UNICAMP UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES DEPARTAMENTO DE MÚSICA

O PENSAMENTO MUSICAL NO CINEMA: O EXEMPLO DE

Orlando Marcos Martins Mancini

Campinas 2011

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ORLANDO MARCOS MARTINS MANCINI

O PENSAMENTO MUSICAL NO CINEMA:

O EXEMPLO DE ENNIO MORRICONE

TESE APRESENTADA AO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP – UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS COMO PARTE DOS PRÉ- REQUISITOS À OBTENÇÃO DO TÍTULO DE DOUTOR EM MÚSICA SOB A ORIENTAÇÃO DO PROF. DR. CLAUDINEY RODRIGUES CARRASCO.

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP

 Mancini, Orlando Marcos Martins. M312p O pensamento musical no cinema: o exemplo de Ennio Morricone. / Orlando Marcos Martins Mancini. – Campinas, SP: [s.n.], 2011.

Orientador: Prof. Dr. Claudiney Rodrigues Carrasco. Tese(doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

1. Morricone, Ennio. 2. Leone, Sergio. 3. Musica de cinema. 4. Cinema – História. 5. Audiovisual. I. Carrasco, Claudiney Rodrigues. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título. (em/ia)

Título em inglês: “Musical thought in cinema: Ennio Morricone's example.” Palavras-chave em inglês (Keywords): Morricone, Ennio ; Leone, Sergio ; Moving-picture music ; Cinema – History ; Audiovisual. Titulação: Doutor em Música. Banca examinadora: Prof. Dr. Claudiney Rodrigues Carrasco. Prof Dr. Marcos Fernandes Pupo Nogueira. Prof Dr. Irineu Guerrini Junior. Prof. Dr. José Eduardo Ribeiro de Paiva. Prof. Dr. Jônatas Manzolli. Data da Defesa: 21-02-2011 Programa de Pós-Graduação: Música.

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Este trabalho é dedicado a Ricardo Rizek

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Ao dizer palavras que nunca tinha dito antes, aprendi o que antes não sabia.

José Saramago, In Nomine Dei

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que contribuíram e me incentivaram, desde o início, na realização deste passo tão gratificante. Infelizmente o espaço e minha memória são restritos, mas as pessoas citadas abaixo representam momentos de presença que contribuíram direta ou indiretamente na realização deste trabalho. Prof. Dr. Claudiney R. Carrasco, pela orientação e confiança. Sua generosidade, conhecimento, amizade, sugestão, experiência, paciência e otimismo foram, sem dúvida, as bases e o norte durante todas as etapas do processo de construção deste trabalho; Prof.ª Dra. Maria de Lourdes Sekeff Zampronha (in memoriam) pelo grande incentivo gentilmente ofertado como minha orientadora no mestrado; Minha esposa, Maria Flavia de Castro Schiewaldt Mancini e meus dois filhos, Marcus Vinícius Schiewaldt Mancini e Marcella Schiewaldt Mancini, pela parceria, paciência, incentivo e compreensão; Aos membros da Banca Examinadora: Prof. Dr. Marcos Fernandes Pupo Nogueira (UNESP), Prof. Dr. Irineu Guerrini Jr. (FACULDADE CASPER LÍBERO), Prof. Dr. José Eduardo Ribeiro Paiva (UNICAMP), Prof. Dr. Jônatas Manzolli (UNICAMP), pelas sugestões e por todo incentivo ao projeto; André Luiz Olzon Vasconcelos, César Henrique Rocha Franco, Cintia Campolina de Onofre, Martin Eikmeier, Samuel Henrique Pedrozo Ferrari, Sandra Cristina Novais Ciocci, Virgínia Osório Flores e demais integrantes do “Grupo de Pesquisa em Música Aplicada à Dramaturgia e ao Audiovisual”, pela ajuda, companheirismo e paciência; Sergio Rizek, pelas rememorações, conselhos, empatia e generosidade; Sidney Molina, pelo contínuo exemplo, auxílio, incentivo, confiança e amizade; Tarsila Doná, pela grande ajuda, incentivo, acolhimento e lealdade;

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Renato Candro e Alexandre Spatz pela grande ajuda em momentos decisivos da pesquisa; Prof. Dr. Renato Ladeia de Oliveira e Prof. Milton Eto, pelas sugestões, generosidade e companheirismo nas revisões do texto; Marisa Rosana Lacorte meu maior modelo ético de humildade e espanto perante o conhecimento; Prof. Raul Jaime Brabo pela ajuda, confiança, companheirismo e colaboração. Espero sinceramente que toda lealdade possa ser recompensada a altura; Professores, alunos e funcionários da pós-graduação do Instituto de Artes da UNICAMP, pelo acolhimento, respeito e por toda atenção dispensada; Professores e colegas responsáveis por essa longa e prazerosa jornada de aprendizado: iniciando desde a chamada Formação Musical na FASCS - Fundação das Artes de São Caetano do Sul até o presente momento; Alunos, professores, funcionários e coordenadores do Complexo Universitário FIAM - FAAM – FMU que, por vários motivos, tanto têm me incentivado na busca de um aprofundamento qualitativo da informação apresentada como elemento vital de transformação para melhor, do mundo em que vivemos.

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Em março de 1973, numa conversa com meu pai, Orlando Mancini (en- tão com 47 anos), num leito do Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo, onde tentava, com a assistência da equipe de cardiologia daquele hospital, se res- tabelecer de um grave infarto do miocárdio, me foi revelado por ele toda sua ex- pectativa em relação à minha felicidade e o quanto ele sabia que isso dependia diretamente de meus estudos. Nesse dia me fez prometer que estudaria aquilo que eu mais quisesse, mas, que eu o faria com afinco, dignidade e resignação, pois, existia uma chance real dele não estar mais por perto para poder me orientar em momentos em que isso fosse necessário. Argumentei, com a cabeça de minha problemática adolescência, ao mesmo tempo esperançosa e ingênua, que isso não seria necessário, pois, ele ainda viveria o suficiente para podermos desfrutar de muitos acontecimentos. À revelia de nossos desejos e de posse de minha pro- messa meu pai faleceu, “inesperadamente”, poucos dias depois. Ofereço a sua memória este trabalho, não só pela minha promessa, mas também, pelo seu ato, que hoje entendo como um símbolo pedagógico, e que me serviu como uma cons- tante lembrança de suas verdadeiras intenções paternas.

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RESUMO

O pensamento musical no cinema exemplificado pela “música aplicada” de Ennio Morricone originou-se em julho de 1992, na ACCADEMIA MUSICALE CHIGIA-

NA, Siena – Itália, onde Ennio Morricone e Sergio Miceli ministraram conjuntamen- te o Corso de Perfezionamento in Musica per Film. Sucintamente, o curso propôs a possibilidade de uma confluência entre dois pensamentos relacionados à música de cinema, duas abordagens: uma musicológica, histórica e teórica, voltada a apresentar instrumentos idôneos na análise das relações intercorrentes entre mú- sica e imagem (a parte de Sergio Miceli); a outra, profissional, artesanal, estrita- mente relativa a um pensamento e uma praxe compositiva desenvolvida dentro dos vínculos impostos pela própria produção e linguagem cinematográfica (a parte de Ennio Morricone). Mesmo que primariamente distintas, de modo geral, as abor- dagens percorreram assuntos que, insistentemente, orbitaram em torno de um mesmo problema: qual o contexto da música e do compositor de cinema na histó- ria contemporânea? Utilizando inserções musicais das trilhas sonoras das duas trilogias do diretor e de alguns filmes representativos situados em momentos importantes da trajetória de Ennio Morricone como referência, este trabalho busca apresentar, situar, estender e aprofundar a proposta de confluência estabelecida na Chigiana, acrescida por tópicos importantes e significativos do instrumental teó- rico da área de música de cinema, principalmente o referenciado no campo aca- dêmico. O estudo alterna entre uma vertente mais geral, percorrendo panorami- camente momentos decisivos da vida e da obra de Ennio Morricone, com outra mais particularizada, aprofundando-se em momentos significativos, onde são es- tabelecidas instâncias reveladoras de seu pensamento musical aplicado no objeto audiovisual.

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ABSTRACT

Musical Thought in Cinema exemplified by Ennio Morricone’s “Applied Music” originated in July 1992 at Accademia Musicale Chigiana, in Siena - Italy, where Ennio Morricone and Sergio Miceli ministered, together, the Corso di Perfe- zionamento in Musica per Film. Succinctly, the course raised the possibility of a confluence between two approaches related to film music: a musicological, histori- cal and theoretical view aimed to present suitable instruments for the analysis of the reciprocal relations between music and image (Sergio Miceli’s focus), and a professional, compositional perspective developed within the constraints imposed by its creation and cinematic language (advocated by Ennio Morricone). Even though primarily distinct, in general, both approaches seem to converge to the same problem: what is the context of film music and composer in history? Using fragments of Sergio Leone’s two trilogies and other representative film scores in the career of Ennio Morrione as reference, this study aims to present, situate, expand and deepen the proposed confluence, established originally at Chigiana, by considering various well-known theoretical lenses. This work will alternate between a panoramic overview of decisive mo- ments in Ennio Morricone’s life and work and an in depth analysis of key extracts which reveal his applied musical thought in the relationship between the audiovisu- al object and the soundtrack.

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ...... XI

RESUMO ...... XVII

ABSTRACT ...... XIX

SUMÁRIO ...... XXI

TABELAS, GRÁFICOS, FIGURAS E EXEMPLOS ...... XXXIII

INTRODUÇÃO ...... 1

1. MÚSICA DE CINEMA: ASPECTOS E PROBLEMAS DE UMA ATIVIDADE COMPOSICIONAL DO “NOSSO TEMPO” ...... 5 1.1 - O Ofício do Músico no Cinema ...... 5 1.2 - Uma Estética Pessoal: a “dupla estética” ...... 11 1.3 - A Música de Cinema: Música Aplicada ...... 12

2. MUSICA PER FILM ...... 24 2.1 - Créditos Iniciais ...... 24 2.2 - O Estudo da Música de Cinema ...... 27 2.3 - O Pensamento Musical no Cinema ...... 31 2.4 - O Ofício do Músico no Cinema: Sabaneev versus Adorno e Eisler ...... 40 2.4.1 - Leonid Sabaneev (1935): Music for the films 41 2.4.2 - Adorno e Eisler (1947): Composing for the films 43 2.5 - O pensamento musical aplicado ...... 45 2.5.1 - Kurt London (1936): Film Music 45 2.5.2 - Serguei Mikhailovitch Eisenstein (1940): O sentido do filme 46 2.6 - Pensando a Estética da Música Cinematográfica ...... 48 2.6.1 - Aaron Copland (1940): A Estética da Música para Filmes 48 2.6.2 - Manvell & Huntley (1957): The Technique of Film Music 50 2.6.3 - Zofia Lissa (1959): Ästhetik der Filmmusik 50 2.7 - Ampliando o Pensamento Musical no Cinema: As Funções Narrativas da Música de Cinema versus As Funções da Música no Cinema Narrativo ...... 54 2.7.1 - Diegese (Narrativa) 54 2.7.2 - Sergio Miceli (1982): Análise da Intervenção Musical no Filme 56 2.7.2.1: Música de Acompanhamento & Música de Comentário ...... 59 2.7.2.2: Sincronias ...... 60 2.7.2.3: Os Níveis ...... 60 2.7.3 - Claudia Gorbman (1987): “Música Inaudível” 63 2.7.4 - Kalinak (1992):”Settling the Score” 65

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2.7.5 - Wingstedt (2005): Narrative Music – Towards and Understanding of Musical Narrative Functions in Multimedia 65 2.8 - Pensando a Forma da Música no Cinema ...... 67 2.8.1 - Roy Prendergast (1977): Música de Filmes e Forma 67 2.9 - Pensando a análise da música no processo audiovisual ...... 69 2.9.1 - Chion (1985): O Contrato Audiovisual 69 2.9.1.1: Valor Agregado ...... 70 2.9.1.2: Syncresis ...... 71 2.10 - Introdução à Análise Audiovisual ...... 72 2.10.1 - Métodos de Observação 73 2.10.1.1: Mascaramento...... 73 2.10.1.2: Casamento Forçado ...... 75 2.11 - Karlin e Wright (1990): On the track ...... 76 2.12 - O Pensamento Eclético ...... 78 2.12.1 - Brown (1992): Sobretons e Subtons 78 2.13 - Pensando Metaforicamente ...... 80 2.13.1 - Nicholas Cook (1998): Analysing Musical Multimedia 80 2.14 - A música para filmes como sinergia ...... 81 2.15 - Pensando a Música de Cinema na Teoria dos Gêneros Cinematográficos ...... 82 2.15.1 - Mark Brownrigg: Música de Cinema e o Gênero Cinematográfico 82 2.15.2 - Carreiro (2010): “Continuidade Intensificada” e Gênero Cinematográfico 83 2.16 - Aplicação ...... 91 2.16.1 - Decupagem 91

3. ENNIO MORRICONE: TRADIÇÃO E SINGULARIDADE NA MÚSICA DE CINEMA ...... 100 3.1 - Cronologia de Ennio Morricone ...... 104 3.2 - A Base Musical de Ennio Morricone: Formação e Primeiras Influências ...... 112 3.2.1 - Morricone no nascimento da Indústria da Música Popular Italiana 117 3.2.2 - Darmstadt: 1958 122 3.3 - Influências de um profissional eclético e sincrético na música de cinema ...... 124 3.3.1 - Estilo “contaminado” 126 3.3.2 - Canções e Trilhas Musicais 128 3.4 - A Década de 1960: As Primeiras Trilhas Musicais Cinematográficas ...... 131 3.5 - A Música Aplicada de Morricone ...... 137 3.6 - Premiações e Reconhecimentos ...... 152 3.7 - Concertos de Música de Cinema ...... 153 3.8 - Música de Concerto de Ennio Morricone ...... 158

4. ANÁLISES: “MÚSICA APLICADA” ...... 166 4.1 - A Música de Ennio Morricone na Primeira Trilogia de Sergio Leone ...... 170 4.1.1 - A parceria entre Leone e Morricone: Nascimento e Desenvolvimento de um Estilo Musical? 170 4.2 - Esslin & Prendergast: o “Developemental Score” ...... 175 4.3 - A Música de Per Un Pugno di dollari – 1964 (Por um Punhado de Dólares) ... 186 4.3.1 - Ficha Técnica 186 4.3.2 - Comentários Iniciais 187

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4.3.2.1: “Ninna nanna” => Per un pugno di dollari. 191

4.3.2.2: Pastures of Plenty => titoli ...... 196 4.4 - Organização temática da trilha musical ...... 200 4.4.1 - Titoli: A música dos Créditos Iniciais e Finais 200 4.4.2 - Decupagem 220 4.4.3 - Alguns Exemplos da Utilização do Tema 1: Titoli 224 4.4.3.1: Parte 01 – Créditos Iniciais (Titoli) ...... 224 4.4.3.2: Partes 2, 7, 14, 22, 30, 36 e 52 – Leitmotiv do protagonista Joe (Clint Eastwood) ...... 230 4.4.3.3: Partes 33, 40 e 54 – Solos diferenciados da melodia principal ...... 235 4.4.3.4: Partes 4, 21 e 38 - Sinos ...... 236 4.4.3.5: Partes 8 e 36 – Sons Tônicos ...... 236 4.4.3.6: Partes 16, 23, 25 – Sonoridades tensas e sons percussivos...... 237 4.4.3.7: Partes 3 e 6 – A sonoridade dos bandidos ...... 241 4.4.3.8: Partes 50, 51 e 52 – “Source Music” e Canções ...... 242 4.4.4 - Alguns Exemplos de utilização do TEMA 2 – Per un pugno di dollari 243 4.4.4.1: Partes 40 a 47 – A música do confronto ...... 243 4.5 - O duelo final ...... 246 4.6 - A Música de Per Qualche Dollaro in Più – 1965 (Por uns Dólares a Mais) ..... 252 4.6.1 - Ficha Técnica 252 4.6.2 - Comentários Iniciais 253 4.7 - Organização temática da trilha musical ...... 256 4.7.1 - Per Qualche Dollaro in Più (a música dos Créditos Iniciais e Finais) – Tema 1 256 4.7.2 - La Resa Dei Conti (a idéia da “música de duelo”) – Tema 2 262 4.7.3 - Il Vizio di Ucidere (a idéia da “música de cavalgada”) – Derivada do Tema 1 266 4.7.4 - Addio Colonello (expansão leitmotívica) – Derivada do Tema 2 267 4.7.5 - Decupagem 268 4.7.6 - Parte 1 – Créditos Iniciais 272 4.7.7 - Alguns Exemplos da Utilização do Tema 1 276 4.7.8 - Alguns Exemplos da Utilização do Tema 2 281 4.7.9 - Fragmento 44 e 45: O Duelo final 285 4.8 - A Música de Il buono, Il brutto, Il cattivo – 1966 (Três Homens em Conflito) 288 4.8.1 - Ficha Técnica 288 4.8.2 - Comentários Iniciais 289 4.8.3 - Sinopse 290 4.9 - Organização Temática da Trilha Musical ...... 293 4.9.1 - Decupagem 293 4.9.2 - As faixas do CD das músicas do filme: “il buono, il brutto, il cattivo” 294 4.9.3 - Tema Principal: “Il Buono, il brutto, il cattivo” (a música dos créditos iniciais e finais) 296 4.9.3.1: Fragmento 1: Créditos Iniciais ...... 303 4.10 - Apresentação dos três protagonistas ...... 306 4.10.1 - Tuco: “Il Brutto” 306 4.10.1.1: Fragmento 2: Tuco ...... 306 4.10.2 - Angel Eyes: “Il Cattivo” 307 4.10.2.1: Fragmento 3: “Il Tramonto” (O Por do Sol) – Angel Eyes ...... 307 4.10.2.2: Fragmento 4: “Angel Eyes”, “Il Cattivo” ...... 309 4.10.3 - Blondie: “Il Buono” 310 4.10.3.1: Fragmento 5: Blondie ...... 310

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4.10.3.2: Fragmento 6: Blondie, “Il Buono” ...... 311 4.11 - Temas Secundários 312

4.11.1 - Fragmento 8: “Il Ponte di Corde” (A Ponte de Cordas) - Ostinato 312 4.11.2 - Fragmento 12: “Inseguimento” (Perseguição) - Cavalgada 313 4.11.3 - Fragmento 13: “Il Deserto” (O Deserto) – Princípio Serial 313 4.11.4 - Fragmento 11: “La Carrozzo dei Fantasmi” 315 4.11.5 - O irmão de Tuco 316 4.11.5.1: Fragmento 16: “La Missione San Antonio” ...... 316 4.11.5.2: Fragmento 16: “Padre Ramirez” ...... 316 4.11.6 - Fragmento 20: “Marcetta” 317 4.11.7 - Os “toques” de corneta 319 4.11.8 - Fragmento 24: “La Storia di un Soldato” 320 4.11.9 - fragmento 24: “Il Treno Militare” (“La Storia di un Soldato”) 323 4.11.10 - Fragmento 25: “La Morte di un Ladrone” 324 4.11.11 - Fragmento 29: “Due Contro Cinque” (Dois contra Cinco) 324 4.11.12 - Fragmento 31: “Marcetta Senza Speranza” 324 4.11.13 - Fragmento 32: “Morte di un Soldato” 325 4.11.14 - Fragmento 34: “L’Estasi Dell’oro”(O êxtase do Ouro) 325 4.12 - Fragmento 36: “Il Trielo” final ...... 329 4.12.1 - Epílogo 334 4.13 - A Música de Ennio Morricone na Segunda Trilogia de Sergio Leone ...... 336 4.14 - A Música de C’Era Una Volta il Western - 1968 (Era uma Vez no Oeste) .... 341 4.14.1 - Ficha Técnica 341 4.14.2 - Comentários Iniciais 342 4.14.3 - Sinopse 346 4.15 - Organização temática da trilha musical ...... 348 4.15.1 - Decupagem 348 4.15.2 - As faixas do CD das músicas do filme: “C’era una volta il West” 348 4.15.3 - Os Créditos Iniciais 349 4.16 - Temas Principais (leitmotivs) ...... 351 4.16.1 - Jill (Claudia Cardinale): “A melhor prostituta de New Orleans” 353 4.16.1.1: Jill chega à estação ...... 356 4.16.1.2: Todos mortos ...... 360 4.16.1.3: Jill chega em casa. Funeral e solidão ...... 360 4.16.1.4: Epílogo e créditos finais ...... 360 4.16.2 - Cheyenne (Jason Robards): “O bandido romântico” 361 4.16.2.1: Cheyenne e Gaita na estalagem ...... 362 4.16.2.2: Cheyenne invade a casa de Jill ...... 363 4.16.3 - Mr. Morton (Gabrielle Ferzetti): “O homem de negócios que se imagina como um pistoleiro” 363 4.16.4 - Frank (Henry Fonda): “o assassino que é meio homem de negócios, meio pistoleiro e que quer ingressar no novo mundo dos negócios”; e Gaita (Clarles Bronson): “o vingador solitário” 365 4.16.4.1: Gaita enfrenta três homens armados ...... 368 4.16.4.2: O assassinato da família MacBain ...... 368 4.16.4.3: Gaita salva Jill aos olhos de Cheyenne ...... 369 4.16.4.4: Primeiro encontro entre Frank e Gaita ...... 369 4.16.4.5: O duelo final ...... 369

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4.17 - A Música de C’era una volta L’ America – 1984 (Era uma Vez na América) 372 4.17.1 - Ficha Técnica 372 4.17.2 - Comentários Iniciais 372 4.17.3 - Sinopse 374 4.17.4 - Decupagem 377 4.17.5 - As faixas do CD das músicas do filme: “Once Upon a Time in America” 377 4.17.6 - Temas pré-existentes 379 4.17.6.1: God Bless America ...... 379 4.17.6.2: Summertime; Night and Day e Yesterday ...... 383 4.17.6.3: “La Gazza Ladra” ...... 384 4.17.7 - Temas Principais 384 4.17.7.1: Tema 1: Poverty ...... 385 4.17.7.2: Tema 2: “Cockeyes’ Song” ...... 387 4.17.7.3: Tema 3: “Once Upon a Time in America” ...... 389 4.17.7.4: Tema 4: “Debora’s Song” ...... 392 4.17.7.5: Tema 5: “Amapola” ...... 395 4.17.8 - Música original secundária 400 4.17.8.1: “Prohibition Dirge” (Música para o enterro da “Lei Seca”) ...... 400 4.17.8.2: “Speakeasy” ...... 400 4.17.9 - Síntese da organização temática da trilha musical 401 4.17.10 - A estrutura temporal circular do filme 402 4.18 - A Música de The Mission – 1986 (A Missão) ...... 403 4.18.1 - Ficha Técnica 403 4.18.2 - Comentários Iniciais 404 4.19 - Organização Temática da Trilha Musical ...... 409 4.19.1 - Decupagem 409 4.19.2 - As faixas do CD das músicas do filme: “The Mission” 414 4.19.3 - Conceito 415 4.20 - Núcleos Temáticos de “The Mission” ...... 417 4.20.1 - Núcleo A: O oboé do Padre Gabriel 417 4.20.1.1: Tema Principal 1: Gabriel’s Oboe ...... 417 4.20.1.2: Tema secundário derivado do Tema 1 ...... 422 4.20.1.2.1 - The Sword ...... 422 4.20.2 - Núcleo B: Harmonização da melodia do Tema 1 422 4.20.2.1: Tema Principal 2: Moteto: Conspectus Tuus ...... 422 4.20.3 - Núcleo C: música étnica – “Vita Nostra” 424 4.20.3.1: Tema Principal 3: River ...... 424 4.20.3.2: Temas Secundários derivados do Tema 3...... 425 4.20.3.2.1 - Asuncion: ...... 425 4.20.3.2.2 - Guarani: ...... 426 4.20.4 - Tema Principal 4: The Mission 427 4.20.4.1: Temas secundários derivados do Tema 4: The Mission ...... 428 4.20.4.1.1 - Falls/Climb e Penance/Remorse ...... 428 4.20.4.2: Miserere ...... 429 4.20.4.3: Corais à cappela ...... 431 4.20.4.3.1 - Ave Maria Guarani ...... 431 4.20.4.3.2 - Te Deum ...... 432 4.20.5 - On the earth as it is in Heaven: A Síntese da organização temática no filme 433 4.20.5.1: Os Créditos Finais ...... 434 4.21 - A Música de Canone Inverso: Making Love – 2000 ...... 437 4.21.1 - Ficha Técnica 437

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4.21.2 - Comentários Iniciais 438 4.22 - Organização Temática da Trilha Musical ...... 440 4.22.1 - Decupagem 440 4.22.2 - Gravação Musical (CD) 445 4.22.2.1: Agrupamento Temático no CD ...... 446 4.22.3 - Conceito 447 4.23 - Grupo 1: Leitmotiv da pianista Sophie Levi ...... 448 4.23.1 - Chiaro di Luna di Giorno 448 4.23.1.1: Indo para a cidade: “Clair de La Lune di Giorno” ...... 449 4.23.1.2: Na casa de Banhos: A primeira conversa de Jeno com Sophie ...... 450 4.23.2 - Grupo 2: Finale di un Concerto Romantico Interroto 452 4.23.2.1: Sophie Levi: a pianista ...... 455 4.24 - Grupo 3: Ambientação do Colegium Musicum ...... 457 4.24.1 - Goliardi e Sport 457 4.25 - Grupo 4: Sonoridades “climáticas” ...... 457 4.25.1 - Jeno Crescendo e Recebendo o Violino: A herança do pai verdadeiro 457 4.25.2 - Desespero - Momento meta-diegético 460 4.25.3 - Intermezzi 460 4.26 - Grupo 5: Sonoridades dos alemães...... 461 4.26.1 - Elmeti di Fuoco 461 4.27 - Grupo 6: Músicas pré-existentes executadas diegeticamente pelos violinos ... 461 4.27.1 - A Ciaccona de Bach 461 4.27.1.1: Aula com o Maestro Weigel ...... 462 4.27.2 - Capriccio “La Caccia” 463 4.27.2.1: O Violino de Jeno é Confiscado ...... 464 4.27.3 - Songs that my mother taught me 466 4.28 - Grupo 7: Canone Inverso ...... 467 4.28.1 - Construindo o “Canone Inverso” 467 4.28.2 - As inserções do canone inverso 473 4.28.2.1: Créditos Iniciais: “Canone Inverso” ...... 474 4.28.2.2: Canone Inverso: “Nel Campo” ...... 476 4.28.2.3: Flashback dentro do flashback – O efeito do “Canone Inverso” ...... 477 4.28.2.4: Canone Inverso – A Boca Chiusa ...... 478 4.28.2.4.1 - In Bicicleta: Lebhaft ...... 479 4.28.2.5: Morte da mãe de Jeno ...... 480 4.28.2.6: A partitura do “Canone Inverso” ...... 481 4.28.2.7: “Canone Inverso”: O Confronto ...... 482 4.28.2.8: “Canone Inverso”: Da Capo ...... 482 4.28.2.9: “Canone Inverso”: A Troca das Melodias ...... 482 4.28.2.10: Canone Inverso: “Nel Campo” ...... 482 4.28.2.11: Canone Inverso: Jeno está morto ...... 483 4.29 - A Música como Personagem ...... 485 4.29.1 - A Forma das Inserções do Canone Inverso 488

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 500

6. BIBLIOGRAFIA ...... 506 6.1 - Entrevistas de Ennio Morricone ...... 512 6.2 - Documentário ...... 512

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TABELAS, GRÁFICOS, FIGURAS E EXEMPLOS

TABELA 1 – OS NÍVEIS DE INTERVENÇÃO DA MÚSICA NOS FILMES (MICELI E MORRICONE, 2001:81) ...... 61

TABELA 2 – CRONOLOGIA DE ENNIO MORRICONE ...... 104

TABELA 3 – PRODUÇÃO DE MORRICONE ...... 137

TABELA 4 – PREMIAÇÕES E RECONHECIMENTOS ...... 152

TABELA 5 – CONCERTOS DE MÚSICA DE CINEMA ...... 154

TABELA 6 – MÚSICA DE CONCERTO – (MICELI, 1994: 356-379) ...... 158

TABELA 7 – DECUPAGEM DO FILME PER UN PUGNO DI DOLLARI - 1964 ...... 220

TABELA 8 – DECUPAGEM DO FILME PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ - 1965 ...... 269

TABELA 9 – CD: IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO...... 295

TABELA 10 – LEITMOTIVS DE IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO, 1966...... 301

TABELA 11 – FICHA TÉCNICA – “CANONE INVERSO” ...... 438

TABELA 12 – AS FAIXAS DO CD – CANONE INVERSO ...... 445

TABELA 13 – GRUPOS TEMÁTICOS DA TRILHA SONORA MUSICAL DO “CANONE INVERSO” ...... 446

GRÁFICO 1 – PRODUÇÃO DE MORRICONE POR DÉCADAS ...... 137

GRÁFICO 2 - FINALE DI UN CONCERTO ROMANTICO INTERROTO ...... 453

GRÁFICO 3 – ESTRUTURA PRELIMINAR DAS INSERÇÕES DO “CANONE INVERSO” ...... 491

GRÁFICO 4 – A ESTRUTURA NARRATIVA DO FILME ...... 497

GRÁFICO 5 – GRÁFICO SINTÉTICO DAS INSERÇÕES ...... 499

FIGURA 1 - MORRICONE E LEONE NO ISTITUTO JEAN-BAPTISTE DE LA SALLE (1938) ...... 114

FIGURA 2 - ZOOM DA FOTO – DESTAQUE DE LEONE E MORRICONE ...... 114

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FIGURA 3 – TEMA DE IL FEDERALE - 1964 ...... 134

FIGURA 4 – REPRESENTAÇÃO DA LINHA DRAMÁTICO-NARRATIVA DO FILME (ESSLIN, 1986:48) ...... 178

FIGURA 5 – ARCOS AUXILIARES (ESSLIN, 1986:49) ...... 179

FIGURA 6 – FRAGMENTAÇÃO DA APRESENTAÇÃO DOS ELEMENTOS (ESSLIN, 1986:51) ...... 179

FIGURA 7 – DEVELOPMENTAL SCORE ...... 180

FIGURA 8 – SEGMENTOS FORMAIS DOS CRÉDITOS INICIAIS DA TRILOGIA DOS DÓLARES (MICELI, 2001:167) .182

FIGURA 9 – ESSLIN & PRENDERGAST ...... 184

FIGURA 10 – “IL DEGUELLO” DE DIMITRI TIOMKIN ...... 192

FIGURA 11 – IDÉIA MELÓDICA PRINCIPAL DO FILME PER UN PUGNO DI DOLLARI – 1964 ...... 201

FIGURA 12 – DISPOSIÇÃO INTERVALAR DOS MODOS POR FUX ...... 209

FIGURA 13 – CARACTERIZAÇÃO DOS MODOS EM FUX ...... 209

FIGURA 14 – UTILIZAÇÃO MELÓDICA NA FUGA ...... 210

FIGURA 15 – UTILIZAÇÃO MELÓDICA NA IMITAÇÃO ...... 210

FIGURA 16 – PONTE 2 DE TITOLI ...... 217

FIGURA 17 – FORMA DE TITOLI ...... 218

FIGURA 18 – CRÉDITOS INICIAIS – TITOLI - SINCRONIAS ...... 224

FIGURA 19 – CITAÇÕES DE SERGIO LEONE: MUYBRIDGE ...... 226

FIGURA 20 – CITAÇÕES DE LEONE: TEX WILLER ...... 226

FIGURA 21 – SILHUETAS DOS PRÓPRIOS PERSONAGENS ...... 227

FIGURA 22 - VALOR AGREGADO E SÍNCRESE (MICHEL CHION) ...... 229

FIGURA 23 – MOTIVO JOE ...... 231

FIGURA 24 – FANFARRA QUE PRECEDE A TROCA DE PRISIONEIROS ...... 239

FIGURA 25 – TORTURA DE SILVANITO ...... 246

FIGURA 26 - JOE ...... 247

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FIGURA 27 – JOE SE APROXIMANDO...... 247

FIGURA 28 – RAMON E OS ROJOS ...... 247

FIGURA 29 – RAMON ROJO ...... 248

FIGURA 30 – A PROTEÇÃO DE AÇO COM 7 MARCAS DE 7 TIROS ...... 249

FIGURA 31 – JOE MATA TODOS MENOS RAMON ...... 249

FIGURA 32 – PRIMEIRA PARTE DE PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ (MICELI, 1994:125) ...... 259

FIGURA 33 – CÉLULA DE PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ – LEITMOTIV DE MONCO ...... 260

FIGURA 34 – MELODIA DA GUITARRA DE PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ ...... 261

FIGURA 35 – MELODIA DO CORO MASCULINO: PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ (1965) ...... 262

FIGURA 36 – TIQUE-TAQUE DO RELÓGIO DE BOLSO - CARRILHÃO ...... 263

FIGURA 37 – MELODIA PRINCIPAL DA RESA DEI CONTI ...... 264

FIGURA 38 – INTRODUÇÃO DA TOCCATA E FUGA EM RÉ MENOR (BWV 565, COMPOSTA ENTRE 1703 A 1707) DE

J. S. BACH ...... 264

FIGURA 39 – MELODIA DE IL VIZIO DI UCIDERE ...... 267

FIGURA 40 – ESCALAS PENTATÔNICAS DA MELODIA DE IL VIZIO DI UCIDERE ...... 267

FIGURA 41 – ADDIO COLONELLO ...... 268

FIGURA 42 – TELA DE ABERTURA DE PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ (POR UNS DÓLARES A MAIS) - 1965 ...... 272

FIGURA 43 – CRÉDITOS INICIAIS – POR UNS DÓLARES A MAIS - 1965 ...... 273

FIGURA 44 – PRIMEIRO CRÉDITO DO FILME POR UNS DÓLARES A MAIS - 1965 ...... 274

FIGURA 45 – GEORGE BARNES – THE GREAT TRAIN ROBBERY - 1903 ...... 275

FIGURA 46 – CRÉDITOS INICIAIS: PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ (1965) ...... 276

FIGURA 47 – FINAL DOS CRÉDITOS INICIAIS: PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ (1965) ...... 276

FIGURA 48 – TRILHA MUSICAL: IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO ...... 296

FIGURA 49 – IMITAÇÃO DO SOM DO UIVO DO COIOTE...... 297

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FIGURA 50 – NÚCLEO DA TRILHA MUSICAL DE IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO ...... 298

FIGURA 51 – MELODIA PRINCIPAL DE IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO ...... 298

FIGURA 52 – RITMO DO CAVALO ...... 299

FIGURA 53 – RITMO DO CAVALO (CAIXA-CLARA) ...... 299

FIGURA 54 – INTRODUÇÃO DA MELODIA PRINCIPAL DOS CRÉDITOS INICIAIS ...... 300

FIGURA 55 – MELODIA DA GUITARRA ELÉTRICA ...... 302

FIGURA 56 – INÍCIO DOS CRÉDITOS INICIAIS DE IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO (1966) ...... 303

FIGURA 57 – PERSONAGENS: IL BUONO (CLINT EASTWOOD), IL BRUTTO (), IL CATTIVO (LEE VAN

CLEEF) ...... 305

FIGURA 58 – CRÉDITOS INICIAIS: IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO (1966) ...... 305

FIGURA 59 – TUCO: “IL BRUTTO” (“THE UGLY”) ...... 306

FIGURA 60 – “IL TRAMONTO” (LEINBERGER, 2004:76) ...... 308

FIGURA 61 – ANGEL EYES: “IL CATTIVO” (“THE BAD”) ...... 310

FIGURA 62 – BLONDIE: “IL BUONO” (THE GOOD”) ...... 312

FIGURA 63 – OSTINATO DE “IL PONTE DI CORDE” ...... 312

FIGURA 64 – MELODIA PRINCIPAL DE “IL DESERTO” ...... 314

FIGURA 65 – OSTINATO DE “IL DESERTO” ...... 315

FIGURA 66 – OSTINATOS EM CONTRAPONTO ...... 315

FIGURA 67 – MELODIA DE “LA CARROZZO DEI FANTASMI” ...... 316

FIGURA 68 – “LA MISSIONE SAN ANTONIO” ...... 316

FIGURA 69 – MELODIA DE “PADRE RAMIREZ” (IRMÃO DE TUCO) ...... 317

FIGURA 70 – MELODIA DA “MARCETTA” ...... 318

FIGURA 71 – TOQUE DE CORNETA: “ASSEMBLY” ...... 319

FIGURA 72 – TOQUE DE CORNETA: “DRILL” ...... 320

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FIGURA 73 – TOQUE DE CORNETA: “ATTENTION” ...... 320

FIGURA 74 – TOQUE DE CORNETA: “COMMENCE FIRING” ...... 320

FIGURA 75 – “LA STORIA DI UN SOLDATO”...... 322

FIGURA 76 – OSTINATO DE “L’ESTASI DELL’ORO” ...... 328

FIGURA 77 – MELODIA DE L’ESTASI DELL’ORO” ...... 328

FIGURA 78 – MELODIA DA INTRODUÇÃO (FLAUTA): “IL TRIELO” ...... 331

FIGURA 79 – OSTINATOS DO VIOLÃO: “IL TRIELO” ...... 332

FIGURA 80 – MELODIA PRINCIPAL DO “IL TRIELO” ...... 332

FIGURA 81 – SINOS: “IL TRIELO” ...... 333

FIGURA 82 – IL BRUTTO, IL CATTIVO, IL BUONO ...... 335

FIGURA 83 – LEITMOTIVIC SCORE: ESSLIN E PRENDERGAST ...... 340

FIGURA 84 – LEITMOTIVS DE C’ERA UNA VOLTA IL WEST (1968) ...... 353

FIGURA 85 – TEMA DO FILME E LEITMOTIV DE JILL ...... 354

FIGURA 86 – CHEGADA DO TREM EM FLAGSTONE ...... 356

FIGURA 87 – CHEGADA DE JILL ...... 357

FIGURA 88 – INÍCIO DO “TEMA DE JILL” ...... 358

FIGURA 89 – SAINDO DA ESTAÇÃO DE FLAGSTONE ...... 358

FIGURA 90 – LEITMOTIV DE CHEYENNE ...... 361

FIGURA 91 – LEITMOTIV DE MR. MORTON ...... 364

FIGURA 92 – MOTIVO DO PERSONAGEM GAITA ...... 366

FIGURA 93 – LEITMOTIV DE GAITA E DE FRANK ...... 367

FIGURA 94 – LETRA DE “GOD BLESS AMERICA” DE IRWIN BERLIN ...... 380

FIGURA 95 – PARTITURA DE “GOD BLESS AMERICA” DE IRWIN BERLIN ...... 381

FIGURA 96 – MELODIA DE POVERTY ...... 385

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FIGURA 97 – MELODIA DE COCKEYES’ SONG ...... 387

FIGURA 98 – TEMA DE C’ERA UNA VOLTA L’AMERICA ...... 389

FIGURA 99 – MELODIA DO TEMA DE DÉBORA ...... 392

FIGURA 100 – MELODIA DE AMAPOLA ...... 395

FIGURA 101 – TITO SCHIPA: AMAPOLA ...... 397

FIGURA 102 – SPOTNICKS: AMAPOLA ...... 397

FIGURA 103 – AMAPOLA (PAPOULA) ...... 398

FIGURA 104 – OS LEITMOTIVS DE “C’ERA UNA VOLTA L’AMERICA” ...... 401

FIGURA 105 – OS EVENTOS E A ESTRUTURA TEMPORAL CIRCULAR DO FILME ...... 402

FIGURA 106 – MELODIA DO OBOÉ: PADRE GABRIEL ...... 417

FIGURA 107 – PADRE GABRIEL – THE MISSION (1986) ...... 418

FIGURA 108 – PADRE GABRIEL E RODRIGO MENDONZA: THE MISSION (1986)...... 420

FIGURA 109 – MORTE DO PADRE GABRIEL ...... 421

FIGURA 110 – CARDEAL ALTAMIRANO ...... 421

FIGURA 111 – HARMONIZAÇÃO: MOTETO “CONSPECTUS TUUS” ...... 423

FIGURA 112 – TEMA ÉTNICO: RIVER ...... 424

FIGURA 113 – COMUNHÃO ...... 425

FIGURA 114 – THE MISSION (1986) ...... 427

FIGURA 115 – ORGANIZAÇÃO TEMÁTICA DE “A MISSÃO” (1986) ...... 433

FIGURA 116 – ON EARTH AS IT IS IN HEAVEN – CRÉDITOS FINAIS ...... 434

FIGURA 117 – INTRODUÇÃO DO FINALE DI UN CONCERTO ROMANTICO INTERROTO ...... 453

FIGURA 118 – PARTE {A} DO CONCERTO ...... 454

FIGURA 119 – SOPHIE LEVI ...... 456

FIGURA 120 – LA CACCIA (NICOLÒ PAGANINI, 24 CAPRICCI FOR VIOLIN SOLO, Nº 9)...... 464

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FIGURA 121 – IDÉIA PRINCIPAL DO “CANONE INVERSO” ...... 469

FIGURA 122 – MOTIVO DO “CANONE INVERSO”...... 469

FIGURA 123 – MELODIA PRINCIPAL DO “CANONE INVERSO” ...... 470

FIGURA 124 – PROCEDIMENTO DE COMPOSIÇÃO DO “CANONE INVERSO” ...... 470

FIGURA 125 – O ESPELHAMENTO RETRÓGRADO DO “CANONE INVERSO” ...... 470

FIGURA 126 – O “CANONE INVERSO” ...... 471

FIGURA 127 – DATA DA COMPOSIÇÃO DO “CANONE INVERSO”: 02/12/1919 ...... 482

FIGURA 128 – ANO DE NASCIMENTO E MORTE DE JENO VARGA ...... 484

EXEMPLO 1 – NINNA NANNA (MICELI,1994:118) ...... 194

EXEMPLO 2 – TRANSFORMAÇÕES DE MORRICONE ...... 195

EXEMPLO 3 – – SEGUNDO TEMA PRINCIPAL DO FILME ...... 196

EXEMPLO 4 – ESCALA HEXATÔNICA DE RÉ ...... 201

EXEMPLO 5 – MODOS DE RÉ: EÓLIO OU DÓRICO ...... 202

EXEMPLO 6 – MOTIVO PRINCIPAL DE TITOLI ...... 202

EXEMPLO 7 – CÉLULA RÍTMICA DE ACOMPANHAMENTO DO VIOLÃO ...... 203

EXEMPLO 8 – TITOLI - PRIMEIRA PARTE (MICELI, 1994:110-11) ...... 204

EXEMPLO 9 – VARIANTE MELÓDICA DA GUITARRA (MICELI, 1994: 112) ...... 205

EXEMPLO 10 – CORO MASCULINO (MICELI, 1994:112) ...... 206

EXEMPLO 11 – QUINTINA DA FLAUTA DOCE ...... 206

EXEMPLO 12 – PERCUSSÃO AUTÓCTONA ...... 207

EXEMPLO 13 – FUGA A DUAS VOZES NO MODO DE RÉ ...... 211

EXEMPLO 14 – DERIVAÇÃO MELÓDICA MODAL DE TITOLI ...... 212

EXEMPLO 15 – MELODIA DA GUITARRA – TITOLI ...... 214

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EXEMPLO 16 – RITMOS DO “GALOPE DO CAVALO” ...... 214

EXEMPLO 17 – CORAL MASCULINO - “WE CAN FIGHT” ...... 216

EXEMPLO 18 – DERIVAÇÃO DO TEMA DE POR UNS DÓLARES A MAIS (1965) ...... 257

EXEMPLO 19 – MELODIA PRINCIPAL DE PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ ...... 258

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INTRODUÇÃO

Num dos momentos mais aguardados e emocionantes da cerimônia de premiação do 79º Oscar, no dia 25 de fevereiro de 2007, o ator e diretor Clint Eas- twood (nascido em São Francisco, 31/05/1930) entregou, em nome da Academia de Cinema, uma estatueta ao compositor italiano Ennio Morricone (nascido em Roma em 10/11/1928) em reconhecimento a sua “extraordinária e multifacetada contribuição à arte da música para filmes”. Il Maestro, como é carinhosamente chamado na Itália, por muito tempo, ambicionava o prêmio e, de fato, esteve muito próximo dele em cinco indicações anteriores, sem, no entanto, ter alcançado o “grande” intento. Ennio Morricone, então com 78 anos, 50 dedicados à música de cinema – “música aplicada” como prefere se referir ao trabalho do compositor de cinema – entrou no palco aplaudido de pé por todos os presentes. Já próximo ao público, curvou-se, em sinal de agradecimento. Eastwood, visivelmente emocionado, felici- tou Morricone, também agradecido pela importante contribuição do músico das trilhas musicais da primeira trilogia dos filmes de Sergio Leone (Roma, 3/1/1929 — 30/4/1989) que, decididamente, influenciou na projeção profissional dos três. Mor- ricone recebeu o prêmio ainda curvado e muito aplaudido. Em seu calculado dis- curso, em italiano, um momento chamou muito a atenção:

[...] Acredito que este prêmio não represente para mim um ponto de che- gada, mas, um ponto de partida para melhorar [pausa, emocionado], pa- ra me tornar melhor no ofício do cinema e no ofício também... também, da minha estética pessoal sobre a música aplicada. (MORRICONE: 2007)

Abstraindo o que provavelmente, para muitos, foi mais um momento de grande ironia e, talvez, de falsa modéstia – como pode alguém com sua experiên- cia e reconhecimento estar no ponto de partida? – ressalta três conceitos impor- tantes que contribuíram diretamente na conformação de seu pensamento musical: o ofício do músico no cinema, uma estética pessoal e a música aplicada.

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Nosso contato inicial com esses conceitos utilizados por Ennio Morrico- ne se deu em julho de 1992, quando ele e Sergio Miceli ministraram conjuntamen- te o Corso di Perfezionamento in Musica per Film, “Accademia Musicale Chigiana”, Siena – Itália. Sucintamente, o curso propunha a possibilidade de uma confluência entre dois pensamentos relacionados à música de cinema em duas abordagens: uma musicológica, histórica e teórica, voltada a apresentar instrumentos idôneos na análise das relações intercorrentes entre música e imagem (a parte de Sergio Miceli); a outra, profissional, artesanal, estritamente relativa a um pensamento e uma praxe compositiva desenvolvida dentro dos vínculos impostos pela própria produção e linguagem cinematográfica (a parte de Ennio Morricone). Mesmo que primariamente distintas, de modo geral, as abordagens percorreram assuntos que, insistentemente, orbitavam em torno de um único pro- blema: qual o contexto da música e do compositor de cinema na história contem- porânea? Dessa centralidade, surgiu a idéia básica para este trabalho: um estudo sobre o pensamento musical no cinema exemplificado pela “música aplicada” de Ennio Morricone, ou seja, o trabalho busca apresentar, estender e aprofundar a proposta de confluência estabelecida por Morricone e Miceli acrescida por tópicos significativos do instrumental teórico da área de música de cinema, principalmente o referenciado no campo acadêmico. Nesse viés do estudo e aprofundamento da idéia inicial na extensa ci- nematografia onde Morricone participou como compositor, na literatura especiali- zada sobre música de cinema, nas disciplinas e grupos de estudos realizados na UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas, desde 2003, com o Prof. Dr. Claudiney Carrasco, primeiramente como aluno especial e, posteriormente (desde março de 2006) como aluno regular do curso de doutorado em música, delinea- mos, desenvolvemos e concretizamos este trabalho destinado a cumprir parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Música. A linha de pesquisa em que se enquadra é a de Fundamentos Teóricos.

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Apesar de reconhecido e constantemente referenciado na literatura es- pecializada, são escassos os trabalhos – sejam livros, teses ou artigos – que abordem exclusivamente o trabalho de música para cinema de Ennio Morricone. Essa lacuna se dá em outras línguas, inclusive no italiano, e é praticamente inexis- tente no Brasil (salvo algumas citações pontuais). Seu extenso trabalho como compositor de música de cinema por cinco décadas – desde o início da década de 1960 até hoje – conta com mais de 400 trilhas sonoras musicais (conseguimos enumerar 401, mais precisamente). Obviamente, sua obra é contaminada por in- fluências e contradições tanto práticas quanto teóricas que inviabilizam uma abor- dagem quantitativa e com o respaldo unívoco de uma metodologia com referencial teórico singular. Dessa forma, dada a riqueza, envergadura e penetração de sua atua- ção profissional, o direcionamento de nosso trabalho se estabeleceu tanto numa vertente mais geral, percorrendo panoramicamente momentos decisivos de sua vida e obra, quanto em outra mais particularizada, objetivando aprofundar-se em momentos significativos, onde são estabelecidas instâncias reveladoras de seu pensamento musical aplicado, em procedimentos e/ou conceitos engajados com a valoração das relações audiovisuais criadas. O trabalho está dividido em três partes ou diretrizes: na Parte 1: Musica per film, apresenta a origem de alguns dos pontos mais seminais que compõem parte do corpo conceitual sobre a música no objeto fílmico e que conformam as- pectos importantes do ofício do músico no cinema; na Parte 2: Ennio Morricone: Tradição e Singularidade na Música de Cinema, apresenta alguns capítulos do processo que subsidiaram sua estética pessoal, transformando Ennio Morricone numa das personagens atuais mais atuantes na história da música de cinema. A sua trajetória biográfica fornece evidências de como Morricone foi iniciado e o in- vestimento feito sobre seu nome por seus contemporâneos. Na apresentação das informações biográficas, buscou-se destacar momentos que pontuaram sua vida até seu ingresso no cinema, no início da década de 1960, pouco antes de seu re- encontro com Sergio Leone, em 1963; na Parte 3: Análises: a música aplicada na

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Primeira Trilogia de Sergio Leone: Per un pugno di dollari (1964) [POR UM PU-

NHADO DE DÓLARES]; PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ (1965) [POR UNS DÓLARES A MAIS];

IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO (1966) [TRÊS HOMENS EM CONFLITO]; a musica apli- cada nos dois filmes mais representativos da Segunda Trilogia de Sergio Le- one: Once Upon a Time in the West (1969) [Era Uma Vez no Oeste]; e Once Upon a Time in America (1984) [Era Uma Vez na América]. Mais dois filmes: Roland

Joffè – THE MISSION (1986) [A MISSÃO]; e Ricky Tognazzi – CANONE INVERSO (2000) [s.t.]. Espera-se que os resultados advindos desse estudo sobre o pensa- mento musical no cinema ancorado na música aplicada de Ennio Morricone pos- sam, realmente, contribuir à compreensão da música, em especial da “música aplicada”, e aquilo que ela acrescenta ao objeto fílmico enquanto expressão audi- ovisual, ou seja, espera-se que na observação e no desvelamento de algumas dessas relações, tanto técnicas quanto filosóficas, apresente-se uma fenda que possa contribuir significativamente na compreensão da música como recurso poé- tico da narrativa, articulada aos aspectos fundamentais da dramaturgia do objeto fílmico.

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1. MÚSICA DE CINEMA: ASPECTOS E PROBLEMAS DE UMA ATIVIDADE COMPOSICIONAL DO “NOSSO TEMPO”

1.1 - O OFÍCIO DO MÚSICO NO CINEMA

Por muitos anos o filme foi proscrito pela, assim chamada, inteligência e boa so- ciedade humana. Foi mesmo agora, não faz muito tempo que recebeu reconheci- mento oficial e teve a porta de grandes salas nacionais abertas, onde se pode ob- servar a presença de governadores assistindo às suas ‘premières’. Porém, a mú- sica que acompanha o filme ainda está lutando pelo seu lugar ao sol: os profissi- onais da área quase que invariavelmente tratam-na muito casualmente e não es- tão bem certos em suas mentes sobre sua importância; os músicos aproximam-se dela mais por finalidades financeiras que artísticas, e poucos mostram alguma simpatia por suas novas formas; o público, finalmente, não se preocupa muito com a música, quase sempre falha no entendimento da relação de causa e efeito das idéias fílmico-musicais e, como exemplo, está somente inclinado a taxar uma canção-tema como música de filme pelo fato de ter sido cantada ou executada em um filme sonoro. (Kurt London1 - 1936)

Como uma regra, o compositor de cinema situa-se à margem de seus colegas, vis- to que originalidade e novidade não são exigidas dele; ele é um arranjador ou transpositor da inspiração de outros ao invés de um criador. A habilidade de em- prestar, sensata e oportunamente, imitar exemplos bons e apropriados é um valo- roso dote em seu caso, embora essas qualificações de forma alguma agreguem mais brilho ao compositor normal. Algumas vezes a escolha não lhe pertence, e ele é convidado para escrever no estilo de um determinado período, ou fazer o ar- ranjo de uma determinada composição. Enquanto o compositor de cinema pode dispensar o talento para trabalhos originais, ele deve, no entanto, estar plena- mente equipado do ponto de vista técnico. (Leonid Sabaneev2 - 1935)

Quando o compositor italiano Ennio Morricone (10/11/1928 – 82 anos) aproximou-se do cinema, no início da década de 1960, ainda existia um cenário não muito distante do apresentado por essas epígrafes. A música de cinema re- presentava o campo de uma “música menor” imerso em crenças e preconceitos de praticamente nenhum interesse teórico, mas, de grande atividade prática. Aproxi- mar-se dela, fosse por curiosidade, como simples espectador, fosse como profis- sional ou pesquisador, representava ter contato com um objeto muito peculiar,

1 LONDON, K. FILM MUSIC: A Summary of the Characteristic features or its History, Aesthetics, Tech- nique; and possible Developments. London: Faber & Faber Ltd. 1936, p. 11. 2 SABANEEV, L. Music for the filmes. London: Sir Isaac Pitman & Sons, Ltd., Traduzido por: S. W. Pring, 1935, p. v.

5 abrangente e problemático dimensionado por vários tipos de associações, algu- mas consideradas “impuras” ou “contaminadas”. A aproximação de Ennio Morricone não foi uma exceção ao diagnóstico de Kurt London:

Eu não me aproximei do cinema por vocação. A idéia era fazer como tan- tos outros compositores que ganham pouco, mas escrevem aquilo que querem (Ennio Morricone3).

Os compositores mais influentes do cinema comercial, naquele momen- to, principalmente os de Hollywood, e mesmo os da Europa, pensavam a música de cinema a partir de premissas hierárquicas de subordinação às imagens em movimento, além de algumas perspectivas eminentemente funcionais e comerci- ais, compartilhando com algumas convenções e prescrições em relação ao gênero do filme, função da música e seus possíveis efeitos dramáticos no grande público, seus espectadores. Miceli vê nesse período um momento de transição, quando o composi- tor e sua música para filmes serão chamados a desempenhar tarefas muito diver- sificadas em relação às tradicionais, em função das mudanças do próprio cinema.

Superada a ilusão da fase do neo-realismo – ilusão pela ótica musical, é óbvio – a nova espetacularidade cinematográfica e, especialmente, a no- va relação entre direção e roteiro, exigem do músico uma participação mais lúcida, mais criativa e pessoal, por isso menos padronizada em rela- ção ao que era no passado, mesmo que dessa relação nascessem, inevita- velmente, novos estereótipos. O cinema vai articulando-se em gêneros sempre mais compostos e, às vezes, capazes de reassumirem característi- cas diversificados num mesmo filme; desse modo concomitante, um cine- ma de entretenimento, mas também um cinema visionário; de investiga- ção e de denúncia social (raros os casos autênticos), mas também de aná- lises psicológicas e de costumes, com muitos débitos nos confrontos da li- teratura coeva; até as melhores provas da comédia à italiana, hoje, creio, devidamente reavaliadas4.

3 Ennio Morricone, in: MICELI, S. La Musica Nel Film: Arte e Artigianato. Firenze: Discanto Edizioni, 1982, p. 309. 4 MICELI, S. Morricone, la musica, il cinema. Modena: Mucchi Editore S.r.l., 1994, p. 175-176.

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O respaldo da literatura específica sobre música de cinema era prati- camente inexistente na época e, quando existia, era de difícil acesso. Os princi- pais livros e periódicos sobre cinema faziam pouca ou nenhuma menção sobre a música dos filmes e, quando as mencionavam, apresentavam informações ou simples referências gerais eximidas de qualquer análise um pouco mais aprofun- dada que pudesse resultar num entendimento mais abrangente e consistente. Qualquer confluência entre linhas de investigação que pudesse embasar episte- mologicamente a atividade da música de cinema – filosófica, psicológica, musico- lógica, dramatúrgica, audiovisual, tecnológica, narratológica, antropológica, semio- lógica, ideológica, entre outras possíveis – era ainda emergente, ou seja, pratica- mente inexistente. O conceito de música de cinema, com muita freqüência, era utilizado pejorativamente e muito mal compreendido. O próprio Morricone pensava a músi- ca de cinema de uma forma muito ampla, complexa, confusa e problemática não só para a própria época:

A música de cinema é toda em uma; é música sinfônica, é música de câ- mara, é música pop, é música rock, é música folk e todas as músicas po- pulares, música ligeira, música... todas, porém, todas juntas também. Não tem porque ser somente uma coisa já que tem a possibilidade de ser tudo isso junto. Explicar-me-ei: uma das possibilidades que tem o compositor de cinema – mesmo que não somente o compositor de cinema – é a da “contaminação”. No cinema essas contaminações têm a possibilidade de ser o primordial musicalmente. Portanto, o compositor pode trabalhar sobre parâmetros de muitas músicas, expressar-se por vários caminhos, vários gêneros etc. encontrando justamente nessas contaminações a idéia mãe de sua partitura cinematográfica. (Ennio Morricone5)

Muitos críticos musicais e parte significativa dos compositores, regentes e instrumentistas das salas de concerto da época abominavam a idéia da conta- minação, confundindo-a, de um modo geral, com falta de consciência, originalida- de e criatividade. Negligenciando as especificidades e condicionamentos audiovi- suais do cinema, fosse por desconhecimento ou por aversão, e permeados por

5 MORRICONE, in FRAILE, J. R. Ennio Morricone: Música, cine e Historia. Salamanca: Gráficas Varona, 2001, pp. 460-461.

7 conceitos e ideologias sobre “música absoluta”, “música pura”, “música séria” ou “música culta” versus “música subordinada”, “música programática” ou “música descritiva”, ou ainda, “música ligeira” ou “música popular” – terminologia que influ- enciou, foi absorvida e largamente utilizada pelo próprio Morricone – eram impla- cáveis com os compositores e com sua “música aplicada”. Respaldados, normal- mente, ou na visão romântica da atividade do compositor como “artista criador”, livre de condicionamentos externos à própria obra musical, ou em concepções preliminares e imaturas sobre a sociedade de consumo e a indústria cultural, este- reotipavam o compositor de cinema como um detrator da “alta arte musical”, bom- bardeando-o com as piores insinuações possíveis. O compositor americano de música para cinema David Raksin iniciou seu artigo Talking Back – A Hollywood Composer States Case for His Craft6, em 1951, de uma forma bastante irônica, exemplificando esse estado:

Como um homem que faz muito tempo descobriu que ASCAP é um ana- grama de ASPCA e que por isso é contra o açoite com gatos mortos, dese- jo apontar que a maioria das generalizações anti-hollywoodianas sim- plesmente não tem validade. É muito desconcertante descobrir pessoas que se afastam assustadas em virtude de generalizações mistificadas, ób- vias e aborrecidas disparadas sobre Hollywood7. (David Raksin)

ASCAP é a sigla de Sociedade Americana de Compositores, Autores e Editores (“American Society of Composers, Authors and Publishers”); e ASPCA é a sigla de Sociedade Americana de Prevenção à Crueldade aos Animais (“Ameri- can Society for the Prevention of Cruelty to Animals”). Raksin finaliza esse mesmo artigo afirmando:

Nós somos compositores como outros compositores – herdeiros das mes- mas tradições e problemas, seguidores da música como uma forma de vi- da, que clama somente para que nossa música seja julgada ampla e obje- tivamente8. (David Raksin)

6 In FILM MUSIC NOTES, New York: Official Publication of the National Music Council, março-abril de 1951, volume X, número IV, p. 14. 7 David Raksin, op. cit. 8 David Raksin, op. cit.

8

Um dos pontos mais importantes relacionado às críticas referidas por Raksin, pelo menos as mais sensatas, radicava-se, desde o século 19, na polêmi- ca criada por Eduard Hanslick contra os sentimentos na música. Videira (2005) recorda que desde o século 19, o formalismo musical de Hanslick emoldurou e estabeleceu-se como uma reação às chamadas estéticas do efeito e à concepção de música como expressão dos sentimentos. Contra tais teorias, Hanslick procu- rou estabelecer uma autonomia da música não em seu efeito sobre o sujeito, mas no próprio objeto de arte. Ele não aceitou concepções que consideravam que a finalidade da música era a de suscitar sentimentos, nem as que consideravam os sentimentos como o conteúdo que a música representa em suas obras. No pen- samento de Hanslick, que embasará as principais correntes estéticas da música contemporânea do século 20, o “belo musical” deveria possuir em si mesmo seu significado, e o efeito da música sobre os sentimentos não poderia ser considera- do como o princípio estético da música (VIDEIRA9). Em 1947, Hans Eisler e Theodor W. Adorno publicam Composing for the films. Compactuando com essa postura normativa e ideologicamente orienta- da, os dois autores “condenam com veemência as estratégias sentimentais domi- nantes do cinema clássico norte-americano, assim como toda e qualquer aplica- ção de música com tintas Românticas, em favor do emprego sistemático e exclu- sivo da música pós-Romântica, especialmente das técnicas dodecafônicas e seri- ais” 10.

9 Eduard Hanslick (Praga, 11 de setembro de 1825 — 6 de agosto de 1904) afirmou no Prefácio a seu ensaio de 1854: Do Belo Musical (Trad. N. Simone Neto. Campinas: Editora da Unicamp, 1992) a necessidade de realizar uma revisão na estética musical de seu tempo. A tarefa de seu ensaio seria, pois, a de apresentar os princípios que tal revisão teria que estabelecer, sendo que a chamada “estética do sentimento”, cuja principal doutrina era a de que a música devia “representar sentimentos”, constituía-se no principal alvo de suas críti- cas. Porém, o seu intuito não consistia apenas em provar a insuficiência e o caráter diletante de tal concepção, mas também em fornecer as ferramentas que possibilitariam a reconstrução do conceito de um belo musical esteticamente autônomo. In:VIDEIRA, M. Eduard Hanslick e a polêmica contra sentimentos na música. Músicahodie, vol. 5, nº 2, 2005. 10 JESUS, G. M. Elementos para uma poética da música do cinema : ferramentas conceituais e metodológi- cas aplicadas na análise da música dos filmes Ajuste final e O homem que não estava lá. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas, Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia,doutorado em Comunicação. Orientador: Prof. Dr. Wilson da Silva Gomes, Salvador, 2007.

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Como compositor, o próprio Morricone, em princípio, sempre reconhe- ceu e privilegiou a música como uma arte autônoma, referindo-se a essa instância do objeto de sua composição como “música absoluta”. Porém, concordando com o “clamor” da ambigüidade implícita de Raksin, caracterizado provavelmente por uma possível oposição entre valores conceituais e sentimentais derivados do pró- prio objeto musical, observa que quando o discurso musical se dá inserido no ma- terial fílmico – imagens em movimento em conjunto com a trilha sonora – é prati- camente impossível focar perceptivamente somente os elementos musicais. Nes- se sentido, além do hábil e cuidadoso tratamento a cargo do diretor e de sua equi- pe, a aplicação musical está arraigada em condicionamentos e procedimentos de concepção, percepção e acepção que devido às amplas possibilidades tanto téc- nicas quanto dramático-narrativas do objeto audiovisual, sem dúvida, dificultam qualquer tentativa de compreensão e generalização por vias exclusivas, sejam imagéticas, sonoras ou musicais.

A música deve ajudar a tornar claro o sentido do filme, seja que tenha ca- ráter conceitual, seja que tenha caráter sentimental. Mas que seja senti- mental ou conceitual, para a música é a mesma coisa. A música ajuda a “sentimentalizar um conceito e a conceitualizar um sentimento” (Pier Paolo Pasolini, da apresentação do disco Musiche per l’immagine e l’immaginazione). Por isso, a função da música é sempre ambígua. Tal ambigüidade é justificada pelo fato de que, enquanto busca a participa- ção emotiva do espectador, não pode absolutamente abandonar, e não pode negar, a sua função também didática. Mas, tudo isso, permanece e permanecerá, acredito, um mistério11.

Por isso, no pensamento de Morricone, a música de cinema possui também uma função estrutural e não meramente decorativa: “é assim que traba- lho, pensando em servir ao filme e ao diretor, para que consiga dizer o indizível pelas palavras12”.

11 Ennio Morricone in LUCCI, G. Morricone Cinema e oltre. Milano: Mandadori Electa S.p.A, 2007, p.22. 12 Entrevista no alto da Urca, Rio de Janeiro. http://www.afrobras.org.br/index.php?option =com_content&task=view&id =1850&Itemid=86. Último acesso em 26/04/2010.

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1.2 - UMA ESTÉTICA PESSOAL: A “DUPLA ESTÉTICA”

Ciente de toda ambigüidade envolvida, Morricone formulou um pensa- mento pessoal que pode ser considerado como angular em todas as suas ativida- des composicionais:

A minha atividade como compositor, durante o século passado e depois nesse século, é um pouco ambígua. No sentido que eu não escrevi somen- te o que nós chamamos de música absoluta, mas, também música de ci- nema, isto é, música aplicada. Esses dois compositores não podem ser idênticos porque o compositor de música aplicada está a serviço da obra de outro autor, ou seja, do diretor; enquanto que o compositor de música absoluta está a serviço de si mesmo, de sua idéia, daquilo que ele ouve da composição, de como quer impostá-la, de como quer elaborá-la. (MOR- RICONE: 2007)

Essa separação, que reflete no nível pessoal a ambigüidade quase pa- radoxal do problema geral, revelou-se num árduo e lento trabalho no sentido de encontrar um comportamento racional no labirinto dos problemas condicionantes do meio musical cinematográfico. A problemática divisão de sua forma de atuação como compositor de música absoluta versus música aplicada, que denominou de “dupla estética”, acabou por transformar os limites dos condicionamentos ine- rentes ao processo criativo em uma oportunidade operativa.

A “dupla estética” começou a se configurar no meu trabalho quando, lentamente, tomei consciência dos problemas [...] de comunicação com o público, do relacionamento com o diretor e editores musicais. Eu devia “usar” o público para fazer compreender as minhas propostas, devia fa- zê-lo tendo presente o nível de cultura musical mediana, propondo aquilo que as pessoas fossem capazes de entender facilmente, mas, sem ser pas- sivo. Ter presente os cânones abstratos da comunicação musical de mas- sa, levando em consideração a música primitiva, que é fácil porque é re- petitiva, porque o mais breve inciso musical é reproduzível na memória, e assim como o timbre – como exemplo um grito – sem tornarem-se banais ou renunciatórias13.

Esse pensamento complexo funcionou tanto como um mote interior na base de sua criação composicional de concerto (“música absoluta”) quanto refletiu sua consciência das responsabilidades envolvidas no desenvolvimento de seu

13 Ennio Morricone in LUCCI, G. Morricone Cinema e oltre. Milano: Mandadori Electa S.p.A, 2007, p.28

11 ofício como um “artesão” da música de cinema (“música aplicada”) – ao mesmo tempo em que ajudou preservá-lo dos constantes ataques da crítica que, para ele, não levava em conta os problemas e os condicionamentos estabelecidos pelo próprio trabalho criticado. Em suma, a “dupla estética” de Morricone referencia a possibilidade de uma música que leva em consideração os cânones de facilidade, tanto de com- preensão quanto de comunicação, utilizando modelos de procedimentos técnicos tradicionais consolidados na história secular da música ocidental, seja música ab- soluta ou aplicada, de procedimentos da música contemporânea aplicados à mú- sica tonal e modal e da mistura de todos esses procedimentos aplicados à com- preensão do mass media.

1.3 - A MÚSICA DE CINEMA: MÚSICA APLICADA

Para um compositor que decida colocar sua criatividade ao serviço do cinema se colocam alguns problemas profundos de escolha frente às eventuais ofertas de trabalho. Quais filmes aceitar? Os de arte, ou seja, os ditos filmes de ensaio, os essencialmente comerciais, ou os médios, no sentido de que são bastante pretensiosos em ser considerados de bom ní- vel artístico, sem renunciar o contato com o público e, por isso mesmo, com o sucesso? (MORRICONE, 2008:22)

Obviamente, em sua extensa carreira Morricone teve a oportunidade de trabalhar compondo para os três tipos de filmes, mas, seu pensamento embasado na “dupla estética” procurou contemplar o compositor que tem de produzir música para um tipo “médio” de filmes, “filmes de um nível artístico notável” e que, conse- qüentemente, exige do musicista grande capacidade interpretativa e de ductibili- dade. Em seu pensamento, esse compositor é o que sempre terá de resolver pro- blemas sérios e se sentirá responsável pelo eventual insucesso de um filme: um tipo de compositor que obrigatoriamente leva em conta a si mesmo, as exigências artísticas do seu trabalho, os condicionamentos implícitos e explícitos do filme e não prescinde, exprimindo-se musicalmente, de poder ter um público que o siga e o compreenda.

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O compositor que escreve exclusivamente para filmes de ensaio pode muito bem escrever como sente, com liberdade, dando vazão aos seus me- lhores recursos, sem obrigar-se a abrir mão daquilo que escreve, o que o representa plenamente. O compositor – bondade minha chamá-lo assim, mas existe todo um ar de diletantes – que se ocupa exclusivamente de fil- mes comerciais (isto é que tem por único escopo produtivo o de levar o espectador à bilheteria, a qualquer custo e com qualquer meio) não tem problemas. Não deve fazer outra coisa que servir o público naquilo que o público quer, naquilo que busca, naquilo que encontra normalmente nas danceterias, no rádio, nos discos “folk”, rock, canções etc. (Idem)

Morricone explica enfaticamente que mesmo sua música de cinema – em sua terminologia: “música aplicada” – seria concebida primeiramente como “música pura” – “música absoluta” –, ou seja, mesmo que funcional e subordinada, antes de sua articulação com as imagens e as outras sonoridades, sua composi- ção musical sustentar-se-ia por si mesma, com vida própria, independente de sua aplicação às outras sonoridades e imagens em movimento, entretanto, não exclu- indo do processo composicional fatores que tanto condicionaram quanto nortea- ram sua criatividade. Essa auto-suficiência musical preliminar é permeada por um processo composicional que aparentemente faz concessões ao diretor, às necessidades fílmicas e ao público através da utilização e simplificação do material musical, evi- tando, no entanto, a banalidade gratuita e desmedida. Sua fórmula parte de pe- quenas idéias e contraposições buscando envolver o espectador ocidental médio, independente de sua idade e cultura específica, privilegiando a música “tonal” com sabor popular e, portanto, de fácil audição. Essa sustentação a priori está arraigada num tipo de música que tam- bém pode apelar às audiências no sentido sensual e no nível visceral, e que mesmo assim, em alguns casos, remetem a estruturas complexas o suficiente em seus dispositivos internos, aptas a atrair a atenção de ouvintes exigentes e sofisti- cados. Uma música que pode utilizar qualquer tipo de recurso disponível, que não descarta qualquer tipo de sincretismo ou contaminação e admite ser “levada” por ritmos pop.

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Posteriormente, essa composição “independente” é ouvida “aplicada”, ou seja, veiculada no objeto fílmico, imersa entre os estímulos auditivos e visuais. O resultado é integrado, do ponto de vista cognitivo, num processo unificado, pois, psicologicamente, sensações diferentes recebidas de um mesmo “entorno”, ou seja, estímulos recebidos por sentidos diferentes são, normalmente, amalgamados pelo indivíduo receptor numa mensagem única14 (CHION, 1985:21; FRAILE, 2001:43). Em suma, para Morricone a “música aplicada” é resultado de uma arti- culação conjunta de todas as impressões recebidas a partir dos estímulos sensó- rios gerados pelo objeto fílmico, engendrando interpretativamente na mente do indivíduo (espectador) uma mensagem que, em alguma instância, formará a “ima- gem-som mental” do evento, e, em decorrência, seus possíveis e diversos signifi- cados “conceituais e/ou sentimentalizados”.

É uma coisa que eu também notei e tentei dar uma resposta no passado: creio, mas, repito, trata-se de minha dedução personalíssima de ter sido claro e simples no que escrevi. A minha música para cinema é – na maior parte dos casos – tonal e de fácil audição. Uma escolha de simplicidade que, talvez, foi o suporte para que minhas músicas se tornassem um pou- co próximas as dos fãs de outros gêneros como o pop e o jazz. Com fre- quência meu trabalho foi manipulado por outros em várias outras chaves, entre as quais o rap e isso deu vida – mesmo que eu não seja muito entu- siasta – a experimentos muito interessantes. Não creio ter sido o único: também outros compositores levaram o seu trabalho seguindo esse tipo de escolha. Creio que, num certo sentido, o resgate levado adiante pela simplicidade conotou assim uma música de fácil escuta e do fascínio que atraiu e atrai continuamente novas gerações15.

Em decorrência, boa parte de sua obra para cinema (inclusive a mais conhecida) pode ser demarcada e observada a partir da idéia de “tema musical”

14 Este princípio gestáltico serve como base para o que Michel Chion denomina de “contrato audiovisual”, que constitui as inúmeras projeções possíveis da música e do som na imagem e vice-versa: O esforço mental em fundir imagem, música e som produz uma dimensionalidade que faz a mente projetar as sonoridades “dentro” da imagem, como se ele emanasse da imagem em si. O resultado é que nós vemos algo que existe somente na nossa mente. Ou seja, nós não vemos e depois ouvimos um audiovisual, nós ouvimos/vemos. (1985:21) 15 SPAGNOLI, M. Entrevista, 1970. http://blog.cinema.it/post/1609/ennio-morricone-musica-da-unaltra- stanza. Último acesso em 23/07/2009.

14 que, em virtude das necessidades fílmicas, é desprovido de desenvolvimento harmônico e/ou melódico.

Infelizmente, acontece com frequência que o relacionamento com o dire- tor, mesmo com diretores talentosos, seja feito com o predomínio de te- mas. Sempre tive a impressão de que os temas formam a única base onde os compositores de filme e as pessoas que não tem conhecimento prático direto de música e que não são músicos treinados podem entender-se. Aqui estou utilizando a palavra ‘tema’ em seu sentido clássico: uma linha musical que a audiência apreende, reconhece, entende e, possivelmente, assovia. Penso que existem outros aspectos, talvez mais sutis, mas, tão importantes – se não mais – quanto o próprio tema: sonoridades, sons, ritmos e harmonias. Esses aspectos são um pouco mais difíceis de comu- nicar a alguém que não seja músico16.

Desse modo, após suplantar os condicionamentos inerentes ao proces- so composicional fílmico, costuma apresentar e reapresentar soluções temáticas expressivas embasadas na simplificação, variação e recorrência de ideias melódi- cas curtas, no jogo entre harmonia e estrutura musical, na reutilização de modo criativo, e muitas vezes jocoso, do colorido (timbre) da instrumentação musical recheada com acordes conhecidos e não complexos demais. O musicólogo italiano Sergio Miceli, estudioso da música de Morricone, tentou exprimir essas características de sua música numa epígrafe que muito agradou o próprio compositor: “Norme con Ironie” 17 [Normas com Ironias]. Essa espécie de slogan aponta que, entre outras possibilidades, do ponto de vista mu- sicológico, é quase irresistível a generalização do imenso trabalho de Morricone nos fundamentos do Romantismo, com frequentes evocações de obras barrocas, clássicas, impressionistas e expressionistas de grandes mestres como Pergolesi, Bach, Mozart, Beethoven, Berlioz, Wagner, Debussy, entre outros. Do mesmo modo, essa mesma generalização pode também ser aplicada à grande parte da própria música de cinema, pois faz parte de suas acepções. Numa delas, no ver-

16 E. MORRICONE, Un compositore dietro la macchina da presa, in: Enciclopedia della musica (a cura di J. J. Nattiez), vol. 1 (Il Novecento), Torino: Einaudi, 2001. 17 “Norme con ironie”: Textos produzidos por diversos autores e agrupados por Sergio Miceli na comemora- ção dos 70 anos de Ennio Morricone. Itália: Ed. Suvini e Zerboni, 1999. Também é o nome de um dos temas da trilha musical de Morricone para o filme Cidade Violenta (Città Violenta), dirigido por , lançado em 1970 (faixa 8).

15 bete Film Music escrito por Mervyn Cooke, observa-se que a generalidade está contemplada, porém, com ressalvas:

Música composta ou recopilada para acompanhar películas. O cinema se converteu em uma das principais formas artísticas no século 20 assim como um poderoso e ubíquo meio de comunicação de massas, pelo que a música que o acompanha não é somente uma subcategoria de música in- cidental ou dramática em geral. Os princípios e estilos mais característi- cos da música de cinema podem centrar-se nas correntes do século 19, principalmente na ópera e na música programática, porém, a natureza do meio e as obrigações que o mesmo exerce sobre o compositor originaram problemas específicos cuja solução é única tanto em termos práticos quanto estéticos18.

Na transposição da realidade dessa acepção, e no resgate da epígrafe de Miceli, a obra de Morricone ainda clama para que seja observada como aplica- da, ou seja, pelo ponto de vista dos problemas e soluções específicas que a en- gendrou. Um ponto de vista onde possivelmente tradição e renovação ironicamen- te se mesclam, transformando a tentadora generalização das normas “românticas” iniciais num promissor limiar, irradiador de uma identidade musical própria e de uma energia criativa que influenciou e ainda influencia o pensamento de várias gerações de ouvintes, compositores e pesquisadores da música de cinema.

Na necessidade de sintetizar o meu pensamento e o meu trabalho, [...] consciente e nos limites das minhas possibilidades, determinante de mi- nha liberdade exterior, sempre procurei perseguir um tipo de liberdade interior secreta. Uma liberdade que, apesar do pagamento, das exigên- cias férreas do diretor e, às vezes, da produção, me permitisse manter in- tacta a minha própria identidade musical19.

Mesmo que a síntese de seu pensamento, e consequentemente as rei- vindicações implícitas assumidas por Morricone e Raksin, possa não se realizar concretamente, como em alguns olhares contemporâneos que ainda teimam em contextualizar a música de cinema simplesmente como “um mal necessário”, um amontoado de clichês, música de consumo, entretenimento, informação ou contro-

18 Verbete “Film Music”, COOKIE, M. New Grove Dictionary of Music and Musicians, vol. IV, p. 549. 19 Ennio Morricone in LUCCI, G. Morricone Cinema e oltre.Milano: Mandadori Electa S.p.A, 2007, p.42.

16 le das massas, a vertente ligada aos valores de natureza humana permanece no seio das próprias reivindicações. Desde a época do artigo de Raksin, pouco antes do início das ativida- des cinematográficas de Morricone, no mesmo viés de produção e diversidade de novos filmes, produziu-se também literatura, acadêmica ou não, com o propósito de estudar e entender o objeto fílmico como um fenômeno complexo. De forma geral, parece que os textos e teorias desses círculos tanto cinematográficos quan- to musicológicos tendem a eludir os assuntos referentes à música desse complexo audiovisual, relegando-a a um status menor. Carrasco, já em 1993, referiu que parecia se institucionalizar uma ten- dência em ver a música de cinema não como um dos fatores integrantes da lin- guagem cinematográfica, mas como um discurso paralelo ao próprio filme:

Em grande parte isso ocorre porque não existe ainda uma conceituação e uma terminologia próprias à trilha musical, enquanto a música, ao con- trário, possui uma fundamentação teórica bastante clara e bem sedimen- tada. Sendo assim, torna-se muito tentador explicar a trilha musical ex- clusivamente sob o ponto de vista da música. A teoria de cinema, por sua vez, evita ao máximo aprofundar-se na questão, como se o significado de cinema se confundisse com o de imagens em movimento, pura e simples- mente, reforçando a ideia de que a trilha musical é um discurso paralelo ao próprio filme e não parte integrante dele20.

É sintomático, ainda hoje, perceber que quando se fala de cinema a prioridade se dá, mesmo que implícita e, algumas vezes, justificavelmente, no tra- tamento das imagens como o tipo de moção preponderante e primordial em detri- mento à articulação de todos os outros componentes do complexo narrativo. Mesmo que alguns teóricos tenham abordado a música de cinema, muitas vezes com contribuições ricas e provocativas, essas ainda não foram suficientes o bas- tante para que o componente musical insira-se no processo crítico de recepção, percepção, reflexão e acepção do objeto audiovisual como um todo articulado.

20 CARRASCO, C. R. Trilha Musical – Música e Articulação Fílmica, São Paulo: monografia de mestrado apresentada a ECA – USP, 1993, p. 60.

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Raramente percebe-se que o filme é um todo articulado e que a música é um dos fatores envolvidos nessa articulação. Grandes trilhas musicais que estão totalmente inseridas no contexto dramático de seus respectivos filmes, perfeitamente integradas ao seu fluxo narrativo, muitas vezes pas- sam despercebidas, não porque sejam ruins, mas porque foram pensadas e construídas com esse objetivo21.

Sete anos depois, adentrando no século 21, Neumeyer, Flinn e Buhler (2000) introduzem o livro Music and Cinema22, uma coletânea de artigos de vários autores, lembrando que quando Peter Lehman23 escreveu sobre o campo da músi- ca de cinema – um campo caótico atribuível a teoria psicanalítica, estudos cultu- rais, o lento e prolongado campo da semiótica, um positivismo histórico ressurgen- te e no formalismo filosófico – afirmou que “nenhuma teoria existe fora... do con- texto do valor atribuído por alguém”; por isso, “nenhuma teoria pode ser comple- tamente inclusiva e simplesmente correta: ... nunca haverá um fim na teoria do filme na medida em que as pessoas se importem com o objeto”. Os autores acres- centam que o mesmo pode ser dito sobre a musicologia, exceto que, normalmen- te, o “perpetuado” é o positivismo e alguns ramos do formalismo (o último especi- almente entre músicos acadêmicos que chamam a si mesmo, na maioria das ve- zes equivocadamente, de teóricos), e o que ressurge é a polêmica crítica da sub- jetividade de uma era anterior onde foi assumido que os cânones da música como alta-arte são fixos e eternos (e por isso as prioridades da educação musical são igualmente fixas e imutáveis). Acrescentam que mesmo com todas as contradi- ções é muito gratificante constatar que a área da música de cinema já possui um passado acadêmico com pesquisadores e textos de ambas as áreas revisitando, revisando e desafiando os primeiros trabalhos. Ao inferir sobre a presença da música no cinema os textos oferecem uma pletora de possibilidades que, desde o cinema mudo e, entre outras, passa-

21 CARRASCO, idem, pp. 8-9. 22 O principal autor da introdução do livro é David Neumeyer. Caryl Flinn compôs o rascunho original das seções de abertura, editou um rascunho dos artigos do sumário e preparou uma revisão crítica e perceptiva que melhorou as seções finais; James Buhler editou todo o texto e no processo contribuiu com a inclusão de várias sentenças originais utilizadas. 23 LEHMAN, P. (Ed.) Introdução: Defining Cinema. New Brunswick: Rutgers University Press, 1997.

18 ram pela necessidade de “humanização” da artificialidade da imagem em movi- mento da tela, por considerações práticas (como a tentativa de cobrir o ruído me- cânico do projetor), por considerações técnicas (como suavizar os cortes abruptos e as transições imagéticas entre tomadas diferentes) entre outras e as conse- quências e transformações desses preceitos no cinema contemporâneo, onde, analogamente, a música também auxilia na apreensão da atenção dos espectado- res fora da artificialidade do meio, exerce funções que os transportam para contex- tos específicos (sejam ambientais ou de gênero), revela-se como entidade expres- siva de emoções e sentimentos e articula-se narrativamente, constituindo, conjun- tamente com outros elementos sonoros e imagéticos, a própria estrutura dramáti- ca e, em última instância, a organicidade do discurso audiovisual. O surpreenden- te, segundo os introdutores, é que questões primárias ainda persistem, definidas e redefinidas nas últimas décadas:

 o problema da presença da música no cinema (os filmes necessitam de música?);  descontinuidade cinemática e musical (a música de filme não é nem músi- ca de concerto – nem música de ópera);  a relação da música com a narrativa (especialmente a polaridade diegéti- ca/não-diegética e sua relação com a fonte sonora e música de fundo [background]);  assuntos institucionais e culturais tais como historiografia, cultura e câno- nes de formação (como os estudos de música e cinema “compartilham” o mesmo objeto de estudo? Como são situados na cultura tecnológica do século 21?).

Na abordagem de compositores influentes, como no caso de Ennio Morricone, Miceli (1994:9) acrescenta a dificuldade do estudo de um tipo de “pro- fissional de nosso tempo” que sem termos de comparação tocou todos os setores musicais – em sentido “vertical” e “horizontal”, ou seja, nos aspectos criativos e produtivos – e que tal tarefa pode parecer, de fato, uma auto-atribuição implícita de competências das mais disparatadas:

[...] os estudiosos sabem, os estudantes suspeitam e os leitores comuns ignoram – é já uma empreitada árdua fornecer uma contribuição de

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qualquer interesse movendo-se num setor bem delimitado, no qual vige um conforto absoluto entre os gêneros culto e popular. Certo, se aceitás- semos como fundo um princípio muito propagado, mas pouco praticado seriamente, segundo o qual a música da segunda metade do século 20 é um co-acervo de manifestações compreendendo desde a vanguarda culta e o rock, a música de cinema e a música popular, a pós-vanguarda e uma mistura de gêneros que poderiam ser definidos como kitsch medium, en- tão este estudo estaria dentro das normas24.

A irônica normalidade comentada por Miceli foi formulada analogamen- te no campo da estética e sem ironia por Luc Ferry em seu livro Homo Aestheti- cus: A Invenção do Gosto na Era Democrática (1994) na proposta de um estudo processual analítico centralizado na filosofia da arte capturado pela permeabilida- de e variação dos critérios estéticos na história. Sua formulação exprime analo- gamente o que parece ser o mesmo tipo de problema:

Como chegar, nessa matéria [estética], a uma resposta ‘objetiva’, uma vez que a fundamentação do belo se realiza na mais íntima subjetividade, a do gosto? Mas como, também, renunciar visar a tal objetividade, quan- do o belo, como todos os outros valores modernos, pretende poder diri- gir-se a todos e agradar ao maior número de pessoas? Problema terrível com o qual a estética encontra inevitavelmente, mas a priori e em seu es- tado mais essencial, as questões análogas colocadas ao individualismo no campo da teoria do conhecimento (como fundamentar a objetividade a partir das representações do sujeito?) assim como no campo da política (como fundamentar o coletivo nas vontades particulares?).

