avanços recentes e de algumas iniciativas pontuais, “continua sendo branca, cristã, elitista, excludente, seletiva, conformada. Ela seleciona conteúdos, seleciona pessoas, mas não educa” e, como exemplo dessa escola “branca” nos conta, por exemplo, que sua tia era rainha do congado e que, contudo: “eu nunca tive aula sobre os reis do Congo, mas tinha aula sobre todos os Bourbons, reis europeus”(Ibid., s/p). A educação baseada no cotidiano da vida e do trabalho das pessoas, contextualizada pelo território e o contexto histórico em que vivem, possibilita maior sentido aos educandos, diferente da escolarização, cuja melhor pedagogia é aquela que implica mais sentido para quem a aplica

43 Dussel descreve a dependência cultural em dois níveis: externa, que é do império à elite colonial que, apesar de minoritária, detém o poder como oligarquia dependente, aceitando inquestionadamente a cultura imperial como universal; e interna, que é a que a elite colonial, alienada e pretendendo alienar, exerce sobre o povo, por meio de uma cultura ilustrada que nega a cultura deste “Outro”, ou seja, ignora as grandes realidades populares em todos os aspectos, negando suas tradições e aniquilando a cultura popular em benefício do “centro” mundial.

94 (Idem). Nessa mesma direção, Pedro Abib (2005a) explica que a educação baseada na vivência em comunidade, na cultura e nas tradições do grupo social específico, tem como alicerce de sua efetivação o trabalho com a memória, a ancestralidade, a ritualidade e a oralidade, em uma “reconstrução criativa das possibilidades de se viver e se relacionar com o mundo, com base em outros princípios e valores, pautados por uma dimensão mais solidária e humanizante” (p.212). No momento da entrevista, realizada na ECAR, em que Ewerton comentava sobre como e para que fins ele educava seus alunos na escola formal, Contra-mestre Topete parou para ouvir o que falávamos. Então, aproveitei para fazer a mesma pergunta a ele: “para o que você prepara seus alunos e alunas?”: Eu acredito que a capoeira é um pré-vestibular para a vida. Então eu não preparo o aluno assim, só para jogar capoeira, mas para a vida (...) eu não preparo o aluno para aqui dentro, eu preparo a pessoa lá para fora. Para o mercado da capoeira também, mas eu preparo o aluno para a vida, eu tento passar a minha experiência que eu tenho de vida para o aluno. [Danilo] - De que forma a capoeira contribui para a vida das pessoas? Contribui da maneira da parte educativa, porque na capoeira angola, a gente treina por causa dos nossos ancestrais. Então sempre é importante você se lembrar do seu ancestral, é acender uma vela, é rezar pra ele, porque nós estamos aqui por causa dos nossos ancestral. (…) Então a gente não pode esquecer. eu acho que se o ser humano quiser ser bem sucedido na vida, tem que se lembrar dos ancestrais. (…) Então a gente tem que pensar a época deles, qual foi a metodologia de ensino, para a gente fazer a nossa capoeira hoje. É importante pensar nos professores e contra-mestres de hoje, mas nós estamos aqui devido ao passado. E nós vivemos o passado e o presente. O futuro a Deus pertence. (Contra-mestre topete. Entrevista, 2013)

Contra-mestre Topete relaciona diretamente o aprendizado da vida com a ancestralidade presente na capoeira angola. Para ele, “pensar a época deles”, cultuá-los e buscar compreendê-los são formas de refletirmos sobre nossas vidas no presente e nos prepararmos para a vida “lá para fora”. Ou seja, reconstruir nossa memória como forma de construir e viver o passado e o presente, com a consciência do enraizamento, de nossas origens, da origem da cultura em que vivemos e que (re)produzimos. O passado enquanto força instauradora que pode vigorar no presente e interferir no futuro, como nos coloca Abib (2005). Apontamos, então, com Pedro Abib, para a perspectiva não-linear da temporalidade na capoeira angola, que se contrapõe à perspectiva linear que impera no ocidente (passado-presente-futuro) e à eternização do presente colocada nas sociedades capitalistas, que se alastra ao passado e se sobrepõe ao futuro, depositando nesse último, que nunca chega, todas as perspectivas de mudanças e transformações (Idem). O autor descreve, em diálogo com Boaventura Souza Santos e Walter Benjamin, que o passado deve irromper e relampejar num

95 momento de perigo em socorro dos vencidos, como fonte de inconformismo e rebeldia, faiscando a “chispa da esperança” (ibid, p. 104). Assim, o passado deve ser visto como algo vivo, apontando para uma perspectiva circular de pensar o tempo. Essa discussão sobre a temporalidade na capoeira também irrompeu na entrevista com Trenel Fernando e Mariana: A capoeira se torna uma forma de resistência assim também. O mundo está avançando a um bilhão por hora enquanto a capoeira angola está olhando lá para trás. Colher o que está lá atrás, não ficar olhando lá para frente, só o que vem. Aumentar ou transformar, mudar. ela resgata isso também (…). Enquanto está todo mundo voando, a gente está plantado no chão. E a capoeira angola traz isso, ela meio que não permite avançar muito. Se avançar muito, começa a descaracterizá-la. Então a gente está sempre segurando as coisas que vêm lá de trás. (Trenel Fernando. Entrevista, 2013)

A capoeira, então, apresenta-se na contra-mão do discurso da modernidade e da globalização, que vê o progresso, ainda embasada em teorias evolucionistas, em busca sempre do aperfeiçoamento, da inovação futurista, do esquecer o passado e pensar no futuro, de “todo mundo voando”, enquanto o capoeira está “plantado no chão”, seja com os pés, as mãos ou a cabeça. Porém, como lembrou Mariana: A tradição sempre tem que ser revista pra não se manter as injustiças também, porque é cada coisa no seu tempo. Por exemplo, a opressão contra a mulher tem muito tempo, faz muito tempo que se oprime crianças, que se oprime bicho, que se oprime mulher. E as pessoas, no geral, opressão em si. Se você pega a mulher na capoeira, se permanecem, se perpetuam coisas que podem ser, às vezes, isolada, vistas. (Entrevista, 2013)

O machismo na capoeira está ligado a esta discussão. Como colocado por Mariana, ainda há muito preconceito e discriminação contra a mulher no universo da capoeira e isso tem sido combatido por movimentos realizados pelas próprias capoeiristas, que se impõe e criticam cada vez mais essas posturas44. Ou seja, a capoeira também é dinâmica, suas tradições devem ser revistas e readequadas às realidades do presente, o passado se atualiza e se reformula, como também comentou Ewerton: Mesmo porque isso que nós temos acesso, que nós chamamos de mestres antigos, já representam uma reformulação daquilo que veio através dos escravizados, então já é uma outra coisa. Então, de certa forma eles foram os contemporâneos daquele momento, regatando algo que eles aprenderam e hoje nós temos os contemporâneos revisitando, ou reformulando aquilo que eles vêm pegando dos mestres antigos. (Entrevista, 2013)

Então, como já sugerimos no nosso título e no primeiro capítulo desta dissertação, o

44 Para mais informações sobre essa importante discussão, consultar: SIMÕES, Rosa Maria Araújo. Capoeira: um convite ao jogo feminino. Rio Claro: Unesp, 1998. (Dissertação de Mestrado).

96 passado é repassado: os nossos velhos Mestres tiveram outros velhos Mestres, que se basearam em outros, e assim por diante, numa relação de ancestralidade que nos remeterá a tempos muitos distantes, mas que preservaram alguns aspectos que foram repassados aos mais novos, num caminho de sentido contrário, até chegar na nossa contemporaneidade, que no futuro também será o passado. O lance do tempo diferente também na capoeira, da forma circular de tempo, de entender que aqui [tem] passado, presente e futuro, mas a coisa se movimenta junto. Você só pode pensar o futuro se você vivencia o passado e o presente. Isso tudo eu estou aprendendo e estou vendo que vai totalmente do contrário ao que a gente está vivendo. Como aquela charge que a gente viu: "você trabalha pra viver ou vive pra trabalhar?" E, no fim, acaba na mesma coisa, você só trabalha. Você não vive e ainda morre e não viveu. E a capoeira mostra outra coisa, não é um ciclo vicioso. Você está sempre construindo. (Mariana. Entrevista, 2013)

Segundo Abib (2005a), essa noção de circularidade do tempo é muito percebida no ritual da roda de capoeira quando as músicas e cantos remetem a tempos passados, entoados pelos berimbaus, instrumentos que já foram utilizados para conversar com os mortos, enquanto o jogo corporal dos capoeiristas remetem à uma estética ancestral e incorporam a ancestralidade dos movimentos, além de signos e referências de um ritual praticado há anos. Esse ritual, em certo momento, se encerra e as pessoas deixam aquele microcosmo para voltar às outras temporalidades que regem suas vidas, num movimento dialético, pois o capoeirista atua na temporalidade linear regidas pelos relógios, calendários e tarefas do cotidiano, mas também tem sua noção do tempo alterada pelos mantras, pelos transes e pelas diversas sensações proporcionadas na roda, como Mariana nos remete: Aquela rotatividade ali, o transe mesmo do mantra da capoeira, que ressurge e você realmente faz coisas que você nem imaginava que você era capaz, ou puxa uma energia de onde você achava que não tinha. (…) A capoeira aflora o que todo mundo tem de mais íntimo: a personalidade, as dificuldades de convivência, ou as grandes qualidades que as pessoas têm. Isso vai dificultar ou facilitar tudo. E vai fazer acontecer as coisas. Depois de um ritual você sempre tem o que dizer, se todo mundo conseguiu se botar para fora, tiveram oscilações entre coisas boas e coisas ruins o tempo todo, porque isso é a realidade da vida das pessoas. Você vê o corpo da pessoa se movimentar como ela é, você vê ela cantar coisas e do jeito que ela é, tocado da maneira dela. Tudo é muito expansivo do indivíduo. (Entrevista, 2013).

Essa expansão do indivíduo é proporcionada pela coletividade da roda de capoeira, que envolve as pessoas que tocam, que cantam, que jogam, que batem palma, que assistem, todas, de certa forma, se doando e se dividindo para manter a “energia” e a intensidade do ritual: “pra você jogar, você precisa do outro, você precisa de quem está tocando, de quem está cantando, e aí você vai e divide também com o outro, fala 'eu vou tocar e cantar para você, pra você jogar'” (Idem).

97 E é outra coisa que a capoeira também ensina a gente, que é uma coisa que a gente não faz sozinho. Para ficar bom, tem que ter várias pessoas. E para ficar melhor ainda, tem que ter gente assistindo mesmo, que é uma das propostas de quando você fala em divulgação. Então é uma coisa que eu acredito que é coletiva mesmo. Acredito não, é coletiva. (Trenel Fernando. Entrevista, 2013)

2.5. O aprendizado para a vida e para a arte: controle, intuição e calma Voltamos, então, à relação levantada pelo Contra-mestre Topete entre a ancestralidade e o aprendizado para a vida. A roda de capoeira, como muitos mestres dizem, é a (representação da) “roda da vida”, lugar e momento em que as pessoas vivem e revivem instantes; transformam e são transformados pela alta quantidade de estímulos (visuais, sonoros, táteis, olfativos, espirituais); se religam aos seus antepassados; soltam suas ex-pressões com movimentos, olhares, gritos, toques e cantos, até então, aprisionados em seus corpos; conversam com outras pessoas através de outras linguagens, produzindo diferentes formas de comunicação; aprendem, ensinam e se relacionam: Eu acho que na capoeira a gente aprende a se relacionar com as pessoas. A roda nos mostra um monte de coisas. Nos mostra a falsidade, a maldade, a gentileza, a bondade... e a gente vê isso de uma maneira crua. O que a gente tem no relacionamento do dia-a-dia que, muitas vezes, é camuflado. É toda aquela coisa, na hora da roda, o camuflado existe, mas ele vai se desvelar numa queda, ele vai se desvelar numa chapa no meio da sua cara. Então aquilo se revela. A pessoa está sendo falsa com você, mas num determinado momento ela vai e "pum", te dá o bote. Isso te dá, para a vida, uma habilidade de perceber as coisas, de sacar, de ter essa sagacidade, de às vezes você está num ponto de ônibus, ou você está num ambiente qualquer e perceber a maldade, perceber a armadilha antes dela ser aplicada, porque a roda te permite, te favorece vivenciar isso de uma maneira muito crua. Então, a nível de relacionamento, isso é muito interessante, porque você aprende a lidar com isso, você aprende a estar esperto, a se precaver, a não andar vacilando. E isso é um tipo de inteligência que a capoeira te dá. (Professor Leonardo. Entrevista, 2013)

98 Imagem 49: Jogo entre Professor Leonardo (de branco) e Mestre Moreno na roda de encerramento do III Encontro das Culturas da ECAR. Essa roda foi realizada em "Cachoeira de Emas", na cidade de Pirassununga, onde há outro núcleo da Escola, coordenado pelo Da Silva, que aparece na foto tocando pandeiro, de boina. Acervo ECAR. Novembro de 2012.

