UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA – UFPB CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES – CCHLA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS – PPGL

JOYCE KELLY BARROS HENRIQUE

O ponto de vista ficcional em O tigre de Bengala, de Elisa Lispector

JOÃO PESSOA - PB JULHO DE 2020

JOYCE KELLY BARROS HENRIQUE

O ponto de vista ficcional em O tigre de Bengala, de Elisa Lispector

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), como pré-requisito para a obtenção do título de Doutora em Letras.

Área de concentração: Literatura, teoria e crítica Linha de pesquisa: Tradição e modernidade Orientador: Prof. Dr. Arturo Gouveia de Araújo

JOÃO PESSOA - PB JULHO DE 2020

TERMO DE APROVAÇÃO

Tese intitulada “O PONTO DE VISTA FICCIONAL EM O TIGRE DE BENGALA, DE ELISA LISPECTOR”, área de concentração Literatura, teoria e crítica, linha de pesquisa Tradição e modernidade, defendida pela aluna Joyce Kelly Barros Henrique, para obtenção do título de Doutora em Letras, na Universidade Federal da Paraíba, e APROVADA no dia 31 de julho de 2020 pela seguinte banca:

Banca examinadora

Prof. Dr. Arturo Gouveia de Araújo (Orientador)

______Profa. Dra. Edilane Rodrigues Bento Moreira (Examinadora)

______Profa. Dra. Genilda Alves de Azerêdo (Examinadora)

______Profa. Dra. Liane Schneider (Examinadora)

______Prof. Dr. Willian Lima de Sousa (Examinador)

JOÃO PESSOA - PB JULHO DE 2020

Para Lílian, minha filha

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus

A Alexandre Henrique pelo afeto e por construir uma família comigo.

Aos meus pais pelo amor e educação; agradeço por transformarem a própria casa no ambiente de trabalho em que realizei esta pesquisa.

Aos meus irmãos e sobrinhos pela alegria que me proporcionam.

Aos meus sogros pela preocupação constante e pelas palavras de incentivo.

A Cláudia Brandão e Mariângela pela amizade e dicas metodológicas.

A Arturo Gouveia, orientador, pela leitura crítica deste trabalho, sempre de maneira responsável e com atenção aos detalhes; por simplificar um processo naturalmente árduo e cansativo.

A Antonio Morais de Carvalho por me apresentar a escritora Elisa Lispector e pela paciência em ser meu professor nas últimas décadas.

A Talita do Nascimento por estar comigo no início da pesquisa em projetos do IFPB, garimpando obras nos sebos brasileiros e elaborando a biografia de Elisa.

A Neves, autor do canal Las hojas muertas y otras hojas, que, mesmo a distância e sem qualquer retribuição, me enviou uma cópia de Ronda solitária, obra elisiana indisponível no formato impresso.

A Rosângela de Melo Rodrigues e Rinaldo de Fernandes, arguidores da banca de qualificação, que contribuíram de forma significativa para o melhoramento deste trabalho.

A Rosilene Marafon, secretária do PPGL, por resolver de forma competente e ágil qualquer demanda durante a minha permanência no programa.

A todos os meus professores, que transmitiram de boa vontade o conhecimento, inclusive, os da Escola São João Batista, lugar das minhas primeiras letras.

Ao Programa de Pós-graduação em Letras da UFPB por tornar este projeto de pesquisa possível.

Ao IFPB pela licença concedida, imprescindível para que eu me dedicasse às leituras, ao processo de análise e escrita da tese.

A todos que sabem perceber nestas rápidas palavras o meu carinho.

RESUMO

O objetivo geral desta pesquisa é analisar o ponto de vista ficcional nos contos de O tigre de Bengala (1985), de Elisa Lispector, observando a interação entre a interioridade da personagem feminina e a representação do espaço externo. Analisamos quatro contos da autora (“Sangue no sol”, “O furto”, “A agonia de viver” e “Por puro desespero”); contudo, tecemos relações com todos os textos do livro, na averiguação de pontos de aproximação e diferenciação. Na primeira parte deste trabalho, apresentamos a ficção de Elisa Lispector, no que diz respeito à perspectiva narrativa. Realizamos, também, uma revisão dos trabalhos críticos sobre a autora, publicados em jornais, livros e plataformas virtuais. O segundo capítulo é constituído por uma discussão teórica, baseada na linha norte-americana — Norman Friedman (2002), Percy Lubbock (1976), Henry James (2003), e Joseph Warren Beach (1932) —, que trata dos conceitos de ponto de vista, cena, sumário narrativo, distância, assim como da representação do pensamento em literatura. Para essa teoria, o enquadramento da ação na consciência da personagem amplia o caráter cênico do texto (reduzindo as interferências do narrador) e transforma o pensamento em elemento essencial para a interpretação da narrativa literária. No terceiro capítulo, a leitura crítica mostra que, nos contos de Elisa Lispector, a ação das personagens é mínima e o monólogo interior é o ponto de vista basilar; porém, ele coexiste com notações frequentes de narradores observadores e oniscientes. Essa combinação permite a imersão no pensamento da protagonista, sem abdicar de uma visão distanciada da cena, já que o espaço tanto desencadeia as reflexões como mantém com a personagem uma relação de afinidade, recusa, resignação, transformação e superação. Nessa contística, o monólogo interior é um recurso formal que embasa a autoavaliação das protagonistas e lhes proporciona uma revisão/ reformulação de suas perspectivas.

Palavras-chave: Elisa Lispector; contos; ponto de vista; monólogo.

RÉSUMÉ

L'objectif général de cette recherche est d'analyser le point de vue fictif dans les contes de O Tigre de Bengala (1985), d'Elisa Lispector, en observant l'interaction entre l'intériorité du personnage féminin et la représentation de l'espace extérieur. Nous avons analysé quatre histoires de l'auteur (“Sangue no sol’, “O furto”, “A agonia de viver” et “Por puro desespero”); cependant, nous tissons des relations avec tous les textes du livre, travers une enquête sur les points d'approximation et de différenciation. Dans la première partie de ce travail, nous présentons la fiction d'Elisa Lispector, en ce qui concerne la perspective narrative. Nous avons également réalisé une revue d'ouvrages critiques sur l'auteur, publiés dans des journaux, des livres et des plateformes virtuelles. Le deuxième chapitre consiste en une discussion théorique, basée sur la ligne nord-américaine - Norman Friedman (2002), Percy Lubbock (1976), Henry James (2003) et Joseph Warren Beach (1932) -, qui traite des concepts de point de vue, scène, résumé narratif, distance, ainsi que la représentation de la pensée en littérature. Pour cette théorie, encadrer l'action dans la conscience du personnage élargit le caractère scénique du texte (réduisant l'interférence du narrateur) et fait de la pensée un élément essentiel pour l'interprétation du récit littéraire. Dans le troisième chapitre, la lecture critique montre que, dans les contes d'Elisa Lispector, l'action des personnages est minimale et le monologue intérieur est le point de vue de base; cependant, il coexiste avec des notations fréquentes de narrateurs observateurs et omniscients. Cette combinaison permet une immersion dans la pensée du protagoniste, sans renoncer à une vision lointaine de la scène, puisque l'espace déclenche à la fois des réflexions et entretient une relation d'affinité, de refus, de résignation, de transformation et de dépassement avec le personnage. Dans cette collection de contes, le monologue intérieur est une ressource formelle qui soutient l'auto-évaluation des protagonistes et leur fournit une révision / reformulation de leurs perspectives.

Mots-clés: Elisa Lispector; contes; point de vue; monologue intérieur.

ABSTRACT

The general objective of this research is to analyze the fictional point of view in the short stories of O tigre de Bengala (1985), by Elisa Lispector, observing the interaction between the interiority of the female character and the representation of the external space. We analyzed four stories by the author (“Sangue no sol”, “O furto”, “A agonia de viver” and “Por puro desespero”); however, we weave relationships considering all the texts from the book, investigating points of approximation and differentiation. In the first part of this work, we present the production of Elisa Lispector, with regard to the narrative perspective. We also carried out a review of critical works about the author, published in newspapers, books and virtual platforms. The second chapter consists of a theoretical discussion, based on the North American line - Norman Friedman (2002), Percy Lubbock (1976), Henry James (2003), and Joseph Warren Beach (1932) -, which deals with the concepts of point of view, scene, narrative summary, distance, as well as the representation of thought in literature. For this theory, the framing of the action in the character's consciousness expands the scenic nature of the text (reducing the narrator's interferences) and turns the thought into an essential element for the interpretation of the literary narrative. In the third chapter, the critical reading shows that, in Elisa Lispector's stories, the characters' action is minimal and the inner monologue is the basic point of view; however, it coexists with frequent notations by observant and omniscient narrators. This combination allows immersion in the protagonist's thinking, without giving up a distant view of the scene, since space both triggers reflections and maintains a relationship of affinity, refusal, resignation, transformation and overcoming with the character. In this story, the inner monologue is a formal resource that supports the protagonists' self-assessment and provides them with a review/reformulation of their perspectives.

Key words: Elisa Lispector; short stories; point of view; inner monologue.

SUMÁRIO

1. ELISA LISPECTOR: LITERATURA E PERSISTÊNCIA...... 10 1.1 Breve contextualização da pesquisa...... 10 1.2 Proposição de trabalho...... 12 1.3 Elisa Lispector, obra romanesca e preferências literárias...... 14 1.4 A contística de Elisa, O tigre de Bengala e o corpus de estudo...... 39 1.5 Fortuna crítica...... 52 1.5.1 A recepção crítica entre as décadas de 40 e 80...... 52 1.5.2 Trabalhos de análise posteriores aos anos de 1990: biografia, memória e exílio...... 85

2. NARRATIVA E PONTO DE VISTA...... 97 2.1 A importância e a pluralidade de teorias sobre o narrador ficcional...... 97 2.2 Ampliação do método dramático na narrativa: o método de Henry James...... 106 2.3 A contribuição de Percy Lubbock: valorização da forma e ampliação dos sentidos através do ponto de vista...... 114 2.4 A contribuição de Joseph Beach e a história que conta a si mesma...... 123

2.5 Posição do narrador, onisciência seletiva e monólogo interior como mímese de uma realidade histórica...... 134 2.6 A introspecção e o ponto de vista feminino...... 144

3. O TIGRE E O PODER DO PENSAMENTO EM ELISA LISPECTOR...... 146 3.1 “Por puro desespero”: sofrimento do corpo e lucidez da mente...... 146 3.2 A culpa, a inveja e o monólogo interior em “O furto”...... 164 3.3 Esposa feliz, marido infeliz: o ponto de vista em “Sangue no sol”...... 179 3.4 Velhice, morte e sonho no monólogo de “A agonia de viver”...... 193

4. SÍNTESE FINAL...... 211 BIBLIOGRAFIA...... 213

10

1. ELISA LISPECTOR: LITERATURA E PERSISTÊNCIA

1.1 Breve contextualização da pesquisa

Durante a Graduação em Letras1, tivemos o privilégio de estudar S. Bernardo (1932), de Graciliano Ramos, obra que nos cativou quando ministrávamos aulas de literatura no Pré- vestibular Solidário (PVS), programa de extensão da UFCG. Além da biografia do escritor (cujo talento se desenvolveu num ambiente completamente atípico para as letras), a estética do romance sempre nos pareceu extraordinária. Na época, a análise efetuada observou as especificidades da perspectiva de Paulo Honório, o narrador, em relação a três personagens, todas secundárias: S. Ribeiro, D. Glória e Padilha. O trabalho monográfico “Três pessoas, uma visão: as personagens secundárias de S. Bernardo a partir do olhar reificado de Paulo Honório” (2007) evidenciou a maneira quase paternal com que o fazendeiro trata o guarda-livros S. Ribeiro e, por outro lado, a forma desrespeitosa com que refere à tia (mãe adotiva) de Madalena. Sobre Padilha, o narrador é cruel e manipulador e o inferioriza, comparando-o a insetos desprezíveis, de fácil extermínio. Cada uma dessas atitudes tem uma implicação na elaboração do discurso de Paulo Honório. O narrador é autoritário em relação à transferência do ponto de vista, mas a sua própria perspectiva altera-se à medida que os seus sentimentos se diferenciam no processo de narrar. No Mestrado2, estudamos a mesma obra de Graciliano Ramos, mas com foco na questão da leitura. Com base em teóricos ligados à Estética da recepção, analisamos a recepção de jovens do curso de História (UEPB) em Campina Grande. A dissertação “O leitor e a janela da torre” (2010) mostrou que o público-alvo possuía boas práticas leitoras no que diz respeito aos elementos estruturais do romance. As especificidades da construção do narrador (Paulo Honório é personagem, narrador e o escritor diegético) foram inferidas sem dificuldades. Ainda no âmbito do processo narrativo, notamos que, apesar de compreender os papéis do narrador na trama, os alunos não leram criticamente o ponto de vista. A perspectiva de Paulo Honório influenciou completamente o entendimento sobre a realidade criada pelo texto. Na última década, mudamos parcialmente o enfoco das nossas pesquisas. A escritora Elisa Lispector nos foi apresentada e imediatamente percebemos a relevância de um estudo maior sobre ela. O interesse surgiu do fato de poucos a conhecerem, mesmo ela sendo a irmã

1 Formação realizada entre os anos de 2003-2007, na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). 2 Curso de Pós-graduação realizado também na UFCG entre 2008-2010. 11

mais velha de Clarice Lispector, que dispensa apresentações tanto no Brasil quanto no exterior. Percebemos que eram escassos os trabalhos publicados sobre as obras literárias e que não havia trabalhos de doutorado sobre Elisa Lispector, sendo esta a primeira pesquisa extensa a ser realizada no Brasil sobre a autora. As primeiras leituras sobre Elisa Lispector foram de cunho biográfico e buscavam uma contextualização sobre a escritora e o porquê de seu desaparecimento na literatura e na crítica brasileira. Em 2013, no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba, realizamos o projeto “Literatura e universo virtual: resgatando a vida de Elisa Lispector através das ferramentas de pesquisa oferecidas pela internet”3, através do qual adquirimos todos os livros disponíveis da autora. Essa pesquisa nos permitiu conhecer informações variadas sobre Elisa enquanto figura de grande importância para a família Lispector, assim como a situação da sua obra no contexto editorial brasileiro. Esses dados se fazem presente no segundo capítulo desse trabalho. A leitura da ficção de Elisa Lispector nos fez perceber que o seu estilo é significativamente introspectivo, com frequente uso do monólogo interior. Em relação à fortuna crítica literária, os livros de contos são os que mais necessitam de atenção, dada a parca existência de avaliação. A crítica da obra é composta por resenhas jornalísticas, alguns artigos, ensaios e pesquisas acadêmicas. Esse material foi descoberto principalmente em plataformas virtuais que digitalizaram jornais e revistas publicados entre as décadas de 40 e 80. Esse material será analisado também no segundo capítulo da tese. Após retomar leituras sobre a perspectiva narrativa, consideramos que a teoria sobre o ponto de vista de origem norte-americana seria a mais viável para a categoria enfocada (monólogo interior), por considerar a dramatização do pensamento uma forma de condução da narrativa. Apresentaremos teorias e conceitos no terceiro capítulo deste trabalho. Apesar de sua característica teórico-crítica, esse capítulo contém vários textos ficcionais de Elisa como forma de relacionar teoria e texto literário. Realizamos um estudo extenso de toda a ficção de Elisa Lispector, que possibilitou o levantamento dos leitmotivs e a observação das similaridades entre cenas/personagens, das relações intertextuais, dos recursos estilísticos e linguísticos recorrentes, de modo que, em muitas partes deste trabalho, inclusive na análise, citamos trechos romanescos como matéria exemplificativa, embora nosso corpus seja formado por quatro contos da antologia O tigre de

3 Esse projeto contou com o apoio do Programa institucional de Bolsa de Iniciação Científica e Tecnológica do IFPB (PIBICT) e teve como orientanda a aluna Talita do Nascimento Arruda Santos. 12

bengala (1985), analisados no quarto capítulo. A seguir, apresentaremos nossa tese, a autora, sua obra e fortuna crítica.

1.2 Proposição de trabalho

Apresentamos, como proposta de trabalho, a leitura crítica de quatro contos de Elisa Lispector: “Por puro desespero”, “Sangue no sol”, “O furto” e “A agonia de viver”, presentes no livro O tigre de Bengala.4 A categoria a ser enfocada na análise é o ponto de vista ficcional, em especial a construção da cena nas narrativas e a interação entre a interioridade da personagem feminina e a representação do espaço externo. A fundamentação teórica deste trabalho contempla teóricos da narrativa, em especial Norman Friedman5, Percy Lubbock6, Edith Wharton7, e Joseph Warren Beach8. Além desses, outros nomes são igualmente importantes para a elaboração da leitura crítica, tais como o do escritor e ensaísta americano Henry James9 e do crítico literário Wayne C. Booth10, que discorre acerca da questão da perspectiva narrativa, embora com ressalvas em relação aos trabalhos dos teóricos acima citados. Trata-se, pois, de um estudo do conceito de ponto de vista ficcional proposto pela linha teórica norte-americana, evidenciando as relações entre os conceitos de centro de interesse, consciência, cena, sumário narrativo, distância, assim como a representação do pensamento em literatura através do monólogo interior e do solilóquio. Quanto à fortuna crítica, cabe-nos uma revisão dos trabalhos analíticos acerca da obra de Elisa, de seus romances e, mais especificamente, de sua contística – o que compreende, até o momento, poucos trabalhos. A contística de Elisa Lispector limita-se a três livros. Em Sangue no sol, de 1970, encontram-se dezoito contos11. Inventário, de 1977, é composto por treze contos12. E no último livro, O tigre de Bengala, de 1985, há vinte e dois contos, sendo dez inéditos e doze das duas

4 LISPECTOR, Elisa. O tigre de Bengala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985. 5 FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: desenvolvimento de um conceito crítico. Revista USP, São Paulo, n. 53. P. 166-182, março/maio 2002. 6 LUBBOCK, Percy. A técnica da ficção. Tradução de Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix: Ed. Da universidade de São Paulo, 1976. 7 WHARTON, Edith. The writing of fiction. Scribner Book Company: Nova York, 1997. 8 BEACH, Joseph Warren. The twentieth century novel: studies in technique. Nova York: Appleton-Century- Crofts, 1932. 9 JAMES, Henry. A arte do romance: antologia de prefácios. Tradução, organização e notas Marcelo Pen Parreira. São Paulo: Globo, 2003. 10 BOOTH, Wayne C. A retórica da ficção. Tradução de Maria Teresa H. Guerreiro. Portugal: Arcádia, 1980. 11 LISPECTOR, Elisa. Sangue no sol. Brasília: Editora de Brasília – EBRASA, 1970. 12 LISPECTOR, Elisa. Inventário. Rio de Janeiro: Rocco, 1977. 13

primeiras obras. Ao todo, a autora escreveu quarenta e dois contos, dos quais elencamos quatro como corpus para o presente estudo. O objetivo geral é analisar o processo de narração nos contos de O tigre de Bengala (1985), no que diz respeito ao ponto de vista ficcional e à elaboração da narrativa, a partir das impressões das personagens, e à produção de sentido desse recurso, mesmo em contos em que coexistam um ponto de vista interno e externo à diegese, com notações de narradores oniscientes e observadores. Essa combinação é importante na contística de Elisa porque harmoniza a imersão no pensamento da protagonista, sem, contudo, abdicar de uma visão mais distante dos elementos que compõem a cena narrativa, tendo em vista que o espaço não apenas desencadeia as reflexões, como mantém com a protagonista uma relação significativa de afinidade (“Sangue no sol”), de recusa e aceitação (“O furto”), de resignação (“A agonia de viver”) e de identificação e superação (“Por puro desespero”). Analisaremos esses contos individualmente, tecendo, todavia, relações com todos os textos de O tigre de Bengala, na observação de pontos de aproximação e diferenciação. Em relação à fundamentação teórica, amparamos as leituras críticas desta pesquisa em um método que considera pertinente, do ponto de vista formal e temático, o enquadramento da ação na consciência de uma ou de várias personagens. De acordo com Norman Friedman (2002), em O ponto de vista na ficção, a exposição dessa consciência amplia o caráter cênico do texto, o que reduz as interferências avaliativas e ideológicas do narrador ou do autor. Tendo a consciência como a perspectiva da qual deriva o ponto de vista, a narrativa transforma o pensamento em elemento essencial para a compreensão do texto. A valorização da consciência, a ampliação do caráter cênico (atualização temporal, relevância do cenário, concomitância entre ação e narração etc.) têm variados efeitos estéticos na contística de Elisa Lispector. Como tese, defendemos que, em O tigre de Bengala (1985), Elisa Lispector se vale de recursos formais referentes à construção do ponto de vista e da cena narrativa para representar dramaticamente os conflitos das protagonistas; além disso, tanto o monólogo interior quanto o solilóquio, típicos da onisciência seletiva e do modo dramático, não são prioritariamente indícios da impossibilidade de comunicação com outros indivíduos ou um recurso sintomático da solidão humana, como sinalizam os leitores críticos da autora. O monólogo interior em Elisa Lispector é um modo especial de reformulação interior que resulta em ruptura, enfrentamento, resistência ou aceitação da realidade exterior; em qualquer um dos casos, há uma ação/decisão elaborada de forma consciente pela personagem durante o processo em sua consciência. Sendo assim, as personagens são inseridas num processo intimista limite, angustiado, e dele 14

submergem com uma perspectiva de vida atualizada e, frequentemente, com acondicionamento otimista, aspecto pouco notado pelos leitores da autora.

1.3 Elisa Lispector, obra romanesca e preferências literárias

Em 1977, ano de sua morte, Clarice Lispector concedeu uma entrevista ao jornalista Júlio Lerner13. Questionada sobre o ofício de escrita na família, Clarice menciona a produção técnica de sua irmã do meio, Tania Kaufmann14, e adverte: “Eu tenho uma irmã, Elisa Lispector, que escreve romances”. Apesar da disponibilidade desse material televisionado em plataformas virtuais, é comum desconhecermos a existência de uma outra Lispector ficcionista. A verdade é que Elisa se lançou no universo das letras em 1945 (dois anos após o lançamento de Perto do coração selvagem) e teve uma carreira literária mais tímida em termos de aprovação crítica, porém, mais longa que a de Clarice. Elisa Lispector nasceu em julho de 1911 em Sawranh, uma cidade da Ucrânia (na época território russo). Foi a primogênita do comerciante Pinkhas e Mania Lispector, que juntos formavam uma família judia russa respeitável e tradicional. Nos primeiros anos de vida, Leah Pinkhasovna (primeiro nome de Elisa) teve uma infância comum. Entretanto, a partir de 1917, as novas configurações políticas na Rússia, pós-revolução comunista, intensificaram o antissemitismo na sua região e sua família perdeu todos os bens em frequentes pogroms15. Leah, suas irmãs mais novas (Tania e Haia) e seus pais iniciaram então uma peregrinação por cidades e aldeias vizinhas a Sawranh, na tentativa de fugir da violência instaurada, vagando com outros imigrantes pela terra natal à procura de emprego e comida. Com a ajuda de parentes maternos já estabelecidos na América, os Lispector conseguem migrar para o Brasil. Leah chegou ao país aos nove anos de idade e se estabeleceu com a família no Nordeste, passando boa parte da adolescência e da juventude em Maceió e Recife. Em terras brasileiras, teve seu nome cambiado para Elisa, cujo significado é Deus é juramento e

13 Entrevista transmitida pela TV Cultura, no programa Panorama, Edição Especial, no dia 01 de fevereiro. Clarice viria a falecer em 9.12.1977. 14 Até então Kaufmann lançara livros sobre organização do lar. São de sua autoria obras como A aventura de ser dona de casa, de 1975; Morada, moradia: guia prático do bem viver, de 1976. Em 2003, Tania Kaufmann publicou um livro de contos, intitulado O instante da descoberta: temas e variações, pela Editora Garamond. 15 Progom é uma palavra do iídiche. Ela se refere às pilhagens, agressões e assassinatos cometidos com o beneplácito das autoridades contra as minorias, especialmente os judeus, na Rússia czarista. Posteriormente, passou a designar movimentos populares de violência dirigido contra uma comunidade étnica ou religiosa. 15

abundância16. Dotada de um significativo senso de responsabilidade, cuidou das irmãs mais novas e da mãe, enferma desde as viagens migratórias, uma experiência exaustiva e dolorosa que viria a ser representada em sua obra. Ainda em Recife, Elisa Lispector formou-se na Escola Normal e exerceu a função de professora primária por alguns anos. Durante a estada na capital pernambucana, estudou no Conservatório de Música com especialidade em piano. Aos vinte e seis anos, transferiu-se para a capital do país, o Rio de Janeiro. Na década de 30, ingressou por concurso no funcionalismo público federal (Ministério do Trabalho), no qual alçou cargos e funções importantes, no Brasil e no exterior, ao secretariar delegações do governo em viagens. Representou o Brasil em uma reunião da Organização Internacional do Trabalho, no Peru, para estudar os problemas da mão de obra feminina na América Latina; secretariou também duas conferências internacionais do Trabalho, em Genebra, e dois congressos de Previdência Social, em Buenos Aires e em Madri, e uma Conferência dos Estados da América membros do OIT, em Petrópolis. Já na década de 40, complementou sua formação, estudando Sociologia na Escola Nacional de Filosofia e Crítica de Arte na Fundação Brasileira de Teatro. No Rio de Janeiro, Elisa começa a colaborar em revistas (Panorama, Fon-fon, etc.) e jornais e passa a se dedicar ao jornalismo e à literatura, mas não com exclusividade. Em meados da década de 40, estreou na literatura com o romance Além da fronteira (1945), que foi sucedido por No exílio (1948), seu livro mais conhecido e republicado. Nos anos 60, Elisa tem uma ascensão notável e torna- se uma escritora brasileira reconhecida, participando de noite de autógrafos em reuniões sociais beneficentes ou em eventos literários, tais como o IV Festival do Escritor (1963) e a Feira do Livro na Cinelândia17 (1965), a partir da boa recepção do livro O muro de Pedras, vencedor do Prêmio José Lins do Rego, em 1962, na categoria romance. Em 1969, Elisa Lispector aposentou-se pelo Ministério do Trabalho e pela Previdência Social. A pedido de Jarbas Passarinho, então Ministro da Educação, a escritora integrou comissões responsáveis pela leitura e seleção de obras para bibliotecas brasileiras registradas

16 A palavra Elisa significa também alegria, porém, em razão da tradição religiosa da família, acreditamos que a escolha está associada à palavra Elisabeth, variante em inglês de Elishebba, nome hebraico cujo significação é citada no corpo do texto (em alguns dicionários, também significa consagrada a Deus). Os nomes da família Lispector foram mudados buscando uma similitude com nomes comuns no Brasil, com exceção de Tania, que embora de origem russa, era um nome popular no Nordeste. O de Elisa, em especial, manteve relação com a língua hebraica; já o de Haia foi substituído por Clarice, de origem latina. (Ver origem dos três nomes em www.dicionariodenomespróprios.com.br) 17 Ver Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27.07.63; e Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 19.06.65, respectivamente. (Obs.: Podem-se acessar estes artigos através do acervo digital de vários jornais brasileiros através do site http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/.) 16

pelo INL (Instituto Nacional do Livro)18. Os livros de contos aparecem nesta época pós- aposentadoria, com Sangue no Sol, publicado em 1970, e Inventário, em 1977. Ainda em 77, Elisa Lispector sofreria a morte repentina de Clarice, cujo impacto ocasionou um hiato literário de seis anos. Em 1983, Elisa Lispector publica então Corpo a corpo, um romance que muitos consideram um tributo póstumo para Clarice. Por fim, em 1985, poucos anos antes de sua morte, Elisa organiza e lança O tigre de Bengala, sua última antologia de contos. Das três irmãs Lispector, Elisa sempre foi considerada a mais ligada à tradição religiosa da família. Judia praticante e sionista, foi secretária do Instituto Judaico de Pesquisa Histórica no Rio. Era grande conhecedora do hebraico e do iídiche (língua usada por seus pais no ambiente familiar), além de ter algum conhecimento do russo (língua oficial da primeira pátria) e do francês. De gestos tranquilos e personalidade quieta, considerada tímida por seus amigos escritores e jornalistas, solteira e sem filhos, Elisa Lispector morreu em 6 de janeiro de 1989, aos 78 anos, no Rio de Janeiro, vitimada pelo câncer. Foi enterrada no Cemitério Comunal Israelita do Rio de janeiro, Cemitério do Caju. Atualmente, os direitos autorais da obra de Elisa pertencem a Nicole Algranti Kaufmann, sua sobrinha-neta, e ao Instituto Moreira Salles (IMS), desde 2007. De posse de muitos documentos há mais de uma década, o IMS digitalizou vários textos relacionados à contista (entrevistas, artigos, cartas pessoais, cheques com valores referentes a publicação dos livros, etc.), contudo, o acesso a tais materiais pode ser feito apenas na sede do próprio IMS ou pode ser visualizado on-line caso haja permissão direta da família Lispector. A maioria de seus livros pode ser adquirida apenas em grandes sebos brasileiros, fato curioso, dado o reconhecimento de Elisa em vida. Ronda Solitária (1954), seu terceiro romance, não é mais acessível enquanto objeto físico19. O livro No Exílio (1948) é o único facilmente encontrado por apresentar informações relativas à chegada de Clarice Lispector ao Brasil, muito embora sua última edição seja de 2005 (Ed. José Olympio). Elisa Lispector publicou seu primeiro livro no final da Segunda Guerra Mundial e, apesar da qualidade da obra, tornou-se vítima da problemática editoração nacional, que acarretou o desaparecimento parcial de seu legado. O romance Além da Fronteira foi publicado com o selo da Cia. Editora Leitura em 1945 e não alcançou grande repercussão, principalmente nos jornais da época, o grande circulador de críticas literárias. Parece-nos que a Cia. Editora

18 Ver Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 25.02.70, Seção Classificados, p. 5. Participaram também desta comissão Adonias Filho, Márcio Konder Reis e Octavio de Faria. 19 Contamos com uma cópia digitalizada da obra, que nos foi cedida por Neves — NEVES, N. F. Lias hojas muertas y outras hojas. 2003; Tema: Crítica Literária. (Site). 17

Leitura não realizou um bom trabalho, principalmente quanto à formatação da obra. Há comentários negativos quanto à edição em artigos antigos (CUNHA, 1963) e a própria Clarice menciona a questão no livro Minhas queridas20 (2007). Na carta de 13 de agosto, ela “consola” a irmã mais velha acerca da Cia. Editora Leitura, assegurando que os erros de revisão e tipografia no Brasil são comuns e que o uso da errata é muito funcional para estes casos. Fica claro que a irmã mais nova, um pouco mais habituada ao universo das publicações brasileiras, tenta mostrar a Elisa, escritora iniciante, que esta situação era enfrentada por muitos escritores brasileiros. Em síntese, exemplares da primeira edição de Além da fronteira não são mais encontrados; a única edição em circulação é do ano de 1988, da Editora José Olympio. Em Além da fronteira, Elisa revelou a modernidade literária do século, no que diz respeito à construção do ponto de vista narrativo. A história trata de Sérgio, ou Sergei, um escritor e jornalista estrangeiro que se sente perdido e incompreendido pelos amigos, pelos leitores, pelos amores e por si mesmo. Tentando encontrar o sentimento de pertencimento, Sérgio faz uma longa viagem em um cruzeiro e, numa das paradas do navio numa terra ignota, evade-se. No meio da natureza local tem uma epifania: deita-se no chão e sente, pela primeira vez, a sensação de criar raízes na terra, de pertencer a um lugar. A ideia para a escrita de Além da fronteira foi dada por Pinkhas, pai de Elisa, que certa vez lhe sugeriu a temática para um livro: “Vou lhe sugerir um tema. Escreva sobre um homem que se perdeu, um homem que perdeu o caminho” (LISPECTOR, 2012). A própria Elisa analisa o momento em Retratos antigos:

Permaneceu um bom tempo calado, depois se retirou para o seu quarto. Nada mais acrescentou. E eu fiquei a imaginar o que o teria feito sentir-se como um náufrago, em que ponto de suas dúvidas ele se havia extraviado, ao oscilar entre dois mundos, perdido entre várias culturas. Pois tinha o pai àquele tempo os seus 50 anos, e nada havia construído. Todas as aspirações mais fundas haviam permanecido irrealizadas. (LISPECTOR, 2012, p. 125)

Elisa elabora em Além da fronteira uma discussão que irá se repetir, embora de maneira diferenciada, em toda a sua obra. As dificuldades dos relacionamentos amorosos, a incomunicabilidade profunda entre as pessoas, o inexorável poder da morte, a falta de afinidade com os consanguíneos, o suicídio, a fragilidade do corpo físico estão aqui representados. Quanto ao estilo, a escritora demonstra uma riqueza de percepções e discursos ao redirecionar

20 Organizado pela biógrafa Teresa Montero, Minhas queridas (2007) traz a correspondência – 120 cartas – enviada por Clarice para suas irmãs, Tânia Kaufmann e Elisa Lispector, entre 1944 e 1959, período em que acompanhou seu marido, o diplomata Maury Gurgel Valente, em missões no exterior. 18

a nossa atenção de Sérgio para personagens secundárias, inclusive, femininas. Vale ressaltar que esse é o único livro de Elisa em que o protagonismo é masculino, embora a perspectiva seja transferida para outras personagens. Helena, Dolores, Irene, Tia Nelly, Prima Kátia (ou mesmo uma outra figura masculina como Paulo, em torno do qual se constrói todo o capítulo VII do livro) destacam-se ora num parágrafo, ora num capítulo inteiro, através de digressões e narrativas em abismo, cujo conteúdo simbólico discute as causas dos conflitos interiores de Sérgio. Porém, em Além da fronteira, a onisciência múltipla e seletiva ainda se mostra embrionária, até um pouco desarticulada e irregular quando observada na estrutura geral do livro; já nos demais romances e na contística Elisa Lispector, se mostra exímia no uso desse recurso ficcional, o que ela viria demonstrar em Ronda solitária (1954). Em 1948, Elisa Lispector lançou sua obra mais conhecida, intitulada No exílio. Esse livro narra a peregrinação de uma família judia pela Europa até a chegada ao Brasil, enredo em que muitos reconheceram a imigração dos Lispector e atribuíram-lhe de imediato pendores autobiográficos. O romance foi publicado logo após a Segunda Guerra Mundial, momento em que diários e relatos pessoais de sofrimento dos judeus estavam em alta no universo literário; além do mais, temos nesse mesmo ano (1948) a proclamação do Estado de Israel. Por estes motivos, o livro recebeu o selo da Editora Irmãos Pongetti, uma das mais conceituadas na década de 4021. Além do contexto histórico favorável, outro fator que modificou a recepção dos leitores em relação ao livro No exílio foi a constante curiosidade de biógrafos e de alguns críticos em relação à vida de Clarice Lispector. Por recuperar literariamente fatos vividos pela família, essa obra é constantemente citada por biografias. Embora a própria Clarice se recusasse a considerar a sua origem estrangeira um aspecto relevante em seus escritos, ratificando que nenhuma ligação tinha com a Ucrânia, o interesse em No exílio persistiu. Em uma biografia como Clarice, de Benjamin Moser (2011), uma das mais populares atualmente, o livro de Elisa é citado diversas vezes para incrementar a narração biográfica do pesquisador norte-americano, sobretudo, quanto ao período de perseguições na Ucrânia:

Em seu romance No exílio, Elisa rememora um pogrom, provavelmente um dos ataques ocorridos em Haysyn no verão de 1919, que deixou inabitável a casa da família: “As portas haviam sido arrancadas dos gonzos, as janelas, de vidros quebrados, olhavam sinistramente para a rua, como olhos vazados”. A família fugiu para outra casa, onde se

21 Rodolfo e Ruggero Pongetti foram pioneiros no universo editorial, incentivando a publicação de autores novos, desconhecidos do grande público e de fora do cânone brasileiro. Presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros entre os anos de 1960 e 1962, Ruggero Pongetti (1900-1963) era hábil em relações públicas e usava sua influência para garantir o sucesso de jovens poetas e de ficcionistas sem editor. 19

escondeu na cozinha, vendo a cidade em chamas e ouvindo tiros de metralhadora noite adentro. (MOSER, 2011, p. 59 – grifo nosso)

Benjamin Moser cita passagens de No exílio, inclusive, para abordar temas polêmicos da história dos Lispector, como a doença que vitimou a mãe das escritoras22. Em alguns momentos, há hesitação em utilizar o romance como material histórico, algo que se percebe no texto através de verbos e advérbios modalizadores, como no grifo acima. Em outra passagem acerca do nascimento de Clarice, ele diz: “No livro de Elisa a família fica na cidade não nomeada ao longo de várias estações. Isso pode explicar a alegação de Clarice de que nasceu durante a migração da família [...]”. (Idem, p. 62 - grifo nosso). Embora reconhecidamente de caráter biográfico, No exílio possui metáforas, ambiguidades, lacunas que formam o aspecto plurissignificativo (portanto, “escorregadio”) de uma obra literária. Elisa prefere, por exemplo, não nomear cidades ou aldeias e cambiar os nomes das personagens, opções narrativas que problematizam a pesquisa histórica. No que diz respeito à narração, há em No exílio a predominância de um narrador observador onisciente. Apesar de retratar a vida de Lizza, nome substituto para a própria Elisa, a perspectiva em relação aos fatos é relativamente distanciada, a nosso ver, por uma questão de verossimilhança narrativa. Enquanto personagem, Lizza não participa de todas as cenas narradas no livro. Pode-se citar como exemplo a passagem em que Pinkhas, pai das meninas, negocia com Baruque (um judeu que explora famílias desesperadas) em uma parte isolada do trem em que viajam. Essa situação só poderia ser contada por um narrador observador ou pelo próprio pai. No livro, a narração alterna-se entre narrador observador e modo dramático e, apesar do distanciamento do ponto de vista, o narrador deixa transparecer repulsa e ódio em relação a Baruque (que se aproveita da própria comunidade em época de calamidade social), sentimentos similares ao de Pinkhas, representado na obra como um homem bom, honrado, um típico mensh. Em O tigre de Bengala (1985), o conto “Exorcizando lembranças”, de aspecto autobiográfico, possui um ponto de vista externo aos fatos, ainda que reproduza, a partir do discurso indireto livre, a perspectiva da menina que perde a infância trabalhando e cuidando da

22 Moser (2011) afirma que a violência sofrida por Marim, narrada no romance No exílio, refere-se a um estupro coletivo, comum nos pogroms. Para ele, a paralisia corporal que ela enfrenta posteriormente seria resultado da sífilis adquirida nessa ocasião. Vale salientar, também, que, em maio de 2020, Benjamin Moser foi agraciado com o prêmio Pulitzer pela publicação do livro Sontag: vida e obra (Companhia das Letras). Contudo, essa obra foi repudiada por parte da crítica literária, que considerou a obra repleta de incongruências (Cf. https://rascunho.com.br/ensaios-e-resenhas/carta-aberta-a-benjamin-moser/). Sendo assim, a produção de Moser é constantemente alvo de críticas em relação à qualidade e honestidade de suas pesquisas biográficas. 20

mãe acamada. Por isso, é possível afirmar que, em se tratando da mimetização de eventos pessoais, Elisa prioriza essa perspectiva. Segundo Santos (2015), a utilização desse ponto de vista é imprescindível para que a narrativa, ainda que pessoal, possa representar a coletividade e para que Elisa consiga distanciar-se, adquirindo um maior conhecimento sobre si mesma:

O recurso da narrativa em terceira pessoa, muito utilizado também em textos que sinalizam uma aproximação entre a história de vida da autora, talvez seja, a nosso ver, o delinear um [sic] distanciamento necessário em relação ao próprio texto, como se fosse preciso se imaginar outra para poder encontrar a si mesma. (SANTOS, 2015, p. 73)

De fato, a narrativa com um narrador onisciente funciona bem para representar a visão do grupo, uma vez que em No exílio todos sofrem a dor da perseguição e do repúdio. Nesse romance há menos introspecção e mergulhos verticalizados num tempo psicológico (apesar das analepses, é uma narrativa mais tradicional nesse sentido), contudo, em alguns momentos, esse ponto de vista sai do coletivo e se volta para personagens particulares, para a mimetização da dor individual. Este é o caso de Lizza, da sua tristeza em vender a boneca América, a fim de aplacar o frio e a fome. Em alguns momentos, o foco parte de Marim, a mãe, que vê as residências vandalizadas como pessoas com olhos vazados. Outras vezes, a importância do momento se dirige ao pai, em seu cansaço e constantes procuras23. Elisa Lispector expõe a perspectiva de Lizza e dos seus pais sobre a peregrinação e a violência, sem restringir a narrativa a uma visão externa. Em uma passagem célebre, em que Marim se lança à rua para evitar que outras mulheres sejam encontradas, há uma significativa mudança de perspectiva. O ponto de vista passa do narrador observador para a consciência de Marim, que se paralisa mediante a violência que lhe infligem:

Quando deu acordo de si, estava na rua, de cabelos ao vento, a neve quase a atingir-lhe a cintura. Ao avistar dois milicianos vindo em sua direção, caiu-lhes aos pés, pedindo auxílio. Chorou, implorou, beijou-lhes as botas enlameadas. Depois as imagens embaralharam-se fantasticamente à luz baça do luar. Como num sonho, por entre espessa neblina, viu homens correndo e travando renhido tiroteio, e corpos tombando e sendo amortalhados pela neve. Em seguida, por um tempo que lhe pareceu interminável, o mundo ficou deserto. [...] A reminiscência apenas acabava de esboçar-se quando percebeu que estava sendo chamada à realidade. Mas ainda era um aclaramento esfumaçado e vago. — Devia ter sido assim no começo da criação, ponderou, pensando nada, de tal modo se achava descosida do conhecimento do mundo. Mas agora os chamamentos chegavam até ela. (LISPECTOR, 2005, pp. 34 e 35)

23 Curiosamente, nenhuma cena é narrada a partir do ponto de vista de sua outra irmã, Ethel, que, embora pequena, poderia ter a sua perspectiva representada literariamente. 21

A elipse dessa passagem, que oculta a ação violenta dos soldados, permite até hoje questionamentos quanto ao que teria acontecido à mãe das Lispector. A cena que Elisa constrói está embasada no ponto de vista do narrador observador até o momento em que Marim humilha- se diante dos milicianos russos. Daí em diante, o embaralhar das imagens e a nebulosidade são da própria Marim, cuja consciência mergulha em um abismo sem tempo e espaço (um mecanismo de defesa da mente frente à ação brutal) e do qual ela emerge somente ao som das vozes das filhas. O romance No exílio não é apenas um livro sobre imigração; na verdade, ele aborda as implicações das escolhas humanas: Pinkhas Lispector imigra, mesmo isso sendo visto como “coisa de aventureiro”; Marim se oferece à violência gratuita do outro para proteger as filhas, ainda que as consequências físicas e psicológicas sejam irreversíveis. Até mesmo fatos aparentemente irrelevantes constroem um conflito, como Lizza, que se sente culpada pelo “abandono” dos cuidados maternos sempre que vai à escola. As circunstâncias adversas recomendam caminhos a seguir e a escolha por um deles instaura questões morais, éticas, religiosas. Pinkhas, por exemplo, lê nos jornais acerca do genocídio judaico durante a Segunda Guerra, porém, não perde a fé no homem e vê “por baixo da cegueira e egoísmo uma centelha generosa e pura” (LISPECTOR, 2005). Dado o interesse do público acerca de No exílio (1948), certamente esta obra receberá mais uma edição, que se somará às duas brasileiras (3ª edição em 2005, 2ª em 1971), sem contar a de língua francesa, publicada pela Editions des Femmes, em 198724. Enquanto No exílio é o sucesso editorial de Elisa, o seu sucessor é o menos afortunado. O romance Ronda solitária foi publicado em 1954, desta vez pela Editora A Noite. Seus exemplares não são mais encontrados no Brasil, uma fatalidade que não ocorreu com nenhuma outra publicação. Ronda solitária é uma das mais poéticas histórias de Elisa Lispector e conta a saga de Constância, uma jovem da cidade de Serra Grande, que vive o objetivo perpétuo de seguir a sua consciência. Como a maioria das personagens elisianas, Constância não se identifica com os conterrâneos, sente-se sozinha e sem perspectivas numa comunidade feminina que se entretém com a ininterrupta costura de roupas. Essa prática é percebida pela protagonista como uma maneira alienada de vida, uma combinação de fuga e avareza. Aos vinte e seis anos, a protagonista muda-se para o Rio de Janeiro, arranja trabalho em uma companhia (a McNeil Company) e depois em um jornal. Estabelece um relacionamento com Miguel, que, por ser

24 Atualmente, no site da editora (http://www.desfemmes.fr), ainda constam os dados de Elisa Lispector na lista dos romancistas, inclusive, com descrição da autora, trecho do romance e preço do livro. 22

casado, a visita ocasionalmente em seu pequeno apartamento, intensificando a solidão de Constância e o seu medo de abandono. Ao receber uma carta acerca da precária saúde do pai, Constância retorna para sua cidade. Passa um período se readaptando à vida em Serra Grande, mas sempre com dúvidas sobre a sua permanência, até que passa a estreitar os laços afetivos com sua mãe, de quem tinha uma concepção negativa e reducionista. Após um passeio epifânico nos arredores de casa, a personagem compreende que a felicidade não está nem no campo nem na cidade, mas nas pequenas e rotineiras atitudes da vida, nas escolhas e na aceitação final:

Era madrugada ainda quando Constância saiu para o campo. A terra ainda estava envolta em trevas. Sobre os charcos negros pairava uma neblina fumegante. A silhueta escura das cabanas recortava-se dura num sentido de desolação contra o céu opaco e violáceo. [...] Foi quando na encosta da colina assomaram dois cavalos brancos, dois cavalos selvagens e puros, emitindo um relincho de clarim de suas esquias gargantas. [...] E esse aceno chegou até Constância com a força de uma mensagem, porque também ela sempre fora toda crinas ao vento. Nua, sem raízes, como o próprio vento correndo pela campina. Nela sempre se contivera o princípio e o fim de si mesma. Compreendia agora verdadeiramente que vivera até então sem compromisso, que, na realidade, ninguém jamais se apoiara nela, nem lhe pedira coisa alguma. Fora sempre uma corrente quebrada de elos partidos. Entrou em casa pela porteira dos fundos. Ana vinha com uma grande bacia de roupa lavada e torcida. Depôs a bacia no chão, retirou e sacudiu um alvo lençol, com os braços roliços e vigorosos [...]. Da cozinha vinha o rumor de bater de ovos. — Tia Cordélia fazendo suspiros! Uma máquina de costura interrompia-se por um momento e depois continuava no seu trepidar surdo e pontilhado. — Mamãe na costura. Constância deteve-se por alguns instantes no vestíbulo, a pensar naquilo que obrigava a cada alma a fazer a sua desesperada escolha. E novamente aquele sorriso de contemplação que tinha a idade dos séculos, que era dela e de mais ninguém, segredou-lhe docemente que tudo está bem, que afinal tudo se harmoniza e cessa. (LISPECTOR, 1954, pp. 155 e 156)

Numa leitura superficial poder-se-ia dizer que a perspectiva narrativa em Ronda solitária é de um narrador onisciente; contudo, observa-se a presença da onisciência seletiva, com a frequente análise do pensamento da protagonista e de uma outra personagem da história, seu amante Miguel. Uma das virtudes da história é acessar as consciências que se relacionam com Constância e que funcionam também como reveladores do ponto de vista narrativo. Durante várias cenas do romance, Constância reflete sobre as intenções de Miguel, sobre a veracidade de seus afetos, procurando adivinhar os pensamentos do rapaz enquanto ele folheia um livro ou a observa no café. Capítulos depois somos presenteados com a história contada a 23

partir da visão de Miguel, seus próprios medos, as impressões daqueles mesmos eventos vividos e já examinados por Constância. Há, assim, uma riqueza de perspectiva e a narrativa mostra como o mesmo acontecimento pode ser frustrante e incompreensível para duas personagens de modos completamente diferentes. O recurso funciona no texto para marcar a ausência de interação e diálogo entre os amantes, que leva ao rompimento da relação, apesar de ambos nutrirem afetos mútuos. Nesse sentido, o que cada personagem pensa, considera sobre si e sobre o outro, embora com muito carinho, amor e desejo de aproximação, não impede a separação amorosa porque somente ela e o leitor têm acesso a esse conjunto de sentimentos e acessá-los é importante para entender esse abismo intransponível. Ainda sobre Ronda solitária, o romance é a história de uma mulher e de seu processo de amadurecimento e individuação. Por isso, é crucial que os fatos sejam narrados por seu ponto de vista, a fim de que percebamos as mudanças em seu modo de interpretar as relações familiares, amorosas e as estabelecidas no contexto de trabalho. As cenas que ocorrem em trens25 são basilares para essa inferência. Em sua viagem de Serra Grande ao Rio de Janeiro, Constância observa cada passageiro, suas bagagens, o porte e as atitudes durante viagem. Nessa ocasião, interpõe-se em sua presença uma mulher de conversa aberta e fluente; suas perguntas quanto aos projetos de Constância são feitas de modo direto, atitude que induz a protagonista a considerá-la intrusiva e ligeiramente autoritária. Nessa cena dramática, Consuelo, a passageira curiosa, revela como o desapego reduz o sofrimento do homem (em síntese, seu conselho é “não se importar, apenas observar”). Esta cena é simbólica no conjunto do romance, isso porque, ao chegar à cidade, Constância segue o conselho à risca. Os gestos ambíguos e cruéis do patrão, as mulheres exaustas no bonde, os homens que esbravejam sem razão aparente, os devotos na igreja e até o cachorro que se enrosca na calçada são alvos da leitura da protagonista. E, a cada notação externa, temas existenciais são elaborados em seu interior na tentativa de compreender sua estada na cidade, o que fazer de sua vida, da sua existência profundamente solitária. Quando Constância retorna para casa, estabelece uma nova forma de compreender o mundo: no trem, sua análise não tem mais o brilho e a curiosidade juvenil. E na terra natal, a costura, antes uma tarefa inútil, passa a representar uma atitude esperançosa, uma espera no

25 Os trens têm uma significação importante na obra de Elisa e podem significar formas de escape de uma dada situação opressiva ou representar a mudança de perspectiva da personagem. Em geral, eles cruzam não apenas espaços, mas realidades diferentes. Nos romances, viaja-se neles também para locais de reabilitação física, como hospitais, sanatórios e retiros campestres. 24

surpreendente da vida. Essa atividade artesanal como uma maneira de manter-se ativa/viva (perspectiva positiva), embora com aparência de alienação (perspectiva negativa), remete à narração mitológica de Penélope, que tece uma mortalha para o sogro como forma de salvar-se dos pretendentes, ampliando o tempo de espera do marido desaparecido26. O romance é simétrico: a cena inicial baseada nas reflexões de Constância no momento em que ela sai da infância pode ser equiparada à última, transcrita acima, e mostra a interioridade da personagem na vida adulta. A introspecção, nesse caso, é essencial para acompanhar a transformação da protagonista ao longo do romance. Enquanto a década de 50 foi um período desfavorável para a bibliografia de Elisa, com a produção apenas de Ronda solitária, o decênio seguinte trouxe bons ares para a escritora: avaliado por uma comissão composta por Raquel de Queiroz, Octávio de Faria e Adonias filho, o livro O muro de Pedras recebeu o prêmio José Lins do Rego de 1962, desbancando mais de cem romances. Instituído pela Livraria José Olympio, o prêmio destinava-se exclusivamente a romances inéditos. Concorreram neste ano 119 candidatos e sete romances foram julgados finalistas. A comissão avaliadora concedeu por unanimidade o prêmio ao romance de Elisa, cujo pseudônimo era Congonhas. Este romance tem duas edições: a 1ª pela editora José Olympio (1963) e a 2ª edição pela Rocco (1976). Em razão desse contexto, o livro de Elisa foi resenhado por vários jornalistas/críticos e teve uma recepção significativamente positiva. O muro de pedras é coeso do ponto de vista de sua estrutura e aborda com sensibilidade temas humanos e universais, tais como a solidão, o sentido da vida, a liberdade do homem, a maternidade, entre outros. Além disso, apresenta muitos dos recursos narrativos que se veem nos melhores livros da autora, inclusive nos de conto, como a introspecção, o protagonismo feminino e a valorização da cena com a frequente dramatização do pensamento. A narração é feita por um narrador observador, mas esse cede lugar de maneira fluida, às vezes até imperceptível, ao pensamento de Marta, uma mulher em busca da confiança e do sentido de plenitude. A obra é dividida em três blocos de capítulos: no primeiro, apresenta-se a relação entre Marta e sua mãe. Marta entra em uma nova etapa da vida com a partida da mãe, cena que abre o romance. Esse evento modifica a estabilidade de Marta, que passa a examinar as escolhas feitas sob a influência materna. A primeira ação da protagonista é divorciar-se, uma vez que a seleção do marido foi tida como impessoal.

26 Paradoxalmente, a partida e o retorno para casa, o aprendizado com as experiências de viagem, a valorização do lar em razão do distanciamento são eventos que aproximam Constância das figuras masculinas da mitologia. 25

A segunda parte de O muro de pedras narra a busca de Marta por amor e emoção, e, em vão, ela tenta remediar-se com amantes e amigos. Nessa época demonstra interesse pelo estado de solidão, ocupando seu tempo com incansáveis trabalhos domésticos, uma atitude significativa tendo em vista a simbologia bíblica de seu nome. Na terceira parte do romance, Marta muda-se para uma propriedade particular, herança de seu pai, e resolve ser mãe. Envolve- se com o caseiro da granja e dá à luz um menino. Contudo, o nascimento de Carlos não lhe restitui a paz, pelo contrário, aumenta seu desengano em encontrar uma saída para si. Nas cenas finais do romance, Marta sobe uma montanha, objetivando jogar-se, mas, como Moisés, “encontra Deus” e vivencia uma epifania: ela compreende que a solidão desaparece com o desapego e que a ausência do outro é dolorosa em razão do amor que lhe é devotado. Com essa perspectiva, Marta desce, retornando para a sua vida na fazenda e a história se encerra. A síntese da fábula27 não consegue exprimir o tom instituído pelo romance O muro de pedras. A passagem sobre a infância da protagonista, repleta de medo e carência afetiva, é bela e triste. A sua consciência vive em constante ebulição e, às vezes, embaralha o seu ponto de vista ao de sua mãe, responsável em grande parte por sua formação e rumos. Em nenhum outro romance de Elisa, o Mito de Sísifo28 é tão presente quanto neste. Os dias, como blocos fechados, condenam a protagonista a cometer os mesmos erros, a sentir a mesma angústia, até que a solução, a compreensão, vem ao final:

E neste momento ela compreendeu que o que sempre lhe faltara fora grandeza. Ela jamais tinha sabido deixar-se humilhar, sempre inaceitando, resistindo sempre. [...] E nesse momento tinha como certo que somente através da humilde aceitação de si mesma e dos outros, é que se consegue escapar daquele vazio que, se não ungido pela graça, aterroriza; que somente no dia em que se estabelecesse uma conexão entre ela e o próximo, entre ela e o mundo, através de uma aprendizagem humilde e um consentido trabalho de obediência, [...] que só então cessaria o sofrimento, porque nesse instante via tão claro como se todos os anos vividos se tivesses somado para conduzi-la exclusivamente a este reconhecimento do que era, do que forçosamente teria de ser. (LISPECTOR, 1976, pp. 163 e 164)

O final de O muro de pedras tem um movimento similar ao de Além da fronteira e Ronda solitária, pela viagem ou passeio, seguidos de uma epifania e de uma mudança de concepção. Esse procedimento repete-se em muitos contos de Elisa, nos quais o perambular pelas cidades, pelos parques, constitui parte do processo de monologar. Interagir com o mundo enquanto se pensa é um dos métodos de Elisa para a representação dos pensamentos das

27 De modo geral, a fábula (para alguns teóricos, a trama) é constituída pelo conjunto das ações, sendo, dessa forma, um elemento essencial para a construção do romance tradicional (SEGRE, 1989, p. 64). 28 Mito presente no Canto XI, da Odisseia. (HOMERO. Odisseia. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2015). 26

mulheres. Há, nesse sentido, uma cena extraordinária em Ronda solitária. Ao andar pela cidade, Constância entra fortuitamente em uma igreja e acompanha o sermão do padre. Nesse momento, seus pensamentos interagem com a mensagem do clérigo como se ele ouvisse suas indagações. Às vezes, o sermão oferece respostas diretas, como se fora um diálogo. Mas, à medida que é proferido, ele revela o abismo entre o discurso religioso e o questionar de Constância, que se retira do templo. O muro de pedras, de certa forma, ajudou a consolidar o estilo introspectivo na literatura brasileira. Elisa Lispector realizou um romance embasado na dramatização do pensamento de Marta, e, mesmo assim, é difícil enfastiar a leitura do livro. No conjunto de sua ficção, começa em O muro de pedras a representação dos casamentos infelizes, assim como a conflituosa relação esposa/sogra/cunhada, a partir de agora recorrente. Ainda aqui apresenta-se uma escolha vocabular peculiar, com verbos que apontam para o movimento de introspecção da protagonista, como “imergir”, “enrodilhar”, “fechar-se”, “condoer-se”. A boa recepção de O muro de pedras contribuiu para a publicação de O dia mais longo de Thereza (1965), apenas dois anos mais tarde. Publicado pela Editora Record, o quinto romance de Elisa repete o protagonismo feminino e persiste em tematizar a solidão, o sentido da vida e da morte, desta vez com destaque para a morte, já que toda a vivência de Thereza é marcada por imagens, ideias, sonhos e expectativas relacionadas ao fim da existência. Em relação às ações, a fábula é simples, tendo em vista que a protagonista não age por acreditar em uma morte iminente. Na infância, Thereza fica órfã de pai e passa a morar com a mãe em uma pensão medíocre. Em pouco tempo, a mãe também falece, fato que a obriga a tomar as primeiras decisões: arranja um emprego e muda-se da pensão para um pequeno apartamento. O casamento se sucede: Thereza liga-se a Eduardo e passa a morar com ele no exterior. Insatisfeita, procura arrimo nos braços de um amante, chamado apenas de “o homem”, um outro indivíduo tão solitário quanto ela. Os dias no estrangeiro aumentam a solidão e a fragilidade física de Thereza, neste ponto já “doente dos nervos”; ela divorcia-se e regressa ao Brasil. Com o agravamento de sua doença, a personagem passa uma temporada num sanatório, onde conhece o único amor de sua vida: o norueguês Niels. Vendo a impossibilidade de uma relação amorosa com Niels, Thereza retorna à cidade e procura um médico para ouvir a sentença final. Inesperadamente, o médico a desilude, pois o mal que debilita seu corpo (não citado em nenhuma parte do romance) não é mortal. Sentindo-se traída pela vida e pela própria morte (único fato certo na existência), Thereza sente um grande desgosto: deixara de viver em razão da morte e nem mesmo ela 27

atendeu às suas expectativas. Em choque, ela caminha pelas calçadas da cidade até que se lança à frente de um ônibus e morre em pleno asfalto. Parte das indagações de Thereza diz respeito às formas de morrer e de se relacionar com a morte. Ainda bem cedo, a protagonista experimenta isso por meio da orfandade. A morte do pai não é apenas ausência, mas um esvaziamento afetivo e material, em razão de os bens, os objetos do universo familiar, serem levados pelos credores do falecido. Com a morte da mãe, Thereza conhece a fome e enfrenta sozinha o preconceito social por não ter uma figura masculina na família (pai/irmão), ainda que esta condição não seja uma opção sua, mas uma intempérie do destino. Aliás, subjaz na trama do romance a concepção de que o destino não pode ser modificado. Nenhuma decisão de Thereza altera a sua condição de mulher solitária, seu estado depressivo ou a condição de seu corpo. Solteira, casada ou divorciada, no Brasil ou no estrangeiro, com ou sem amante, nada altera sua angústia. Por isso, Thereza vê em sua enfermidade, aparentemente mortal, um ponto de arrimo e se frustra ao notar que a morte não é confiável. Dessa forma, morrer com data, local e causa específicos configura-se como uma insurgência, não como desistência: viver naquele momento era conduzir-se pela vontade inexplicável, implacável e arbitrária do destino:

— Por que não tomar a morte voluntariamente, como um ato de afirmação, de livre arbítrio? Por que não tomá-la com resolução e coragem pelas próprias mãos, em vez de deixar-me reduzir a mero joguete das circunstâncias? Afinal será só a antecipação do que um dia inevitavelmente terá de ser, emendou. — Sim, é isto, pensou afirmando ainda mais a decisão. — O que acaba de acontecer, exige de mim uma resposta. Esta é a minha oportunidade de afirmação do ser, insistia dura e difícil. — Sim, tenho que correr o meu risco. [...] Seria a sua vitória sobre a morte, através da própria morte. (LISPECTOR, 1978, p. 115- 116)

A vitória sobre a morte através da morte (para ela, a afirmação do ser) é um paradoxo que a leitura do romance pode explicar. Os recursos formais e temáticos se unem para chegarmos nesse clímax que representa o suicídio como uma atitude heroica de Thereza. Nesse sentido, ganha destaque a construção da narrativa a partir da consciência da personagem, elemento da ação no romance. Em seus treze capítulos, O dia mais longo de Thereza apresenta inúmeras imersões nos pensamentos, que rememoram imagens, pequenas histórias, diálogos marcantes e eventos cruéis que marcaram a vida da protagonista, quase tudo referente à morte. Talvez mais do que nos romances anteriores, há nesta obra pausas no tempo cronológico narrativo e alongamento do tempo psicológico, marcado por sucessivas lembranças que passam pela mente de Thereza, às vezes, de modo tão rápido que lembram o manuseio de um álbum de 28

fotografias. A soma conflituosa dessas imagens reminiscentes com as reflexões e experiências narradas cria uma unidade, cujo resultado é o próprio romance. Um leitmotiv na ficção de Elisa é a representação do ócio como algo nocivo, um intensificador da agonia; por isso, certas personagens elisianas caminham com significativa regularidade. Em O dia mais longo de Thereza, o ato do passeio é propício para a expansão do pensamento, do qual derivam importantes decisões. O contato com a realidade exterior opera mudanças na perspectiva de Thereza, alterando, por sua vez, o desenrolar da fábula. No quarto capítulo, por exemplo, o passeio a conduz à decisão do divórcio, realizado no quinto capítulo. Em sonho, Thereza também peregrina e muda suas convicções. Destaque para o penúltimo capítulo do romance, com cenas oníricas e fantasmagóricas: a protagonista foge de Niels, que, metamorfoseado em um fauno, a persegue até um bar; o recinto transforma-se em uma loja de brinquedos, que vende pequenos palhaços engaiolados. Na sequência, Thereza caminha por galerias infindáveis e adentra um túnel longo e escuro (o caminho da morte). A interpretação desse sonho é dada à Thereza por sua consciência, uma situação que reitera um dos temas de Elisa: o conhecimento está nas personagens em um estado de latência, cabendo ao pensamento revelá-lo, trazendo-o à superfície:

— Entretanto, pensou, essa descoberta não teria sido aquilo que no fundo eu já conhecia? Pois tudo quanto aprendemos já não está, de alguma maneira, em nós mesmos, e o momento do achado não é senão o aclaramento, a revelação, muitas vezes bastando uma palavra, uma rápida visão, para retrucarmos: mas sim, é isto, eu o reconheço! Apenas, permanecia irrevelado pela minha inconsciência, ou, — quem sabe? — a minha consciente cegueira. (LISPECTOR, 1978, p. 109)

A peregrinação em uma realidade onírica (símbolo da busca) convence Thereza da necessidade de um parecer médico, expresso no último capítulo, fechando o romance. Essa jornada interior é recorrente nos contos, como veremos, já que as personagens elisianas estão em constante procura desse momento de revelação, de entendimento, mesmo que minúsculo. A leitura de O dia mais longo de Thereza, assim como de O muro pedras, nos mostra que a narrativa, com narrador observador onisciente, pode se voltar a tal ponto para a mente da personagem que, na maioria das cenas, a voz do narrador é apenas isto: uma voz; as impressões sobre os fatos narrados e sobre as outras pessoas; a própria cadeia dos fatos se desenvolve somente pelo que pensa a protagonista. Vista no trecho acima, a máxima de que a verdade está dentro do homem movimenta as escolhas formais de Elisa, configurando o foco narrativo do romance como predominantemente onisciência seletiva. 29

A problemática relação nora/sogra/cunhada se faz presente nesse romance. Plenas de autoconfiança e condescendência, as parentes de Thereza intensificam os seus problemas de autoestima. Como consequência, Thereza apresenta a sua cunhada Helena de maneira pejorativa, por meio da zoomorfização simbólica29 – atribuição de caracteres animalescos a pessoas. Helena é descrita como uma , dada a forma egocêntrica, agressiva e manipuladora com que se relaciona com os homens, vistos como presas fáceis. Dentro da questão existencial, a relação homem versus objeto é abordada na direção de que as coisas são superiores aos seres humanos porque desafiam as contingências do tempo. E, por fim, apesar dessa atmosfera depressiva e mórbida, da constante angústia de Thereza, há laivos de otimismo nessa obra cheia de momentos de vazios e desenganos:

— Você tem mãe? — Não, respondeu ela, dócil. — Tem pai? — Também não. — Você tem um filhinho? — ... Não. Pausa. — E marido, você tem? — N-não, também não tenho. — Você tem empregada? — Não. [...] — ...mas uma cama você tem, não tem? — Uma cama, eu tenho, retrucou Thereza conciliadora, querendo compensá-lo de seu desapontamento e de uma indisfarçável mágoa. (LISPECTOR, 1978, p. 109)

Em 1975, a Editora Documentário publica o penúltimo romance de Elisa, intitulado A última Porta. No seu sexto romance, Elisa aborda de modo simbólico e filosófico as consequências cruéis e irreversíveis da Segunda Guerra Mundial para o indivíduo. Enquanto No exílio aborda o contexto familiar num período de conturbada realidade histórica, em A última porta a pesquisa introspectiva se dá em Ana, uma senhora solitária, que busca no processo de escrita a resposta para o significado do vazio da existência. A orfandade resultante da guerra, a adoção por parte de uma família disfuncional, o casamento fracassado e o desafeto de seu filho são eventos revisitados por meio da escrita da protagonista, que procura, em retrospecção, as causas para o medo da vida e o seu desamor.

29 A zoomorfização é um processo metafórico que atribui ao indivíduo características dos animais. Recurso geralmente associado ao Naturalismo literário brasileiro (no qual serviu para evidenciar o lado instintivo e animalesco do homem), a zoomorfização se faz presente em muitos contistas contemporâneos, como em Elisa Lispector, Murilo Rubião e Lygia Fagundes Telles. 30

Do ponto de vista da narração, A última porta se destaca dos demais por ter em sua trama uma narrativa interna, elaborada por sua protagonista. Ana vê na escrita um processo viável para a descoberta da verdade que lhe escapou. Assim como em outros romances brasileiros, cujos protagonistas se tornam escritores, a exemplo de S. Bernardo (1932), de Graciliano Ramos, a narrativa de A última porta é feita de leituras do passado, da retomada de fragmentos vividos, a maioria dolorosos para a personagem. Comparados a estilhaços de bombas que torturam o corpo sempre que o ferido ousa retirá-los, esses fragmentos se referem à relação de Ana com a sua infância na casa dos Hoffman, à vinda para o Brasil, ao alcoolismo e à falta de entendimento com Gastão, seu ex-marido, e à relação distanciada com o filho, também fruto de adoção. Com a escrita, Ana pretende compreender a sua decadência e o que ela intitula de “a eclosão do desamor”, ou seja, o fato de as pessoas do seu convívio não lhe devotarem afetos genuínos. Apesar da escrita diegética, a narração de A última porta não é realizada em primeira pessoa. O trecho narrado por Ana aparece em uma parte específica e breve do romance, por isso, Elisa dispensou as marcas linguísticas típicas de um narrador protagonista30. Ana transforma-se em autora, mas há um distanciamento em relação ao seu próprio relato. O fato é que Elisa valoriza de tal forma a perspectiva centrada na personagem que a faz com perícia tanto em narrativas de primeira quanto de terceira pessoa e, com isso, o uso da primeira pessoa no relato autobiográfico pôde ser dispensado. Essa parte do romance assemelha-se muito mais a um monólogo interior, que, por informações dadas pela trama, sabemos ter sido transposto para o papel pela personagem. Justamente por isso, a narração da protagonista aproxima-se do ponto de vista dos demais romances, nos quais há um narrador observador, onisciente, que busca perscrutar a personagem em seus níveis mais profundos. Mesmo os sumários narrativos (nesta obra, os capítulos se abrem com uma espécie de apresentação da personagem no espaço) buscam revelar a personagem em cena, em suas impressões e sensações para com o espaço narrativo. Destacamos para isso a passagem em que, defronte ao espelho, Ana se depara com o seu corpo envelhecido:

Largada a bolsa sobre a mesinha do centro, dirigiu-se ao quarto. Com gestos lentos, começou a despir-se para entrar no chuveiro. Tinha o ar distraído, o pensamento longe. Removida a última peça de roupa, olhou-se de relance no espelho e ficou paralisada, um aguilhão pungente a penetrá-la até atingir o âmago do seu ser. O coração batia descompassado.