Nessa perspectiva, quais critérios – entendidos aqui como aptos à con- formação e ao exame de um pensamento, princípio ou ideia, fato ou percepção com a finalidade de produzir uma apreciação lógica, epistemológica, estética e/ou ética sobre o objeto – permitem investigar ampla e objetivamente a música de ci- nema? Mais especificamente, dentre vários critérios possíveis, consagrados ou não pela cinematografia e/ou musicologia, quais seriam os mais pertinentes na avaliação da produção musical cinematográfica morriconeana?

De todas as implicações relacionadas ao problema é dedutível que qualquer apreciação, análise ou crítica da música utilizada no cinema em sua tra-

24 MICELI, S. Morricone, La Musica, Il Cinema. Milano: Mucchi Editore. 1994, p.9.

20 jetória de aproximadamente 110 anos, pelo menos desde os acompanhamentos improvisados do pianista nas projeções dos irmãos Lumière às elaboradíssimas trilhas musicais que acompanham as grandes produções de hoje, exige um tipo de pensamento mais abrangente e diferenciado: o pensamento musical no cinema.

Pensamento que:

 agrega uma tipologia musical que deve sua existência às exigências e ne- cessidades de uma obra sinergética, materializada também, direta ou indi- retamente, por toda uma legião de artistas, profissionais, tecnólogos e tecnologias – pessoas e equipamentos envolvidos na confecção do objeto fílmico desenvolvido nas fases de pré-produção, produção e pós- produção. E, indo além, considera também o sentido que essa “música aplicada” toma na etapa posterior, no momento da “pós-pós-produção”, onde o produto fílmico se aninha a uma verdadeira indústria, a “indústria cultural”, entretecida na narração de histórias ou informações endereça- das ao grande público, ao espectador e, em alguma instância, proposital ou não, participante na conformação de seu imaginário e de um possível (con)-senso estético;  não descarta a tradição, pelo menos desde Platão e Aristóteles, no senti- do de também acolher o “poder” de impacto emocional ou sentimental, in- grediente rechaçado pelo pensamento de muitas correntes e composito- res do século 20, principalmente a partir de sua segunda metade, onde o possível “apelo visceral” da música foi combatido e meticulosamente evi- tado;  se aglutina numa ampla camada abstrata que, fruto de sua aplicação, compreende um tipo de música ou categoria musical ancorada num grupo de reflexões e conceitos definidos também por condicionamentos e fun- ções externas ao escopo da própria obra musical;  se flexibiliza no sentido de abarcar exceções que escapam ao seu próprio escopo, relativizando suas críticas tanto no sentido das generalizações quanto das particularidades.

Obviamente, corresponder quantitativamente à amplitude dessas exi- gências focadas no trabalho prolífico de Ennio Morricone e na complexidade de seu pensamento exorbita as possibilidades de uma tese ou monografia acadêmi- cas, mas, ao mesmo tempo, suscita o escopo exploratório e qualitativo da pesqui- sa que busca, engajada na observação do ofício do músico de cinema e de sua música cinematográfica, revelar um contexto mais amplo que, no âmbito da arte

21 contemporânea, compromete-se com a própria compreensão do trabalho audiovi- sual.

Por isso, quando falo da procura de uma linguagem cinematográfica comprometida, caso por caso, com princípios gerais que levem em conta seus múltiplos condicionamentos, falo de qualquer coisa que é absoluta- mente necessária também à clareza da fruição do ouvinte e, em definitivo, à compreensão da obra cinematográfica inteira. (MORRICONE, 2007: 31)

Nesses 50 anos de atividade, a música de cinema de Morricone tanto paralelizou quanto contrapôs as práticas hollywoodianas dominantes. A hipótese é de que seu principal comprometimento foi, enquanto uma formulação inicial: arti- cular-se audiovisualmente na promoção narrativa de possíveis significados fílmi- cos. Nessa perspectiva a utilização musical em relação às imagens e outras sono- ridades dependeram de muitas razões que o próprio Morricone classificou em: razões físicas, interiores e de fruição.

Seja como for, a música do cinema não pode ser considerada no mesmo nível daquela que chamei de “outra música”. Se for uma arte, e acredito que sim, no melhor dos casos ela é uma arte no seu instante, com proble- mas estéticos, técnicos e sociológicos exclusivos. Mesmo que na música de cinema seja utilizada outra medida de juízo estético, creio poder afir- mar que certas regras – relacionadas à forma ou não-forma, que regulam os sons organizados e não organizados – permanecem válidas, na reali- dade, e mesmo na música cinematográfica encontram sua justa confirma- ção. (Idem)

Nos limites e limiares de uma tese de doutorado, “O Pensamento Musi- cal no Cinema: O Exemplo de Ennio Morricone” procura relacionar aspectos da organização temática musical com sua articulação na linguagem cinematográfica. Portanto, no âmbito analítico, o estudo se dedica a identificação de algumas variá- veis que, na aplicação musical sincronizada audiovisualmente, apontem para a “justa confirmação” e validade referenciada por Ennio Morricone. Nesse viés, apresentando, percorrendo, delineando e contrapondo par- ticularidades engendradas por tópicos significativos da literatura da área de músi- ca de cinema com as do próprio Ennio Morricone, espera-se revelar algumas ca-

22 racterísticas gerais do pensamento musical do cinema com possibilidades críticas mais próximas à clareza e objetividade clamadas por David Raksin e, sem dúvida, pelo próprio Ennio Morricone.

23

2. MUSICA PER FILM

Nossa gestação se deu no Som, mas nascemos com a Luz. O cinema teve sua ges- tação na Luz, mas nasceu com o Som. (Walter Murch25)

2.1 - CRÉDITOS INICIAIS

Embora possa parecer estranho é oportuno recordar que as persona- gens envolvidas com as primeiras projeções cinematográficas, pouco mais de 100 anos atrás, não projetaram as consequências da criação. O embrião já estava la- tente em várias inovações que se sustentaram em fenômenos visuais abarcados desde o domínio fotográfico até a busca pela síntese do movimento. Walter Murch vê nesse período (1892–1927) no qual o cinema passou sua juventude – “vagando numa pletora de imagens sem voz [mas, quase sempre, acompanhado por música], um celibato de 35 anos, durante os quais a Visão rei- nou como uma rainha solipsística26 e auto-satisfeita” –, uma reversão mecânica da sequência biológica do nascimento humano, período no qual parece nunca suspei- tar-se que o destino pudesse estar arranjando uma aliança com outra rainha, a Audição, a rainha que, real e inicialmente, reinara até o momento do nascimento biológico humano. O pensamento que sustentava os estágios iniciais do nascimento do ci- nema não era o de simplesmente re-presentar o movimento, ou seja, sub-gerir o movimento aos emissores e receptores envolvidos num processo comunicante, mas, apresentar uma cópia objetiva do movimento capturado realmente, na reali- dade, no real, pretensiosamente desprovido de conotações subjetivas: um disposi- tivo científico; revelado no termo que designa, representa e conceitua esse agen-

25 Prefácio de CHION, M. Audio-Vision: sound on screen. USA: Columbia University Press, 1994. 26 Solipsismo: [De sol(i), + lat. Ipse, ‘mesmo’, + -ismo.] S. m. 1. Filos. Doutrina segundo a qual a única reali- dade no mundo é o eu: “o equivalente concreto do que os filósofos chamam de solipsismo, isto é, da atitude que consiste em sustentar que o eu individual de que se tem consciência, com suas modificações subjetivas, é que forma toda realidade” (Temístocles Linhares, Introdução ao Mundo do Romance, p. 463). [Cf. idealismo subjetivo e subjetivismo.] 2. P. ext. Vida ou costume de quem vive na solidão (AURÉLIO).

24 ciamento complexo: cinema – uma redução da palavra cinematógrafo – inicialmen- te utilizada pelos irmãos Lumière27 com a junção das palavras gregas: kinema (κίνημα) = movimento e grapho (γράϕω) = registrar, com a intenção significativa de registro de movimento28. Na contramão dessa pseudo-vocação objetiva, e de muitas outras cren- ças de seus próprios inventores, o cinema passou a projetar filmes que adquiri- ram, pouco a pouco, a finalidade, não exclusiva, de narrar histórias à sua audiên- cia.

Os filmes desse universo foram apreendidos de um corpo de noções feno- menológicas que se fundaram na dissociação entre percepção télica (a bi- dimensionalidade da tela, a constância da dimensão imagética e sua du- ração objetiva, os jogos de luminosidade e de obscuridade, as formas, o que é visível) e percepção diegética, puramente imaginária, hermenêuti- ca, reconstruída pelo pensamento do espectador, espaço-tempo no qual supostamente se passaram todos os acontecimentos que o filme apresen- tou e no qual as personagens pareciam se mover. (SOURIAU, in AU- MONT, 2001:130)

Com o passar dos filmes e dos anos, a tela onde os movimentos regis- trados eram projetados recebeu a companhia de alto-falantes. A revolução causa- da pela reconfiguração do já complexo sistema instaurado engendrou novas pos- sibilidades e outros significados ao termo. Hoje, a palavra agencia uma gama enorme de sentidos e significados abrangendo desde sua origem, filosofia, materi- alidade, história, tecnologia, funcionalidade, finalidade, ideologia, entre outros. To- do desenvolvimento do aparato artístico-tecnológico aplicado, radicados em sécu- los de reflexões teóricas e trabalhos práticos, aprimorou ainda mais o produto ci-

27 Os inventores August e Louis Lumière foram pioneiros na projeção de imagens em movimento para o en- tretenimento do público no Salão Indiano do Grand Café no Boulevard des Capucines, em Paris, no dia 28 de dezembro de 1895, de acordo com Kenneth MacGowan, Behind the Screen: The History and Techniques of the Motion Picture (New York: Dell, 1965), pp. 80-81. 28 Aristóteles, em sua Poética (referindo-se principalmente ao teatro e a poesia) diz que o imitar é congênito no homem e os homens se comprazem no imitado. Nessa perspectiva, também poderíamos dizer que no ho- mem é próprio o desejo de registrar; registrar o que vê, o que ouve, o que sente, o que vive. O homem come- çou a elaborar seus primeiros registros de memória, transmitindo lembranças e uma forma de conhecimento. A forma mais primitiva de expressão e manutenção destes “primeiros” conhecimentos foi o mito.

25 nemático, contribuindo para que o cinema conquistasse um status artístico bastan- te considerável. Sua pletora de possibilidades, que resulta de um profundo vínculo que oscila entre a “realidade” e o “sonho”, o “concreto” e o “abstrato”, o “real” e o “ima- ginário”, ou seja, entre possibilidades que estão simultaneamente radicadas na fenomenologia e na hermenêutica, revela um escopo que dá suporte simultâneo tanto a discursos objetivos que podem instaurar processos lógicos, passíveis de serem transformados em algoritmos, quanto a processos de características heurís- ticas, que teimam em não se deixar capturar. Em todo seu trajeto, um dos componentes responsáveis diretamente por esse status foi a música, que, mesmo no cinema mudo, sustentando-se em antigas raízes matriarcais “abstratas”, articulou-se em um produto audiovisual, por- tador de expressões intelectuais, cognitivas, afetivas e sentimentais. No hiato temporal de seu emergente reconhecimento, imprimiu-se como um agente ativo que, fruto também de sua vocação aplicativa, continuamente (re)-definiu e (re)- definiu-se no e o próprio agenciamento áudio-cinemático. Num certo sentido, a primeira projeção dos irmãos Lumière em 189529, acompanhada pelo músico que tocava piano, projetou também um novo potencial significativo que a música articulada com outras sonoridades e as imagens em movimento do cinema viria a adquirir na narrativa de suas histórias.

O desenvolvimento da linguagem narrativa do cinema passa inevitavel- mente pela via musical. A partir do momento em que as exibições de fil- mes eram sempre acompanhadas de música, a própria formação do ‘có- digo’ narrativo do cinema, bem como do referencial que, paralelamente, o público desenvolveu para decodificar esse ‘código’, não se deram ex- clusivamente pela dimensão imagética do cinema, mas sim pela soma des- ta com a dimensão musical. Em outras palavras, o cinema comercial pode

29 Embora a presença de um pianista na primeira projeção seja mencionada em muitos livros, poucos dão informações mais específicas sobre o evento. As informações estão documentadas a partir de relatos de Oscar Measter, que esteve presente nas primeiras exibições de filmes em Berlim em outubro de 1896, e que as transcreveu em sua autobiografia Mein Weg mit dem Film (1936): Ich Kenne Kein öffentlichen Fil- mvorführungen ohne Begleitmusik – citado por Konrad Ottenheym, Film und Musik bis zur Einführung des Tonfilms, Diss. Friedrich-Wilhelm, Berlim, 1944, p. 3. (Apud: MARKS, M. M. Música para filmes: O materi- al, literatura e estado atual das pesquisas).

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não ter nascido falado, mas com certeza nasceu musical30. (CARRASCO, 1993:16)

2.2 - O ESTUDO DA MÚSICA DE CINEMA

Sem escrever uma única nota – pois a notação musical é um dispositivo incômo- do, totalmente inadequado para registrar as texturas sonoras do futuro – o com- positor apresentará suas fantasias artísticas numa forma que será tão pouco cor- respondente às dimensões espaciais normais quanto o filme em seu aspecto visu- al, quer seja sobre um plano, quer possua propriedades plásticas. Mas, para tor- nar isso possível – para prover a evolução de uma forma artística, tão pregnante de suas possibilidades futuras como o filme sonoro, tão atrasado por inúmeras razões – deve acontecer primeiro, uma completa mudança na atitude da produção do filme, especialmente em relação à sua música. (Kurt London31)

Neumeyer et al. (2000) nos lembram que embora a música sempre te- nha ocupado um papel relevante no cinema, poucos se preocuparam em empre- ender a difícil tarefa de estudar a amplitude e características desse papel. O objeto – “música para filme” – falhou por muito tempo em atrair a atenção e o interesse acadêmico. Esse desinteresse inicial possibilitou que alguns dos estudos sobre sua utilização fossem estruturados com “tendências” e “teorizações” que, muitas vezes, contribuíram diretamente para seu status marginal e subsidiário, sem a contundência necessária no sentido de influenciar, redimensionar e inserir-se con- cretamente numa perspectiva tanto musicológica quanto cinematográfica.

O clamor pela necessidade de trabalhos acadêmicos que abordassem a música de cinema gerado nos títulos seminais: “arte negligenciada” (PRENDERGAST: 1977) e “melodia inaudível” (GORBMAN: 1987), transformou-os numa espécie de epítetos que teimam em perpetuar-se nas próprias teorias que engendraram a visão do cinema, ou seja, teorias apoiadas no respeito cronológico e crítico da visão das imagens em mo- vimento32. Nessa perspectiva a música é vista preponderantemente como

30 CARRASCO, C. R. Trilha Musical: Música e Articulação Fílmica. São Paulo: monografia de mestrado apresentada a ECA – USP, 1993, p. 16. 31 LONDON, K. Film Music: A Summary of the Caracteristic features of its History, Aesthetics, Technique; and possible Developments. London: Faber & Faber Ltd, 1936, pp. 269-270. 32 Alguns dos principais títulos, subtítulos e capítulos de livros mobilizaram os principais problemas da área criando referências iniciais como, por exemplo: melodias inaudíveis – “Unheard Melodies” (GORBMAN, 1987); arte negligenciada – “A Neglected Art” (PRENDERGAST, 1992). A ausência do componente sonoro- musical em análises fílmicas – “Did They Mention The Music?” (SMITH, 1998:1); etc. Outros ainda, parafra- seando o próprio Kurt London (1936), iniciam o texto com algo assim: “a grande maioria das pessoas que

27

subordinada e até mesmo submissa, mas, normalmente, inexistente. Um “fundo musical” no “verdadeiro oceano das imagens”, um frágil acordo tácito de “inaudibilidade” sonora imersa na “invisibilidade” da edição imagética33.

Por outro lado, o estudo da cinematografia enfatizado pela via musical, música de cinema, remete a uma pletora de textos que, com certeza, muito acres- centa no entendimento da música utilizada, mas, principalmente como objeto iso- lado, ensimesmado, separado do meio audiovisual, o que parece inviabilizar um tipo de abordagem um pouco mais generalizada e satisfatória que revele a música de cinema na integralidade do objeto fílmico, seja do ponto de vista musicológico seja do cinematográfico.

Hoje, quando a música berra dos alto-falantes da sala de cinema com a hiper-claridade do som digital, é muito difícil pensá-la como ‘inaudível’ – é muito difícil para qualquer pessoa ignorar sua presença, muito menos, negligenciá-la. Por isso, a música de cinema está atingindo um status de moda e de significância tanto nos estudos de cinema quanto nos da musi- cologia. (Idem)

Nessa perspectiva, o campo de estudos está se ampliando com traba- lhos que procuram arraigar-se em bases mais sólidas. Na literatura sobre o assun- to, até bem pouco tempo composta basicamente de monografias isoladas, já é possível encontrar antologias – tanto de estudos do próprio cinema (GOLDMARK et. al.: 200734; FURBY e RANDELL, 200535; DONNELLEY, 200136; GORBMAN, 200037 e 199838) quanto às dedicadas à análise, composição e orquestração de músicas para filmes (MATHEWS, 200639; MANCINI, 200440).

freqüentam as salas de cinema, sejam assíduas ou não, dão pouca ou nenhuma atenção à música” (BROWN, 1994:1). Nosso próprio texto ainda se justifica iniciando dessa forma o que é bastante sintomático. 33 NEUMEYER, D et. al. Introdução: “Music and Cinema”, 2000. 34 GOLDMARK, D. & KRAMER, L. & LEPPER, R. (Ed.) Beyond the Soundtrack: Representing Music in Cinema. Berkeley & Los Angeles: University of California Press, 2007 35 FURBY, J., & RANDELL, K. “Screen methods: comparative readings in film studies”. London: Wallflow- er, 2005. 36 DONNELLEY, K. J. (Ed.) Film Music: Critical Approaches. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2001. 37 GORBMAN, C. Music in The Piano. in HARRET, M. (Ed.): Jane Campion's The Piano, Cambridge: Cam- bridge University Press, 2000.

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Os filmes podem ser analisados em termos musicológicos, em relação às imagens que a música acompanha, em contextos de desenvolvimentos tecno- lógicos da gravação e reprodução musical, em relação a modelos musicais exter- nos ao próprio filme, na tradição dos documentários e estudos do gênero (DON- NELLY: 199841). Podem também ser explorados em termos de função, história do filme, público, pós-modernidade, sociologia, psicanálise e indústria (DICKSON: 200242). Música popular e música sinfônica podem ser separadas e examinadas em termos de culturas e tradições populares, em relação à denominada música clássica, aos gêneros de música pop, classe social, masculinidade, feminilidade, etnicidade e execução (WOJCIK e KNIGHT: 200243). Nenhuma dessas antologias, entretanto, apresenta uma metodologia geral e satisfatória que possa corresponder tacitamente às articulações engendra- das pelas músicas no processo fílmico. As restrições impostas nessa forma de estudos tendem a encorajar artigos curtos e autocontidos, conjuntamente com cer- ta relutância em olhar e ouvir grandes padrões inibindo qualquer investigação sus- tentada em estruturas analíticas de maior amplitude e profundidade (BROWN- RIGG: 200344). O que neste texto é agrupado genericamente como Pensamento Musi- cal no Cinema é composto por um corpo conceitual heterogêneo e de grande am- plitude. Seus componentes epistemológicos podem ser capturados nas tentativas (acadêmicas ou não) feitas na proposição de teorias ou métodos que, direta ou

38 GORBMAN, C. Film Music in Hil, HILL, J. & PAMELA CHURCH, G. The Oxford Guide to Film Stud- ies,1998.http://www.cscsarchive.org:8081/MediaArchive/Library.nsf/(docid)/5851E3E2C6A2A217652570E0 0023CEB8?OpenDocument&StartKey=Oxford&count=50. Ultimo acesso em 20/01/2009. 39 MATHEWS, P. (Ed.) Orchestration: An Anthology of Writings. New York: Taylor & Francis Group, 2006. 40 MANCINI, H. Case History of a Film Score. PHILLIPE, R. (Ed.). New York: Warner Bros. Publications, 2004. 41 DONNELLEY, K J: The Classical Film Score Forever? Batman, Batman Returns and Post-Classical Film Music. NEALE, S. and SMITH, M. (eds.). London, Routledge: Contemporary Hollywood Cinema, 1998. 42 DICKINSON, K. Movie Music: the Film Reader. London: Routledge, 2002. 43 WOJCIK, P. R. & KNIGHT, A. (eds.). Soundtrack Available: Essays on Film and Popular Music, North Carolina: Duke University Press, 2001. 44 BROWNRIGG, M. Film Music and Film Genre. Tese de doutorado. Scotland: University of Stirling, 2003.

29 indiretamente, buscam entender e valorar a música inserida no objeto fílmico. Em sua amplitude e diversidade, muitas dessas tentativas, normalmente, apresentam diversos tipos de referências atribuíveis à música de cinema e, excepcionalmente, algumas poucas dessas referências estão preocupadas em apontar ou aprofundar qual resultado foi efetivamente obtido em determinadas combinações ou maior detalhamento da articulação ou relação audiovisual criada.

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2.3 - O PENSAMENTO MUSICAL NO CINEMA

Sou músico, logo penso. Nunca consegui libertar-me do pensar através da música (o que muitos consideram, espero que erradamente, uma falha na minha musica- lidade), a ponto de, por inúmeras vezes, considerar abdicar da prática musical, trocando-a pela teoria, a mais pura possível, da música e da arte. Por sorte não o fiz. Sorte, porque pude atestar o quanto uma determinada forma de pensar estava ligada a esta prática. Mas quanto aos estudos puramente teóricos, os quais ja- mais interrompi, não foi sem sofrimento que, aos poucos, aprendi a resposta (e tenho-a na ponta da língua) à obsessiva pergunta do deturpado pragmatismo con- temporâneo: mas, afinal, para que serve esse estudo? A resposta é: para tudo e para nada; ou melhor, para tudo porque para nada. (Ricardo Rizek45)

Afinal, o que realmente acontece quando música, sons e imagens em movimento são combinados no objeto fílmico? Qual é o pensamento que norteia e relaciona essa combinação?

No escopo da concepção ocidental, a música sempre esteve ligada à uma misteriosa incapturabilidade significativa. Onipresente e, ao mesmo tempo, fugaz ou evanescente, o significado musical sempre resistiu ao pensamento e ra- ciocínio unívoco e generalizado, ou seja, embasado em padronizações e configu- rações estabilizadas.

Discute-se o significado musical em quase todo texto sobre música, mes- mo que de maneiras muitas vezes marginais e, ainda, que em poucos de- les o termo apareça explicitamente. Frequentemente, assumem-se postu- ras que carregam com si um entendimento sobre o que é que a música significa e como se dá esse processo de significação. E não se trata de um fato recente; tais observações remetem a textos bastante antigos e pode- mos mesmo afirmar que a discussão do significado musical permeia toda a história da música ocidental. Inúmeras questões estão imbricadas no estudo do significado musical: a relação entre música e linguagem natu- ral; as motivações para o fazer musical e as funções que a música exerce; a onto e a filogênese da música; a possível existência de universais musi- cais; aspectos psicológicos e neurológicos da escuta musical etc. Talvez, a complexidade resultante de tal imbricamento acabe por afastar a maio- ria dos pesquisadores de um domínio tão amplo e inóspito, no qual exis-

45 RIZEK, R. Prefácio in: SANTOS, M. D. F. Pitágoras e o tema do número. São Paulo: Ibrasa. [2003], p.16

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tem muito mais perguntas do que respostas satisfatórias. (OLIVEIRA e MANZOLLI) 46

Os próprios filmes do cinema, por vezes, comentam essa problemática, amplificados pela “meta-utilização” cinematográfica, por exemplo, num dos diálo- gos do filme STALKER, 1979, dirigido por Andrei Tarkovski e com música de Eduard Artemiev, o personagem Stalker (Aleksandr Kaidanovsky) se dirige aos persona- gens de um escritor (Anatoli Solonitsyn) e de um professor (Nikolai Grinko):

Acordaram? Vocês estavam falando de nossa vida, do altruísmo da arte. Vejamos, por exemplo, a música. Está ligada à realidade menos do que qualquer outra coisa. Ou melhor, se está ligada a você, então não é por idéias, mas, mecanicamente, sem associações. Apesar de tudo e milagro- samente,a música penetra na alma! Porque este barulho reduzido à har- monia produz tanto efeito? O que é que o converte em fonte de deleite e comoção, unindo-nos? Para quê tudo isto? Quem precisa disto? Você responde: “Ninguém. Sem motivo”. Altruísmo. Não. Eu não penso assim. No fundo, tudo tem um sentido. O seu sentido e a sua causa.

Numa exemplificação semelhante, Carrasco (1998:7-8) lembra o último diálogo do filme TODAS AS MANHÃS DO MUNDO (TOUT LES MATINS DU MONDE – Fran- ça – 1992), quando o compositor Sainte-Colombe (Jean Pierre Marielle) tenta fa- zer com que outro compositor, Martin Marais (Gérard Depardieu), seu discípulo, compreenda o que seria, para ele, o sentido da música. Ele diz que “a música existe para dizer o que a palavra não pode dizer”. Carrasco comenta: “Será que ele tinha razão?” Não é incomum deparar-se com afirmações que enfatizam a incaptura- bilidade do significado musical por meio das palavras, ou seja, se fosse possível dizer (pelas palavras) o que música quer dizer (sem palavras), a música não seria necessária. Carrasco inverte os fatores da afirmação e chega na seguinte proposi- ção: “a palavra existe para dizer o que a música não pode dizer”.

Assim, música e linguagem verbal são colocadas em domínios semânticos distintos, de acordo com suas especificidades. Mas, ainda assim, algo as aproxima. Algo permite que elas sejam comparadas, ainda que em oposi-

46 OLIVEIRA, L. F. e MANZOLLI, J. Uma Visão Paradigmática da História do Significado Musical e Seus Recentes Desdobramentos. Anais da ANPPOM.

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ção uma à outra. O que as aproxima é, justamente, o “falar”, aqui usado com o sentido de “dizer algo”. Tanto música quanto a linguagem verbal são capazes de “dizer algo”, cada uma à sua maneira e em complementa- ridade, pois cada uma é capaz de dizer aquilo que a outra é incapaz. (CARRASCO, 1998:8)

Estendendo fatores análogos de oposição e complementaridade simul- tâneas entre os componentes do meio cinematográfico, Miller Marks (1997) aponta a primeira e principal dificuldade em tentar entender qualquer coisa relacionada à música de cinema:

Pelo motivo de que o filme comunica (pelo menos potencialmente) através da conjunção de sinais visuais e de sinais auditivos, a pesquisa em música para filmes exige a investigação não de um, mas de dois sistemas de co- municação não-verbal, como também os jargões problemáticos com os quais tentamos descrever cada um deles em palavras47.

Mesmo que isoladamente, tanto a audição musical ou sonora como a visão do movimento não pertencem a categorias de fenômenos instantâneos, isto quer dizer que sempre resistem à captura, à análise e a transformação em outras linguagens, sejam com recursos gráfico-visuais ou outras formas de correspon- dência. A obtenção de seus possíveis e diversos significados, transformados ou não em outras imagens mentais, prescindem do dinâmico, da temporalidade, ca- racterística indissociável de suas teleologias.

Quando vemos um filme, nossa mente deve litigar com o conteúdo sempre mutável das imagens que se movem e o da trilha sonora. Os elementos in- dividuais (não somente a música, mas também a iluminação, ângulos de câmera, edição, e assim por diante) estão submersos no fluir de imagens da tela. Por isso, grande parte da audiência raramente percebe esses elementos conscientemente; e simplesmente são transportados pela cor- rente de imagens e sons48.

Nessa perspectiva é imprescindível que a experiência de assistir a um filme transforme-se numa experiência ativa. Da mesma forma, estudar a música de filmes, ou estudar qualquer outro objeto, exige um estado mental ativo, proble-

47 MARKS, M. M. Film and Music: An Introduction to Research. In: Music and Silent Films: Contexts and Case Studies, 1895 – 1924. New York: Oxford University Press, 1997, p. 3. 48 MARKS, M. M. idem.

33 ma recorrente e formulado de muitas formas, mas, como aponta Miller Marks, mais eloqüentemente por Walter Benjamin:

Vamos comparar a tela na qual o filme se desdobra com a tela de uma pintura. A pintura convida o espectador à contemplação; diante dela o espectador pode abandonar-se em suas associações. Diante do quadro do filme ele não pode fazer assim. Ninguém tem seus olhos agarrados a uma cena que já não tenha mudado. Ela não pode ser suspensa. Duhamel49, que detesta filmes e pouco sabe sobre seus significados, comenta essa cir- cunstância como segue: “Eu não posso pensar mais longe o que eu quero pensar. Meus pensamentos são substituídos pelas imagens em movimen- to”. O processo de associação do espectador vendo as imagens é real- mente ininterrupto pela sua constante e súbita mudança. Isto constitui o efeito de choque do filme que, como todos os choques, deveria ser amor- tecido pela presença intensificada da mente50.

A citação de Miller Marks enfatiza que a habilidade do filme em “impe- dir” nossas faculdades contemplativas deveria ser equilibrada por essa “presença intensificada da mente”. No estudo do filme, entretanto, tal preparação mental po- de não ser suficiente. Mesmo o mais atento espectador (no sentido analítico) tem grande dificuldade na compreensão de tudo que existe num filme. Nesse sentido, Claudia Gorbman aponta diretamente que o poder emo- tivo da música no filme pode facilmente persuadir o espectador a suspender suas faculdades críticas objetivas e torná-lo emotivamente maleável51. Tal afirmação pode ser comparada com a de Bertolt Brecht quando adverte que a identificação pessoal do espectador com situações e personagens dramáticas enfraquece a objetividade crítica52.

49 Georges Duhamel, Scènes de la vie future, Paris, 1930, p. 52. 50 BENJAMIN, W. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. In: MARKS, M. M. opus cit. 51 Claudia Gorbman discute o relacionamento da música de cinema com o espectador em termos de “melodias inaudíveis” que “desarmam as suas defesas, intensificando sua susceptibilidade para sugestões”. GORBMAN, C. Unheard Melodies: Narrative Film Music. London: Indiana University Press, 1987. 52 No texto intitulado Crítica da Poética de Aristóteles (Kritic der “Poetik” des Aristoteles) Brecht qualifica de dramática aristotélica toda aquela que se utiliza do mecanismo de identificação para a produção de sensa- ções catárticas e interessa-se em combater, do ponto de vista social, a catarse como finalidade última da tra- gédia, já que Ariostóteles assim a define na Poética. Catarse é o processo de purgação dos sentimentos, ou de purificação, que se dá justamente por conta de um processo anterior, o da identificação, ou empatia, ocorrido entre o espectador e as personagens criadas pelo autor. A crítica de Brecht à dramática aristotélica é funda- mentalmente uma crítica à identificação e também à catarse, que Brecht considera, nesse texto, como princí-

34

Michel Chion acrescenta:

De forma a descrever fenômenos perceptivos, nós devemos levar em con- sideração que a percepção ativa consciente é somente uma parte de um largo campo perceptivo em operação. No cinema, olhar é explorar espa- ço-temporalmente algo “dado-para-ver” (campo de visão) que tem os li- mites contidos pela tela. Porém, ouvir, pela sua parte, explora num cam- po de audição que é dado, ou mesmo imposto, às orelhas; esse campo au- ditivo é muito menos limitado ou confinado, com contornos incertos e móveis53.

A música, imersa nesse campo movediço, apresenta-se, por um lado, como integrante indissociável do objeto fílmico e, portanto, agente do grupo de elementos sonoros e imagéticos causais de seus próprios significados; por outro lado, como Ennio Morricone costuma enfatizar, ela pode se apresentar como um tipo de alteridade alienígena, “o único hóspede inútil de um filme, inútil porque não faz parte do filme” (MORRICONE e MICELI, 2001:199). Isso implica que a música deve ser valorada como um dos componentes chaves na eficácia das estratégias narrativas dos produtores para captar e manter a atenção do espectador, atuando simultaneamente como indutora e condutora da exploração audiovisual que o re- ceptor realiza, tanto de modo ativo como passivo, na tela e nos alto-falantes do cinema durante o transcurso da mensagem audiovisual. Fraile (2000:55) recorda que a música de cinema tem sua razão de ser, sua essência, no próprio meio que a transmite, e que, portanto, deve ser “lida”, ouvida ou interpretada por indivíduos na condição de espectadores de cinema. Acrescenta que a audição desse gênero musical fora das telas pode oferecer di- versas perspectivas mais ou menos atraentes, porém, nunca será a maneira de compreender o verdadeiro alcance de seu significado. Isso quer dizer que quando o espectador penetra na “escuridão” da sala de cinema abandona inconsciente ou conscientemente a sua realidade em favor de outra realidade, que antecipada- mente sabe fictícia: realidade virtual, simulada pelo concurso de diferentes artes e

pio da tragédia e elege como principal ponto de ataque. (In: TEIXEIRA, F. N. Prazer e Crítica: O conceito de diversão no teatro de Bertolt Brecht). 53 CHION, M. Audio-Vision: Sound on Screen. New York: Columbia University Press, 1990, p.33

35 artefatos já existentes antes da aparição do cinema, e que, portanto, já dispunham de seus próprios modos de expressão, representados no objeto fílmico. Tudo isso sempre fez do processo de recepção cinematográfica um dos nós que se reflete em todo pensamento cinemático, transformando-se, gradativa- mente, num dos campos de estudos mais recentes e que, basicamente, procura analisar e entender o processo de recepção dos filmes canalizado em indivíduos: o espectador. Para Aaron54 o “promissor” campo vem se estabelecendo basica- mente no conflito entre duas metodologias relacionadas aos processos inconsci- entes da psicanálise versus processos sociais de estudos culturais. A maior crítica por parte das duas vertentes é endereçada à idealização do espectador, aparentado, em muitos dos textos, a um receptor apático e incapaz de iniciativas ou decisões próprias e diversificadas das idealizadas ou subentendi- das nos processos de criação e acabamento do objeto audiovisual. É como se todas as pessoas vissem, ouvissem, sentissem, percebessem e apreendessem a mesma coisa. O espectador assemelha-se a um estereótipo uniformizado no mo- do como foca sua atenção e como percebe ou não percebe as características mais ou menos importantes do filme e de sua composição. Normalmente, os as- pectos imagéticos mais salientes como, por exemplo, a face das pessoas, o signi- ficado léxico das palavras faladas e os indicativos que remetem de forma mais direta ao sentido da história e da trama, são os elementos mais percebidos. Ou- tros fatores como, por exemplo, movimentos de câmara, os ângulos das tomadas, iluminação, edição, sons e música, são os elementos menos percebidos. De modo geral, os textos afirmam que todos esses elementos “ocultos”, menos percebidos, afetam diretamente o entendimento e a experiência audiovisual da mesma forma que os percebidos de forma mais consciente. Todas essas dificuldades preliminares levam à pressuposição de que no estudo da música de cinema a audição musical é condição imperativa na cons- trução de qualquer associação analógica ou modelo que evidencie a música como agregada aos possíveis significados fílmicos.

54 AARON, M. Spectatorship: The Power of Looking On. London: Wallflower Press, 2007.

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Na verdade, o que se costuma descrever como 'audição' de música envol- ve, em grande medida, atividades pensantes. Muito mais que arte - ars, que implica em habilidade, no sentido de ser capaz de fazer algo - a mú- sica é uma modalidade de pensamento, afirma Hans Keller55 (1979). É pensando música que se ouve música. Pensar/ouvir e 'pensar sobre' - isto é, trazer a música à memória, evocá-la, escarafunchá-la - são atividades correlatas, são fases igualmente legítimas de um mesmo processo, ou, se quiserem, dimensões da vida auditiva e especulativa que nos caracteriza como espécie e como culturas. (Paulo Costa Lima56)

Para Colón (1997: 206-207) o pensamento musical no cinema tende a se desenvolver basicamente em duas formas ou modelos fundamentais: (1) um que analisa, explicita ou justifica a relação originária da música e imagem em termos de uma união fundamental; (2) e outro que a compreende sob critérios de funcionalidade e valores estruturais, sem projetar uma relação de consubstancialidade ou parentesco fun- dantes.

[...] Trata-se de duas formas de definir o lugar da música de cinema; uma essencialista, a outra, funcionalista. A primeira descreve a competência da música e imagem como um fato pré-cinematográfico, a-histórico. A segunda consolida as particularidades da música cinematográfica a par- tir de uma sedimentação histórica. A primeira se funda na metafísica, a segunda na análise. (COLÓN, 1997:206-207; apud FRAILE, 2001:43)

Mesmo com toda inflexibilidade dessa tentativa de postulado preliminar, é notável a presença dessa polarização em idéias norteadoras e afirmações que assumiram grande importância na música de cinema. Por exemplo, as formas ten- dencialmente essencialistas explicam:

Por meio de alguma misteriosa alquimia perceptiva, as virtudes do som [e da música] acrescentáveis ao filme, quaisquer que sejam elas, são lar-

55 Hans Keller (1919–1985): músico e escritor austríaco radicado na Inglaterra que fez contribuições signifi- cantes no campo da musicologia e da crítica musical. No final da década de 1950, inventou o método de “Análise Funcional Sem Palavras” (Wordless Functional Analysis), no qual uma composição musical é anali- sada somente com sons musicais, sem qualquer palavra escrita ou ouvida. 56 LIMA, P. C. O Campo da Análise Musical e suas Ontologias. http://www.latinoamerica- musica.net/ensenanza/lima/analise-po.html. Último acesso: 05/09/2010.

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gamente percebidas e apreciadas pela audiência em termos visuais – o melhor som, a melhor imagem. (Walter Murch)57

O amálgama entre música e imagem é sempre determinado por alguma coisa que não é controlável por quem combina os sons. (Ennio Morrico- ne58)

Por sua vez, na forma tendencialmente funcionalista:

Necessita-se veementemente enfatizar que a aceitação da música no ci- nema narrativo é puramente produto da convenção. Tais convenções têm uma longa história, muitas das quais antecedem o próprio cinema. (Clau- dia Gorbman59)

Oscilando nessas duas vertentes, através da decupagem, a análise de inserções musicais fílmicas e de seus possíveis significados constitui a principal fonte primária do estudo e das considerações sobre a trilha musical. Várias tenta- tivas foram feitas no sentido de propor teorizações e métodos de composição e/ou análise que justificassem ou sobrepujassem essa visão dicotômica e que, final- mente, revelassem amplamente os meandros misteriosos obtidos pela presença musical no filme. Nenhuma conseguiu uma imposição significativa sobre outras, mas, o agrupamento representa e apresenta pontos importantes que delineiam o corpo conceitual da área de música de cinema e, por extensão, o campo analítico da aplicação musical no objeto audiovisual. Lima (2010) 60 não foi infeliz quando afirmou que:

Pensar no campo analítico como uma espécie de continuum que se inicia diretamente na experiência musical e que se espraia na direção de fazeres musicais os mais diversos implica em reconhecer uma nova flexibilidade, desistindo do ideal 'positivista' de um território claramente demarcado. A força do pensamento analítico é que ele acompanha todas as decisões musicais a serem realizadas - do intérprete ao historiador etc. Quem é o analista? É aquele que produz essa rede de inferências e interpretações sobre a experiência da música, oferecendo-as como base para o diálogo

57 MURCH, W. Prefácio. In: CHION, M. (1994) Audio-vision: sound on screen. Editado e traduzido por Claudia Gorbman, com um prefácio de Walter Murch. New York: Columbia University Press. 58 MORRICONE, E. Tre Brevi discorsi sulla musica nel cinema, In: LUCCI, G. Morricone Cinema e oltre. Milano: Mondadori Electa S. p. A., 2007, p. 19. 59 GORBMAN, C. (1987) Unheard melodies: narrative film music. Bloomington: Indiana University Press 60 LIMA, P. C. op, cit.

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entre as diversas instâncias de manipulação e de elaboração do fenômeno musical.

O texto a seguir aponta resumidamente a origem de alguns princípios mais seminais que, desde então, delineam a parte desse corpo conceitual sobre a música no objeto fílmico e que compõem o que genericamente, neste trabalho, denomina-se de pensamento musical no cinema. Na apresentação de alguns des- ses pontos, considerados importantes neste trabalho, enfatiza-se que de forma alguma representam a totalidade do pensamento dos autores ou o aspecto princi- pal das abordagens nas fontes onde foram cotejados.

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2.4 - O OFÍCIO DO MÚSICO NO CINEMA: SABANEEV VERSUS ADORNO E EIS- LER

A força, diz Leonardo da Vinci, nasce da restrição e morre na liberdade. A insu- bordinação proclama exatamente o contrário, e dispensa os constrangimentos na esperança sempre desapontada de encontrar na liberdade o princípio da força. Em lugar disso, só encontra na liberdade o lado arbitrário do capricho e as de- sordens da fantasia. Assim, perde qualquer vestígio de controle, perde a autocrí- tica e acaba por pedir da música coisas fora de seu âmbito e competência. Não estaríamos, na verdade, pedindo o impossível à música quando esperamos que ela expresse sentimentos, traduza situações dramáticas e mesmo imite a natureza? (Igor Stravinsky61)

Neumeyer (199562) recorda que desde o período de 1927 a 1935, com o advento das novas tecnologias dos filmes sonoros, as possibilidades de inserção musical nos filmes transformaram-se radicalmente em duas maneiras quando comparadas ao acompanhamento musical do filme mudo, as duas em função da possibilidade da edição musical (regravação) e da sincronização precisa da músi- ca e outras sonoridades com os eventos imagéticos. Em decorrência:

1. O compositor já não estava obrigado a compor uma partitura que ocupasse cada minuto do filme;

2. A música poderia ser sincronizada com a ação em uma intensidade sonora e com uma precisão que era simplesmente impossível no cinema mudo e muito menos com orquestras ao vivo.

Carrasco sintetiza esse momento de transformação:

A introdução da gravação de bandas óticas independentes possibilitou à banda sonora o mesmo grau de manipulação das imagens. Diálogos, mú- sica e sons naturalistas poderiam, a partir de então, serem gravados indi- vidualmente e posteriormente mixados em uma única pista, com seus vo- lumes devidamente balanceados. Torna-se também possível editar a ban- da sonora, da mesma forma que era feito com as imagens. A sincroniza- ção não precisava mais ser feita durante as gravações, e as películas con- tendo o material sonoro podiam ser colocadas, junto com as imagens, na moviola, e sincronizadas mecanicamente. É nesse momento que surge a ‘edição sonora’. É a partir daí, também, que podemos passar a nos refe-

61 STRAVINSKY, I. Poética Musical em 6 lições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 1942, p.75. 62 In: WALETZKY, J. Music for the Movies: The Hollywood Sound. Documentário, 1995.

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rir à música de cinema como ‘trilha musical’, e ao complexo de três pis- tas (diálogos, efeitos sonoros e música) como trilha sonora63.

Desde então, na revisão da bibliografia específica sobre música para cinema é inaugurado, com os pensamentos de Leonid Sabaneev (1935) e Adorno & Eisler (1947), uma oposição entre perspectivas de abordagem sobre o ofício do compositor e da música dos filmes. Sabaneev pensa a música de cinema partindo de observações e descrições dos filmes como eles se configuravam até então, ou seja, a partir de um compositor eclético – hábil na artesania de diversos estilos e gêneros de música - capaz de interceder em fatores como, por exemplo, unidade e continuidade cinemática e, ainda, no modo como a música suscita e amplifica os próprios sentimentos que emergem dos filmes; Adorno e Eisler opuseram-se vee- mentemente a esse tipo de pensamento, condenando quaisquer estratégias sen- timentais que pudessem ter sido estabelecidas pelos compositores do cinema clássico norte-americano, apresentam, como alternativa, o pensamento composi- cional relacionado ao compositor pós-Romântico, apoiado, principalmente, no ex- perimentalismo e nas técnicas dodecafônicas e seriais.

2.4.1 - Leonid Sabaneev (1935): Music for the films64 A natureza fotográfica do cinema A essência da fotografia Sonora Sons e movimentos fotográficos

Lançado somente dois anos após King Kong, filme que revolucionou e revelou toda a potencialidade sonora do cinema, o livro Music for the films de 1935, escrito pelo compositor russo Leonid Sabaneev é pioneiro na abordagem do compositor e da música do cinema sonoro. Direcionado ao músico familiar com a técnica da composição musical, mas, desconhecedor das “novas exigências espe- ciais” do cinema sonoro objetiva fornecer a visão de uma “nova e vasta arena on-

63 CARRASCO, C. R. Trilha Musical: Música e articulação fílmica. P. 37. 64 Leonid Leonidovich Sabaneev, Music for the Films, translated by S. W. Pring. NY, Arno Press, (1935) 1978.

41 de o músico pode desenvolver o seu poder”. Com base em suas próprias experi- ências, apresenta uma série de sugestões úteis relacionadas à composição da trilha sonora musical cinematográfica que, segundo ele, apresenta crescimentos e expansões que exigem alterações técnicas significativas, tornando-a, ano a ano, mais complexa e direcionada a um patamar de grande perfeição dentro de uma esfera rica em possibilidades materiais e artísticas.

A música de cinema é dividida em duas categorias que diferem em estilo e métodos de composição. Primeiramente, com freqüência devem ser com- postos números musicais, tais como canções, coros, peças instrumentais, danças etc. Nesses fragmentos o compositor é mais ou menos independen- te e sente que trabalha como um compositor normal que tem de escrever peças separadas. Em outra categoria está a música de fundo [music of the background], ou o acompanhamento tonal das imagens na tela, e isso não é de uma natureza separada ou isolada. Ela é sempre puramente ins- trumental e deve possuir aproximadamente as seguintes qualidades:

i. Deve estar de acordo com o clima da cena; ii. Deve coincidir ritmicamente com os movimentos da ce- na; iii. Sua duração deve corresponder exatamente ao tempo ocupado pela cena.

Tanto o pioneirismo quanto a projeção do pensamento de Sabaneev são notáveis. Para ele a efetividade de uma trilha sonora musical nos filmes é de- corrente tanto de fatores técnicos musicais e cinematográficos quanto do modo como a música participa na narrativa de conceitos e sentimentos da história. Suas observações e prescrições da musica de cinema a partir do enfoque de um com- positor capaz de compor música em diversos estilos e gêneros parecem prever os acontecimentos relacionados à música de cinema desde meados da década de 1930 e durante a de 1940, a chamada época dourada de Hollywood, período que consolida o estilo orquestral sinfônico “clássico” hollywoodiano, um idioma “român- tico” produzido na intersecção entre a arte e o entretenimento, fato que assenta as bases do delineamento de um pensamento musical no cinema65.

65 Desde o início da década de 1930, as trilhas musicais de filmes hollywoodianos eram produzidas por todo um contingente de músicos que agrupavam-se em departamentos musicais de grandes estúdios cinematográfi- cos. Trabalhando nesses departamentos, compositores imigrantes europeus como Max Steiner, Erich Korn-

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2.4.2 - Adorno e Eisler (1947): Composing for the films66 Prejuízos e maus-costumes

Para Adorno e Eisler a música de cinema foi, em princípio, tributária da práxis cotidiana pura onde a música guiou-se ou por necessidades da produção ou pelo que no momento em questão era usual enquanto música e representação musical. Com o passar do tempo essas guias iniciais, como por exemplo: a idéia de leitmotiv, de melodia e de eufonia; a fantasmagórica afirmação de que a música de um filme não deve ser ouvida; a conveniente afirmação de que a música deve justificar-se opticamente; música como ilustração geográfica e histórica; a idéia de arquivo musical; a utilização de clichês ou padronizações musicais, entre outros, tornaram-se procedimentos que se arraigaram profundamente na área como se fossem uma sabedoria herdada, mas, na realidade, formaram um corpo de maus- costumes (prejuízos).

É dúbio que a propósito da música do filme se possa falar de verdadeira história, mesmo no senso mais problemático de per se no qual se pode fa- lar da história de um gênero artístico. A música para filme até hoje não se desenvolveu segundo as suas próprias leis. Ela conhece somente pro- blemas e soluções condicionadas das essências das coisas. As modifica- ções encontradas nela são em parte dependentes dos progressos descriti- vos da reprodução mecânica, em parte são tentativas desconsideradas que se relacionam direto ao gosto, seja real ou imaginário, do público.

Maia de Jesus67 (2007) comenta que Adorno e Eisler adotam uma atitu- de essencialmente normativa e ideologicamente orientada, que condena com ve- emência as estratégias sentimentais dominantes do cinema clássico norte-

gold, Franz Waxman, Dimitri Tiomkin, entre outros, estabeleceram uma espécie de paradigma orquestral para a indústria cinematográfica. Os procedimentos adotados podem ser reconhecidos nas convenções estilísticas do romantismo tardio do filnal do século 19, particularmente em sua tradição dramático-sinfônica, transfor- madas pelas práticas musicais desses compositores, no idioma dramático-musical “clássico” de Hollywood (NEUMEYER et AL. Film Music: Critical Approaches. Hanover: Wesleyan University Press, 2000). 66 Hanns Eisler & Theodor Adorno. Composing for the Films, London, Atlantic Highlands, NJ: Athlone Press, 1994. 67 JESUS, G. M. Elementos para uma poética da música do cinema: ferramentas conceituais e metodológicas aplicadas na análise da música dos filmes Ajuste Final e O Homem que não estava lá. Tese de doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas apresentada na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. 2007, p. 14.

43 americano, assim como toda e qualquer aplicação de música com características Românticas, em favor do emprego sistemático e exclusivo da música pós- Romântica, especialmente das técnicas dodecafônicas e seriais.

Advogavam os autores que uma arte dos tempos modernos, como o cine- ma, necessitaria de música moderna e não de música tonal do século XIX. Para eles, ademais, a música do cinema não deveria operar a serviço do drama, mas garantir para si a autonomia conquistada após o surgimento da idéia de uma música “pura”, noção que emerge com a emancipação da forma sonata no Classicismo e opera como verdugo do Romantismo, principalmente com base no pensamento de Eduard Hanslick, que, em O belo musical, livro publicado no final do século XIX, combate a estética sentimental e programática Romântica, defendendo, em resumo, a hipóte- se de que a música não tem o poder de descrever, significar, transmitir, comunicar ou expressar nada a não ser ela mesma, ou seja, que a música “significa” apenas a beleza de suas próprias estruturas.

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2.5 - O PENSAMENTO MUSICAL APLICADO

2.5.1 - Kurt London (1936): Film Music68 Suporte ao ritmo do filme em pensamento e estrutura Forma e ritmo da arte do movimento

Kurt London, em sua abordagem sobre a utilização prática da música como acompanhamento em conexão com as imagens do cinema mudo, descartou a possibilidade de que sua utilização fosse uma espécie de compensação à au- sência de sons naturais, ou de uma explicação embasada exclusivamente numa psicologia das massas. No seu entendimento, a razão que foi estética e psicologi- camente mais essencial para explicitar a necessidade da música como acompa- nhamento no cinema mudo estava no ritmo do filme como arte do movimento. Afirmou que cada filme possui um ritmo individual que é determinante de sua for- ma. Nesse sentido a música teve a tarefa de acentuar e dar profundidade auditiva a esse ritmo das imagens em movimento.

O acompanhamento musical foi necessário no cinema mudo no sentido de trazer à luz o elemento intangível que tinha de, na ausência da fala e dos ruídos da vida cotidiana, trabalhar na mente e na alma através de uma combinação da orelha e do olho. Isso não significa somente música des- critiva, que pelo seu caráter programático e colorido ‘torna o som poe- sia’, mas também o método oposto, o desenvolvimento de um pensamento musical [grifo nosso] derivado de uma idéia básica que sublinha o filme que ela acompanha, despreocupada com detalhes simples ou fatos estra- nhos, aparentemente movimentando-se ao lado das tomadas e evitando todas as características descritivas, mas, em realidade dando suporte ao ritmo do filme, em pensamento e em estrutura. (LONDON, 1936:36)

O problema prático mais característico dessas afirmações se concentra na tentativa mais óbvia de associação entre o ritmo sonoro musical e os dos mo- vimentos nas imagens. No filme as inúmeras possibilidades de confluência entre música, outras sonoridades e imagem em movimento dependem de parâmetros muito diferentes e com níveis distintos de controle, o que gera possibilidades infin-

68 LONDON, K. Film Music. London: Faber & Faber, 1936.

45 dáveis de articulações. Porém, sem dúvida, suas interações se complementam e permitem uma grande variedade de efeitos e modificações recíprocas.

2.5.2 - Serguei Mikhailovitch Eisenstein (1940): O sentido do filme69 Polifonia “AudioVisual” Movimentos contrapostos

Para Eisenstein a relação entre música e imagem em movimento é for- jada na montagem cinematográfica pautada pelo princípio de contraposição e cor- respondência entre “linhas” gráficas indicativas de movimentos – traçadas a partir de quaisquer componentes objetivos ou subjetivos da música e da imagem em movimento.

[...] Qualquer “comunicador” percebe a existência de tal “linha”. Um especialista de qualquer meio de comunicação tem de construir sua linha, se não a partir de elementos plásticos, certamente a partir de elementos “dramáticos” e temáticos (EISENSTEIN, 2002:115).

Desse problemático princípio é estabelecida uma primeira classificação básica e amplamente aceita que confronta as funções narrativas da música e da imagem: por um lado a possibilidade de um paralelismo audiovisual – a música que segue e expressa o conteúdo visual – e, por outro, a contraposição, o contra- ponto audiovisual – música que se contrapõe ao conteúdo visual70. Carrasco (1993, 57-58) expôs sinteticamente os méritos e problemas gerados pelas propostas de Eisenstein:

Eisenstein possui os méritos de ter percebido que cinema e música são correlatos, enquanto linguagens temporais e quanto aos princípios de construção de seus discursos [grifo nosso]; a partir desse desenvolvimen-

69 EISENSTEIN, S. O Sentido do Filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2002. Esse tópico foi publicado pela primeira vez na revista Iskusstvo Kino (Arte do Cinema) entre os meses de setembro de 1940 e janeiro de 1941. 70 O esquema Paralelismo X Contraponto foi estendido por alguns estudiosos como Pauli [PAULI, H. Fil- mmusik: Ein historisch-kritischer Abriß. In: Schmidt, H.C. (ed.) Musik in Massenmedien, Schott, Mainz, Germany, 1976] e Thiel [THIEL, W. Filmmusik in Geschichte und Gegenwart. Henschelverlag Kunst und Gesellschaft, Berlin, 1981]. Eles introduziram uma terceira categoria que Thiel denominou Affirmative Pictu- re Interpretation and Illustration – música que adiciona novos conteúdos não-visíveis sem contradizer a cena.

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to temporal, ele incorporou o conceito de ritmo na articulação fílmica; ele também foi um dos primeiros a perceber e a acreditar nas possibili- dades narrativas do som e, especialmente, da música no cinema, em um momento em que a grande novidade era apresentar pessoas falando na tela. Acima de tudo, ele foi um dos primeiros a perceber que deve haver um princípio que rege as relações entre música e imagem nas linguagens audiovisuais. Suas grandes falhas foram, em primeiro lugar, ter acredita- do que houvesse um sistema de correlações absolutas entre som e ima- gem, sendo que é quase impossível, sequer, delimitar com clareza o con- teúdo significativo de uma determinada música, pelo menos no estágio em que se encontrava, e se encontra ainda hoje a nossa compreensão da lin- guagem musical. Em segundo lugar, Eisenstein foi infeliz em sua opção pela supremacia do aspecto plástico, pictórico, em detrimento da tempo- ralidade, do ritmo, da articulação fílmica e da progressão narrativa. (CARRASCO, 1993: 57-58)

Interpretado contemporaneamente, o termo contraponto que remete a polifonia, emprestado da área musical por Eisenstein, designa a manipulação si- multânea da música, dos diálogos, de todas as outras sonoridades e das imagens em movimento como elementos narrativos do objeto audiovisual, ou seja, a articu- lação da narrativa audiovisual é estabelecida nas relações de dependência e/ou independência entre os movimentos objetivos ou subjetivos dessas instâncias, com todas as possibilidades intrínsecas e extrínsecas. O resultado sugere a for- mação de um complexo análogo ao contraponto musical, onde cada componente do sistema musical determina as relações formais que interligam os constituintes de seus diversos momentos, atribuindo-lhes possibilidades estruturais de corres- pondências.

Em certo sentido, isso significa resgatar o ponto de partida de Eisenstein, que apesar de todos os equívocos na elaboração de seu método, foi o primeiro a insistir na idéia de que se deve buscar entender o processo de composição audiovisual do cinema como um todo. Para ele não havia um discurso imagético e um discurso sonoro independentes, mas um comple- xo audiovisual que só podia ser entendido enquanto somatória desses sis- temas sígnicos. Hoje, mais de cinqüenta anos após a publicação de seus trabalhos na área, a teoria de cinema ainda não conseguiu resolver vá- rias das implicações contidas nas questões por ele apresentadas, e talvez ainda demore muito a fazê-lo. (CARRASCO, 1993:62)

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2.6 - PENSANDO A ESTÉTICA DA MÚSICA CINEMATOGRÁFICA

2.6.1 - Aaron Copland (1940): A Estética da Música para Filmes As funções da música no filme

Sally Bick71 também afirma que desde 1927, com a introdução do som sincronizado ao filme, foi sonegada uma resposta crítica objetiva das implicações da nova tecnologia em relação às imagens em movimento. Acrescenta que, ironi- camente, algumas tentativas emergiram primeiramente de críticos e cineastas eu- ropeus que não somente introduziram o tom do discurso num plano teórico e mais abstrato como omitiram considerações sobre a indústria de filmes hollywoodiana, vendo-a, presumivelmente, como um empreendimento comercial desprezível ao estudo72. Concomitantemente, a crítica nos Estados Unidos também considerou, de modo geral, a música dos filmes como inadequada às aspirações mais artísti- cas e deram precedência crítica às partituras de documentários, as que haviam emergido de “um gênero mais legítimo e elevado”, portanto, mais adequadas para considerações artísticas. Até a metade da década de 1930, artigos sobre os filmes sonoros hollywoodianos eram escassos e apareceram, primeiramente, em jornais populares, onde o discurso focava em assuntos mais práticos e descritivos dirigi- dos ao público em geral. Em outro extremo, existiram estudos de desenvolvimen- tos tecnológicos apresentados em periódicos científicos e dirigidos a profissionais e técnicos do setor. Somente poucos artigos isolados foram publicados em perió- dicos mais críticos e científicos americanos como no Musical Quaterly e no Mo- dern Music, a maioria deles relacionados à música no documentário73.

71 BICK, S. Copland on Hollywood. IN: DICKINSON, P. (Editor) COPLAND CONNOTATIONS: Studies and Interviews. Woodbridge: The Boydell Press, 2002, p. 39. 72 Ver Martin Miller Mark panorama e bibliografia em música para filmes em Music and the Silent Film, New York: Oxfrord University Press, 1977, pp. 8-25. Ver pp. 11-12 para referências especificamente relacionadas a artigos concernentes às respostas iniciais na introdução do filme sonoro. 73 Poucos são os artigos de compositores hollywoodianos e de suas primeiras experiências. Normalmente, muitos desses poucos artigos têm um caráter anedótico e não inteiramente confiável.

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Nesse panorama controverso, os textos de Copland sobre a música do cinema hollywoodiano assumem uma posição central na literatura sobre a música de cinema. Copland provê discussões mais extensas englobando questões políti- cas, ideológicas e teóricas de uma perspectiva crítica americana dentro das condi- ções impostas pela própria indústria cinematográfica. Seu trabalho não somente desafia aspectos de Hollywood, como uma instituição industrial, mas, simultanea- mente, desvela seu potencial como um vasto fórum artístico. Copland eleva o dis- curso, oferecendo soluções mais extensivas e pertinentes, tanto do ponto de vista prático quanto artístico. Suas publicações sobre a música de cinema formam um corpo literário com um amplo espectro de assuntos tomados de suas próprias ex- periências. Entre outros, apresentam comentários sobre vários compositores hol- lywoodianos proeminentes; suas reflexões, críticas e pensamentos sobre trilha sonora musical; Hollywood como um lugar de trabalho; e, a indústria como um campo artístico para compositores americanos. Para Miller Marks as observações de Copland são objetivas e foram apresentadas de uma perspectiva mais comedi- da, refinada e filosófica (MARKS, M. M., 1997:15). O tratamento mais importante dos assuntos citados está contido num documento de 58 páginas, transcrito de uma conferência realizada no dia 10 de janeiro de 1940, no Museum of Modern Art, em Nova York. Os materiais apresen- tados e discutidos nessa conferência, tornar-se-ão a base de seus futuros artigos sobre o assunto. Num dos tópicos de sua abordagem – música de filme: funções e práticas – apresenta e discute cinco funções principais que a música de cinema pode adquirir nos filmes. Em 1977, Roy Prendergast no seu livro Film Music – A neglect art, no capítulo 6: The Aesthetics of Film Music (pp. 213-226), colige, reapresenta e discu- te os cinco tópicos da lista de Copland publicados em um artigo no New York Ti- mes, em 6 de novembro de 1949. Nesse artigo Copland afirma que um compositor não pode mais do que “potencializar através da música os valores dramáticos e emocionais do filme”:  Criando uma atmosfera mais convincente de tempo e lugar;

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 Sublinhando refinamentos psicológicos – os pensamentos de uma personagem ou as implicações invisíveis de uma si- tuação;  Servindo como um tipo de preenchimento de fundo neutro;  Ajudando a construir um sentido de continuidade no filme;  Provendo a sustentação de uma construção teatral de uma cena e então a arrematando num sentido de finalidade.

2.6.2 - Manvell & Huntley (1957): The Technique of Film Music74 Música Funcional

Os autores acima consideram ser de uma infelicidade singular que a música que possui uma função definida tão importante no filme seja nomeada co- mo “música de fundo” (“background” music).

‘Música de fundo’ em relação ao filme é um termo equivocado e, de qual- quer forma, não descreve suas funções. Música “Integral” ou “comple- mentar” serviriam melhor, mas, o termo “funcional” é preferível desde que o termo designa a tarefa que uma coisa tem de realizar. É uma des- crição prática e própria deste mais novo ramo da composição musical.

Na parte do trabalho considerada por eles mesmos como a mais impor- tante, atribuem características e abordam a música de filmes a partir de possibili- dades funcionais: a) Música e ação b) Música cênica e de lugar c) Música de época d) Música para tensão dramática e) Música de comédia f) Música para emoção humana

2.6.3 - Zofia Lissa (1959): Ästhetik der Filmmusik75 As funções narrativas da música no filme

74 Roger Manvell and John Huntley. The Technique of Film Music. London, NY: Focal P., 1967. 75 Zofia Lissa, Aesthetik der Filmmusik. Berlin: Henschelverlag, 1965.

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Seguindo as mesmas linhas de Prendergast-Copland, Miceli76 (1982:223) apresenta o caso exemplar representado por Zofia Lissa: Ästhetik der Filmmusik (1959: 115-256), um estudo de grande monta conduzido com rara perí- cia por um dos maiores expoentes da musicologia polaca, e que precisou de dez anos para ser conhecido fora do país onde foi publicado. A própria autora conhe- cia os problemas relacionados à sua publicação quando escreveu:

Nesse livro procuro preencher algumas lacunas, sou consciente do fato que não satisfarei completamente nem os críticos cinematográficos nem os musicológicos. Os primeiros, pela falta do aspecto especificamente fílmico, referirão, por certo, que se deu demasiado relevo ao significado da música no filme. Os outros, para os quais a música no filme é somente um malum necessarium, andarão em vão à procura das habituais análi- ses musicológicas. Aceito a hostilidade das duas categorias por indagar este novo problema que testemunha uma ampliação das possíveis funções de uma arte antiga como a música. (LISSA, apud MICELI: 1982:223- 224)

Miceli comenta que não bastaria uma premissa tão límpida para desar- mar os prejuízos, mas, eis que os primeiros a interessar-se por Lissa não foram, como o mais lógico, os historiadores da música (os quais, segundo ele, inconsci- ente ou conscientemente deverão levar em consideração também este aspecto da matéria representado por um vazio historiográfico, e que o leitor de amanhã não saberá como justificar), mas, os semiólogos, aos quais o pensamento dela serviu para ampliar e verificar experimentos77. Lissa (apud BERNDT & HARTMANN, 2008:129)78 distingue 18 categori- as de funções que a música pode promover (ou estão relacionadas com a músi- ca): 1. Música como ilustração de movimento e sonoridade (genericamente chamado de mickeymousing), 2. Ênfase de movimento, 3. Estilização de sons reais,

76 Sergio Miceli. La musica nel film. Arte e artigianato. Florence: Discanto Edizioni, 1982. 77 Miceli aponta como os pioneiros que o notaram como J. J. Natiez em Fundaments d’une sémiologie de La musique e, um ano depois G. Stefani na Introduzione alla semiotica della musica. 78 BERNDT, A. e HARTMANN, K. The Functions of Music in Interactive Media. Alemanha: U. Spierling and N. Szilas (Eds.): ICIDS 2008, LNCS 5334, pp. 126–131, 2008. Springer-Verlag Berlin Heidelberg, Uni- versity of Magdeburg, 2008.

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4. Representação de localizações (geográfica, étnica, social), 5. Representação de tempo (para associações históricas), 6. Deformação de sonoridades (para efeitos de alienação), 7. Comentário (contraponto audiovisual), 8. Source music (música diegética), 9. Expressão de emoções (dos atores), 10. Meios de Imersão (means of immersion), 11. Símbolos (e.g., hinos nacionais), 12. Antecipação de ações subseqüentes, 13. Aprimoramento e demarcação da estrutura formal do filme, 14. Multi-funcionalidade da música (as funções não são mutuamente ex- clusivas), 15. Efeitos sonoros (e a mixagem com a música), 16. Fala/diálogo (e.g., tarefas de pontuação da música), 17. A função de silêncio (“A pausa também pertence à música”), 18. Aspectos não-funcionais (relacionados a propósitos musicais e estéti- cos profundos).

Tagg79 afirma que ainda hoje, mais de meio século depois de serem formuladas, as funções da música no cinema sistematizadas por Lissa são de grande utilidade. Nesse sentido, reagrupa e adapta as 18 funções originais em 10 funções, no sentido de torná-las mais acessíveis. Enfatiza que as funções não são mutuamente exclusivas e podem também ser utilizadas na TV. As 10 funções reagrupadas por Tagg são: 1. Ênfase de movimento; 2. Ênfase de sons reais; 3. Representação de locais; 4. “Source” music; 5. Comentário; 6. Expressão da emoção dos atores; 7. Base para a emoção da audiência; 8. Símbolo; 9. Antecipação de ações subseqüentes; 10. Amplificação e demarcação da estrutura formal do filme.

79 TAGG, P. Functions of film music and miscellaneous terminology. (Zofia Lissa and others, summarised by P Tagg), [s.d], http://www.tagg.org/teaching/mmi/filmfunx.html. Último acesso em 26 de janeiro de 2009.

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Carrasco (1993:59) expõe que em outros trabalhos do mesmo gênero, encontram-se classificações [funcionais] similares, com pequenas diferenças de um para outro. Indagando se todos os tópicos apresentados cobrem, de fato, to- dos os usos possíveis da música de filmes? E mais: se este seria o melhor cami- nho para o tratamento teórico da música de cinema? O autor argumenta:

Uma crítica que pode ser feita a tal tipo de abordagem é que esses tópi- cos de funções estabelecem categorias que nos permitem classificar uma determinada passagem da trilha musical de um filme, porém, elas não nos permitem delimitar o modo pelo qual essa música se integra à narrativa desse filme. Será que uma música de época em vários filmes diferentes exerce sempre a mesma função? Não ocorre nenhuma mudança no aspec- to sígnico desse tipo de música de um filme para outro? Será que o modo pelo qual a música de um filme pode significar o ‘não dito’ ou o ‘não vis- to’ é sempre o mesmo?

O mesmo pode ser indagado na inversão da perspectiva, quando várias músicas diferentes são utilizadas numa mesma cena. Chion80 (1994:188) reforça que nesse tipo de procedimento experimental – denominado por ele como “casa- mento forçado” (forced marriage) – onde várias músicas são aplicadas, uma a uma, numa mesma cena (músicas de estilos e/ou épocas diferentes e que repre- sentem códigos culturais distintos), cada nova aplicação provoca uma nova leitura particular dessa cena: Cada música atua diretamente em especificidades espaço- temporais, criando significados que, pela sua multiplicidade de possibilidades, não poderiam ter sido planejados pelos autores do filme.

80 Michel Chion. La Musique au cinéma. Paris: Fayard, 1995.

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2.7 - AMPLIANDO O PENSAMENTO MUSICAL NO CINEMA: AS FUNÇÕES NARRATIVAS DA MÚSICA DE CINEMA VERSUS AS FUNÇÕES DA MÚSICA NO CINEMA NARRATIVO

Diegese é um conceito de narratologia, estudos literários, dramatúrgicos e de ci- nema que diz respeito à dimensão ficcional de uma narrativa81.

2.7.1 - Diegese (Narrativa) A palavra diegese de origem grega (diègèsis: narrativa) foi utilizada por Étiene Souriau (1951) e retomada em seguida por Gerard Genette e Christian Metz, em narratologia literária e em filmologia82, respectivamente. A música no cinema narrativo foi durante muito tempo um tópico inexis- tente na literatura. Durante os últimos 30 anos, entretanto, iniciou um crescente interesse, revelando um campo bastante fértil como ferramenta analítica do objeto audiovisual. Alguns de seus principais enunciadores são Prendergast (1977), Gor- bman (1987), Kalinak (1992), (d) Brown (1992), Chion (1994), entre outros. No cinema, todo o conteúdo sonoro de um filme é, por padrão, gravado em três trilhas genéricas (ou canais) sincronizados às suas respectivas imagens. Estas três trilhas parciais são mixadas (misturadas e equilibradas) de forma a pro- duzir a ênfase necessária na criação de efeitos acoplados às imagens, corrobo- rando com os seus diversos significados. Estes três ingredientes que compõem a trilha sonora de um filme são conhecidos e chamados genericamente de canais (tracks) de: diálogo, sons síncronos ou assíncronos (ruídos, sons naturalistas) e música. Cada um deles contribui efetivamente no modo e no grau como captamos e interpretamos o conteúdo do filme. Na tentativa de classificar o modo dessas captações relacionadas à trilha musical nos filmes encontramos com muita fre- qüência as palavras “música diegética” ou “música extra-diegética”.

81 http://pt.wikipedia.org/wiki/Diegese, último acesso: 20/10/2010. 82 AUMONT, J. e MARIE, M. Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. São Paulo: Papirus Editora, 2001. Verbete: Diegese, p. 77.

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Esses termos foram introduzidos no universo sonoro musical de cinema através da publicação de Teaching the Soundtrack, Quarterly Review of Film Studies de Novembro de 197683, onde Claudia Gorbman propôs uma classificação dos elementos sonoros (objetivando principalmente a música) em cinema na pers- pectiva narrativa, segundo a qual a música no filme pode ser diegética; não- diegética (ou extra-diegética) ou meta-diegética.

 Música Diegética: música composta por sonoridades objetivas que ema- nam do mesmo universo sonoro perceptível pelas personagens em cena, ou seja, a música é supostamente emitida por fontes sonoras presentes no espaço e no tempo da ação filmada. A(s) fonte(s) sonora(s) está(ão) explícita ou implicitamente presente(s) nessa mesma ação (personagens ou músicos tocando, discos, fitas, CDs, DVDs etc.). A música emana do mundo fictício representado, as personagens têm ou poderiam ter um con- tato empírico com a música. A música diegética pode ocorrer dentro do enquadramento visual da cena ou não (on screen / off screen). O espaço sugerido pode ser dentro ou fora do campo de visão da câmera e colabora diretamente na criação do efeito de “realismo” do objeto audiovisual. A música diegética pode sugerir uma espacialização (a ilusão de profundi- dade na imagem visual) pela manipulação criativa dos timbres (orquestra- ção), volume (intensidade), direcionamento (estereofonia) e efeitos (rever- ber, eco, etc.). Outros termos encontrados e utilizados na literatura são source music, screen music, música real, música verdadeira, música in- terna, entre outros.  Música Não-Diegética (ou Extra-Diegética): é composta por sonoridades imperceptíveis às personagens do filme, mas que tem um papel muito im- portante na interpretação da cena, ainda que, muitas vezes, de uma forma quase subliminar para a audiência. É a classificação da música em que a fonte sonora não está visível na tela nem é resultado direto dos eventos sonoros e/ou visuais da ação representada, as personagens não têm con- tato empírico com a música. Outros termos utilizados para música extra ou não-diegética é música de fosso (pit music), música de comentário, música de fundo (background), externa, como “voz do narrador”, entre ou- tras.  Música Meta-Diegética: é composta por sonoridades subjetivas; sonorida- des que traduzem o imaginário de uma personagem normalmente com o seu estado de espírito alterado ou em alucinação. Um caso particular do discurso meta-diegético com maior expressão em obras cinematográficas designa-se por onírico, e corresponde à representação visual-sonora de uma experiência em que uma personagem abandona o seu estado senso-

83 Apud: BARBOSA, A. (2000/1) O Som em Ficção Cinematográfica Análise de pressupostos na criação de componentes sonoras para obras Cinematográficas / Videográficas de Ficção. http://www.porto.ucp.pt Escola das Artes - Som e Imagem 2000/01. Universidade Católica Portuguesa.

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rial normal da realidade entrando num plano de percepção emocional mui- to aproximado ao de um sonho. A personagem permanece durante algum tempo nesse estado, retornando bruscamente à realidade (normalmente por efeito de um evento diegético).

2.7.2 - Sergio Miceli (1982): Análise da Intervenção Musical no Filme Os níveis de intervenção da música no filme

A primeira formulação do “método dos níveis de intervenção da música nos filmes” de Sergio Miceli nasceu, não como formulação teórica de per se, mas, pela necessidade de dispor de instrumentos adequados e coerentes no estudo de um caso específico, a parceria Rota-Felini84, o primeiro trabalho de certo empenho que Miceli se defrontou na metade da década de 1970 e que publicou nos início da década seguinte85. Quando Ennio Morricone se interou do “método dos níveis86” de Sergio Miceli, no final da década de 1970, pareceu-lhe uma abordagem diferenciada, uma forma de tratamento “que trazia à luz e racionalizava alguma coisa que vivenciava diretamente nas composições que preparava para o cinema” (MORRICONE e MI- CELI:2001,77):

Por isso convido-os a seguir muito atentamente a sua exposição, porque pode fornecer instrumentos utilíssimos ao compositor e também ao dire- tor. Se os diretores o levassem em conta os músicos poderiam trabalhar muito melhor e tirar muito mais vantagem de seus filmes87.

Inspirado em Lissa e tendo em mente a possibilidade de novas pesqui- sas, quiçá por especialistas de várias disciplinas em conjunto, inclusive com pes-

84 MICELI, S. Il Raporto Rota-Felini. Analise di un . In: La Musica Nel Film: Arte e Artegianato, Firenze: discanto edizione, 1982, pp.247-305. 85 A síntese de Miceli sobre os níveis de intervenção da música no filme a foi apresentada na Parte 2 deste trabalho baseado no texto MICELI, S. La musica nel film: arte e artigianato. Firenze: discanto edizione, 1982, pp. 223-230. 86 O “método dos níveis” ou “teoria dos níveis”, como também é chamado, de Sergio Miceli tem alguns pre- cedentes editoriais. A exposição mais extensa se encontra em: MICELI, S. Musica e cinema nella cultura del novecento, Roma: Sansoni Editore, 2000, pp.329-384. 87 MORRICONE, E. In: MICELI, S. e MORRICONE, E. Comporre per il cinema: Teoria e prassi della musica nel film. Veneza: Marsilio Editori S.p.a. 2001, p. 77.

56 soas com uma formação diferente da musical e, portanto, sem um conhecimento profundo da linguagem técnica musical, Miceli propõe, inicialmente, um método de análise, possivelmente ágil, onde se podem distinguir três “níveis” objetivos de intervenção do componente musical, e cuja identificação, segundo ele, pode auxi- liar a decifrar as intenções do diretor, permitindo avaliar o resultado expressivo na sua globalidade: o nível externo, nível interno e nível mediado.

 Nível Externo: Normalmente o mais utilizado que pressupõe “escancarar o fingimento cinematográfico num tipo de acordo tácito entre o artífice e seu público, pelo qual nenhum encontrará inatendível ou irreal uma interven- ção de orquestra numa cena em que ela – fisicamente – não possa ser observada”. Trata-se, pois, de uma convenção universalmente aceita na qual tanto o diretor quanto o público vêem, com níveis diversificados de consciência, num processo de empatia e identificação com as persona- gens: mecanismo no qual a música sempre teve um papel determinante. Na variedade ditada pela simples circunstância, a música utilizada no “ní- vel externo” utilizará quaisquer tipos de recursos expressivos aptos para atingir o objetivo do escopo, mas, em todos os casos, parecerá sempre uma função de comentário musical imposto “de fora” do filme. O grau de participação sugerido pelo diretor no âmbito do “nível externo” deverá ser distinto em: crítico e acrítico. O último significa o “nível externo” por exce- lência, com o qual é em geral perseguido por quem identifica o próprio papel do diretor com a posição que, reportada à narrativa, definiria o “pon- to de vista do narrador onisciente”.  Nível Interno: Onde a componente musical é justificada pela própria narra- tiva – um rádio ligado ou qualquer outra fonte sonora reproduzida ao vivo que o espectador possa ver ou somente intuir a presença. Esse “nível” comporta um alto grau de ambigüidade, pois, o espectador astuto, cuja soleira artística esteja desperta (e que tenha por isso sempre presente como cada meio proposto no filme, a qualquer título, seja um produto da vontade do diretor), pode prestar-se ao jogo que o artífice lhe propõe atra- vés da “casualidade” da intervenção musical. A natureza aparentemente aleatória do “nível interno” multiplica as potencialidades simbólicas e ani- nha-se às possíveis interpretações do evento narrado. É suficiente que a fonte musical não venha revelada no início da cena ou na seqüência intei- ra, mas somente num determinado e não casual momento; ou que ela, re- cebida subitamente como “nível interno”, assuma um progressivo ou im- provisado distanciamento.  Nível Mediado: É o que pela sua natureza assume em si as características dos outros (interno ou externo) e ao mesmo tempo as nega. Onde o “nível externo” de gênero “acrítico” deve exprimir coerência estilística com o ob- jeto da narração, timbrada do abraço participante do comentário musical no filme inteiro, o “nível mediado” opera adaptações parciais, que podem

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juntar-se até a negação de uma coerência expressa em outras partes do filme. O “nível mediado” é o que nos permite entrar em contato com os pensamentos, os sentimentos, as lembranças, as emoções, a interiorida- de das personagens. Num certo sentido, é o que corresponde sonoramen- te ao efeito da objetiva da câmera no visual: a vantagem consiste no fato que também nesse caso o autor não se manifesta diretamente – como no nível externo – pois, a música parece emanar da própria personagem. Pa- ra que esse tipo de magia aconteça de forma eficiente, ocorre que a mesma música já tenha acontecido em nível interno (mas existem tam- bém casos onde a música pré-existia no filme em nível externo), de modo que a personagem possa apropriar-se da música e, conseqüentemente, possa recordá-la em momentos particulares. Normalmente, quando uma música se apresenta em nível mediado, o faz de forma diferente da sua primeira apresentação. O momento mediado será de re-elaboração e transformação pela psique da personagem. Como é facilmente presumí- vel, dada a relação do nível mediado com os outros níveis, necessaria- mente uma relação de conseqüência (antecedente-conseqüente), nesse caso, ainda mais que nos outros, é fundamental prever a presença da música no roteiro; eis porque, tendo em vista a desconsideração de mui- tos diretores pela componente musical, é mais raro encontrar o emprego da música no nível mediado que, certamente, muito poderia enriquecer alguns filmes.

No já citado curso de musica per film, realizado em 1992, na Chigiana, Miceli revelou que encontrou no início dos anos 90 coragem de reler as primeiras formulações do método dos níveis:

Creio que posso dizer que fora alguns problemas de certas intuições não desenvolvidas o suficiente, a fórmula ainda mostrava certa validade e me- recia ser aprofundada. (MICELI e Morricone, 2001:78)

Miceli afirma que um pouco mais tarde o método foi levado em conside- ração na França, conjuntamente com outros, mas, com graves mutilações que, retomados por Michel Chion sem verificação da fonte original, deram lugar a uma série de desentendimentos, replicados em sucessivas contribuições de outros au- tores88.

Tinha razão o meu mestre quando dizia que a citação de uma fonte é uma das operações mais delicadas. Paradoxalmente devo agradecer a quem

88 Miceli afirmou que o equivoco parecia se perpetuar gravemente citando, como exemplo, um ocorrido no curso de um seminário em Fiesole no qual um aluno apresentou um manual de música para filmes, publicado na Coreia, onde era citado através de uma citação de Michel Chion (2001:77).

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agiu de modo tão superficial, pois, me encorajou a rever o meu trabalho e publicá-lo, nesse último decênio, em diferentes locais e versões. Mesmo que se trate de uma batalha perdida, já que é muito mais difícil corrigir uma afirmação equivocada que iniciar a circulação de uma nova, mas, sobretudo porque uma publicação em língua italiana permanece quase le- tra morta, no estrangeiro é como se não existisse (Idem).

2.7.2.1: Música de Acompanhamento & Música de Comentário Antes de expor o “método dos níveis”, e também no escopo de estabe- lecer um vocabulário comum, Miceli tem por premissa uma importante distinção entre “música de acompanhamento” e “música de comentário” (termos utilizados geralmente como sinônimos). A música de acompanhamento é considerada como uma inserção mu- sical voltada a sublinhar, a dar suporte ao filme sobre bases de meras equivalên- cias formais – da onomatopéia ao paralelismo rítmico, jogando, por isso, com có- digos elementares – enquanto que a música de comentário “se encarrega de in- terpretar, em todos os sentidos, o contexto narrativo e a ocorrência simbólica do filme”.

Se eu utilizo a orquestra para evocar ou imitar os ruídos característicos da imagem de um trem em movimento, mesmo que sobrepondo os ruídos e efeitos, estou simplesmente acompanhando a cena, à qual confiro um reforço essencialmente epidérmico, mesmo que eficaz. Se sobre a base rítmica se insere, porém, uma melodia, aparentada talvez com outras si- tuações chaves do filme, é claro que o comentário se sobrepõe ao acom- panhamento, nobilitando este último e englobando-o no fato interpretati- vo. (Ibidem)

Com essa distinção em mente, Miceli explica que a música de comentá- rio tem uma qualidade e uma razão formal intrínseca, não necessariamente ade- rente as características formais de outros elementos da cena fílmica (até o caso extremo da descontextualização, ou seja, da ausência total de sincronia, que po- dem ser de vários gêneros). Afirma que “nesse caso é possível também semanti- zar – esse seria o seu papel tradicional no filme – porém, pode também reenviar contemporaneamente a si mesma”.

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Uma música de acompanhamento, para ele, é constituída de uma série “monstruosa” de sincronias; é a sincronia feita música, pois as relações som- imagem são repetidas, redundantes e constantes.

Aqui, e aqui somente, na minha visão, reside a sua “famigerada” funcio- nalidade, e por essas características foi desprezada pelos puristas e pelos idealistas, os quais, porém, atribuíram-na a todo o fenômeno música- cinema, sem procurar entender as distinções necessárias (MICELI e MORRICONE, 2001:79).

Miceli sustenta que o caso extremo desse modo “servil” de proceder é o chamado mickeymousing, termo oriundo do cinema de animação, ou seja, “levado a uma correspondência paroxística e redundante entre movimento e música”. Po- rém, enfatiza que o procedimento não priva necessariamente de recursos humo- rísticos e até metafísicos notáveis.

2.7.2.2: Sincronias Outro aspecto importante para Miceli são as sincronias. Ele distingue dois tipos básicos de sincronias: explícitas ou implícitas.

Sincronias explícitas representam um apontamento preciso entre imagem e música, que esta última sublinha de modo muito evidente. Pode fazê-lo com um crescendo improvisado, com um acorde sustentado, com uma sé- rie de acordes repetidos, com a suspensão de um fluxo rítmico preceden- te, com uma dissonância em sfz em um contexto consonante... As soluções são inumeráveis. Em certos casos essas sincronias exasperadas atingem o ‘mickeymousing’. Trata-se de sincronias despudoradas, muito difundidas no gênero cômico, no qual denunciam seu parentesco com a pantomima, e mostram, com freqüência, qualidades musicais ágeis ou apressáveis, jo- gando com artifícios descobertos e vulgares (MICELI, 2001:80).

Sincronias implícitas podem ser definidas como aquelas que, não aban- donando um percurso musical autônomo em seu modo – no sentido de ca- racterísticas estruturais –, inserem leves modificações em coincidências com eventos fílmicos, também esse leve e, sobretudo, sutilmente alusivo. Em outras palavras as sincronias implícitas sublinham os sentimentos mais que os eventos, os pensamentos mais que as ações (Idem).

2.7.2.3: Os Níveis Depois de estabelecidas as premissas sobre “música de acompanha- mento” e “música de comentário” e sobre as sincronias implícitas e explícitas, Mi-

60 celi adentra à análise audiovisual utilizando o “método dos níveis” de intervenção das inserções musicais no filme de cinema propriamente dito. A base teórica do método analítico de Miceli aplicado ao objeto audiovi- sual do tipo cinematográfico (ou televisivo) respalda-se em metodologias lingüísti- cas e semiológicas, com particular atenção à análise narratológica do texto literá- rio e, nesse, ao plano das enunciações, o chamado ponto de vista narrativo. Sem adentrar a pormenores Miceli recorda a distinção platônica, “elaborada em modo determinante por estudiosos contemporâneos”, entre diegesis (o contar puro, ou seja, o ponto de vista do narrador onisciente) e mimesis (o contar conduzido pelo ponto de vista das personagens). Nas palavras de Miceli sua proposta se diferencia de todas as outras não só pela terminologia adotada, mas, pela distinção de fundo, que remete a três categorias ao invés de duas (e sem recorrências sistemáticas a subcategorias).