Essa crueza a qual Professor Leonardo se refere é sentida “na pele”, como podemos imaginar com essa fotografia acima. Em uma “chapa” bem aplicada como a de Mestre Moreno, se Leonardo não estivesse preparado, se estivesse “vacilando”, a fotografia poderia ser diferente (com a chapa atingindo seu rosto, por exemplo). Porém, houve a esquiva de corpo, além da proteção com as mãos. Esse preparo e atenção que adquirimos com o treinamento da capoeira é também transposto para fora da roda, para a “roda da vida”, nos preparando para surpresas, nos tornando mais “sagazes”. Odair nos contou sobre um episódio que aconteceu com ele em uma noite de sexta-feira após a Roda do Gueto, que se estendeu para um samba de roda e conversas até mais tarde: Eu estava em um ponto na [avenida] Senador Saraiva. Tinha dois elementos conversando. Eu estava sozinho ali. Aí chegou uma mulher que vinha vindo, sentou do meu lado. E essas duas pessoas que estavam num ponto próximo, eu olhei a hora que eu cheguei e, na hora que eu sentei no ponto, o cara saiu de lá e sentou do meu lado. Mas uma coisa bem rápida, assim. Ele sentou do meu lado, a mulher veio de lá, sentou, era mais de meia-noite e eu esperava o ônibus de meia-noite e meia, era o último ônibus já pra ir pra casa. E a gente tinha tomado uma cerveja, tinha feito samba-de-roda, tudo na capoeira. (…) Ele perguntou onde eu moro. Eu moro no Jardim Florence. (…) Aí o cara sentou e a hora que ele falou que é um assalto, não deu tempo, a hora que eu vi, ele pegou um punhal e fez assim ó, meteu o punhal aqui no meu peito. E eu no reflexo, que eu tava conversando com ele mas já estava aqui olhando a movimentação dele, eu já tava focando ele aqui do lado, conversando aqui... Porque a gente tem esse costume

99 assim de sentar, você está aqui na frente, você tem essa visão aqui e aqui né [laterais], você não precisa olhar, mas você acaba focando. E era tarde da noite. Do jeito que ele bateu o punhal eu segurei a mão dele e, na hora que eu segurei, eu segurei com bastante força, porque eu segurei para ele não enterrar o punhal no meu peito, eu olhei assim e falei "pô, falta pouquinho pro cara me matar". [Era] um punhal mesmo, grandão. Aí eu [pensei]: "o cara não tem mais força do que eu". Eu sei que eu consegui, sentado, eu consegui levantar ele assim e jogar ele com o punhal longe. Eu não sei até hoje como que eu consegui fazer, mas aí o cara saiu correndo, a mulher que tava do lado saiu gritando: "morreu, matou, o cara deu uma facada no rapaz ali..." a mulher saiu correndo e ela está para contar a história. Ela vende churrasquinho no Terminal [Central] e aí ela me vê e fala: "esse rapaz nasceu de novo" eu falei: "eu não, é que não era a minha hora mesmo, não era a minha hora não, porque quando chegar a minha hora, eu vou mesmo". (Entrevista, 2013)

Imagem 50: Odair mostrando como segurou o punhal do agressor em seu peito. Imagem retirada do vídeo gravado durante a sua entrevista. 2013.

Nesse depoimento de Odair, constatamos novamente a sagacidade, a atenção, e o preparo (físico e psicológico) que a capoeira proporcionou para ele ter a calma, a coragem e a força para impedir uma agressão que poderia ser fatal. Não queremos dizer que foi somente pela capoeira que ele “escapou” desse ataque, porque uma reação dessas envolve muitos outros aspectos e pode variar de pessoa para pessoa. Talvez um outro capoeirista não tivesse essas atitudes, ou talvez uma pessoa que não pratica capoeira teria. Entretanto, na capoeira há o preparo para que o/a capoeirista mantenha a calma e o controle nas suas ações, observando o seu entorno com atenção para tentar prever qualquer perigo. Como o Trenel Alex também comentou, a capoeira nos ajuda a perceber as coisas antes de acontecerem: Eu tenho desenvolvido a intuição. Então eu acho que faz parte da capoeira, no sentido das escolhas. Um pouco eu acho que é da experiência, também, de vida. Você vai melhorando a sua

100 intuição. Acho que é muito disso também, mas a capoeira te auxilia, porque numa situação de roda você chega, alguma informação você vai tentar tirar daquela pessoa pela primeira vez, às vezes, que você não conhece. Então você vai pelo [sentido] e a gente tem vários sentidos. Você vai ver alguma coisa, vai escutar ela falar, vai sentir. E a intuição, se eu não me engano é o sexto sentido, né? É isso, você olhar para uma pessoa e você acreditar naquela impressão, por exemplo. Ou então não. (Entrevista, 2013)

Intuição (palavra que vem do latim latim “intuire”, que significa "ver por dentro") para Kant (1999), é a primeira fonte de conhecimento do sujeito, ou seja, é a sensibilidade primeira e direta que um objeto externo afeta nosso interior, antes de qualquer representação mental (racionalizada) do objeto. Essas sensações, recebidas pela intuição, são organizadas no espaço e no tempo interno do sujeito e, reunindo conceitos básicos (ou categorias, para o autor) se dará o entendimento, o discurso sobre o objeto. Com a fala do Trenel Alex, podemos pensar que a intuição seria essa faculdade de perceber e se guiar pelas primeiras intenções que se tem de uma pessoa ou situação, percebendo sinais e prevendo atitudes, como foi também levantado pelo Leonardo como “uma habilidade de perceber as coisas” e pelo Odair ao dizer que “já estava aqui olhando a movimentação dele”. Para Jung (2003), a intuição está no âmbito dos pressentimentos, a habilidade de perceber possibilidades utilizando a experiência passada, as informações relevantes à experiência imediata, os processos inconscientes e os objetivos futuros. Ou seja, a dimensão intuitiva está sempre presente nas ações humanas. Entretanto, devido à atualidade exigir cada vez mais um conhecimento racional e tecnicista, a intuição acaba por ser deixada de lado pela racionalidade científica, que trabalha com o que se pode comprovar e tem dificuldades em aceitar algo que se sente sem explicar. Segundo o autor, “a intuição é a função pela qual se antevê o que se passa pelas esquinas, coisa que habitualmente não é possível... É uma função que normalmente fica inativa se vivemos trancados entre quatro paredes, numa vidinha de rotina” (Ibid., p.10). Alex Manetta, relacionando a intuição com o instinto, também fez essa crítica muito parecida à de Jung: “eu acho que a capoeira desperta os instintos, uns instintos muitas vezes adormecidos por tudo, pela vida que a gente leva, as ideinhas (sic) sistemáticas, o jeito de viver, tudo fica amortecido pelo sistema, pela comida que a gente come. A gente fica alienado” (Entrevista, 2013). Segundo ele, essa alienação vem desde a comida que comemos até a roupa que vestimos, pois não sabemos exatamente a procedência de nenhuma delas.

101 Eduardo Marinho, artista e filósofo que viveu durante anos sem casa nem emprego, sendo morador das ruas de diversas cidades brasileiras, em uma entrevista, falou sobre a intuição nas pessoas pobres, sem acesso a uma educação de qualidade: Isso, nas favelas, é desenvolvido. O pobre não tem desenvolvimento racional, ele tem intuitivo. Ele não tem escola. Ele tem um simulacro com o nome de “escola”, mas é só o nome, é só fachada, não tem ensino. O cara termina o ensino médio e não consegue ler um texto. Então, o bloqueio da racionalidade faz ele desenvolver a intuição. Só que ele não sabe disso. Você chega na favela que você não é conhecido, é muito mais comum a pessoa ficar te olhando de longe e depois se aproximar, do que vir te perguntar alguma coisa. O que faz a pergunta é a razão. A intuição, o cara está sentindo você, sem perguntar nada. Ele está só olhando você, sentindo a sua vibração. Isso é intuição. Se a população tivesse consciência desse poder, o mundo mudaria. (MARINHO. Vídeo. 2012)45

A intuição, então, é uma percepção presente na vida de todas as pessoas porém, “adormecida”, “amortecida” (Alex), “bloqueada” (Eduardo) e “inativa” (Jung) pelo ritmo e forma de vida colocada pela razão dominante, que privilegia o entendimento e a comprovação racional em detrimento das outras categorias de percepção e sensação. A percepção intuitiva da “vibração” das pessoas (como indicado por Eduardo), pode ser trabalhada na capoeira angola a partir do treino e convivência na roda de capoeira angola. Voltando à fala do Professor Leonardo, a crueza da roda é o local onde temos que “perceber a armadilha antes dela ser aplicada”, prever o movimento, maldoso ou não, do nosso companheiro de jogo. Acreditar ou não naquela “impressão” que sentimos de algo que vai acontecer para, então, fazermos a escolha, tomarmos a decisão do ataque, do contra-ataque ou da defesa. A capoeira é um conhecimento corporal, uma consciência corporal. É como um exercício do Yoga. Não trabalha só o corpo físico, mas trabalha os corpos sutis, então você vai desenvolvendo, porque é um dom que a gente tem que tá ligado à intuição. Tem uma parte do corpo, que é o cérebro, e tem também as glândulas, tem a pineal... e aí o ser humano tem essa capacidade de sentir além do que os sentidos mais "brutos" assim vamos dizer. (Trenel Alex Manetta. Entrevista, 2013) Outros aspectos muito trabalhados na capoeira angola são o controle e a calma, que são fundamentais para um jogo em que seu sucesso depende de seu controle sobre as situações que a roda pode lhe proporcionar, que vai da exaltação à humilhação, da alegria à tristeza, como nos falou Mariana: “oscilações entre coisas boas e coisas ruins o tempo todo”. Assim, o bom capoeirista deve sempre manter a calma para controlar suas emoções e saber conduzir o jogo, esperando o momento para um contra-ataque ou uma redefinição do jogo. Como canta Mestre

45 Vídeo “Filósofo da rua – Eduardo Marinho”. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=nIOts0hHfTc. Publicado em 04/10/2012.

102 Bigo46: “Na hora da raiva, na hora da dor, vamos fazer o que o Mestre falou”. Ou seja, em situações em que é fácil perder o controle, o capoeirista deve se lembrar dos ensinamentos de seu Mestre para manter a calma, para ter paciência. A calma é uma habilidade que o capoeirista deve desenvolver não só para a roda de capoeira, mas também para o próprio aprendizado da capoeira, que pode ser muito lento e gradual, como já comentamos nesse capítulo ao tratar do tempo de aprendizagem. A capoeira angola trabalha, como foi visto, com movimentos corporais que não somos acostumados a desenvolver no dia-a-dia, ou que somos desacostumados a fazer (“podados”, nos termos do Trenel Fernando). Para o reaprendizado, é necessário paciência e persistência no aprendizado da capoeira, como nos conta o aluno Antônio Bueno: Essa paciência de às vezes aprender um movimento diferente, você fala "poxa, mas esse movimento é muito difícil, já faz dois anos que eu estou tentando fazer”. Mas eu estou ali, persistindo, tentando tocar o berimbau. Não é fácil, é difícil. Só que essa busca traz dentro da gente, vai criando dentro da gente, a expectativa de um futuro diferente, de um futuro melhor. E isso também leva a mais coisas, não só capoeiristicamente falando, mas mais coisas, na nossa vida do dia-a-dia. (Entrevista, 2013)

Para ele, essa busca traz benefícios para a pessoa tanto dentro como fora da capoeira, “na nossa vida do dia-a-dia”, o que conduz, também, para as expectativas futuras. Rodrigo Fujiwara, também aluno da ECAR, comentou sobre a superação das dificuldades na capoeira: Porque é importante na vida da gente, eu vejo, é ter sucessos e, dentro de um contexto que a gente vivencia aqui na Escola de Capoeira, é permitido ter sucessos. Você vai progredindo. Conforme você tem limitações e os colegas, o Mestre, auxilia, busca estimular para que você vença essas limitações, quando você vence, você tem um sentimento de sucesso. Isso aí também vai se incorporando no nosso espírito. (Rodrigo F. Entrevista, 2013)

Para Rodrigo, a superação dos limites é conseguido a partir do esforço do aluno e também do estímulo do Mestre e demais colegas, que te ajudam a alcançar o “sentimento de sucesso”. Tanto para Antônio como para Rodrigo, esses benefícios da superação são levados para o aprendizado da vida, do dia-a-dia, e até espiritual. Ewerton nos falou sobre como os ensinamentos da capoeira angola contribuem, também, em seu trabalho como professor: Eu consigo ter uma tranquilidade maior perante uma situação, por exemplo, de confronto com o aluno. Eu consigo conduzir uma situação dessa com mais tranquilidade. Eu posso ficar morrendo de raiva, nervoso, querendo explodir, mas ninguém vê que eu estou nervoso. Nenhum aluno percebe que eu estou nervoso. Várias vezes isso já aconteceu, dos alunos tentarem me testar, ou de me afrontar, e eu manter a mesma linha, a mesma postura, que é algo que a gente 46 Francisco Tomé dos Santos Filho, também conhecido como Francisco 45, nascido em 1946, é discípulo de Mestre Pastinha e padrinho da ECAR. A música citada é cantada por ele em seu CD “Cantigas de capoeira”, lançado em 2008.