30 Enquanto nos demais romances, Elisa valoriza o ponto de vista da personagem em narrativas com narrador observador, nessa parte específica de A última porta, ela reverte um pouco o processo, criando um distanciamento em uma forma narrativa que é marcada pela subjetividade, como é o caso do relato pessoal. 31

Com movimentos difíceis, alcançou a penteadeira, sentou-se na poltrona em frente e, nua, como estava, deixou-se ficar. Passado o instante de tumulto, concentrou-se na contemplação do seu corpo envelhecido, avolumado com os anos. Sedimentação do que outrora fora frêmito de esperanças, e até desesperanças. E angústias. Como se ninguém antes a houvesse conhecido, nem ela própria se tivesse concebido tal como era, pareceu-lhe que apenas nesse momento identificava-se consigo mesma. Por muito tempo Ana permaneceu abismada na contemplação de seu vulto. Inventariava o que restara de sua passada juventude, avaliava o que fora feita dela. A que fora reduzida. Diante de sua nudez, pela primeira vez entrevista de forma tão lúcida, divisava a mais pura verdade. A miséria maior e irremediável. Era um olhar grave, o seu, e não obstante o olhar de quem encara um problema de frente, com toda a calma de que é capaz. [...] — A realidade excede a mim mesma. A ideia que eu fazia de mim era tão diferente. Sentia-me tão diversa da imagem que o espelho reflete. [...] Refiro-me unicamente à aparência e ainda assim me desconheço. Mas sou mesmo tal como o espelho me reflete. A lembrança que eu guardava era de muitos, muitos anos atrás. (LISPECTOR, 1975, pp. 25-27)

Nesse trecho, o procedimento narrativo é muito similar ao dos contos de O tigre de Bengala. O narrador observador mostra-nos Ana nesse momento de intimidade, no qual há uma justaposição entre o interno e o externo, entre a revelação da sua aparência envelhecida e o início de uma crise interna. Por isso, a necessidade de um ponto de vista ao mesmo tempo distanciado e próximo. A distância nos faz ver a desilusão de Ana diante de sua autoimagem, sua atitude cabisbaixa de negação da solidão e do desconhecimento. Já a proximidade faz-nos vê-la com os seus próprios olhos. É digna de nota, nesse sentido, a descrição do corpo de Ana numa perspectiva de cima para baixo, como se, por seus olhos, nos deparássemos com os seios caídos, com os quadris redondos e largos. Ao contrário de um Paulo Honório (RAMOS, 2005), um manipulador em seu ato de narrar, Ana é sincera em seu projeto de procura e desconfia da sua memória; ela interroga-se se os sentimentos vistos nos outros existem de fato ou são apenas um reflexo de si mesma, afinal, o desamor dos outros poderia ser algo exclusivamente seu. Nessa busca por respostas, uma personagem significativa é Fink, um velho refugiado de guerra, vizinho de Ana (aliás, os vizinhos na ficção de Elisa são figuras mais sociáveis, amigáveis, do que os familiares). Com ele, a protagonista desenvolve muitas discussões, que compõem elaboradas cenas dramáticas. Fink, como a , interroga Ana constantemente, ajudando-a a elaborar conclusões sobre si, sobre Deus e sobre o universo. O romance não propõe respostas definitivas para as indagações existenciais, mas sugere que elas existem e que são tangíveis. Esse, afinal, é um dos sentidos atribuíveis ao seu título: a grande epifania é como uma última porta, a qualquer momento, se transpõe um umbral que mostrará toda a verdade do homem sobre si mesmo. 32

À semelhança de O muro de pedras, o romance A última porta é dividido em três blocos de capítulos. No primeiro, nos deparamos com Ana em sua vida de medo e solidão, a perambular por ruas, a frequentar cinemas na tentativa de preencher o tempo. A epifania da cena no espelho retoma o Mito de Narciso e desencadeia a escrita, o desejo de retorno ao passado, mas de um passado ancestral, que explique tudo, origens, raízes. Ana é a mais estrangeira das personagens de Elisa e isso se reflete nas suas relações familiares com o marido, filho e cunhada. Muito mais do que Lizza, de No exílio, e de Sérgio, em Além da fronteira, ambos com parentes consanguíneos vivos, Ana sequer lembra o sobrenome de seus verdadeiros pais mortos na guerra: “Vagamente recordava nomes familiares, procurando fixar-se no seu. Ana... Steinmann, disse. — E se fosse Steinberg?” (LISPECTOR, 1975, p. 45). Essa vaguidão é ainda mais acentuada em razão de certos espaços em branco, ausência de informações contextuais, omitidas pela escritora-personagem. Um exemplo diz respeito ao modo como ela omite o país de origem dos Hoffmann, sua família adotiva excêntrica, e como não especifica a língua falada por eles, aprendida com dificuldade. A segunda parte do romance visa suprir algumas lacunas, mas de maneira incompleta e ainda mais subjetiva. A análise do casamento com Gastão é desenvolvida em várias páginas e sobreposta à relação com o filho, ainda mais decepcionante. Marcelo é irresponsável, mentiroso, manipulador, e sua comunicação com a mãe se resume aos frequentes empréstimos de dinheiro; por isso, ao longo da narrativa, Ana se esquiva de falar do filho, vantagem concedida por ser ela a condutora da narrativa. Nessa parte, conhece-se igualmente a singular relação de Ana com sua cunhada Emília, que tem transtorno de personalidade histriônica. Com ela, têm-se os melhores exemplos de como um diálogo pode ser unilateral. Na última parte, a metalinguagem do romance retrocede. A narrativa passa de novo para o olhar do narrador e vemos uma Ana mais serena e consciente do seu passado. Os colapsos no mundo perturbam mais do que as crises internas, e as questões giram em torno do equilíbrio entre a individualização e o todo social: “— Em meio aos conflitos de classes, dos choques entre as massas, o ser isolado é contundido por todos os lados. Até parece que na sociedade contemporânea não há lugar para o indivíduo, que ele não conta mais” (Idem, p. 129). Para o fechamento do livro, o elemento espelho é usado novamente:

Com gestos lentos e medidos, Ana começou a despir-se mas deteve-se a meio, recordando aquele dia não muito distante em que se desnudara diante do espelho, como agora. Só que então sentira estarrecimento e dor, enquanto que no momento encontrava- se num estado de inteiro desapego de si. E aconteceu que, como se retomasse a uma memória longínqua, de milênios e milênios através das mais variadas formas, réptil, homem, musgo, rocha, estrela, numa corrente encadeada a prolongar-se até ela, brotava- 33

lhe um sentido que se vinha aclarando, aclarando, enquanto ela esperava pacientemente a revelação. Esperava na passividade de uma árvore de raízes fortemente encravadas no solo, até que a benção da chuva ou a dádiva do orvalho viesse vivificá-la e ela pudesse frutificar. E subitamente seus lábios emitiram, como num sopro, a palavra amor. (LISPECTOR, 1975, pp. 139 e 140)

Nos anos 80, temos a publicação do último romance de Elisa Lispector, Corpo a Corpo (1983), pela Edições Antares. Esse é um livro singular, principalmente no que concerne à sua estruturação. Possui cento e nove capítulos, alguns minúsculos, com três, quatro linhas apenas. Esta divisão capitular se coaduna com o objetivo da obra, que é apresentar as reflexões diárias de uma mulher exilada. Após a morte do marido, e prestes a morrer, a protagonista medita sobre o relacionamento com o consorte, seu processo de morte e o distanciamento dos parentes. Para isso, isola-se em uma casa à beira-mar e faz anotações de suas lembranças. É, nesse sentido, a escrita de um tipo de diário, com tom confessional, voltado para assuntos pessoais pendentes e questões filosóficas sobre a vida e sua efemeridade, sobre a morte e a sua plenitude:

62 O homem das cavernas pintava o rosto dos mortos de vermelho, ou verde, porque tinha pavor da palidez da morte. Lembro a tua morte. A revolta que então senti contra o absurdo da morte. Talvez nem fosse revolta. Era pasmo. Terror. Custava acreditar. Com todas as forças do meu ser eu repudiei a morte. Foi tão grande o abismo que com a tua morte se abriu entre nós! Tu, repentinamente quieto, ausente. Eu, petrificada. (LISPECTOR, 1983, p. 73)

Com uma linguagem poética, enigmática, metafórica, o livro é um diálogo terno de despedida destinado ao marido já no além-túmulo. Seu ponto de vista é de primeira pessoa, recurso perfeito para o desenrolar da trama (mais uma vez mínima), que busca saturar cada palavra com as frustrações da personagem, uma pianista que fora casada com um escritor brilhante e que se queixa de ser pouco amada. Essas queixas se misturam a perguntas sobre Deus, Natureza, abstração dos sentidos e atemporalidade. É uma obra de natureza filosófica, que cita, entre outros autores, Søren Kierkegaard, para muitos, o primeiro filósofo existencialista e para quem a morte implica mais esperança do que a própria vida comporta. Corpo a corpo foi lido como um romance autoficcional, dessa vez, pela proximidade entre a data da morte de Clarice e do lançamento do livro, assim como por supostas semelhanças entre as personagens romanescas e as irmãs: Elisa era pianista como a protagonista, e Clarice, uma escritora brilhante, como o marido falecido da história. Segundo Benjamin Moser (2009), esse romance é “um doloroso ajuste de contas que a solitária Elisa escreveu após a morte da 34

irmã; uma mulher (Elisa) escreve comoventemente a um homem (Clarice) que ela amou e perdeu”. Com base na leitura das cartas das irmãs Lispector, Moser (Idem, p. 522) afirma que o gênio de Clarice melindrava Elisa. Ele aponta os seguintes trechos de Corpo a corpo para confirmar tal leitura:

Em tuas cartas, que agora recordo com tão viva lembrança, me amavas tanto, me adoravas, me engrandecias. Vias em mim sensibilidades de que eu mesma não suspeitava. E mais: induzias-me, quase me imploravas, para que eu fosse feliz, apesar da tua ausência. Através da distância me sublimavas. Pelas cartas, o nosso amor era um tão grande amor! ... talvez que, mesmo então, por minha natureza esquiva, eu não estivesse sabido me corresponder com expansivo amor ao amor que transbordava de tuas cartas, e por isso eu me penitencio. No entanto, eu te amava, e como! E sempre me pedias que te escrevesse mais, queria saber das minúcias do meu cotidiano viver... é mais uma razão para a princípio eu não ter entendido nem me conformado com o nosso gradual distanciamento mútuo quando retornaste da viagem, e em revide me haver retraído. (LISPECTOR, 1983)

O biógrafo de Clarice reduz a imagem de Elisa a uma irmã ressentida, quase invejosa, características que são desmentidas por quem lê qualquer material escrito por ou sobre a escritora31. Essa constante associação estabelecida entre a produção de Elisa e a figura de Clarice talvez seja uma tentativa de valorização da escritora mais esquecida; no entanto, a maneira mais eficaz de chamar a atenção para a ficção elisiana é estudar as suas especificidades. O romance Corpo a corpo pode ser analisado em seus recursos estéticos, mesmo se o considerarmos uma homenagem póstuma. A análise da função do monólogo nesse livro, por exemplo, traria leituras relevantes para a questão do ponto de vista, em razão de seu caráter autopunitivo: a narradora rememora a sua relação com o marido e os momentos finais de sua morte como forma de flagelação e purgação de seus erros. Após a morte de Elisa, em 1989, apenas um de seus romances foi republicado, também com o selo da José Olympio: No exílio. Percebemos que, sem o apoio necessário das editoras, algumas publicações de Elisa Lispector só foram possíveis por conta dos vínculos de amizade. A edição de No exílio de 1971, por exemplo, foi elaborada pela Editora EBRASA, juntamente com o Instituto Nacional do Livro, então dirigido por Maria Alice Barroso, amiga da escritora. Temos também o caso de Ronda solitária, da Editora A Noite, associada à Revista A noite, na qual Clarice foi jornalista. No entanto, o apoio desses órgãos e pessoas não compromete a

31 Maria Alice Barroso, amiga de Elisa Lispector, confessa que a escritora era solitária e pessimista, mas não por misantropia e sim por timidez e insegurança. Segundo ela, Elisa trazia consigo as marcas dolorosas de sua infância e isso a distanciava dos outros (MOSER, 2009). 35

qualidade da obra em questão32, tampouco o baixo número de edições significa que ela não é merecedora de estudo. Portanto, No exílio não é literariamente superior aos demais; suas várias edições correspondem à procura por parte do mercado brasileiro. Os demais livros de Elisa Lispector foram relegados ao esquecimento e, em último nível, ao desaparecimento. Segundo Fellipe Torres (2013), um dos motivos para essa situação é a escassez de novas edições. Porém, ele afirma que Elisa Lispector começa a sair da obscuridade com o lançamento do seu livro Retratos antigos (2012), obra póstuma, com texto e fotografias da escritora, organizado por Nádia Battella Gotlib. Retratos antigos é uma obra-álbum sobre a família Lispector, com notas e texto da própria Elisa. O livro por si só é uma raridade, uma vez que, por serem judeus praticantes, os patriarcas mais tradicionais da família (avós e bisavós) não permitiam a captação de imagens pessoais. Publicado pela editora da UFMG, o livro é facilmente encontrado em lojas físicas e sebos virtuais, o que lança nova luz à toda obra da autora. É uma obra de feitio bonito e delicado, constituída por várias fotografias da segunda metade do século XIX (cartões postais, de visitas, lembranças de família, etc.) e algumas do século XX (da geração mais recente no Brasil), notas explicativas das imagens e um prefácio de Gotlib. A parte mais significativa, porém, é o relato da autoria de Elisa, em que ela apresenta parte dessas imagens. Dividido em dez pequenos capítulos, o texto de Elisa é marcado pelo modo respeitoso com que a autora apresenta as figuras do álbum. Há um tom terno na rememoração dos momentos felizes de sua infância e no modo como se dirige ao público-alvo de sua explanação: as crianças da família. Essa explanação é uma tentativa de fazer com que os parentes russos, de roupas e posturas esquisitas, não se percam no anonimato, seja por conta das guerras, das perseguições, das mortes naturais ou simplesmente pelo fator tempo. No afã de preservar essa memória familiar, de transmitir informações aos descendentes e de alimentar a boa curiosidade dos sobrinhos, Elisa constrói esse texto memorialístico, não sem um quê literário. É, portanto, uma forma de manter a descendência a par da história, resconstruindo pessoas/personagens pelas mãos de alguém que escreve literatura. Essas memórias são narradas em duas perspectivas, que se mesclam ao longo dos capítulos: a da menina Elisa, judia, russa, neta de fazendeiros e comerciantes; e a da Elisa adulta, judia, brasileira, cuja família fora destroçada pela intolerância religiosa. Elisa Lispector sugestiona as duas existências ao reconhecer, ainda no primeiro capítulo, que gostaria de

32 Sabe-se que, na questão da editoração em geral, prevalece a supremacia das relações de comércio, em detrimento da qualidade do produto. Este não é o caso da autora em estudo. 36

escrever com a leveza, a pureza, o bucolismo e o surrealismo dos quadros de Marc Chagall, mas que era de Lasar Segall, artista judeu que pintou as agruras da população judaica (pogroms, processos migratórios, exílios e navios de imigrantes), que a sua perspectiva mais se aproximava: “ao contemplar as figuras dos ‘retratos antigos’ e relembrar os tempos conturbados em que essas pessoas viveram, as vocações irrealizadas, os destinos descumpridos, é de Segall que mais me aproximo.” (LISPECTOR, 2012, p. 85). Apesar do que Elisa assegura, a narrativa de Retratos antigos é cheia de imagens ternas e bucólicas, como as que ela visualiza em Chagall. Como diz Gotlib (p. 62) no prefácio da obra, há “bolsões de felicidade” que permaneceram na Elisa adulta, narrados com fortes tons de nostalgia. Do recanto da memória, lembranças de uma infância amena são apresentadas, com festas e rituais religiosos, comidas saborosas e passeios. Em parte, essa época feliz de Elisa funciona como um contraponto, um intensificador da tragédia que atingiu os seus familiares judeus. As brincadeiras entre os primos, as temporadas na fazenda dos avós, os banhos de rio no verão, a algazarra infantil quando os trens passam pela propriedade, a produção de geléias de frutas exóticas fazem parte disso. Um período de abundância em muitos sentidos e níveis, retratados como um sonho distante e interrompido, rememorado pela importância afetiva:

Olho o retrato de minha mãe e a revejo nas suas lidas diárias, como quando punha a mesa para o chá, a toalha de linho puro de uma brancura impecável, as xícaras de fina porcelana da China, a prataria, a fruteira sustentando três pratos superpostos de tamanhos diferentes e que, quando não contendo frutas variadas, vinham repletos de bolos de mel, biscoitos de chocolate, de fécula, strudel de maçãs e nozes, as bandejas com tortas ou blintzes (espécie de panquecas, geralmente de queijo). Lembro a mãe atarefada com os preparativos para a comemoração do Sábado. (LISPECTOR, 2012, pp. 105 e 106)

Em passagens como essa, prevalece a visão da criança (nada mais interessante para uma do que bandejas repletas de doces, bolos e panquecas), mas se faz presente também o encantamento da Elisa adulta ante o trabalho contínuo e delicado da mãe, nessa época, completamente saudável na execução tanto das obrigações domésticas quanto das religiosas, que no judaísmo se complementam. Além da dupla perspectiva, há outras marcas do fazer literário nesse memorial. A divisão capitular (capítulo introdutório e um para cada familiar elencado) e a construção de diálogos com as crianças, como se elas estivessem indagando sobre os parentes retratados, são algumas delas:

— Quem é este homem de barba grande? pergunta uma sobrinha-neta de olhos dilatados pela curiosidade. — É seu trisavô, lhe digo. E, com encantador sorriso de espanto, ela pede que 37

conte algo sobre esse vovô estranho. Vira a página, e... — Que engraçada esta asa de pássaro no chapéu da moça. — A asa de pássaro é o enfeite do chapéu de sua bisavó, lhe digo. (LISPECTOR, 2012, p. 81)

Elisa cria cenas e atualiza a temporalidade da relação perguntas infantis/escrita do texto, além disso, diminui a distância entre as vítimas da abrupta violência e o restante da família. Os avôs e avós retornam para construir um imaginário de devoção e liberdade: um religioso excepcional, intérprete das leis judaicas; outro, muito próximo dos gói (não judeus) e com sucessivos casamentos. Uma das avós tem o nome de Heived, ou Eva, a primeira mulher da criação, uma simbologia que a autora evidencia. A mãe é apresentada com ternura, envolta numa atmosfera caseira, saudável, humana. E o pai, como sempre, tendo a dignidade como aspecto marcante. Elisa pinta todos, baseada em suas lembranças e em informações que recebeu de parentes. Uma tia a ajudou com nomes e datas por um tempo, mas demonstrou cansaço ao lidar com álbum tão cheio de “fantasmas”. No final do primeiro capítulo, a escritora revela:

E por muitos dias, por semanas a fio, os apontamentos permaneceram guardados, sem que eu ousasse tocar-lhes. Mas eu já havia desencadeado uma força muito grande, e era difícil dar as costas ao mundo a um tempo terrífico e mágico no qual eu havia penetrado. (LISPECTOR, 2012, p. 83)

A relevância desse relato para quem estuda a história e a literatura de Elisa Lispector está no acesso à visão de mundo da autora. Não que Elisa já não houvesse posto isso em seus livros, em especial, em No exílio, no qual aborda sua família e o processo migratório. Contudo, aqui a opacidade literária é menor quando comparada à da obra autobiográfica. Outro ponto é que o romance de 1948 foca na parte mais dolorosa e sofrida, enquanto aqui há uma fatia de felicidade quase mítica. Sai desse imaginário a salvação para muitas das protagonistas de Elisa. Há muitas que adoecem e se recuperam em um ambiente natural, rural como a fazenda de seus avós, pois a natureza em sua ficção possui um poder restaurador e integralizador. A protagonista de Corpo a corpo renova-se no contato com o mar; Marta, nas montanhas, e Constância sente- se em paz nos arredores bucólicos de sua pequena cidade. Além disso, a ausência de cuidados maternos, família e história (tema de Retratos antigos) constitui significativa parcela da infelicidade de suas personagens. Gotlib (2012, p. 57) enfatiza o modo respeitoso com que Elisa narra suas memórias, numa “releitura da história que evoca valores há muito creditados nas marcas dos hábitos e costumes desse grupo de trabalhadores rurais e de comerciantes”. A narração, dessa vez sem a presença de um narrador ficcional, é elaborada em primeira pessoa, mas o protagonismo é 38

familiar (embora passe por seu ponto de vista). Elisa é um instrumento de retomada de valores e práticas que desaparecem com o distender dos anos, com as mudanças geográficas e com o aparecimento das gerações futuras, além, óbvio, das imigrações e perseguições religiosas. Porém, reiteramos que o relato não se limita às experiências felizes, ainda que se destine às crianças da família: “O leitor terá, diante de si, o registro condoído intenso e quase desesperado de uma narradora que conta, de dentro, a experiência dolorosa da perseguição, que acabou ocasionando a migração dos Lispector para o Brasil” (LISPECTOR, 2012, p. 62). Além da violência mais radical e visível, Elisa fala da segregação de seu povo, da interdição quanto aos estudos convencionais, ao conhecimento secular, do direito à propriedade privada, da impossibilidade de escolha profissional, interdições de vários tipos e ordem. Direitos subtraídos de seu pai Pinkhas, que sempre sonhara em ter uma formação acadêmica. Segundo Gotlib, Retratos antigos mostra uma coerência com a produção anterior de Elisa centrada na família e na tradição da cultura judaica. A semelhança entre os dados narrados em seu texto póstumo com os presentes em No exílio reafirmam que a história que o romance conta é sem dúvida dos Lispector. Gotlib chama a atenção para o fato de que Elisa não se vale de “máscaras romanescas” que tentam, ainda que em vão, embaralhar as cartas da relação do ficcional com a verdade documental. Nem recorre a uma outra pessoa, que não a primeira, para narrar mais objetivamente sua história. Elisa propõe, segundo a pesquisadora, que abramos o álbum e vejamos seus antepassados “deixando-se levar pelo forte poder de evocação da imagem” (LISPECTOR, 2012, p. 67). Porém, outra relação pode ser estabelecida entre o relato e a ficção no que diz respeito à motivação de Elisa para a literatura. O último capítulo de Retratos antigos trata da existência difícil do pai Lispector:

X Contemplo o último retrato que papai tirou — apenas duas semanas antes de morrer. Seu olhar é profundamente triste. Dois sulcos ao longo das faces sublinham a expressão contrita de seus lábios cerrados, como inúmeras vezes cerrou-se o seu coração no decorrer dos anos de mágoas, de lutas improfícuas e inglórias. (LISPECTOR, 2012, p. 123)

A literatura de Elisa expressa experiências pessoais, sem dúvida, mas é também uma forma de resgatar figuras traídas como a de seu pai. Um homem religioso, ativista, inteligente, todavia, reduzido em suas possibilidades pelas conjunturas do mundo; movido arbitrariamente pelas circunstâncias, como uma folha ao vento, Pinkhas chegara aos 50 anos sem ter algo de seu. “Escreva sobre um homem que se perdeu, um homem que perdeu o caminho”. Deste 39

conselho de Pinkhas nascem as primeiras notas para o romance Além da fronteira. O ciclo, então, se fecha: a última cena de Retratos antigos dá origem aos 40 anos de produção de Elisa. De certa forma, cada personagem, feminina ou masculina, realiza, em literatura, o desejo de seu pai: “O pai morreu em virtude de um choque operatório, sem saber que eu me empenhava em cumprir o que ele me havia pedido, de transpor para o papel o sonho que a vida lhe negara realizar” (LISPECTOR, 2012, p. 126).

1.4 A contística de Elisa, O tigre de Bengala e o corpus de estudo

O primeiro livro de contos de Elisa Lispector, Sangue no sol, foi publicado pela Editora EBRASA em 1970 e proporcionou à escritora um outro tipo de projeção literária: construindo narrativas curtas, Elisa figura ao lado de contistas brasileiros canônicos em antologias. Além disso, a escritora passa a ser avaliada enquanto representante de certas tendências do conto no Brasil. Obras das décadas de 60 e 70 valem-se de textos de Elisa Lispector (trechos de romance, mas principalmente contos), compreendidos como exemplos da literatura moderna brasileira de cunho introspectivo, filosófico e existencial. Numa coletânea intitulada 15 contam histórias (REIS; PÊCEGO, 1962) e que contou com narrativas de Orígenes Lessa, Samuel Rawet, Otto Lara Rezende e Sergio Porto, foi incluso o texto À fronteira do mormaço (LISPECTOR, 1970), conto que não havia sido publicado em livro próprio. Elisa Lispector também participou das seguintes antologias: Antologia Escolar de escritores brasileiros de hoje (ficção), organizado por Renard Perez em 1970 e no qual figurou um trecho de O muro de pedras; Literatura brasiliana33: Profilo Storico, organizada por Giuseppe Carlo Rossi, em 1971, e Apresentação da literatura brasileira, organizado por Oliveiros Litrento em 1974 (este teve sua 2ª edição em 1978) e que anexou o texto Sangue no sol como um conto típico da corrente “mansfieldiana” no Brasil. Elisa também publicou um de seus contos na antologia Elas por elas34 (1978), lançada na V Bienal do Livro, em São Paulo, e que contou com histórias curtas de Myriam Campelo, Hilda Hilst, Nélida Piñon, Marina Colasanti, entre outras.

33 Algumas dessas antologias são mais raras. Publicada por uma editora italiana (Edizioni Cymba, Napoli), a obra de Rossi ainda não foi localizada. 34 Publicada pela Alfa-Ômega, na época uma editora recém-criada, a obra não está mais disponível. Livro homônimo e com proposta semelhante foi lançado pela Nova Fronteira, em 2016; infelizmente, o nome de Elisa não figura entre as contistas. 40

Essas publicações atestam que, embora Elisa tenha recebido prêmios e elogios da crítica especializada com o romance O Muro de Pedras, os contos proporcionaram-lhe uma outra visibilidade, principalmente no que se refere ao processo de comparação com outros escritores e de categorização, através da análise do tipo de conto e do estilo realizado por ela. Além disso, a contística tornou Elisa uma participante do boom da década de 70, notável pela publicação de excelentes obras do gênero, tais como: Antes do baile verde e Seminário dos ratos, de Lygia Fagundes Telles; Tarde da noite, de Luiz Vilela; Feliz ano novo e O cobrador, de Rubem Fonseca; Felicidade clandestina e A via crucis do corpo, de Clarice Lispector; O pirotécnico Zacarias, de Murilo Rubião, apenas para citar algumas. Em 1977, Elisa lança então novo livro de contos. Com um número menor de textos (apenas treze; Sangue no sol possui dezoito), Inventário mantém as características basilares de sua contística: o protagonismo feminino é quase total e a exposição da mente das personagens continua a direcionar a narrativa, sendo responsável por contar a história. A presença do marido mesquinho e mentiroso (“A despedida”), o uso de metáforas zoomórficas em relação à figura feminina (“A secreta beleza”, “O frágil equilíbrio”), a recorrência do onirismo, de realidades sensoriais sonhadas (“O furto”) estão presentes nesses textos. Quanto aos espaços, o apartamento de solteira, quartos de hotéis e de pensão, tão assíduos nos romances, reaparecem nos contos “O silêncio” e “Réquiem” como símbolos da solidão feminina, um dos principais temas desses contos, embora não seja o eixo central de muitos deles. Em Inventário, há cinco contos que figuram em O tigre de Bengala, de 1985. Agraciado com o prêmio Luísa Cláudia de Sousa (outorgado pelo Pen Clube em 1986), O tigre de Bengala recebeu o selo da José Olympio e constitui a última obra publicada em vida. É uma obra singular porque tem o perfil de uma coletânea, reunindo textos de Sangue no sol e Inventário, com o acréscimo de dez contos inéditos. Escolhidas pela própria escritora, acreditamos que as narrativas representam uma síntese de seu estilo e de seus temas. Justamente por isso, O tigre de Bengala é o corpus desta pesquisa. Elisa Lispector escreveu quarenta e dois contos ao longo de sua carreira, dos quais vinte e dois estão em O tigre de Bengala. Tendo em vista o trabalho de seleção, Elisa pôde dar a essa última antologia uma unidade: praticamente todas as histórias centram-se em personagens femininas (apenas 3 não têm essa característica). Há nos contos de Elisa mulheres de todas as idades: adolescentes, jovens, de meia-idade e senhoras. Casadas, solteiras, recém-divorciadas e viúvas. Há atrizes, escritoras, tradutoras, operárias, jornalistas, proprietárias e donas de casa. Algumas narram seus próprios dramas, outras têm suas estórias contadas por narradores 41

oniscientes, e há também as que são tema de um Eu testemunha, uma personagem que se torna espectadora e narradora no conto (FRIEDMAN, 2002). No geral, os narradores observadores são muito subjetivos e demonstram empatia em relação às heroínas, tornando as narrativas de terceira pessoa tão pessoais e intimistas quanto as de primeira. Em razão do protagonismo feminino em O tigre de Bengala, a leitura da contística de Elisa Lispector deve considerar o modo como a narração constrói e representa a perspectiva das personagens, investigando a relação conflituosa com o mundo, com o outro e consigo. Os contos abordam seus dilemas sociais e/ou psicológicos de uma forma sensível e artística. Dos vinte e dois contos, apenas três não tratam de uma personagem feminina diretamente: “A fábula se faz de tempo”, “A rosa” e “A morte do herói.” Em “A fábula se faz de tempo”, o narrador onisciente cede espaço às reflexões do protagonista, que tenta compreender as razões que levaram Evangelina, sua namorada, ao suicídio. Apesar de retomar a cosmovisão da namorada, a perspectiva do conto é predominantemente masculina, inclusive, deixando entrever uma visão depreciativa da figura feminina, comparada de maneira negativa à cadela e ao peixe. O conto “A morte do herói” tematiza a derrocada de um líder. Antes admirado por todos, o protagonista é exilado em uma cabana por seus companheiros políticos. Temendo que o homem seja novamente endeusado, os partidários contratam um desconhecido como cuidador, alguém que não conhecesse a dimensão da sua importância. Com a rotina, a relação entre herói e o cuidador entra em crise. A solidão, o confinamento, a aspereza no tratamento que ambos demonstram tornam a relação insuportável. Após uma discussão motivada pela quantidade de sal posta na sopa, há uma briga com final trágico e vítima não revelada. Nesse conto, predomina a perspectiva de um narrador observador onisciente e a narrativa acompanha esse processo que se inicia com a perda do prestígio político, passa pelo isolamento social e desemboca numa morte violenta35. O conto “A rosa” trata com empatia e sutileza de uma personagem com características especiais. Um homem encontra-se em um jantar social, mas os demais convidados evitam a sua companhia. Em dado momento, vem a sua memória a imagem de uma rosa, vermelha como os morangos da mesa. Essa imagem desencadeia uma reflexão neste indivíduo a partir da lembrança de uma conversa de sua mãe e de seu médico, que resolvem operar-lhe a cabeça. Nesta reflexão, ele questiona o prestígio das coisas, a importância excessiva dada à normalidade

35 O prato de sopa insatisfatório e o assassinato no desfecho lembram o conto “O enfermeiro”, de Machado de Assis. Um grande diferencial entre ambos está na perspectiva narrativa: no conto de Elisa, um sentimento de desespero e de profunda tristeza pelo abandono perpassa a história por meio da consciência do velho líder, tom bem diverso daquele instaurado pelo mea culpa do narrador machadiano. 42

e o modo como a sociedade ignora o belo no diferente. Com um narrador onisciente, mas que cede lugar ao ponto de vista dessa personagem singular, o conto mostra as impressões sensoriais que a beleza da rosa desencadeia na mente do protagonista, ainda que tais leituras não sejam acessadas, tampouco valorizadas pelos demais. Os contos com protagonistas femininas podem ser agrupados em razão da movimentação das personagens em cena. Primeiro, há os contos em que elas passeiam à medida em que o conto se desenvolve. Em Elisa, caminhar faz parte do processo de esclarecimento pessoal e da alteridade. Fazê-lo é acima de tudo uma prática associada à efetivação da solidão, um sentimento que precisa ser exercido com atitudes práticas. Por isso, alguns contos apresentam o monólogo interior sendo efetuado durante passeios em lugares externos. São assim os contos “Mulher passeando” e “A espera”. No primeiro, uma mulher divaga pelas ruas quando é surpreendida pela visão de um antigo namorado. Esse vislumbre desencadeia um processo reflexivo sobre o fim do relacionamento. O conto trabalha com a antítese interior/exterior, pois, enquanto na consciência fervilham pensamentos sobre amor e perda, para os transeuntes ela é apenas uma mulher que caminha, daí o título da história. No conto “A espera”, uma senhora perambula pela cidade. Toma sorvete, entra em um cinema, volta para casa. Durante suas ações, medita sobre a inexorabilidade do tempo, sobre a impossibilidade de superar os obstáculos estabelecidos pelo destino. Enquanto se movimenta no apartamento, tem então uma epifania: lembra-se de uma notícia de jornal que anunciava o descobrimento de uma estrela mais luminosa que o sol. Esse fato muda a sua perspectiva e a certeza de que nem tudo está previamente assentado no universo restitui sua esperança. No conto “A trágica decisão” não há introspecção. Por isso, e nesse sentido, ele é único. Com um narrador testemunha, a narrativa acompanha a história de uma senhora abandonada pelo marido e pelos filhos. O narrador demonstra compaixão para com a mulher que, para impor-se socialmente, apresenta-se nos restaurantes como uma antiga embaixatriz da Espanha. Solitária, doente e desvalida, a protagonista comete suicídio no mar. Este é um conto especial no sentido de que exemplifica um tipo de metáfora recorrente na ficção de Elisa: a zoomorfização das personagens femininas, já que o narrador associa a protagonista a uma tartaruga, de dias incontáveis, de ritmo lento, abandonada pela prole, morta no mar. O conto “O relógio” tem como protagonista uma mulher que se submeteu ao convívio de parentes odiosos por amor ao marido. O casal mora com os pais, as irmãs e cunhados do companheiro em um casarão nos subúrbios de um centro urbano. Com a viuvez, ela passa a ansiar por um espaço não compartilhado; aluga, às surdinas, um apartamento e se prepara para 43

a mudança, objetivando levar consigo apenas objetos pessoais. No momento da despedida, ela visualiza um relógio exposto na sala, antigo presente do esposo. Reconhecendo na peça um legado afetivo, agarra-o e parte deixando todos estupefatos. Na nova casa, ela pousa o objeto no centro da sala e sente-se, pela primeira vez, como se tivesse um lar. “O relógio” aborda questões como transformação e desejo de enfrentamento, frutos de meditação por parte da figura feminina, e há uma relação entre a angústia/solidão e o lugar habitado pela personagem. O sobrado, o quintal, os limites do bairro são vistos e descritos a partir de sua perspectiva desiludida. Nesse conto, a mudança é paulatina, processual, num processo similar, porém inverso, ao que sofrera a personagem. Como a desumanização e o isolamento no ambiente familiar haviam atingido níveis profundos, torna-se necessário um longo período para livrar-se deles. A protagonista se modifica no decorrer da narrativa, trabalha para se tornar independente, impondo sua transformação ao final. No conto, seu trabalho de fuga é comparado ao da formiga, por sua atividade diária, sua dedicação e minúcia:

Pois uma manhã acordou sentindo-se estranha. Saltou da cama, abriu a janela que dava para o jardim, e em vez de pensar na morte, pensou na vida. [...] Pela primeira vez após tantos meses, sentia que estava viva, e lhe deu vontade de tomar rumo próprio e de ela mesma conduzir seu destino. Pelos dias que se seguiram, começou a procurar uma morada, achou, e, com a diligência de uma formiga, iniciou a compra e o transporte do essencial para poder nomear “o meu chão, o meu leito, o meu sono, o meu sonho. O meu silêncio”. (LISPECTOR, 1985, p. 33)

Outro conto deste livro que chama a atenção pela zoomorfização é “Amor”. Seu enredo centra-se numa outra personagem feminina sem nome. Um casal muda-se para uma pequena fazenda seguindo o desejo da mulher, que viu nesse distanciamento uma forma de aproximar- se do cônjuge e preservá-lo do mundo. Porém, a esposa acaba perdendo-o, pois ele foge sem explicações. Com o predomínio de um ponto de vista externo, de um observador, “Amor” procura estabelecer um paradigma de incompatibilidade entre marido e mulher:

Ele, alto e musculoso, olhos pequeninos e inquietos brilhando num rosto estreito e comprido, com o seu ar de terna disponibilidade, fazia lembrar um cavalo que jamais se submeteu ao jugo dos arreios. Ela, miúda e trigueira, o rosto afilado como um bico de pássaro, tão ativa e diligente que, observando-lhe os braços e o peito afundado, se ficava a cogitar de onde provinha tanta energia. (LISPECTOR, 1985, p. 18)

Como se assistisse ao drama, o narrador “traça os perfis”, marcados linguisticamente pelos ele e ela que introduzem os parágrafos. Responsável pela narrativa, ele constrói esse paralelo entre o par, evidenciando as personalidades singulares. Nesse quesito, observa-se a zoomorfização do casal. Enquanto ele é o cavalo robusto e independente, ela se assemelha ao 44

passarinho, não apenas por sua fragilidade, mas por tomar para si a responsabilidade de conceber o lar, metaforicamente simbolizada pela construção do ninho/casa. Esse é um dos poucos contos em que a protagonista começa em estado de felicidade e termina em depressivo abandono. Em alguns outros em que o casamento é tema, as protagonistas se reerguem após uniões insatisfatórias e opressivas. É o caso do “A terra é azul”, no qual a esposa desiste do matrimônio e parte em busca de um futuro desconhecido. Através de digressões, o conto intercala cenas do passado e do presente. Na cena inicial, a protagonista sobe as escadas de um avião, em seguida, estamos diante da última discussão do casal. As agressões são intercaladas pelas ações das pessoas do avião, juntamente com suas indagações sobre o futuro. Uma cena antiga reaparece no momento em que a aeromoça lhe oferece salgadinhos: a imagem de seu psiquiatra a perguntar-lhe sobre a felicidade. Por fim, o piloto anuncia a decolagem; a visão do alto constitui uma nova perspectiva e, diante da grandiosidade do mundo, a protagonista promete a si mesma nunca mais sofrer. Há cena semelhante em O dia mais longo de Thereza: do avião, Thereza vê um grupo de beduínos em busca de água; perto dali, uma fonte se apresenta aos olhos da protagonista, porém, para os da caravana, o manancial estava a quilômetros de distância. No romance, a imagem tematiza a relatividade do ponto de vista e de como o (in)alcançável se mostra para o homem. Em “A terra é azul”, o distanciamento operado pelo voo leva a protagonista a suavizar a crise interna, concebendo o passado como algo de possível superação. Já o conto “A partida” abre-se com a última briga do casal, cena descrita como uma luta: “Os dois cansados, esvaziados após acalorada discussão.” (LISPECTOR, 1985, p. 12). Após o episódio, o marido adúltero realiza uma viagem e a protagonista aproveita o momento para fugir. Ela coloca peças de roupa na mala, angaria algum dinheiro esquecido nas bolsas e pensa:

— Agora passo a chave na porta, pego um táxi que me leve à estação rodoviária, tomarei o primeiro ônibus no qual haja um lugar vago, a paisagem verde, depois de atravessar o casario cinzento dos subúrbios, me lavará os olhos, minha mente se dilatará ao desdobramento de montanhas e vales, [...] terei auroras, meios-dias, e crepúsculos tão vastos e profundos, com tamanho silêncio como jamais os tive, como... como se eu jamais tivesse nascido. Se eu não tivesse nascido. (LISPECTOR, 1985, p. 114)

O conto se encerra e não há certeza se o plano de dias melhores foi efetuado ou apenas imaginado. O desejo de “não ter nascido” retoma o desânimo da personagem frente à situação. Um misto de esperança e abatimento que se revela abruptamente na última linha. 45

Nestes três contos (“Amor”, “A terra é azul”, “A partida”), o casamento é um tema fundamental. O foco narrativo muda à medida que os textos buscam representações singulares. O ponto de vista mais distanciado em “Amor” proporciona uma visão emparelhada do casal, enquanto a intercalação de cenas em “A terra é azul” (avião/casa/consultório) mimetiza o dilema da personagem que parte e procura uma validação para o seu ato de desistência. Por fim, em “A partida”, o final em aberto sugere que a felicidade da protagonista não está na fuga, mas na liberdade proporcionada pela ausência do marido: “Ser livre para acordar e deitar à hora em que bem entendesse, almoçar fora de casa, ou de todo deixar de almoçar, caminhar nas ruas sem compromisso de hora certa para chegar.” (Idem, p. 114). Nesse caso, o título do texto remete à ausência dele como elemento libertador para a esposa. Os contos narrados por suas protagonistas são poucos em O tigre de Bengala. Apenas “O círculo da solidão”, “Confidências” e “Uma outra temporada no inferno” são elaborados com esse foco narrativo. No primeiro conto, a escolha por esta perspectiva se dá como um recurso irônico. A protagonista está hospedada em um hotel e é convidada por uma das hóspedes a participar de um “grupo de senhoras solitárias”, uma espécie de clube do livro para velhas solteiras. Sentindo-se desconfortável com a ideia, a narradora passa a evitar a presença da mulher que lhe fizera o convite. O conto termina com a reflexão da narradora quanto aos reais motivos dessa falta de identificação. Dois são aventados pela narradora, ambos negativos: “no íntimo em dúvida sobre se ainda não me considerava bastante velha para associar-me a um grupo de senhoras idosas e solitárias, ou se, com o fazê-lo, estaria tomando consciência de minha própria solidão.” (LISPECTOR, 1985, p. 81). Explorando a pluralidade de sentidos da palavra círculo, o conto revela as duas faces contraditórias desse agrupamento. Por um lado, poderia ampliar o círculo de amizade da narradora, embora as características gerais das integrantes sinalizem o oposto. Por outro, na ficção de Elisa, a solidão é sempre representada por esse desenho geométrico (HILL, 1989), e, nesse sentido, o círculo é entendido como uma forma prisional, no qual não há chances de comunicabilidade com o outro. Ironicamente, a narração em primeira pessoa no conto retoma o estilo de relatos orais, típicos em grupos de apoio e, indiretamente, a protagonista põe o leitor como ouvinte de seu próprio círculo da solidão. Como se vê, há identificação e não identificação entre as narradoras e as personagens femininas nos contos. Em “Confidências”, a narradora protagonista está doente e passa a convalescência na casa de fazenda de Lygia. Apesar da amizade, ambas são muito distintas e isso cria uma barreira invisível de comunicação. Lygia é a típica mulher casada, mãe, que vê 46

no casamento, por pior que ele seja, a única condição para a mulher ser feliz: “− Como Regina, que desfez o casamento, também você está sem futuro.” (LISPECTOR, 1985, p. 11). O conto é constituído quase que completamente pelo diálogo entre ambas, mas, entre as falas, expõe-se o modo como a narradora interpreta as palavras da amiga e os seus subentendidos. E, embora com uma visão de mundo tradicional para o universo feminino, a fragilidade de Lygia ante a descoberta de sua incompletude a aproxima da narradora. Nas cenas finais, a narradora adormece e sonha com a felicidade; na manhã seguinte, acorda com uma sensação de gratidão até que uma golfada de sangue tolhe a sua alegria, lembrando-lhe da fragilidade de seus pulmões: “− Ah, como temos a vida por um fio.” (Idem, p. 15). Em Elisa, a fronteira entre a extrema felicidade e a tragédia é mínima36. A narradora de “Confidências” é escritora e elabora sua narrativa de modo a fazer o leitor esquecer-se de sua enfermidade, como ela também pretende. O conto tem um cenário bucólico que contribui para a dura realidade de seu desfecho, uma vez que não há cura possível, apenas a espera da morte. Lygia e a narradora são mulheres com medos não revelados. Uma teme o fim certo; a outra teme descobrir-se em sua limitação: “Eu nunca olho o mar. [...] Porque se olhasse o mar, perderia o conhecimento que tinha, e passaria a não mais saber.” Semelhante declaração é explicada pela narradora: “No fundo, temia cair no abismo de si” (LISPECTOR, 1985, p. 13). “Uma outra temporada no inferno” é também narrado em primeira pessoa. Com um traço onírico-fantasmagórico, o conto trata de uma personagem vivendo em uma cidade de pessoas e lugares não reconhecíveis: “Os parques que tinha assinalado no mapa da cidade apanhado na portaria do hotel, nunca os localizava, como se as ruas fossem se encompridando, obedecendo a um secreto ditame de mos distanciar sempre.” (Idem, p. 147). Como em um pesadelo cíclico, todos os dias ela sai do hotel e perambula por ruas e restaurantes sem avistar uma explicação. A cidade é labiríntica, ameaçadora, enregelada, as pessoas são letárgicas e há uma atmosfera de desterro e exílio. Uma entidade não conhecida a faz mudar de hotel a cada dois dias, intensificando a desorientação. A libertação vem durante a noite: a protagonista escreve durante um sonho um relato mágico que explicaria tudo. No dia seguinte, ao sair do hotel, ela encontra uma mulher que fala seu idioma e confirma a possibilidade de partida: “Um dia depois, ainda um pouco trêmula e expectante, de novo encontrei-me no imenso vão do

36 Possivelmente, em razão dessa linha tênue entre felicidade e tristeza, alguns considerem a obra de Elisa semelhante à de Katherine Mansfield, tendo como referência o conto “Bliss”, “Êxtase” em português (In: 15 contos escolhidos de Katherine Mansfield. Seleção Flora Pinheiro; tradução Mônica Maia. Rio de Janeiro: Record, 2016). 47

aeroporto, aguardando a chamada para o embarque, na esperança de pôr fim a um enigma.” (LISPECTOR, 1985, p. 152). “Uma outra temporada no inferno”, um dos contos mais longos do livro, apresenta uma discussão recorrente em Elisa: a perda de noção de tempo e espaço como um castigo psicológico. Típica das regiões infernais, a tortura se efetua através da falta de contato e comunicação humana (na história, os locais falam uma língua desconhecida). O conto é o relato da experiência dessa mulher e de sua punição, até certo ponto, auto-infligida. O tempo em “Uma outra temporada no inferno” não é marcado cronologicamente, mas psicologicamente, a partir das lembranças subjetivamente narradas. Aliás, na contística, as fissuras na temporalidade são constantes em razão dos monólogos interiores e do fato de o passado e o presente não constituírem categorias estanques. Elas possuem vários níveis e podem, inclusive, aparentar sincronia, a exemplo do conto “Mínima história de (um) amor (naufragado)”, cujo enredo engloba um período (uma história), por meio de um texto de uma página (mínimo), cuja temporalidade se atualiza a cada parágrafo:

Ele era escritor famoso. Não quando se conheceram. Então era um estudante de ideias um tanto avançadas, a assediá-la persistente no afã de amor. Ela se esquivando como uma lebre assustada. [...] O que importava era o agora. Ela, solitária e já avançada em anos. Ele, de cabeça meio grisalha, mas ainda com aquele mesmo rosto jovem e a compleição de atleta, cansado, e tendo um filho adolescente aprisionado a uma cadeira de rodas. (LISPECTOR, 1985, p. 74)

O conto, cuja primeira sentença retoma uma forma similar dos tradicionais contos de fadas (“Ele era escritor famoso.”), mergulha num passado mais distante, quando da época de aproximação do casal, em que o estudante (futuro escritor) “persegue” romanticamente a mulher. Com igual velocidade, o segundo parágrafo fixa-se num “agora”, o presente, em que ela é solitária, e o escritor, famoso e velho, está enredado nas circunstâncias de uma doença familiar. Novos fatos são acrescidos, mas cada um é atualizado, numa interessante ideia de simultaneidade. E esse movimento se perpetua até o final do conto, cujo desfecho revela que o narrador está sonhando. Jogos temporais como esses funcionam na ficção de Elisa Lispector porque a fábula do conto vem à tona por meio da rememoração ou do caráter onírico, ou seja, por causa da exposição da consciência ou da subconsciência das personagens, o que permite o ir e vir do passado para o presente assim como projeções visuais. Imagens aparentemente descartáveis são botões de acionamento para experiências idealizadas. 48

Dentro dessa questão da temporalidade, o conto “Exorcizando lembranças”37 abarca vários períodos da protagonista. Na cena inicial, a personagem está em uma sala de cirurgia. Em seguida, os dias de convalescência desencadeiam lembranças relativas à doença da sua mãe, que também esteve presa à cama. Na infância, a protagonista cuidara da mãe inválida e isso lhe traz memórias sofridas, pois nem sempre foi uma filha paciente. A narrativa avança e mais uma vez a personagem está se recuperando da cirurgia, pensa na mãe e agora o salto é feito para a adolescência, fase em que o senso de responsabilidade supera as ansiedades de menina. Novamente, voltamos para o presente, no hospital: “Agora que vive confinada no quarto, amalgamada a uma cadeira de encosto duro, [...] pensa como são longos os dias vazios, e que tamanho tem uma noite não dormida” (Idem, p. 61). Essas analepses e prolepses nos permitem conhecer as várias perspectivas da protagonista: da menina, que se sente roubada de sua infância; da mulher, que sente culpa por não ter amparado a mãe irrestritamente. A situação atual da protagonista é vista por ela como um castigo, uma espécie de carma por ela não ter dado amor total e incondicional à mãe. Por isso, o tema principal do conto é este: os erros não quedam no passado; eles são reiterados em circunstâncias similares, causando o inevitável sofrimento do homem. O destino não permite uma segunda oportunidade. O corpus desta pesquisa é composto pelos contos abaixo, escolhidos a partir de alguns crítérios analíticos. Primeiro, são contos cuja ação física das personagens é mínima. Nas cenas principais, as mulheres estão sentadas, deitadas ou num ambiente doméstico limitado, ainda que se movimentem por ele. A fábula das histórias é conhecida quase exclusivamente a partir da consciência da personagem (“Sangue no sol”, “O furto” e “A agonia de viver”) ou da rememoração oralizada do eventos (“Por puro desespero”). Embora haja uma predominânia da onisciência seletiva, há também traços do narrador observador. Este ponto de vista é necessário para a visualização da protagonista no espaço. Ainda que fugindo da categoria onisciência seletiva, o conto “Por puro desespero” (modo dramático) foi escolhido por tematizar o monólogo interior como processo epifânico. Nesse sentido, é um conto de caráter metalinguístico em relação ao tema desta pesquisa. Nos contos “Sangue no sol”, “O furto” e “A agonia de viver”, o monólogo interior é o método formal escolhido para a revelação da exposição do pensamento. E no quarto conto é o tema central. Em nenhum deles, o eixo temático é a solidão, apesar de sua presença constante como tema

37 De acordo com os estudos sobre a escrita de si mesmo, esse conto seria um exemplo de autoficção (Cf. RODRIGUES, Rosângela. Mulheres e amores em ficções de autoria feminina. Campina Grande: EDUFCG, 2016). 49

secundário. Conto homônimo da obra de 1970, “Sangue no sol” é uma narrativa singular: o foco narrativo, apesar de feito por narrador observador, tem como ponto de vista as percepções da personagem no que diz respeito à visão, ao olfato, ao tato e à audição. Na história, as cores e as sensações táteis estão associadas às emoções da protagonista e a apreensão do som relaciona- se com o clímax da narrativa. O conto possui duas cenas básicas: Suzana passeia pela sala de uma casa de fazenda, enquanto pensa nos últimos anos de seu matrimônio. Considerando-se feliz pela mudança da cidade para o campo, pela reaproximação com o marido, vê na luz do sol matinal um reflexo de sua própria satisfação. O êxtase é interrompido pelo som de um tiro vindo de um dos quartos. Na cena segunda, Suzana se depara com Afonso e o vermelho do sangue que jorra de sua cabeça se alastra pela visão da esposa. A exposição da consciência de Suzana contrapõe-se à ausência da perspectiva do marido, e isso coopera para a construção do “efeito surpresa” do suicído. A felicidade da esposa existe apenas nela e sua leitura das atitudes aparentemente satisfeitas do companheiro se mostra incorreta. O ato desesperado dele embota a sensação de completude da protagonista, revelando a dura verdade de que seu plano para salvar o casamento nunca obtivera sucesso. Por isso, a ideia de que a sensação de felicidade e plenitude pode estar baseada numa percepção superficial e errônea do outro é a temática central desse conto. O conto “O furto” possui uma fábula muito simples. Ao acordar pela manhã, uma mulher se martiriza por haver furtado um livro. Dona de uma pensão, ela surrupia o objeto de uma casa próxima, vendida recentemente a um casal de hóspedes. Ela pensa nas circunstâncias limitadas da sua vida, na falta de amor, no quanto sempre desejara comprar aquela propriedade, mas, no final do conto, ela apenas arremessa o livro na lixeira e sai para trabalhar. A narrativa é construída com base na onisciência seletiva e no narrador onisciente e flagra o desespero de uma mulher infeliz sob uma perspectiva interna e externa. O conto tem como eixo temático o modo como a realização pessoal é estabelecida por motivos diferentes para cada indivíduo. Por isso, o livro (na narrativa, símbolo de mundo perfeito) não serve à personagem, embora haja ressentimento quanto à felicidade do casal. A presença do monólogo interior revela o comportamento da mente frente à culpa — mediante o furto do livro — e da inveja — ao visualizar as demonstrações de afeto dos jovens. Estes dois sentimentos, reprováveis religiosa e socialmente, são a razão para a dramatização do pensamento, que se desfaz quando a mulher se livra do livro, retornando tranquilamente aos afazeres domésticos da pensão. 50

O conto “Por puro desespero” foi selecionado por ser um texto que discute o monólogo como forma de compreensão pessoal, embora sendo todo ele construído a partir do modo dramático. O texto tematiza o ato de pensar como necessário para a compreensão da experiência humana individual, dolorosa e edificante. Paralelamente, também aborda a ajuda externa, social e profissionalmente aceita como insatisfatória e limitada e o uso da perspectiva narrativa corrobora para o estabelecimento desses sentidos. Na história, uma paciente encontra-se num consultório psiquiátrico e anseia por uma confirmação profissional acerca de um insight a que chegara por meio de sucessivas meditações. Para tanto, narra para o psicólogo os tormentos vividos em uma sala de cirurgia, passando pelo doloroso processo de internação, até o momento em que revela o motivo da estada no hospital: ela tentara o suicídio. A narrativa se desenrola, portanto, em uma sessão de análise e sob o ponto de vista desta mulher sobrevivente. Já “A agonia de viver” é um conto que retoma algumas temáticas do romance A última porta, tais como a velhice, a relação mãe e filho e a presença de cenas oníricas. De igual maneira, é um conto que tematiza o sentimento To be alive, que consideramos uma recorrência na contística de Elisa: a consideração de que, em última instância, estar vivo é sempre um fato extraordinário. A protagonista de “Agonia de viver” é uma senhora de 70 anos que medita sobre o sentido de estar viva no decurso de um dia inteiro: “há muito se vinha interrogando como atravessar um dia, sobretudo após ter passado a sentir-se como um cão ao abandono, o que aconteceu depois que a deixou a empregada” (LISPECTOR, 1985, p. 136). A protagonista se vê desamparada nas feituras das tarefas domésticas, nos achaques próprios da velhice. A empregada a abandonara, o filho é um homem apático e prepotente e a nora a evita com doenças inventadas. À medida que ela pensa nessa realidade, perde a fé. À noite, a protagonista adormece, perguntando-se “o que fizeste da vida?” e então sonha com uma cidade deserta, com prédios em frio e desumano mármore. Ao caminhar pelas ruas, encontra três adolescentes e, para sua surpresa, se comunica com eles. A atitude aparentemente comum desencadeia um efeito vertiginoso. Acabado o sonho, o dia amanhecera e com a protagonista há novas esperanças. A vida ressurgida no universo do sonho impregna a personagem, e o sentimento de aceitação de si mesma se renova e “subitamente lhe veio tamanha sensação de plenitude e uma tão nova e intensa vontade de viver que era como se ela estivesse renascendo.” (Idem, p. 141) Como em boa parte das obras de Elisa, nesse conto há pontos de tensão e distensão, um movimento de subidas e descidas emocionais, que ocorrem no transcurso de um dia. O dia 51

vivido com angústia pode ser sucedido por um sonho epifânico, que proporciona um sentimento de bem-estar, representado por uma manhã de céu azul e resplandecente. Por isso, existe uma constante atualização da vontade de viver, de ser feliz, ainda que uma nova fase de questionamento da vida se interponha. É o que acontece nos contos “Um dia, uma vida” e “Uma nova sensação de realidade”. Narrados com a mescla de narrador onisciente e onisciência seletiva, ambos apresentam as protagonistas em processo de autoanálise. Em “Um dia, uma vida”, o procedimento ocorre no decorrer de um dia inteiro; no outro, entre o acordar e o levantar, à semelhança do conto “O furto”. Em todos, a protagonista expressa resistência em atitudes simples:

Meu Deus, com que facilidade as lágrimas lhe assomavam aos olhos, e o olhar tomava aquela expressão de sofrimento agudo, e a boca se quebrava como num choro de criança! Em seguida, vestiu a melhor roupa — a que reservava para os coquetéis de lançamento de filmes — bateu a porta atrás de si e saiu ao encalço de um dia pleno. Um dia apenas. (LISPECTOR, 1985, p. 8)

Ao analisar os contos do corpus mais específico (“Sangue no sol”, “O furto”, “A agonia de viver” e “Por puro desespero”), dialogamos com toda a contística da escritora, tendo em vista que os textos se relacionam, às vezes do ponto de vista temático, às vezes do ponto de vista formal. Com exceção de “Por puro desespero”, cujo foco narrativo é único na obra (modo dramático), os outros três apresentam alternância entre a onisciência seletiva e narrador onisciente como foco narrativo. O intuito aqui é averiguar como esta opção literária atribui sentidos aos textos de O tigre de Bengala. De uma forma geral, O tigre de Bengala tematiza o fluir dos pensamentos como motor do autoconhecimento, da resistência ante a angústia, como preservação da subjetividade. No conto homônimo da antologia, uma mulher é aconselhada por seu médico a “alcançar a serenidade” bordando um tapete. À medida que ela trabalha com linha e agulha e monologa, o risco do bordado se transforma e, por entre os fios, a silhueta de um tigre assoma. Representação metafórica, o tigre de cores vivas é a consciência, que não pode ser aprisionada mesmo que a personagem, em vão, tente apaziguar. Num diálogo aberto com “A escrita do Deus”38, de Jorge Luís Borges, ela conclui:

38 Conto da obra O Aleph (2008), de Jorge Luís Borges. Elisa Lispector também usa trecho do conto como epígrafe: “...um homem é, afinal, suas circunstâncias”. 52

— Talvez que, por minhas circunstâncias, o meu entendimento não dê para ler a escritura do Deus, como o fez Borges, mas, então, será que ao menos, como a mesma linha com a qual bordo ponto por ponto, dá para aprisionar o tigre que trago dentro de mim? (LISPECTOR, 1985, p. 98)

1.5 Fortuna crítica

1.5.1 A recepção crítica entre as décadas de 40 e 80

De modo geral, a fortuna crítica de Elisa Lispector não é numerosa e apresenta o que consideramos duas fases distintas. Os trabalhos recentes (artigos publicados em anais de eventos e pesquisas de Mestrado) enfatizam o caráter biográfico da autora e ressaltam os temas associados ao judaísmo, exílio, memória, deslocamento, melancolia e solidão. Eles têm como arrimo a leitura de No exílio e de Retratos antigos, o livro póstumo da autora. A crítica do século XX, publicada em jornais e em livro entre as décadas de 40 e 80, ou seja, quando da produção e da publicação das obras, praticamente ignora o autobiografismo da autora e se dedica à análise do seu estilo filosófico e metafísico, discutindo a angústia existencial, a incomunicabilidade dos seres, a solidão e o sentido da vida e da morte. O texto crítico mais antigo encontrado por esta pesquisa39 data de outubro de 1948 e versa sobre No exílio. Publicado na Revista da Semana, o texto escrito por João Luso40, na seção Livros novos, se volta para dois aspectos do romance. Dentro da observação biográfica, João Luso põe em destaque o fato de Elisa ter “experimentado” as situações narradas, o que teria amplificado o caráter testemunhal, dando ao livro “um sabor” de coisa vivida. Para ele, esse caráter torna a análise viva e penetrante, com trechos descritivos de poder impressionista. Segundo João Luso, o conhecimento de Elisa Lispector acerca da matéria do romance, a saber, os costumes, as tradições, assim como “a mentalidade e o temperamento do povo a cuja odisseia nos faz assistir”, contribuíram para a construção dessa vivacidade da história. Um outro ponto apenas mencionado por Luso, a nosso ver, ainda mais importante, diz respeito à ação no romance: “Sem dúvida tal suposição [de que se trata de uma autobiografia] ou, por fim, certeza

39 O texto Os novos: Elisa Lispector é o mais antigo texto de crítica de que temos conhecimento. Ele versa sobre Além da fronteira (1945) e foi publicado na Revista Panorama, ano de 1947. 40 João Luso (Lousã – 1874; Rio - 1950), pseudônimo de Armando Erse de Figueiredo, escritor e jornalista luso- brasileiro. Colaborou em diversos jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, tais como, O Estado de S. Paulo, Correio Paulistano, Paulicéia, Jornal do Commercio, jornal A noite e Revista da Semana.

53

completa, partiu da feição especial dos episódios em que a ação, mais observada do que movimentada, se desenvolve.” (LUSO, 1948, p. 43). Entendemos que João Luso se refere ao fato de que, em No exílio, as personagens pensam mais do que agem e o narrador tanto perscruta o pensamento como os localiza com detalhes na cena. Um recurso que, notado nos romances e nos contos, em especial, enriquece o poder cenográfico da narrativa. O outro aspecto mencionado por Luso diz respeito ao acervo léxico do romance, visto como um uso negativo: “certo emprego de terminologia que torna a narrativa arrevesada, além de pedantesca e que de todo a obscureceria se não viessem, ao fim das páginas, os vocábulos mais ou menos correspondentes na nossa língua” (Idem, p. 43). Com tom irônico, Luso afirma que esse vocabulário seria útil no caso de um leitor com memória prodigiosa, pois ele terminaria a leitura conhecendo a tradução de “sacerdote” ou “bule de chá” em iídiche ou em russo. Nesse sentido, apesar dos elogios iniciais, João Luso encerra o artigo de uma forma indócil:

A sra. Lispector dispõe de qualidades e recursos preciosos na carreira de romancista. A sua maneira é direta e aguda, com imagens palpitantes, vigoroso cunho individual. Quando deixar de usar expressões impróprias ou irregulares, tais como: "energias repassadas... palavras que foram arremetidas contra as nuvens... intrometendo-lhe a pequenina entre as mãos"... isto é: quando conhecer melhor a nossa gramática e um pouco mais o nosso dicionário, poderá ser, em português também, uma escritora de alta classe. (LUSO, 1948, p. 43)

É curioso que a questão vocabular e o uso de certos pronomes induzam João Luso a desmerecer o conhecimento gramatical de Elisa, excluindo-a do rol de escritores. Para não cometermos um anacronismo, avaliando o texto de Luso apenas com os critérios atuais, deve- se considerar sobretudo a nacionalidade do crítico e certa tendência de valorização da língua portuguesa cristalina própria da época. No entanto, o mais interessante é que, das escritoras de seu tempo, Elisa certamente é a mais tradicional e clássica em termos de uso da língua. Talvez por medo de ser vista como estrangeira, como desconhecedora de sua língua materna “adotiva”, Elisa sempre escreveu com certo apuro gramatical. Experimentalismos como a invenção de palavras compostas41 (que beiram a frase composta) só são perceptíveis a partir do quinto romance, O dia mais longo de Thereza, de 1965. A inovação de Elisa está justamente naquilo que João Luso aponta ainda que vaporosamente: “Sem dúvida tal suposição ou, por fim, certeza completa, partiu da feição especial dos episódios em que a ação, mais observada do que movimentada, se desenvolve.”

41 Exemplos desse uso: “cinza-rato” (O dia mais longo de Thereza); “mar-azul-mais-profundo” (Corpo a corpo); 54

(LUSO, 1948). Nesse sentido, a primeira crítica de uma obra elisiana caminha em direções antagônicas. Primeiro, louva sua construção narrativa, pondo em destaque o que somente poucos escritores alcançam: dar vida aos personagens e eventos. Depois, reduz esta mesma escritora em razão da linguagem como se ela não usasse o português como língua própria. No que diz respeito ao segundo romance de Elisa, Ronda solitária, não há qualquer indício de textos críticos. A ausência atual de trabalhos sobre o livro pode ser justificada pelo desaparecimento do romance ao longo das décadas. No entanto, não vemos muitas razões para a falta de textos sobre a obra quando do ano de sua publicação. Depois dos lançamentos de três romances (Além da fronteira, 1945; No exílio, 1948; Ronda solitária, 1954) com pouca repercussão entre os críticos, Elisa ganha então o prêmio José Lins do Rego, com O muro de pedras, em 1962. A leitura de pelo menos dois jornais importantes do Rio de Janeiro (O Correio da manhã e Jornal do Brasil) mostra que Elisa passou a ter uma evidência maior no universo das letras nacionais com o prêmio promovido pela Editora José Olympio. À época, muitos escritores e críticos passaram a resenhar a obra que havia “desbancado” outros cem escritores. Nesse sentido, temos o texto de Homero Senna, de agosto de 1963, publicado na seção Livros da semana, no jornal Correio da manhã. O texto de Senna é elogioso em relação ao romance de Elisa. Visto como admirável, impressionante, um verdadeiro estudo dos sentimentos, O muro de pedras (1963) tem uma heroína que é “acuada para dentro de si mesma” e tem o gosto pela autoanálise. Em seu texto, Homero Senna (1963) centra-se nas características de Marta, a protagonista. A cosmovisão pessimista da personagem, que vê a vida em seu matiz trágico, resulta das frustrações infantis (ausência do carinho materno) que a tornaram desiludida quanto ao apoio que os outros podem oferecer, mesmo os familiares. Senna considera que Marta “movimenta-se dentro de um grande círculo de solidão”, uma observação que irá se repetir quase que infinitamente ao longo da crítica sobre Elisa: “Estranha criatura essa Marta, que não se cansa de dar mergulhos na própria alma, dominada quase sempre por sentimentos de autopiedade.” (Idem, p. 3). O crítico encerra apontando a qualidade estrutural e de linguagem do livro, sem a qual, a densidade psicológica “só interessaria aos médicos-psiquiatras”:

Sente-se em Elisa Lispector alguém com o pleno domínio do gênero. O estilo, sem ser rebuscado, é justo e expressivo, com um indisfarçável ar de novidade. Dir-se-á que é um livro pouco brasileiro, já que é total sua indeterminação quanto ao espaço e tempo. Assim de fato é. Mas isto, e a sensação de inacabado que o romance nos dá, deixando o leitor em suspenso quanto ao destino que aguardava Marta — [...] não são suficientes para deslocar “O muro de pedras” do lugar de destaque que de súbito conquistou no moderno romance brasileiro. (SENNA, 1963, p. 3) 55

O texto chama a atenção para o sucesso do livro, sucesso merecido, segundo o autor. Há também um ranço daquela discussão acerca da “brasilidade literária”, que pondera sobre a qualidade do livro pelas referências aos espaços da geografia brasileira. Discordando em parte do crítico, a sensação de inacabado na ação final é, na verdade, uma recorrência da literatura moderna, principalmente de cunho introspectivo, na qual o pensamento e sua transformação são, por vezes, mais relevantes do que as ações que movimentam a trama. Além disso, visa dissolver aquela sensação de que, acabado o livro, acaba-se também a vida das personagens. Vê-se isso também em Lygia Fagundes Telles, escritora contemporânea de Elisa. Apesar do apelo positivo trazido pelo prêmio, nem só de louros viveu O muro de pedras. Dois textos críticos foram particularmente severos acerca do livro premiado pela Editora José Olympio. O primeiro, de Assis Brasil, com um título simples, homônimo da obra analisada. O segundo, de Fausto Cunha, “Um livro premiado”, no qual o autor faz uma análise do romance dentro do contexto dos concursos para escritores, comum no cenário cultural brasileiro. A despeito de apresentar um tom arrogante, meio galhofeiro, o texto de Cunha é uma leitura rígida, contudo, certeira em alguns pontos, enquanto o de Brasil mistura conceitos e parece creditar a Elisa o sentimento de solidão e de desamparo da personagem Marta. Assis Brasil introduz a discussão questionando a “subversão do romance”, segundo ele, comum na literatura brasileira desde Machado de Assis, e que consiste na tentativa de trocar a narrativa episódica pelo monólogo interior (direto ou indireto). Essa substituição entre a fábula tradicional e a introspecção seria uma tarefa árdua para o escritor e, do ponto de vista de Assis Brasil, é empreendimento em que Elisa Lispector falha visivelmente. Para o crítico, o ponto de vista interior não é bem realizado em O muro de Pedras, pois “o seu poder de concentração no personagem, que monologa, é limitado por uma linguagem pobre e por uma análise insuficiente para a apreensão do drama”. (BRASIL, 1963, p. 5) A parte mais movediça do texto de Brasil se refere ao poder criador de Elisa. Evidenciando que a consciência central do romance é feminina, o jornalista afirma que essa consciência não é de Marta, a protagonista, e sim da “Autora”, e que, por isso, o livro é pouco criativo, como se a obra fosse apenas a transposição dos próprios dramas de Elisa. Sem uma maior explicação, a única forma de interpretar tal leitura de Assis Brasil é inferir que o crítico julga conhecer a vida pessoal da escritora a ponto de ver em Marta a própria Elisa Lispector. Ainda sobre a questão do ponto de vista, mencionado no outro parágrafo, ele assegura que Elisa tropeça em todos, tanto na construção dos monólogos quanto das cenas dramáticas: 56

“Falta-lhe a dimensão do dramático, por mais que uma vida a ser retratada seja medíocre” (se a consciência feminina mimetizada é a de Elisa, então nesse caso, ela teria uma vida medíocre?). Por fim, Assis Brasil (1963) menciona as frases feitas do romance, os lugares-comuns, etc., e arremata com a seguinte declaração: “E é evidente que entre ser escritor e ser ficcionista há uma distância bem longa”. Embora conheça o monólogo interior enquanto técnica romanesca, para ele usado na ficção brasileira desde Machado, Assis Brasil demonstra antipatia em relação ao recurso e à escritora que o emprega. Apesar de vermos de maneira negativa certa recorrência frasal nos romances de Elisa, pensamentos que são retomados iterativamente em trechos variados, afirmar que O muro de pedras tem “total pobreza de concepção” certamente é um exagero; ou que a existência da protagonista Marta é medíocre certamente não tem justificativa. Assis Brasil confunde a falta de perspectiva de vida de Marta, o tédio e a sua solidão, com pobreza na construção da personagem. E a verdade é que está nesta relação personagem estagnada/mundo interior todo o mérito de Elisa: a escritora cria um mundo interior dramático a partir de uma figura tomada pela depressão, melancolia, desinteresse e tédio. Um mês após a publicação de Assis Brasil, Fausto Cunha escreve acerca de O muro de Pedras. Com o título “Um livro premiado”, essa crítica foi publicada no Correio da manhã e posteriormente no livro Situações da ficção brasileira (1970, p. 61), figurando ao lado de resenha crítica sobre a obra Jorge¸ um brasileiro, de Oswaldo França Junior, ganhador do Prêmio Walmap42 de 1967. A introdução de “Um livro premiado” discute as interferências na escolha das obras avaliadas em concursos. Segundo Fausto Cunha, a forma de grafia (datilografada ou não) ou mesmo a necessidade de leitura oral de certos textos pode contar a favor ou contra a seleção de um finalista. Cunha questiona a qualidade das obras que se submetem aos concursos, sendo, neste ponto, mordaz e radical, afirmando que dos 119 livros submetidos à análise da banca da editora José Olympio, 100 poderiam ser “jogados no lixo”, muitos com a simples leitura do título. Ele menospreza o valor pago pelo prêmio (quinhentos mil cruzeiros) em razão da inflação brasileira e os escritores que se queixam de ser “ignorados pela crítica, sabotados pelos colunistas” e que, para ele, são destituídos de talento e ressentidos com o insucesso.