Falarei de agora em diante não de nível diegético, mas, de “nível inter- no”; não de nível extra-diegético, mas, de “nível externo”, aos quais acrescento o “nível mediado” (Ibidem).

A tabela a seguir apresenta um resumo das características de cada um dos níveis em forma reduzida e esquemática. Fonte musical pertencente à cena A identificação da fonte pode ser visível ou presumível. Nível Interno Em certos casos coincide com o playback. O autor se esconde Fonte musical indeterminada, ubiqüidade. O típico comentário / acompanhamento também com função leitmo- Nível Externo tívica. No limite da neutralidade expressiva é um fundo genérico. Epifania do autor. Fonte musical interiorizada, identificável com a personagem. Tipo de mimesis, ou seja, “objetiva sonora”. Nível Mediado Pode também ter função leitmotívica. O autor se esconde.

Tabela 1 – Os Níveis de Intervenção da Música nos Filmes (MICELI e MORRICONE, 2001:81)

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O problema em relação à utilização e compreensão desses termos sur- ge na complexidade dos discursos que podem expressar-se sob suas denomina- ções. O filme pode ser formado com qualquer tipo de música, som, ruído em co- nexão com qualquer imagem. Nesse caso a distinção entre sons diegéticos (Gor- bman) ou internos (Miceli), extra-diegéticos (Gorbman) ou externos (Miceli) e me- ta-diegéticos (Gorbman) ou mediado (Miceli) depende inteiramente da compreen- são objetiva dos elementos sonoros e visuais convencionais ou não do filme. Por exemplo, algumas músicas podem representar o mundo exterior da tela, mas re- fletem-se no mundo interior da história, enquanto outras representam o próprio mundo da tela. E mais, esse jogo das convenções diegéticas, não-diegéticas e meta-diegéticas entre o musical, o sonoro e o imagético pode ser utilizado de for- ma a criar ambigüidades. Tais ambigüidades são traduzidas em efeitos que po- dem desviar, sublinhar, negar, amplificar, contradizer, aprofundar, mesclar etc. a linearidade espaço-temporal da narrativa e, conseqüentemente, refletir-se na in- terpretação e na compreensão dos eventos sintáticos e semânticos relacionados. Donnelly89 (2001) comenta que num dos momentos desconstrutivos do western paródico “Blazing Saddles” (Banzé no Oeste), 1974, de Mel Brooks, o xe- rife é visto cavalgando numa paisagem típica, uma das marcas do gênero western, acompanhado por uma destoante música jazzística orquestral de fundo, quando casualmente se encontra com a própria orquestra e seus membros, “surrealistica- mente” localizados nas paisagens áridas da cena. Na revelação ostensiva e ines- perada da fonte musical, a cena confunde os códigos narrativos, teorizados em termos de uma dicotomia entre uma fonte musical diegética (música originária, aparentemente, do próprio mundo narrativo do filme) e não-diegética, música inci- dental ou música de fundo (que vem “de fora” dele). O exemplo descrito demons- tra principalmente como esse modelo teórico polarizado domina a teoria da música no cinema: indica a fonte de origem da música, mas, não revela a complexa rela- ção entre os dois modos polarizados, nem o que elas realmente proporcionam na narrativa.

89 Kevin J. Donnelly, (ed.) Film Music: Critical Approaches. NY: Continuum, 2001.

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Mesmo com essas limitações problemáticas, em 1979, na publicação Film Art: An Introduction, David Bordwell e Kristin Thompson atribuem um grau maior de detalhamento nas especificações dos elementos sonoros em obras ci- nematográficas. Olhando para a relação temporal entre o som diegético ou não- diegético com a imagem, eles propõem as subcategorias: “Som Externo” para o som diegético de percepção comum entre os personagens em cena e “Som Inter- no” referente aos sons percebidos unicamente pela personagem sobre o qual está centrada a ação da cena. Em 1994, na publicação AudioVision: Sound on Screen, Michel Chion expande o conceito de Som Interno propondo que este pode ser ‘objetivo’ (respi- ração, batimentos cardíacos, etc.), ou ‘subjetivo’ (sons ou vozes mentais). Segundo ele, o Som Interno Objetivo é freqüentemente enfatizado nos momentos em que se tira proveito do silêncio como efeito de expressão dramática para criar apreensão na audiência, enquanto que o Som Interno Subjetivo surge mais freqüentemente sob a forma de monólogo interior.

2.7.3 - Claudia Gorbman (1987): “Música Inaudível90” Música subordinada à narrativa

Qual é então a “parte particular própria” da música de filme?

Já foi mencionado que, para Gorbman, a abordagem dessa questão deve iniciar levando em conta o “contar de uma boa história”. Ela expõe que a nar- rativa convencional do filme constrói uma diegesis (narrativa) – um mundo da his- tória, um lugar da ação. Nessa perspectiva, segundo a autora, os estudos narrato- lógicos da música no filme inevitavelmente nos levam a conclusão que, pelo me- nos no cinema sonoro clássico, a música é subordinada à narrativa.

90 Claudia Gorbman. Unheard Melodies: Narrative Film Music. Bloomington: Indiana University Press, 1987.

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A música é “inaudível” porque as suas funções narrativas estão envolvi- das ou sobrepujadas por outras: na trilha sonora o diálogo rotineiramen- te tem precedência sobre a música.

Buscando sintetizar um modelo do pensamento hollywoodiano clássico da trilha musical, exemplificados pelo compositor Max Steiner, apresenta uma lista de possibilidades que permitem inferências não só de uma perspectiva puramente musical, mas, da música como parte integrante da narrativa fílmica. A lista que Gorbman oferece é um quadro sintético dos princípios de composição, mixagem e edição musicais no filme narrativo clássico. O quadro é oferecido por ela como “representante de tópicos de um campo discursivo ao invés de um sistema monolí- tico de regras invioláveis” (GORBMAN, 1987:73):

 Invisibilidade: o aparato técnico da música não diegética não deve ser visível.  Inaudibilidade: a música não está no filme para ser ouvida consciente- mente. Como tal deve se subordinar aos diálogos e imagens - isto é aos veículos primários da narrativa.  Significador de emoções: a trilha musical pode estabelecer climas e en- fatizar emoções particulares sugeridas na narrativa, mas fundamental- mente e, acima de tudo, ela é um significador de emoções por si só.  Sugestão Narrativa: o referencial/narrativa – música proporciona sugestões nar- rativas e referenciais, indicando pontos de vista, provendo demarcações formais e estabelecendo ambientação e ca- ráter. o conotativa – a música ‘interpreta’ e ‘ilustra’ eventos narra- tivos.  Continuidade: a música provê continuidade rítmica e formal - entre pla- nos, em transições entre cenas, preenchendo as ‘lacunas’.  Unidade: pela repetição e variação do material musical e da instrumenta- ção, a música auxilia na construção da unidade formal e narrativa.  Violação: uma dada composição [film score] pode violar qualquer um dos princípios acima, contanto que a violação esteja a serviço de outro princí- pio.

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2.7.4 - Kalinak (1992):”Settling the Score91” Convenções narrativas

Kalinak compactua com o pensamento de Gorbman quando sustenta que o corpo das convenções musicais que constituem o centro do modelo clássico deriva da prevalência da narrativa que caracteriza o próprio filme clássico. Entre- tanto, enfatiza que primeiro e antes de tudo, a música serviu a história e a partitura clássica foi gerada a partir de um número de convenções que assegurariam uma exposição narrativa desobstruída.

Essas convenções incluem privilegiar sempre o diálogo sobre a música; um alto grau de sincronização entre música e ação; a utilização da músi- ca com o intuito de sustentar continuidade, particularmente em momentos quando a teia narrativa é mais tênue; e o uso da música para controlar a conotação narrativa. (KALINAK, 1992: XV)

2.7.5 - Wingstedt (2005): Narrative Music – Towards and Understanding of Musical Narrative Functions in Multimedia Música como uma “propriedade” amalgamada participante do modo ou maneira de dizer o texto fílmico

Wingstedt (2005) procura justificar a “visão do espectador” propondo uma analogia com a experiência da linguagem verbal. Afirma que o significado léxico, prosódia, inflexão, entonação, qualidade da voz, linguagem, expressão fa- cial etc. são todos percebidos como uma unidade contribuindo no entendimento do significado. Experimenta-se todo o conjunto através de todas as partes que o constitui, mesmo que outros fatores apresentem informações preciosas relaciona- das à natureza emocional e sinceridade da mensagem falada, tende-se a focar a análise consciente nos elementos mais intelectuais ou salientes, normalmente nas palavras que estão sendo ditas.

91 Kathryn Kalinak Settling the Score: Music And The Classical Hollywood Film. Madison: University of Wisconsin Press, 1992.

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Nessa perspectiva, o papel da música nos filmes pode não parecer tão anormal. Seguindo mecanismos similares aos da experiência da lingua- gem falada, a música torna-se análoga ao papel da prosódia na fala. Num certo sentido, a música pode ser pensada como a entonação e o pró- prio timbre da voz do texto fílmico92.

92 WINGSTEDT, J. Narrative Music: Towards and Understanding of Musical Narrative Functions in Multi- media, (Licentiate thesis). Sweden, Stockholm: School of Music, Luleå University of Technology, 2005.

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2.8 - PENSANDO A FORMA DA MÚSICA NO CINEMA

2.8.1 - Roy Prendergast (1977): Música de Filmes e Forma A Forma Coesiva

Prendergast lembra que a crítica com maior carga entre as muitas en- dereçadas à música de filme é a que aponta a carência de uma forma coesiva, ou seja, uma forma exclusivamente musical.

Ingênuas, no melhor dos casos, tais críticas conotam uma total falta de entendimento no que concerne a função da música e sua íntima relação com outros elementos do filme93.

Cita os exemplos de grandes mestres (Stravinsky e Villa-Lobos) que, na sua visão, falharam em entender esse ponto crucial da música no filme que no produto audiovisual provoca tanto a aderência do material musical utilizado numa união recíproca de todos os outros elementos do filme partindo do visual, quanto da própria adequação do compositor aos condicionamentos impostos pelas ne- cessidades interiores e exteriores da produção.

Um bom compositor de música de filme deve ser como um camaleão tanto em relação ao seu estilo composicional pessoal como, talvez o mais im- portante, com a forma e o contorno que sua música toma em relação ao desenvolvimento dramático na tela. È uma regra cardinal para o compo- sitor de música para filmes que o visual da tela determine a forma da mú- sica escrita para acompanhá-la. (p.227)

Afirma o autor que “forma” na música absoluta, como o alegro de sona- ta ou rondó, depende em grande parte do princípio de repetição e contraste, po- rém, repetição e contraste num tempo relativamente curto e sem interrupção.

Com o filme, por outro lado, existem longas seções com nenhuma música, no qual a audiência tem tempo de sobra para esquecer qualquer tipo de material musical utilizado anteriormente. (p.231)

93 PRENDERGAST, R. Film Music: a neglected art. New York: W. W. Norton, (1977), 1992, p. 227.

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Numa tentativa de generalização aponta três tipos de procedimentos ou recursos que o compositor de música para filmes tem a disposição para conceber sua trilha musical e que possibilitam que a música utilizada atinja algum tipo de unidade formal (Prendergast alerta que, no entanto, a forma opera em vários ní- veis dentro de um filme e, com certeza, música é só um deles): leitmotiv score, monothematic film score e developmental score.

 Leitmotiv Score: Classificado como o primeiro e mais comum, teve o seu florescimento na ópera do século 19 de Richard Wagner94. Os composito- res organizam a idéia básica da trilha musical em diferentes temas ou mo- tivos conectados às várias personagens do filme. A vantagem desse tipo de procedimento é que o material musical é mais facilmente retido e reco- nhecível pela audiência. A maioria dos compositores trabalhando com es- se procedimento tendem a tratar tecnicamente o material melódico pelo procedimento da variação. As melodias ou motivos em uma trilha com es- se procedimento podem ser reapresentados em várias formas cada vez que a personagem aparece. As alterações na melodia da personagem (si- nistro, amante, excitado etc.) podem corroborar e dar ao ouvinte algumas

94 Leitmotiv (“motivo condutor”, “motivos de antecipação”, “Motivos de reminiscência”, “Grundmotiv”). O mais famoso de todos os termos wagnerianos não é originário do próprio compositor. No entanto, o conceito subjacente do “motivo condutor” pode ser constatado na Parte III de Ópera e Drama, onde Wagner se referiu a motivos de “antecipação” e “recordação” ou “reminiscência”, idéias musicais que tomariam um sentido distintamente associativo (relativos a personalidades, objetos, idéias ou emoções) em conjunção com momen- tos dramáticos significativos e textos concomitantes. Em Ópera e Drama e, subseqüentemente, em uma co- municação a meus amigos, Wagner se referiu de modo variado a “elementos melódicos” principais ou idéias (melodische Momente) e “motivos fundamentais” (Grundmotive) aqui significando motivos dramáticos aos quais corresponderiam determinadas idéias musicais. Estas idéias musicais acumulariam camadas adicio- nais de significância por meio de seu reaparecimento alterado em contextos dramáticos apropriados, no decorrer do drama, dotando-o, ao mesmo tempo, de um sentido compulsivo em direção a uma unidade estru- tural mais ampla. O “sistema” wagneriano originou-se como uma amplificação de práticas de lembrança dramático-musical que encontraram aplicação crescente a partir do final do século XVIII. O termo leitmotiv em si é, com freqüência, atribuído a F. W. Jähns, que o utilizou em seu estudo sobre a vida e obra de Weber (Berlim, 1871), apesar de só ter entrado em circulação através de Hans von Wolzogen, que publicou os pri- meiros guias temáticos para as obras de Wagner: os relativos ao Anel (1876), a Tristão (1880) e a Parsifal (1882). A.W. Ambros usou o termo leitmotiv já em 1860, referindo-se às técnicas de transformação temática nas óperas de Wagner até Lohengrin e às obras orquestrais de Liszt (Culturhistorishe Bilder, [Leipzig, 1860]). O uso por Wagner de leitmotive já havia sido analisado por Heinrich Porges e Gottlieb Federlein, antes de Wolzogen, entretanto sem usar esta denominação específica. Em seu ensaio Über die Anwendung der Musik auf das Drama (Sobre a aplicação da música ao drama, 1879), Wagner fez referência à análise de seus leitmo- tive por Wolzogen, indicando que este se limitara à taxonomia desses motivos “conforme o seu significado e efeito dramático, mas não [...] o seu papel na estrutura musical” (GS X, 185-6). Wagner afirma que a disposi- ção, a variação e o desenvolvimento de tais motivos, no decorrer do drama, deveriam merecer maior atenção. No parágrafo precedente do ensaio, ele mencionara uma “rede de temas fundamentais” (Grundthemen), aná- loga à exposição e desenvolvimento das idéias temáticas em um movimento sinfônico, porém, no caso, cor- respondente ao processo de ação dramática (o que significa que Wagner, aqui, reconhece o conceito de leit- motiv sem sancionar explicitamente o termo) In: MILLINGTON, B. Wagner: Um compêndio. Guia completo da música e da vida de Richard Wagner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, pp. 259-260.

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indicações sobre o estado mental da personagem em qualquer momento particular. O dispositivo pode tornar-se extremamente eficaz se a própria cena apresenta certa neutralidade emotiva, cabendo à música agregar al- guma coisa que não está presente na tela. Embora as características apresentadas representem uma simplificação excessiva do procedimento, não estão muito distante da forma utilizada. Existem muitos exemplos de péssimas utilizações, mas, também existem muitos otimizados e não obs- trutivos.  Monothematic film score: tipo de dispositivo formal no qual o compositor utiliza somente um tune (normalmente de natureza popular) para construir toda a trilha musical. Acrescenta que esse dispositivo composicional tem sua clássica expressão na partitura do filme Laura de David Raksin. Pren- dergast enfatiza que o sucesso subseqüente da canção isolada do filme, juntamente com a utilização equivocada do conceito monotemático por produtores, transformou, por uma série de razões, esse procedimento numa marca da morte da música de filme sensitiva e inteligente.  Developmental Score: muito semelhante à trilha sonora baseada no leit- motiv, o procedimento formal desse tipo de organização da trilha sonora musical pode ser longinquamente comparado a forma clássica do alegro de sonata do século 18, mas, somente no que concerne aos procedimen- tos ligados ao caráter de preparação do desenvolvimento [Exposição]. Em muitas instâncias a música dos créditos iniciais nesse tipo de organização da trilha sonora musical cumpre a mesma função da exposição da forma clássica do alegro de sonata no qual é apresentado o material musical que será utilizado durante todo o restante da trilha e do filme. Aqui, qual- quer tipo de comparação estrutural com a forma em questão termina, não existindo nenhum tipo de seqüência definida de eventos formais tanto na organização formal da trilha sonora musical quanto no da forma do movi- mento do alegro de sonata. Existem recapitulações alteradas e inalteradas do material na seqüência do filme, mas, isso se dá mais em função de ne- cessidades dramáticas do que por considerações musicais inerentes.

2.9 - PENSANDO A ANÁLISE DA MÚSICA NO PROCESSO AUDIOVISUAL

2.9.1 - Chion (1985): O Contrato Audiovisual O Contrato Audiovisual A Música como fonte de pathos

O compositor, cineasta e teórico francês Michel Chion95 dedicou uma grande parte de seu trabalho no sentido de delinear os vários aspectos do fenô-

95 Na década de 1970, Michel Chion foi assistente de Pierre Schaeffer no Conservatório de Paris e na ORTF ( Organização Francesa de Rádio e Televisão).

69 meno que colocam seus expectadores num modo específico de recepção: audio- visual, pensamento que insere a música na própria realidade da combinação dos sons e das imagens – realidade onde uma percepção influencia a outra transfor- mando o que é visto pelo que é ouvido e vice-versa. Para ele, nesse modo recep- tivo, a música é uma fonte criadora de emoções [pathos]. Nessa perspectiva pro- cura suplantar as camadas redundantes entre os dois domínios e os debates so- bre a inter-relação das forças (a famosa questão do século 18, “o que é mais im- portante, som ou imagem?”), amalgamando os dois domínios num novo complexo: o ‘Contrato AudioVisual’. No contrato audiovisual nunca é criada uma fusão total dos elementos sonoros e imagéticos, ou seja, os elementos dos dois domínios subsistem separadamente na combinação: uma justaposição e, ao mesmo tempo, uma combinação.

Como ainda é muito recente, a novidade desta forma de abordagem tem recebido muito pouca consideração. Na insistência do discurso de que “assistimos a” (vemos) um filme ou a um programa de televisão, persis- timos em ignorar como as trilhas-sonoras modificam a nossa percepção. No melhor dos casos, alguns estão satisfeitos com um modelo aditivo, de acordo com o qual presenciar um espetáculo audiovisual é assistir a ima- gens MAIS ouvir sons. Cada percepção permanece quase que estanque no seu próprio compartimento. (CHION, 1994:3-5)

2.9.1.1: Valor Agregado Desenvolvendo melhor a complexidade de seu pensamento, enfatiza o fenômeno do cinema como ilusão, ilusão audiovisual, “uma ilusão situada no âma- go da mais importante relação entre som e imagem”, relação que ele nomeia co- mo valor agregado (added value).

Por valor agregado quero dizer o valor informativo e expressivo com o qual o som enriquece uma dada imagem de forma a criar uma impressão definida numa experiência imediata ou recordada por alguém, de forma que essa informação ou expressão venha “naturalmente” do que está sendo visto, como se já estivesse contido na própria imagem. Valor Agre- gado é o que dá a (eminentemente incorreta) impressão que o som é des- necessário, que o som meramente duplica um significado que em realida- de ele porta, seja completamente no próprio som, seja por discrepâncias entre ele e a imagem. (Idem)

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Esta espécie de alquimia cinestésica também está presente no âmago de seus trabalhos: La voix au cinema (1982), Le son au cinema (1985), La toile trouée (1988), Audio-Vision (1991) e La musique au cinema (1995).

2.9.1.2: Syncresis Do conceito de valor agregado, Chion apresenta o de synchresis, fenô- meno cinemático que resulta da apresentação simultânea de estímulos auditivos e visuais, causando uma conexão perceptiva irresistível e independente de qualquer lógica racional (1994: 58). Em Le Son au cinema (1985), Chion havia apresentado a idéia da exis- tência de duas formas em que a música no filme pode criar uma emoção [pathos] específica em relação à situação retratada na tela96. Ele denominou esses efeitos de empáticos (ou empatéticos) e anempáticos (ou anempatéticos). Na retomada dessa classificação sob a perspectiva audiovisual do ‘valor agregado pela música’ afirma que, por um lado, a música pode expressar sua participação no sentimento da cena, pelo seu ritmo, tom e fraseado. Ressalta que obviamente essa música participa dos códigos culturais de coisas como tristeza, alegria e movimento. Ele denomina essa forma de participação musical de empática (empatética), derivada da palavra empatia, a habilidade de sentir o sentimento de outros. Portanto, nessa condição, a música receberia das imagens e acrescentaria às próprias imagens, simultaneamente, qualidades correspondentes, que no resultado final amplificari- am qualitativamente o resultado geral. Por outro lado, e em contraposição, a músi- ca pode exibir uma visível indiferença com a situação sonoro-imagética, ou seja, progredir numa maneira equilibrada, destemida e inelutável onde decorre a cena, que se dá contra esse fundo musical de “indiferença”.

Esta justaposição da cena com uma música indiferente não tem o efeito de esfriar a emoção, mas, ao invés, intensificá-la, inscrevendo-a num fun- do cósmico. Chamo este segundo tipo de música anempática (anempatéti- ca) (com o a- privativo). O impulso anempático no cinema produz incon- táveis momentos musicais de execuções de pianos, celestas, caixinhas de

96 CHION, M. Le Son au cinema, 1985 capítulo 7, “La Belle Indifférente”, pp. 119-42, especialmente pp. 122- 26.

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música e bandas dançantes cuja frivolidade e ingenuidade estudadas re- forçam a emoção individual da personagem e do espectador, mesmo que a música finja não notá-los.

“Inesperadamente”, surge no texto uma terceira possibilidade (nem anunciada nem nomeada):

Finalmente, existem casos em que a música não é nem empatética nem anempatética, ela tem tanto um significado abstrato quanto uma função simples de presença, um valor como o de um guia, de uma indicação: de qualquer forma, nenhuma ressonância emocional precisa.

2.10 - INTRODUÇÃO À ANÁLISE AUDIOVISUAL

No capítulo “Introdução a análise audiovisual” (Audio-vision, 1990: 185- 198) Chion apresenta, direta e indiretamente, alguns elementos importantes como possibilidade de abordagem analítica da música dos filmes. Para Michel Chion o objetivo da análise audiovisual é entender as for- mas pelas quais uma seqüência ou a totalidade de um filme funciona na combina- ção dos seus sons com as suas imagens.

Comprometemo-nos com a análise, para além de simples curiosidade, por razões de puro conhecimento, mas, também com outra meta de um refi- namento estético. Pelas razões já abordadas, o som parece que permane- ce muito mais difícil de categorizar do que as imagens, e permanece o risco de ver a relação audiovisual como um repertório de ilusões, mesmo truques – o mais desprezível para ser feito.

Em sua abordagem a análise audiovisual não envolve entidades claras como um diálogo, um corte ou uma tomada de câmera, mas somente “efeitos”, uma entidade que ele considera como “menos nobre”, mas que, no longo trajeto, é importante, na pesquisa e aplicação, para estabelecer objetos e categorias. Porém, Chion enfatiza que, antes de qualquer coisa, necessita-se re- descobrir certo frescor em como verdadeiramente apreendemos os filmes, descar- tando “conceitos gastos”, que servem, principalmente, como prevenção à audição e visão objetivas.

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O tipo de análise audiovisual que proponho é também um exercício de humildade com respeito às seqüências do filme que nós “audiovemos”. “O que eu vejo?” e “O que ouço?” são questões sérias e, quando as fa- zemos, exercitamos nossa liberdade renovando nossa relação com o mundo. Elas também nos conduzem a um processo de despojamento de velhas camadas que guardavam nossas próprias percepções, que prote- gemos debilmente como se de algum modo elas pudessem sobreviver nu- ma vergonhosa obscuridade, escondida dos outros.

Em sua perspectiva, a análise audiovisual deve se apoiar em palavras, portanto, as palavras devem ser tomadas seriamente – sejam palavras que já existam, ou que sejam inventadas ou reinventadas para designar relações ou ob- jetos que começam a tomar forma na medida em que são observados e entendi- dos. Ele enfatiza que, infelizmente, a maior parte deste trabalho de nomeação ain- da precisa ser feito, particularmente o das qualidades das percepções auditivas.

Mesmo assim, cada linguagem possui um conjunto (corpus) de palavras que designam diferentes tipos de sons. Algumas dessas palavras são bem precisas e evocativas. Não existe razão para considerá-las reserva exclu- siva de romancistas. O termo “clink”, “screech” e “murmur”, como opostas a palavras menos especializadas, podem emprestar uma precisão considerável na descrição do fenômeno sônico. Porque dizer “um som”, quando pode ser dito “crackling” ou “rumbling” ou “tremolo”? A utili- zação de palavras mais exatas permite confrontar e comparar percepções e progredir na identificação e definição delas. O simples fato de ter de procurar na linguagem o que já foi ouvido antes nas orelhas, incita-nos a uma sintonia mais forte com os sons.

2.10.1 - Métodos de Observação De forma a observar e analisar a estrutura som-imagem de um filme pode-se recorrer ao que Chion denomina de métodos de observação.

2.10.1.1: Mascaramento O mascaramento consiste em observar uma dada seqüência audiovisu- al várias vezes, algumas vezes com som e as imagens conjuntamente, outras ve- zes ocultando (mascarando) a imagem e outras, retirando o som. Para Chion, es- se método de observação dá a oportunidade de ouvir o som como ele é, e não

73 como a imagem o transforma e o disfarça, e também permite ver a imagem como ela é, e não como o som a recria.

De forma a realizar isso de modo satisfatório, deve-se treinar a realmente ouvir e realmente ver, sem projetar o que já se conhece em torno dessas percepções. Exige disciplina e também humildade. Já estamos tão acos- tumados a “falar sobre” e “escrever sobre” alguma coisa sem qualquer resistência que nos sentimos muito contrariados ao ver este estúpido ma- terial visual e este vil material sônico desafiando nossos preguiçosos es- forços em descrevê-los, e somos tentados a ceder e concluir em última análise que imagens e, especialmente, sons são “subjetivos”. Alcançando esta conclusão pode-se mover para assuntos sérios como a teoria...

Provavelmente, não existe uma ordem ideal na qual observar uma se- qüência audiovisual. Porém, Chion propõe que descobrindo os elementos sônicos e os visuais separadamente, antes de colocá-los juntos novamente, dispõe-nos mais favoravelmente a manter nossa audição e o nosso olhar estimulados, abertos para as surpresas dos encontros audiovisuais. Deve-se ter em mente que o con- trato audiovisual nunca cria uma fusão total dos elementos de som e imagem; ele ainda permite que os dois subsistam separadamente enquanto combinados. O contrato audiovisual verdadeiramente permanece uma justaposição ao mesmo tempo em que cria uma combinação. A fase mais difícil do procedimento de mascaramento envolve ouvir o som por ele mesmo, acusmaticamente. Segundo o autor, isso deve ser feito num ambiente relativamente “morto” sonoramente e que seja também isolado de ruídos exteriores – condição que deve ser cuidadosamente arranjada. Além disso, os par- ticipantes devem estar dispostos a concentrar-se.

Nós, absolutamente, não estamos acostumados a ouvir os sons, especial- mente sons não musicais, com a exclusão de qualquer coisa extra. É im- portante planejar com antecedência não somente um VCR e um monitor, mas, também um pequeno sistema estéreo plugado na saída do áudio do VCR a fim de se obter tanto uma melhor qualidade de áudio quanto uma capacidade de volume mais intensa.

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2.10.1.2: Casamento Forçado Um experimento decisivo, que Chion recomenda enfaticamente no es- tudo de uma seqüência audiovisual, é por ele denominado de casamento forçado entre som e imagem.

Tome uma seqüência de um filme e também reúna uma seleção de diver- sos tipos de música que possam servir como acompanhamento. Retire cuidadosamente o som original (o qual os participantes não devem ter ouvido anteriormente ou já conhecê-lo antes da experiência), exiba a se- qüência várias vezes, sempre acompanhada por várias dessas peças mu- sicais tocadas sobre as imagens e de maneira aleatória. Sucesso assegu- rado: em dez ou mais versões existira sempre poucas que criaram fantás- ticos pontos de sincronização e movimento ou justaposições cômicas, que sempre acontece como uma surpresa.

Existem múltiplas possibilidades de combinações entre música e as imagens. Na apreciação de várias músicas - de estilos e/ou épocas diferentes e que representem códigos culturais distintos - sobre uma mesma cena, cada uma delas provoca como uma leitura particular dessa cena. Mesmo que de modo alea- tório, a música pontua alguns momentos específicos da seqüência, criando signifi- cados que, possivelmente, não foram planejados por nenhum diretor. Para Chion, na mudança da música sobre as mesmas imagens é dramaticamente ilustrado o fenômeno do valor agregado, syncresis, entre outros. Pela observação dos tipos diferentes de música, as imagens parecem “resistir”, e a diversidade musical (con- )cede sugestões que permitem ver a imagem em todo seu potencial de significa- ção e expressão.

O efeito neste ponto nunca deixa de ser surpreendente. Qualquer que seja ele, ninguém o imaginou daquela forma antecipadamente; nós o conce- bemos de maneira diferente, e sempre descobrimos algum elemento sono- ro que nunca nos ocorrera. Por poucos segundos, então, tornamo-nos conscientes da estranheza do relacionamento audiovisual: tornamos-nos conscientes do caráter incompatível destes elementos chamados som e imagem.

Em La Musique au Cinéma (1995), no capítulo “La musique comme élément et comme moyen”, Chion elenca uma série de funções da música no ci-

75 nema e algumas considerações importantes sobre a sua utilização. Algumas delas serão utilizadas e referenciadas na parte analítica do presente trabalho.

2.11 - KARLIN E WRIGHT (1990): ON THE TRACK

Composição, gravação e edição das músicas no filme Aspectos práticos, teóricos e estéticos envolvidos cronologicamente num projeto tí- pico de composição da trilha sonora musical de um filme

Em 1990, Fred Karlin e Rayburn Wright97, com a ajuda de muitos com- positores de música de cinema, delinearam um processo específico que abarcaria as principais características de todo o trajeto cronológico da composição, grava- ção e inserção da música nos filmes. O trajeto cronológico referencia um modelo no qual a trilha sonora mu- sical de um filme específico passaria por nove etapas cronológicas:

1. Encontro com os responsáveis pelo projeto do filme (dire- tor/produtor/editor), leitura do roteiro, primeira “visualização” do filme (screening); 2. Pontuação do filme (spotting): Aonde vai ou pode haver música no filme? 3. Planejamento de custos e das sessões de gravação; 4. Conceitualização: Quais as características do filme? 5. Definição dos tempos da sincronização com as imagens: Qual é a quantidade e o tamanho das inserções musicais? 6. Composição das inserções musicais; 7. Orquestração das inserções musicais; 8. Gravação das inserções musicais; 9. Justaposição da música, outras sonoridades e das imagens em movi- mento (dubbing): Mixagem final do filme (Final Cut).

As nove etapas formuladas foram pensadas pedagogicamente e desti- nadas ao músico que pretende tornar-se compositor de cinema. A totalidade des-

97 KARLIN, F. e WRIGHT, R. ON THE TRACK: a Guide to Contemporary Film Scoring. New York: Schirmer Book, 1990.

76 ses passos compõe um processo que objetiva abarcar e generalizar os aspectos práticos, teóricos e estéticos envolvidos cronologicamente num projeto típico de composição da trilha sonora musical de um filme. Revertendo e subvertendo a cronologia, ou seja, na tentativa de recons- trução de cada um dos passos, focados na trilha musical de um filme já acabado, revelam-se muitas características específicas que remetem ao pensamento musi- cal cinemático.

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2.12 - O PENSAMENTO ECLÉTICO

2.12.1 - Brown (1992): Sobretons e Subtons98 Ecletismo e questões estéticas

Distinto de livros anteriores que oferecem análises históricas, técnicas e sócio-políticas, Overtones and Undertones busca centrar-se na questão estética da música de cinema, ou seja, em como a música de filmes interage e influencia nossas respostas às diversas situações cinemáticas. Para isso, Brown traça a his- tória da trilha sonora musical desde seu início, cobrindo tanto o cinema americano quanto o europeu. Apresenta diversas leituras a partir de filmes como Psicose, Laura, The Sea Hawk, Double Identity e Pierrot le Fou. Em entrevistas reveladoras com Bernard Herrmann, Miklós Rósza, Henry Mancini e outros, o escritor permite também que os próprios compositores falem. Uma ampla discografia e bibliografia completam o volume. Grande parte das críticas dirigidas ao livro de Brown concorda com as de Stilwell99, “é um livro supremamente frustrante embora tenha alguns pontos que possam recomendá-lo”. As críticas dirigidas ao livro podem ser resumidas nos seguintes tópi- cos:

 Histórico: Além de recapitular o que muitos outros já disseram propõe “no- vos caminhos” e súbitas observações sobre recepção e estética;  Metodológico: Não se concentra no “filme hollywoodiano clássico” e nem substitui seus cânones com algum dos “filmes europeus de arte”;  Coerência e conseqüência: Num capítulo apresenta a utilização de quarte- tos de Beethoven em filmes e no próximo discute Head, o filme de estréia do grupo “The Monkees” na televisão;  Equívocos teóricos perigosos: Mesmo que Brown explicitamente não pressuponha qualquer conhecimento musical nos leitores, faz afirmações

98 Royal S. Brown. Overtones and Undertones: Reading Film Music. Berkeley: University of California Press, 1994. 99 STILWELL, R. J. Music in Films: A Critical Review of Literature, 1980-1996. The Journal of Film Music, 2002, volume 1, número 1, p. 19-61.

78 que podem soar perfeitamente plausíveis ou extremamente profundas a alguém que possua nenhum ou pouco conhecimento musical, mesmo que, na realidade, as afirmações sejam extremamente problemáticas quando não completamente equivocadas.

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2.13 - PENSANDO METAFORICAMENTE

2.13.1 - Nicholas Cook (1998): Analysing Musical Multimedia A relação da Música e da Imagem como metáfora

O modelo proposto por Cook100 é o da metáfora. Ele indaga que se mú- sica e imagem possuem algum tipo de similaridade, sua interação capacita uma transferência mútua de atributos. Algo do musical pode ser associado às imagens e vice-versa. Observa que deve haver certa medida de confluência nos fatores musicais e imagéticos para que possam compor uma metáfora viável. Todavia, esse momento de confluência deve ser sutilizado para que sua amplitude não constitua um longo tempo de exposição e de redundância mútua, pois, nesse ca- so, a transferência de atributos musicais e imagéticos distintos pouco ou nada po- deria beneficiar a composição audiovisual já que é, a priori, resultado do próprio conjunto de som-imagem. (COOK, 1998: 66-82) Obviamente, esse pensamento compactua com o de Eisenstein e o de Chion no que se refere ao movimento dos dois meios e na pressuposição da exis- tência de valores que engendrem uma espécie de simbiose. O esforço de Cook se dá na tentativa de qualificar o fenômeno como metafórico. Martinez101 lembra que o conceito de metáfora estendido ao objeto audi- ovisual é bastante questionável na medida em que é um termo [uma figura de lin- guagem] específico e que sua transposição e emprego na compreensão da rela- ção entre música e imagem não abarca todas as possibilidades da combinação audiovisual.

Se metáfora, forma específica de significação, for encarregada de cobrir toda a variedade de possíveis articulações em multimídia [audiovisual], ela se tornará teoricamente inoperante. Se houver disparidade entre os meios significativos, como justificar um significado que surge de uma me- táfora não viável? (MARTINEZ, 2004: 176)

100 COOK, N. Analysing Musical Multimedia. Oxford: Oxford University Press, 1998. 101 MARTINEZ, J. L. Música e intersemiose. Revista: Galaxia, vol. 4, n. 8, 2004.

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2.14 - A MÚSICA PARA FILMES COMO SINERGIA

Alguns autores como, por exemplo, Michel Chion (1985: 119) e Claudia Gorbman (1987: 30) afirmam também que a música fílmica é sinergética. Martinez102 lembra que sinergia é um conceito utilizado pelo arquiteto, matemático e filósofo Buckminster Fuller (1975103), segundo o qual o comporta- mento global de um sistema, por exemplo, o objeto fílmico, se dá numa ordem tal que não pode ser previsto pela soma individual das possibilidades isoladas de ca- da componente desse sistema. Ou seja, o comportamento de um sistema sinergé- tico apresenta uma resultante muito maior que a soma individual de suas partes. Nessa perspectiva, o objeto audiovisual fílmico visto como um sistema sinergético representa um sistema cuja resultante é muito maior do que a soma individual de suas partes (objeto reduzido, na maioria das vezes, às imagens em movimento e a trilha sonora que o compõe), ou seja, com uma resultante extraor- dinária para a ordem de potencialidade de seus componentes em isolamento.

102 MARTINEZ, J. L. Música e intersemiose. Revista: Galaxia, vol. 4, n. 8, 2004, p. 180. 103 BUCKMINSTER FULLER, R. SYNERGETICS: Explorations in the Geometry of Thinking. 1975, 1979. http://www.rwgrayprojects.com/synergetics/s01/p0100.html. Último acesso: 01 de fevereiro de 2009.

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2.15 - PENSANDO A MÚSICA DE CINEMA NA TEORIA DOS GÊNEROS CINEMA- TOGRÁFICOS

2.15.1 - Mark Brownrigg104: Música de Cinema e o Gênero Cinematográfico Brownrigg explora a relação entre o gênero fílmico e a trilha musical predominantemente nos filmes hollywoodianos. Ele inicia com uma hipótese sim- ples que cada gênero teria o seu próprio tipo de convenção musical, sua assinatu- ra “paradigmática”, o que resultaria em diferenças entre os filmes. Os filmes Wes- tern soariam diferentes dos filmes de Horror, que soariam diferentes dos melo- dramas românticos e assim por diante.

Poderia ser argumentado que os compositores de cinema meramente dis- põem de uma série de “botões” que apertam para instantaneamente su- prir uma ambiência do Western, evocar um ambiente de gângsters ou ele- var uma relação emocional, mas isso parece implicar que a construção da partitura é meramente contingente e ad hoc, um modo de composição sem uma estrutura coerente, com nenhuma lógica atrás dela além das demandas narrativas do “agora”. (BROWNRIGG, 2003:2)

Brownrigg argumenta que:

 apesar de existirem convenções genéricas a partitura de cinema é mais do que uma reunião de clichês gestuais estocados;  existe alguma coisa mais sistemática que apertar botões no mundo da música de cinema;  o gênero é a maior força formatando suas composições.

Demonstrando que, embora a hipótese seja altamente pertinente, o verdadeiro quadro é mais complexo, pois a natureza essencialmente híbrida do nível narrativo da maioria dos filmes de Hollywood resulta similarmente em trilhas musicais híbridas.

Enquanto que os gêneros realmente têm assinaturas musicais paradigmá- ticas, elas não existem discretamente, mas, em constante tensão e relaxa- mento de um para com outro. (2003:284)

104 BROWNRIGG, M. Film Music and Film Genre. Tese de doutorado. Scotland, UK: University of Sitling. 2003.

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Na perspectiva do autor fica claro que é insuficiente afirmar que os fil- mes de gênero tenham os seus próprios sons musicais distintos. Para ele, embora seja verdade que muitos gêneros tenham sua própria assinatura e combinações de elementos melódicos, harmônicos e instrumentais (como os Westerns que re- almente soam diferente dos filmes de terror, que soam diferente, por sua vez dos melodramas), precisa ser reconhecido que o postulado é insuficiente.

Essa é uma abordagem demasiado redutora e restritiva deixando de fora muitos elementos distintos e importantes de uma partitura dos filmes que não se encaixam imediatamente com o seu paradigma dominante genéri- co. No entanto, se aceitarmos a tese de que os cineastas naturalmente tendem a construir suas narrativas ao longo de linhas híbridas, e afirmar, por sua vez, que a música desses filmes são do mesmo modo compostas de elementos retirados de uma série de paradigmas genéricos, então, uma visão mais ampla , mais sensível e mais precisa do modelo pode ser ela- borada descrevendo não uma base musical monolítica para todos os fil- mes, mas, uma série dinâmica de fluências, elevações e ênfases musicais trabalhadas conscientemente para fortalecer e melhorar o movimento da narrativa a partir de uma vertente genérica para outra. (idem)

Em sua conclusão fica claro que os paradigmas genéricos individuais não subsistem isoladamente, mas amalgamados e em constante tensão de um para com o outro. Portanto, as convenções genéricas não podem constituir o único fator a moldar trilhas musicais de filmes, mesmo que o gênero seja um fator-chave que influencia diretamente a forma como os compositores elaboram suas músicas e como o público responde aos filmes.

2.15.2 - Carreiro (2010): “Continuidade Intensificada105” e Gênero Cinema- tográfico Carreiro expõe o processo de “continuidade intensificada” nomeado por David Bordwell (2006, p. 120), a partir de uma proposta alternativa da evolução da poética do cinema ao longo do século XX. Assim:

105 CARREIRO, R. Continuidade Intensificada: Questões sobre gênero e autoria na obra de Sergio Leone. Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Fotografia, Cinema e Vídeo, do XIX Encontro da Compós, na PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ, em junho de 2010. Rodrigo Carreiro é professor do Bacharelado em Cinema da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mestre e doutorando em Comunicação do Programa de Pós- Graduação em Comunicação da UFPE.

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Indo na contramão da maior parte dos historiadores do audiovisual, que compreendem a história do cinema como uma sucessão de ciclos que rompem com os movimentos que os antecederam, Bordwell propôs que os princípios gerais que governam a arte cinematográfica, cuja premissa o pesquisador norte-americano chamou de continuidade clássica, jamais deixaram de operar. (BORDWELL, 2006:119)

Nessa perspectiva, as três vertentes106 da poética do cinema foram e continuam sendo submetidas a uma operação de intensificação gradual e inces- sante, cujas origens remontam aos anos 1960. Bordwell chamou esse processo de continuidade intensificada. Ele afirma que a continuidade intensificada con- siste em um repertório cada vez mais amplo de recursos narrativos e estilísticos, sempre apontando em direção a uma experiência fílmica cada vez mais visceral e intensa. Bordwell sugere que, embora muitos recursos de estilo e táticas narrati- vas tenham sido introduzidos desde então no cardápio dos cineastas, os princípios gerais da construção narrativa, constituídos durante a fase clássica do cinema, ainda continuam valendo:

O que mudou, tanto nos registros mais conservadores quanto nos mais vanguardistas, não foi o sistema estilístico da construção cinematográfica clássica, mas sim certas ferramentas funcionando dentro desse sistema. (...) Desde os anos 1960, essas técnicas foram trazidas para o primeiro plano, de formas inéditas em décadas anteriores. Enquanto se tornavam mais proeminentes, essas técnicas alteraram a textura de nossa experiên- cia fílmica. (BORDWELL, 2006:119)

Para melhor ressaltar sua posição, Bordwell rememora a noção de con- tinuidade clássica – a poética do cinema construída nas primeiras três décadas da atividade e refinada entre os anos 1930 e 1960, quando a forma clássica conhe- ceu seu apogeu. A continuidade clássica é resumida então nos seguintes termos:

O espectador entende como a história se move adiante no espaço e no tempo. Planos que estabelecem e restabelecem o conjunto situam os ato- res dentro do cenário. Um eixo de ação (ou “linha de 180 graus”) gover-

106 Bordwell divide a poética do cinema em três vertentes: temática, construção narrativa em larga escala e prática estilística. A primeira lida com questões pertinentes à narração (texto, subtexto, personagens, temas, diálogos, etc.). A segunda olha a obra como uma construção mais ampla (estrutura narrativa, trama, cenas, seqüências, elipses, etc.). A terceira corresponde à textura visual e sonora propriamente dita (composições pictóricas, montagem, música, iluminação, cenários, figurinos, locações externas, etc.).

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na os movimentos e olhares dos atores, e todos os planos, embora possam variar em ângulo, são registrados apenas de um lado do eixo. Os movi- mentos dos atores são sincronizados através de cortes, e os planos mais próximos são reservados para as reações faciais e linhas de diálogo sig- nificativas. Montagem alternada pode justapor vários feixes de ação (...). Diretores norte-americanos usaram essa síntese de técnicas de encena- ção, filmagem e montagem nos anos que se seguiram a 1917, e suas pre- missas se tornaram a base de uma linguagem fílmica internacional para o cinema de entretenimento, passando a ser codificada em manuais e currí- culos universitários nos anos 1950. (BORDWELL, 2006: 119-120)

Bordwell assegura que mais ou menos a partir dos anos 1960 a estabi- lidade desse sistema clássico começou a ser abalada pela introdução de novas técnicas estilísticas e narrativas. Ao contrário de outros historiadores do audiovi- sual, contudo, Bordwell não concorda que o cinema dos anos 1960 promoveu uma ruptura com o cinema clássico. Para ele, as novas técnicas não rompiam com as práticas estilísticas e narrativas anteriores, fazendo na verdade uma operação de natureza bem diferente:

De maneira geral, as novas ferramentas (...) não desafiam o sistema; elas o revisam. Longe de rejeitar a continuidade tradicional em nome da fra- gmentação e da incoerência, o novo estilo aponta para uma intensifica- ção das técnicas estabelecidas. A continuidade intensificada é a continui- dade clássica elevada a um nível maior de ênfase. (BORDWELL, 2006:120)

Em sua pesquisa, Bordwell mapeou alguns dos recursos narrativos e estilísticos usados pelos cineastas para intensificar a continuidade clássica, ao longo das cinco décadas seguintes (ou seja, dos anos 1960 até hoje). Na vertente temática da poética do cinema (a primeira das três verten- tes), alguns desses recursos seriam:

 representações realistas do sexo e da violência;  protagonistas mais falhos, solitários, inseguros ou moralmente ambíguos, resultando em personagens mais complexos e psicologicamente mais de- senvolvidos;  tendência ao alusionismo (citações a filmes anteriores, de forma crítica ou reverente);  atenção ao realismo nos detalhes e na acuidade histórica das representa- ções visuais e sonoras.

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Na construção narrativa em larga escala (a segunda vertente da poética do cinema), algumas características da continuidade intensificada seriam:

 a divisão menos clara da narrativa em três atos, com relações causais ambíguas entre os eventos que compõem a trama;  introdução de subtramas ou tramas paralelas em maior número;  uso de mais de um protagonista;  fragmentação cronológica e espacial das tramas, com cenas mais curtas e não-lineares.

No que se refere à prática estilística (a terceira vertente da poética do cinema), são quatro as características apontadas por Bordwell:

 montagem visual rápida;  variação no uso de lentes dentro da mesma cena;  câmera mais próxima dos atores;  movimentos de câmera incessantes, com uso proeminente de técnicas como câmera na mão, traveling e grua.

Juntas, essas ferramentas estilísticas e narrativas teriam propósitos que Bordwell resume mais ou menos da seguinte maneira:

Alguns cineastas têm procurado refinar a tradição, explorando seus prin- cípios mais minuciosamente. Esses criadores se perguntam: (...) como posso fazer as conexões causais mais prazerosas, as reviravoltas mais inesperadas, a psicologia dos personagens mais envolvente, a excitação mais intensa, os temas mais firmemente explorados? Como posso exibir meu virtuosismo? Quando os cineastas se revelam bem-sucedidos, reve- lam o alcance e a flexibilidade das premissas clássicas. (BORDWELL, 2006:51)

Carreiro aponta que é notável que, em sua pesquisa, Bordwell rejeite explicitamente a idéia de que o cinema irreverente e auto-reflexivo, praticado pelos jovens movimentos cinematográficos que emergiram naquela década na Europa – em particular a Nouvelle Vague francesa –, propunha uma ruptura com a lingua-

86 gem cinematográfica tradicional. No entanto, ele afirma que a conclusão seguinte de Bordwell junta-se ao senso comum.

Bordwell concorda com os historiadores sobre quem foram os diretores que revisaram, criaram ou adaptaram as principais ferramentas estilísti- cas e narrativas que constituíam essa nova estética da intensificação. En- tre esses nomes estão Jean-Luc Godard, François Truffaut, Alain Resnais, Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman e . São os mesmos que se convencionou chamar de diretores modernistas europeus (AUMONT, 2008; LAURENT; JULIER, 2009; MANEVY in MASCA- RELLO, 2006).

A teoria de Bordwell abre espaço nesse grupo de renovadores da tradi- ção cinematográfica para autores da geração anterior, como (inspirador reconhecido da maioria dos cineastas da Nouvelle Vague), Orson Wel- les, Robert Bresson, Akira Kurosawa e Alfred Hitchcock. De modo geral, Bordwell aponta para o mesmo grupo de realizadores já consagrados pelos pesquisadores da outras correntes teóricas. Ou seja, o ponto de maior originalidade (e também de discórdia) de sua teoria é mesmo a negação da idéia de ruptura, em prol da noção da intensificação. Carreiro enfatiza que embora essa abordagem pareça promissora, ela mantém um preconceito que pode ser encontrado em praticamente todas as cor- rentes teóricas dos estudos cinematográficos: o preconceito em relação ao cinema de gênero. Entre os renovadores nomeados por Bordwell, bem como pela maioria dos pesquisadores de todas as correntes teóricas, estão quase sempre vinculados ao conceito do cinema de autor (muito popular nos anos 1950 e 60), sempre colo- cados hierarquicamente num patamar superior aos cineastas que trabalham com cinema de origem popular. O raciocínio implícito na pesquisa de Bordwell, essencialmente o mes- mo que podemos encontrar nas diversas correntes da teoria cinematográfica, está ancorado no princípio fundamental do autorismo originado nos anos 1960, e que por sua vez é devedor da noção romântica de autor, prevalente na teoria literária (e nas artes ocidentais de modo geral) desde meados do século XIX: a idéia de que o grau de autoria presente em cada artista está diretamente ligado à liberdade

87 com que ele é capaz de criar. O autorismo resgata a idéia de que “os artistas de- veriam ser livres para escrever do modo que o espírito lhes ditasse” (BUSCOMBE in Ramos, 2004, p. 304). Após apresentar como exemplo a análise de uma cena do filme Il Buo- nno, Il brutto, Il cattivo (Três Homens em Conflito – 1966), Carreiro enumera algu- mas das principais características narrativas e estilísticas do trabalho de Sergio Leone que formam parte de suas contribuições: • alusões a filmes anteriores e/ou momentos característicos do gênero; • releitura crítica do gênero (através de técnicas como pastiche, ironia e nostalgia); • perfil de herói lacônico, amoral e individualista; • tratamento modular do tempo, ora dilatando-o ora acelerando-o, e fragmentação do espaço em close-ups; • preferência por composições pictóricas radicais (close-ups extremos, composições recessivas usando molduras e profundidade de campo); • desenho de produção e direção de arte realistas; • cuidado com a acuidade histórica dos objetos cênicos; • representação gráfica da violência; • música com influência simultânea do concretismo modernista e do neo-romantismo clássico europeu do século XIX; • desenho de som hiper-real, com ênfase para os ruídos diegéticos em volume amplificado; • cuidado meticuloso com a sincronia entre som e imagem.

Carreiro ressalta que todas essas ferramentas fazem parte da conti- nuidade intensificada de Bordwell, e foram estudadas pelas gerações subse- qüentes de cineastas. Christopher Frayling (2005:190-192) afirma que professores de montagem de cursos de graduação em Cinema em instituições de ensino nor- te-americanas como, por exemplo, a University of Southern California, faziam seus alunos estudarem meticulosamente os filmes de Leone na Moviola, no final da dé-

88 cada de 1960, analisando algumas cenas plano a plano. O objetivo era levar os alunos a desenvolverem essas técnicas em direção a uma experiência fílmica mais intensa. John Millius, George Lucas, Steven Spielberg, Francis Ford Coppo- la, John Carpenter e Martins Scorcese estavam entre esses alunos. Através deles (e de outros diretores norte-americanos) o tratamento intensificado dos princípios da continuidade clássica, através das novas técnicas assimiladas da produção européia nos anos 1970, se popularizou em nível global. Enfim, na perspectiva de Carreiro, diversas correntes da teoria do ci- nema olham para os anos 1960 como um período de experimentalismo e inova- ção, do ponto de vista das práticas narrativas e estilísticas. O cinema europeu do período é corretamente apontado como produto de um momento histórico singular, que expandiu os limites do que se podia fazer com a estética do filme. Mas os di- retores apontados como artífices dessa revolução na gramática do cinema são sempre os mesmos. Esse grupo de renovadores não inclui os nomes de cineastas vinculados a gêneros cinematográficos. A própria pesquisa de David Bordwell reflete esse problema. Ao longo do livro The Way Hollywood Tells It: Story and Style in Modern Movies (2006), em que desenvolve o conceito de continuidade intensificada, o pesquisador norte- americano cita Sergio Leone cinco vezes (três delas para relacioná-lo ao uso de close-ups extremos ou de lentes grande-angulares). Ele relativiza o papel que os filmes de Leone exerceram no processo de revisão e exacerbação de muitas das características de narrativa e estilo que integram o repertório da continuidade in- tensificada. Do ponto de vista da história do cinema, a situação é parecida. Apenas para ficar em dois exemplos: o nome de Sergio Leone não é citado uma vez se- quer na História do Cinema Mundial, organizada por Fernando Mascarello (2006). O longo e ambicioso Film History: An Introduction (2009), de David Bordwell e Kristin Thompson, dedica quatro parágrafos ao diretor, concentrando-se em três contribuições de Leone ao repertório de técnicas cinematográficas: close-ups, rea- lismo grotesco e música romântico-satírica. Curiosamente, eles evitam fazer cone-

89 xões entre o trabalho do diretor italiano e o cinema produzido nos círculos moder- nistas europeus. O trecho é encerrado com uma frase curta, mas muito importan- te:

Embora Leone tenha trabalhado num gênero popular, sua reinterpreta- ção extravagante e altamente pessoal das convenções desse gênero se tornou tão significativa quanto os esforços dos diretores de cinema de ar- te que revisaram e desafiaram a tradição neo-realista. (BORDWELL; THOMPSON, 2009).

Carreiro conclui:

É uma passagem paradoxal. Quer dizer que a prática estilística e narrati- va de Leone foi tão importante quanto a de Truffaut e Godard? Nesse ca- so, porque esses dois diretores franceses ganham, na organização gráfica do livro, um Box destacado sobre as respectivas carreiras, com duas pá- ginas cada, enquanto Leone, cuja importância foi idêntica, fica restrito a uma menção rápida e circunstancial? A própria frase de Bordwell e Thompson traz duas expressões que esclarecem o paradoxo: 1) Leone trabalhou num gênero popular (a palavra “embora” explicita o precon- ceito dos autores); e 2) os grandes diretores modernistas merecem mais respeito porque faziam cinema “de arte”.

Em síntese, a questão que Carreiro aborda está relacionada ao cons- tante apagamento a que os filmes de Sergio Leone foram submetidos, no âmbito dos estudos cinematográficos. Parece claro que o diretor italiano efetivamente te- ve um papel, ao longo dos anos 1960 e 1970, no processo de continuidade inten- sificada identificado por Bordwell; e também parece evidente que esse papel con- tinua a ser minimizado por estudiosos de praticamente todas as linhas de pesqui- sa cinematográfica, graças ao preconceito para com diretores que trabalharam com gêneros fílmicos rigidamente codificados.

90

2.16 - APLICAÇÃO

Todos os tópicos apresentados nesta parte estão direta ou indiretamen- te implicados no delineamento de um método de “coleta de dados” para análise da música de cinema. A utilização e atualização de seu conteúdo na observação de inserções musicais nos filmes analisados, revelou-se como uma ferramenta efetiva nos filmes estudados.

2.16.1 - Decupagem O termo decupagem é utilizado rotineiramente na área de cinema, mas, ainda hoje, provoca confusões. A palavra provém do francês découpage, derivada do verbo découper, que significa, originalmente, planificação, fragmentação, divi- são, o ato de recortar (ou cortar). Segundo o "Dicionário teórico e crítico de cinema" de Jacques Aumont e Michel Marie, o termo decupagem começou a ser usado em cinema na década de 1910, com a padronização da realização dos filmes, e designava a princípio um instrumento de trabalho, o "roteiro decupado" ou "roteiro técnico", último estágio de planificação (planejamento) do filme, em que todas as indicações técnicas (po- sição e movimento de câmara, lente a ser utilizada, iluminação, personagens e partes do cenário que estão em quadro, etc.) eram colocadas no papel para orga- nizar e facilitar o trabalho de toda a equipe. Em inglês, o roteiro decupado é cha- mado de shooting script; em espanhol, de guión técnico. A partir dos anos 1940, a palavra decupagem migra do campo da realização (filme a ser produzido) para o da crítica (filme acabado), passando a designar a estrutura do filme como um con- junto ordenado de planos. É nesse sentido que André Bazin cria a noção de decupagem clássica, apresentando-a em uma série de artigos para a revista Cahiers du Cinéma (1951), mais tarde reunidos em sua obra "Qu'est-ce que le cinéma?" (1958). No final da década de 1960, o escopo da definição de decupagem é re- visado pelo neoformalismo como, por exemplo, por Noël Burch em seu livro "Prá-

91 xis do cinema" (1969). Considerando o filme como uma série de fatias de espaço (o enquadramento de cada plano, fixo ou em movimento) e de fatias de tempo (a duração de cada plano), Burch aponta o significado cumulativo para decupagem: (a) a planificação por escrito de cada cena do filme, com indicações técnicas detalhadas; (b) o conjunto de escolhas feitas pelo realizador quando da filmagem, envol- vendo planos e possíveis cortes; (c) a feitura mais íntima da obra acabada, resultante da convergência de uma decupagem no espaço e de uma decupagem no tempo.

Nessa perspectiva, a decupagem de um filme, ou de cada parte de um filme (cenas, seqüências, planos, música, sonoridades, entre outras), é um pro- cesso que se iniciou na planificação (pré-produção), se concretizou na filmagem (produção) e assumiu sua forma definitiva na montagem (pós-produção). Segundo Noël Burch, nos anos 1950-1960, a noção de decupagem, com estes três sentidos sobrepostos, só existia em francês. O cineasta norte- americano, por exemplo, era obrigado a pensar em demarcação107 (set-up) e mon- tagem (cutting), como dois processos separados. "Se nunca lhe vem ao espírito que essas duas operações participam de um único e mesmo conceito, é talvez porque lhe falte uma palavra para o designar. E, se os progressos formais mais importantes dos últimos quinze anos foram executados na França, é talvez um pouco por uma questão de vocabulário" (BURCH, 1973:11).

É, portanto, com redobrada razão que o terceiro sentido da palavra “planificação”, que deriva do segundo, corresponde a uma noção que só existe no francês. Aqui, já não se trata de tal ou tal estágio da escrita pré-

107 Uma demarcação é o que separa, claramente, duas coisas. Christian Metz utilizou esse termo para designar as separações que se podem observar em um filme entre as seqüências ou entre os segmentos autônomos. Os limites entre segmentos podem ser demarcados (ou marcados) de diferentes maneiras. Na época do cinema mudo, recorreu-se com freqüência a um letreiro (legenda). Utilizavam-se, no mais das vezes, na época clássi- ca, trucagens ópticas que funcionavam como sinais de pontuação: escurecimentos, fusões, fechamentos da íris etc. A demarcação podia também ser implícita: era uma mudança no desenrolar narrativo que fazia o especta- dor compreender que se estava passando para outro momento da história. Enfim, uma modificação importante na forma da narrativa (intervenção da música, de uma montagem alternada, de uma montagem rápida) podia, igualmente, ter o mesmo papel demarcativo. No cinema posterior à década de 1960, a decupagem mais com- plexa e bem mais descontínua torna a noção de demarcação menos operante (AUMONT, J. e MARIE, M. Verbete: Demarcação. “Dicionário Teórico e Crítico de Cinema”. São Paulo: Papirus Editora, 2001, p.74).

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via de um filme, de tal ou tal operação técnica: trata-se exatamente da fa- tura mais íntima da obra acabada. (BURCH, 1973:11)

No presente texto o termo decupagem refere-se ao recorte do filme acabado em fragmentos onde cada inserção musical é privilegiada em sua micro- estrutura, ou seja, espaço-tempo da narrativa onde inicia e termina uma parte do filme com a presença musical. É óbvio que do ponto de vista narrativo, forçosa- mente, os fragmentos possuem também outras subdivisões possíveis em relação à cena, aos planos e a previsão de como estes planos vão se ligar uns aos outros através dos cortes. Nessa perspectiva, a decupagem dos filmes utilizados tem dois componentes denominados de Fragmento n ou Parte n (n é um número ará- bico exclusivo). A diferença entre os dois é que o primeiro, Fragmento n, é um tre- cho mais completo do ponto de vista narrativo e, portanto, pode conter várias in- serções musicais. Em conseqüência, Parte n é um trecho do Fragmento n que contém somente uma ou nenhuma inserção musical. A tabela abaixo reúne todos os tópicos apresentados e, na sua utiliza- ção como uma planilha de dados, foi possível observar, ampliar e testar conceitos.

FRAGMENTO Nº “Still” INÍCIO FIM DURAÇÃO

IDENTIFICAÇÃO MÚSICA NOME NO CD DERIVAÇÃO

CÓLON FUNCIONALIDADE/VALORES UNIÃO FUNDAMENTAL ESTRUTURAIS

SABANEEV (Música Aplicada) EISLER/ADORNO (Música Absoluta)

KURT LONDON

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EISENSTEIN PARALELISMO CONTRAPONTO

COPLAND - PRENDERGAST 1 2 3 4 5

MANVELL & HUNTLEY 1 2 3 4 5 6

SOFIA LISSA 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18

TAGG

GORBMAN DIEGÉTICA NÃODIEGÉTICA METADIEGÉTICA

1 2 3 4 5 6 7

KALINAK (PLANOS) DIÁLOGOS SONS MÚSICA

1º 2º 3º 1º 2º 3º 1º 2º 3º

SERGIO MICELI ACOMPANHAMENTO COMENTÁRIO

SINCRONIAS PREDOMINANTES SINCRONIAS PREDOMINANTES IMPLÍCITAS EXPLÍCITAS IMPLÍCITAS EXPLÍCITAS

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NÍVEIS DE INTERFERÊNCIA NÍVEIS DE INTERFERÊNCIA INTERNO EXTERNO MEDIADO INTERNO EXTERNO MEDIADO

BORDWELL (DIEGESIS) EXTERNA INTERNA

OBJETIVO SUBJETIVO OBJETIVO SUBJETIVO

WINGSTEDT (APREENSÃO CONSCIENTE DO ESPECTADOR) ALTA MÉDIA BAIXA

PRENDERGAST (TENDÊNCIA FORMAL) MONOTEMÁTICA LEITMOTIV DEVELOPMENTAL

MICHEL CHION – Contrato Audiovisual (VALOR AGREGADO PELA MÚSICA) EMPATIA ANEMPATIA INDIFERENÇA

MÉTODOS DE OBSERVAÇÃO MASCARAMENTO CASAMENTO FORÇADO

KARLIN, F. E WRIGHT, R. – ON THE TRACK 1 2 3 4 5 6 7

95

8 9 BROWN (ECLETISMO)

COOK (METÁFORA)

SINERGIA (VALORES CINERGÉTICOS)

GÊNERO FÍLMICO

GÊNERO MUSICAL

TOMADAS/MONTAGEM (CONTINUIDADE) – PREDOMINÂNCIA DA CENA CLÁSSICA CONTINUIDADE INTENSIFICADA

Mesmo que muitas observações sejam redundantes e subjetivas na abordagem do analista e dos próprios autores relacionados, as redundâncias aca- bam por confirmar alguns conceitos sugeridos pela aplicação musical.

Como exemplo, segue a tabela da inserção nº 1 do filme PER UN PUGNO

DI DOLLARI, 1964, dirigido por Sergio Leone.

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FRAGMENTO Nº 01

INÍCIO FIM DURAÇÃO 00:00:00 00:02:52 02:52 IDENTIFICAÇÃO MÚM SICA NOME NO CD DERIVAÇÃO Arranjo Créditos Iniciais Tema 1 Titoli (Pastures of Plenty) CÓLON UNIÃO FUNDAMENTAL FUNCIONALIDADE/VALORES ESTRUTURAIS Sonoridades Evocativas do Western Motivo/Ritmo/Frases/instrumentos SABANEEV X EISLER/ADORNO Modal/Tonal com mistura popular-erudito; Utilização mesclada de instrumentos e sonoridades autóctones (evocativas) do western; KURT LONDON Sublinha sincronicamente a animação EISENSTEIN PARALELISMO CONTRAPONTO Sim – rítmico

(Andamento / Cortes e Movimento) COPLAND - PRENDERGGAST 1 2 3 4 5 Sim (western) Sim (morte e violência) Não Sim Sim MANVELL & HUNTLEY 1 2 3 4 5 6 Sim Não Não Não Não Sim SOFIA LISSA 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 X X ! ! ! X X X X X TAGG 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 X X X X X X X GORBMAN

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DIEGÉTICA NÃODIEGÉTICA METADIEGÉTICA X Observação: Apesar de não-diegética, as sonoridades do galope de cavalo e de tiros misturados as sonoridades percussivas da música, podem sugerir qualidades diegéticas. 1 2 3 4 5 6 7 X X X X X X KALINAK (PLANOS) DIÁLOGOS SONS MÚSICA Não Sim Sim 1º 2º 3º 1º 2º 3º 1º 2º 3º X X SERGIO MICELI ACOMPANHAMENTO COMENTÁRIO X SINCRONIAS PREDOMINANTES SINCRONIAS PREDOMINANTES IMPLÍCITAS EXPLÍCITAS IMPLÍCITAS EXPLÍCITAS X NÍVEIS DE INTERFERÊNCIA NÍVEIS DE INTERFERÊNCIA INTERNO EXTERNO MEDIADO INTERNO EXTERNO MEDIADO X BORDWELL (DIEGESIS) EXTERNA INTERNA X OBJETIVO SUBJETIVO OBJETIVO SUBJETIVO X WINGSTEDT (APREENSÃO CONSCIENTE DO ESPECTADOR) ALTA MÉDIA BAIXA X PRENDERGAST (TENDÊNCIA FORMAL) MONOTEMÁTICA LEITMOTIV DEVELOPMENTAL X (tema 1) MICHEL CHION (VALOR AGREGADO) EMPATIA ANEMPATIA INDIFERENÇA X BROWN (ECLETISMO)

COOK (METÁFORA) Ritmo do Cavalo SINERGIA (VALORES CINERGÉTICOS) Esquema de utilização das cores – tricolor: branco, preto e vermelho. Sons de galope e trote de cavalo(s) sincronizados com as imagens animadas; A música absorve os sons internamente; GÊNERO FÍLMICO

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Western GÊNERO MUSICAL Pop? TOMADAS/MONTAGEM (CONTINUIDADE) – PREDOMINÂNCIA DA CENA CLÁSSICA CONTINUIDADE INTENSIFICADA Cortes sincrônicos com efeitos (piscando) na troca de cores X (Animação) Citação: Muybridge Citação HQ Tex Riley

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3. ENNIO MORRICONE: TRADIÇÃO E SINGULARIDADE NA MÚSICA DE CINEMA

Iniciarei com algumas informações autobiográficas que, acredito, são necessárias para introduzir melhor as coisas que pretendo falar. Eu tive um treinamento duplo: no Conservatório, onde estudei performance e composição em cursos regulares, e fo- ra do Conservatório, em salão de bailes, vários tipos de teatros e tipos de público, onde fiz música ao vivo. Nesse segundo, meu modelo e meu guia foi meu pai. Foi ele quem abriu o caminho para mim, pois essa era exatamente sua profissão. A esse res- peito, venho de uma família musical. Também devo acrescentar que graças a tudo is- so é que provavelmente eu seja um dos poucos compositores italianos que aprendeu composição musical dessas composições musicais ao vivo. (Ennio Morricone108)

Na literatura sobre música de cinema, várias discussões importantes se estabelecem ligadas à biografia de seus interlocutores e dos profissionais ligados à composição de trilhas musicais para filmes. Muito já foi escrito a respeito dos pro- blemas que a abordagem biográfica pode promover109, como muito já foi feito no sen- tido de (des-)qualificar o empreendimento biográfico e, ao mesmo tempo, indireta- mente, promover o papel dos indivíduos numa “verdadeira” história110. O problema parece remeter a uma espécie de paradoxo: o que opõe o singular (particular) ao tradicional (geral) 111, “tema de fundo” deste trabalho, lembra- dos por Jacques Le Goff112, quando afirma que o particular é um dos “inevitáveis obje- tos da história” e que se trata, portanto, de pensar nos usos possíveis do biográfico na elaboração de trabalhos mais abrangentes sejam eles, romances, monografias, teses, enfim, trabalhos mais críticos, acadêmicos ou não. A biografia ou a história de vida, retrata a experiência vivida do indivíduo e, a partir dela, procura-se obter dados

108 E. MORRICONE, Un compositore dietro la macchina da presa, in Enciclopedia della musica (a cura di J. J. Nattiez), vol. 1 (Il Novecento), Torino: Einaudi, 2001. 109 BOURDIEU, P. A ilusão biográfica, 1986. In: FERREIRA, M. M. & AMADO, J. (Orgs.) Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2001, p.181-191. 110 SCHMIDT, B. B. A biografia histórica: o ‘retorno’ do gênero e a noção de ‘contexto’. In: GUAZZELLI, C. A. B. et al. (Orgs.). Questões de teoria e metodologia da história. Porto Alegre, UFRGS, 2000, p. 121-129. 111 LEVI, G. Usos da biografia, 1989. In: FERREIRA, M. M. & AMADO, J. (Orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 2001 [1996], p.167-182. 112 LE GOFF, J. Como escrever uma biografia histórica hoje? Tradução de Henrique Espada Lima Filho do original : Comment écrire une biographie historique aujourd’hui?. Le Débat, n.54, mars-avril, 1989, p.48-53.

relevantes para a pesquisa. O investigador reconstitui a vida do indivíduo pesquisado para evidenciar os aspectos em que está interessado. Ennio Morricone tornou-se referência como um dos mais prolíficos compo- sitores desde o século passado com uma vasta obra que mescla praticamente todos os gêneros e estilos de música. Nessa trajetória também atuou, passiva ou ativamen- te, na produção de discursos sobre si mesmo e, simultaneamente, foi objeto do dis- curso de muitos outros. Os discursos apontam, por um lado, um Morricone caracterizado como ta- lentoso desde a infância, estudante insaciável, e que dominou as principais teorias harmônicas, contrapontísticas e orquestrais aprendidas no Conservatório Santa Ce- cília, onde “completou o curso de quatro anos de harmonia em apenas seis meses”, diplomando-se no curso de instrumento (trompete), orquestração de bandas e com- posição “erudita” com ênfase no contraponto e fuga, óperas e sinfonias. Esses dicur- sos se contrapõem, por outro lado, ao Morricone que devido a sua condição social e tendo que sustentar sua família, migrou, contra a própria vontade, para a “música ligeira” ou “aplicada” em detrimento da composição da “musica absoluta” ou da “mu- sica de concerto”, sua verdadeira vocação. Foi no confronto dessa ambigüidade que todo seu trabalho no cinema se constituiu, mas foi também a partir dela que seus biógrafos e críticos dialogaram. Apresentar os elementos biográficos que sustentam e caracterizam essa ambigüida- de parece fundamental à compreensão das linhas que sustentam as narrativas sobre Morricone e seu trabalho.

Toda essa introdução biográfica não é gratuita. Não teria razão de contar minha história de vida aqui. A verdade sobre isso é: eu necessito dela de forma a explicar o que é música de cinema quando tudo é dito e feito. Bre- vemente, diria que é uma arte muito peculiar, diferente de outras. Exige cria- tividade, mas não o tipo de criatividade que se possa aprender em escolas, como no Conservatório, por mais sólido e abrangente que o conhecimento oferecido possa ser. A criatividade da música cinematográfica tem que ser, paradoxalmente, destituída de uma orientação estilística desambigua e pes- soal. Um músico que queira fazer boa música de filme não deve se especiali- zar somente em música clássica ou sinfônica, velha ou nova, não deve ser somente um músico pop, um entusiasta do jazz ou do rock. Ele deve se espe-

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cializar em tudo e também ser capaz de fundir conjuntamente todos esses gê- neros diferentes113.

Nessa mescla de possibilidades e contaminações está embutida a idéia de alguém que construiu seu próprio pensamento, alguém que pelo exercício da vonta- de e da necessidade conduziu seu aprendizado, ajudando a sustentar uma narrativa, muitas vezes, com tom heróico, quando se afirma que teria superado grandes vicissi- tudes ao longo de sua carreira até conquistar o reconhecimento que lhe era devido. Ao longo do tempo, essa convicção deu lugar à imagem de polivalente, um composi- tor formado tanto pela prática quanto pelo estudo formal e pela pesquisa, ou seja, habilitado pela reflexão teórica e pela experiência prática no trato e organização das sonoridades e de suas fontes, culminando com a caracterização de um Morricone quase como símbolo do compositor “pós-moderno”. Toda essa ambigüidade prevalece em muitos dos discursos empenhados em reforçar os laços que o unem a Roma – Itália, sua terra natal – refletida na ênfase melódica de suas composições quando comparadas às contemporâneas de Hol- lywood. Diferente de muitos músicos, Morricone não aceitou trocar a Itália, particu- larmente Roma, por Hollywood. É notável o investimento na demarcação das origens romanas de Morricone, relacionadas também às da Itália, na afirmação de que a vida em Hollywood talvez tivesse favorecido sua projeção, mas, poderia ter, também, in- fluenciado negativamente seu pensamento e sua conduta profissional de modo di- verso. A persistência entre fatores opostos, da vontade inicial ao destino manifes- to, integrou tanto sua postura técnico-composicional quanto ético-filosófica. Toda es- sa conjunção de fatores serviu de base à construção da imagem do homem e do pro- fissional da música Morricone conjuntamente com seu pensamento, consolidando uma espécie de consenso, aparentemente imune a críticas ou dúvidas. Considerando esses elementos, esta parte do trabalho apresenta alguns capítulos do processo que acabaram por transformar Ennio Morricone numa das per-

113 E. MORRICONE, Un compositore dietro la macchina da presa, in Enciclopedia della musica (a cura di J. J. Nattiez), vol. 1 (Il Novecento), Torino: Einaudi, 2001.

102 sonagens atuais mais atuantes na história da música de cinema. A trajetória biográfi- ca delineada fornece evidências de como Morricone foi iniciado e de alguns desdo- bramentos posteriores na sua carreira. Na apresentação das informações biográfi- cas, percorre-se alguns fatos que pontuaram sua vida até seu ingresso no cinema, no início da década de 1960, e de seu reencontro com Sergio Leone, em 1963, mo- mento determinante dos seus “condicionamentos e da sua criatividade” ao ingressar no ofício de músico de cinema que, hipoteticamente, constituiram suas idéias no de- senvolvimento de sua música aplicada e de sua estética pessoal, a sua “dupla estéti- ca114”, que refletem diretamente alguns “aspectos e problemas de uma atividade composicional do nosso tempo115”, e que, por fim, acabaram por constituir o âmago de seu pensamento musical no cinema.

114 MORRICONE, E. Tre brevi discorsi sulla musica nel cinema. Morricone, Cinema e Oltre, 2007, p.22 115 MORRICONE, E. Scrivere per Il cinema: aspetti e problemi di um’attività compositiva del nostro tempo. idem, p. 35-42.

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3.1 - CRONOLOGIA DE ENNIO MORRICONE116

Tabela 2 – Cronologia de Ennio Morricone

Ano Evento

1928 Ennio Morricone nasceu em Roma em 10 de novembro. Filho de Mario, trompetista, e Libera Ridolfi. É o primogênito de mais quatro irmãos.

1929 Com o endurecimento do regime de Benito Mussolini, que entre outras coisas proibiu literal- 1 ano mente a execução da música jazzística, a família de Morricone passa por grandes dificulda- des financeiras.

1930 Libera Ridolfi, a mãe de Ennio Morricone, por necessidade, abriu uma modesta loja de teci- 2 anos dos.

1932 A família de Morricone muda para a via Luciano Manara, onde nasceram seus irmãos Adria- 4 anos na, Aldo, Maria e Franca. 1934 6 anos É iniciado pelo pai na linguagem musical.

Morreu seu irmão Aldo Morricone aos 3 anos de idade. 1938 Passou a Freqüentar o Istituto Jean-Baptiste de La Salle, uma escola elementar em Roma, 8 anos conjuntamente com Sergio Leone, com quem só se reencontraria e formaria, 25 anos mais tarde (1964), uma parceria no cinema.

1940 Ingressa no Conservatorio Santa Cecília na classe de trompete de Umberto Semproni (pos- 10 anos teriormente com Reginaldo Caffarelli).

1941 É escolhido entre os estudantes do Conservatório para fazer parte da Orquestra dirigida por 13 anos Carlo Zecchi para uma tournée no Veneto

1943 Começa a substituir seu pai com certa regularidade no grupo dirigido por Constantino Ferri, 15 anos atuando principalmente no Clube Flórida em Roma (Orchestra Jazz Constantino Ferri – gravou pela Fono Roma, desde meados da década de 1930).

116 A cronologia é baseada nas Note Biographiche in: MICELI, S. Morricone, La Musica, Il Cinema. Milão: Mu- cchi Editore s.r.l., 1994, p. 15-22. Segundo Miceli as informações foram obtidas em um grande número de con- versas com o próprio Ennio Morricone (Asm, inéditos). Afirma que procurou confirmar cada informação através de pesquisas em arquivos, verificações pessoais ou em publicações de vários tipos.

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O professor de harmonia complementar, Roberto Caggiano, o promove ao curso de harmo- nia principal (completado em seis meses). Este professor é o primeiro a sugerir-lhe o curso de composição.

Ingressa como aluno no curso de “composição elementar”. Onde estuda com Carlo G. Garo- 1944 fano e Antonio Ferdinandi. 16 anos Passa a ser o segundo trompete, junto com seu pai, na orquestra de Alberto Flamini, tocan- do para as tropas aliadas americanas e canadenses nos hotéis Mediterrâneo e Massimo d’Azeglio em Roma.

1946 Em 11 de outubro recebe seu diploma de trompete (votazione 7/10). Compõe “Il Matino” 18 anos para canto e piano sobre um texto de Fukuko. Obtém o primeiro emprego como instrumentista e arranjador para o teatro de variedades.

1947 Compõe “Imitazione” para vozes e piano sobre um texto de Giacopo Leopardi e “Intimitá” 19 anos para vozes e piano sobre um texto de Olimpo Dini. Engaja-se pela primeira vez como compositor de música para teatro.

Conhece Maria Travia, sua futura mulher. 1950 Assiste às aulas do terceiro ano do curso de música e regência coral. 22 anos Na ocasião da semana santa arranja um grupo de canções de devoção populares para o rádio.

1952 Diploma-se em Instrumentação. 24 anos Compõe “Barcarola Fúnebre” para piano e o “Prelúdio a uma Novella senza titolo”.

Compõe “Distacco I” e “Distacco II” para vozes e piano sobre um texto de Ranieri Ginoli; “Verrà la morte” para contralto e piano sobre um texto de Cesare Pavese; e “Oboe 1953 Sommerso” para barítono e cinco instrumentos sobre um texto de Salvatore Quasimodo. 25 anos Realiza o primeiro arranjo para uma longa série de transmissões radiofônicas. Completa a “Sonata” para flautas, tímpanos e piano, o primeiro trabalho a ser inserido no seu catálogo de trabalhos (opus).

1954 Diploma-se em composição (votazione 9.5/10) tendo como professor Goffredo Petrassi que 26 anos se tornou grande amigo e fonte de inspiração

1955 Inicia seu trabalho como arranjador e compositor de músicas para filmes, creditadas a outros 27 anos compositores. Presta o serviço militar onde tem a oportunidade de transcrever, arranjar e orquestrar músi-

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cas para bandas militares de vários autores. 1956 28 anos Em 13 de outrubro, casa-se com Maria Travia.

1957 Nasce Marco, seu primeiro filho de quatro: Marco, Alessandra, Andrea e Giovanni. 29 anos Inicia a compor trabalhos para o teatro televisivo.

Passando por sérias dificuldades financeiras, consegue um emprego na RAI como assisten- 1958 te musical, mas se licencia no primeiro dia de trabalho. 30 anos Viaja a Darmstadt onde assisti as aulas de John Cage e a primeira performance de “Cori di Didone” de Luigi Nono.

1960 No Teatro “La Fenice” de Veneza, o seu “Concerto per orchestra” é executado pela primeira 32 anos vez. Inicia seu trabalho como arranjador para shows televisivos de variedade.

Nasce Alessandra, sua segunda filha. Compõe sua primeira trilha musical para o filme “Il Federale” de Luciano Salce. 1961 Segue trabalhando como arranjador e orquestrador da RCA num ritmo surpreendente. 33 anos Nesta época trabalha para intérpretes como Mario Lanza, Paul Anka, Gianni Morandi, Gino Paoli, entre outros. Até 1967 o número de arranjos feitos por Morricone passa de quinhen- tos.

1964 Nasce Andrea, seu terceiro filho. 36 anos Inicia sua colaboração com Sergio Leone e Bernardo Bertolucci.

1965 Recebe o “Nastro D’Argento” pela música do filme Per um Pugno di Dollari de Sergio Leone. 37 anos É convidado por Franco Evangelisti a fazer parte da “Associazone Nuova Consonanza” e nas atividades do “Gruppo Internazionale di Improvvisazione”.

1966 Nasce Giovanni, seu quarto filho. 38 anos Inicia sua colaboração com Pier Paolo Pasolini e com Gillo Pontecorvo.

1967 Inicia sua colaboração com Mauro Bolognini. 39 anos É convidado a fazer parte do júri do XX Festival de Cinema de Cannes.

1968 Reduz sensivelmente sua atividade como arranjador para dedicar-se a música de cinema. 40 anos Inicia sua colaboração com Elio Petri. Assina vinte trilhas sonoras musicais.

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1969 Recebe o prêmio Spoleto Cinema. 41 anos Inicia a colaboração com o diretor Giuliano Montaldo.

1970 Ensina composição na recente Scuola Comunale di Musica “Licinio Refice” em Frosione 42 anos onde tem como alunos: Silvano Aureli, Luigi De Castris, Luigi Di Stefano, Antonio Poce e Ricardo Zenadocchio. Deixa o cargo em 1972. 1971 43 anos Recebe o Nastro d’argento pela música do filme Metti, una será a cena.

1972 Colabora com o Studio R7 pela música eletrônica de Roma. 44 anos Recebe o Cork Film International pela música do filme La califfa.

1974 Morre seu pai Mario Morricone. 46 anos Volta a morar em Roma no Viale Libano no quartiere Eur. 1975 47 anos Morre Pier Paolo Pasolini.

1979 Recebe a primeira de cinco indicações ao Oscar da Academy Award, dessa vez pela música 51 anos do filme Days of Heaven. 1980 52 anos Morre Franco Evangelisti.

1981 Se transfere a sua residência atual, de frente ao Campidoglio. 53 anos Recebe o Premio della critica discografica pelo filme Il prato

1983 Morre Elio Petri. 55 anos É eleito ao conselho de administração do Nuova Consonanza, até 1985.

Lê em Zagarolo uma Prolusione em ocasião dos festejos de oitenta anos do nascimento de 1984 Goffredo Petrassi. 56 anos Conjuntamente com Paola Bernardi, Egisto Macchi e Carlo Marinelli funda em Roma o IRTEM – Instituto di Ricerca per Il Teatro Musicale.

1985 Recebe o Nastro d’argento e o BAFTA (The British Academy of Film & Television Arts) pela 57 anos música de C’era uma volta in America. 1986 58 anos Recebe a segunda de cinco nomeações ao Oscar da Academy Award, dessa vez pela músi-

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ca do filme The Mission. Recebe o BAFTA e o Golden Globe pela música do mesmo filme.

O Gruppo di Ricerca e Sperimentazione Musicale de Roma programa na sala ex Stenditoio (Complexo monumental de S. Michele) um concerto com música de Egisto Macchi e Ennio 1988 Morricone, em ocasião da comemoração de seus 60 anos. 60 anos Recebe o prêmio David di Donatello pela música do filme Gli occhiali d'oro Recebe os prêmios Nastro d'argento, BAFTA, Grammy Award pela música de Gli intoccabilli. Recebe a terceira de cinco nomeações ao Oscar da Academy Award, dessa vez pela músi- ca do filme Gli intoccabilli.

A Istituzione Universitaria dei Concerti de Roma – 44ª Stagione di Musica da Camera – lhe dedica um concerto na aula magna da Università La Sapienza, transmitido em seguida pela RAI 3. O Conservatoire Royal de Musique de Liege hospeda um concerto sinfônico inteiramente dedicado a Morricone, regido por ele mesmo. 1989 O 25º Festival Pontino di Musica lhe dedica em Sermoneta um concerto monográfico, assis- 61 anos tido por Petrassi (caso não raro). O Gruppo Musica 900 de Fronsine lhe dedica um concerto inteiro de música de câmera. Morre Sergio Leone. Recebe o prêmio David di Donatello pela música do filme Nuovo . Recebe o Nint Annual Ace Winner pela música do filme Il Giorno Prima. Recebe o Pardo d’Oro “Allá carriera” do Festival de Cinema di Locarno. Recebe a cidadania honorária de Arpino, local de origem dos avós paternos.

A Accademia Nazionale di Santa Cecilia (Gestione Autonoma dei Concerti) insere no programa oficial de 1989-90 a Cantata per l’Europa, executada no Auditorium da Via della Conciliazione. A Accademia Italiana di Musica Contemporanea de Roma lhe dedica una serata de música de câmera no Teatro Ghione. 1990 O XXVII Festival di Nuova Conzonanza lhe dedica um concerto de música de câmera na 62 anos Galeria Nazionale d’Arte Moderna de Roma. Dirige a orquestra sinfônica de Bari no auditório Nino Rota, num programa de música para filmes. Recebe o BAFTA, o Prix Fondation Sacem do XLIII Festival de Cinema de Cannes pela música do filme Nuovo Cinema Paradiso. Participa do Convegno Internazionale Musica & Cinema junto a Fondazione Accademia Musicale Chigiana de Siena.