103 aprende aqui. Você pode estar tomando rasteira, tomando chapa, tomando pra tudo quanto é lado, mas você tem que manter a tranquilidade e levar o jogo até o fim. (Ewerton. Entrevista, 2013) Além da movimentação corporal, outras racionalidades presentes nesse processo educativo da capoeira angola também exigem um esforço grande para seu entendimento, como a questão da temporalidade, da oralidade, da ritualidade e da musicalidade, que nem sempre são presentes nas realidades vividas nas cidades contemporâneas. Assim, a capoeira exige um esforço e um comprometimento que nem todas as pessoas dispõem, como explica Contra-mestre Topete: Na capoeira angola, de fato, você tem que gostar. Tem que sentir amor por ela e você tem que se sentir bem. Então, não é todo mundo que se identifica com a capoeira angola. Eles gostam de ver, assistir as aulas. Mas praticar, nem todos, porque é um treinamento muito educativo, que exige muito a parte fisiológica do indivíduo, também do processo cognitivo e psicológico, demais. O aluno tem que pensar bastante nos treinos, nas aulas de instrumento, de canto. E acaba sendo difícil pra uma pessoa que tenha uma responsabilidade mas não quer ter compromisso. E fazer, estudar a capoeira angola, é um compromisso. Você tem que ser fiel pra ela, senão você não consegue desenvolver, entender. (Entrevista, 2013)

Segundo o que nos disse Contra-mestre Topete, o compromisso com a capoeira depende da identificação, gosto e esforço do/a praticante, que se deparará com diversas dificuldades e obstáculos no decorrer de seu aprendizado. Assim, o angoleiro que opta por inserir a capoeira angola em sua vida de forma plena, assume as responsabilidades e lealdades que serão exigidas pela comunidade da capoeira e por ele mesmo. “É muita dedicação. Mas eu vejo que a dedicação existe em todos os objetivos que você quer traçar” (Idem). Em compensação, a capoeira angola retribui com esses aprendizados da vida, que terá impacto em todos os aspectos da vida de cada praticante, fazendo-os querer cada vez mais aprender a capoeira, sem a intenção de chegar a um fim porque, como nos lembrou Professor Leonardo: “Mestre João Pequeno também dizia 'capoeira é vida'. Então, se a capoeira é vida, é uma coisa que você tem que estar sempre cultuando, cultivando, se alimentando, buscando. Então, é um conhecimento que não se acaba” (Entrevista, 2013). O resultado dessa resistência, persistência e paciência no aprendizado para a vida se dá pelo compartilhamento de ideais em comum, da soma de forças e de conhecimentos em busca de engrandecer a própria comunidade de aprendizado e difundir diferentes racionalidades. Assim, em busca da libertação, da amizade e da coletividade proporcionadas pela capoeira angola, os angoleiros se unem em grupos, associações ou escolas para, coletivamente, construir as suas próprias histórias e contribuir para o exercício da cidadania e de uma vida melhor, tendo um

104 Mestre como força agregadora e orientadora. Eu sou feliz pelo número de alunos que hoje tenho e também pelo caráter dos meus alunos. Todos eles têm um bom caráter. São cidadãos de bem, são pessoas que estudam, que trabalham, que pensam em ajudar a comunidade, ficar no meio da sociedade. E eu aprendo muito com os meus alunos, também. É um papel assim, invertido. (Contra-mestre Topete. Entrevista, 2013)

105 106 Capítulo 3 Organização, atividades e simbologias na Escola de Capoeira Angola Resistência

Nesse capítulo, direcionaremos nossa abordagem para a Escola de Capoeira Angola Resistência, descrevendo e analisando sua formação e organização, as atividades desenvolvidas, os projetos e os seus núcleos. Iniciaremos o capítulo discorrendo sobre as simbologias utilizadas na ECAR que, baseadas em ideais propostos pelo pan-africanismo, pela liberdade e pela solidariedade entre povos, são fundamentais para compreendermos as atividades e expressões culturais desenvolvidas na Escola. Passaremos, então, à descrição e explicação das atividades desenvolvidas na ECAR, discorrendo sobre as convenções de toques, ritmos e cantos utilizadas nas atividades do grupo e nas apresentações para divulgação externa. No final do capítulo, faremos uma reflexão sobre os usos das novas tecnologias de informação para registro e divulgação da ECAR. A partir do momento em que conquistou o título de Contra-mestre de capoeira angola, Topete adquiriu maior autonomia e, buscando maior liberdade para desenvolver seu próprio trabalho, pensou em um novo projeto que fosse fruto da sua experiência de vinte e três anos praticando capoeira e mais de quinze anos ministrando aulas, trabalhando com capoeira, viajando para eventos, conhecendo diferentes mestres e metodologias para o ensino da capoeira. Assim, libertando-se de quaisquer amarras institucionais ou hierárquicas que pudessem aprisionar seu trabalho, no dia 09 de setembro de 2009, Contra-mestre Topete fundou a Escola de Capoeira Angola Resistência (ECAR), tendo como sede o salão já ocupado no Terminal Central de Ônibus Urbano de Campinas, sob o Viaduto Vicente Cury, no centro de Campinas-SP. Nessa mudança, todos os alunos concordaram, apoiaram e continuaram na ECAR, cuja fundação foi muito bem-vinda para ajudarem a constituir essa nova história que, ao mesmo tempo, seria a continuidade do trabalho já desenvolvido pelo grupo, mas agora com um novo nome, uma nova imagem e novas expectativas.

107 3.1. A ECAR e sua simbologia: o pan-africanismo e a cultura de encruzilhadas Com a criação da ECAR, Contra-mestre Topete passou a ser responsável pelas decisões dos rumos e dos objetivos a serem tomados pelo grupo. Essa responsabilidade, no entanto, é dividida com os demais alunos e alunas que integram a Escola, cada um tendo seu “papel” nessa história que se construirá a partir desse núcleo de pessoas. Ou seja, ainda que a decisão final seja tomada pelo Mestre, ela depende do esforço e da comunhão de cada um dos integrantes, cada qual com a sua função e experiência construída no coletivo. Essa forma de organização não se dá por acaso. Ela é pautada nos valores de solidariedade e de valorização da experiência dos mais antigos, valores esses presentes nas culturas afro-brasileiras, tal como destacamos no primeiro capítulo.

Imagem 51: Logotipo da Escola de Capoeira Angola Resistência. Acervo ECAR, 2009

O logotipo da ECAR, a pedido do Contra-mestre Topete, foi criado pelo Fredy Colombini, seu antigo aluno, o qual nos escreveu uma breve explicação sobre como ele foi feito e seu conceito: •O formato do logotipo é um circulo perfeito e uniforme em relação aos outros círculos menores, onde esse circulo maior amarelo representa a “roda de capoeira” e foi usado o amarelo ouro que simboliza luz, calor, descontração, otimismo e alegria, todos elementos característicos

108 no nosso grupo. • Dentro dessa “roda” existem mais três círculos com as cores verde, amarelo, vermelho e preto, são as cores que representam a unificação dos povos africanos, simbolizando a sua luta e resistência pela cultura Afro. •A corrente quebrada com os punhos fechados é o ponto mais forte do logotipo, pois retrata toda a história de resistência que o Contra Mestre Topete passou em sua vida pessoal e como capoeirista. •A estrela de cinco pontas no centro ou pentagrama é considerado por muitos esotéricos o simbolo mais forte por ter em sua essência a representação do homem e das forças da natureza. Representa o poder do homem sob o reino inferior, a proteção contra agentes do mal fortalecendo a segurança e iluminação. • Como o logotipo simboliza a Escola de Capoeira Angola, não poderia deixar o elemento maior da capoeira de fora, o berimbau e os angoleiros, executando a clássica “parada de mão”, para alguns um simples “floreio”, para outros um “pulo do gato”.

Chamamos atenção para as cores predominantes que serão utilizadas em todas as decorações, ornamentos, instrumentos e uniformes da ECAR e de seus integrantes (verde, amarelo, vermelho e preto). Essas cores, como explicou Fredy, representam a unificação dos povos africanos. Elas nos remetem ao pan-africanismo, movimento político, filosófico e social que busca potencializar a voz do continente africano no contexto internacional. Com o intuito de incentivar a solidariedade entre todos os seus descendentes, espalhados em outros continentes pelos processos de diásporas, o pan-africanismo “é a crença de que os povos africanos partilham, tanto do continente africano como da diáspora, não apenas uma história comum, mas um destino comum” (MAKALANI, 2011, tradução nossa).

109 Imagem 52: Contra-mestre Topete exibindo os berimbaus e o atabaque (ao fundo), com as cores pan-africanas. Du Bois47 escreveu, em seu clássico livro “As almas da gente negra”, no qual propunha a igualdade de direitos aos negros do sul dos Estados Unidos, que “precisamos de todos, não separadamente mas todos juntos, não sucessivamente mas em conjunto, todos crescendo e ajudando-se mutuamente, todos empenhando-se em prol desse ideal da fraternidade humana, adquirida por meio do ideal unificador da Raça” (1999, p. 61). Trata-se, então, de um chamado de união dos povos afro-descendentes para a busca de valores humanitários e anti-imperialistas, para fins de igualdade e fraternidade. O pan-africanismo foi originado no início do século XIX, no continente americano (após a revolução Haitiana de 1804), e foi retomado no século XX, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, quando passou a ser relido por diversas vertentes teóricas48, influenciando muitos estudos e movimentos raciais. Teve grande atuação para a formação da Organização da Unidade Africana49 (OUA), criada em 1963 por Haile Selassie, imperador da Etiópia.

47 William Du Bois (EUA 1868 – Gana 1963), sociólogo, historiador, primeiro doutor afro-americano em Harvard e compilador da primeira grande enciclopédia africana. Considerado um dos precursores do pan-africanismo. 48 Entre os teóricos e militantes do pan-africanismo mais citados estão: William Du Bois, Henry Sylvester Williams, Marcus Garvey, Kwame Nkrumah e Franz Fanon, além de Abdias Nascimento, no Brasil. 49 No ano de 2002, a OUA passou a ser denominada União Africana (UA). Em maio de 2013, houve a comemoração de seus 50 anos, que reuniu representantes dos 54 países participantes da UA. O Brasil foi convidado como representante da América Latina. Para maiores informações, consultar a Declaração Universal dos Direitos do Homem: Carta da Organização da Unidade Africana (Salvador: UFBA, Centro de Estudos

110 A OUA tinha como objetivos principais promover a solidariedade e a unidade entre os Estados africanos, buscando a soberania, a integridade territorial e a independência desses e erradicar o colonialismo na África. Assim, muitos dos países recém-independentes associados à OUA passaram a promover as cores utilizadas na bandeira da admirada e resistente Etiópia (país que manteve-se, na maior parte da sua história, fora do controle colonial europeu), utilizando-as em suas bandeiras (como Gana, Lituânia, Mali, Camarões, Benin, Guiné, Guiné-Bissau e Senegal). Assim, essas cores serão consideradas um símbolo para o pan-africanismo, sendo utilizadas por diversos movimentos negros que atuam nos âmbitos sociais e culturais, como por exemplo, o movimento Rastafari e o Reggae.

Imagem 53: Bandeira da Etiópia Imagem 54: Bandeira da Etiópia de 1975 utilizada entre 1897 e 1974, época da a 1987 e de 1991 a 1996. Apesar de não criação da OUA por Haile Selassie e que ser pan-africana na sua concepção, tem continua popular entre seus seguidores e influenciado as bandeiras de muitas pelos adeptos do movimento Rastafari. organizações políticas pan-africanas. Marcus Garvey50, líder político, religioso, comunicador e empresário jamaicano, difundiu uma vertente do pan-africanismo que propunha uma libertação africana através da volta de seus ascendentes à África. Em 1914. criou a Associação Universal para o Progresso Negro (AUPN)51, cuja bandeira se compõe com as cores: vermelho, preto e verde. Essa bandeira também será referência no movimento pan-africanismo e é de onde soma-se o preto à constituição das cores pan-africanas utilizadas pela ECAR.