42 Este Prêmio Walmap (1964-1975) foi instituído por José Luiz de Magalhães Lins (banqueiro) e Antônio Olinto (escritor). Seu nome é uma homenagem a Waldomiro de Magalhães Pinto, tio de José Luiz e fundador e primeiro diretor do Banco Nacional de Minas Gerais. 57

Para Cunha, o livro O muro de pedras surge sob essa luz negativa da premiação. De um lado, haveria a “distorção afetiva”, por meio da qual o crítico se vê forçado a ver a obra como boa em razão da sua vitória sobre os demais, produzindo textos naturalmente laudatórios. Por outro lado, o fato de ter sido premiado induziria o leitor a exigir do romance uma obra-prima, o que também seria desproporcional. Nesse sentido, Cunha diz que o romance de Elisa precisaria “da penumbra para melhor avaliação” (CUNHA, 1963, p. 2). De início, a crítica de Cunha não parece tão negativa, porém, à medida que lemos, defeitos vão sendo apontados e nada surge como bem realizado no romance:

Neste [O muro de pedras], Elisa Lispector pratica uma ficção estática, introspectiva, de medida larga e vagarosa, que está longe de me desagradar. “O muro de pedras” é um longo monólogo interior, algo à maneira de Cornélio Penna [...]. Possui unidade interior, se bem que as ligações com o mundo real em torno (com o tempo dos outros) se façam de forma indecisa. O livro se constrói como um estado de espírito, como uma situação psicológica, e não como uma narrativa. A personagem central confronta-se com o impasse da solidão e tranca-se dentro de si mesma, procurando na auto-análise a solução de um conflito que não chega a definir-se. (CUNHA, 1963, p. 2)

A não percepção do que seja o conflito de Marta prejudica tanto o texto de Assis Brasil quanto o de Cunha. Parece-nos que, para ambos, os problemas vivenciados internamente por Marta não chegam a configurar um impasse, uma vez que um conflito legítimo, de acordo com Cunha, só pode se dar na relação da protagonista com as demais personagens. Entretanto, mesmo com base nesta concepção, pode-se afirmar que a obra possui várias situações conflitantes, resolvidas à medida que a narrativa avança. Cunha acerta no que se refere ao monólogo interior, autoanálise, unidade interior, mas parece opor situação psicológica e narração, como se a obra de natureza introspectiva, por não apresentar uma fábula tradicional, não fosse exatamente uma narrativa. Uma afirmação que ignora a dramatização do pensamento como forma de fazer literatura (LUBBOCK, 1976). A partir daí, a apreciação de Cunha se limita às críticas: a personagem trata demais de sua própria solidão, falta profundidade na análise interior, o romance não tem despojamento vocabular, sobra excessiva preocupação com o poético, a protagonista não tem um mundo próprio, a leitura do romance é monótona e repetitiva e a penetração na personagem é lateral, não vertical. Além disso, há momentos supérfluos, com cenas triviais de uma “gratuidade infantil”. Com uma pretensiosa erudição, Cunha vai comparando Elisa com diversos outros escritores, fazendo aproximações e diferenciações no que concerne ao talento: escreve como Cornélio Penna, mas sem as saídas realistas de Grazia Deledda (escritora italiana); preocupa-se 58

com o poético, como Lúcio Cardoso, mas sem o maneirismo espontâneo desse, e assim por diante, a ponto de nos perguntarmos o que há de bom em O muro de pedras. Os textos de Brasil e Cunha nos dão a impressão de que eles esperavam do romance algo que ele não oferecia. Eles reconhecem os elementos técnicos, formais, mas erram quanto ao sentido que sugerem. A retomada de certas reflexões, por exemplo, sugere o movimento tedioso e cíclico da solidão e dos relacionamentos. Do nosso ponto de vista, o monólogo em si modifica o ritmo de leitura, mas, neste romance específico, a introspecção é a menos tediosa. A divisão dos capítulos em três partes (cada uma apontando para uma fase diferente da protagonista), as mudanças de espaço (cidade/campo) e a inclusão de personagens singulares ao longo do romance retiram as “travas” da literatura de trama intimista. Sobre a construção das cenas e de sua trivialidade, Cunha exemplifica com a passagem do jantar, parte 2 do romance (LISPECTOR, 1976, p. 77-81). Não sabemos de que maneira essa cena poderia ser gratuita, pois ela introduz uma das personagens mais importantes do romance, Maurício, o amante de Marta. O evento inicia uma fase da vida da protagonista, criando as condições para o aprendizado de Marta quanto a um novo tipo de solidão, a solidão da espera, da ansiedade quanto ao sentimento do outro, da dúvida quanto ao ser ou não amada. Fausto Cunha vê na cena do jantar um evento desnecessário e digressivo, mas ele é essencial para a continuação do romance e para a evolução interna da protagonista. Em 1971, Renard Perez organizou uma antologia escolar pela Edijovem, ramificação da Edições de Ouro. A obra recebeu o título de Escritores brasileiros de hoje e o seu objetivo era apresentar aos jovens estudantes a ficção brasileira. Para tanto, Perez reuniu textos (contos e passagens de romances) de grandes nomes da literatura, entre os quais, Autran Dourado, Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, etc. Ao todo, são 27 escritores que se destacaram no universo das letras a partir da década de 1930. Elisa Lispector se faz presente neste rol com trecho do romance O muro de pedras. Seguindo o mesmo padrão dedicado aos demais escritores, Perez incluiu um breve texto biográfico sobre Elisa, uma lista de suas obras e uma pequena resenha sobre o texto escolhido (início da parte 3 do romance). A passagem retrata a (in)adaptação de Marta no ambiente rural, a partir das suas impressões quanto aos moradores locais, aos empregados, e a triste constatação de que a sua angústia e solidão sempre persistem. É um trecho que exemplifica o tipo de narrativa que flui a partir das sensações, da perspectiva da protagonista, embora com um narrador externo ao universo da ação:

59

Era a seus olhos um mundo grande, um mundo bom, mas não podia negar que de uma solidão imensa. E ela dizia de si para si que também isto era bom, pois, quem lhe podia assegurar que não fora para a solitude do ser dentro do mundo que o homem nascera? E à tarde, quando o vapor azulado se elevava no ar em mistura com o perfume bom de pinheiro, e os pássaros se aconchegavam em seus ninhos, e os dedos dos eucaliptos se imobilizavam na placidez do sono, estava concluído o ciclo de mais um dia de vivência calada e profunda, um dia no qual não coubera um só fragmento de ação, porque repleto da alegria do puro existir, tão repleto dessa essência como uma bilha cheia d’água até as bodas. (LISPECTOR, 1963. In: PEREZ, 1971, p. 41)

Segundo Perez, a literatura intimista amplia a literatura do Movimento Nordestino de 30, e “espraia-se” pelas décadas subsequentes, trilhando novos caminhos. Para ele, O muro de pedras é uma indagação quase trágica, monólogo sofrido e intenso de Marta sobre o que é a vida e sobre a atitude a assumir diante de si mesma e em relação ao seu semelhante. “É um livro de alta beleza, muito bem escrito, com a escavação introspectiva se fazendo lenta e aguda” (PEREZ, 1971, p. 39). Além da boa impressão acerca do romance, a antologia de Perez comprova a visibilidade de Elisa Lispector na segunda metade do século XX. Nesse momento, a romancista está na galeria dos escritores canônicos, representando a moderna literatura de ficção. Apesar disso, ela tornou-se uma escritora desconhecida, assim como muitos dos escritores elencados pelo livro Escritores brasileiros de hoje se tornaram incógnitos, a exemplo de Dalcídio Jurandir e José Condé e até mesmo o próprio organizador, também escritor, Renard Perez. Em certo sentido, Cunha tem razão quanto às desvantagens de um romance receber prêmios: passado o contexto da premiação, “os galardões se transformam em pesos mortos”, um troféu na estante para o qual o escritor olha com saudosismo. Entretanto, embora não tenha impedido o apagamento de Elisa, o prêmio José Lins do Rego de 1962 constitui, hoje, uma ponte para a obra da autora. Ao folhear jornais do Rio de Janeiro da década de 60, o leitor se depara com dezenas de referências a Elisa Lispector. Até mesmo a aquisição do livro era divulgada pelos colunistas, assim como o lançamento oficial, as noites de autógrafos, as entrevistas, afora as colunas femininas, que noticiavam os aniversários de Elisa, sua presença em eventos sociais (jantares, eleições, palestras, etc.). Diante desta exposição, conclui-se que a popularidade da escritora foi sazonal e teve como ponto alto O muro de pedras. Em um intervalo curto, Elisa Lispector viria a publicar O dia mais longo de Thereza (1965), tão destituído de leituras, que o seu texto de apresentação, da autoria de Octavio de Faria, constitui o seu único texto crítico individual43. No texto de apresentação deste romance,

43 Juntamente com outras obras da escritora, este romance viria a ser objeto de estudo no prefácio de Pietro Ferrua para a 2º edição de O dia mais longo de Thereza (1978) e num ensaio de Telenia Hill, publicado em 1989. 60

incluso na segunda edição da obra, o crítico e escritor evidencia a perseverança de Elisa em manter-se no cenário literário brasileiro: “Sua pertinácia em se afirmar, em demonstrar que tem realmente o que dizer, registrou-se independente da acolhida popular, que, se não lhe foi adversa, ficou aquém do que merecia preferindo-lhe autores mais fáceis, menos substanciosos” (FARIA, 1978). A fala de Octavio de Faria, que via na década de 60 uma grande revelação do talento literário feminino44, considera o gosto do público pelo “texto fácil” uma das causas para a pouca leitura de Elisa Lispector, não a sua falta de talento:

Vencendo a sombra familiar, triunfando de eventuais concorrências no ‘naipe feminino’, forçando o comodismo mental do grande público, sua obra aí está como um desafio aos indiferentes e como uma afirmação de insofismável valor individual. Este romance emergiu como um dos nossos mais autênticos e pessoais valores de romance. A morte, a “destinação” da morte, (... “É para a morte que ela corre...” – verdadeiro “leitmotif” do livro), a obsessão da morte – confesso que várias vezes tenho sentido “presença” tão sensível tão viva, tão alta, em romance realizado com tanta maestria e permanente adequação. (FARIA, 1978)

Alguns críticos consideram Elisa Lispector uma escritora incrivelmente perseverante em seu projeto literário. Mesmo com a fama de Clarice ou diante do “comodismo mental” dos leitores, a escritora manteve-se ativa em sua produção e jamais modificou o seu estilo com a finalidade de alcançar a popularidade. Por isso, O dia mais longo de Thereza mantém estreita relação com O muro de pedras, só que desta vez a incomunicabilidade sentimental é substituída pela preocupação com a morte (tema central), evento inexorável e irremediável, enquanto a vida é entendida como um “escravo ofício”. Para Octavio de Faria, o romance de 1965 deveria ter seu título ligado às ideias de “morte”, “presença de amor”, “impossibilidade de vida” e “transcendência de Deus”. Segundo ele, Elisa Lispector (talvez modesta em excesso, como se não tivesse perfeitamente consciente da sua relevância) não teria sugerido ao leitor os grandes temas discutidos pela obra ao intitulá- la O Dia Mais Longo de Thereza. Essa foi a única crítica negativa ao livro de Elisa: a falta de relação título/romance. Uma questão interessante, já que a interpretação desse título é hermética, dada a presença de inúmeros dias em que o tempo se alarga psicologicamente para Thereza. Há alguma chance desse dia ser o de sua morte, mas isso também não é explícito no romance. Por outro lado, vemos que em Elisa o tempo é comumente blocado em dias. Há poucas referências a meses e anos, pois as personagens desejam apenas sobreviver ao período que vai

44 Octavio de Faria defende isto em “Um novo valor feminino”. In: Correio da manhã, Rio de Janeiro, 30 jan. 1963, Seção Testemunhos, p. 2. 61

do acordar até o momento em que o corpo e a mente encontram o repouso da noite, zerando a tortura existencial. Nesse sentido, todos os dias de Thereza são longos, repetitivos e fadados ao recomeço, à semelhança do mito de Sísifo. Publicado entre dois livros de contos, o romance A última porta possui três textos de crítica, sendo, portanto, uma das obras com maior número de leituras quando do ano de sua publicação. O primeiro texto intitula-se “A última porta: ruptura e metacriação” e foi publicado no suplemento literário do jornal Minas Gerais. Da autoria de Bella Josef, professora de origem judia e que se dedicou à leitura crítica de algumas obras da escritora45, o artigo começa frisando o modo como A última porta critica o momento histórico de sua publicação, apesar de ser uma obra de natureza psicológica. Segundo Josef (1975, p. 4), o romance aborda a impossibilidade do diálogo na sociedade burguesa, o que resulta na solidão desesperada de suas personagens, a “temática obsessiva na autora”. Esse artigo é relevante por dois motivos. Primeiro, Josef analisa a fábula do livro, entendendo a atmosfera como mais importante do que a ação propriamente dita. Para ela, os fatos da narrativa são transformados em “energia emocional”. Ainda que a extensão do artigo não permita explicações delongadas, entendemos que Josef se refere ao fato de que a ausência de desdobramentos fabulares não compromete o desenvolvimento da história de A última porta, na verdade, sua marca singular é esta, importando mais o conjunto das emoções desencontradas, angustiadas da narradora-personagem. Por meio de uma orientação intimista, Elisa Lispector constrói Ana, para quem a vida é ânsia e busca, e o destino é um problema cuja solução precisa ser inevitavelmente encontrada. O movimento do romance, assim, centra-se na pesquisa interna da personagem, modo de construção adotado em sua ficção. O segundo motivo é que Josef trata, em “A última porta: ruptura e metacriação”, da categoria que analisamos nesta pesquisa:

Um narrador onisciente (que reúne objetos e pensamentos) faz quase desaparecerem diálogos e interlocutores. Apenas um narrador-personagem traz informações sobre o sujeito da enunciação. Este estilo por vezes direto, liga-se à subjetividade da linguagem. A informação é apresentada como vinda do personagem e não do narrador que, paralelamente, diz tudo sobre a personagem. O monólogo é diálogo interiorizado, formulado em “linguagem interior”, entre um eu locutor (falante) e um eu ouvinte. Da referência ao mundo íntimo estabelece-se a relação ao referente exterior [...]. Este questionamento é a modalidade última do ato de leitura, ao mesmo tempo metacriação. (JOSEF, 1975, p. 4)

45 Amiga da família Lispector, Bella Josef é autora também do depoimento crítico sobre Elisa e sua ficção em Mulheres de valor, de Rachelle Dolinger (2004, p. 356), e do prefácio de O tigre de Bengala. 62

Ainda que se referindo ao romance A última porta, Josef marca elementos da obra de Elisa como um todo. O primeiro deles quanto à função do narrador observador onisciente. Mesmo com ponto de vista aparentemente distanciado, as narrativas fazem com que tudo pareça proceder das personagens, o que dá essa impressão de que a “informação é apresentada como vinda da personagem e não do narrador”. Por outro lado, a revelação da subjetividade interior da personagem não reduz a construção da cena, pois para formatá-la usa-se uma perspectiva externa, que se soma aos constantes diálogos estabelecidos pela personagem consigo mesma; aliás, uma recorrência em Elisa, em cujas obras o monólogo interior se configura muitas vezes como uma espécie de monólogo dramatizado. Além da questão do monólogo, a narração em A última porta é prospectiva e retrospectiva. Ao fazer anotações sobre seu estado de espírito, Ana se torna narradora, buscando compreender seu passado, sua atual solidão e desamor; por isso, a narração vai para trás e para frente e o ato de escrita renova o caráter pretérito do evento, transformando-o em presente ao comentá-lo e avaliá-lo. Segundo Josef, essa oscilação torna A última porta um romance cuja trama existe a partir do mise en abyme. A realidade se mostra em forma de fragmentos (pensamentos, lembranças, antigas sensações), conferindo-lhe constante descontinuidade. O sonho também tem seu espaço em contraposição com a linguagem racional da narradora e de Fink, o vizinho filósofo de Ana. E para organizar tudo, todos os fragmentos da perdida unidade humana, está a linguagem. Dessa forma, Josef acredita que o tema central da obra é a própria escrita, pois o livro teria como fim investigar a criação estética e o seu poder de organizar o caos, daí o seu caráter metalinguístico (JOSEF, 1975, p. 4). Em abril de 1975, Hélio Pólvora publica mais um artigo sobre a obra de Elisa no Jornal do Brasil (em 1970, ele havia escrito sobre Sangue no sol, artigo que mais à frente comentaremos). A leitura do crítico começa por comparar O muro de pedras e o recém-lançado A última porta, evidenciando que a solidão é uma marca registrada de ambas as obras e assola tanto Marta quanto Ana. Porém, a obra de 75 teria se despojado de elementos romanescos, com a análise direta e centralidade na personalidade de Ana: “Sempre a meditar, a buscar as raízes de sua essência, Ana é um pensamento vivo.” (PÓLVORA, 1975, p. 2). Com o título “Preservar o ego”, o texto de Pólvora alude à busca da personagem Ana por sua individualidade, numa sociedade considerada massificada: “Até parece que na sociedade contemporânea não há mais lugar para o indivíduo, que ele não conta mais.” (LISPECTOR, 1975, p. 129). Ana é uma personagem plural e com ela Elisa Lispector instaura uma complexa discussão sobre o tema da solidão. Pólvora defende que a solidão de Ana 63

independe das circunstâncias de sua vida, pois está em seu interior, no seu modo de ser, e alimenta-se de suas dúvidas e ambivalências. A última porta dialoga com obras de Shakespeare, com a Bíblia e outros clássicos através da constante pergunta “Quem eu sou?”; o romance apresenta a busca pelo autoconhecimento como um processo de coragem, ambição e purgação, realizado pela protagonista com um certo deleite. Ana é uma mulher que foi incapacitada para uma comunicação superficial (que os familiares teimam em oferecer) e, por isso, ela vive às voltas consigo mesma, a se interrogar, a se espreitar. Pólvora chama esse processo de reconstrução e enfatiza a necessidade de Ana em se autopreservar dentro deste movimento de busca:

A última porta coloca, pois, o culto à individualidade como refúgio e renovação da individualidade bombardeada. Conhecer a neurose, conhecê-la, sabatiná-la é uma forma de apaziguamento. [...] Indispensável viver os dias um a um, com a sensação de redescoberta. Impedindo que as circunstâncias adversas contaminem as disponibilidades criadoras do ego. (PÓLVORA, 1975, p. 2)

Apesar de sua linguagem e estrutura romanesca, A última porta é um ensaio sobre o ser e o estar no mundo. Há um itinerário de busca no romance que começa com a já mencionada cena do espelho, transcrita quase que inteiramente quando tratamos da obra, e traduz a aflição da personagem “na pungente contemplação de sua precariedade e miséria” (PÓLVORA, 1975, p. 2). Depois, o processo de escrita sobre o passado e a pesquisa de si mesma, a aceitação de si mesma como parte de um todo, como grão de areia num “infinitesimal do Todo”. Nas palavras da personagem Fink, procurar é não estacionar diante da realidade, a busca é a não reificação e o que importa é o percurso. Pólvora finaliza seu texto lembrando que a obra de Elisa, como toda ficção moderna, se nutre do ensaio filosófico e da poesia para formular questões essenciais para a época. Aproveitando-nos de sua ideia, poderíamos dizer que para o nosso contexto também, uma vez que a resignação e o estacionamento da mente frente às mensagens massificadoras são, em qualquer tempo, perigosos. Por fim, em “Elisa Lispector e a solidão de A última porta”, Maria Alice Barroso46 aborda o livro de Elisa dentro um contexto considerado desfavorável para o escritor e para a leitura no Brasil. O artigo discute o comportamento de escritores pertencentes ao que ela chama Geração 50, ou Geração-nostalgia, uma geração pré-televisão que “se dava ao luxo” de escrever sem pensar se o livro iria cair no gosto do leitor. Falando como alguém que conhece o universo

46 Maria Alice Giudice Barroso Soares (1926-2012) foi escritora, professora, jornalista e bibliotecária. Destaca-se na conjuntura das letras brasileiras por ter sido diretora laureada da Biblioteca Nacional, do INL e do Arquivo Nacional. 64

do livro (produção/aquisição/leitura), Maria Alice Barroso chama a atenção para o desafio de conquistar o público brasileiro dentro de uma realidade social marcada pela valorização da televisão. Barroso menciona que tais circunstâncias exigem do escritor a demonstração contínua de genialidade, sem a qual os originais não passam pelo crivo dos editores. Com relativo desânimo, a autora considera que o escritor empenhado “na preservação da sua espécie” e desejoso por um público cativo não pode escrever com complexidade. Apesar dessa realidade, há os escritores que deliberadamente ignoram as várias camadas de leitores e Elisa Lispector é uma delas. Falando como amiga da escritora, Maria Alice Barroso afirma que Elisa, em sua natureza digna e sincera, jamais mudaria a sua literatura em razão de agradar ao grande público: “Essa conquista [do leitor] deliberada (se quiserem, podem chamar também de despudorada), essa garra de feirante disposta a esvaziar sua barraca, isso não existe em Elisa Lispector.” (BARROSO, 1975, p. 4). De maneira premonitória, a jornalista intui que o desinteresse pelo poder do leitor “mediano” e o respeito pelo seu próprio projeto literário poderiam determinar o desaparecimento de Elisa. A leitura de A última porta, para Barroso, comprova o que ela defende. Com poucas cenas de ação (para Barroso, a ação em Elisa é um acessório), A última porta é um romance constituído de reflexos do pensamento de Ana. Essa ausência de ação certamente não agrada ao público, ávido por tramas ágeis, movimentadas. Para Barroso, à semelhança da protagonista Ana, Elisa foi uma pessoa inconciliável com a vida, porém, que não se rendia às circunstâncias que a desfavoreciam, até mesmo na literatura. Ela garante que a escritora fazia parte da “esquálida mas convicta fileira de escritores que olham, com profunda desconfiança, situações que signifiquem ‘consagração popular’, ‘cadeia nacional de audiência’, ‘relação de best-sellers’, etc.” (Idem, p. 4). Nesse sentido, viver longe da popularidade não é apenas resultado da maneira como produzem esses escritores eremitas, mas uma forma de “manter a perspectiva de sua própria dimensão” através da não confusão com os outros. Essa leitura de Maria Alice Barroso explica pelo menos parte do eclipsamento da obra de Elisa Lispector, ao sugerir que o público da autora era seleto e reduzido. A complexa literatura da escritora, feita de monólogos interiores, reflexões existenciais e poucas cenas dramáticas, tornava a leitura hermética demais, criando como público-alvo uma espécie de divisa secreta, que desapareceu com os anos. Quanto ao romance de 1983, Corpo a corpo, conhecemos apenas dois textos curtíssimos. Um prefácio de três páginas de Marcos Santarrita para o livro, intitulado “O 65

pássaro perdido de Elisa”, e “Desencanto e solidão”, de Vivian Wyler47. O texto de Marcos Santarrita sobre Corpo a corpo versa de forma quase narrativa sobre pontos do livro:

Sentada numa praia, diante de uma cabana solitária onde se refugiou, uma mulher olha o mar, o céu e as gaivotas e tenta juntar os cacos não apenas de um amor perdido, mas de toda uma vida, agora que já sente as intimidações da morte — seu amado se foi, e ela certamente não tardará muito a ir-se também. O sol nasce, o sol se põe, ela passeia pela praia, vai de vez em quando a uma aldeia próxima buscar provisões, e pensa, relembra, reconstitui, reavalia — e de certa forma revive mesmo o que não viveu, o que deixou de viver, porque não sabia, ou esqueceu. (SANTARRITA, 1983, p. 5)

Os verbos “pensar”, “relembrar”, “reconstituir”, “reavaliar” formam as ações do romance. Não é à-toa que Santarrita chama a atenção para a falta de trama do livro, porém não como algo ao seu desfavor: “Esta é a história que conta Elisa Lispector em seu novo livro [...]. Aliás, história, mesmo, quase não há aqui.” (SANTARRITA, 1983, p. 5). Isso porque o livro é construído de forma episódica e rememorativa. Esses episódios lembrados são recordações que vão desde a infância e adolescência da narradora até os desencontros da protagonista com o marido, “tristes recordações de um desencontro, de uma total incomunicabilidade com o ser amado”. Narrado por uma personagem debilitada fisicamente, Corpo a corpo é um grande lamento catártico, que visa à renovação da mente não para a vida e sim para a morte. Uma história como forma de compreensão e libertação. Poético, delicado, sobre a morte, mas sem a morbidez da morte, o livro mostra que no processo de viver há grandes descobertas que nos fazem ascender ou cair, “iluminações que nos transformam em deuses”. Para Marcos Santarrita, o romance de Elisa Lispector é um canto suave que aborda a tomada de consciência humana da falta de sentido do mundo. Dentro da questão temática, Santarrita resume o livro a um tema: a solidão. A narradora de Corpo a corpo descobre “num mea culpa que sua solidão resulta muito mais de si mesma, de sua incapacidade de dar-se, e sobretudo de receber, do que do outro” (Idem, p. 6). A nosso ver, a mea culpa a que Santarrita se refere é fruto da baixa autoestima das protagonistas, que não se sentem justas quando culpam outros pelo malogro das relações. Fenômeno similar ocorre em A última porta em relação a Gastão, o marido irônico e alcoólatra de Ana, e em O muro de pedras, com o vaidoso e adúltero Heitor, esposo de Marta. O texto de Marcos Santarrita menciona o modo como a introspecção atua na construção de Corpo a corpo. O último romance de Elisa Lispector tem um narrador protagonista e prova

47 Apresentaremos a dissertação O discurso melancólico em Corpo a corpo, de Elisa Lispector, de Fernanda Campos (2006), no tópico seguinte, quando tratarmos das análises posteriores à morte de Elisa. 66

que a consciência pode ser responsável pelo contar da história. O corpo doente, enfraquecido, e o estado depressivo reduzem a narradora ao mínimo da ação. A narrativa se desenvolve apoiada pela autoanálise e autodescoberta, já que em Elisa a verdade da personagem é encontrada internamente, fluindo do pensamento. Essa verdade, às vezes consoladora, às vezes desesperadora, é visualizada de chofre, num momento curto de iluminação. Elisa criou uma imagem em Corpo a corpo para representar essa tomada de consciência; com ela, Marcos Santarrita encerra o seu prefácio, ao mesmo tempo em que justifica o título do seu texto:

Imagino como deve pulsar tumultuado o pequenino coração de um pássaro que no céu em pleno voo tenha perdido o senso de direção. As asas — e quanto mais longas, mais pesadas — em vão tentando sustê-lo, e ele a perder velocidade e em altura, e a cada esforço mais e mais cansado. (LISPECTOR, 1983, p. 7)

O outro texto publicado sobre Corpo a corpo foi escrito por Vivian Wyler48, publicado no Jornal do Brasil, na seção Livros. Em “Desencanto e solidão” (1983), um pequeno artigo sobre a obra, Wyler introduz o assunto, retomando a vida de Elisa e a viagem migratória da família Lispector. Esse dado, considerado pela autora como uma inconstância geográfica, teria dado à obra de Elisa um caráter universal por discutir um recorrente problema humano: a solidão. De uma maneira fluida, Wyler apresenta a pequena trama de Corpo a corpo, centrando- se no movimento narrativo como forma do pensamento:

Passando uma temporada à beira-mar, para se dar a oportunidade de rever e fazer uma espécie de balanço do que foi sua vida, a narradora relembra momento por momento dos últimos anos. E celebra a morte do amante, especialmente sentida devido à relação conflituada entre os dois. Comparando o fluir e o refluir dos seus pensamentos às ondas e voos das gaivotas, deixando-os oscilar à mercê das alterações atmosféricas, essa mulher que foi companheira de um escritor sofisticado, durante boa parte de sua existência, descobre que amou muito. Mas conclui que não foi amada. Pelo menos não como gostaria de ter sido. (WYLER, 1983, p. 2)

Wyler considera a literatura de Elisa próxima da de Virgínia Woolf pelo uso de imagens relacionadas ao mar (farol, ondas, marés, etc.) e distante da literatura de Clarice pelo uso de uma “linguagem precisa”. Sem especificar bem a que se refere, entendemos a afirmação como uma maneira de evidenciar que a ambiguidade não é comum em Elisa. Wyler nota, em Corpo a corpo, o uso de imagens, luz, sombra, brilho e opacidade, recurso que também notamos em certos contos: o modo como a composição da cena dialoga com a arte pictórica. Em

48. Vivian Wyler foi jornalista e resenhista de obras literárias no Jornal do Brasil e gerente editorial da Editora Rocco até 2017, ano de sua morte. 67

“Desencanto e solidão”, Wyler confirma o poético em Corpo a corpo e a discussão existencial relacionada à vida e à morte: “A sua constante preocupação com o vazio existencial faz dele, isto sim, um livro marcadamente humanista.” (WYLER, 1983, p. 2). Negando que o livro apresente apenas um ponto de vista feminino, Wyler considera que o problema da solidão atinge qualquer ser humano. Em relação a Corpo a corpo, estes dois pequenos textos confirmam que a crítica sobre Elisa Lispector na década de 80 é minúscula. Além disso, nenhum deles interpreta esse último romance como uma balanço literário da relação entre as irmãs Lispector, como sugeriu Benjamin Moser, ao afirmar que este romance é “um doloroso ajuste de contas que a solitária Elisa escreveu após a morte da irmã; uma mulher (Elisa) escreve comoventemente a um homem (Clarice) que ela amou e perdeu” (MOSER, 2009). Os que fazem esta leitura se baseiam no fato de que a publicação da obra foi realizada após a morte de Clarice em 1977 e de que alguns dados biográficos de ambas as irmãs estão presentes na trama. Elisa, assim como a narradora de Corpo a corpo, é uma exímia pianista, enquanto o marido é um escritor genial, tal qual Clarice. Assim como acontece no livro, em que a mulher se queixa de não haver atendido ao companheiro apenas por não estar consciente de sua finitude, Elisa teria se arrependido de não atender aos pedidos de comunicação de Clarice antes de sua morte. Voltamos, então, ao ponto em que questionamos a leitura da obra elisiana como um meio para entender Clarice. Ler No exílio para conhecer a migração de Clarice para o Brasil, ou Corpo a corpo, na tentativa de conhecer a relação entre as irmãs, é reduzir estes textos a uma referência literal e realizar um trabalho de pouco aproveitamento do ponto de vista interpretativo. Relembramos, então, Antonio Candido, em Formação da Literatura Brasileira (2000), no qual o crítico defende que só vale a pena investir em dados biográficos do autor se de alguma maneira essa informação se transforma em elemento de construção no texto. Ainda que Corpo a corpo nasça inspirado na relação de aproximação e retração das irmãs Lispector, é importante averiguar até que ponto esse fator interferiu na elaboração estética do romance e, a partir daí, ponderar se os fatores ligados à vida do autor são indispensáveis, úteis ou descartáveis nessa análise. Se o livro é dedicado a Clarice, caberia ao crítico indagar, por exemplo, por que Elisa tematizou enfaticamente as dificuldades de comunicação nos casamentos (em todos os romances, a partir de O muro de pedras), a ponto de transformar a relação fraternal num binômio marido e mulher. Um ponto que merece ser discutido, tendo em vista que pelo menos cinco contos de O tigre de Bengala abordam o fracasso do casamento. 68

Do ponto de vista da história literária, apenas dois livros incluem Elisa Lispector na lista dos escritores brasileiros. No primeiro, intitulado Apresentação da Literatura brasileira, Oliveiros Litrento (1974) define Elisa como uma escritora neomodernista que combina uma linguagem clássica com as vanguardas ocidentais do século XX. Para ele, a ficção de Elisa se caracteriza por substituir a narração tradicional por “obsessivo monólogo”, à semelhança de Katherine Mansfield49, e exemplifica sua declaração com a inclusão de “Sangue no sol”, conto publicado pela primeira vez em 1970 e reiterado em O tigre de Bengala. Oliveiros Litrento (1923-2006) foi professor universitário, escritor e coronel do exército brasileiro. Seu livro extenso, dividido em dois tomos, foi produzido dentro do contexto da ditadura militar (a apresentação e o prefácio são da autoria de um major e de um coronel, respectivamente) e talvez por isso seja pouco conhecido atualmente. A outra obra a incluir Elisa Lispector no cânone brasileiro é História concisa da Literatura brasileira50 (2006). Alfredo Bosi localiza a escritora entre as “Tendências contemporâneas” (cap. VIII) e lhe dedica duas linhas: “De Elisa Lispector, um romance como O muro de pedras (1952) [sic] dá exemplo de notável acuidade na percepção dos mais leves matizes da afetividade.” (BOSI, 2006, p. 420). Ainda que pequenas, algumas considerações sobre a menção a Elisa podem ser feitas. A primeira delas é a observação de que Elisa faz parte de um grupo de escritores que se distinguem, cada um a seu modo, pelos narradores intimistas. Neste rol, Bosi cita nomes como Lygia Fagundes Telles, Antônio Olavo Pereira e Otto Lara Resende. Segundo o autor, esses romancistas e contistas pós-anos 40 “atestam, em conjunto, a maturidade literária a que chegou a nossa prosa de tendências introspectivas”. O segundo detalhe digno de nota é o exemplo escolhido por Bosi. Fosse nos dias atuais, certamente, o título citado seria No exílio. No entanto, lembremos que, até a década de 80, o livro No exílio e seu caráter biográfico pareciam um caso isolado na ficção de Elisa Lispector. Hoje, com a publicação de Retratos antigos, houve uma revalorização desse eixo temático. Nesse sentido, apresentamos o texto “Indagações metafísicas na obra de Elisa Lispector”, de Pietro Ferrua (1978), prefácio de O dia mais longo de Thereza (1978). Para Ferrua, o romance No exílio é um desvio de percurso na poética de Elisa. Como tenta explicar as questões filosóficas instauradas pela escritora, esta crítica minimiza a importância de No

49 Do nosso ponto de vista, a escrita de Elisa Lispector não é semelhante à de Mansfield; na verdade, certos contos de Lygia Fagundes Telles lembram as narrativas da neozelandesa em termos de construção da trama e da psicologia das personagens. 50 Como a primeira publicação de História concisa da Literatura é de 1970, podemos considerar que Alfredo Bosi tinha à época 4 obras de Elisa Lispector como referência: Além da fronteira, No exílio, O muro de pedras e O dia mais longo de Thereza. 69

exílio, enfatizando tão somente os traços intimistas e existenciais na escritora, como a presença da angústia existencial, da relatividade temporal, do nomadismo leibniziano e do neoceticismo, linhas filosóficas, segundo ele, presentes na sua ficção:

Com efeito, Lispector não cria personagens prostrados por uma banal solidão [...]. Na sua obra, o conflito da personagem com o mundo é um estado permanente de indivíduos que não “ligam” com outrem. A indagação sobre o enigma do ser está presente em todos os romances de Lispector. Essa interrogação é típica de todos os seus personagens centrais, usualmente mas não exclusivamente femininos, em busca de si mesmos, quer eles sucumbam na procura ou triunfem. (apud LISPECTOR, 1978, p. VII)

Em seu texto, Pietro Ferrua (1978, p. VI) chega a afirmar que “de cunho aparentemente autobiográfico, [No exílio] descamba às vezes para a polêmica política e o engajamento e que, por essa razão mesma, talvez seja o menos bem-sucedido de seus livros”, isso apenas para termos uma ideia de como a recepção mudou ao longo dos anos. Além dessa observação, o prefácio alude à introspecção e a certo estilo clássico e conservador da linguagem de Elisa. Fora essa consideração, Ferrua elabora leituras genéricas sobre os sentimentos das personagens de vários romances e do livro de contos Sangue no sol (1970). O texto de Pietro Ferrua assemelha-se, até certo ponto, ao trabalho de Telenia Hill (1989), pela tentativa de sintetizar as principais características da ficção de Lispector. No entanto, Hill é bem-sucedida na sua leitura. Enquanto Pietro Ferrua constrói parte do seu texto com referências descontextualizadas a vários artigos de crítica sobre Elisa, Telenia Hill elabora um ensaio com muito mais método analítico. Em seu texto, “O mundo ficcional de Elisa Lispector”, Telenia Hill (1989) chama a atenção para as fases ou estágios presentes nas narrativas. Tomando como base as obras No exílio (1948), O muro de pedras (1963), O dia mais longo de Thereza (1965), A última porta (1975) e Inventário (1977), a então professora universitária assinala com coerência que, num primeiro estágio, as personagens de Elisa precisam ficar sozinhas. Nesse processo, o isolamento é autoconhecimento51. No segundo estágio, a personagem busca pelos seus antepassados, numa tentativa paradoxal de encontrar a individualidade a partir da individualidade dos outros. Por sua vez, o encontro do outro leva à eclosão do amor por si, que seria então o terceiro estágio: a síntese dos outros e do eu.

51 Em conversa com alunos de uma escola do Rio, realizada através do projeto “O escritor vai ao livro” (Sec. Mun. da Educação), Elisa Lispector esclarece que, em sua obra, solidão e isolamento são particularmente diferentes: a primeira, é uma solução estéril, ao passo que o segundo é o encontro de si mesmo (WYLER, 1977, p. 6). 70

O quarto estágio do percurso de amadurecimento das personagens é a morte. Segundo Hill, Elisa “imprime à morte [...] um sentido dialético, de destruição e ressurgimento” (HILL, 1989, p. 91). Como uma das etapas a serem enfrentadas pelo homem, a morte é o componente irrefutável da vida. E, por fim, o quinto estágio, a esperança de plenitude, da superação de finitude da morte:

Cumpre-se, dessa forma, gradativamente um processo de amadurecimento. O ente se conscientiza de sua dimensão espiritual e passa a aceitar-se com um ser para morte. Reconhecendo a essencialidade da coragem para vencer os obstáculos que se apresentam na caminhada da existência, o personagem mobiliza todo o viver por um único instante, que transcenderá tudo o que materialmente fora difícil de suportar. (HILL, 1989, 92)

“O mundo ficcional de Elisa Lispector” oferece uma visão coerente do processo de construção e do percurso interior de algumas personagens. No entanto, é ainda um trabalho de caráter genérico, inclusive, porque tem esse propósito, a julgar pelo título escolhido. Dessa forma, fica ainda a sensação de que a seleção de uma única obra para exemplificação, com uma análise mais minuciosa, poderia ter sido realizada. Ainda assim, é um trabalho significativo em termos de caracterização geral, além de ter comentários analíticos sobre um dos livros de contos: Inventário, de 1977. Quando da publicação de Sangue no sol (1970), primeiro livro de contos de Elisa, a crítica mais significativa em jornal foi a de Nataniel Dantas52 (1970), em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo. Em “Contista da solidão” 53, Dantas nota a dramaticidade psicológica que os textos assumem e que, segundo ele, aproximam a ficção de Elisa à de Katherine Mansfield. Essa proximidade teria relação com a destituição de elementos urbanos ou de elementos geográficos nas fábulas: “Assemelha-se à [sic] determinadas ‘mise-en-scènes’, em que o diretor soluciona o cenário com praticáveis recursos de luz e algumas cortinas, conduzindo as atenções da plateia para o cerne dramático.” (DANTAS, 1970, p. 2). Embora discordemos de uma semelhança expressiva entre a contística de Elisa e a de Mansfield, vemos que Dantas toca numa questão importante aqui: a construção da cena narrativa e dramática nos

52 Nataniel Dantas (1926) é um crítico e escritor literário contemporâneo de Fausto Cunha, Renard Perez, Esdras do Nascimento, etc. Participou do grupo Café da manhã, cujo objetivo era divulgar jovens escritores por meio de reuniões e da publicação de textos dos integrantes. Foi fundador e colaborador da Revista Branca e escreveu textos de crítica e crônicas literárias para jornais brasileiros (A manhã, O Estado de São Paulo). Autor do livro de contos Veias desatadas (1960), que ganhou o prêmio Fábio Prado em 1960. 53 DANTAS, Nataniel. Contista da solidão. O Estado de São Paulo, São Paulo, 5 set. 1970. Suplemento literário, p. 2.

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contos. De fato, há uma economia em termos de descrição do espaço externo à personagem, processo que amplifica a significação desses elementos por ser fruto de uma refletida escolha. A seleção dos espaços mínimos (um quarto, uma sala, um consultório, um apartamento, uma casa etc.) e de sua rala mobília (uma cama, uma mesinha de cabeceira) não pode passar despercebida pela leitura. Esses ambientes e objetos compõem a história e com base neles as personagens desenvolverão suas reflexões, numa constante interação do interno com o externo, pois o que está em derredor possui significado simbólico para elas. Em “O furto”, por exemplo, a protagonista interroga-se por que não é merecedora de uma boa casa, enquanto desaprova internamente as cortinas puídas de seu quarto, tão pobres quanto ela. É um processo de identificação e assimilação, incentivado pela baixa autoestima da protagonista. Outro ponto que consideramos relevante refere-se à presença da solidão em Sangue no sol. Segundo Dantas, a solidão é um tema cíclico em Elisa, tangível já nos romances anteriores a 1970. No entanto, todas as personagens são, ao mesmo tempo, revoltadas e fascinadas pela condição de mulher solitária: “Os personagens de Elisa amam essa solidão e nelas estão envolvidos com a força e a determinação das almas místicas e santeiras.” (Idem, p. 2). Nesse sentido, e para o crítico, a solidão em Elisa foge daquela visão piegas e reducionista que querem lhe conferir por vezes, a de que as personagens estão constantemente em sofrimento por conta dessa solidão. Na verdade, essa condição é um elemento perpétuo que contribui para a construção da atmosfera tanto dos romances quanto dos contos. E uma leitura mais detida faz perceber que os textos tematizam muitas outras coisas. Dantas elucida essa interpretação com uma imagem. Segundo ele, os contos apresentam “visões da solidão”:

[...] porque cada título que se sucede, embora sugerindo coisas antípodas, parecem (sic) árvores plantadas num terreno comum e que, distantes e diversas na superfície, têm, no subchão, raízes comuns o que, no caso, é a solidão, a angústia, cósmicas e intransferíveis com suas variações e conotações óbvias. (DANTAS, 1970, p. 2)

A solidão, terreno para as “árvores-contos”, salta aos olhos na ficção de Elisa por conta da iteração. Justamente por isso, procuramos investigar nesta pesquisa a especificidade de cada conto e as “coisas antípodas” sugeridas por Dantas, analisando a singularidade dos temas, das fábulas e da perspectiva na narrativa. Ainda sobre a crítica da contística de Elisa, há dois textos, publicados primeiro em jornal na década de 70, mas que migraram para livros específicos sobre contos. O primeiro, cujo título 72

original era “Três faces do conto”54, foi republicado no livro A força da ficção, de Hélio Pólvora, em 1971; o segundo foi publicado em 22 diálogos sobre o conto brasileiro atual, de Temístocles Linhares, lançado em 1973. A importância dos dois ensaios está na inserção de Elisa Lispector no conjunto de escritores contemporâneos, com o reconhecimento de sua singularidade dentro de um contexto literário maior. A força da ficção (1971), livro de Hélio Pólvora, inclui análises tanto do romance quanto do conto brasileiro, assim como de escritores estrangeiros como Jorge Luís Borges e Henry James, sendo, nesse sentido, um pouco mais abrangente em termos de nacionalidade e de gêneros. Pretendia ser, pois, um estudo sobre a narrativa ficcional das últimas décadas quando de sua produção, com evidência para os principais traços, tendências e “principais cultores”, como afirma o texto de apresentação. Boa parte dos seus capítulos sobre a contística brasileira, que poderíamos considerar como pequenos ensaios, apareceu pela primeira vez no Jornal do Brasil, no qual o autor resenhava obras literárias. Narrativas de Guimarães Rosa, Luiz Vilela, Rubem Fonseca, Ricardo Ramos, Dalton Trevisan, Autran Dourado, Lúcio Cardoso, Samuel Rawet, e de outros escritores brasileiros, atualmente menos conhecidos, como Sônia Coutinho, Macedo Miranda e Elisa Lispector, são objeto de análise neste livro de Pólvora55. No ensaio “Fundamentos do moderno conto brasileiro”, Pólvora reflete sobre a importância do gênero, segundo ele, em plena ascensão no Brasil, e traça um breve panorama da contística nacional, tendo Machado como ponto de partida. Nesse quesito, destaca o caráter da fábula machadiana, baseada com frequência em “uma coisa acontecida, um fato pretérito” (PÓLVORA, 1971, p. 12), passando rapidamente para o modernismo que, segundo ele, foi um laboratório de pesquisas formais ao mesmo tempo em que sua temática advinha das percepções de um retrato nacional disperso. Segundo Pólvora, o Modernismo não teria promovido nenhum grande monumento literário, mas, destruindo modelos de composição, principalmente romanescos, fez surgir muitos “rebentos”. O conto, nesse processo, teria ganhado vigor, desatrelando-se do romance e fazendo surgir ficcionistas apenas desta narrativa, como Dalton Trevisan, Luís Vilela, entre outros. A partir de 45, uma geração de jovens prosadores recolheria “as cristalizações das tendências modernas na ficção”, dando frutos nos decênios seguintes (Idem, p. 19).

54 O artigo foi publicado no Jornal do Brasil em julho de 1970 e resenhava três livros lançados naquele mesmo ano: Sangue no sol, de Elisa; Do lado de lá, de Carlos Pelegrino, e Quero em teu seio adormecer, sonhar, de Raimundo Magalhães Júnior. 55 Curiosamente, Hélio Pólvora não apresenta nenhuma resenha sobre a produção de Clarice, embora no texto geral de abertura, no qual versa sobre o conto e suas várias modalidades, a inclua dentro dos contistas impressionistas. 73

Com a descoberta de Proust, Mansfield, entre outros, a ficção curta não seria apenas a narração de um fato ocorrido no passado, mas faria uma atualização desse tempo. Além disso, o gênero se diversificou em várias correntes intercomunicantes como prova de suas inúmeras possibilidades. Pólvora faz uma ordenação didática, elencando seis categorias para o conto: psicológico, regional, surrealista, documental, impressionista e de antecipação. O autor inclui Elisa Lispector no grupo do conto impressionista, “território das sensibilidades poéticas, dos estados de ânimo, dos dramas de personalidade em circuito fechado, do laboratório semântico.” (PÓLVORA, 1971, p. 21). Conforme Pólvora, Elisa mantém no conto o mesmo estilo de sua prosa romanesca, construída à base de símbolos e metáforas. A paisagem é interior e o episódio se desenrola em “zona morta da consciência, raramente se materializando em atos exteriores” (Idem, p. 21). O ensaísta nota bem, embora não citando uma linha teórica, que a ação do conto de Elisa se processa basicamente na mente da personagem, por meio de seu ponto de vista. Hélio Pólvora elabora algumas críticas aos contos de Elisa, vendo como negativa a unidade de pensamento das personagens, para ele, positiva apenas no romance:

Ao trazer para o conto a linguagem dos seus romances — a linguagem pessoal, indivisível, do escritor que testemunha, descrevendo e concluindo, e não a linguagem impessoal, flexível e variada, captada pelo escritor – Elisa Lispector preencheu o espaço do conto com um pathos imutável que, válido no romance psicológico de retrato único, ou de alguns retratos afins, deve mudar necessariamente de um conto para outro, porque as situações individuais nem sempre se reproduzem na experiência coletiva. (PÓLVORA, 1971, p. 48)

O crítico considera as personagens dos contos elisianos desnecessariamente parecidas. Em sua concepção, o conto, na quase obrigação de representar situações individuais, deve ser único quanto às vivências, às circunstâncias ou meio social de suas personagens, o que, para ele, não acontece com os contos de Sangue no sol que, lidos isoladamente, são perfeitos, mas quando vistos em conjunto são textos que não “ocupam todos os espaços da representação”. Em certo sentido, concordamos com Hélio Pólvora. Lidos de uma só vez, as narrativas de Sangue no sol apresentam protagonistas análogas, isso do ponto de vista da temática, como já foi dito. Esse descompasso, no entanto, pode ser entendido como a busca justamente daquilo que Pólvora considerou como pouco provável: reproduzir as situações individuais na coletividade. Sendo assim, o livro de Elisa, embora de narrativas independentes, poderia representar uma obra sobre a mulher a partir de certas perspectivas. São textos particulares, mas que representam certo sofrimento sucessivo e cíclico, que marca as personagens. 74

A igualdade de pensamento das personagens pode ser entendida como coesão, uma maneira de conferir ao livro de contos a ideia de uma obra una e não uma junção de narrativas completamente autônomas. Além disso, essa semelhança na paisagem humana em Elisa já podia ser vista nos romances. Em muitos aspectos, Marta, Lizza, Ana, Thereza e a narradora de Corpo a corpo apresentam similitudes. Campos nota isso na seguinte consideração:

Ao ler e conhecer os enredos dessas personagens de Elisa Lispector, pode parecer, a princípio, que seus romances contam a mesma história [...]. Se fizer uma leitura rasa e ligeira da obra de Elisa, o leitor provavelmente ficará com esta sensação: histórias que se repetem, mudando-se apenas os cenários e as protagonistas. (CAMPOS, 2006, p. 40)

Essa constatação poderia ser direcionada aos contos. No entanto, tomando como referência o livro O tigre de Bengala, composto por 22 textos, pode-se dizer que essas semelhanças são notadas apenas em grupos de narrativas, mas não em sua totalidade. Um conto como “Um dia, uma vida” se aproxima de “A agonia de viver”, ambos com protagonistas idosas, tentando suportar o passar do tempo e da vida. Contudo, um conto como “A partida” se distingue destes dois, por tratar de um casamento infeliz e da fuga da esposa. Esse, por sua vez, interage com “A terra é azul”, mas aqui o marido é quem finaliza o relacionamento após anos de violência verbal para, em seguida, a esposa cogitar uma viagem. Por isso, entendemos que, se há repetição quanto à representação da mulher, isto, antes de ser um defeito, é um efeito estético pretendido por Elisa Lispector, que oferece uma visão mais ampla da problemática. Se, nos romances, isso parece menos evidente, dada a possibilidade da inclusão de um número maior de personagens e da possibilidade de mudança de pontos de vista, nos contos esse efeito é acentuado. Segundo Dantas (1970), em “Contista da solidão”, a razão para a similitude das personagens está na representação do humano e do universal, baseado nas vivências e observações da escritora. Dantas, que aproxima Elisa Lispector de Kafka, diz que ambos os escritores produzem uma “fauna” de personagens, “cuja problemática central se desloca do individual para o universal, abstraindo-se, inclusive, a dar nomes, para classificar sua gente como meras letras (k, x, etc.) ou até sob a pele de animais.” (DANTAS, 1970, p. 2) De fato, dos 19 contos em que todas as personagens são mulheres, só nos é permitido saber o nome da protagonista de “Confidências”, chamada Lygia, e de “Uma nova sensação de realidade”, que é narrado a partir da consciência de Ana. Nos demais contos, a mulher/protagonista não é nomeada. Em grande parte, isso ocorre por conta do monólogo interior engendrado por Elisa. A mente que pensa sabe quem é, conhece a si, não precisa se autonomear, a não ser como recurso 75

retórico autodirecionado. Tanto em “Confidências” quanto em “Uma nova sensação de realidade”, a revelação do nome feminino se dá pela presença de cenas dramáticas vividas e/ou lembradas pelas protagonistas. Dessa forma, sabemos seus nomes única e exclusivamente porque são mencionados em determinado diálogo. Em suma, o texto de Pólvora é uma leitura válida do primeiro livro de contos de Elisa, apontando recursos de linguagem, como a presença de uma prosa poética e sugestiva. Retomando sua categorização, ele a inclui entre aqueles que produziram contos impressionistas, casando perfeitamente a introspecção às mudanças da narrativa curta pós-45: dramática, voltada para o tempo interior das personagens. Acerta também ao notar o processo de esclarecimento pessoal a que chegam as personagens por meio do monólogo. Para ele, porém, o conto de Elisa a teria traído, revelando a romancista que ela sempre fora. Ao tentar fazer um conto que gira em torno da personagem, como o romance deve fazer, Elisa teria esquecido a exterioridade, o meio social. Baseando-se nas suas concepções do que seria o conto e do que seria o romance, Pólvora sugere um pathos imutável que, válido no romance psicológico, deve mudar de um conto para outro. Nesse caso, cabe-nos refletir se essa mudança é mesmo obrigatória, necessária ou tão-somente um conceito literário do crítico, impossível de ser aplicado à contística de Elisa. Já o livro 22 diálogos sobre o conto brasileiro atual, de Temístocles Linhares (1973), é composto por uma série de ensaios nos quais o professor de literatura realiza diálogos retóricos sobre contistas e o conto brasileiro. Temas como linguagem e evolução do conto, classificações, ponto de vista, etc., são discutidos por meio de uma conversa entre o autor e um seu “amigo”:

— O conto, por ser prosa — dizia ele — ainda tem sobre o poema uma obrigação a mais: a de tentar oferecer maior lucidez acerca dos movimentos do coração. [...] — Mas não esqueça — repliquei logo — que, tal como o poema, o conto não prescinde do artesanato. A arte da síntese não o define inteiramente, mas, sendo arte autêntica, o conto só pode existir com perfeito domínio da forma. (LINHARES, 1973, p. 3)

E assim seguem as “discussões” sobre o gênero e suas especificidades. Após alguns capítulos, Linhares passa a discutir a contística brasileira através da produção de Machado de Assis, Luiz Vilela, Lygia Fagundes Telles, Moreira Campos, José j. Veiga, Dalton Trevisan, entre outros. No capítulo dezesseis, o diálogo versa acerca de Elisa Lispector, recém-lançada como contista, e sobre Vilma Guimarães Rosa, filha do afamado Guimarães Rosa e autora, à época, de dois livros de contos: Acontecências (1967) e Setestórias (1970). O texto é curto, mas é relevante pela representatividade de Elisa Lispector no conjunto de contistas brasileiros. 76

Linhares discute a contística de Elisa em Sangue no sol, reiterando a experiência da escritora como romancista e traçando um paralelo entre ela e Clarice Lispector, especificamente, com a obra Laços de família (1960), que em 1973 contava com quatro edições:

— Depois de cinco romances publicados, a Sra. Elisa Lispector faz a sua experiência no conto com Sangue no sol (Edit. de Brasília) e, quero crer, fá-lo bem. O seu livro, porém, não é simples aventura de escrita, em que a linguagem se apresente como fim em si mesma, sobreposta ao hic e ao nunc. Neste ponto, ela parece distanciar-se bastante de sua irmã Clarice, cuja aproximação surge logo como comichão no crítico. (LINHARES, 1973, p. 117)

As ideias principais do texto de Linhares são relacionadas, primeiro, à linguagem. Para ele, Clarice insiste na ambiguidade, no insólito, na opacidade e na absurdidade, enquanto Elisa tem o gosto pelas sentenças morais, “de que se originam muitas formas lapidares, passíveis até de serem destacadas do contexto”. Os textos elisianos têm, de fato, frases-lições, que lembram a moral de fábulas clássicas e surgem como encerramento do conto. Essa frase-síntese ou esse parágrafo conclusivo manifesta uma verdade compreendida, um entendimento especial quanto aos fatos narrados, uma espécie de tradução da epifania, às vezes lançando mão de elementos prosaicos da realidade, como no caso do conto “A terra é azul”56. Embora Linhares não afirme, do nosso ponto de vista, tal recurso nem sempre é positivo para a composição dos contos de Elisa, já que, em alguns casos, resultam em frases de efeito que conferem um caráter repetitivo e certo tom piegas à obra, principalmente quando lida em conjunto, servindo para o seu empobrecimento artístico-criativo. Funcionam de maneira semelhante certas sequências frasais reiteradas ao longo das obras romanescas, que, por conta da repetição, perdem a força metafórica que deviam conter. Expressões como “cair no abismo de si”, “encontrar-se fora de tudo”, “sensação de irrealidade”, “sensação de logro irremediável”, “a dor de viver”, “a ameaça do efêmero”, “desaprender a viver”, “sucumbir diante da existência” podem ser lidas nos romances e, às vezes, em contos de uma mesma antologia. Em alguns casos, porém, o recurso da “sentença lapidar” é bem realizado e serve como um fechamento funcional para o conto. A segunda ideia principal de Linhares é de que tanto Clarice quanto Elisa pertencem à classe dos “apocalípticos-aristocratas”. Segundo ele, ambas não podem ser incluídas dentro de um conceito de cultura de massa, tampouco de cultura popular, pois não vão ao encontro do gosto existente, sendo movidas apenas pela renovação da sensibilidade. Elisa construiria peças

56 A frase-síntese de “A terra é azul” é “A Terra é azul e os sentimentos não contam.” (LISPECTOR, 1985, p. 124) A personagem chega a ela ao contemplar a vastidão das coisas da perspectiva de uma janela de avião. 77

de arte a serem degustadas vagarosamente, quase uma “arte pela arte” em forma de conto. Sua linguagem é, segundo o crítico, nobre, aristocrática sem ser artificiosa, apesar de ser filosofante:

— São contos, realmente, para serem degustados na maior tranquilidade de espírito, num domingo sossegado, a gente de pijama, deitado numa chaise longue, como antes se dizia e se fazia. [...] Os contos da Sra. Elisa Lispector nos dão a sensação da sabedoria, capaz de nos fazer meditar sobre “uma xícara e um destino”, por exemplo. (LINHARES, 1973, p. 117)

Conhecido por estar associado à corrente sociocrítica, Temístocles Linhares menciona a cultura de massas, mas não aprofunda a discussão, já que a natureza do ensaio/diálogo não permitiria. Nessa última ideia, Linhares enfatiza o modo como Elisa movimenta as suas personagens em uma cena cotidiana, mas dentro desse universo prosaico há uma atitude filosófica, uma personagem que procura a plenitude e a verdadeira substância da vida. De modo curioso, e apesar de Linhares sugerir que os contos de Elisa favorecem uma suposta serenidade dominical, “Uma xícara e um destino” (LISPECTOR, 1970), conto citado por ele, possui uma forte crítica social57. Na história, uma atriz reflete lucidamente sobre seu mundo em um chá de “ladies”, em que a conversa sempre degringola para as intrigas das empregadas, a manutenção dos maridos e a limpeza dos apartamentos. A narração é feita com base no modo como ela considera as amigas:

Remoía no momento seu desconcerto aos erros de marcação que o diretor lhe apontara no ensaio, inda na véspera. [...] Nesse ponto, talvez que ainda à lembrança da cena do dia anterior, passou a observar com olhos novos as mulheres que tinha à sua frente, estagnadas na conformação e saciedade, e retrocedeu em suas considerações de há pouco num revigoramento de todo o seu ser. [...] Só agora verdadeiramente encontrava o sentido de algo que antes escapara à sua percepção. E ao desejo que por momentos a assaltou de vingar-se do desprezo que lhe votavam, sobreveio uma calma muito grande, qual imensa camada de óleo aflorando e se espraiando por sobre as águas revoltas. (LISPECTOR, 1970, p. 62)

Pouco perceptível em contos de natureza psicológica e filosófica, a crítica social está presente em Elisa. As mulheres da classe média são representadas como superficiais, insensíveis e tediosas, preocupadas em manter as aparências da casa e do casamento acima de qualquer afeto, principalmente o da amizade, sentimento que deveria justificar um encontro entre colegas. Nesse sentido, pode-se notar nessa contística exatamente o que afirma Linhares

57 De acordo com Theodor Adorno (2012), em “Palestra sobre lírica e sociedade”, todo texto, mesmo o mais subjetivo e poético, possui conteúdos histórico-sociais. 78

em relação à literatura do século XX: a abordagem da consciência do homem alienado, “não para exaltá-lo, é claro, mas para acusá-lo.” (LINHARES, 1973, p. 120). O segundo livro de contos de Elisa Lispector, Inventário, foi lançado em 1977, pela editora Rocco, numa edição singularmente pobre em termos de apresentação. Sem prefácio, há apenas na orelha do livro um pequeno texto biográfico sobre a escritora e sobre o prêmio José Lins do Rego, recebido em 1962. E acrescenta mais três parágrafos, copilados, respectivamente, de três críticos: Walmir Ayala, Octavio de Faria e Homero Senna. Todavia, os três abordam o livro O muro de pedras, também publicado pela Rocco. Em comparação com Sangue no sol, o livro Inventário (1977) obteve menor repercussão, se tomarmos como base o número de leituras críticas. Fora o ensaio de Telenia Hill (1989), que o insere na lista de obras citadas e tomadas como referência, não há nenhum outro texto publicado em livro sobre a obra. Em fevereiro de 1978, Maria Amélia Mello58 escreveu um pequeno texto sobre Inventário, de tom particularmente pessimista quanto à cosmovisão de Elisa Lispector. Em “A herança da solidão”, Mello faz uma ou duas ilações razoáveis quanto ao livro, como, por exemplo, notar a organicidade das histórias, ao mencionar que o livro é um “corpo cheio de elos” (MELLO, 1978, p. 3). Na sequência, fala do interesse primordial da autora: resolver e questionar as dúvidas e as angústias que povoam a solidão do homem. A partir disso, continua em ideias genéricas, acrescentando pouco ao que fora dito nas décadas anteriores, como o fato de a obra voltar-se para os aspectos psicológicos do homem, “para tudo que navegar em seu interior”. Segundo Mello, a natureza nos impõe a vida e a morte, um enigma que Elisa Lispector “escava sem piedade como se buscasse um prenúncio dentro do próprio homem e seus conflitos existenciais, sem se preocupar em demasia com a vida que vai além das janelas”. Talvez por seu desempenho no ramo da editoração, Maria Amélia Mello escreva sobre Inventário não como crítica, mas como leitora que sente certo estranhamento ao se deparar pela primeira vez com a literatura introspectiva. Somente assim para entender a seguinte passagem:

A sensação que temos, ao término da leitura, é que os alicerces das 14 histórias reunidas apoiam-se em um pântano e que as ideias se locomovem com bastante dificuldade para não afundar sem esperanças em areia movediça. São como que colocadas num círculo, onde o desespero encurrala o leitor e o asfixia. (MELLO, 1978, p. 3)

58 Ainda jovem, a jornalista foi editora do Suplemento literário do Tribuna de Imprensa nos anos 70 e atuou no projeto editorial da José Olympio por 30 anos. Desde 2015, trabalha como editora da Autêntica. 79

Apesar de parecer o inverso, queremos crer que Mello (1978, p. 3) considere positivo o fato de o livro encaminhar o leitor para o ponto que deseja, mesmo que seja o de “encurralado e asfixiado”, pois, se este for o objetivo dos contos (ao discutir dúvidas, inquietações e temáticas angustiantes do homem), então a obra terá cumprido o seu destino. Infelizmente, essa comparação estabelecida entre a base das histórias e um pântano não contribuiu para um bom juízo do livro e trechos como “as ideias se locomovem com bastante dificuldade” e similaridades “nos alicerces” dão a impressão de que as tramas são mal articuladas, repetitivas e que não avançam em seus objetivos. Um pouco à frente, ela retoma sua ideia inicial: “Como um eco, as histórias vão e voltam repassando as mesmas pegadas, as mesmas dúvidas e inquietações, não se afastando nunca de sua temática primeira” (MELLO, 1978, p. 3). Apesar da reformulação do texto, Mello ainda não deixa evidente se este “ir e vir” é uma qualidade ou falta de diversidade e criatividade na construção das histórias. Há, porém, um ponto em que estamos de acordo com Amélia Mello, pois entendemos que o monólogo interior em Elisa caminha lado a lado com a atuação do narrador observador, numa simbiose de pontos de vista: “O vocabulário reflete o cuidado, a intenção da autora em listar com minuciosa exatidão este núcleo narrativo, quando a observação da realidade coexiste com a análise introspectiva, característica marcante de seu estilo” (Idem, p. 3). Fora isto, discordamos quanto à falta de esperança e à impossibilidade de o homem modificar o seu destino. De todas as leituras já efetuadas, essa com certeza é a que enxerga mais desesperança em Elisa. Segundo o artigo, a esperança é vista como pequena, e o destino, como cordéis nas mãos de outrem, não é comandado pelas personagens. Citando trechos dos contos, ela afirma que o homem é um “anjo destruidor” diante da “rasa existência”, a ponto de “agarrar-se a um motivo, real ou imaginário, para não se deixar destruir” (MELLO, 1978, p. 3). A verdade é que, entre Sangue no sol e Inventário, o segundo livro apresenta um conjunto de histórias mais trágicas e angustiadas. Esta talvez seja a razão para Elisa ter selecionado apenas cinco contos da obra de 1977 para integrar O tigre de Bengala. E três destes contos (“Uma nova sensação de realidade”, “A terra é azul”, “O furto”) apresentam aquela gota de milagre, de renovação e recomeço simbolizada pela presença de novas expectativas, pela promessa de nunca mais sofrer, ou pelo levantar da cama pela manhã, numa insistente retomada da vida cotidiana, com seus pequenos e grandes desastres. Apesar disso, Mello considera a cosmovisão de Elisa Lispector como pessimista. No fim do seu texto, ela afirma: “Este turbulento inventário, legado de bens reais ou imaginários, aflige o leitor, insere-o num contexto de isolamento, deixando-a na incômoda posição da 80

berlinda” (Idem, p. 3). É possível que o leitor de jornal de 1977 sentisse relutância em ler um livro cuja função fosse colocá-lo em um contexto de isolamento e na berlinda. Nesse sentido, o texto de Maria Amélia de Mello (1978), embora não completamente desarrazoado, causa um desserviço para a contística de Elisa, no que diz respeito à divulgação e ao incentivo de leitura, pois ninguém em sã consciência quer herdar a solidão, ainda que ficcional. Concluída a apresentação dos textos sobre os dois primeiros livros de contos de Elisa, partamos, então, para a crítica sobre o corpus. Quando da publicação de O tigre de Bengala, dois textos devem ser comentados porque se relacionam com a composição do livro propriamente dito: o primeiro, de Antônio Carlos Villaça, texto de apresentação, inserido nas orelhas da obra; o outro, de Bella Josef, a prefaciante. Em A ficcionista dos abismos, Villaça (1985) escreve:

Elisa Lispector é uma das maiores ficcionistas brasileiras. Muitos a consideram o autor mais densamente metafísico da moderna literatura nossa. [...] Que significado tem a vida humana? — a pergunta volta como um leitmotif imperioso e perene. Para ela, o ser humano é importante e insignificante, ao mesmo tempo. Eis o paradoxo fundamental, que a dilacera e a explica. Ela sabe que a pequena vida possui um sentido eterno. [...] Metafísica, impregnada de poesia, densa e inquieta, misteriosa, o mundo de Elisa é por excelência o mundo da solidão humana. [...] A sua meditação sobre o mistério da solidão do homem encerra-se, porém, com um sim, como uma aceitação. Não é uma solidão fechada, mas aberta. O desespero desaparece diante da concisa palavra de esperança. Homem algum é uma ilha, como disse John Donne e ela sabe. A obra de Elisa Lispector é um longo monólogo interior que gira derredor da solidão. (apud LISPECTOR, 1985)

Para este crítico, Elisa continua em O tigre de Bengala fiel ao ritmo interior de suas narrativas, ao seu estilo. Antonio Carlos Villaça sintetiza algumas recorrências nas obras elisianas, reiteradas na obra de contos. Ele retoma o paradoxo importância/insignificância do indivíduo, discutido em A última porta; alude ao aspecto “otimista” da ficção de Elisa: a descoberta das respostas (ainda que, de imediato, outras questões brotem para turvar a paz do homem) e a constante reconstrução em meio aos sucessivos desmoronamentos/crises interiores das suas personagens: “Elisa diz sim à vida. Não é uma solidão fechada, mas aberta. O desespero desaparece diante da concisa palavra de esperança” (Idem, 1985). E menciona a solidão, tema tão comentado pelos leitores críticos, e que surge como vórtice em torno do qual o monólogo se constrói. Para ele, Elisa Lispector estabelece uma reflexão sobre esse mistério que assombra e encanta os homens. Nesse sentido, a leitura de Villaça compreende a ficção elisiana como um extraordinário fenômeno paradoxal. 81

Quanto ao prefácio, Bella Josef (1985, p. IX), na edição de O tigre de Bengala, afirma: “Fiel à temática da solidão e da incomunicabilidade, a análise introspectiva e a preocupação intimista — elementos obsessivos e onipresentes — constituem-se na marca registrada da narradora.”. E, em passagem mais à frente, diz: “Os monólogos interiores registram a impossibilidade de diálogo: daí a densidade desses contos em que se busca preservar o indivíduo e sua individualidade, contra a massificação [...]” (JOSEF, 1985, p. X). Para Josef, a introspecção, uma marca registrada em Elisa, é a forma narrativa que sustenta suas temáticas mais recorrentes e aparentes. A solidão e a incomunicabilidade, portanto, são a matriz que desencadeia o uso do monólogo interior como ponto de vista narrativo, pois, na ausência do outro, restaria à personagem elisiana o diálogo mental e ensimesmado. Nesse sentido, o monólogo interior se justificaria pela recorrência da solidão como tema nessa obra ficcional. Bella Josef aponta ainda a presença de alguns recursos de linguagem como a autorreflexão, em que o “Eu narrador é agente e paciente”, e o perfil das protagonistas: as personagens elisianas “sofrem a angústia de um mundo indiferente e caminham sentindo a agonia de viver, no transcorrer de dias completamente iguais” (JOSEF, 1985, X). Por sua leitura, Bella Josef compreende a contística de Elisa como uma literatura que se vale de recursos temáticos e de construção característicos dos escritores intimistas do século XX. Uma contística que tematiza a busca pelo autoconhecimento e que explora a realidade interior. Como se nota pelos textos que compõem O tigre de Bengala, o monólogo interior compõe a ficção elisiana e isto não é um “achado” analítico, pois alguns já o fizeram e com razão. Porém, como boa parte dos trabalhos apresentados é de natureza breve, composta por alguns artigos e textos de apresentação, nenhum, a rigor, chega a analisar como esse recurso é usado pela escritora nem como ajuda a estabelecer o sentido de seus contos. E, embora concordemos com essa leitura mais genérica sobre a solidão e/ou a incomunicabilidade, nos contos de Elisa nem sempre esses dois temas são centrais (embora estejam presentes); portanto, o uso do monólogo interior, nesses casos, é um método que embasa outras discussões temáticas. Em termos de resenhas jornalísticas, apenas um texto foi publicado acerca de O tigre de Bengala. Logo após o lançamento da antologia, “Gota de milagre” foi publicado na Seção Estante, assinado por Roberto Reis. Autor de textos sobre a construção do cânone brasileiro59, Reis faz uma apresentação da antologia de Elisa, começando por citar a frase de Villaça, o

59 Citamos como exemplo o texto “Preguiça pastosa — repensando o cânon literário brasileiro” (Cf. REIS, Roberto. In: Santa Barbara Portuguese Studies. V. I. Santa Barbara, CA: Center for Portuguese Studies, University of California, 1994, p. 122-139). 82

leitmotif: “que significado tem a vida humana?”. Segundo Reis (1985), Elisa constrói sua ficção em torno da solidão humana e está perpassada de seres angustiados que vivem em torno do autoquestionamento. Para elucidar a afirmação, evoca alguns contos, tais como “A rosa”, “A espera”, “Mínima história de (um) amor (naufragado)”, “O círculo da solidão”, “A terra é azul” e o conto homônimo do livro, ao estilo do prefácio de Bella Josef:

Os contos reunidos em O tigre de Bengala também apresentam criaturas desta estirpe. Por vezes elas se deparam com a beleza de uma rosa, símbolo da pura existência, ou com o nascimento de uma nova estrela — em ambos os casos logram uma solução para a problemática que as aflige. Em outros momentos, porém, narra-se a “mínima história de (um) amor (naufragado)” e as personagens não ultrapassam o “círculo da solidão” que os enclausura. Seja como for, trata-se de seres dotados de uma consciência aguda, comprometidos com uma busca dolorosa e apaixonada. (REIS, 1985, p. 9)

Sobre os contos, Reis confirma um dos aspectos da contística de Elisa: a ausência de uma trama tradicional e o uso de “recursos mínimos” para flagrar um momento decisivo na vida do homem, que o crítico vem chamar de “a gota de milagre”: “[o livro] com linguagem polida e dotada de alta voltagem poética, de forma a capturarem o leitor, tornando-o cúmplice do enigma da gota de milagre que habita cada instante” (Idem, p. 9). Um mês após a publicação de “Gota de milagre”, Regina Igel60 publicou uma entrevista com Elisa Lispector, intitulada “O tigre de Bengala: os polos invisíveis da solidão humana” (IGEL, 1985). Apesar de o título sugerir uma discussão acerca do livro recém-publicado, Igel apenas toca nas questões do livro de contos, focando a biografia e, consequentemente, o livro No exílio (2005):

As grossas pálpebras baixaram sobre os olhos cujo verde se debilitava em cor de malva. Para extraí-la de suas lembranças nostálgicas, introduzi um dos assuntos que me tinha levado a visitá-la e com o qual concordara: a temática judaica na sua ficção. O livro O exílio (sic). [...] A minhas perguntas, ela respondeu com segurança e clareza: — O exílio tem muito de autobiográfico e de minha ligação com meus ancestrais. Ele representou, para mim, uma forma de liberação. Precisei expor as angústias, as tristezas, o terror de uma menina que viu os pogroms, os assaltos da multidão e a destruição sistemática da sua casa e as de outros judeus lá da Rússia. [...] A tristeza me acompanhou durante todo o fazer do livro, mas terminei-o num dia alegre para nós, quando foi aprovada pela ONU a criação de Israel. (IGEL, 1985, p.7)

Vê-se que o livro No exílio serviu, de fato, como uma espécie de atividade reformuladora, catártica, motivada pelo trauma, e uma de suas funções para a escritora foi

60 Autora do livro biográfico Osman Lins: uma biografia literária (1988), Regina Igel é jornalista, professora de literatura e cultura brasileira nos EUA (University of Maryland System) e pesquisadora da literatura produzida por escritores judeus no Brasil e autora de diversos trabalhos que envolvem esses dois eixos, literatura e judaísmo. 83

libertar sentimentos e lembranças profundamente angustiantes. Como bem notou Santos (2015), em seu trabalho de pesquisa sobre o romance biográfico, há memória e também esquecimento de eventos traumáticos na obra de Elisa Lispector. O trauma para Elisa parece, ao menos por suas palavras, superado, tendo em vista que a finalização do livro coincidiu com um momento de bem-aventurança para o povo judeu. Por isso, entende-se não ser coerente atribuir à totalidade dos romances de Elisa a mesma motivação de escrita do livro No Exílio, como se vê em sua crítica mais atual. Isso faz com que vejamos em qualquer obra da escritora a tristeza, as incertezas da mulher imigrante, quando, na verdade, esses sentimentos, principalmente nos contos, podem ser de qualquer mulher. Sem especificações de nacionalidade ou religião (nos contos há muitas marcações de idade, profissão e estado civil), as protagonistas elisianas são universalizadas nesse sentido. Essa leitura pode ser confirmada pela própria Elisa no único parágrafo em que Regina Igel escreve sobre O tigre de Bengala:

Pelos 22 contos que compõem esta coletânea [...], é possível verificar, de um lado, a tendência à sinopse, buscada através de sua evolução discursiva e, de outro, a constância temática alusiva à solidão humana interna, invisível, e talvez incurável. Através de seus exercícios literários, este sentimento tem sido percebido pela autora como dor sofrida mais intensamente pela mulher confinada a uma vida solitária, seja por escolha pessoal ou por pressões existenciais. (IGEL, 1985, p.7)

Talvez em razão da natureza do texto jornalístico, breve e com espaço delimitado, Igel não pode desenvolver alguns juízos sugeridos somente pelas expressões “tendência à sinopse”, “evolução discursiva” e “solidão invisível”, que parecem ser o cerne de suas impressões sobre O tigre de Bengala, na época recém-lançado. Esses conceitos mereceriam alguma elucidação, ou exemplificação, além disso, poder-se-ia perguntar quando uma solidão é (ou não) invisível e por que esse sentimento seria assim definido na obra de Elisa. Por fim, na segunda parte do parágrafo, Elisa retoma algo que já se afirmou quanto a alguns dos seus textos: a solidão, a reclusão espontânea, não advém do abandono de outrem; ela pode ser uma preferência, inclusive, em razão da não identificação com certos grupos sociais. Em “O círculo da solidão”, conto narrado em primeira pessoa, a protagonista hospeda- se em um hotel e é convidada por Frau Elga (ou Helga, a narradora não tem certeza) a participar de um grupo social de mulheres, aparentemente, todas com as mesmas características: velhas e sozinhas: “As sócias são todas senhoras da minha idade [...]; tem também algumas da sua idade, me disse [...]. Sabe, reunimo-nos uma vez por semana.” (LISPECTOR, 1985, p. 80). No restante da história, a personagem principal esgueira-se pelo hotel, esquivando-se de Frau Elga, cujo convite lhe causa profundo mal-estar: “no íntimo em dúvida sobre se ainda não me considerava 84

bastante velha [...], ou se, com o fazê-lo, estaria tomando consciência de minha própria solidão.” (Idem, p. 81). No caso específico desse conto, a solidão é um problema comum, que tenta ser superado com um grupo de apoio semelhante aos alcóolicos anônimos. Não entrar para esse círculo social, referência direta para o título, mantém a ilusão do não pertencimento, da independência, ou mesmo de que não carrega o problema. O convite, portanto, é, por si só, um elemento desconcertante para a protagonista, cujas férias são arruinadas pela possibilidade de reconhecimento tanto de sua solidão quanto de sua velhice. Narrado em primeira pessoa, o conto remete também aos discursos realizados nesses grupos de apoio. Em “O tigre de Bengala: os polos invisíveis da solidão humana” (1985), Regina Igel interroga Elisa Lispector sobre as semelhanças entre sua literatura e a de Clarice; a irmã mais velha diz: “Não sou Clarice e seria impossível ser como ela. Ela foi única. Como eu o sou. O que temos em comum é a introspecção, esta preocupação com o íntimo, com o que dói dentro.” (IGEL, 1985, p. 7). A nosso ver, a fala de Elisa não manifesta ar de superioridade, tampouco de autopiedade, apenas o reconhecimento da singularidade individual e de um aspecto literário comum: a análise da personagem em sua interioridade dorida. Para fechar este tópico, convém ressaltar a ausência de leituras da ficção de Elisa Lispector após a publicação de O tigre de Bengala. Dois anos antes da morte de Elisa, quando esta já não frequentava livrarias, eventos literários e o Pen Clube Brasil, Leova Bernstein (1987, p. 2) teve carta publicada no Jornal do Brasil, na qual queixava-se do silêncio em torno da obra da escritora. No momento, Bernstein elucidou a importância de um romance como No exílio, recém-publicado na França (Paris, 1987), e questionou os críticos: “Teria a crítica achado que o brilho da obra de Clarice esgotou as possibilidades da sua família? Ou terá sido aplicado o princípio: não li e não gostei?”. Infelizmente, o fenômeno agravou-se com a morte da escritora. Em 1989, a jornalista e escritora Amélia Sparano (1989, p. 2) publicou o texto “A outra Lispector”61, questionando a falta de menções a Elisa e sua obra logo após o seu falecimento. Como o título sugere, a carta busca lançar luz para a irmã ignorada: “Elisa Lispector faleceu, aos 77 anos, no dia 6.1.1989. E depois de um breve necrológio, no dia, um silêncio se fez em volta dela. Mas a escritora não merece o esquecimento”. Para embasar sua afirmação, Sparano arrola os romances e livros de contos de Elisa, evidencia seus prêmios e a triste sina de ser irmã do gênio Clarice.