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1991 Pelo projeto de Luciano Alberti, a Accademia Chigiana insere definitivamente em seus cur- 63 anos sos regulares o de Música para filmes, que confia a Ennio Morricone e Sergio Miceli. A 60ª Estate Musicale Chigiana insere no programa um concerto com músicas de Ghirardi, Donatoni e Morricone. Recebe o prêmio David di Donatello pela música do filme Stanno tutti bene. O musicólogo inglês Philip Tagg propõe Morricone para o doutorado honoris causa à Uni- versità di Göteborg.

Em ocasião de um curso de música para filmes organizado pela Internationale Seminaire für Filmgestaltung na Basiléia, em colaboração com Hansjörg Pauli e Sergio Miceli, a Musik Akademie der Stadt Basel lhe dedica um concerto de música de câmera. De uma idéia de Egisto Macchi transcreve a ópera Tosca de Puccini para um pequeno gru- po. É nomeado membro da Commissione Artistica della Istituizione Universitaria dei Concerti de Roma. 1992 Recebe a quarta de cinco nomeações ao Oscar da Academy Award, dessa vez pela música 64 anos do filme Bugsy. Morre Egisto Macchi. A Universidade e o Conservatório de Osnabrück lhe dedicam um concerto de música de câmera da iniciativa do musicólogo Hans-Christian Schmidt. Faz parte do júri da 49º Mostra de Cinema de Veneza. O ministro da cultura francês, Jack Lang, lhe confere o título de Officier de l’Ordre dês Arts et dês Lettres. Recebe em Saint Vincent o prêmio Grolla d’Oro “alla carriera”.

Recebe a cidadania honorária de Fermo (Ap). Recebe os prêmios David di Donnatello e Efebo d’Argento pela música do filme Jonas Che 1993 visse nella balena. 65 anos A 50ª Semana Musical de Siena insere no programa em forma cênica Epitaffi Sparsi. Em Maastricht – Holanda é executada integralmente Una Via Crucis. Recebe o prêmio Colonna Sonora dall’Ente dello Spettacolo.

Lê um breve discurso em ocasião do prêmio Michelangelo a Goffredo Petrassi. 1994 É o primeiro compositor não americano a receber um prêmio à carreira da Society for Pre- 66 anos servation of Film Music. Recebe o Golden Soundtrack da American Society of Composers, Authors & Publisher. Morre sua mãe, Libera, com 88 anos de idade. 1995 67 anos Junto com Michele Campanella, Uto Ughi e Vitorio Antonellini está entre os relatores em um

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convênio sobre problemas políticos e econômicos da música, organizado pela CAMI (Comi- tato Autonomo Musicisti Italiani) no Teatro de Ópera de Roma. Proposto pelo presidente do Consiglio dei Ministri Lamberto Dini, o presidente da república Oscar Luigi Scalfaro é nomeado Commendatore dell'Ordine Al Merito della Repubblica Italiana. Seu filho Andrea recebe o diploma de Direzione d’Orchestra. Philip Tag (Institute of Popular Music, University of Liverpool) propõe Ennio Morricone para o Dottorato Onorario in Musica. Recebe um Leão de Ouro “Alla Carriera” na 52ª Biennale Del Cinema di Venezia. 1996 68 anos É nomeado Accademico di Santa Cecilia.

1997 Recebe o "Premio Flaiano" em Pescara pelas trilhas sonoras músicais de "Bullworth" de 69 anos Warren Beatty e "Lolita" de Adrian Lynne.

1998 Em comemoração aos seus 70 anos, a Accademia di Santa Cecilia oferta um prêmio alla 70 anos carriera, oferecendo-lhe também a direção de um concerto com suas trilhas musicais mais famosas. 1999 71 anos Vence em Berlim L’European Film Award: nessa ocasião é o único artista ovacionado.

2000 Proposto pelo ministro da cultura, o president da república oferta-lhe o diploma e a medalha 72 anos de Prima Classe di Benemerito dell’Arte e della Cultura. A Universidade de Cagliari oferta-lhe um grau honorário.

Recebe o Globo de Ouro da Foreign Press, Itália. 2001 É nomeado membro honorário do “Claustro Universitario de las Artes”, Alcala – Madri. 73 anos Recebe a quinta de cinco nomeações ao Oscar da Academy Award, dessa vez pela música do filme Malèna. 2002 74 anos Recebe um Grau Honorário da Seconda Università di Roma.

2003 Recebe o “Golden Prize” do Ministry for Foreign Affairs como “Embaixador da Cultura Italia- 75 anos na no mundo”.

Lançamento do DVD: Morricone por Morricone, com o concerto realizado em Munique. Mor- 2004 ricone rege alguns de seus grandes sucessos do cinema interpretados pela Orquestra Fi- 76 anos larmônica de Munique.

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2005 77 anos É condecorado como Grand Officer pelo presidente da Itália Carlo Azeglio Ciampi.

No verão, dirige a Orquestra Filarmônica do “Teatro alla Scala di Milano” em um tour pas- 2006 sando pelo teatro “Arena di Verona“ e outros teatros de arena entre os quais o teatro Greco- 78 anos romano de Taomina. É a primeira vez que dirige a Orquestra e o Coro do Scala na execução de suas trilhas sonoras musicais mais célebres. 2007 79 anos Recebe o Oscar “alla carriera”. 2008 80 anos Recebe o prêmio Saturno d'Oro alla carriera al Saturno International Film Festival de Alatri. 2009 81 anos Recebe o Premio America da Fondazione Italia USA.

Recebe o David di Donatello pelo filme Baarìa – La porta del vento, dirigido por . 2010 Recebe o prêmio Corona d'alloro (honoris causa) Europclub Regione Siciliana Provincia di 82 anos Messina. Recebe o prêmio: Polar Music Prize, da Royal Sewdish Academy of the Arts, em Estocolmo – Suécia.

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3.2 - A BASE MUSICAL DE ENNIO MORRICONE: FORMAÇÃO E PRIMEIRAS IN- FLUÊNCIAS

Morricone tem uma origem muito humilde. O pai tocava trompete em orquestras de entretenimento de casas noturnas. A família era sustentada somente com o trabalho do pai. Tanto é verdade que houve um determinado período quando o pai ficou doen- te e Ennio, ainda muito menino, teve de substituir o pai117.

Miceli (1994:25-26) conta que Ennio Morricone nasceu numa Roma fascis- ta em 10 de novembro de 1928. Filho do músico Mario Morricone e de Libera Rindol- fi, morou na via San Francesco, Ripa, no bairro [quartiere] de Trastevere. A família viveu por um longo período exclusivamente da profissão do pai, um “estimado” trom- petista de orquestras de entretenimento. Em 1929, o endurecimento do regime de Benito Mussolini – que entre outras coisas proibiu literalmente a execução da música jazzística118 – trouxe ainda mais dificuldades à vida de Mario Morricone, que já conta- va com muitos problemas financeiros, obrigando-o com a família, em 1932, a mudar- se para a via Luciano Manara, onde nasceram seus irmãos Adriana, Aldo, Maria e Franca. Nessa época, Libera Rindolfi, a mãe de Ennio Morricone, abriu uma modesta loja de tecidos, tentando auxiliar nos gastos da casa.

É então presumível que o pequeno Morricone cresceu em um ambiente muito humilde no qual a modéstia de hábitos de vida e o senso da dignidade con- quistada pelo trabalho andaram entrelaçados numa estreita relação de de- pendência recíproca119.

A família Morricone foi norteada pelo espírito ‘pés-no-chão’, o que teria in- centivado o filho a seguir os passos de seu pai, fosse qual fosse seu talento. Quando perguntado por quais razões escolheu o trompete, Morricone não hesita em respon-

117 Depoimento de Sergio Miceli no documentário Ennio Morricone de 1995 para televisão, BBC de Londres. 118 Benito Mussolini, defensor de princípios fascistas que proibiam, entre muitas outras coisas, a execução ou audição de jazz, foi, por ironia do destino, o pai de um jovem que desenvolveu grande paixão justamente por esse estilo musical. Romano Mussolini, escondido sob o pseudônimo de Ugo Caliso, “uniu o branco e o negro das teclas do piano em fraseados tão livres quanto só o jazz poderia proporcionar”, desejoso de forjar um imenso hino à liberdade, que só findou com sua morte em 2006. (http://mpbjazz.blogspot.com/2007_12_01_archive.html, último acesso em 28/11/2009. 119 MICELI, S. Morricone, la musica, il cinema. Itália: Mucchi Editore s.r.l., 1994, p. 25.

112 der: “Eu não escolhi nada. Foi meu pai que o impôs para mim120”. A tradição patriarcal italiana faz com que a profissão não seja uma escolha livre do indivíduo, mas a ma- nifestação da vontade paterna aliada às condições sócio-econômicas da família. Nesse ambiente familiar, Miceli busca enfatizar que a iniciação musical de Morricone se deu, de fato, não só em virtude de manifestações precoces – “as pri- meiras tentativas compositivas surgem em torno de 1934” -, mas, também como algo considerado normal, um momento de preparação para a fase na qual o filho assumi- ria o papel paterno, tanto na família como no trabalho:

[...] dessa forma, as raízes morriconeanas são menos caracterizadas por ideais estéticos abstratos que por uma sólida conduta de natureza ética, in- duzindo-o a acreditar que a passagem das responsabilidades entre pai e filho era inevitável e que a vocação precocemente manifestada já tinha um destino assinalado. (MICELI, 1994:25)

Jay Cocks121 em entrevista com Morricone para a revista Time, em 1987, confirma que o filho primogênito de Mario Morricone demonstrou a sua possível vo- cação musical desde a infância, influenciado pelo próprio pai: “trompetista, tocava jazz e ópera e trabalhou em orquestras que gravavam trilhas musicais para filmes. Seu filho, Ennio Morricone, começou a compor música aos seis anos de idade”. Morricone comenta ser um pouco exagerada a afirmação que começou a compor com seis anos de idade. Porém, recorda de uma viagem com a família quan- do seu pai lhe ensinou a clave de sol e o fez transcrever “melodias de uma música muito difícil”:

Recordo-me que eram temas de caça que me arrebatavam. Temas de caça da abertura do Franco-Atirador de Carl Maria von Weber ouvidos em um dis- co. Como eu estava muito empolgado com os temas, acabei escrevendo e re- produzindo todos os temas de caça da Abertura. E os temas de caça talvez me reportem, quem sabe, ao western... à felicidade de escrever música para grandes áreas abertas, para o verde. Então, dos temas de caça, talvez te- nham nascido os temas de western. Quem sabe? Talvez... Eu não sei. É só

120 “La musica secondo... Ennio Morricone”, Una vita da maestro. Entrevista a Gianni Minà em 2004. In: http://www.andreaconti.it/ morricon.html#, último acesso em 02 de outubro de 2010. 121 COCKS, J. “The Lyrical Assassin at 5 A.M”. Time, 16/03/1987, p. 83.

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uma hipótese. Porém os temas de caça eu os escrevi, e correspondem um pouco aos temas que escrevi para os westerns italianos de Sergio Leone122.

Em 1936, com aproximadamente oito anos de idade, Ennio Morricone ini- ciou seus estudos no Istituto Jean-Baptiste di La Salle, uma escola elementar em Roma. Em 1938, no terceiro ciclo, a classe teve como aluno Sergio Leone (03/01/1929 – 30/04/1989) com quem Morricone, 25 anos mais tarde (1964), mesmo que não tenham sido grandes companheiros nessa época, formaria uma extensa parceria por mais 25 anos no cinema (1964-1989).

Figura 1 - Morricone e Leone no Istituto Jean-Baptiste de Figura 2 - Zoom da Foto – Destaque de Leone La Salle (1938) e Morricone

Penso que a música de Morricone tornou-see quase um elemento visual nos filmes de Leone. Os dois são tão complemeentares, tão harmoniosos, como podemos ver na fotografia dos doois na mesma sala de aula. Eu gosto de gas- tar alguns segundos olhando a fotografia. É interessante ver Ennio e Sergio usando o uniforme com aqueles colarinhos. Existe algo complementtar em suas formações. Os dois amavam a mesma mitologia123.

Em 1940, com doze anos de idade e a Itália sob intervenção aliada, seus pais o colocaram numa escola de música em Roma. A escola era o Conservatório Santa Cecília124 onde Morricone iniciou seus estudos em instrumento: trompete com

122 Ennio Morricone. In: Ennio Morricone, op. cit. 123 BERTOLUCCI, B. In: Ennio Morricone. Documentário da BBC de Londres, 1995. 124 O Conservatório Santa Cecília é considerado como a escola de música mais antiga e importante de Roma. O nascimento da escola atual foi no ano de 1875, no quadro de uma reorganização operada pelo estado. Porém, a instituição musical da qual deriva (Congregazione de’ musici di Roma, depois Accademia Nazionale di Santa Cecilia) foi fundada em 1585. No curso de sua história o Conservatório teve como professores grandes músicos tanto italianos quanto estrangeiros como, por exemplo, Alfredo Casella, Ildebbrando Pizzetti, Goffredo Petrassi,

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Umberto Semproni e, posteriormente, com Reginaldo Caffarelli, formando-se em 1946. Em 1943, aos 15 anos, Morricone começou a substituir seu pai com certa regularidade no grupo dirigido por Constantino Ferri125, atuando à noite, principalmen- te no Clube Flórida em Roma e, posteriormente no de Alberto Flamini (MICELI: 1994:26). Nesse convívio com profissionais não-acadêmicos, ele conheceu muitos músicos talentosos que haviam apreendido música e a tocar um instrumento sem passar por um treinamento formal. No conservatório, um de seus professores de harmonia, Roberto Caggia- no, entusiasmado com a dedicação de Morricone, sugeriu que também estudasse composição musical. Seguindo os conselhos de Caggiano, em 1944, Morricone inici- ou os estudos em composição com Carlo Garofalo e Antonio Ferdinandi, concluindo- o com Goffredo Petrassi126 em 1954.

A Experiência no Conservatório Santa Cecília mostrou-se bastante dura pa- ra Morricone. Tornou-se quase um elemento de escândalo que um estudante de trompete quisesse estudar composição. Nessa ocasião, ainda como aluno de Petrassi, começou uma vida dupla, no sentido que de dia era um estudan- te muito sério de composição no Conservatório Santa Cecília e, nas horas vagas, ou tocava trompete substituindo o pai, ou começava a fazer arranjos para a nascente indústria discográfica italiana.127

Fiamma Nicolodi comenta sobre o ensino de composição musical na Itália em torno de Petrassi:

Na terceira década do século 20, o Romantismo, moeda já fora de uso, não era uma realidade conflitual vista em primeira pessoa, mas uma entidade

Ottorino Respighi, Giuseppe Mulè, Fernando Germani, Dino Asciolla, Luigi Celeghin e Severino Gazzelloni. Os cursos oferecidos têm duração de 6 a 10 anos e o diploma obtido pode ser considerado equivalente a um diploma universitário. (HTTP:// www.conservatoriosantacecilia.it). 125 A Orchestra Jazz Constantino Ferri – gravou pela Fono Roma desde meados da década de 1930. 126 Goffredo Petrassi foi também graduado pelo Conservatório Santa Cecília e um grande expoente entre os com- positores italianos do século 20. Ele é conhecido principalmente pelos seus sete concertos para orquestra, mas também escreveu para alguns filmes desde o final da década de 1940 ao início da década de 1960. 127 Sergio Miceli. In: Ennio Morricone. Documentário da BBC de Londres, 1995.

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cultural a ser expressa de forma imediata, sobre os bancos do Conservató- rio, nas leituras ou nas exercitações domésticas privadas128.

Miceli acrescenta que uma das primeiras conseqüências dessa “dupla vi- da” se deu na época da formatura no curso de trompete. “Morricone foi aprovado com uma média bem modesta em virtude de seus lábios estarem em péssimas con- dições por causa da intensa atividade noturna” (1994:27). Seus professores desconheciam que ele tocava em orquestras de música ligeira. Numa delas a de Renzo Ricci, no Teatro Eliseo, ele participou de uma tempo- rada shakespeareana com Eva Magni. Nesse trabalho foi convidado para escrever alguns breves interlúdios para trompete e percussão, o que, provavelmente, foi o seu primeiro trabalho encomendado. Durante aproximadamente dez anos, após o fim da Segunda Guerra Mun- dial, Morricone prosseguiu seu desenvolvimento musical precoce em caminhos con- flitantes. Como qualquer outro compositor jovem de uma família muito humilde, ele também estava cheio de nobres ideais, querendo provar seu valor através da criação de música com textos desafiadores. Entre 1946 e 1950, ele escreveu seis lieders para voz e piano: Distacco I (texto de R. Gnoli); Imitazione (texto de G. Leopardi); Distacco Il (texto de Gnoli), Oboé Sommerso (texto de S. Quasimodo); Verra La Mor- te (texto de C. Pavese) e Intimità (texto de O. Dini). Miceli relata que entre essas pe- ças, Imitazione e Verra La Morte se destacam por seu lirismo ousado e convincente. “Singelo, mas pragmático, sagaz, porém sincero – estes serão os traços da persona- lidade que transformarão Morricone no homem e no músico que ele é”. Durante 1953 e 1954, juntamente com Firmino Sinfonia, Aldo Clementi, Domenico Guaccero e Boris Porena, ele freqüentou as aulas de composição de Goffredo Petrassi para as quais compôs uma Sonata para Metais, Tímpano e Piano (uma das primeiras peças que ele reconhece). No mesmo período, iniciou o contato com Gorny Kramer e Lelio Luttazzi que lhe pediram para arranjar alguns medleys em

128 NICOLODI, F. “Inizi prestigiosi”. In AA.VV., Petrassi (a cura di E. Restagno). Itália: EdT, Torino, 1986, pp. 68-69. Apud: MICELI, S. Morricone, La musica, Il cinema. Milano: Mucchi Editore, 1994, p.29.

116 estilo americano para um programa de rádio que estavam preparando. Este foi o primeiro trabalho de Morricone como arranjador que se iniciou clandestinamente.

3.2.1 - Morricone no nascimento da Indústria da Música Popular Italiana Com a queda de Mussolini e o fim da Segunda Guerra Mundial, no âmbito dos investimentos americanos ligados ao plano Marshall129, a RCA130 decidiu abrir uma filial na Itália: nasceu assim a Radio e Televisione Italiana – RTI, uma sociedade anônima com 90% das ações pertencentes à matriz americana e 10% à cidade do Vaticano (Istituto per le Opere di Religione ou IOR)131. Em princípio, eram prensados e comercializados os discos gravados pela matriz americana que, por razões aparen- temente comerciais, não estava interessada em promover o mercado italiano, ainda muito pouco consistente. No fim de 1954, a matriz americana da RCA, tendo em vis- ta o péssimo retorno econômico da sede italiana decidiu fechá-la: o Papa Pio XII in- tercedeu novamente e decidiu mandar um de seus secretários, Ennio Melis132, nasci- do em Firenze em 1926, para inspecionar os escritórios e a fábrica, conjuntamente com o Conde Galeazzi.

129 Denominado inicialmente de Plano de Recuperação Européia (European recovery program), o Plano Marchall foi um dos planos americanos para auxiliar na reconstrução da Europa depois da Segunda Guerra Mundial. 130 A RCA (Radio Corporation of America) manteve-se por muito tempo como uma das gravadoras mais impor- tantes dos Estados Unidos. Fundada em 1919 como uma companhia radiofônica, em 1929, entra no mercado discográfico comprando a Victor Talking Machine Company, uma das mais antigas casas discográficas, fundada em 1901, e que havia distribuído, entre outros, os discos de Enrico Caruso, tanto como produtora quanto como distribuidora, lançando em 1931 o primeiro disco em 33 1/3 rotações. 131 Os relatos que envolvem a criação da RTI, em 1949, referem que o católico Frank Marion Folsom tornou-se presidente da RCA Victor (uma das cinco companhias do complexo da RCA americana) e, num programa de rádio, relembrando os bombardeios de 19 de julho de 1943 no quartiere romano di San Lorenzo, o próprio Papa Pio XII solicitou expressamente a instalação de uma fábrica naquele lugar. Foi assim que surgiu a sede na Itália da RCA, já programada em Milão e em Roma, com os escritórios na via Caccini. A RTI, poucos meses depois de sua criação, assumiu a denominação de RCA Italiana. Como presidente foi nomeado Enrico Pietro Galeazzi, engenheiro dependente do Vaticano (homem de confiança do Papa e amigo de Spellman, Cardeal de Nova York), enquanto que o engenheiro Antonio Giuseppe Biondo foi colocado como homem forte da fábrica: naquele mo- mento a única fábrica de discos na Itália era de propriedade de La Voce del Padrone e se encontrava em Milão. 132 Melis, ainda muito jovem, julgou o complexo não só merecedor de ser conservado como de ser promovido em grande estilo, apostando no setor da “música ligeira” em provável expansão nos anos seguintes. A pedido do próprio Pio XII, a matriz americana substituiu o engenheiro Biondo e o Conde Galeazzi pelo jovem funcionário da cidade do Vaticano, Melis, que iniciou o trabalho na casa discográfica em novembro de 1955, tornando-se oficialmente seu secretário em abril de 1956. Junto a Melis foi nomeado Giuseppe Ornato como Amministradore Delegato e Direttore Generale da RCA Itália.

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Miceli (1994:173) analisa esse momento, até o início da década de 1960, como um precedente importante na difusão do estilo swing desembarcado na Itália, “ao pé da letra”, com o fim dos eventos bélicos e que, por essa razão, a produção popular italiana perde muito de suas características peculiares domésticas com cono- tações étnicas, abrindo-se a uma internacionalização de linguagem impensável pou- cos anos antes, essencialmente por causa do advento do rock.

Se, por um lado, a música ligeira reconfirma a própria função de mero en- tretenimento, de outro se abre na direção de um “empenho” (efetivo ou pre- sunçoso) que se identifica particularmente com o fenômeno dos chamados “autores-cantores” (cantautori), coincidente na fase inicial com o extraordi- nário sucesso da canção ‘Nel blu dipinto di blu’ de Domenico Modugno. (MICELI, 1994:173)

As poucas gravações italianas efetuadas nessa época, como, por exem- plo, as do próprio jovem Domenico Modugno, um dos primeiros artistas da RCA, Nilla Pizzi, Paolo Bacilieri e de Katyna Ranieri, eram feitas ou em estúdios alugados situa- dos na via Pola ou no Cinefonico do Cinecittà133. Desse modo, as primeiras decisões de Ennio Melis foram as de fechar os escritórios da via Caccini, transferindo tudo para o estabelecimento da via Tiburtina, e nomear Vincenzo Micocci [grifo nosso] como diretor artístico da RCA. Micocci era um jovem apaixonado pela música, especialmente o jazz134. Naquele período traba- lhava numa importante loja de discos e conhecia bem as potencialidades do mercado italiano tanto em sua estrutura quanto em suas promessas. O primeiro encargo que

133 Cinecittà é um complexo de teatros e estúdios situados na periferia oriental de Roma (cerca de 9 km de distân- cia) responsável pela maior parte da produção cinematográfica e da TV italiana. Os estúdios foram uma idéia e realização do regime fascista. As obras começaram em 26 de janeiro de 1936 e somente quinze meses depois, em 28 de abril de 1937, ocorreu a inauguração. Entre 1937 e 1943 foram filmados cerca de trezentos filmes, mos- trando a vitalidade da produção cinematográfica italiana da época. Em 1940, com a permissão dos ditadores Franco (espanhol) e Mussolini foi rodado o filme Sin novedad en el Alcázar, recebendo o Prêmio Mussolini. Depois da Segunda Guerra Mundial a produção retomou lentamente seu ritmo, mas foi nos anos 50 que o Cine- città estabeleceu-se com um dos estúdios cinematográficos mais importantes do mundo, com as películas norte- americanas Quo vadis? de Mervyn LeRoy (1949) e Ben Hur de William Wyler (1959). Este boom teve origem na competitividade econômica dos estúdios romanos, que receberam o título informal de "Hollywood no Tibre". Nos anos 90 toda a estrutura foi privatizada e profundamente modificada para adaptá-la às novas exigências do mer- cado das comunicações, como a digitalização. 134 Em 1958 publicou para as edições de Cappelli di Bologna o volume seminal italiano Il Libro del Jazz, escrito em conjunto com Salvatore Biamonte.

118 lhe passou Melis foi o de organizar, quantificar e aumentar a vendagem de discos. Micocci decidiu construir novos estúdios de gravações e contratou como arranjado- res alguns musicistas muito promissores. Um deles era ainda jovem e recém forma- do no Conservatório Santa Cecília: Ennio Morricone.

No fim dos meus estudos no conservatório estava com Petrassi; era o dia da entrega do diploma – um diploma belíssimo, devo dizer, ele estava comovido, e eu também como ele – e fazíamos nossa caminhada costumeira. Petrassi me disse que não arranjasse um emprego fixo nos próximos dois anos porque aconteceria alguma coisa de bom para mim dentro desse período. Eu fiz o que me pediu, passaram-se dois anos sem que eu pudesse ganhar nada. Es- crevi o Concerto per Orchestra que me rendeu, então, 60.000 liras de direitos autorais. Em suma, eu não poderia continuar dessa forma. Então procurei um velho conhecido, Enzo Micocci [grifo nosso], que era diretor artístico na RCA e lhe disse: ‘Tenho de trabalhar... ’ Eu já tinha feito alguns arranjos e então comecei a produzi-los para os discos, de forma clandestina [utilizando pseudônimos135], tentando me manter anônimo, em não ser notado. A clan- destinidade não pode ser mantida por muito tempo e depois de alguns anos foi descoberta: os diretores me reconheceram. Trabalhei para a televisão, para o rádio e, finalmente, me chamaram para o cinema. De Petrassi, não soube mais nada. Ainda me pergunto que coisa quis dizer com aqueles dois anos136. (Ennio Morricone)

Morricone estava muito preocupado com sua situação profissional e a evo- lução da própria carreira como músico, suas peças não atingiam qualquer repercus- são satisfatória, muito menos em termos econômicos. Notavelmente, sua grande re- ferência, o professor Goffredo Petrassi, padecia dos mesmos problemas: mesmo como um compositor de enorme renome e penetração acadêmica, era praticamente desconhecido do público. Dessa forma, Morricone decidiu aceitar trabalhos alternati- vos como arranjador em rádio e televisão de modo a poder sustentar sua recém for- mada família (ele se casou em 1956 com Maria Travia e o casal teve o primeiro filho, Marco Morricone, no ano seguinte).

135 Os pseudônimos utilizados por Ennio Morricone, que serão utilizados posteriormente também no cinema, foram Leo Nichols e Dan Savio. 136 MICELI, S. Musica e Cinema nella cultura del ‘900. Firenze: Sansoni. 2000, p. 467.

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Eu tocava trompete e muitos me elogiavam só porque eu estudava composi- ção no Conservatório. Carlo Savina137, o diretor [regente] da orquestra da Rai B, precisava de arranjadores e seu contrabaixista, eu acho que se cha- mava Marchesini, sem saber nada sobre mim, disse a Savina: "Morricone é excelente". Savina me chamou e, em seguida, Luttazzi138 e Kramer139. Mais tarde [1960] a RCA me chamou para um primeiro álbum, "Il barattolo" de [Gianni] Meccia, que então vendeu 300 mil cópias. Foi uma experiência:.. Eu apenas adicionei os sons de umas latas.

No seio do mundo discográfico italiano que estava para “explodir”, conjun- tamente com a difusão do toca-fitas, Morricone procurou entender e se adequar a estilos populares promissores.

Fora do Conservatório aprendi outras coisas importantes que as escolas não ensinam: aprendi técnicas de arranjo e a compor música com um bom efeito teatral. E devo ter aprendido bem, pois, poucos anos depois, fui convidado pela RAI para fazer arranjos para orquestras de rádio e, mais tarde, traba- lhar para a televisão. Comecei a trabalhar no cinema somente depois de ter adquirido alguma notoriedade nos círculos mencionados.

Miceli (1995:174) acrescenta que, favorecido pela difusão do disco de “mi- cro-sulcos” de 45 rotações, é esse, em suma, o período de transição da música ligei- ra à música de consumo, “no qual o produto se diversifica de acordo com as faces dos ouvintes que o consomem e num contexto de planificação produtiva oculta”.

É nesta fase de profunda transformação que se insere a figura do músico ar- ranjador, em geral um profissional de bases práticas e teóricas sólidas, constrito a colaborar com uma multidão variada de pretensos “autores”, mas, em realidade, salvo raras exceções, de semi-analfabetos musicais, nos

137 Carlo Savina (Torino, 29 de agosto de 1919 – Roma, 21 de junho de 2002) foi um musicista itliano, composi- tor e regente de orquestras. Nos primeiros anos da década de 1950 iniciou seu trabalho como regente da orquestra da RAI. A partir de de 1953 participou como regente das primeiras transmissões experimentais da televisão itali- ana em programas ‘ao vivo’ de variedades. Com freqüência esses programas eram adaptados e transpostos do rádio para a televisão como, por exemplo, Rosso e Nero e Nati per La musica. Desde a década de 1950 Savina compôs também música de cinema. No espaço de 30 anos serão cerca de 200 os filmes que realizara a música, passando a história como um dos mais prolíficos e, ao mesmo tempo, menos valorizados dos compositores italia- nos para a tela. In: http://it.wikipedia.org/wiki/Carlo_Savina, último acesso em 02 de outubro de 2010. 138 Lelio Luttazzi (Trieste, 27 de abril de 1923 – Trieste, 8 de julho de 2010) foi um musicista, compositor, cantor, regente de orquestra, ator e apresentador de televisão italiano. In: http://it.wikipedia.org/wiki/Lelio_Luttazzi, último acesso em 2 de outubro de 2010. 139 Francesco Kramer Gorni, conhecido como Gorni Kramer (Rivarolo Mantovano, 22 de julho de 1913 – Milano, 26 de outubro de 1995), foi um musicista, compositor, regente de orquestra, acordeonista, contrabaxista, produtor discográfico, arranjador e autor televisivo italiano. In: http://it.wikipedia.org/wiki/Gorni_Kramer, último acesso em 02 de outtubro de 2010.

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quais deverá desenvolver e valorizar as modestíssimas intuições, contribuin- do de maneira substancial a consolidar-lhes o estilo e a imagem.

Smith (1998) confirma as informações:

[...] Morricone depurou suas habilidades orquestrais como arranjador para a rádio e televisão italiana. De forma a poder sustentar-se, ele mudou para a RCA Itália no início dos anos sessenta e entrou para a linha de frente da in- dústria de gravação italiana. Como um grande arranjador de estúdio, Mor- ricone arranjou mais de quinhentas canções e trabalhou com artistas da in- dústria de gravação como Mario Lanza, Paul Anka e Chet Baker. Durante esse período, Morricone desenvolveu uma grande intimidade com um grande número de idiomas pop, incluindo rock, jazz e canções napolitanas de amor140.

Um contratempo muito citado sobre a inserção e adequação de Morricone ao mercado da música pop italiano se deu pouco antes do início de seu trabalho na RCA. Em 1958, Morricone aceitou trabalhar na RAI141 (Radio Audiozioni Italia), não como maestro, mas como assistente musical, um empregado burocrático que tinha, entre outras, a função de relacionar as músicas de um documentário ou de um de- terminado programa em planilhas.

No primeiro dia de trabalho fui chamado pelo diretor do centro da via Teu- lada, o maestro Pizzini, que já me conhecia pelo meu trabalho com orques- tras de rádio. Ele teceu elogios pelo colorido que eu conseguia nos meus ar- ranjos, mas, fez questão de recordar, imediatamente depois, que eu, agora, era um empregado de segunda categoria e que as minhas composições, de câmera ou sinfônicas, não seriam nunca transmitidas pela corporação por- que havia um regulamento interno que não permitia aos contratados. (Uma disposição de Filiberto Guala, o honesto diretor geral naquela época que iria, em seguida, padecer como religioso na África). Fiquei sem ação, mas disse ao maestro que tinha estudado muitos anos para terminar dessa forma. Ele foi muito generoso, e quase compreensivo, procurando me fazer entender que se eu agisse assim estava renunciando a um lugar seguro por toda minha vida. Questão de opinião. Quando voltei para a escrivaninha em que tinham me acomodado fui, por telefone, encarregado de procurar no arquivo RAI o nome dos editores musicais de todas as canções apresentadas aos sábados

140 SMITH, J. The Sounds of Commerce: Marketing Popular Film Music. New York: Columbia University Press, 1998, p. 133. In: LEINBERGER, C. (2004). Ennio Morricone’s The Good, the Bad and the Ugly: A Film Score Guide. Oxford: The Scarecrow Press, Inc., p. 3. 141 RAI ou Radiotelevisione Italiana é uma empresa estatal italiana de televisão e rádio. RAI é um acrônimo para Radio Audiozioni Italia. Seu primeiro nome foi EIAR (Ente Italiano Audizioni Radiofoniche) e ocupava-se ape- nas de transmissões radiofônicas, até que em 3 de janeiro de 1954 a RAI TV começou a emitir sinais televisivos em escala nacional.

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no programa musical mítico Musichiere. Foi então que atirei o telefone con- tra a parede e fui embora. Mesmo assim me pagaram por 15 dias142.

Na perspectiva de Miceli esse período de transição da indústria cultural italiana não possui ainda uma ruptura radical no plano da linguagem musical, que, com as devidas adaptações, ficou circunscrita no âmbito de uma previsibilidade de esquemas que lhes foram próprios. Acrescenta que nas recentes tentativas de afron- tar o período em termos historiográficos, o fenômeno da música ligeira se reduz, na maioria das vezes, a uma crônica de costume e um comentário dos textos.

Por outro lado, existem numerosos elementos para crer, através de uma óti- ca sócio-musical, que o radicalismo nascido no âmbito culto da década de 1950 e desenvolvido na década seguinte, tenha contribuído em alguma medi- da para criar e reforçar uma multidão de órfãos da música séria. Aqui é alu- dido um ampla faixa de público compreendida na categoria adorniana – en- tre o “ouvinte emotivo” e “aquele que escuta a música por passatempo” – e levada tendencialmente a um repertório clássico-ligeiro bem individuado por algumas casas discográficas, que encontrarão motivos de consolação, ao menos parcial, ouvindo cantores-autores mais “empenhados” em certas mú- sicas de filmes, de modo especial as de Ninno Rota e, mais tarde, de Morri- cone. (MICELI, 1994:175)

3.2.2 - Darmstadt: 1958 Depois de abandonar o seu único dia de trabalho na RAI, Morricone apro- veitou seu forçado “descanso” para viajar a Darmstadt, onde assistiu ao seminário ministrado por John Cage (1912–1992). Três foram os eventos daquele setembro de 1958 destinados a deixar um sinal nas experiências de Morricone, o encontro com as músicas de: Cage (presente pela primeira vez no curso de férias, aonde retornaria somente 32 anos depois), a primeira execução de Cori di Didone de Luigi Nono (1924 – 1990) e Musica su due dimensioni de Bruno Maderna (1920 – 1973).

Pode-se dizer que Morricone encontrou formulado e em grande parte resol- vido, [pelo menos] aos seus olhos, em forma de contraste dialético, um dos nós inextricáveis que o acompanhava desde o seu exórdio: a relação aparen-

142 MINÀ, G. (2004) Entrevista. La musica secondo… Ennio Morricone. Internet: http:/ /www.andreaconti.it/morricon.html. Último acesso em 04/06/2006.

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temente irreconciliável entre rigor formal e expressão, entre experimentalis- mo e vontade de comunicar, entre abstração e conteúdo; pares de opostos que podem parecer diferentes e arbitrários quando não se tem presente a natureza do debate que foi aberto em Darmstadt desde o início dos anos 50 até então. (MICELI, 2004:36)

O seminário e o íntimo contato com os ideais da vanguarda produziram profundas inquietações em seu pensamento com conseqüências importantes em sua atuação como compositor de trilhas musicais no cinema. As inquietações ligaram-se, por exemplo, à utilização do silêncio como expressão musical e na valorização e uti- lização do ruído também como sonoridade musical, tanto incorporado em músicas mais tradicionais quanto isolados.

Um som, qualquer som de nossa vida, de nosso dia a dia normal – isolado de seu contexto, de seu lugar natural e pelo silêncio – torna-se alguma coisa di- ferente que não é parte de sua natureza real143.

Esse pensamento será lapidado em sua parceria com Sergio Leone que, segundo Morricone, “já possuía essas inquietações em seu sangue” (in FRAYLING, 2005:97) e em suas idéias sobre a utilização expressiva do ruído e do silêncio na linguagem cinematográfica.

Tudo parecia me confirmar a estrada na qual me encaminhava, os motivos relativos de interesse, eram justos, eram os meus; compreendi que não pode- ria mais escrever duas notas sem que elas contivessem alguma resposta às minhas indagações: porque essa nota? Porque iniciar assim? [...] Desde en- tão os materiais do meu trabalho seriam sempre escolhidos e utilizados muito mediadamente. Isso conformou tanto toda minha atividade que posso dizer que se tornou o meu modo de pensar, pois, refletiu-se sobre toda a mi- nha atividade, também atual. E também se hoje não falo mais de materiais e de estruturas, porque sobre eles ainda tenho muitos tipos de dúvidas, insisto em exigir de mim mesmo que um trabalho tenha um fundamento – formal ou não-formal tem pouca importância – convicto na consciência de que para le- gitimá-lo seja uma idéia verdadeira, precisa. Estes pressupostos imprescin- díveis – abstratos o menos que possam ser – devem responder por uma pró- pria – que me perdoem a blasfêmia – capacidade expressiva. Um dado que eu retenho hoje – depois de tantos anos – absolutamente necessário: a socie- dade deve voltar a escutar os compositores, consciente que eles trabalharam,

143 Ennio Morricone in: FRAYLING, C. Once Upon a Time in Italy: The Westerns of Sergio Leone. New York: Harry N. Abrams, 2005, pp. 96-97.

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escreveram pensando em uma música que deva ser escutada. (MORRICO- NE144)

3.3 - INFLUÊNCIAS DE UM PROFISSIONAL ECLÉTICO E SINCRÉTICO NA MÚSICA DE CINEMA

No período de 1954 a 1959, Morricone escreveu uma série de peças or- questrais e de câmara: Música para Cordas e Piano (1954); Invenzione, Canone e Ricercare para Piano; Sestetto para flauta, oboé, fagote, violino, viola e violoncelo (1955); Dodici Variazioni para oboé d'amore violoncelo e piano, Trio para trompa, clarineta e violoncelo; Variazioni su un Tema di Frescobaldi (1956); Quattro Pezzi per chitarra (1957); Distanze para violino, violoncelo e piano; Musica por undici Violini; Tre Studi para clarinete, flauta e fagote (1958), e o Concerto per orquestra (1957, dedicado à Petrassi). Miceli comenta que as obras escritas nesse período revelam o mesmo ecletismo de seus trabalhos futuros tanto como arranjador da indústria disco- gráfica italiana como o de compositor de cinema (1994:41-63). Entre o fim dos anos 50 e a década seguinte, Morricone colaborou pelo menos com uma dezena de espetáculos de revista, esta última em boa parte teatral, mas também televisiva (de 1955 iniciou também a escrever ou arranjar música para filmes assinadas por outros compositores), entre os quais: La pappa reale de Félicien Marceau, com a direção de Luciano Salce (1958); Il Lieto fine, com o mesmo Salce como autor (1959); Enrico 61 de Garinei e Giovannini, com Renato Rascel e Rinaldo in campo, Garinei e Giovannini, com Domenico Modugno e Delia Scala (1961); Ras- celinaria, Garinei e Giovannini; La Fidanzata Del bersagliere de Edoardo Anton e, para a televisão, I drammi Marini di O’Neil (1962); Tommaso d’Amalfi de (1963), com Domenico Modugno, Franco Franchi e Ciccio Ingrassia.

Nesse mesmo período, existe um incremento notável da sua presença no que está por tornar-se o espetáculo popular por excelência, o show de varieda- des televisivas. Também nesse caso bastará citar os títulos mais importantes e os que me foi possível rever ou, na pior das hipóteses, verificar os dados principais. Inicia-se com Piccolo concerto de Vittorio Zivelli e Enzo Trapani

144 PADRONI, U., apud: MICELI, S. 1994, op. cit., pp. 37-38.

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de 1960 e com Gente Che va, gente Che viene com a direção de Trapani; no ano sucessivo debuta numa transmissão histórica para a televisão italiana, Studio 1, que se firmará com um crescente sucesso até 1967, auxiliada em 1964 pela Biblioteca di Studio 1, da qual anota Aldo Grasso: “É o primeiro kolossal-variedade da televisão. As cifras falam claro: 160 atores e cantores, 1500 figurantes, cerca de 400 motivos musicais, 150 ambientações cenográ- ficas ... para 8 obras literárias traduzidas em música ligeira, Il conte di mon- tecristo, I tre moschettieri, Via col vento, Il Hotel e L’Odissea. Os autores são Antonello Falqui, Dino Verde e o Quarteto Cetra, ou seja Tata Giacobet- ti, Virgilio Savona, Lucia Mannucci, Felice Chiusano, que são também os irônicos, garbosos e espirituosos protagonistas destas famosas paródias”. Em 1962 é a vez de Alta pressione de Francesco Luzi e Massimo Ventriglia, no qual debutam Gianni Morandi e Rita Pavone, e em 1965 Aria condiziona- ta de Maurizio Costanzo e Ghigo De Chiara. (MICELI, 1994:71-73)

Toda a pressão do trabalho composicional em outras frentes gerou um grande hiato em suas composições de “música absoluta”. As contingências e conse- qüentes influências, fruto dessas atuações na música popular italiana do final da dé- cada de 1950 e início da década de 1960, será proeminente em muitas das trilhas sonoras musicais de Ennio Morricone. Sua relação com o “negozio” da música popu- lar italiana nutriu sua familiaridade com as tendências populares européias da época. O exercício repetido de organizar centenas de peças de 2 a 3 minutos – como se cada uma delas contasse sua própria história –, criando atmosferas que objetivavam capturar tipos de sonoridades musicais que, simultaneamente, apresentassem uma espécie de assinatura autoral e pudessem fazer o público correr para as lojas de dis- cos, foi determinante no pensamento musical de Morricone. Essas primeiras experi- ências apresentam características que explicam parcialmente o impacto que algumas de suas trilhas sonoras musicais para o cinema terão sobre o público, poucos anos depois. Sua maneira de compor para filmes populares refletem claramente alguns resultados desses anos em que Morricone passou criando e/ou organizando alguns dos grandes sucessos musicais populares da Itália, no início dos anos sessenta. Ob- viamente, a atividade do arranjador das músicas de shows de variedades e a de compositor de música para filmes são diferentes em suas concepções, restrições e condicionamentos. No entanto, Morricone inclui em algumas de suas partituras para o cinema soluções musicais análogas as que já havia experimentado e desenvolvido durante esses anos de intensa atividade como arranjador.

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Miceli confirma que esses 20 anos, situados entre as décadas de 1960 e 1980, formam o período que melhor caracteriza e resume a complexidade das expe- riências e do pensamento musical de Ennio Morricone, pois, “é o que lança e depois consolida as bases de sua identidade profissional – em parte voluntariamente, em parte à revelia – às atenções de setores musicais bem diversificados em relação ao grande público”.

Se fosse lícito reler a parábola criativa de um autor como conseqüência de condicionamentos superiores e convergências – a tradicional separação en- tre gênero culto e gênero popular, entre clássico e ligeiro, que assumindo novas conotações cria os pressupostos para a contaminação atual –, os pri- meiros anos da década de 1960 poderiam ser descritos através desses dois fenômenos diametralmente opostos, especulares e, de certa forma, como re- flexo indireto um do outro (MICELI, 1994:173).

Todas essas características eminentemente populares somada a sua for- mação “clássica”, a proficiência com a escrita e a regência orquestral e coral, seu instinto nato de pesquisador e a experiência com as tendências musicais de van- guarda, possibilitaram a Morricone criar trilhas musicais cinematográficas que não foram somente efetivas como componentes dos filmes, mas, tinham também o po- tencial de serem sucessos comerciais como obras gravadas independentes. Com 32 anos, ele tinha os meios e teve a oportunidade de aventurar-se no reino da composi- ção de música para filmes de uma forma que muito poucos compositores poderiam fazer – um reino experimental que se tornaria uma grande parte do seu legado.

3.3.1 - Estilo “contaminado” Sweeting (2001) observa que mesmo que Morricone seja conhecido como um compositor de música para filmes outras características de seu pensamento mu- sical estão sempre presentes:

Pergunte-lhe sobre suas raízes musicais e ele prontamente lista algumas das personalidades mais intransigentes da música do século 20, incluindo Boulez, Stockhousen, Luciano Berio e Luigi Nono. Não que tenha terrificado

126

seus ouvintes com atrocidades atonais. É mais no sentido de absorção e evo- lução145.

Leinberger (2004: 8) comenta que parte da obra musical de cinema de Morricone pode possuir algumas características modernas e dissonantes, mas ainda é propositadamente tonal ou modal e também muito melódica, o que a torna acessí- vel à média da audiência tanto de músicas quanto de filmes. Porém, também se apresentam no seu trabalho, para além de sua superfície melódica, alguns elemen- tos estruturais com características modernas assimilados por Morricone, como, por exemplo, instâncias da musique concrète e sugestões de ambigüidade tonal. Isso quer dizer que mesmo que contingentemente tenha também sido influenciado pelo trabalho na indústria da música popular italiana, Morricone foi capaz de reter muitas influências de sua formação clássica e moderna.

Morricone desenvolveu dois lados distintos para sua personalidade musical: um deles levou-o a abraçar o serialismo (e.g., em Distanze e Musica per 11 violini, 1958) e um trabalho experimental de improvisação com o grupo No- va Consonanza (a partir de 1965); o outro lhe deu um papel preponderante, principalmente como arranjador, em todos os tipos de música popular de massa, incluindo canções para o rádio, peças para rádio e televisão e o pri- meiro sucesso com um show de variedades para televisão. Naqueles primei- ros dias da indústria de gravação sua contribuição inovadora teve papel de- cisivo no sucesso dos primeiros cantores-compositores de canções (“cantau- tori”), incluindo Gianni Morandi e Gino Paoli146.

Leinberger (2004:9) acrescenta que esses dois lados de sua personalida- de coexistiram perfeitamente e não existe dúvida que incrementaram um ao outro. Afirma que mesmo com o fato de Morricone ser mais conhecido pelo lado de seu su- cesso comercial, e que provavelmente continuará dessa forma, o lado vanguardista dessa dualidade, incluindo serialismo, minimalismo e outros “ismos” do século 20, não deve ser desprezado, já que a utilização desses elementos modernos da sua contemporaneidade também contribuiu no sentido de tornar as suas composições únicas.

145 SWEETING, A. (2001) “Mozart of Film Music”. The Guardian, Manchester, 23/02/2001. In: LEINBERGER, C., op. cit., p.8. 146 MICELI, S. Verbete: Ennio Morricone. In: SADIE, S. (2001) The New Grove Dictionary of Music and Musi- cians. London: Macmillan Publishers Limited, p. 145.

127

Os trabalhos não fílmicos de Morricone formam uma ampla e gradativamen- te mais executada parte de sua obra. Muitos deles utilizam sua técnica de “micro-células”, uma abordagem pseudo-serial freqüentemente incorporan- do alusões tonais e modais que, com sua extrema redução de materiais com- posicionais, tem muito em comum com suas técnicas de música para filmes. Sua temporada de música para concerto mais frutífera começou com o Second Concerto for Flute, Cello e Orchestra (1985, do qual a Cadenza for flute and Tape de 1988 é derivado) e continuou com Riflessi (1989-90), três peças para cello que representam, talvez, o ponto mais alto de sua produção de câmara, alcançando um alto grau de tensão lírica147.

A música de concerto de Morricone é cada vez mais executada e conheci- da na Europa e, por isso, sua popularidade continua crescendo. Mas, ao mesmo tempo, revela um dos aspectos mais problemáticos de serem abordados em sua lon- ga carreira: o de reconhecimento como compositor de “música absoluta”. É realmen- te um grande pesar para Ennio Morricone que sua música de concerto seja quase que completamente desconhecida fora da Europa, principalmente por utilizar as mesmas técnicas empregadas em suas músicas para cinema. Morricone comenta esse fato a Joe Gore da revista Guitar Player em 1997148:

Em meu trabalho para o cinema nunca esqueci minha origem clássica como compositor de concertos e, ainda hoje, permaneço um compositor de concer- tos. Grande parte de minha obra é hoje executada aqui na Europa, mas, infe- lizmente, não nos Estados Unidos.

3.3.2 - Canções e Trilhas Musicais Duas atividades marcam o início da década de 1960, por um lado, e cer- tamente o que mais frutificou, o começo de seu longo e profícuo trabalho em trilhas musicais para o cinema, e, por outro, o aumento vertiginoso e a consagração de seus trabalhos como arranjador para a RCA. Não se pode ignorar o mérito de Morricone em transformar, como arranja- dor ou compositor, canções, algumas delas datadas e banais, em grandes sucessos comerciais:

147 Idem, p. 146. 148 GORE, J. (1997). “The Good, the Great, and the Godly: Ennio Morricone’s Miraculous Soundscapes,” traduzido por Albert Balesh, Guitar Player, April 1997, p.59. In: LEINBERGER, C. op. cit. p.9.

128

Procurava sempre enriquecer uma canção, fosse bela ou modesta (porque muitas funcionavam, mas, eram medíocres). Queria dar à peça uma estrutu- ra musical autônoma, que pudesse fascinar mesmo que sozinha, e, não obs- tante, possuísse, com freqüência, uma melodia muito pobre. Procurei, em suma, não refugiar-me num trabalho padronizado e passivo. [Lembro] no início [1961], por exemplo, uma das tentativas encontradas que funcionou no arranjo de uma canção napolitana, Voce’e notte para Miranda Martino, foi a idéia de acompanhá-la como o Chiaro di luna [sonata ao luar] de Beethoven149.

Outro exemplo pode ser encontrado em Chico Buarque:

Cheguei a utilizar uma série dodecafônica em uma canção de Chico Buarque de Hollanda, o grande compositor brasileiro que então estava exilado na Itá- lia por causa da ditadura em seu país150.

Numa época em que a profissão de arranjador não era levada em consi- deração nos meios da “música culta”, Morricone trabalhou muito e com muitas pes- soas, colaborando para que se tornassem ou se firmassem definitivamente como os principais cantores e cantoras italianas, como, por exemplo, Mina ("Se Telefonando"), Gianni Morandi (“Se non Avessi Piu Te”), Gino Paoli ("Sapore di Sale"), entre outros.

Acredito que meu sucesso seja precisamente pela minha origem humilde. Naqueles anos tive de trabalhar com ‘cançonetas’, o que, às vezes, me en- vergonhava, tentando transformá-las em alguma coisa diferente, inserindo, por exemplo, citações de peças clássicas ou padrões seriais dodecafônicos. Era uma forma de elevar aquele tipo de música. E isso, provavelmente, pro- porcionou aos meus trabalhos menores daquele tempo certas características inesperadas, que alguns consideraram não desagradáveis, e que colabora- ram para que eu fosse apreciado e aceito. Devo confessar que característi- cas desse tipo tinham quase um sentido de vingança sobre o que eu conside- rava uma profissão secundária – ou mesmo um pouco deprimente. (Ennio Morricone151)

O trabalho como arranjador também possibilitou, posteriormente, que vá- rios de seus temas para cinema fossem gravados e transformados em canções de sucesso popular por artistas como Paul Anka, Françoise Hardy, Charles Aznavour,

149 MORRICONE, E. “Un compositore dietro la macchina da presa”. Enciclopedia della musica I. Il Novecento. Organizada por Jean-Jacques Nattiez. Torino: Giulio Einaudi editore, 2001, p.95. 150 Idem. Provavelmente, Morricone está se referindo à faixa “Lei no, lei sta ballando” do disco Per un pugno di Samba uma versão para o italiano de Chico Buarque da música “Ela Desatinou”. O disco foi lançado na Itália em 1970 com todos os arranjos de Ennio Morricone. 151 Ibidem.

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Sergio Endrigo, Georges Moustaki, Scott Walker, Astrud Gilberto, entre outros. Des- se modo, o nome do arranjador Morricone, no início mantido no anonimato e em se- gredo, transformou-se em sinônimo de grande êxito.

Alguns dizem que Morricone é o pai do arranjo moderno e eu estou perfei- tamente de acordo no sentido de que ele revolucionou literalmente o conceito de arranjo. (MICELIi152)

152 Sergio Miceli. In: Ennio Morricone. Documentário da BBC de Londres, 1995.

130

3.4 - A DÉCADA DE 1960: AS PRIMEIRAS TRILHAS MUSICAIS CINEMATOGRÁFI- CAS

Dito sem meio termo, se algum diletante está por adentrar no território do especia- lismo musical cinematográfico – um fenômeno preocupante de migração da música ligeira ao cinema, destinado infelizmente a reforçar-se, pelo menos na Itália, no mer- cado discográfico –, os endereços do cinema dos primeiros anos da década de 1960 já são suficientes para mostrar como não é mais o tempo dos Cicognini, dos Lavag- nino, dos Nascimbene: compositores bem dotados de várias formas, mas, todos mais ou menos estranhos à evolução lingüística e cultural da música da segunda e também da primeira metade do século 20 – para além de uma apropriação superficial –, e como tais valorizados exclusivamente segundo uma ótica cinematográfica (MICELI, 1994:176)

No final da década de 1950, Morricone tinha alguma idéia do que signifi- cava compor para o cinema. Ele já havia tocado trompete em várias gravações com orquestras de cinema e, portanto, experimentado a idéia de sincronização da música nos filmes. Ao mesmo tempo, observou que muitas dessas composições que gravou não eram boas e acreditava firmemente que pudesse escrevê-las melhor.

Depois da guerra, a indústria de filmes era muito forte aqui na Itália, e o neo-realismo no cinema italiano era realmente maravilhoso, porém esses filmes neo-realistas não tinham uma grande música. Eu precisava de dinhei- ro e achei que seria uma coisa boa escrever para filmes. (MORRICONE153)

Na abordagem de Miceli as músicas do cinema italiano, até esse momento e com raras exceções, estariam mais voltadas para mostrar a ocasionalidade de um momento fértil de encontro entre um certo modo de escrever música e um certo mo- do de fazer cinema:

E eis Giovanni Fusco, compositor entre os mais confiáveis de sua geração – junto a Enzo Masetti –, embora supervalorizado, provavelmente por causa da prestigiosa colaboração com Antonioni e pela disponibilidade com dire- tores emergentes como Damiani, Maselli, os Taviani; eis o franco Carlo Rus- tichelli, que representa uma categoria feliz de per se, quase o epílogo de uma tradição popular já sem futuro. (MICELI, 1994:176)

Portanto, em sua ótica, também vão se abrindo espaços para poucos per- sonagens emergentes, dotados de maior curiosidade e elasticidade – “entre os quais

153 SWEETING, A. Entrevista: The Guardian. Mozart of Film Music. 23/02/2001. Internet: http:/ /film.guardian.co.uk/interview/interviewpages/0,,441512,00.html. Último acesso em 25/01/2006.

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Trovajoli e Piccioni, onde o segundo mostrará a rara e apreciável tendência ao con- trole dos meios expressivos especialmente nos numerosos filmes de Francesco Ro- si” –, é Ninno Rota e, pouco depois, Ennio Morricone que se revelam muito acima da média e, em seguida, capazes, em suas profundas diversidades, de cobrir boa parte das exigências provenientes da produção cinematográfica nacional e, mais tarde, internacional.

Pode-se pensar que, paradoxalmente, o que une os dois mestres incontestá- veis da composição aplicada ao cinema do pós-guerra, e que pode explicar em parte as suas supremacias, reside na relação mantida com a formação e com a atividade composicional extracinematografica. Fosse por se tratar de um forma singular de anacronismo estilístico, aparentemente não problemá- tico (que escondia, em realidade, um conhecimento profundo da música do século 20), ou, ao invés, que nascesse de uma separação limpa e conflitual, em ambos esteve presente uma consciência musical habilíssima na aplicação circunstancial, na obtenção de uma valência funcional, mas, que quase nun- ca esqueceu da substancial unidade que caracteriza, mesmo que de modo la- tente, a produção de qualquer compositor de respeito. (MICELI, 1994:177)

Em 1958, Ennio Morricone conheceu o diretor Luciano Salce154 (1922 – 1989) quando trabalharam na produção televisiva Le canzoni di tutti e em algumas produções teatrais posteriores: La pappa reale de Félicien Marceau e Il lieto fine do próprio Salce.

Os primeiros encorajamentos no campo do cinema vieram de Luciano Salce, com quem colaborei em seu primeiro filme italiano de 1961: IL FEDERALE (‘THE FACIST’). Tinha pouco mais de 30 anos, mas, já tinha uma longa car- reira pública. De fato, o convite foi feito devido a Salce ter tido a oportuni- dade de apreciar minha música em duas comédias de teatro, uma de Marce- au e outra dele mesmo. (MORRICONE, 2007:46)

Em 1960, Salce convidou Morricone para compor a trilha sonora musical do filme Le Pillole di Ercole. A trilha chegou a ser gravada no estúdio Salsomaggiore. Porém, o produtor do filme, Dino De Laurentis, nunca havia ouvido falar de Morrico- ne, e não permitiu arriscar a produção do filme com “um compositor jovem e ainda sem experiência” 155, ou seja, o que seria sua primeira trilha musical para filmes foi, já

154 http://www.ilrecensore.com/wp2/2009/12/scoprendo-mio-padre-parlano-salce-e-pergolari/ 155 Morricone: cinema e oltre, p.46.

132 na primeira vez, rejeitada pelo produtor do filme. Quando perguntado sobre que fim levou sua primeira trilha Morricone responde: “Quem se recorda? Não recebi nem mesmo o pagamento” (2007:46). Morricone experimentou, portanto, na sua estréia oficial frustrada como compositor de música de cinema, exigências de uma postura profissional que incluia gerenciar fatores condicionantes que extrapolavam o âmbito puramente artesanal da composição musical. Sem ainda ter adentrado consistentemente na composição de música para filmes, mas, tendo já oferecido, durante 10 anos, diversas demonstra- ções das próprias potencialidades, muitas reconhecidamente incomuns no âmbito da indústria discográfica. Com sua criatividade e ecletismo Morricone constituiu um tipo de marca, uma marca que conduzia, na perspectiva do mercado cultural, a “exces- sos” que tanto poderiam contribuir para um grande sucesso quanto para um grande fracasso. Miceli confirma:

Como prova da existência, já, de um tipo de “marca Morricone” e dos ex- cessos aos quais poderiam conduzir, bastará dizer que Dario Sabatello, pro- dutor do filme OK CONNERY (1967), insere no contrato de colaboração ofe- recido ao compositor a seguinte cláusula: “As músicas devem ser belas, in- ternacionais e de sucesso seguro”. (MICELI,1994:92)

Para Miceli, mesmo com as contingências e condicionamentos inevitáveis, não parece ser possível sustentar que Morricone tenha intuído ou calculado anteci- padamente, “com instinto monstruoso e boa dose de cinismo, a soma das transfor- mações de seus atos, endereçando, como conseqüência, as próprias escolhas”:

Poder-se-ia falar, então, de uma singular série de coincidências que teriam levado o homem “certo” – culto em um ponto específico de sua evolução / involução – no lugar “certo” e no tempo “certo”: constatação fatalística quanto genérica (também se a co-presença dos três fatores é indispensável para que aconteça qualquer coisa de relevante) e, portanto, insatisfatória. Apoiando-se, ao invés, em dados objetivos, pode-se notar que, de 1959 a 1969, ele não produz novos trabalhos destinados exclusivamente às salas de concerto: um sintoma de grande relevo em um musicista da sua formação, que num primeiro nível de análise pode ser interpretado como um sinal de total absorção em outras atividades. (MICELI, 1994:176)

133

Em 1961, um novo convite do próprio Luciano Salce para que fizesse a tri- lha musical de Il Federale (The Fascic st)156, considerado a primeira trilha musical ci- nematográfica de Morricone. O filme é uma comédia que conta as confusões do tra- jeto de um soldado fascista, Arcovazzi (Ugo Tognazzi), incumbido de prender e con- duzir um filósofo comunista e antifascista, Bonaffe (Georges Wilson) paara o quartel de Roma, sem saber que, em sua ausência, a capital já fôra libertada da ocupação ale- mã.

Figura 3 – Tema de Il Federale - 1964

A trilha musical do filme, de forma geral, atua tanto em níveis expressivos quanto ambientais, na maioria das vezes harmonizando e algumas contrapondo a alternância da atmosfera das cenas que oscilam entre, por um lado, a zanga e o au- toritarismo de Arcovazzi e, por outro, o tom irôônico e alegre de Bonafe. A idéia de contrapor a atmosfera de algumas cenas ocorre principalmente sobre alguns diálo- gos entre Bonafe e Arcovazzi. Morricone utiliza o Tema de Bonafe, um leitmotiv qua- se místico, visivelmente com conotações religiosas, pré-aanunciando uma de suas características mais importantes: a ironia. Mas, o elemento dominante na totalidade da trilha é o reforço da própria idéia do filme, uma comédia política, revelando-se principalmente numa marcha militar com tom caricatural inserida desde os créditos iniciais.

156 IL FEDERALE, campeão de bilheteria no ano de 1961, se encaixxa numa correente de filmes do cinema italiano do início da década de 1960 que revisitaram os temas do fascismo e da guerra. Este gênero de filmes foi herdeiro da concentração neo-realista sobre a guerra e a resistência como eventos que formaram a essência da república itali- ana do pós-guerra. Porém, nessa década (1960), os temas heróicos dos antigos filmes da década de 1940, passa- ram a incluir representações mais irônicas e tragicômicas da Itália durante as lutas e na transição do fascismo. Alguns outros filmes que podem ser incluídos nesta corrente são: LA LUNGA NOTTE DEL '43 [A Longa Noite de 43], 1960, dirigido por Florestano Vancini; LA MARCIA SU ROMA [A Marcha sobre Roma], 1962, de ; TUTTI A CASA [Todo mundo em casa], 1960, dirigido por Comencini, entre muitos outros. (CELLI, C. e COTINO-JONES, M. A new guide to italian cinema. New York: Palgrave Macmillan, 2007, pp. 92-93)

134

A trilha sonora joga com mais níveis expressivos, harmônicos e contrapon- tísticos que acompanham a alternância de atmosferas claras e escuras. O elemento dominante, no entanto, é uma marcha militar com tons quase cari- caturais157.

Trabalhar muitas vezes com um mesmo diretor, em vários filmes e em gê- neros diferentes, será outra característica marcante na carreira de Morricone. Com

Luciano Salce, Morricone assinou a trilha sonora musical de outros filmes: LA

CUCCAGNA, 1962; LA VOGLIA MATTA, 1962; LA MONACHINE, 1963; SLALOM, 1965; COME

IMPARAI AD AMARE LE DONNE, 1966; EL GRECO, 1966 e DOVE VAI IN VACANZA?, 1978.

Ainda trabalhei com Salce em muitos outros filmes, apreciando seu profissi- onalismo e ecletismo. Em particular no filme EL GRECO (1966), para contar a vida do grande pintor, Luciano decidiu distanciar-se de seu estilo de dire- ção habitual [um diretor de comédias] e também na música me pediu esco- lhas menos tradicionais; optamos, assim, por uma música contemporânea158 e dodecafônica159.

Portanto, esses primeiros anos da década de 1960 são os que exigirão de Morricone capacidades interpretativas e de ductibilidade bem mais contundentes quando comparado às das gerações de compositores anteriores.

Nesse sentido minha experiência prévia, que foi tão variada e livre, ajudou a iniciar-me nessa profissão. A música de um filme é influenciada pelo próprio filme, pelas personagens, pelos eventos narrados, mas, é especialmente in- fluenciada pelo relacionamento entre o músico e o diretor. Cada diretor tem uma cultura especial, uma experiência de mundo e de arte e, também, sua própria experiência musical. E a música deve saber como interpretar tudo isso. O diretor dá ao filme o suporte de sua estrutura cultural. A música não pode nem negá-la nem ser indiferente a ela, se quer ser boa música de fil- me160.

Miceli apresenta algumas razões sobre a escolha definitiva de Morricone pelo trabalho com o cinema:

157 Ennio Morricone, in: LUCCI, G. Morricone: Cinema e oltre. Milano: Mondadori Electa S.p.A., 2007, p.49. 158 A trilha musical de El Greco não é, na sua totalidade, "contemporânea e dodecafônica". O predomínio é de um caráter religioso com grande parte das músicas utilizando um coral tradicional e tonal. Morricone provavelmente refere-se à Unus Et Trinus-Ending, a composição mais ousada da trilha musical. 159 Ennio Morricone, in LUCCI, G. Morricone: cinema e oltre. Milano: Mondadori electa S.p.A, 2007 p.46. 160 MORRICONE, E. Il Compositore dietro alla machina da presa. Enciclopedia della musica, Torino: Giulio Einaudi editore s.p.a., v. I. Il Novecento, 2001, pp. LXVIII – 1333.

135

 a atração pelo mundo musical que se apresentou e onde já tinha certeza de poder atuar com contundência;  um ato de renúncia, talvez não consciente, determinado pelo radicalismo im- perante no âmbito da chamada música culta – fortemente ideologizado – com o qual Morricone não desejava de fato identificar-se;  o contato com o público, para Morricone, a principal razão de seu trabalho.

Por tudo isso, talvez não se deva falar de uma escolha, ao invés, de uma po- sição que coincide com uma neutralidade tipicamente artesanal, e cujos ide- ais se reduzem às qualidades intrínsecas do trabalho manufaturado e que podem ser verificadas em curto prazo, pelas reações do comprador – qual- quer pessoa, por tradição secular – e os reflexos econômicos. Um idealismo singular e talvez um pouco naif161, porque conduziria, ao invés, a um trans- formismo e a um pragmatismo entre os mais eficazes, tão entranhado que envolve todos os gêneros composicionais. E eu quero dizer tanto nos aspec- tos formais quanto nas vestimentas com que ele lidou; mas, é precisamente de contradições análogas que parece nutrir-se a sua personalidade. (MICE- LI, 1994:179)

161 Arte naïf ou arte primitiva moderna é, em termos gerais, a arte que é produzida por artistas sem preparação académica na arte que executam (o que não implica que a qualidade das suas obras seja inferior). Caracteriza-se, em termos gerais, pela simplicidade e pela falta de alguns elementos ou qualidades presentes na arte produzida por artistas com formação nessa área. (Veja também art brut, género artístico que tem algumas semelhanças.) O termo naïf presume a existência (por contraste) de uma forma académica de proceder nas artes - uma forma "edu- cada" na criação artística, que os artistas desta corrente não seguirão. Na prática, contudo, também existem "esco- las" de artistas naïf. Ao longo do tempo, o estilo foi sendo cada vez mais aceito e valorizado (http://pt.wikipedia.org/wiki/Naïf).

136

3.5 - A MÚSICA APLICADA DE MORRICONE

Produção de Morricone

141

108

65 55

32

Década de 60 Década de 70 Década de 80 Década de 90 Década de 00

Gráfico 1 – Produção de Morricone por décadas

As colunas do gráfico aprentam a quantidade de trrilhas musicais compostas por Ennio Morricone, década por década. Observa-se que o auge quantitativo de sua produção ocorreu na década de 60 e 70. Na tabela seguinte é apresentada a produção de Morricone com os filmes e os respectivos diretores em ordem cronológicaa até 2008.

Tabela 3 – Produção de Morricone

Na década de 1960 [De 1961 a 1969] ‐ 108 trabalhos 1961 (4) 1 1961 - 1 de 4 Alla scoperta dell'America - tv Sergio Giordani

2 1961 - 2 de 4 IL FEDERALE Luciano Salce 3 1961 - 3 de 4 Verrò (vídeo-clip) S.D. 4 1961 - 4 de 4 Vicino al ciel (video-clip) S.D. 1962 (4)

5 1962 - 1 de 4 DICIOTTENNI AL SOLE Camillo Mastrocinque

6 1962 - 2 de 4 I MOTORIZZATI Camillo Mastrocinque

137

7 1962 - 3 de 4 LA CUCCAGNA Luciano Salce

8 1962 - 4 de 4 LA VOGLIA MATTA Luciano Salce 1963 (4)

9 1963 - 1 de 4 DUELLO NEL TEXAS Riccardo Blasco

10 1963 - 2 de 4 I BASILISCHI Lina Wertmüller

11 1963 - 3 de 4 IL SUCCESSO Dino Risi

12 1963 - 4 de 4 LE MONACHINE Luciano Salce 1964 (11)

13 1964 - 1 de 11 E LA DONNA CREÒ L'UOMO Camillo Mastrocinque

14 1964 - 2 de 11 EL GRECO Luciano Salce

15 1964 - 3 de 11 I DUE EVASI DI SING SING Lucio Fulci

16 1964 - 4 de 11 I MALAMONDO Paolo Cavara

17 1964 - 5 de 11 I MANIACI Lucio Fulci Franco Castellano & Giuseppe 18 1964 - 6 de 11 I MARZIANI HANNO DODICI MANI Moccia

19 1964 - 7 de 11 IN GINOCCHIO DA TE Ettore Fizzarotti

20 1964 - 8 de 11 LE PISTOLE NON DISCUTONO Mario Caiano

PER UN PUGNO DI DOLLARI / A FISTFUL OF 21 1964 - 9 de 11 Sergio Leone DOLLARS

22 1964 - 10 de 11 PRIMA DELLA RIVOLUZIONE Bernardo Bertolucci

23 1964 - 11 de 11 THE BIBLE John Houston 1965 (18)

24 1965 - 1 de 18 AGENT 505: TODESFALLE BEIRUT Manfred R. Kohler

25 1965 - 2 de 18 AGENTE 077: MISSIONE BLOODY MARY Terence Hathaway

26 1965 - 3 de 18 ALTISSIMA PRESSIONE Enzo Trapani

27 1965 - 4 de 18 GLI AMANTI D'OLTRE TOMBA Mario Caiano

28 1965 - 5 de 18 I PUGNI IN TASCA Marco Bellocchio

29 1965 - 6 de 18 IDOLI CONTROLUCE Enzo Battaglia

30 1965 - 7 de 18 IL RITORNO DI RINGO Duccio Tessari

LA BATTAGLIA DI ALGERI / BATTLE OF 31 1965 - 8 de 18 Gillo Pontecorvo ALGIERS

32 1965 - 9 de 18 MENAGE ALL'ITALIANA Franco Indovina

33 1965 - 10 de 18 NON SON DEGNO DI TE Ettore Fizzarotti

34 1965 - 11 de 18 PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ / FOR A Sergio Leone

138

FEW DOLLARS MORE

35 1965 - 12 de 18 SE NON AVESSI PIÙ TE Ettore Fizzarotti

36 1965 - 13 de 18 SETTE PISTOLE PER I MACGREGOR Franco Giraldi

37 1965 - 14 de 18 SLALOM Luciano Salce , Gian Luigi 38 1965 - 15 de 18 THRILLING Polidori, Ettore Scola

39 1965 - 16 de 18 UCCELLACCI E UCCELLINI Pier Paolo Pasolini

40 1965 - 17 de 18 UNA PISTOLA PER RINGO Duccio Tessari

41 1965 - 18 de 18 UN UOMO A METÀ Vittorio de Seta 1966 (12)

42 1966 - 1 de 12 COME IMPARAI AD AMARE LE DONNE Luciano Salce

43 1966 - 2 de 12 I CRUDELI

44 1966 - 3 de 12 IL BUONO , IL BRUTTO E IL CATTIVO Sergio Leone

45 1966 - 4 de 12 L'AVVENTURIERO Terence Young

46 1966 - 5 de 12 LA RAGAZZA E IL GENERALE Pasquale Festa Campanile

LE STREGHE (EPISODE: LA TERRA VISTA 47 1966 - 6 de 12 Pier Paolo Pasolini DALLA LUNA)

48 1966 - 7 de 12 MATCHLESS Alberto Lattuada

49 1966 - 8 de 12 MI VEDRAI TORNARE Ettore Fizzarotti

50 1966 - 9 de 12 NAVAJO JOE Sergio Corbucci

51 1966 - 10 de 12 SETTE DONNE PER I MACGREGOR Franco Giraldi

52 1966 - 11 de 12 SVEGLIATI E UCCIDI Carlo Lizzani

53 1966 - 12 de 12 UN FIUME DI DOLLARI Carlo Lizzani 1967 (13)

54 1967 - 1 de 13 AD OGNI COSTO Giuliano Montaldo

55 1967 - 2 de 13 ARABELLA Mauro Bolognini

56 1967 - 3 de 13 DA UOMO A UOMO Giulio Petroni

57 1967 - 4 de 13 DALLE ARDENNE ALL'INFERNO

58 1967 - 5 de 13 DIABOLIK Mario Bava

59 1967 - 6 de 13 ESCALATION

60 1967 - 7 de 13 FACCIA A FACCIA Sergio Sollima

61 1967 - 8 de 13 GRAZIE ZIA Salvatore Samperi

62 1967 - 9 de 13 IL GIARDINO DELLE DELIZIE Silvano Agosti

63 1967 - 10 de 13 L'HAREM Marco Ferreri

139

64 1967 - 11 de 13 LA CINA È VICINA Marco Bellocchio

65 1967 - 12 de 13 LA RESA DEI CONTI Sergio Sollima

66 1967 - 13 de 13 O.K. CONNERY Alberto de Martino 1968 (26)

67 1968 - 1 de 26 C'ERA UNA VOLTA IL WEST Sergio Leone

68 1968 - 2 de 26 COMANDAMENTI PER UN GANGSTER Alfio Caltabiano

69 1968 - 3 de 26 CORRI UOMO CORRI Sergio Sollima

70 1968 - 4 de 26 CUORE DI MAMMA Salvatore Sollima

71 1968 - 5 de 26 E PER TETTO UN CIELO DI STELLE Giulio Petroni

72 1968 - 6 de 26 EAT IT Francesco Casaretti

73 1968 - 7 de 26 ECCE HOMO Bruno Alberto Gaburro

74 1968 - 8 de 26 FRAULEIN DOKTOR Alberto Lattuada

75 1968 - 9 de 26 GALILEO Liliana Cavani

76 1968 - 10 de 26 GUN'S FOR SAN SEBASTIAN Henri Verneuil 77 1968 - 11 de 26 H2S Roberto Faenza

78 1968 - 12 de 26 IL GRANDE SILENZIO Sergio Corbucci

79 1968 - 13 de 26 IL MERCENARIO Sergio Corbucci Adolfo Celi, Vittorio 80 1968 - 14 de 26 L'ALIBI Gassmann, Luciano Lucignani

81 1968 - 15 de 26 LA MONACA DI MONZA Eriprando Visconti

82 1968 - 16 de 26 THE RED TENT Mikhail Kalatozov

83 1968 - 17 de 26 METTI, UNA SERA A CENA Giuseppe Patroni Griffi

84 1968 - 18 de 26 PARTNER Bernardo Bertolucci

85 1968 - 19 de 26 ROMA COME CHICAGO Alberto Martino

86 1968 - 20 de 26 RUBA AL PROSSIMO TUO Francesco Maselli

87 1968 - 21 de 26 SCUSI, FACCIAMO L'AMORE Vittorio Caprioli

88 1968 - 22 de 26 TEOREMA Pier Paolo Pasolini

89 1968 - 23 de 26 TEPEPA Giulio Petroni

90 1968 - 24 de 26 UN BELLISSIMO NOVEMBRE Mauro Bolognini

91 1968 - 25 de 26 UN TRANQUILLO POSTO DELLA CAMPAGNA Elio Petri

92 1968 - 26 de 26 VERGOGNA SCHIFOSI Mauro Severino 1969 (16)

93 1969 - 1 de 16 GIOTTO - TV DOCUMENTARY - Luciano Emmer

94 1969 - 2 de 16 GOTT MIT UNS Giuliano Montaldo

140

95 1969 - 3 de 16 I CANNIBALI Liliana Cavani

INDAGINE SU UN CITTADINO AL DI SOPRA DI 96 1969 - 4 de 16 Elio Petri OGNI SOSPETTO

97 1969 - 5 de 16 L'ASSOLUTO NATURALE Mauro Bolognini

98 1969 - 6 de 16 L'UCCELLO DALLE PIUME DI CRISTALLO Dario Argento

99 1969 - 7 de 16 LA DONNA INVISIBILE Paolo Spinola

100 1969 - 8 de 16 LA STAGIONE DEI SENSI Massimo Franciosa

101 1969 - 9 de 16 LE CLAN DEI SICILIANI Henri Verneuil

102 1969 - 10 de 16 METELLO Mauro Bolognini

103 1969 - 11 de 16 QUEIMADA Gillo Pontecorvo

104 1969 - 12 de 16 SAI COSA FACEVA STALIN ALLE DONNE? Maurizio Rivelani

105 1969 - 13 de 16 SENZA SAPERE NIENTE DI LEI Luigi Comencini

UCCIDETE IL VITELLO GRASSO E 106 1969 - 14 de 16 Salvatore Samperi ARROSTITELO

107 1969 - 15 de 16 UN ESERCITO DI 5 UOMINI Don Taylor

108 1969 - 16 de 16 UNA BREVE STAGIONE Renato Castellani Na década de 1960 [De 1961 a 1969] - 108 trabalhos Na década de 1970 [De 1970 a 1979] - 141 trabalhos 1970 (10)

109 1970 - 1 de 10 CITTÀ VIOLENTA Sergio Sollima

110 1970 - 2 de 10 GIOCHI PARTICOLARI Franco Indovina

111 1970 - 3 de 10 HORNET'S NEST Phil Karlson

112 1970 - 4 de 10 LA CALIFFA Alberto Bevilacqua

113 1970 - 5 de 10 LA MOGLIE PIÙ BELLA Damiano Damiani

LE FOTO PROIBITE DI UNA SIGNORA 114 1970 - 6 de 10 Luciano Ercoli PERBENE

115 1970 - 7 de 10 QUANDO LE DONNE AVEVANO LA CODA Pasquale Festa Campanile

116 1970 - 8 de 10 THE MEN FROM SHILOH - TV - Burt Kennedy

117 1970 - 9 de 10 TWO MULES FROM SISTER SARA Don Siegel

118 1970 - 10 de 10 VAMOS A MATAR, COMPANEROS Sergio Corbucci 1971 (23)

119 1971 - 1 de 23 ADDIO FRATELLO CRUDELE Giuseppe Patroni Griffi

CORREVA L'ANNO DI GRAZIA 1870 (FILM) / 120 1971 - 2 de 23 Alfredo Giannetti TRE DONNE - TV -

141

121 1971 - 3 de 23 FORZA G Duccio Tessari

122 1971 - 4 de 23 GIORNATA NERA PER L'ARIETE Luigi Bazzoni

123 1971 - 5 de 23 GIÙ LA TESTA / A FISTFUL OF DYMITE Sergio Leone

124 1971 - 6 de 23 GLI OCCHI FREDDI DELLA PAURA Enzo G. Castellani

125 1971 - 7 de 23 IL GATTO A NOVE CODE Dario Argento

126 1971 - 8 de 23 L'INCONTRO Piero Schivazappa

127 1971 - 9 de 23 L'ISTRUTTORIA È CHIUSA: DIMENTICHI Damiano Damiani

128 1971 - 10 de 23 LA CLASSE OPERAIA VA IN PARADISO Elio Petri

LA CORTA NOTTE DELLE BAMBOLE DI 129 1971 - 11 de 23 Aldo Lado VETRO

130 1971 - 12 de 23 LA TARANTOLA DAL VENTRE NERO Paolo Cavara

131 1971 - 13 de 23 LE CASSE Henri Verneuil

132 1971 - 14 de 23 LUI PER LEI Claudio Rispoli

133 1971 - 15 de 23 MADDALENA Jerzy Kawalerowicz

134 1971 - 16 de 23 MIO CARO ASSASSINO Tonino Valeri

135 1971 - 17 de 23 OCEANO Folco Quilici

136 1971 - 18 de 23 QUATTRO MOSCHE DI VELLUTO GRIGIO Dario Argento

137 1971 - 19 de 23 SACCO E VANZETTI Giuliano Montaldo

138 1971 - 20 de 23 SANS MOBILE APPARANT Philippe Labro

TRE NEL MILLE (FILM) / STORIE DELL'ANNO 139 1971 - 21 de 23 Franco Indovina 1000 (TV)

140 1971 - 22 de 23 UNA LUCERTOLA CON LA PELLE DI DONNA Lucio Fulci

141 1971 - 23 de 23 VERUSCHKA Franco Rubratelli 1972 (24)

ANCHE SE VOLESSI LAVORARE, CHE 142 1972 - 1 de 24 Flavio Mogherini FACCIO?

143 1972 - 2 de 24 BLUEBEARD Edward Dmy

CHE C'ENTRIAMO NOI CON LA 144 1972 - 3 de 24 Sergio Corbucci RIVOLUZIONE?

145 1972 - 4 de 24 CHI L'HA VISTA MORIRE? Aldo Lado

146 1972 - 5 de 24 COSA AVETE FATTO A SOLANGE? Massimo Dallamano

147 1972 - 6 de 24 D'AMORE SI MUORE Carlo Carnuchio

148 1972 - 7 de 24 I BAMBINI CI CHIEDONO PERCHÉ Nino Zanchin

149 1972 - 8 de 24 IL DIAVOLO NEL CERVELLO Sergio Sollima

142

150 1972 - 9 de 24 IL MAESTRO E MARGHERITA Aleksander Petrovic

IMPUTAZIONE DI OMICIDIO PER UNO 151 1972 - 10 de 24 Mauro Bolognini STUDENTE

152 1972 - 11 de 24 L'ATTENTAT Yves Boisset

L'ITALIA VISTA DAL CIELO - EPISODE: 153 1972 - 12 de 24 Folco Quilici SARDEGNA (TV)

154 1972 - 13 de 24 L'ULTIMO UOMO DI SARA Virginia Onorato

155 1972 - 14 de 24 L'UOMO E LA MAGIA - TV DOCUMENTARY - Sergio Giordani

LA BANDA J & S: CRONACA CRIMINALE DEL 156 1972 - 15 de 24 Sergio Corbucci FAR WEST

157 1972 - 16 de 24 LA COSA BUFFA Aldo Lado

158 1972 - 17 de 24 LA PROPRIETÀ NON È PIÙ UN FURTO Elio Petri

LA VITA A VOLTE È MOLTO DURA, VERO 159 1972 - 18 de 24 Giulio Petroni PROVVIDENZA?