Afro-Orientais, 1963). 50 Garvey nasceu no dia 17 de agosto de 1887, em Saint Ann's Bay, Jamaica. Faleceu em Londres, no dia 10 de junho de 1940. Para mais informações consultar: http://www.marcusgarvey.com/ 51 Universal Negro Improvement Association and African Communities League (UNIA), em inglês.

111 Imagem 55: Bandeira pan-africana adotada pela AUPN em 1920. Segundo Abdias Nascimento (1914-2011), intelectual negro brasileiro tido como um dos maiores divulgadores do pan-africanismo no Brasil, “a experiência pessoal do negro registra-se como um fenômeno sócio-cultural que abrange a inteira coletividade oprimida, vítima de diversas destituições de elementos básicos à sua sobrevivência como povo” (2002, p.318, grifo nosso). O pan-africanismo baseia-se na ideia da unidade e solidariedade racial, não apenas entre nações, mas entre povos os os afro-descendentes que são atingidos pelo fenômeno da opressão e devem se reconhecer como sujeitos na luta pela sobrevivência, liberdade e emancipação de seus povos.

Imagem 56: Momento de louvação após o canto da ladainha. Roda realizada em frente à Catedral Metropolitana de Campinas em janeiro de 2013. Dessa forma, utilizando as cores que simbolizam todo esse movimento de união e

112 fraternidade africana, somadas à vestimenta branca, que indica a soma de todas as cores, a paz e a pureza (nas religiões de matriz africana), a ECAR assume seu posicionamento político e cultural em busca de fortalecer a cultura afro-brasileira, abordando-a em seus diversos aspectos e manifestações. Para isso, utiliza diferentes expressões ligadas ao universo negro (samba-de-roda, candomblé, batuque, maculelê) que permeiam e constituem os fundamentos da capoeira angola, na cosmologia dos saberes afro-brasileiros que foram e são sócio e historicamente construídos pela relação entre diversas culturas. A pessoa que pratica capoeira, que faz capoeira, ela adquire um conhecimento popular. (…) Angola é um estilo, que é de origem africana, desenvolvida no Brasil. Ela é uma arte bem antiga, na qual ela aglutina muitas manifestações. Se o capoeirista ficar à fundo estudando a capoeira angola, ele percebe que a capoeira angola, dentro dela em si, tem muita manifestação. O aluno aprende um todo, não só a parte rítmica do instrumento, das cantigas, da história, mas outras manifestações que estão em conjunto com a capoeira. Então, é fantástica a capoeira angola. (Contra-mestre Topete. Entrevista, 2013)

Essa relação entre diferentes culturas tem suas origens no período escravista, em que os negros escravizados foram retirados de diferentes grupos étnicos de várias regiões da África e transplantados para as Américas. Contudo, tal como aponta Leda Maria Martins, nossos ancestrais não viajaram sós. Eles trouxeram consigo suas divindades, seus modos de visão de mundo, sua alteridade linguística, artística, técnica, religiosa, cultural, suas diferentes formas de simbolização do real e de organização social. Assim, a cultura negra, é uma cultura de encruzilhada52 de povos, de saberes, de línguas, de culturas e modos de constituição e impressão de saberes (Martins, 2002). Nas palavras da autora, “as culturas negras que matizaram os territórios americanos, em sua formulação e modus constitutivos, evidenciaram o cruzamento das tradições e memórias orais africanas com todos os outros códigos e sistemas simbólicos” (1997, p.26), com os quais se confrontaram. A partir dessa reflexão, a autora critica a noção existente no Brasil que é puramente de sincretismo absoluto e que torna invisível os diversos modos de transcriação dos saberes africanos nas Américas. Critica, também, a tentativa do pensamento colonizador católico de arruinar todos os cantos de práticas rituais dos povos negros (terreiros de candomblé, casas de

52 Conceito trabalhado como vetor teórico por Martins pela primeira vez no livro “A cena em sombras” (1995) - sobre o teatro negro no Brasil e nos Estados Unidos - e retomado nas suas outras obras sobre memória, como em “Afrografias da memória” (1997) e “Performances do tempo espiralar” (2002). Trata-se do cruzamento de diversas culturas e sistemas simbólicos transnacionais, multiétnicos e multilinguísticos “nos quais se confrontam e se entrecruzam, nem sempre amistosamente, práticas performáticas, concepções e cosmovisões, princípios filosóficos e metafísicos, saberes diversos, enfim” (2002, p. 73)

113 samba), lugares de inscrição de suas memórias, na tentativa de apagar os saberes inscritos no corpo dos negros através da oralidade, das danças, da música e da religiosidade. A capoeira surgiu nesse complexo de encruzilhadas e contatos entre os diversos saberes africanos confrontados e entrecruzados com os valores e saberes dos colonizadores no período escravista. Então, como observaremos no desenvolver desse capítulo, os saberes desenvolvidos na ECAR abordam diversas manifestações, valores e habilidades que estão sendo organizadas, produzidas e divulgadas pela interação e convivência entre todos os participantes dessa Escola, que trazem suas vivências e experiências para serem compartilhadas no coletivo.

3.2. “Escola porque é mais científico, é mais profundo”

Escola porque eu imaginava que academia é muito voltado a malhação, a fazer os exercícios, que seriam os alongamentos e aquecimentos, e ir embora pra casa. E eu sempre gostei de escola porque eu vejo que a capoeira angola, eu falo para os meus alunos falarem que estudam capoeira angola, não simplesmente que treinam, porque é mais científico, é mais profundo isso. O treinar é só a parte física, as coordenações motoras. E você dizer que estuda, você vai saber desses aspectos que existem na capoeira angola: o ritmo, a musicalidade... Então, por isso “Escola” (Contra-mestre Topete. Entrevista, 2013)

Na ECAR, a capoeira angola é estudada para além do seu caráter esportivo e de entretenimento, com seu estudo aprofundado em conjunto com sua história e seus fundamentos africanos, reafirmando a proposta de Mestre Pastinha e o caráter político que a/o capoeira exerceu e exerce na sociedade. Cabe ressaltar que essa postura de militância política não é específica da ECAR. Ela é encontrada hoje na maioria dos grupos de capoeira angola que, além dos estudos e das pesquisas sobre as tradições africanas, a história da escravidão e a condição atual dos negros e dos excluídos da sociedade, realizam eventos, debates e discussões, com um discurso politizado, sobre os temas da discriminação, do preconceito racial, da marginalidade, da violência e da cultura como forma de intervenção na realidade política e social brasileira (Abib, 2005). Nessa direção, Seu Nico explica que, não foi à toa que surgiu a ECAR. Ela surgiu nesse sentido, de abrir um leque na cultura no Estado de São Paulo e em Campinas especificamente e região. Pra quem tem interesse em conhecer a capoeira angola, venha conhecer a capoeira angola que a gente não trabalha só isso. Trabalha várias situações e várias direções da nossa cultura em geral, o que é muito gostoso, é muito bom. (Professor Nico, entrevista, 2013)

Ao abrir esse “leque” e compreendendo os potenciais educativos da capoeira angola,

114 Contra-mestre Topete escolhe a denominação de escola, ao invés de “grupo”, “academia”, “associação” ou outra qualquer que poderia ser utilizada para indicar essa instituição. Assim, uma Escola faz com que seus integrantes assumam o caráter de educandos, assim como de educadores, como CM Topete já nos sinalizou no final do nosso segundo capítulo, ao afirmar que “é um papel assim, invertido”. Eu penso que quando o Mestre Topete dá esse nome, Escola de Capoeira Angola Resistência, a gente tem uma pérola, a gente tem uma ousadia muito bacana da cultura popular. Pensando a coisa de um ponto de vista macro, a gente tem uma pérola de ousadia de uma pessoa da cultura popular porque durante todo o tempo da nossa história, a nossa cultura, pensando a cultura da capoeira angola, ela sempre foi colocada à margem do que se convencionou chamar de escola. (Professor Leonardo. Entrevista, 2013)

Para melhor compreender esta metáfora, ilustra-se que uma pérola é uma joia rara e cobiçada, formada através de um mecanismo de defesa de uma ostra contra algum organismo que se aloja no seu interior e causa irritação em seu manto, entre suas conchas. Para se defender, a ostra secreta no invasor camadas de uma substância chamada madrepérola, ou nácar, que se cristaliza e isola o perigo. Mesmo depois de protegida do incômodo, a pérola não pára de crescer, pois a ostra continua secretando o nácar. Esse fenômeno, se natural, ocorre em apenas uma em cada 10.000 ostras53.

53 http://mundoestranho.abril.com.br/materia/como-a-ostra-produz-a-perola

115 Imagem 57: Pérolas formadas no interior de uma ostra.

Pensando a criação de uma escola de capoeira angola, metaforicamente, como uma pérola, significa que a capoeira angola é como uma intrusa que penetra e irrita o manto de estabilidade de um sistema que, para manter estável o seu desenvolvimento, utiliza mecanismos de defesa para isolar o problema, colocando-o à margem, sufocando-o e impedindo seu crescimento. Contudo, as próprias formas de repressão são utilizadas como ferramentas para a “intrusa” (a capoeira angola) engrandecer, se embelezar e se transformar em uma joia rara, valorizada, que cresceu junto com o sistema-ostra, subvertendo-o e tornando-se muito mais nobre, ousada e desejada do que a descartável ostra. Então é uma ousadia, que não é uma ousadia só do Mestre Topete. Uma ousadia do povo da gente, que vem afrontar toda uma coisa secular de empurrar o nosso saber, o nosso conhecimento sempre para debaixo do pano, sempre para ser um souvenir, uma coisa mais para enfeitar do que realmente ser reconhecido como arte, como cultura, como educação, como ciência. Eu acho muito banaca isso. eu acho que tem um poder aí, tem uma força quando o nosso povo assume isso, assume essa coisa de ser uma escola. (Professor Leonardo. Entrevista, 2013)

Essa busca ousada para que a capoeira angola seja reconhecida como arte, cultura, educação e ciência pela sociedade mais ampla coloca em xeque o discurso dominante que define a cultura popular como banal e insignificante, indigna de legitimação acadêmica ou alto prestígio social (Abib, 2005). Esse mesmo discurso que empurra esse conhecimento “para debaixo do pano”, transformando-o em souvenir de enfeite é, como vimos, o que alimenta a pérola, que não

116 será utilizada como enfeite, mas sim como ferramenta de luta cultural para repensar e inventar seus próprios mecanismos de sobrevivência, sua própria forma de resistência. É uma arte de muita resistência, mas ela sobreviveu a muitos e muitos obstáculos. Ela vem atravessando, ultrapassando esses obstáculos, vários obstáculos que teve no meio da capoeira angola. E a capoeira angola passou por tudo isso e ela vem conquistando o espaço, um espaço que é de mérito, merecido da capoeira angola. (Contra-mestre Topete. Entrevista, 2013)

Apontamos então, com Gusmão e Simson (1989), para uma resistência inteligente da capoeira angola, na medida em que sua capacidade de organização e de criação cultural própria possibilitou a superação do contexto adverso de uma sociedade discriminatória e criou uma nova forma de se expressar e de se colocar no mundo a partir do cotidiano, da cultura e das brechas que a religião, o lazer e a política apresentaram. Segundo as autoras: “simbiose, mediação, sincretismos cruzam o espaço disto que é ser negro fora da África. Na trama entre a vida simbólica, a vida econômica e a vida política o negro estabelece a sua luta. Das vidas vividas, das muitas vidas experimentadas e refletidas criam-se as resistências” (Ibid, 238). Assim, partir de códigos que ordenaram modos diferentes de ser e se pensar como negro e da experiência histórica compartilhada na capoeira, resultaram ações mobilizadoras para a luta e a conquista de seu espaço social “que é de mérito, merecido da capoeira angola”, como relatou Contra-mestre Topete, o mesmo que nomeou sua Escola de capoeira angola com a palavra “Resistência”. Resistência pra mim não é o nome da nossa Escola, mas pra mim a resistência, eu uso essa palavra como estímulo da minha vida. Às vezes um obstáculo, uma coisa que eu não consigo realizar, que está muito difícil pra mim, aí eu converso comigo mesmo e falo “poxa, resistência, Topete, resistência! Sua vida é de resistência!” E essa escola às vezes a turma pergunta o que é o fundamento da resistência. É a oposição na vida de cada um de nós, a oposição, o obstáculo, aquela pedra que tem tonelada e que a gente não consegue se mover, aí eu falo pra todos vocês: Resistência! Resiste! (Fala de Contra-mestre Topete durante reunião com seus alunos e alunas na ECAR, em 26 de janeiro de 2013)