61 SPARANO, Amélia. A outra Lispector. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 08 fev. 1989, Seção Cartas, p. 2. 85

Em 1989, Clarice já havia atraído uma série de estudos acadêmicos, enquanto Elisa, embora com tão longa carreira literária, estava por sumir dos jornais e da visão do grande público. A conjectura de Amélia Sparano se realiza nos anos seguintes. O seu apelo em “A outra Lispector” marca o início da “hibernação” dessa ficção importante da literatura brasileira. Um destino que coube não apenas a Elisa, mas a outros contistas e romancistas seus contemporâneos citados neste trabalho, completamente esquecidos até o momento. Em “A outra Lispector”, Amélia Sparano (1989, p. 2) evoca o talento de Clarice, a Lispector, cuja referência se faz necessária para focalizar a “outra” escritora da família. Enquanto Clarice é uma rendeira, Elisa é uma pintora. Mestres na arte que desempenharam ao longo de suas curtas e longas vidas, as duas são dignas de estudo:

Podem e devem ser lembradas juntas as duas Lispector. Ambas exploradoras dos meandros da consciência e do âmago do inconsciente, focalizam os desencontros, o desamor, a incomunicabilidade que torna dramática a condição humana. Diferem no estilo. Elisa trabalha sua prosa com precisão expressiva, e tece painéis. Clarice brinca com bilros e cria rendas surpreendentes. A melhor homenagem que podemos prestar às duas é ressuscitá-las, lendo os livros que nos legaram. (SPARANO, 1989, p. 2)

1.5.2 Trabalhos de análise posteriores aos anos de 1990: biografia, memória e exílio

Na década de 90, Elisa Lispector ressurge em razão da valorização da memória cultural e familiar de sua obra, com destaque para o romance No exílio. Contribuíram para isso as pesquisas de Regina Igel, que passara parte da década arrolando e analisando os escritores brasileiros de origem judaica, cujos escritos tematizassem questões específicas ligadas ao judaísmo, tais como, a imigração internacional, a aculturação, as perseguições e o preconceito religioso, o sentimento de exílio, o cotidiano em bairros judaicos, o sionismo, o Holocausto, etc. Após longa pesquisa, Igel lança Imigrantes judeus/escritores brasileiros: o componente judaico na literatura brasileira (1997), no qual apresenta obras-referência de autores como Samuel Rawet, Moacyr Scliar, Sara Riwka Erlich, Alberto Dines, Jacó Guinsburg, Marcos Iolovitch, Abraão Iovchelovitch, Rosane Chonchol, entre outros62. Elisa Lispector ganha lugar de destaque na galeria de Igel por ser vista como a primeira escritora judia e brasileira a publicar uma obra literária no Brasil sobre a marginalidade, o antissemitismo e o movimento sionista:

Até agora [1997] não se tem conhecimento de obra brasileira judaica, anterior a esta, que trate destes tópicos. Esse romance projeta-se como marco inaugural de três dimensões: registra uma consciência literária do processo de marginalidade, como

62 Por critérios explicados em livro, Regina Igel não inclui Clarice Lispector entre os escritores analisados. 86

sentido por suas vítimas; abarca antissemitismo, como sofrido pelas suas presas; e guarda um relacionamento visceral com os primeiros momentos da concretização do ideal sionista. (IGEL, 1997, p. 163)

Portanto, Elisa Lispector estabelece um antes e depois com No exílio. O romance aborda pelos menos três notórios eventos da história mundial: a Revolução Comunista (1917); a Segunda Guerra (1939-1945) e a fundação do Estado de Israel (1948), ocorrido no ano de sua publicação. Além disso, trata, como nenhum livro nacional havia feito, da marginalização dos judeus nos países eslavos e o impacto disso em uma família fugitiva (Idem, p. 183). Igel analisa o romance autoficcional de Elisa focando a personagem Lizza, a protagonista, enquanto menina judia, marcada por um forte sentimento de exclusão ainda em terras russas. A biógrafa e historiadora cita trechos do livro em que Lizza se sente deslocada nos rituais católicos da escola em razão do olhar reprovativo dos outros, motivado pelo antissemitismo. Depois, este mesmo sentimento se agrava com a perseguição realizada pelas milícias e camponeses russos, perpetuando-se no Brasil, país em que são rejeitados pelos parentes judeus e pela comunidade não-judaica. Para Igel, No exílio tem um diferencial em sua construção, no que diz respeito à narração, feita a partir da retomada mental da protagonista e de cenas dramáticas, repletas de discussões e exposições orais do patriarca da família sobre os fatos que precipitaram o fim da guerra e de outros problemas que tomaram o seu lugar (conflitos entre árabes e judeus; domínio inglês na Palestina; estabelecimento de Israel, etc.). Essa segunda parte seria uma falha do livro:

O alinhamento de discursos ganha uma tonalidade didática que vem a prejudicar a intensidade dramática da história. Por outro lado, ao captar o isolamento do imigrante e a exclusão sentida pelo judeu, Lispector já projetava sua habilidade, mais tarde amplamente desenvolvida, em cultivar os tópicos da solidão e marginalidade como preferenciais na sua escrita. (IGEL, 1997, p. 185)

A perda de ritmo na construção da trama em razão do didatismo seria um problema da obra a que indiretamente Pietro Ferrua se refere, em finais da década de 70, em Indagações metafísicas na obra de Elisa Lispector, quando menciona que o livro “descamba às vezes para a polêmica política e o engajamento e que, por essa razão mesma, talvez seja o menos bem- sucedido de seus livros” (FERRUA, 1978, p. VI). Já Igel entende que o poder de mimetizar os sentimentos de solidão e marginalidade teria sido amplificado pelas experiências de Elisa em sua vivência de imigrante, fugitiva e judia, o que seria o ponto mais importante da obra. Além das condições adversas associadas ao judaísmo, Elisa abordaria também em No exílio o preconceito em relação ao pobre. A família de Lizza sofre com os parentes já 87

estabelecidos no Brasil, que ambiguamente acolhem e rejeitam, demarcando bem os estratos sociais. Elisa recria no romance o desprezo tanto no ambiente familiar como na escola, a partir da frieza e do sadismo com que as colegas constrangem Lizza a usar a língua portuguesa. Segundo Regina Igel (1997, p. 188), apesar dessas situações amargas retratadas, Lizza supera a tudo estoicamente, resistindo às cruéis manifestações de não acolhimento, enjeitamento, desaprovação e abandono. Em 1997, o livro Retratos antigos não havia sido publicado, por isso, Regina Igel afirma que No exílio é o único livro de Elisa a fazer referência às raízes judaicas da escritora. No entanto, a historiadora não lembrou que o livro A última porta trata, de maneira filosófica e existencial, das consequências psicológicas em uma imigrante, sobrevivente das atrocidades realizadas na Segunda Guerra contra os judeus. A protagonista do romance é órfã de guerra, separada do irmão com quem não pôde ter contato, adotada ainda na infância por uma família desajustada. Por esses fatores, seu judaísmo não é retratado como religião prática, contudo, se faz presente em imagens “borradas” da memória e no estado de choque com que ela assiste ao filme Os crimes de Adolf Hitler na trama do romance. Há também metáforas relacionadas ao universo da guerra e, indiretamente, o medo contínuo de Ana adulta origina-se das experiências traumáticas dessa época, como a morte dos pais, a troca de lar, o aprendizado de pelo menos duas línguas estrangeiras como forma de sobrevivência, etc. Além de figurar em um manual de história literária como Imigrantes judeus/escritores brasileiros, Elisa Lispector sempre teve lugar garantido em revistas literárias judaico- brasileiras. A partir dos anos 2000, a internet permitiu a elaboração de plataformas digitais e a consequente circulação de revistas eletrônicas nas quais a obra No exílio ganhou destaque. Num artigo intitulado “Caminhos cruzados: Clarice e Elisa Lispector” (2012), Berta Waldman se propõe a analisar, comparativamente, como a religião se materializa na obra das duas irmãs. Em sua análise, Waldman chega a mencionar o fato de que, apesar de “biográfica”, o foco narrativo de No exílio é de terceira pessoa. No entanto, rapidamente volta-se para a questão da memória, dos possíveis sofrimentos de Elisa:

As irmãs lidam com imagens contrárias que se recobrem e escondem e, num certo sentido, são complementares. Se no romance de Elisa o nomadismo e o deslocamento funcionam como núcleo temático, justificado pela ânsia das personagens de buscar soluções para as rejeições e abandonos sofridos em função de seu judaísmo, na obra de Clarice Lispector a mobilidade marca os textos como tema, mas, principalmente, como processo compositivo. (WALDMAN, 2012)

88

Percebe-se que nos trabalhos sobre Elisa, em especial os mais recentes (artigos de congressos e periódicos), o analista raramente foca o tratamento estético que o judaísmo ou o exílio recebem. Elisa é sempre a fugitiva, a sofredora, a nômade. É como se a autora não transcendesse religião e origem, transfigurando-as em arte. Isso nos leva a crer que a atenção recebida por Elisa por parte dos seus poucos leitores críticos aproxima-se do biografismo63. Outro exemplo desse tipo de leitura pode ser visto no artigo “Pertencer e o ‘Novo judeu’: Israel, diáspora, pátria(s)?”64, de Nelson H. Vieira (2013), publicado na Revista Digital do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes (Niej). O autor se baseia em passagens do segundo romance de Elisa para discutir o sentimento de pertencimento, de exílio, o que significa a diáspora judaico-brasileira. Vieira garante que, nas gerações recentes, o choque identitário do judeu se tornou menos fatalista do que nas primeiras décadas do século XX. Para ele, “pertencer” significa identificar-se emocional e culturalmente com o país, inclusive o de abrigo. Vieira cita vários escritores de origem judaica, como Samuel Rawet, Cíntia Moscovich e Clarice Lispector, dedicando um breve parágrafo para a obra de Elisa:

No romance semi-autobiográfico, No exílio (1948), de Elisa Lispector, irmã de Clarice, a história trata de uma família, refugiada dos pogroms da Ucrânia, muito semelhante à sua própria família, que se instalou no Brasil. Tematicamente, a narrativa trata de morte e nascimento, inclusive o nascimento do Estado de Israel, celebrado no romance (no ano de sua publicação), junto com o renascimento da família, fazendo uma nova vida no Brasil e também o renascer da filha mais velha em termos da sua identificação como mulher independente. Assim, o leitor pode observar a forte identificação histórica e política com Israel mas sempre do ponto de vista da vida judaica no Brasil, o novo lar ao qual a família imigrante pertence. (VIEIRA, 2013, 41)

Segundo Vieira, mesmo numa obra como No exílio, de claro teor sionista, a identificação judaica com o Brasil é muito forte e predomina sobre a transnacional, cuja centralidade é Israel. Nesse sentido, apesar de o romance tematizar o nascimento do Estado de Israel, esse processo é narrado pela perspectiva de Lizza, uma mulher brasileira. Ainda sobre a obra, o autor do artigo discorda de Regina Igel no que diz respeito à afirmativa de que No exílio é a primeira obra brasileira moderna de expressão judaica. Citando o escritor e crítico Jacó Guinsburg, Vieira considera que a ficção judaica se inaugura na literatura brasileira com o livro Contos do imigrante, de Samuel Rawet, cuja primeira edição é de 1956. Ao que parece, o autor não considera narrativas históricas e ficções memorialísticas como sendo literatura moderna,

63 O método biografista foi superado no início do século XX pela proposta teórica dos Formalistas Russos, que propuseram analisar a literariedade do texto, observando os elementos estéticos intrínsecos que o definem como arte. 64 Esse artigo pode ser acessado pelo endereço http://doczz.com.br/doc/221933/revista-digital-do-niej-6. Criado em 2009, o Niej é um núcleo de estudos ligado à UFRJ. 89

excluindo não apenas o livro de Elisa do pódio inaugural, como o livro Numa clara manhã de Abril, de Marcos Iolovitch, cuja primeira edição é de 1940. Um critério questionável, tendo em vista o valor de obras literárias memorialísticas, canônicas, das primeiras décadas do século XX, como Infância e Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, apenas para citar um exemplo, e o reconhecimento de que a literatura testemunhal, quando de qualidade, cumpre com todas as funções da não-testemunhal. A obra de Samuel Rawet, escritor judeu-brasileiro, também imigrante, mantém uma relação significativa com a ficção de Elisa. Ainda em relação às divulgações modernas na internet, o artigo “Elisa Lispector e Samuel Rawet: contribuições sobre exílio e isolamento intelectual”, de Rodrigues & Santos (2017), compara ambos os escritores e discute o exílio geográfico e o exílio intelectual, considerado como o “pós-exílio”. Publicado recentemente, o texto de Rodrigues & Santos não analisa obras literárias específicas, mas faz apontamentos com base em Contos do Imigrante, de Rawet, e em Além da fronteira, de Elisa, dentro dessa relação exílio-minoria-questionamento. É, portanto, um trabalho que visa verificar o percurso intelectual dos autores estudados, marcados pelo exílio de diferentes modelos, com base em leituras pós-estruturalistas. Os autores Rodrigues & Santos defendem que Rawet e Lispector constituem “trajetórias exiladas e que a partir do isolamento a que se submeteram podem contribuir para a formação de uma matriz do pensamento”. Segundo eles, os escritores judeus brasileiros trazem ao debate intelectual do século XX uma perspectiva cultural e temática que só se popularizou no século XXI, com a valorização das minorias. O exílio intelectual de Elisa Lispector, expresso através de seus textos literários, seria uma forma, então, de questionar padrões de pensamento. Suas narrativas dão visibilidade a temas dissonantes, questionando os valores de seu tempo, de uma sociedade aparentemente tolerante e acolhedora. Em relação às pesquisas acadêmicas de pós-graduação, há apenas três dissertações brasileiras sobre Elisa Lispector: a de Fernanda Cristina de Campos (2006); a de Vivian Leone Buarque dos Santos (2015); e a de Jeferson Alves Masson (2015). Em “O discurso melancólico em Corpo a corpo, de Elisa Lispector”, Fernanda Cristina de Campos usa como suporte teórico leituras do campo da Psicanálise e da Psicologia (Sigmund Freud, Jacques Hassoun, Marie- Claude Lambotte, Julia Kristeva, etc.) para analisar o estado emocional da protagonista, sempre marcado por uma tristeza profunda, e como as emoções se refletem em termos de linguagem ao 90

longo da narrativa. Primeira dissertação a ser publicada sobre a autora65, essa leitura merece destaque, primeiro, por fugir da inalterabilidade analítica voltada para as temáticas da memória, exílio e religião; segundo, por não tomar No exílio como corpus e sim o romance Corpo a corpo, de 1983. Sobre a obra, Campos afirma:

A escrita melancólica de Corpo a Corpo transforma-se em espelho, no qual deparamos com a solidão refletida e nos vemos esfacelados: ‘não em um esfacelamento total, onde todo o sólido desmancha-se no nada, mas um esfacelamento em gotas, em ondas, no líquido que escorre pelo papel. Entre duas margens opostas de um rio caudaloso’. Deparamos, enfim, com um discurso fragmentado, mas fluido e obsessivo. (CAMPOS, 2006)

O trabalho de Campos acerca de Corpo a corpo é minucioso e aborda tanto seus temas quanto as especificidades da linguagem elisiana, que funde certo estilo clássico, um “certo preciosismo na forma de articular as palavras”, a inovações narrativas, como “um enredo que tende a perder os contornos e as divisões nítidas até se desfazer no fluxo da memória” (CAMPOS, 2006, p. 17). Aprofunda-se ainda na maneira como a tristeza é mimetizada na obra, suas principais imagens metafóricas e seus mitos, com destaque para Sísifo e Penélope. Ainda sobre “O discurso melancólico em Corpo a corpo, de Elisa Lispector”, chama a atenção o primeiro capítulo da dissertação, intitulado “Um passeio por um cânone desconhecido”, no qual Campos apresenta todos os romances de Elisa, com exceção apenas de Ronda solitária. Ela discorre sobre diversos temas das obras, pois considera que eles são resgatados em Corpo a corpo (para ela, o último romance de Elisa seria uma espécie de síntese dos livros anteriores). Para Campos, são temas recorrentes em toda a obra a angústia e os questionamentos existenciais, o medo da finitude, a incomunicabilidade imposta pela morte, a busca constante de autoconhecimento e o isolamento:

Esse isolamento vai resultar na sobrelevação do tema solidão, sentimento imprescindível que acompanha a maioria das personagens elisianas, principalmente as femininas. Pela análise de seus múltiplos desdobramentos, vem à tona uma possível ponte biográfica para explicar tal interesse pelo tema: o problema de identidade vivido por ela, imigrante e judia que chega ao Brasil nas primeiras décadas do século XX. Possivelmente, em Elisa Lispector, é dessa solidão de “não pertencer” que nascem as angústias e a melancolia tão presentes em sua narrativa, fazendo com que as personagens vivenciem e expressem tais sentimentos com grande eloquência. (CAMPOS, 2006, p. 16)

65 As três dissertações estão disponíveis em plataformas virtuais dos programas de pesquisa de que se originaram.

91

Sobre a questão do ponto de vista narrativo, é importante mencionar que para a pesquisadora todos os romances têm narradores de terceira pessoa oniscientes, exceto Corpo a Corpo, cuja protagonista é narradora. Essa leitura é curiosa pelo fato de que Campos demonstra ter lido a obra de Elisa com muito cuidado e há em seu trabalho interpretações coerentes sobre o conjunto dos textos. Em alguns momentos, a autora da dissertação menciona monólogo e introspecção, mas não há de fato uma demonstração da relevância dessas escolhas narrativas, embora os seis romances da autora (exceto Corpo a corpo) consigam alcançar tamanha carga dramática e tematizar assuntos tão profundos no âmago do homem em razão da mescla de duas perspectivas narrativas: narrador onisciente e onisciência seletiva (monólogo interior). Sobre os contos, Campos é muito breve e comenta sobre aqueles que ela considera dialogar com os temas romanescos. Diferentemente das sínteses sobre os romances, aqui a pesquisadora não relaciona bem os textos, mencionando, por exemplo, a obsessão pela morte em alguns dos contos de O tigre de Bengala, como “A agonia de viver”, “Sangue no sol”, “A morte do herói” e “Exorcizando lembranças”. Com exceção de “A agonia de viver”, não há obsessão da personagem pela morte nessas histórias, ainda que ela seja importante na conjuntura geral do conto. Em “A morte do herói”, por exemplo, a morte é mais simbólica do que física e, ainda que haja um homicídio ao final, o mais notório é o declínio da imagem do protagonista, que sempre representara honra, luta, hombridade, mas que é completamente desprezado em sua velhice. Já em “Sangue no sol”, a morte é intencionalmente excluída de todo o conto para que seu impacto, ao final, seja maior. Portanto, não há obsessão pela morte (pelo menos não no interior das personagens como crise, como questão), embora ela surja no clímax, sendo, de forma alguma, um elemento central do conto. De modo geral, os comentários sobre os livros de contos geralmente perdem a qualidade, quando comparados às leituras dos romances. Acontece processo análogo no trabalho de Vivian Leone de Araújo B. Santos, apresentado no Programa de Pós-graduação em Letras (UFPB), em fevereiro de 2015. A dissertação, intitulada “Memória, testemunho e exílio no romance No exílio, de Elisa Lispector”, analisa a segunda obra de Elisa valendo-se de estudos relativos à escrita literária motivada por migrações, perseguições e outras experiências traumáticas. Embora, a nosso ver, a leitura crítica da obra literária não seja primorosa (retomando, em muitos momentos, as mesmas discussões dos capítulos teóricos), o estudo apresenta excelente sinopse acerca da cultura e da aculturação judaica, da história do judaísmo no Brasil, além de discutir com coerência e fluidez conceitos complexos, relacionados à literatura enquanto forma possível de testemunho e superação. 92

Em seu estudo, Santos (2015) intenta relacionar alguns textos de O tigre de Bengala com o romance No exílio, evidenciando a temática do exílio em “Amor”, “Um dia, uma vida”, “Confidências” e o teor testemunhal em “Exorcizando lembranças”. No entanto, assim como Campos, ela realiza algumas notas sobre os contos, não chegando a analisá-los de fato. Santos se propõe também a fazer uma ponte analítica do romance biográfico No exílio com O muro de pedras, em razão de uma possível proximidade temática, no que diz respeito à complexa relação mãe-filha. Um outro ponto negativo da leitura de Santos é a forma com que trata a escrita de Elisa Lispector. Ela reúne informações válidas sobre vários aspectos, mas elas podem ser aplicadas a praticamente qualquer texto da autora, sem especificidade de ordem formal ou estilística, sendo, às vezes, somente um discurso eloquente e genérico:

Elisa Lispector mostra, através da criação de seus personagens, e das nuances testemunhais de seu romance o quadro abrupto, sem linearidade e sem cores, pintado pelo trauma. A impossibilidade de lidar com a realidade e de se conectar num universo de perdas e ganhos. (SANTOS, 2015, p. 64)

Trata-se da história pessoal, a construção pessoal, a individualidade de um cosmos que se desintegra na busca de descobrir o que foi feito de si. (SANTOS, 2015, p. 68)

A personagem vive em eterno conflito de caráter identitário, e, por vezes, afetivo. Experimenta a ambivalência, delineia um limite, trava batalhas com suas lembranças, busca passar a limpo sua narrativa pessoal, equilibra-se na corda bamba do poder ser. (SANTOS, 2015, p. 85)

Se observarmos, os trechos trazem juízos semelhantes apenas reformulados. Além disso, o leitor que conhece o romance poderá atribuir algum sentido à “impossibilidade de se conectar” ou “um quadro abrupto, sem linearidade e sem cores”, do contrário, não saberá a que especificamente o texto se refere. Há talvez aqui uma influência da linguagem do escritor pesquisado sobre a retórica do pesquisador, pois “equilibrar-se na corda bamba do poder ser”, “a individualidade de um cosmos” e “descobrir o que foi feito de si” são expressões que poderiam ter sido pensadas por uma personagem de Elisa, tal é a similaridade estilística. O terceiro trabalho acadêmico sobre a obra de Elisa intitula-se “Elisa Lispector: registros de um encontro” e foi apresentado em 2015 na Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro. Seu autor, Jeferson Masson, é um admirador da trajetória literária de Elisa Lispector, tendo, inclusive, organizado eventos com o objetivo de divulgar a obra da escritora. Em janeiro de 2013, Masson realizou o “Descobrindo Elisa Lispector”66, cujo objetivo foi a leitura de trechos dos dez romances da escritora, na galeria Tatlin, no Rio de Janeiro. Masson passou

66 Evento noticiado no Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 11 de jan. de 2013, por Mariana Moreira. 93

cerca de vinte anos realizando entrevistas com parentes de Elisa, reunindo correspondências, resenhas, fotografias e outros gêneros textuais sobre a escritora, e possui um verdadeiro acervo sobre a autora (homenagens, notas de jornal, discursos de posse, etc.), além da sua própria casa, uma espécie de santuário para as irmãs Lispector. A dissertação de Masson (2015) tem como corpus esse material (inclusive as imagens de sua residência em Itapemirim - RJ) e o objetivo de evidenciar a importância do resgate da obra de Elisa para a literatura brasileira. Apesar do trabalho paulatino ao longo dos anos e da possível reunião de informações exclusivas, a dissertação de Masson explora pouco o material recolhido. As entrevistas realizadas com familiares, escritores contemporâneos e amigos de Elisa (Tania Kaufmam, Bella Josef, Renard Perez, Maria Alice Barroso, Antonio Carlos Villaça, etc.) são parafraseadas pelo autor, assim como telefonemas com críticos literários (Fausto Cunha, por exemplo). Justamente por isso, a dissertação nos dá a impressão de que o acervo pessoal do pesquisador continua inacessível mesmo após a sua feitura. Apenas a referência a vários textos críticos serve de ajuda para os interessados na obra de Elisa. A leitura crítica é a menor parte do trabalho e a mais superficial, pois Masson não trabalha com a análise de nenhuma obra específica. Embasado na crítica biográfica, Masson afirma ter observado as “pontes metafóricas entre os fatos vivenciados e a própria ficção” de Elisa Lispector. Na análise da ficção, em um tópico intitulado “Análise geral de alguns romances e contos”, o pesquisador realiza isso mesmo, uma análise geral de alguns textos. Ele comenta os enredos e as temáticas de Além da fronteira, O muro de pedras e A última porta, chamando a atenção para os elementos relacionados à vida da autora, como, por exemplo, o fato de Sérgio, o protagonista do primeiro romance, ter um nome russo (Sergei) e de a protagonista de A última porta professar o judaísmo. No mais, aponta as questões da incomunicabilidade das personagens, a solidão, a angústia existencial, o exílio, o sentimento de não pertencimento, ou seja, as mesmas temáticas já repassadas. Essa aproximação estabelecida entre o sofrimento das personagens e a vida de Elisa parte do fato de Jeferson Masson considerá-la, em sua admiração de fã, uma injustiçada pelo destino. Seu texto tenta demonstrar seus atributos como escritora e como a sua vida reclusa teve influência sobre os textos. Isso fica muito claro no modo como ele inclui o depoimento dos amigos de Elisa:

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Amélia [Sparano] repetiu esta história diversas vezes [...]. Disse que Elisa era funcionária pública e que isso atrapalhava bastante sua carreira literária. Da mesma forma que outros amigos, afirmou que Elisa Lispector era uma pessoa solitária e assegurou que Clarice a ofuscava. [...] Seus romances, segundo Amélia, refletiam seu exílio existencial e a fuga da Ucrânia para o Brasil marcou toda a sua vida e o seu processo de escrita. Afiançou que Elisa estava sempre recolhida e que nunca falava sobre a irmã Clarice. De repente, sussurra: “pobre Elisa, ser sozinha”. (MASSON, 2015, p. 59)

Num tom de piedade misturado a um matiz crítico, Renard Perez teria dito que Elisa era “uma deprimida e triste” (MASSON, 2015, p. 61). Já a mulher do escritor, Helena Perez, teria confessado: “eu acho que Elisa nunca tomou antidepressivos. Acho que ela achava normal viver assim, constantemente triste” (Idem, 2015, p. 62). Há muitas passagens como essas, em que a mulher Elisa Lispector é descrita como amargurada, solitária, deprimida, insegura, desconfiada, entre outras características. Por conseguinte, a visão de Masson sobre a obra de Elisa segue essa mesma linha:

Em todas as obras elisianas, inclusive nos seus contos, podemos claramente observar esse desenho de uma memória diaspórica, exílica, e esse aspecto aponta para outra questão, que é a literatura como testemunho. [...] Os romances de Elisa Lispector são obras que testemunham a solidão humana, a meu ver, decorrentes dessas situações traumáticas. Todas as personagens elisianas são diaspóricas, desenraizadas, que têm em si a doença da incomunicabilidade. (MASSON, 2015, p. 73)

Jeferson Masson aborda, ainda que rapidamente, os contos “Medo”, “Insônia”, “Réquiem” e “Inventário”, presentes na coletânea de 1977, pois são textos que, segundo ele, trazem “à baila” a natureza “diaspórica” da linguagem de Elisa Lispector, assim como a concepção de que a escritora considerava-se a guardiã de uma escrita que “escavava as profundezas do ser” e a sua própria história, atuando como uma “inventariante de sua própria escritura” (MASSON, 2015, p. 29). De modo geral, o trabalho de Masson é útil para quem procura as primeiras informações sobre a autora, pois ele a evoca na sua relação com a vida prática, com os amigos e parentes. É simpática, por exemplo, a inclusão de certas minúcias sobre ela, como o nome de seus médicos e a menção a problemas de saúde, como dores na perna e consequente dificuldade de locomoção. Fora isso, não há leituras críticas das obras, tampouco um aprofundamento do material coletado ao longo dos anos. Parte deste material, considerado pelo pesquisador como seu arquivo pessoal, pode ser encontrado em jornais de domínio público, como é o caso da entrevista “O tigre de Bengala: os polos invisíveis da solidão humana”, de Regina Igel (1985). Quanto ao conhecimento da obra, o leitor agrega mais a partir da leitura dos romances e dos livros de contos. 95

A partir das reflexões estabelecidas, consideramos que Elisa Lispector demonstrou sua singularidade criativa tanto nos romances quanto nos contos. Sua ficção merece ser popularizada e acreditamos que esta pesquisa pode servir como um destaque para ela. Como se vê, a recepção crítica do século XX centrou-se na observação dos temas constantes, a saber, a solidão, a incomunicabilidade social, a angústia existencial. Basta a leitura de alguns títulos para termos uma visão da repetição (“Contista da solidão, “Elisa Lispector e a solidão de ‘A última porta’”, “A herança da solidão”, “Desencanto e solidão”, etc.). Tais temas são fundamentais para Elisa e sua obra, no entanto, além de não serem os únicos, eles aparecem em vários momentos como assuntos secundários. A incomunicabilidade não está atrelada à solidão exclusivamente, pois, em boa parte das cenas dialogadas, ela se faz presente. Assim, a relação solidão/não-comunicação não é direta como se considera. Na crítica literária atual, o enfoque no romance No exílio é paradoxalmente positivo e negativo para Elisa. Por um lado, evita o desaparecimento total do seu nome; por outro, o interesse extraliterário, a procura por informações sobre Clarice, reduz a sua literatura a uma obra sobre judaísmo e expatriação da família e leva os estudiosos a voltar-se somente para as reminiscências de fuga, traumas, perseguições e exílio. Isso possibilita a repetição temática das pesquisas sobre a autora, quase sempre de natureza psicológica e biográfica. Narração, tipos de personagens, especificidade vocabular e metafórica são pouco analisados pela fortuna crítica a partir dos anos 2000. Além disso, a leitura exclusiva de No Exílio e o contato com a biografia de Elisa (marcada pelo isolamento, o celibato e certa misantropia) faz o leitor ignorar a sua nuança otimista67. Por isso, há a necessidade de privilegiar a criação estética dessa artista, indo além das circunstâncias históricas e dos aspectos de sua personalidade. Quanto à modalidade conto, a fortuna crítica é ainda menor. Ela é composta por comentários analíticos, inclusos em prefácios de duas páginas ou nas orelhas dos livros, um ou dois artigos de jornais, que posteriormente migraram para o livro. As antologias Sangue no sol, Inventário e O tigre de Bengala não constituem o corpus de nenhum trabalho de pesquisa. Nas três dissertações comentadas, quando os autores tentam aproximar as obras romanescas das narrativas curtas, a interpretação se mostra correta, porém, superficial.

67 Em No exílio, pode-se visualizar a construção de um final feliz, apesar de seu deslocamento (o livro começa com a formação do Estado de Israel e depois há uma analepse que dá início à fabula principal). Marta, de O muro de pedras (1963), encontra a sua verdade e desiste do suicídio no clímax do livro. Sérgio encontra o sentimento de pertencimento e a protagonista de Corpo a Corpo (1983), a paz interior. Em Ronda solitária, Constância aprende a viver a pequenez da cidade natal, a suportar a espera imposta pela vida. 96

Sobre O tigre de Bengala, pretendemos realizar uma leitura minuciosa dos contos. Essa leitura nos permitirá demonstrar que muitos são finalizados com uma alternativa salvatória, mesmo que mínima. Pensar, monologar, compreender fazem parte do processo de transformação das protagonistas, sendo, muitas vezes, a própria epifania delas. Embora compreenda um momento íntimo, individual, ensimesmado repleto de dúvidas e que promove o retorno de lembranças dolorosas, o monólogo na obra é um processo de humanização condutor de perspectivas de vida ou do desejo de enfrentamento e/ou aceitação. Os contos escolhidos como corpus apresentam essas qualidades. Com fábulas de ação mínimas, são histórias contadas pelo pensamento das mulheres. Acompanhar essa dramatização é imprescindível porque esse é o recurso que nos fará entender a personagem em seus dois momentos: no início e no final de cada conto, antes e após o monólogo. Solidão, incomunicabilidade, deslocamento social, melancolia, etc., não constituem o eixo temático de nenhum dos contos selecionados para corpus deste trabalho. É, por isso, necessário compreender como a preferência de Elisa pelo monólogo interior contribui para a discussão instaurada por cada um deles. Observaremos se há empatia entre narrador e personagem ou o distanciamento afetivo entre narradora e pessoas análogas, assim como a maneira como Elisa representa os movimentos inconscientes da mente humana na busca por camuflar sentimentos e atitudes socialmente reprováveis. Justamente por isso, a proposta de Norman Friedman e seu estudo sobre o ponto de vista ficcional parecem-nos o mais coerente para embasar esta pesquisa. A concepção de que na cena narrativa e dramática o escritor privilegia as impressões das personagens, colocando o narrador e sua visão em segundo plano, embasa um método proveitoso para o estudo. Além disso, é um procedimento que concebe a elaboração do pensamento como forma possível de se contar uma história, neste caso, concebendo o próprio pensar como uma ação narrativa. Esta relação entre o pensar e o narrar é o que discutiremos no capítulo seguinte.

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2. NARRATIVA E PONTO DE VISTA

2.1 A importância e a pluralidade de teorias sobre o narrador ficcional

A relevância do narrador para as narrativas modernas pode ser fundamentada pela própria formação evolutiva do gênero literário, desdobrado em romances e contos. Wolfgang Kaiser, em Análise e interpretação da obra literária1(1958), afirma que a epopeia apresentava uma visão de conjunto, de coletividade, e o seu narrador colocava a si e ao público (que compartilhava as mesmas experiências e valores) a uma certa distância em relação ao mundo narrado. Uma das mais significativas mudanças ocorridas na passagem da epopeia para a forma romanesca teria sido em relação a essa atitude do narrador no engendramento do texto. Se na epopeia prevaleciam a objetividade e o distanciamento, no romance a presença de um narrador mais envolvido com os fatos, que se dirige ao leitor, envolvendo-o no universo das personagens e dos fatos narrados, tornou-se possível. Em um nível ainda mais acentuado de subjetividade, o narrador passou a influenciar a leitura, movendo os sentimentos do leitor em relação aos elementos do texto, por vezes, num processo de quase manipulação. Essa importância do narrador para a estruturação e para a produção de sentidos da obra tem sido apoiada por quase todos os teóricos que se dedicam ao estudo do texto narrativo. Assegura-se que uma narrativa só existe como tal em razão da presença dessa “voz” que se propõe a apresentar um conjunto de acontecimentos, narrando-o para nós. Como afirma Silva (1976, p. 266), o narrador é simplesmente a “instância que produz o discurso narrativo”, daí o seu indiscutível valor. Por ser justamente o produtor do discurso narrativo, o receptor da narrativa deve estar atento ao modo como este mesmo discurso é elaborado e “transmitido” por seu narrador, que, em relação ao leitor, pode estar numa posição privilegiada. A leitura de determinadas obras da literatura brasileira2, inclusive as da própria Elisa Lispector, confirma essas deduções teóricas. Em um romance como Ronda solitária, o ponto

1 KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. 2 ed. Coimbra, Armênio Amado Editor, 1958. 2 Em trabalhos anteriores, analisamos o modo como o ponto de vista de Paulo Honório, narrador do romance S. Bernardo, de Graciliano Ramos, constrói as personagens D. Glória, Seu Ribeiro e Padilha, e como essas, apesar do fato de serem secundárias, colaboram para a construção do narrador. Na história, as personagens são construções da percepção do narrador, um sujeito reificado pelas relações capitalistas de seu meio. D. Glória, mãe/tia de Madalena, é descrita como uma pessoa preguiçosa e inativa, leitora de folhetins frívolos e “açucarados”; Padilha, primeiro dono de S. Bernardo, é desumanizado e frequentemente associado a animais e insetos que exploram o hospedeiro (a sanguessuga, o carrapato etc.). Seu Ribeiro recebe um pouco mais de humanidade por representar uma figura paterna para o narrador. Mesmo assim, o guarda-livros é tido por Paulo Honório como um fracassado, que, ao contrário dele, não soube adequar-se às transformações sociais e econômicas do início do 98

de vista moderno, introspectivo, fluido e cambiante passa pela consciência de duas personagens centrais, que buscam entender a inexplorada percepção da pessoa amada. Em A última porta, o narrador onisciente tem o discurso transferido para a personagem Ana, que se torna narradora/escritora num momento específico do romance em que a escrita é imperativa como processo de compreensão pessoal. Ao longo do desenvolvimento histórico do romance3, vários procedimentos teóricos foram criados para elucidar a importância das escolhas de um ponto de vista na elaboração estética das narrativas. Passando pelos alemães, franceses e americanos/ingleses, muitas linhas teóricas surgiram principalmente no final do século XIX e meados do século XX, um fenômeno que talvez possa ser explicado pelas grandes mudanças socio-históricas ocorridas no entreguerras, que, direta ou indiretamente, interferiram no modo de fazer e pensar a literatura, como defende Erich Auerbach (2015) em “A meia marrom”4, para quem o surgimento do monólogo interior é a mímese de um contexto histórico específico, marcado pela crise dos valores humanitários, pelas contradições ideológicas na Europa e pela desesperança em razão dos grandes atos de violência que marcaram o início do século XX. De acordo com Rossum-Guyon (1976, p. 21), o ponto de vista diz respeito a todos os problemas estabelecidos pelas relações que o narrador mantém com o que conta e com o seu leitor5. Essa noção teria encontrado a sua origem e principalmente a sua “consagração” nos prefácios de Henry James, tornando-se, assim, uma concepção clássica na crítica anglo- saxônica. Com o passar do tempo, o conceito de ponto de vista foi abraçado por teóricos de outros países, tais como da França e da Alemanha, que caminharam de maneira independente, com variação dos métodos empregados e, inclusive, com o apoio de outras teorias, contexto específico do qual resultam dessemelhanças no vocabulário da área de estudo e ambiguidades

século XX. (SILVA, Joyce K. B. Três pessoas, uma visão: as personagens secundárias de S. Bernardo a partir do olhar reificado de Paulo Honório. Campina Grande: UFCG, 2007.) 3 Embora o corpus desta pesquisa seja constituído por contos, utilizamos bases teóricas relativas ao ponto de vista romanesco, uma vez que as categorias narrativas do conto não foram alvo de teorizações mais rigorosas, aliás nem mesmo as especificidades do próprio gênero foram suficientemente explicadas. Essa discussão pode ser vista no ensaio de Gouveia “A consagração da impertinência: Machado de Assis, Borges, Guimarães Rosa e a teoria do conto”, no qual o autor mostra como as abordagens teóricas relativas ao conto são imprecisas e inconsistentes, havendo, inclusive, um descompasso entre as formulações teóricas e as inúmeras vertentes do gênero. Para o autor, “as teorias do conto – ou supostas teorias – não exploraram até o momento as diferenças de ordem ontológica, situando-se aquém dos teóricos do romance” (In: GOUVEIA, Arturo; SEVERO, Sulenita (Org.). Machado de Assis desce aos infernos. 2. ed. Coleção Ambiente. João Pessoa: Ideia, 2011. p. 30). 4 Último ensaio do livro Mimeses, no qual Auerbach analisa um trecho de To the lighthouse, de Virginia Woolf. AUERBACH, Erich. Mimeses: a representação da realidade na literatura ocidental. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015. (Coleção Estudos, 2) 5 ROSSUM-GUYON, Françoise Van. Ponto de vista ou perspectiva narrativa. In: Vários. Categorias da narrativa. Tradução de Cabral Martins. Lisboa: Vega, 1976. 99

de termos como narração, representação, objetividade, subjetividade, distância, autor, situação, perspectiva e até mesmo narrador:

Se os problemas relativos à perspectiva narrativa estão entre aqueles que mais retiveram a atenção dos autores de poéticas e dos críticos desde o princípio do século, neste domínio como nos outros, infelizmente, tais pesquisas desenvolveram-se paralelamente nos diversos países, e, num mesmo país, em função de objetivos diferentes. Uma das consequências desse estado de fato é a disparidade do vocabulário utilizado. Disparidade que pode conduzir a diversos mal-entendidos. (ROSSUN-GUYON, 1976, p. 22)

Na linha francesa, destaca-se o trabalho de Jean Pouillon sobre as “visões” da narrativa, presente em O tempo no romance6, primeira edição de 1946, data próxima das publicações americanas sobre o assunto. Os estudos de Pouillon sobre a perspectiva romanesca dialogam com pelo menos duas outras áreas do conhecimento, a fenomenologia sartriana e a psicologia. Enquanto os trabalhos da linha norte-americana se fixavam na questão técnica, Pouillon pensou o tema na sua relação com a psicologia das personagens. Nesse sentido, as categorias definidas pelo autor são construídas a partir do “psiquismo do perceptor”. As visões por trás, com e de fora, portanto, se referem a quem percebe a história. Na visão por detrás, a perspectiva passa pelo narrador onisciente, categoria recorrente no romance clássico, que se desprende da personagem, mas não a abandona, considerando sua vida psíquica. O narrador não está na consciência da personagem, mas isso não o impede de examiná-la e comentá-la. A visão com se diferencia pelo fato de pertencer a alguém que é personagem, que atua na ficção (o monólogo interior seria o ponto extremo dessa visão), ou seja, a perspectiva parte de uma visão interna. Já na visão de fora, a narração é a feita por um narrador externo, que não participa do universo ficcional, mas que também não é onisciente, ou seja, existe uma condição de barreira entre o narrador e a mente das personagens. Apesar da aparente objetividade dessa narração, os narradores que apresentam uma Visão de fora não seriam ausentes de subjetividade, uma vez que nem sempre o distanciamento/desconhecimento na narrativa significa uma ausência de intrusão, de parcialidade. Construída com elementos formais de terceira pessoa, uma Visão de fora pode se envolver emotivamente com as personagens. No campo da análise literária, as “visões” de Pouillon são geralmente substituídas por outras categorizações acerca do ponto de vista. Com as devidas adaptações e ressalvas, a visão

6 POUILLON, Jean. O tempo no romance. Tradução de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix: Ed. Da universidade de São Paulo, 1974.

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de fora, por exemplo, é abarcada pelo conceito de câmera de Friedman (2002), ponto de vista no qual há o menor indício de intrusão do narrador na narrativa, e também pelo narrador onisciente neutro. Já a visão com se refere ao narrador-protagonista, ao “eu” como testemunha, à onisciência seletiva (em certo sentido, até o modo dramático), pois nesses focos o narrador faz parte do universo ficcional. Por fim, a visão por detrás, passando pelo narrador onisciente que sabe tudo sobre todos, compreende o autor onisciente intruso, que curiosamente se distingue da visão de fora apenas pelo fato de, neste último, o grau de conhecimento onisciente do narrador apresentar-se como menor; na visão de fora o narrador limita-se a descrever a exterioridade dos fatos e deixa que eles sirvam de elementos interpretativos das personagens. Em nota de seu trabalho sobre o ponto de vista, Bourneuf & Ouellet (1976, p. 114) questionam essa diferenciação ínfima ao perguntarem: “Qual a diferença, então, face à visão de fora, senão uma onisciência limitada?”. É significativo o fato de que toda síntese teórica sobre o foco narrativo cite a tríplice visão de Pouillon e, às vezes, até a incorpore sem grandes explicações a outras categorizações teóricas. Embora bastante sintético, O Foco narrativo (1993, p. 19 e 20), de Chiappini Leite, dedica duas páginas à teoria de Pouillon. Ao expor as principais linhas teóricas sobre o ponto de vista, Bourneuf & Ouellet (1976, p. 112) retomam as três possíveis visões do narrador e as relacionam às noções de focalização de Gerard Genette7. Yves Reuter, em Análise da narrativa (2002), trata a perspectiva narrativa como parte da instância narrativa (articulação entre o “dizer” e o “perceber”) e utiliza a teoria de Pouillon para explicar o elemento “percepção”. Rossun-Guyon (1977, p. 46) também explicita a importância do estudo do autor, embora com um viés mordaz. Ao falar do tema no tópico “Domínio francês”, a autora defende que Pouillon acerta ao associar o ponto de vista à temporalidade do romance, notando que no monólogo interior (caso associado à visão com) a temporalidade do narrado pelas personagens e dos seus sentimentos é análoga à da duração vivida, com o desdobrar pelo sujeito do passado e do futuro a partir de um presente contingente. Porém, ela alega que Pouillon erra ao considerar que o universo real rege o mundo ficcional:

Não somente as leis que regem a narração não são as que regem o universo narrado, como acontece com grande frequência que as primeiras tenham justamente por função desmentir as segundas. Do que resulta que, contrariamente ao que diz Pouillon (e antes

7 Em Figures III, Gérard Genette faz também um apanhado dos estudos acerca do ponto de vista narrativo, defendendo que a maioria dos autores confunde o modo (a perspectiva da narrativa – quem vê) e a voz (a enunciação narrativa – quem fala), categorias que devem, segundo ele, ser objetos de uma classificação distinta. (GENETTE, Gérard. Figures III. Tradução de Ana Alencar. São Paulo: Estação Liberdade, 2017) 101

dele alguns outros), o ponto de vista do leitor não é exatamente correlativo com o do narrador (seja este “onisciente” ou integrado). (ROSSUN-GUYON, 1976, p. 46)

Apesar das críticas que são estabelecidas à categorização de Jean Pouillon (reduzida e, por isso, pouco aplicável a uma série de obras), ela poderá, certamente, e a depender do texto, ser utilizada com propriedade. Em relação aos contos de Elisa Lispector, narrativas da segunda metade do século XX, vemos em alguns textos uma visão com, tendo em vista o uso recorrente da perspectiva passando pela consciência da personagem ou mesmo com o uso da personagem- ouvinte, que pouco contribui para o andamento das ações, mas está ali como uma presença simbólica, indicando a incomunicabilidade da protagonista para com o mundo externo. De acordo com Reis e Lopes (1988, p. 64), esse ouvinte é um narratário, isto é, alguém para quem a narrativa se destina, mas que não se confunde com leitor, pois ele é uma entidade fictícia, presente apenas pelo discurso do narrador. Ainda segundo os autores, a pertinência do narratário evidencia-se em relatos de narrador autodiegético ou homodiegético. Homodiegética, autodiegética, heterodiegética são terminologias recorrentes quando se trata da perspectiva narrativa e tem sua origem nos estudos sobre discurso e narrativa (ou diegese). De origem francesa, a relação narrador/diegese é didaticamente explicada por Yves Reuter, em A análise narrativa8, e sua categorização nos parece a mais metódica dentro dessa esteira teórica. Segundo o autor, a perspectiva é relevante para a estrutura narrativa, visto que as ações, além de contadas por alguém, passam pelo crivo de uma percepção, que tanto pode ser a do próprio narrador como a de uma personagem, principal ou secundária: “[...] a questão das perspectivas é de fato muito importante para a análise, pois o leitor percebe a história segundo um prisma, uma visão, uma consciência que determina a natureza e a quantidade das informações: podemos, com efeito, saber mais ou menos sobre o universo dos seres, podemos continuar fora dos seres ou penetrar em sua interioridade.” (REUTER, 2002, p. 73). Para Reuter, a voz narrativa remete à relação que o narrador estabelece com o seu próprio contar, ou seja, está estritamente ligada ao fato de o narrador estar “fora” ou “dentro” da história contada, podendo ser considerado, de acordo com este critério, como narrador heterodiegético ou homodiegético, respectivamente9 (Idem, p. 69). Já a instância narrativa derivaria da articulação desses dois níveis, da voz e da perspectiva narrativa. Por exemplo, ao

8 REUTER, Yves. A análise da narrativa. Rio de Janeiro: Difel, 2002. 9 Reuter, assim como Silva (1976), Bourneuf & Ouellet (1976) e outros teóricos da literatura, adota a terminologia dos estudos de Gérard Genette (também de linha francesa) para essa definição. 102

apresentar a instância narradora homodiegética e perspectiva passando pelo narrador, Reuter afirma:

Esta combinação é tipicamente a das autobiografias, das confissões, dos relatos nos quais o narrador conta sua própria vida retrospectivamente. Possui, em consequência, um saber mais significativo de cada uma das etapas anteriores de sua vida e pode, portanto, prever, quando fala dos seus cinco, dez ou quinze anos, o que acontecerá mais tarde. Pode também ter reunido conhecimentos sobre as pessoas que encontrou anteriormente e não hesita em intervir em sua narrativa para explicar ou comentar sua vida e a maneira como ele conta. Em compensação, essa instância narrativa não nos permite saber com certeza aquilo que se passa (ou se passou) na cabeça de outras personagens [...]. (REUTER, 2002, pp. 81, 82)

Na instância acima descrita, o narrador não somente é aquele que conta, como é aquele que percebe o mundo ficcional. O narrador narra exclusivamente a partir da sua ótica, constituindo, assim, uma espécie de filtro para os eventos que compõem a narrativa em questão. Por isso, é comum o narrador desfrutar de certo privilégio, pois seu modo de compreender as coisas é o único que conseguirá chegar até o leitor. Como se nota, nessa linha teórica há uma clara distinção entre contar e perceber, entendidas como duas ações distintas. E essa percepção, diga-se de passagem, não diz respeito apenas à questão da visão em si (afinal, o termo pode nos iludir nesse sentido), mas a qualquer um dos sentidos humanos, como a audição, o olfato, o paladar e o tato (Idem, p. 73). A perspectiva narrativa diz respeito, portanto, a todas as formas inclusas no mundo romanesco, em suas paisagens, texturas, cheiros e sons. Portanto, com base nessa diferenciação, Yves Reuter trata da instância narrativa, articulando ambas as ações e dando origem a cinco combinações, que envolvem a participação (ou não) do narrador na diegese e por quem passa a perspectiva, se narrador ou personagem. São elas: narrador heterodiegético e perspectiva passando pelo narrador; narrador heterodiegético e perspectiva passando pela personagem; narrador heterodiegético e perspectiva neutra; narrador homodiegético e perspectiva passando pelo narrador; narrador homodiegético e perspectiva passando pela personagem. Na linha norte-americana, o nome mais conhecido é o de Norman Friedman, talvez pelo fácil acesso ao seu texto-base. Em O ponto de vista ficcional10, o crítico apresenta uma das tipologias mais sistemáticas sobre o foco narrativo. Com base no conceito de cena e de sumário narrativo, o autor elenca nove tipos de pontos de vista narrativo, na tentativa de apresentar as

10 FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: desenvolvimento de um conceito crítico. Revista USP, São Paulo, n. 53. P. 166-182, março/maio 2002. Esse texto pode ser acessado através do endereço http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/33195. 103

modalidades mais recorrentes nos textos11. É uma categorização gradativa, que parte da perspectiva mais panorâmica (autor onisciente intruso), na qual o narrador comenta os fatos e as personagens, com marcas claras de sua subjetividade, até a mais cênica, na qual a subjetividade do narrador apaga-se, havendo uma exposição impessoal desses elementos. O narrador, assim, desempenharia a função de câmera, transmitindo um “pedaço da vida” da maneira como ela acontece diante do medium de registro12 (FRIEDMAN, 2002, p. 179). Em O foco narrativo (2000), Chiappini Leite trabalha basicamente com o ensaio de Friedman e seu livro tem como título alternativo “A polêmica em torno da ilusão”, uma referência ao método de Henry James (inspiração de Friedman) e à ideia de que o uso da consciência como centro irradiador do ponto de vista diminui a distância entre leitor e personagem, aumentando a imersão no mundo ficcional e, dessa forma, o seu caráter ilusório. Embora cite alguns outros trabalhos teóricos (de Pouillon, de Maurice-Jean Lefebve, etc.), o texto destaca mesmo as categorias de Friedman (segundo capítulo), e aqueles que questionam essa categorização, tal como Roland Barthes, para quem uma história sem narrador (uma história que conta a si mesma) é, de certa forma, esquizofrênica13 (terceiro capítulo). No Brasil, referências na área dos estudos acerca do narrador e da perspectiva narrativa são Ismael Ângelo Cintra e de Maria Lúcia Dal Farra. Embora sejam autores de trabalhos analíticos, ambos refletem sobre a importância deste recurso e desenvolvem conceitos próprios que podem servir a outras leituras críticas. Em O foco narrativo da ficção (1978), Ismael Cintra analisa a obra Nove, novena (1966), de Osman Lins. Este trabalho, elaborado como dissertação, não foi publicado, mas algumas das reflexões de Cintra sobre o ponto de vista narrativo passaram a ser apresentadas em outros formatos acadêmicos, tendo como corpus obras de Machado de Assis e Graciliano Ramos. No artigo “Dois aspectos do foco narrativo”, Cintra (1981) sugere o conceito de arquinarrador14, um termo substituto e, segundo ele, melhor para as expressões autor-implícito ou imagem do narrador, que se confundem ora com o autor real,

11 As categorias elencadas por Norman Friedman são as seguintes: autor onisciente intruso; narrador onisciente neutro; “Eu” como testemunha; narrador protagonista; modo dramático; onisciência seletiva múltipla; onisciência seletiva e câmera. 12 Há críticas ao conceito de câmera, no sentido de que a própria seleção do que vai ser exposto ao leitor indicaria uma subjetividade narrativa (uma inteligência mentora implícita), ainda que num nível mínimo. O próprio Friedman afirma inserir a categoria por uma “questão de simetria”, já que começa com o ponto de vista com mais intrusão até aquele com mais exclusão autoral (p. 179). Acreditamos, porém, que a câmera é uma perspectiva observável dentro da estrutura narrativa, podendo ser entendida não como apagamento da subjetividade, mas como mímese de um narrador que deseja parecer tão leigo quanto o leitor acerca do desenrolar dos fatos. 13 Segundo Leite, esta discussão de Barthes pode ser acompanhada em “El discurso da história”. (In: BARTHES, Roland. Estructuralismo y literatura. Buenos aires: Ediciones Nueva Visión, 1970.) 14 In: CINTRA, Ismael Ângelo. Dois aspectos do foco narrativo: retórica e ideologia. In: Revista Let., São Paulo, 1981. 104

ora com os outros tipos de narradores, como o narrador-expositor. Para Cintra, o arquinarrador tem a sua voz oculta entre as demais e a sua imagem é diluída nas personagens, desfrutando do privilégio da onipresença e da onisciência. Ele diz:

Sendo o narrador apenas uma máscara possível de variação, é preciso encontrar por trás dele o seu suporte, espécie de invariante e consequência de todas as mutações. É a esse suporte, capaz de governar os diferentes focos de visão, a quem cabe ordenar o discurso, escolher, dispor e alterar no decorrer da narrativa as funções e a posição de narrador e decidir o estilo (direto, indireto, indireto livre, monólogo interior, etc.) a ser empregado, que estamos chamando de arquinarrador. (CINTRA, 1981, p. 8)

Ismael Cintra critica os estudos de orientação norte-americana porque esses, em geral, não distinguem os conceitos de autor e narrador, como se vê no próprio trabalho de Norman Friedman, que nomeia a primeira categoria de ponto de vista narrativo, aquela em que há mais intromissões e comentários ideológicos, como Autor onisciente intruso. Cintra segue as reflexões de Wayne C. Booth, que não entende o discurso avaliativo como do autor “real”, e sim do autor-implícito, “espécie de diretor de cena que permanece nos bastidores da obra, não se deixando ver a não ser através de uma série de índices como a escolha e as constantes alterações do foco narrativo, a ordem da narração.” (CINTRA, 1981, p. 7). Seria o autor- implícito o arquiteto e executor da obra, responsável inclusive pela escolha do narrador- personagem, do espaço, da ordem de narração, pelas antecipações e recuos. Assim como no artigo de Cintra, a base teórica de O narrador ensimesmado15, de Maria Lúcia Dal Farra, ancora-se em grande parte em Wayne Booth. Para a brasileira, houve um mal- entendido nascido da compreensão de que a narração é feita pelo autor, já que a emissão que se “desprende de uma garganta de papel” é apenas uma das possíveis manifestações do autor. O narrador é, nesse sentido, uma máscara, ou uma espécie de ser ficcional que “ascendeu à boca do palco” para proferir o discurso (DAL FARRA, 1978, p. 19). Com base na reflexão sobre o autor-implícito de Booth, Dal Farra afirma que tanto os romances de primeira pessoa quanto os de terceira comportam narradores como máscaras para o autor (essa afirmação vai de encontro à ideia preconizada de que os romances de primeira pessoa expressavam a perspectiva do autor). Para ela, o ponto de vista do narrador em um romance seria uma postura visual, composta por momentos de visão e de cegueira, proveitos que o autor-implícito tira daquilo que é vedado à sua máscara. Nesse sentido, ela instaura o conceito de ótica narrativa, conjunto de focos e lugar de origem da emissão geradora do

15 DAL FARRA, Maria Lúcia. O narrador ensimesmado: o foco narrativo em Virgílio Ferreira. São Paulo: Editora Ática, 1978. 105

universo romanesco. O ponto de vista seria então um recurso do autor-implícito para promover lacunas, formando uma relação dialética entre visão e cegueira, devendo o leitor levar em consideração, simultaneamente, aquilo que é ou não visto pelo narrador. Além da noção de ótica, uma outra especificidade das ideias de Maria Lúcia Dal Farra é abordar a questão ideológica do papel do narrador. Nesse quesito, a escolha por um ponto de vista, um modo de ver os fatos da narrativa, segue um propósito ideológico, na medida em que “mascara todas as demais relações e nos impede de ver os vários sistemas semânticos na totalidade da mútua relação entre eles” (DAL FARRA, 1978). Assim, a ideologia seria uma espécie de “falsa consciência”16. Para a autora, romances que apresentam vários pontos de vista têm chances de se desmistificar, uma vez que a “verdade” da estória, porque vista através de diferentes ângulos — o signo visto através de diferentes relações semânticas — pode ser dada ao leitor na totalidade de suas significações (Idem, p. 51). Os vários procedimentos técnicos e de estilo utilizados pelo autor-implícito a fim de se comunicar com o leitor seriam então a ideologia não mais como “falsa consciência”, mas como a própria estrutura do código, a própria Retórica (DAL FARRA, 1978, p. 52). A cada teorização, o narrador e o ponto de vista são renomeados. Perspectiva, visão, ótica narrativa, voz, arquinarrador, máscara do autor, personagem enunciador ou focalizador, falsa consciência são algumas das expressões que a eles se referem. Os aspectos da relação entre o narrador e a história também são móveis e passam pela oposição entre narração e discurso (narração/diegese) ou pela distância/objetividade entre narrador, personagem e leitor. Porém, ainda que significativamente diferentes entre si, todas as conceituações sobre o ponto de vista são úteis a depender da escolha da obra analisada e da aplicação metodológica (em certo sentido, essas diferença nascem exatamente como consequência da diversidade de pontos de vista plasmados por escritores mundo afora). A análise da perspectiva narrativa e do

16 Para o conceito de ideologia, Dal Farra baseia-se em Umberto Eco (UMBERTO, Eco. Semiótica das ideologias. In: As formas do conteúdo. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 125, 133.). Em relação ao conceito de falsa consciência, a autora não cita fontes, mas certamente se baseia em Marx, para quem a falsa consciência se refere aos estados de consciência à luz dos quais os trabalhadores sustentam visões antagônicas aos seus próprios interesses de classe. Ela é imposta pela ideologia dominante e confunde a aparência das coisas com o seu verdadeiro conteúdo, levando a teorias próprias que não traduzem a realidade. Em outras palavras, a falsa consciência descreve mecanismos ideológicos que “alienam” os atores de uma classe social, fazendo-os muitas vezes defender a ideologia de outrem como se fora sua, perpetuando, assim, a exploração de uma classe pela outra. Para Dal Farra, um romance com ponto de vista único tende a ser ideologicamente fixo; já em romances dramatizados (com o ponto de vista passando pelas personagens), a função ideológica fixa tem a possibilidade de se desmistificar, passando de uma falsa consciência (que esconde sistemas semânticos) para um confronto entre ideologias, possibilitando, assim, significações mais plurais. (Ref. para o conceito de falsa consciência: MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. supervisão editorial, Leandro Konder; tradução, Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano. - São Paulo: Boitempo, 2007). 106

monólogo interior em O tigre de Bengala levará em consideração essas vozes teóricas sobre narradores, aqui apenas contextualizadas, mas deverá se basear nas reflexões da linha norte- americana, em razão de sua ênfase na dramatização do pensamento, na exposição da consciência da personagem e do relativo apagamento do narrador como recursos técnicos e estéticos para a produção de sentido do texto.