160 1972 - 19 de 24 LE DUE STAGIONI DELLA VITA Samy Pavel

161 1972 - 20 de 24 QUANDO L'AMORE È SENSUALITÀ Vittorio de Sisti

162 1972 - 21 de 24 QUANDO LA PREDA È L'UOMO Vittorio de Sisti

163 1972 - 22 de 24 QUESTA SPECIE D'AMORE Alberto Bevilacqua

164 1972 - 23 de 24 UN UOMO DA RISPETTARE Michele Lupo

165 1972 - 24 de 24 VIOLENZA: QUINTO POTERE Florestano Vancini 1973 (10)

166 1973 - 1 de 10 CI RISIAMO: VERO PROVVIDENZA? Alberto de Martino

167 1973 - 2 de 10 CRESCETE E MOLTIPLICATEVI Giulio Petroni

168 1973 - 3 de 10 GIORDANO BRUNO Giuliano Montaldo

169 1973 - 4 de 10 MY NAME IS NOBODY Tonino Valeri

170 1973 - 5 de 10 IL SORRISO DEL GRAND ETENTATORE Damiano Damiani

171 1973 - 6 de 10 LE SERPENT Henri Verneuil

172 1973 - 7 de 10 LIBERA AMORE MIO Mauro Bolognini

173 1973 - 8 de 10 RAPPRESAGLIA George Pan Cosmatos

174 1973 - 9 de 10 REVOLVER Sergio Sollima

175 1973 - 10 de 10 SEPOLTA VIVA Aldo Lado 1974 (16)

176 1974 - 1 de 16 ALLOSANFAN Paolo & Vittorio Taviani

177 1974 - 2 de 16 FATTI DI GENTE PERBENE Mauro Bolognini

143

178 1974 - 3 de 16 ARABIAN NIGHTS Pier Paolo Pasolini

IL GIRO DEL MONDO DEGLI INNAMORATI DI 179 1974 - 4 de 16 Cesare Perfetto PEYNET

180 1974 - 5 de 16 L'ANTICRISTO Alberto de Martino

181 1974 - 6 de 16 LA CUGINA Aldo Lado

182 1974 - 7 de 16 LA FAILLE Peter Fleischmann

183 1974 - 8 de 16 LE SECRET Robert Enrico

184 1974 - 9 de 16 LE TRIO INFERNAL Francis Girod

185 1974 - 10 de 16 LEONOR Juan Bunuel

MILANO ODIA: LA POLIZIA NON PUÒ 186 1974 - 11 de 16 SPARARE

187 1974 - 12 de 16 MOSÈ - TV SERIES - Gianfranco de Bosio

188 1974 - 13 de 16 MUSSOLINI, ULTIMO ATTO Carlo Lizzani

189 1974 - 14 de 16 SESSO IN CONFESSIONALE Vittorio de Sisti

190 1974 - 15 de 16 Umberto Lenzi

191 1974 - 16 de 16 SPAZIO 1999 - TV - Lee H. Katzin 1975 (14)

192 1975 - 1 de 14 ATTENTI AL BUFFONE Alberto Bevilacqua

193 1975 - 2 de 14 DER RICHTER UND SEIN HENKER Maximilian Schell

194 1975 - 3 de 14 DIVINA CREATURA Giuseppe Patroni Griffi

195 1975 - 4 de 14 GENTE DI RISPETTO

196 1975 - 5 de 14 L'ULTIMO TRENO DELLA NOTTE Aldo Lado

197 1975 - 6 de 14 LA DONNA DELLA DOMENICA Luigi Comencini

198 1975 - 7 de 14 LABBRA DI LURIDO BLU Giulio Petroni

199 1975 - 8 de 14 MACCHIE SOLARI Armando Crispino

200 1975 - 9 de 14 PER LE ANTICHE SCALE Mauro Bolognini

201 1975 - 10 de 14 PEUR SUR LA VILLE Henri Verneuil

202 1975 - 11 de 14 SALÒ O LE 120 GIORNATE DI SODOMA Pier Paolo Pasolini

203 1975 - 12 de 14 STORIE DI VITA E MALAVITA Carlo Lizzani

204 1975 - 13 de 14 THE HUMAN FACTOR Edward Dmytryck

205 1975 - 14 de 14 UN GENIO, DUE COMPARI, UN POLLO Damiano Damiani 1976 (10)

206 1976 - 1 de 10 IL DESERTO DEI TARTARI Valerio Zurlini

207 1976 - 2 de 10 L'AGNESE VA A MORIRE Giuliano Montaldo

144

208 1976 - 3 de 10 L'EREDITÀ FERRAMONTI Mauro Bolognini

209 1976 - 4 de 10 LE RICAIN Jean Marie Pallardy

210 1976 - 5 de 10 NOVECENTO Bernardo Bertolucci

211 1976 - 6 de 10 PER AMORE Mino Giarda

212 1976 - 7 de 10 RENÈ LA CANNE Francis Girod

213 1976 - 8 de 10 SAN BABILA ORE 20: UN DELITTO INUTILE Carlo Lizzani

214 1976 - 9 de 10 TODO MODO Elio Petri

215 1976 - 10 de 10 UNA VITA VENDUTA Aldo Florio 1977 (10)

216 1977 - 1 AUTOSTOP ROSSO SANGUE Pasquale Festa Campanile

217 1977 - 2 DRAMMI GOTICI - TV SERIES - Giorgio Bandini

218 1977 - 3 EXORCIST II: THE HERETIC John Boorman

219 1977 - 4 FORZA ITALIA Roberto Faenza

220 1977 - 5 HOLOCAUST 2000 Alberto de Martino

221 1977 - 6 IL GATTO Luigi Comencini

222 1977 - 7 IL MOSTRO Luigi Zampa

223 1977 - 8 IL PREFETTO DI FERRO Pasquale Squitieri

224 1977 - 9 ORCA...KILLER WHALE Michael Anderson

225 1977 - 10 STATO INTERESSANTE Sergio Nascal 1978 (12)

226 1978 -1 de 12 122 RUE DE PROVENCE Christian Gion

227 1978 - 2 de 12 CORLEONE Pasquale Squitieri

228 1978 - 3 de 12 COSÌ COME SEI Alberto Lattuada

229 1978 - 4 de 12 DAYS OF HEAVEN Terrence Mallick

DOVE VAI IN VACANZA? - EPISODE: SARÒ 230 1978 - 5 de 12 Mauro Bolognini TUTTA PER TE

231 1978 - 6 de 12 IL PRIGIONIERO - TV SERIES - Aldo Lado

232 1978 - 7 de 12 L'IMMORALITÀ Massimo Pirri

233 1978 - 8 de 12 L'UMANOIDE Aldo Lado

234 1978 - 9 de 12 LA CAGE AUX FOLLES Edouard Molinaro

235 1978 - 10 de 12 LE MANI SPORCHE Elio Petri

236 1978 - 11 de 12 NOI LAZZARONI - TV SERIES - Giorgio Pelloni

237 1978 - 12 de 12 VIAGGIO CON ANITA 1979 (12)

145

238 1979 - 1 de 12 BLOODLINE Terence Young

239 1979 - 2 de 12 BUONE NOTIZIE Elio Petri

240 1979 - 3 de 12 DEDICATO AL MARE EGEO Masuo Ikedal

DIETRO IL PROCESSO - EPISODES: IL CASO 241 1979 - 4 de 12 Franco Biancacci PASOLINI, IL CASO MONTESI

242 1979 - 5 de 12 I....COME ICARE Henri Verneuil

243 1979 - 6 de 12 IL GIOCATTOLO Giuliano Montaldo

244 1979 - 7 de 12 IL PRATO Paolo & Vittorio Taviani

245 1979 - 8 de 12 INVITO ALLO SPORT - TV DOCUMENTARY - Folco Quilici

246 1979 - 9 de 12 LA LUNA Bernardo Bertolucci

247 1979 - 10 de 12 OGRO Gillo Pontecorvo Daniele D'Anzi, Marcel 248 1979 - 11 de 12 ORIENT EXPRESS - TV SERIES - Moussy, Bruno Gantillon

249 1979 - 12 de 12 PROFESSIONE FIGLIO Stefano Rolla Na década de 1970 [De 1970 a 1979] - 141 trabalhos Na década de 1980 [De 1980 a 1989] - 65 trabalhos 1980 (12)

250 1980 - 1 de 12 IL BANDITO DAGLI OCCHI AZZURRI Alfredo Giannetti

251 1980 - 2 de 12 IL LADRONE Pasquale Festa Campanile

252 1980 - 3 de 12 IL PIANETA D'ACQUA - TV DOCUMENTARY - Carlo Alberto Pinelli

253 1980 - 4 de 12 LA BANQUIERE Francis Girod

254 1980 - 5 de 12 LA CAGE AUX FOLLES II Edouard Molinaro

LA STORIA VERA DELLA SIGNORA DELLE 255 1980 - 6 de 12 Mauro Bolognini CAMELIE

256 1980 - 7 de 12 SI SALVI CHI VUOLE Roberto Faenza

257 1980 - 8 de 12 STARK SYSTEM Armenia Balducci

258 1980 - 9 de 12 THE ISLAND Michael Ritchie

259 1980 - 10 de 12 UN SACCO BELLO Carlo Verdone

260 1980 - 11 de 12 UOMINI E NO Valentino Orsini

261 1980 - 12 de 12 WINDOWS Gordon Willis 1981 (7)

262 1981 - 1 de 7 BIANCO, ROSSO E VERDONE Carlo Verdone

263 1981 - 2 de 7 BUTTERFLY Matt Cimber

264 1981 - 3 de 7 LA DISUBBIDIENZA Aldo Lado

146

265 1981 - 4 de 7 LA TRAGEDIA DI UN UOMO RIDICOLO Bernardo Bertolucci

266 1981 - 5 de 7 LE PROFESSIONNEL Georges Lautner

267 1981 - 6 de 7 OCCHIO ALLA PENNA Michele Lupo

268 1981 - 7 de 7 SO FINE Andrew Bergman 1982 (8)

269 1982 - 1 de 8 Roberto Faenza

270 1982 - 2 de 8 ESPION LÈVE-TOI Yves Boisset

271 1982 - 3 de 8 LE RUFFIAN Josè Giovanni

272 1982 - 4 de 8 MARCO POLO - TV SERIES - Giuliano Montaldo

273 1982 - 5 de 8 THE LINK Alberto de Martino

274 1982 - 6 de 8 LA COSA / THE THING John Carpenter

275 1982 - 7 de 8 TREASURE OF THE FOUR CROWNS Ferdinando Baldi

276 1982 - 8 de 8 CANE BIANCO / WHITE DOG Samuel Fuller 1983 (8)

277 1983 - 1 de 8 A TIME TO DIE Matt Cimber

278 1983 - 2 de 8 HUNDRA Matt Cimber

279 1983 - 3 de 8 LA CHIAVE Tinto Brass

280 1983 - 4 de 8 LE MARGINAL Jacques Deray

281 1983 - 5 de 8 LES VOULERS DE LA NUIT Samuel Fuller

282 1983 - 6 de 8 NANA Dan Wolman

283 1983 - 7 de 8 SAHARA Andrew L. McLagen

284 1983 - 8 de 8 THE SCARLET AND THE BLACK - TV - Jerry London 1984 (2)

285 1984 - 1 de 2 DON'T KILL GOD Jacqueline Manzano

C'ERA UNA VOLTA IN AMERICA / ONCE 286 1984 - 2 de 2 Sergio Leone UPON A TIME IN AMERICA 1985 (6)

287 1985 - 1 de 6 IL PENTITO Pasquale Squitieri

LA CAGE AUX FOLLES III - ELLES SE 288 1985 - 2 de 6 Georges Lautner MARIENT

289 1985 - 3 de 6 LA GABBIA Giuseppe Patroni Griffi

290 1985 - 4 de 6 LA PIOVRA 2 - TV SERIES - Florestano Vancini

291 1985 - 5 de 6 RED SONJA Richard Fleischer

292 1985 - 6 de 6 VIA MALA - TV SERIES - Tom Toelle

147

1986 (3)

293 1986 - 1 de 3 LA VENEXIANA Mauro Bolognini

294 1986 - 2 de 3 THE MISSION Roland Joffè

295 1986 - 3 de 3 GLI OCCHIALI D'ORO Giuliano Montaldo 1987 (8)

296 1987 - 1 de 8 FRANTIC

297 1987 - 2 de 8 LA PIOVRA 3 - TV SERIES - Luigi Perelli

298 1987 - 3 de 8 MOSCA ADDIO Mauro Bolognini

299 1987 - 4 de 8 QUARTIERE Silvano Agosti

300 1987 - 5 de 8 RAMPAGE William Friedkin

301 1987 - 6 de 8 SECRET OF THE SAHARA - TV SERIES - Alberto Negrin

302 1987 - 7 de 8 THE DAY BEFORE Giuliano Montaldo

303 1987 - 8 de 8 GLI INTOCCABILI / THE UNTOUCHABLES Brian De Palma 1988 (2)

304 1988 - 1 de 2 A TIME OF DESTINY Gregory Nava

305 1988 - 2 de 2 CINEMA PARADISO Giuseppe Tornatore 1989 (9)

306 1989 - 1 de 9 ACHILLE LAURO - TV - Alberto Negrin

307 1989 - 2 de 2 ATAME! Pedro Almodovar

308 1989 - 3 de 9 VITTIME DI GUERRA / CASUALTIES OF WAR Brian De Palma

309 1989 - 4 de 9 FAT MAN AND LITTLE BOY Roland Joffè

310 1989 - 5 de 9 GLI ANGELI DEL POTERE - TV - Giorgio Albertazzi

311 1989 - 6 de 9 I PROMESSI SPOSI - TV SERIES - Salvatore Nocita

312 1989 - 7 de 9 LA PIOVRA 4 - TV SERIES - Luigi Perelli

313 1989 - 8 de 9 TEMPO DI UCCIDERE Giuliano Montaldo

314 1989 - 9 de 9 THE ENDLESS GAME - TV SERIES - Bryan Forbes Na década de 1980 [De 1980 a 1989] - 65 trabalhos Na década de 1990 [De 1990 a 1999] - 55 trabalhos 1990 (9)

315 1990 - 1 de 9 CACCIATORI DI NAVI Folco Quilici

316 1990 - 2 de 9 DIMENTICARE PALERMO

317 1990 - 3 de 9 HAMLET Franco Zeffirelli

318 1990 - 4 de 9 ITALIANA PETROLI (SHORT FILM) Giuseppe Tornatore

319 1990 - 5 de 9 LA PIOVRA 5 - IL CUORE DEL PROBLEMA - Luigi Perelli

148

TV SERIES -

320 1990 - 6 de 9 MIO CARO DOTTORE GRASLER Roberto Faenza

321 1990 - 7 de 9 STANNO TUTTI BENE Giuseppe Tornatore

322 1990 - 8 de 9 STATE OF GRACE Phil Joanoul

323 1990 - 9 de 9 TRE COLONNE IN CRONACA Carlo Vanzina 1991 (7)

324 1991 - 1 de 7 BUGSY Barry Levinson

325 1991 - 2 de 7 CROSSING THE LINE David Leland

326 1991 - 3 de 7 IL PRINCIPE DEL DESERTO - TV SERIES - Duccio Tessari Giuseppe Tornatore, Marco

327 1991 - 4 de 7 LA DOMENICA SPECIALMENTE Tullio Giordana, Giuseppe Bertolucci

328 1991 - 5 de 7 LA VILLA DEL VENERDI Mauro Bolognini

329 1991 - 6 de 7 MONEY Steven Hilliard Stern

330 1991 - 7 de 7 PIAZZA DI SPAGNA - TV SERIES - Florestano Vancini 1992 (5)

331 1992 - 1 de 5 CITY OF JOY Roland Joffè

332 1992 - 2 de 5 IL LUNGO SILENZIO Margarethe von Trotta

333 1992 - 3 de 5 JONA CHE VISSE NELLA BALENA Roberto Faenza

334 1992 - 4 de 5 LA PIOVRA 6 - TV SERIES - Luigi Perelli

335 1992 - 5 de 5 UNA STORIA ITALIANA - TV - Stefano Reali 1993 (3)

336 1993 - 1 de 3 IN THE LINE OF FIRE Wolfgang Petersen

337 1993 - 2 de 3 LA BIBBIA: ABRAMO - TV - Joseph Sargent

338 1993 - 3 de 3 LA SCORTA Ricky Tognazzi 1994 (6)

339 1994 - 1 de 6 UNA PURA FORMALITÀ / A PURE FORMALITY Giuseppe Tornatore

340 1994 - 2 de 6 DISCLOSURE Barry Levinson Enrico Maria Salerno, Richard 341 1994 - 3 de 6 IL BARONE - TV SERIES - T. Heffron

342 1994 - 4 de 6 LA NOTTE E IL MOMENTO Anna Marie Tato

343 1994 - 5 de 6 LOVE AFFAIR Warren Beatty

344 1994 - 6 de 6 WOLF Mike Nichols 1995 (6)

149

345 1995 - 1 de 6 CON RABBIA E CON AMORE Alfredo Angeli

346 1995 - 2 de 6 L'UOMO DELLE STELLE Giuseppe Tornatore

347 1995 - 3 de 6 L'UOMO PROIETTILE Silvano Agosti

348 1995 - 4 de 6 LA PIOVRA 7 - TV SERIES - Luigi Perelli

349 1995 - 5 de 6 PASOLINI, UN DELITTO ITALIANO Marco Tullio Giordana

350 1995 - 6 de 6 Roberto Faenza 1996 (7)

351 1996 - 1 de 7 I MAGI RANDAGI Sergio Citti

352 1996 - 2 de 7 LA LUPA Gabriele Lavia

353 1996 - 3 de 7 LA SINDROME DI STENDHAL Dario Argento

354 1996 - 4 de 7 LOLITA Adrian Lyne

355 1996 - 5 de 7 NINFA PLEBEA Lina Wertmuller

356 1996 - 6 de 7 NOSTROMO - TV SERIES - Alastar Reid

357 1996 - 7 de 7 VITE STROZZATE Ricky Tognazzi 1997 (1)

358 1997 - 1 de 1 U-TURN Oliver Stone 1998 (4)

359 1998 - 1 de 4 BULWORTH Warren Beatty

360 1998 - 2 de 4 IN FONDO AL CUORE - TV - Luigi Perelli

361 1998 - 3 de 4 LA CASA BRUCIATA - TV - Massimo Spano

362 1998 - 4 de 4 LA LEGGENDA DEL PIANISTA SULL'OCEANO Giuseppe Tornatore 1999 (7)

363 1999 - 1 de 7 IL FANTASMA DELL'OPERA Dario Argento

364 1999 - 2 de 7 IL QUARTO RE Stefano Reali

365 1999 - 3 de 7 ULTIMO - TV - Stefano Reali

366 1999 - 4 de 7 ULTIMO 2 - TV - Stefano Reali

367 1999 - 5 de 7 I GUARDIANI DEL CIELO Alberto Negrin

368 1999 - 6 de 7 MORTE DI UNA RAGAZZA PERBENE Luigi Perelli

369 1999 - 7 de 7 WHAT DREAMS MAY COME Vincent Ward Na década de 1990 [De 1990 a 1999] - 55 trabalhos Na década de 2000 [De 2000 até 2010] - 32 trabalhos 2000 (4)

370 2000 - 1 de 4 CANONE INVERSO Ricky Tognazzi

371 2000 - 2 de 4 MISSION TO MARS Brian De Palma

150

372 2000 - 3 de 4 VATEL Roland Joffè

373 2000 - 4 de 4 MALÈNA Giuseppe Tornatore 2001 (2)

374 2001 - 1 de 2 GIOCO DI RIPLEY Liliana Cavani

375 2001 - 2 de 2 AIDA DEGLI ALBERI - [ANIMAÇÃO] Guido Manuli 2002 (6)

376 2002 - 1 de 6 PERLASCA, UN EROE ITALIANO - TV - Alberto Negrin

377 2002 - 2 de 6 SENSO 2000 Tinto Brass

378 2002 - 3 de 6 UN DIFETTO DI FAMIGLIA - TV - Alberto Simone

379 2002 - 4 de 6 GIOVANNI XXIII - TV - Ricky Tognazzi

380 2002 - 5 de 6 MUSASHI - TV - Mitsunobi Ozaki

381 2002 - 6 de 6 LA LUZ PRODIGIOSA Michele Hermoso 2003 (3)

382 2003 - 1 de 3 I GUARDIANI DELLE NUVOLE Luciano Odorisio

383 2003 - 2 de 3 72 METRI Vladimir Khatinenko

384 2003 - 3 de 3 AL CUORE SI COMANDA Giovanni Morricone 2004 (2)

385 2004 - 1 de 2 E SORRIDENDO LA UCCISE Florestano Vancini

386 2004 - 2 de 3 SORSTALANSAG Lajos Voltai 2005 (4)

387 2005 - 1 de 4 IL CUORE NEL POZZO - TV Alberto Negrini

388 2005 - 2 de 4 CEFALONIA - TV Riccardo Dilani

389 2005 - 3 de 4 UN UOMO DIVENTATO PAPA - TV Giacomo Battiato

390 2005 - 4 de 4 LUCIA - TV Pasquale Pozzessere 2006 (5)

391 2006 - 1 de 5 BARTALI - TV Alberto Negrini

392 2006 - 2 de 5 LA PROVINCIALE - TV Pasquale Pozzese

393 2006 - 3 de 5 FALCONE - TV Antonio e Andrea Frezzia

394 2006 - 4 de 5 UN PAPA RIMASTO UOMO - TV Giacomo Battiato

395 2006 - 5 de 5 LA SCONOSCIUTA . Giuseppe Tornatore 2007 (3)

396 2007 - 1 de 3 I DEMONI DI SAN PIETROBURGO Giuliano Montaldo

397 2007 - 2 de 3 L'ULTIMO DEI CORLEONESI - TV - Alberto Negrin

398 2007 – 3 de 3 TUTTE LE DONNE DELLA MIA VITA Simona Izzo

151

2008 (3)

399 2008 - 1 de 3 PANE E LIBERTA (DI VITTORIO) - TV Alberto Negrin

400 2008 – 2 de 3 RISOLUZIONE 819 Giacomo Battiato

401 2008 – 3 de 3 BÀARIA – LA PORTA DEL VENTO Giuseppe Tornatore

3.6 - PREMIAÇÕES E RECONHECIMENTOS

Tabela 4 – Premiações e Reconhecimentos

Premiações e Reconhecimentos

Recebeu oito prêmios Nastro d’Argento pelas trilhas musicais de "Per un pugno di dollari"; "Metti una sera a cena"; "Sacco e Vanzetti"; "C'era una volta in America"; "The Untouchobles"; "La Sconosciuta". Recebeu cinco prêmios "BAFTA" pelas trilhas sonoras musicais de "C'era una volta in America"; "The Mission"; "The Untouchables"; "Nuovo Cinema Paradiso"; "Days of heaven". Recebeu cinco indicações ao Oscar pelas trilhas sonoras musicais dos filmes "Days of heaven"; "The Mission"; "The Untouchables"; "Bugsy"; "Malèna". Recebeu três Globos de Ouro pelas trilhas sonoras musicais de "La leggenda del pianista sull'oceano"; "The Mission". Recebeu o prêmio "Grammy Award" pela trilha sonora musical do filme "The Untouchables". Recebeu sete prêmios "David di Donatello" pelas trilhas sonoras musicais dos filmes "Gli occhiali d'oro"; "Nuovo Cinema Paradiso"; "Stanno tutti bene"; "Jonas che visse nella balena"; "Canone Inverso"; "La Sconosciuta". Recebeu o prêmio "Ninth Annual Ace Winner" pela trilha donora musical do filme "Il giorno prima". Em 1989 recebeu o prêmio "Prado d'Oro" à carreira durante o Festival del Cinema de Locarno. Em 1990 recebeu o "Prix Fondation Sacem" do Festival de Cinema de Cannes; Em 1991, o musicólogo inglês Philip Tagg propôs Morricone à laurea 'Honoris Causa' na Universidade de Goeteborg; Em 1992 foi nomeado membro da Commissione della Istituzione Universitaria dei Concerti di Roma, é chamado para fazer parte do juri da 49ª Mostra de Cinema de Veneza, o Ministro francês da cultura Jack Lang lhe confere o título de Officier de l'Ordre des Arts et des Lettres, recebeu o prêmio "Grolla d'oro" à carreira em Saint Vincent. Em 1993 recebeu o prêmio Efebo d'Argento pela trilha sonora musical do filme Jonas che visse nella balena. Em 1994 é o primeiro compositor não americano a receber o prêmio à carreira da Society for Preservation of Film Music e recebeu o "Golden Soundtrack" da American Society of Composers, Authors & Publisher. Em 1995, a proposta do presidente do conselho dos ministros Lamberto Dini, o presidente da República, Oscar Luigi Scalfaro, o premia com o título de Commendatore dell'Ordine al Merito della Repubblica Italia- na. Philip Tagg (Institute of Popular Music, University of Liverpool) propõe Morricone para o Dottorato

152

Onorario in Musica; Recebeu o "Leone d'Oro" à carreira na 52ª Biennale del Cinema di Venezia. Em 1995 recebeu o prêmio "Rota" do istituito dalla CAM Edizioni e dalla rivista "Variety". Em 1996 é nomeado acadêmico de Santa Cecília. Em 1998 recebeu o "Premio Colombo". Em 1999 vence em Berlim o European Film Award. Em 2000, sua proposta para o Ministro per i Beni e le Attività Culturali, o Presidente da República lhe confere o Diploma e la Medaglia di Prima Classe di Benemerito dell'Arte e della Cultura, e a Università di Cagliari lhe confere a Laurea "Honoris Causa". Em 2001 è nomeado socio honorário Claustro Universitario des las Artes de Alcala (Madri). Em 2002 recebeu a Laurea "Honoris Causa" da Seconda Università di Roma. Em 2003 recebeu do Ministro degli Esteri a medalha de ouro como representante da cultura italiana no mundo. Em 2007 recebeu o PREMIO OSCAR ALLA CARRIERA For his magnificent and multifaceted contributions to the Art of Film Music. Em 2008, Bruce Springsteen, venceu o Grammy como melhor artista de rock instrumental com Once Upon a Time in the West, do álbum We all Love Ennio Morricone. No campo discográfico recebeu 27 discos de ouro, 6 discos de platina, 3 Targhe d'Oro e, em 1981, o prêmio "Critica discografica" pela trilha Sonora musical do filme "Il Prato".

3.7 - CONCERTOS DE MÚSICA DE CINEMA

A primeira vez que Ennio Morricone regeu um Concerto com músicas reti- radas de algumas de suas trilhas musicais do cinema foi em 1983. Com Gianluigi Gelmetti, a resenha romana Film in concerto, promovida pelo Assessorato alla Cultu- ra de Roma em colaboração com a RAI.

A idéia foi executar músicas para filmes com a Orquestra e o Coral da RAI de Roma, contra o fundo do anfiteatro do Parco dei Daini. Foi a primeira iniciativa do gênero na Italia e foram escolhidas contribuições musicais en- tre as mais importantes da história do cinema. Foram executadas obras de Max Steiner, Bernard Hermann, Jerry Goldsmith, Leonard Bernstein, Mau- rice Jarre, Nino Rota e John Williams, além, naturalmente, de algumas mi- nhas. O clima cultural em que se colocava a manifestação era naqueles anos particularmente estimulante, enquanto estavam nascendo as primeiras dis- cussões sobre este gênero de música: foram organizadas conferências e de- bates. Também alguns musicólogos começavam a mostrar interesse por esse aspecto da praxe compositiva. Em suma, existia no ar uma reflexão crítica sobre o argumento e, desse ponto de vista, não existe dúvida que a iniciativa do Parco dei Daini caísse bem. Certo, não se pode dizer que os velhos pre-

153

conceitos tivessem desaparecido: recordo que na ocasião alguns regentes de orquestra da RAI criticaram asperamente a idéia dos concertos de música para filmes. Ninguém pôde negar que houvessem más músicas na história da trilha sonora ou que ainda muitos compositores fossem diletantes nesse campo de trabalho, mas, distinções foram feitas. Mesmo assim, foi suficiente pensar em figuras de compositores como Nino Rota, que dedicaram ao cine- ma grande parte de suas atividades artísticas. No entanto, um dado é cor- reto: o sucesso de público daquele evento foi extraordinário. (Ennio Morri- cone162)

Desde 2001, Morricone vem se dedicando muito a esse tipo de atividade. Agrupando suas composições fílmicas de maior sucesso em blocos temáticos, seme- lhantes a suítes ou rapsódias, ele excursiona pelo mundo, divulgando suas composi- ções.

Tabela 5 – Concertos de Música de Cinema

Apresentações 2001 10, 11 de março - Londres, Barbican Center 2002 14 de julho - Ravenna, Palazzo Mauro De Andrè Primeira apresentação de Voci dal Silenzio para voz recitante, coral e orquestra, dirigida pelo maestro Riccardo Muti, patrocinada pelo Festival de Ravenna 28 setembro – Verona, Arena di Verona 21 de outubro - Paris, Palácio do Congresso 2003 26 de julho - Napoli, Arena Flegrea 10 de novembro - Londres, Royal Albert Hall 27, 28, 29 de novembro - Roma, Auditorium - Sala Santa Cecilia 2004 26 de março - Milano, Mazdapalace 25 de abril - Budapest, Sportsarena 4, 5, 6 de junho - Tokyo International Forum 28 de junho - Lisboa, Monsanto 1 de julho - S. Giovanni Rotondo, Inaugurazione nuova Chiesa S. Pio 11 de setembro - Arena di Verona

162 In: LUCCI, G. Morricone: Cinema e oltre. Milano: Mandadori Electa S.p.A., 2007, p.234.

154

18 de setembro - Roma, Campidoglio, Apertura Notte Bianca 20 de outubro - Monaco, Philharmonia Gasteig - Teatro dell'orchestra della TV Bavarese 16 de novembro - Roma, Università La Sapienza - concerto com Yo-Yo Ma 4 dezembro - Pesaro, P. B. A. Palas 16, 17 de dezembro - Roma, Auditorium - Sala Santa Cecilia (Concerto de Natal) 31 de dezembro - Roma, Piazza del Quirinale - Concerto de passagem de ano 2005 14 de maio - Firenze, Mandela Forum 30, 31 de maio - Bilbao, Palacio Eskalduna 23 de junho - Moscou, Palazzo del Kremlino 01 de julho - Lecce, Cave di Cavallino 04, 05 de julho - Atenas, Teatro del Partenone 06 de outubro - Osaka, Festival Hall 08, 09 de outubro - Tokyo International Forum 14 de outubro - Roma, Auditorium Via della Conciliazione 2006 13 de fevereiro - Torino, Medals Plaza - Olimpíadas de Inverno 25, 26, 27, 28 de fevereiro - Roma, Auditorium - Sala Santa Cecilia 24 de julho - Arena di Verona - Orchestra Filarmonica e Coro polifonico della Scala di Milano 25 de julho - Taormina - Teatro Greco - Orchestra Filarmonica e Coro polifonico della Scala di Milano 10 de novembro - Santader , Spagna , Palacio de Deportes 1, 2 de dezembro - Londres, Hammersmith Apollo 16 de dezembro - Milano Piazza Duomo 2007 2 de fevereiro – New York, Assembléia Geral da ONU 3 de fevereiro - New York, Radio City Music Hall 3 de Marzo - "Il Canto del Dio Nascosto" Roma, Auditorium di Via della Conciliazione 16 de abril - Milano, Teatro alla Scala, Orchestra Filarmonica e Coro polifonico della Scala di Milano 24 de abril - Bologna , Palamalaguti 5 de maio - Rio de janeiro, Teatro Municipal 14 de maio – Roma - Civitavecchia 21 de maio - Roma, IUC 7 de junho - Cracovia Piazza del Mercato

155

16 de junho - Monza, Villa Reale 30 de junho - Napoli, Arena Flegrea 5 de julho - Firenze, piazzale Michelangelo 13 de julho - Lorca (Espanha), Plaza de Toros 22 de julho – Siena, San Casciano 10, 11 de setembro - Venezia, Piazza San Marco 12 de setembro - Caserta, Piazzale antistante la Reggia 14 de setembro - Bari, Arena delle Vittorie 18 de setembro - Tivoli,Villa Adriana 2, 3 de outubro - Seul, Olympic Gymnasium 20 de outubro - Catanzaro, Teatro Politeama 27, 29, 30 de outubro - Roma, Parco della Musica - Con Orchestra e Coro di Santa Cecilia 20 de novembro - Roma, Sala Nervi 21 de novembro - Roma, Auditorium Conciliazione 12 de dezembro - Vienna, Stadthalle 16 de dezembro - Brescia, Teatro Grande 19 de dezembro - Roma, Basilica di Santa Maria sopra Minerva 2008 13 de fevereiro - Roma, Auditorio Pio 7 de março - Moscou - Kremlin 19, 20 de março - Santiago do Chile - Parque Bicentenario de Vitacura 24 de março – São Paulo - Teatro Alfa 22 de maio - Turin - Palaisozaki 27 de maio – Cidade do México - Auditorio National 29 de maio - Monterrey - Arena Monterrey 31 de maio - Guadalajara - Auditorio Telmex 2009 14 de fevereiro - Belgrado, Beagrad Arena 15 de maio – Rabat, Marrocos, Mawazine Festival 23 de maio – Pequim, Great Hall of the Peoole 26/27 de maio - Seul, Gymnasium 31 de maio - Taipei, The Dome 25 de junho - Torino 26 de junho – Bergamo 28 de junho - Moscou

156

12 de julho - Ohrid (Macedonia) 16 de julho - Aosta 23 de julho - Milano 30 Agosto - Danzica (Polonia) 19 de outubro - Catanzaro Teatro Politeama 26 de novembro - L'Aquila Auditorium della Guardia di Finanza 1 de dezembro – Milano, Teatro degli Arcimboldi 18 de dezembro - Latina teatro G.D'Annunzio 2010 10 de abril – Londres, Royal Albert Hall 02 de junho – Red Hall Expo Park, Shanghai 04 de setembro – Bari, Arena della Vittoria 11 de setembro – Verona, Arena di Verona 04 de outubro – Varsóvia, Warsaw Opera House (Privado) 19 de novembro – Milano, Mediolanum Forum Asago 4 de dezembro – Pesaro, Adriatic Arena

157

3.8 - MÚSICA DE CONCERTO DE ENNIO MORRICONE

Tabela 6 – Música de Concerto – (MICELI, 1994: 356-379) Música de Concerto 1946 Il mattino per piano e voce 1947 Imitazione per piano e voce Intimità per piano e voce 1952 Barcarola funebre per piano Preludio a una Novella senza titolo per piano 1953 Distacco I per piano e voce Distacco II per piano e voce Verrà la morte per piano e voce Oboe sommerso per voci e strumenti Sonata per ottoni, timpano e pianoforte 1954 Musica per orchestra d'archi e pianoforte 1955 Cantata per coro e orchestra Variazioni su tema di Frescobaldi

Sestetto per flauto, oboe, fagotto, violino , viola e violoncello

Trio per clarinetto corno e violoncello 1956 Invenzione, Canone e Ricercare per pianoforte

158

1957 Concerto per orchestra 1 3 studi per flauto, clarinetto e fagotto 1958 Distanze per violino, violoncello e pianoforte 1958 1966 Requiem per un destino per coro e orchestra 1969 Suoni per Dino per viola e nastri magnetici Da molto lontano per soprano e cinque strumenti Caput coctu show per 8 strumenti e un baritono 1972 Proibito per 8 trombe Dedication: 1978 Immobile per coro e 4 clarinetti Dedication: Tre pezzi brevi 1979 Bambini del mondo per 18 cori di bambini

Grande violino, piccolo bambino, per voci di bambini, suoni elettronici e orchestra d'archi

1980

Gestazione per voce femminile e strumenti, suoni elettronici e orchestra d'archi

1981 Totem secondo per 5 fagotti e 2 controfagotti

Due poesie notturne per voce femminile, quartetto d'archi e chitarra

1983 ‐ 1989 Quatto Studi "per il pianoforte"

159

1984 Secondo concerto per flauto, violoncello e orchestra 1985 Frammenti di Eros ‐ Cantata per soprano, piano e orchestra 1986 Rag in frantumi per pianoforte Il rotondo silenzio della notte per voce femminile, flauto, oboe, clarinetto, piano e quartetto d'archi 1988 Refrains ‐ 3 omaggi per 6 per piano e strumenti Mordenti per clavicembalo Neumi per clavicembalo

Cantata per L'Europa per soprano, 2 voci recitative, coro e orchestra

Echi per coro femminile o maschile e violoncello Fluidi per orchestra da camera Cadenza per flauto e nastro magnetico 1989 Studio per contrabbasso Specchi per ensemble 1989 ‐ 1990 Riflessi per violoncello solo 1990 frammenti di giochi per violoncello e arpa 4 Anamorfosi latine 1991

Una Via Crucis Stazione I "...fate questo in memoria di me..."

160

UT per tromba, archi e percussione Terzo concerto per chitarra, marimba e orchestra d'archi Questo è un testo senza testo per coro di bambini

Una Via Crucis Stazione IX "...Là crocifissero lui e due malfattori..."

1991 ‐ 1993 Epitaffi sparsi per soprano , pianoforte e strumenti 1992 Una Via Crucis Intermezzo in forma di Croce per orchestra Una Via Crucis Secondo Intermezzo per orchestra Una Via Crucis V "...Crucifige!... Crucifige!..." 1992 ‐ 1993

Esercizi per 11 archi ‐ I. Monodia interrotta e improvviso canonico

1993 Wow! Per voce femminile Braevissimo (Bravissimo I) per contrabbasso e archi Vidi Aquam per soprano e un'orchestra piccola Elegia per Egisto per violino solo

Quarto concerto per organo, due trombe, 2 tromboni e orchestra "Hoc erat in votis"

1994 Il silenzio, il gioco, la memoria per coro di bambini Braevissimo II per contrabbasso ed archi Braevissimo III per contrabbasso ed archi Canone breve per 3 chitarre Canone breve Monodie I pr chitarra evoce 1995

161

Coprilo di fiori e bandiere Ave Regina Caelorum per coro, organo ed orchestra Ricreazione ... Sconcertante Tanti auguri a te (Happy Birthday to you) Omaggio Blitz I,II,III Corto ma breve 1995 ‐ 1996 Lemma (By Andrea ed Ennio Morricone) Partenope Musica per le sirene di Napoli A L.P. 1928 1996 Scherzo per violino e pianoforte Passaggio Flash (2 Canzoncine) 1997

Ombra di lontana presenza per viola, archi e nastro magnetico

Il sogno di un uomo ridicolo 3 duetti per violino , viola e voce

Quattro anacoluti per AV

Musica per un fine per coro a quattro voci Orchestra e nastro magnetico

1998

Grido per soprano, orchestra d'archi e nastro magnetico ad libitum

Notturno ‐ Passacaglia (3 variazioni) Amen per 6 cori Non devi dimenticare per voce, soprano ed orchestra

162

S.O.S. (Suonare O Suonare )Fanfara 1998 ‐ 1999

Il pane spezzato per 12 voci miste, strumenti e archi ad libitum

1999 Ode per soprano, voce maschile recitante e orchestra Per i bambini morti di mafia Grilli per quatto quartetti Pietre Benddammerung, per soprano, pianoforte e strumenti (su testo giovanile di H. Heine) Grido per soprano e orchestra Il pane Spezzato per coro e orchestra 2000 Flash, II versione per 8 voci e quartetto d'archi A Paola Bernardi, per due clavicembali Ode, per soprano e orchestra 2000 ‐ 2001 Vivo, per trio d'archi 2001 Metamorfosi di Violetta, per quartetto d'archi e clarinetto Immobile n. 2 per armonica a bocca ed archi Se questo è un uomo per voce recitante ed archi Due x due per 2 clavicembali 2002 Voci dal silenzio per voce, coro , coro registrato e orchestra commissionato dal Festival Internazionale di Ravenna Finale per 2 organi eseguito al Festival di Nuova Consonanza 2003

163

Geometrie ricercate per 8 strumenti 2004 Cantata Narrazione per Padre Pio (fuori da ogni genere) 2005 Frop ‐ per pianoforte a 4 mani Come un Onda ‐ per violoncello solo o per 2 Violoncelli 2006 Sicilo ed altri Frammenti 2008 Vuoto d’Anima Piena

164

4. ANÁLISES: “MÚSICA APLICADA”

O apelo da atividade analítica em música - e também sua justificativa epistemológica – tem sido freqüentemente associados à capacidade de entender o mundo como sis- tema, gerando dessa forma uma tentadora promessa de cientificidade, cujas marcas mais ostensivas surgem com o advento da ‘Musikwissenschaft’, na segunda metade do século XIX, e se desenrolam no âmbito do paradigma estrutural-organicista – perspectiva de inegável complexidade e elaboração – que tem sido freqüentemente denunciada por sua tendência formalista ou 'laboratorial', tendo dominado boa parte do pensamento musical do século XX. (Paulo Costa Lima163)

Fraile (2001:131) comenta o aspecto lógico e inevitável, e que isso deve ser reconhecido desde o princípio, de que toda seleção de obras em temas artísticos implica forçosamente certa injustiça para com as que ficaram ausentes. Sejam quais forem os critérios de seleção, se um autor, uma corrente, uma época ou um lugar, nunca faltarão argumentos para inclusão de obras ou aspectos que ficaram excluí- dos. Acrescenta que, nesse sentido, é sempre latente a subjetividade do responsável pela seleção e a total impossibilidade de prejuízos. Quando se percebe essa obviedade no campo do cinema, mesmo que não só no campo do cinema, onde todo o processo envolvendo a criação, pré- produção, produção, pós-produção e comercialização de um filme foi pontuado por escolhas, ou seja, por seleção, e que isso, analogamente, implicou na subjetividade de alguém e em conseqüentes e inevitáveis prejuízos, talvez, nesse momento, a ob- viedade deixe de existir transformando-se na tentativa de entendimento do universo da seleção, ou seja, as possibilidades de escolhas e os critérios dos escolhidos. Ennio Morricone compôs a trilha musical de mais de 400 filmes durante 50 anos de dedicação à música de cinema. Estatisticamente, baseado em seus próprios procedimentos de composição temática, isso significa abarcar aproximadamente 1200 temas que, quando observadas como inserções musicais nos filmes para as quais foram compostos, possivelmente elevariam os números em algo em torno de 10 vezes (12.000). As dificuldades inerentes a tais cifras inviabilizam o tratamento

163 LIMA, P. C. O Campo da Análise Musical e suas Ontologias. http://www.latinoamerica- musica.net/ensenanza/lima/analise-po.html. Último acesso em 27/01/2007.

quantitativo, pois, mesmo com a possibilidade de desdobramentos num enorme pro- jeto enciclopédico: “Toda a música de cinema de Ennio Morricone”, exigiria o árduo trabalho de uma grande equipe, minimamente coesa metodologicamente. Esta parte do trabalho, além desse problema mais obvio, centraliza e se debruça no mesmo tipo de ambigüidade (o conflito entre o geral e o particular) anun- ciada desde o início do trabalho e recorrente em várias de suas instâncias. Por um lado, o particular, apresenta o recorte, ou seja, a abordagem de filmes específicos e de momentos específicos nesses filmes, uma visão micro-estrutural e, portanto, indu- tiva, buscando objetivamente apresentar, examinar e abarcar parte significativa da música aplicada de Ennio Morricone; e por outro lado, o geral, a visão macro- estrutural e, portanto, dedutiva, procurando especular, desprender e revelar caracte- rísticas importantes que se tornaram, direta ou indiretamente, as bases musicais de seu próprio pensamento e, por influência mútua, do pensamento musical no cinema.

Relembrando Carrasco (2005164):

É preciso lembrar que para ingressar no mundo das artes audiovisuais ou dramático-musicais, é imprescindível que o compositor possua noções bási- cas dos fundamentos dessas áreas. Não basta conhecer música e saber fazer música, ainda que estes sejam pré-requisitos indispensáveis. Para fazer boa música de cinema, por exemplo, o compositor deve entender os fundamentos da linguagem cinematográfica. Ele deve conhecer ao menos princípios de narrativa fílmica, dramaturgia, aspectos técnicos de cinema, tais como: en- quadramentos, movimentos de câmera, montagem, edição sonora. Em outras palavras, o compositor deve inserir-se no universo do cinema não como um profissional de música que a ele se agrega, mas como profissional de cinema cuja especialidade é a música.

Essa perspectiva de inserção do compositor no mundo do cinema direcio- nada por Carrasco pode ser estendida às pesquisas e ao próprio pesquisador da música de cinema, principalmente, no campo analítico. Mais do que um simples jogo de palavras, a dualidade que está implícita na citação de Carrasco é que, por um lado, a análise da música de um filme nos moldes eminentemente estruturalista, em-

164 CARRASCO, C. R. O Compositor Camaleão. In: Anais do 1º Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais. Curitiba: Deartes, 2005.

167 bora necessária, costuma acrescentar muito pouco à compreensão do objeto música de filme; por outro, a exegese da análise cinematográfica “negligenciou” a música (e outras sonoridades) como componentes narrativos, privilegiando os elementos ima- géticos da história. Portanto, esta parte do trabalho procura no convívio da dicotomia fornecer, através de elementos analíticos musicológicos ou cinematográficos, algumas respos- tas às questões iniciais: quais critérios permitem investigar ampla e objetivamente a música de cinema? Mais especificamente, dentre vários critérios possíveis, consa- grados ou não pela cinematografia e/ou musicologia, quais seriam os mais pertinen- tes na avaliação da produção musical cinematográfica morriconeana? Existem muitas características na música de cinema de Morricone que tornam o seu estilo reconhecível, o que ele chama de sua própria “caligrafia165”. Além disso, em sua vasta obra musical encontram-se algumas similaridades de procedi- mentos, mas não uma música formulada, previsível e imitativa de si própria166. Ao contrário, uma das características de Morricone é sua constante busca pelo novo e funcional, pelo “absoluto aplicado”. Em suas entrevistas, palestras e cursos Morricone deixa sempre muito claro que tem por princípio inviolável não disponibilizar qualquer parte escrita de sua música aplicada. Isso implica forçosamente que o contato mais técnico com sua mú- sica de cinema é sempre obtido através do próprio filme onde ela está inserida (ci- nema, VHS ou DVD) ou com as gravações comerciais posteriores (LPs, CDs), fora do contexto audiovisual, completadas pelo “árduo” e problemático trabalho de trans- crição das músicas. Com essas restrições, a maioria dos nomes das músicas relacionadas às inserções musicais foram retirados dos CDs disponíveis comercialmente, normal- mente, com algumas melhorias estratégicas feitas pelo próprio Morricone no sentido

165 PARELES, J. The Maestro of Spaghetti Westerns Takes a Bow. The New York Times.2007, http:/ /www.nytimes.com/2007/01/28/arts/music/28pare.html?pagewanted=print. Último acesso em 26/02/2007. 166 LEINBERGER, C. Ennio Morricone’s The Good, the Bad and the Ugly. Oxford: Scarecrow Press, Inc., 2004, p. 16.

168 de tornar as músicas mais compreensíveis em relação à trilha musical dos filmes on- de foram utilizadas. A análise das inserções objetivou entender a articulação entre a música, os diálogos, outras sonoridades e as imagens principalmente nos segmentos onde a música está presente. Com o isolamento e a observação de cada uma das inserções musicais na micro-estrutura desses filmes (decupagem), buscou-se, além da obser- vação das relações audiovisuais criadas no processo narrativo da história, estabele- cer fatores que revelassem características da trilha musical como um todo, a macro- estrutura temática das músicas no filme.

169

4.1 - A MÚSICA DE ENNIO MORRICONE NA PRIMEIRA TRILOGIA DE SERGIO LE- ONE

4.1.1 - A parceria entre Leone e Morricone: Nascimento e Desenvolvimento de um Estilo Musical?

Musicalmente, contrai um matrimônio católico – ou seja, indissolúvel – com Ennio Morricone. Talvez já não saiba mais como trabalhar com outros compositores. Se a idéia de um filme vem a minha mente, chamo Ennio, antes ainda que esteja pronto o roteiro, e lhe conto toda a história. E assim iniciou a nossa colaboração, ou melhor, nossa disputa: porque por três ou quatro meses, ao ritmo de três vezes por semana, tivemos discussões violentas. Talvez eu não seja capaz de utilizar os diálogos para que o público entenda as coisas. O tempo de um ator pode ser maximizado ao valor de um aforismo. É o ritmo no qual se alterna os acontecimentos da história, as pau- sas corretas no contar e tantos outros elementos de tempo e de concordâncias har- mônicas que tornam o filme mais verdadeiro e assimilável pelo espectador. A compo- sição das imagens é para mim como uma composição musical. É por isso que, ao contrário de tantos outros, eu preciso da música antes de gravar um filme. (Sergio Leone167)

Numa comparação entre Sergio Leone e Ennio Morricone, guardadas as devidas especificidades profissionais (um como diretor e, posteriormente, produtor de cinema e outro como músico), podemos afirmar que ambos foram e permanecem como personalidades com quem a crítica jamais se pôs de acordo no sentido de va- lorar as suas obras. O que para alguns constituem originalíssimos traços estilísticos que demonstram, confirmam e sublinham as qualidades de seus trabalhos, para ou- tros constituem idiossincrasias imperdoáveis que os detratam irremediavelmente. No cerne dessas divergências, parece inquestionável a condição de Leone e de Morricone como autores, cinematográfico e musical respectivamente, enten- dendo tal acepção como a de elaboradores e colaboradores de filmes, com seus uni- versos e personalidades próprios, como as do diretor e do músico romanos. Muitos diretores e músicos do “cinema de gênero” elaboraram um univer- so mais pessoal em torno de obras que, em muitos casos, transcendeu o próprio gê- nero que as pseudo-emolduravam. Sergio Leone e Ennio Morricone representam alguns desses casos. Um diretor e um músico de cinema que elaboraram suas obras

167 Retirado do LP Dimensioni sonore 3 – Musiche per l’immagine e l’immaginazione, RCA, 1972. In: LUCCI, G. Morricone: Cinema e oltre. Milano: Mandadori Electa S.p.A., 2007, p.50.

170 com uma visão capaz de dotar a alguns dos seus trabalhos de uma poética extraor- dinária, transcendendo os próprios rótulos genéricos que tentam classificá-los. Uma de suas maiores preocupações era que seus trabalhos fossem destinados e acessí- veis ao grande público, especializado ou não.

A primeira trilogia de Sergio Leone – PER UN pugno di dollari [POR UM PU-

NHADO DE DÓLARES – 1964]; PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ [POR UNS DÓLARES A MAIS –

1965]; e IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO [TRÊS HOMENS EM CONFLITO – 1966] - alterou significantemente a percepção do público assíduo de cinema a partir da década de 1960 no que se referia ao “far West americano”. Leone promoveu uma revisão e, conseqüentemente, toda uma reformulação paradigmática do gênero western, com uma narrativa que, simultaneamente, homenageava e detratava suas convenções. Com sua violência estilizada, paisagens áridas, desertos infindáveis, vilões engenhosos e a idéia do herói anônimo, esses filmes estabeleceram um novo tipo de western (KAUSALIK168): “um novo velho oeste”; austero, estilizado, cínico, violento e com um tipo de música em sua trilha sonora que definiu uma nova sonoridade para o gênero, influenciando, posteriormente, muitos outros filmes.

Entre os compositores italianos de grande talento que naqueles anos assina- ram trilhas musicais inesquecíveis – Armando Trovaioli, Nini Rosso, Riz Or- tolani, Luiz Bacalov, Carlo Rustichelli, os irmãos De Angelis – o nome que se destaca entre todos é o de Ennio Morricone. Foi Morricone a propor pri- meiro, a inventar aquela sonoridade particular que, conjuntamente com a fórmula de direção de Sergio Leone, constitui o próprio D.N.A., o código ge- nético do western-Spaghetti. Como cada western à italiana deve a sua exis- tência a “Per un pugno di dollari”, do mesmo modo cada trilha sonora mu- sical descende, representa variações sobre o “mesmo tema” do mesmo fil- me169.

O tratamento orquestral cinematográfico incomum de Morricone, diferente dos seus westerns contemporâneos, não se limitou a uma orquestra típica de estúdio com cordas, madeiras, metais e instrumentos padrões de percussão sinfônica. O modo como ele mesclou o som de sinos, carrilhão, flauta doce, ocarinas, vozes hu-

168 KAUSALIK, E.A. A fistful of drama: musical form in the dollars trilogy. Dissertação de Mestrado. Graduate College of Bowling Green State University, 2008, p.v. 169 BIANCHINI, F. La Fabbrica dei miti all’italiana: lo . Itália: Universitá Degli Studi di Bologna – Facoltá di Lettere e Filosofia. Tese de laurea in Strutture della figurazione, 1998/99, p. 75.

171 manas, assovio humano, violão, guitarra, órgão de tubo, trompete, órgão elétrico, piano, gaita de boca, entre outros, tornaram essa “colorida” trilha musical um dos tra- ços que se assentarão nas bases de seu pensamento musical cinemático em muitos de seus trabalhos futuros. Porém, o uso inovador de instrumentos totalmente alheios às costumeiras partituras para o cinema e para o western representam o seu aspecto mais óbvio. A utilização particular, em mútua colaboração com o diretor, desses no- vos elementos sonoros e dos efeitos que poderiam produzir, constitui também um nível distinto mais profundo em respeito as particularidades da trilha sonora cinema- tográfica. Se por comentário se entende o contar “uma coisa a mais”, um explicar, um aprofundar, nos westerns de Leone a trilha musical é mais do que um simples comentário musical. Ao longo da primeira trilogia de Leone, Morricone desenvolveu uma espé- cie de “assinatura autoral” que pode ser perscrutada em torno de algumas caracterís- ticas da trilha sonora musical:

 duração das inserções musicas. As músicas quase sempre são apresenta- das como idéias completas, sem cortes fragmentários;  linhas melódicas facilmente assimiláveis, memoráveis e evocativas;  utilização de timbres incomuns,  uso da recorrência temática com ou sem variação como princípio macro- estrutural.

Morricone criou as trilhas musicais dos três filmes com peças musicais que, de modo geral, além de se articularem efetivamente à narrativa dos filmes, mesmo isoladamente, eram cativantes, surpreendentemente originais e acessíveis ao grande público. Leone deu a elas o tempo e o espaço necessários para que pu- dessem se articular de uma forma destacada na narrativa dos seus filmes.

O primeiro filme, PER UN PUGNO DI DOLLARI, foi lançado na Itália em 16 de setembro de 1964. Foi produzido com o montante de US$200.000 e, em sua apre- sentação doméstica, arrecadou US$ 4.3 milhões. O grande sucesso de bilheteria, – tanto nas salas de cinema quanto na comercialização independente da trilha sonora musical – levou Leone e Morricone a continuarem o desenvolvimento da idéia do tra-

172 tamento temático iniciado, confiando tanto em agrupamentos instrumentais seme- lhantes quanto no modo das inserções para os dois lançamentos seguintes: PER

QUALCHE DOLLARO IN PIÙ [POR UNS DÓLARES A MAIS – 1965]; IL BUONO, IL BRUTTO, IL CA-

TTIVO [TRÊS HOMENS EM CONFLITO – 1966], referidos como: A Trilogia dos Dólares ou Primeira Trilogia de Sergio Leone. Leinberger (2004: 7) lembra que o western, desde então, não foi mais pensado como um tempo e um lugar onde os homens bons eram separados dos maus pelos chapéus brancos e pretos, respectivamente, como James Cagney e Humphrey Bogart em The Oklahoma Kid (1939). O "Velho Oeste" tornou-se nesses filmes um mundo onde a linha que dividia o bem e o mal era quase invisível, ou seja, um tempo e um lugar onde o herói era tão mau, egoísta, ambicioso e amoral quanto o vilão que procurava destruir:

Nessa perspectiva, parece razoável e apropriado considerar que tal trans- formação paradigmática dos procedimentos padrões hollywoodianos ligados ao Western fossem também acompanhados por uma mudança e ampliação nas possibilidades da música desse gênero. A trilha sonora musical dessa primeira trilogia de Leone proporcionou à audiência uma nova sonoridade que, com os diálogos e as outras sonoridades da trilha sonora sincronizados com as fortes imagens dos filmes, propunha uma linguagem narrativa cujo vocabulário parecia ter muito pouco em comum com os filmes predecessores do gênero (LEINBERGER, 2004:7).

As trilhas sonoras musicais de Ennio Morricone para a primeira trilogia de Sergio Leone parecem resistir aos 47 anos do hiato temporal. Iniciando com revisões medíocres da crítica na década de 1960, com o passar dos anos, passaram a ser referências e muito aclamadas, com freqüência sendo descritas como “operísticas” na forma, estilo e função. O fato de que tantas influências possam ser sintetizadas em um estilo composicional é realmente uma das marcas da obra de Ennio Morrico- ne. Nessas trilhas, Morricone consegue fundir as influências do rock-and-roll dos anos 1960, da música folclórica, música popular italiana, celta e outras músicas étni- cas, canto gregoriano, serialismo, musique concrète, música de cinema hollywoodia- na e a música de vanguarda para criar uma obra extremamente coerente e efetiva.

173

Um músico que queira fazer boa música de filme não deve se especializar somente em música clássica ou sinfônica, velha ou nova, não deve ser so- mente um músico pop, um entusiasta do jazz ou do rock. Ele deve se especia- lizar em tudo e também ser capaz de fundir gêneros diferentes. (MORRICO- NE, 2007:35)

As inserções musicais criadas por Ennio Morricone foram utilizadas por Sergio Leone como componentes que, engenhosamente articulados com as ima- gens, os diálogos e as outras sonoridades, constituíram o diferencial de suas tramas em cada um dos três filmes: a localização de cada inserção musical na linha do tem- po dos filmes, bem como sua cuidadosa relação com as demais sonoridades, os diá- logos e a ação visual, constituíram elementos diferenciados, contribuindo decisiva- mente no processo narrativo. O ecletismo e o sincretismo das composições permiti- ram que elas fossem também percebidas como música pop, características que so- madas às fílmicas contribuíram para o grande sucesso independente obtido na ven- dagem dos álbuns com a gravação de cada uma das trilhas sonoras musicais dos três filmes. Isso não quer dizer, no entanto, que a música de Morricone para a trilogia fosse completamente original e incomum enquanto música isolada. O que a tornou tão inusitada foi, principalmente, sua ductibilidade que se refletia tanto no plano mu- sical quanto no cinematográfico. Na observação de porque essas músicas fizeram tanto sucesso no espectro da indústria fonográfica, confirma-se a presença de fato- res com características fílmicas que criavam estímulos auditivos efetivos mesmo quando ouvidos em programas de rádio, funcionando, inclusive, como uma das grandes referências nos mercados pop, principalmente o europeu e, posteriormente, o americano e mundial.

174

4.2 - ESSLIN & PRENDERGAST: O “DEVELOPEMENTAL SCORE”

No final do processo de composição, uma vez que todos os fragmentos estão coloca- dos no lugar certo, é possível obter uma idéia da atmosfera sonora global do filme, uma idéia unificada pelo ponto de vista musical. Poderiam me perguntar se a música do filme tem, em minha opinião, uma coerência interna comparável, por exemplo, ao da forma sonata ou qualquer outra peça musical? Nunca encontrei uma resposta de- finitiva para responder a esta questão. No geral, parece que em muitos dos meus fil- mes existe uma coerência musical, mas, em alguns casos, é mais difícil de ser detec- tada. (Ennio Morricone170)

Muito já foi escrito sobre forma, tanto sobre as formas musicais quanto sobre as formas dos filmes. Quando se pensa em estrutura dramática, como o pró- prio nome sugere, o cinema se apóia na dramaturgia e na narratologia que lhe lega- ram uma gama considerável de procedimentos convencionais. As formas musicais, como um desenho acabado de uma idéia, tem uma autonomia histórica bem maior do que a dos filmes. Kühn (1983) abre o seu Tratado de las Formas Musicais afirmando que as formas musicais não gozam de boa fama por terem aprisionado, de uma forma sis- temática, elementos que constituem um curso histórico, fazendo-os derivar para es- quemas distanciados em demasia da própria realidade musical, ou seja, as formas musicais podem “reduzir a música a conceitos sem vida171”. Da mesma forma, o dra- ma e a narrativa constituem formas, esquemas gerais que incorrem, por vezes, no mesmo tipo de problema: uma rigidez excessiva que tende a afastar em demasia a realidade da obra analisada da própria realidade da obra. MacKenzie172 afirma que os filmes de Leone oferecem um meio de concei- tuar a forma de uma maneira diferente das utilizadas normalmente.

Nesses filmes de Leone, a narrativa oferece ao espectador um cinema que se situa entre o realismo e o anti-realismo, algo que, através da montagem, des- taca momentos de suspense, tensão e dor num grau tal, que esses momentos na tela parecem permanecer “pendurados” no tempo. No entanto, a tensão

170 MORRICONE, E. O compositor atrás da câmera de cinema. op. cit., p.9. 171 KÜHN, C. Tratado de la forma musical. Barcelona: Editorial Labor, S.A. 1983. p.9. 172 MACKENZIE, S. Closing Arias: Operatic montage in the closing sequences of the trilogies of Coppola and Leone. “p.o.v. – A Danich Jounal of Film Studies”. Departamento de Informação e Estudos Midiáticos da Uni- versity of Aarhus. Número 6, dezembro de 1998, pp.109-124.

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criada por essas cenas existe tanto na imaginação do espectador quanto na tela, e é essa unificação da mise-en-scène – que conta a história – e a mon- tagem – que cria a tensão e as imagens mentais – que reforçam o fato de que Leone tenha se empenhado em criar uma nova forma de montagem "operáti- ca.173

Chion (1990) acrescenta que, em geral, pode-se afirmar que a música tor- na a noção do espaço e do tempo maleável, objetos de contração e distensão. Nas cenas de suspense, é a música que nos faz aceitar a convenção de um momento congelado, eternizado pela edição.

E nas longas confrontações nos filmes de Sergio Leone, onde personagens fazem pouco além de posar como estátuas olhando umas para as outras, a música de Ennio Morricone é crucial na criação do sentido de imobilização temporal. Na realidade, Leone também tentou distender o tempo sem o auxí- lio da música. Notavelmente, na abertura de C’era una volta Il West, ele fez isso com o ranger ocasional de um moinho de vento e uma roda d’água. Po- rém, ali o momento da narrativa e as situações mostradas – um longo perío- do de espera e inação – foi escolhido para justificar a imobilidade das per- sonagens. De qualquer forma, Leone desenvolveu esse tipo de imobilidade épica com referência a ópera e, em geral, pela utilização da música de ma- neira evidente na trilha sonora. (CHION174)

Formalmente, muitas trilhas de Hollywood começam e terminam os filmes utilizando uma orquestra sinfônica padrão e acrescentam outros instrumentos mais singulares no decorrer do filme somente quando necessário. Esse procedimento econômico reserva o instrumental mais elaborado de cores tonais para os momentos mais climáticos no decorrer da narrativa fílmica. Morricone, ao contrário, não poupa a apresentação da variedade de seu imenso arsenal de sonoridades singulares já na seqüência dos Créditos Iniciais dos três filmes, revelando nelas muito das caracterís- ticas que tornaram essas trilhas tão efetivas. Todo material musical nos três filmes é derivado dessa primeira peça inserida nos “créditos iniciais” como uma música inde- pendente, completa e principal:

173 Scott MacKenzie denomina de “operática” uma forma de montagem que manipula as relações espaço- temporais do filme com finalidades melodramáticas (Idem, p.109). 174 CHION, M. Audio-Vision: Sound on Screen. New York: Columbia University Press, 1990, p. 82.

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1. Titoli, no primeiro filme (PER UN PUGNO DI DOLLARI [POR UM PU- NHADO DE DÓLARES] – 1964); 2. Per qualche dollaro in più, no segundo filme (Per qualche dollaro in più [POR UNS DÓLARES A MAIS] – 1965); 3. Il buono, Il brutto, Il cattivo, no terceiro (Il buono, il brutto, il cattivo [TRÊS HOMENS EM CONFLITO] – 1966).

Cada filme começa a seqüência dos créditos iniciais com a música cuida- dosamente escrita e sobreposta à animação de uma série de silhuetas estilizadas de homens cavalgando (exceção ao segundo filme, Por uns dólares a mais, que não utiliza as silhuetas, mas as menciona) e com características visuais que sugerem, através de simulações de duelos e tiroteios, a violência e a morte. O procedimento de inserções musicais utilizado por Morricone e Leone em toda a trilogia pode ser associado ao terceiro procedimento referido por Prendergast, na primeira parte (parte 1) do trabalho, como Developmental Score: “um método [procedimento] composicional de unificação onde a música dos ‘créditos iniciais’ fun- ciona de forma análoga ao mesmo pensamento que engendra a ‘Exposição’ na for- ma sonata”, ou seja, a função de apresentar o material temático e algumas inflexões iniciais que serão recorrentes, pelo processo de repetição, imitação, transposição e/ou variação, durante toda a trilha sonora musical. Kausalik (2008) concorda com a proposição:

Cada um dos Créditos Iniciais contém pequenos gestos musicais que criam associações com outros procedimentos musicais, particularmente canções pop, melodias folk e temas de TV e filmes conectados com o “velho-oeste” americano. Fragmentos desses créditos iniciais portam mensagens codifica- das do Western, como também informações importantes sobre os protagonis- tas, vilões e locações dos três filmes. Essas células musicais – como também sua instrumentação, timbres, áreas tonais e forma melódica – são utilizadas para gerar as melodias remanescentes da trilha sonora musical. O resultado é uma partitura altamente interconectada que contorna os episódios dramá- ticos dos filmes da Trilogia dos Dólares enquanto amplifica a mitologia do Western americano de Sergio Leone (KAUSALIK, 2008:iv).

Portanto, na primeira trilogia de Leone, os episódios dramáticos são enfa- tizados através de uma cuidadosa escolha de onde e como posicionar a música. As inserções musicais articulam-se de modo a auxiliar e acentuar a linha dramática de

177 cada filme recorrendo ao material musical apresentado na música dos Créditos Inici- ais. Evidentemente, o developmental score de Prendergast não contempla todas as articulações formais e as mesmas funções musicais como numa “forma sonata” ou outras formas eminentemente musicais. Isso nem seria possível, pois, em princípio, não existe nenhum tipo formal preconcebido ou esperado numa trilha musical fílmica. Do mesmo modo, a analogia do pensamento não dá conta de todas as inserções musicais utilizadas no decorrer dos três filmes, pois, algumas, pelo seu caráter niti- damente secundário (outras vezes, menos que issso), podem não ter a mesma impor- tância no delineamento de uma macro-estrutura formal. O pensamento musical cinemático que viabiliza a organização da trilha musical como no modelo do Developmental Score oferecido por Prendergast tem sua base na construção articulada, episódica e dramática dos elementos audiovisuais do próprio filme. Esslin (1986:47-59) explica que o filme como "um todo" pode ser imagina- do como um grande arco principal representando sua linha dramático-narrativa.

Figura 4 – Representação da linha dramático-narrativa do filme (ESSLIN, 1986:48)

Devido à longa duração do arco seria impossível prender a atenção direta do espectador durante todo seu delineamento.

Despertar e sustentar a atenção através da expectativa, do interesse e do suspense são os aspectos mais primitivos e populares da estrutura dramáti- ca. Todos os outros problemas mais complexos e sutis repousam sobre essa base. Nessa acepção, uma combinação de elementos espaciais permite um número infinito de permutações estruturais entre a unidade espacial em di- versidade rítmica, por um lado, e unidade de andamento e tom em uma imen- sa variedade de mudanças visuais, por outro1775.

175 ESSLIN, M. Uma Anatomia do Drama. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1986, pp. 47-59.

178

Isso implica numa fragmentação do arco principal em arcos auxiliares me- nores que possibilitam uma assistência mais intermitente e gradual em relação à as- similação das informações narrativas articuladas.

Do mesmo modo que uma peça musical caminha com seus próprios ritmos e precisa ser subdividida em seções distintas, nas estrofes e coros de uma can- ção, nos movimentos de uma sonata ou de uma sinfonia, assim também o movimento de qualquer forma dramática tem de ser igualmente articulado e formulado. (idem)

Nessa perspectiva, os diversos elementos do filme, inclusive sua trilha musical, podem ser preconizados como parte dessa unidade onde diferentes zonas e espaços de ação são cuidadosamente situados como se formassem vários arcos temporais auxiliares interconectados ao arco principal.

Figura 5 – Arcos auxiliares (ESSLIN, 1986:49)

Em cada arco secundário, idéias e elementos immportantes são gradativa- mente apresentados e/ou enfatizados.

Figura 6 – Fragmentação da apresentação dos elementos (ESSLIN, 1986:51)

No modelo preconizado por Prendergast (developmental score) a música, quando presente, recorre aos materiais apresentados nos “créditos iniciais” do filme (a música principal da trilha sonora musical do filme), apresentando, associando e sublinhando situações, personagens ou idéias fíllmicas para, finalmente, retornar com

179 a mesma idéia inicial (na mesma música) no fechamento do filme, como ocorre na “re-exposição” de uma forma sonata.

Figura 7 – Developmental Score

Em suma, o resultado obtido pelo procedimento é uma trilha sonora musi- cal interconectada pelos mesmos elementos derivados da música principal que, gra- dualmente, com constantes remissões e reformulações articuladas, apresenta-se como um conteúdo amalgamado, sugerindo, com seu retorno no final do filme, uma “completude coesiva”. No entanto, para que a possibilidade do Developmental Score se constitua efetivamente, é essencial que a música dos créditos iniciaiis seja composta de modo a proporcionar remissões coerentes de seus diversos elementos tanto superficiais (os materiais mais aparentes) quanto estruturais (as suas relações). Além disso, as remissões devem manter a mesma potencialidade de expressão presente na peça inicial. Segundo Gorbman (1987:26) existem vários modos dos elementos narra- tivos de um filme se relacionarem com a música criada para ele. O “tema”, definido por ela como “qualquer música” (melodia, fragmento de melodia, progressão harmô- nica, sonoridade característica, etc.) ouvida mais de uma vez durante o filme, é um elemento fundamental dos códigos musicais cinematográficos.

Um tema pode ser extremamente econômico, ppois tendo absorvido as associ- ações relacionadas à sua primeira aparição, em suas recorrrências podem re- lembrar determinado contexto do filme. Isso é muito importante, pois signifi- ca que, mesmo que a música não seja em si representacional “[música abso- luta”], o aparecimento repetido de um elemento musical com elementos re- presentacionais do filme (imagens, diálogos e sonoridades) podem fazer com

180

que a música porte significados representacionais [música “aplicada”]. Te- mas acumulam significados em vários graus. Um tema pode ser associado a uma função fixa, constantemente assinalando o mesmo personagem, local ou situação cada vez que ele aparecer, ou pode variar, ter nuances, participar da evolução dinâmica do filme. (GORBMAN, 1987:27)

Desse modo, cada uma das peças principais da primeira trilogia de Sergio Leone, apresentadas nos créditos iniciais, possuem qualidades modulares. A con- cepção “modular” das inserções musicais é um dos procedimentos técnicos utilizado por Morricone a partir de pequenas unidades motívicas ou “células” (denominadas por Miceli de “micro-células”) que podem ser permutadas, trocadas, omitidas ou transformadas em novas possibilidades de inserções musicais. Miceli (1994) des- creve a técnica de “micro-células” como “pseudo-serial”, pois, no serialismo clássico, ou no chamado método de doze tons, um compositor cria uma linha de tons (uma série) construída com doze classes de alturas diferentes. Os compositores freqüen- temente dividem essas doze alturas em grupos de dois (díades ou bicordes), três (tríades ou tricordes), quatro (tetracordes), cinco (pentacordes) ou seis (hexacordes) sons. Parte do processo composicional é arranjar esses pequenos grupos em várias ordens, tanto consecutivamente quanto simultaneamente, atingindo ordens diferen- tes de todas as doze alturas (agregados). No entanto, a técnica “micro-celular” de Morricone parte da combinação de pequenos grupos de alturas, mas, não fica restrita da mesma forma como no serialismo dodecafônico clássico, pois não depende da inclusão das doze classes de alturas, e pode, dessa forma, também ser aplicada na música tonal e modal. Em seu âmago essas pequenas unidades podem ser conecta- das e/ou permutadas, formando idéias musicais maiores e mais completas, que por sua vez, também podem ser conectadas e/ou permutadas, conformando uma música interconectada por uma mesma idéia176. Portanto, as “micro-células” de Morricone, na microestrutura da composi- ção musical, permitem fazer transições lógicas de um motivo curto, ou “célula”, para uma próxima formando as partes de uma idéia maior, uma melodia principal ou se-

176 Esse procedimento tem origem na escola franco-flamenga e, especificamente, no “contraponto inversível”, engenhoso método de construção e sobreposição de idéias melódicas que permite a reconfiguração de uma mes- ma idéia musical de muitas outras formas diferentes.

181 cundária e/ou um elemento de transição. A concatenação desses elementos em idéias maiores permite que Morricone utilize-os modularmente, ou seja, cada parte é como um módulo que pode ser encaixado em momentos narrativos diferenciados, pela variação e adequação de algumas de suas características formais. Essa técnica pode, realmente, ser observada em muitas de suas trilhas. O próprio Morricone reconhece que a utiliza, mass, prefere não discuti-la em detalhes. Embora a aplicação das “micro-células” como parte funddamental de seu processo composicional permaneça um tanto quanto misteeriosa, algumas de suas característi- cas serão evidentes na música das duas trilogias de Leone. Sergio Miceli (2001) explica que, na primeira trilogia de Leone, “as três músicas dos créditos iniciais estruturam-se, a partir de ‘micro-células’, numa forma tripartida sobre uma segmentação estilístico-formal que corresponde a um modelo que permite e facilita remissões e reformulações177”, ou seja, possibilita a recorrência do material apresentado.

Figura 8 – Segmentos formais dos Créditos Iniciais da Trilogia dos Dólares (Miceli, 2001:167)

A primeira parte da tripartição (o segmento denominado de ARCAICO na figura), em cada uma das músicas dos créditos iniciais da primeira trilogia de Leone, corresponde a um segmento temático que Sergio Miceli define como de natureza primitiva, arcaica ou minimalista.

Os instrumentos utilizados nessee segmento são, de fato, instrumentos simples com características rústicas: do assovio humano, “que tem o primado da in- digência”, à harpa hebraica (marranzano, no italiano; ou doromb, no leste europeu [berimbau de boca, no Brasil]); da tosca ocarina às flautas doces e de pã; da gaita de boca ao violão acústico, que nesse contexto ocupa o de-

177 MICELI, S. Comporre per Il cinema: teoria e prassi della musica nel film. Venezia: Maarsilio Editori S.p.a., 2001, pp.167-169.

182

grau mais elevado. Também o acompanhamento percussivo constituído pelo som de estalos de chicote, do martelo na bigorna, de castanholas, campanas, entre outros, corresponde a essa mesma concepção (MICELI, 2001:167).

Além disso, ele acrescenta que a primeira parte forma tanto um segmento autônomo com características de unidade e completude, quanto funciona também como uma ponte (união) frente a possíveis segmentos sucessivos. Seguindo a exposição, a segunda parte da tripartição (ao modo do ROCK) revela uma reviravolta caracterizada, principalmente, pela guitarra elétrica executada com estilemas do rock. Também nesse caso o segmento pode ser percebido tanto como um episódio autônomo, quanto como resposta ou “desenvolvimento” do seg- mento precedente. Miceli enfatiza que “se trata, porém, de rock ‘domesticado’: poten- te em relação ao antecedente, mas, inofensivo por si mesmo” (MICELI, 2001:167). A terceira parte da tripartição (PSEUDO-SINFÔNICO) adapta os elemen- tos musicais na tradição sinfônica “clássica”. Miceli define esse segmento como pseudo-sinfônico, pois, os timbres anteriores são (re)agrupados e/ou (re)organizados orquestralmente – a instrumentação isolada é reorganizada numa perspectiva or- questral sinfônica: madeiras, metais, cordas, coro (normalmente com função vocali- zante) e percussão. Também neste caso o segmento tem autonomia, mas, na peça, apresenta-se como recapitulação dos elementos precedentes.

É evidente que os três segmentos podem aparecer isoladamente no filme con- forme o contexto e a circunstância (representando assim a forma originária de uma concepção modular), mas, o aspecto mais interessante das segmen- tações está numa concepção de fundo, que porta em última análise à própria sucessão e depois à coexistência de elementos estilísticos muito distantes en- tre si, ligados em um único tecido conectivo (MICELI, 2001:167).

A confluência das elucidações de Esslin e Prendergast pode ser represen- tada como a junção dos dois gráficos anteriores:

183

Figura 9 – Esslin & Prenddergast

Com essa “concepção de fundo” daas segmentações da composição de Morricone, Miceli formula a hipótese de que seria a caracterização e diferenciação estilística o principal fator que contribuiu ao sucesso tributado ao compositor por pú- blicos tão disparatados, seja em relação ao gosto musical ou a faixa etária (Morrico- ne está com 83 anos [nasceu em 10/11/1928] e sempre obteve muito sucesso em relação ao público em geral).

Esquematizando em maneira inevitavelmentee brutal, Titoli poderia reprodu- zir – ou sugerir em modo subserviente – um modelo tripartido de desenvol- vimento social segundo uma ideologia burguesa de integração. O assovio humano, os sons produzidos com instrumentoos rudimentares, por vezes em- prestados do mundo animal, remete a uma civvilização arcaica imersa na na- tureza na qual, entre os diversos valores conotativos e todos coerentes, pre- valece o do individualismo, com um fundo de anarquia livre. Eletrificando a guitarra – atualizando aqueles que eram instrumentos arcaicos ou elementa- res – os modos do rock portam brutalmente a um contexto tecnologizado, por isso contemporâneo, no qual – pelo senso comum – agregação e transgressi- vidade caminham de mãos dadas (“Sexo, droga e Rock and Roll”, diriam uma vez; mas se pense também na “selva de asfalto”, como recolocação do West na civilização industrializada). Por fim, a orquestra clássica e o coral humano portam conotações de uma coletividade disciplinada que se autoce- lebra em modo inevitavelmente retórico. (MICELI, 1994, 115-116),

184

185

4.3 - A MÚSICA DE PER UN PUGNO DI DOLLARI – 1964 (POR UM PUNHADO DE DÓLARES)

Se de fato que eu criei um novo tipo de Western, foi Ennio Morricone quem lhe deu vida. (Sergio Leone178)

4.3.1 - Ficha Técnica

Per un pugno di dollari – A Fistful of Dollars – Por um Punhado de Dólares179 Países: Itália/Espanha/Alemanha Ano: 1964 Duração: 100 Minutos Direção: Sergio Leone (como pseudônimo de Bob Robertson) Argumento: Sergio Leone, [Akira Kurosawa (Yojimbo, La sfida del samurai)] Roteiro: Sergio Leone, Duccio Tessari, Fernando Di Leo Produção: Arrigo Colombo, Giorgio Papi Produtor Executivo: Franco Palaggi Jolly Film (Roma), Ocean Film (Madri), Constantin Film Produktion GmbH (Mônaco da Empresas Produtoras: Baviera) Distribuição (Itália): Unidis Intérpretes e Personagens

 Clint Eastwood: Joe, O estrangeiro  Gian Maria Volonté (John Wells): Ramón Rojo  Marianne Koch: Marisol  Wolfgang Lukschy: John Baxter, o xerife  Sieghardt Rupp: Esteban Rojo  Antonio Prieto: Don Miguel Rojo  José Calvo: Silvanito  Margarita Lozano: Consuelo Baxter  Daniel Martín: Julio  : Dougy  Bruno Carotenuto: Antonio Baxter  Joseph Egger: Piripero  Mario Brega: Chico  Aldo Sambrell: Rubio  Nino Del Arco: Jesus Fotografia: Massimo Dallamano, Federico G. Larraya Montagem: Roberto Cinquini, Alfonso Santacana Efeitos Especiais: Giovanni Corridori Música: Ennio Morricone (Leo Nichols e Dan Savio)

178 In FRAILE, J. R. Ennio Morricone: Música, Cine e Historia. Salamanca: Gráficas Verona, 2001, p.60. 179 Considerado a pedra fundamental do gênero que ficou conhecido como spaghetti western, o filme é erronea- mente considerado o primeiro do gênero – na Europa, antes de 1964, já haviam sido produzidos diversos wes- terns, porém, sem a mesma penetração. Per un Pugno di Dollari, por outro lado, revigorou o gênero, em franco declínio, resgatando, atualizando e redefinindo as próprias convenções do western americano.

186

Cenografia: Carlo Simi, Sigfrido Burmann Costumes: Carlo Simi Prêmios Nastro d'Argento 1965: "Melhor Música" (Ennio Morricone).

4.3.2 - Comentários Iniciais

Quando um homem com um revólver encontra um homem com uma espingarda, aquele com o revólver é um homem morto. (Ditado mexicano citado por Ramón Rojo, dirigindo-se a Joe no filme)

Embora não seja o primeiro western-europeu (TIERRA BRUTAL / THE SAVA-

GE GUNS, de 1961, filme espanhol dirigido por Michael Carreras é classificado como o primeiro), PER UN PUGNO DI DOLLARI, de 1964, o segundo filme dirigido integralmente por Sergio Leone, foi o que revolucionou o “cinema americano por excelência”, a ponto de gerar da desnorteada crítica americana um substantivo composto para refe- renciá-lo (reconhecendo-o e repudiando-o, simultaneamente): western-spaghetti180.

A Jolly Film produziu o filme PER UN PUGNO DI DOLLARI a partir do projeto Il magnífico straniero de Sergio Leone como um filme reserva de “classe C”. Nesse mesmo período estava em produção LE PISTOLE NON DISCUTONO de Mario Caiano (com música de Ennio Morricone utilizando o pseudônimo de Dan Savio), considera- do pela produtora de sucesso seguro181. O filme de Leone representava para a produ-

180 O termo spaghetti Western foi, e ainda é, o preferido pela crítica americana. Inicialmente ele foi recebido pelos italianos como um ‘insulto’, pois, associava o subgênero fílmico com a comida mais famosa da Itália (uma men- ção indireta e irônica ao ‘sangue’ resultante da extrema violência dos filmes relacionado com o típico ‘molho’ de tomates utilizado no famoso prato italiano) e com estereótipos do comportamento italiano. O termo surgiu por volta de 1968 e parece ter sido utilizado pela primeira vez por Judith Christ em “Cristian science Monitor” e também por Renata Adler no “New York Times” de setembro de 1968. Os westerns produzidos fora dos Estados Unidos passaram a ter denominações análogas aos italianos: alemães – Sauerkraut western; franceses – Camem- bert western; espanhóis – Chorizo western, aos filmes de produções locais, mas também Butifarra ou Paella western; brasileiros – Faroeste ou bangue-bangue. Os italianos, portanto, que eram os “originais”, foram primei- ramente chamados de Macaroni, depois Hopalong Veneto e, finalmente, Spaghetti western. Contemporaneamente, um termo mais neutro utilizado é Euro-Western ou Western italiano (Marco Giusti, “La Bienale di Venezia – 64ª Mostra Internazionale d’Arte Cinematografica”, Per chi è cresciuto negli anni ’60). 181 Em 1964, dos 27 Westerns produzidos na Itália, A FISTFUL OF DOLLARS foi o de número 25. Em 1965, o ano do segundo Western de Sergio Leone PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ , foram produzidos mais 30, e em 1966, o ano do terceiro IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO, cerca de 40. Em 1968, quando Leone iniciou os preparativos de C’ERA UNA VOLTA IL WEST – sua despedida da seqüência de filmes italianos populares – uma quantia de 74 Westerns italianos, ou co-produção Itália-Espanha, estavam ou em pré-produção ou sendo filmados. Isso tudo num tempo em que os números dos Westerns de Hollywood estavam em franco declínio, de 150, ou 34% de

187 tora, entre outras coisas, um modo fácil de reutilização da logística do filme principal, que era dotado de um orçamento muito superior e por atores considerados de alto nível. Leone deveria utilizar as mesmas locações, os mesmos vestuários, grande parte da trupe e dos atores utilizados no filme de Caiano. O filme de Leone além de propiciar a Morricone grande licença criativa, encorajando o compositor a quebrar algumas das convenções então vigentes, criteri- osamente controlou o tempo de exposição da música, mixada com equilíbrio em re- lação às outras sonoridades e livre de diálogos excessivos. Miceli confirma que se, por um lado, o filme que inaugurou a parceria entre Leone e Morricone era considerado um projeto para realização de um filme de “clas- se C”, onde todos pareciam acreditar que seria muito difícil obter qualquer tipo de sucesso, por outro, o projeto pôde ser desenvolvido com uma liberdade de criação que de outra forma seria impensável.

[O projeto inaugura] a colaboração entre duas personalidades sempre ca- racterizadas, no tempo, de uma atenção quase maníaca nos confrontos do próprio trabalho e, no que se refere a Leone, de uma consideração insólita também do componente musical, que o induzirá a formular exigências muito precisas – e isso será muito importante para Morricone – não formalizadas e pontualizadas demais em sentido musical (MICELI, 1994:107)

Terminada a primeira montagem do filme, Sergio Leone tinha a intenção de chamar Angelo Francesco Lavagnino para compor a trilha musical, pois o músico já havia composto a música de seu filme anterior de 1961, IL COLOSSO DI RODI (O CO-

LOSSO DE RODES), o primeiro dirigido integralmente por Leone. Papi e Colombo, dire- tores da Jolly Film e produtores do projeto, entretanto, sugeriram a Leone que utili- zasse Dan Savio, pseudônimo utilizado por Ennio Morricone, o músico que havia composto a trilha musical de DUELLO NEL TEXAS dirigido por Ricardo Blasco, em 1963, e estava terminando a trilha de LE PISTOLE NON DISCUTONO [PISTOLS DON’T ARGUE] dirigido por Mike Perkins. Leone havia assistido ao filme DUELLO NEL TEXAS e ouvido a balada A Gringo Like Me, o tema central da trilha musical: todos os lançamentos americanos, em 1950, para 11, ou 9% de todos os lançamentos, em 1963 (FRYLING, C. The Leone Legacy. “Once Upon a Time in Italia:The Westerns of Sergio Leone”. New York: Harry N. Abrams, Inc., 2005, pp. 171-196.

188

Era aquele tipo de filme no qual o ator caia no chão antes que o tiro do re- vólver o tivesse atingido, de fato, na cabeça. Era também aquele tipo de fil- me no qual o protagonista, vestido de pele de camurça e chamado “gringo” chegava à galope na cidade para advertir a autoridade que alguém havia atirado em seu pai, entrava tranquilamente no salão de barbeiro, fazia a barba e o cabelo e enfim anunciava: “agora devo encontrar o xerife. Alguém ‘matou o meu pai’”.

Leone, bastante contrariado e relutante, decidiu-se por encontrar com En- nio Morricone em sua casa. Cristopher Frayling (2005) comenta sobre o (re)encontro:

Quando Morricone foi convidado a escrever a música de Fistful, ele estava trabalhando no filme de Caiano, PISTOLS DON’T ARGUE. A trilha para Pistols não é particularmente interessante: um tema principal orquestrado, baseado numa estrutura de quatro acordes, com uma trompa executando a melodia, sustentado por insistentes “tropéis” nos tímpanos – tudo remanescente do estilo equivalente de Hollywood. PISTOLS DON’T ARGUE tem uma balada tra- dicional intitulada “Lonesome Billy”, cantada por Peter Tevis. Sergio Leone achou essas primeiras trilhas de Morricone terríveis – e Morricone [...] apa- rentemente concordou.

Nos dois exemplos citados por Frayling é possível perceber um Morricone preocupado em seguir os modelos de sucesso estabelecidos por Hollywood, nesses casos, Elmer Berstein no filme THE MAGNIFICENT SEVEN (SETE HOMENS E UM DESTINO),

1960, dirigido por John Sturges, inspirado no filme OS SETE SAMURAIS, 1954, de Akira Kurosawa; e a canção Do not forsake, Oh my Darling, de Dimitri Tiomkin para o filme

HIGH NOON (MATAR OU MORRER), 1952, dirigido por Fred Zinnemann, respectivamen- te. O próprio Morricone concorda182:

A primeira vez que Sergio escutou uma trilha sonora minha foi em minha ca- sa, e se aborreceu soberanamente, comentando quando terminou: “Nunca poderemos trabalhar juntos”. Perguntei-lhe por que, claro. Respondeu que aquela música era horrível. Com toda razão do mundo, reconheci. Pertencia ao filme AS PISTOLAS NÃO DISCUTEM e era uma simples imitação do tipo de música dos westerns americanos, como as do Dimitri Tiomkin. Foi o que me pediram e obedeci sem discutir, pois o filme não valia nada e, portanto, tam- bém não “valia nada discutir”. Antes que Sergio pudesse replicar lhe disse que poderia compor algo verdadeiramente pessoal, que se me desse a opor- tunidade poderia oferecer algo que responderia de verdade às nossas inquie- tudes. Aceitou, e desde então a última coisa que Sergio Leone podia conce- ber era um filme seu com uma música que não fosse minha.

182 AGUILAR, C. Sergio Leone, Madri: Catedra, 1990, pp.90-91.

189

Morricone ilustra a propósito de seu relacionamento profissional com Le- one:

Sergio não só não era afinado como não conseguia nem mesmo cantar uma melodia de forma, diria, “desafinada”. Quando penso na respiração musical de seu cinema e na intensidade de nossa relação criativa, tudo isso me pare- ce ainda mais extraordinário. E também me faz recordar que quando Sergio queria indicar um tema meu, se limitava a dizer: “Aquele que faz ‘tititi’”, cantarolando de modo muito vago. Toda minha música, naquele momento, poderia ser resumida em um ‘tititi’, e para mim era sempre uma tarefa muito difícil entender a qual peça ele estava se referindo (Morricone in MELIS, F. op. cit., p. 13)

O pensamento que envolveu a criação da música para esse primeiro wes- tern de Leone revela algumas das principais características que se constituirão como base para outros filmes, não só os de Leone.