Constatamos com essas palavras a relação sempre dialética que a capoeira tem entre a sua história e a vida do dia-a-dia dos capoeiristas. As situações de dificuldades, de opressão, de oposição e de obstáculos na história da capoeira re-existem e fazem parte de uma realidade concreta na vida do capoeirista na sociedade contemporânea. Ressaltando a importância dos ensinamentos que a capoeira angola pode propiciar para o aprendizado da vida, Contra-mestre Topete se empenha na necessidade de criar uma organização para esses estudos, com metodologias, formas e espaços de circulação desses saberes que dêem conta de construir processos pedagógicos que alimentem as expectativas de aprendizado dos integrantes da ECAR e

117 contribuam para seu desenvolvimento, na capoeira e como pessoa. O lance de você ter uma academia, um espaço, um cotidiano de treino, de encontro, de roda, é que é o espaço pra gente desenvolver, de a gente trocar, da gente suar, ir lá e ver que ela é legal, mas tem seu percalços. Todo dia de manhã está lá ou o Topete ou o Seu Nico abrindo o espaço, passando uma vassoura, já liga um som, já faz um treininho.(…) Então eles já estão dando o exemplo lá. E, pra mim, no caso, eles que são a capoeira mesmo. Estão ali e mostrando pra gente como que é. Como que é receber um a pessoa no seu espaço, ter essa humildade de chegar lá "mais um dia, graças a Deus", saber que tem que treinar, que tem que trabalhar, que tem que melhorar como pessoa. (Trenel Alex. Entrevista, 2013)

3.3. As aulas na ECAR As aulas realizadas no núcleo da ECAR em Campinas abordam os fundamentos da capoeira angola, sua história, musicalidade, princípios/valores e ritual. No período diurno, as aulas são: de segunda à quinta-feira, das das 11h30 às 13h30 e aos sábados das 10h às 12h. À noite, as aulas acontecem de segunda à quarta-feira, das 19h às 21h. As aulas diurnas de segunda e quarta-feira são ministradas pelo Professor Nico54 (59 anos): “eu faço esse trabalho de segunda e quarta com o pessoal já com uma certa idade, que me deu essa possibilidade de eu passar esse trabalho pra eles.” (Entrevista, 2013). Dentre as pessoas que participam dessas aulas estão: Mestre Jahça (55 anos), Carlos (56 anos) e Adilson (49 anos). Pra mim, não sou eu que dou aula. A gente faz um trabalho em conjunto. É todo mundo treinando, um passa o conhecimento para o outro.(...) O mais gostoso é a amizade, o âmbito de amizade. Quando os caras chegam a gente conversa, cumprimenta, e o respeito mútuo, porque a gente faz aquele trabalho, mas são pessoas que já passaram pela capoeira de uma certa forma. Um treinou 4 anos, outro treinou 5 anos, eu já estou na capoeira desde 81. Eu não vou passar conhecimento pra eles da capoeira. Vou passar movimentação da capoeira angola. (...) Então a gente vai entrelaçando esse conhecimento, batendo papo, conversando sobre a música, toca berimbau, faz a música, tudo isso engloba e enriquece a capoeira angola e enriquece o conhecimento de todo mundo. (Idem)

As demais aulas são ministradas pelo Contra-mestre Topete55. As aulas com ele são bem dinâmicas e diferentes umas das outras, resultado da experiência didática de Topete, adquirida pelos anos de ensino e pelas diversas aulas, ministradas por outro Mestres, de que ele já participou e até hoje participa, como comenta: “então eu acredito que as viagens e as pessoas que eu conheci, os mestres que eu conheci, as aulas que eu tive com outros mestres, isso multiplicou o meu conhecimento” (Contra-mestre Topete, Entrevista, 2013). Ressaltamos, então, a humildade presente na atitude de Contra-mestre Topete ao respeitar os conhecimentos de outras pessoas,

54 Professor Nico conquistou esse título na ECAR em novembro de 2012. 55 Quando Contra-mestre Topete não pode ministrar aula em algum dia, é substituído por algum Professor ou Trenel.

118 considerá-los importantes e querer aprender com elas, independente de sua titulação ou experiência na capoeira, como ele mesmo diz: “conhecimento é sinônimo de humildade. Os maiores sábios são humildes” (Idem). Na ECAR temos outros dois exemplos de sábios humildes, que são Jahça e Da Silva. Os dois são Mestres na capoeira regional, com experiência de mais de vinte anos e, sem hesitar, abriram mão de sua titulação para serem alunos na Escola. Como a metodologia de ensino e os fundamentos da capoeira angola são diferentes da regional, eles entraram na ECAR com a graduação de alunos, assim como qualquer outro. Certamente a experiência que eles já possuem em suas trajetórias é considerada, mas eles são avaliados de acordo com os conhecimentos trabalhados na Escola, na qual Mestre Jahça e Mestre Da Silva estão, respectivamente, no terceiro e quinto estágio da ECAR. O mesmo acontece com Thiago Carvalho (Professor Tartaruga, na capoeira regional), que na ECAR está no terceiro estágio. Durante as aulas, todos/as participam do treino em conjunto, de acordo com cada dinâmica de aula. As aulas de segunda-feira à noite, por exemplo, são sempre iniciadas com aulas de berimbau, abordando suas histórias, formas de tocar, ritmos e diferentes toques utilizados nas rodas e na orquestra de berimbaus. Já as aulas noturnas de quarta-feira, sempre são iniciadas com a bateria utilizada na roda de capoeira angola. Nesse momento da aula, são feitas dinâmicas com os cantos utilizados na musicalidade da capoeira angola. Junto das aulas de movimentação, tem as aulas de instrumentação, de berimbau, dos toques, da musicalidade, que é um trabalho excelente que a Escola de Capoeira Angola Resistência determinou isso como se fosse uma matéria de uma escola mesmo, dividindo: toques de berimbau, separando musicalidade, separando trabalho de movimentação... (Professor Nico. Entrevista, 2013)

Durante a roda de capoeira angola, na ECAR, o toque predominante na bateria de berimbaus é o Toque de Angola. Porém, utilizamos seis convenções de toques, que normalmente são apresentados no início das rodas, como forma de “aquecer” e apresentar a bateria. Dentre eles, fazemos a passagem pelos seguintes toques: Angola, São bento Grande, Santa Maria, Apanha laranja no chão tico-tico e Jogo-de-dentro (baixo e alto). • Toque de Angola: é o toque base de uma roda de capoeira angola. Na ECAR, usamos duas variações: - uma para quando está sendo cantada a Ladainha, que é quando os jogadores estão ao “pé

119 do berimbau”, ouvindo o cantador. Nesse momento, não há jogo e só são tocados os berimbaus e pandeiros, ficando os demais instrumentos parados, para dar o enfoque no canto. O Gunga e o Viola fazem o toque de Angola , enquanto o Médio faz o toque São Bento Pequeno: - quando termina a ladainha e começa a louvação (também chamada de chula), o Viola passa a tocar São Bento Grande e a improvisar repiques, respondendo às perguntas do Gunga. Esse toque se mantém durante os corridos, que é quando os capoeiristas que estavam ao “pé do berimbau” iniciam o jogo; • Toque São Bento Grande: toque utilizado para o chamado “Jogo de Balão”, que é o único jogo na capoeira angola em que os jogadores se seguram, para lançar o companheiro. Esse jogo era utilizado por Mestre Pastinha em demonstrações para o público e, na ECAR, é executado pelos alunos mais experientes e habilidosos, que treinam entre eles os “balões”; • Toque Santa Maria: toque utilizado para o jogo com o uso de navalhas. Porém, não fazemos esse tipo de jogo, só executamos o toque no aquecimento da bateria; • Toque Apanha laranja no chão tico-tico: toque realizado para o jogo de mesmo nome, acompanhado ou não com o canto (“Apanha laranja no chão tico-tico (coro)/ Não é com a mão que se apanha, é com o bico/ Se meu amor for embora eu não fico/ Não é com o pé nem com a mão, é com o bico”). Assim, o objetivo dos jogadores é pegar a “laranja” (nota de dinheiro, lenço com algo dentro) com a boca, e não deixar o outro pegar. Esse toque é muito parecido com o Santa Maria, porém é mais solto e repicado; • Toque Jogo-de-dentro: esse toque também tem duas variantes. O que diferencia musicalmente os dois é a velocidade e o toque do berimbau médio (angola no baixo e São Bento Pequeno no alto). - Jogo-de-dentro amarrado: o jogo é mais embaixo, com movimentação rasteira e constante, deixando o jogo fluir sem travas, com o toque mais lento; - Jogo-de-dentro solto: o jogo é mais alto e veloz, com bastante movimentação de coluna, rodopios e perna alta. De acordo com o jogo, há gritos e pequenos saltos. Nas demais aulas da semana, diurnas, também acontecem esses estudos de berimbau, de acordo com o plano de aulas de quem a ministrará. Já as aulas noturnas de terça-feira são destinadas ao aprendizado e estudo de outras expressões culturais afro-brasileiras desenvolvidas na ECAR, como veremos a seguir.

120 3.4. Percussão, canto e dança afro Esse trabalho a gente faz juntamente com a capoeira. Tem os dias de fazer a capoeira, tem o dia da percussão (…). Então, tem os dias certos e a capoeira angola enriquece a cada dia que passa. De uma forma ou de outra, dá uma ampla vivência da capoeira em si, o que é muito bom para a cultura, para o conhecimento da cultura. Quem participa gosta muito. (Professor Nico. Entrevista, 2013)

Desde sua época na capoeira regional, Contra-mestre Topete já trabalhava com outras expressões culturais afro-brasileiras que estão presentes no universo mítico dos saberes da capoeira. Dentre elas, o Maculelê, a Puxada-de-rede e o Samba-de-roda são três expressões que são encontradas em muitos outros grupos de capoeira. São manifestações que retratam de forma muito viva e original costumes e danças de origens afro-brasileiras. Assim, as aulas de terça-feira, que acontecem na ECAR das 19h às 21h, passaram a ser destinadas aos estudos teóricos, da musicalidade, da dança e dos cantos dessas outras manifestações. Tanto o Maculelê como a Dança-do-fogo (mais difícil de ser encontrada, porém também estudada na ECAR) são expressões que remetem a rituais ou batalhas tribais afro-indígenas, com danças, cantos e ritmos percussivos. A puxada-de-rede conta histórias sobre o trabalho coletivo de pescadores que saem mar adentro em busca de seu sustento, enfrentando as dificuldades das marés. Já o samba-de-roda remete às festas das comunidades negras, muito presentes no recôncavo baiano, mas que se difundiu para outras regiões do Brasil, misturada com outras manifestações, como o jongo e o próprio candomblé.

Imagem 58: Maculelê sendo apresentado no Imagem 59: Maculelê apresentado embaixo do Colégio Doctus, em 2010. Acervo ECAR. Viaduto Cury, em novembro de 2011, no espaço deixado pela demolição da loja de Calçados ao lado da ECAR.

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Imagem 60: Puxada-de-rede sendo apresentada Imagem 61: Puxada-de-rede sendo apresentada em um evento de capoeira em Valinhos-SP, em no Quilombo Brotas, em Itatiba-SP. Novembro 2010. Acervo ECAR de 2010. Acervo ECAR.

Imagem 62: Dança-do-fogo no vão lateral da Imagem 63: Dança-do-fogo sendo apresentada ECAR, sob o Viaduto Cury, durante o evento de no SESC Campinas, em 2012. Acervo ECAR. novembro de 2011. Acervo ECAR.

Imagem 64: Samba-de-roda após roda de Imagem 65: Samba-de-roda na ECAR, em 2012, capoeira em frente à Catedral Metropolitana de com a presença de Mestre Limãozinho, nascido Campinas, em 2010. Acervo ECAR. no recôncavo baiano. Acervo ECAR.

A partir de 2010, as aulas de terça-feira passaram a ser divididas entre o Contra-mestre Topete e Alex. Trenel Alex, que recebeu esse título em novembro de 2010, tem grande

122 experiência com percussão afro-brasileira, vivenciada na década de 90 na Casa de Cultura Tainã (localizada no Bairro Padre Manoel da Nóbrega, região noroeste de Campinas) e com o Mestre Lumumba (Benedito Luiz Amauro, mestre da cultura popular negra). Então, na primeira hora das aulas, Trenel Alex passou a desenvolver um trabalho de percussão, que complementaria a segunda hora das aulas, na qual Contra-mestre Topete desenvolve a parte das danças afro-brasileiras, como o Maculelê, a Puxada-de-rede, a Dança-do-fogo e o Samba-de-roda. A ECAR passou, então, a reformular e melhorar a formação da expressão percussiva, que passaria a se chamar “Batucada da Resistência”, composta por três atabaques, um surdo (tambor mais grave), agogô e/ou cowbel (instrumentos metálicos similares a um ou mais sinos), xequerês (também chamado de afoxé ou agbê, feito com cabaça envolta numa rede de miçangas que, como Ganzás, produzem um som parecido com o chocalho), matraca (bambu grosso tocado com baquetas de madeira) e o apito para condução.