2.2 Ampliação do método dramático na narrativa: o método de Henry James

O ensaio O ponto de vista na ficção, de Norman Friedman, é um trabalho relevante para quem trata da perspectiva narrativa por pelo menos duas razões: primeiro, por apresentar um conceito de ponto de vista de significativa aplicabilidade a uma série de narrativas; segundo, é um texto sintético, de aproximadamente quinze páginas, mas cuja validade está nas referências literárias e teóricas com as quais dialoga e acaba por compartilhar; é, pois, uma espécie de porta de acesso a uma extensa discussão teórica sobre a escrita literária do entresséculos. Publicado pela primeira vez na década de 5017, o ensaio visa apresentar com brevidade uma tipologia do ponto de vista baseada na presença do caráter dramático na literatura, ou seja, na atuação ou não do narrador. Para tanto, Friedman apresenta alguns dos nomes nos quais se baseia e com os quais pretendemos discutir. A parte introdutória do texto de Friedman põe em pauta as transformações na literatura romanesca produzida no final do século XIX e na primeira metade do século XX, marcada pelo abandono do estilo “vitoriano”, cuja característica na narração seria a presença desnecessária do narrador, sempre a “intrometer-se”, comentando e interpretando a história e as personagens para os leitores. Segundo Friedman, o maior representante do declínio do romance comentado foi o escritor norte-americano Henry James18, criador de um extenso universo ficcional. Além de romancista, novelista e contista, James se destacou por discutir a própria arte de fazer romances, o que contribuiu para o debate sobre a transferência do ponto de vista do narrador

17 De acordo com a Revista USP, que divulga o trabalho de Friedman em sua plataforma on-line, o texto foi publicado originalmente em The theory of the novel, organizado por Philip Stevick (1967), e inserido na seção “Point of view”, em que figura ao lado do ensaio Distance and point-of-view, de Wayne C. Booth. No entanto, a primeira publicação do texto é de 1955, pela PMLA, jornal da Modern Language Association of America, responsável pela publicação de ensaios de acadêmicos e professores de língua/literatura desde 1884. (FRIEDMAN, Norman. Point of view in fiction: the development of a critical concept. In: PMLA LXX, 1955, p. 1160-84.) 18 Henry James nasceu em Nova York em 1843, mas foi naturalizado britânico, tendo contribuído para a construção da literatura inglesa. Morreu em 1916, em Londres. Suas obras mais conhecidas são As asas da pomba (1902), Daisy Miller (1878), Hoderick Hudson (1876), Os embaixadores (1903). 107

para as personagens. Essas reflexões sobre a sua própria produção literária vieram a público nos prefácios da Edição de Nova York, antologia de romances e novelas publicada entre os anos de 1907 e 190919, uma data simbólica para uma literatura que seria típica no século XX. As ponderações de Henry James sobre a questão do ponto de vista não apenas como escritor, mas como ensaísta, assim como a de Edith Wharton20 (escritora e crítica citada por Friedman), em sua obra The writing of fiction, de 1925, revelam uma preocupação em torno da renovação da literatura em sua natureza técnica. Uma das principais concepções de James diz respeito ao modo como a literatura pode se recriar a partir das mudanças de ponto de vista, passando da voz do narrador para a mente das personagens e de suas várias relações de sentido. Citando Mark Schorer21, um outro escritor, Norman Friedman aponta: “[...] a técnica é o único meio de que [o escritor] dispõe para descobrir, explorar, desenvolver sua matéria, transmitir seu significado e, por fim, avaliá-lo.” (FRIEDMAN, 2002, p.167). Nesse sentido, a reflexão teórica em torno do ponto de vista surge para a linha de origem norte-americana como fruto da preocupação em torno da escrita romanesca, dotada de funcionalidade para a criação estética, sendo uma das distinções críticas mais úteis para o estudioso da ficção. Por isso, Friedman resume o seu propósito: “[...] resumir o fundo estético desse conceito [o ponto de vista] e sua emergência como instrumento crítico, delinear e exemplificar seus princípios básicos e, finalmente, discutir sua significação, de modo geral, em relação aos problemas da técnica artística.” (Idem, p. 168). Friedman começa a estabelecer o fundo estético do conceito a partir de relações entre a arte literária e a pintura, atribuindo à primeira a capacidade de “falar”, enquanto à segunda seria dado o poder de expressar qualidades sensoriais de pessoas, lugares e eventos. Essa comparação surge em razão do que ele considera um dilema do autor para com a sua narrativa: a dificuldade de mostrar a história e a facilidade de contar o que pensa e o que sente em relação a ela (função do narrador convencional). Assim, a comparação com a arte da pintura é pertinente, tendo em vista o fato de que, para ele, a música, a escultura e a pintura mostram um ponto de vista, não contam um ponto de vista: “O escultor pode mostrar; o músico, excluindo-se a música

19 A obra contou ao final com a inclusão de 24 volumes, que eram publicados aos pares de mês a mês. 20 WHARTON, Edith. The writing of fiction. Scribner Book Company: Nova York, 1997.Wharton (1862-1937) foi uma escritora e ensaísta norte-americana, autora de mais de 20 romances e diversas antologias de contos. Uma das obras clássicos da escritora é The age of innocence (A idade da inocência), de 1921. 21 Escritor e crítico norte-americano, autor de Technique as Discovery (1948), ensaio incluso posteriormente em The theory of the novel (STEVICK, Philip. The theory of the novel. Nova York: Lightning Source, 1967). 108

programática, não pode nunca narrar”22. A dicotomia estabelecida entre mostrar e contar é, portanto, uma das bases de sua concepção crítica e leva-nos a considerar o procedimento de contar como algo pouco criativo, tradicional, no âmbito da literatura, pois seria uma influência direta e explícita (e nem sempre positiva) dos valores do autor sobre a história e sobre o leitor. Ao tomar as expressões mostrar e contar (em inglês showing e telling) como procedimentos narrativos diferentes, Friedman se vale de conceitos relacionados à apresentação da história que remontam aos estudos platônicos. Segundo Platão, a poesia épica podia ser dividida em duas categorias: narração simples e imitação. A narração simples seria aquela em que o poeta assume o discurso em forma indireta e se interpõe à personagem, elucidando quem disse, como disse ou quando disse determinada fala. Na imitação, por outro lado, o poeta assimila a personagem e “desaparece” ao mostrar a voz e o gesto do outro. Assim, imitação, assimilação e diálogo fazem parte de um mesmo conjunto e ajudam a criar uma literatura dramatizada (na literatura moderna, o terceiro fenômeno responsável pela dramatização – o diálogo – teria sido substituído pelo monólogo). Quando esta expressão dramática é levada ao limite na literatura, temos então as narrativas com ponto de vista dramático, uma das diversas categorias de Friedman, em que o narrador não atua. De um lado a poesia, do outro o drama, e no meio a épica assimilando as formas de ambas. As narrativas, nesse sentido, se enriquecem artisticamente não somente com a subjetividade, mas com objetividade/impessoalidade presente nas formas dramáticas. Um exemplo simples seriam as formas dialogadas presentes em infinitos romances e contos, que criam cenas extraordinárias e estabelecem potenciais relações de sentido. Nesses, a voz do narrador desaparece (apesar de, às vezes, conduzir a cena), deixando espaço apenas para o discurso da personagem em forma de discurso direto23. No gênero conto, a cena direta pode ser a única forma de construção de todo o texto. Num conto como “Por puro desespero”, de Elisa Lispector, esta forma é a base da história. Desaparecido o narrador por completo, cabe à protagonista contar em um simulacro de diálogo

22 A música programática é a música orquestral capaz de evocar ideias ou imagens extramusicais e de sugerir cenários, situações e sentimentos. Opõe-se à música absoluta, apreciada por si mesma, sem nenhuma referência particular ao mundo exterior à própria música. Atualmente, a expressão música programática é livremente usada para as obras orquestrais que não contam com a presença de cantores ou quaisquer auxílios da arte da representação. 23 Na literatura brasileira, alguns contos servem de exemplo para essa perspectiva dramática, como o clássico “Teoria do medalhão”, de Machado de Assis, e “Confissão”, de Luiz Vilela; no romance estrangeiro, O beijo da mulher aranha, de Manuel Puig; Anna Karenina, de Tolstói e The awkward age, de Henry James. Na contística, destaca-se Ernest Hemingway, com “Colinas parecendo elefantes brancos”, “Os assassinos” e “Hoje é sexta-feira”. 109

um pouco da vida para o seu terapeuta. Ou mesmo no conto “Confidências”, em que duas amigas dialogam sobre o medo da solidão, são poucas as intervenções de um narrador. Nesse ponto é relevante notar que, para os estudos do ponto de vista de linha norte- americana, a noção de objetividade adquire um sentido específico. A objetividade é alcançada por meio da pouca interferência do construtor no mundo ficcional. Essa ausência ampliaria a intensidade dramática do romance ao nos colocar “cara a cara” com o evento narrativo. A dramatização e o consequente desaparecimento do narrador são, para Friedman, o ponto alto da literatura do final do século XIX e início do século XX; para elucidar tal entendimento, o crítico cita o romance Um retrato do artista quando jovem24, de James Joyce: “A personalidade do artista, no começo um grito, ou uma cadência, ou uma maneira [lírica], e depois um fluido e uma radiante narrativa [épica], acaba finalmente se clarificando fora da existência [drama] despersonalizando-se, por assim dizer”. (FRIEDMAN, 2002, p. 169) A interpretação dos possíveis graus da autoria, ou da extinção da autoria, na arte narrativa define então a categorização do ponto de vista na ficção. Essa definição começa a ser pensada a partir dos prefácios de Henry James, textos de apresentação da Edição de Nova York, pelos quais os críticos sistematizaram o que se passou a chamar “o método de Henry James”. A maioria das obras sobre o ponto de vista, de Percy Lubbock, autor de A técnica da ficção (primeira edição de 1921), até a Joseph W. Beach, de The twentieth century novel (primeira edição de 1918), se valem, em maior ou menor grau, dos pensamentos (por vezes difusos e assistemáticos) de James sobre o foco narrativo. Além disso, as suas obras servem de exemplo para o uso da técnica, vistas como modelos perfeitos de narrativas que utilizam a consciência das personagens como centro irradiador do ponto de vista. No início do século XX, James envolveu-se num grande projeto editorial: a publicação de toda a sua obra em uma coletânea, um formato que atendia ao gosto dos leitores da época e que, por isso, era amplamente cobiçado pelas editoras. Para tal projeto, o escritor não apenas releu seus romances e novelas, como reescreveu inúmeras passagens, adicionando, excluindo detalhes e reformulando cenas; com isso, ele fez não apenas uma simples revisão editorial, mas uma reformulação de sua própria literatura. A grande obra resultante, que ficou conhecida como a Edição de Nova York, levou cerca de cinco anos para ficar pronta em razão da reescrita das

24 JOYCE, James. Um retrato do artista quando jovem. Tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2006. Segundo a tradutora desta edição, James Joyce introduz nesta obra, de maneira inovadora, o uso sistemático do monólogo interior, ao penetrar na mente de Stephen Dedalus, acompanhando seus pensamentos, reações, processos psíquicos, responsáveis por perceber sua evolução física e intelectual. 110

narrativas e da elaboração dos prefácios25, um para cada obra individual. Nos prefácios, Henry James discute, através de um estilo particularmente difícil, a origem da ideia (o germe) para as histórias, o seu estilo, os efeitos desejados (intenção da obra), a natureza da personagem e a elaboração da fábula (criada a partir da natureza dos participantes). São textos metalinguísticos, que abordam, de maneira quase literária, o processo de criação, a qualidade das narrativas e, inclusive, os aspectos tidos como defeituosos pelo autor. À medida que discute sua ficção, James revela inquietações relacionadas ao ponto de vista narrativo e ao desejo/opção de instalar a perspectiva numa personagem (principal ou secundária), transformando-a no centro de consciência do romance. O prefácio em que o escritor trata especificamente dessa questão refere-se ao romance Os embaixadores26. James chama esse livro de drama do discernimento, isso porque a personagem principal, Lambert Strether, faz um percurso físico e mental que vai do provincialismo estreito norte-americano até o reconhecimento dos valores da capital francesa: “Havia a antiga e pavorosa tradição, um dos lugares comuns da comédia humana, de que o esquema moral dos homens se espedaça em Paris.” (JAMES, 2003, p. 254). Nesse prefácio, James expõe a preocupação de fazer do seu romance uma história sobre o processo de alteração da perspectiva humana: “A resposta para isso é que ele [Strether] agora de qualquer modo percebe; por isso, o interesse de meu relato e a marcha de minha ação, sem mencionar a moral de tudo, apenas residem em demonstrar esse processo de percepção” (Idem, p. 245). Para demonstrar esse percurso seria necessário, portanto, mostrar todos os elementos da história a partir da mente de Strether, do seu ponto de vista, sem interferências do narrador. Para “essa aventura íntima”, diz James, seria ideal a projeção de sua consciência, mantendo tudo dentro do alcance do herói:

Eu poderia, contudo, expressar cada grão dela onde ali houvesse espaço – desde que obtivesse uma esplêndida economia particular. Outras pessoas em número nada escasso povoariam a cena, cada um com seu interesse pessoal, com sua situação a ser abordada, sua coerência a ser atingida, sua relação com meu motivo principal, em suma, para estabelecer e levar adiante. Mas a percepção de Strether sobre essas coisas, e apenas dele, serviria para mostrá-las; eu deveria conhecê-las apenas através do conhecimento mais ou menos tateante que Strether tinha delas, já que esses mesmos tateares figurariam entre seus movimentos mais interessantes, e uma completa observância do rico rigor mencionado me daria mais do efeito “procurado” do que todas as outras possíveis observâncias juntas. (JAMES, 2003, p. 256)

25 Sobre o contexto da publicação da Edição de Nova York, é interessante a parte introdutiva de A arte do romance (JAMES, 2003, p. 17-109), escrita por Marcelo Pen. 26 Nesse romance, Lambert Strether parte dos Estados Unidos para a França a fim de “resgatar” Chad Newsome, filho de sua noiva, uma rica viúva. Newsome se perdera na “degradada” Paris e aparentemente era amante de uma mulher casada. Na Europa, Strether começa a reavaliar a sua missão e a duvidar de que o retorno aos EUA é o melhor para o jovem Newsome, ainda que essa desistência lhe custe o próprio noivado. Ao final, ele não interfere no destino de Chad e perde os benefícios que poderia obter com a Sr. Newsome. 111

Toda a narrativa, assim, partiria da percepção do protagonista. No início do romance, teríamos, como ele, uma leitura reduzida e precária das pessoas do círculo social que frequenta e depois, à medida que o romance se desenvolvesse, passaríamos a ter a visão ampliada. Para James, o uso de um recurso como esse tornaria as descrições desnecessárias, assim como as explicações de toda sorte sobre o passado de A ou B, fazendo da narrativa uma cena em movimento. O leitor seria um intérprete mais independente do discurso do narrador, sendo esse o efeito pretendido pelo texto27. Henry James cria que os discursos do narrador poderiam ser reduzidos, evitando “massas de explicações” no romance, e apresentava saídas técnicas para este método narrativo. A primeira delas é fazer com que as personagens falem do herói. Recurso do drama e característica da cena padrão, o discurso da personagem se encarrega de elucidar informações relevantes quanto ao passado do protagonista, uma escolha de duplo efeito: primeiro, torna o passado um tópico do diálogo, revelando a perspectiva das personagens (e não do narrador) sobre ele; segundo, dispensa as digressões temporais. Assim, os flashbacks, feitos para elucidar a origem e a motivação da personagem, se diluem na boca dos que conversam sobre o herói. Outro procedimento para evitar o discurso do narrador e, assim, construir cenas e quase nenhum sumário narrativo, seria a criação de uma personagem ouvinte, uma ficelle. A palavra ficelle foi usada pela primeira vez por James no prefácio de Retrato de uma senhora para representar personagens que não fazem parte da “essência” do assunto, pertencendo antes à forma, ao tratamento (PEN, 2003, p. 57). Essa personagem pode ser uma amiga, conhecida do protagonista, funcionando como “ouvido” a fim de que a história nos chegue de maneira dramatizada e não sumarizada. Nos contos de O tigre de Bengala, esse recurso é quase inexistente, dada a prevalência do monólogo e não do diálogo; mas, num conto como “A trágica decisão”, a narradora agrega a dupla função de narradora e ficelle. Em “A trágica decisão”, o diálogo é estabelecido entre a narradora e uma senhora, ambas frequentadoras de um mesmo restaurante. A segunda lhe confidencia a maneira como foi esquecida pelo marido e pelos filhos. Mentalmente perturbada, ela acredita ser uma embaixatriz, mãe de dois heróis lendários, uma realidade alternativa criada para superação do trauma. Quase todo em forma de diálogo, o conto tematiza a loucura e o suicídio (uma vez que

27 Temos conhecimento de que algumas obras buscam o oposto dessa independência, conduzindo o leitor a acreditar piamente nas palavras do narrador, mesmo quando esse dissemina informações ambíguas e discutíveis sobre os fatos e as personagens. 112

a mulher se joga no mar, no desfecho) como consequências da decepção e do abandono dos parentes. A ficelle de “A trágica decisão” interage com a protagonista a fim de que o leitor conheça a sua debilidade mental. Como narradora, ela serve para enunciar o discurso da lucidez, necessário para expressar a história da protagonista e o nonsense de suas falas como uma consequência do isolamento. Nesse sentido, as personagens-ficelles desempenham a função de interlocutoras, embora sua atuação deva sempre ser interpretada pela natureza da trama. Segundo James, a narrativa que tem uma ficelle como centro irradiador do ponto de vista tem um efeito curioso, pois é a expressão da subjetividade da personagem, sem, contudo, configurar-se como uma narrativa feita pelo próprio protagonista. Assim, ela criaria um distanciamento salutar entre protagonista e o leitor, pois para James a narrativa em primeira pessoa era símbolo da comodidade da autobiografia. Para ele, o “olhar esbugalhado, crédulo e direto” do leitor não era bem-vindo na recepção do romance (JAMES, 2003, p. 260). Com esses poucos recursos, diz James, é possível tratar os elementos da trama cenicamente e sem prejuízos para a trama. No prefácio de Os embaixadores, Henry James afirma que o material desse romance é visto quase que inteiramente como peça de teatro, embora ele afirme que a própria obra disfarça essa característica (segundo ele, uma virtude) através de passagens específicas e bem pensadas que servem como preparação para as cenas:

Ela [a obra Os embaixadores] disfarça essa virtude, do modo mais estranho, apenas pelo fato de aparentar ser, à medida que viramos suas páginas, o menos cênica possível; ela, porém, nitidamente se divide, assim como a composição que temos diante de nós, em partes que preparam as cenas, que tendem com efeito a superprepará-las, e em partes ou, dito de outra forma, em cenas que justificam e coroam a preparação. É preciso definitivamente que se diga, presumo, que tudo ali que não é uma cena [...] é uma clara preparação, é a fusão e a síntese do quadro. (JAMES, 2003, p. 262)

A ficção de James é, portanto, um louvor à cena narrativa, desde a mais tradicional, a cena-padrão, em que prevalece o diálogo entre personagens, até a mais inovadora, baseada na apresentação dos processos mentais e sem comentários ou explicações do narrador. Para tanto, ele se vale de certos recursos, cujo conjunto estabelece o “método Henry James”. A recusa pela narrativa de primeira pessoa, o uso de ficelles, os sumários narrativos como preparação para as cenas e o uso de uma personagem como centro de consciência são os principais elementos para tal alcance, ou seja, para mostrar e não para contar. Segundo Marcelo Pen, James “prefere apresentar a coisa, mostrar o processo se desenrolando, a entabular um discurso sobre a coisa, a falar ou contar como o processo se desenrolou”. (PEN apud JAMES, 2003, 54). 113

James construiu a poética do romance e do ponto de vista baseado na compreensão de que a ficção é como um edifício repleto de janelas com variados tamanhos e formatos que se abrem para a cena humana. A literatura, conforme salienta, imita a realidade, trazendo-a para perto e dando a ilusão de que abarcamos a totalidade quando, na verdade, vemos a partir de alguma distância e lugar específico. Ilusão e intensidade são duas palavras frequentemente mencionadas por Henry James, mas nem sempre elas são especificadas ou nitidamente conceituadas, como acontece em boa parte dos prefácios, cuja linguagem hermética exige interpretação quase literária. Para James, a ilusão é a sensação, no leitor, de que a obra diz respeito à realidade convencional. Paradoxalmente, essa ilusão é maior quando o autor manipula tecnicamente a forma, ou seja, quanto melhor o uso de recursos formais e técnicos, maior a impressão de realidade. Henry James é a fonte e a origem da teoria crítica sobre o ponto de vista ficcional. Segundo Friedman, o romancista se encontrava “obcecado” por encontrar um foco “novo” para suas histórias, o que “foi solucionado, em larga medida, pela consideração de como o veículo narrativo podia ser limitado pelo enquadramento da ação na consciência de um dos personagens da própria trama.” (FRIEDMAN, 2002, p. 169). Segundo esse método, a história ganha vividez, intensidade e coerência quando elimina as ilusões do “gárrulo autor onisciente”. De acordo com Leite (2000, p. 13), eis uma síntese da narrativa ideal para James: “[...] a presença discreta de um narrador que, por meio do contar e do mostrar, equilibrados, possa dar a impressão ao leitor de que a história se conta a si própria, de preferência, alongando-se na mente de uma personagem que faça o papel de REFLETOR de suas ideias”. Em resposta aos prefácios e aos teóricos que se basearam em James, alguns autores, como Wayne Booth28 (1980), passaram a questionar o desmerecimento de obras em que prevalece o sumário narrativo, o ponto de vista do narrador sem qualquer mediação da personagem. Por outro lado, muitos passaram a analisar a literatura romanesca a partir destes dois procedimentos narrativos, o mostrar e o contar, diferenciação basilar para discussões teóricas posteriores sobre o conceito de pictórico e dramático, a ser discutido no tópico seguinte.

28 BOOTH, Wayne C. A retórica da ficção. Tradução de Maria Teresa H. Guerreiro. Portugal: Arcádia, 1980. 114

2.3 A contribuição de Percy Lubbock: valorização da forma e ampliação dos sentidos através do ponto de vista

Quando Henry James publicou a Edição de Nova York, houve uma grande expectativa quanto à recepção que a antologia receberia, mas apenas alguns textos curtos foram publicados acerca dela. Somente anos depois, livros de teoria narrativa e crítica literária passaram a filtrar concepções intuídas por James, tendo em vista que sua reflexão sobre o foco narrativo apresenta uma visão criadora e não teórica. Um dos primeiros a escrever sobre a Edição foi o crítico inglês Percy Lubbock, com artigo publicado em 1909. Em 1921, ele lançaria A técnica da ficção29 (1976), uma obra que dialoga com James. O livro é uma exposição menos hermética, apesar de teórico, e um estudo original, ainda que com uma notável relação intertextual com a ficção e com os prefácios do escritor norte-americano. Segundo Marcelo Pen (2003), um leitor que não conhecesse a relação intrínseca dos dois textos poderia até considerar que há entre as obras mais diferenças do que semelhanças:

O que o leitor estranha é que, a despeito de semelhanças tão flagrantes, ele ainda sinta que os prefácios de James e o The craft de Lubbock sejam coisas bem diversas. [...] Pois se o objeto das duas considerações é, em grande parte, o mesmo — a ficção — e, mais, se a disposição para refletir sobre ela como uma arte também se avizinha, existe realmente uma diferença fundamental que não é de ideia nem de modelos. O que há, o que perturba sobretudo é uma distinção de modo, uma diferença de atitude diante do objeto. Se em Lubbock há um movimento que busca a apropriação (como crítico que busca refletir sobre o trabalho de outros artistas), nos Prefácios a tendência mais comum, essencial e diferencial se encontra numa abordagem de re-apropriação (como artista ou leitor privilegiado que reflete, em retrospecto, sobre sua própria criação). (PEN apud JAMES, 2003, 32)

Como crítico literário, Percy Lubbock parte das premissas intuitivas de James, nascidas de sua inquietação criativa e das suas reflexões metaficcionais, e desenvolve um método de análise do ponto de vista embasado na distinção entre o modo pictórico e o dramático, entre panorama/contar e cena/mostrar, aplicado a diversos clássicos da literatura mundial, tais como Guerra e paz e Anna Karenina, de Liev Tolstói; Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski; Madame Bovary, de Gustave Flaubert; Vanity fair, de William M. Thackeray; A época da inocência, de Edith Wharton; Bleak house, de Charles Dickens; O pai Goriot, de Honoré de Balzac; e As asas da pomba e Os embaixadores, de Henry James. A aplicação do método por Lubbock passa por diversas obras consideradas panorâmicas, cujo ponto de vista é predominantemente do narrador, para chegar, nos últimos

29 LUBBOCK, Percy. A técnica da ficção. Tradução de Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix: Ed. da Universidade de São Paulo, 1976. 115

capítulos do livro, as obras jamesianas, consideradas exemplares no que diz respeito à construção da cena e do uso da consciência da personagem30. Além disso, Lubbock exalta os romances de Henry James porque neles a escolha do ponto de vista contribui para o tema principal, sendo essa uma das bandeiras de A técnica da ficção: é imperativo que a forma trabalhe em benefício do tema, principalmente no que diz respeito à escolha do ponto vista. Os primeiros capítulos de A técnica da ficção se dedicam à relação problemática entre literatura e técnica. Enquanto arte, a ficção é repleta de movimento, da vida das personagens, o que faz com que o leitor não atente para a sua forma, para a sua composição técnica. Ao final da leitura, diz Lubbock, o que geralmente se discute está relacionado ao sucesso e à felicidade das personagens. Além do mais, por mais forçoso que seja, um indivíduo raramente consegue apreender a forma de uma obra através de sua memória: “Às vezes é possível voltar ao livro e reavivar a impressão que tivemos; mas muito raramente poderemos ler e reler um livro tantas vezes a ponto de suas cenas se nos tornarem familiares.” (LUBBOCK, 1976, p. 11). Justamente por isso, é comum que o crítico analise fragmentos da obra não muito maiores do que o suficiente para serem avaliados e criticados. Com essas deduções, Lubbock pergunta-se como o leitor poderá avaliar um livro se pouco ou quase nada da sua técnica é apreendida. A saída apresentada pelo teórico é o crítico tornar-se um artista às avessas, que de alguma maneira decompõe e reorganiza o espetáculo feito pelo escritor31. O processo de “reorganização” de Percy Lubbock fundamenta-se em observar quais romances mostram e quais contam, começando a partir da análise de Madame Bovary, de Flaubert: “O que quer que esse livro possa ser, ou deixar de ser (sic), depois de muita leitura, ele permanecerá sempre como o romance de todos os romances, que a crítica da ficção não pode ignorar.” (Idem, p. 44). Para Lubbock, esse romance apresenta um tema firme e claro, Emma Bovary, e permite que a história de seu tratamento (pictórico ou dramático) seja perseguida sem a perda de um só elo. Os métodos desse romance se destacam claramente e o seu afã é o de “contar” a história. Quanto a isso, Lubbock é incisivo: a arte da ficção só começa

30 As críticas geralmente feitas a Lubbock dizem respeito ao modo como ele usa o método de análise do ponto de vista para avaliar as obras. Para ele, obras com grandes passagens sumarizadas, repletas de digressões temporais e/ou comentários do narrador, perdem em expressividade artística. Por isso, afirma-se que, em certo sentido, ao invés de avaliar os recursos estéticos dos romances, Lubbock os desmerece por não poder encaixá-los em seu método. É o que teria acontecido, por exemplo, no seu julgamento de Guerra e paz, segundo ele, um grande romance, no qual o autor desprezou a forma, criando histórias inconclusivas. 31 Para Lubbock, o leitor comum lê uma obra sem preocupações formais. Já o leitor habilidoso (o crítico) atenta para o delineamento formal e, por isso, sua leitura é um tipo de recriação do romance. Diz o autor: “O leitor de um romance — refiro-me ao leitor crítico — é também romancista; é fazedor de um livro que poderá agradar ou não a seu gosto quando estiver pronto, mas um livro pelo qual terá de assumir sua quota de responsabilidade. (LUBBOCK, 1976, p. 20). 116

quando o romancista pensa na história como algo a ser “mostrado”, exibido de maneira que se conte sozinho (Idem, p. 46). Para alcançar esse efeito, o romancista deve dramatizar suas opiniões e julgamentos (veem-se aqui ecos das ideias de James), como Flaubert consegue em pontos específicos de Madame Bovary, utilizando os dois modos de apresentação: a cênica (cena) ou a apresentação panorâmica (sumário). Embora não vejamos problema em uma narrativa utilizar o método pictórico e ser construída por longos sumários (sendo a pertinência desse método avaliada pelo sentido do texto), é fato que em Elisa o procedimento mais usual é o da cena; em seus contos, a apresentação panorâmica é muito mais tímida do que a cênica e passa de uma para outra quase imperceptivelmente. O conto “A partida” abre-se com um discurso enunciado por um narrador onisciente, mas suas palavras não tratam de eventos passados; tem relação com o que o leitor tem diante dos olhos, o estado emocional das personagens naquele exato momento:

Silêncio soturno. Silêncio de final de batalha. Os dois cansados, esvaziados após a acalorada discussão. Ele era incapaz de discutir um assunto qualquer a não ser em altos brados; ela não podia ouvir elevarem a voz contra si sem que se contagiasse e não passasse a falar mais alto ainda, a ponto de as veias do pescoço intumescerem como se fossem romper-se. Em seguida sentia-se miserável, o coração pulsando com força, como o pesado bater de asas de um pássaro em curto voo. A angústia de não alcançar o espaço aberto, uma dor fininha transformada em vontade de morrer. Pois havia dias em que viver ou morrer tanto se lhe dava, só que para continuar vivendo não sabia a que se agarrar. (LISPECTOR, 1985, p. 112)

O ponto de vista de um narrador onisciente é geralmente utilizado por Elisa em contos que abordam a relação conflituosa entre casais, como acontece nos textos “Amor” e “A terra é azul”. Na história acima, um casal protagoniza uma acalorada discussão, mas não temos acesso a ela. As duas linhas iniciais, entre “Silêncio” e “discussão”, nos colocam num ponto de observação do casal, agora inerte e magoado pela violência das palavras proferidas. Em seguida, vê-se o ponto de vista do narrador em relação à atitude “dele” e “dela”, ambos incapazes de um diálogo civilizado. A partir do segundo parágrafo, ganha destaque o ponto de vista do narrador, mas sob forte “influência” da interioridade da personagem feminina no que diz respeito à falência do casamento: sentimentos de angústia, aprisionamento e desejos de morte, que são frutos tanto das antigas brigas quanto daquela que acabara de acontecer. Ainda que Lubbock aparente preterir as passagens descritivas ou panorâmicas de um romance, ele é consciente das limitações de qualquer um dos dois métodos adotados pelo escritor. O teórico valoriza a cena, contudo, acredita na constante necessidade da preparação panorâmica, principalmente num gênero extenso como o romance. Na verdade, a literatura do 117

século XX é incrivelmente marcada pela predominância da cena e pela introspecção (o pensamento em cena), mas não há dúvida de que há efeitos e objetivos que só podem ser alcançados com o método pictórico, por meio do sumário. Sendo assim, o talento do escritor transpareceria no modo como ele passa do sumário à cena e vice-versa (num trecho como o acima transcrito de “A partida”, e na contística de Elisa de modo geral, essa mudança de um a outro método é incrivelmente sutil). Para Lubbock, escolher um dos métodos sempre implicará em certo grau de perda, cabendo ao escritor “medir” o que deseja com o texto e até que ponto é possível abraçar a liberdade do sumário em detrimento da intensidade da cena:

Daí que a narrativa, a crônica, o resumo, que precisam representar a experiência ordenada e arrumada do narrador e ter, portanto, a natureza da descrição, devam ser robustecidos, adquirindo uma força que se aproxima da do drama, em que já não se percebe a intervenção do narrador. A liberdade proporcionada ao romancista pelo método pictórico não a conhece o dramaturgo; mas essa liberdade tem de ser paga com alguma perda de intensidade, e a questão se resume em saber como pagar o menos possível. (LUBBOCK, 1976, p. 81)

A palavra “intensidade” aparece aqui como eco das palavras de Henry James. Tanto para o romancista quanto para Lubbock, a cena é mais intensa, vívida, e aumenta o caráter ilusório da ficção, tornando-a mais “aceitável” para o leitor. A grande questão é como não perder os efeitos positivos da cena no romance, já que o texto romanesco não pode ser construído sem o apoio do sumário; Lubbock apresenta a sua sugestão: “Tudo no romance, tanto os episódios cênicos quanto o resto, em certo sentido, deve ser dramatizado; é para isso que tende o argumento.” (Idem, p. 81). É nesse sentido que se pode abordar o pensamento da personagem como forma de construção da trama. Para exemplificar, Lubbock se vale do romance A história de Henry Esmond, de 1852, de Willian M. Thackeray. Apesar de ter sido publicada em meados do século XIX (ou seja, não poderia ter sido influenciada pelas características estéticas/históricas do século XX), Lubbock percebe nessa história uma significativa valorização do ponto de vista da personagem. N’ A história de Henry Esmond há um narrador que enuncia os sumários, mas que também está em cena, circunstância que dá um novo relevo aos fatos narrados. Os pensamentos e sentimentos do protagonista, em outras palavras, seu ponto de vista, tornam-se o centro da narrativa. Na forma, essa seria uma história pictórica, calcada na autobiografia, mas na sua função torna-se dramática porque prevalece a visão de um narrador-personagem. Enquanto no método dramático “puro” a história se dá somente pelo que falam as personagens, pelo construto do espaço e pela aparência e movimentos das personagens (a ação 118

no espaço), no método pictórico-dramático, há um narrador que fabula, mas o ponto de vista não é de seu domínio, ou seja, a perspectiva da personagem torna-se mais relevante para o desenrolar da trama e para a percepção dos fatos do que a própria visão de mundo do narrador. Não apenas o que fala, mas o que pensa a personagem constituem a força dramática do texto, uma inversão, tendo em vista que cabiam ao narrador tradicional a condução da narrativa, os comentários sobre esta ou aquela personagem, e os pensamentos, quando expostos, eram interpretados pela psicologia do narrador. Expondo um significativo quadro de análises, A técnica da ficção adentra na questão da dramatização da mente, utilizando como arrimo uma narrativa cuja história é contada pelo pensamento: Os embaixadores (o mesmo romance que teria levado James a refletir sobre a questão do ponto de vista). De acordo com a análise, James utiliza nesse romance o aspecto e o comportamento da mente como veículo: os impulsos, as imagens, as ideias e reações mentais são os atores principais. Fatos ocorridos estão, muitas vezes, no campo do imaginado, do lembrado, do retomado pela personagem via rememoração. Esse tipo procedimento é o mais recorrente na contística de Elisa, na qual a ação principal não se realiza no plano do espaço físico, e sim no fluxo do pensamento, mesmo havendo um narrador onisciente (que poderia tratar a narrativa apenas pictoricamente). Todos os contos de O tigre de bengala apresentam em maior ou menor grau a revelação do movimento interno da protagonista. Em “Mulher passeando”, por exemplo, todas as evoluções da narrativa se baseiam no que pensa a personagem ao rever um antigo amor:

Ela caminhava com leveza contra a luz da tarde. De súbito foi aquele choque. Não o imprevisível do desastre, não a vidraça se partindo com o fragor de estilhaços pelo asfalto em filetes brilhantes e pontiagudos. Mas o surdo baque do inevitável. Por um fragmento de tempo ainda hesitou, oscilando sobre as pernas trêmulas, depois projetou o corpo para frente num cego render-se à fatalidade. Continuava a andar ainda, porém no fundo resvalando do anterior estado de frouxo abandono para o tumulto dessa densa realidade, dessa realidade a ramificar-se em mil caminhos de contradições e mágoas. A única evidência nesse momento, a única mesmo, era ele, que vinha em sentido contrário. Mas não ao seu encontro. Breve aceno de parte a parte sublinhou o seco instante de reconhecimento na paralela que ambos concomitantemente pisaram e que após transpuseram em diametrais opostas. Seguiu-se o seu aprofundamento interior se transmudando em desgosto, e o subsequente secreto espraiar-se de uma dor grossa e madura, como o traumatismo de uma pancada escurecendo em edema e difundindo-se em perplexidade. (LISPECTOR, 1985, p. 50)

Há aqui qualidades do estilo de Elisa Lispector, tais como a especificação da luz da cena e o posicionamento (às vezes acrescido de alguma ação) da personagem, criando uma 119

perspectiva visual para o leitor32. Seus contos raramente começam com uma explanação do passado da personagem: a temporalidade é o presente, a personagem é colocada em quadro na primeira linha do conto e, sem digressões, há a criação do conflito. No conto transcrito, a imagem do ex-namorado perturba a protagonista. O narrador nos alerta quanto à inexistência de um acidente automobilístico, mas não nega o “baque” psicológico e o descreve com a mesma violência e impacto de um atropelamento. A perturbação física da personagem — seu corpo arqueado, suas pernas trêmulas — é um efeito consequente da aparição desse “ele” que vem em sentido contrário33. A história utiliza imagens geométricas para metaforizar o (des)encontro de ambos. Ele e ela parecem estar à beira de uma aproximação, de um encontro, mas eles, conforme representa o conto, estão em linhas paralelas. O aceno de mãos desencadeia um mergulho na mente da mulher, enquanto ela caminha a passos incertos pela cidade. O narrador a segue na rua com um ponto de vista externo, mas a essencialidade do conto não está na ação de passear (como poderia sugerir o título do conto), mas nas sensações da mulher ao longo do trajeto. Note-se, na parte final do trecho, que o evento que desequilibra a personagem não dura mais do que alguns segundos, mas ele é responsável pelo desgosto profundo, pelo atordoamento e pela sensação de dor, fortes a ponto de serem descritos como um trauma com edemas, referência às feridas emocionais não cicatrizadas pelo tempo. Em “Mulher passeando” há claras marcas linguísticas de um narrador com ponto de vista, porém, o centro da história não é a perspectiva dele, mas sim da personagem, o que a torna ainda mais dramática. O encontro com o passado nos faz mergulhar numa fenda temporal e psicológica, repleta de lembranças tristes, questionamentos sobre a compreensão humana; o monólogo interior da protagonista é a resposta sensorial à situação inicial do conto: “— Adiantava negar que ele era o que ela mais queria, que ele era a única fonte de seu amor e a razão de sua ternura pisada? Como única resposta, sentiu a repercussão de uma saudade pungente.” (Idem, p. 51). Com tais procedimentos narrativos, não apenas ouvimos o narrador, mas observamos a história se desenrolar diante de nós no exato momento da ação, inclusive,

32 Dos vinte e dois contos, poucos têm abertura diversa. Mesmo em “A morte do herói”, conto narrado com ponto de vista onisciente e que retoma, através do próprio narrador, elementos do passado do protagonista, o início ocorre da seguinte maneira: “Num contrastante jogo de luz e sombra, à claridade de uma lamparina fumegante, as faces macilentas destacavam-se abruptamente. Em tom grave, os homens confabulavam, ao calor do debate as vozes ora se elevando em uníssono, ora se extinguindo há um só tempo.” (LISPECTOR, 1985, p. 90) 33 Há uma recorrente ausência de nomes próprios nos contos de Elisa, em especial quando se refere a relações entre casais. Não notamos esse recurso nos romances, a não ser em Corpo a corpo, que tem como um de seus principais temas a relação marital. 120

como se víssemos pela perspectiva dela. Cada movimento, cada palavra proferida ou pensada, ganha assim um enorme significado, afinal, uma cena não se caracteriza pela gratuitade, isto é, sua função é intensificar a dramaticidade da obra ao revelar o pensamento das personagens, cujo conteúdo confirma as informações dos sumários narrativos ou, por outro lado, serve como contraponto ao discurso do narrador34. Em todo caso, a inserção da perspectiva das personagens é uma maneira singular de representar os fatos e compor o sentido pretendido pela obra. Percy Lubbock afirma que na obra genuinamente dramática o leitor vê a história apresentar-se diante de si como numa tela, independente de pontos de vistas alheios. Para isso, a perspectiva precisa se instalar numa personagem (secundária ou principal), mesmo com a atuação de um narrador observador (o que formaria um ponto de vista integrado, ideal para essa compreensão teórica). Em outras palavras, um texto apenas dramático, no qual apenas as personagens falam (em diálogo ou em solilóquio), é funcional para apresentar uma ação, porém, pode ser, de um modo geral, um método estreito sem a visão ampla do narrador. Assim ele explica o seu “julgamento” acerca do drama:

Eis aqui uma dificuldade a que o método dramático, em toda a sua severidade, não se acomoda, uma dificuldade que não se harmoniza com a sua força. [...] Para situar e apresentar uma ação esse método é supremo. Mas, onde não se trata apenas de apresentar uma ação, senão de relacioná-la com o ambiente, o drama puro vê-se em posição desvantajosa. Os olhos do autor, capazes de abranger amplamente e de generalizar o sentido do que veem, enfrentarão esse óbice com mais naturalidade. (LUBBOCK, 1976, p. 125)

Feitas as devidas ressalvas a essa opinião, radical em sua aparência, entende-se que a presença de um narrador atrela outros sentidos, mesmo numa narrativa que se centra na dramatização do pensamento, uma vez que haverá um diálogo de perspectivas. Além disso, se o tema “dita” o método, inferimos que o conto “Mulher passeando” usa dois pontos de vista para abordar o abismo entre a realidade interna e externa do ser humano. Embora conhecedor da mente e das mínimas vibrações corporais da protagonista, o narrador coloca-se na posição de um observador externo, ponto de observação similar aos dos transeuntes da rua, para quem aquela mulher é apenas uma pessoa que passeia. Do ponto de vista interno, a protagonista está

34 No romance O dia mais longo de Thereza, há uma cena que exemplifica essa questão. Thereza percebe a sogra como uma pessoa mesquinha, alheia ao seu sofrimento, e uma mãe. Contudo, uma conversa ouvida “atrás da porta” revela que a visão de Thereza acerca de sua sogra não é totalmente justa. Por meio de um diálogo com a filha, a sogra revela uma compreensão pouco imaginada do comportamento da protagonista, apenas não conhece alternativas tangíveis para retirá-la do isolamento depressivo: “‛— Coitada, deixe-a. Deve ter sofrido muito...’, retrucou a sogra, surpreendentemente a tomar o seu partido. [...] ‘— O menos que se pode dizer de coração leve, sem medo de errar’ retrucou a sogra ainda naquela primeira noite, ‘é que ela é dura; o próprio fato de tão ciosamente furtar-se à intimidade denuncia essa dureza, sua deliberada inviolabilidade.” (LISPECTOR, 1978, pp. 89, 90) 121

num processo psicológico doloroso e se martiriza por conta de um relacionamento infeliz e sem chances de retorno. O conto se encerra exatamente com a justaposição dessas perspectivas (interna e externa), somada à reconstrução psicológica da protagonista, um fenômeno recorrente nos momentos pós-monólogos das personagens elisianas:

A custo e muito demoradamente se foi equilibrando sobre a certeza dura que se afirmava mais e mais, até culminar numa indiferença morna que aos poucos foi invadindo todos os recantos do seu ser, abrandando-lhe os gestos e amainando o seu jeito todo. E com o ter perdido a urgência de chegar aonde antes se dirigia, saiu andando vagarosamente e sem destino. Na quietude da tarde amena, com a luz descambando suavemente por trás dela, era apenas uma mulher passeando. (LISPECTOR, 1985, p. 53)

O desfecho retoma a cena inicial pré-crise, no que diz respeito à quantidade de luz e em sua ideia de serenidade, expressos pelas palavras “luz doce”, “caminhava com leveza”, “quietude da tarde” e “suavemente”. Ele e ela não se encontram porque andam em linhas paralelas, interpretação que pode ser relacionada à falta de reciprocidade do relacionamento, tópico do monólogo interior da personagem. Há, porém, uma outra referência geométrica: o processo interno da personagem é similar a um trapézio35. Quando visualiza o antigo namorado, a personagem está num ponto de relativa tranquilidade, mergulha mentalmente no passado e, no desfecho, emerge de sua angústia, retomando o passeio. De um ponto de vista metafórico, a contística de Elisa Lispector mostra como um evento, aparentemente simples, causa um extraordinário desequilíbrio interno no ser humano, mas o monólogo interior é a forma de interpretação e compreensão que faz o indivíduo voltar para o eixo. Nos capítulos finais de A técnica da ficção (XVII e XVIII), o autor parte para a síntese de suas principais ideias, retomando a relação entre o narrador e a história, entre o pictórico e o dramático e a importância da questão do ponto de vista para a análise da ficção: “[...] toda a intricada questão do método, no ofício da ficção, é governada pelo problema do ponto de vista” (LUBBOCK, 1976, p. 155). Quando participa da ação, o narrador é, assim como as demais personagens, dramatizado; sua consciência se apresenta na cena, em sua agitação, um recurso que leva a voz do narrador para dentro da história e o leitor a mede como elemento da intriga. Cada método possui vantagens e desvantagens e a exploração dos recursos pelos autores depende do efeito que se quer do tema. Uma história longa, como as que geralmente compõem

35 Como vimos na revisão crítica, a figura geométrica associada à literatura de Elisa é o círculo, entendido como símbolo do sentimento da solidão. No entanto, o procedimento narrativo de Elisa é quase sempre descendente e ascendente e entre um ponto e outro existe a crise interna (apenas algumas poucas personagens não retornam desse desequilíbrio emocional). 122

o romance, permite o uso do método pictórico e/ou do dramático, mas quanto de cada um é utilizado é uma escolha que o autor fará de acordo com os efeitos pretendidos. Dramatizar é sempre uma valorização da ação presente, da cena, do ponto de vista da personagem, mas até que ponto o processo deve ser seguido é uma pergunta que o autor pode se fazer. Possivelmente, em narrativas curtas e modernas, a utilização do “drama puro”, como caracteriza Lubbock, funcione muito bem como o único método utilizado pelo artista. Não é incomum vermos na literatura contos inteiros construídos apenas em diálogos. Em Elisa, por exemplo, o conto “Por puro desespero” é construído, com as devidas especificidades, com a estrutura de texto para a representação. No entanto, no modo como foi elaborado, vê-se uma espécie de ironia de Elisa, já que a personagem principal conversa com alguém que não lhe dá ouvidos36, um psiquiatra que, por sua incapacidade de empatia pessoal, se exime de se relacionar com as experiências de sua paciente. Sendo assim, a escolha por determinado método está intrinsecamente associada aos sentidos que ele pode sustentar. A ausência de um narrador que nos apresente a paciente, o médico, o passado de ambos, ou mesmo o espaço em que se encontram posicionados na cena, transfere a responsabilidade para a personagem, que a partir de então passa a enfrentar o silêncio de seu ouvinte, narrando como protagonista os horrores sofridos nas mãos de médicos e enfermeiros de um hospital feminino:

Sabe, doutor, gosto dessas sessões de análise pelo seu todo informal. Nada de recostar- me no divã, o senhor sentado atrás de mim com o bloco de papel e a caneta na mão lembrando um enviado pelo Santo Ofício à cata de uma heresia que justifique a fogueira da Inquisição. Conosco é diferente. Assim sentados à sua escrivaninha, um de frente para o outro, o jogo é mais franco, se bem que nem sempre amistoso. [...] Mas juro que de tudo quanto venho lhe contando nestas últimas sessões se constitui de honestas buscas de algo que pressentia estar escondido por detrás do que dizia, mas eu não atinava com o que fosse. — — Espere, não vou lhe dizer já o que é [...]. (LISPECTOR, 1985, p. 118)

Um conto como esse poderia apresentar passagens pictóricas, todavia, os sentidos alcançados seriam diferentes daqueles que são sugeridos com sua forma cênica. As descrições, os sumários são essenciais em certos textos, porém, a história representada joga luz sobre as pessoas e seus atos, possuindo alto valor. A cena é dispendiosa em termos de tempo e de espaço, mas sua utilização coroa, no romance, capítulos em que tudo converge para a expressão das

36 Na análise desse conto, chamaremos a atenção para o fato de que a personagem ficelle em “Por puro desespero” cumpre sua função no texto por fazer justamente o oposto do que faz esse tipo de personagem: ouvir alguém da cena para que o seu passado seja do conhecimento do leitor. Um recurso interessante porque permite ao leitor da história ser o único confidente da protagonista. 123

personagens. No conto moderno, então, ela pode ser recurso único, já que o texto pode representar um momento curto, mas significativo, essencial para a personagem. A cena, o principal incidente dramático, é o mais importante para essa teoria do ponto de vista. A teoria defende que a cena mostra as personagens, não as conta como o narrador tradicional faria. A cena aparece aos olhos do leitor e exibe a totalidade do tempo e do espaço que ocupa. Se o sumário é realmente necessário, umas poucas frases, diz Lubbock, poderá servir de introdução para uma cena, que o autor pode usar “para terminar um assunto pendente, para demonstrar um resultado, para coroar um efeito parcialmente produzido por outros meios.” (Idem, p. 165). Sobre a questão do ponto de vista, Lubbock evidencia que a diferença do método deve chamar a atenção do crítico para a seguinte questão: o narrador está com a atenção voltada para os incidentes da história ou está considerando a forma e a cor que eles assumem na voz ou no pensamento de alguém? A história está sendo vista de um plano alto, baixo, frontalmente, o narrador se põe no mesmo nível do leitor? Qual o centro da percepção? Quem realmente domina o assunto e o experimenta? (LUBBOCK, 1976, p. 51). Com base em tais questões, é possível afirmar que a contística de Elisa é toda centrada no uso da cena. Digressões, comentários ideologicamente marcados pelo narrador acontecem em momentos breves e bastante específicos. A cena mental, o monólogo interior, é o recurso central, inclusive porque este é o grande tema de O tigre de bengala: a restauração da personagem acontece de forma autossuficiente através da reflexão pessoal. A protagonista é o centro da percepção e também a sua própria salvação, por isso, não há razão para explorar a consciência do narrador.

2.4 A contribuição de Joseph Beach e a história que conta a si mesma

Joseph Warren Beach37, escritor e crítico literário norte-americano, é o autor de The twentieth century novel (1932), um livro particularmente didático sobre a questão do ponto de vista e os conceitos que tangenciam o assunto. Descrito como monumental por Friedman, o trabalho de Beach trata da técnica do romance do século XX, caracterizado “em virtude do fato de que a estória conta-se a si mesma.” (sic) (FRIEDMAN, 2002, p. 170). Beach também retoma

37 Joseph Warren Beach (1880-1957) nasceu em Nova York e foi poeta, romancista e professor de literatura. Ele é o autor de O método de Henry James, de 1918, e do já citado The twentieth century novel: studies in technique, de 1932. 124

os conceitos de drama e dramático, tendo em vista que a obra de James (usada mais uma vez como ficção exemplar) pretendeu intensificar a carga dramática do romance. Direto na apresentação dos conceitos que o embasam, Beach afirma que o drama é uma história em forma de diálogo e ação, mas o dramático (em sua forma adjetiva38) é a qualidade do drama, notável por sua vivacidade, movimentação (marcada pela ação dos atores/personagens), pelo suspense e pelas surpresas na trama, e se faz presente em obras épicas. Tais características se ligam ao desenvolvimento do enredo, ao modo como a história representa a ação, quer seja realizada no espaço físico da cena, quer seja imaginada pelas personagens. Nesse sentido, a dramatização teria alcance também nos “estados espirituais” das personagens; por isso, Beach considera tais obras como “dramas subjetivos” (Subjective drama). Enquanto a palavra “subjetivo”, em outros contextos, significa a ficção que expressa a filosofia do autor, sentimental e cheia de “cores locais” (sentido que geralmente se atribui à literatura romântica brasileira), para Joseph Beach é subjetiva a ficção que representa a interioridade da personagem. Nesse contexto, importam mais os motivos da ação do que a ação propriamente dita, sendo o pensamento transferido para o palco das ações. Assim, o dramático no romance seria alcançado a partir da projeção dos estados mentais das personagens sem os comentários, as intervenções ou explicações do narrador, tal qual se realiza no drama enquanto peça. Havendo enunciados produzidos pelo narrador, eles serão incolores no processo narrativo, sem uma marca acentuada de caracterização:

But how can we talk of subjective drama? Stage drama is limited to the words and gestures of the characters. There is no author there to explain the mental processes lying back of these objective manifestations that is the first condition of drama and with the abandonment of soliloquy, the last vestige of subjectivity disappears. If we are to talk of dramatic novels at all, is it not necessary to concede that a novel is dramatic just in proportion to its objectivity? But is it not the prime distinguishing feature of the novel that the author is there to explain? And might not one conclude that the proper line of

38 Essa conceituação dos gêneros com base em suas características substantivas e adjetivas dialoga com o estudo presente em O teatro épico, de Anatol Rosenfeld, que demonstrou como os textos combinam traços estilísticos de diversos gêneros literários, quer pertençam ao lírico, ao épico e ao dramático. Entendidas como substantivas ou adjetivas, como essência (estrutura) ou como incremento (traço), as características dos gêneros se relacionam entre si e isso seria um dos fenômenos responsáveis pela constante renovação da forma literária. Nesse sentido, o trabalho de Rosenfeld permite entender a multiplicidade dos fenômenos literários e analisar obras dentro de um contexto de tradição e renovação. Ainda sobre o texto, Rosenfeld considera como dramática (definição substantiva) toda obra dialogada em que atuem os próprios personagens sem serem apresentados por um narrador. Nesse caso, pode-se considerar como dramatizada a narrativa que, embora com um narrador, tem como foco principal o ponto de vista da personagem. (ROSENFELD, Anatol. Gêneros e traços estilísticos. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 15-36. (Debates, 193))

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the novel would be in its sharp differentiation from the objective technique of drama?39 (BEACH, 1932, p.179)

As várias questões postas acima tratam da dramatização do romance e da possível descaracterização da épica enquanto gênero, cuja singularidade é expressar-se por meio da voz narrativa (um traço fundamental para a distinção entre o romance e os textos dramáticos). Beach defende que o narrador não desaparece por inteiro na literatura de natureza dramática, nem naquela baseada na exploração da consciência da personagem. Para ele, o narrador apenas deseja ler-se diretamente na sua consciência, identificar-se com a personagem em impressão, sentimento e perspectiva, dando, com a maior coerência possível, uma visão interna e não externa das coisas (tornando a narrativa altamente subjetiva). Na narrativa dramatizada, o narrador não está completamente ausente, apenas é representado de maneira diversa. Sua filosofia e visão de mundo são apresentados via ponto de vista da personagem ficcional, como se o leitor olhasse por cima de seus ombros, essa aliás é uma imagem geralmente citada para ilustrar o uso do ponto de vista da personagem e do narrador onisciente em um mesmo texto (como se o narrador se portasse atrás da personagem e revelasse o que ela vê). Não se trata, portanto, de fazer uma análise psicológica da personagem, mas de expor o movimento da sua consciência, uma exposição que o narrador, diz Beach, está mais habilitado a fazer do que ela mesma, daí a justificativa para a sua presença. Assim como outros que se posicionam a favor do romance dramatizado (James, Friedman, Lubbock), Joseph Beach deixa transparecer certo desapreço pelo ponto de vista do narrador onisciente e/ou intruso, considerando seu discurso autoritário e inflexível, pouco eficaz para uma aproximação e um entendimento profundo da personagem. Para ele, a distância entre leitor e personagem diminui à medida que ele a considera na ação de falar, fazer e pensar, não através dos comentários do narrador acerca dessas atitudes 40. A situação emocional durante a

39 “Mas como podemos falar de drama subjetivo? Uma peça teatral é limitada às palavras e gestos das personagens. Não há autor para explicar os processos mentais que estão por trás dessas manifestações objetivas - que é a primeira condição do drama - e com o abandono do solilóquio, o último vestígio de subjetividade desaparece. Se quisermos falar de romances dramáticos, não é necessário admitir que um romance é dramático apenas em proporção à sua objetividade? Mas não é a principal característica distintiva do romance que exista um autor para explicá-lo? E não se pode concluir que o caminho a ser seguido pelo romance seria a da acentuada diferenciação técnica quanto à objetividade do drama?” (Tradução nossa).

40 A crítica feita a essa linha de pensamento assegura que o sentido de certas obras é alcançado somente pelo discurso de um narrador tradicional, que sabe tudo sobre todos (ou que aparenta saber), possuindo a verdade dos fatos. Em A retórica da ficção (1980), Booth defende que o contar pode ser tão funcional e artístico quanto o mostrar, até mesmo o contar autoritário; como exemplificação, ele comenta uma passagem bíblica e analisa duas histórias de Decameron (narrativas primitivas), demonstrando que, em tais textos, o autor (narrador) apresenta juízos que são tomados como expressões da verdade pelo leitor e que o uso desse ponto de vista não traz quaisquer 126

ação narrativa possui maior relevância e os detalhes necessários para a compreensão da personagem, em geral apresentados não-dramaticamente, são reunidos pelo leitor enquanto a narrativa avança. Assim, o passado pode ser explicado pela mente, essência da história:

There is one solution for this problem which has been more and more seized upon by novelists with the passing of the years. It is to use the consciousness of the characters as a medium for explanation and comment. What the author tells us in propria persona is formal and official. It is often necessary, and accepted by us like any other practical necessity. But it is not of a piece with the story. What goes on in the minds of the characters on a given occasion is another matter. That is of the essence of the story itself. And the aim of the author who has chosen this solution for the novelist's problem is so to present what is going on in the mind of his character at a given moment that we shall forget the author and ourselves and have a sense of being actually there. The scene of action has been transferred to the character's mind.41 (BEACH, 1932, p.183 – último grifo nosso)

Beach defende, portanto, que as informações transmitidas pela consciência da personagem possuem uma natureza diferente daquelas que são veiculadas diretamente pelo narrador. No primeiro caso, elas pertencem à história, enquanto no segundo as informações são vinculadas pelo discurso do narrador. Quando apresentada pela consciência, a história, portanto, conta a si mesma, ainda que essa transferência seja possibilitada pelo narrador. Um dos resultados quando do uso do ideal dramático na narrativa é a reduzida quantidade de fatos e informações. James, diz Beach (1932, p. 186), acreditava que, depois de certo tempo, o leitor ficava saturado de esclarecimentos e deixava de agregá-los, o que tornava crucial dizer somente o necessário sobre as personagens. Para ele, mais importantes do que os fatos em si são as impressões que eles causam na imaginação do leitor. O que o marca não é o evento, mas o modo como ele agrega significados. Notamos essa mudança de perspectiva quanto aos eventos e à quantidade de dados sobre as personagens na literatura de Elisa. No conto “A espera”, por exemplo, uma mulher caminha pela rua, entra em alguns lugares (uma lanchonete e um cinema), volta para casa, recebe um

prejuízos estéticos para as narrativas. Frente a essas questões, tomamos as reflexões de Beach como noções teóricas diretamente relacionadas aos romances dramatizados a que ele se refere em seu trabalho (principalmente porque são obras do entresséculos) e que servem para um melhor entendimento do corpus desta pesquisa. 41 “Há uma solução para esse problema que tem sido mais e mais aproveitada pelos romancistas com o passar dos anos. É usar a consciência dos personagens como um meio para explicação e comentário. O que o autor nos diz in própria persona é formal e oficial. Muitas vezes é necessário e aceito por nós como qualquer outra necessidade prática. Mas não é parte da história. O que se passa nas mentes das personagens em uma determinada ocasião é de outra natureza. Isso é da essência da história em si. E o objetivo do autor ao escolher essa solução para o problema do romancista é apresentar o que está acontecendo na mente de seu personagem em um dado momento, de forma que esqueceremos o autor e nós mesmos e teremos a sensação de se fazer presente na consciência. A cena da ação foi transferida para a mente da personagem.” (Tradução nossa).

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telefonema, assiste a TV e, enquanto isso, pensa sobre a vida. Não há qualquer ação épica no transcorrer da história. O que se sabe sobre ela é pouco, porém, importantíssimo: ela está prestes a se aposentar, mas isso lhe dá uma sensação mista de ansiedade e marasmo: “Pela primeira vez parecia-lhe verdadeiramente estar à espera do inesperado, que não se cumpria. Não era, ainda, chegada a hora do encontro com o seu destino, algo lhe disse.” (LISPECTOR, 1985, p. 45). No cinema, um filme protagonizado por James Bond, um herói que resolve todos os percalços, intensifica a sensação de inabilidade, de incapacidade e estagnação: “— Em ficção, acredito que encontraria uma saída, por menos imaginosa que eu seja, mas quando se trata da realidade são tão poucas as soluções que a vida nos oferece.” (Idem, p. 46) De forma irônica, enquanto a arte cinematográfica (com seu herói caricato) desilude a personagem em relação a novos projetos, o jornal (na seção de ciências) restaura as esperanças na possibilidade de um evento extraordinário: “De repente, lembrou haver lido na seção de ciência do jornal matutino a descoberta, numa das galáxias mais próximas de nós, de uma nova estrela.” (Idem, p. 46). A notícia aparentemente simples da descoberta estrelar parece não ter implicações, eis que à medida que a noite se aproxima e a solidão se intensifica, a protagonista reflete melhor sobre a informação do jornal e lhe atribui um significado simbólico:

Escurecia. Foi ao quarto, trocou de roupa. Ligou a televisão, dispondo-se a retomar o fio de suas noites solitárias e insones, embora o calafrio na espinha, embora o pânico. Mas precisava conter-se entre as quatro paredes, precisava moldar a sua passividade feita dos gestos e dos hábitos com que conseguia manter-se à tona havia tanto tempo, já que, às vezes, até lhe vinha um desmedido cansaço de viver. Antes, porém, foi ao pequeno bufê num ângulo da sala, retirou uma garrafa de vinho branco aí guardada há tempo, e, entre melancólica e divertida, tomou com vagar um copinho para celebrar o nascimento de uma nova estrela — uma “estrela azul” — dez milhões de vezes mais luminosa que o sol.” (LISPECTOR, 1985, p. 47)

A ausência de ação nesse conto reflete a total falta de perspectiva vivida pela protagonista. Os lugares frequentados revelam a natureza tediosa de sua existência (metaforizada pelo sorvete dessaboroso da lanchonete, apenas “uma substância cremosa e gelada”) e a sua incurável imobilidade (intensificada pelo cinema com seu “filme de ação” e o herói invencível). Na trama, há a possibilidade de um trabalho caritativo, há um convite para um vernissage, mas nada disso se concretiza ou serve como motivadores internos para ela. Nem a aposentadoria, estágio da vida socialmente associado a um período de pouca produtividade e atividade, sai do estado de suspensão. Nesse contexto, o surgimento da estrela passa de um fato astronômico, assunto pequeno de uma nota de jornal, para ter ressonância na personagem, sendo a angústia interior, solitária e individual, suavizada com a criação de um elemento universal. 128

A cena final do conto (parágrafos transcritos acima) possui um forte apelo visual e mescla a onisciência seletiva com o efeito da câmera, aumentando o efeito de suspense, principalmente, depois de uma informação rápida sobre “um desmedido cansaço de viver”. Ao invés de uma ação trágica, vem a celebração de um evento distante, mas real, caracterizado por uma incrível renovação; parada no tempo e no espaço, a personagem é surpreendida por algo grandioso, criado e desvendado em algum ponto do universo, fato que lhe fornece uma inesperada dose de alento. O conto é muito sucinto quanto às informações sobre a vida da protagonista. Somente por meio de uma lembrança sabemos que ela é solteira, que não tem filhos e que já não pode mais conceber (um outro projeto também desenganado). Infância, juventude, ou mesmo o que se passou no dia anterior, não são implicados na trama. Só importa o que sente a personagem no dia em que se noticiou o descobrimento da estrela. Uma das qualidades do drama, diz Beach, é manter o tempo presente. O impulso fundamental para a concentração dramática, em geral, é o desejo de assegurar algo equivalente ao presente dramático da peça, visto também nos romances de Elisa, nos quais boa parte do passado das protagonistas se torna objeto conhecível por meio da consciência. No conto, a dramatização permite que vejamos a personagem em ação, o momento exato em que a mulher sai do quarto, passa pelo corredor, chega ao recanto da sala e brinda; esses espaços podem ser tomados como repartições de um palco e quem o ocupa é o centro de interesse com o qual nos identificamos (BEACH, 1932, p. 194). O centro de interesse é a personagem para quem o narrador se volta, embora saia às vezes do círculo de sua consciência para o aspecto externo da cena, um distanciamento justificado, tendo em vista que o corpo precisa ser descrito para o leitor de Elisa, já que a sua constituição (parte física, aspectos, peso, mobilidade) faz parte da construção de sentido das histórias42. Essa visão externa tem várias funções na narrativa. Pode, como vimos em “A espera”, aumentar a curiosidade e o suspense do leitor frente ao que fará a personagem diante de um conflito interno. Diz Beach: “O leitor deve ser mantido no escuro quanto a certas coisas; e, acima de tudo, ele deve ficar curioso sobre o que não sabe. Ele deve ser mantido em suspense

42 No terceiro capítulo, mostraremos que a contística de Elisa associa os movimentos da mente aos do corpo. Dentro dessa questão, são recorrentes problemas na mobilidade corporal (paralisia, obesidade, inchaço, laceração das pernas, etc.) como causa e/ou como intensificador de desconforto e sofrimento emocional das personagens. Notamos tal processo em “A trágica decisão”, “O furto”, “Por puro desespero”, “Exorcizando lembranças”, além de outros em que a relação não é tão patente, como em “A rosa” e “A morte do herói”. 129

sobre como as coisas estão se desenvolvendo, e seu suspense deve ser dirigido habilmente e centrado em certos assuntos.”43 (Idem, 1932, p. 199). Essa seria uma das vantagens da alternância do ponto de vista narrativo. Em determinados momentos, percebemos a personagem através dela mesma, em outros, por meio do olhar do narrador. No romance, a perspectiva pode ser ainda mais enriquecida, dada a inserção de um grupo maior de personagens. No conto elisiano, a trama gira somente em torno de uma figura feminina e tem caráter introspectivo; a passagem sutil de um ponto de vista (monólogo) a outro (narrador onisciente/câmera) é uma característica básica. Talvez por isso, o autor de The twentieth century novel considere o conto um gênero em que se nota uma tendência para a unicidade de ponto de vista, chegando inclusive a afirmar que o romance com ponto de vista único “foi pensado” como conto. Outro aspecto interessante é que Joseph Beach vê a literatura do século XX como uma narrativa de mistério, uma ficção que se vale de dúvidas, ambiguidades, e busca fazer o leitor ter vontade de descobrir, saber, compreender algo da história. Segundo ele, as escolhas e mudanças de ponto de vista revelam certas intenções, deixam pistas, mostram os fatos sob certos ângulos e distâncias; servem também para esconder e embotar determinadas atuações das personagens, uma concepção que lembra as ideias de Dal Farra em O narrador ensimesmado. Juntamente com o leitor, as personagens ganham ar de testemunhas oculares. Tomando como referência as obras de James, Beach acredita que a exploração da consciência das personagens cria histórias de mistério e de detetive, à moda de Robert Louis Stevenson44, escritor por quem James foi influenciado. Assegurar certa limitação do conhecimento do leitor é um procedimento natural do mistério, mesmo que esse mistério seja psicológico. Em O tigre de bengala, a maioria dos contos tem um desfecho surpreendente. Obviamente, como literatura típica do século XX (produzida entre as décadas de 40 e 80), o inesperado não é necessariamente um evento imponente. Há nas histórias um tom que nos leva a acreditar que algo decisivo está prestes a acontecer. Às vezes, o evento não tem a proporção que desejamos, embora ele se realize, como no caso do brinde em “A espera”, ou mesmo em “O furto”, cuja protagonista apenas se desfaz do objeto que causa o conflito interno. Nesse caso, a expectativa é criada, mas o objetivo a ser alcançado é a frustração do leitor, um sentimento

43 “The reader must be kept in the dark as to certain things; and, above all, he must be made curious about what he does not know. He must be kept in suspense as to how things are going, and his suspense must be directed skilfully, and centered on certain issues.” 44 Escritor britânico, Robert L. Stevenson (1850-1894) foi um importante criador de histórias de suspense. Autor de obras clássicas da literatura infanto-juvenil, tais como A ilha do tesouro (1883) e O médico e o monstro (1886). 130

similar, inclusive, ao que preenche os dias das personagens. Em outros, porém, a cena final apresenta uma resolução definitiva para o conflito. Um dos melhores contos de Elisa, “A morte do herói”, por exemplo, é finalizado com a cena de um assassinato (veja-se que, até nesse caso, a ação fatal fica em suspenso):

Pois naquela tarde, durante muito tempo ele esteve a contemplar o céu baixo empanado pela névoa seca, o sol suspenso no horizonte como enorme brasa a extinguir-se paulatinamente em seu leito de neblina. O calor sufocava pairando no ar uma ameaça de catástrofe. Ao atender ao chamado para o jantar, encaminhou-se ao peso da certeza do irrevogável. Sentou-se à mesa, e quando levou à boca a primeira colherada do líquido amargo, de súbito fechou os punhos, contorceu-se como a uma dor violenta. A vista se lhe turvou, o mundo apequenou-se. E nesse mundo pequeno só havia ele e o seu adversário, a revolta e a humilhação. Sentiu-se atingido por aquela ofensa até o âmago do seu ser. Então abriu vagarosamente as mãos crispadas, ergueu-se com movimento brusco, derrubando a mesa com tudo quanto sobre ela estava posto, e, como um cíclope a caminhar sobre escombros, dirigiu-se à cozinha. O outro também começou a adiantar-se vagarosamente, enquanto brandia a faca de cozinha. Cada qual sabia exatamente ao que ia, como se o que adviesse já tivesse sido preestabelecido desde o conhecimento de ambos, ou mesmo de muito antes, desde o dia em que foram gerados, e o que agora se seguisse fosse apenas o corolário natural de uma demorada sedimentação, o que não os isentava do doloroso sentimento de responsabilidade que lhes incutia esse ato liberador. A cena foi rápida. De uma rapidez estonteante. (LISPECTOR, 1984, p. 94)

Apesar do desfecho, o título do conto é uma metáfora para o declínio lento e desumano do protagonista que, já a partir da primeira cena, perde o prestígio entre seus seguidores a ponto de decidirem o seu exílio. O conto se inicia com a cena da decisão coletiva (uma decisão autoritária e intransigente dos colaboradores do antigo partido do herói), que vai sendo substituída pela exposição da consciência das personagens principais, o herói e o seu cuidador, que passam a coabitar uma cabana. O conto tematiza o isolamento como forma de desumanização, intensificada pela dura convivência entre dois indivíduos sem qualquer afinidade pessoal ou política, e pelo ressentimento, uma vez que o herói amarga o abandono de quem, em sua perspectiva, deveria lhe prestar homenagens e reconhecimento. Na cena final, as personagens são postas como agressores, apenas o título reforça a ideia da morte do líder. No decorrer da narrativa acompanhamos o desgaste psicológico de ambos, marcado no desfecho pelo desejo mútuo de vingança e morte. A análise da deterioração da consciência constitui o cerne do conto, cuja culminância é a morte física do herói. Definir com coerência um certo ponto de vista em narrativa é por si só uma grande qualidade estética. Apresentar personagens e fatos a partir da visão de certas personagens 131

possibilita uma variação de perspectivas e, portanto, uma apreensão diferenciada da realidade ficcional. Sob o olhar da mãe, o filho pode ser apresentado como bom e gentil, mas este pode ser visto como um crápula pela esposa, pontos de vista diferentes que acentuam, por exemplo, a ambiguidade e o paradoxo das relações familiares. Nesse caso, diz Beach, “The special consciousness of the character constitutes an added principle of selection, of composition and interpretation”45, e se a consciência da personagem contribui para a interpretação do texto é porque ela tem um valor estético (BEACH, 1932, p. 220). Na literatura, é possível reconhecer elementos específicos da visão de mundo do narrador (até mesmo do autor) no ponto de vista da personagem, mas essa constituirá um filtro para a sua ideologia e a informação oferecida será relevante de acordo com o significado que desempenhará na trama. É como se a importância de determinado elemento do texto precisasse ser avaliada e validada pela mente da personagem. Segundo Beach, o fato é uma “matéria grosseira” e a consciência é o “fluido químico” capaz de torná-lo disponível. Uma leitura que pode se beneficiar dessa acepção é a do texto “A rosa”, sexto conto de O tigre de Bengala. Em “A rosa”, a questão do ponto de vista ganha ares particulares, pois a percepção exposta é de um indivíduo que tem limitações cognitivas e atitudes infantilizadas, embora sua reflexão em certo sentido seja a única dotada de lucidez. Mais uma vez, o conto se inicia como uma pequena descrição pictórica para nos situar dentro do espaço físico da cena através de um narrador observador onisciente:

O jantar decorria calmo, pontilhado por excitação discreta, cada qual tendo um pouco a sensação de ser espectador e personagem a um tempo. Representando e vigiando o desempenho dos outros. Os homens, quase todos de escuro; as mulheres, em sedas de vistosas cores, os penteados feitos por hábeis cabeleireiros, os rostos bem maquilados, adornadas com muitas joias. — Não posso comer muito, dizia a mulher ao lado, porque tenho uma terrível tendência para engordar. (LISPECTOR, 1985, p. 38)

A parte inicial do conto chama a atenção para a teatralização do jantar; os convidados desempenham concomitantemente os papéis de atores e de plateia, pois atuam e se sentem avaliados, assim como ajuízam os outros nessa representação social. As roupas elegantes, a pele artificialmente melhorada, os penteados pagos reforçam a ideia da atuação, como se esses detalhes fizessem parte da composição do figurino e das máscaras sociais. O segundo parágrafo inicia uma breve cena dramática e dá o tom do conteúdo superficial das conversas à sala. As

45 “A consciência especial da personagem constitui um princípio adicional de seleção, composição e interpretação.” (Tradução nossa) 132

mulheres abordam os típicos “assuntos femininos”, o peso do corpo, supostas noites mal dormidas, e há aqui um quinhão de ironia por parte do narrador que menospreza essa inutilidade supervalorizada: “E quando acordo, sinto uma fome devoradora, concluiu quase num grito de vitória, como se tivesse acabado de descobrir um continente ainda irrevelado.” (Idem, p. 38). Entre os homens a situação é similar: igual irrelevância na aparente profundidade filosófica:

— Toda ciência é universal. — Não se pode armar um teorema sem um fundamento. — A teoria que não pode ser comprovada pela prática não é teoria. (LISPECTOR, 1985, p. 39)

Dentro desse universo social, rico e fútil, surge o protagonista, cujo problema é descrito pelo médico da família como “um desvio que impedia a válvula redutora de filtrar o que realmente interessava e de enquadrá-lo dentro da normalidade.” (Idem, p. 40). A partir de então, o conto tem como foco as sensações desse homem visto como “defeituoso” por estar fora da normalidade. Sua atenção durante o jantar está fixa em um prato de morangos e na lembrança de uma rosa rubra. No jantar grã-fino, o protagonista mergulha em seu mundo próprio:

Foi à sobremesa que aquilo aconteceu. Foi no momento exato em que mordeu um morango rubro e sumarento que ele bruscamente despertou a lembrança da rosa. Bem que notou que os outros comensais o olhavam um tanto espantados, enquanto se concentrava sobre a taça de morangos. — Seria porque já se servira de musse de chocolate, e de papos-de-anjo, e não obstante aceitara os morangos? A ele isso não pareceu absurdo, uma vez que gostava de morangos. Também não se importou com o fato de todos em seguida se haverem levantado da mesa e encaminhado para o salão onde seria servido o café, tendo-o deixado só. Não, nada lhe importava, sobretudo porque, saboreando os morangos, se lhe reavivara a lembrança da rosa rubra, cor de sangue. Pensando bem, que podiam eles saber da rosa? E por que haveria ele de parecer- se com os outros, se queria e podia identificar-se com a rosa? (LISPECTOR, 1985, p. 40)

A percepção do protagonista em relação aos olhares enviesados dos comensais é ingênua e infantil: acredita que a reprovação está relacionada à quantidade de doces comidos, quando se trata da sua condição de “doente da família”. Mas, apesar das suas limitações, somente ele é capaz de apreender uma realidade abstrata e intangível, a essencialidade da rosa, retomada pelo vermelho do morango. Muitos elementos desse conto, a começar do título, remetem para a cor vermelha (morango, sangue, rubi), para o poético presente na beleza e no vermelho da rosa, um poético não perceptível para alguém dentro da “normalidade”. A rosa no conto é símbolo da existência livre de qualquer convenção social, da resistência à igualdade pré-determinada dos indivíduos. Para a mãe e o médico, o protagonista é apenas uma pessoa que alucina, mas ela sabe que é o único naquele universo que, em sua particularidade, pode ver 133

a transcendência da rosa: “Compadecia-se deles, isto sim, por não terem acesso à rosa, por não poderem elevar-se à condição de rosa.” (Idem, p. 41) Através da consciência do protagonista, temos acesso ao diálogo realizado numa temporalidade passada, entre o médico e a sua mãe. É curiosa a informação dada pelo primeiro de que, após a cirurgia na cabeça, o protagonista passaria a ser um homem limitado; ao retomar essa lembrança, o protagonista reage: “— Mas por que iam fazer-lhe isto, e logo agora que tornara a despertar para a rosa e a recuperara em toda a sua plenitude e heráldica beleza?”. Diz o médico que a cirurgia eliminará seus sonhos e alucinações com “rosas”, uma referência indireta às limitações dos convidados à mesa, sem qualquer empatia, portanto, apenas normais. No campo da consciência da personagem não há espaço para a mágoa, nem para o irracional; apesar da sua mente ser apontada como alucinante (de fato, a situação é pouco especificada pelo discurso do médico), o protagonista reflete com sutileza, de tal modo que supomos haver algum mal-entendido sobre a sua saúde. O final do conto nos persuade da primeira leitura. Ao sair de arrasto por alguém que ele sequer reconhece, o protagonista leva consigo a única consciência sã, cabendo aos demais a ignorância da verdadeira existência:

A um dado momento, alguém a quem não pode identificar tomou-o pela mão — ele ainda saboreava o sumo dos morangos, como se fora a rubra seiva — e fê-lo erguer e abandonar a sala de jantar deserta, conduzindo-o pelo salão, onde havia muita gente falando e rindo, ignorando a ausência de paixão das rosas, a bem-aventurança da libertação no seu puro existir. (LISPECTOR, 1985, p. 42)

Mesmo que permita conhecer externamente a personagem, a função da literatura introspectiva é revelar o sentimento do herói ao dramatizar o pensamento. A imersão no protagonista de “A rosa” nos oferece uma nova compreensão da realidade no que diz respeito à superficialidade humana retratada no início do conto. O narrador torna possível penetrar na riqueza de uma mente desprezada pelos outros. O conto se divide em dois espaços: o espaço social requintado (no qual as conversas giram em torno dos quitutes da mesa) e o espaço da consciência que, em sua humildade e “anormalidade”, consegue pensar a razão de existir do ser humano: o belo. De acordo com Beach, este é o centro de interesse, a consciência em torno da qual o sentido trabalha. O conto se constrói em torno da mente “louca” para tratar da (in)sanidade humana e faz uma dura crítica através de alguém que é visto como um pária social.