Sempre acreditei que um dos meios mais importantes do compositor cinema- tográfico fosse a invenção tímbrica. Comecei a experimentar essa maneira de pensar a música no caso específico da cena e, sobretudo, da personagem em Per un Pugno di Dollari e, posteriormente, em todos os outros filmes de Leone. O cinema Western me deu essa ajuda, pois o gênero, pelo menos co- mo entendido por Leone, é um gênero picaresco, brincalhão, dramático, di- vertido, cáustico, tudo sobre as próprias linhas. A figura caricatural do pro- tagonista é forçada pela vontade do diretor. Muitos anos depois, Leone me confidenciou que para fazer Clint Eastwood ‘recitar’ [atuar] daquele modo o fazia pensar de uma forma pesada (palavrões) contra seu antagonista. Aque- las palavras horríveis – que aqui não posso repetir – eram verbalmente inexpressíveis, mas Leone queria que queimassem dentro do ator, transfor- mando-se em uma carranca. Frente a uma direção tão intensa, mas confor- tada por resultados excelentes, eis a necessidade, para mim, de utilizar sons insólitos, que pudessem equivaler àqueles “excessos” referidos. Tudo, inclu- sive a parte sonora, deveria parecer muito mais do que era realmente. Por isso as campanas, o chicote, o assovio, a bigorna, as ocarinas, as vozes e tantas outras coisas ainda. A necessidade de fazer o filme parecer épico con- duzia o tom das instrumentações, aos corais, aos crescendos, aos arcos com seus ritmos galopantes (pensava na época nos arcos de Monteverdi em Il Combattimento di Tancredi e Clorinda) e a todos os outros artifícios existen- tes para dar à música as qualidades necessárias que pudesse fazer o caráter do filme de Leone decolar e que o filme fosse crível183.

183 Miceli diz que a afirmação de Morricone apresenta um lapsus interessante, sintomático e de uma posição con- traditória. Para ele, a hipérbole constante sobre a qual se baseia o cinema de Leone, descrito de modo eficaz pelo próprio Morricone, faz pensar se, ao contrário, não apresenta uma contribuição musical voltada à incredibilidade mais que à credibilidade, ao extraordinário ao invés do ordinário, como extraordinários são, pela mesma admis-

190

Toda a articulação e o reconhecimento do material musical na narrativa fílmica centram-se no protagonismo do “homem sem nome” (Clint Eastwood), no an- tagonismo canalizado na personagem de Ramon (Gian Maria Voluntè) e numa mes- ma localidade (San Miguel).

No decorrer do filme, Morricone diferencia as inserções musicais com:

 colorações instrumentais inusuais,  inserções musicais mais rápidas e excitantes num modo contrastante com outras mais lentas, no mesmo modo ou no contraste maior/menor (modal ou tonal), repletos de lamentações e, algumas vezes, mais elevados;  aceleração dramática no tempo;  aumento gradual da energia musical com a utilização de crescendos na in- tensidade e/ou na acumulação de instrumentos tanto isolados como em gru- pos instrumentais;  paradas bruscas, de forma que possa reiniciar a construção dramática com níveis crescentes.

Morricone foi engajado no projeto no momento em que o filme encontrava- se na fase de pós-produção. As seqüências do filme que mais necessitavam de su- porte musical, segundo Leone, eram a da troca de prisioneiros e a do duelo final. Iro- nicamente, o conceito musical pretendido por Sergio Leone originou-se a partir de duas canções pré-existentes arranjadas por Morricone para o mercado de música pop italiano: uma Ninna Nanna (Canção de Ninar) e Pastures of Plenty de 1962.

4.3.2.1: “Ninna nanna” => Per un pugno di dollari.

O sul do Texas é um lugar apaixonado e quentíssimo. Lá existe uma mistura de México e América. Isto dá aos seus rituais fúnebres e às suas religiões um tom e uma atmosfera particular. É isso que necessitava para minha dança da morte. Para o meu primeiro western solicitei uma trilha musical similar a

são do compositor, as suas contribuições sonoras. O adjetivo traduz, talvez, uma constante preocupação de Mor- ricone, a de contribuir à consolidação do filme em termos de consenso.

191

trenodia184 que Tiomkin havia utilizado em ‘Un dollaro d’onore’ e no ‘La Battaglia di Alamo’. [O Deguello] É um antigo canto fúnebre mexicano. ( Leone1858 ).

Leone tinha utilizado nas duas seqüências supracitadas (como temp- track186) durante a primeira montagem o Deguello, um lamento para trompete escrito por Dimitri Tiomkin para o filme RIO BRAVO (UN DOLLARO D’ONORE – na Itália) de 1959, dirigido por Howard Hawks. Tradicionalmente de natureza mexicana, este estilo de tocar trompete permanece ainda hoje muito popular no México e no sul dos Estados Unidos.

Figura 10 – “Il Deguello” de Dimitri Tiomkin

184 Essa idéia foi materializada no terceiro filme C’era una volta Il West, seegundo Leone a própria “Daança da Morte”, pois, como Orestes De Fornari, (p.75) escreve: “Leone conta a epopéia das primeiras ferrovias transcon- tinentais, mas, sem esquecer a cultura clássica e as etmologias gregas: treno, trenos, trenodia, canto fúnebre”. 185 FRAYLING,C. Sergio Leone: Danzando con la morte, Millano: Il Castorro, 2002, pp. 131-178, In: Per un pugno di dollari, http://it.wikipedia.org/wiki/Per_un_pugno_di_dollari, último acesso em 25 de agosto de 2009. 186 Segundo Sergio Miceli, o editor Roberto Cinquini teve a iniciativa de inserir o Deguello na montagem sem o conhecimento de Leone, depois de encontrá-lo no filme Divorzio all’italiana dirigido por Pietro Germi. (MICELI, 1994:117)

192

Para Morricone, nessa época, um Western era um western, ou seja, ele pensava as músicas que utilizavam esse tipo de solo de trompete, conhecido como estilo mariachi, mas chamado por ele de estilo cigano, simplesmente como utiliza- ções padronizadas de uma ambientação típica do sudeste dos Estados Unidos, nor- malmente, reservadas ao clímax dos filmes num confronto final entre o bem e o mal: os duelos. Ao contrário de Morricone, Leone entendia o duelo como ponto vital na construção de “um novo estilo de herói”. Ele era mais que um momento da instância narrativa que provocava o envolvimento lúdico do espectador no gênero western. Para ele o confronto final se configurava como momento fundamental e irrenunciável pelo caráter “ritualístico”.

A partir de POR UM PUNHADO DE DÓLARES, o duelo final é o momento fun- damental indispensável em qualquer western spaghetti. O duelo é o "climax", do filme junto com o "espancamento" em que é, regularmente, submetido o protagonista, o desafio final assume a forma de rito187.

Nessa perspectiva, o trompete era a escolha de Leone, além de uma refe- rência lógica, em virtude de sua presença enérgica e dominadora, para as cenas de confrontações, mesmo que já utilizado em outros filmes americanos. Morricone, já com algumas experiências negativas na composição e arran- jo de música para cinema, havia estabelecido que, em princípio, não utilizaria mais materiais musicais que não fossem compostos por ele mesmo. A insistência de Le- one na utilização do Deguello fez com que Morricone ameaçasse desligar-se do pro- jeto caso o diretor insistisse na idéia de manter a peça. Leone foi surpreendido, in- clusive porque sabia que Morricone e seu pai tocavam trompete.

No meu pensamento daquele momento não cogitava utilizar peças de outros compositores, muito menos imitar uma peça de outro compositor. Dessa forma, disse-lhe que procurasse outro compositor. O meu amigo, porém, não era alguém que abandonava facilmente sua presa e, diplomaticamente, me propôs: “Não te peço para imitar, peço para que faças algo similar”. Eu já pressentia a dignidade que cada compositor deve ter e nem mesmo queria

187 BIANCHINI, F. La Fabbrica dei Miti All’italiana: Lo Spaghetti Western. Università Degli Studi di Bologna Facultà di Lettere e Filosofia. Tesi di laurea in Strutture della figurazione, 1998/99, p.78.

193

“fazer qualquer coisa similar” de maneira passiva, mas, também não gosta- ria de desiludir Leone. Nesse ponto lembrei-me de um tema que tinha escrito para a televisão, cantado por uma das Peter Sister, as três irmãs negras que Garinei e Giovannini haviam lançado num musical com Renato Rascel. Era uma canção de ninar [ninna nanna] que uma delas cantava na popa de um barco... (MORRICONE, 2008:55)

A Ninna nanna havia sido escrita em 1962 para um de três episódios tele- visivos dos Drammi marini de O’Neil (MICELI:1994:117).

Exemplo 1 – Ninna Nanna (MICELI,1994:118)

A canção foi destituída de sua letra, trransposta um tom abaixo para o mo- do de Ré e re-escrita com base em uma série de ornamentos, alguns deles escritos por Morricone e outros improvisados por Michele Lacerenza, músico que dominava o estilo mariachi (mexicano) de tocar trompete.

Atenção, o tema era certamente muito diferente e distante do lamento [do deguello]. O que os tornam similares é a execução do trompete numa manei- ra cigana, com todos os melismas – as evoluções em torno das notas simples da melodia –, repito, não era a mesma idéia temática do deguello (MORRI- CONE, 1994:119).

Inicialmente, a adequação da melodia ao conceito da trilha sonora musical do filme, sugerida por Leone, foi elaborada por Morricone de modo mais econômico:

194

Exemplo 2 – Transformações dde Morricone

Miceli (1994:117) comenta que a interpretação de Michele Lacerenza – defendida e imposta por Morricone – foi contestada duramente por Sergio Leone que desejava convidar Nini Rosso, um amigo trompeetista, ligado a um estilo de música de entretenimento “sofisticado” dos night-clubs italianos da época. Após o improviso de Lacerenza a Ninna nanna inicial se transformou em A Fistful of Dollars, o segundo tema principal do filme.

195

Exemplo 3 – A Fistful of Dollars – Segundo tema principal do filme

O estilo mariachi desse solo de trompete acabou sendo “forçosamente” in- corporado por Morricone como mais um elemento étnico de seu estilo composicional e, em particular, nos westerns. Cumbow (1987) descreve o uso de Morricone deste estilo particular:

A ária solada por trompete no estilo mariachi é outra convenção à qual Morricone deu uma nova vida. De fato, através de uma série de partituras para westerns, ele tornou essa convenção virttuualmente como sendo sua188.

4.3.2.2: Pastures of Plenty => titoli Superada as desavenças iniciais, Leone e Morricone acabaram chegando a um acordo sobre a temática e os efeitos que a música deveria ter no filme. Na opi- nião do diretor, como o filme já se encontrava nuum estágio avançado de elaboração, a trilha musical resultava difícil de integrar-se perfeitamente. Morricone recorda de ter trabalhado muito, tentando sublinhar os aspectos irônicos de certos personagens

188 CUMBOW, R. C. Once Upon a Time: The filmes of Sergio Leone. New York: The Scarecrow Press Inc., 1987, 201. In: LEINBERGER, C. Ennio Morricone’s The Good, the Bad and the Ugly: a film score guide. Maryland: Scarecrow Press Inc., 2004.

196 com instrumentos incomuns como, por exemplo, o marranzano189 (ou scacciapensieri) siciliano. Terminada a composição das músicas relativas às cenas da troca de pri- sioneiros e do duelo final solicitadas, Leone solicitou outra peça que pudesse ser in- corporada no filme. Depois de algumas tentativas frustradas, Morricone teve a idéia de fazer Sergio Leone escutar o arranjo de Pastures of Plenty que havia feito, em 1962, de uma peça folk americana. Nesse arranjo ele colocara deliberadamente al- gumas de suas idéias musicais relacionadas ao sentimento de nostalgia de uma pessoa por sua terra. Leone ouviu atentamente o arranjo e, ao que parece, teve as suas expectativas preenchidas.

A música convenceu porque parecia enquadrar-se nas necessidades da histó- ria, mesmo assim, não se pode afirmar que seria a única possibilidade ou a melhor música para aquela história. Não existe música certa. Dez bons com- positores comporiam dez músicas diferentes que seriam todas certas para um mesmo filme. Cada uma delas enfatizaria, se for boa música de cinema, deta- lhes diferentes. (MORRICONE, 2007:24)

Entre 1962 e 1964 Morricone havia realizado alguns arranjos para Peter Tevis, um cantor americano do gênero country-western que estava trabalhando na Itália. A canção Pastures of Plenty, de Woodie Guthrie, arranjada por Morricone para Peter Tevis, foi lançada na Itália em um compacto simples da RCA em 1962. O ar- ranjo incluía uma forte linha vocal acompanhada por um insistente ritmo galopante do violão, estalos de chicote, sinos, o som de um martelo batendo em uma bigorna, e um ligeiro pentacorde escalístico executado por uma flauta doce. Além disso, havia um coro masculino misturado com cordas e metais da orquestra e o solo de uma gui- tarra elétrica. Todo o arranjo da canção foi mantido no tema Titoli de PER UN PUGNO DI

DOLLARI. A essa instrumentação inusitada e surpreendente em relação às músicas utilizadas em filmes westerns, foi composta, a pedido de Leone, uma nova melodia que foi assoviada por Alessandro Alessandroni, tornando-se a referência e uma das características mais importantes da música do filme, justamente pelo modo com que

189 Instrumento rudmentar conhecido no Brasil como Berimbau de boca ou harpa judáica. Ver: http://en.wikipedia.org/wiki/Jew's_harp (último acesso em 23 de outubro de 2010) ou http://wapedia.mobi/pt/Berimbau_de_boca (último acesso em 23 de outubro de 2010).

197 fazia emergir as sonoridades ligadas ao western e no modo com que Leone e Morri- cone articularam-na ao longo da narrativa fílmica, levando-a a desempenhar um con- siderável papel no processo dramático.

Utilizei instrumentos que se assemelham a voz humana, como a flauta e o vi- olino e o uso da própria voz humana, tanto solo como em coral, como se fos- sem instrumentos musicais [como em algumas formas anasaladas de cantar de alguns povos]. Para mim, a voz humana é o instrumento mais belo de to- dos com um som ligado à própria vida. Tanto o guimbard [guimbarde] e es- sa formas de cantar, foram associados com a "música de lugares remotos", que novamente foi apropriada ao projeto The Mafnificent Stranger [primeiro título do trabalho que se tornou PER UN PUGNO DI DOLLARI [POR UM PU- NHADO DE DÓLARES]. Quando comecei a compor para Leone, não pensava em escrever músicas especificamente para filmes westerns. Mesmo com re- ferência aos westerns americanos, que estavam disponíveis enquanto ‘mode- los’, eu queria simplesmente usar a idéia da vastidão, do deserto, das prada- rias e da expressão de solidão. Eu queria colocar tudo isso na música: locais isolados, um longe do barulho e da agitação das cidades. Eu tentei recriar esses sentimentos primitivos na minha música. É por isso que o assovio – como uma ‘expressão de solidão’ - pareceu tão apropriado190.

As duas peças principais da trilha sonora musical: Titoli e Per un Pugno di Dollari, coadunaram-se com a grande experiência de Morricone como arranjador “anônimo” de canções. Esse fato ocasional, inesperado e atípico, possibilitou que as músicas conservassem também características relacionadas aos mercados discográ- fico e televisivo popular:

 peças “fechadas” com uma feição estilística bem determinada;

 compostas com critérios de acessibilidade e fácil assimilação;

 independência em relação à aplicação com potencial de per- manecer bem impressas na memória dos ouvintes.

Porém, afirmar que Morricone criou essas músicas num “idioma popular” pode ser uma simplificação excessiva. Elas não são músicas pop de “per se”, ao in- vés, incorporam elementos dos estilos populares da época. Percebida como música

190 Ennio Morricone, in: FRAYLING, C. Something to do with death. London, New York: Faber and Faber, 2000, pp.155-156.

198 pop, a música foi tocada no rádio e gravada por alguns artistas da indústria discográ- fica. Não existe dúvida de que os elementos populares incorporados são, em grande parte, responsáveis pelo grande sucesso. Frayling acrescenta:

Essa trilha transformou-se em algo completamente distinto do que Morrico- ne (ou qualquer outro compositor em filmes do gênero) já tivesse escrito. As melodias não eram particularmente originais (de fato, podem-se reconhecer frases de outros temas de westerns ou de temas populares da época na trilha de Morricone, além dele estar especialmente encantado por utilizar “cita- ções” de Beethoven e Bach): porém, os arranjos eram extraordinariamente apropriados. Era como se Duane Eddy desse um esbarrão em Rodrigo no meio da agitada Via Veneto (FRAYLING, 2004:15).

Leinberger comenta que, sem mencionar os instrumentos pelos nomes, Frayling está se referindo ao uso da guitarra e do violão nos arranjos de Morricone de música italiana popular. Duane Eddy foi um guitarrista americano que teve vários sucessos na década de 1950 e 1960 incluindo “Rebel Rouser”, “Forty Miles of Bad Road” e “Because They’re Young”. Joaquin Rodrigo foi um grande violonista espa- nhol e compositor de algumas das mais conhecidas músicas do repertório para vio- lão clássico, incluindo o adágio de seu “Concerto de Aranjuez”, de 1939, que foi mui- to utilizado em comerciais da televisão americana.

Frayling utiliza sua imagem visual bem humorada para descrever a síntese de Morricone entre o popular, o tradicional e os elementos modernos utili- zados nas trilhas dos Westerns: um guitarrista de rock-and-roll americano e um violão clássico espanhol cercado pela comoção da vida italiana moder- na, como pode ser encontrada na Via Veneto, uma rua movimentada que en- volve Roma, abrigando os hotéis, restaurantes e cafés mais populares. A analogia imaginativa de Frayling evoca o estado de coisas corretamente, descrevendo alguns dos mais distintos aspectos do estilo composicional de Morricone naquele tempo (LEINBERGER,2004:16).

Para Miceli (1994:109) a diferença substancial entre as duas peças está na estrutura e no tratamento.

Titoli Per un pugno di dollari

199

Segmentada, porém, dinâmica Articulada, porém, estática

Tendencialmente contrapontística Tendencialmente monódica

Polivalente Unívoca

Em todo caso, é importante recordar que o modelo cinemusical talvez mais incisivo do pós-guerra nasce, na realidade, de um estilo de arranjo pré- existente, pensado para a música ligeira e baseado num princípio de fungibi- lidade estilística que pode ser definida como a urbanização do folk. (MICE- LI, 1994:105)

A idéia de desenvolver a música da trilha à partir de uma mesma idéia em dois temas principais contrastantes e complementares, ao mesmo tempo, se trans- formará num dos modelos adotados por Morricone, não só na primeira trilogia de Le- one, mas, em muitos outros filmes de sucesso como, por exemplo, INDAGINE SU UN

CITTADINO AL DI SOPRA DI OGNI SOSPETTO (INVESTIGAÇÃO SOBRE UM CIDADÃO ACIMA DE

QUALQUER SUSPEITA) dirigido por Elio Petri em 1970; IL PRATO, 1979, dirigidos pelos irmãos Taviani (Paolo e Vittorio), entre muitos outros.

4.4 - ORGANIZAÇÃO TEMÁTICA DA TRILHA MUSICAL

4.4.1 - Titoli: A música dos Créditos Iniciais e Finais

A peça dos créditos iniciais, Titoli, nasce da vontade de traduzir em música a vida quotidiana do campo, imersa numa natureza arcaica que domina o homem. O assovio e o estalo de chicote – soluções recebidas como revolucionárias no âmbito da música para filmes – transmitem a sensação da nostalgia do campo no homem da cidade, enquanto que os sinos à distância, evocam o desejo da vida na cidade por parte do camponês. O tema dos créditos iniciais retorna como leitmotiv – às vezes somente em seu “núcleo central” – em todo o filme, associado, principalmente, as ações do Ho- mem sem nome, interpretado por Clint Eastwood. (MORRICONE191)

191 In: LUCCI, G. Morricone: Cinema e oltre. Milano: Mandadori Electa S.p.A., 2007, p.53.

200

A idéia básica de Titoli está representada no esboço abaiixo192. O esboço porta ambigüidades que serão exploradas por Morricone, inicialmente, durante todo o filme e, posteriormente, durante toda a primeira e parte da segunda Trilogia:

Figura 11 – Idéia melódica principal do filme Per un pugno di dollari – 1964

Num primeiro contato com a melodia do esboço, que se tornou uma marca morriconeana por ter sido a primeira executada pelo famoso assovio de Alessandro Alessandroni, apresentam-se características que sugerem uma melodia no modo de Ré. No agrupamento das notas utilizadas é obtida a seguintte escala hexatônica:

Exemplo 4 – Escala hexatônnica de Ré

Com a ausência da nota Sib na armadura de clave e, também, com a au- sência de qualquer nota Si (ou natural ou bemol) na próprria melodia, Morricone ex- plora uma ambigüidade intrínseca entre os moodos Eólio (se a nota Si for utilizada como bemol – Sib) ou Dórico (se a nota Si permanecer, como na armadura, natural), reforçada pela utilização da nota Dó (natural) com sentido de terminação (e não Dó#, a nota característica de uma sensível tonal no modo menor de Ré), distanciando (mas não eliminando) a possibilidade tonal (Ré menor).

192 O esboço foi retirado do livro Moorricone Cinema e oltre, obra já citada, p.52.

201

Exemplo 5 – Modos de Ré: Eóólio ou Dórico

A fragmentação do esboço melódico em duas seções define claramente as possibilidades de um motivo com características rítmicas e melódicas:

Exemplo 6 – Motivo Principaal de Titoli

Na divisão, nota-se que a ambigüidade é dilatada pelas possibilidadees ca- denciais dos motivos melódicos ou numa terminação autêntica (na nota Ré) ou plagal (na nota Lá). Tagg fez uma observação sobre a importância e fluência de Morricone com os modos eólio e dórico, além de certa similaridade à forma tradicional da músi-

202 ca celta, na criação de um som distinto do som clássico dos westerns hollywoodian- os. Morricone concorda com a observação de Tagg e acrescenta:

Tagg, um musicólogo que ensina na Universidade de Liverpool [agora na Universr idade de Montreal], tem uma teoria quue eu concordo plenamente. Ele afirma que algumas de minhas composições escritas para o cinema, e tam- bém para os westerns, possuem o que é chamado de “modalidade” celta. Devo acrescentar que o mesmo pode ser dito do canto gregoriano, que tam- bém influenciou minha música cinematográfica193.

Um dos componentes criados por Morricone como acompanhamento obs- tinado para essa melodia, imprime uma ligação motória mais direta com as conven- ções do filme western: o ritmo do “galope do cavalo”. Essas células rítmicas são refe- ridas por Philip Tagg194 como “ritmo do cavalo”, um dispositivo rítmico empregado fre- qüentemente pelos compositores de música para Westerns que se tornou uma espé- cie de convenção para o gênero. Morricone utiliza inicialmente no acompanhamento do violão a seguinte célula:

Exemplo 7 – Célula rítmica de acompaanhamento do violão

A célula é composta por quatro colcheias e duas semínimas. Todas as no- tas compõem o acorde de Ré menor (Ré-Fá-Lá) exceto pela presença de uma nota Sol que, no primeiro tempo forte do compasso, se dirige por grau conjunto para a nota Lá, caracterizando uma espécie de apojatura ou “notaa de aproximação” que efe- tiva uma dissonância de 4ª que caminha, ascendentemente, para a uma resolução na 5ª do acorde de Ré menor, ou pode também ser interpretada como uma 11ª do

193 Ennio Morricone, in: LEINBERGER, C. Ennio Morricone’s The good, thhe bad and the ugly: a film score guide. Oxford: The Scarecrow Press, Inc., 2004, p.31. 194 Algumas relações possíveis entre motoriedade eqüina e músicas do gênero country e western em filmes são examinadas por Philip Tagg em The Virginian, Horse Music and the Lore of the West, 3º capítulo de uma publi- cação, parte de um projeto financiado pela The Humanities Research Council, Suécia: Göteborg, 1990, pp.6-23; ou em TAGG, P. e CLARIDA, B. Ten Little Title Tunes, New York & Montreal: The Mass Media Musicologists’ Press “Horse music and the lore of the West”, 2003, pp.291-306.

203 mesmo acorde. A nota Fá, a terça do acorde, está ausente na célula, mas, é utilizada na melodia assoviada. Com esses primeiros elementos Morricone compõe a primeira parte da peça Titoli assim segmentada na visão de Sergio Miceli:

Exemplo 8 – Titoli - Primeira parte (MICELI, 1994:110-11)

Mais adiante, como é facilmente intuível, se ajuntarão os instrumentos de ar- co e as vozes, sobre um tapete rítmico reforçaado pelas percussões mais con- vencionais, com um resultado volutamente plletórico; mas, a parte certamen- te mais interessante é essa. O ataque rápido, do violão (R, exemplo acima) e o assovio humano, já estabelece o primeiro e mais convincente âmbito ex- pressivo ao qual contribuirão, pouco a pouco, os outros sons concertantes em modo mais natural. (Idem)

204

Para Miceli, a célula melódica principaal, que serve de base à peça inteira, se apresenta de 3 formas nessa primeira parte:  A – que conclui na nota Ré (terminação autêntica),

 A’ – que conclui na nota Lá (terminação plagal),

 A” – que conclui na nota Lá, (Oitava acima da com a termina- ção plagal. As 3 formas são seguidas por C, uma espécie de codetta dividida por Mi- celi em três partes (numeradas por 1, 2 e 3, no exemplo).

O bloco [módulo] assim composto é precedido de uma figuração ríítmica simples (R) – que desenvolve funções múltiplas: de introdução e de suporte à peça inteira; de “memória” em relação ao usso que é feito no filme – e é se- guida de uma bela coda (C) tripartida, progressivamente enfática, quase com características do lied, na re-proposição da célula e no sublinhado ob- tido com o alargar-se do intervalo do exórdio (Dó-Lá-Lá-Fá..., Ré-Lá-Lá- Fá...), e cujo processo de dramatização culmina na abertura em direção ao terceiro compasso da coda, entre o inesperado e pré-resolutivo salto Ré-Sol no tempo fraco do segundo compasso. (Ibidem)

Miceli afirma que uma alternativa ao bloco inteiro (A-A’-A’’’) e a sua reto- mada (A-A’-A’’’) é posteriormente representada pela variante, confiada à guitarra elé- trica (exemplo abaixo), que do modelo original representa uma releitura não casual segundo uma entonação muito mais obscurecida.

Exemplo 9 – Variante Melódica da Guitaarra (MICELI, 1994: 112)

Para Miceli o procedimento de contração rítmica ao qual é submetido o in- tervalo Lá-Ré, transformado no mordente isolado Lá-Ré-Dó#-Ré, conjuntamente com a pausa de semínima, insinua “um caráter de concisão “veelhaco”, ligado a realização instrumental de uma dependência muito maior em respeito ao bloco principal”.

205

Essa identificação unívoca com a guitarra elétrica e a alusão descoberta do ritmo do galope do cavalo podem ser consideradas os aspectos mais prosai- cos da peça inteira, enquanto quue um último macro-elemento assinalado, a ponte executada pelo coro [exemplo abaixo], episódio único com acordes em função declaradamente retórica, e reutilizado, pela exigência de Leone, a partir do arranjo de Pastures of Plenty. (MICELI, 1994:112)

Exemplo 10 – Coro Masculino (Miceli, 1994:112)

Na continuação da peça Morricone agrega alguns micro-elementos que re- forçam a idéia de uma constituição contrapontística. A inserção de um elemento composto por uma pequena escala descendente determinada por uma 5ª justa: um gruppetto [uma quintina] de 5 semicolcheias quee “desliza” descendentemente da nota Lá até a nota Ré, segundo Miceli, “quase como a evocação de um glissando sobre 5 canos de uma flauta de pã”. Esse elemento isolado será utilizado durante o filme co- mo leitmotiv do protagonista Joe (Clint Eastwood).

Exemplo 11 – Quintina da flauta doce

É este um dos elementos mínimos que, colocado alternadamente no tem- po mais forte do compasso binário (a cada dois compassos) – executado por uma flauta doce –, inicia uma combinação rítmica que dotou essa peça de um caráter tão singular. Logo após a flauta doce, apresenta-se o som do estalo de um chicote – no primeiro tempo forte do compasso seguinte –, também a cada dois compassos, al-

206 ternando-se com as sonoridades da flauta; depois o som de uma bigorna no segundo tempo de apoio, aos quais se junta um sino (com a nota Ré) no primeiro tempo fraco, assim insinuando uma série de síncopas (tropeços), uma irregularidade de afasta- mento que vitaliza posteriormente o conjunto, aiinda mais fantasioso dos harmônicos diferenciados das percussões que conferem um caráter de entonação imperfeita, coerente também essa com o resultado geral.

Exemplo 12 – Percussão Autóctona

Miceli encerra a análise formal de Titoli sublinhando a idéia:

207

O conjunto dos macro-elementos que constituem uma peça assim segmenta- da pode dar lugar a combinações das mais variadas (como, em efeito, exis- tem no filme), compreendido a inserção em modo de tropos de outros mate- riais sobre os quais não é o caso de determo-nos, assim que a definição de peça fechada vale até certo ponto, pois estamos de fronte a uma técnica composicional para filme de manual, própria a causa de sua ambivalência e intercambiabilidade. (idem, 113)

Sem contrapor as idéias de Miceli, mas no intuito de expandir e aprofundar as informações a respeito da música, é possível acrescentar que a peça não se en- quadra numa tipologia ou modelo formal padronizado, mas, também não apresenta uma forma completamente nova. A raiz desse procedimento, que será utilizado em toda a trilogia, pode ser encontrada no Gradus ad Parnassum (1725) de Joseph Fux195, autor estudado exaus- tivamente por Morricone, em suas aulas de contraponto e fuga, quando aluno do Conservatório Santa Cecília. No livro de Fux o entendimento sobre os modos é colocado como vital na composição temática das fugas e das imitações:

A fuga nasce quando uma sucessão de notas em uma parte é reiterada em outra parte, levando em consideração o modo e especialmente a posição dos tons e semitons. Para assimilarmos esta definição completamente necessita- mos entender qual é o significado da palavra modo. Por modo quero dizer o mesmo que exprime o termo tom. Mas, obviamente, é melhor utilizar as ex- pressões primeiro modo, segundo modo etc. do que primeiro tom, segundo tom etc., de forma a evitar confusão com o grau-conjunto – os intervalos re- presentados pelas razões de 9:8 e 10:9 – para os quais o mesmo termo é uti- lizado. Desde que o assunto sobre modos é altamente intrincado e não facil- mente compreendido por um noviço, penso que nos contentaremos com uma discussão somente do que for necessário aos nossos propósitos momentâneos e deixar uma explanação mais completa para mais tarde.

Fux esclarece:

Um modo é composto de uma série de intervalos compreendidos dentro do limite de uma oitava, no qual os semitons estão situados irregularmente. A palavra modo aparece nas famosas linhas de Horácio: “Todas as coisas es- tão sujeitas a um modo, um meio [significado], além dos limites do qual elas não podem existir diretamente”. Desde que a localização dos semitons

195 MANN, A. The Study of Fugue. New York: Dover Publications, Inc. 1958, FUX, J. J. “A Lesson on Imita- tion”, pp.78 – 107.

208

ocorre de seis maneiras diferenttees, temos de especificar seis modos, mostra- dos nas seguintes linhas de oitavvaa, nos tons de Ré, Mi, Fá, Sol, Lá e Dó.

Figura 12 – Disposição intervalar dos modos por Fux

Fux complementa a idéia:

Se contares cada modo da primeira nota, encontrarás os semitons em seis lugares diferentes. Esta diferença é destacada pelas notas escuras. No mo- mento, não necessitamos considerar qual destes modos seria verdadeiramen- te o primeiro, segundo, terceiro e assim por diante, mas, devemos guardar a ordem em que eles aparecem aqui. Um modo é caracterizado pela quinta e quarta que designam sua oitava. De acordo com o limite desses intervalos os temas da fuga devem ser arranjaados.

Figura 13 – Caracterização dos Modos em Fux

209

Se a primeira parte utiliza um salto de quinta, a parte segguinte deve usar um salto de quarta, de forma a não exceder os limites do modo ou oitava, e vice- versa...

Figura 14 – Utilização melódica na fuga

Esta restrição não é aplicada à imitação, onde os mesmos saltos e intervalos podem ser repetidos...

Figura 15 – Utilização melódica na imitação

Finalmente, as vozes de uma fuga não podem iniciar em outros intervalos que não os que constituam um modo, ou seja, intervalos diferentes do unís- sono, oitava e quinta; enquanto que a imitação pode ocorrer em qualquer in- tervalo.

Na parte do capítulo do livro dedicado ao estudo da “Fuga a Duas Partes”, escrito em forma de diálogo entre o professor Aloysius e o aluno Josephus, o profes- sor finalmente apresenta ao aluno:

Te ensinarei primeiro como escrever fugas simples a duas partes. Escolha um sujeito consistindo de poucas notas que esteja relacionado com o modo que queiras trabalhar. Quero que tu escrevas as notas na parte que decidis- tes começar. Então, se nada tiver de ser alterado por causa do modo, utilize a mesma sucessão de notas na pparte seguinte à distância de quarta ou de quinta. Agora, escreva um contraponto com a parte que iniciastes, utilize qualquer sucessão livre de notas como aprendestes no contraponto ornamen- tado [quinta espécie]. Depois de uma curta continuação de figuras melódi- cas, arranje as partes de forma a poder realizar a primeira cadência na quinta do modo [grifo nosso]. Então reassumma o tema; como regra isto é fei- to na parte que iniciastes, mas, num tom diferente do que foi utilizado anteri- ormente. Enfatize esta entrada com a utilização de uma pausa de compasso inteiro ou de meio compasso antes de iniciar com o sujeito. A outra parte poderia, depois de uma pausa, entrar antes que a parte termine. Seguindo is- to, permita que as partes se movvam livremente por uma distância curta e en- tão realize uma segunda cadência na terça do modo[grifo nosso]. Finalmen- te, utilizando o sujeito em qualquer parte, deixe a outra parte seguir com o sujeito diretamente no próximo compasso, se isto for possível. E assim, es-

210

treitando as partes o mais próximo possível, complete a fuga com uma ca- dência no final do modo.

Em seguida é apresentado o seguinte exemplo de uma fuga a duas vozes no primeiro modo, o modo de Ré, construída com os procedimentos descritos.

Exemplo 13 – Fuga a duas Vozes no modo de Ré

Toda dubiedade criada por Morricone pode ser observada nos procedi- mentos padronizados desse exemplo. A dubiedade entre os modos Dórico e Eólio pode ser confirmada pela utilização tanto da nota Si natural quanto Sib. Pode-se também observar a ocorrência das notas Dó# e Sol#, senssíveis de Ré e Lá, respecti- vamente, antecipando, dentro de uma peça modal (modo de Ré, porém, Dórico ou Eólio?), um “sabor” tonal. Possivelmente, são esses fatores que corroboram na “originalidade” da peça Titoli. A base dessa não-padronização estrutural repousa no procedimento - nentemente modal fuxiano de Morricone. No decorrer da ppeça o compositor não se limita a A, A’, A’’ e A’’’, como apresentado por Miiceli, mas, deriva 7 (A1 a A7) possibi- lidades melódicas modais diretamente da idéia temática inicial. Todas elas exploram as dubiedades intrínsecas iniciais de terminação nas notas Ré e Lá, mesmo prevale- cendo a anacruse Lá-Ré.

211

Exemplo 14 – Derivação Melódica Modal de Titoli

É notável que em todas as derivações melódicas utilizadas na peça a nota Si continue ausente, exceto em A4, onde é utilizada a nota Sib, polarizando, Fá mai- or (a terça de Ré) e insinuando, pela terminação na nota Ré, o modo eólio de Ré. O modo eólio de Ré não se concretiza, pois, a nota Si natural será também utilizada por Morricone (como no quarto compasso do exemplo do coral masculino a tríade forma- da é Sol maior, portanto utilizando a nota Si natural em sua terça maior) mantendo a dubiedade entre os modos de Ré eólio ou dórico.

212

Aqui se faz necessário abrir um importante parêntese que corrobora em reforçar as idéias modais de Morricone. O texto da análise deste filme porta uma du- biedade (outra entre tantas) que necessita ser esclarecida. A hipótese de que a “for- ma” das inserções musicais na primeira trilogia de Leone coaduna-se com o terceiro procedimento referido por Prendergast na primeira parte (Parte 1) do trabalho como

Developmental Score pode ser questionada, pois, como apresentado, o filme PER UN

PUGNO DI DOLLARI possui dois temas principais: Titoli e Per un pugno di dollari. Se os dois temas foram compostos a partir de músicas pré-existentes, com finalidades e momentos diferentes, 1960 e 1962, respectivamente, como o filme pode se constituir no Developmental Score, terceiro modelo de Prendergast, estruturado a partir de uma idéia única? A resposta aponta para o mesmo tipo de pensamento estrutural da fuga modal fuxiana. Os dois temas podem ser considerados no âmbito do modo de Ré. Titoli inicia com o salto de quarta justa Lá-Ré; Per un pugno di dollari, inicia com a imitação desse salto no âmbito do modo, quinta justa Ré-Lá. O desenvolvimento me- lódico das duas peças obedece aos critérios estabelecidos por Fux em relação à ên- fase na fundamental, terça e quinta do modo. Fica implícito na exposição da teoria modal fuxiana que várias dubiedades modais podem ser estabelecidas, como, por exemplo, entre o modo autêntico ou plagal de Ré (Dórico ou Eólio), mantidos no âm- bito Ré-Lá-Ré, e o do modo de Lá autêntico ou plagal (Eólio ou Frígio), mantido no âmbito Lá-Ré-Lá. Essa dubiedade virtual é explorada patentemente por Morricone. A oposição superficial entre as duas peças é desintegrada estruturalmente por Morri- cone em complementação. Portanto, as duas peças são complementares estrutural e tematicamente, tornando-as filhas de uma idéia única, pressuposto que convalida a hipótese do Developmental Score de Prendergast. Fechando os parênteses, observa-se que na derivação da melodia da gui- tarra, o que é “insinuado” por Morricone, além do “modo de rock”, advém das mes- mas possibilidades da ambigüidade inicial: modal versus tonal, pois, com a presença da nota Dó# na melodia principal como uma bordadura e, ao mesmo tempo, sensível da nota Ré, o tom de Ré menor, enquanto possibilidade tonal, torna-se viável.

213

Exemplo 15 – Melodia da Guitarra – Titoli

O ritmo do “galope do cavalo” será sempre a base do acompanhamento da peça, seja no violão (“dedilhado” ou “rasgueado”), na primeira parte da peça, seja com seu dobramento conjuntamente com o ritmo da percussão sinfônica (“drums” e caixa) no decorrer da peça.

Exemplo 16 – Ritmos do “Galope do Cavalo”

214

O ritmo percussivo também é utilizado pelas cordas como, por exemplo, na ponte descrita por Miceli, dobrando as notas do coral masculino. É possível ainda acrescentar que o coral masculino, além da função de ponte abordada por Miceli, tem outras funções não mencionadas diretamente por ele. O coral masculino é utilizado, com freqüência, como mais um grupo instrumental de acompanhamento com vocalizes (sem palavras), colaborando diretamente na dinâ- mica do colorido orquestral e, outras vezes, na conformação de uma conotação épica de algumas cenas. Além disso, ele completa a idéia do contraponto com os instru- mentos autóctones. A célula rítmica desse momento específico, adquire valor semân- tico na peça inteira (e também no filme inteiro), já que o texto “we can fight” ou “We can win”, mesmo que mais falado que cantado, confere a peça uma “vibração” que se integra às necessidades diretas do filme, tanto na narrativa das personagens pre- dominantemente masculinas do western, quanto nas possibilidades do filme em rela- ção à comercialização em outros mercados estrangeiros (os mesmos mercados de Hollywood).

215

Exemplo 17 – Coral Masculino - “We can Fight”

Existe também mais uma ponte, não mencionada por Miceli, onde a utili- zação das vozes do coral com a orquestra corrobora com as características citadas.

216

Figura 16 – Ponte 2 dee Titoli

Procurando sintetizar as informações da análise de Miceli com as informa- ções acrescentadas, a forma de Titoli pode ser pensada ccomo uma peça em inter- secção com outra. A intersecção se dá no modo de rock formando os pares: [arcaico + rock] e [rock + pseudo-sinfônico]. O esquema a seguir demonstra graficamente es- sa construção que também revela o procedimento formal da peça:

217

Figura 17 – Forma de Titoli

À análise da tripartição Miceli esclarece sobre o primeiro segmento (Arcai- co):

O primeiro segmento é, sem dúvida, o mais original e característico, sobre- tudo do ponto de vista das invenções tímbricas, mas pelos seus dotes de es- sencialidade implica – em relação ao contexto de aplicação – valores de in- dividualismo anárquico, de simpplicidade e dee força primitiva, de heroicidade privada de retórica, de neutralidade sentimental, de autenticidade, de anti- conformismo. Põe-se assim um plano de absoluta natureza e atemporalidade, na qual a função conotativa se identifica com a denotativa. É, sem dúvida, o segmento mais refinado e alusivo. (MICELI, 2001:167)

Sobre o segundo segmento (Rock):

218

O segundo segmento determina um salto notável, não só do ponto de vista estilístico. A figura heróica – mas também a figura retórica – se transforma e se atualiza. A componente transgressiva permanece (quem recorda o moto: “Sexo, Drogas e Rock-and-roll”?) mas, urbanizando-se, se identifica com um grupo ou com um clã. A eletrificação pode conduzir a tanto? Em sentido metafórico, acredito que sim. Em todo caso, além do impacto, a agressivida- de é destemperada do arco melódico, da ausência de atritos e de contrastes. Aqui, se quisermos, se abre uma porta nos confrontos da parte mais arrasta- da do consenso (e do consumo) musical. (p.168)

E, finalmente, sobre o terceiro segmento (Pseudo-sinfônico):

Com o terceiro segmento chegamos à integração social, no “retorno à ra- zão”, na qual domina um tom altamente retórico, triunfal, auto-celebrativo e um implante tímbrico e harmônico absolutamente convencional. Prevalece, em suma, os bons sentimentos e o gosto pequeno burguês reencontra as pró- prias referências e as próprias seguranças, também se a causa da coexistên- cia parcial ou total dos três segmentos qualquer um deverá procurar a parte predileta no interno das outras, e para fazê-lo deverá escutá-la. Isso poderia explicar, pelo menos em parte, as razões de um sucesso que em 30 anos pa- rece – caso raríssimo – intergeracional e intercultural, mas, que denota ao mesmo tempo o que defini como um processo restaurador. Um processo in- dolor, fruto de grande habilidade, mas, para sempre restaurador196. Eis a que coisas podem conduzir, entre outras, as invenções tímbricas e as misturas es- tilísticas. (idem)

196 Ver especialmente o capítulo Dalla scuola di Petrassi a Darmstadt, in Miceli, op.cit. pp. 41-63.

219

4.4.2 - Decupagem Duração do filme: 100 minutos (1:39:34 [1 hora, trinta e nove minutos e trinta e quatro segundos] mais precisamente). Total das Inserções Musicais: 56 minutos (0:55:56 [cinqüenta e cinco mi- nutos e cinqüenta e seis segundos] mais precisamente). Porcentagem com música: 56%; porcentagem sem música: 44%. O filme foi decupado em 99 partes contidas em 37 fragmentos (seqüên- cias). A diferença entre parte e fragmento é que o segundo é um trecho mais completo e que pode conter várias inserções musicais; portanto, parte é um trecho do fragmento que contém somente uma ou nenhuma inserção musical. Das 99 partes: 52 têm música; 47 não têm. A tabela abaixo apresenta as 52 inserções musicais e seus respectivos fragmentos:

Tabela 7 – Decupagem do filme Per un pugno di dollari - 1964

Nº CLASSIFICAÇÃO Nº INÍCIO FIM DURAÇÃO IDENTIFICAÇÃO MÚSICA NOME NO CD Derivação Fragmentos Or OBJETIVA

1 1 00:00:00 00:02:52 00:02:52 Créditos Iniciais Tema Principal Titoli TEMA 1 Externa Fragmento 1 Joe observa um Motivo - Joe (3 2 2 00:02:52 00:03:03 00:00:11 menino (com de Leitmotiv Joe TEMA 1 Externa Fragmento 2 vezes) nome Jesus) Joe é notado Quase Mor- 3 4 00:04:05 00:04:57 00:00:52 pelos homens Motivo - Bandidos to/Almost Dead - TEMA 1 Externa Fragmento 2 dos Rojo Parte 1 Joe pensativo, bebe água do 4 5 00:04:57 00:05:35 00:00:38 poço e ouve Sinos sem música TEMA 1 Interna Fragmento 3 sinos (imagem de uma forca) Joe entra no Quase Tema Principal + 5 6 00:05:35 00:06:23 00:00:48 povoado de San Mortro/Almost TEMA 1 Externa Fragmento 3 Rústico Miguel Dead - Part 2 Quase Mor- Joe e os homens 6 8 00:06:58 00:07:55 00:00:57 Motivo - Bandidos to/Almost Dead - TEMA 1 Externa Fragmento 4 dos Baxter Parte 1 Aprontando-se Motivo - Joe -

7 12 00:14:44 00:14:45 00:00:01 Leitmotiv Joe TEMA 1 Externa Fragmento 6 para o confronto uma vez

220

Tensão e Diálo- Som agudo go de Joe com Som estridente 1 8 13 00:14:45 00:15:19 00:00:34 estridente (violi- TEMA 1 Externa Fragmento 6 os homens de de 3 no) Baxter Joe deixa os Quase Mor- Baxter e vai 9 15 00:15:58 00:16:34 00:00:36 Tema Principal to/Almost Dead - TEMA 1 Externa Fragmento 6 encontrar com os Parte 2 Rojo Sonoridades que

10 18 00:18:02 00:19:09 00:01:07 Joe vê Marisol lembram o motivo Musica Suspesa TEMA 1 Externa Fragmento 8 dos bandidos Joe ouviu toda a similar Quase

11 20 00:20:15 00:20:38 00:00:23 Tema Principal TEMA 1 Externa Fragmento 8 conversa Morto parte 2 - Joe e Silvanito observam es-

12 25 00:24:22 00:25:32 00:01:10 condidos o Tema Principal Cavalgada TEMA 1 Externa Fragmento 12 massacre no Rio Bravo Ramon Rojo fica Espécie de

13 27 00:26:41 00:27:41 00:01:00 feliz com a Ramon TEMA 1 Externa Fragmento 12 marcha fúnebre situação Joe devolve o

14 29 00:29:49 00:31:41 00:01:52 dinheiro a Miguel Motivo Joe Leitmotiv Joe TEMA 1 Externa Fragmento 13 Rojo solo da melodia Silvanito deixa o

15 33 00:36:27 00:36:52 00:00:25 principal de titoli Solo de gaita TEMA 1 Externa Fragmento 16 cemitério na gaita Sonoridades nas

16 35 00:37:28 00:38:42 00:01:14 Joe e os Baxter Consuelo Baxter TEMA 1 Externa Fragmento 17 cordas (tensão) Os Baxter vão

17 38 00:39:36 00:40:10 00:00:34 atrás dos solda- titoli Cavalgada TEMA 1 Externa Fragmento 19 dos no cemitério Joe vê os Rojo ir atrás dos Baxter Tema 1 - solo de titoli - solo de

18 40 00:40:32 00:41:13 00:00:41 TEMA 1 Externa Fragmento 19 - Pula o muro da quena quena casa dos Rojo titoli - solo de Joe leva Marisol gaita e acompa-

19 54 00:49:06 00:49:22 00:00:16 à casa dos Tema 1 gaita TEMA 1 Externa Fragmento 21 nhamento de Baxter órgão Está muito coda variação

20 56 00:50:17 00:50:30 00:00:13 próximo de você tema 1 TEMA 1 Externa Fragmento 21 titoli ficar rico Troca de Marisol

21 57 00:50:30 00:50:56 00:00:26 Sinos Tocam Sinos Tocam TEMA 1 S/M Fragmento 22 por um Baxter Joe se senta Motivo Joe - 3

22 58 00:50:56 00:51:04 00:00:08 para assistir os Leitmotiv Joe TEMA 1 Externa Fragmento 22 vezes eventos Sonoridades Início da troca Scambio di

23 61 00:52:40 00:53:37 00:00:57 percussivas - TEMA 1 Externa Fragmento 23 dos prisioneiros prigionieri caixa e bumbo -

221

depois cordas e coro

24 68 01:00:15 01:01:41 00:01:26 Julio e Jesus Tema 1 Titoli TEMA 1 Externa Fragmento 26

Os Rojo ouvem os tiros e vão Funciona como averiguar - Joe Sonoridades

25 70 01:02:09 01:03:12 00:01:03 introdução ao TEMA 1 Externa Fragmento 27 destrói a casa e agitadas e tensas Tema 1 é salvo por Marisol Os Rojo se

26 71 01:03:12 01:03:36 00:00:24 Tema 1 titoli TEMA 1 Externa Fragmento 27 aproximam Os Rojo vêem os Tema 1 - parte B homens massa-

27 73 01:04:40 01:07:00 00:02:20 com Sonoridades Titoli TEMA 1 Externa Fragmento 28 crados e dão agitadas e tensas falta de Marisol Joe é descoberto Sonoridades

28 75 01:07:20 01:07:54 00:00:34 Tortura TEMA 1 Externa Fragmento 29 por Ramon graves e tensas Ele vai acabar Sonoridades de

29 77 01:09:03 01:10:30 00:01:27 Tortura TEMA 1 Externa Fragmento 29 falando tensão Sonoridades de

30 78 01:10:30 01:11:11 00:00:41 Joe mata Chico tensão - presença Tortura TEMA 1 Externa Fragmento 30 do Motivo Joe Sonoridades percussivas, Alla Ricerca

31 80 01:14:24 01:15:43 00:01:19 Joe escondido TEMA 1 Externa Fragmento 31 metais, coro e Dell'evaso glissandos tensos Sonoridades

32 82 01:16:54 01:18:22 00:01:28 Joe e Peripero Without Pity TEMA 1 Externa Fragmento 32 tensas Os Rojo atacam

33 83 01:18:22 01:18:52 00:00:30 Tema 1 Titoli TEMA 1 Externa Fragmento 32 os Baxter O fim dos Baxter

34 85 01:20:03 01:24:21 00:04:18 - Joe assiste do Sonoridades Tortura TEMA 1 Externa Fragmento 32 caixão Sonoridades percussivas - Scambio di

35 88 01:26:01 01:26:52 00:00:51 O plano de Joe caixa e bumbo - TEMA 1 Externa Fragmento 32 prigionieri depois cordas e coro A Placa protetora Motivo Joe mais Som grave e - Joe mata os

36 95 01:33:26 01:34:19 00:00:53 sonoridade aguda depois o estriden- TEMA 1 Externa Fragmento 36 homens de de tensão te 2 de 3 Ramon O Duelo final - sonoridades Tambores pré-

37 97 01:35:55 01:37:13 00:01:18 Silvanito salva TEMA 1 Externa Fragmento 37 percussivas duelo final Joe Os sinos tocam -

38 98 01:37:13 01:38:30 00:01:17 Sinos sem música TEMA 1 Interna Fragmento 37 Joe vai embora

39 99 01:38:30 01:39:34 00:01:04 FIM Tema 1 Titoli TEMA 1 Externa Fragmento 37

222

Joe simula uma conversa com os Per um pugno di Rojo e caminha Per um pugno di

40 10 00:12:41 00:13:59 00:01:18 dollari - Corne TEMA 2 Externa Fragmento 6 na direção dos dollari/Deguelo Inglês homens dos Rojo Os Baxter vão Per um pugno di

41 31 00:32:55 00:34:19 00:01:24 encontrar os Deguello TEMA 2 Externa Fragmento 15 dollari - Oboé Rojo Joe recebe 500 Tema 2 variado

42 39 00:40:10 00:40:32 00:00:22 Cavalgada TEMA 2 Externa Fragmento 19 dólares dos Rojo no oboé Os inimigos se Per um pugno di

43 60 00:51:20 00:52:40 00:01:20 Tema 2 TEMA 2 Externa Fragmento 22 aproximam dollari Jesus chorando corre para abraçar Marisol Motivo Joe - Per

44 62 00:53:37 00:54:38 00:01:01 (depois Julio) - O Tema 2 um pugno di TEMA 2 Externa Fragmento 23 Baxter recebe dollari um abraço e um tapa Per um pugno di

45 64 00:55:38 00:56:17 00:00:39 Fim da troca Tema 2 TEMA 2 Externa Fragmento 23 dollari Joe leva Marisol para o filho e o Per um pugno di

46 72 01:03:36 01:04:40 00:01:04 marido e lhes dá Tema 2 TEMA 2 Externa Fragmento 27 dollari dinheiro para que fujam Joe se recupe- Per um pugno di

47 87 01:24:39 01:26:01 00:01:22 deguello TEMA 2 Externa Fragmento 32 rando dollari Per um pugno di Explosão: Joe explosão de

48 93 01:29:36 01:31:29 00:01:53 dollari - solo de TEMA 2 Externa Fragmento 35 reaparece dinamite/Deguello trompete Chegada dos Tema

49 22 00:21:08 00:22:36 00:01:28 Square Dance Square Dance Externa Seqüencia 10 soldados Soldados Joe conhece Silvanito (Bar) e Peripero canta Trecho de Can-

50 9 00:07:55 00:12:41 00:04:46 Peripero (faz uma canção Z Canção Interna Fragmento 5 ção caixões de enquanto trabaha defuntos) Marisol Canta - Canção cantada Trecho de Can-

51 17 00:17:41 00:18:02 00:00:21 Joe é apresenta- em espanhol por Z Canção Interna Fragmento 7 ção do a Chico Marisol Motivo Joe (2 Z Canção vezes) antes e Leitmotiv

52 67 00:59:39 01:00:15 00:00:36 Joe bêbado Leitmotiv Joe Interna Fragmento 26 depois de uma Joe 2 Canção vezes

A trilha musical de Per un pugno di dollari é construída a partir de uma ma- terial temático bastante reduzido.

223

Das 52 inserções musicais, 39 são derivadas do TEMA 1 (Titoli); 9 são do TEMA 2 (Per un pugno di dollari) e somente 4 das inserçõees não estão relacionadas diretamente aos materiais de Titoli.

4.4.3 - Alguns Exemplos da Utilização do Tema 1: Titoli

4.4.3.1: Parte 01 – Créditos Iniciais (Titoli)

Figura 18 – Créditos Iniciais – Titoli - Sincronias

224

Os Créditos Iniciais de PER UN PUGNOO DI DOLLARI inicia com formas circula- res brancas movendo-se num fundo vermelho (como se fossem raios solares) numa rápida sincronia explícita com o ritmo do violão (“ritmo do cavalo”), da peça Titoli, cor- tando para silhuetas de homens a cavalo em cores invertidas em relação à frente e o fundo. O tema musical evocativo do western e a escolha de uma abertura do filme na forma de desenho animado, utilizando a técnica conhecida como rotoscoping, onde a animação foi obtida em “stop-motion” através de cópias traçadas sobre as siluetas de personagens do próprio filme, fotograma por fotograma, é plena de significados em vários níveis. Nas imagens, pode-se perceber o sentido de citaação, nesse caso uma es- pécie de homenagem à façanha de Muybridge como um dos precursores do cinema e um dos primeiros fotógrafos do western. A silhueta de um cowboy em seu cavalo pode também ser associada à Tex Willer197, o peersonagem de uma revista em quadri- nhos muito lida e apreciada por Sergio Leone no final de sua juventude (SIU198). A utilização desse tipo de citação tornar-se-á freqüente em vários filmes das duas trilo- gias de Leone.

197 Foi no dia 30 de setembro de 1948 que surgiu a primeira história de Tex. Chamava-se 'Il Totem Misteerioso". Com o balão "Por todos os diabos, será que ainda estão nas minhas costas?", começava a saga de um dos mais famosos cowboys dos quadrinhos. De 1948 a 1967 foram 36 histórias no formato de tiras semanais. No início, Tex cavalgava sozinho, seu cavalo (Dinamite) nem tinha nome e ele era forra-da-lei. Tex foi criado pela dupla Giovanni Luigi Bonelli e Aurelio Gallepini. As histórias eram publicadas no fformato de tiras com no máximo 3 quadrinhos. Cada semana saía um gibi com 32 páginas (32 tiras) e uma aveentura levava várias semanas para chegar ao fim, levando os leitores a comprar as próximas edições. Os admiradores das aventuras de Tex salien- tam a riqueza de informações, referências e verosimilhança histórica. Além de muita ação em todas histórias (com tiroteios por todos lados) o que torna a leitura interessante é o conhecimento que as histórias trazem. É enfocada a cultura dos índios, da vida dos pioneiros, de episódios marcantes e reais na história dos Estados Uni- dos da América, dos hábitos da época… Detalhes mínimos foram pesquisados antes de tornarem-se texto e dese- nhos, para que o leitor tivesse a noção exata do ambiente em que se passavam as aventuras. Tex pretendia aliar cultura e diversão e isso pode justificar o seu sucesso em muitos países do mundo (fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Tex, último acesso em 13/01/2011). 198 SIU, C. C’era una volta la storia : credit sequences and storytelling, Leone style, 2008.

225

Figura 19 – Citações de Sergio Leone: Muybridge

Figura 20 – Citações de Leone: Tex Willer

Os motivos das animações alternadas podem ser resumidos a três: caval- gada (de uma ou várias silhuetas de pessoas à ccavalo); situações de confronto (due- lo) e exibição dos créditos dos participantes do fiilme. Na utilização das silhuetas animadas dos próprios personagens, Leone está antecipando "veladamente" situações que ocorrerão posteriormente no próprio filme, uma espécie de "story-board" em movimento que “revela”, e simultaneamente “esconde”, o pré-projeto e o resumo do filme: o embate de Joe (Clint Eastwood) con- tra as duas famílias inimigas dos Baxters e dos Rojos que controlam San Miguel.

226

Figura 21 – Silhuetas dos próprios personagens

A animação utiliza um cuidadoso esquema tricollor contrastante: vermelho, preto e branco, mas, a figura de frente e o fundo dos fotogramas que a contém, na maioria das vezes, são apresentados somente aos pares bicolores, ou seja, com du- as cores das três, que vão se alternando calculadamente e com predominância do par preto e vermelho à frente e fundo, respectivamente, alternando para vermelho e preto. São pouquíssimos os segmentos em que todas as três cores são utilizadas. Quando isso acontece, normalmente, a frente se refere a palavras textuais que com- põe os nomes e as funções creditadas. É notável, também, que a silhueta de um homem cavalgando na cor branca com fundo vermelho é somente utilizada no início e fim da seqüência. As mudanças alternadas de cores e dos motivos da animação estão dire- tamente associadas ao tamanho das frases musicais utilizadas como demarcação sincrônica. Isso faz com que os elementos relacionados tanto a superfície quanto a estrutura da música sejam bastante evidenciados pela troca das imageens. No entanto, a “cola” audiovisual efetiva dos créditos iniciais está no canal de som articulado com as imagens e a música (som-música-imagens): o som do ga-

227 lope ou trote do(s) cavalo(s); o som de tiro(s); a duração das frases musicais; a dura- ção da música; as sonoridades percussivas da música; e as imagens das cavalgadas alternadas com duelos e textos dos créditos. De forma a observar e analisar a estrutura música-som-imagem dessa se- qüência foi utilizado o procedimento que Chion (1994) denominou de mascaramento. Acompanhando a seqüência várias vezes, algumas vezes só as imagens, outras com a música e as imagens, e outras integralmente, ou seja, algumas retirando (“masca- rando”) a imagem e outras os elementos sonoros. Segundo Chion (1994) isso dá a oportunidade de ouvir o som e a música como eles são, e não como a imagem os transforma e os disfarça; e também permite ver a imagem como ela é, e não como o som e a música a recria. Chion (1994) enfatiza que, provavelmente, não exista uma ordem ideal nesse tipo de tratamento do som, música e imagem numa determinada seqüência audiovisual. Porém, a idéia principal é que separando os elementos sonoros e os visuais, antes de assistí-los juntos novamente, pré-dispõe mais favoravelmente a manter nossa audição e o nosso olhar estimulados, abertos para as surpresas dos encontros audiovisuais.

Deve-se ter em mente que o contrato audiovisual nunca cria uma fusão total dos elementos de som e imagem; ele permite que os dois componentes subsis- tam tanto separadamente quanto combinados. O contrato audiovisual verda- deiramente permanece uma justaposição ao mesmo tempo em que cria uma combinação. (CHION, 1994)

A seqüência também é um exemplo otimizado do efeito denominado por Chion (1994:3-24) de valor agregado: “um efeito criado por um acréscimo de infor- mação, de emoção, de atmosfera, conduzido por um efeito sonoro e espontanea- mente projetado pelo espectador (o áudio-espectador, de fato) sobre o que ele vê, como se esse efeito emanasse naturalmente”; e o de síncrese: (neologismo criado pela fusão das palavras síntese e sincronização) “efeito psico-fisiológico, considera- do como ‘natural’ ou ‘evidente’, em virtude do qual dois [ou mais] fenômenos senso- riais em sincronia (no nosso caso, música-sons-imagem), são percebidos ‘irresisti- velmente’ como evento único, procedente de uma mesma fonte”.

228

Figura 22 - Valor Agregado e Síncrese (Michel Chion)

O som “natural” do galope do(s) cavalo(s) e do(s) tiro(s) sincronizado(s) com o movimento das imagens são “evidentes” na animação das ssilhuetas e são “absorvidos” pela música, especificamente por sua seção rítmica e pelo seu fraseado que, por sua vez, agrega temporalmente o significado de todas as sonoridades obje- tivas e subjetivas às imagens. As imagens são percebidas como fonte das sonorida- des e parecem ditar o andamento da música e daas demais sonoridades.

Esse efeito explica como nos desenhos animados do começo dos anos trinta a música se projetava de qualquer objeto desenhado, criando uma relação di- reta entre imagem e som. O effeeito mais óbvio de síncreese é sem dúvida o mickeymousing – sincronia absoluta entre animação e música, muito utiliza- da nos desenhos animados dos estúdios de Walt Disney. (Idem)

As imagens animadas e as sonoridades dos créditos iniciais de Leone com a música de Morricone são bem distintas das dos westerns contemporâneos de

Hollywood como, por exemplo, THE MAGNIFICENT SEVEN (SETE HOMENS E UM DESTINO), 1960, dirigido por John Sturges, música de Elmer Berstein, ou as pinturas tradicio- nais de cowboys e índios projetadas em HOW THE WEST WAS WON (A CONQUISTA DO

OESTE), 1962, com direção dividida entre John Ford, Henry Hathaway e George Marshall, música de Alfred Newman. Siu (idem) vê nas duas citações implícitas de Leone (Muybridge e Tex Wil- ler) uma nova forma de contar histórias através do filme: “os ‘stills’ de Tex Willer tor- nam-se animados com uma grande sensação de fluidez, enquanto que os movimen-

229 tos fotográficos de Muybridge são transpostos de uma forma pioneira de um movi- mento que não era inteiramente fluido – os créditos iniciais são, desse modo, uma celebração da edição rápida e fluida”. Como também já foi mencionado, Carreiro (2010) enumera as “alusões a filmes anteriores e/ou momentos característicos do gênero” como contribuições de Sergio Leone às ferramentas que fazem parte do processo de continuidade intensificada de Bordwell. A música dos créditos iniciais só retornará completa (porém, sintetizada) no final do filme, que não tem Créditos Finais, mas, simplesmente a palavra “FINE”.

4.4.3.2: Partes 2, 7, 14, 22, 30, 36 e 52 – Leitmotiv do protagonista Joe (Clint Eastwood) Parte 2. Na coda da música dos créditos iniciais (Titoli), a imagem é corta- da para um chão seco, arenoso e cheio de pedras que, pouco a pouco, mostra-se como a entrada de um vilarejo, uma cidade que posteriormente é nomeada: San Mi- guel. Essa cidade é o local onde praticamente toda a ação do filme ocorrerá. A cida- de foi pretensiosamente pensada para imitar uma fronteira entre o sudeste dos Esta- dos Unidos e o México, próximo ao famoso Rio Bravo, imitando o modelo de local geográfico, uma das grandes características do western americano e que se tornou uma das convenções do gênero. Rapidamente, em aproximadamente 5 segundos, a audiência pode obser- var, em plano fechado, patas que se revelam, aos poucos, de uma mula trotando lentamente e com o seu som característico sobreposto ao da música Titoli. Com um movimento contrário ao trotar da mula a câmera vai abrindo para um plano geral en- quanto a música dos créditos iniciais está terminando. Podemos ouvir o assovio de Alessandro Alessandroni terminando a melodia e a presença ostensiva do acompa- nhamento com os instrumentos de percussão e a insistência do sino em primeiro plano. Montado na mula vê-se as costas de um homem (Clint Eastwood) com um chapéu preto e um estranho ponche chegando à entrada da cidade. Posteriormente, sem se apresentar, o homem será chamado de Joe por Peripero (Joseph Egger). Podem ser vistas no horizonte algumas colinas, que também são tão típicas das pai- sagens onde normalmente são filmados os Westerns americanos, e duas casas

230 brancas, uma em frente a outra, parecendo delimitar a entrada da cidade. Joe se aproxima de um poço, desce de sua mula e tira água para beber. Com a sobreposi- ção do som da corda do poço, movendo-se numa roldana amarrada em três pedaços de troncos de árvore, a música termina. A imagem é cortada para o plano oposto e fechado de Joe bebendo água. Enquanto bebe ao lado do poço ele observa um me- nino correndo em direção a uma das casas. Essa visão do homem é acompanhada por três execuções da seguinte sonoridade ou fragmento musical, sobreposto ao o som de água, dos passos do menino correndo e do relinchar da mula do homem:

Figura 23 – Motivo Joe

Essa “micro-célula” foi inúmeras vezes executada como elemento de acompanhamento na música dos Créditos Iniciais – Titoli e, pelo número de vezes e a forma como foi executada, fixou-se como um elemento “pertinente” e possível de recorrência pelo compositor. Com esse simples procedimento de execução sincrôni- ca entre a imagem focada no olhar de Joe e a “micro-célula” musical – isolada do contexto onde apareceu inicialmente –, executada, nesse caso, de modo imperceptí- vel às personagens da ação filmada (nível externo, segundo Miceli ou extra- diegético, segundo Gorbman), mas, completamente perceptível e inesperado à audi- ência do filme, é criado por associação recíproca (imagem–músicca ou música– imagem) o que para toda a teoria da música de cinema é referido como um princípio básico de articulação narrativa: um leitmotiv. Essa associação criada arbitrariamennte de um elemento musical ou sono- ro, sem forma definida e sem tamanho definidoo, também rreferido como motivo con- dutor ou motivo de reminiscência, é herança dos procedimentos, principalmente wagnerianos, relacionados à composição da ópera. Teoricamente, todo breve impac- to sensorial relacionado ao fragmento musical pode ser, consciente ou inconsciente- mente, associado à imagem de Joe, o homem de chapéu e de ponche. Os atributos objetivos ou subjetivos da forma como é executado o fragmento, commo, por exemplo,

231 o som agudo da flauta doce, a execução ágil com características de leveza, seu tim- bre, suas qualidades relacionadas à madeira ou o bambu (o material com que o ins- trumento é construído) entre outros, podem ser “transferidos” pela associação às qualidades objetivas ou subjetivas tanto da aparência quanto do caráter do persona- gem. Gorbman (1987) comenta:

Richard Wagner definiu algumas características da utilização dos motivos na ópera: ele deveria ser apresentado primeiro em conjunto com o texto ver- bal - uma linha melódica poética (Versmelodie). Essa melodia apareceria mais tarde na orquestra, mas sua referência precisa iria ser firmada pelo contexto verbal. No cinema, a associação entre imagem e música é suficien- te, independente da linguagem verbal. Isso acontece pelos recursos de en- quadramento, como o close-up (o que não acontece na ópera) que permite que se criem vinculações entre imagens específicas e motivos sonoros. (GORBMAN, 1987)

Fraile (2001:150-151) interpreta essa primeira associação motívica como reveladora da atitude vigilante do pistoleiro e de sua capacidade de intuição. Nesse sentido, “A personalidade do protagonista fica dessa maneira reduzida a um só pla- no: seu sigilo, sua capacidade de passar inadvertido, sua atitude alerta e calada”. Ele acrescenta que esse aspecto será reforçado pelo tipo de diálogo usual à persona- gem: “são intervenções muito breves e escassas, quase sempre irônicas, com duplo sentido ou como uma ameaça encoberta”. Obviamente, essa primeira associação motívica não revela objetivamente tantas características para que Fraile possa deduzir de modo tão inequívoco todas as informações citadas, mas, com certeza, induz a “um tipo de olhar” em relação ao personagem que potencializa muitas inferências, inclusive as emitidas. Adorno e Eisler (1945) sustentam que esse procedimento, conjuntamente com outros, estabelece-se como um vício (mau-costume) que se reflete numa possí- vel redundância entre as forças dramáticas e as sonoridades. Porém, esse não pare- ce um caso de qualquer tipo de redundância problemática, mesmo que a sonoridade pentacordal tenha sido utilizada tantas vezes na música dos créditos iniciais. Nesse caso específico, a sonoridade, por ser inesperada, captura a atenção em direção ao

232 homem e os acontecimentos que ele presencia, criando uma primeira associação. A articulação dos elementos visuais e sonoros com os derivados do material musical conhecido cria, factualmente, uma engenhosa possibilidade de recorrência, que aponta para uma possível coerência, e não uma simples redundância que possa se constituir como um vício ou mau-costume. Chion (1990) fala da “fluidez estruturante do leitmotiv”:

O leitmotiv, independente do fato de poder representar um som preciso e fi- xo, identificável por um nome [no caso a “micro-célula” de Joe], encarna o real movimento da repetição, que, dentro da seqüência de imagens e sons próprios ao cinema, desenha e delimita pouco a pouco um objeto, um centro. Ele garante ao tecido musical um tipo de elasticidade e de fluidez, caracte- rística dos sonhos.

Em suma, a recorrência musical da “micro-célula” pentacordal tem a pos- sibilidade de referenciar o personagem Joe, mesmo que ele não esteja presente. Além disso, o significado da peça Titoli, devido a presença da sonoridade original, é reconfigurado com novas possibilidades de interpretações e significados oriundos da associação leitmotívica.

Posteriormente, o leitmotiv de Joe também é ouvido nas partes relaciona- das abaixo. Parte 7: segundos antes dele enfrentar quatro homens dos Baxters em duelo. Depois de um diálogo irônico onde Joe afirma que sua mula está muito contra- riada por ter sido assustada pelos quatro (no momento em que eles chegaram na cidade). Como na cena do duelo final o motivo é precedido pelo “som tônico” agudo da nota Ré. Parte 14: quando Joe é apresentado a Ramon Rojo, o personagem que representa o principal antagonista. Ramon faz um discurso mentiroso dizendo que está cansado da vida de matança contra os Baxters e que resolveu fazer a eles uma proposta de paz definitiva. “Decidi pendurar minha arma na parede”, ele diz. Joe ou- ve tudo com muita indignação, pois sabe que Ramon esta mentindo. “Isto tudo é mesmo, muito tocante”, exclama ironicamente. Ramon pergunta: “Você quer dizer

233 que não admira a paz?” Joe responde: “Não é fácil gostar de algo que você não sai- ba nada a respeito”. Ramon replica: “Fique em San Miguel e você poderá ganhar experiência”. Joe responde: “Não, obrigado. Não estou preparado”. Joe coloca o pe- culiar charuto na boca enquanto a sonoridade é executada. Joe “abandona” o traba- lho com os Rojos. Parte 22: no momento que precede a troca de prisioneiros entre os Bax- ters e os Rojos. Nos preparativos, Joe sai do bar de Silvanito com uma cadeira para assistir a troca. Enquanto ele senta para “apreciar” o evento o seu leitmotiv é execu- tado três vezes. Parte 30: logo após a surra que ele leva dos homens dos Rojos, que qua- se o matam de tanto bater, por terem descoberto que ele estava fazendo um jogo duplo, já que prestava serviços também aos Baxters. Os Rojos tentam através de uma seção de torturas arrancar uma confissão e informações sobre o procedimento. Joe, mesmo torturado violentamente, consegue se manter calado. Cansados de tan- to bater os Rojos deixam Joe, muito ferido, preso num celeiro para continuar a seção de tortura no dia seguinte. No momento em que Joe está só, o leitmotiv é executado sete vezes. Dessa vez mais lentamente e de forma continua, uma oitava mais baixa em relação ao original. A transformação comenta o seu estado lastimável. Parte 36: do mesmo modo que na parte 3, o leitmotiv de Joe é ouvido no momento que precede o duelo final entre Joe e os Rojos. Parte 52. na cena da troca dos prisioneiros, Joe se dá conta da importân- cia que Marisol tem para Ramon. Prosseguindo na implementação de seu plano de jogar uma família contra a outra, ele finge voltar a trabalhar para os Rojos que “estão alegres por ter o americano com eles”, pois, se o governo mexicano começar uma investigação (sobre a matança do Rio Bravo) precisarão de todos os homens que puderem ter. Além disso, depois do confronto com os Baxters no cemitério, um con- fronto mais aberto é eminente: “Acho que se entrarmos em guerra com os Baxters agora será pior do que sentar em um barril de dinamite”, exclama Esteban Rojo (Sie- ghardt Rupp) para Dom Miguel (Antonio Prieto), em um “churrasco” especial que os Rojos estão oferecendo aos seus empregados. Ramon vai fazer uma viagem de “ne-

234 gócios” e estará ausente por um dia. Ele dá ordem a cinco de seus homens que es- coltem Marisol para a “casinha” e que permaneçam lá vigiando até que ele retorne. Na saída ele diz para que todos aproveitem para comer e beber durante a sua curta ausência. Joe se junta a Chico (Mario Brega) e aos outros homens: “Vocês ouviram Ramón. Tenhamos um bom momento”. No final da festa, Joe, fingindo estar bêbado, é carregado para um quarto por um dos homens. Ele canta uma canção pendurado nos ombros do homem. Abrindo e fechando a canção, o leitmotiv anuncia seu fingi- mento como parte do seu próximo passo no plano: libertar Marisol (Mariane Koch), seu marido Julio (Daniel Martin) e o filho Jesus (Nino Del Arco).

4.4.3.3: Partes 33, 40 e 54 – Solos diferenciados da melodia principal Parte 33. O objetivo de Joe é jogar uma família contra a outra. Com esse plano em mente, logo após assistir a matança dos soldados pelos Rojos no Rio Bra- vo, pega dois soldados mortos e os leva junto com Silvanito ao cemitério de San Mi- guel. A idéia é lançar um boato de que os dois soldados sobreviveram ao massacre e, conseqüentemente, como sobreviventes, poderiam testemunhar contra Ramon e os Rojos. Ele se encarregaria de informar, “por um punhado de dólares”, as duas famílias rivais. Joe coloca os dois soldados mortos sentados e encostados numa se- pultura de forma que pareçam estar de guarda. Silvanito não entende o que Joe está fazendo e, indignado com a profanação, deixa o cemitério. Nesse momento ouve-se, sobrepondo o som de grilos que dão ambiência ao cemitério, o som da melodia prin- cipal de Titoli, executado lentamente por uma gaita de boca com muito rubato e vi- brato. O som melancólico da melodia executado pela gaita parece referenciar os sol- dados mortos, ao mesmo tempo que reforça o caráter solitário de Joe. A música também é utilizada como música de corte, pois passa a idéia de finalização da se- qüência, “arrematando-a”. Parte 40. Nessa cena os Rojos pagam a Joe pelas “valiosas” informações sobre os soldados “sobreviventes” e se dirigem, rapidamente, para o cemitério para matá-los. Joe pega o dinheiro e finge que vai embora. Quando os Rojos se distanci- am ele pula o muro da casa dos Rojos para prosseguir com o seu plano: libertar Ma-

235 risol. No momento em que ele se aproxima do muro, a melodia principal de Titoli é interpretada, em andamento normal, por uma quena, acompanhada pelo ritmo carac- terístico do “galope do cavalo” executado pelo violão. O sentido é de finalização da seqüência anterior e preparação para a seguinte, já que Chico permaneceu de guar- da na casa dos Rojos. Parte 54. O solo executado pela gaita de boca nessa parte é igual ao da 33, mas é acompanhado por um órgão. O objetivo é comentar o estado lastimável de Marisol, a mãe de Jesus, que é forçada por Ramon a ser sua companheira, amea- çando-a, caso não colabore, de matar seu filho e seu marido. Joe, na ausência dos Rojos que foram ao cemitério averiguar a questão dos soldados “sobreviventes”, le- vou Marisol para a casa dos Baxters para que Consuelo Baxter tomasse conta dela.

4.4.3.4: Partes 4, 21 e 38 - Sinos O som diegético ou interno que assume grande importância no filme rela- ciona-se as badaladas do sino de San Miguel, executadas por Juan de Dios (o louco) toda vez que alguém morre. A importância dramática dessas sonoridades amplifica- se já que são recorrentes e semelhantes as do sino utilizado na música dos créditos iniciais, Titoli, por Ennio Morricone. A nota musical de referência para o sino, nos dois casos, é a tônica de toda a trilha musical: Ré.

4.4.3.5: Partes 8 e 36 – Sons Tônicos Uma sonoridade única e diferenciada, utilizada dramaticamente nesse fil- me, é composta por uma nota Ré muito aguda sustentada continuamente por violi- nos. Nas duas utilizações, ela precede os dois momentos de duelos e é ouvida ligada à “micro-célula” leitmotívica de Joe: a primeira, logo no início do filme (parte 8), quando Joe mata quatro homens dos Baxters; e a segunda, no final, quando Joe li- quida com os Rojos (parte 36). Chion (1997) classifica essas sonoridades dramáticas utilizando como re- ferência a denominação empregada por Pierre Schaeffer de “sons tônicos”.

Sons onde a massa nos faz escutar uma altura [nota] precisa. Se os sons são situados como emanação "natural" - um motor de um automóvel, um ruído

236

de elevador, ou certos zumbidos naturais - essa percepção se dissolve. É mú- sica, dentro do universo concreto do filme, aquilo que escapa às leis do real, aquilo que parece existir dentro do som, independente do que se vê. E, den- tro da medida onde essa dimensão existe independente do real, ela pode ser a representação de uma ordem simbólica, criadora, organizadora, suscetível de agir sobre o resto do filme, de organizá-lo e guiar. (CHION199)

Nas duas utilizações é como se o tempo fosse congelado. Leone alterna suas famosas tomadas em planos fechados dos rostos dos personagens da cena, amplificando de modo considerável a tensão que antecede os disparos das armas.

4.4.3.6: Partes 16, 23, 25 – Sonoridades tensas e sons percussivos. Parte 16. O xerife, John e Consuelo (o casal Baxter) retornam a casa após o jantar com os Rojos. John comenta com ela que “a única razão que os Rojos pode- riam ter para começar uma guerra com eles, seria seqüestrar o seu marido”. Ele pa- rece estar acreditando na proposta de paz dos Rojos quando comenta: “É galante esse Rojo, realmente não pensei que seria capaz de elogiá-lo”, se referindo a Ra- mon. Sua esposa, Consuelo, parece ser mais perspicaz: “Tudo que ele disse é falso, como as propostas dele”. O xerife Baxter retruca: “Mulheres! Se as coisas não estão complicadas para vocês... vocês suspeitam”. Consuelo concorda: “Sim. Para mim, o que aconteceu não parecia certo. Foram muito amáveis. Não confio neles”. John Baxter comenta que ela simplesmente gostaria de provar que está tudo errado. “Sempre a mesma coisa”, ele diz. Consuelo encerra a discussão dando “boa noite”. Ela sobe as escadas e vai para o quarto deles, no andar de cima da casa. O xerife também diz “boa noite”, mas, permanece na sala, terminando de beber um licor. Nesse momento, ouve-se uma inserção musical que Morricone denominou de Con- suelo no CD. As cordas entram em uníssono na nota Lá(a dominante da trilha musi- cal inteira) divididas em dois grupos, na região média. Um grupo sustenta a nota Lá; enquanto, o outro, é também subdividido em dois grupos. Ambos, lentamente, execu- tam as notas Lá, Sib, Si natural, provocando a justaposição harmônica dos intervalos de uníssono, segunda-menor, segunda-maior. Nessa última nota, um grupo da se- gunda subdivisão permanece na nota Si, enquanto que o outro termina a progressão

199 CHION, M. La musica en el cine. Barcelona: Paidos Iberica, 1997.

237 em semitons até a nota Dó. O Resultado geral é a superposição das notas Lá, Si, Dó, que pode ser interpretada como um acorde de Lá menor com nona, a mesma dissonância enfatizada na harmonização de Per un pugno di dollari (Tema 2). A ca- racterística lenta e, predominantemente, dissonante da inserção parece estar em desacordo com a cena, até o momento em que Consuelo entra no seu quarto pouco iluminado. Sobre o insistente pedal da nota Lá, um dos grupos das subdivisões salta para a nota Mib (trítono) e, mais rapidamente, se dirige para a nota Ré. O outro gru- po, num gradativo crescendo de intensidade e, também, com um gradual aumento dos momentos da troca de notas, salta para Fá# (oitava acima da região média) e se dirige a nota Fá natural. Imediatamente, inicia-se um trêmulo com as notas Dó#, Ré, Fá, Fá#, Lá, Sol#, Si, Sib, Mib, Fá#, dirigido para a região aguda. Toda essa fusão musical aumenta mais o caráter de tensão da cena. Consuelo está trocando de rou- pa para se deitar, e, no momento em que vai apagar a luz de um sofisticado lampião, vê-se a mão de alguém pegar no seu pulso. Sincronizadamente com a imagem, o som de tímpanos são sobrepostos aos trêmulos das cordas que, num glissando as- cendente para a nota Lá, se colocam em segundo plano. A câmera fecha na figura de Joe, tapando a boca de Consuelo para que ela não grite. “Não se preocupe. Não vou feri-la”, ele diz. Enquanto Joe descreve o massacre dos soldados mexicanos no Rio Bravo pelos Rojos, a imagem é cortada para John Baxter, que ainda está na sa- la. A música, agora com a presença de madeiras e metais, “envolve” a nota Lá, reali- zando glissandos em tutti e sforzati com as notas Sib-Lá e Sol#-Lá. Consuelo chama John Baxter, num tom alto e preocupante. John sobe as escadas correndo e, no momento em que abre a porta do quarto, tem o seu revólver habilmente retirado de sua cintura por Joe, que esperava atrás da porta. Exatamente nesse momento, a inserção termina com a mesma nota inicial: Lá. Ele diz para o xerife: “Sinto, mas quando um marido acha um homem com a esposa dele em um quarto, não se sabe como irá reagir”. Consuelo diz ao marido que dê $500 dólares a Joe. O xerife fica confuso: “Como é que é?” Ela confirma: “Dê o dinheiro a ele. Ele tem uma história interessante. Escute”. Com um corte seco, inicia-se, elipticamente, a próxima cena com o próprio Joe informando aos Rojos que os Baxters já sabem sobre o massacre

238 e que estão se dirigindo ao cemitério onde os dois soldados sobreviventes estão à espera de socorro. O meticuloso plano de Joe está se concretizando. Parte 23. Essa parte inicia a troca de prisioneirros: Marisol (companheira forçada de Ramon Rojo), que foi levada por Joe a casa dos Baxters, por Antonio (fi- lho do casal Baxter), capturado no confronto das duas famílias no cemitério. Morrico- ne inicia com sonoridades percussivas de uma fanfarra reealizadas por um surdo e uma caixa clara com esteira.

Figura 24 – Fanfarra que precede a troca de prisioneiros

Os homens dos Rojos se dirigem à cavalo na direção de uma área central na cidade, bem em frente ao Bar de Silvanito (o mesmo local dos duelos e principais eventos do filme). Joe assiste ao evento junto ccom Silvanito. Silvanito tem com ele também o garoto Jesus que começa a chorar copiosamente quando vê sua mãe num dos cavalos. O menino chama a mãe aos gritos, no mesmo momento que um trom- pete é acrescentado à fanfarra executando a noota Lá. Imediatamente sobre essa no- ta pedal, cordas em oitavas na região grave e média executam uma figura melódica em semicolcheias Lá, Sib, Sib, Lá, duas vezes, provocando dissonâncias harmônicas de sétima-maior e de, sua inversão, segunda-menor sobre a nota dominante da trilha inteira. O mesmo procedimento é repetido quarta acima, em torno da nota Ré, a Tô- nica da trilha inteira. Nesse exato momento o menino Jesus se solta das mãos de Silvanito e corre em direção a sua mãe que, também chorando, desce do cavalo e corre ao seu encontro para abraçá-lo. Entre cortes intercalados e intermitentes de imagens dos rostos ameaçadores dos homens dos Rojos e dos Baxters, cada vez mais rápidos, e a imagem da descida da mãe, a música acrescenta as vozes de um coral dobrando as notas pedais do trompete quee, agora, move-se intermitentemente nas notas Lá e Ré, com a presença da fanfarra e da figura melódica das cordas sem

239 a repetição anterior, também num aumento gradual do andamento e da intensidade sonora. No momento do abraço dos dois, a imagem é cortada para o olhar fixo de Julio, o pai de Jesus. Todos os instrumentos da inserção são retirados, permanecen- do somente o som da caixa em decrescendo sob o triste olhar de Julio. Outra utilização da música dessa inserção se dá no final da Parte 47 quando Joe, escondido por Peripero e se recuperando dos ferimentos, prepara uma chapa de ferro que servirá como escudo dos tiros da Winchester de Ramón. A fanfar- ra é introduzida quando Joe bate várias vezes com um martelo na chapa de aço, em sincronia perfeita com o ritmo da fanfarra (mickeymousing) que, com a entrada dos novos instrumentos, pontua o grande perigo da empreitada de Joe. Parte 25. É a cena em que Joe liberta Marisol, Julio e Jesus das mãos dos Rojos. Joe invade uma das casas dentro da fazenda dos Rojos, situada bem distante da casa central, e mata friamente todos os homens que vigiavam Marisol. Os tiros são ouvidos pelos Rojos que imediatamente pegam os seus cavalos e se dirigem para lá. Na montagem paralela, Morricone utiliza uma variação do “ritmo do galope do cavalo” ( ) executado por instrumentos da orquestra (tímpano, madeiras e qeeqee cordas na região grave) enquanto um trompete, com dobramentos de flautas executa figuras melódicas sempre com as notas Sol, Mi, Sib, Lá. Toda essa mistura de sono- ridades serve, na realidade como introdução para uma variação que utiliza como me- lodia principal a parte classificada como “Ponte” na análise da peça Titoli. Assim que a imagem é cortada para os Rojos cavalgando apressadamente em direção à casa, o coral masculino inicia a melodia, cantando em uníssono e em semibreves as notas Lá, Si, Dó (a nota Dó é sustentada por dois compassos [duas semibreves]). A mon- tagem que paraleliza a aproximação dos Rojos é a de Joe reunindo Marisol, Julio e Jesus. A passagem é repetida mais duas vezes e, após a última (nota Dó), todos os instrumentos são retirados, permanecendo somente as vozes e as cordas que se dirigem para um Mi agudo (como quinta de Lá). Na nota sustentada, a imagem fixa- se na de Joe dirigindo-se a Marisol: “Aqui estão vocês. Agora, peguem este dinhei- ro”. Nesse momento ouvimos a resolução da nota Mi, das vozes e das cordas, num

240 acorde de Ré menor. O Tema 2, Per un pugno ddi dollari, é então executado pelo cor- ne-inglês e com o acompanhamento das vozes e das cordas. Joe prossegue: “O di- nheiro é o bastante para se manter por algum tempo. Vão beirando o rio. Ponham uma boa distância entre vocês e San Miguel, a maior possível”. Julio pergunta: “Co- mo podemos agradecer o que está fazendo?” Joe responde: “Não tente. Vão andan- do antes que os Rojos cheguem”. Joe empurra Marisol com Jesus no colo e Julio para que se apressem. Marisol ainda se vira para Joe e pergunta: “Por que está fa- zendo isto por nós?” Joe responde: “Porque eu conheci alguém como vocês uma vez. Não havia ninguém lá para ajudar. Agora vão embora”. Eles ficam parados, mas Joe insiste: “Vão embora. Saiam daqui!” Os três, então, seguem o seu caminho. A música termina com a intermitência da imagem dos três se afastando e o olhar de Joe que, apressa-se a fechar a porta da casa e se afasta, apressado pela proximida- de das sonoridades dos cavalos dos Rojos.