Imagem 66: Batucada da Resistência em apresentação no SESC Campinas, em maio de 2012. Acervo ECAR.

Os ritmos percussivos desenvolvidos nessa formação são: o Ijexá (ritmo de origem africana utilizado na dança do afoxé) e o ritmo composto pela soma dos toques Congo-de-ouro, Barravento e Avamunha, cada um deles executado por um dos três atabaques. Com o desenvolvimento desses aprendizados, o grupo passou a ficar cada vez mais entrosado e inserir

123 novos aprendizados nas aulas. Ao toque do Ijexá, o aluno Odair Félix nos trouxe, de sua vivência no candomblé, o canto de Oxalá, Orixá da criação do mundo e da espécie humana, para o qual são atribuídos as funções de criação e reprodução. Segundo Odair, esse canto “abre os caminhos”, traz a paz para o lugar ao agradar um orixá muito importante da mitologia, que tem como cor representativa o branco. Assim, ao ritmo do Ijexá, cantamos a cantiga em Iorubá56 “Irú babá mixorô”, que significa louvar “o grande pai do céu” Oxalá. Relacionando as apresentações com a simbologia da ECAR, Trenel Alex trouxe para estudo o Hino Africano “Nkosi Sikelel 'iAfrika” (“Deus Abençoe a África”), hino composto em 1897 por Enoch Sontonga, um professor de uma escola metodista de Joanesburgo, a partir da melodia composta por Joseph Parry em 1876. Essa música se tornou o hino da libertação pan-africana, ao ser muito difundido na luta contra o apartheid, regime de segregação racial adotado na África do Sul de 1948 a 1994, e também nas lutas pela independência de outros países africanos. Sua configuração foi utilizada em hinos nacionais adotados em cinco países da África, incluindo a Zâmbia, Tanzânia, Namíbia e Zimbabwe e, desde 1994, como uma parte do hino nacional da África do Sul. A parte mais utilizada e conhecida é a sua primeira estrofe, composta em Xhosa e Zulu, duas das onze línguas oficiais da África do Sul: Nkosi Sikelel 'iAfrika Maluphakanyisw 'uphondo lwayo, Yizwa imithandazo Yethu, Nkosi Sikelela, thina lusapho lwayo.

Sua tradução livre57 seria, aproximadamente; Deus abençoe a África Deixe seu chifre ser levantado (que suas glórias sejam exaltadas), Ouça também as nossas orações, Deus nos abençoe, nós somos seus filhos.

A ECAR tomou como base para a sua versão do hino uma gravação do cantor e compositor alagoano Djavan58 do Hino da Juventude Negra Sul-Africana “So Bashiya Ba Hlala

56 Língua falada pelos povos de mesmo nome, vindos da região da Nigéria. 57 Para essa tradução, utilizamos as presentes na Wikipedia em inglês e no artigo: JULES-ROSETTE, Bennetta; COPLAN, David B. “Nkosi Sikelel’ iAfrika”: From Independent Spirit to Political Mobilization. In: 45th Annual Meetings of the African Studies Association. Washington D.C., 5-8 December 2002. Disponível em: . Acessado no dia 19 de maio de 2013. 58 Gravação encontrada no disco “Meu Lado”, de 1986.

124 Ekhaya”, que se inicia com o “Nkosi Sikelel' iAfrika” e segue com: So bashiya ba hlala ekhaya Saphuma sangena kwamanye amanzwe Lathokumgazi khona ubaba no mama Hlale inkululeko

Se si thi hlala ekhaya Se si thi ngena kwamanye amanzwe Lathokumgazi khona ubaba no mama Hlale inkululeko

So bashiya ba thobeni Saphuma sangena kwamanye amanzwe Lathokumgazi khona ubaba no mama Hlale inkululeko

A tradução livre dessa letra seria como: Vamos deixar nossos pais em casa Estamos indo para países estrangeiros Para lugares onde nossos pais e mães conhecem

Nós dizemos adeus, adeus, adeus casa Estamos indo para países estrangeiros Para lugares onde nossos pais e mães conhecem Buscando liberdade

Vamos deixar nossos irmãos Estamos indo para países estrangeiros Para lugares onde nossos pais e mães conhecem Buscando liberdade59

Demorou algumas semanas para que a pronúncia das palavras fossem aprendidas pelos integrantes da ECAR. Juliana Leite, aluna da Escola com experiência no canto em coral, auxiliou nesse trabalho de pronúncia e divisão dos versos cantados. Com o tempo, já familiarizados com as músicas, percebeu-se que o canto de “Nkosi Sikelel' iAfrika” tinha um ritmo mais lento, de louvor, poderia ser adaptado no ritmo do Ijexá. Já o canto de “So Bashiya Ba Hlala Ekhaya”, mais rápido e animado, poderia ser cantado ao ritmo da convenção (Barravento, Congo-de-ouro e Avamunha). E assim ficou formatada a versão da ECAR do Hino da Unidade Africana que, somado ao Hino da Juventude Sul-africana, bem representariam a Escola com os seus valores e a sua simbologia voltados ao pan-africanismo.

59 Baseada na tradução em inglês de: GILBERT, Shirli. Singing Agains Apartheid? ANC Cultural Groups and the International Anti-Apartheid Struggle. In: Journal os Southern African Studies. Vol. 33, Nº 2, June 2007: Taylor & Francis, Ltd. Disponível em http://www.jstor.org/stable/25065204 Acessado no dia 22 de maio de 2013.

125 Foi criado um repertório para as apresentações, que começa com o ruflar dos tambores, passando ao ritmo de Ijexá com o canto para Oxalá; ainda no ritmo de Ijexá, o canto de “Nkosi Sikelel 'iAfrika” e, agitando o ritmo com os ritmos do barravento, o canto de “So Bashiya Ba Hlala Ekhaya”. No final, toca-se a convenção dos ritmos em três velocidades, conduzidos por um integrante, que informa os ritmos pelas chamadas no apito e as batidas da matraca ou do agogô. Integrando o roteiro, temos também o Maculelê, a Puxada-de-rede, a Dança-do-fogo, o Samba-de-roda e a Roda de capoeira angola. Nas festas informais, outros ritmos musicais são tocados e experimentados, tais como o Reggae e o Samba-reggae (ritmo difundido pelo Olodum), com os quais cantamos músicas antigas que marcaram épocas da música negra no Brasil.

3.5. Os núcleos da ECAR Além do núcleo central da ECAR, localizado no centro de Campinas, a Escola possui outros cinco núcleos: • Núcleo da ECAR em Hortolândia-SP: Professor Leonardo60 desenvolve um trabalho na Associação de Moradores Residencial São Sebastião às terças e quintas das 19h às 21h. Também coordena a Orquestra de Berimbaus Navio Negreiro, projeto iniciado no ano de 2007, enquanto desenvolvia um trabalho como Educador Social junto a meninos e meninas em situação de rua, com os quais realizava aulas de capoeira angola embaixo de viadutos, praças e calçadas.

60 Professor Leonardo conquistou esse título na ECAR em novembro de 2009.

126 Imagem 67: Roda de encerramento das atividades do ano de 2012 no núcleo da ECAR em Hortolândia. Acervo ECAR.

• Núcleo da ECAR na Unicamp de Campinas-SP: em setembro de 2011, Trenel Alex61, começou a ministrar aulas de capoeira angola em uma sala de aula (ED-02) na Faculdade de Educação da Unicamp, de segunda e quarta-feira, das 12h às 13h30, como um projeto de extensão das atividades desenvolvidas na ECAR central. A partir de meados de 2012, Trenel Alex precisou viajar e Contra-mestre Topete assumiu o trabalho desde então.

61 Trenel Alex conquistou esse título na ECAR em novembro de 2010.

127 Imagem 68: Roda de encerramento das atividades do ano de 2011 na Unicamp. Essa roda também foi uma homenagem a Mestre João Pequeno, que havia falecido há poucos dias (nota-se no fundo, à esquerda, sua foto e uma vela acesa). Acervo ECAR.

• Núcleo da ECAR em Três Lagoas-MS: Carlos César Pereira Leite, o Professor Anastácio62, já era Professor de capoeira regional quando decidiu mudar, em meados da década de 2000, para a capoeira angola (no CECA). Desde sempre muito próximo de Contra-mestre Topete, integrou a ECAR desde a sua formação e hoje, morando no município de Três Lagoas-MS, coordena o núcleo nem um espaço montado junto à sua residência, na Rua das Cigarras, 2763, de segunda, quarta e quinta das 19h às 20h30 e de sábado das 9h30 às 11h.

62 Professor Anastácio conquistou esse título na ECAR em novembro de 2012.

128 Imagem 69: Núcleo da ECAR em Três Lagoas-MS, durante a visita do Contra-mestre Topete. Foto cedida por Professor Anastácio. 2013.

• Núcleo da ECAR em Pirassununga-SP: Da Silva63, como já mencionado, é Mestre de capoeira regional e desde 1987 ministra aulas em vários bairros do município de Pirassununga. Passou a integrar a ECAR em 2008 e, no início do ano de 2011, inaugurou o Núcleo da ECAR na cidade. As aulas são realizadas em três locais: no Centro Comunitário da Vila Esperança (segunda-feira das 18h às 21h); no Centro Comunitário do Jardim São Valentim (terça e quarta-feira das 18h às 21h); e no Centro de Referência da Assistência Social Vila São Pedro (quinta-feira das 18h às 21h, sexta-feira das 15h às 17h, sábados e domingos das 14h às 17h).

63 Da Silva conquistou o 5º estágio (também chamado de “Aluno Responsável”) na ECAR em novembro de 2012.

129 Imagem 70: Matéria em jornal de Pirassununga anunciando o início da ECAR na cidade, em janeiro de 2011. Acervo ECAR.

• Núcleo da ECAR na Moradia da Unicamp: Nesse ano de 2013, Trenel Fernando passou a ministrar aulas na Moradia Estudantil da Unicamp, de onde é morador. As aulas acontecem no espaço CV-03, de terça e quinta das 19h30 às 21h30 e de sábado das 16h30 às 18h30.

130 Imagem 71: Aula realizada na moradia. Nesse dia, o núcleo recebeu a visita do Contra-mestre Topete. Acervo ECAR, 2013.

3.6. O Núcleo de Estudos e o Cinema Popular E a gente faz o trabalho aqui voltado pra capoeira angola e, dentro desse trabalho da capoeira angola, com a expansão que a gente percebeu na cultura, surgiu também o espaço do projeto que a gente trabalho com o Núcleo de estudos e o Cinema Popular, que também é uma coisa, paralela, mas muito interessante para a capoeira angola, para o conhecimento da cultura. Abrange toda a ancestralidade, toda a história das comemorações que tem no Brasil. (Professor Nico. Entrevista, 2013)

Além dos treinos cotidianos, outras modalidades de estudo e divulgação cultural que a Escola Resistência desenvolve são o “Núcleo de Estudos” e o “Cinema Popular”, realizados bimestralmente aos sábados pela tarde. Nesses encontros são discutidos temas e filmes relacionados à história do Brasil, ao universo da capoeira e de outras expressões afro-brasileiras. Essas atividades são gratuitas e abertas para todas as pessoas interessadas, integrantes ou não da ECAR. Em coerência com a organização da educação não-formal, em que o estudo representa a ampliação da própria pratica e vai ao encontro das necessidades dos educandos, no início do ano, durante a reunião de planejamento das atividades anuais, Contra-mestre Topete propõe quatro temas para serem estudados ao longo do ano, partindo das sugestões do grupo. Observa-se, então, que os processos de educação e transmissão de saberes presentes na ECAR são realizados a partir de uma relação dialógica entre os alunos no cotidiano da Escola,

131 orientados pelo Contra-mestre Topete. Em relação a este engajamento intencional da educação e da comunicação, Paulo Freire fundamenta a possibilidade de conhecer nessas inter-relações entre todos os participantes do processo: O sujeito pensante não pode pensar sozinho; não pode pensar sem a co-participação de outros sujeitos no ato de pensar sôbre o objeto. Não há um 'penso', mas um 'pensamos'. É o 'pensamos' que estabelece o 'penso' e não o contrário. Esta co-participação dos sujeitos no ato de pensar se dá na comunicação (FREIRE, 1975, p. 66).