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2.5 Posição do narrador, onisciência seletiva e monólogo interior como mímese de uma realidade histórica

De acordo com os teóricos americanos, o conceito de ponto de vista se relaciona com a presença da cena (mostrar) e do sumário (contar), ou seja, com o modo como a história é apresentada ao leitor, seja através de um método dramático ou pictórico. Ficou evidente também que o método dramático se perfaz à medida que o ponto de vista da personagem é valorizado, em especial, através da sua consciência. Nesse sentido, há uma mudança no que diz respeito à posição do narrador. Friedman afirma que as seguintes perguntas podem conduzir o trabalho crítico acerca do ponto de vista e dessa “nova” posição:

1. Quem fala ao leitor? (autor na primeira ou terceira pessoa, personagem na primeira ou ostensivamente ninguém); 2. De que posição (ângulo) em relação à história ele a conta? (de cima, da periferia, do centro, frontalmente ou alternando?); 3. Que canais de informação o narrador usa para transmitir a estória ao leitor? (palavras, pensamentos, percepções e sentimentos do autor; ou palavras e ações e do personagem; ou pensamentos, percepções e sentimentos do personagem: através de qual — ou de qual combinação — destas três possibilidades as informações sobre estados mentais, cenário, situação e personagem vêm?); 4. A que distância ele coloca o leitor da estória? (próximo, distante ou alternando). (FRIEDMAN, 2002, p. 172)

Nota-se que o conceito apresentado por Friedman tem um caráter técnico, a julgar pela origem associada à arte do romance e seus procedimentos46. Justamente por isso, não se deve relacionar o termo “posição” do trecho acima com a posição social do narrador, pelo menos não com base nessa esteira teórica. Obviamente, as leituras feitas pelos críticos sobre o ponto de vista buscam uma visão completa da obra e, dessa forma, debatem questões econômicas, sociais e históricas como parte da construção da perspectiva (pode-se notar isso, por exemplo, na leitura do ponto de vista feita por Joseph Beach acerca da obra Os espólios de Poynton, de Henry James). Em O ponto de vista ficcional, a posição do narrador refere-se ao modo como o leitor é colocado frente à cena, à qual parte do espaço ele deve olhar, o que as personagens veem e de onde elas veem; de onde o narrador vê quando narra, se de cima, de uma parte periférica, frontal

46 É curiosa, nesse sentido, a existência de livros sobre as categorias de ponto de vista literário cuja função não é fornecer fundamentos teóricos para a análise, mas servir como manual técnico para a escrita do romance. É exemplo desse tipo de publicação o livro 13 types of narrative (HILDICK, E. Wallace. 13 types of narrative. Londres: Papermac, 1968) 135

ou central, da cena. Aparentemente insignificante, o ângulo de visão faz parte da composição estética do texto e vai, inclusive, incidir fortemente no ponto de vista como câmera47. Nas perguntas orientadoras do ensaio de Friedman, o tópico um tem uma natureza linguística, o de número dois se circunscreve numa noção espacial, de ângulo e posição; o terceiro tópico diz respeito à escolha da consciência a ser “explorada”, da personagem ou do narrador; e a quarta questão, se o leitor é posto diante de uma cena (próximo da história) ou distante (longe da história), ou se o procedimento alterna um e outro. Com esses parâmetros, Friedman parte então para a categorização que, como qualquer outra, é minúscula ante a pluralidade dos fenômenos narrativos, ante as possibilidades oferecidas pela arte narrativa. Contudo, as oito categorias descritas em O ponto de vista na ficção servem como uma referência teórica coesa, principalmente para quem deseja utilizar os conceitos de cena e de sumário. Sobre a onisciência seletiva, ponto de vista que tem relação direta com o objetivo desta pesquisa, lembramos que a categorização de Friedman é gradual (leva em consideração a atuação do narrador sobre os fatos), sendo esse ponto de vista o primeiro em que “o alguém que narra” desaparece, transferindo a perspectiva para a consciência da personagem. De acordo com o autor, é uma espécie de desaparecimento do narrador, uma vez que não se escuta a ninguém: “[...] a estória vem diretamente das mentes dos personagens à medida que lá deixa suas marcas” (FRIEDMAN, 2002, p. 177). Na onisciência seletiva, a narrativa caminha na direção da cena interna, sendo o sumário ou sumarização narrativa fornecida discretamente pelo narrador. Os elementos do espaço físico, visto agora como cenário, a aparência das personagens, a retomada de fatos passados, as motivações das ações, o entendimento do outro, tudo agora passa pela perspectiva da personagem, não em seu discurso falado (dramático), mas pensado (pensamento dramatizado). Em razão da possível confusão com a narração feita por um narrador onisciente, Friedman é sistemático: “A diferença essencial é que um [onisciência seletiva] transmite pensamentos, percepções e sentimentos à medida que eles ocorrem consecutivamente em detalhe, passando através da mente (cena), ao passo que o outro [narrador onisciente] os sumariza e explica depois que ocorrem (narrativa).” (Idem, p. 177) Apesar de parecer suficientemente esclarecedora, a diferença entre um ponto de vista e outro não é tão evidente, principalmente nos textos que fazem uso de várias perspectivas. Como

47 Ex.: Nos contos de Elisa, há uma recorrência de sentimentos angustiantes vividos por personagens que estão imóveis em camas (cirúrgicas, de enfermaria, do quarto próprio etc.). As cenas narradas a partir desse ponto de vista são singulares. 136

vimos no capítulo anterior, muitos leitores de Elisa classificam o ponto de vista de seus romances apenas como narrador onisciente, ignorando que na maior parte da trama o domínio da perspectiva é da protagonista. Sobre os contos, temos apontado a recorrência de uma abertura com uso de uma cena com uma distância maior, com um narrador onisciente, seguida pela exposição de uma consciência. Uma singularidade, porém, dessa obra de Elisa é que a consciência da personagem se revela através de um constante monólogo interior, exposto como tal. O discurso indireto livre, manifestação linguística única geralmente apontada como o principal recurso da cena e da dramatização da mente (o discurso indireto livre é uma mescla do método pictórico com o dramático, o pictórico-dramático), é usado em alguns contos (no conto A rosa, por exemplo, é significativo o uso desse recurso), mas o monólogo interior é o que mais se destaca. O conceito de monólogo interior é referido em leituras críticas de obras brasileiras, principalmente daqueles escritores tidos como introspectivos, como Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Cornélio Penna, etc.; no entanto, há de fato poucos estudos teóricos sobre o fenômeno em língua portuguesa. Entendido dentro da teoria narrativa como uma manifestação linguística própria para expressar estados internos, o monólogo interior é um termo frequentemente utilizado como sinônimo para solilóquio e fluxo de consciência. Como não pretendemos realizar um estudo teórico, mas apenas utilizar o conceito para compreensão da contística elisiana, cabe-nos especificar a que nos referimos quando mencionamos o monólogo interior. Entendemos o monólogo interior como uma forma de expressar o estado da consciência da personagem através de seus próprios pensamentos; é, pois, uma apresentação direta do que se passa na mente sem que para isso haja o intermédio da fala da personagem, nisso se singularizando em relação ao solilóquio (CARVALHO, 1981). De modo geral, monólogo interior e solilóquio (às vezes até mesmo fluxo de consciência) são tratados como procedimentos idênticos. Os três fenômenos, evidentemente, são estudados dentro da relação pensamento/linguagem que a literatura do século XX se encarregou de tematizar e problematizar. A manifestação de um solilóquio deve ser analisada dentro da elaboração da cena narrativa, uma vez que é o ponto de vista da personagem expresso através dos pensamentos, mas de forma oralizada, fala direta da personagem (Idem, p. 57). Comum nas formas teatrais, o solilóquio reforça a ideia de um discurso solitário, por vezes, confuso ou desconexo, como se a expressão oral obedecesse ao encadeamento das ideias pensadas. O solilóquio se diferencia do monólogo porque em certo sentido tem a “pretensão” 137

de uma audiência, e se singulariza em relação ao drama convencional por aproximar-se do fluxo do pensamento, podendo manter certa desconexão lógica. O fluxo de consciência, enquanto foco narrativo, seria a apresentação mais próxima, idealmente exata, do que se passa na consciência de uma ou mais personagens (CARVALHO, 1981, p. 51). De acordo com estudos da psicologia48, o fluxo de consciência (stream of consciousness) é a expressão de padrões de pensamentos humanos associativos. Nesse sentido, a palavra “fluxo” seria um sinônimo de “correnteza” (stream), uma representação da fluidez dos pensamentos, apresentados na forma como vêm à mente, sem pausa, sem visíveis elos lógicos. Em literatura, esse ponto de vista teria influência sobre a própria gramática do texto, com diferenças na pontuação e a presença de frases truncadas, entre outros fenômenos sintáticos-semânticos, que indicariam essa “onda” de ideias sem encadeamento. Em grande parte, o uso do termo fluxo de consciência no lugar de monólogo ou solilóquio resulta da proximidade entre eles. Se ignoramos, por exemplo, o fato de que o solilóquio é uma expressão oral, certamente o conceito estará perto do fluxo de consciência. Por sua vez, se o “pensamento não falado” iniciar-se e perder a sua ordenação lógica, terá passado de monólogo ao fluxo de consciência49. Por isso, marcar as distinções talvez não seja imprescindível para alguns leitores críticos e não se mostre funcional para a interpretação de algumas obras. No caso da ficção de Elisa Lispector, há pelo menos um conto (“Por puro desespero”) cuja leitura pode ser mais significativa se usarmos o conceito de solilóquio, uma vez que a personagem elabora um relato de uma experiência pós-traumática. Suas palavras não são pensadas, mas enunciadas para um suposto ouvinte, que prefere não interagir. Recurso possível por conta do modo dramático instaurado pela cena, o solilóquio na história amplifica o isolamento da personagem: verbalizar a experiência e tê-la ignorada é mais sintomático da ausência de companheirismo e empatia do que não ter para quem narrar. No entanto, a maioria dos contos de Elisa faz uso do monólogo interior, constituindo uma espécie de “conversa” muito

48 Carvalho aponta o psicólogo William James como sendo o criador do termo “stream of consciousness”, do qual a crítica literária teria se apropriado. (JAMES, William. Principles of Psychology. Chicago: Publisher, 1955) 49 Há também categorizações em relação ao monólogo, podendo esse ser orientado, tradicional, livre etc. De acordo com Reis e Lopes (1988, p. 266), o monólogo interior é o discurso mental, não pronunciado, dos personagens. É um discurso sem ouvinte, cuja enunciação acompanha as ideias e as imagens que se desenrolam no fluxo de consciência das personagens. Para os autores, o monólogo interior se diferencia do monólogo “tradicional” em razão de, no primeiro, não haver intervenção organizadora do narrador. Há, contudo, variações na forma de entender o que seria o monólogo tradicional e o interior. Carvalho (1988), por exemplo, considera que há o monólogo interior livre (com mínima interferência do narrador) e o orientado, no qual o narrador apresenta expressões como “ia pensando”, ou “disse consigo”, que seria o monólogo tradicional para Reis e Lopes. 138

bem organizada entre a personagem e ela mesma. O fluxo de consciência não é uma marca da ficção elisiana, nem mesmo em seus romances. Apesar de estar associado aos textos modernos, o monólogo interior é visto como um recurso antigo da arte literária, notado já na antiguidade clássica. Contudo, nos textos antigos, ele constituía um momento específico e singular da narrativa; já em vários romances do século XX, o monólogo transforma-se em um ponto de vista predominante pela inclusão das cenas que expressam o interior das personagens. Para explicar a “ascensão” do monólogo interior como ponto de vista romanesco dois trabalhos são dignos de referência. Em “Posição do narrador no romance contemporâneo”50, Theodor Adorno (2012) defende que o romance no século XX esvaziou-se da sua condição de narrativa épica. Identificado inicialmente pela presença de uma voz narrativa objetiva, o romance modifica-se em razão da irrelevância do narrador na sociedade capitalista51. Segundo Adorno, o narrador permite a transmissão de uma experiência, no entanto, a sociedade não tem a paciência que esse processo exige. O contar é substituído por outras expressões de linguagem mais céleres (como o cinema de origem norte-americana e a reportagem jornalística tradicional), cabendo ao romance uma espécie de movimento de “evasão interna” por meio da introspecção. As ações da narrativa se realizam agora no espaço interior da personagem (em alguns casos mais extremos, pensar é a única ação da narrativa) e o romance transforma-se em uma epopeia negativa, dada a ausência do enredo clássico. Ainda que cite a expressão monólogo interior poucas vezes, Adorno considera o fenômeno um sintoma do contexto histórico do início do século XX que “obriga” o romance a romper com a tradição épica para fixar-se na interioridade:

O narrador parece fundar um espaço interior que lhe poupa o passo em falso no mundo estranho, um passo que se manifestaria na falsidade de tom de quem age como se a estranheza do mundo lhe fosse familiar. Imperceptivelmente, o mundo é puxado para esse espaço interior — atribuiu-se à técnica o nome de monologue intérieur — e qualquer coisa que se desenrole no exterior é apresentada da mesma maneira como, na primeira página, Proust descreve o instante do adormecer: como um pedaço do mundo interior, um momento do fluxo da consciência, protegido pela refutação pela ordem espaciotemporal objetiva, que a obra proustiana parece suspender. (ADORNO, 2012, p. 59)

50 ADORNO. Theodor W. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: ______. Notas de Literatura I. Tradução de Jorge M. B de Almeida. 2. ed. São Paulo: Duas cidades: Editora 34, 2012, p. 55-63. (Coleção Espírito Crítico) 51 Sobre o papel social do narrador, Walter Benjamin é uma referência quase obrigatória. Segundo o crítico, narrar é a faculdade de intercambiar experiências e na sociedade moderna as experiências deixaram de ser comunicáveis. (In: BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.) 139

O monólogo interior, portanto, entendido como técnica, representa uma transformação da forma romanesca. O mundo exterior, agora tido pelo narrador como marcado pela estranheza, pela não-aceitação, passa a ser absorvido pelo mundo interior, sendo o primeiro ressignificado pelo segundo. No artigo “A epopeia negativa do século XX”52, Gouveia (2010) faz uma leitura do ensaio de Adorno a partir de sua relação conceitual com outros textos do filósofo, o que lança luz a passagens do texto adorniano. De acordo com o artigo, Adorno evidencia um paradoxo que se apegou ao romance: o gênero precisa de narração, mas esta necessidade “está bloqueada” pelas relações reificadas entre os indivíduos (GOUVEIA, 2010, p. 28). Diante da ausência de diálogo, da transmissão de experiências e da impossibilidade de familiaridade entre os pares, resta apenas o isolamento e o monólogo. Nesse sentido, o monólogo nada mais é do que um indício da crise dos valores sociais, da reificação capitalista, que atinge e desfigura o próprio romance enquanto gênero historicamente constituído (Idem, p. 27). Com base na análise sociológica do ponto de vista narrativo, é possível observar uma desmistificação do enredo (ação) e da importância do narrador (essa já sugerida pela linha jamesiana) na narrativa, o que trouxe impactos para a literatura. Entre eles, a presença de certo hermetismo do texto, exigindo um esforço de leitura diferenciado por parte do leitor, em geral, pouco habituado a textos “negativos”, a histórias em que “nada acontece”. Não há dúvidas, por exemplo, de que os romances de Clarice (mais lidos do que os de Elisa Lispector) são “acusados” de pouco compreensíveis53. Durante a leitura dos contos de Elisa tem-se a nítida percepção da ausência de enredos tradicionais. Curtos, com personagens solitários e sem perspectivas externas notáveis, os contos de Elisa tipificam em grande medida esse enredo negativo, assim como a ausência de diálogo e a substituição do mundo externo pelo interno. Às vezes, as ações existentes são inseridas pelo próprio monólogo. No trecho abaixo, vemos a protagonista de “O furto” a expressar a ação que dá origem ao conflito da protagonista (o furto de um livro com pinturas de Rafael Sanzio) a partir de sua própria consciência:

Pois já não foi uma tentação o convite do casal para acompanhá-lo a ver a casa, logo a casa que sempre desejara ser sua? O estilo, disseram, era normando. — Que entendo eu de estilos? O que sei é que toda vez que olhava aquelas janelas gradeadas, os arcos

52 GOUVEIA, Arturo. A epopeia negativa do século XX. In: ______. Escritos adornianos. João Pessoa: Ideia, 2010, p. 25-121. 53 Esse estranhamento em relação à “epopeia negativa” se daria em razão do advento e da generalização da indústria de entretenimento (GOUVEIA, 2010, p. 31). 140

bonitos, as altas colunas, o jardim, ficava sonhando com aquela casa. E por dentro ainda é mais bonita. Até lareira tem. E ver o par enamorado — seus lábios sorriam, seus olhos sorriam, as mãos entrelaçadas, numa alegria tão pura, tão nova como um raio de sol acabado de surgir, ele a perguntar-lhe: “Este não é o lugar perfeito para vivermos?” e ela a responder: “Perfeito, querido” — fiquei emocionada. Ao mesmo tempo... emendou reticente: vê-los sorrindo, se amando, apossando-se da casa de meus sonhos doeu-me, a mim, velha, só e sem esperanças. Foi quando vi o livro sobre a mesinha redonda coberta por um pano de veludo grená. (LISPECTOR, 1985, p. 85)

Ao acordar pela manhã, a protagonista martiriza-se por ter roubado o livro de uma casa, comprada recentemente por um casal hóspede de sua pensão. Embora não reconheça, o furto é uma tentativa falha (o desfecho do conto revela isso) de minar a satisfação dos jovens enamorados, uma espécie de vingança mal direcionada, uma vez que a casa sempre fora um objeto de desejo para ela. A cena da compra (inclusive, os gestos de felicidade do casal) é apresentada a partir da consciência da personagem, o que torna a perspectiva especialmente subjetiva. A beleza da casa e a sua opulência são frutos do ponto de vista da protagonista, assim como o estado de seu próprio quarto, marcado pela pobreza e pelo desalinho, representados pelas cortinas rotas, pela péssima disposição dos lençóis, pelo odor de mofo que recobre a pensão. A felicidade do casal durante a aquisição da casa, expressa por uma cena romântica de novela, deixa a narradora insatisfeita, embora mentalmente ela afirme ter sido tocante. Retomada em sua memória, a venda da casa a fere, pois identifica a falta de seu sucesso em duas áreas: na afetiva, dada a sua profunda solidão, e na financeira, pois, enquanto proprietária, a sua pensão é, no mínimo, simplória. A casa vendida ao casal, por sua vez, contém características elegantes que vão do macro ao microelemento, da bela arquitetura do frontispício à mesinha recoberta com a toalha de veludo, de onde ela surrupia o livro. Durante quase todo o conto, a protagonista encontra-se deitada em sua cama. Sua mobilidade durante a história é mínima; seu conflito, suas resoluções acontecem somente em sua mente. Dessa forma, pode-se dizer que no primeiro plano, no espaço da cena principal, há um esvaziamento do enredo, uma vez que pouco acontece. Por outro lado, internamente, a consciência da protagonista mobiliza diversas lembranças, impressões e sentimentos, a fim de atenuar a sua culpa: “Pois já não foi uma tentação o convite do casal para acompanhá-lo a ver a casa, logo a casa que sempre desejara ser sua?” (Idem, p. 85) A solução para a crise da protagonista é alcançada com o descarte do livro; o desfecho do conto é marcado por sua volta às atividades corriqueiras da pensão, completamente livre dos conflitos internos: “Só então reparou na cozinha mal iluminada, e na cozinheira andando de um canto para outro, indolente e resmungona. Os hóspedes reclamavam a demora em servir o café. Uma súbita ventania agitou as cortinas, derrubou o vaso pousado no parapeito, entornando a 141

água [...].” (Idem, p. 88) O retorno à cozinha, o vaso quebrado, as reclamações fazem parte das pequenas “tragédias” do dia a dia, fáceis de lidar. Associado aos sentimentos de inveja e culpa, o sofrimento real está em um lugar íntimo da protagonista, daí o uso do monólogo interior como forma de expressão. De acordo com Gouveia (2010, p. 38), a redução da ação não é apenas uma ruptura com os enredos clássicos, mas a mímese da retração do sujeito no século XX. A personagem de Elisa, portanto, é uma representação artística da incapacidade humana de lidar com as frustrações pessoais em sociedade. Ao invés de buscar formas novas para si, ela abdica do livro, disfarçando os desapontamentos com a prática da labuta diária. A compreensão do monólogo interior como mímese das implicações históricas da primeira metade do século XX é uma tese defendida no ensaio “A meia marrom”, de Erich Auerbach54. Produzido durante a Segunda Guerra Mundial e tendo em perspectiva as transformações sociais das primeiras décadas do século XX, “A meia marrom” sistematiza as características principais da literatura introspectiva a partir da leitura de um trecho de To the lighthouse (1927), romance de Virgínia Woolf, um dos nomes mais representativos desse tipo de narrativa. Ao analisar uma parte significativa do romance, Auerbach elucida que a obra trata dos “movimentos internos” que se realizam na consciência das personagens. O narrador desaparece e os elementos narrativos (cenas, personagens, falas, imagens) aparecem como reflexo da consciência de Mrs. Ramsay, a protagonista, e de outras personagens (como o Mr. Bankes). Não há um ponto de vista exterior marcante, ou seja, não parece haver uma realidade diferente daquela que é expressa pela consciência de Mrs. Ramsay enquanto ela mede o tamanho de uma meia na perna do filho. Em passagem específica sobre o recurso, diz Auerbach:

Os meios empregados aqui e também por outros escritores contemporâneos, para reproduzir o conteúdo da consciência das personagens, foram analisados sintaticamente e descritos; alguns deles receberam nomes específicos, como erlebte, Rede, stream of consciousness ou monologue intérieur. Mas estas formas linguísticas, sobretudo a primeira, já foram empregadas muito antes na literatura, mas não com a mesma intenção artística; e, ao lado delas, há outras possibilidades, sintaticamente quase inconcebíveis, de fazer com que se confunda ou até, que desapareça totalmente uma realidade objetiva, dominada perfeitamente pelo escritor; possibilidades que não residem no campo do formal, mas na tonalidade e no contexto do conteudístico. (AUERBACH, 2015, p. 482).

Auerbach acredita que o monólogo interior é um recurso empregado há séculos na literatura, mas que ele apresenta uma intenção artística diferenciada no século XX. De acordo com o crítico, a literatura moderna utiliza o monólogo interior como forma de representar o

54 AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2015. (Coleção Estudos, 2) 142

“vaguear e o jogar da consciência, que se deixa impelir pela mudança das impressões” (Idem, p. 483). Em obras anteriores, principalmente no século XIX, houve um tipo de representação da subjetividade das personagens, no entanto, essa representação contava com marcações dos narradores, através de verbos orientadores (“pareceu-lhe que”, “ela sentiu”, “ele compreendeu”, etc.). Nesses casos, o pensamento derivava de uma ação anterior realizada pela personagem e o escritor55 apresentava-se como uma instância suprema e diretriz, com o conhecimento total da realidade objetiva (Idem, p. 483). Já o monólogo interior moderno se caracterizaria pela exposição de múltiplos pontos de vista, uma pluralidade de perspectivas responsável pela construção da realidade objetiva. Não apenas isso, as muitas impressões subjetivas permitiriam o acesso a uma realidade mais autêntica do que aquela apenas mostrada pelo ponto de vista do narrador. Segundo Auerbach, a literatura se reinventa, deixando de lado tanto a representação objetiva (narrador onisciente) quanto a subjetiva (narrador protagonista), em favor de uma perspectiva mais rica (onisciência seletiva). De um modo geral, Auerbach aponta as peculiaridades da literatura entre guerras, cujo ponto de vista é o monólogo interior, tais como a mudança da posição da qual se relata, o esfacelamento da ação exterior, representação da consciência (pluripessoal no romance) e, principalmente, a estratificação do tempo, características que aparecem entrelaçadas na trama. Em relação ao esfacelamento da ação, trata-se aqui da ação tradicional, dos grandes gestos que movem as personagens ao longo da narrativa. O que se passa na realidade objetiva não tem mais o mesmo impacto na realidade da consciência da personagem, ou melhor, o que tem impacto é por vezes uma ação insignificante. Lembramos mais uma vez o conto “O furto”, em que ligações telefônicas sobre mortes e dívidas têm menos implicações internas para a protagonista do que o furto de um livro de gravuras renascentistas:

O açougueiro telefonou perguntando se já podia mandar receber a conta da semana passada, e logo a seguir uma pessoa desconhecida telefonou da parte da prima Eulália para dizer que o marido morrera no meio da noite. Pois, o dia levantava âncora e se punha a navegar a todo vapor, a vida retomando o seu ritmo de pequenos e grandes desastres, como a vida é. (LISPECTOR, 1985, p. 88)

55 Erich Auerbach usa a palavra escritor em algumas passagens em que o termo narrador seria considerado mais adequado pelas teorias narrativas recentes; aliás, esse uso indiscriminado é uma característica também das teorias sobre o ponto de vista de linha norte-americana. Além da passagem citada no corpo do trabalho, um outro parágrafo exemplifica bem o que afirmamos: ao comentar sobre quem fala em tais e tais momentos do romance de Woolf, Auerbach diz: “Quem observa Mrs. Ramsay, faz a constatação de que ninguém jamais parecera tão triste, e exprime conjecturas de espécie tão duvidosa e recôndita acerca da lágrima que — talvez — se forme e cai no escuro, da água que, agitando-se de cá para lá, a recebe, para ficar depois novamente quieta? No lugar junto à janela só estão Mrs. Ramsay e James; estes dois não podem ter sido, e tampouco aquele ‘pessoas’ que começa a falar no parágrafo seguinte. Portanto, trata-se, talvez, do próprio escritor.” (AUERBACH, 2015, p. 479) 143

Assim como o gesto de medir a meia leva Mrs. Ramsay a uma exploração do sentido da vida, em “O furto” a crise não deriva da ação de furtar propriamente, mas da relação que o livro desempenha como objeto simbólico da felicidade dos outros. Há um sentimento de vergonha e arrependimento, mas há também de inveja, insatisfação e a carência pessoal, problemas não resolvidos, mas ignorados quando o livro vai para a lixeira. Nesse sentido, as dificuldades práticas e as tragédias familiares (contas a pagar e morte dos familiares) são mencionadas como “parte da vida”, esta que é cheia de “pequenos e grandes desastres”, enquanto um acontecimento aparentemente insignificante conduz toda a narrativa. Auerbach dedica uma significativa parte de “A meia marrom” à estratificação do tempo. A imersão em um fluxo de consciência permite a expressão de uma temporalidade psicológica, que se distende numa velocidade e numa quantidade maiores do que os gestos numa realidade objetiva. Segundo o crítico, de um modo desusado em tempos anteriores, Woolf consegue ressaltar o contraste entre o curto tempo de uma ação exterior (a medição da meia) e a dilatação temporal da consciência de Mrs. Ramsay enquanto realiza a ação de medir, o que mostra que a temporalidade do pensamento se “alarga” em seus movimentos. Em sua natureza psicológica, o monólogo interior permite uma temporalidade indeterminada, com digressões, que jogam o leitor de um tempo a outro sem explicações. A mente pode encadear eventos sem uma ligação aparente, com conexões a serem deduzidas, como “parênteses temporais” narrativos. Em síntese, pode-se dizer que um evento ou uma ação exterior inicialmente insignificante libera imagens, ideias e cadeias de ideias, que conduzem a personagem a abandonar o presente e se movimentar “livremente nas profundezas temporais” (AUERBACH, 2015, p. 487). Em seu livro Mimesis, Auerbach procura mostrar como os seres humanos se enxergam e formulam, via literatura, a si mesmos e ao mundo. Em um momento histórico marcado pela desesperança, numa “Europa demasiado rica em massas de pensamentos e em formas de vida descompensadas, insegura e grávida de desastre”, a realidade na literatura é dissolvida em múltiplos reflexos da consciência. Sem a possibilidade de diálogo, cabe ao homem voltar-se para si, quem sabe na tentativa de solucionar ao menos o seu mundo interior. Em Elisa Lispector, parece-nos que a função do monólogo interior é catalisar emoções e impulsionar as personagens a seguir apesar de.

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2.6 A introspecção e o ponto de vista feminino

Embora publicados em 1985, os contos de O tigre de bengala foram produzidos por Elisa entre as décadas de 50 e 70 e demonstram uma profunda relação com a literatura introspectiva do início do século. Lembramos, nesse sentido, a entrevista de Regina Igel na qual Elisa reconhece a sua proximidade com Clarice: “Não sou Clarice e seria impossível ser como ela. Ela foi única. Como eu o sou. O que temos em comum é a introspecção, esta preocupação com o íntimo, com o que dói dentro.” (IGEL, 1985, p. 7). Essa preocupação com o íntimo, com a dor interna não expressa para outrem, é uma recorrência na representação do ponto de vista em Elisa. A dor da solidão, o sentir-se insignificante (“O furto”), a desvalorização e a desintegração da consciência (“A morte do herói”), o cansaço de viver e o tédio (“A espera”), o desprezo da loucura apesar da lucidez da mente (“A rosa”), o contraste entre o que se pensa e o que se revela para os outros (“Mulher passeando”) são alguns dos seus temas, trabalhados a partir da onisciência seletiva. Em cada história é notável o uso da cena, narrativa dos fatos na sua sequência temporal imediata. Para Elisa, parece importante mostrar a personagem em sua aflição, no revolver-se da dor, nos colocando cara a cara com o evento. Assistimos ao sofrimento, mas, em alguns, casos, vemos essas personagens se erguendo e retomando a vida prática com certa resiliência. Nesse sentido, o monólogo interior, apesar da significação negativa inicial apontada pela crítica (as personagens não dialogam porque não têm com quem), talvez seja a forma encontrada pelas personagens de fugir da realidade, reformular-se e retornar ao mundo. Essa seria uma marca do ponto de vista feminino, já que tanto em “A morte do herói” quanto em “A rosa” as personagens masculinas não superam o conflito inicial do conto. Um outro ponto é a valorização do pensamento da personagem na contística de uma escritora que, em geral, é vista como produtora de uma literatura biográfica. Joseph Beach defende que o autor não desaparece, apenas é representado de maneira diferenciada, desejando ser lido na consciência do outro; ele conduz o monólogo, o permite, mas sua perspectiva não é a mais relevante para a apreensão da história. Contada pela personagem, a história também ganha uma nova natureza. Observemos o final de “Um dia, uma vida”:

Não, não atinava com o sentido e a finalidade da sua existência, mas nem por isso ia ter o despudor de mostrar os seus sentimentos. E nesse exercício diário e já tão antigo de autocontrole pelo menos na aparência, começou a pintar a face. Parecia fazer a maquilagem, mas, na realidade, ela se estava pintando com tamanho esmero, e também 145

com tamanha crueldade, como se estivesse afivelando uma máscara ao rosto de feições tão frágeis a ponto de ficar desfigurada à menor emoção. [...] Em seguida, vestiu a melhor roupa — a que reservava para os coquetéis de lançamento dos filmes — bateu a porta atrás de si e saiu ao encalço da realização de um dia pleno. Um dia apenas. (LISPECTOR, 1985, p. 8)

Nesta história, uma atriz usa as próprias lembranças, as mais dolorosas, para chorar em seus papéis. No trabalho, ela chora por exigência da profissão, mas em casa por sua própria angústia. A protagonista tem que mascarar as suas emoções para sair de casa, fato metaforizado pela maquiagem “afivelada” ao seu rosto. Dentro desse contexto, a análise do monólogo enquanto mímese de um momento histórico específico nos ajuda a compreender o ponto de vista a partir de uma conjuntura menos técnica, lançando luz também para aspectos sociais e históricos do conto. As protagonistas de Elisa apresentam um padrão econômico confortável. Todas, mesmo a dona da pensão pobre, apresentam uma situação financeira estável. São trabalhadoras, possuem profissão e muitas têm formação intelectual; contudo, são alienadas por seus respectivos empregos. São mulheres que conquistaram espaços no mundo profissional, porém, não a satisfação pessoal, um sentido maior para a vida. Apesar disso, mostram-se fortes, como se a sociedade exigisse delas uma atitude heroica. Esse é um ponto de vista ignorado pela sociedade e explorado por Elisa: a perspectiva da mulher independente num contexto externo, ainda que completamente perdida no contexto íntimo e familiar. Uma questão perfeitamente abordada em “Um dia, uma vida” e nos contos que iremos analisar a seguir.

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3. O TIGRE E O PODER DO PENSAMENTO EM ELISA LISPECTOR

3.1 “Por puro desespero”: sofrimento do corpo e lucidez da mente

Compreender já seria o início do caminho da salvação (...) (Elisa Lispector em “Uma outra temporada no inferno”)

O livro O tigre de Bengala é uma sagração à arte do pensar, uma ode ao uso da consciência como forma de autoconhecimento, reavaliação e planejamento do ser humano, o que torna o monólogo um recurso técnico e formal coerente para embasar o tema. Nesse sentido, é pertinente que o conto homônimo seja uma referência à importância do pensamento. Em “O tigre de Bengala”, a trama simples, com cena principal “realizada” na consciência da protagonista, apresenta o conflito interno de uma mulher acerca do ato de bordar, um exercício de relaxamento indicado por seu médico. Essa atividade teria como objetivo suavizar a crise psicológica da protagonista, ao redirecionar a atenção para o trabalho manual:

[...] ele [o médico] disse nada melhor para alcançar a serenidade que submeter-se a uma disciplina amena e continuada, que mais vale a persistência do que a força, e deve deixar-se absorver por um trabalho meticuloso em que ocupe as mãos, qualquer trabalho serve, pode até ser um trabalho bem grande, por exemplo, — e quanto maior o tapete, melhor, já deduzo, concordando com ele, porque concordar exige menos esforço que discordar... (LISPECTOR, 1985, p. 96)

Na ficção de Elisa Lispector, os médicos são representados de maneira muito negativa1. Aqueles que cuidam do corpo são agressivos e indelicados; os da mente estão alheios à origem dos problemas das pacientes. Por isso, o artesanato sugerido não é uma “cura” para a mente, mas uma forma de alienação com prescrição médica. É uma disciplina de abrandamento, que pode ser interpretada como uma técnica de tortura às avessas, já que, à medida que borda, a protagonista sofre para refrear os pensamentos. Como uma pessoa automedicada, ela ocupa as mãos para que sua consciência fique “serena” e nada enuncia, porque, como as outras personagens elisianas, que raramente revidam discursivamente, ela está num ponto de profunda exaustão psicológica. Porém, a mente resiste, pregando suas peças: os fios começam a ser trançados, o motivo do bordado é preenchido e eis que um tigre assoma, feroz, raivoso, selvagem, a imagem simbólica do indomesticável.

1 Ainda que pareça genérica, é uma leitura que pode ser confirmada por todas as obras que abordam o tema. 147

Elisa faz um trabalho metafórico notório ao sinalizar que nenhum método de abrandamento é capaz de conter o que está no interior da personagem, principalmente, quando se trata de violência e desespero, esse tigre de cor amarela2. Esse conto tem um forte apelo visual: o tapete tecido com cores neutras e tranquilas muda de configuração à medida que a personagem se permite liberar da recomendação médica. As cores se tornam intensas, passando da gama “bege-amarelo-marrom-claro-marrom-escuro até explodir no vermelho e depois abruptamente a descambar para o negro, e arfando no verde faiscante dos olhos — ou será que o tigre tem olhos amarelos”, pergunta a protagonista (LISPECTOR, 1985, p. 96). No bordado, portanto, a gradação do bege claro até o negro é uma representação pictórica da consciência feita pela própria consciência da protagonista. O pensamento é incontrolável, é o que nos diz o texto por meio da metáfora do tigre. Na sua ferocidade estão todas as respostas; a solução para qualquer conflito é fundamentada, ou até mesmo negada, pela consciência e não pelos médicos. Esse entendimento oferecido por um tigre estabelece uma relação intertextual entre “O tigre de Bengala” e o conto “A escritura do Deus”3, do livro O Aleph, de Jorge Luís Borges. Nesse caso, tanto por retomar a imagem felina, em cuja pelagem estaria escrita a verdade sobre o mundo e os deuses, a “sentença mágica”, quanto por citar, de forma direta, o conto borgiano na epígrafe e no corpo do texto: “Um homem é, afinal, suas circunstâncias, diz Borges” (LISPECTOR, 1985, p. 98). Assim como o jaguar de Borges, a literatura de Elisa está repleta de sentenças, decifradas à medida que as personagens executam o ato de pensar. Em “A escrita de Deus”, Tzinacán está preso em uma masmorra de pedra, dividida por um muro. Do lado oposto, um jaguar, em cuja pelagem estaria uma mensagem tão poderosa que lhe permitiria voltar ao poder como o grande sacerdote que um dia fora. No entanto, a fera não é visível, cabendo a Tzinacán realizar tanto um ato de decifração como de uso da memória. Dessa forma, a sentença divina não está precisamente no jaguar, mas na consciência do sacerdote. Segundo o conto borgiano, o homem é moldado pelas circunstâncias, tendo a forma do seu destino. Um homem aprisionado é, portanto, uma fera encarcerada, sendo assim, o jaguar de Borges não é apenas o “papiro” de uma linguagem divina, mas um duplo da mente de Tzinacán ali em sua prisão de pedra. Assim, a escrita de Deus está impressa no jaguar, uma representação da memória e da consciência humana. Essa é a leitura que a contística de Elisa faz do texto de Borges. As personagens de Elisa se deparam com a verdade porque não

2 Em alguns textos, a cor amarela é relacionada ao desespero, outros à falsa alegria. Há muitas relações cor/sentimento na ficção de Elisa. 3 BORGES, Jorge Luis. O aleph. Tradução Davi Arriguci Jr. São Paulo: Companhia das letras, 2008, p. 104-110. 148

conseguem aprisionar o tigre que as ronda. A protagonista de “O tigre de Bengala” finaliza a história questionando as possibilidades de encarceramento:

— Talvez que, por minhas circunstâncias, o meu entendimento não dê para ler a escritura do Deus, como o fez Borges, será que ao menos com a mesma linha com a qual bordo ponto por ponto, dá para aprisionar o tigre que trago dentro de mim? (LISPECTOR, 1985, p. 98)

O conto homônimo do livro é, de certa maneira, uma síntese de um conjunto de temas que se reitera na obra, e por esta razão acreditamos que a autora o tenha escolhido como título. Vemos nesse texto a limitação da medicina, a ausência de perspectivas de qualquer ordem, os temores recônditos no mais profundo da consciência, as angústias das coisas não alcançadas e as inviáveis buscas no passado, o debate entre os homens como um processo exaustivo, improdutivo, um gasto desnecessário de energia. Para tratar tais questões, a exposição da consciência é a técnica mais usada e a mais significativa em O tigre de Bengala. Contudo, pretendemos analisar nesse tópico o único conto em que a cena não é interna à personagem, pelo contrário, o texto usa o modo dramático quase totalmente. Acreditamos que, por meio dessa exceção, o conto mostra como uma interação social pode ser infrutífera e desumanizada, o que confirmaria o monólogo interior como uma forma mais significativa de interpretar eventos do passado. O esvaziamento do diálogo entre as personagens do conto “Por puro desespero” transforma o que deveria ser um diálogo em um solilóquio, e o discurso da protagonista se mostra relevante porque acontece de si para si, ainda que na presença (quase ausência) do outro. O texto é irônico, porque a narração sugere que contar algo pra alguém não é relevante e o que importa é a compreensão do fato por si mesmo. Uma confirmação médica é tão-somente uma forma de balizar um reconhecimento pessoal adquirido, trazido pelo uso da consciência e da análise da realidade das mulheres no mundo. O conto “Por puro desespero” foi elaborado com alguns recursos específicos relacionados ao ponto de vista. O texto tematiza o ato de pensar como um processo fundamental para a compreensão da experiência individual, embora todo ele seja baseado numa forma oralizada. Paralelamente, aborda a ajuda profissional da classe médica como insatisfatória, limitada, e o uso da perspectiva narrativa corrobora para o estabelecimento desses sentidos. Expliquemo-nos: na história, uma paciente encontra-se num consultório e anseia por uma confirmação profissional acerca de um insight a que chegara. Para tanto, conta para o psicólogo experiências relacionadas a um acidente de carro (cirurgia, processo de internação, recuperação, 149

etc.) até o momento em que revela a causa do evento: uma tentativa de suicídio. Essa “contação” é feita, portanto, em uma sessão de análise e sob o ponto de vista de uma mulher sobrevivente. Retomando os conceitos-chave como os de sumário narrativo e de cena e da distinção entre contar e mostrar, Norman Friedman (2002) teorizou sobre o ponto de vista ficcional e estabeleceu uma grade tipológica gradativa, visando a distinguir os graus de extinção autoral na arte narrativa. No primeiro tipo, o autor se revela dominante na narração (Autor onisciente intruso4) e há o predomínio do sumário narrativo, de intervenções e generalizações sobre a vida, o modo e a moral das personagens da história; no último, o ponto de vista é uma câmera que tenta transmitir flashes da realidade e suas características básicas são o apagamento da voz narrativa (com isso, da subjetividade do narrador) e a valorização de tal modo da cena a ponto de transformar a ação em cenário (uma espécie de redução bem-sucedida em determinadas construções). Entre esses dois polos, encontra-se o modo dramático, a sétima categoria de Friedman, no qual o narrador deixa o fluir da narrativa na responsabilidade do diálogo. Ele não intermedeia o discurso, que se realiza sem apoio de descrições, avaliações e sumários. O conto “Por puro desespero” é, num primeiro nível discursivo, uma grande cena dramática: em uma sala, paciente e psicólogo estabelecem um aparente diálogo. A apreensão do espaço (o cenário) é feita com base na primeira fala da personagem sem qualquer intervenção de um narrador: a mobília não traduz a aparência tradicional dos consultórios freudianos e as personagens estão sentadas em lados opostos de uma escrivaninha:

Sabe, doutor, gosto dessas sessões de análise pelo seu todo informal. Nada de recostar- me no divã, o senhor sentado atrás de mim com o bloco de papel e a caneta na mão lembrando um enviado pelo Santo Ofício [...]. Assim sentados à sua escrivaninha, um de frente para o outro, o jogo é mais franco, se bem que nem sempre amistoso. Mas juro que de tudo quanto venho lhe contando nestas últimas sessões se constitui de honestas buscas de algo que pressentia estar escondido por detrás do que dizia, mas eu não atinava com o que fosse. — — Espere, não vou lhe dizer já o que é [...]. (LISPECTOR, 1985, p. 118)

As marcas mais singulares de uma cena narrativa tradicional são a ausência total ou parcial do narrador e a dramatização isocrônica, definida como a reprodução do discurso das personagens no exato momento em que isto acontece, permitindo uma duração análoga entre o discurso e a história, uma representação da ação de falar no exato momento em que isto acontece. Para Friedman (2002, p. 172), a criação de uma cena narrativa está relacionada à

4 Usamos o termo “autor” como no original, pois entendemos que Friedman trata de fato da figura do escritor (e não narrador) no primeiro tipo de ponto de vista narrativo. 150

tentativa de mostrar e não somente contar os fatos, pois ela busca explorar os detalhes específicos, contínuos e sucessivos de tempo, espaço, ação, personagem e diálogo. “Por puro desespero” se inicia com tal forma de construção, mas, ironicamente, os sentidos propostos por ele devem ser interpretados pelo modo como os elementos cênicos desaparecem ao longo do conto, não apenas os objetos como também as personagens. Soma- se ao cenário escasso, o fato de o psicólogo do conto não proferir nenhuma pergunta, não buscar a explicação de alguma passagem obscura, tampouco aprofundar-se na descoberta dos possíveis sentimentos da paciente. É uma mulher em consulta completamente sozinha, narrando o seu passado, o que acarreta o estiramento da sua fala. Se, no geral, a função do psicólogo é conduzir o paciente a uma descoberta sobre si mesmo por meio de questões que lhe são propostas, aqui essa regra básica é problematizada, dada à inércia do interlocutor. Por isso, o conto tem, num nível formal, uma estrutura de diálogo, mas como este não se realiza, desemboca numa narrativa secundária, digressiva, que se estende a ponto de a cena primeira praticamente desaparecer. A protagonista, na ausência do discurso do outro, se limita a falar sozinha; o diálogo se esfacela e a narrativa se transforma em solilóquio. Como mencionamos no capítulo anterior, monólogo interior e solilóquio (às vezes até mesmo fluxo de consciência) são tratados como procedimentos ficcionais idênticos pela teoria e pela crítica literária. Ambos, evidentemente, são estudados dentro da relação pensamento e linguagem que a literatura do século XX se encarregou de tematizar e problematizar. Entendemos o conceito de solilóquio como uma expressão dos pensamentos de forma oralizada, como fala direta da personagem (CARVALHO, 1981, p. 57). Muito comum nas formas teatrais, o solilóquio reforça a ideia de um discurso solitário, destituído de comunicação humana. Por isso, deve-se analisar o relato da paciente em “Por puro desespero” como solilóquio. Suas palavras não são pensadas, mas enunciadas para um suposto ouvinte, que prefere não interagir. Recurso possível por conta do modo dramático instaurado pela cena inicial, o solilóquio amplifica a solidão da personagem: verbalizar a experiência e tê-la ignorada é mais sintomático da ausência de empatia do que não ter para quem narrar:

Muito me custou chegar a esta conclusão, mas, antes de me dizer se estou certa, procure lembrar-se de como lhe relatei o meu espanto ao recobrar os sentidos deitada numa padiola no corredor escuro de um hospital de pronto-socorro, sem nem saber como fui para lá. Recapitulemos, e veja se não é o que estou pensando. (LISPECTOR, 1985, p. 118)

151

A fala da personagem pressupõe sessões anteriores com o mesmo tema, já que incita o psicólogo a relembrar suas narrativas sobre o evento. A partir daí a cena inicial esmaece e a narrativa secundária se desenvolve. Detalhes referentes ao consultório e ao psicólogo emergem por vezes, todavia como lembretes de que a narradora não tem um bom ouvinte, embora ele continue presente, já que ele se mostra inquieto, impaciente: “Vejo, doutor, que está procurando posição na cadeira.” (Idem, p. 124). Certamente, Elisa Lispector não foi a única a inserir uma personagem de poucas falas na contística brasileira. Em “O espelho”, Guimarães Rosa cria um interlocutor para o narrador, cujos traços podem ser inferidos somente por seu discurso (ele é um estudioso, por exemplo) e, em certo sentido, o conto rosiano nada mais é do que uma longa fala embasada no modo dramático em que momentaneamente a outra personagem é apenas ouvinte. No entanto, em “O espelho” há um público, embora sem falas, atento a quem fala; em “Por puro desespero”, a personagem experimenta solitariamente sua história, reforçando os temas centrais do conto, que são mostrar a nulidade do médico e o autoconhecimento como resultado de uma reflexão interna. Já mencionamos haver uma dura crítica em O tigre de Bengala à medicina, com a inclusão de posturas antiéticas e desumanas por parte de médicos, enfermeiros e psicólogos5. Em “A partida”, o cardiologista sugere que o sofrimento da protagonista é, de certa maneira, de sua própria responsabilidade, porque ela “é sensível demais” e acrescenta com ironia: “— A senhora precisa aprender a viver.” (LISPECTOR, 1985, p. 113). No conto “A rosa”, o médico que aconselha a mãe a realizar uma cirurgia na cabeça do filho projeta a figura do “médico monstro”, aquele que não teme realizar cirurgias radicais. Em “Exorcizando lembranças”, a cena inicial ocorre em uma sala de cirurgia; na mesa, uma mulher, em estado de pânico, pede ajuda para suportar o frio e lhe oferecem um lençol fino, áspero, completamente inútil:

Tem frio, é visível como treme e bate os dentes. — Só operamos com ar refrigerado. — Então me cubram. Põem sobre ela um lençol ralo parecendo feito de tecido de estopa do tipo que fazem sacas para cereais, tão ralo que deixa o frio penetrá-la até os ossos. (LISPECTOR, 1985, p. 56)

A apatia dos profissionais da saúde para com o sofrimento dos pacientes (resultando em certo tipo de violência psicológica) perpassa O tigre de Bengala, e um ponto significativo a

5 Em O dia mais longo de Thereza (1978), essa falta de amparo da medicina é uma das mais bem realizadas por Elisa, uma vez que, em quase todo o romance, o diagnóstico da protagonista permanece numa espécie de névoa límbica, o que lhe causa grande angústia e a perda do desejo de viver. 152

esse respeito é que, na maioria das vezes, essas cenas não pertencem ao tempo presente da personagem: são relembradas pela memória, indicando uma marca, uma cicatriz na consciência resultante da experiência. Enquanto está sentada na poltrona de um avião, a protagonista de “A terra é azul” perde-se em seus pensamentos, apresentando a relação conflituosa com o marido; num movimento da consciência aparentemente sem razão, ela retoma uma experiência com seu psiquiatra: “— É feliz? lembrou-lhe haver-lhe perguntado o psiquiatra na primeira consulta, e que também seria a última.” (LISPECTOR, 1985, p. 108). Os médicos e psiquiatras são representados pela consciência das personagens de forma expressivamente negativa, senão como figuras insensíveis, como seres incapazes de atenuar o sofrimento, ou até ambas as coisas: o médico da protagonista de “Confidências”, portadora de um quadro de pneumonia irreversível, tenta “consolá-la” da seguinte maneira: “— A morte é suave [...]. O pior mesmo é a antecâmara da morte, mas não demora, é só ter um pouco de paciência.” (Idem, p. 10) O descaso do psicólogo, do médico, não é um evento isolado na contística de Elisa. No entanto, é importante mencionar, em “Por puro desespero” a apatia do psicólogo não emerge em uma cena isolada, rememorada, mas como parte decisiva para a configuração do ponto de vista e do delineamento da história. Indiferente e, como se verá, irrelevante, o psicólogo simplesmente não atua na cena. Paradoxalmente, ele está presente o tempo inteiro, o que estabelece o solilóquio e reforça a preferência de Elisa Lispector por uma perspectiva dramatizada. Enquanto, no monólogo interior, a reflexão se dá no campo mental e chega ao leitor à medida em que o narrador cede espaço, em alguns contos elisianos as cogitações das personagens são expressas oralmente. Em casos específicos, como nesta narrativa, a personagem tem a presunção de uma audiência (afinal o que a paciente busca no consultório são ouvidos para a sua experiência). Porém, em outros contos, as reflexões são arremessadas na atmosfera de espaços vazios, realçando a profundidade da solidão. Cansadas de monologar com a consciência, as personagens buscam, às vezes, ouvirem-se, numa espécie de arremedo de conversação. Esse isolamento denso e irremediável está, nesse sentido, mimetizado em vários níveis em “Por puro desespero”: no nível diegético, pela inoperância desse analista que se nega a interagir com a paciente; e, num nível linguístico, pelo esvaziamento da estrutura dialogada, específica do modo dramático, simbolizada pelos travessões sem falas. Numa perspectiva pragmática, podemos dizer que há uma situação de enunciação em que uma das partes se nega a produzir enunciados, fazendo com que a sessão se polarize a tal ponto que a resposta feminina se torna uma grande narrativa, transformando-se no conto em si, já que somente a partir da rememoração há uma fabulação propriamente dita: 153

De início, na mesa de operações, vestindo uma horrível camisa de hospital, um lençol encardido a cobrir-me as pernas. A sala fria, as instrumentadoras (duas) andando de um lado para o outro. O tempo vai passando. Não consigo fixar o pensamento em coisa alguma. Se não sentisse a dureza da mesa de operações, diria que estou flutuando no espaço, e pouco a pouco uma dor de começo incômoda e indefinida gradativamente se vai tornando tão aguda, e de tal modo tão abrangente, que é difícil situá-la. (LISPECTOR, 1985, p. 119)

O uso da memória confere ao conto um ponto de vista novo e único. As lembranças da personagem, agora narradora, constituem o conjunto dos fatos. Sua visão é marcada por impressões antigas e atuais, modificadas com a experiência de quase morte. É neste momento que a protagonista começa a contar a história, o que é perceptível pela mudança do espaço narrativo (hospital) e de temporalidade (passado). É, assim, uma narrativa duplamente subjetiva, que tem como espaço o hospital onde esteve internada. Além da sensação de dor e de frio (o que sente a personagem), é importante que atentemos para a sua perspectiva (o que vê a personagem), em sua posição de paciente deitada e acordada. Uma de suas agonias, tanto na mesa de cirurgia quanto na ala de recuperação, é analisar a realidade circundante a partir do leito. Sua imobilidade é, dessa forma, um elemento que define sua visão e, por consequência, um agravante da angústia (em dado momento, por exemplo, ela se desespera por achar que a paciente ao lado está morta e que ela não pode levantar-se para confirmar o fato). Quando finalmente decidem operá-la, os anestesistas injetam de forma arbitrária um sedativo parcial, mais uma mortificação, já que a personagem não quer ver a cena de sua própria cirurgia, uma manipulação grosseira de seu corpo:

E primeiro me viraram de costas e me aplicaram dolorosa e demorada injeção raquiana que, como uma corrente elétrica, se foi propagando em dor pelo ventre e os quadris, em seguida uma grossa agulha penetrou-me rápida a veia do pulso, para o soro; sobre as tábuas amarraram-me os braços abertos, transformando-me numa imagem de crucificada após a Sexta-feira da Paixão. (LISPECTOR, 1985, p. 121)

A lembrança de sua posição na mesa de cirurgia não é gratuita. Há uma aproximação entre a protagonista e o próprio Cristo. Sua imagem com os braços abertos em forma de Cruz, somada às torturas em seu corpo, cuja presença ali foi de certa forma auto-infligida, é uma referência aos suplícios de Jesus. Mais adiante, na ala da enfermeira, duas mulheres estão deitadas ao seu lado, ambas inertes e cadavéricas, relembrando os ladrões do Calvário. Esse conto, porém, não é apenas sobre a dor individual, mas a dor coletiva de todas as mulheres que estão internadas. As narrativas elisianas investigam a relação conflituosa da mulher com o mundo, com o outro e consigo. E, apesar de os poucos críticos que a leram não 154

notarem, sua literatura tem uma função evidente: mostrar os traumas psicológicos sofridos dentro de um contexto social de incompreensão e descaso que, nesse conto especificamente, é majoritariamente masculino. O acidente da protagonista possibilita a análise de um ambiente solitário, o hospital, em que as personagens são abandonadas por parentes, amantes e patrões. Os médicos, o anestesista, os padioleiros são apresentados como agentes do sofrimento e nada sabem de pessoal sobre a paciente: “De repente surgiram vários homens de meias-máscaras brancas, de aventais até os joelhos. Não sei de quem a ideia de que eu sofria do coração, nem tive forças para contradizê-los.” (LISPECTOR, 1985, p. 120). Já as mulheres são companheiras, semelhantes, pois é assim que a narradora as vê tanto no momento em que as ações se desenrolam quanto na temporalidade da cena principal. A narração é elaborada a partir de uma perspectiva empática: a protagonista é capaz de compreender as reações psicológicas das personagens, de sentir emoções através da observação. Enquanto espera os anestesistas, ela se mostra terna para com a auxiliar, uma jovem doente e exausta, que lhe retribui o carinho:

Por fim, uma das instrumentadoras, magrinha, pálida, miúda, não mais que um pintassilgo, puxa um banquinho para perto de mim, senta-se, inclina o rosto para bem perto do meu, toma-me a mão — uma força dura em mim vai cedendo, vou me enternecendo — pergunta-me o nome, alisa-me o cabelo. Indaga se estou só, ou se tem alguém comigo no hospital — e já não me sinto tão sozinha. (LISPECTOR, 1985, p. 119)

A cena contrasta com as demais pelo tratamento terno, afetuoso, dado ao corpo da paciente pela instrumentadora; por sua vez, a descrição física da enfermeira destaca a sua fragilidade corporal; na sequência, ela mesma narra sua labuta diária e falta de saúde. Ambas têm o corpo debilitado; por isso, há identificação, sensibilidade e altruísmo, já que a protagonista ignora sua debilidade para amparar a jovem: “Esqueço a minha perplexidade, e a própria dor alastrada, e passo a aconselhar: Não faça isso, menina.” (Idem, p. 120). Aqui o sumário é substituído por uma fala da protagonista, na qual ela adverte a mocinha acerca do excesso de trabalho, atitude que ela tomara durante anos a fio (segundo ela, nada compensador). Essa cena, embora breve, serve como contraponto para o movimento seguinte, no qual os médicos aparecem e deles provém a experiência mais traumática. Mais uma vez, o diálogo cede ao sumário narrativo; a narradora, por não ter importância dentro da ação cirúrgica, apenas resume o manuseio do seu corpo pelos médicos:

[...] De repente, surgiram vários homens de meias-máscaras brancas, de aventais até os joelhos. Não sei de quem é a ideia de que eu sofria do coração, nem tive forças para contradizê-los. — Eu não podia receber anestesia geral, decidiram. [...] Eram dois os anestesistas: enquanto um tomava a pressão e o pulso, o outro me afivelava firmemente 155

uma máscara de oxigênio, mas tão apertada, que eu mais sufocava que respirava. (LISPECTOR, 1985, p. 120)

Não há um único procedimento da operação que não seja doloroso. As agulhas, a máscara de oxigênio e o tipo de anestesia, que permite ficar alerta, são percebidos como requintes de crueldade. A protagonista lembra o trabalho dos médicos como algo grotesco e cruel, e em determinado momento ela pensa em si mesma como bruxa de pano, cujo alinhavo não necessita de delicadeza. O corpo, relegado ao status de objeto, é maltratado pela praticidade médica, enquanto a consciência da narradora absorve a dureza da realidade. Aliás, todos os seus sentidos estão em alerta durante a experiência no hospital, percebendo frio e calor, a escuridão, o silêncio da enfermaria e o barulho das ruas, revelando uma compreensão sensorial dos episódios, inclusive, anteriores ao acidente:

Aos poucos, fui emendando lembrança em lembrança, um tanto confusamente embora. Senti um calafrio ao recordar o frio na Serra. A tarde azulando através das vidraças que espiavam para a rua vazia. Eu, sozinha na casa, indo e vindo de uma janela a outra, sem saber que fazer de mim, hesitando entre prosseguir no trabalho de tradução, ou pôr a correspondência em dia. De repente, por puro desespero apanhei a chave do carro e ao dar por mim estava descendo a estrada. (LISPECTOR, 1985, p. 121)

O tratamento dado ao tempo nesse conto também está imbricado na relação corpo e consciência. Os eventos que se dão em cena no consultório (presente) são substituídos pelas cenas do hospital (passado) e, em certos pontos, a digressão é ainda maior. A consciência da narradora percorre várias temporalidades, acionadas por sensações específicas de frio. O frio na Serra, um pouco antes do acidente, reverbera em calafrios no espaço do hospital – o corpo é um condensador das emoções desencadeadas pelos diferentes momentos. Esse jogo com o tempo é comum em O tigre de Bengala, no qual o passado e o presente não são categorias estanques. Elas possuem vários níveis, movência e podem, inclusive, aparentar sincronia, a exemplo do conto “Mínima história de (um) amor (naufragado)”, cujo enredo engloba um período longo de tempo (uma história), por meio de um texto de uma página (mínimo), cuja temporalidade se atualiza a cada parágrafo:

Ele era escritor famoso. Não quando se conheceram. Então era um estudante de ideias um tanto avançadas, a assediá-la persistente no afã de amor. Ela se esquivando como uma lebre assustada. [...] O que importava era o agora. Ela, solitária e já avançada em anos. Ele, de cabeça meio grisalha, mas ainda com aquele mesmo rosto jovem e a compleição de atleta, cansado, e tendo um filho adolescente aprisionado a uma cadeira de rodas. (LISPECTOR, 1985, p. 74)

156

O conto, cuja primeira sentença retoma uma forma similar dos tradicionais contos de fadas (“Ele era escritor famoso.”), mergulha num passado mais distante, quando da época de aproximação do casal, em que o estudante (futuro escritor) “persegue” romanticamente a mulher. Com igual velocidade, o segundo parágrafo fixa-se num “agora”, o presente, em que ela é solitária, e o escritor, famoso e velho, está enredado nas circunstâncias de uma enfermidade familiar. Novos fatos são acrescidos, mas cada um é atualizado, numa interessante ideia de simultaneidade. E este movimento se perpetua até o final do conto, cujo desfecho revela que o narrador está sonhando. Jogos temporais como este funcionam na ficção de Elisa Lispector porque a fábula do conto vem à tona por meio da rememoração ou do caráter onírico, por causa da exposição da consciência ou da subconsciência das personagens, o que permite o ir e vir do passado para o presente e projeções visuais. Imagens aparentemente descartáveis impelem a personagem a idealizar experiências. Em “Amor”, por exemplo, a protagonista, abandonada pelo marido, sem filhos, imagina duas versões felizes enquanto caminha perto de uma estrada de ferro. Na primeira, dirige-se à estação com três filhos e lá recebe um beijo do marido; na segunda, encontra o homem e o filho na estação, mas, ao retornarem para casa, ela não se sente à vontade para entrar, o que a traz de volta para a realidade, pois a personagem está sentada sozinha no terreiro da casa. Dessa forma, a mente cria cenas/projeções, mas, a rigor, elas não são dramatizadas no passado ou no presente, e é justamente o corpo que põe fim à ilusão construída, seja pela morte, pela dor, ou simplesmente pela retomada da vida prática. De tal modo, perceber o sofrimento do corpo é relevante em “Por puro desespero”, pois corpo e consciência mantêm uma relação entre si. Apesar das debilidades físicas, a consciência está em constante movimento, analisando o ambiente. Nesse sentido, o espaço da enfermaria é crucial. Para compreendê-lo, outras duas internadas do hospital são importantes: a primeira, uma jovem negra, migrante, empregada doméstica; a outra, jovem também, amante solitária:

Olhei para a fila de leitos fronteiriços à do meu, e vi, lá no ângulo da sala: um horror para se descrever, doutor. Basta dizer que ela estava gessada da cintura para baixo, e jazia ali na cama suja e desfeita qual uma boneca quebrada; na extremidade oposta do pavilhão, estava deitada outra menina-moça com uma perna suspensa por um gancho em direção ao teto. Não vou contar tudo quanto vi. Estou cansada. (LISPECTOR, 1985, p. 122)

Nos contos de Elisa, a saúde das pernas é um leitmotiv6. As dificuldades no andar aparecem com frequência por motivos materiais (debilidades físicas) ou problemas

6 Usamos o conceito de leitmotiv — ou motivo — como um repertório de metáforas que apontam para determinado tema basilar (REIS & LOPES, 1988, p. 179), no caso, as imagens associadas às pernas ou ao uso destas partes do 157

psicológicos (sensação de paralisia, depressão, etc.). A paralisia das pernas é sintoma da limitação social, embora a consciência continue o processo de autoconhecimento. Tanto nos contos quanto nos romances, algumas personagens elisianas passeiam com frequência. Marta, em O muro de Pedras, faz longas caminhadas na terceira parte do romance e, ao realizá-las, articula reflexões importantes. Em O tigre de Bengala, “Mulher passeando”, “Um dia, uma vida” e “Uma outra temporada no inferno” tematizam o andar pela cidade como processo necessário para uma compreensão interna ou para dar andamento à vida, porque o marasmo das personagens chega a tal ponto que andar pela cidade é uma forma de manter-se viva, de certo enfrentamento. Um conto como “A espera” se abre com a seguinte afirmação: “Caminhando lentamente, largada e solta, sem conexão com ninguém nem coisa alguma, somente ela sabia que estava em tempo de espera”. (LISPECTOR, 1985, p. 44). Nesse sentido, a tentativa de suicídio da protagonista torna-se ainda mais funesto, pois, além de não resultar em morte (nesse caso, a morte não seria algo negativo), dilacera justamente as suas pernas. Parte da angústia sentida na mesa de cirurgia resulta desse trauma, já que a inatividade das pernas é uma situação desumana e brutal. Caminhar faz parte do processo de esclarecimento pessoal e da alteridade; é um exercício associado à efetivação da solidão, um sentimento que as personagens precisam exercer com ação, com atitudes práticas. Por isso, a metáfora da boneca quebrada é funcional: a protagonista percebe-se como um brinquedo defeituoso, destituído das pernas. Ao narrar, ela evidencia as demais companheiras (“Olhei para a fila de leitos fronteiriços à do meu, e vi, lá no ângulo da sala: um horror para se descrever, doutor.” (Idem, p. 122) e seu assombro diz respeito à situação comovente das outras pernas, de outras bonecas/mulheres quebradas. Ainda quanto às pacientes, as visitas recebidas são simbólicas do tratamento recebido no espaço social fora do hospital. A narradora se envolve emocionalmente, observando as outras mulheres, notando a cor, a profissão e o modo como essas mulheres-pária são relegadas a planos secundários na vida dos seus conhecidos. A moça negra recebe a visita da patroa: “Moça branca, moça fina, bem vestida. Permaneceu ao pé do leito uns dez minutos, quando muito, e, se na sua “visita de médico” não leu a papeleta pendurada na cama, também não reparou bem no estado de quem nela se encontrava”. (LISPECTOR, 1985, p. 123). A visitante

corpo (caminhadas, passeios etc.) são referências para a questão da imobilidade/mobilidade, um dos temas em Elisa Lispector. Certamente, é possível afirmar que esse leitmotiv é inspirado na biografia de Elisa (embora com fins estéticos diferentes), pois há indícios de que ela sofreu com problemas em uma das pernas na velhice (MASSON, 2015), mas principalmente em razão dos sofrimentos de sua mãe, Mania Lispector, que amargou durante anos a paralisia e se viu reduzida à imobilidade, tema principal do conto “Exorcizando lembranças”. 158

branca, abastada, oposta em tudo à outra, demonstra alto grau de insensibilidade ao presentear a empregada com sapatos de salto, que, afora a inadequação, são uma sobra de seu guarda- roupa. A outra paciente, com a perna presa no teto, recebe a visita de um homem às surdinas e, assim como a patroa insensível, oferece um beijo, uma sobra de carinho e afeto, que, ainda assim, deixa a garota satisfeita. Há nessa atenção dada às internadas uma atitude observante por parte da narradora, pois ela ignora suas próprias aflições, focando-se no outro. Contudo, a contística de Elisa não apresenta as mulheres tão-somente como vítimas dos homens. Em “Por puro desespero”, de modo específico, vemos essa demarcação entre mulheres sofridas e homens apáticos, no entanto, há contos em que as antagonistas são mulheres. Em “O relógio”, por exemplo, as cunhadas da protagonista são as que problematizam o seu casamento, não havendo qualquer indício de sororidade entre elas. Em “Exorcizando lembranças”, vemos o quanto é problemática a relação entre mãe e filha. E, em “A trágica decisão”, há um tom de condescendência da narradora (o conto tem um “Eu” como testemunha como ponto de vista) para com a cliente do restaurante que ela descreve como uma mulher delirante, uma velha tartaruga de dias incontáveis. Mesmo aqui em “Por puro desespero”, nota-se o tom irônico para com as freiras que visitam a mulher no leito ao lado. Inicialmente, a protagonista pretende compará-las às garças, mas muda o elemento comparativo da metáfora e as assimila a pombas, já que elas fazem barulho excessivo, com grandes bustos e “ancas” largas:

Estava-se bem a ver que não eram monjas reclusas, das que vivem encarceradas nos conventos, orando pela salvação da humanidade. Se bem que estas cuidassem dos homens — homens e mulheres, bem entendido — mas numa dessas “clínicas de repouso”, onde os exacerbados acessos de desespero humano são reprimidos com sedativos em altas doses, quando não com choques elétricos. Tarefa pouco amena, convenhamos. Talvez por isso, na visita à madre superiora, as irmãs se sentissem como colegiais em férias. Mas a cozinha da “clínica de repouso” devia ser boa, a julgar pela aparência rotunda e saudável das irmãs solícitas e caridosas. (LISPECTOR, 1985, p. 123)

Pelo ponto de vista da narradora, as freiras não são caridosas, solícitas, tampouco estão preocupadas com o bem-estar da humanidade: são pessoas cumprindo o seu papel de visitar a enferma sem qualquer nota de pesar (lembremos que a madre está inerte na cama), assim como fazem aos da “clínica de repouso”; aqui a presença de aspas no texto de Elisa confirma a ironia do trecho. Além da representação do hospital como lugar de sofrimento, o conto faz uma referência a outra instituição social que deveria ser de amparo, no entanto, ela a destaca por suas formas de tortura, como o choque elétrico ou a anestesia da consciência. Justamente por 159

isso, as freiras não são garças e sim pombas: “as garças são muito airosas, delicadas, sutis — e as pombas são gordas e roliças, irrequietas, e como arrulham!” (LISPECTOR, 1985, p. 122). Após a análise da dinâmica da enfermaria, a narrativa retorna ao espaço da cena inicial. O psicólogo impaciente aguarda a revelação epifânica da narradora, que vem em forma de pergunta, com uma nova tentativa de diálogo:

Agora decifre isto: o fato de eu ter saído guiando à noite sem precisão nenhuma, e de não haver freado o carro a tempo, não foi um ato subconsciente de autodestruição? — Foi. Silêncio demorado. — Até logo, Doutor. Amanhã eu volto. Tempo transcorrendo. — Boa tarde, Doutor. — Boa tarde. (LISPECTOR, 1985, p. 124)

As palavras “foi” e “boa tarde” são as únicas enunciadas em todo o conto pelo analista e o silêncio “demorado” que se segue à confirmação monossilábica dele parece gerar um certo constrangimento. A narração, assim, se tem algum impacto sobre o ouvinte, isso não é expresso com nitidez, embora a personagem apresente uma experiência com questões psicológicas significativas (tentativa de suicídio, carência afetiva, falta de identificação com imagens religiosas, etc.) e uma linguagem específica dessa área (“subconsciente”; “autodestruição”) que poderiam desencadear alguma orientação ou explicação do profissional. A construção do conto em sua totalidade e sequência (cena/solilóquio/cena) tematiza a irrelevância daqueles que deveriam ajudar a resolver conflitos internos, em especial aqueles que cuidam da saúde do corpo e da mente. Lembremos mais uma vez a protagonista de “A partida”, que se ressente do seu médico por ele compreender a sua personalidade “extremamente sensível” como causa dos problemas no corpo. E, como vimos em “O tigre de Bengala”, ao invés de ajudar a paciente a pensar os fatores que desencadeiam certos pensamentos, o psicólogo aconselha a cliente a mascarar suas emoções. Os contos de Elisa estão sempre reiterando que a verdade revelada não depende de uma ajuda externa; ela é uma epifania alcançada através de uma interação solitária, uma revelação interior. Os louros podem ficar com a ciência, contudo, a restauração é um processo interno: “Depois que o senhor me fez compreender... Sabe? Trago comigo um sentimento como deve ser o de quem foi à guerra, voltou com cicatrizes, mas voltou.” (LISPECTOR, 1985, p. 125). Embora a cena inicial do conto crie uma expectativa quanto aos motivos que levaram a narradora a tentar o suicídio, ela não articula os fatos de modo a esclarecer essa motivação. Note-se que ela aborda as visitas das demais mulheres, mas opta por manter a sua em segredo, 160

criando uma elipse, obviamente um privilégio de narradora: “Ah, mas também eu recebi a minha visita [...]. Ocorreu cedinho, assim que a enfermaria começou a animar-se, não vou dizer de quem foi.” (LISPECTOR, 1985, p. 124). A experiência contada deveria servir de explicação, já que ela embasaria a descoberta de uma verdade: “pois é uma verdade tão cadente que, no momento, em que ocorreu, quase me fulminou”. O leitor espera a revelação dessa mensagem “fulminante”, que aparentemente não ocorre – numa leitura superficial, a protagonista mais fala sobre os outros do que sobre si mesma. Além disso, a narrativa é contada do ponto de vista de uma lutadora, uma sobrevivente, que foca o olhar no sofrimento alheio, não de uma suicida. A apreensão da verdade sobre a personagem acontece por meio da interpretação de suas digressões. A narração sobre o grupo de mulheres, as situações de dor e desamparo, o estado patético de suas companheiras de enfermaria, que retardam o desfecho epifânico, manifestam o desespero da própria narradora: ela na verdade fala de si ao tratar das outras, pois sua história está envolta na ideia de identificação, coletividade e empatia. Ao comentar os contos de Sangue no sol, Hélio Pólvora (1971, p. 48) afirma haver uma unidade na paisagem humana do livro. Para ele, as personagens “psicologicamente iguais” tornam a ficção da autora pouco diversificada em termos de representação (1971, p. 49), o que seria um “descompasso”: “É uma humanidade especialíssima, saída de um mesmo laboratório, espelhando nas ações e reações o condicionamento de um só gene”. De fato, as personagens femininas de Elisa Lispector, inclusive de O tigre de bengala, são muito similares em termos de infelicidade e insatisfação quanto ao amor e à vida, mas apresentam diferenças quanto a outros aspectos, e um deles diz respeito à identificação feminina e participação coletiva. Em “O círculo da solidão”, a narradora se revolta quando convidada para participar do “círculo”, uma espécie de clube do livro para mulheres velhas e solitárias. Já em “Por puro desespero”, a narradora se afeiçoa às outras acidentadas e as histórias delas servem-lhe de espelho. Esse aspecto modifica o ponto de vista da narração: ao observar as demais, a narradora vê a si mesma: imóvel, dolorida, mutilada. Enquanto, em “O círculo da solidão”, a similaridade assusta a narradora (não é agradável para ela reconhecer-se velha e sozinha), neste há algum alento em fazer parte de um grupo, mesmo que seja de mulheres acidentadas. Retomemos, ainda sobre a última parte de “Por puro desespero”, o recurso recorrente em Elisa: a presença de um parágrafo ou frase-síntese que manifesta a verdade compreendida, uma leitura sob outra ótica, um entendimento especial quanto aos fatos narrados, às vezes 161

lançando mão de elementos prosaicos da realidade, como no caso do conto “A terra é azul”7. Nem sempre vemos tal recurso como algo positivo na elaboração dos textos de Elisa. Em alguns casos, tais trechos lembram frases de efeito que, lidas em conjunto, conferem à obra um caráter repetitivo e certo tom piegas, o que a empobrece, ao invés de lhe dar destaque artístico. Em outros, porém, o procedimento é bem realizado:

— Hoje é o amanhã de ontem. Sabe o que está me acontecendo, doutor? Do jeito como eles me operaram, eu vinha tendo a sensação de haver sido mutilada. Mas, depois que o senhor me fez compreender... [...] Prometo-lhe que de agora em diante serei sensata. — Estou viva para quê? Juro que não vou perguntar. Juro que nunca mais vou perguntar para quê se vive, por quê se vive, o quê se vive. (LISPECTOR, 1985, p. 124)

Descobrir a razão de existir é um objetivo patológico na ficção de Elisa8. Suas personagens estão em constante questionamento quanto ao propósito da vida, o que gera implicações nas relações familiares, profissionais e pessoais. Dentro desse contexto e como consequência, aparecem os temas da morte e do suicídio. Em O mundo ficcional de Elisa Lispector, um dos poucos trabalhos críticos sobre a ficção da escritora, Telenia Hill (1989, p. 91) assinala muito bem que Elisa “imprime à morte [...] um sentido dialético, de destruição e ressurgimento”. Como uma das etapas a serem enfrentadas pelo homem, a morte é o componente irrefutável da vida. Por isso, o foco da protagonista deixa de ser o pós-morte, o seu imaginável vazio, voltando-se para a extensão da vida. Esse sentimento é buscado/sentido por muitas personagens elisianas. Abarcar o sentido da vida e, mais do que isso, como se vive é um dos objetivos do seu universo ficcional9. Apesar das agruras e dores que o homem pode enfrentar, há algo de extraordinário em estar vivo, embora não se possa compreender com totalidade o significado disso. A narradora, portanto, sintetiza a sua experiência e finaliza a sessão com esse sentimento. Ela tem uma autoimagem única, pois se vê como um soldado que, embora retalhado e emendado, volta da guerra agradecido pela segunda chance, ainda que tenha colocado a si em situação de risco. Obviamente, quando se trata da narração de sobreviventes, o romance mais conhecido de Elisa, No exílio, retorna como obra exemplar. Ainda que não seja o caso para comparações entre o processo narrativo nesses textos (inclusive de gêneros diferentes), cabe ressaltar que, na

7 A frase-síntese de “A terra é azul” é “A Terra é azul e os sentimentos não contam.” (LISPECTOR, 1985, p. 109). A personagem chega a ela ao contemplar a vastidão, a amplitude do universo, e constatar a desimportância dos problemas individuais. 8 Aqui o sentido da palavra “patológico” tem relação com o seu original em grego, no qual pathos significa sofrimento, paixão. 9 É possível notar nas personagens de Elisa Lispector a falta de angústia em relação à “vida após a morte”. 162

obra de caráter biográfico, famílias são perseguidas e tratadas como párias sociais por serem judias; já em “Por puro desespero”, a sobrevivente experimenta um processo de dor que se inicia como autodestruição. Além disso, seus algozes não são identificados nem por sua religião, nem por suas origens, apenas pelo gênero e pela área de trabalho. Médicos, enfermeiros, padioleiros e, principalmente, analistas fazem parte do mesmo grupo social e profissional que negligencia a narradora e ignora as consequências psicológicas do tratamento que oferece. Todavia, apesar deles, a paciente se sente revigorada pela organização e compreensão da sua história. O conto aproveita a cena inicial e o seu caráter dramático para viabilizar a presença das figuras do narrador e do ouvinte. Elisa faz da sua narradora uma mulher cuja história de vida carrega uma sabedoria sobre a vida e a morte. No entanto, seu público a ignora totalmente, uma atitude típica da modernidade. Para salvação da narração (pois se não há ouvintes também não há narradores), o conto faz com que a personagem encontre eco em si mesma. E assim retoma- se o solilóquio como foco narrativo (apesar de, isoladamente, a narrativa se mostrar um relato em primeira pessoa). Por isso, a epifania não tem relação com a intervenção do psicólogo, mas com o fato de a narração funcionar como uma forma de releitura. O sentimento antipático da narradora para com os homens reforça sua empatia para com as pacientes. As dores físicas, a solidão, o medo são distensões do mundo feminino silenciado, que tipifica a poética de Elisa. Se, para o psicólogo, essa história é informação; para a paciente, é sabedoria transmitida por meio de um construto artesanal, cuja principal característica é a atitude reflexiva. Para a narradora de “Por puro desespero”, a moral é a importância do viver.10 Os motivos do suicídio não são elucidados pela narração: eles são sintetizados por um único sentimento: o desespero. Essa redução amortece a gravidade dos problemas, ao mesmo tempo em que faz referência a uma sensação cruel de desesperança. Dessa maneira, quando narra em retrospectiva, a ação suicida ganha menos destaque, pois, fossem quais fossem as circunstâncias desalentadoras, elas não poderiam transpor a agonia manifesta no hospital. Ainda sobre a teoria de Friedman quanto ao ponto de vista narrativo, o conto de Elisa é de difícil classificação, uma vez que mescla caracteres de várias categorias e aproveita seus

10 Essa relação narrador/narração/ouvinte pode ser discutida à luz das reflexões de Walter Benjamim (1994), obviamente, atentando para as especificidades tanto do conto analisado quanto do corpus de que trata o crítico alemão. Entendemos que a história da paciente deveria intercambiar experiências, sendo, portanto, uma típica narração, como afirma Benjamim. Contudo, como tal troca não ocorre, a experiência tida como exemplar, ou “utilitária” (o narrador é um “homem que sabe dar conselhos”) não se torna comunicável para o psicólogo, um fenômeno recorrente no mundo moderno, mas pode se tornar para o leitor, caso ele compreenda as implicações humanas dessa narração. 163

pontos de vantagem a fim de abordar seus temas. O relato do acidente e da recuperação no hospital poderia se configurar como uma narrativa elaborada pela protagonista, limitada a seus próprios sentimentos, pensamentos e percepções. Entretanto, as duas cenas fronteiriças modificam essa situação pela inclusão de um ouvinte. Por outro lado, em relação ao sofrimento das personagens femininas, a protagonista seria um “Eu” como testemunha, com um foco de visão privilegiado para relatar o drama das outras mulheres. Apesar da imobilidade corporal e de não ter acesso às demais consciências, ela exprime bem o que sentiu e viu no hospital, sumarizando eventos tristes e amenos. E finalmente, por seus elementos cênicos, há o modo dramático, que instaura uma pequena distância entre nós e este lugar, o consultório, e estas pessoas, analista e paciente. Em uma adaptação teatral desse texto, veríamos uma mulher revelando seus traumas para um homem completamente alheio no palco. O tigre de Bengala se vale com frequência de metáforas zoomórficas. Em alguns textos, como no conto homônimo da obra, a metáfora se dá em relação aos pensamentos indesejados, comparados ao tigre feroz e indomável. Entretanto, na maioria das vezes, as próprias personagens são zoomorfizadas, formando um rico e variado conjunto de mulheres-animais. Pintassilgo, pomba, lebre, tartaruga, gata, peixe, cadela são alguns dos exemplos. Em “Por puro desespero”, Elisa não zoomorfiza a protagonista, não de maneira direta. A leitura do texto, porém, permite estabelecer uma relação entre ela e a fênix. Conhecida pelo seu dramático renascer, a ave mítica é um símbolo da destruição e da longevidade, assim como a personagem, que ressurge após difícil processo de aniquilamento. Símbolo da ressureição na Idade Média, a fênix reaproxima figurativamente Cristo da protagonista, cuja recuperação em casa dura três meses (não esqueçamos a imagem da cruz na mesa operatória). Enquanto o psicólogo tem sua imagem associada ao do Santo Ofício (outra figura medieval), a narradora representa o triunfo da vida sobre a morte auto-infligida e sua narração é o seu evangelho. Uma metáfora paradoxal e, até certo ponto, otimista, pouco registrada pela crítica da ficção de Elisa Lispector.