4.4.3.7: Partes 3 e 6 – A sonoridade dos banddiidos Parte 3. A primeira vez que Joe é notado pelos homens dos Rojos é logo no início do filme, quando ele está bebendo água no poço. Do poço ele assiste a sur- ra que Chico dá covardemente em Jesus e Julio. Depois de um plano fechado no pai do menino que está caído no chão e sendo chutado e pisoteado muitas vezes por Chico, a imagem fecha na lateral esquerda das costas de Chico. Com o movimento da câmera é possível acompanhar o giro do corpo e a direção do olhar de Chico que, junto ao poço, percebe a presença de Joe bebendo água. Sincronizado ao giro de Chico ouve-se o som grave de um piano executando o seguinte fragmento musical:

O fragmento utiliza a figura do acompanhamento do violão na música dos créditos iniciais, Titoli, mas, no tom mais grave e no modo como é executado, com o acompanhamento percussivo de um tambor, revela características mais obscuras que são associadas aos bandidos e aos perigos que eles representam. Uma flauta, na região grave, executa as notas Ré, Sol, Lá, em semibreves, as notas de apoio da

241 melodia principal do tema 1. No momento que Chico e seu companheiro se retiram, um violino é introduzido realizando também a figura rítmica e melódica do violão nu- ma região média e em tempos distintos das sonoridades graves do piano. Uma gaita de boca dobra a flauta que agora executam as notas Dó e Ré, completando a idéia melódica de Titoli. Os instrumentos pontuam um acorde com as notas Ré-Lá no mo- mento que a imagem é fixada em Joe que vê os bandidos indo embora. A música prossegue com os mesmos elementos enquanto Julio leva Jesus a salvo para dentro de uma casa. Joe percebe a presença de Marisol olhando de uma janela. A música interrompe os sons percussivos e inicia um fragmento onde são enfatizadas quintas paralelas como sonoridades primitivas. As notas Sol-Lá-Ré-Lá são realizadas por flautas e as notas Dó-Ré-Sol-Ré, pela gaita de boca, também com flautas dobradas. A imagem é fixada em plano fechado no rosto de Marisol olhando na direção de Joe. Os instrumentos sustentam as notas Lá-Ré enquanto ela olha rapidamente para Joe e, com a execução pelo piano do motivo rítmico do violão, bate a janela, cortando a música e a imagem dela para, em plano fechado, o rosto de Joe. Parte 6. No momento em que Joe entra na cidade, logo após ter conheci- do Juan de Dios, o louco que toca o sino da cidade toda vez que alguém morre, ele prossegue em direção ao centro do local. O tema anterior entra da mesma forma a medida que Joe observa as janelas das casas e os detalhes do caminho que ele se- gue. Então, ele é interrompido pelos homens dos Baxters, que querem que saia da cidade de San Miguel, atirando várias vezes em direção as patas de sua mula que sai em disparada. Os tiros sobrepõem e cortam a sonoridade da inserção musical.

4.4.3.8: Partes 50, 51 e 52 – “Source Music” e Canções Existem poucos momentos no filme onde podemos ouvir música ou sono- ridades que remetem a uma idéia musical presente nas imagens e que seja executa- da ou percebida pelas próprias personagens envolvidas na ação do filme. Três momentos em que são utilizadas canções são muito breves e de pouca importância no que se refere ao estabelecimento de entidades temáticas. A utilização nos três casos remete a uma “naturalidade” ou ambientação das cenas e

242 os trechos das canções que estão sendo cantadas não são recorrentes e, portanto, sem maior importância ou significados ulteriores. Os momentos são:

Parte 50. Apresentação da personagem Peripero trabalhando nos caixões de defunto. Ele canta enquanto trabalha. A canção pare- ce ser La Cucaracha.

Parte 51. O momento em que Joe (Clint Eastwood) vê pela se- gunda vez (a primeira é no momento inicial do filme quando Chico dá uma surra em Jesus) a personagem Marisol (Marianne Koch). Marisol está cantando uma canção em espanhol.

Parte 52. Joe, fingindo estar bêbado, canta o trecho de uma can- ção em inglês.

4.4.4 - Alguns Exemplos de utilização do TEMA 2 – Per un pugno di dollari

4.4.4.1: Partes 40 a 47 – A música do confronto Parte 40. O tema 2 é ouvido quando Joe toma as últimas informações so- bre a cidade de San Miguel no momento que conhece Silvanito (José Calvo) o dono do Bar falido da cidade. Silvanito insiste para que ele deixe a cidade ou morrerá. Joe exclama enquanto se dirige a uma sacada, no andar de cima do Bar de Silvanito: “As coisas sempre parecem diferentes vistas de cima”. Da sacada ele consegue visuali- zar toda a cidade e alguns homens que parecem estrangeiros. “Quem são eles?”, pergunta a Silvanito, que responde: “Bandidos e contrabandistas”. Olhando na dire- ção das casas ele prossegue: “Eles vêm do Texas. Cruzam a fronteira para pegar armas e bebidas. O preço é muito menor aqui. Então, voltam e vendem as armas e as bebidas para os índios”. Joe indaga: “Qualquer cidade que venda armas e bebi- das tem que ser rica”. Silvanito retruca: “Não a cidade, só esses que compram e vendem e os chefes são os que enriquecem”. Joe afirma: “Alguém tem que dirigir o lugar. Toda cidade tem um chefe”. Silvanito concorda, mas complementa: “Isso é verdade, mas quando tem dois então, dizem que já tem muitos”. Joe indaga ironica- mente: “Dois chefes? Muito interessante”. Silvanito concorda: “Realmente interessan-

243 te. Os rapazes dos Rojos, três irmãos que vendem bebida. E também há os Baxters, comerciantes de armas grandes. Se não estou enganado, você já viu o pessoal dos Baxters”, referindo-se ao episódio da entrada da cidade de Joe, quando a sua mula foi assustada por vários tiros. Joe confirma: “Sim, nos encontramos”. Silvanito com- plementa: “Mas teve sorte. Normalmente não fazem mira só na mula. Um homem deixa a própria terra e sai por ai por uma razão... Juan de Dios toca o sino e Peripero vende outro caixão”. Joe interrompe: “Dois chefes”. Silvanito diz: “Eles recrutaram toda a escória dos dois lados da fronteira e pagam em dólares”. Joe, fumando seu charuto, aponta: “Os Baxters estão ali. Os Rojos lá. Eu aqui no meio”. Silvanito per- gunta: “Onde você quer chegar?” Joe é lacônico: “O louco do sino (Juan de Dios) estava certo. Há dinheiro para se ganhar em um lugar assim”. Silvanito adverte: “Se está pensando o que acho, lhe digo, não tente”. Joe pergunta: “Qual dos dois é o mais forte?” Silvanito repete e responde: “Qual deles é mais forte? Bem, os Rojos, especialmente Ramón”. Joe coloca o seu marcante charuto na boca e se dirige para fora do estabelecimento. O Tema 2 começa a ser ouvido com a melodia solada por um oboé e acompanhada por cordas. Ele sempre será utilizado em situações de con- flito e duelo iminente. Em frente a casa dos Rojos, Joe fala em voz alta o que parece estar pensando: “Don Miguel Rojo, quero falar com você. Ouvi dizer que está contra- tando homens. Bem, posso estar disponível. Mas vou lhe falar antes de me contra- tar... eu não trabalho barato”. Dita essas palavras se dirige novamente para a entra- da da cidade na direção dos homens dos Baxters que assustaram sua mula. En- quanto caminha, uma tomada geral mostra Don Miguel Rojo se aproximando da sa- cada de sua casa para observar o que Joe vai fazer. Ao tema 2 é sobreposto o som de Peripero cantarolando (La cucaracha) enquanto trabalha em um caixão de defun- to. Joe passa por Peripero e pede para que ele tenha três caixões prontos. Peripero fica surpreso e para de cantarolar. Joe avista os homens dos Baxters, eles não são três, mas quatro. Na aproximação de Joe dos homens dos Baxters o tema dois ter- mina sincronizado com a fala de um dos homens: “Adeus amigo. Escute, estranho! Ainda não percebeu? Não gostamos de ver meninos maus como você na cidade. Vá pegar sua mula”. E pergunta ironicamente: “Você a deixou fugir?”

244

Parte 41. O tema 2 inicia quando os Baxters estão saindo de casa para ir a um jantar na casa dos Rojos. No jantar será apresentado um falso “plano de paz” elaborado por Ramón. Sobrepondo o tema, o diálogo de Consuelo Baxter deixa cla- ro: “Temos de ir ao jantar, mas não gosto nada disso até mesmo se concederem as garantias que exigimos”. Então ela ordena: “Nós iremos em frente, mas não toquem em nada. Vocês não devem comer e nem devem beber. Mantenham seus olhos abertos e fiquem espertos”. A música termina e a cena é cortada com a imagem de- les caminhando em direção a casa dos Rojos. Nesse seguimento a melodia principal é executada por um oboé acompanhado por um violão. Percebe-se a característica anempática da música em relação a cena, pois como música de confronto e dos due- los, ela parece acentuar a vocação das famílias em direção a tragédia final: `matar e morrer. Parte 42. Nessa cena as duas famílias estão cavalgando para o cemitério. Como nas outras cenas onde aparecem cavalgadas, Morricone utiliza a parte do “modo de rock” e a parte do coral masculino de Titoli, o tema 1. Porém, nessa inser- ção, como o encontro e o embate entre as duas famílias no cemitério é eminente, o compositor intercala o “deguello” (tema 2). Parte 43, 44 e 45. É a cena da troca dos prisioneiros, Marisol e Antonio Baxter, já comentada na parte 23. A cena inicia com o sino sendo tocado muitas ve- zes. Quando as duas famílias se dirigem para o centro da cidade levando os prisio- neiros, o Tema 2 inicia no corne-inglês com acompanhamento de cordas. Julio e Je- sus (marido e filho de Marisol) estão no bar com Silvanito e Joe. Na cena é especi- almente enfatizado o sofrimento de Jesus pela ausência forçada da mãe. O tema 2 comenta todo esse sofrimento que precede a troca. O tema 2 termina no momento que Ramón ordena que a troca seja iniciada. Ouve-se então uma fanfarra, comenta- da na parte 23. Depois da fanfarra, sincronicamente com um corte para o olhar de Joe, ouvimos seu leitmotiv na flauta, mas, dessa vez como preparação da retomada do Tema 2, Per un pugno di dollari, e não associado ao tema 1, Titoli, ao qual per- tence. O tema 2 é retomado por duas vezes na cena até que a troca dos dois prisio- neiros termine, então, sua cadência final ele é utilizada para concluir o episódio.

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Parte 46. O tema 2 foi comentado na parte 25. Parte 47. Em fuga, depois da surra que levou doos Rojos, Joe procura Pe- ripero (o fabricante de caixões de defunto) para que o esconda num local seguro on- de ele possa se recuperar. Peripero o leva para um local dentro de um caixão de de- funto. No trajeto, Joe e Peripero assistem ao extermínio da família dos Baxters pelos Rojos. Após o extermínio dos Baxters, Ramón ordena que os seus homens continu- em a procurar pelo “americano imundo”. O tema 2 é introduzido e a imagem é corta- da para o local onde Joe vai se recuperar e preparar a parte final de seu plano: o confronto com os Rojos, principalmente, Ramón. O tema 2 termina quando Joe co- meça a trabalhar sua “armadura”.

4.5 - O DUELO FINAL

Figura 25 – Tortura de Silvanito

A cena do duelo inicia com os Rojos torturando Silvanito, pendurado por suas mãos amarradas, numa tentativa de descobrir o paradeiro de Joe. O som de uma explosão faz com que Ramon e seus homens se virem na direção do som ines- perado. O Tema 2 inicia imediatamente com o acompanhamento das cordas. Os Ro- jos olham apreensivamente, sincronizados com o início da melodia solada pelo trom- pete no estilo mariachi. Do meio da fumaça e da poeira Joe reaparece como um fan- tasma. Um vento se levanta de repente agitando a borda de seu ponche, mas, Joe permanece estático, distante.

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Figura 26 - Joe

O efeito criado contra a luz remete diretamente à sua silhueta utilizada nos Créditos Iniciais. As notas do tema de Per un pugno di dolllaari tornam-se mais dramá- ticas e solenes, com a presença de orquestra e do coral. Joe não parece estar preo- cupado e, muito lentamente, começa a se aproximar de Ramon e de seus homens, ostentando uma calma e uma segurança incompreensível e preocupante.

Figura 27 – Joe se aproximmando...

Os Rojos se agrupam, aprontando-se para o embate. A música termina e o som do vento se faz mais marcante.

Figura 28 – Ramon e os Rojos

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Ramon reconhece seu inimigo e apoonta a sua temível Winchester contra ele com um grito de “Gringo”. Joe continua avançando na direção deles e diz: “Ouvi dizer que você quer me ver”. Ramon, consciente de que naquela distância não erra o alvo, cochicha para os seus homens: “O americano está morto”. Joe prossegue: “De- cepcionado meu velho”. Ramon interrompe o diálogo com um tiro certeiro. Joe, atin- gido no peito, cai no chão de costas. Os Rojos sorriem.

Figura 29 – Ramon Rojo

Porém, inacreditavelmente, Joe se levvanta e diz: “O que está errado, Ra- mon? Perdeu o seu toque?” Ramon atira novamente. Uma vez, duas vezes ... Joe leva seu oponente a atirar repetindo a frase que se tornou uma das marcas do filme: "No coração Ramon, se você quer matar um homem acerte-o no coração... são suas essas palavras, não são?" Ramon atira sete vezes numa seqüência de 1, 1, 2 e 3 tiros, Joe cai três vezes e, novamente, se levanta. Somente quando a arma de Ramon fica sem balas é revelado o mistério da imortalidade de Joe. Naa presença dde um “som tônico”, dessa vez grave, Joe levanta seu ponche e retira uma espessa chapa de aço que o prote- geu dos tiros fatais. Joe joga a armadura de aço no chão. O leitmotiv de Joe see mis- tura com o som do aço batendo no chão. Num plano fechado da marca dos sete tiros na armadura o “som tônico” agudo da nota Ré catalisa o momento suspensivo.

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Figura 30 – A proteção de aço com 7 marcas de 7 tiros

Na intermitência de planos fechados e abertos dos rostos e das armas dos confrontadores, Joe, embora só e contra muitos, revela uma calma de quem está certo da vitória. Por outro lado, todos os seus adversários demonstram um nervosis- mo de quem sabe que está condenado. Na verdade, os homens de Ramon, que até então haviam permanecido paralisados, são fulminados com uma velocidade relâm- pago, como se fossem alvos fixos. Ramon, ao invés, receebe um tiro na sua arma, derrubando sua Winchester no chão. O “som tônico” da nota Ré desaparece com as sonoridades dos tiros.

Figura 31 – Joe mata todos menos Ramon

Joe deixa Ramon sozinho, talvez como o único adversário verdadeiramen- te digno de enfrentá-lo. Ao som do vento, Ramon está em pé com sua Winchester descarregada no chão. Joe inicia um novo desafio repetindo uma frase que Ramon havia usado: “Quando um homem com uma 45 encontra um homem com um rifle, você disse que o homem da pistola é um homem morto. Vejamos se isso é verdade”. Joe dá um tiro na corda que prende Silvanito para libertá-lo. Silvanito cai no chão e

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Peripero o levanta. Joe retira as balas de sua arma e a arremessa no chão. “Vá em frente”, ele diz a Ramon, “carregue e atire”. Os dois se postam, frente a frente, pró- ximos de suas armas descarregadas. Ramon, rapidamente, se abaixa e recarrega sua Winchester, mas, quando tenta apontar a arma contra Joe, o oponente, com mui- to mais agilidade, já havia carregado seu revólver 45 e apontado para Ramon. A imagem alterna, em plano fechadíssimo, de seus rostos. Uma figura rít- mica é ouvida num tambor. Na terceira repetição da sonoridade percussiva, Ramon atira, mas é mortalmente ferido por um tiro certeiro de Joe. As sonoridades percussi- vas prosseguem com Ramon, tentando se levantar. Cambaleante e com o olhar fixo em Joe, as tomadas em movimento da câmera simulam a sua morte. No entanto, as sonoridades percussivas tornam-se cada vez mais insistentes, denunciando a pre- sença de Esteban Rojo que, escondido no andar superior de uma das casas vizi- nhas, aponta um rifle contra Joe. A sonoridade rítmica suspensiva desaparece com o som do tiro. Silvanito percebe o truque e, com um rifle, acerta um tiro em Esteban que despenca no chão, sem vida. Ao som do vento, Peripero caminha na direção dos homens mortos para tirar suas medidas. Ele tenta agradecer a Joe, mas fica sem palavras. Joe entra no bar de Silvanito para pegar suas coisas ao som do sino tocado por Juan de Dios. Joe sai do bar com suas coisas e diz a Silvanito: “Bem, acho que o seu governo está feliz por ter aquele ouro de volta”. Silvanito pergunta: “E você não quer estar aqui quando eles vierem pegar?” Joe indaga acendendo sua cigarrilha: “Você quer dizer com o governo mexicano deste lado e talvez os americanos no outro lado? E eu bem no meio? Não. Muito perigoso. Adeus”. Silvanito despede-se: “Adeus”. O som do ritmo do galope do cavalo dos Créditos Iniciais é ouvido executado pelo violão junto com o som do leitmotiv de Joe na flauta doce. O som dos instrumento autóctones são so- brepostos, um a um, até que o coral masculino executa a ponte da peça Titoli, direci- onando à seção final (coda) da peça que encerra a seqüência do duelo e termina o filme, com a mesma música que o iniciou.

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4.6 - A MÚSICA DE PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ – 1965 (POR UNS DÓLARES A MAIS)

O comportamento da Jolly me produziu náuseas. Assim que fui me encontrar com os dois produtores lhes disse que a forma como se haviam desenvolvido os acontecimen- tos, de fato, me alegrava [...], porque significava que nunca mais faria um filme com eles. Iria iniciar uma demanda legal e não desejava voltar a vê-los. Nesse momento brotara as sementes da minha vingança. Lhes disse: Não sei se realmente desejo fa- zer outro western. Porém, vou fazer somente para conseguir com que se sintam mal. Ele se chamará Per Qualche Dollaro in Più. Sergio Leone200

4.6.1 - Ficha Técnica

Houve uma época em que eu conhecia todo mundo. Quando tudo isso aqui era uma pradaria. Hoje em dia todos vivem com pressa. Isso mesmo, com esses trens malditos que não prestam para nada! Tchu, tchu, tchu, triiiim... Um horror! Um dia, alguém da ferrovia vem aqui me ver. Ele diz: “Profeta, a ferrovia vai passar pela sua casa”. “É verdade?”, eu disse. “É, é verdade”, ele disse. “Todos esses trens vão passar por aqui. É melhor você vender a sua terra para a empresa ferroviária ou compraremos a do Baker. Ele é seu vizinho e colocarei os trilhos aqui e você vai ficar maluco. Você venderia para a nossa empresa, profeta?” “Ah, é mesmo?”, disse eu. Ele ficou muito ansioso para que eu vendesse. Sabe o que eu disse a ele sobre a ferrovia? Sabe o que eu disse que ele podia fazer com a ferrovia? 201

Per Qualche Dollaro in Più – For a Few Dollars More – Por uns Dólares a Mais Países: Itália/Espanha/Alemanha Ano: 1965 Duração: 130 Minutos Direção: Sergio Leone Argumento: Sergio Leone, Fulvio Morsella Roteiro: Sergio Leone, Luciano Vincenzoni, Sergio Donati (não creditado) Diálogos: Luciano Vincenzoni Produção: PEA Produtor Executivo: Alberto Grimaldi PEA [Produzioni Europee Associate] (Roma), Arturo Empresas Produtoras: Gonzales (Madrid), Constantin Film (Monaco) Distribuição: PEA/United Artists Intérpretes e Personagens

 Clint Eastwood (o “Monco”),  Lee Van Cleef (Coronel Douglas Mortimer),  Gian Maria Volonté (O Índio),

200 SIMSOLO, N. Conversations avec Sergio Leone. Paris : Stock, 1987, pp. 105-110. In : Per qualche dollaro in più. http://it.wikipedia.org/wiki/Per_qualche_dollaro_in_pi%C3%B9, último acesso: 28 de outubro de 2010. 201 Início do diálogo das personagens do Profeta (Josef Egger) com Monco (Clint Eastwood) no filme.

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 Luigi Pistilli (Groggy),  Klaus Kinski (Wild, o corcunda),  Josef Egger (“Profeta”),  Mara Krupp (mulher do dono do hotel),  Benito Stefanelli (Luke, un membro do bando de Índio),  Aldo Sambrell (Cuchillo),  Roberto Camardiel (empregado da estação),  Lorenzo Robledo (Tomaso, o traidor),  Dante Maggio (guarda do banco de El Paso),  Diana Rabito (mulher na banheira),  Mario Brega (Niño).

Não Creditados:

 Carlo Simi (Gerente do banco),  Rosemarie Dexter (irmã de Mortimer no flashback),  Diana Faenza (mulher de Tomaso),  Peter Lee Lawrence [Karl Hirenbach] (cunhado de Mortimer no flashback),  Francesca Leone (recém-nascida)

Fotografia (Techniscope, Technicolor): Massimo Dallamano Montagem: Eugenio Alabiso, Giorgio Serralonga Efeitos Especiais: Giovanni Corridori Música: Ennio Morricone; Regência: (RCA Italiana) Cenografia: Carlo Simi, Sigfrido Burmann Costumes: Carlo Simi Cenas Internas: Cinecittà (Roma) Cenas Externas: Almeria, Guadix e Madri (Espanha) Mestre de Armas: Benito Stefanelli Auxiliar de Direção: Assistentes de Direção: Fernando Di Leo, Julio Samperez

4.6.2 - Comentários Iniciais Momento fundamental para o estudo do desenvolvimento do pensamento musical no cinema, Per Qualche Dollaro in Più, de 1965, consagrou, definitivamente, Sergio Leone como diretor, Clint Eastwood como ator e Ennio Morricone como um dos mais “inspirados” e revolucionários compositores de cinema. Mesmo que o filme continue sobre a esteira do precedente, Morricone procura aperfeiçoar as práticas já instauradas com mais ambição devido, inclusive, à maior disponibilidade econômica: $ 600.000 dólares americanos (considerado, para a época, um bom orçamento para um filme de classe B). Em plena sintonia com Le- one, Morricone soube como desenvolver a trilha não só com parâmetros musicais

253 mais complexos, arraigados nas sonoridades criativas e inovadoras do primeiro filme, mas, com uma aplicação que, assumidamente, auxiliou Leone a desestruturar os paradigmas vigentes do “idiossincrático” gênero americano (processo inaugurado no filme precedente). Coube a Morricone, principalmente nesse filme, receber a maior carga de críticas negativas endereçadas a um compositor de cinema. As críticas que haviam se iniciado com o filme anterior de modo mais comedido, tomaram proporções, real- mente, desmedidas. Num primeiro momento ele foi acusado de “trair o som genuíno do western americano” com “inovações pegajosas e torpes”; posteriormente, foi con- siderado “um compositor destituído de qualquer talento” cuja maior contribuição à música de cinema “consistiu em repetir até o limite do insuportável as mesmas melo- dias aplicadas no primeiro filme”. Curiosamente, as críticas negativas foram se extin- guindo à medida que o filme e a trilha musical se convertiam em grandes êxitos, tan- to relacionado às questões comerciais, quanto na popularidade alcançada.

Esta partitura, rica em matizes e sempre oscilando entre momentos pletóri- cos e trágicos (sem esquecer seu humor dissimulado), alcançou tal fama que, muito provavelmente, Morricone não conseguiu igualar a aura mítica que a envolveu em nenhum outro trabalho202.

Miceli comenta que a música foi utilizada de forma mais consciente em sentido dramatúrgico e narratológico, através de sua presença em todos os três ní- veis203, e no que se refere ao uso de instrumentos definidos como “primitivos”, foi acrescentada a harpa judaica (marranzano ou scacciapensieri).

Per qualche dollaro in più (1965) surge na esteira do grande sucesso do primeiro filme (bom exemplo de máximo rendimento com um mínimo empre- go de meios, também na música), com obrigações implícitas de continuidade nos confrontos do afortunado modelo, mas também com o confronto de uma bem mais ampla disponibilidade da parte da produção. Mais ambicioso e sem dúvida menos rústico (rozzo) que o precedente, procura também conferir aos personagens principais um mínimo de textura psicológica. (MICELI, 1994:121)

202 GARCIA, M. Ennio Morricone: For a Few Dollars More & A Fistfull of Dollars. Crítica das trilhas sonoras musicais (BSO – Banda Sonora Original). 203 Sergio Miceli: Nível externo, interno e médio.

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Morricone confirma e acrescenta:

Leone, dado o sucesso de Per un Pugno di Dollari, queria recriar o mesmo clima musical. De acordo com ele, procurei, todavia, aproveitar e ampliar as boas idéias da obra precedente, com momentos sonoros mais vibrantes, mais “ambiciosos”, que pudessem, ao mesmo tempo, conferir uma espessura mai- or aos protagonistas (Ennio Morricone204)

A duração do filme é maior: 2 horas e 10 minutos (contra 1 hora e 40 mi- nutos do predecessor). Com dois protagonistas (Clint Eastwood e Lee van Cleef) nos papéis de “o homem sem nome205”, mas que será chamado, nesse filme, de Monco e do Coronel Mortimer, respectivamente, e o antagonista Índio (Gian Maria Volonté), as relações entre as personagens estabelecem-se numa maior variedade de localiza- ções e situações, refletidas em possibilidades mais amplas da trilha musical. Como no filme precedente, Morricone deriva toda a trilha sonora musical a partir de dois temas principais: Per Qualche Dollaro in più equivalente a Titoli, o tema que herda as principais características discutidas do tema anterior, a referência de toda a trilha musical; e La Resa dei Conti equivalente a Per un Pugno di Dollari, o tema do duelo entre protagonismo versus antagonismo, das situações de “confronto”. A trilha é ampliada com mais dois temas: Il vizio di uccidere e Addio colonnello.

204 In: LUCCI, G. Morricone: Cinema e oltre. Milano: Mondadori Electa S.p.A., 2007, p.59. 205 A idéia de Sergio Leone de um “anti-herói anônimo” foi transformada literalmente no slogan de estratégia publicitária da primeira trilogia: “Herói Sem-Nome”. Essa é uma das razões que fazem com que o nome e o modo como foram atribuídos às personagens representadas por Clint Eastwood nos três filmes: Joe, Monco e Blondie, respectivamente, não tenham grande importância ulterior na articulação narrativa dos próprios filmes.

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4.7 - ORGANIZAÇÃO TEMÁTICA DA TRILHA MUSICAL

4.7.1 - Per Qualche Dollaro in Più (a música dos Créditos Iniciais e Finais) – Tema 1 A idéia melódica básica do tema dos Créditos Iniciais: Per qualche dollaro in più [Por uns dólares a mais] (o tema principal da trilha sonora musical passa a ter o mesmo nome do filme – a partir deste filme isso se transformará num procedimento constante no trabalho de cinema de Morricone; ou seja, compor pelo menos um te- ma, normalmente o mais importante, com o mesmo nome do filme) é derivada dire- tamente do tema anterior Titoli de Per un pugno di dollari, transpondo virtualmente para o novo tema todas as características ambíguas criadas anteriormente. Os motivos da melodia principal (“micro-células) – principal e secundário – são derivados diretamente dos motivos correspondentes em Titoli. Os três compas- sos centrais dos motivos são, por contração melódica, transformados somente em um compasso (exemplo a seguir). A idéia referida como ‘coda’ em Titoli por Miceli é utilizada na terminação da parte.

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Exemplo 18 – Derivação do tema de Por uns dólares a mais (1965)

Miceli comenta sobre o tema Por uns dólares a mais:

A estrutura segmentada, porém concatenada, do tema Por uns dólares a mais segue a mesma de Titoli do filme precedente, como também repete a se- torialização estilística, embora o resultado global aponte para um processo de acumulação nos qual os três segmentos principais [primitivo, rock, pseu- do-sinfônico] se somam mais do que na peça correspondente do filme anteri- or. (MICELI, 1994:123)

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Exemplo 19 – Melodia principal de Perr qualche dollarro in più

A melodia principal é também executada pelo assovio de Alessandro Alessandroni. Ao mesmo tempo em que é acreescentado pelo compositor um pouco mais de virtuosismo à melodia assoviada, busca também manter as características primitivas do tema anterior. Assim como o assovio tornou-se uma das marcas desses temas, Morricone utiliza, como acompanhamento do assovio, um instrumento muito antigo conhecido na região da Sicília, Itália, como marranzano (ou scacciapensieri) tocado por Salvatore Schilirò206, para Miceli “um instrumennto portador de um padrão sonoro de grande ambigüidade e de entonação realmente insólita” (MICELI, 1994:123). Os dois componentes (o assovio e o marranzano) estabelecem, a partir desse filme, uma referência nas sonoridades da trilha musical, inclusive para uma série de filmes posteriores onde “uma multidão de imitadores os utilizarão” (MICE- LI,1994:123).

Na execução ritmicamente elementar do marranzanista, que preenche os tempos com regularidade metronômica, nasce uma melodia desta vez menos uniforme em relação ao modelo, que contrapõe à linearidade dos dois pri- meiros incisos, um desenvolvimento movido e nervoso (MICICELI, 1994:124)

206 Descoberto na Sicília por Morricone, Schilirò possuia uma coleção de marrranzanos temperados em todas as notas. Ele gravou com os intrumentos necessários para o acommppanhamento do tema que, posteriormente, foram editados de modo a parecer um só instrumento (MICELI, 1994:1124)

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Figura 32 – Primeira parte de Per qualche dollaro in più (MICELI, 1994:125)

É notável a polaridade entre as notas Ré e Lá, como início e/ou termina- ção das “micro-células”, como na música precedente. A ambigüidade modal, Ré Dó- rico ou Ré Eólio, permanece. A nota Si, bemol ou natural, é utilizada duas vezes. Uma como Sib, no marranzano, no compasso 8, as quatroo semínimas do compasso; e outra como Si natural, na melodia assoviada, no compasso 10, segunda colcheia do primeiro tempo, como uma bordadura da nota Dó (procedimento similar ao utiliza- do pela melodia da guitarra na música anterior). Além disso, o grau de ambigüidade modal versus tonal é enfatizado mais nessa melodia por Morricone. No compasso 7 do exemploo, a última semicolcheia do segundo tempo é uma nota Dó# (sensível de Ré menor) que se dirige a Ré (primeira colcheia do terceiro tempo); porém, no compasso seguinte o desenho melódico do compasso 7 é repetido, mas, dessa vez, logo após a nota Ré (primeira colcheia do terceiro tempo) a nota Dó natural (segunda colcheia do terceiro tempo) é utilizada dirigindo-se, como na música anterior, a nota de terminação plagal Lá, ou seja, man- tendo a possibilidade tanto de um Ré Dórico quanto de um Ré eólio. Na repetição da melodia (segundo compasso da última linha do exemplo anterior), seguindo o marranzano, é apresentada uma célula em semicolcheias exe- cutada pela flauta doce que de maneira análoga ao “micro-elemento” já visto em Tito- li, como leitmotiv de Joe (Clint Eastwood). Preparando a guitarra elétrica da próxima

259 seção, ingressa a caixa-clara com o “ritmo do cavalo”, o som do sino (executado pelo carrilhão da orquestra) substituindo o marranzano e o acompanhamento do coral de vozes masculinas, desta vez não sobre tríadess, como no filme anterior, mas, em uníssono, articulando fonemas que compõem um texto sem significado léxico, mas, acentuam os apoios do “ritmo do cavalo”.

Figura 33 – Célula de Per Qualche Dollaro in Più – Leitmotiv de Monco

Como no filme anterior, micro-elementos serão associados aos protago- nistas do filme como leitmotivs. A sonoridade peculiar da nnota Ré emitida pelo mar- ranzano será o leitmotiv do Coronel Mortimer (Lee Van Cleef), essa célula da flauta, que também poderá ser executada por uma ocarina, será utilizada como o leitmotiv de Monco (Clint Eastwood) e, como será abordado, o som do carrilhão, o de Índio (Gian Maria Volunté). Na associação dos timbres incomuns aos personagens Morri- cone cria uma convenção recorrente que Miceli (1994:126) chama de tópos: uma fórmula derivada da literatura. Dessa célula nasce a melodia da guitarra elétrica acompanhada por uma bateria, solução estilisticamente coerente com o clima instaurado pelo instrumento solista que caracteriza a parte do “Modo de Rock”:

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Figura 34 – Melodia da Guitarra de Per Qualche Dollaro in Più

Com a presença das notas Dó natural (compasso 7 e 8) e a nota Sib (compasso 10) na melodia, Morricone assume, momentaneamente, o modo de Ré eólio. Seguindo o esquema tri-partido pré-estabelecido pelo primeiro filme, um fragmento melódico pentatônico utilizado como “ponte”, também é executado pelo coral masculino sem palavras (utilizando a vogal “o”), uma proposta ainda mais ele- mentar em relação ao coral masculino triádico anterior.

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Figura 35 – Melodia do coro masculino: Per qualche dollaro in più (1965)

Como na peça titoli do primeiro filme, segue-se o “modo pseudo-sinfônico” com os instrumentos da orquestra e coral. Retorna o “modo primitivo” com o marran- zano acompanhando a melodia principal assoviada, encerrrando a música dos “Crédi- tos Iniciais”: Per qualche dollaro in più.

4.7.2 - La Resa Dei Conti (a idéia da “músicca de duelo”) – Tema 2 A peça de duelo, do confronto, é introdduzida “despercebidaamente” com um som que imita o tique-taque obstinado de um relógio, executado por uma celesta, associado ao relógio de bolso, objetos que, diegeticamente, representam e explicam a relação de ódio e o desejo de vingança do Coronel Mortimer (Lee Van Cleef) em relação ao Índio (Gia Maria Volunté).

O tique-taque do relógio de bolslso introduz a peça “La resa dei conti” que acompanha uma série de flashbacks no qual a personagem Índio recorda de ter roubado o relógio de um homem, depois de tê-lo assassinado e violentado uma mulher, sua companheira. O mesmo relógio – conjuntamente com um carrilhão – torna-see componente sonora da peça. (MORRICONE207)

O “som do relógio” é resultado de duas linhas melódicas obstinadas com- postas com elementos de concepção minimalistta. A linha superior utiliza alternada- mente 4 notas (Ré, Fá, Mi, Fá) e a inferior somente duas, porém, as mais importan- tes por sintetizarem o pensamento musical da trilha de toda a primeira trilogia, Ré e Lá. É oportuno lembrar que o acorde implícito resultante, Ré menor com nona (Dm9), foi o acorde que iniciou o acompanhamento de Per un pugno di dollari, a peça análo- ga no filme anterior.

Muito sugestivo e, necessariamente, muito utilizado no filme, consiste de uma figuração oscilante sobre um ritmo ostinato de colcheia pontuada com semi- colcheia, em contraponto mecâniico com uma figuração equivalente, mas, es-

207 In: LUCCI, G. Morricone: Cinema e oltre. Milano: Mondadori Electa S.p.A., 2007, p.59.

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tável [duas colcheias]. Realizado com uma celesta, se apóia num tapete de arcos e uma percussão leve. (MICELI, 1994:126)

Figura 36 – Tique-taque do relógio de bolso - Carrillhão

Exemplo DVD – Som do relógio

Essa sonoridade associada à imagem do relógio de bolso, quando ouvido pela primeira vez, passa a ser interna (diegética). A audiência vê e ouve um relógio de bolso. Morricone amplifica esse motivo, com as notas do acorde de Ré menor com nona, com instrumentos não-diegéticos (cordas, percussão leve e o violão) até que o som do tique-taque seja encoberto pela música, tornando-se quase inaudível. O espectador entende que a fonte sonora do tique-taque existe no mundo criado pelo filme, mas, os instrumentos que ingressarão em seqüência, obviamente, não. Isso pode produzir um efeito um pouco desordenado que contribui para um estranhamen- to. O exato efeito pretendido por Morricone e Leone. Contribuindo para o efeito de “estranhamento”, a seqüência da peça apre- senta uma das características mais controversas: a citação como homenagem, mui- tas vezes, irônica. Morricone inicia a melodia principal da peça recorrendo a bordadu- ra Ré-Dó#-Ré, utilizada na introdução da guitarra elétrica da peça Titoli, e ao clima estrutural ambíguo, entre as modalidades e a tonalidade, executada solisticamente por um órgão de tubo ad libitum (como numa cadência de concerto).

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Figura 37 – Melodia principal da Resa dei Contti

A bordadura da guitarra, Ré-Dó#-Ré, transforma-se nas duas semicol- cheias iniciais Lá-Sol-Lá, executada pelo órgão de tubos, referindo-see diretamente ao mordente que inicia à Toccata e fuga em Ré menor (BWV 565) de Johann Sebastian Bach.

Figura 38 – Introdução da Toccata e Fuga em Ré menor (BWV 565, composta entre 1703 a 1707) de J. S. Bach

A passagem pode ser interpretada como uma irônica paródia da obra de Bach. Schwartz e Godfrey (1993:40) explicam que na música do século 20 a paródia foi associada a um conceito mais amplo de “historicismo”, no qual estilos inteiros (ao

264 invés de trabalhos específicos) são examinados, aproriados, fragmentados e, então, recolocados sob novas perspectivas.

[Essa] consciência histórica muitas vezes vem à tona no trabalho de um compositor na forma de referências que servem de homenagem ou comentá- rio sobre o estilo anterior. As referências são muitas vezes deliberadas, dis- positivos para evocar certas associações na mente dos ouvintes. (SCHWARTZ e GODFREY, 1993:40)

Um infindável mundo de alusões e analogias pode ser criado pela citação de Morricone, na época, muito criticado por essa utilização. Sabe-se que Bach admi- rava muito os trabalhos de órgão de Buxtehude, e muitos dos seus trabalhos de ór- gão, como os de seus contemporâneos, estão caracterizados pela presença do stylus phantasticus, um estilo de interpretação derivado da improvisação.

O stylus phantasticus incluía elementos de excitação e bravura, com harmo- nias arriscadas e mudanças bruscas de registro. Os trabalhos de órgão de Buxtehude, e os do próprio Bach, fazem grande uso desses elementos [...] A BWV 565 deriva vários desses elementos estilísticos a partir desta primeira forma de música de órgão, em particular do stylus phantasticus208.

A analogia entre o stylus phantasticus dos compositores barrocos e o “es- tilo fantástico” da citação de Ennio Morricone é realmente impressionante.

A escolha da citação bachiana da Toccata e Fuga em Ré menor se liga a du- as características das imagens: primeiro pelo fato de que o tema é ouvido pela primeira vez numa igreja, executado por um órgão e depois retomado pelo trompete; em segundo lugar, porque a música acompanha com freqüên- cia as imagens de Volonté que recordam os quadros renascentistas. (MOR- RICONE, 2007:59)

Simultaneamente trágica e emotiva, essa peça representou o desenvolvi- mento no acompanhamento musical de duelos nos westerns. Mantendo a relação composicional com a música do primeiro filme e, indiretamente, com o “repudiado” Deguelo de Dimitri Tiomkin, a peça se apresenta como um recorte muito mais dramá- tico, obscuro e desesperado. A melodia atua como leitmotiv da própria relação que se estabelece na narrativa entre Índio, o Coronel Mortimer e uma mulher assassina-

208 In: http://pt.wikilingue.com/es/Tocata_e_fuga_em_re_menor,_BWV_565, último acesso em 29 de outubro de 2010.

265 da. A mulher assassinada era irmã de Mortimer; Índio foi o seu assassino. O desejo de vingança de Mortimer e as recordações amplificadas pelo uso de maconha por Índio materializam-se no filme em dois relógios de bolso idênticos, que portam, tam- bém, a foto da jovem morta.

Sem dúvida, por causa de sua ligação estreitíssima com a narrativa, La Resa Dei Conti, utilizada como peça do duelo, denota características opostas às de sua predecessora. Tanto o tema, Per un pugno di dollari, era torcido, uni- forme e a seu modo complexo (mas devo recordar que a base era pré- existente), quanto este é extrovertido, segmentado e elementar, e na própria segmentação, reproduz também uma diferenciação estilística encontrada, normalmente, somente nas peças bem mais polivalentes, associadas aos Cré- ditos Iniciais e outras cenas principais. (MICELI, 1994:127)

4.7.3 - Il Vizio di Ucidere (a idéia da “música de cavalgada”) – Derivada do Tema 1

A necessidade de fazer o filme parecer épico conduzia o tom das instrumentações, aos corais, aos crescendos, aos arcos com seus ritmos galopantes e a todos os outros artifícios existentes para dar à música as qualidades necessárias que pudesse fazer o caráter do filme de Leone decolar e que o filme fosse crível. Com a mesma intenção utilizei a gaita judaica (marranzano) no segundo filme (Ennio Morricone)

O tema Il Vizio di Ucidere (O Vício de Matar) coaduna-se não só com a necessidade de fazer o filme parecer épico, mas, também reforça a idéia de, por um lado, a necessidade de uma maior quantidade e diversidade musicais, em virtude da ampliação do tempo e complexidade da narrativa fílmica, e, por outro lado, o do re- forço da unidade temática do pensamento musical utilizado na sua derivação. Morricone inaugura e reforça com essa peça características imprescindí- veis de sua grande marca. Pela primeira vez, a voz de Edda Dell’Orso, que acabara de entrar no grupo I Cantori Moderni é utilizada como um instrumento musical solista auxiliando a acentuar a característica épica de um tema para cavalgadas.

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Figura 39 – Meelodia de Il Viziio di Ucidere

O tema é derivado diretamente dos mesmos contornos melódicos e termi- nações do tema Titoli, preservando as mesmas ambigüidaddes criadas. A escala utili- zada na melodia é a pentatônica de Fá (relativa de Ré), reforçando as notas Ré e Lá em suas terminações autêntica ou plagal.

Figura 40 – Escalas pentatônicas da melodia de Il Vizio di Ucidere

A peça alterna um andamento lento e melancólico inicial, onde prevalece a sonoridade de um violão ou um corne-inglês solistas acompanhados por cordas e coral em boca-chiusa; com outro rápido e vibrante, com uma caixa acentuando o rit- mo do “galope do cavalo” do filme anterior, a voz de Edda Dell”Orso, acompanhado por toda a orquestra.

4.7.4 - Addio Colonello (expansão leitmotívica) – Derivada do Tema 2 Miceli lembra que o Coronel Mortimer é uma personagem “um pouco fora dos padrões”:

Basta pensar no final no qual o ‘bounty killler’ [caçador de recompensas] (talvez mais por necessidade que por vocação, renuncia a sua parte na divi- são da recompensa, que presenteia a Monco) é pago por ter realizado sua vingança. (MICELI, 2001:122)

Essa anormalidade abre o precedente para que Morricone componha Ad- dio Colonello de uma forma que foge dos padrões estabelecidos pelo filme anterior.

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Com uma orquestra equilibrada, com os arcos aveludados, uma seção de metais bem amalgamada, as madeiras em decisivas e deslumbrantes funções solísticas e com um coral espiriitualizado pela presença de vozes femininas, cria-se um atmosfera típica da música de entretenimento em circulação no mercado internacional. (MICELI, idem)

A peça Addio Colonello é uma variação orquestral mais “dolente” de La Resa dei Conti, orquestrada e executada de uma forma sinfônica romantizada que serve como leitmotiv do Coronel Mortimer. Na primeira vez, a melodia é executada por um oboé acompanhada pela orquestra e coral; então um “interlúdio” executado num coral executado pelos metais, prepara o retorno da melodia que passa para os violinos numa região aguda, o acompanhamento do coral e da orquestra e o desta- que de uma celesta, explicitando a ligação com a peça do duelo.

Figura 41 – Addio Colonello

Essa forma de orquestração contrastante de uma das músicas presentes, ou seja, uma versão mais soft de um dos temas principais, será utilizada muitas ve- zes em muitos outros filmes, tornando-se, em decorrência, outra marca de Ennio Morricone.

4.7.5 - Decupagem Duração do filme: 130 minutos (2:10:36 [Duas horas, dez minutos e trinta e seis segundos] mais precisamente). Total das Inserções Musicais: 49 minutos (0:49:17 [quarenta e nove minu- tos e dezessete segundos]).

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Porcentagem com música: 38%; porcentagem sem música: 62%. Como a música está mais diluída e fragmentada na articulação fílmica, op- tamos por fragmentar o filme em 37 partes com sonoridades musicais209. A tabela abaixo apresenta as 37 inserções com eventos musicais em rela- ção a sua derivação temática e seus respectivos fragmentos:

Tabela 8 – Decupagem do filme Per qualche dollaro in più - 1965

Nº CLASSIFICAÇÃO INÍCIO FIM DURAÇÃO IDENTIFICAÇÃO NOME NO CD DERIVAÇÃO Fragmento Or OBJETIVA

Per Qualche Nível Externo -

1 00:00:00 00:03:54 00:03:54 Créditos Iniciais TEMA 1 Fragmento 1 Dollaro in Più Não Diegética Morte de Guy Calla- way: no quarto do Leitmotiv do Nível Externo -

5 00:03:54 00:07:28 00:03:34 TEMA 1 Fragmento 5 andar de cima com Coronel Mortimer Não Diegética uma prostituta Apresentação de Personagem: Monco Per Qualche Nível Externo -

6 00:07:28 00:08:16 00:00:48 (Clint Eastwood) - TEMA 1 Fragmento 6 Dollaro in Più Não Diegética Caçador de Recom- pensas Per Qualche Nível Externo -

13 00:08:16 00:10:16 00:02:00 El Paso TEMA 1 Fragmento 13 Dollaro in Più Não Diegética Monco hospeda-se no Leitmotiv de Nível Externo -

14 00:10:16 00:12:50 00:02:34 TEMA 1 Fragmento 14 Hotel de El Paso Monco Não Diegética Leitmotiv de Nível Externo -

20 00:12:50 00:13:08 00:00:18 Monco no Jornal Tema 1 Fragmento 20 Monco Não Diegética Libertando Sancho Per Qualche Nível Externo -

25 00:13:08 00:14:11 00:01:03 Tema 1 Fragmento 25 Perez Dollaro in Più Não Diegética Monco no bando de Per Qualche Nível Externo -

26 00:14:11 00:17:08 00:02:57 Tema 1 Fragmento 26 Índio Dollaro in Più Não Diegética Per Qualche Nível Externo -

27 00:17:08 00:19:21 00:02:13 Monco mata os 3 Tema 1 Fragmento 27 Dollaro in Più Não Diegética Per Qualche Nível Externo -

29 00:19:21 00:21:58 00:02:37 Mensagem Mentirosa Tema 1 Fragmento 29 Dollaro in Più Não Diegética Per Qualche Nível Externo -

30 00:21:58 00:23:14 00:01:16 Preparando o Assalto Tema 1 Fragmento 30 Dollaro in Più Não Diegética Per Qualche Nível Externo -

45 00:23:14 00:26:29 00:03:15 A Última Recompensa Tema 1 Fragmento 45 Dollaro in Più Não Diegética Nível Externo -

3 00:26:29 00:27:34 00:01:05 Cidade de Tucumcari Sonoridades Sonoridades Fragmento 3 Não Diegética

209 No filme as sonoridades consideradas musicais são diversas e, muitas delas, muito curtas. No sentido de não fragmentar demasiadamente as seqüências, o filme foi fragmentado de modo a observar uma maior completude seqüencial. Desse modo, num mesmo fragmento podem conter diversos eventos musicais.

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Sonoridades semelhantes as presentes em Nível Externo -

9 00:27:34 00:30:27 00:02:53 A Fuga da Prisão Sonoridades Fragmento 9 Osservatori Osser- Não Diegética vati (faixa 2) e Il Colpo (faixa 4) O Cartaz da recom- Osservatori Osser- Nível Externo -

10 00:30:27 00:31:11 00:00:44 Sonoridades Fragmento 10 pensa de Índio vati Não Diegética Nível Externo -

18 00:31:11 00:33:58 00:02:47 No Bar de El Paso Sonoridades Sonoridades Fragmento 18 Não Diegética Por fora do Banco de Osservatori Osser- Nível Externo -

19 00:33:58 00:36:48 00:02:50 Sonoridades Fragmento 19 El Paso vati Não Diegética O confronto entre

22 00:36:48 00:42:29 00:05:41 Sonoridades Sonoridades x-x-x Fragmento 22 Mortimer e Monco Tentando abrir o Nível Externo -

33 00:42:29 00:44:42 00:02:13 Som Agudo Sonoridades Fragmento 33 Armário (Cofre) Não Diegética Surra em Monco e Nível Externo -

38 00:44:42 00:51:02 00:06:20 Sonoridades Sonoridades Fragmento 38 Mortimer Não Diegética Nível Externo -

41 00:51:02 00:58:23 00:07:21 O Tiroteio Nota Lá Sonoridades Fragmento 41 Não Diegética Apresentação de Nível Externo -

8 00:58:23 01:00:47 00:02:24 Personagem: Índio Leitmotiv do Índio Tema 2 Fragmento 8 Não Diegética (Gian Maria Volonté) O Relógio de Bolso de Nível Mediado -

11 01:00:47 01:05:53 00:05:06 La Resa dei Conti Tema 2 Fragmento 11 Índio Meta-diegética O Plano de Índio para Nível Externo -

15 01:05:53 01:10:30 00:04:37 roubar o Banco de El Il Vizio di Ucidere Tema 2 Fragmento 15 Não Diegética Paso O bando de Índio Nível Externo -

17 01:10:30 01:11:59 00:01:29 Il Vizio di Ucidere Tema 2 Fragmento 17 visita El Paso Não Diegética O Acordo: Uma Nível Externo -

23 01:11:59 01:16:48 00:04:49 Il Vizio di Ucidere Tema 2 Fragmento 23 parceria Não Diegética A morte da irmã do Nível Mediado -

24 01:16:48 01:18:52 00:02:04 Carillon Tema 2 Fragmento 24 Coronel Mortimer Meta-diegética O Assalto ao Banco Il Colpo; Il Vizio di Nível Externo -

31 01:18:52 01:25:38 00:06:46 Tema 2 Fragmento 31 de El Paso Ucidere Não Diegética Nível Externo -

32 01:25:38 01:27:07 00:01:29 Refazendo a Parceria Il Vizio di Ucidere Tema 2 Fragmento 32 Não Diegética Nível Externo -

34 01:27:07 01:31:28 00:04:21 Água Caliente Il Vizio di Ucidere Tema 2 Fragmento 34 Não Diegética Na Taverna de Agua Nível Externo -

35 01:31:28 01:34:51 00:03:23 Carillon Tema 2 Fragmento 35 Caliente Não Diegética Nível Externo -

40 01:34:51 01:42:37 00:07:46 O Plano louco de Índio La Resa dei Conti Tema 2 Fragmento 40 Não Diegética O Assassinato da irmã Nível Mediado -

42 01:42:37 01:44:53 00:02:16 Carillon Tema 2 Fragmento 42 de Mortimer Meta-diegética Carillon; La Resa Nível Externo -

44 01:44:53 01:52:20 00:07:27 O Duelo Tema 2 Fragmento 44 dei Conti Não Diegética Nível Interno -

4 01:52:20 01:53:29 00:01:09 No Bar x-x-x Piano Fragmento 4 Diegética

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Morte de Baby Red Poker D'assi Nível Interno -

7 01:53:29 01:58:46 00:05:17 Cavanagh: Jogo de Piano Fragmento 7 (Poker de Azes) Diegética Poker

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4.7.6 - Parte 1 – Créditos Iniciais De forma diferente dos créditos iniciais do filme anterior, os créditos deste filme não são projetados em animação e a música não é ouvida imediatamente. Os créditos iniciais iniciam com uma menção explícita à animação do filme anterior: a imagem projetada na tela tem um fundo vermelho e um ponto branco em movimento lento no seu centro.

Figura 42 – Tela de abertura de Per qualche dollaro in più (Por uns dólares a mais) - 1965

É ouvido o som do relinchar de um cavalo à medida que o vermelho da te- la vai se “desmanchando” e revelando a paisaagem de um vale que estava oculto, observado pelo ponto de vista de alguém de cima de uma montanha.

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Figura 43 – Créditos Iniciais – Por uns dólares a mais - 1965

O ponto branco que aparecia em movimento na tela vermelha é, na “reali- dade”, um cavalo com alguém montado. Ouve-se o assovio de uma melodia dispersa e sem sentido em primeiro plano, ao mesmo tempo em que é sobreposto o som de balas colocadas em um rifle. O assovio se transforma num murmúrio de uma melodia irreconhecível. Sobrepõe-se à sonoridade o som característico de alguém acendendo um palito de fósforos. O murmúrio se transforma num murmurinho a “boca-chiusa”, provavelmente, pelo trago do charuto ou do cigarro que foi aceso, pois, imediatamen- te o murmúrio volta ao normal e, novamente, se transforma no assovio à medida que o cavalo vai se aproximando mais e mais. Novvamente o assovio é substituído pelo murmúrio da mesma melodia irreconhecível. Ouve-se novamente o engatilhar do rifle e, de repente, um tiro acerta o homem que estava no cavalo. O cavalo sai correndo aos coices e seu relinchar é encoberto pela ampli- tude sonora do eco do tiro que foi dado. A única pista de onde partiu o tiro, e de quem atirou, é a fumaça que passou no meio da tela a partir do ponto de vista da localização da câmera. Ouve-se a sonoridade de alguém se retirando e surge o pri- meiro crédito do filme:

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Figura 44 – Primeiro crédito do filme Por uns dólares a mais - 1965

O que Leone construiu, até esse momento, foii, como no primeiro filme, uma citação, porém, uma citação às avessas, poois, o momento cinematográfico cita- do é considerado como o primeiro filme western, THE GREAT TRAIN ROBBERY, dirigido por Edwin S. Porter, e produzido pelas empresas de Thomas Edison, em 1903, ba- seado num melodrama com o mesmo nome de Marble210 escrito, em 1896, para o teatro. O filme foi o precursor de muitas inovações técnicas como: edições para- lelas, pequenos movimentos de câmera, tomadas em locação, entre outras. Porém, uma das grandes inovações desse filme, que mesmo na época se tornou muito fa- mosa, apreciada e discutida, foi a cena do chefe dos bandidos (George Barnes), que poderia ser projetada tanto para iniciar quanto para termiinar o filme. A cena inicia com uma imagem em plano médio do chefe dos bandidos, que aponta e dispara um revólver contra a câmera e, naturalmente, contra a própria audiência.

210 Scott Marble (1847 - 05 abril de 1919) foi um dramaturgo que, em 1896, escreveu o mmelodrama para palco: The Great Train Robbery. Sete anos mais tarde a peça se tornaria um clássico do cinema. Suas peças incluem outras no mesmo estilo: Tennes- see’s Pardner (1894), The Sidewake of New York (1895), The Cotton Spinner (1896), The Heart of the Klondike (1897), Have You Seen Smith? (1898), On Land and Sea (1898) e Daughters of the Poor (1899). Fonte: Internet, Wikipedia – The Free Ency- clopedia, Scott Marble, http://en.wikipedia.org/wiki/Scott_Marble, ultimo acesso em 16 dee janeiro de 2011.

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Figura 45 – George Barnes – The Greatt Train Robbery - 1903

Segundo relatos da época, isso causava uma tremenda sensação terrifi- cante na platéia. A cena, no entanto, é totalmente irrelevante à narrativa do filme, e foi utilizada somente como um elemento promoccional. A citação de Leone é bastante efetiva, pois veladamente, representa uma “vingança” do espectador. No ponto de vista da câmera subjetiva e da narrativa cria- dos até esse momento dos créditos iniciais, apresenta-se como se o próprio espec- tador estivesse atirando e matando o homem à cavalo. A Partir desse momento, a música iniicia com o som incomum do marran- zano. Contra a imagem da colina, que se transforma num fundo onde só o cavalo se movimenta, são inseridos os créditos das pessoas que participaram do filme. A in- serção e troca dos nomes é feito com caracteres animados, oferecidos ao “esppecta- dor” como se fossem objetos de “tiro ao alvo”, ou seja, os próprios caracteres se ofe- recem como alvos. Portanto, o único som que persiste, além dos da música, são os do rifle do atirador “oculto”.

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Figura 46 – Créditos Iniciais: Per qualche dollaro in più (1965)

Após todos os créditos serem “alvejados”, sincronizados às três partes da música de Morricone em “modo primitivo”, “modo de rock” e “modo pseudo- sinfônico”, a tela inicial com fundo vermelho e o ponto branco se sobrepõe novamen- te na tela. Surge então um texto que faz referêência aos caçadores de recompensa, parte importante do argumento do filme. Tanto Monco (Clint Eastwood) quanto o Co- ronel Mortimer (Lee van Cleef) são caçadores de recompensa:

Figura 47 – Final dos Créditos Iniciais: Per qualche dollaro in più (1965)

Onde a vida não tinha valor, a morte, às vezes, tinha seu preço. Por isso sur- giam os que matavam por recompensa.

A música termina com o “tradicionall” acorde de Ré menor, também do primeiro filme, ao mesmo tempo em que a imagem vai se dissolvendo para o início da primeira cena da história.

4.7.7 - Alguns Exemplos da Utilização do Tema 1 Fragmento 5. Na apresentação do personagem do Coronel Mortimer (Lee van Cleef) o seu leitmotiv: a nota Ré emitida pello marranzano (berimbau de boca), e ouvido quando ele está ao lado de seu cavalo para escolher uma das armas que

276 possa atingir à distância o bandido Guy Callaway em fuga. Mortimer atira e consegue atingir o cavalo que cai derrubando também o bandido. Quando o bandido olha para Mortimer uma sonoridade eletroacústica cáustica e aguda é emitida, comentando o “estado de espírito” desesperado do bandido que olha com ódio para o Coronel. A sonoridade é cortada por um tiro certeiro disparado que fere o bandido. Enquanto o bandido se levanta, novamente, o Coronel aproveita para trocar de arma e se apro- xima um pouco mais do bandido. O bandido se levanta e atira contra o Coronel, mas a distância é maior do que os tiros de seu revólver podem alcançar. Enquanto o ban- dido atira, em vão, o Coronel monta a sua nova arma, uma extensão que é acoplada ao revólver. O bandido vai se aproximando cada vez mais e continua atirando sem resultado. “Eu mato você por isso”, ele exclama. Então o Coronel mira com sua arma e mata o bandido com um tiro na testa. A imagem é cortada com o leitmotiv do Coro- nel recebendo $1.000 dólares de recompensa numa delegacia. Quando Mortimer está saindo da delegacia ele olha para um cartaz que anuncia: Procura-se, Vivo ou Morto, Baby Red Cavanagh - $2.000 dólares de recompensa. O xerife conta que o bandido foi visto, há uma semana, em White Rocks,mas que outra pessoa já veio atrás de informações sobre Bob Red Cavanagh e que seu nome era Monco (Clint Eastwood). Fragmento 6. Na apresentação da personagem de Monco (Clint Eastwo- od) a melodia principal do tema Per Qualche Dollaro in Più - Assoviada, com acom- panhamento de ocarina e uma batida leve de tambor – é ouvida. O Som de um forte trovão (começa a chover) insere Monco na narrativa. Os detalhes que caracterizam o “homem-sem-nome” (revólver, ponche e o acender da cigarrilha [com chuva!] são mostrados. Monco quer dizer canhoto, desse modo o personagem faz tudo com a mão esquerda para poder deixar a mão direita livre para atirar. O tema 1 termina. Monco se aproxima da porta dupla convencional de um Bar e observa o ambiente (de fora). Ouve-se uma música diegética de piano (a músi- ca de Piano dessa cena é só de ambiência) e o som alto da conversa das pessoas que estão no bar (o bar está cheio). Monco entra no bar e pergunta para o xerife por

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Baby Red Cavanagh. O xerife diz que ele está na mesa de pôquer de costas. Monco invade a mesa de pôquer e, de pé, monta uma rodada contra Red. Prevendo o perigo um dos homens de Red corre para a barbearia chamar outros para enfrentar Monco. De volta ao jogo Monco vence a rodada (três Azes contra três Reis). Red diz que não tinha ouvido qual era a aposta. Monco responde: "A sua vida!". Red tenta agredir Monco mas é contido e surrado habilidosamente, somente com a mão es- querda, por Monco. A briga corta o som da música do piano e as pessoas ficam quie- tas. Monco imobiliza Red no balcão e diz: "Vivo ou morto, a escolha é sua. Três ami- gos de Red com arma em punho abrem a porta dupla do Bar. Um deles diz: "Solte o Red". Com os close-ups extremos dos rostos de todos Monco, habilidosamente, des- sa vez também com a mão direita, mata os três bandidos. Red tenta pegar uma arma que estava no chão e também é morto por Monco. Monco com um malabarismo con- vencional guarda sua arma no coldre e é apresentado o seu leitmotiv (as notas: Lá- Ré-Ré-Mi-Ré-Ré executadas pela flauta doce). A imagem é cortada com a sonoridade de um corne-inglês com notas rá- pidas em um rápido diálogo com a flauta doce. A imagem agora mostra Monco na delegacia recebendo $2,000 dólares de recompensa. O delegado comenta: “Dois mil dólares. É muito dinheiro. Levo três anos para ganhar isso”. Monco, percebendo a ironia do delegado, pergunta: “O delegado não deve ser corajoso, leal e, acima de tudo, honesto?” O delgado responde: “É. E ele é”. Monco retira a estrela do peito do delegado e se dirige para a porta de saída da delegacia. A flauta doce inicia algumas notas graves que servem de introdução do leitmotiv de Monco. Do lado de fora, ele atira a estrela do delegado no chão próximo a duas pessoas e diz: “Acho que vocês precisam de um delegado novo”. O som grave da flauta emenda na melodia assovia- da principal do tema 1, Per Qualche Dollaro in Più, que arremata a cena. Fragmento 13. Quando Monco está chegando na cidade de El Paso a me- lodia principal do tema Per Qualche Dollaro in Più - Assoviada, com acompanhamen- to de ocarina e uma batida leve de tambor – é ouvida. A música é cortada no início de um diálogo entre Monco à cavalo e Fernando um menino que estava brincando

278 com outros meninos e que serve como guia do local. No meio da conversa os dois caçadores de recompensa, Monco e o Coronel Mortimer se olham pela primeira vez. Monco, Entrando no hotel sugerido pelo menino Monco dá uma olhada no Banco de El Paso. Fernando dá, em troca de algumas moedas, informações de que um ho- mem estranho (o Coronel Mortimer) havia chegado na cidade e estava hospedado no outro hotel. Corte quando Monco abre a porta do Hotel para entrar. Fragmento 14. Monco conhece Mary e o marido donos do Hotel. O quarto que Monco deseja (para observar e montar uma estratégia de ação) está ocupado pelo Sr. Fernandez. Monco dá um jeito de desocupá-lo, expulsando o Sr. Martinez. Quando Monco entra no quarto um cluster derivado do motivo do relógio de bolso, representando Índio, com sonoridades dissonantes, que ficam em torno de Ré me- nor, se faz presente. Monco deita e tira o cartaz de Índio de uma bolsa. Enquanto ele olha o cartaz é sobreposto ao som do cluster o seu leitmotiv da flauta. Fragmento 20. O Coronel Mortimer está no que parece ser uma Biblioteca. Ele está folheando um livro com uma coleção de Jornais: El Paso Tribune. Num dos jornais observa que os irmãos Elic Morton foram mortos por um caçador de recom- pensas. A notícia traz a foto de Monco estampada com um dos pés sobre um deles. O leitmotiv de Monco é executado com a foto do jornal. Fragmento 25. O tema 1, Per qualche dollaro in più, é ouvido quando Monco explode a janela de uma cela na prisão onde Sancho Perez, um dos homens da gangue de Índio, está preso para libertá-lo. A ação faz parte de um plano com o Coronel Mortimer que visa infiltrar Monco na gangue de Índio. O tema 1 é executado em sua “parte primitiva” – assoviado e com acompanhamento de uma ocarina – e sua parte do “modo de rock” – com solo da guitarra. Fragmento 26. Nessa seqüência Índio abraça Sancho Perez que escapou da prisão com a ajuda de Monco. Índio fica intrigado com a presença de Monco e quer saber quem ele é. Quando indagado em porque ajudou Sancho Perez, Monco responde: “Havia uma recompensa grande sendo oferecida por vocês todos e eu pensei em pegar carona no seu próximo assalto. E eu talvez lhes entregue às autori- dades”. Todos ficam quietos e intrigados com a resposta. Monco põe o seu charuto

279 na boca e um dos homens de Índio, com um tiro, corta o charuto no meio. Monco acende de novo o que restou do charuto. Ele parece ser aceito com relutância quan- do Índio acende um cigarro de maconha no charuto de Monco. Imediatamente o som eletroacústico distorcido (derivado do relógio de bolso) inunda o ambiente da igreja abandonada onde o bando se esconde. Dando um grande trago no cigarro Índio diz: “Amigo.. essa é a resposta que prova que você é leal. E você chegou bem na hora o trabalho já está marcado. É amanhã. O local é o banco de El Paso. Perto de El Paso, em uma cidade chamada Santa Cruz, amanhã, Blackie, Chico, Paco e você, amigo, roubarão o banco em Santa Cruz. Atirem, matem, façam todas as autoridades virem atrás de vocês, principalmente as de El Paso. Todos os outros ao redor, nós cuida- remos deles. E depois de tudo feito, nós nos encontraremos em Las Palmeiras”. Monco é então escalado com outros três integrantes do bando para atrair a atenção da guarda de El Paso num assalto em outra cidade: Santa Cruz. Ele se vira para ir descansar e o Tema 1, Per qualche dollaro in più, é ouvido enquanto ele sai, arrema- tando a cena. Fragmento 27. O tema 1, Per qualche dollaro in più, é ouvido no final da cena em uma área descampada. Monco e os três integrantes do bando de Índio pa- raram para descansar. Enquanto tomam um café, um dos três integrantes do bando diz não ter acreditado na história contada por Monco. Monco diz que é uma pena eles terem de morrer. Imediatamente, uma sonoridade semelhante ao “som tônico” que precede os duelos do primeiro filme é ouvida. Da mesma forma que no filme an- terior, Monco mata os três. Com o som alto dos tiros, o som agudo é cortado. Monco anda na direção de seu cavalo ao som do Tema 1, iniciando pelo seu leitmotiv repe- tido pela ocarina, como introdução da parte de “modo de rock” da guitarra (os dois motivos são o mesmo) que também é utilizado para cavalgadas. A imagem é cortada para Índio e seu bando que também estão saindo à cavalo para o assalto ao banco de El Paso. Índio comenta: “Agora eles devem estar em Santa Cruz”. O enorme ban- do de Índio se afasta em caravana e a imagem é cortada para Monco chegando em um escritório de uma estação de trem. A música termina com uma coda do coral masculino da parte do “modo de rock”.

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O som tônico é ouvido novamente no fragmento 33, quando o bando de Índio, depois do assalto ao bando de El Paso, atiram no armário (cofre) tentando abri-lo; Monco chega à cavalo e a sonoridade aguda se faz presente. Índio resolve ir para o Leste, para Agua Caliente. Fragmento 29. No escritório da estação de trem de Santa Cruz Monco faz com que o operador de telégrafo passe uma mensagem para o Banco de El Paso dizendo que o Banco local (Santa Cruz) havia sido roubado por Índio e seu bando. Em El Paso a mensagem mentirosa é recebida e um grupo de homens saem atrás de Índio e seu bando à cavalo. A melodia do tema 1 é introduzida pelo solo do assovio de Alessandro Alessandroni. Na parte do “modo de rock”, que tam- bém serve para cavalgadas, Monco, à cavalo, observa o resultado do truque. Índio (e seu bando), indo assaltar o banco de El Paso, também observa o sucesso parcial do plano e manda um de seus homens atirar nos fios do telégrafo para cortar a comuni- cação de El Paso. A música Per qualche dollaro in più é executada inteira conferindo às três cavalgadas um tom heróico grandioso e de aventura. A música é sobreposta com um corte para o quarto do Coronel Mortimer. Fragmento 30. Sonoridades derivadas da música “Addio Colonello” são ouvidas enquanto Mortimer arruma suas armas e se prepara para enfrentar Índio e seu bando. As sonoridades são sobrepostas novamente pelas do tema 1, com a imagem mostrando Monco à cavalo entrando na cidade. A música termina com o as- sovio executando as notas Lá e Ré, e Monco descendo do cavalo. O som do vento preenche o espaço sonoro. Monco e Mortimer acenam um para o outro e observam o Banco de El Paso no momento em que está fechando. Num plano fechado de Monco o assovio de Alessandro Alessandroni sola a melodia principal do tema 1 uma vez. As imagens são cortadas com a chegada do homem que irá ficar de guarda no ban- co de El Paso durante a noite.

4.7.8 - Alguns Exemplos da Utilização do Tema 2 Fragmento 8. Numa noite escura, o bando de Índio vai libertá-lo (na marra) de uma prisão mexicana onde já estava a 18 meses; Ostinato (Motivo do Relógio de

281 bolso) em sonoridades graves (sombrias) órgão e campanas com o som do sino; A música é cortada no enquadramento do rosto de Índio acordando com o som (nota Ré) forte, dobrado em oitavas com sino, tímpano, órgão e campana. Fragmento 11. Corte para o Relógio de Bolso aberto e tocando o início de Carillon (Leitmotiv de Índio); O bando está em seu esconderijo (as ruínas de uma velha igreja); Índio castiga duramente um integrante do bando por tê-lo delatado às autoridades; Índio manda a mulher e o filho de 18 meses do homem que o delatou por recompensa para fora do local; Índio abre o relógio, a música Carillon soa e ou- ve-se tiros à distância (off screen) anunciando a morte da mulher e da criança. O homem grita desesperado; Índio fecha o relógio afirmando que sabe que o homem o odeia muito; Índio se afasta do homem (PAN Geral no local) e afirma que, desta vez, dará uma chance ao homem de não atirar pelas costas; Os dois se aprontam para um duelo; Índio diz que quando a música terminar, comece [a atirar]; Índio diz: "Va- mos começar". Abre o relógio de bolso e a música introduz (diegeticamente) La Resa dei Conti; A música termina e Índio mata o homem que é retirado do local pelo ban- do; Índio senta-se numa cadeira visivelmente transtornado e, com uma sonoridade preparada eletronicamente, pede um cigarro de maconha para Nino; Nino sai do lo- cal e deixa Índio fumando. Som da música do Relógio (início de Carillon); La Resa dei Conti; Fragmento 15. Corte para o rosto de Índio (um susto) na Igreja; 3 integran- tes do bando (entre eles Groggy) se aproximam do local à cavalo e para avisar de sua chegada atiram 3 vezes no sino da igreja; Índio ilustra seu plano para roubar o banco de El Paso com uma parábola e, para isso, sobe no púlpito da igreja: Era uma vez um carpinteiro... O dinheiro não está no cofre, está nisso aqui (um tipo de armá- rio...), quase um milhão de dólares; Sem Música; Órgão toca a melodia principal de Il vizio di ucidere; Fragmento 17. Quatro integrantes do bando de Índio chegam na cidade e vão ao bar; Fernando o garoto guia vai avisar Monco sobre a presença dos quatro; Música incidental de violão para Mary; Motivo de Monco;

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Fragmento 23. No quarto de Mortimer eles discutem e acabam criando uma parceria igual: Monco fica com os $10.000 dólares pela recompensa de Índio e Mortimer com a recompensa pelos outros 13, eles são em 14: Blackie vale 4, Wild vale 3, Nino vale 1, Frisco vale 2 (dá 10); Eles brindam a parceria "sem nenhum tru- que, naturalmente"; Um de nós terá de entrar para o bando de Índio; Mortimer diz: "Leve para Índio Sancho Perez que está descansando na cadeia de Alamogourdo". No final da cena Mortimer olha para seu Relógio de Bolso; Corte para o rosto de Ín- dio; Violão: Motivo do Relógio de Bolso Fragmento 24. O Motivo do violão é sobreposto pelo do Relógio e as so- noridades do Carillon são destorcidas; Índio, fumando maconha, revive os aconteci- mentos do assassinato de um homem; Sonoridade eletroacústica Fragmento 31. O vigia entra no banco; Corte para o armário (cofre) do di- nheiro. Entra a música (Il Colpo); Corte para fora do banco. Mortimer e Monco con- tam os passos; O bando entra na cidade (som longo de um trompete - nota Lá); O bando chega lentamente perto do banco; Explosão da parede do banco; O vigia é morto com um tiro; O armário (cofre) é laçado e jogado dentro de uma carroça pelo bando; O Bando inícia a fuga (entra a parte final da música: Il Vizio di Ucidere); Mor- timer e Monco se olham e seguem à cavalo atrás dos bandidos; Acompanha-se toda a fuga dos bandidos; (Il Colpo; parte final de Il Vizio di Ucidere). Fragmento 32. No trajeto Mortimer e Monco conversam (a música termi- na). Mortimer pergunta o que Monco está fazendo na cidade? Monco diz que não está fugindo e desfaz a sociedade com Mortimer; Mortimer diz: vamos esperar e conversar mais (entra novamente a música); Monco está irredutível; Mortimer dá um tiro de raspão no pescoço de Monco para que pareça que ele tenha sido ferido e os outros três mortos em Santa Cruz; Mortimer diz que agora o bando todo vale $40.000 e se eles ainda vão manter a sociedade?; Monco concorda; Mortimer pede que Mon- co tente convencer Índio a ir pro norte, seguindo o Rio Bravo. Ele acrescenta que é

283 um bom lugar para uma emboscada (uma flauta doce arremata o diálogo); (Il Vizio di Ucidere). Fragmento 34. Corte para a entrada de Agua Caliente; Índio diz que nunca viram Monco atirar e querem saber como ele se comporta em emergências (entra a música). Índio manda Monco entrar sozinho na cidade; Monco entra na cidade e o que se vê é uma espécie de repetição da primeira cena do primeiro filme; Monco en- contra com 3 homens que vão enfrentá-lo (a música termina); Monco se prepara para enfrentá-los com seu gesto característico (jogar o ponche em cima do ombro) (ouve- se o leitmotiv de Monco); No momento crucial Monco vê um menino correndo para apanhar maçãs numa árvore. Monco começa a atirar em algumas maçãs fazendo-as cair no chão para que o menino possa pegá-las. Monco acaba de atirar mas os tiros continuam. É o Coronel Mortimer que está em suas costas também atirando nas fru- tas; Os três homens que iam enfrentar Monco, vendo sua habilidade, desistem do intento (ouve-se novamente o motivo de Monco); O Coronel Mortimer sorri (ouve-se seu leitmotiv); A imagem é cortada para o Bando de Índio (Ouve-se o motivo do vio- lão na entrada de La Resa Dei Conti); Os dois entram em uma Taverna; (Il Vizio di Ucidere; Leitmotiv de Monco (duas vezes); Leitmotiv do Coronel Mortimer; Leitmotiv de Índio). Fragmento 35. Monco está abismado de como Mortimer conseguiu chegar no local. O Coronel diz que usou o raciocínio; o bando entra também na taverna; Wild fica louco com a presença do Coronel Mortimer e acende seu desejo de vingan- ça (entra o trombone); Wild é morto por Mortimer em duelo; Índio conversa com Mor- timer: Eu vim abrir o cofre; (Carillon). Fragmento 40. Nino é acordado por alguém (provavelmente Índio); Nino mata um dos homens; Nino solta Monco e lhe entrega uma arma descarregada (Um galo canta). Nino também solta o Coronel Mortimer, da mesma forma. Nino ordena que eles fujam; Índio estava observando e Nino pergunta porque ele está fazendo isso? (Som com o sino característico) Índio sabe que os dois são caçadores de re- compensas e pretende que os homens do bando os enfrentem; Índio pede para que Nino acorde Cuccillo; Com as sonoridades distorcidas Índio acende uma maconha;

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Cuccillo pergunta quem matou o homem? Índio pede para que ele olhe a faca. Cuc- cillo reconhece a faca como sendo sua. Índio diz que ela não deveria estar nesse lugar. Índio pega o seu relógio de bolso e o abre (inicia a música Carillon); Cuccillo insiste que não foi ele. Índio manda ele correr para ver se consegue escapar. Cuccil- lo tenta mas é morto por um tiro de Índio (La Resa dei Conti iniciou); Os homens acordam e correm para ver o que está acontecendo; Índio começa a chorar e diz que Cuccillo matou Slim (a música é cortada) e ajudou os dois caçadores de recompensa a escapar. Ele diz que os quer de volta imediatamente; Os homens correm para se aprontar para ir atrás dos dois. Índio diz para Nino se aprontar que eles vão fugir; (Sonoridades Graves e Suspensivas; Som com o Sino característico; Sonoridades distorcidas do Leitmotiv de Índio; Carillon; La Resa dei Conti). Fragmento 42. Corte para Índio dando um track no besouro e o jogando para fora da mesa; Índio pega o relógio de bolso e o abre (inicia o Carillon). Pela pri- meira vez aparece a foto de uma mulher. O homem diz que a muito tempo quer per- guntar para Índio sobre o relógio que sempre significou muito para ele. Por quê? CU nos olhos de Índio. CU na foto da mulher do relógio. O som da música é distorcido e vemos novamente o casal; A cena do assassinato do homem é repetida e Índio vio- lenta a mulher. A mulher com Índio em cima dela consegue pegar a arma de Índio e dispara contra si mesmo, se matando. Índio sai do transe com alguém gritando seu nome (a música do Relógio volta ao normal e termina rallentando, como se a corda estivesse acabando). A voz é do Coronel Mortimer; (Carillon; Carillon distorcido).

4.7.9 - Fragmento 44 e 45: O Duelo final Fragmento 44. Corte para Mortimer fora da casa. Mortimer atira no homem que estava com Índio. Enquanto ele cai no chão, Índio surge inesperadamente de uma porta e com um tiro consegue tirar a arma do Coronel de sua mão. Índio se aproxima do Coronel desarmado guarda sua arma no coldre e, com já havia feito numa cena anterior, diz para que assim que a música do relógio parar que ele tente pegar a arma do chão e atirar nele. Índio abre o relógio e a música (Carillon) começa. Quando a música está nos últimos soluços ela, inexplicavelmente, recomeça sobre-

285 posta e cheia de vigor. A fonte é o relógio do próprio Coronel, em posse de Monco que aparece nesse momento com o relógio aberto. Com o início de La Resa dei Cont, Índio pensa em pegar sua arma mas é impedido por Monco com uma espin- garda apontada para ele. Monco diz para o Coronel que foi descuido dele (em rela- ção ao relógio), entregando um cinturão com revólver para que o coloque na cintura, enquanto que a presença de um coral na música torna o momento solene. Monco diz: "Agora começamos". O trompete em estilo mariachi inicia o solo da melodia prin- cipal da Resa dei Conti. O local do duelo é um grande círculo. Monco se senta fora do campo de ação dos dois para assistir (segurando o relógio aberto). Finalmente, a música termina. Índio tenta ser mais rápido mas é atingido pelo Coronel caindo mor- talmente ferido. Ele ainda tenta atirar, mas morre no intento. Inicia a música “Addio Colonello”, a variação “dolente” da própria peça que acompanhou o duelo final. Monco pede seu revólver de volta. O Coronel diz para Monco que agora ele é um homem rico. Monco insinua que os dois estão ricos, pois são parceiros. Po- rém, Mortimer responde: "quem sabe numa próxima vez". O Coronel se despede abrindo mão de sua parte na recompensa. Monco começa a juntar os corpos numa carroça enquanto a música de Mortimer termina. Fragmento 45. O homem que estava com Índio sobreviveu e está escon- dido atrás de umas rochas. Monco está fazendo as contas do total de sua recompen- sa. O homem, pelas costas de Monco, tenta matá-lo. Monco ouve o barulho de um revólver sendo armado e, mais rápido, mata o homem. A imagem corta para o Coro- nel ao longe que grita se Monco está com algum problema. Nesse momento inicia o tema 1, Per Qualche Dollaro in Più. Monco responde que não tem problema nenhum e diz: "Pensei que minha conta estivesse errada. Mas, agora está tudo certo". O Co- ronel Mortimer sorri e segue seu caminho. Monco com a cigarrilha na boca pega o último homem e põe na carroça. Ele sobe na carroça e segue para entregar o bando e receber a recompensa. Em cima de uma árvore ele também pega o dinheiro do assalto ao banco de El Paso. Na tela aparece em ingles e letras grandes: The End - released through United Artists. A música arremata o filme. Ela é a mesma que o ini- ciou.

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4.8 - A MÚSICA DE IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO – 1966 (TRÊS HOMENS EM CONFLITO)

Uma idéia temática se transformou no som do coiote em Il buono, Il brutto, Il cattivo (1966). Eis, sempre no terceiro filme, o episódio da guerra, o episódio dos créditos iniciais, com cinco ou seis trompetes que ressoam no tempo de poucos segundos fa- zendo uma algazarra incrível. Depois de escolhas similares fui acusado de não ter controlado bem a partitura, porque àquelas intervenções sonoras resultavam efeti- vamente “fora” da imagem, endereçados diretamente ao espectador. Posso entender o motivo das críticas, mas não é absolutamente verdade que aqueles fossem o signo de uma incapacidade de controle por minha parte. (Ennio Morricone).

4.8.1 - Ficha Técnica Il buono, il brutto, il cattivo – The good, the bad and the ugly – Três homens em conflito – Países: Itália/Espanha/Alemanha Ano: 1966 Duração: 182’ (versão italiana); 166’ (versão francesa); 161’ (versão americana) Direção: Sergio Leone Argumento: Luciano Vincenzoni Sergio Leone, Luciano Vincenzoni, Age [Agenore Roteiro: Incrocci], Scarpelli [Furio Scarpelli], Sergio Donati (não creditado) Diálogos inglêses: Mickey Knox Produção: PEA (Produções Europeas Associadas) Produtor Executivo: Alberto Grimaldi Empresas Produtoras: PEA [Produzioni Europee Associate] (Roma) Distribuição: PEA/United Artists Intérpretes e Personagens

 Clint Eastwood (Blondie),  Lee Van Cleef (Sentenza),  Eli Wallach (Tuco [Benedicto Pacifico Juan Maria Ramírez]),  Aldo Giuffré (capitão bêbado da União),  Luigi Pistilli (padre Pablo Ramírez),  Rada Rassimov (Maria, a prostituta),  Enzo Petito (dono da loja de armas),  John Bartha (xerife),  Livio Lorenzon (Baker),  Antonio Casale (Jackson, alias “Bill Carson”),  Benito Stefanelli (membro do bando de Sentenza),  Angelo Novi (Monge),  Aldo Sambrell (membro do bando de Sentenza),  Antonio Casas (Stevens),  Al Mulloch (pistolero sem o braço),  Lorenzo Robledo (Clem, membro do bando de Sentenza),  Mario Brega (Cabo Wallace). Não Creditados:

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 Chelo Alonso (mulher de Stevens),  Antonio Ruiz (o filho mais jovem de Stevens)

Fotografia (Techniscope, Technicolor): Tonino Delli Colli Montagem: Nino Baragli, Eugenio Alabiso Efeitos Especiais: Eros Baciucchi Ennio Morricone, Regência de Bruno Nicolai (Eureka Edizioni Música: Musicali). Versos da canção La storia di un soldato de Tommie Connor. Cenografia: Carlo Simi, Sigfrido Burmann Costumes: Carlo Simi Cenas Internas: Elios Film (Roma) Cenas Externas: Almeria, Colmenari Burgos Mestre de Armas: Benito Stefanelli Auxiliar de Direção: Giancarlo Santi Assistentes de Direção: Fernando Di Leo, Julio Samperez

4.8.2 - Comentários Iniciais Sergio Miceli (1994:130) comenta que “uma prova ainda parcial, incorpo- rada como pars pro toto, que em Ennio Morricone os processos evolutivos se desen- cadeiam através de um mecanismo notável de conjunção, no qual as inovações não negam o que já foi conquistado, mas, servem de plataforma para o passo sucessivo independente dos condicionamentos típicos da composição fílmica”, podem ser en- contrados no terceiro filme da trilogia dos dólares de Sergio Leone: IL BUONO, IL BRUT-

TO, IL CATTIVO (TRÊS HOMENS EM CONFLITO) de 1966. No filme, protagonismo e antagonismo incorporam-se em três persona- gens principais: Blondie – Il buono (o bom), Tuco – Il brutto (o feio) e Angel Eyes – Il cattivo (o mau), interpretados por Clint Eastwood, Jason Robarts e Lee van Cleef, respectivamente. A trilha sonora musical mais ampla, com uma quantidade maior de temas e soluções articuladas, resulta do incremento da complexidade narrativa em relação à interação de personagens, situações e localizações. No filme O Bom triunfa sobre o Mau, mas “Bom” e “Mau” são somente termos relativos no mundo ficcional criado pelo filme de Sergio Leone. Blondie, que

289 possui muitas características relacionadas ao mau, é só relativamente bom; Tuco, que possui algumas características boas e muitas relacionadas ao mau, não pode ser pior que os outros dois protagonistas; Angel Eyes, por outro lado, talvez seja, de fato, completamente mau, pois, o personagem não apresenta nenhuma virtude, em qualquer momento do filme. A linha que separa o bom, o feio e o mau, fica tão desfo- cada a ponto de tornar-se inexistente, ou pelo menos, indiscernível. Essa indistinção é habilidosamente refletida na música de Morricone representada por um mesmo motivo musical, mas com características tímbricas distintas. Esse motivo musical, derivado da idéia dos dois filmes anteriores, é a semente da qual a trilha sonora do filme se desenvolve.