Os alunos são divididos em quatro grupos e sorteia-se o tema a ser abordado por cada um dos grupos. São sorteadas, também, as datas de realização dos encontros, que acontecem de abril a novembro. Os temas são estudados bimestralmente, sendo um mês destinado à discussão do tema no Núcleo de Estudos e, no mês seguinte, o mesmo tema é abordado no Cinema Popular. Em 2010 os encontros abordaram a temática “Africanidade”, discutindo desde a captura dos escravos e a sua resistência, passando pela formalização e a permanência da capoeira como expressão da cultura negra, até a questão da capoeira como contribuição para a construção da consciência negra.

132 Imagem 72: Cartaz de divulgação do Núcleo de Estudos no ano de 2010. Acervo ECAR.

Em 2011, a capoeira foi o eixo condutor dos encontros, cujo objetivo foi estudá-la nos principais Estados onde ela se desenvolveu (Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo).

133 Imagem 73: Cinema Popular em Novembro de 2011. Já no ano de 2012, os estudos abordaram as histórias do Brasil e os personagens das revoltas e guerras que marcaram e influenciaram nossa cultura, como: Revolta dos Malês, Guerra do Paraguai, Guerra de Canudos e a história de Lampião. Esses temas até hoje são muito cantados nas músicas de capoeira.

Imagem 74: Núcleo de estudos de março de 2012. Acervo ECAR.

Nesse ano de 2013, os temas propostos são expressões culturais do universo

134 afro-brasileiro: a capoeira, o samba-de-roda, o frevo e o candomblé.

Imagem 75: Cinema Popular de maio de 2013. Acervo ECAR.

3.7. Novas mídias de divulgação e seus usos O registro das atividades com fotografia e vídeo é, como foi dito, reconhecido como importante para a constituição de um arquivo histórico imagético da Escola, assim como para a sua divulgação. Passamos, então a destinar, no site e nas redes sociais da ECAR, espaços para armazenar esses registros. Porém, ao pensar nesse espaço como sendo virtual, viriam algumas questões, fundamentais para pensarmos sobre a apropriação do conhecimento na atualidade: quem é proprietário desse espaço? Qual o tamanho do espaço disponível? Que segurança é oferecida para depositarmos nele nossa memória? Segundo Cristiane Dias, no espaço virtual, digital, numérico, a memória enquanto espaço (de armazenamento) assume as consequências da fragilidade desses instrumentos e, estando no espaço, não tem mais o sentido da memória como tempo (esquecimento), da memória histórica. “A velocidade que rege o mundo contemporâneo faz com que não mais marquemos o tempo em horas, minutos e segundos, nem o espaço em Km/s, mas ambos são definidos e experimentados em MB/s, KB/s, GB/s, TB/s” (2011, p. 5). Essa mudança técnica também é uma mudança discursiva, pois muda a relação do sujeito com o tempo, o espaço, a cultura, o corpo. Diante disto, optamos por hospedar nossos arquivos no Picasa, um serviço de

135 armazenamento de imagens da Google. Quando hospedamos, assumimos mesmo esse papel de hóspedes, em que utilizamos um espaço proprietário mas, quando não mais formos interessantes para o seu dono, perdemos esse espaço. Tentando centralizar os arquivos em uma mesma conta (como é chamada a nossa inscrição nesses espaços), hospedamos nossos vídeos também em um espaço do Google, o Youtube, por ele oferecer melhores opções de compartilhamento e maior facilidade de acesso. Dessa forma, acabamos tendo que enfrentar um problema no que se refere ao armazenamento da memoria cultural, o qual não conseguimos solucionar até o presente momento, ou seja: hospedamos nossos arquivos, nossa memória, no espaço da maior empresa do mundo, a Google, que detém a maior parte das informações de todos os seus consumidores, gerando assim grande poder político sobre tudo e todos que utilizam seus serviços ou espaços. E então novas questões foram apresentadas: Que outros riscos isso implica? Quais alternativas teríamos? Nossa intenção aqui não é uma análise profunda do que isso pode significar, nem responder à todas as perguntas, mas apontar alguns problemas, contradições e questionamentos do quanto somos reféns de espaços proprietários para vivenciarmos e utilizarmos o espaço virtual. O exemplo a seguir mostrar essa ideia de sermos reféns desses espaços proprietários: Certo dia de 2011, todas as fotografias e vídeos da ECAR hospedadas nesses espaços sumiram. Ao tentar entrar em nossa conta, foi exibida a informação que ela tinha sido bloqueada por problemas nas informações do cadastro. O cadastro de um usuário desses serviços é feita através de informações do usuário físico, humano, que inscreve suas informações e concorda com os termos do contrato. Ao abrir a conta da ECAR, foram fornecidos dados pessoais (data de nascimento, RG) que foram compreendidos pelo sistema hospedeiro como dados não precisos. Para resolver o problema, uma integrante precisou enviar a cópia de seus documentos, se comprometendo a assumir quaisquer problemas. Com esse episódio, além de constatarmos a necessidade de ter uma pessoa que assuma todas as consequências por um grupo, até que ele seja registrado oficialmente, percebemos a fragilidade desses instrumentos, tal como apontada por Dias (2011) e acima descrita. Essa fragilidade não se restringe somente ao virtual, mas ao digital em geral. A materialidade física reduzida aos espaços digitais de “discos rígidos”, CDs, DVDs e pendrives,

136 por exemplo, também possuem problemas semelhantes aos espaços virtuais das “nuvens”, como são chamados esses espaços que têm como interface o canal de comunicação pela internet. Como o espaço hospedado nas contas de serviços virtuais é limitado, muito dos arquivos registrados ficam nesses outros espaços digitais. Esses outros espaços, por sua vez, também oferecem riscos e fragilidades. Na ECAR, por exemplo, temos um computador, onde tentamos armazenar todos os registros. Porém, seu disco rígido (o espaço para armazenamento) também é limitado. Além disso, seu aspecto de materialidade física é vulnerável a outros problemas, como, por exemplo, a possibilidade de quebrar, de queimar, de ser roubado, ou qualquer outra possibilidade que o faça perder sua utilidade. O mesmo ocorre para qualquer outra possibilidade material de armazenamento, como livros e fotografias impressas, objetos, álbuns e cartazes. E novamente refletimos: Como termos controle sobre esses riscos? Vamos a mais um caso. Como um dos responsáveis pela organização desses materiais, guardo comigo muitos deles, em meu computador. Como prevenção, tenho um HD64 externo onde faço cópia de segurança de todos os meus arquivos para caso algo aconteça com meu computador. Em outubro de 2011, houve um assalto em minha casa. Os assaltantes levaram, entre outras coisas que estavam na casa, meu computador, que estava no meu quarto. O HD externo estava em uma gaveta e também foi levado. Perdi meus arquivos e a minha cópia de segurança de uma só vez: arquivos pessoais, familiares, de amigos, de trabalho e... da ECAR. Percebemos, então, que é muito difícil ter controle sobre os riscos imanentes dessas materialidades. Então, mudamos a questão para: sem o controle sobre esses espaços, como garantir a segurança dos dados neles contidos? Nesse episódio, percebi que o que eu consegui recuperar foram os arquivos que eu tinha salvado na internet (na conta de e-mail ou outros serviços na “nuvem”, como é chamado o espaço virtual de armazenamento na rede de internet) e também os arquivos que, por algum motivo, outras pessoas tinham copiados. A partir dessa constatação, percebemos que uma forma de garantir a segurança dos arquivos é o compartilhamento dos dados. Quanto mais pessoas tiverem cópias dos arquivos, mais chances temos de recuperá-los. O compartilhamento de arquivos também traz o aspecto positivo da divulgação dos saberes e dos dados produzidos, que é uma das

64 Abreviação para Hard disc, disco rígido em inglês, utilizado para armazenamento digital.

137 intenções da utilização dessas tecnologias de informação e comunicação. E a questão que surge em torno disso é: quem pode ter acesso a essas informações? Elas devem circular livremente? Quem tem direito de usar essas imagens? Que usos podem ser feitas com elas? Nós registramos nossos eventos, mas as outras pessoas também podem registrá-los? Essas são questões muito presentes nos grupos de capoeira angola. Na Bahia, por exemplo, onde o apelo mercadológico do turismo com a cultura popular é muito forte, nos espaços de capoeira é proibido fotografar ou filmar. Durante um tempo na ECAR, observando que muitas pessoas visitavam a Escola, fotografavam, gravavam vídeos e depois iam embora, sem voltar para falar para que usariam aquelas imagens, ou para compartilhá-las com o grupo, também começamos a adotar um posicionamento parecido com os grupos baianos. Nas rodas e eventos, como também registrávamos com fotos e vídeos, pedíamos para as pessoas que não o fizessem, convidando-as a visitar nossos canais de divulgação (site, redes sociais) para conferir os registros que fazíamos. Assim, teríamos o controle do que e para que compartilhar, além de divulgarmos nossos canais para quem quisesse acompanhar o trabalho. Porém, esse posicionamento exigia muita dedicação para registrar, selecionar e logo disponibilizar na internet. E, como foi dito, não é possível disponibilizar tudo, pela falta de espaço de armazenamento. Ficava difícil fazer uma seleção que agradasse a todos. Começamos, então, a liberar as pessoas que quisessem registrar, pedindo que elas compartilhassem conosco os registros (e assumindo o risco de não ter acesso ao material). Mantivemos também os nossos registros e os trabalhos de publicação. Percebemos, assim, que algumas pessoas que faziam esses registros acabavam disponibilizando o material na internet mais rápido do que nós da Escola. Repensando a questão indicamos, então, que a capoeira é um saber aberto para todos, que deve ser acessível e divulgada para e por quem quiser e gostar dessa expressão, que teve suas origens no meio público das ruas. Como o Contra-mestre Topete sempre gosta de lembrar, a ECAR é um espaço aberto para quem quiser conhecer e acreditar em seu trabalho. O saber que se produz lá também é aberto para o público, mas com o controle e a valorização necessária. Ou seja, a pessoa é livre para assistir as rodas e registrar seus momentos. Porém, se quiser usufruir do conhecimento lá produzido, ela deve também contribuir para essa produção. A capoeira angola está viva hoje e não vai desaparecer mais por causa da divulgação (internet, CDs, DVDs, fitas...). Se alguns mestres não tivessem pensado dessa maneira, talvez a capoeira angola não estava tão grande igual está hoje. Então eu acho que

138 divulgação é crescimento. (Contra-mestre Topete. Entrevista, 2013)

Para além dos registros imagéticos, sonoros e audiovisuais, a capoeira angola na ECAR é também divulgada e comunicada por meio de experiências e vivências que só são possíveis a partir da participação presencial das pessoas, como em seus rituais, treinos e apresentações. A capoeira nessa Escola, organizada dessa maneira, traz semelhanças com a academia. Como eu disse, há muito material escrito, codificado. E isso é parte do estudo. O nosso Mestre faz questão que a gente se aprofunde nesse material que já existe codificado. Complementarmente, a experiência pessoal das pessoas é que complementa, como eu falei, traz essa parte que não pode ser codificada, essa parte do conhecimento que é hermética na capoeira. (Rodrigo F. Entrevista, 2013) Apontamos então, a partir dessa fala do Rodrigo, para as outras formas e codificações desses saberes. Ao fazer esse comentário sobre o conhecimento “hermético” na capoeira, ele nos deu uma explicação muito interessante ao relacionar essa forma de conhecimento com a alquimia: [Vou] fazer esse paralelo com a alquimia, que é um assunto que também me atrai, que é de onde vem a palavra hermético, que é uma coisa fechada. A gente pensa em hermético como um tupperware, que não entra o ar. Hermético é de Hermes, que foi o primeiro cara que codificou, de alguma maneira, a alquimia, porque a alquimia também era um conhecimento transmitido assim, de mestre para discípulo. Mas o Hermes fez a primeira codificação em escrito da alquimia. Daí que vem o termo hoje "hermético". Mas ele codificou de uma maneira tão hermética que você só decodifica se você tiver outros conhecimentos. E dessa maneira eu vejo a capoeira. Tendo estudado, escrito alguma coisa a respeito, eu vejo que muito do que está escrito, você só vai conseguir ter a compreensão total - talvez é pretensão imaginar que possa haver a compreensão total - mas a compreensão só se dará se você tiver uma vivência prática, ter ouvido certas histórias, olhado na cara de certas pessoas, visto certas situações. Então, o que é codificado hoje da capoeira, ela toca meramente superficialmente no que a capoeira é. Daí que eu vejo a importância de um local onde a gente possa se dedicar a um estudo dela. (Idem) Partindo dessa ideia, podemos repensar o que dissemos anteriormente, ao falar que o conhecimento da capoeira é “aberto”. Rodrigo nos ajuda a refletir que os saberes da capoeira são tantos e tão complexos que, mesmo que codificados, fotografados, escritos, gravados ou filmados, não podem ser totalmente comunicados, passados. Para isso, eles dependem também da vivência do “aprendiz”, da oralidade dos mestres, da prática, do estudo em todos os seus aspectos e, acima de tudo, de sua vivência. Mesmo que alguém quisesse repassar todo o passado, não seria possível, porque o processo de aprendizagem e vivência da/na capoeira depende de muitos aspectos (temporais, pessoais, espaciais). Por se tratar de um conhecimento “sem fim”, uma “formação permanente, [que] não acaba” como frisado pelo Professor Leonardo (Entrevista,

139 2013), o saber divulgado é fragmentado e dissolvido. Essas reflexões nos levam a entender que a capoeira angola é formada por um conjunto de saberes que dificilmente são codificados e apreendidos na sua totalidade. Entretanto, ainda assim as pessoas querem treinar, estudar, viver e, sempre que possível, mostrar a capoeira. Então, nessa última parte da dissertação, voltaremos nossa questão para: por que divulgar, apresentar, mostrar a capoeira angola?