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3.2 A culpa, a inveja e o monólogo interior em “O furto”

Emergindo lentamente de um sono tão profundo que se diria larvar, [...] de súbito foi atingida por um aguilhão, à angustiante sensação de um erro [...]. (Elisa Lispector em “Uma nova sensação de realidade”)

Dentre os contos de O tigre de Bengala, consideramos “O furto” o representante de certo conjunto de textos de Elisa Lispector. Em outras palavras, esse conto apresenta características iterativas em sua obra tanto do ponto de vista temático quanto formal e, por isso mesmo, é válido para o estudo do ponto de vista na autora. O conto apresenta uma personagem feminina com idade avançada (porém, não definida), enredada em sua própria consciência, enfrentando uma crise psicológica nas primeiras horas do dia. “O furto” tematiza a velhice, a solidão e questiona a ausência de melhores oportunidades na vida. Aborda os problemas relacionados à autoestima, à carência afetiva e como determinadas ações, ilógicas na superfície, são esclarecidas pelo modo como a personagem interpreta o mundo. O conto possui uma fábula pequena e aparentemente simples. Ao acordar pela manhã, uma mulher atormenta-se em sua cama por haver praticado um furto. Ela é dona de uma pensão e surrupiara um livro de uma casa no seu bairro. Essa propriedade era, desde sempre, seu objeto de desejo e fora vendida a hóspedes de seu próprio estabelecimento. Presente no acordo de venda, a protagonista revolta-se com a situação “injusta”, colocando o volume em sua bolsa, atitude que desencadeia o conflito. Essa narrativa é construída com base em dois pontos de vista: a onisciência seletiva e o narrador onisciente neutro (FRIEDMAN, 2002), embora, em alguns momentos, a neutralidade seja substituída por outra configuração narrativa. Com tais escolhas, representa-se uma realidade interna e externa, mostrando a desesperança de uma mulher sob duas perspectivas. É possível inferir que a personagem não possui amigos e familiares próximos. Contudo, sua infelicidade reside na ausência de uma relação amorosa, resultando em sentimentos de inveja e revolta para com as demonstrações de afeto de outras pessoas quando retomadas por sua consciência. Essa felicidade é apresentada a partir da ótica da personagem, sendo, portanto, uma interpretação do comportamento do casal de hóspedes. Três elementos se combinam simbolicamente na história (casal/casa/livro) e funcionam como um paradigma negativo para a protagonista, ilustrando o que lhe falta: amor/juventude, saúde, bens materiais e conhecimento. 165

O conto tem como eixo temático o modo como o sentido de plenitude é alcançado por circunstâncias diferentes para cada pessoa e como os elementos responsáveis por isso funcionam exclusivamente dentro de seu próprio contexto de felicidade, relação representada simbolicamente pelo livro. A presença do monólogo interior se justifica pela análise da mente frente à culpa, mediante o furto do livro, e à inveja, ao desejar para si os afetos e os recursos financeiros do casal, cujas posses são suficientes para adquirir a sonhada mansão. Estes dois sentimentos, reprováveis religiosa e socialmente, são a razão para a agitação, que atinge os níveis do subconsciente da personagem em seu estágio de sono (por meio da negação do “erro”), e a consciência – quando acordada, ela começa a refletir sobre suas questões pessoais. Na literatura de Elisa Lispector, a consciência costuma entrar em crise nas primeiras horas do dia. No romance Corpo a corpo, a narradora reflete sobre esse momento a ser transposto e até o nomeia como “a hora da loba”, um momento de “angústia natural”. Durante a manhã, as protagonistas se deparam com a inalteração das circunstâncias problemáticas e se imaginam repetindo os mesmos passos e, consequentemente, os mesmos erros do dia anterior. Constatar que um outro dia de sofrimento se inicia comprime o coração dessas mulheres. Tais momentos de crise matinal se fazem presentes em muitas cenas romanescas. Os contos de O tigre de bengala, enquanto narrativa curta, representam eventos e situações com temporalidades objetivas menores que as concebidas nos romances11. Encontramos em O tigre de Bengala cinco contos cujas tramas se abrem com os pensamentos e sensações das protagonistas na primeira hora do dia — “Uma nova sensação de realidade”, “O círculo da solidão”, “O furto”, “Sangue no sol” e “A agonia de viver” — e que se encerram (com exceção de “O círculo da solidão” ) em pouco tempo, embora não seja possível quantificar com precisão, em razão do uso da consciência da personagem, portanto, de uma temporalidade psicológica. Em “Uma nova sensação de realidade”, a protagonista acorda e é atingida pela sensação de fracasso: “— Emergindo lentamente de um sono que se diria larvar, [...] de súbito foi atingida por um aguilhão, à angustiante sensação de um erro.” (LISPECTOR, 1985, p. 66).

11 Todos os romances de Elisa, embora com a notável presença de monólogos, abarcam uma temporalidade significativamente longa, de meses e anos. Dos vinte e dois contos de O tigre de Bengala, apenas dois têm uma temporalidade significativamente indefinida, difícil de delimitar ou classificar. Em “Uma outra temporada no inferno”, o sentido é intensificado pela angústia da protagonista em não saber há quanto tempo está morando em um cidade fantasmagórica; já o conto “Mínima história de (um) amor (naufragado)” abarca o encontro inicial das personagens até o fim triste na velhice infeliz, com o detalhe de que tudo ocorre em um sonho. A ação principal da maioria dos contos se baseia em eventos curtos, de minutos (“Mulher passeando”), horas (“A partida”), dias ou, no máximo, meses (“Amor”, “O relógio”). Obviamente, em cada uma dessas temporalidades, próprias de uma realidade mais objetiva, há “parênteses temporais narrativos”, proporcionados por digressões mentais das personagens (“Sangue no sol”, “Confidências”). 166

Ainda na cama, ela revisita diálogos e impressões de um jantar oferecido por uma amiga. As circunstâncias da reunião rememorada secundarizam o espaço da cena principal, mas, ao final da história, ele é recuperado: “E assim pensando, saltou da cama e abriu a janela de par em par para um novo dia que se iniciava.” (Idem, p. 71). Em “A agonia de viver”, a angústia do acordar é similar à angústia de se perceber viva, pois todas as noites a protagonista anseia a morte durante o sono para não ter que enfrentar um novo dia: “Todas as noites, nos últimos meses, ao deitar-se, acalentava o secreto desejo de não mais acordar.” (LISPECTOR, 1985, p. 134). Portanto, é uma recorrência nessa obra que os primeiros minutos do dia constituam para as personagens um momento de avaliação da existência. Nesse sentido, uma existência anterior é retomada pela consciência recém-desperta, o que torna o conto suscetível a digressões. Vejamos o início de “O furto”:

— Não, não, eu não roubei! acordou gritando, ofegante, banhada de suor, as cobertas numa desordem que o seu corpo volumoso a contorcer-se fazia ainda mais confusa. — Ai, suspirou depois com alívio, felizmente foi um sonho. Mas ainda arfava, agitada pela emoção e também por aquela opressão dos fumantes inveterados que, ao amanhecer, têm os brônquios chiando e resfolegando como um motor que custa a pegar. Mal podia abrir os olhos inchados — sempre ao acordar tinha que dar-se um pouco de tempo até que os olhos se abrissem inteiramente, e se adaptassem à claridade, até que entrasse na própria pele. Mas nessa manhã a angústia de ter acordado para mais um dia era maior pela aterradora impressão do pesadelo em que se debateu como uma fera acuada. — Por mais que eu jurasse inocência, eles me cercavam por todos os lados, me acusando, me acusando. Ninguém acreditava no que eu dizia. Aliás, as pessoas nunca acreditam quando é verdade. Se dissesse uma mentira, sou capaz de apostar como ainda haveriam de me cantar louvores (LISPECTOR, 1985, p. 84)

A cena inicial apresenta os gritos da protagonista em razão de um pesadelo no qual acusações de um crime lhe são feitas: “eles me cercavam por todos os lados, me acusando, me acusando” (Idem, p. 84). Nessa parte, o texto deixa em aberto a culpabilidade da personagem, uma vez que ela nega as incriminações e chama para si, já por meio do pensamento, o discurso da inocência, afirmando que as pessoas não acreditam quando um sujeito fala a verdade. Como a análise possibilita afirmar (e o próprio título de forma proléptica), a protagonista sonha com acusadores porque sente culpa, embora seu discurso, durante o sono e ao acordar, os negue copiosamente e com um tom bastante crível. A consciência “pesada” reverbera em pesadelo com a presença de um público indeterminado (não se especifica quem seriam esse eles) e incrédulo acerca de seu comportamento. A culpa atinge, portanto, níveis mais profundos de sua consciência, fazendo com que seu momento de repouso seja aterrorizante, a julgar pela voz do narrador ao ressaltar seu resfolegar e o seu d0ebater-se entre as cobertas: “acordou gritando, 167

ofegante, banhada de suor, as cobertas numa desordem que o seu corpo volumoso a contorcer- se fazia ainda mais confusa”. (LISPECTOR, 1985, p. 84) Essa abertura é interessante por dois motivos: manifesta de forma expressiva e significativamente breve a subconsciência e a consciência da personagem (a segunda, um pouco desonesta consigo mesma), sugestionando a profundidade de sua perturbação; e descortina com três pequenos parágrafos os elementos da cena externa12. Não há sumário narrativo sobre quem é essa mulher e o porquê de seu sono atribulado, já que tudo será entendido pela apreensão de pistas oferecidas tanto pelos pensamentos da protagonista quanto pelo narrador que a observa. Nesse momento, são notáveis os elementos referentes à fragilidade de seu corpo e à necessidade de usá-lo na continuidade do dia. Aos pulmões debilitados, às pernas e aos olhos inchados, somam-se, neste dia, as imagens terrificantes de um pesadelo. É preciso notar, também, a atuação de seu corpo sobre a cama a simbolizar, como veremos, uma desordem interna. A cena externa de “O furto” tem como espaço o quarto, com detalhamento para a cama que compõe o cenário. Além dos detalhes espaciais que vemos com o auxílio do narrador, é importante atentar para como a personagem visualiza o quarto, pois a narrativa ganha uma trama a partir do ponto de vista dela, no que diz respeito aos objetos que ela vê e por que os vê quando acorda. Basicamente, o olhar da protagonista se fixa em coisas do quarto que se destacam pela pobreza. A protagonista, inerte no emaranhado das cobertas, prostrada na cama, inicia o conflito interno:

Por momentos ficou olhando, distraída, a cortina de renda empoeirada e rasgada em vários pontos a pender um fio de trapo velho. — Um dia preciso tomar coragem e comprar um chitão, mesmo desses bem baratos, para substituir esta cortina quase tão velha quanto eu, monologou, enquanto era sacudida por um acesso de tosse. Deu-se uma pausa. Respirou fundo. — Aliás, as dos quartos dos hóspedes não estão em melhores condições. Mas também, pelo que eles me pagam... Distinto o casal que veio no sábado para procurar casa nas redondezas. (LISPECTOR, 1985, p. 85)

A cortina velha, empoeirada, é o primeiro objeto para o qual o seu pensamento converge. Esse detalhamento da perspectiva da personagem é crucial porque há uma relação entre o empobrecimento da pensão e a imagem que ela faz de si mesma, assim como há uma ligação entre o casal apaixonado e a casa que eles compram. As poucas informações oferecidas pelo

12 Inicialmente, consideramos a cena na consciência como sendo secundária e a cena do quarto como a principal. Mas, dada a digressão feita e sua importância para o desenrolar da trama, entendemos que ambas se complementam e que nomeá-las como tal daria a impressão da superioridade de uma sobre a outra. Sendo assim, as chamamos de cena interna e externa, respectivamente. 168

narrador observador são também muito funcionais. Com uma visão externa da cena, ele nos apresenta o ambiente, a personagem, mas o faz a partir da perspectiva da mulher. A decoração do quarto é pobre, ela constata, a ponto de ser melhorada com um chitão novo (o pano de chita, como é mais conhecido, barato e de pouca qualidade) e a cortina é tão velha quanto ela mesma. Essa identificação com o velho, com o roto e puído é um dos pontos que justificarão o sentimento de inveja para com o casal de hóspedes, ambos jovens. Note-se que no início do monólogo o pensamento segue um fio mais racional: a renda em trapos lembra a precisão de novas cortinas; os quartos da pensão também precisam delas, no entanto, não poderão ser compradas com o valor insignificante pago pelos hóspedes. Neste ponto, o pensamento apresenta um salto “ilógico” indo direto para “o distinto casal”. Essa quebra, muito própria do monólogo interior, pode ser justificada pela relação opositiva que a consciência estabelece entre os hóspedes miseráveis (de uma pensão igualmente miserável) e o casal de pessoas com posses, felizes, diferentes de todos eles. Por isso, a escolha da palavra “distinto” é significativa. Esse processo mental associativo faz a personagem retomar o evento do furto que ela negara mesmo em sonho, sendo, portanto, uma peça pregada por sua própria consciência:

Neste ponto de suas reflexões, ao lembrar-se do dia anterior, foi como se lhe tivessem dado uma estocada. Não, foi como se algo tivesse sido entornado. — Pior ainda, é um desgosto travoso misturado a vergonha. Uma agonia que não tem tamanho. Assim, velha e infeliz como sou, como fui acrescentar a mortificação de haver feito o que fiz, e para nada? (LISPECTOR, 1985, p. 85 – grifo nosso)

Um aspecto muito particular da contística de Elisa é o aparente diálogo que os narradores observadores realizam com a consciência das personagens. O uso de travessões (que indicam, a grosso modo, uma cena dramatizada) se faz presente entre a personagem e a figura do narrador que está fora da diegese. Esse dado intensifica o grau de onisciência de quem narra, assim como acentua o caráter cênico do conto com uma espécie de discurso direto entre essas duas categorias, uma do discurso outro da narrativa. Seria uma “sintonia” entre duas consciências que narram a história: do narrador e da personagem. No trecho acima, o narrador descreve a lembrança como uma estocada, como se ferisse, conduzindo à dor aguda (veja-se pela epígrafe deste tópico que a alusão a uma lembrança do passado como uma estocada ou um aguilhão é recorrente); logo depois, porém, ele se reformula (parte grifada) como se procurasse as palavras certas para especificar a sensação. Então, a protagonista o “corrige” em seu pensamento, assegurando que as sensações são exatamente de desgosto e agonia. 169

O pensamento é dramatizado cenicamente (simultaneidade entre sua ocorrência e o momento de sua narração), como também formalmente. Cada pensamento é uma fala e o que a protagonista diz para si mesma é que, além de velha e infeliz, ela acrescentou o agravo de ser ladra: até antes do furto, ela poderia ao menos vangloriar-se de sua honestidade (apesar de a resolução do conflito apontar um outro caminho). A autoestima dessa personagem está completamente associada ao que ela construiu ao longo da vida. A pensão pobre, nesse caso, é ela mesma, assim como a casa bela do bairro é uma representação do casal feliz. De um lado, a protagonista vê o novo, o jovem, o saudável, o feliz, o romântico, e do outro lado desse paradigma há ela mesma, uma antítese de tudo. Um tipo de auto-objetificação, uma vez que sua consciência minimiza suas singularidades pessoais e seu valor afetivo (que ela não enxerga em si) para considerar-se similar a algo que pode ser vendido, comprado e possuído. A pensão é uma propriedade muito simplória, quase em abandono, com muitos melhoramentos a serem feitos. Já a casa comprada pelo casal possui estilo normando, um tipo de arquitetura europeia, considerada romântica pela presença de enxaimel (detalhes feitos com estacas e caibros preenchidos), pequenas janelas e lareiras, arcos, ogivais, salas de armas, etc. Compunha esse universo romanesco um livro de Rafael Sanzio (ou Santi,1483-1520), pintor italiano do século XVI, participante da escola de Florença durante o Renascimento italiano (junto com Michelangelo e Da Vinci, Sanzio forma a tríade de grandes mestres do Renascimento). Ao apanhar semelhante peça da casa, a protagonista pretendia trazer consigo um pouco da aura daquele paraíso perdido, da elegância artística do lugar, além, é claro, de inconscientemente punir o casal por serem felizes, por “furtarem” o seu sonho. Essa vingança pueril levará a personagem ao arrependimento, pois ela constatará que o livro não se encaixa em sua realidade. O livro, ao ser deslocado, é incapaz de realizar a compensação desejada:

— Para nada, ajuntou quase chorando, pois que entendo eu de pintura do século... — qual foi mesmo o século que eles falaram? O pintor se chama Rafael, isto eu sei porque está escrito na capa. E as figuras são até bonitas, mas para que eu quero isso? dizia para si com o desespero de uma criança que, após haver arrebatado um brinquedo de outra criança, rejeita-o, agastada. (LISPECTOR, 1985, p. 85)

De modo geral, um livro é usado como imagem simbólica do conhecimento, da sabedoria, por comportar informações sobre determinado tema e servir como fonte de instrução. No conto, a relação livro e conhecimento se especifica e se enriquece. Rafael Sanzio, ou simplesmente Rafael, foi um mestre da pintura, da arquitetura, além de um grande conhecedor da Antiguidade clássica. Há, nesse sentido, um abismo entre o universo da protagonista e o do representado pela obra, o que lhe causa outro mal-estar. O livro furtado, por reproduzir o 170

universo das artes plásticas, representaria o mundo das sensibilidades, do esteticamente apreciável, do belo, do clássico, semelhante à casa da vizinhança, fonte de desejo. A revolta da protagonista é fomentada, então, por sua inaptidão para o conteúdo da obra: primeiro, sua consciência aponta a não memorização do século do autor, mesmo o casal o tendo mencionado (“qual foi mesmo, o século que eles falaram?”); depois, ela não reconhece a utilidade das imagens (“mas para que eu quero isso?”). Uma vez deslocado da casa de onde fora subtraído, o livro se descontextualiza, voltando a ser o que sempre fora: um conjunto das obras de Rafael, cujas imagens não parecem ter importância, afinal, ela não se considera tão criança a ponto de gostar de um livro somente pelas imagens, embora, paradoxalmente, possa furtá-lo por motivos infantis. Essa postura frente ao conteúdo da obra indica também uma estagnação frente à descoberta do novo, já que ela não busca entender a relação obra, autor e/ou contexto histórico, limitando-se à superficialidade mais imediata: o conteúdo da capa: “O pintor se chama Rafael, isto eu sei porque está escrito na capa” (LISPECTOR, 1985, p. 85). Além de negar o furto, um outro movimento típico da consciência da dona da pensão é culpabilizar outros por encontrar-se numa situação desconfortável e, portanto, propícia para o deslize. Primeiro, é o casal que a convida para juntar-se a ele na visita à casa; depois, ela afirma ter pedido o livro ao corretor e ele lhe negara, ou seja, ela tentou de forma honesta, mas foi recusado. A primeira justificativa/lembrança faz a protagonista realizar a digressão principal do conto, o momento da compra:

Pois não foi uma tentação o convite do casal para acompanhá-lo a ver a casa, logo a casa que sempre desejara fosse sua? O estilo, disseram, era normando. — Que entendo eu de estilos? O que sei é que toda vez que olhava aquelas janelas gradeadas, os arcos bonitos, as altas colunas, o jardim, sobretudo o jardim, ficava sonhando com aquela casa. E por dentro ainda é mais bonita. Até lareira tem. E ver o par enamorado — seus lábios sorriam, seus olhos sorriam, as mãos entrelaçadas, numa alegria tão pura, tão nova como um raio de sol acabado de surgir, ele a perguntar-lhe: “Este não é o lugar perfeito para vivermos?” e ela a responder: “Perfeito, querido” — fiquei emocionada. Ao mesmo tempo... emendou reticente: vê-los sorrindo, se amando, apossando-se da casa de meus sonhos doeu-me, a mim, velha, só e sem esperanças. Foi quando vi o livro sobre a mesinha redonda coberta por um pano de veludo grená. (LISPECTOR, 1985, pp. 85 e 86)

A digressão é feita pela consciência da mulher, um filtro para a apreensão dessa cena. Num primeiro momento, ela reitera a imagem diminuída que faz de si em razão da ignorância acerca de um outro tipo de arte, a arquitetura (“— Que entendo eu de estilos?”). Há o detalhamento acerca da imagem externa e interna da casa, com estilo normando, associado ao estilo romântico dos edifícios, com a presença de uma lareira tradicional. Bem no centro desse 171

espaço rememorado, o casal conversa entre si com um diálogo próprio das novelas televisivas. Tudo é sorriso e claridade, é alegria e pureza, juventude e amor. A emoção inicial (que ela não especifica qual seja) cede o espaço para a dor. De uma forma curiosa, a protagonista se sente traída, como se o universo não fosse justo consigo. Afinal, não há uma razão ou uma explicação para que aquele homem e aquela mulher possuíssem tudo e ela, nada. Ela, inclusive, utiliza o verbo “apossar-se” como se eles estivessem tomando indevidamente algo dela. Sentindo-se injustiçada, ela automaticamente retira o livro da mesinha, coberta com um tecido caro (o veludo) em uma cor igualmente elegante (o vermelho grená), outro índice do cenário, dessa vez da cena digressiva, que opõe a qualidade dos tecidos da pensão à da casa vendida. Em seu universo de carência, a personagem procura nos fazer crer que ela tem ao menos a dignidade de pessoa honesta, que ela pretende não manchar com ação passada: “Não fui logo tirando, não. Juro que sou honesta, que nunca tirei nada de ninguém.” (Idem, p. 86); mais à frente, ela retoma que só furtou o livro no momento exato em que o casal acordou com o vendedor e se abraçou comemorando. Uma vez encerrada a digressão, estamos de volta à cena principal, na qual ela está no ponto em que a vimos no início: em sua cama. O monólogo agora é substituído pelo discurso do narrador, que expressa o que pensa a personagem através do discurso indireto livre (há nesse discurso uma hesitação por parte de quem narra):

— Ai, gemeu, agora sem queixa, mais por força do hábito, concentrando-se apenas no gemido, e assim permaneceu um tempo sem fim. Talvez como resultado de suas cogitações enquanto esteve ensimesmada, concluiu que não tinha a quem confiar nem aflições, nem alegrias. Nada. Tudo quanto partia dela terminava nela própria. Ela era o princípio e o fim de si mesma. Mas havia uma coisa que podia fazer, decidiu, esperando com isso aliviar o peso no coração. (LISPECTOR, 1985, p. 86)

Nesse ponto, o narrador omite o que teria decidido a personagem, que implicações a crise interna (o desejo de provar a inocência, a angústia de permanecer com o livro, a vontade se sentir amada, etc.) terá nas ações da mulher que permanece deitada, ainda incapaz de enfrentar o dia fora de seu quarto. O “talvez” do narrador deixa em aberto a conclusão apresentada, parecendo haver dúvidas desse “resultado de suas cogitações”. O pensamento mais seguro que ela sente é o de estar sozinha, tão só a ponto de não ter para quem confiar um erro ou um acerto. Tal certeza lhe traz grande amargura, a certeza de uma solidão profunda. O discurso indireto livre do final do trecho acima parece revelar “a decisão”: “Mas havia uma coisa que podia fazer, decidiu, esperando com isso aliviar o peso no coração.” (Idem, p. 86). As relações pessoais das personagens elisianas falham frequentemente. Maridos, filhos, amigas, sogras, cunhadas, namorados, vizinhos são, na maioria das vezes, pessoas que não 172

permitem uma interação completa ou talvez as protagonistas não permitam uma proximidade real (nos romances, as personagens chegam a essa conclusão mais facilmente); o fato é que elas não podem contar com as demais para a resolução dos problemas subjetivos; por isso, há no texto esse movimento de fora para dentro, sustentado pela técnica do monólogo interior. Sem auxílio externo para a tomada de decisões, a protagonista levanta-se; afinal, precisa gerenciar o que é seu. Observemos o trabalho do narrador:

Então levantou-se a custo, mal equilibrando o corpo balofo sobre as pernas inchadas, vestiu um roupão velho por cima da camisa estampada meio puída, mas teve que voltar ao leito, a cabeça tonta, o quarto à roda. — Meu Deus, que me está acontecendo? Por que esta dificuldade? Os olhos abriram-se em assombro, enquanto se encostava nos travesseiros, o quarto aos poucos retomando equilíbrio na sua mente conturbada, como estagna a água depois que pararam de agitá-la. (LISPECTOR, 1985, p. 87)

Há mais um destaque para o estado da roupa. A camisa desgastada é recoberta por outro tecido também velho. Um recurso metonímico presente na história é a condição da roupa pessoal, de cama, como reflexo do abandono afetivo, um desmazelo simbólico. Portanto, o desejo de comprar novos tecidos para as cortinas no início da história, e talvez para si mesma, tenta rever essa condição, criando outras perspectivas, contudo, essa renovação não sai do plano das ideias. Um outro ponto digno de nota sobre esse trecho é a dificuldade da protagonista em comandar o corpo. Algumas personagens de Elisa têm enorme dificuldade de locomoção, em especial as mulheres em idade avançada. Na contística, destacam-se cinco histórias com essa condição limitadora. A protagonista de “A agonia de viver” é uma mulher de setenta anos com problemas no nervo ciático, que depende da empregada para realizar praticamente todas as atividades domésticas. No conto “Por puro desespero”, discutido anteriormente, a ideia de ficar paralítica é mais traumática do que a própria morte. Em “Exorcizando lembranças”, poderíamos dizer que há duas mulheres paralisadas: a protagonista, que acaba de realizar uma cirurgia nas pernas, e a sua mãe presa à cama, que emerge no texto a partir das memórias da filha. Em “A trágica decisão”, a protagonista caminha muito lentamente por causa da idade e da artrite, fazendo com o que o narrador a associe à tartaruga: “A tartaruga que almoçava a meu lado devia ser de entre as mais idosas, a julgar pelas patas deformadas pelo artritismo com que manejava canhestramente o talher, e o ondular incerto da cabeça.” (Idem, p. 129). E, finalmente, no conto em análise, há uma dupla dificuldade, o desalinho do corpo e a perturbação da mente impedem o equilíbrio, em razão dos eventos da casa e do livro. 173

Em cada uma dessas narrativas, o tema da mobilidade se atualiza. Em “Por puro desespero”, por exemplo, vemos que o trauma é coletivo, uma vez que o hospital (espaço da narrativa rememorada) abriga várias mulheres de pernas quebradas, mutiladas. Já em “Exorcizando lembranças”, a filha vê a dor nas pernas como uma punição, ao intuir que não cuidou da mãe como deveria: “— Porém de que vale o esforço, se as faltas que cometemos no passado não as podemos reparar, se dos pecados que por omissão quer por excessos não nos podemos redimir? — pergunta. (LISPECTOR, 1985, p. 63). Uma vez que negou à mãe o total afeto, a personagem se encontra na mesma situação que a sua genitora. Drama coletivo, “castigo do destino”, ou metáfora para o envelhecimento do corpo, a dificuldade de locomoção permeia esses contos. Em “O furto”, a construção da cena permite a visualização de alguém que está preso aos limites físicos de um corpo pouco saudável. O volume do corpo é citado já na primeira fala, quando agoniza nos lençóis amarfanhados. Os olhos que mal se abrem pela manhã, a respiração ofegante, uma tosse aparentemente crônica e as pernas inchadas revelam a má saúde dessa mulher que “afunda” no que deveria ser o seu ambiente de descanso. Absolutamente ninguém aparece para perguntar sobre suas dores. Nem mesmo os hóspedes, que poderiam, dentro de uma coerência de mundo, procurar-lhe os serviços. Apesar de tudo isso, é preciso levantar, superar mais um dia e o problema do livro:

— Meu Deus, como não somos nada, pensou, pela primeira vez aventurando-se por um caminho que nunca fora o dela. Mas deter-se para pensar fazia-lhe mais mal ainda. Então a muito custo, e ainda meio tonta, reatou o impulso de levantar-se. Arrastando os chinelos, primeiro foi ao guarda-roupa onde remexeu demoradamente num monte de coisas desarrumadas, em seguida, com o livro na mão, dirigiu-se para os fundos da casa, abriu a porta de serviço, depois a da lixeira, e jogou-o dentro, batendo a portinhola com violência. (LISPECTOR, 1985, p. 87)

Um ritmo no caminhar é estabelecido. A protagonista tem uma resolução em mente, mas o narrador não nos revela e segue seus passos num movimento de câmera; parece-nos que o efeito desejado é a expectativa e a surpresa quanto ao destino do livro. A lixeira nunca seria a primeira opção, talvez o leitor pensasse numa tentativa de devolução, mesmo que sorrateira como o próprio furto. Durante a narrativa, a consciência da protagonista se autoavalia como honesta, reta, direita; no entanto, para resolver seu conflito, ela opta por extraviar o objeto. O livro a fez pensar demais e isso, em suas circunstâncias, é prejudicial (“Mas deter-se para pensar fazia-lhe mais mal ainda.” Idem, p. 87). Ao constatar a falta de sentido da vida, a personagem se depara com um conflito filosófico mais complexo que a sua própria existência poderia suportar, enveredando por questões ainda mais inquietantes. Não há o que fazer senão livrar-se 174

da motivação, jogando fora a arte que ele contém. É preciso esquecer o mundo plástico, belo, erudito e romântico que o livro representa porque inalcançável. Uma redenção pela devolução do livro é, dessa forma, inútil; o importante é desfazer-se da crise que ele aciona. Daí a rejeição e a diminuição do objeto, agora posto na lixeira. Essa redução do livro à condição de lixo é uma decisão pessoal, uma vez que ela poderia permanecer com ele na bagunça do guarda-roupa, sem qualquer implicação externa dos verdadeiros donos. A “tontura” da protagonista ao sair da cama é uma metáfora para a sua emersão da realidade subjetiva e o retorno à realidade objetiva. O conto mostra que a realidade externa não para em razão das crises de consciência do ser humano. O exterior tem um movimento e uma continuidade e o conto ratifica isso ao mostrar que a protagonista se sente desequilibrada ao tentar acompanhar esse movimento. O monólogo interior é um processo, uma agitação, mas em uma esfera interna, com ritmo e temporalidade diferenciada. Quando a consciência deixa de ser o foco, a personagem precisa se alinhar para seguir o ritmo do mundo de fora, indiferente aos problemas individuais. A realidade fora da personagem flui à sua revelia:

Quando tornou a entrar em casa, por instantes deteve-se abismada em espanto. Custava- lhe abeirar-se da corrente dessa outra realidade que fluía apesar e paralelamente à exacerbação de seus sentimentos. Só então reparou na cozinha mal iluminada, e na cozinheira andando de um canto para outro, indolente e resmungona. Os hóspedes reclamavam a demora em servir o café. Uma súbita ventania agitou as cortinas, derrubou o vaso pousado no parapeito, entornando a água, e penetrando através da janela escancarada fez cair e quebrar o espelho grande da sala. O açougueiro telefonou perguntando se já podia mandar receber a conta da semana passada, e logo a seguir uma pessoa desconhecida telefonou da parte da prima Eulália para dizer que o marido morrera no meio da noite. Pois de repente, o dia levantava âncora e se punha a navegar a todo vapor, a vida retomando o seu ritmo de pequenos e grandes desastres, como a vida é. (LISPECTOR, 1985, p. 87, 88)

O conto mostra como a proporção trágica dos eventos é medida pela subjetividade do indivíduo. De forma geral, o conflito da história se dá pelo furto de um livro sobre o qual não houve denúncias, nem flagrantes. A desordem interna é desencadeada pelo reconhecimento, por parte da personagem, de sua solidão e de sua infelicidade. É um acontecimento de grande impacto para ela, de tal forma que atinge a sua subconsciência. Por outro lado, a dívida do açougueiro, o espelho partido e a morte de um parente são inseridos como parte da vida, estão dentro da normalidade, da rotina da pensão. Essas “pequenas tragédias” não são tão inquietantes quanto o livro, um objeto que ativa a angústia, que leva a consciência a uma avaliação da vida. A lufa-lufa diária, esse barco com a âncora levantada, é uma sucessão de desastres, mas alguns 175

(até os irreversíveis como a morte) não criam uma crise psicológica. Pelo contrário, a protagonista os recebe com a mesma serenidade com que percebe o vaso partido. É relevante notar nesse desfecho que o foco narrativo sai da consciência da personagem e, com base em um sumário, centra-se em narrar o que se passa na cozinha (a cozinheira lenta), na pensão (os hóspedes reclamam) e no mundo, alcançado pelo uso do telefone (o açougueiro sobre a dívida e a desconhecida que liga com notícias fúnebres); no entanto, o ponto de vista dela continua no centro da observação. A perspectiva é a da patroa e da proprietária, a julgar o mau funcionamento da cozinha, a desqualificar a empregada (“indolente” e “resmungona”) e notar o comportamento “reclamão” dos hóspedes, estes já desde o início do conto compreendidos como pessoas sem distinção. Há uma série, uma enumeração de fatos ruins, mas todos são apresentados rapidamente como eventos do cotidiano da personagem, dificuldades de uma realidade prática, relacionada ao trabalho, portanto, completamente contornáveis. É importante frisar que há apenas dois contos de O tigre de bengala nos quais a personagem principal se queixa para si de dificuldades de ordem financeira (esse e “A trágica decisão”). Paradoxalmente, “O furto” é também o único em que a protagonista possui um negócio próprio13. De modo geral, as questões das protagonistas não estão nesse âmbito, mas no campo afetivo, na relação desencontrada com a família, marido e amigos. Quando há uma valorização dos bens materiais, a protagonista sofre terríveis consequências, como no caso de “Sangue no sol”, em que Suzana se exila da vida urbana a fim de que o marido não perca tudo nas mesas de jogo e ele se suicida. Em “O furto”, a personagem feminina tem alguma propriedade, mas se queixa da falta de amigos e amores. Essa insatisfação é então redirecionada tanto para a pensão quanto para aqueles que a frequentam, seus próprios clientes. Os únicos que se destacam nesse universo diminuído, desvalorizado por ela, são os jovens, o distinto casal. Por outro lado, se do ponto de vista dos bens adquiridos essa mulher é de certa maneira privilegiada, ela é uma das poucas personagens elisianas que não possuem uma formação intelectual, artística ou profissional específica. A protagonista de “Por puro desespero” é tradutora; a de “Um dia, uma vida” é atriz; a de “Uma outra temporada no inferno” é jornalista; a de “Confidências” é escritora; a de “Uma nova sensação de realidade” é artista (não se especifica de que tipo) e a protagonista de “A espera” é convidada como pessoa influente para um vernissage, ou seja, são mulheres com algum senso estético ou prática de escrita

13 O estado de pobreza faz sempre parte do passado das protagonistas de O tigre de bengala, com exceção apenas de “A trágica decisão”, em que o passado da protagonista é repleto de bailes, jantares e joias desaparecidas, talvez por ser um tanto quanto “inventado” por ela. 176

profissional. Já a protagonista de “O furto” tem sua vida ligada apenas à resolução dos afazeres domésticos da pensão e do cuidado com os hóspedes, por isso, ela sente que é incapaz de um dia entender as obras de Rafael de Sanzio. Embora com essa limitação, seu questionamento sobre sua existência é tão inquietante quanto das demais personagens. Não há uma falta de compreensão de seu vazio, assim como as personagens “eruditas” são igualmente incapazes de escolher “grandes saídas” para as angústias que as consomem. Todas, independente da formação, estão inconformadas com a vida que levam e têm poucas soluções para isso. O conto “O furto” trabalha com relações antitéticas notórias. De um lado, uma perspectiva interna cheia de culpa, de questões sobre o valor pessoal e a possibilidade de felicidade (por que alguém merece ser feliz e outro não?). De outro, uma realidade externa, com os afazeres do mundo prático, associado ao mundo do pensionato (um mundo que nessa ficção nunca é um ambiente familiar, saudável, mas marcado pelos objetivos individuais, às vezes, mesquinhos de pessoas de caráter duvidoso14). Em “A trágica decisão”, a protagonista é hóspede de uma pensão e vê nesse fato um rebaixamento da sua importância social:

— Porém o que mais me aflige, prosseguiu, é já não poder fazer nada pelas minhas próprias patas. Em tudo e por tudo dependo dela, da dona da pensão. E ela (pela primeira vez os pequeninos e amortecidos olhos da tartaruga iluminaram-se ao brilho do ódio) passa os dias fora. E as noites também. Quando não se ocupa ostensivamente dos outros hóspedes, sempre fazendo-me esperar. Só para me humilhar. Só para ferir- me. (LISPECTOR, 1985, p. 130)

A mulher-tartaruga odeia a dona da pensão, descrevendo-a como uma pessoa pândega (“E as noites também.”) e insensível às suas limitações corporais, embora pareça que ela lança sobre os ombros dessa outra mulher uma responsabilidade mais de cuidadora, em razão da completa dependência, do que uma simples dona de pensão. O fato é que pensões são espaços problemáticos, sendo representados de maneira negativa, como lugares insalubres, impessoais, de trânsito. Em “O furto”, a questão é ainda mais sintomática porque se trata do ponto de vista da proprietária, que rebaixa a si e a sua moradia. A obra de Elisa parece defender, de maneira expressivamente variada, a ideia de que o lugar em que se mora é uma metáfora do homem. Nesse quesito, nenhum outro conto expressa melhor esse tema do que “O relógio”, no qual a protagonista supera seus problemas ao deixar o sobrado das cunhadas e alugar um apartamento. Ainda sobre as antíteses, vimos a relação da pensão com a casa em estilo normando comprada pelo casal jovem, que revelará a fragilidade psicológica da protagonista. Ela que não

14 No romance O dia mais longo de Thereza, a pensão é um lugar de jogatina e prostituição e a protagonista considera um avanço pessoal conseguir alugar um apartamento para si em um hotel. 177

é jovem, não é amada, nem tem os recursos para possuir algo tão belo com jardim e lareira. Num sentido ainda mais abstrato, o livro estabeleceria um contraste entre o belo, a riqueza estética (afinal, o seu conteúdo é a arte plástica renascentista) e econômica, e a vida prática da pensão, com sua cozinha e hóspedes. Não é à toa, portanto, que ao se desafazer do livro, a ventania danifique resquícios da beleza decorativa, como um vaso no parapeito da janela e um espelho da sala. Além disso, a inocência é o oposto da culpa, a mente em ebulição é um contraste para o corpo mórbido. E os tecidos finalizam a construção das cenas: cortinas, roupa, camisa, lençóis, tudo é velho, puído ou desarrumado. Nesse âmbito, há uma identificação entre a personagem e o lugar em que mora: uma pensão velha para uma mulher velha. A compreensão da velhice como uma fase destituída de qualquer possibilidade de enfrentamento faz com que ela não veja razão em mudanças, e se sinta confortável por dar prosseguimento ao já estabelecido. O monólogo interior mostra que, apesar de perturbada, a permanência nesse mundo da pensão (com seus “desastres” diários) é fruto de uma escolha individual. Para o leitor, talvez não pareça a mais lógica, nem a mais otimista e esperançosa, mas é a realizada. Como já temos dito, não há mudanças radicais nas protagonistas de Elisa (com algumas exceções, evidentemente), contudo, se considerarmos o ato de pensar e de decidir um caminho próprio como uma manifestação da alteridade, do amadurecimento pessoal, então, as protagonistas estão sempre modulando grandes ações, ainda que, na superfície, elas não pareçam revolucionárias. Furtar e depois jogar o livro constituem duas atitudes antiéticas, porém, apenas a primeira é colocada pela protagonista como erro. Outro “erro” que ela não menciona é a inveja. Aliás, duas ações cometidas pela personagem podem ser consideradas como desobediência ao decálogo bíblico: o furto (oitavo mandamento) e a cobiça da casa (décimo mandamento): “Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.” (ÊXODO, 20:17). Os discursos religiosos enfatizam a cobiça da mulher como sendo o décimo pecado, no entanto, à luz das relações familiares patriarcais antigas, a mulher era parte da casa, assim como o boi e a serva; por isso, o pecado condenado nesse último mandamento é o desejo de ter a casa do outro, as posses do outro, quer fossem pessoas ou animais. A cobiça é geralmente associada a elementos materiais, como bens, propriedades, etc., mas, no conto, vemos que a protagonista deseja “riquezas” afetivas (um amor ou alguém para compartilhar suas crises, etc.), embora, de fato, suas carências estejam imbricadas. Em razão desses fatores, a protagonista se sente acuada 178

por sua consciência, atormentada por um discurso judaico-cristão. Daí a negação do crime em sonho e em pensamentos. Do ponto de vista da temporalidade, o conto faz jus à caracterização da narrativa introspectiva com uso da onisciência seletiva. Há uma singularidade entre o tempo decorrido no interior da consciência e no mundo externo. Enquanto no mundo externo a cena é elucidada pelo narrador e tem uma duração de minutos, talvez de uma hora ( no pequeno espaço de tempo entre o acordar e o levantar), na interioridade há uma intervalo maior, no qual a digressão nos apresenta a cena da visita do casal, da venda da casa, do roubo do livro, uma sequência importantíssima para a compreensão da protagonista que se mortifica nos lençóis. Essa forma narrativa ocorre em muitos contos, no quais há uma situação inicial, um mergulho na consciência (crise interna) e um retorno. Em “O furto”, essas três fases são bem delimitadas e parecem-nos representar um estilo característico15. Nesse conto, um elemento problematizador faz a protagonista mergulhar em seu universo interior. Uma casa vendida, um livro, um casal, ou todos os elementos de forma interligada, há sempre um ponto de desmoronamento para a personagem. Algumas personagens de Elisa, inclusive, criam técnicas para evitar esses instantes de fragilidade (ponto de arrimo), evitando o pensar sobre si mesma. Veja como a narradora de “Confidências”, a escritora, descreve o medo de sua amiga frente a própria consciência:

— Eu nunca olho o mar. Desta vez disse-o num tom que, se ela tivesse de fazê-lo, teria de defrontar-se com algo mais que a simples e fácil doçura. Seria a destruição de um conceito. Talvez o único que havia formado em toda a sua existência e que lhe dava a sensação de estabilidade. Porque se olhasse o mar, perderia o conhecimento que tinha, e passaria a não mais saber. A não mais construir — nem que essa construção fosse apenas a de sua assaz cultuada doçura de ser. No fundo, temia cair no centro de si. (LISPECTOR, 1985, p. 13)

Em relação ao ponto de vista, o conto se vale do monólogo para expressar a perspectiva interna, expondo as questões centrais que cercam a mente na primeira hora do dia. Para expressar o ambiente da solidão, o texto usa um ponto de vista externo, beirando algumas vezes o uso da câmera. E, por fim, ao tratar do dia a dia da pensão, usa a brevidade do sumário narrativo. É importante reforçar que quase todas as informações do enredo passam pela perspectiva da protagonista, por isso, algumas representações são bastante subjetivas, tal como a sua velhice, já que em nenhum momento ela pensa (ou o narrador menciona) no número da

15 Mesmo em narrativas mais longas, há essa oscilação, de tal forma que é comum uma personagem se reerguer sucessiva vezes para em seguida sucumbir a uma nova crise existencial. 179

própria idade. A construção dessa narrativa se baseia na leitura que a consciência faz de si e do episódio do livro. Assim, a felicidade daquele casal talvez não existisse se ele não fosse admirado pelos olhos da mais profunda carência humana.

3.3 Esposa feliz, marido infeliz: o ponto de vista em “Sangue no sol”

Por fim, espalhou sobre o mármore o veronal restante, e, devagar mas metodicamente, foi engolindo as drágeas uma a uma, até o fim, até que o cansaço... ou era sono? [...] obrigou- a a recostar-se na cama. (Elisa Lispector em “Réquiem”16)

O conto “Sangue no sol” tem como ponto de vista mais relevante a consciência de Suzana, focalizando seus pensamentos momentos antes do suicídio de Afonso, seu marido. Dos textos analisados, esse possui menor extensão, contudo, é o mais substancial em termos de carga dramática por conter um argumento trágico, notavelmente traumático para a protagonista em razão da proximidade entre ela e o suicida. O tema do suicídio é geralmente inserido em O tigre de Bengala a partir da digressão, isto é, pelo uso da memória do protagonista, que retoma fatos relacionados a uma anterior decisão de morte. Em “Por puro desespero”, a paciente narra sua própria tentativa de suicídio; em “A fábula se faz tempo”, um homem pensa em Evangelina, a namorada suicida; em “A trágica decisão”, uma narradora-testemunha lembra a história da mulher que se jogou ao mar (inclusive, a parte do suicídio ela ouvira de terceiros): “Pois uma manhã, bem cedo, contaram- me, foi vista na praia contemplando melancolicamente a imensidão do oceano.” (LISPECTOR, 1985, p. 131). Nesses contos, o suicídio é atualizado pela consciência pensante ou pelo narrador que conta17 (ainda que, nessas focalizações, haja uma forte característica dramática). Por isso, “Sangue no sol” possui um destaque: o suicídio ocorre em cena (embora elíptica), o que o torna especialmente dramático: escutamos o estampido e encontramos, junto com a protagonista, o corpo ensanguentado sobre a cama do casal. Esse recurso permite, entre outras coisas, uma maior aproximação das emoções de Suzana no instante da morte e a

16 LISPECTOR, Elisa. Inventário. Rocco: Rio de Janeiro, 1977, p. 65. 17 O tema do suicídio se faz presente muito mais a partir da problematização do que da consumação, aspecto interessante principalmente se considerarmos o grau de angústia, solidão e desespero das suas personagens. No geral, pensa-se muito sobre o suicídio; de forma simbólica, vemos o suicídio em Elisa como um abismo visitado, contudo, pouco utilizado (lembremos o desfecho do romance O muro de pedras). 180

percepção da aguda desilusão da esposa, tendo em vista o seu precário julgamento quanto à felicidade e ao grau de satisfação do próprio marido. Dessa forma, o conto discute por meio das perspectivas narrativas a ideia de que ninguém acessa de maneira completa, límpida e profunda a interioridade do outro (talvez, nem a própria), por mais íntimo que ele pareça ser. A história trabalha com a simbologia das cores. O amarelo, o dourado é uma ponte metafórica para a alegria, para a vitalidade e esperança, e o rubro, uma representação da morte, do trágico. Como o título sugere, o segundo elemento (o vermelho) contaminará o primeiro (o dourado) significando que um evento trágico transforma radicalmente a existência de uma pessoa, reconfigurando a sua perspectiva em relação ao mundo. A primeira cena transcorre numa sala de estar de uma casa de campo. Por sua construção, é importante que visualizemos o espaço ao ser invadido nas primeiras horas do dia pelos raios solares; a iluminação, portanto, é crucial para a composição da narrativa porque ela remete simbolicamente a uma manhã radiosa e feliz. À medida que adentra, o brilho solar18 confere sentido aos objetos da sala em que se encontra a personagem. Apesar de a narrativa possuir um narrador em terceira pessoa, ela centra-se no ponto de vista de Suzana. Vejamos a abertura:

Suzana abriu de par em par a janela que dava para a plantação de eucaliptos, e a intensa claridade inundou de um jato a sala antes envolta na penumbra, dourando os metais, desferindo uma seta incandescente no espelho, moldando suavemente na parede o espaldar de uma cadeira. De repente todos os objetos se animaram, ganhando em volume e cores. (LISPECTOR, 1985, p. 100)

A ausência de nomeação é uma característica da contística de Elisa. Raras são as histórias em que as personagens femininas (e até masculinas) recebem nomes próprios. Essa lacuna, assim, faz com que a presença da palavra “Suzana” seja digna de nota, principalmente se ocorre na primeira linha do texto. “Suzana” significa lírio, açucena19 e esse sentido pode ser uma referência à adequada adaptação da personagem ao espaço rural, seu ambiente natural de um ponto de vista simbólico. Teria sido esse ambiente, na percepção da esposa, um dos elementos responsáveis pela salvação do seu casamento, que há tempos passara por uma crise conjugal e financeira. Por outro lado, os lírios são considerados flores de forte apelo decorativo, o que conotaria o excesso de zelo de Suzana para com a aparência e a disposição das coisas.

18 Em inglês, a palavra sunshine sintetizaria essa expressão, pois tanto significa raio/luz do sol, como, num sentido menos literal, faz referência ao sentimento da alegria, satisfação, do deleite. (Cf. https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/sunshine) 19 Originou-se a partir do hebraico Shushannah, que, por sua vez, surgiu da palavra shoushan. Disponível em < https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/suzana/>. 181

A narração, em seu início, é conduzida pela voz de um narrador observador. Não há ainda imersão na consciência da esposa, mas uma configuração do ambiente. Nessa parte, três elementos são dignos de nota: primeiro, a abertura das janelas, para a entrada da luz que animará (no sentido de conferir animus, vida) os objetos. Na percepção de Suzana, os objetos são extraordinários: manipuláveis, eles admitem a conformidade do mundo, a noção de que tudo tem o seu devido lugar e pode ser gerido, administrado; segundo, a atualidade na ação de narrar: mesmo sendo aqui um narrador observador, a cena é atual, dando a impressão de que o narrador só tem para enunciar aquilo que acaba de ser feito por Suzana. As informações digressivas partem quase todas do que pensa a protagonista. O último ponto diz respeito à funcionalidade das janelas: elas são símbolos da perspectiva humana, com seu caráter limitante, específico, mutável a depender de onde está posicionada e de quem a usa para olhar. Estabelecido o ambiente exterior, o narrador centra-se nas impressões e nas vivências de Suzana. Ela sente de maneira convicta que a vida está alinhada à semelhança dos móveis. Há uma espécie de transfiguração, uma sensação de incrível bem-estar por ter alcançado aquilo por que sempre lutara: reordenar a realidade, sendo o seu casamento parte do contexto: “De repente também pareceu-lhe que o mundo estava tão arrumado, tudo tão nos devidos lugares, que chegou a experimentar uma estranha sensação de irrealidade” (LISPECTOR, 1985, p. 100). Há, assim, o alcance de uma simetria entre o que está dentro e fora, entre a casa e a vida, perfeição nunca antes experimentada. Até o momento, Suzana tivera apenas o anseio e o seu cotidiano fora feito da procura desse encaixe:

Em contraste com a sua realidade cotidiana, tecida do constante pôr em ordem em gavetas, armários e prateleiras, supervisionar a cozinha e a rouparia — tarefa que se fragmentava em pó e em cinzas, e a ser recomeçada dia a dia com a penosa submissão de quem tivesse de reerguer repetidamente as estacas de uma palafita a cada instante ameaçando ruir, e se tal ocorresse já não poderia dizer meu lar, minha vida — a aparente irrealidade de agora era aureolada com um halo transfigurador, e de tal modo lhe pertencia como se ela tivesse revertido às fontes de sua origem. Era também um pouco como se ela própria tivesse de certo modo contribuído para resultado tão brilhante. (LISPECTOR, 1985, p. 100)

Havia, portanto, uma vontade sobre-humana de organização, de tal modo presente na personagem a ponto de fazer parte de sua identidade. Dessa forma, naquela manhã específica, ela sente-se radiante. A luz que entra pelas janelas confere-lhe a sensação do triunfo sobre os objetos e, de alguma maneira, sobre o mundo, percebido por ela como algo em constate vias de desmoronamento. Veja-se também o uso ambíguo da palavra “brilhante” no final da citação: naquele abrir de janelas, os raios de sol revelam toda a amplitude do esforço em fazer de seu 182

lar algo perfeito. Suzana não está apenas feliz, está extasiada, a julgar pela referência à origem da vida, uma imagem recorrente nos romances de Elisa: a sensação de plenitude associada a um momento originário, como se, ao contemplar a formação do mundo e do indivíduo, fosse possível descobrir o sentido que eles comportam. Em A última porta, um dos romances mais filosóficos de Lispector, Ana procura o amor próprio. Essa busca se inicia em sua penteadeira quando, ao mirar-se, ela percebe a velhice do corpo e sua extrema solidão. No final da trama, a cena é retomada: Ana em frente ao espelho retorna ao início dos tempos (“milênios e milênios”), quando ela não era nem homem nem animal, mas parte da vegetação:

Com gestos lentos e medidos, Ana começou a despir-se mas deteve-se a meio, recordando aquele dia não muito distante em que se desnudara diante do espelho, como agora. Só que então sentira estarrecimento e dor, enquanto que no momento encontrava- se num estado de inteiro desapego de si. E aconteceu que, como se remontasse a uma memória longínqua, de milênios e milênios de ser através das mais variadas formas, réptil, homem, musgo, rocha, estrela, numa corrente encadeada a prolongar-se até ela, brotava-lhe um sentido que se vinha aclarando, aclarando, enquanto ela esperava pacientemente a revelação. Esperava na passividade de uma árvore de raízes fortemente cravada no solo, até que a bênção da chuva ou a dádiva do orvalho viesse vivificá-la e ela pudesse frutificar. E subitamente seus lábios emitiram, como num sopro, a palavra amor (LISPECTOR, 1975, pp. 139 e 140)

Imigrante, órfã após a Segunda Guerra, com um irmão distanciado por conta das circunstâncias da adoção, sem lembranças precisas de sua primeira infância, tampouco dos pais biológicos, Ana de A última porta anseia por achar-se no mundo e sentir “o que é ter raízes”. O romance configura-se como uma jornada de dor e autorreflexão e, perto de seu desfecho, Ana aproxima-se do amor próprio ao transportar-se para um plano, quando todas as coisas (chuva ou orvalho) podiam ser apreendidas como benesses da natureza20. Já em “Sangue no sol”, a referência à construção mítica do universo, à origem, ao gênesis, amplifica a ideia da criação de um mundo por parte de Suzana, como se, naquela manhã em particular, ela contemplasse o que havia criado e constatasse, como Deus fizera, que tudo era bom:

Se Suzana fosse uma criança, provavelmente teria batido palmas de contentamento; se fosse um animalzinho — um gato, um cachorro — teria pulado, rodando sobre si mesma, e rolando no chão de puro prazer instintivo. Mas, não sendo uma coisa nem outra, olhou em torno maravilhada e sorriu a modo grave, como Deus deve ter sorrido ao proferir “Haja luz; e houve luz.” Feito o que, tornou a voltar-se para a janela e aspirou o ar fresco, acre pela proximidade dos pinheiros, e tão excitante que por um momento

20 No primeiro romance, Além da fronteira, o protagonista Sérgio tem um momento de “paz interna” ao fugir de um navio e deitar-se no meio de uma mata. Nesse momento epifânico, há uma sensação de integração à natureza, de dissolução do corpo. (LISPECTOR, 1975, p. 95) 183

chegou a cerrar os olhos para poder suportar a carga de emoção que, afinal, não era por nada, senão pela alegria de respirar, alegria de sentir na pele a carícia da brisa e dos raios quentes do sol. O coração lhe batia num ritmo de tal forma novo como se estivesse a renascer. (LISPECTOR, 1985, p. 101)

Ainda nesse sentido, o elemento trazido para o conto não é o das águas, dos animais, nem das árvores (as outras categorias da criação bíblica), mas o da luz (“Haja luz; e houve luz”). Suzana seria então um arquétipo da figura divina. Ao iluminar a sala, ela contempla a sua obra, ela uma espécie de Deus-criador, de arquiteta, que faz as coisas surgirem e acomodarem-se impecavelmente. Sendo assim, a intertextualidade bíblica contribui para a configuração da personagem e de sua perspectiva do lar: algo arquitetado/criado, próximo do sublime, do divino. Ao volver-se para a parte exterior da casa, lançando o olhar à janela, surge o diálogo com a paisagem campestre. A perspectiva continua sendo o de Suzana: “[...] reabriu os olhos para abarcar a paisagem que se descortinava além dos eucaliptos finos eretos contra o céu azul [...]” (Idem, p. 101). Há um destaque para o sistema sensorial, significativamente aflorado, que opera no que diz respeito à percepção das cores (amarelo, verde, azul, branco, castanho), dos aromas (eucaliptos e pinheiros), do toque (o vento que eriça e o sol que queima a pele) e dos sons (canto dos pássaros e cantochão do regato). Ainda em relação à paisagem, ela nota:

Céu, nuvens, árvores pejadas de canto de pássaros, telhados de ardósia, uma janela verde despontando de uma parede caiada de branco, dois cavalos castanhos pastando mansamente na colina, e a própria sensação de paz que essa visão lhe infundia, tudo isso quisera poder captar em sua essência, destilando e inerindo ao seu ser sem dar nomes, sem deturpar sua intrínseca beleza. (LISPECTOR, 1985, p. 101)

Esses dados físicos da percepção de Suzana são interpretados como sinais de esperança, mas serão desconstruídos quando da morte de Afonso. Nessa questão, duas leituras são levantadas: a primeira é de que Suzana, em seu estado de êxtase, equivocou-se na leitura da paisagem, assim como teria feito com as atitudes do marido. Ou, numa outra leitura, a natureza seria representada como alheia às paixões humanas, não traduzindo o caos ou a felicidade que ronda a personagem. Nesse caso, o idílico operaria como uma antítese do que virá a acontecer. Na sequência, a narrativa aprofunda seu caráter introspectivo. A cena exterior, mais pictórica, passa para a interior, mais dramática, com uma característica da narração em Elisa que é a voz da consciência interagindo, respondendo ou corrigindo, o discurso do narrador (nesses casos, constrói-se a impressão de que o discurso do narrador observador é parte do que pensa a personagem já que ela interage com ele numa espécie de reformulação, como fazemos 184

com o material pensado). A consciência de Suzana, revelando antigos medos, mostra a dinâmica de seu casamento e o seu ponto de vista quanto às atitudes do marido:

Dir-se-ia que há muito não se sentia tão feliz. Passado o momento de êxtase, reabriu os olhos para a paisagem que se descortinava além dos eucaliptos finos eretos contra o céu azul — de um azul límpido, imponderável, como um pensamento apenas concebido. — Não, emendou, mais que isso: sutil, como o mistério da intuição sem palavras.” [...] Decididamente nunca imaginara que um dia chegaria a sentir tamanha plenitude, que a tal ponto se adaptaria à vida rústica do campo, após ter levado vida intensa na cidade. Não assim Afonso, que, desde o dia em que resolvera afastar-se das mesas de jogo e tentar reaver os bens desperdiçados, se mostrara de um valor a toda prova. (LISPECTOR, 1985, pp. 101 e 102)

Através do discurso indireto livre, nos são apresentados o contexto e as expectativas de Suzana em relação à transferência da família para a fazenda. Ela supunha difícil a sua adaptação em razão da “vida intensa na cidade”, o que sugere certa urbanidade da personagem. Já Afonso parece ter se identificado de pronto com a vida do campo, a julgar pelo “valor a toda prova”, indicando um esforço do marido em participar, integrar-se efetivamente nas atividades do novo ambiente assim que nele foi inserido (perspectiva desacreditada pelo desfecho). No trecho acima, vemos pela primeira vez o nome do marido. A palavra “Afonso” significa “pronto para o combate, pessoa de inclinação nobre21. Num primeiro plano, esse nome possui um significado irônico em razão da jogatina do marido e do evidente desperdício das posses do casal. O vício em si seria conflitante com o sentido de nobreza, ou de heroísmo, porém, a partir da leitura geral da obra, fica claro que, ao aceitar a mudança para a fazenda, Afonso abdica de algo que o texto não revela totalmente, embora Suzana também se veja como alguém que fez renúncias em prol de ambos:

Por momentos uma lembrança quase ofuscou seu encantamento de agora — a de quanto relutara em vir morar na fazenda. Mas eles eram jovens, e se amavam. — Ah, quanto pode o amor, suspirou num tom quase a descambar para o melodramático, e a que ela própria não pôde deixar de sorrir. (LISPECTOR, 1985, p. 102)

A ideia de que o casamento exige sacrifícios pessoais faz parte da forma de pensamento de Suzana e, de certa forma, esse postulado romântico irá contribuir para o suicídio de Afonso. Além disso, existem indeterminações e ambiguidades no pensamento quando ela trata das ações e atitudes do marido. No trecho acima, por exemplo, não fica evidente quem relutara em

21 Disponível em < https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/suzana/>.

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transferir-se, se ela ou o marido; vê-se, porém, que Suzana acredita que com amor eles poderiam superar tudo. Essa visão romântica, caricata e ingênua do amor é ridicularizada por ela mesma, ao ponto de fazê-la sorrir. Pelo bom desempenho na fazenda, imagina-se que fora do marido a ideia de mudar-se com a esposa citadina, contudo, mesmo essa leitura pode ser questionada. A verdade é que o ponto de vista da narrativa é sempre o de Suzana, por isso, não se sabe se ele estaria mesmo sendo feliz em sua dedicação:

Confortava-a a ideia de que, contra a sua fraca memória, contra a sua fraca vontade, havia a memória e o querer de Afonso, cada vez mais obstinado, mais metódico. Inteiramente senhor de si. Comoveu-se ao refletir na determinação com que Afonso partia, todas as manhãs, para inspecionar as plantações, tratar de negócios nos povoados da redondeza. Montava o cavalo com energia e a gravidade de um cavaleiro que, protegido por seu escudo e brandindo a sua espada, partisse para uma cruzada heroica. Não menos circunspecto mostrava-se ao transpor, à noite, o umbral do seu pequeno escritório para pôr as contas em dia, faina a que se aplicava com o afinco e a meticulosidade de quem se empenha no cumprimento de um dever impostergável. (LISPECTOR, 1985, p. 102)

Mais uma vez, Suzana interpreta as atitudes de Afonso. A imagem que ela faz do marido é de um homem forte a ponto de compensar as fraquezas dela quanto às determinações do casal. No entanto, o início do conto mostra que o caráter metódico é uma particularidade bem definida da personalidade de Suzana. Sendo assim, ela possivelmente vê no novo comportamento de Afonso uma espécie de conversão ao seu próprio estilo de vida e confunde desespero com aplicação e dedicação. A imagem de Afonso como um herói de capa e espada a vencer os desafios da labuta da fazenda reforça a simbologia de seu nome, mas não deixa de ser uma ilusão de Suzana. Antes, um homem de vício incontrolável, que dissipava os bens nas mesas de jogo, Afonso agora é descrito como um exemplo na gerência, no trato com os clientes, na organização das contas, etc. Enfim, a fazenda parece ter cumprido a sua função: “Afinal, tudo acaba se arranjando. Tudo termina bem.” (Idem, 1985, p. 101) Parece, contudo, que detalhes nessa perspectiva sugestionam uma outra realidade. Quando o suicídio desfaz a “auréola cavalheiresca” de Afonso, podem-se entender as partidas para povoados vizinhos como um desejo de distanciamento, assim como o seu afinco em permanecer no escritório como um forte indício de isolamento. Além disso, entabular as contas da fazenda (terão existido de fato?) poderia ser uma tentativa de organizar as finanças para a mulher (um dever impostergável), como uma preparação para o pós-morte. Portanto, o que Suzana percebe como abnegação, gravidade e hombridade pode ser interpretado como fuga, isolamento e tristeza (ar “circunspecto”), ou seja, o trabalho excessivo era um indício da solidão e da infelicidade de Afonso. 186

Salienta-se que, em nenhuma parte do conto, vemos o ponto de vista dele sem que o de Suzana apareça como filtro, o que problematiza uma tentativa de compreensão da realidade do marido. Não há diálogos digressivos que possam ser restaurados através da consciência dela, nem informações, mesmo fragmentos, do discurso dele em relação às condições antigas e novas do casamento. O silenciamento da perspectiva de Afonso proporciona um efeito importante para o texto, sendo responsável por mostrar o amplo retraimento da personagem. Além disso, nos coloca em pé de igualdade com Suzana em termos de ignorância. Esse nivelamento protagonista/leitor terá impacto na surpresa final da história, posto que Suzana nos apresenta a figura de um homem forte, abnegado, cavalheiresco, mas essa imagem se estilhaça. Dessa forma, não temos acesso à crise pessoal de Afonso que, por meio da análise, acreditamos existir. A retomada digressiva, incluindo a causa das mudanças cidade/fazenda e o comportamento anterior de Afonso, é seguida de um novo vislumbre da paisagem exterior através da janela e, mais uma vez, o embevecimento em relação ao sol.

E num anseio de prazer renovado, ergueu o olhar acima do arvoredo e encarou o sol pairando sobre a colina, um sol grande, radioso, mas tão radioso que, mesmo após haver cerrado as pálpebras, ele se multiplicava na sua retina em mil sóis ofuscantes, como se tivesse havido uma explosão no sol e essa explosão se tivesse comunicado a ela a ponto de causar-lhe uma espécie de vertigem. (LISPECTOR, 1985, pp. 102,103)

A fixação de Suzana pelo sol é parte estruturante do conto. De acordo com a simbologia de muitas religiões, crenças e rituais, o sol simboliza a força vital, a fonte de energia, a celebração da origem; refere-se também ao infinito e simboliza o princípio da criação, a origem, o divino (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2007, pp. 836-841). Por fim, e o mais importante: o sol representa em muitas culturas o símbolo masculino dos astros. Nesse conto, o sol é uma representação da alegria de Suzana, alegria associada à figura do marido. No momento em que os raios atingem seu corpo, sua pele, a experiência da felicidade torna-se plena, sensorial, táctil. Um outro elemento pode ser notado no trecho acima: uma prolepse (uma explosão) que remete à uma destruição, remetendo ao tiro que em breve destruiria essa plenitude.

— Sol é calor, é luz, sei disso, pensou, querendo conter-se, mas o de hoje é diferente. É sol-SOL, quase gritou, num deslumbramento de criança que pela primeira vez avista o mar até então inimaginável. Porque só a imensidão-mar é comparável ao deslumbramento-sol, como visto por Suzana naquela manhã de tal forma tranquila, e a que o cantochão do regato deslizando sobre as pedras ao lado do alpendre emprestava um sentido de continuidade, continuidade do que se prolonga, do que é duradouro, infinitamente, como o próprio infinito, sem antes nem depois, sem começo nem fim, como o espaço, como o tempo, como... (LISPECTOR, 1985, p. 103)

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A leitura do que é o sol e o que ele simboliza nesse exato momento é balizada pelo sentimento de Suzana. Uma vez que se sente otimista em relação ao comportamento atual do marido, ela o considera deslumbrante, caloroso. Os sons que escuta trazem a sensação de paz e tranquilidade, inclusive, com aquele mesmo eco romântico, a julgar pelo barulho da água sobre as pedras do riacho e pela ideia de continuidade, reafirmada pela repetição do canto do riacho e a enganosa impressão de infinitude. O desfecho do conto nos mostrará uma outra versão desse sol e ele começa justamente após essa mirada de Suzana ao “sol-SOL” como escreve Elisa:

De súbito ecoou o estampido de uma arma de fogo nos fundos da casa. Então, por uma fração de segundo — ou teria sido uma eternidade? — o tempo parou, o sol se congelou, os ramos dos eucaliptos se inteiriçaram, o murmúrio do arroio tornou-se inaudível. O coração de Suzana ficou suspenso bem entre um pulsar e outro. (LISPECTOR, 1985, p. 103)

O barulho do tiro é de imediato identificado por Suzana; a narrativa não traduz dúvidas quanto a esse reconhecimento (seria possível afirmar haver certa expectativa da personagem quanto a essa ação). Suzana escuta o estampido e de imediato questiona a realidade que a circunda como se suas convicções acerca do estabelecimento das coisas não fossem assim tão definitivas. Com o tiro, o seu mundo apaga-se: o sol congela, os galhos petrificam, o arroio para de cantar, ou seja, o evento bloqueia ou modifica a parte sensorial de Suzana. Note-se a questão da representação do tempo: há uma suspensão das ações. A natureza, antes contínua e intermitente, torna-se fixa; até mesmo o coração de Suzana é retratado em sua paralisia de medo. O tiro é um fato, portanto, que divide a existência da protagonista. Mais uma vez o ponto de vista de Suzana constrói a realidade, levando a natureza a responder ao barulho que vem dos fundos da casa. Há a bonita personificação dos ramos de eucaliptos, que se retesam ao ouvir o som trágico. Suzana parece saber do que se trata e transfere seu desespero para o movimento das árvores, assim, o comportamento da paisagem é uma representação de sua perspectiva.

Com a vista escurecida, o andar pesado, empreendeu enorme esforço sobre si e encaminhou-se na direção em que ouvira o tiro. Abriu a porta do quarto, e foi quanto pode. Um fio de sangue escorria da fronte de Afonso, prolongando-se travesseiro abaixo. Em pouco tempo ela só via sangue. (LISPECTOR, 1985, p. 103)

Após o tiro, há uma mudança na cena: Suzana precisa constatar o que já sabia e caminha pela sala. O ponto de vista no trecho acima é mais descritivo por parte do narrador, acompanhando o estado em que Suzana se dirige ao quarto. Ao mencionar a abertura da porta, porém, o ponto de vista é o da esposa e de como ela, em estado de choque, visualiza o corpo 188

sobre a cama. Há um fio de sangue que se prolonga até o travesseiro, mas pouca menção à sua quantidade, apesar disso, esse sangue toma toda a visão de Suzana, que passa, nesse momento, a ver em vermelho. Esse conto expressa a forma como Suzana mostra a sua individualidade a partir dos sentidos táteis, sonoros e visuais. O mundo de Suzana naquela manhã é organizado, limpo, brilhoso, ensolarado. Do lado de fora, os riachos cantam sua felicidade e ela sente que, de alguma maneira, fez parte da criação desse cenário bucólico. A morte de Afonso é, de uma forma bastante atroz, uma maneira de desfazer os fios da vaidade de Suzana. O mundo perfeito existia somente em seus olhos e o suicídio revelará essa verdade de modo simbólico. O corpo ensanguentado de Afonso age na desconstrução do seu modo de ver o mundo, transformando o dourado feliz em vermelho trágico:

Parada como estava, assim permaneceu, sem querer emitir um som, parecendo que toda a sua vitalidade se concentrava no sentido da visão. Foi desse modo que, antes mesmo de tentar compreender, antes de sofrer, olhou o sol que se avistava pela janela aberta. E havia sangue no sol. Sangue escorrendo em raios vermelhos que tingiam de rubro o céu há pouco de um azul evanescente. Pois, antes ainda de ter chegado ao quarto, recordaria mais tarde, ela sabia. Sabia que ele havia matado a vida, porque subitamente a natureza inteira fora conflagrada. (LISPECTOR, 1985, p.103)

No desfecho do conto, a janela retorna como ponte para a apreensão do mundo exterior. Agora, o sol está “contaminado” pela morte, um sentido contido no título da história em forma de prolepse, e cuja aliteração expressa uma ideia de fusão. “Sangue no sol” sugere, já no primeiro sintagma do texto, que há ou haverá uma mácula no poderoso sol de Suzana. Nas suas últimas linhas, há uma espécie de esclarecimento: o narrador traz uma leitura de Suzana quanto ao evento daquele dia: ela sabia que Afonso havia se matado pelo modo como a natureza reagiu, sendo assim, como ela mesma reagiu ao ato. Assim, a reação instantânea da natureza, incendiada, destruída, foi também uma prolepse do que ela encontraria em seu quarto. Sempre quando comparada a outra escritora, Elisa Lispector é associada a Katherine Mansfield, principalmente por semelhanças entre “Sangue no sol” e o conto “Êxtase”22 (“Bliss”, no original). No texto da escritora neozelandesa, uma mulher chamada Bertha encontra-se extremamente feliz por organizar um evento social em sua casa, no qual estaria presente uma nova amiga, Srta. Fulton. Tudo parece perfeito: os convidados, a recepção, a natureza em volta

22 MANSFIELD, Katherine. 15 contos escolhidos de Katherine Mansfield. Seleção Flora Pinheiro; tradução Mônica Maia. Rio de Janeiro: Record, 2016

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da sua casa bonita de classe média. Todos os arranjos decorativos e sociais podem ser creditados, de alguma forma, ao perfil da protagonista, cujo cuidado com os detalhes chega ao ponto de combinar a cor das uvas com os objetos da sala de jantar: “Preciso ter algumas em tom púrpura para que a mesa combine com o tapete.” (MANSFIELD, 2006, p. 12). Há, porém, no decorrer da trama, uma rusga nessa bem-aventurança, pois Bertha pressente entre seu marido e a Srta. Fulton uma antipatia mútua:

Pela maneira como ele [Harry] ficou de pé diante dela [Srta. Fulton] e como balançava a caixa de prata dizendo bruscamente: “Egípcios? Turcos? Da Virgínia? Todos estão misturados”, Bertha percebeu que ela não só o entediava; ele realmente não gostava dela. E pela maneira que a Srta. Fulton disse: “Não, obrigada, não vou fumar”, sentiu o mesmo, e estava ofendida. (MANSFIELD, 2006, p. 24)

Esse dado não prejudica a felicidade “saltitante” de Bertha em relação à recepção que organiza para os seus amigos (para ela, os melhores de Londres), mas a faz cogitar se haveria uma forma de unir o esposo e a nova amiga. O desfecho do conto, porém, mudará essa percepção: na despedida dos convidados, Bertha ouve o marido e Srta. Fulton trocando juras de amor, carícias, enquanto marcam um encontro para o dia seguinte. A semelhança entre as narrativas está na maneira como suas protagonistas saem de um estado para outro em fração de segundos. Não há preparação, nem misericórdia, elas caem vertiginosamente em desamparo. Em ambas, há leituras completamente equivocadas da realidade e esse equívoco torna a decepção mais aguda. Em “Êxtase”, a esposa vê indiferença entre pessoas de sua estima quando, de fato, é traída pela aproximação romântica delas. Em “Sangue no sol”, Suzana considera o mundo em perfeito arranjo, o marido satisfeito, a fazenda sendo bem gerida, mas, na verdade, Afonso escondia frustrações, dado revelado pela análise da consciência de Suzana, assim como pelo ato suicida. De uma maneira paradoxal, é com o suicídio que Afonso faz jus ao seu nome, pois, por meio dele, a personagem se liberta de uma vida de aparente felicidade, expondo a verdade para Suzana. Além disso, mesmo criando uma dor profunda na protagonista, em parte alguma do texto o marido é delineado como uma pessoa covarde ou que tenha fraquejado de alguma forma. Apesar das similaridades, “Êxtase” e “Sangue no sol” se diferenciam quanto ao ponto de vista. Em Mansfield, Bertha é um filtro para a percepção dos fatos, de tal forma que, apenas numa segunda leitura, somos capazes de notar elementos poderiam sugestionar a traição de Harry, como seu atraso e sua chegada quase concomitante com a da Srta. Fulton. Não há, porém, uma reflexão interior, mais problemática como a que se tem em “Sangue de sol”. 190

Os contos têm objetivos e estéticas diferentes: a felicidade de Bertha é retratada como uma alegria adolescente. Ela sente vontade de dançar, sapatear, pois está certa de seu sucesso; a protagonista desliza de uma cena a outra sem se deixar perturbar pelos problemas do dia a dia, tampouco o narrador se prende a eles (como exemplo, temos a falta de entendimento entre ela e a babá, o distanciamento de Harry com a própria filha e o receio de Bertha em refletir sobre o nível de intimidade que possui com o marido, etc.). Em outras palavras, a sensação de êxtase faz com que Bertha borboleteie por situações cotidianas até ser atingida pela infidelidade de Harry e a Srta. Fulton. Esse não-aprofundamento da análise de suas relações pessoais é, na verdade, a maneira com que o conto sugestiona a falta de algo mais complexo, profundo, mais poético na vida de Bertha, uma carência que ela anseia suprir por meio da amizade com a excêntrica Srta. Fulton, o que, sabemos, se mostra uma terrível decepção. A ausência dessa verticalização é ainda uma referência à superficialidade de Bertha e da sua classe social, demonstrada a partir dos diálogos entre o casal anfitrião e os seus convidados. Em “Sangue no sol” o que temos é o ponto de vista de Suzana em um dia que aparenta ser de glória e bem-aventurança. Há um sentimento de felicidade, de um futuro extraordinário, no entanto, existe um pesar em torno de um passado difícil, uma nódoa na história do casal. Esse passado é lembrado por Suzana como uma experiência crucial, um divisor de águas. Segundo Erich Auerbach (2015), uma característica do monólogo interior é a retomada das sensações do passado por algo que está em cena no presente, como alguém que lembra da infância quando sente o cheiro de seu bolo predileto. Os fatos não estão apenas no passado ou no presente, eles, de alguma maneira, se perenizam. São as experiências frequentemente retomadas, revividas e ressignificadas pela consciência, o que dá ao acontecimento o que o crítico chama de “a simbólica sempiternidade do acontecimento fixado na consciência rememorante” (AUERBACH, 2015, p. 478). Em “Sangue no sol”, a própria felicidade de Suzana faz brotar as dores antigas do casamento, o que não acontece em “Bliss”, no qual não há esse aproveitamento digressivo e cuja trama caminha para frente como se a personagem temesse pensar/problematizar suas relações pessoais. Diferente de “Êxtase”, o conto de Elisa possui uma economia de cenas, no caso três, considerando a consciência de Suzana como uma cena paralela a que vemos na sala de estar da fazenda. A outra é a do quarto, um espaço que primeiro surge de forma elíptica através do estopim. A opção de Elisa pela elipse lembra recursos dramáticos do cinema e do teatro, usados 191

para a criação de um grau intenso de expectativa e para evitar chocar o espectador com representações de violência23. Esta escolha de cena é específica para “Sangue no sol” porque, em outros textos, Elisa aborda o suicídio a partir de cenas significativamente diretas. No conto “Réquiem”, presente em Inventário, uma atriz rememora seus dias de glória, quando era a artista principal de um teatro parisiense chamado Lapin Blanc. O monólogo é acompanhado pela ingestão, drágea a drágea, do remédio que a matará. É um conto de uma dramaticidade ímpar e de certo caráter irônico metalinguístico, tendo em vista que a personagem se sente livre na morte justamente pelo abandono da atuação diária (ela que sempre desejara ser uma grande atriz) como esposa, como viúva, como mulher e como atriz. Enquanto ela pensa, assistimos ao seu corpo sucumbir ante a química farmacêutica:

— Aliás, tudo é tão indefinido, tão difícil de entender, de concatenar, pensou, erguendo ligeiramente a cabeça para um último gole dágua. E de repente teve um vislumbre de algo que diria ser de compreensão: a de haver passado a existência inteira num estado de inconsciente letargia, como uma sonâmbula que se movimentasse, agisse, falasse, mas sem deitar raízes, nem ramas, sempre fugindo à realidade. Alheando-se da vida verdadeira. Isso intuía bem, embora se estivesse sentindo como a cair vertiginosamente para dentro de si mesma. E diante do que lhe parecia agora ser a verdade maior, dir-se-ia haver-se apiedado de si própria, porque uma lágrima, uma só, aflorou-lhe num dos olhos e escorreu lentamente em direção à têmpora. E ela teve uma última e grata sensação, embora cada vez mais leve e diluída: a de compreender de que não mais precisaria simular. (LISPECTOR, 1977, p. 65)

Essa cena é substancialmente bem construída, com destaque para a representação da falência do corpo no momento em que a mente tem um derradeiro momento de esclarecimento epifânico. A lágrima que escorre pelo rosto, um clichê dramático, é a última parte de si que se move. É uma bela imagem, embora (ou talvez, justamente por isso) seja a mimetização de um ato de extremo desespero: uma mulher que, após fazer um balanço mental da sua vida, não vê porque continuar e se mata num muquifo, um quarto sujo de hotel. Contudo, em um conto como esse, o ponto de vista é o do suicida, conhecemos sua história, suas motivações, o que não acontece em “Sangue no sol”. De uma forma intencional, Elisa excluiu definitivamente o que pensava Afonso sobre a fazenda, as dívidas, o casamento e Suzana, e esse desconhecer é

23 Essa cena elíptica lembra-nos a peça A gaivota, de Anton Tchekhov, na qual a personagem Trepliov comete suicídio. No palco, a sua mãe Arkádina escuta um estouro e fica completamente transtornada, uma vez que o filho já havia tentado o suicídio em outro episódio da obra; as outras personagens vão até o escritório e afirmam que se trata da explosão de um objeto qualquer, mas o leitor acredita mais na expectativa da mãe. In: TCHEKHOV, Anton. A gaivota. São Paulo: Cosac Naify, 2014. 192

tragicamente irreversível. A protagonista, ainda que titubeando em alguns momentos, considerava haver salvo a todos e, por isso, o seu desespero. Traições pelo abandono atingem as protagonistas de O tigre de Bengala, em especial, as que são casadas. Em “Amor”, a protagonista se isola na fazenda com o objetivo de ter o marido somente para si; ela ensaia um melhoramento na relação marital por meio do afastamento na fazenda, contudo, o cônjuge foge sem qualquer explicação. Em “Sangue no sol”, a fuga se faz pela morte, abandono definitivo, e ambas as partes sofrem as consequências do retiro, porém, se distanciam de fato pela ausência de diálogo. O monólogo em Elisa não é, dessa forma, um sintoma da solidão, mas da dificuldade que o ser humano tem de estabelecer uma verdadeira comunicação com seus pares. Quando as personagens conversam, não passam da lâmina da água dos sentimentos, mesmo aquelas que estão ligadas pelo casamento, um tipo de relacionamento pessoal que pressupõe algum nível de intimidade. Talvez poucas escritoras solteiras, quase celibatárias, tenham escrito tanto sobre o casamento quanto Elisa Lispector. Com exceção de Constância, a protagonista de Ronda solitária, e de si mesma em No exílio, livro autoficcional, todas as suas protagonistas romanescas foram casadas. Mais do que isso: por vezes a busca pela compreensão da relação entre marido e mulher é o fio condutor do livro, como se vê em Corpo a corpo e em boa parte de A última porta. Com a análise de O tigre de Bengala, entendemos ser o casamento um elemento incapaz de fazer uma personagem plena, homem ou mulher. As personagens femininas solteiras são solitárias, inseguras e depressivas (a exemplo daquela de “O furto”), da mesma forma são as que estão casadas. Dos vinte e dois contos da antologia, seis histórias tratam de mulheres que foram/estão casadas e somente no conto “O relógio” parece ter havido um relacionamento que se possa dizer satisfatório, pelo menos é assim que a viúva rememora. Apesar disso, ela lembra com angústia as inúmeras vezes em que olhou para os fundos da casa em que morava com as cunhadas e desejou fugir: “E umas poucas vezes bem que fez as suas incursões mato adentro, mas o terreno inculto que percorria prolongava-se inalterável e não conduzia a lugar nenhum.” (LISPECTOR, 1985, p. 31). A ideia de um marido (mesmo um bom marido) como elemento imprescindível e suficiente para a felicidade é questionada em toda a ficção de Elisa. Em “A partida”, a protagonista vive um péssimo casamento. Brigas, humilhações e traição afetam a mulher, que junta os pertences para partir, mas na hora h pensa:

— Agora passo a chave na porta, pego um táxi que me leve à estação rodoviária, tomarei o primeiro ônibus no qual haja um lugar vago, a paisagem verde, depois de atravessar o casario cinzento dos subúrbios, me lavará os olhos, minha mente se dilatará ao desdobramento de montanhas e vales, o azul do céu varrerá o negror que embota a 193

minha alma, e por um tempo, hoje-eternidade, terei auroras, meios-dias, e crepúsculos tão vastos e profundos, com tamanho silêncio como jamais os tive, como... como se eu jamais tivesse nascido. Se eu não tivesse nascido. (LISPECTOR, 1985, p. 31)

Pelo que se constata, a felicidade está em não nascer. Não adianta fugir, esconder-se, nublar a vista com uma bonita paisagem e esquecer o que ficaria para trás. Sempre há a possibilidade de sofrimento em quem vive. Com ou sem amante, casada, solteira, viúva, o estado civil da personagem é cambiável, mas a angústia permanente. Suzana em “Sangue no sol” descobrirá de maneira dolorosa ser incapaz de atenuar os problemas do marido Afonso, embora ele ocupe os seus pensamentos do início ao fim da história. O monólogo interior de Suzana em “Sangue no sol” tem uma conotação trágica e irônica. Se estabelece a partir de um sentimento de esperança, contudo, ele se contrapõe ao desfecho de forma tão veemente que desestabiliza as informações que circulam pela mente da personagem, afinal, sua leitura pode estar completamente equivocada: Afonso não era feliz na fazenda, talvez já não o fosse na cidade. Dessa forma, o conto de Elisa mostra a mente humana como uma fonte de equívocos com consequências irremediáveis. Quando a consciência se engana, uma ação exterior permite a revelação da verdade ou de parte dela, daí advém o trágico. Suzana considerou que a sua perspectiva solar sobre o casamento era a realidade, mas Afonso revelou-lhe o erro, colocando sangue no sol.

3.4 Velhice, morte e sonho no monólogo de “A agonia de viver”

Não, não atinava com o sentido e a finalidade de sua existência, mas nem por isso ia ter o despudor de mostrar os sentimentos. E nesse exercício diário e já não tão antigo de autocontrole pelo menos na aparência, começou a pintar a face. (Elisa Lispector em “Um dia, uma vida”)

A história de “A agonia de viver” é uma amostra da ficção de Elisa, na qual as protagonistas são mulheres idosas, mães, sem uma tarefa ocupacional bem definida, a exemplo da protagonista do romance A última porta. O conto é um dos mais longos do livro O tigre de Bengala e assemelha-se, em termos temáticos, ao conto “Um dia, uma vida”, por discutir a senilidade, a juventude (como contraponto), a maternidade, a solidão, a (in)existência de Deus, a morte, o destino, etc. Do ponto de vista da estrutura narrativa, “A agonia de viver” aproxima- 194

se dos textos que concentram reflexões sobre o aproveitamento da vida e configuram-se como apreciações do tempo vivido, como um “balanço” da vida ou de parte significativa dela. Além disso, apresentam enredos mínimos, com protagonistas praticamente imóveis durante a maioria das cenas. Fariam parte desse quadro os contos “Exorcizando lembranças”, “Uma nova sensação de realidade” e, o já analisado, “O furto”. Servindo como uma prolepse, o título é uma pista para o entendimento do conto. Trata- se de um monólogo permeado pelo desespero de viver: na véspera dos setenta anos, a protagonista questiona o “privilégio” de arrastar-se por seu apartamento sem o apoio de família, filhos ou empregados. Ela questiona o sentido da vida, porém, não a partir do medo da morte (até certo ponto desejada), mas da verificação de que é ingrato viver tempo demais sob circunstâncias negativas. Assim, o que atormenta a personagem são os sucessivos dias insossos, solitários, cheios de dores físicas, ressentimentos vários e a sensação de incapacidade para alterar o destino próprio e o dos outros, inclusive, do único filho. Há, portanto, um forte pessimismo a percorrer a consciência da personagem de quem não sabemos o nome24. No entanto, de forma paradoxal, o seu subconsciente é significativamente esperançoso e isso tornará o desfecho do conto inesperado. Vejamos a abertura do texto:

Todas as noites, nos últimos meses, ao deitar-se, acalentava o secreto desejo de não mais acordar. Seria uma forma de simplificar tudo. Morrer enquanto estivesse dormindo pareceu-lhe, desde que concebeu a ideia, a maior graça que poderia alcançar. No fundo, horrorizava-se um pouco à perspectiva de o cadáver só ser descoberto dias, semanas, ou sabe-se lá quantos meses após. Mas esse problema não seria mais seu. (LISPECTOR, 1985, p. 134)

A história começa com um breve sumário narrativo, contextualizando a protagonista em sua relação com o sono noturno desde certo tempo (nos últimos meses) e a expectativa de morrer enquanto dorme. Embora essa voz narrativa apresente um certo distanciamento (como narrador observador, isso é próprio de sua performance), percebe-se que sua função é exprimir o modo como a mulher compreende esse processo de adormecimento. O desejo de morrer enquanto dorme não é incomum às personagens de Elisa, principalmente aquelas que aparentemente perderam qualquer residual de felicidade. Morrer assim é uma esperança: a inconsciência possibilitaria a partida de uma vida medíocre sem o temido enfrentamento final.

24 Não há nomes próprios de quaisquer personagens nessa história (amiga, nora, filho, vidente, etc.), uma característica possivelmente particular do monólogo em Elisa: a não necessidade de pensar a pessoa a partir de seu nome, mas das relações simbólicas que ela estabelece com a protagonista (como mencionamos no tópico anterior, os nomes Suzana e Afonso em “Sangue no Sol” são exceções). 195

Além disso, evitaria que a angústia matinal fosse experimentada mais uma vez, como fora ao longo dos anos. Ainda sobre a morte durante o sono, a imagem que a personagem constrói de seu próprio cadáver em estado avançado de putrefação enoja a si mesma, mas ela procura sacudi-la, transferindo a terrível situação para quem a descobrisse sobre a cama, num inconsciente desejo de punição para os que a abandonaram: “Mas esse problema não seria mais seu”, diz o narrador ao transmitir seu pensamento. Esse sumário prepara-nos para a cena principal: a protagonista abre os olhos e a cena em sua consciência começa a delinear-se:

Foi, pois, com desalento que abriu os olhos para mais um longo dia, reclusa no apartamento grande, quieto, os móveis velhos cobertos de poeira, lá fora a manhã cinzenta, uma chuva miúda caindo sem parar. Para situar-se no tempo, procurou lembrar que data era, e o desgosto fez com que as comissuras em torno da boca se aprofundassem um pouco mais. Amanhã faria setenta anos, e setenta anos, tinha lido em dados estatísticos, era o tempo médio da vida humana. Já era, então, comprido o seu “tempo médio”. E depois? Ou melhor, haverá depois? Mas isso pouco lhe importava. (LISPECTOR, 1985, p. 134) É uma outra manhã e a protagonista não escapara da vida. Deitada na cama, a senhora situa-se no tempo: um erro, ela supõe, pois é a véspera de seu aniversário e isso lhe proporciona profundo desgosto. Longe dos dias de festas com bolo e refrigerante, a simples lembrança da data proporciona uma reação negativa em seu corpo, intensificando a dor na boca causada pelas feridas bucais. Esse detalhe é importante para a composição da personagem, porque confirma a sua condição de velhice abandonada, uma vez que tais comissuras são recorrentes em idosos que se alimentam de forma precária, como a própria história mostrará. Um outro ponto a ser notado é a construção, embora ligeira, do que se passa na cena externa, dentro e fora do apartamento: uma chuva fina, constante, em cor cinza, ajuda a isolar a personagem que tem dificuldades em enfrentar o mundo exterior. O apartamento grande (a protagonista não é pobre, aliás em O tigre de Bengala raramente alguém é), em visível estado de abandono, com móveis empoeirados e velhos, é uma metonímia de sua dona. Ainda sobre esse trecho, em que a personagem começa a ser “mostrada” em cena, ganha destaque o fato de sua única ação externa ser a de abrir os olhos, ou seja, o enredo, no que diz respeito ao conjunto de ações da personagem, é minimalista e permanecerá assim por quase toda a história. O que a senhora faz, de fato, é pensar: à angústia trazida pelo seu aniversário, somam- se os questionamentos existenciais e seu pensamento é atravessado por eles, aliás, toda a consciência da protagonista é conduzida por indagações: “Qual o sentido da vida? Do que adianta isto ou aquilo? Com que se constrói o tempo? Por que lembro disso? Que fiz da minha vida?” são frases incorporadas ao longo texto, sendo a última pensada várias vezes. A protagonista se martiriza ao compreender que fez um mau uso da existência. Ao que parece, as 196

dúvidas filosóficas sempre fizeram parte do seu modo de viver, contudo, ganharam corpo em seu estado atual:

Verdade que à antiga indagação sem resposta que sempre a deixara perplexa “De que havia adiantado isso?”, aludindo, evidentemente ao viver, sobrepunham-se muitas interrogações de outra ordem, sobretudo, depois de ter visto escrita não se lembrava mais onde a frase To be alive, e no momento havê-la achado bonita, e considerado tão válida, como se a coisa mais importante fosse estar viva. — Mas qual o sentido de estar viva, também já me perguntei tantas vezes, ó Deus, diante do sofrimento que se engolfava no meu coração a cada contato humano feito de agressão ou indiferença, e a cada aridez de prolongada solidão, que igualmente doía? E como doía! Porque era literalmente dor o que tinha, como se o coração estivesse entumecido e ameaçando rebentar. (LISPECTOR, 1985, pp. 134 e135)

Lentamente, o narrador cede lugar ao pensamento da protagonista a ponto de as partes com travessão (expressão direta do pensamento nesse caso) serem uma fluida continuação dos parágrafos em discurso indireto livre. Nessa passagem, revela-se que um slogan havia sintetizado a perspectiva de vida dessa mulher, o que é bastante curioso. Como forma de linguagem simplificada e massificada, um slogan geralmente tem pouco a oferecer de um ponto de vista existencial e humano, pois está associado a uma relação mercadológica. Contudo, naquele momento, ela fora atingida pela “verdade” e pela beleza dessa mensagem, a de que o mais importante é estar vivo não importa como. Ao chegar à velhice, o slogan se empobrece. As condições da velhice relativizam o sentido de viver “— Mas qual o sentido de estar viva [...]” (LISPECTOR, 1985, p. 135). O slogan perde a força, como qualquer texto prático ao se distanciar do seu contexto de criação. Se, na juventude, a simples ideia de viver fora vendida como uma dádiva, a velhice e suas circunstâncias carnavalizaram essa mensagem e esvaziaram o seu sentido. Em retrospectiva, a protagonista sente que fora continuadamente ferida, machucada pelos que a cercaram, e essa dor é tão profunda que se transforma em dor física: o coração inflando ameaçava rebentar.

No entanto, diante da indagação que agora formulo: que fizeste da tua vida? respondo: o meu erro maior talvez tenha sido a gravidade com que sempre vivi, gravidade vã e ardilosa de ter sempre querido aprofundar até as raízes — as raízes de tudo: do ser, da existência, de Deus. Até de Deus, Deus meu. Pois neste momento, com toda a minha fé, e num vero ato de contrição, digo: Senhor, sempre tentei, mas todas as minhas tentativas foram frustradas. Em todos os caminhos, o malogro acompanhou-me os passos como um fadário ruim. Porque para tudo é preciso ter estrela, Deus meu, até para carregar o pesado fardo da existência humana transitória e sem significância, morredouros que somos e destinados a sermos reduzidos a pó e ao esquecimento pelos séculos dos séculos, até o infinito sem fim. (LISPECTOR, 1985, p. 135)

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Apesar de mencionar um slogan como sendo uma influência para a sua cosmovisão, a protagonista considera-se “grave” demais, o que é até certo ponto contraditório. Ela se vê como uma mulher de perspectiva austera, de exame crítico e constante, inclusive, daquilo que parte da sociedade considera inquestionável, como o divino (“Até de Deus”). Descer até as raízes (lembremos o conto “Sangue no sol”) é procurar o sentido absoluto de tudo, uma ação exaustiva e geralmente improfícua. Nessa parte do conto, o monólogo deixa seu caráter reflexivo, transformando-se em súplica direcionada para Deus, esse que fora tantas vezes examinado, num estilo próximo ao dos salmos da personagem bíblica Davi, em seus momentos de perturbação: “Senhor, sempre tentei, mas todas as minhas tentativas foram frustradas” (Idem, p. 135). Em síntese, a protagonista considera ter feito esforços para encontrar uma outra atitude diante da vida e atribui à falta de sorte o caminho de insucesso trilhado. Um fado ruim, a ausência de estrela a perseguiram; a luz, uma sorte aleatória, porém, divina, teriam lhe faltado. Sua perspectiva atual se expressa, em forma de mensagem ao divino, através de um aparente remorso, que soa mais como uma tentativa de diminuir sua parcela de culpa. Note-se a linguagem hiperbólica (e, por isso, esteticamente apreciável) tão singular às preces: “carregar o pesado fardo da existência humana tão transitória e sem significância, morredouros que somos e destinados a sermos reduzidos a pó e ao esquecimento pelos séculos dos séculos, até o infinito sem fim.” (LISPECTOR, 1985, p. 135). Por esse ponto de vista, não importariam as escolhas que ela fez, sempre houve um “acaso” imutável a torná-la mortal, um nada a se desfazer continuadamente. Essa “maldição” dialoga, é claro, com a proferida pelo Deus bíblico a Adão e Eva como forma de punição pelos erros no paraíso: “No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás.” (GÊNESIS, 3: 19). Numa espécie de conformação, a protagonista aceita esse destino que reduz ao pó, e, não sendo bastante, dissipa a existência no tempo e no espaço: “pelo século dos séculos, até o infinito sem fim”:

— Talvez por isso, nas ocasiões em que me foi dado assistir à transição da vida para morte, temi chamar, interferir. No fundo, pressentia que o moribundo estava vivendo a sua hora verdadeira, a suprema hora de descobrir a sua verdade, ou a razão de haver existido. Durante alguns minutos ficou olhando as janelas perlarem-se da chuva que continuava a cair sem intermitência. — Se bem que meditar na morte é triste, considerou, afinal pensar em termos gerais que posso morrer daqui um ano, ou dois, ou até mesmo de um instante para outro, do que virem me dizer você tem apenas seis meses de vida, porque, então, fico morrendo durante seis meses consecutivos. (LISPECTOR, 1985, pp. 135 e 136)

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A chuva ininterrupta no espaço externo mantém a senhora presa aos pensamentos mórbidos. Embora possa ser considerado um senso comum que uma pessoa solitária, velha e presa à cama preocupe-se com a morte, a protagonista pensa o fenômeno a partir de perspectivas diferenciadas, inclusive positivas. Primeiro, como forma de fuga e de castigo para os familiares e vizinhos25, e agora como uma epifania existencial. O momento derradeiro revelaria a razão de existir. Para tal esclarecimento, segundo a personagem, é imprescindível desconhecer a hora da morte, é preciso que ela seja um rasgo de iluminação, não um processo lento e penitente. Ou seja, é a vida um lugar de arrependimentos e dor, a morte é a explicação final. Embora a protagonista constate que “pensar na morte é triste”, ela continua nesse tema; no texto, há intervalos nesse processo somente nas pequenas intervenções do narrador observador, que está atento aos olhares lançados à janela por onde as gotículas da chuva escorrem. Esses olhares, como ações da cena externa, são importantes para que tenhamos uma perspectiva do que ela vê, uma vez que o narrador abandona seu posto de contador, para o de organizador da história. Como já comentamos na análise do conto “Sangue no sol”, as janelas são objetos simbólicos na literatura de Elisa, porque são representadas como pontos de acesso para uma realidade paralela, mas que, ao mesmo tempo, mantém uma relação do que se passa na interioridade da personagem. Ainda que seja uma imagem estereotipada, a chuva caindo intermitente representa a tristeza, fazendo parte do seu processo de reclusão. Como fenômeno natural, irredutível e transformador, representaria a morte. Ainda sobre as janelas, sabemos que elas apresentam múltiplas funções na ficção de Elisa, até mesmo numa mesma obra. Em O muro de pedras, por exemplo, elas servem como um respiradouro, através do qual a protagonista se sociabiliza a distância, ouvindo sons produzidos em um pátio de escola, localizada próxima de seu apartamento. As janelas são também molduras, por meio das quais Marta, já moradora da fazenda, contempla desencantada as paisagens naturais. Cerrar as janelas em “A agonia de viver” é um indício da exclusão do mundo externo, é também uma forma de simbolizar o ponto de vista embaciado, problemático da protagonista, obrigada a mirar por vidraças perladas, “vidros que choram”. A janela é alvo dos olhares da protagonista e uma espécie de gatilho para a sua depressão: “Tornou a olhar a chuva miúda lá fora, e voltou às conjecturas do dia de amanhã, com mais premência, porém, pensando em como atravessar o dia de hoje”. (LISPECTOR, 1985, p. 136).

25 A putrefação do corpo é uma negação, embora sutil, de culturas tradicionais e religiosas, como a católica e a judaica, que valorizam a ritualística para com o cadáver humano. 199

Para preencher o tempo, ela direciona o pensamento ao abandono recente da empregada. A lembrança peculiar é um outro evento infeliz: “sobretudo após ter passado a sentir-se como um cão em abandono, o que aconteceu depois que a deixou a empregada” (Idem, p. 136). Porém, permite que a protagonista encontre um culpado para seu sofrimento, ao menos, para a dor física. Assumindo um discurso de patroa, ela descreve a empregada como uma maníaco- depressiva, tão perturbada (ou mais) quanto ela mesma, mas que tinha utilidade, pois era quem subia e descia as escadas do edifício. Ela sente, portanto, a ausência de um serviço e não de uma pessoa, essa que fora durante anos quem resolvera tudo, das compras de supermercado até as compressas quentes para a sua ciática. Essa valorização do outro somente pelo que ele oferece em termos práticos, a completa falta de empatia para com a empregada (velha também), além do excesso de atribuições que ela delega, são as razões para que todas as contratadas desistam do trabalho, embora ela não assuma em sua consciência:

Agora já não tinha mais quem descesse os três andares do edifício sem elevador para fazer as compras, quem passasse a vassoura na casa, ou fizesse o caldo, e pior que tudo, não tinha mais quem lhe trouxesse o saco de água quente quando a ciática a fazia sofrer com mais intensidade. Não havia, ao menos, quem arrastasse os pés no assoalho do sobrado antigo para espantar o silêncio, quem lhe povoasse a mais completa solidão. Até já tratara com outra doméstica, trato seguro, de pedra e cal, mas no dia aprazado ela não viera. — Não deu certo. Comigo nunca dá certo, pensou com amargura, e tentou conformar- se. Ficaria mesmo só. (LISPECTOR, 1985, p. 136)

A protagonista não pensa a empregada a partir de uma perspectiva afetiva. Somente quando salienta o arrastar dos pés, o barulho sem rosto que esteve por anos em sua vida, é que se nota uma menção mais humana àquela que foi sua companheira de atividades diárias. Além do mais, com personalidades similares (se pudermos confiar na descrição da protagonista), era esperável que a protagonista se identificasse com a empregada e demonstrasse um pouco mais de solidariedade, já que ambas são velhas e adoentadas. No entanto, ela não se reconhece nessa imagem; ela lamenta a ausência dos cuidados, mas, não da cuidadora, fazendo-nos supor que seja essa a causa para que as demais mulheres assumam verbalmente um contrato de trabalho, porém, não apareçam no dia seguinte para as funções. A protagonista ignora completamente essas circunstâncias sociais, expressando desânimo para mudar a sua condição atual ao reclamar, mais uma vez, que lhe falta “estrela”. Ela aceita tudo rapidamente, numa espécie de resiliência contraproducente, aparentemente adaptando-se à suposta má sorte: “Ficaria mesmo só.” (Idem, p. 136). 200

— ...com o correr do tempo, acrescentou, com a sequência de mágoas e desgostos, o desamor e o definitivo sentimento de inutilidade, o significado de To be alive que antes me parecera glorioso, se foi desgastando no meu conceito, diminuindo cada vez mais até não expressar mais nada. Setenta anos, repetiu. Pensando bem, era demais para o pequeno quinhão que lhe coubera, ou para o pouco que lhe fora realizar. Uma vez mais buscou uma pausa, e por algum tempo ficou a distrair-se com o “soldadinho da Rainha” que trouxe de sua última viagem a Londres há muitos anos atrás, e que tinha como enfeite à cabeceira da cama. Colocado num vidro de fundo azul acinzentado — o que emprestava um tom de sombrio dia de inverno — o soldadinho de louça mergulhado em água até o capacete, tinha a seus pés grãos de isopor. Agitando-se o vidro, viam-se as pequenas partículas flutuarem na água, exatamente como rodopiam os flocos de neve ao sabor do vento, até depositarem-se no chão. Alguns flocos sempre ficavam retidos no peito estufado do soldadinho, tal como quando ela voltava em dias de inverno, e tinha que sacudir a neve de sobre o casaco e o chapéu. Agitar o vidrinho, e ver os flocos evoluírem de acordo com o movimento que lhes imprimisse até assentarem na base, fazia-a, para sua surpresa, experimentar um estranho sentimento que ousaria chamar de sedimentação, e que, opostamente às melancólicas divagações de ainda há pouco, a aplacava. A evidência prévia de que toda e qualquer iniciativa resultaria improfícua, tranquilizava-a. Conferia-lhe uma boa e esquisita sensação de disponibilidade. (LISPECTOR, 1985, p. 137)

O esvaziamento da mensagem “apesar de tudo, o importante é estar vivo”, propagada pela “indústria da felicidade”, está fixa na consciência da mulher. Suas circunstâncias fizeram com que ela enxergasse essa perspectiva como uma ilusão. Nesse ponto, há uma volta do narrador, que reaparece sempre que a protagonista muda o foco de visão: ela agora foca o soldadinho da rainha repousado na mesinha de cabeceira. Esta parte do conto é importante porque esse souvenir representa simbolicamente o mundo protagonista. Colocado próximo à cabeceira, o globo de neve constitui um tipo de alívio para a septuagenária. O narrador deixa claro que ela viajou várias vezes para Londres. Dessa forma, é possível que a personagem trabalhasse ou gostasse da cidade a ponto de viajar diversas vezes para lá. O soldadinho de chapéu vermelho é um símbolo turístico da capital britânica, cuja principal curiosidade é o fato de manter-se sempre sério, focado em sua função de guarda-real. Essa seriedade indicaria a gravidade com que a protagonista conduziu a sua vida, sempre em “posição de sentido”, sem vivenciar os eventos com flexibilidade. De formato esférico, esse souvenir de viagem é uma metáfora para a redoma em que a senhora se encontra e da qual ela não deseja fugir, como o soldadinho da Rainha em sua postura fixa e inalterável. Essa identificação é comprovada por suas lembranças, pois, ao pensar em sua estada em Londres, ela se recorda da neve em seu próprio peito: “tal como quando ela voltava da rua em dias de inverno, e tinha que sacudir a neve de sobre o casaco e o chapéu.” (Idem, p. 137). 201

Como boa parte das personagens de Elisa, essa não é uma mulher “provinciana”, de pouco conhecimento do mundo. Agitar o globo de neve lhe traz um sentimento de calma por lembrá-la de uma vida mais dinâmica e proporcionar-lhe a ilusão de uma ação. Ainda presa à cama (ela não levantou), ela modifica aquele pequeno universo que indiretamente é o seu, transformando a cena fixa. Quando os flocos se assentam, voltando à base, tem-se o retorno à inalterabilidade, o que causa igual satisfação. Portanto, o globo é um brinquedo por meio do qual a mulher atualiza suas expectativas paradoxais de ação e fixação sem considerar sair da cama, como o soldadinho preso na realidade aquosa. A água da chuva que peroliza os vidros, as janelas fechadas e o tempo cinza que ela vê quando o ponto de vista sai momentaneamente de sua consciência corroboram essas relações imagéticas. No final da transcrição acima, revela-se a certeza, por parte da protagonista, de que uma iniciativa é improfícua, o que também lhe confere satisfação. Vista geralmente como coisa negativa, a incapacidade de agir sobre o pré-estabelecimento das coisas causa-lhe bem-estar, indo na contramão do que se espera de alguém que sofre. Na verdade, ao considerar que tudo volta ao mesmo ponto independente do que se escolhe fazer, ela retira dos próprios ombros a responsabilidade por sua realidade. Se o sofrimento é um círculo vicioso, não há por que tomar outras decisões, pois tudo é como a neve na base da cúpula e o soldado parado no meio da redoma. E esse pensamento se completa com a ideia da falta de estrela vista no início da história: não há o que fazer quando o destino é irremediavelmente cruel. A palavra “sedimentação” dentro dessas relações de sentido é significativa. No campo da Geologia, a sedimentação é o processo de desgaste das rochas e dos solos, ocasionado a partir de processos naturais (chuvas, fluxo contínuo de água, ventos, etc.). As rochas se deterioram e se transformam em material menor, ou seja, sedimentos, que se reúnem formando as rochas sedimentares. Partindo desse sentido literal, geográfico, o que aplaca a protagonista é a sensação de que ações externas podem modificar o que aparentemente é rígido, mas esse processo levará a um novo depósito de rigidez. Ou seja, apesar da força da natureza, as rochas sempre voltam a ser rochas, assim como a vida dela é o que sempre foi, sedimentação, inalterabilidade. Do ponto de vista da protagonista, isso não é negativo. Na continuação do conto, a protagonista lembra uma consulta mística e que corrobora essa perspectiva:

“Talvez lhe aconteçam na vida coisas felizes, mas a senhora jamais deverá tornar a procurá-las”, recordava neste momento haver-lhe dito um vidente que consultara há anos a conselho de uma vaga e longínqua amiga. 202

Por que lembrava isso agora? Nem ela mesma saberia dizer, uma vez que ultimamente o seu sentimento de procura tornara-se cada vez mais reduzido. (LISPECTOR, 1985, p. 138)

A metáfora da sedimentação e o plano dado pelo vidente possuem uma conexão lógica (mesmo que a protagonista não consiga estabelecer o elo), já que ambos desautorizam novos projetos. Para a protagonista, a ausência de uma nova perspectiva foi uma espécie de zona de conforto, que a levou ao estado atual de estagnação, colocando até a razão de viver em xeque. Numa leitura superficial do texto, esse modo de vida pode ser confundido com uma atitude estoica, por considerar a busca e o desejo como fonte de futuro sofrimento. Mas, no caso da protagonista, a valorização da apatia quanto às realizações felizes e possíveis de uma vida não teve como resultado a plenitude e sim um imenso vazio, depressão e uma ausência patológica de ânimo: “o seu sentimento de procura tornara-se casa vez mais reduzido” (Idem, p. 138). Essa trajetória retoma, assim, o tema principal do conto “O tigre de Bengala”, no qual o médico aconselha sua paciente a bordar com o intuito de atenuar crises internas. O desestímulo das vontades, a falta de encorajamento para o novo, a subtração dos desejos são “receitados” por videntes, médicos e psicólogos, pois essa seria a forma de evitar as decepções. Há uma ideia geral de que o que está para acontecer se fará independente da vontade da personagem, portanto, se os resultados são sempre iguais, não há sentido em agir. No entanto, quando optam por esse caminho da “espera” em razão da opinião do outro, as personagens declaram-se insatisfeitas, em caos interno, significando que tais sugestões não foram ou não são soluções verdadeiras. Outros caminhos são igualmente infrutíferos para alcançar a felicidade. Uma longa viagem (Além da fronteira), a mudança do interior para a capital (Ronda solitária), da cidade para o campo (O muro de pedras), o casamento (O dia mais longo de Thereza/ Corpo a corpo) objetivam conferir um sentido para a vida, mas constituem esforços inúteis. Inclui-se nesse conjunto a maternidade natural (O muro de pedras) ou por adoção (A última porta). A abertura de O muro de pedras centra-se na construção dos conflitos entre Marta e sua mãe, na falta de comunicabilidade entre ambas (uma barreira intransponível, simbologia do título). No decorrer da obra, Marta engravida, pretendendo ter uma relação humana e íntima com alguém; contudo, os dilemas existenciais anteriores à maternidade se aprofundam quando ela não se aproxima do menino da forma como idealizara e começa a reproduzir as mesmas atitudes de sua mãe. De modo geral, ao se autoavaliarem, as personagens de Elisa não se veem como boas mães (entra nessa avaliação o fator da autoestima), tampouco fazem uma leitura positiva do comportamento dos filhos. É o que acontece em A última porta, obra com a qual o conto em 203

análise apresenta significativas semelhanças26. Há um profundo desapontamento na forma como a protagonista de “A agonia de viver” narra a sua relação com o filho e a nora:

Como de hábito, cinco ou seis dias após a “feliz data”, como ele dizia, vinha dar-lhe um beijo muxoxo na testa, e trazer o clássico embrulhinho de presente de aniversário, quase sempre um objeto inútil, completamente inútil: um jarrinho de louça com as beiradas pintadas a ouro, um porta-joias para as joias que não possuía mais. Enfim, isto pouco importava. A nora, esta, quase nunca vinha. Com frequência a “feliz data” coincidia com as suas enxaquecas. (LISPECTOR, 1985, p. 138)

O conto abarca cronologicamente a véspera e o aniversário da protagonista, evento que problematiza suas angústias. A digressão realizada pela consciência se baseia no comportamento do filho nessa época. Há uma visita anual que atende à convenção social de que o filho deve visitar a mãe ao menos em seu aniversário. Ela expõe por meio dessa situação a ausência de carinho e de caráter do filho ao enfatizar o atraso na comemoração do aniversário e o comportamento cínico dele, que sequer se desculpa pelo fato. Isso, por sua vez, intensifica o sentido irônico da expressão “feliz data”, dita pelo filho, afinal, se a comemoração não tem um dia exato não é uma data, muito menos feliz. O desamor do filho é ratificado pela sua displicência, pelo beijo convencional e pelos presentes improvisados. Há uma natureza genérica nos dois objetos (jarro de louça, porta-joias), como se fossem comprados em uma lojinha de rodoviária. Eles não expressam uma tentativa em atender a uma necessidade estética ou prática da mãe; os presentes não são bonitos (a expressão “beiradas pintadas a ouro” sugestiona isso) nem úteis (ela há tempos não tem joias), apenas atendem à convenção social do presentear. Note-se ainda nessa parte o uso do diminutivo em “embrulhinho” e “jarrinho”, elucidando a subjetividade da protagonista. Subtraindo um pouco o ponto de vista da consciência, poder-se-ia deduzir que a protagonista mãe faz pouco-caso dos presentes em razão do valor dos objetos, no entanto, a carga emotiva que ela demonstra com o globo de neve (e de como ele ativa memórias importantes, mesmo sendo um objeto de preço irrisório) revela que há de fato uma desumanização nas práticas do homem que a visita. Quanto à nora, ela nunca se faz presente em razão de enxaquecas, que são, de acordo com a perspectiva principal, uma forma cerimoniosa para justificar a ausência. A mazela seria inventada e o filho sustentaria as mentiras para manter a “harmonia” familiar. Fora a situação do aniversário, chama a atenção o fato da imagem do filho causar estranhamento na protagonista:

26 Poder-se-ia afirmar que o romance é uma extensão desse conto. 204

O pior, porém, é que às vezes estranhava o próprio filho, após as longas ausências dele, culpando-se pela sua desmemória. Ou por seu desamor. Pois, ao ver aquele homem baixo, atarracado, as têmporas esbranquiçadas, custava-lhe enquadrar-se na sua condição de mãe. Então sentia o desencanto de quando a incompreensão transforma a gente em dessemelhante dos outros. E se a conversa girasse em torno de dinheiro, deparava com um homem irascível e prepotente, as feições convulsionadas pela ira, ou, pelo contrário, nos seus dias de apatia, tinha um jeito um pouco vago e ensonado. E novamente custava-lhe acreditar que aquele homem maduro fosse seu filho. Amiúde, porém, tinha-lhe pena pelo seu ar solitário e tão perdido na vida que simplesmente lhe cortava o coração. E mais sofria por sentir que era impotente para ajudá-lo, porque as possibilidades de vida de cada um são só dele, aprisionado dentro de um círculo que a ninguém é dado transpor. — Cada qual está aprisionado dentro do círculo de suas próprias frustrações, concluiu, pois através de suas carências media as carências dele. (LISPECTOR, 1985, pp. 138 e 139)

Ela atribui o fenômeno a dois fatores: ao tempo e ao desamor. O primeiro parece objetivo: ela não reconheceria a imagem do próprio filho devido às visitas espaçadas e de sua memória senil. O outro mais complexo seria a ausência de similaridade entre ambos, uma não- identificação entre mãe e filho. Do ponto de vista físico (baixo, atarracado, têmporas esbranquiçadas) e de personalidade (displicente, insensível, irascível, interesseiro, prepotente, apático), ele não corresponde à imagem que ela espera de um filho seu. Quando não há um reflexo de si mesma (pelo menos, não é assim que ela se vê), a protagonista demonstra desligamento emocional, inclusive por meio de uma linguagem distanciada e genérica: “E novamente custava-lhe acreditar que aquele homem maduro fosse seu filho.” (Idem, p. 138). No entanto, no que “aquele homem” lhe é similar, ela se compadece, se enternece. Por isso, o ar solitário e perdido do filho causa-lhe a tristeza da impotência: ela não consegue alterar o destino dele nem o próprio e cada um permanece preso às suas circunstâncias. Nesse sentido, a fala final em discurso direto complementa a digressão, reforçando a imagem do círculo como aprisionamento e de como ela se liga ao filho não pela aparência ou pelo comportamento, mas por meio do sofrimento que ela julga enxergar: “através de suas carências media as carências dele” (LISPECTOR, 1985, p. 139) Nesse ponto, há uma alteração na cena externa, já que a protagonista sente fome e sai da cama. Até então, a narração fora feita basicamente de seus pensamentos. Na história, a ação ocorre por uma questão de sobrevivência, a necessidade básica de comer. Sem empregada para compras e sem forças, há dias ela se alimenta de modo precário (chá com biscoitos ou pão dormido com leite). Na véspera do seu aniversário, não havia nada no armário além de aveia e leite em pó. Um mingau preparado com esses ingredientes causa-lhe fortes cólicas estomacais, o que a obriga a retornar para a cama. A cena que se passa na cozinha tem função abrangente 205

para a trama: marca o desejo da personagem em manter-se viva apesar dos desenganos; serve como um reforço exemplificativo da falta que lhe faz a empregada; sugere que nenhum outro parente esteve na casa, oferecendo ajuda; evidencia a fragilidade do corpo físico, pela paupérrima alimentação de dias, principalmente, para alguém de setenta anos e, no elaborar da relação causa e efeito do enredo, obriga a protagonista a voltar para o quarto. De volta à cama, a senhora sofre intensas dores físicas, de modo que o narrador volta a ter espaço na narração:

Em breve o desconforto era total e abrangia o corpo inteiro. E quando se fez muito escuro lá fora, considerou que já podia dar o dia por terminado e cuidar de dormir. Vagamente ainda flutuando entre as bordas do sono e da vigília, voltou-lhe o pensamento inicial: Que fizeste de tua vida? Por vezes a escuridão da rua era varada pelos clarões dos faróis dos automóveis refletidos nas vidraças, incutindo-lhe um vago temor, como se estivesse sendo vigiada. (LISPECTOR, 1985, p.139)

O tempo em literatura é algo muitíssimo particular, especialmente em ficções cujas cenas principais se passam na consciência. O conto se inicia com o despertar da personagem pela manhã e, na cena acima, em que ela retorna da cozinha, temos uma paisagem crepuscular. Assim, o que lemos entre o acordar e a volta para o leito é uma representação em forma de síntese do seu dia, embora tais pensamentos e ações não levariam sequer duas horas para serem realizadas ou lidas fora de uma criação estética. Estamos, portanto, trabalhando com um tempo subjetivo, que se baseia numa realidade não literária, porém que dele se diferencia bastante em sua natureza. Quando a protagonista enfim se deita, considera mais um dia superado. Antes disso, retornemos às janelas. A chuva de antes é substituída por luzes, interpretadas como faróis que causam medo, ou seja, na supressão da água, da sensação de prisão, surge a ideia de perseguição. E então, como um mecanismo de defesa, ela adormece e passa a sonhar27. De um momento para o outro, ela se encontra em uma cidade deserta. Em seu sonho, há edifícios vazios, becos, labirintos, uma ausência de vida humana como se a população houvesse sido dizimada: “A peste, ou um ataque guerreiro, não sabia, parecia haver esvaziado a cidade.” (Idem, p. 139) A imagem de uma cidade vazia não causa terror imediato à senhora que se movimenta na cidade à procura de algo que possa explicar o mistério, talvez em razão da intuição de que, embora muito reais, aquelas são imagens criadas por sua subconsciência:

27 À semelhança de muitas narrativas, a passagem do consciente para a realidade do sonho é apenas sugerido na primeira leitura do conto. 206

Em breve já não sabia se era o crepúsculo ou a aurora que despontava, a obscuridade aqui e ali em nuanças de meia claridade. O silêncio era total na cidade deserta em que os saltos de seus sapatos ecoavam lúgubres. Sozinha percorria inúmeros edifícios vazios de onde a vida havia desertado. A peste, ou um ataque guerreiro, não sabia, parecia haver esvaziado a cidade. Mas continuava a percorrer os imensos vãos desertos à procura de sinais de vida. Uma força dinâmica, quase alucinatória, a impelia a tentar desvendar o enigma, empenhada a decifrar o mistério. Após muitas horas, ignorava quantas, a um canto da sala imensa e sombria — porque é preciso dizer que os edifícios eram enormes, e todos revestidos por dentro e por fora de lustrosos mármores cinzentos — divisou três vultos mirrados, indecisos e parecendo temerosos. Aproximou-se deles. De perto não passavam de vacilantes adolescentes. Então falou-lhes e, para a sua surpresa, eles responderam. Não recordava mais o que se disseram de parte a parte. O essencial é que eles abandonaram suas anteriores posturas de figuras empedernidas. (LISPECTOR, 1985, pp. 139 e 140)

A primeira sentença do trecho acima sugere indecisão quanto à claridade que se vê pela janela (dia ou noite?), um indício da confusa sonolência da protagonista. Na frase seguinte, já a temos no espaço do sonho. A realidade onírica é um recurso simbólico na literatura de Elisa, de modo geral, e nos contos em particular. São realidades alternativas, que oferecem às personagens uma formulação diferente daquela oferecida pelo pensamento racionalizado do dia a dia. Elas são permeadas por sentimentos e compreensões que, fora do estado do sono, não poderiam ser alcançados, como alguém que nunca sentiu coragem por não saber como senti-la. De maneira metalinguística, uma personagem explica esse recurso em O tigre de Bengala. No conto “Uma outra temporada no inferno”, uma jornalista perde-se numa cidade fantasmagórica. Ela perambula por ruas, praças e lojas de chá sem saber ao certo o que deve fazer ou como voltar para sua terra-natal. Até que um dia ela sonha com um poder de escrita inexplicável, de caráter quase místico:

[...] a leitura da Bíblia editada em inglês me transportava para eras de transgressão dos divinos mandamentos e dos terríficos castigos motivados pela ira de Deus. As lamentações de Jó fizeram-se minhas, só que não com a sua fortaleza de ânimo. As provas que Ele havia destinado aos Seus eleitos, julgava-as por demais pesadas para a noção que eu tinha de minha insignificância. Era uma luta desigual, em que ia perdendo terreno. Em seguida, adormeci. E o meu sono em pouco se fez sonho. E nesse sonho eu escrevia. Escrevia algo tão belo. E verdadeiro. Era um relato que tinha lógica, sequência, e um encadeamento tão lúcido, e mágico! Jamais experimentei tamanha sensação de plenitude como enquanto estava escrevendo. Mas, como o meu sono fosse mesclado de vigília, me foi possível dizer para mim que precisava acordar para escrever em estado de plena consciência. Então fiz um esforço sobre mim mesma e acordei, apanhei a caneta e o bloco de notas pousado sobre a Bíblia, mas agora, por mais que me esforçasse, não conseguia compor a trama que eu própria tecera à revelia do meu consciente. — Nesse caso, é que somos como dois, um quando consciente, outro, quando em estado de sub ou superconsciência, vivendo numa ambivalência de mundos diversos, e talvez apenas por instantes somos dotados da capacidade de captar o mistério. 207

Foi na manhã seguinte a esse meu Dia de Expiação, quando me dispunha a ganhar a rua, que deparei, na portaria, com uma mulher que, para meu espanto, falava o meu idioma [...]. (LISPECTOR, 1985, pp. 150 e 151)

O sonho é um umbral para imagens que ficam recônditas na subconsciência. Na cena acima, a protagonista relata, em primeira pessoa, uma leitura conflituosa que estabelece com a narrativa de Jó. Em ambos os textos (o conto e o livro bíblico), as personagens (mulher e o patriarca) são atormentadas por razões desconhecidas, “provados” por uma vontade suprema, terrível, igualmente inexplicável. Quando a mulher dorme, acessa um mundo paralelo e experimenta a possibilidade da Escrita, uma forma de explicar o mundo e suas relações. Esse processo a faz pensar a consciência e a subconsciência como ambivalentes. Se, conscientemente, ela não compreendia o porquê de estar naquela cidade e o que deveria reportar, sua subconsciência tinha completo domínio estético, lógico, sequencial, a ponto de o texto do sonho atingir a própria perfeição. Quando interage com a subconsciência, uma personagem nunca fica ilesa. Lembremos de como a personagem de “O furto” desperta apavorada por ter, em seus pesadelos noturnos, um tribunal inquisidor. Em “Uma outra temporada no inferno”, após a escrita epifânica, a protagonista sai do hotel e encontra com uma pessoa que fala a sua língua e que a situa no tempo e no espaço (o verdadeiro inferno nessa ficção é perder essas duas noções). Com essas coordenadas, ela consegue tomar uma atitude, fugindo da rotina circular de suplício: “Um dia depois, ainda um pouco trêmula e expectante, de novo encontrei-me no imenso vão do aeroporto, aguardando a chamada para o embarque, na esperança de pôr fim a um enigma.” (LISPECTOR, 1985, p. 152) O sonho em “A agonia de viver” tem uma função importante, inclusive para a trama, pois fará emergir uma outra perspectiva de vida, diferente daquela que a senhora acamada demonstra enquanto pensa. Pode-se afirmar que o pensamento da protagonista opera de forma mais pessimista do que as suas memórias, do que as imagens armazenadas ao longo da vida:

— Que saíssem e fossem para as suas casas, que se dirigissem a um lugar qualquer, mas não ficassem ali parados, deve ter-lhes dito. E eles se reanimaram, e saíram, e outras pessoas começaram a chegar, e a atravessar a sala, as salas. Portas principiavam a abrir- se e a se fechar. De toda parte iniciou-se o aparecimento de gente a fluir e a refluir, como em ruas antigas já vistas em velhas estampas, gente que se multiplicava e diversificava-se em padres, freiras, marinheiros, escolares, negociantes. Agora muitas portas abriam-se e se fechavam sem cessar, pois, por estranho que pudesse parecer, de onde quer que ela estivesse, podia abarcar com a visão a cidade inteira. (LISPECTOR, 1985, p. 152)

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Nota-se que a subconsciência da protagonista permanece influenciada pela mensagem do slogan da sua fase jovem e otimista. Inicialmente, ela descreve a sensação de estar numa atmosfera assustadora, pressupondo uma catástrofe. Além disso, a cidade é rica, moderna e sua descrição (marmorizada, edifícios altos, ruas amplas e despovoadas) indica uma grave desumanização, porém, o ambiente começa a mudar com a presença de três adolescentes em estado de paralisia. A protagonista enuncia algo para eles e, como na maioria dos sonhos, não tem ciência do que foi, embora saiba que algo foi dito. A fala provoca um movimento imediato, o aparecimento de inúmeras pessoas, portas que se abrem e se fecham, ruas que se povoam como de feiras antigas e populares. Um outro ponto notável diz respeito à diversidade dos grupos de pessoas (padres, freiras, marinheiros, escolares, negociantes), aos sons que começam a ser ouvidos (como se antes o som estivesse em off), ao céu que se ilumina com claridade de meio-dia. E tudo isso em razão das palavras que ela destina aos jovens adolescentes. Esse sonho fundamenta-se em uma antítese e a sua primeira parte trágica representa a estagnação, a velhice e a solidão em que a mulher está imersa; ele começa a experiência com o mesmo sentimento que a acompanha na vida “real”, a sensação de uma desgraça irremediável, assim como a sua vida é vista como mal vivida, elementos opostos do segundo momento em que tudo se transforma pelo som da voz. A multidão e sua diversidade, a juventude adolescente, a velocidade de quem passa e o “abrir e fechar de portas” são expressões dessa oposição. Enquanto há silêncio, lentidão e confinamento na vida cotidiana, o sonho lembra-lhe de um diferente ritmo de vida, de outro tipo de interação e, mais importante, de uma outra perspectiva: “de onde quer que ela estivesse, podia abarcar com a visão a cidade inteira.” (Idem, p. 140). Essa ampliação hiperbólica do ponto de vista é uma imagem possível em uma realidade onírica e vai garantir que a personagem acorde com uma nova visão das coisas. O poder de mudar o mundo com a enunciação de uma ordem, um suposto “ande, não fique parado, movimente-se”, retoma sensação similar à da protagonista de “Sangue no sol” quando se imaginou a arquiteta do mundo. O desejo criador, também presente na escrita onírica de “Uma outra temporada no inferno”, é forte, único, perfeito, como Deus teria sido e sentido em sua ação de criar e isso é, segundo o conto, o que move o mundo. E então ela acorda:

Quando abriu os olhos, teve consciência de que já era hoje, o dia esperado. Então levantou-se, e, pela primeira vez após muitos dias, abriu de par em par a janela da sacada e saiu para o terraço. Havia chovido a noite toda, e o ar estava úmido e fresco, e quando ergueu os olhos para o céu, era ele de um azul tão azul, e luminoso, que sentiu um frêmito de alegria, e subitamente lhe veio tamanha sensação de plenitude e uma tão nova e intensa vontade de viver que era como se estivesse renascendo. (LISPECTOR, 1985, p. 141) 209

Esse conto é, paradoxalmente, pessimista e otimista, pois em quase sua totalidade apresenta um tom mórbido e melancólico, mas, em seu desfecho, a chuva, os maus pensamentos e a tristeza são substituídos por um dia ensolarado, azul, fresco, positivo, com notas de esperança (uma imagem lugar-comum, mas cujo significado é este mesmo). Finalmente, é o dia do aniversário da protagonista, uma data cuja simples recordação havia lhe causado incrível dissabor, no entanto, isso já não a aterroriza, ou seja, ela dorme completamente deprimida, desejando a visita da morte, e acorda considerando a vida como um empório de felicidade. Seria uma espécie de “bipolaridade” da protagonista, que enfrenta alternâncias radicais de humor; sendo assim, a metáfora geométrica do círculo representa também o humor circular, com altos e baixos: a personagem ora considera que a vida “não valeu o ticket”, ora deseja reconstruir uma cidade. Quando está no ponto alto, sente-se renascida, sentimento que retoma a personagem de “Por puro desespero”, cujo insight pessoal é “o importante é voltar da guerra”, é estar vivo, de certa forma uma paráfrase do slogan aqui elucidado. Embora haja um profundo questionamento do sentido da vida, questões filosóficas e religiosas a rondar a consciência, o que resgata a personagem de seu estado depressivo são as mensagens mais simplórias, mas cujos efeitos têm maiores implicações porque foram absorvidos, internalizados pela subconsciência, que se encarrega de criar imagens motivadoras. A consciência aprisiona, angustia, a outra liberta, otimiza, relativiza, sugerindo uma solução. O conto “A agonia de viver” não oferece pistas de que tematizará uma mudança radical da perspectiva até o acordar do sonho, pelo contrário, a cada lembrança e reflexão sobre Deus, familiares, amizades, filhos, prognósticos, etc., a personagem torna-se ainda mais desiludida, como se aquele aniversário fosse um suplício a ser enfrentado por anos. E seria compreensível, uma vez que não há qualidade de vida, sequer a alimentação, algo de natureza mais prática, traz prazer ou satisfação para essa mulher. Portanto, o conto possui uma reviravolta, articulada pela subconsciência, que é também um “ponto de vista” que conta a história. O discurso de que os filhos cuidam dos pais na velhice (e, por isso, seriam imprescindíveis) é completamente desconstruído. Em sua visita anual, o filho comporta-se de modo egoísta, já que demonstra mais interesse em benefícios financeiros do que no bem-estar da mãe. Ela, por sua vez, começa a desconhecer a relação de carinho e afetividade e sente-se culpada por não saber ajudá-lo como acha que deveria. Ela experimenta pena, compaixão, decepção, vontade de ajudar, mas está longe de se mostrar a “mãe de novela” que ama incondicionalmente a prole. Se há um sentimento que aproxima ambos é o sofrimento profundo 210

e é nesse campo que ela demonstra alguma empatia. É no ponto de vista de quem sofre sem saber como alterar as circunstâncias que há identificação entre mãe e filho. “A agonia de viver” apresenta o ponto de vista de uma pessoa na terceira idade. Há muitas mulheres e homens na contística elisiana nesse período da vida. No belo conto “A morte do herói”, o velho é renegado ao isolamento por seus antigos admiradores como se fosse um objeto descartável. É, por isso, um conto perpassado de uma tristeza depressiva e com final trágico. Em “Um dia, uma vida” (conto de abertura de O tigre de Bengala), uma atriz pensa sobre a fama não alcançada e os papéis que desempenha: “[...] interpretava a mãe possessiva e louca, ou a sogra má, ou ainda, a mulher que em idade madura sucumbe a um ilusório, eventual e tardio momento de fazer amor, ali estava, não a personagem, mas a pessoa assumindo com autenticidade sua amargurada solidão.” (LISPECTOR, 1985, p. 4). Os estereótipos fílmicos e televisivos representam a diminuição das possibilidades que a idade traz para a mulher enquanto profissional da dramaturgia, fadada a repetir os mesmos papéis (a parente velha e ranzinza ou a mulher solitária que pateticamente se apaixona). Mas, nem mesmo esses papéis são outorgados às personagens de Elisa. A vida fora da ficção da TV (ainda que na ficção literária) é ainda mais minguada em suas expectativas. Para a protagonista de “A agonia de viver” não há paixões avassaladoras, nem brigas dramáticas entre famílias, somente um desejo de compreensão e o anseio por manhãs menos angustiantes, com janelas abertas e sol forte.

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4. SÍNTESE FINAL

De modo geral, esperamos que esse trabalho evidencie a escritora Elisa Lispector e sua obra ficcional, já que ela é uma incógnita para quase todos os leitores, mesmo aqueles que conhecem e estudam os textos de sua irmã Clarice. A família Lispector deu uma significativa contribuição para a formação da literatura brasileira, principalmente para a consolidação da introspecção, recurso narrativo marcante do século XX. Uma das especificidades de Elisa é ter agregado a autoficção como parte de seu projeto literário. Elisa Lispector foi uma pessoa de duas nacionalidades, de dois mundos; vivenciou uma infância feliz e triste na Rússia e uma vida adulta triste e feliz no Brasil. Essa alternância de situações aparece em sua obra a partir das personagens, que ora mergulham em solidão e angústia, ora emergem com o desejo de viver (embora sejam a angústia e a solidão muito mais perceptíveis). Em relação à construção da narração e de seu ponto de vista, Elisa combina narradores observadores e o uso da consciência (onisciência seletiva). Há uma interação entre essas duas perspectivas, que, em certos momentos, interagem entre si, sendo outra singularidade da ficção de Elisa. As personagens se debatem em seus pensamentos, mas é preciso visualizá-las em seus ambientes, compreender o que veem e o que vemos quando o narrador as apresenta, uma vez que esses elementos são simbólicos em relação ao conflito da história. A mulher no consultório em “Por puro desespero”, frente a frente com seu psicólogo, nunca esteve tão sozinha. Suzana em sua casa de campo, ambas iluminadas em “Sangue no sol”, descobrirá que não há como organizar o mundo inteiro. Em “O furto” e “A agonia de viver”, as protagonistas estão em agonia em seus quartos, duelando com o dia que se inicia. A consciência elabora a história por meio de digressões. Há memórias que são acionadas e constituem o conflito para cada uma dessas protagonistas. É preciso de alguma maneira pensar o passado, repassá-lo, compreender o presente e de alguma maneira engendrar um futuro. O monólogo interior é usado pela personagem para se autoavaliar e criar saídas, alcançando um tipo de solução, mesmo que mínima. Nesse sentido, o monólogo é um processo positivo, humanizador, porque, enquanto as protagonistas pensam, surge uma esperança. Em um caso muito crítico de solidão e morbidez como em “A agonia de viver”, a consciência desiste da busca por uma perspectiva mais otimista, cabendo à subconsciência construir uma cidade utópica, na qual a personagem experimenta um sentimento além da agonia. Há esperança em muitos dos vinte e dois contos de O tigre de Bengala, quer seja na imagem simbólica dos jovens, numa estrela recém-descoberta ou num insight, como em “Por puro desespero”. 212

Reconhecemos na ficção de Elisa o leitmotiv das pernas, vital para a construção das personagens. Os problemas associados à saúde e à velhice, as consequências de um acidente, os castigos do destino estão relacionados a essa parte do corpo. Seria possível associar a “obsessão” de Elisa pela locomoção de suas personagens ao fato de a escritora ter sido a cuidadora da mãe acamada, mas esse seria um caminho interpretativo simplório e pouco atento às especificidades de cada texto, pois essa metáfora realiza-se com variadas significações. Em “Por puro desespero”, ela coopera para a ideia de um problema coletivo. Em “O furto”, a lentidão do caminhar é um indicativo da dificuldade em seguir o ritmo da realidade fora do mundo da consciência. E num conto como “A agonia de viver” a dor na ciática agudiza um quadro de abandono. Ainda sobre isso, as personagens poderiam ser divididas entre as que caminham e as que estão sentadas/deitadas durante a história. E podemos considerar que quanto mais elas estão imóveis, mais atormentado é o monólogo que realizam. As cenas dos contos analisados são concebidas em espaços mais fechados, até um pouco insalubres. Apenas a sala de “Sangue no sol” é luminosa, mas essa característica embasa uma realidade fingida, artificialmente feliz. A percepção otimista se desfaz com o suicídio, sendo, portanto, quase o inverso dos demais contos. Suzana é enganada por sua vaidade, pelo desconhecimento, por sua própria consciência. O conto é singular por conta do desfecho trágico, mas reforça de igual maneira o domínio do pensamento para a tomada de decisões e para a leitura do mundo, a ponto da natureza conflagrar-se quando a vida de Afonso se finda. A solidão não é o tema principal dos contos analisados, aliás, seria pouco inventivo que os vinte e dois contos de O tigre de Bengala possuíssem esse eixo temático. A leitura das histórias observou que a solidão é mais uma consequência do que a causa no contexto da trama. Ela é fruto dos problemas que afetam a consciência das protagonistas. Por fim, como Telenia Hill afirma, há uma dialética de destruição e ressurgimento em Elisa (HILL, 1989). Dentro da estrutura do conto, o ressurgimento tende a coincidir com o desfecho, mas, em estruturas maiores como nos romances, essa alternância acontece ao longo dos capítulos, dando a impressão de sucessivas epifanias. O mundo criado por Elisa é o das consciências angustiadas, torturadas pela falta de amor. Contudo, é também o mundo das retomadas, das reaberturas, das chuvas que caem inesperadamente.

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