3.8. “Quando a gente ama e alguém busca um pouco do nosso saber, a gente quer divulgar.” (…) Quer divulgar a capoeira angola, que é uma arte maravilhosa, bonita, que contagia, que estimula a pessoa. Quer divulgar o nosso trabalho porque está acontecendo certo, dentro do fundamento e está bom porque, se fosse um trabalho ruim, nós ficaríamos com medo de mostrar para o nosso amigo, de chamar um amigo para visitar. (Contra-mestre Topete. Entrevista, 2013)

Essa foi uma das respostas do Contra-mestre Topete ao ser questionado do por quê divulgar a capoeira angola. Para ele e outros alunos, como veremos, quando fazemos algo de que gostamos, queremos que pessoas queridas também venham fazer parte desse algo, queremos mostrar e, mais que simplesmente mostrar, trocar esses saberes, multiplicá-lo. Re-passar o passado para um amigo ou para qualquer um que se interesse pelo que fazemos é algo que alimenta nosso fazer e nossa existência. Trenel Alex também nos respondeu à pergunta de maneira semelhante: Acho que a gente começa a querer divulgar para as pessoas porque a gente gosta, porque a gente acha que faz bem para a gente e que pode fazer bem para as outras pessoas também. E a divulgação eu acho que é isso, a gente vai lá, vê, fica com vontade de participar, de fazer, como o Topete fala: a divulgação da capoeira é o próprio capoeirista. (Entrevista, 2013) Como já afirmamos no primeiro capítulo, a divulgação de sua arte, o repassar o passado, é uma atividade intrínseca do capoeirista. Como CM Topete diz, relembrado por Alex, a divulgação da capoeira é o próprio capoeirista. O sujeito é o agente popular que cria e re-cria meios e modos para comunicar, difundir, divulga e expressa sua arte, sua cultura e seus fatos, como reflete Beltrão (2001)65. “É através desses veículos e agentes que as camadas populares organizam uma 65 A esse tipo de comunicação, feita pelos grupos marginalizados e relacionada a manifestações ditas folclóricas, Luiz Beltrão chamou de Folkcomunicação. Beltrão defendeu sua tese, considerada a primeira tese de doutorado em comunicação na Universidade de Brasília, em 1967, com o título “Folkcomunicação – Um estudo dos agentes e dos meios populares de informação de fatos e expressão de idéias”.

140 consciência comum, preservam experiências, encontram educação, recreio e estímulo” (p. 125). Assim, voltamos à nossa questão de por que divulgar, para mostrar as opiniões de outros integrantes da ECAR: Então, quando você se aperfeiçoa numa arte que traz alegria, traz sentimentos, não só alegria, pode ter sentimento triste, mas são sentimentos, são sentimento que você está exteriorizando que só fazem sentido, como comunicação, se você comunga com uma outra pessoa. Então a gente se manifesta pra que uma outra pessoa absorva essa emanação do nosso sentimento. Daí é que a batucada só faz sentido se alguém for ouvir. Então, se a gente estuda pra isso, a gente vai mostrar. E também talvez por uma necessidade primitiva de comungar, de transmitir o que você tem de bom pra uma outra pessoa. (Rodrigo F. Entrevista, 2013) Rodrigo nos chama atenção para o fato de uma expressão popular só fazer sentido se tiver alguém para ouvir e comungar, ou seja, participar, trocar. Para ele, é importante ter alguém para comungar e testemunhar nossos estudos e aprendizados, para fazer valer a nossa existência: “Agora, tem muitos objetivos. Um objetivo é atrair novos frequentadores e, um objetivo mais primitivo de todos, que é fazer valer a sua existência, eu acredito. Porque você - todo mundo, acho - quer uma testemunha para a sua existência. De alguma maneira, isso legitima a existência” (Idem). Além de fazer valer, de legitimar a existência, a capoeira faz isso de maneira agradável para quem participa e para quem simplesmente assiste. Algumas pessoas gostam da movimentação corporal, outras do som do berimbaus, outras das cantigas cantadas; ou das teatralidades de narrativas não-lineares de cada jogo; ou simplesmente da alegria de quem está na roda, da “energia” que emana daquele ritual, como também comentaram Odair e Alex: A gente vê as pessoas que acabam gostando, as amizades que a gente faz, a energia que atrai as pessoas. A gente chega ali e não dá vontade de ir embora. O contato com as pessoas, isso é muito importante. E a troca de informação, de conhecimento, acho que não tem coisa melhor. Que nem eu falo, a faculdade da vida é isso, é troca. Cada panela a sua tampa. Cada mão o seu conhecimento, o seu dendê. (Odair F. Entrevista, 2013) Eu acho que na capoeira em geral, mas ali no caso específico da Roda do Gueto, é também a divulgação da capoeira, a comunicação, é transmitir alegria na roda. É aquelas pessoas sofridas, que estão passando ali todo dia, chega numa sexta-feira, pára lá para tomar uma cerveja, fica olhando lá, dá uma risada... a pessoa que passa lá e dá uma gingadinha, que há mili anos atrás já foi capoeirista, aquele sorriso sem dente, desdentado... Eu acho que a capoeira vem pra isso: é um axé, é uma energia buscar a ancestralidade. E a comunicação, principalmente das pessoas que gostam e querem transmitir, e querem trazer as pessoas pra participar junto. (Trenel Alex M. Entrevista, 2013) Assim, chamamos atenção para as formas próprias de comunicar esses saberes na ECAR. Essa comunicação se dá por meio de expressões musicais e rituais das rodas e das batucadas;

141 além disso, a divulgação ocorre no próprio modo de ser dos/as capoeiristas que têm os valores de sua arte introjetadas na sua personalidade e atuação polícia e social. Ao demonstrar o sorriso no rosto, o olhar atento, o corpo gingado, o falar poético, a fé confiante, a mente tranquila e a alegria re-vivida a cada chamado de mudança (vindo do berimbau ou de qualquer fato vivido), o/a capoeirista repassa o passado oferecendo um novo presente para o futuro.

142 Considerações Finais

Este trabalho buscou cumprir o objetivo de identificar quais são os saberes produzidos na ECAR; compreender como eles são re-construídos e circulados entre os integrantes da Escola; assim como analisar as formas de divulgação interna e externa desses conhecimentos. Os saberes da capoeira angola se baseiam na memória de seus mestres em tempos passados. Essas memórias são repassadas pelos mestres atuais aos seus alunos, porém, contextualizada e historicamente colocada em seu tempo. Valores de luta pela liberdade, contra a opressão mental, física e econômica, são repassados no aprendizado da capoeira angola que, com seu caráter dinâmico, consegue se embrenhar em espaços tidos como dominantes e, ao mesmo tempo, se manter em espaços marginalizados e excluídos socialmente. Como ensina Contra-mestre Topete, “o capoeirista é um camaleão”, que muda de cor para se adequar e sobreviver no meio em que vive. O aprendizado da capoeira angola, entretanto, também revela as contradições presentes nesse universo, que também reproduz valores dominantes, de competição, o autoritarismo e o machismo. Da mesma forma como a capoeira resistiu até o tempo presente graças à luta dos próprios capoeiristas, depende deles mesmos para que esses valores não sejam como um re-passado imutável. As tradições inventadas66 historicamente devem ser re-inventadas buscando libertarem-se dos conceitos e amarras que as prendem em propósitos colonizantes. Esses mesmos propósitos colocam e apresentam a cultura popular, a cultura de luta do povo, como “empalhadas”, para serem observadas em museus ou representações folclóricas. No que tange à identificação dos saberes, observamos que os saberes na capoeira angola se constituem a partir do cotidiano de seus participantes que, de acordo com sua dedicação e identificação com a expressão, buscam introjetar esses saberes em suas vidas e delas trazerem suas contribuições para o aprendizado coletivo da manifestação na Escola. Assim, os saberes apreendidos e vivenciados dentro e fora da ECAR são compartilhados entre seus integrantes, criando vínculos de amizade e fortalecendo seus laços comunitários, bem como a própria cultura capoeira.

66 Expressão desenvolvida pelo historiador Eric Hobsbawn no livro “As invenções das tradições”, de 1984.

143 A ECAR mantém um caráter popular entre seus integrantes, unindo pessoas de diferentes realidades, situações sociais, idades e experiências de vida diferentes em um espaço de aprendizagem em que comungam alguns princípios e objetivos comuns que dependem de cada um deles para se concretizarem ou não. Essa diversidade de realidades, que se cruzam e complementam, resulta em ricas práticas educativas que reinventam a educação e a cultura popular pela capoeira e pela vida de seus praticantes. A educação para a capoeira angola acontece, então, dentro e fora da instituição. Dentro da ECAR entre suas formalidades e flexibilidades que a definem como uma escola de educação não-formal, mas ao mesmo tempo para fora dela, na vida do cotidiano de cada educando/a ou educador(a) e na convivência com as pessoas da ECAR fora do contexto das aulas, em viagens, festas, visitas ou quaisquer outros encontros realizados no âmbito da amizade estabelecida. Os saberes da capoeira angola são circulados, também, pela educação formal, pois esta influenciará (e será influenciada pelo) o aprendizado da capoeira, além de, como vimos, cada vez mais a capoeira ser inseridas em currículos ou planejamentos interdisciplinares das escolas formais. Somando-se todas essas relações educativas aos princípios transformadores (físicos, mentais e sociais) da capoeira angola, propusemos a consideração de uma educação trans-formal da capoeira angola. Já em relação à divulgação desses saberes observou-se que ela também influencia na educação dos aprendizes, que se aprimoram para conseguir divulgar seus saberes, através da música, da pintura, do audiovisual, da fotografia ou da escrita. Desde a elaboração de cartazes, de programação de eventos, roteiros para apresentação, ensaios e estudos que fundamentarão as expressões culturais a serem divulgadas, a ECAR leva seus integrantes a desenvolverem os múltiplos aspectos artísticos e técnicos para comunicar seus interesses aos mais diversos públicos e em diferentes lugares. Contudo, ao olharmos para estas conclusões resta-nos ainda algumas questões que me impulsionaram a desenvolver esta dissertação e que agora busco responder a partir dos elementos que ela identificou: qual é o lugar da capoeira na sociedade moderna pautada numa racionalidade que não reconhece os saberes da cultura popular como legítimos? Qual é a relação entre os saberes da capoeira e os saberes científicos? A capoeira precisa ser legitimada pela ciência e sua racionalidade hegemônica para ganhar o seu espaço?

144 Trata-se de questões amplas e que ainda estarão presentes na minha trajetória de pesquisador e capoeirista. E de fato, ainda não sei se consigo respondê-las, mas levantá-las já me parece um esforço importante para estas considerações finais. Observa-se que os saberes da capoeira ganham espaço de resistência nessa mesma racionalidade que não a valoriza e não a reconhece. Ou seja, de um lado, esta racionalidade da ideologia dominante busca desvalorizar os saberes da capoeira e coloca barreiras para o seu desenvolvimento pleno. Mas de outro lado, a capoeira pode fornecer mecanismos de libertação, de solidariedade e de outros valores que as pessoas buscam para sobreviver e resistir nessa mesma racionalidade que domina e que desvaloriza a capoeira. O trabalho nos mostra que na realidade não existe uma separação entre o saber da capoeira, o saber da cultura popular em oposição ao saber científico. A ideia não é propor uma dicotomia que separa e opõe esses saberes. Mas é sim mostrar que a capoeira não precisa dessa legitimação para resistir e ampliar. A dificuldade por não ser valorizada é e sempre foi grande, mas é nessa contradição que ela se legitima e constrói o seu espaço de atuação na sociedade, a partir de temporalidades e metodologias próprias que a fazem também olhar para os saberes científicos e os saberes da vida, em um compartilhar metodológico com outros saberes que cria, assim, uma racionalidade própria e singular.

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