4.8.3 - Sinopse Ambientado nas belas, coloridas e amplas colinas do “velho oeste ameri- cano”, em 1861/62, durante a Guerra Civil Americana, mesmo que, na realidade, te- nha sido filmado na Espanha, IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO conta a história de três pistoleiros, Blondie (Clint Eastwood), Tuco (Eli Wallach) e Angel Eyes (Lee Van Cleef), que ganham a vida como mercenários, utilizando suas habilidades para rece- ber recompensas de modo fraudulento. A trama central do filme se revela quando os três protagonistas descobrem o segredo da existência de uma caixa contendo duzen- tos mil dólares em moedas de ouro. Três soldados confederados, Baker (Livio Loren- zon), Stevens (Antonio Casas) e Jackson (Antonio Casale), sabem da existência da caixa com o ouro. A jornada em descobrir o segredo de sua localização e apoderar- se do ouro contido na caixa coloca os três protagonistas uns contra os outros resul- tando no “trielo” final, ou seja, num combate de morte entre os três. Quando os três protagonistas são introduzidos individualmente à audiên- cia, eles são mostrados como engajados em esquemas antiéticos e violentos para benefício próprio. Todos eles são criminosos cuja ganância é mais forte do que o respeito pela vida. Blondie e Tuco têm um complexo relacionamento de amizade- ódio, no qual eles sistematicamente tentam torturar um ao outro, mas, ao mesmo tempo, dependem de sua parceria num esquema fraudulento para ganhar dinheiro.

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Do mesmo modo, Angel Eyes é um pistoleiro de aluguel que mata qualquer um por dinheiro. Cada um dos três personagens descobre, por acaso, uma parte do segre- do da localização da caixa. Angel Eyes é o primeiro a ficar sabendo sobre a existên- cia do ouro quando, contratado por Baker, tem de arrancar de Stevens o nome falso que Jackson está usando no momento. Angel Eyes consegue descobrir que Jackson está utilizando o nome falso de Bill Carson. No processo Angel Eyes mata Stevens e Baker, deixando Jackson como a única pessoa viva que conhecia a localização das moedas de ouro. Blondie e Tuco encontram Bill Carson morrendo no deserto, o único pas- sageiro sobrevivente de uma emboscada a uma diligência confederada. Através das últimas palavras de Carson, antes de morrer, Tuco fica sabendo que a caixa com as moedas de ouro está escondida numa cova do cemitério Sad Hill. Ele descobre o nome do cemitério, mas não o ponto exato onde a caixa está enterrada. Blondie, por outro lado, fica sabendo qual é a cova em que a caixa está enterrada (ao lado da cova de Arch Stanton, com uma placa “Desconhecido”), mas não sabe o nome do cemitério. Tuco, que estava tentando matar Blondie, dá-se conta que depende de Blondie para que o ouro seja encontrado. Essa ganância, co-dependência e descon- fiança de um para com outro é um dos principais motivos do desdobramento da nar- rativa fílmica, auxiliando a criar um equilíbrio que se mantém até o final surpreenden- te do filme. Blondie e Tuco encontram a cova do cemitério onde as moedas de ouro estão escondidas, ou assim a audiência é levada a acreditar, porém, Angel Eyes, que havia torturado Tuco para que revelasse a parte do seu segredo, aparece de surpresa na cova do cemitério e o palco do filme é montado para o “trielo”, a confron- tação final entre os três homens. Os três homens logo se tornam somente dois, pois Blondie mata Angel Eyes, deixando somente ele mesmo e Tuco para dividir a “re- compensa”, “como nos velhos tempos”. Porém, como vingança, o hábil e manipula- dor Blondie força Tuco a ficar em pé, se equilibrando em cima de uma cruz de uma das covas do cemitério enquanto coloca sua cabeça numa forca, com suas mãos

291 amarradas em suas costas. Parece, por um momento, que os dois se tornarão um e que Blondie será o único sobrevivente para desfrutar a “recompensa”. Num momento final de “bondade”, Blondie poupa a vida de Tuco através de um gesto que ironiza os seus primeiros esquemas para ganhar dinheiro, ele corta a corda da forca com um tiro de seu rifle. Blondie vai embora com metade das moedas de ouro e o filme termi- na.

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4.9 - ORGANIZAÇÃO TEMÁTICA DA TRILHA MUSICAL

4.9.1 - Decupagem

CLASSIFICAÇÃO Nº INÍCIO FIM DURAÇÃO IDENTIFICAÇÃO NOME NO CD DERIVAÇÃO Fragmento OBJETIVA Il Buono, Il brutto, il

1 00:00:00 00:02:44 00:02:44 Créditos Iniciais cattivo (Tema Tema 1 Externo Fragmento 1 Principal) Apresentação de

2 00:02:44 00:05:47 00:03:03 Leitmotiv Tuco Tema 1 Externo Fragmento 2 Personagem Inserção de Persona-

3 00:05:47 00:14:48 00:09:01 Il Tramonto Il Tramonto Externo Fragmento 3 gem Apresentação de

4 00:14:48 00:17:09 00:02:21 Leitmotiv Angel Eyes Tema 1 Externo Fragmento 4 Personagem Inserção de Persona-

5 00:17:09 00:24:16 00:07:07 Leitmotiv Blondie Tema 1 Externo Fragmento 5 gem Il Buono, Il brutto, il Apresentação de

6 00:24:16 00:29:18 00:05:02 cattivo (Parte do Tema 1 Externo Fragmento 6 Personagem Modo de Rock) Inserção de Persona-

7 00:29:18 00:31:39 00:02:21 Sentenza Angel Eyes Externo Fragmento 7 gem

8 00:31:39 00:37:49 00:06:10 Tuco na Ponte Il Ponte di Corde Il Ponte di Corde Externo Fragmento 8

9 00:37:49 00:41:03 00:03:14 3 amigos de Tuco Tuco e Amigos Tuco e Amigos Externo Fragmento 9

10 00:41:03 00:49:04 00:08:01 Blondie Escapa 1 vez Sonoridades Tema 1 Externo Fragmento 10 Guerra (Visão de Angel La Carrozzo dei La Carrozzo dei

11 00:49:04 00:53:19 00:04:15 Externo Fragmento 11 Eyes) Fantasmi Fantasmi Tuco perssegue Blon-

12 00:53:19 00:55:38 00:02:19 Inseguimento Inseguimento Externo Fragmento 12 die

13 00:55:38 01:05:36 00:09:58 Tuco acha Blondie Il Deserto Il Deserto Externo Fragmento 13 La Carrozzo dei La Carrozzo dei

14 01:05:36 01:13:25 00:07:49 Blondie quase morto Externo Fragmento 14 Fantasmi Fantasmi Tuco & Blondie (Dis-

15 01:13:25 01:14:55 00:01:30 Sem Música Sem Música Sem Música Fragmento 15 farçados de Sulistas) Missão (Pe. Pablo La Missione San La Missione San

16 01:14:55 01:29:07 00:14:12 Ramirez) - irmão de Antonio; Padre Antonio; Padre Externo Fragmento 16 Tuco Ramirez Ramirez Tuco e Blondie são

17 01:29:07 01:35:11 00:06:04 Marcetta Marcetta Interno Fragmento 17 presos

18 01:35:11 01:38:03 00:02:52 Ética do Capitão Marcetta Marcetta Externo Fragmento 18 Tuco (Carson) & Angel La Storia di un La Storia di un

19 01:38:03 01:46:40 00:08:37 Interno Fragmento 19 Eyes Soldato Soldato Blondie & Angel Eyes /

20 01:46:40 01:51:10 00:04:30 Marcetta Marcetta Externo Fragmento 20 Tuco vai "Preso" Angel Eyes & Blondie

21 01:51:10 01:52:58 00:01:48 Marcetta Marcetta Externo Fragmento 21 vão para o Cemitério Tuco no trem para a A História de um La Storia di un

22 01:52:58 01:55:38 00:02:40 Externo Fragmento 22 prisão Soldado Soldato

23 01:55:38 01:57:16 00:01:38 Angel Eyes & Blondie Sem Música Sem Música Sem música Fragmento 23

293

Tuco escapa de Walla- La Storia di un La Storia di un

24 01:57:16 02:00:55 00:03:39 Externo Fragmento 24 ce Soldato Soldato Morte di un

25 02:00:55 02:03:54 00:02:59 Angel Eyes e os 6 Morte di un ladrone Externo Fragmento 25 ladrone

26 02:03:54 02:07:05 00:03:11 O banho de Tuco Il Bandito Monco Il Bandito Monco Externo Fragmento 26 Cada arma tem uma

27 02:07:05 02:08:16 00:01:11 Il Bandito Monco Il Bandito Monco Externo Fragmento 27 melodia

28 02:08:16 02:10:14 00:01:58 Blondie "acha" Tuco Il Bandito Monco Il Bandito Monco Externo Fragmento 28

29 02:10:14 02:15:24 00:05:10 Dois contra Cinco Tema 1 Tema 1 Externo Fragmento 29 Il Carrozo dei fantas- Il Carrozo dei

30 02:15:24 02:26:14 00:10:50 Batalha pela ponte Externo Fragmento 30 mi Fantasmi Marcetta senza Marcetta senza

31 02:26:14 02:35:15 00:09:01 Explosão da Ponte Externo Fragmento 31 speranza speranza A Morte de um Solda- Morte di un

32 02:35:15 02:39:11 00:03:56 Morte di un soldato Externo Fragmento 32 do soldato Leitmotiv de

33 02:39:11 02:40:10 00:00:59 Tuco tentando fugir Leitmotiv de Blondie Externo Fragmento 33 Blondie

34 02:40:10 02:43:30 00:03:20 Tuco no Cemitério L'Estasi Dell'oro L'Estasi Dell'oro Externo Fragmento 34 Leitmotiv de Leitmotiv Blondie e

35 02:43:30 02:47:11 00:03:41 Cova Errada Blondie e Angel Externo Fragmento 35 Angel Eyes Eyes

36 02:47:11 02:52:50 00:05:39 O Trielo Il Triello Il Triello Externo Fragmento 36 Il Buono, Il brutto, il

37 02:52:50 03:02:32 00:09:42 A divisão final cattivo (Tema Tema 1 Externo Fragmento 37 Principal)

4.9.2 - As faixas do CD das músicas do filme: “il buono, il brutto, il cattivo” A gravação, catalogada Catalog ID: PID 715772, lançado em 25/09/2001, respeita a ordem de entrada das inserções na película. As 21 faixas do CD, com du- ração total de 59 minutos e 21 segundos, são as seguintes:

Nº. Nome Duração 1 Il Buono Il Brutto Il Cattivo [2:42] 2 Il Tramonto [1:18] 3 Sentenza [1:43] 4 Fuga a Cavvallo [1:09] 5 Il Ponte di Corde [1:55] 6 Il Forte [2:24] 7 Inseguimento [2:27] 8 Il Deserto [5:18] 9 La Carrozza Dei Fantasmi [2:11]

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10 La Missione San Antonio [2:19] 11 Padre Ramirez [2:40] 12 Marcetta [2:52] 13 La Storia di Un Soldato [5:34] 14 Il Treno Militare [1:25] 15 Fine di Una Spia [1:16] 16 Il Bandito Monco [2:45] 17 Due Contro Cinque [3:47] 18 Marcetta Senza Speranza [1:50] 19 Morte di un Soldato [3:09] 20 L’Estasi Dell’Oro [3:23] 21 Il Trielo [7:14]

Tabela 9 – CD: Il buono, il brutto, il cattivo

Diferente dos dois filmes anteriores, com exceção do tema principal, gran- de parte das inserções musicais desse filme ocorrem somente uma vez. Para que isso fosse possível, Morricone ampliou a quantidade e a diversidade de temas se- cundários nas três horas de projeção do filme. A trilha musical é entremeada pelo tema principal, Il buono, il brutto, il cattivo, utilizado na íntegra nos créditos iniciais e finais do filme, e os temas secundários, inseridos em momentos específicos da nar- rativa. Essa divisão reflete e aprofunda, em sua macro-estrutura, o conceito de uni- dade observado através do “Developmental Score” de Prendergast, pois, a quantida- de de temas distintos pode interferir tanto na continuidade quanto na unidade formal do filme. O modo como Morricone consegue manter a unidade da trilha musical, e que reforça a tese do “Developmental Score”, estabelece-se na constância da recor- rência dos materiais derivados do tema dos “créditos iniciais”, Il Buono, Il brutto, il cattivo. A figura abaixo apresenta o nome dos temas e sua ligação com o tema prin- cipal dos Créditos Iniciais.

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Figura 48 – Trilha musical: Il buono, il brutto, il cattivo

4.9.3 - Tema Principal: “Il Buono, il brutto, il cattivo” (a música dos créditos iniciais e finais) É muito conhecida, e mesmo plausível, a explicação que Morricone dá ao “lendário” motivo do tema principal do filme como uma tentativa de imitar e incorporar na música o som do uivo do coiote, animal que se tornou típico na ambientação visu- al e/ou sonora dos westerns americanos (normalmente em segundo plano).

[Hoje] quando apresento a peça principal de Il buono, Il brutto, Il cattivo em concertos, os uivos do coyote, que dão o ritmo aos Créditos Iniciais do filme, são realizados pelo clarinete. Mas, na versão original adotei soluções muito mais criativas. Duas vozes maculinas cantavam sobrepondo uma a outra, uma gritando a vocal A e a outra a vocal E. Os AAAs e EEEs deviam ser

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eloqüentes, para imitar o uivo do animal e evocar a ferocidade do “West” selvagem (MORRICONE211)

Figura 49 – Imitação do som do uivo do Coiote

Miceli (2001:166) refere que o tratamento “torcido” da voz humana para aparentá-la ao uivo do coiote, realiza um jogo cruzado de alusões antropomórficas e zoomórficas fundamentais para a temática do filme: “homens como animais”. A execução rápida das duas notas ddo motivo X articuladas vocalmente também remete ao Yodel (Jodel, em italiano), uma forma de cantar com mudanças rápidas e repetitivas de tons que tem origem na região dos Alpes e acabou incorpo- rada na música tradicional do sul dos Estados Unidos (Yodeling Cowboys) 212. Ampliando a idéia subjacente da repetição rápida das notas Lá e Ré, Mor- ricone deriva materiais análogos secundários como, por exemplo, trêmulos e ostina- tos, que durante o filme, são utilizados em momentos de tensão dramática e, ao mesmo tempo, agregam um grande sentido de continuidade e unidade à trilha sono- ra musical como um todo. Conjugando as idéias musicais dos dois filmes anteriores, Morricone deri- va a música principal, Il buono, Il brutto, Il cattivo (a música dos créditos iniciais), tan- to de suas pequenas células melódicas (motivos X e Y da melodia principal de Titoli) quanto das dubiedades criadas na manutenção da estrutura modal/tonal e do proce- dimento formal tripartido (Partes: “primitiva”, “modo de rock” e “pseudo-sinfônica”). Compactando ainda mais as polaridades obtidas em torno das notas Ré e Lá na tri- lha dos dois filmes anteriores em um único motivo (X) e as terminações em outro (Y) (com a eliminação da célula referente a Z do primeiro filme), ele gera o núcleo, a ba- se de referência da melodia principal.

211 In: FRAYLING, C. Sergio Leone: Something To Do With Death. London: Faber & Faber, 2000. 212 Ver exemplo: http://www.youtube.com/watch?v=9PfXjC2Paak&feature==related, último acesso em 02 de novembro de 2010.

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Figura 50 – Núcleo da Trilha Musical de Il buono, Il brutto, Il cattivo

Na manutenção dos princípios sobre os quais se baseiam os dois filmes predecessores, o tema dos créditos iniciais, Il buono, Il brutto, Il cattivo, apresenta uma estrutura ainda mais fracionada, como Miceli comenta:

A sua célula geradora é outra das mais felizes invenções morriconianas no cinema que, mais uma vez, mostra uma insupeerável capacidade de conferir a matéria sonora bruta um sentido musical plausível, enquanto mantém intac- tas as características de primordialidade. (MICELI, 1994:131)

Figura 51 – Melodia Principal de Il Buono, Il brutto, Il cattivo

Dois motivos básicos MC (“motivo do coiote”) e MT (“motivo de termina- ção”), com contornos melódicos e disposições rítmicas contrastantes, são combina-

298 dos para formar uma melodia facilmente reconhecível, memorável e muito coesa. Na composição melódica, a passagem súbita de um motivo para outro é mais uma evi- dência da técnica das “micro-células”, tão enfatizada por Miceli. Novamente a nota Si não é utilizada diretamente na melodia, mantendo, portanto, a dubiedade já comen- tada entre os modos dórico e eólio de Ré (a nota Dó natural é utilizada duas vezes confirmando a sonoridade modal). A música introduz os Créditos Iniciais do filme repetindo o MC três vezes. A primeira executado pela flauta doce; a segunda pelo “gritto” de uma voz humana; e a terceira por uma ocarina. Nas três vezes o MC está sincronizado com a animação de silhuetas (na cor branca e com um fundo vermelho) de três homens à cavalo re- presentando, respectivamente, Il buono, il bruttoo e il cattivo. Esse procedimento esta- belece, como será abordado adiante, os leitmotivs dos três protagonistas do filme. Em seguida, um ostinato percussivo realizado por um tom-tom, introduz o ritmo da execução musical, simultaneamente representando (como nos dois filmes anteriores) o som do “galope do cavalo”, uma alusão ao gênnero americano nativo.

Figura 52 – Ritmo do Cavalo

Uma variação do ritmo do acompanhaamento com mais figuras é alternati- vamente executada por uma caixa clara:

Figura 53 – Ritmo do Cavalo ((caixa-clara)

Um discretíssimo órgão também acompanha a introdução da melodia::

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Figura 54 – Introdução da melodia principal dos Créditos Iniciais

A “Parte Primitiva” da tripartição formal referida por Miceli é iniciada. Os motivos MC e MC’ são executados por uma flauta doce e os motivos MT1, MT2, MT3 e MT4 são executados com um som muito distinto, um “ua-ua” que, de acordo com Morricone, foi obtido a partir de duas vozes masculinas. MMiceli descreve esse som como “um timbre metálico e cortante que coloca em evidênncia seu caráter irreveren- te” (1994:134). O timbre, muito provavelmente, fooi obtido também com a mixagem de uma gaita de boca e um trompete com surdina. A parte é repetida. Na repetição a flauta doce é substituída pelo som de uma ocarina grave, o som do “ua-ua” pelo assovio de Allessandro Alessandroni, o timbre solista mais destacado nos dois primeiros filmes agora é uma possibilidade em igualdade de condições com os outros instrumentos do ensemble. Essa troca de instrumentação não é casual e será uma das marcas da trilha, poiss, o MC com ou sem o MT1 (X e Y ou A e B) serão utilizados durante o filme como leitmotivs de cada um dos três protagonistas: o material rítmico e melódico dos leitmotivs será sempre o mesmo (MC com ou sem MT1), o que denota qual protagonista será referido pelo leitmotiv é o timbrb e dos instrumentos que o execuutam.

ASSOCIAÇÃO MC MT1 (OPCIO- PERSONAGEM FOTOGRAMA

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NAL)

Il buono (the good – o Flauta doce Gaita de boca Blondie bom)

Il brutto (the ugly – o Grito “ua-ua” Tuco feio)

Il cattivo Guitarra Elétri- (the bad – o Ocarina Angel Eyes ca mau)

Tabela 10 – Leitmotivs de Il buono, il brutto, il cattivo, 1966.

Os motivos MC e o opcional MT1 podem também ser executados por um corne-inglês (MC) seguido ou não por um trêmulo agudo sustentado pelos violinos (MT1), representando situações que envolvem personagens e situações secundárias no filme. Após a repetição da “parte primitiva”, a caixa clara executa um grupo de semicolcheias para inserir a “Parte do modo de Rock”, caracterizada pelo solo da guitarra elétrica:

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Figura 55 – Melodia da guitarra elétrica

O som brilhante da guitarra elétrica (como nos dois filmes anteriores) con- trasta com os timbres tonais recém ouvidos na “Parte Primitiva”. O solo da guitarra elétrica é acompanhado por um coral masculino, que primeiro reforça ritmicamente o motivo do “galope do cavalo” e então preenche a harmonia sustentanndo acordes lon- gos. Essa melodia cadencia em Dó maior, seguida cromaticamente pela nota dó sus- tenido, a sensível de Ré menor, tanto como preparação do retorno da “Parte Primiti- va” modal, quanto da reiteração da ambigüidade tonal versuus modal. A “Parte do modo de Rock” dos Créditos Iniciais é, com pequenas exce- ções, o único momento em que Morricone utiliza a guitarra elétrica na trilha musical do filme (é também utilizada no motivo MT1 quando segue o motivo MC de Angel Eyes, executado pela ocarina). Morricone, entretanto, recorrerá a essa “Parte do mo- do de Rock” (e da guitarra) dos Créditos Iniciais outras vezes no filme como uma música (módulo) “independente”. A idéia que ppermeia essas novas utilizações do módulo está sempre vinculada ao movimento de cavalgada, para frente, por um ou mais dos personagens do filme, tanto a pé, a cavalo ou em diligências. Depois da “Parte do modo de Rock”, existe uma repetição da “Parte Primi- tiva”, porém, dessa vez com os motivos MC e MC’ são executados por gritos, signifi- cando “the Ugly” com o retorno do “ua-ua” nos motivos MT1, MT2, MT3 e MT4. Esse retorno da “Parte Primitiva” é seguido pela “partte pseudo-sinfônica” marcada por so- noridades estridentes de trompetes imitando corrnetas militares, uma alusão à Guerra

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Civil Americana, período em que a história é ambientada. Os trompetes improvisam vertiginosamente e são acompanhados por umm coro misto que sustenta acordes e por uma orquestra tradicional. Depois de uma nova transição curta o motivo MC reaparece com o som do coiote e a flauta doce, respectivamente. A “Parte do modo de Rock” retorna e é se- guida por uma recapitulação abreviada da “Parte Primitiva” – incluindo uma alternân- cia entre a flauta doce e “coiote” nos motivos MC e o “ua-ua” nos motivos MT1 e MT2 – finalizando a música dos Créditos Iniciais com MC executado com destaque pela flauta doce.

4.9.3.1: Fragmento 1: Créditos Iniciais Os “Créditos Iniciais” de Il buono, il bruutto, il cattivo volta, como no primeiro filme, a utilizar uma seqüência de animação com silhuetas. O motivo MC de cada um dos protagonistas é anunciado.

“Il Buono” (“The Good” – O Bom) “Il Bruto” (“The Ugly” – O Feio)

“Il Cattivo” (“Il Bad” – O Mau)

Figura 56 – Início dos Créditos Iniciais de Il buono, il brutto, il cattivo (1966))

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Como já comentado, o MC de cada um dos prootagonistas é baseado na mesma célula, mas, executado com um instrumento difereente, permitindo que auditi- vamente sejam reconhecíveis. Como no primeiro filme, as imagens são animadas utilizando a mesma técnica do rotoscoping, porém, ampliada com efeitos de descoloraçõões que acabam por revelar fotogramas (stills) do rosto dos protagonistas, imersos nas situações que ocorrerão posteriormente no filme. Os stills em preto com fundo em marron, verme- lho ou verde antecipam a violência e a brutalidade que ocorrerão no filme. Como Frayling comenta:

Leone não faz qualquer tentativa de cativar a nossa simppatia com os perso- nagens, ao invés, exibe a brutalidade de seus protagonisttas com uma desta- cada calma: eles são brutais em toda extensão do filme. (FRAYLING213)

A apresentação segue a ordem do título italiano214: 1) Il Buono (o bom), Il brutto (o feio), Il cattivo (o mau).

Il Buono (o bom)

213 FRAYLING, C. Spaghetti Westerns: Cowboys and Europeans from Karrl May to Sergio Leone. London: Routledge & Kegan Paul, 1981, 160. Apud: KAUSALIK, op.cit.., p. 46. 214 A tradução do título em italiano Il buono (Blondie), il brutto (Tuco), il cattivo (Angel Eyes) para o inglês, The good (Blondie), the bad (Angel Eyes) and the ugly (Tuco), e paara o português de Portugal, O bom (Blondie), o mau (Angel Eyes) e o feio (Tuco), troca a ordem dos personagens de Tuco e Angel Eyes. Isso fez com que no lançamento do filme nos Estados Unidos, em 1967, os respectivos epítetos de Tuco e Angel Eyes fossem exibi- dos errados (trocados), o que, posteriormente, foi percebido e reparado.

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Il Brutto (o feio)

Il Cattivo (o mau)

Figura 57 – Personagens: Il buono (Clint Eastwood), Il brutto (Eli Wallach)), Il Cattivo (Lee Van Cleef)

O som do galope ou do trote de cavalo(s), como do primeiro filme, foi reti- rado e, ao som de tiros de espingardas e/ou reevólveres, foi acrescentado o som de tiros de canhão, menção à Guerra Civil Americana. O som do tiro do canhão é utilizado duas vezes com sua imagem em pri- meiro plano: no crédito do título do filme e no do nome de Sergio Leone. Os tiros re- velam o nome e depois os destroem, no segundo caso, terminando a seqüência com um fundo preto.

Figura 58 – Créditos Iniciais: Il buono, il bbrutto, il cattivo (1966)

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4.10 - APRESENTAÇÃO DOS TRÊS PROTAGONISTAS

4.10.1 - Tuco: “Il Brutto”

4.10.1.1: Fragmento 2: Tuco A cena abre com o som do vento e de um coiote projetado numa visão panorâmica de montanhas e terras áridas. O rosto de um homem literalmente entra na frente da câmera tomando, num plano muito fechado, todo espaço da imagem na tela. No plano oposto ao olhar do homem, com nova intervenção do som do coiote, mais dois homens chegam à cavalo. A cidade parece uma cidade fantasma. A cena é suspensiva e o que parecia ser um duelo eminente, na verdade é uma persegui- ção. Os três homens se aproximam vagarosamente do bar local com o som do vento muito forte. Quando eles invadem o bar, muitos tiros são ouvidos, e Tuco, que apa- rentemente matou os três homens, se arremessa contra a janela do bar, de dentro para fora, escapando por ela. Nesse momento, a ação visual é congelada na tela, enquanto a audiência ouve o MC executado com o som do coiote e o MT1 executado com o som do “ua-ua”, na apresentação dos caracteres “The Ugly” (“Il brutto” – o feio), na tela. Quando a imagem é descongelada, Tuco foge à cavalo encerrando a seqüência. Portanto, o personagem atirou e, presumivelmente, matou três homens. Presumivelmente, porque um dos homens não morreu e reaparece no filme buscan- do vingança.

Figura 59 – Tuco: “Il Brutto” (“The Ugly”)

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4.10.2 - Angel Eyes: “Il Cattivo”

4.10.2.1: Fragmento 3: “Il Tramonto” (O Por do Sol) – Angel Eyes A apresentação do personagem de Angel Eyes (Lee van Cleef) é feita co- mo uma citação às avessas do início do filme SHANE (OS BRUTOS TAMBÉM AMAM), de 1953, dirigido por George Stevens. O som sinfônico da música de Victor Young pon- tua a abertura do filme onde o pequeno Joey, filho de Starret, avista Shane chegando à cavalo ao entardecer. O sítio onde mora faz parte de uma região de assentamentos no vale do Wyoming. Os colonos lutam por seus direitos contra os grandes criadores de gado, que controlam a maior parte da terra, e Shane logo se envolve no conflito. Shane, que quer mudar de vida, aceita trabalhar na pequena fazenda de Starret. Jo- ey, logo se interessa por ele e descobre boquiaberto sua habilidade com as armas, capaz de disparar vários tiros certeiros em diferentes alvos. Shane vai se tornar o grande ídolo de Joey. Como o título dado a peça por Morricone referencia, “Il Tramonto” é ouvido quando Angel Eyes, montado num cavalo, se aproxima de uma fazenda com o sol se pondo e é observado por um menino, o filho mais novo de Stevens, o dono da fazen- da. Em sua aproximação, é executado um tema lento, quase ad libitum, e com muito rubato por um violão, acompanhado por acordes agudos de um órgão e um contra- baixo em pizzicato. O tema inicia com uma melodia com muitas características simi- lares a de um canto gregoriano. Está no modo de Ré, tirando partido do mesmo tipo de ambigüidade criada desde os dois filmes anteriores, Morricone utiliza a forma na- tural da escala menor, na qual o sétimo grau, dó natural, não está alterado. As ferma- tas do exemplo abaixo sublinham as terminações que acentuam o caráter modal da melodia: a nota Fá# da primeira fermata como terça de picardia de Ré; a nota Ré, da segunda fermata, atingida pela nota Dó natural (não Dó#); a nota Dó natural, da ter- ceira e da quarta fermata; e, finalmente, a nota Ré da última fermata. Leinberger (2004:75) afirma que a possibilidade de evocação do sudeste americano dessa inserção é comparável aos solos de trompete no estilo mariachi. O tema deriva suas qualidades líricas de seus contornos melódicos, construído princi-

307 palmente com graus-conjuntos em uma tessitura total de sétima menor, mas, vincu- lada, principalmente, ao âmbito de quartas e quintas justas.

Figura 60 – “Il Tramonto” (LEINBEERGER, 2004:76)

Na finalização da música, o motivo MC de Angel Eyes é executado sobre- posto ao órgão pela ocarina. Imediatamente o violão também sobrepõe ao órgão um ostinato suspensivo, consistindo de quartas justas, Lá, Ré e Sol (cordas soltas), exe- cutado cada vez mais rápido, finalizando a inserção com um caráter suspensivo. Embora o timbre do violão retorne em outros momentos do filme, Il Tramonto só é utilizado nessa cena. Além da “atmosfera convvincente” criada pela inserção, o ele- mento mnemônico importante, que vai se tornar recorrente durante toda a trilha mu- sical do filme, é o ostinato. A utilização repetitivaa dos ostinatos no transcorrer do filme agrega um grande sentido de continuidade e unidade à trilha sonora musical como um todo. Porém, o caráter citado por Leinberger da peça, contrasta radicalmente com a violência da continuidade da cena, pois, Angel Eyes, ao contrário de Shane, foi contratado por outro homem, chamado Baker, para obter algumas informações e matar o dono da fazenda chamado Stevens (talvez o nome igual ao do diretor do fil- me Shane seja só uma coincidência), o pai do menino que observou Angel Eyes chegando ao entardecer. Angel Eyes invade a casa de Stevens e consegue as in- formações que queria – o nome falso que Jackson estaria utilizando é Bill Carson – e também fica sabendo sobre uma caixa de moedas de ouro. Stevens, pressentindo que Angel Eyes tenha sido enviado para matá-loo, oferece-lhe dinheirro na esperança

308 que poupe sua vida. Angel Eyes interpreta esse gesto como uma contra-oferta para matar Baker, o homem que o contratou. Stevens, tentando preservar sua vida, alcan- ça sua arma numa gaveta, mas, Angel Eyes o mata, atirando com o revólver que es- tava oculto e apontado para Stevens por baixo da mesa. Depois de atirar em Stevens, a audiência ouve um trêmulo agudo em se- gundas menores (quase um cluster) com as notas Sol#, Lá e Sib, polarizando a nota Lá, a nota dominante da trilha inteira (como nos dois filmes anteriores). Sob a tensão construída, Angel Eyes também mata o filho mais velho de Stevens, que apareceu em socorro do pai. A utilização dessas sonoridades tensas, antecipando um evento dramático, podem ser comparadas ao efeito do som tônico agudo utilizado em PER

UN PUGNO DI DOLLARI, antes do primeiro duelo, quando o personagem de Joe (Clint Eastwood) vai enfrentar os quatro homens dos Baxters. Morricone também pode uti- lizar esse tipo de sonoridade durante ou depois de um evento tenso, como ele faz nessa cena. As sonoridades tensas são sobrepostas pelo motivo de Angel Eyes, MC e MT1, enquanto a imagem é cortada, elipticamente, para a casa de Baker, o homem que contratou Angel Eyes.

4.10.2.2: Fragmento 4: “Angel Eyes”, “Il Cattivo” Um solo de corne-inglês inicia a inserção seguido do motivo MC executa- do pela ocarina baixo e pelo motivo MT1 na guitarra elétrica, significando Angel Eyes. A repetição de MC e MT1, constante em todo filme, ao mesmo tempo que refe- rencia um dos três personagens, cria conexões com a música dos créditos iniciais, provendo um grande sentido de continuidade, um “suporte ao ritmo do filme em pen- samento e estrutura” (KURT LONDON). Baker está deitado numa cama. Angel Eyes conta a respeito de Stevens e sobre as informações que obteve com ele. Ele diz a Baker que Stevens também lhe pagou para executar um trabalho. Angel Eyes agilmente utiliza um travesseiro para sufocar e, atirando no travesseiro, mata Baker. Um solo curto de corne-inglês é inse- rido enquanto a imagem congela na tela, e é, então, executado o leitmotiv de Angel Eyes, “The Bad” (“Il Cattivo” – o mau), executado pela ocarina no MC e a guitarra

309 elétrica no MT1. Da mesma forma que Tuco, Anngel Eyes, em sua apresentação, ma- tou três pessoas.

Figura 61 – Angel Eyes: “Il Cattivo” (“The Bad”)

4.10.3 - Blondie: “Il Buono”

4.10.3.1: Fragmento 5: Blondie No momento em que Blondie é introduzido pela primeira vez à audiência, ele não é visto, mas, sua voz é ouvida quando ele interrompe três homens que estão efetuando a prisão de Tuco para receber uma recompensa de dois mil dólares. Blon- die atira e mata os três homens e a audiência ouve uma versão vocal do motivo MC seguido de MT1 executado pelo “ua-ua”. Como Tuco e Angel Eyes, Blondie matou três homens, mas seus caracteres ainda não são apresentados congelados na ima- gem da tela. A cena prossegue. Blondie inicia um diálogo com Tuco sobre a recom- pensa oferecida pela sua captura. Essa cena é seguida por outra em que Blondie chega à cidade com Tuco amarrado no cavalo e o entrega para o xerife, recebendo a recompensa. Momentos depois, Tuco é mostraddo sentado na sela de um cavalo com as mãos amarradas para trás e uma corda no pescoço. Ele vai ser enforcado. A pre- sença de Blondie é apontada num estábulo próximo pela visão da fumaça do charu- to, utilizado nos dois filmes anteriores, e o seu leitmotiv MC seguido pelo MT1 é ou- vido. Blondie então aparece, os motivos são repetidos novamente, e quando Tuco está para ser enforcado, Blondie atira na corda da forca libertando Tuco que foge com o cavalo. Blondie e Tuco encontram-se então no deserto e dividem a recompen- sa meio a meio. Tuco reclama e diz que como a função delle no golpe é mais arrisca-

310 da, nos futuros golpes, quer receber uma parte maior. Blondie inteligentemente diz a ele, depois de oferecer-lhe um charuto, que se sua porcentagem for diminuída isso “interferiria na precisão da mira”.

4.10.3.2: Fragmento 6: Blondie, “Il Buono” Blondie e Tuco repetem o golpe em outra cidade. Angel Eyes também es- tá na cidade tentando conseguir mais informações sobre Baker, Stevens e Jackson e sobre a caixa com moedas de ouro. Depois de Angel Eyes pagar um velho soldado pelas informações, ele sobe numa diligência e nota a presença de Blondie esperando para atirar na corda do pescoço de Tuco. Angel Eyes, conversando com uma senho- ra na diligência, refere-se a Blondie como um “anjo de cabelos de ouro” que está cui- dando de Tuco. A audiência ouve uma inserção muito curta que soa como “um coral de anjos do céu” enquanto Blondie monta em seu cavalo. O enforcamento prossegue, Blondie atira, mas dessa vez atira três vezes para conseguir cortar a corda. Depois do segundo tiro o cavalo em que Tuco está sentado dispara. Tuco balança na forca por um momento, até que o terceiro tiro o liberta. Tuco corre na direção de Blondie e salta na garupa de seu cavalo. Enquanto Blondie e Tuco fogem da cidade para o deserto, a audiência ouve a seção “no modo de rock” dos créditos iniciais. Como já foi abordado, Leone utilizará com freqüência essa seção da música dos créditos iniciais como música de cavalgada, principalmen- te, de Blondie e Tuco. Depois dos contratempos de Blondie e Tuco para fugir da cidade os dois conversam. Tuco diz que “quando a corda da forca começa a apertar, pode-se sentir o hálito do diabo em seu traseiro”. Blondie, aparentemente frustrado com as coloca- ções e exigências de Tuco, decide abandoná-lo no deserto. Quando Blondie está partindo, ele para, volta-se para Tuco e exclama: “Que ingratidão para com quem salvou sua vida tantas vezes”. A ação congela e, finalmente, é apresentado seu epí- teto, “Il Buono” (The Good). Seu motivo MC e a versão do “ua-ua” do motivo MT são ouvidos novamente.

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Figura 62 – Blondie: “Il Buono” (The Good”)

A seção de “modo primitivo” da música dos créditos iniciais prossegue com a flauta doce e com o assovio enquanto Blondie se afasta. No momento em que Tuco olha para Blondie se afastando, o leitmotiv de Tuco MC e MT são ouvidos no final da cena.

4.11 - TEMAS SECUNDÁRIOS

4.11.1 - Fragmento 8: “Il Ponte di Corde” (A Ponte de Cordas) - Ostinato É uma inserção curta ouvida quando Tuco, em estado lastimável, pois, atravessou a pé o deserto onde foi abandonado por Blondie, cruza uma ponte a ca- minho de uma pequena cidade onde consegue uma arma e dinheiiro, roubando o proprietário de uma loja de armas. Essa inserção inclui quatro notas em ostinato, executadas no violão, um ostinato que Morricone utilizará em várias inserções no decorrer do filme, ocasional- mente no violão, mas, com mais freqüência no piano.

Figura 63 – Ostinato de “Il Ponte di Corde”

O ostinato nessa inserção remete aos procedimentos da música minima- lista de meados e do final do século 20, na quual a repetição de uma idéia musical

312 curta forma a base da estrutura formal de uma peça musical. Esse ostinato consiste de uma tríade de ré menor com uma appoggiatura [a nota mi], resultando num acor- de de Ré menor com nona, aoludindo o mesmo modo de utilização do “som do reló- gio” na música do duelo do filme anterior e, também, ao motivo do acompanhamento harmônico da peça do duelo, do primeiro filme.

4.11.2 - Fragmento 12: “Inseguimento” (Perseguição) - Cavalgada Quando Tuco é visto em um cavalo procurando por Blondie, Morricone uti- liza a “Parte Primitiva” dos “Créditos Iniciais” para acompanhar a cena. Primeiramen- te, ele utiliza os motivos de Blondie MC e MC’ e o assobio humano para os outros motivos. O tema é repetido com os motivos de Tuco MC e MC’ com o “ua-ua” no lu- gar do assobio. Morricone utiliza então a “Parte do Modo de Rock” dos “Créditos Ini- ciais” enquanto a cena continua. Do mesmo modo que nos dois filmes anteriores, ele utiliza a “Parte do Modo de Rock” do tema dos “Créditos Iniciais” quando um ou mais personagens estão em cavalgada, normalmente Blondie e Tuco. A “Parte Primitiva” é ouvida novamente incluindo o som do coiote de Tuco com o “ua-ua” alternando com a flauta doce e o assovio humano. Essa habilidosa intervenção dos timbres de Tuco e Blondie coincide perfeitamente com a descoberta do charuto de Blondie abando- nado na fogueira. A “Parte do Modo de Rock” retorna novamente, seguida finalmente por um solo de corne-inglês do motivo de Tuco MC e da versão com “ua-ua” do moti- vo MT1. O solo do corne-inglês retorna enquanto a cena muda, e o motivo MC de Blondie com o assobio humano realizando o motivo MT1 são ouvidos mais uma vez.

4.11.3 - Fragmento 13: “Il Deserto” (O Deserto) – Princípio Serial “Il Deserto” pode ser considerado como uma das influências do século 20 na música de Morricone e representativo de sua contribuição modernista à música para filmes. A inserção inicia com uma longa e suspensiva introdução com uma tona- lidade ambígua e uma complexa melodia de piano acompanhada por trêmulos de

313 cordas. Depois dessa introdução, Morricone insere a meloodia abaixo executada no corne-inglês.

Figura 64 – Melodia principal de “Il Deserto”

Esse tema possui uma grande semelhança com uma linha dodecafônica, ambas as frases que compõem essa melodia contêm onze classes de alturas dife- rentes. A única classe de altura ausente é a de sol sustenido. A peça é surpreenden- temente tonal e parece estar em Lá menor, sugerindo que a classe de altura ausente é a sensível, uma nota que, no contexto tonal, sseria obrigatória. Porém, fiel a ambi- güidade, modal versus tonal, criada desde o primeiro westeern de Leone, a forma na- tural da escala menor evita a forma harmônica ou melódica da escala. Como Smith215 (1998) explica:

A peça é caracterizada por um alto nível de instabilidade tonal e cromatismo e é, musicalmente, a peça mais ambiciosa da ttrilha inteira.

Quando a melodia do corne-inglês atinge e sustenta a nota lá nos com- passos 5–8 e o lá na repetição, é inserido um ostinato de quatro notas no piano que já havia sido executado pelo violão nas inserções “Il Ponte di Corde” e “Il Tramonto”. A figura reforça a idéia de Lá menor.

215 SMITH, J. The Sounds of Commerce: Marketing Popular Fillm Music. New York: Columbia University Press, 1998, p. 140. Apud: LEINBERGER (2004:82).

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Figura 65 – Ostinato de “Il Deserto”

Depois desse tema, o ostinato de piaano é ouvido novamente, seguido por um ostinato orquestral de 3 notas que Morricone usa com dois valores diferentes (colcheias e semicolcheias) simultaneamente, criando um efeito conhecido como hemiola que, ao mesmo tempo, reforça a idéia do ostinato.

Figura 66 – Ostinatos em contraponto

4.11.4 - Fragmento 11: “La Carrozzo dei Fantasmi” “La Carrozzo dei Fantasmi” é ouvida quando Tuco, por vingança por ter sido abandonado por Blondie no deserto, leva Blondie para o deserto para torturá-lo. No momento em que uma diligência se aproxima, a música inicia. Morricone fornece à audiência o que é, de muitas maneiras, uma das inserções mais complexas e in- formativas na trilha musical do filme. A inserçãão é composta de uma melodia para trompete em Si bemol maior, ou possivelmente Sol menor, que também é utilizada na inserção “Il Forte”. Utilizando as notas da escala pentatônica de Si bemol (sib, dó, ré, fá, sol), a melodia fornece informações sobre a diligência. Na primeira utilização foi associada aos soldados mortos em “Il Forte” e existem soldados mortos na diligência; toques de corneta são ouvidos representando os militares e uma outra melodia em contraponto com o trompete, executada por uma voz de soprano sem palavras, adiciona uma qualidade femininna a essa inser- ção. Um dos soldados dentro da diligência, Bill Carson, sabe o segredo das moedas de ouro. A utilização da voz da soprano Edda Dell’Orso pode ser interpretada como uma referencia as moedas de ouro, objetos da bbeleza desejada ardentemente pelos protagonistas. O que reforça a referência é que a voz será ouvida novamente, na

315 inserção “L’Estasi dell’oro” próximo ao fim do filme, quando Tuco procura a cova on- de as moedas de ouro estão enterradas.

Figura 67 – Melodia de “La Carrozzo dei Fantasmi”

4.11.5 - O irmão de Tuco

4.11.5.1: Fragmento 16: “La Missione San Antonio” Tuco leva Blondie para se restabelecer na Mission San Antonio, umaa mis- são católica no Texas, na qual o irmão de Tuco, Pablo (Luigi Pistilli), é um padre. Quando Blondie e Tuco entram na missão com a ajuda de um outro padre, eles vê- em muitos soldados feridos e a audiência ouve a inserção “Mission San Antonio” em Ré maior: uma versão para madeiras da inserção “La Storia di un Soldato” por um curto motivo que inicia com o corne-inglês, seguido pelo obboé e flauta.

Figura 68 – “La Missione San Antonio”

4.11.5.2: Fragmento 16: “Padre Ramirez” Blondie na cama, mas, quase recuperado, esta conversando com Tuco. Um velho padre entra no quarto e diz a Tuco que o Padre Ramirez aacabou de che- gar. Ironicamente, torna-se aparente que Tuco tem família e o Padre Ramirez é de fato irmão de Tuco. Uma inserção curta de música é ouvida enquanto Tuco conversa com seu irmão. Ele acabou de chegar do funerall de seu pai

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É uma inserção curta executada com um solo de violão.

Figura 69 – Melodia de “Padre Ramirez” (irmão de Tuco)

Tuco e seu irmão, Pablo, conversam sobre seuus pais. Tuco fica sabendo que sua mãe morreu já faz vários anos e que seu pai havia acabado de falecer. Pa- blo parece desapontado com seu irmão e age como se ele não estivesse feliz com a presença de Tuco na missão. Blondie, escondido assiste a discussão dos dois que falam sobre os caminhos diferentes escolhidos por cada um deles e Tuco acusa seu irmão de covarde. Os dois irmãos acabam se agredindo enquanto o solo de violão é ouvido uma segunda vez. Depois da briga, Tucco e Blondie, vestidos com uniformes dos confederados, deixam a missão numa diligência, e Tuco, que havia proclamado ser absolutamente sozinho no mundo, comenta com Blondie sobre as grandes quali- dades que seu irmão possui. O solo de violão é executado pela terceira vez, seguido da seção do “Modo de Rock” dos “Créditos Iniciais”, utilizaado, mais uma vez, como música de viagem.

4.11.6 - Fragmento 20: “Marcetta” Blondie e Tuco, vestindo uniformes dos confederados, encontram com tropas da união, mas, como todos estão empoeirados, confundem-nas com tropas confederadas. Quando se dão conta que os uniformes das tropas são azuis e não cinza, a audiência ouve o motivo MC de Tuco seguido da versão MT1 executada pe- lo “ua-ua”, comentando a ironia do erro engraçado. Eles sãão aprisionados e levados para um campo de prisioneiros da União. Quando Blondie e Tuco são vistos mar-

317 chando para o campo de prisioneiros, a “Marcetta” é ouvida. Ela é executada pela a gaita de boca, que inicia a melodia, e pelo som do assovio humano, que entra a partir do compasso 13. O som da gaita e do assobio parecem ser executados pelos prisio- neiros em marcha (diegéticos), mas, não é possível ver a gaita e os rostos dos prisi- oneiros durante a seqüência. Quando Blondie, Tuco e os outros priisioneiros estão do lado de dentro do campo de prisioneiros da união, um homem muiito grande e forte, chamado Corporal Wallace (Mario Brega) faz a chamada dos nomes dos novoos prisioneiros. A marcha está na tonalidade de Ré maior, a homônima dos “Créditos Ini- ciais”. Morricone amplia as ambigüidades tonais e modais criadas no modo de Ré menor, utilizando o homônimo, Ré maior, no decorrer do filme. Porém, contrariando o senso comum, a música mais rápida e excitante está numma modalidade ou tonalida- de menor enquanto que a música mais lenta e melancólica está na tonalidade maior. Essa utilização atípica do caráter do modo maior e menor é outra forma com que Morricone quebra as convenções musicais até então estabelecidas no gênero wes- tern.

Figura 70 – Melodia da “Marcetta”

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4.11.7 - Os “toques” de corneta Durante o filme são utilizados, esporadicamente, alguns toques de corne- tas. Os toques auxiliam efetivamente na ambientação dos eventos militares. Todos eles são percebidos como diegéticos, mesmo qque nem uma corneta seja vista no filme. A corneta militar pertence à família dos instrumentos de metais, mas, dife- rente do trompete moderno, não possui válvulas. Dessa forma, está limitada às notas de uma mesma série harmônica. Uma vez que os toques de corneta raramente utili- zam notas acima do 16º harmônico, são conseqüentemente triádicos. Em outras pa- lavras consistem de notas de uma tríade maior. Todos os toques utilizados em IL BU-

ONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO, estão em Sib maior. Os ostinatos recorrentes utilizados por Morricone também são triádicos. Por contrasste, muitos de seus ostinatos, coom a exceção de alguns ouvidos em “Il Trielo”, consiste de notas de uma tríade menor com uma appoggiatura. Essa dualidade maior–menor ajuda a distinguir os protago- nistas do filme da guerra que os circunda e sublinha suas existências fora do sistema político e militar. Os toques de corneta foram escolhidoos acuradamente para serem utiliza- dos durante o filme. Um dos toques ouvidos é Assembly, assinalando aos soldados que saiam de forma.

Figura 71 – Toque de corneta: “Assembly”

Outro toque de corneta é ouvido de algum lugar do campo de prisioneiros. Esse toque de corneta tem o nome de Drill, que assinala aos soldados que é hora da marcha ou da prática com baioneta.

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Figura 72 – Toque de corneta: “Drill”

Na cena da explosão da ponte, os confederados iniciam seu ataque e é di- to ao capitão que as tropas estão aguardando as suas ordens. Depois de o capitão evitar que um soldado dispare a sua arma prematuramente, dois toques de corneta são ouvidos. O primeiro é Attention, assinalando para todos os soldados que fiquem atentos, tocado com freqüência antes de outro toque.

Figura 73 – Toque de corneta: “Attention”

O segundo toque, ouvido depois de todas as companhias relatarem que estão prontas, é Commence Firing, assinalando que todos os soldados comecem a atirar. Como os outros toques ouvidos no filme, nenhuma corneta é vista, somente é assumido que elas estejam presentes.

Figura 74 – Toque de corneta: “Coommence Firing”

4.11.8 - Fragmento 24: “La Storia di un Soldato” Na cena Angel Eyes e Tuco estão ccomendo dentro escritório de Angel Eyes no campo de prisioneiros. Angel Eyes levanta e, andando até a janela, dá um sinal para uma música começar. Uma banda de músicos prisioneiros começa a tocar e cantar. É possível ver os músicos tocando, violinos, flautas, gaitas, um trombone de válvula, um tambor, um violão e um acordeão. Dentro de seu escritório, Angel Eyes pergunta para Tuco

320 porque ele estava de posse da caixa de tabaco de Bill Carson. Angel Eyes fecha a caixa de tabaco prendendo os dedos de Tuco, esbofeteando-o na cadeira de madei- ra onde está sentado. Wallace subitamente entra na sala e começa a torturar Tuco, enquanto Angel Eyes continua a fazer perguntas sobre Bill Carson e sobre o que Carson havia lhe contado a respeito das moedas de ouro. “La Storia di un Soldato” é uma canção em honra dos soldados que mor- rem em nome dos seus amigos. Os textos em inglês foram escritos por Tommie Connor. Além dos quatro versos diferentes, existe um interlúdio instrumental de 15 compassos depois do quarto verso. Durante esse interlúdio, um dos prisioneiros, que está tocando um violino, fica tão desgostoso com a situação que não pode continuar tocando. Ele abaixa seu violino, mas o guarda encarregado de vigiá-los ordena, “continue tocando!”. O prisio- neiro começa a tocar novamente, mas o som de seu instrumento é muito incremen- tado e soa como uma orquestra de cordas. Depois do interlúdio, o quinto verso é cantado novamente. Morricone utiliza esse tema no decorrer do filme associado ao sofrimento dos soldados, tanto dos soldados da União quanto dos soldados Confederados. Seu tom sentimental está em franco contraste com a brutal tortura que é vista no interior do escritório de Angel Eyes. A cena se alterna com Wallace torturando Tuco e os músicos do lado de fora, que sabem que estão tocando somente para abafar os pos- síveis gritos de Tuco pedindo ajuda. Essa é a única canção que Morricone utiliza na trilha musical do filme. Existe uma razão lógica e prática para isso. As vozes ouvidas são diegéticas; elas são as vozes de pessoas que existem no mundo criado pela nar- rativa do filme. Morricone com freqüência utiliza a voz humana sem palavras, porém, as pessoas a quem essas vozes pertencem não são personagens da história; essas vozes são instrumentos na música não-diegética do filme. Como a “Marcetta”, “La Storia di un Soldato” está na tonalidade de Ré maior. Esse é outro exemplo da oposição de Morricone à convenção que apregoa tonalidades menores à música sentimental e triste; e a tonalidades maiores para mú-

321 sicas mais alegres e brilhantes. Ele habilidosameente evoca a emoção desejada inde- pendente do modo escolhido.

Figura 75 – “La storia di un soldato”

“La Storia di un Soldato” também é significante por outra razão. Muitos au- tores discutem a prática de Leone de ocasionalmente solicitar a Morricone que es- crevesse a música de uma determinada cena antes da filmagem onde ela estaria presente posteriormente, de modo que, no momento da filmagem, ela pudesse ser

322 ouvida como uma referência. Leinberger (2004) afirma que, de acordo com Brown, “a música de Morricone foi executada nas tomadas de Once Upon a Time in the West suprindo antecipadamente seus efeitos tanto aos atores quanto aos técnicos. Em outros filmes, certas seqüências foram construídas em torno da música”. Sem dúvi- da, um desses outros filmes foi The Good, the Bad and the Ugly. Quando perguntado sobre se a música do filme havia sido composta antes do filme ser feito, Morricone explicou, “lembro que para The Good, the Bad and the Ugly, eu não escrevi muita música antes da filmagem. Uma coisa é certa, entretanto, eu escrevi o coro antes da filmagem da cena em que os dedos são enfiados nos olhos de Tuco”. Ele está se referindo a essa cena onde Wallace está torturando Tuco no escritório de Angel Eyes. Num determinado momento, Wallace pressiona os olhos de Tuco com as pon- tas dos polegares. Tuco, incapaz de suportar mais qualquer tortura, finalmente diz a Angel Eyes a sua metade do segredo. De acordo com Eli Wallach (Tuco), essa in- serção musical, “La Storia di un Soldato”, foi tocada pelos alto-falantes enquanto a cena estava sendo filmada. (LEINBERGER:2004216)

4.11.9 - fragmento 24: “Il Treno Militare” (“La Storia di un Soldato”) Morricone utiliza mais uma vez o tema “La Storia di un Soldato”, com o nome de “Il Treno Militare”, dessa vez para acompanhar a morte de Wallace. Depois da introdução instrumental de oito compassos, a primeira metade do verso 1 (do compasso 1 ao 8) é ouvida. Entretanto, diferente da primeira vez, a audiência é for- çada a reconhecer as vozes que estão cantando como externas ou não-diegéticas, pois, não há qualquer pessoa ou prisioneiro que possa estar cantando a canção. A presença dessas vozes não-diegéticas com palavras pode ser problemática, já que a audiência espera ter uma fonte dentro da história.

216 In LEINBERGER, op. cit., p. 101.

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4.11.10 - Fragmento 25: “La Morte di un Ladrone” A cena acontece numa cidade onde a Union Army está de passagem. Blondie é visto cavalgando ao lado de Angel Eyes e sua gangue. A audiência ouve a “Parte Primitiva” dos “Créditos Iniciais” com os motivos de Blondie MC e MC’ e o tim- bre do “ua-ua” para os outros motivos MT. Logo após, um prisioneiro usando uma placa pendurada no pescoço, onde se pode ler “thief” [ladrão], é mostrado sendo fu- zilado por uma patrulha confederada. Morricone utiliza a inserção “Il Forte”, que inclui a melodia ouvida anteriormente em “La Carrozzo dei Fantasmi”, articulada à morte do soldado. Posteriormente, Morricone utilizará mais uma vez essa melodia com o mesmo tipo de articulação.

4.11.11 - Fragmento 29: “Due Contro Cinque” (Dois contra Cinco) Reunido com Blondie, Tuco planeja vingar-se de Angel Eyes antes de con- tinuar a busca pelas moedas de ouro. A inserção “Due Contro Cinque” inicia com uma introdução suspensiva, executada por tímpanos e vários outros instrumentos de percussão, bem no momento em que Angel Eyes e os membros de sua gangue en- contram o corpo de um dos seus companheiros que vigiava Blondie. Angel Eyes e sua gangue decidem ir procurar por Blondie e Tuco. A inserção continua com o moti- vo MT1 no violoncelo, no momento em que Blondie se oferece para ir com Tuco pro- curar Angel Eyes. Enquanto Blondie e Tuco caminham pelo centro da cidade, a in- serção musical intercala a seção do “modo de rock” da música dos “créditos iniciais”. Isso tudo é seguido por mais música de suspense executada, principalmente, pela percussão. Um por um, Blondie e Tuco matam os homens da gangue de Angel Eyes, menos o próprio Angel Eyes, que deixa um bilhete dizendo “Vejo vocês logo, idiotas”.

4.11.12 - Fragmento 31: “Marcetta Senza Speranza” Durante a batalha pela ponte o capitão é ferido mortalmente e Blondie e Tuco o observam quando é trazido de volta para as trincheiras. “Il Forte” é ouvido novamente, com uma instrumentação sutilmente diversa, informando a audiência da

324 morte eminente. Blondie coloca uma garrafa na mão do capitão e diz para “dar um gole na bebida e ficar com os ouvidos atento”. Logo depois disso, Blondie e Tuco carregam alguns explosivos por trás das tropas e na direção da ponte. Enquanto eles fazem isso, “Marcetta senza Speranza” é ouvida. Blondie e Tuco preparam a ponte para ser destruída. A melodia é executada por um coro masculino em bocca chiusa acompanhado por um pequeno grupo com piano e percussão. Quando Tuco se dá conta do grande perigo que eles estão correndo, sugere a Blondie que cada um reve- le a sua parte do segredo. Ele diz a Blondie que as moedas de ouro estão escondi- das no Sad Hill Cemetery. Blondie diz a Tuco que o nome da cova é Arch Stanton, e acende o pavio dos explosivos que destroem a ponte. O capitão ouve a explosão e morre ao som de “Il Forte”, ouvida pela última vez, com sua instrumentação original utilizando o trompete, significando a morte de outro soldado.

4.11.13 - Fragmento 32: “Morte di un Soldato” A inserção “Morte di un Soldato” inicia com a música de “Marcetta Senza Speranza” executada sem palavras por um coro masculino acompanhado pela gaita de boca. A música prossegue com uma versão instrumental de “La Storia di un Sol- dato”.

4.11.14 - Fragmento 34: “L’Estasi Dell’oro”(O êxtase do Ouro)

O diretor, propenso à valorização do próprio trabalho, pede com freqüência ao com- positor para sublinhar este ou aquele ponto com a utilização de sincronias, até atin- gir um número enorme que poderia arruinar a partitura. O conselho que dei e que quero repetir é o de não adaptar passivamente as sincronias como pedidas pelo dire- tor, mas, de fazê-las entrar no jogo musical, pensando a música como se, natural- mente, tivessem cortes desenvolvidos, não secos. A partitura deve correr de modo flu- ente, sem “fraturações”, cercando as imagens. As melhores sincronias são aquelas que não são sentidas como forçadas [implícitas], aquelas que chegam por uma lógica musical – ou também casual –, não por uma lógica somente visual-cinematográfica. (MORRICONE: 2001:177)

O momento ao qual Morricone se refere corresponde à peça L’estasi dell’oro, onde Tuco busca freneticamente a tumba de Arch Stanton, em um cemitério circular.

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Aqui, em 3’ e 20’’ de imagens, Leone me pediu 23 ou 24 sincronias. O pro- blema era atendê-lo sem atendê-lo (“dar-lhe ouvidos sem dar-lhe ouvidos”), fazendo com que a música não ressentisse de uma exigência tão pesada. (Idem)

A seqüência inicia logo depois que Tuco e Blondie explodem a ponte de Lext. Tuco continua sua busca frenética pelo cemitério Sad Hill. Num determinado momento ele cai no chão e bate suas costas numa lápide. Ao se levantar ele percebe que, finalmente, encontrou o cemitério onde, na sepultura com o nome de Arch Stan- ton, deve estar enterrada uma caixa com $200.000 dólares em moedas de ouro. Alguns autores afirmam que a música dessa cena já estava escrita antes de sua filmagem, como é o caso de “La Storia di un Soldato”. Morricone, no entanto, quando indagado se esse era realmente o caso, respondeu:

A parte final no cemitério, quando Tuco é visto correndo em círculos, foi es- crita depois que essa cena em particular já estava filmada e na fase de edi- ção e montagem. (MORRICONE, 2001:253)

Eli Wallach confirma que não havia música sendo executada no momento da filmagem dessa cena. Wallach humoristicamente relembra da direção de Leone durante a filmagem da cena, “Ele disse ‘corra’ e eu corri”. (WALLACH217) Tuco inicia a correr em torno das tumbas do cemitério circular à procura do nome que Blondie havia “revelado”. Tuco corre, corre em êxtase, corre muito, imerso em seu sonho de riqueza. Os movimentos de câmera das tomadas de Leone se tornam cada vez mais vertiginosos, até que as imagens atingem tal velocidade que não podem mais ser decifradas. De repente, Tuco pára ofegante olhando para uma das covas com a inscrição: “Arch Stanton”, “3 de fevereiro de 1862”. A cena du- ra quase três minutos e meio: tempo impensável se não fosse articulada com o tema de Morricone que sublinha e comenta os refinamentos psicológicos dos sentimentos de Tuco que, com certeza, nenhum roteirista saberia como exprimir em palavras. Nesse episódio podem ser notados quase todos os ingredientes típicos da música e do imaginário sonoro da primeira trilogia de Sergio Leone: a voz de Edda Dell’Orso, o coral masculino sem palavras, o ritmo galopante, o coral, as percussões,

217 In LEINBERGER, op. cit., p. 101.

326 o crescendo orquestral, entre outras. A utilização da câmera e da montagem, especi- almente no final da seqüência, permite que o espectador se identifique com o ponto de vista de Tuco. Em resumo, é um exemplo audiovisual efetivo, que objetiva o en- volvimento do espectador.

Por isso, escrevi alongando as frases, às vezes passando de um compasso par para outro impar, às vezes estreitando as frases para concordar com certas imagens, ou usando o ingresso de uma seção instrumental. Mesmo desse ponto de vista me parece um exemplo muito bem sucedido. Leone era entusiasta desta gravação. Existem algumas sincronias não muito precisas, mas, ele preferiu essa execução porque era a melhor, a mais espontânea, vis- to que foi toda feita diretamente sem sobreposições, com 80 músicos na or- questra. Desse modo, esse foi um caso no qual foi projetada a seqüência du- rante a gravação da música e, naturalmente, existiram problemas na pré- mixagem, pois, para dar um exemplo, os trompetes vazavam nos microfones dos violinos. Num certo ponto entendemos que devíamos mandar tudo dire- tamente, porque quem tocava escutava os outros e recebia os estímulos. Existiriam duas formas de corrigir essas pequenas imperfeições: intervir no fotográfico – proceder pois com uma nova montagem – para ganhar 5, 10, 15 ou 24 fotogramas, ou executar novamente a peça. O primeiro modo não era possível porque não havia material fotográfico disponível (e seria im- pensável utilizar os mesmos fotogramas para alongar a projeção). Quanto ao segundo modo, uma nova execução seria quase seguramente menos es- pontânea, menos eficaz, assim Leone decidiu sacrificar um pouco a imagem em favor da música. (MORRICONE, 2001::177)

O tempo e o ritmo da música dessa inserção de Morricone, que confirmou tê-la escrito após a filmagem e edição da seqüência, articula-se tão integralmente com o tempo e o ritmo da montagem visual que a música é ouvida como uma mani- festação audível da imagem visual. Através de um gradual aumento da energia mu- sical que combina mudanças no tempo, ritmo, orquestração e dinâmica, experimen- ta-se o gradual aumento físico e emocional de Tuco, à medida que alcança gradati- vamente o seu intento. Chion (1995) descreve esse fenômeno, numa analogia à perspectiva visu- al, como “pontos de fuga” de linhas temporais:

Esse efeito de temporalização pode ser criado também pelas próprias estru- turas musicais - especialmente as cadências harmônicas e melódicas do sis- tema tonal, os sistemas de formas musicais e as variações de amplitudes: uma música escrita dentro de um estilo tonal e dentro de uma grade de com- passos determinada sugere o momento que ela vai terminar ou fazer uma

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pausa e essa antecipação se incorpora à nossa percepção da imagem. Po- demos dizer que a música ajuda a estruturar os tempos de uma seqüência ci- nematográfica não somente pelas pulsações rítmicas, mas também pelo fe- nômeno da espera (geralmente inconsciente, reflexo) da cadência. A varia- ção de dinâmicas musicais pode criar também esse efeito de temporalização: um crescendo musical pode criar uma expectativa em relação ao máximo de intensidade que ele vai alcançar,, criando uma sensação de tempo, pois temos uma referência auditiva de limites de iintensidades sonoras.(CHION, 1995:192)

Depois da inserção de um som de sino orquestral na cabeça do compas- so, a audiência ouve quatro notas em ostinato executadas pelo piano ( o mesmo os- tinato que Morricone havia utilizado em “Il Deserto”), dessa vez executado numa mé- trica dupla, introduzir a peça “O Êxtase do Ouro”.

Figura 76 – Ostinato de “L’estasi dell’oro”

Então, um corne-inglês inicia uma obsessiva melodia. Morricone utiliza mais uma vez uma melodia baseada na escala hexatônica, dessa vez no modo de Lá.

Figura 77 – Melodia de L’estasi dell’oro”

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Sinos orquestrais são ouvidos novamente um pouco mais curtos, uma versão de 17 compassos da melodia é ouvida, com a inserção da voz da soprano Edda Dell’Orso. Uma versão mais concisa de 12 compassos do tema é ouvida novamente com um coro e orquestra completa. O tema é executado com alguns instrumentos imitando o compasso anterior. Morricone utiliza a versão “ua-ua” do motivo MT1 como parte de uma tran- sição curta antes de apresentar o tema novamente, dessa vez numa versão de 16 compassos, com mais metais do que anteriormente. Ele também muda o ritmo inclu- indo uma figura tripla, três notas no mesmo tempo de duas. O tema é ouvido nova- mente executado pelas trompas. Depois de uma transição curta, o tema é ouvido mais uma vez com a orquestra completa, seguido por uma coda de 8 compassos.

A idéia fixa do ouro se traduz numa reiteração da frase, por isso num ostina- to melódico com variações sutis (ou, melhor dizendo, “licenças”), que, como disse o Maestro Morricone, são conseqüências de uma escrita ligada à pes- quisa das sincronias, as quais pelas suas “levezas” são, justamente, sincro- nias implícitas; exceto a obtida nos fotogramas finais, coincidente com a conclusão seca da peça, nas quais Tuco encontra finalmente a tumba com o nome que procurava. É notável a coincidência entre estilemas tipicamente morriconianos – a dilatação da frase em valores mais longos sobre um arco melódico presumível – e a função pedida. (MICELI, 2001::177)

A articulação da música com a imagem é inquestionavelmente o resultado da habilidade de Morricone em capturar a energia dramática da narrativa cênica, transformando-a numa experiência audiovisual única.

4.12 - FRAGMENTO 36: “IL TRIELO” FINAL

Quando Tuco localiza a tumba de Arch Stanton ele literalmente dá um abraço na lápide, enquanto sons de corvos e o canto de pássaros são ouvidos. Com um pedaço de madeira arrancado de uma das tumbas, Tuco começa freneticamente a cavar, enquanto a alternância de seu olhar para a terra da tumba que está sendo cavada e para o nome de Arch Stanton inscrito na lápide, denuncia seu temor com o sobrenatural. Quando a madeira com que cava atinge o caixão enterrado, ele come-

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ça a cavar alternadamente com as próprias mãos e com o pedaço de madeira, reti- rando o excesso de terra de cima do caixão. Nesse momento, a sombra de um ho- mem com chapéu é projetada sobre o local de trabalho de Tuco com o motivo sono- ro musical MC executado pela flauta doce e a versão “ua-ua” do motivo MT. Surpreendentemente, alguém lhe atira uma pá para cavar. Aos poucos, a imagem confirma o que o leitmotiv havia anunciado. Blondie acendendo seu charuto diz a Tuco: “Vai ser bem fácil com isso”. Tuco pensa em pegar o seu revólver, mas Blondie, jogando o ponche que está usando para cima dos ombros, gesto que se tornará uma das características do personagem, o desaconselha. Tuco pega a pá e começa a retirar o excesso de terra sobre o caixão. Então, o som de dois acordes alternados (Ré menor, Sol maior) executado por um órgão são ouvidos, no momento em que outra pá é arremessada na direção de Tuco, também inesperadamente. Blo- ndie e Tuco são surpreendidos. Angel Eyes com seu revólver na mão afirma: “Dois cavam mais rápido do que um. Cavem”. O som do órgão é interrompido. Angel Eyes olha para Blondie, que está acendendo o seu charuto, e diz: “Você não está cavan- do”. Blondie permanece parado sem atender a ordem de cavar. Angel Eyes arma seu revólver para atirar. Blondie diz: “Se atirar em mim, não verá um centavo”. Angel Eyes pergunta “por quê?” Blondie, retirando a tampa do caixão com a ponta de sua bota diz: “Vou lhe dizer”. A imagem revela que dentro do caixão só existe a ca- veira de Arch Stanton. Blondie diz: “Porque não tem nada aqui”. Tuco, frente a ima- gem da caveira, se benze (gesto que foi executado várias vezes em outros momen- tos do filme). Muito alterado por ter sido enganado, Tuco xinga e pega uma das pás para agredir Blondie. Blondie, impassivelmente, diz: “Achou que eu diria?”, interrom- pendo sua ação. Blondie prossegue: “$200.000 é muito dinheiro. Teremos que mere- cê-lo”. Tuco olha para Angel Eyes que assiste pensativo a toda a ação. Angel Eyes pergunta: “Como?” Blondie pega uma pedra do chão e diz: “Vou escrever o nome nesta pedra”. Ele olha para Angel Eyes e pede para que ele abaixe a arma. Angel Eyes, relutantemente, faz o que Blondie pediu. Blondie parece escrever algo na pe- dra que coloca no chão, bem no centro de uma grande área circular no centro do

330 cemitério. Os três homens tomam uma posição simétrica em volta do círculo, Morri- cone novamente funde sua música com a imagem visual para um outro momento climático. “Il Trielo”, uma das últimas inserções musicais do filme inicia com uma in- trodução lenta, alternando um solo de flauta, um ostinato de quatro notas executado no violão, batidas de um bumbo e o som de um corvo. Morricone, com muita habili- dade, gradualmente aumenta a tensão da música de quase nada para uma absoluta culminância, articulada com a tensão da montageem visual.

Figura 78 – Melodia da introdução (flauta): “Il Trielo”

Depois da abertura do solo da flauta, no momento que Blondie coloca a pedra no meio do grande círculo do cemitério, o violão entra com um ostinato de qua- tro notas similar ao ostinato do piano em “Il Deserto”, com acompanhamento de cor- das na tonalidade de Ré menor. Cada entrada do ostinato dura exatamente 3 com- passos (exceto do compasso 30 ao 32, quando ele dura dois compassos e 3 tem- pos). O ostinato é recorrente em várias alturas diferentes, rrefletindo as mudanças da harmonia. Portando a mesma idéia musical de toda a trilogia, a primeira nota de cada grupo de quatro é uma appoggiatura e as três notas seguintes formam um arpejo de cada acorde. A utilização repetitiva dos ostinatos no transcorrer do filme e sua recor- rência nesse momento, agrega um grande sentido de recordação e continuidade na trilha musical como um todo.

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Figura 79 – Ostinatos do violão: “Il Trielo”

Essa introdução alterna entre os ostinatos do violão, cada um deles repre- sentando a mudança na harmonia, o solo recorrrente da flauta que reforça a tonalida- de de Ré menor em cada entrada, sonoridades percussivas e a mudança dos acor- des sustentado nas cordas da orquestra. O diálogo entre os dois instrumentos cria uma tensão harmônica conjuntamente com o deesdobramento da cena. O suspense da música e da imagem visual é gradualmente iincrementado até que Morricone adi- ciona a orquestra completa e o coro. Existe um repentino crescendo no compasso 38 e 39 antes da melodia principal dessa inserção – o solo dee trompete em estilo maria- chi – iniciando no compasso 40. No início dessee tema, Leone muda de close-ups pa- ra tomadas longas, em preparação para o segundo crescendo tanto na música quan- to na montagem.

Figura 80 – Melodia principal ddo “Il Trielo”

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O ritmo do acompanhamento da percussão orquestral é derivado do ritmo do “galope do cavalo” [ ], mas, bem mais lento. Como nos outros dois filmes, qeeqq o solo de trompete acrescenta o tom mariachi do sudeste americano. Como nos fil- mes anteriores, Leone reservou o solo de trompete em estilo mariachi para um pouco antes ou durante o duelo final, o confronto final entre o “bom” e o “mau”. Também como evidência do procedimento, Morricone só utilizou o timbre do trompete como solista nas inserções mais dramáticas desse filme: “Il Forte”, “La Carrozzo dei Fan- tasmi” e “Il Triello”. Depois do solo de trompete, existe um corte abrupto. A música pára e sons do vento e de corvos são ouvidos ao fundo. Antes do reingresso da melodia princiipal, é ouvido um curto interlúdio que consiste de ruloso de tímpanos, sonoridades das percussões autóctones e inusuais, sons eletrônicos, o ostinato de quatro notas e siinos musicais que, inesperadamente, resgatam o “som do relógio de bolso” utilizado em PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ. O ostinato de três notas dos sinos é derivado do ostinato de quatro notas do violão em ré menor e fá maior pela justaposição dissonante das duas primeiras notas da ap- poggiatura.

Figura 81 – Sinos: “Il Trielo”

O tema inicia novamente, porém, dessa vez, quando a melodia do trompe- te atinge a nota lá no 15º compasso (compasso 53 do solo original), o ritmo do acompanhamento acelera e muda para um ritmo semelhante ao do bolero de Ravel, agregando ainda mais tensão à cena. Leone cria uma espacialização entre os três homens, utilizando cortes intermitentes dos três protagonistas e de suas armas, sempre mais rápidos na montagem de close-ups gradativamente mais extremos, até

333 que nada, além dos olhos dos homens, possa ser visto. A tensão é finalmente que- brada no final da música sobreposto pelo som de um tiro de Blondie em Angel Eyes. Blondie dispara mais três vezes e o eco dos tiros é ensurdecedor. Semelhante a co- reografia de um balé, um tiro mata Angel Eyes e força sua queda dentro de uma co- va aberta ao seu lado; o segundo tiro põe o seu chapéu dentro da cova; e o terceiro faz o mesmo com sua pistola. Brown (1994) comenta sobre essa cena:

A cena inteira, que dura aproximadamente cinco minutos (extremamente longa para os padrões do velho oeste; representa uma instância sofisticada do cinema estruturado musicalmente via montagem vertical. Leone constrói um padrão de no visual para complementar os dois crescendos de Morrico- ne, e em função da dialética estabelecida entre a dinâmica das tomadas mis- turadas à presença musical versus tomadas baixas e ausência de música. (BROWN, 1994:229)

Leinberger (2004:107) comenta que Brown está aludindo o fato que, dife- rente do “L’estasi dell’oro” no qual a música e a imagem estão unidas por um cres- cendo simples do início ao fim, “Il Triello” é verdadeiramente um crescendo, seguido por um corte abrupto, somente para ser concluído com um segundo crescendo. Brown parece implicar que Leone construiu seus padrões sobre a música de Morri- cone, porém, Morricone deixou claro que, com exceção de “La Storia di un Soldato”, sua música para esse filme foi escrita depois da edição final quando a montagem estava completa. Por isso, essa inserção foi reescrita para acomodar-se à montagem final.

4.12.1 - Epílogo Fragmento 37. É logo revelado que o “trielo” final não foi muito “honesto”. Blondie, sempre sereno, astucioso e manipulador tinha uma vantagem desleal, não conhecida por Tuco, Angel Eyes e a audiência. Blondie havia descarregado o revól- ver de Tuco na noite anterior sem que ele soubesse. Ele também previu que Angel Eyes aceitaria participar do “trielo”. Porém, Angel Eyes estava em desvantagem níti-

334 da, pois tinha de dividir sua atenção entre Blondie e Tuco. Tuco, por outro lado, não se deu conta de sua vulnerabilidade até depois do perigo ter passado. Depois da tensão dessa longa cena, Blondie, mirando o revólver em Tuco, força-o a desenterrar o caixão de uma cova maarcada com a palavra “desconhecido” próxima a cova de Arch Stanton. Eles finalmente encontram as moedas de ouro. Po- rém, Blondie vingando-se de seu velho “amigo” e “parceiro”, acompanhado peloo som dos tambores da introdução da música dos Créditos Iniciais, Blondie força Tuco a por seu pescoço numa corda e deixa-o no topo de uma cruz de uma cova para que, quando estivesse cansado da posição, se enforcasse. Ele amarra as mãos de Tuco atrás de seu corpo e cavalga para longe, levando metade das moedas de ouro. Quando parece que Tuco terá um destino faltal, Blondie retorna, e num gesto de “bondade” reminiscente de seus esquemas da parceria com Tuco, corta, com um simples tiro de rifle, a corda que está prestes a enforcá-lo, e vai embora. Tuco cai no chão e ação é congelada para, mais uma vez, exibir os “epítetos” dos três protago- nistas.

Figura 82 – Il brutto, il cattivo, il buono

Em cada uma das três imagens conngeladas, é ouvido os motivos MC e MT1 correspondentes aos leitmotivs dos personagens. As batidas de tambor conti-

335 nuam, Tuco levanta-se com as mãos amarradas, corre na direção de Blondie e co- meça a xingá-lo. Os xingamentos de Tuco são sobrepostos pelo seu motivo MC se- guido do MT1. Com Blondie, já distante, a seção no “modo de rock” da música dos Créditos Iniciais é inserida, encerrando o filme com a mesma música que o iniciou. Como Chion (1995:190) explica, “a música pode simbolizar um filme, isto é, descre- ver de forma resumida o ‘sentimento’ principal da narrativa”.

4.13 - A MÚSICA DE ENNIO MORRICONE NA SEGUNDA TRILOGIA DE SERGIO LEONE

Os últimos três filmes de Sergio Leone e da parceria com Ennio Morricone

– C’ERA UNA VOLTA IL WEST [ERA UMA VEZ O WEST – 1968]; GIÙ LA TESTA [QUANDO EX-

PLODE A VINGANÇA – 1971]; e C’ERA UNA VOLTA L’AMERICA [ERA UMA VEZ NA AMÉRICA – 1984] são referenciados como “Trilogia do Era Uma Vez...”, “Trilogia da América” ou “Trilogia do Tempo”. Nos três filmes Morricone e Leone puderam realizar completamente um antigo desejo de compor a maior parte da trilha musical na pré-produção do filme, e utilizá-las como referência na gravação das imagens nos sets de filmagem. Na trilo- gia anterior, isso havia se limitado a algumas poucas seqüências do terceiro filme, Il Buono, Il brutto, Il cattivo. Leone resume o procedimento alcançado nesse estágio de trabalho entre os dois de modo muito simples:

Nunca deixo que Morricone leia o roteiro para que componha. Eu lhe conto a história. Porém, conto como se fosse um conto de fadas. E falando “a la romana”, com muitos adjetivos, fazendo comparações, atando todos os nós. Quando compreende bem a idéia, lhe explico o número de temas que necessi- to, iniciando pelos temas que devem representar personagens, pois, em meus filmes, cada personagem deve contar com uma identificação musical pró- pria. De cada tema solicitado, Morricone compõe oito ou dez possibilidades distintas, interpretando-os depois resumidamente ao piano. Então, discuti- mos umas dez mil vezes sobre eles até chegarmos a um acordo, selecionando o tema ideal para cada momento. Algumas vezes posso sugerir complemen- tos e variações. Outras vezes, tomo a metade de um tema e peço que mescle com a parte de outro. No momento da orquestração o deixo só, me limito a

336

escutar, aprovando ou não os resultados, mesmo que previamente tenhamos discutido o número e o tipo de instrumentos218.

É óbvio que o procedimento referido por Leone foi obtido paulatinamente nos três filmes anteriores. O aumento, filme a filme, do número de protagonistas, lo- cais e situações envolvidas, possibilitou que a música de Morricone fosse também, gradativamente, adequando-se às novas exigências de cada filme. O pensamento musical relacionado ao modelo do Developmental Score de Prendergast estabele- ceu-se como uma notável ferramenta na observação dos procedimentos engendra- dos por Morricone no sentido de evitar que o crescimento obrigatório no número de temas musicais no âmbito micro-estrutural pudesse corromper a macro-estrutura da trilha musical nos três filmes anteriores.

Na segunda trilogia a apresentação de dois dos três filmes – C’ERA UNA

VOLTA IL WEST [ERA UMA VEZ O WEST – 1968]; e C’ERA UNA VOLTA L’AMERICA [ERA UMA

VEZ NA AMÉRICA – 1984] é suficiente para elucidar o “novo” procedimento solicitado por Leone. Com as novas exigências formuladas, “cada personagem deve contar com uma identificação musical própria”, revelada numa diversidade de interação entre caracteres cada vez maior, e a possibilidade de poder pensar e adequar a música antes mesmo que as imagens fossem gravadas, possibilitou a Morricone uma mu- dança na concepção tanto micro quanto macro-estrutural da trilha musical da segun- da trilogia. O Leitmotivic Score, também referido por Roy Prendergast, é pertinente nesse caso. Ele é descrito como o procedimento genérico que o compositor de músi- ca para filmes tem a disposição quando a idéia básica da trilha musical se dá em di- ferentes temas ou motivos conectados às várias personagens ou situações do filme.

A vantagem desse tipo de procedimento é que o material musical é mais fa- cilmente retido e reconhecido pela audiência. A maioria dos compositores trabalhando com esse procedimento tendem a tratar tecnicamente o material melódico pela variação. As melodias ou motivos em uma trilha com esse procedimento podem ser reapresentados em várias formas cada vez que a

218 FRAYLING, C. Sergio Leone: Something to do with death. London: Faber & Faber. 2000, p. 30

337

personagem aparece. As alterações na melodia da personagem (sinistro, amante, excitado etc.) podem corroborar e dar ao ouvinte algumas indica- ções sobre o estado mental da personagem em qualquer momento particular. O procedimento pode tornar-se extremamente eficaz se a própria cena apre- senta certa neutralidade emotiva, cabendo à música agregar alguma coisa que não está presente na tela. (PRENDERGAST, 1977:231-232)

Prendergast adverte que embora as características apresentadas repre- sentem uma simplificação excessiva do procedimento, não estão muito distantes da forma utilizada pelos compositores. Acrescenta que existem muitos exemplos de péssimas utilizações, mas, também existem os mais adequados, otimizados e não obstrutivos. O problema é que as características genéricas oferecidas por Prendergast elucidam o procedimento tendencialmente no nível micro-estrutural, como inserção isolada. A utilização isolada do leitmotiv está desconectada da idéia macro-estrutural, pondo em risco, mesmo que não obrigatoriamente, a unidade formal do próprio filme. No caso do Developmental Score, abordado na trilogia anterior, a macro- estrutura da trilha musical foi contemplada como análoga ao pensamento que en- gendra a composição da forma-sonata, refletindo essa base análoga na própria com- posição formal dos temas musicais do filme. A segunda trilogia de Leone, C’era una volta..., mais explicitamente os fil- mes: primeiro, ...il West, e o terceiro, ... L’America, está intimamente relacionada à idéia de retorno. No primeiro todas as personagens orbitam em torno de um mesmo lugar e, de um modo ou de outro, completam seus ciclos nesse retorno. Essa idéia cíclica, como base da estrutura narrativa, será levada ao extremo no terceiro, onde o fim do filme coincide com seu início.

Do momento em que hoje destruímos a forma, a tradicional, creio que se um segundo elemento formal nasce do primeiro e o primeiro continua no segun- do e assim por diante, isso seja um modo justo de proceder. Pensei assim an- tes de aplicar-me no cinema, e no cinema realizei esse mesmo procedimento em forma mais breve. (MORRICONE, 2001)

No século 19, entre 1851 e 1853, Franz Liszt (1811-1886) compôs uma sonata para piano dedicada a Robert Schumann (1810-1856), conhecida como So-

338 nata em Si Menor. A originalidade e o mérito da composição, que a converteram em uma obra prima na história da música ocidental, assentam-se numa possibilidade formal que não era comum no gênero sonata típico do período clássico ou romântico. Liszt não a elaborou em 3 ou 4 movimentos, mas, em um único e contínuo movimen- to com elementos temáticos contrastantes tanto no andamento quanto na expressivi- dade. Liszt, rompendo com o passado, compôs sua sonata combinando dois procedimentos. O primeiro utiliza a idéia da própria forma sonata que compreende a exposição dos temas, o desenvolvimento e a recapitulação; o segundo é um proce- dimento no qual são fusionados os “movimentos” do gênero sonata. A estrutura formal resultante foi uma grande inovação, pois, a forma sona- ta era, nessa época, um grande símbolo de rigidez que implicava em um modelo formal já fixado. Na forma tradicional, as diferentes identidades dos temas, suas fun- ções estruturais (“primeiro(s)” e “segundo(s)” grupo temáticos, a partir dos quais se gera o desenvolvimento) eram definidas por funções harmônicas determinadas a pri- ori; na nova forma, ao desaparecer a prioridade de tais funções, a identidade e funci- onalidade estrutural dos temas, antes absoluta, se transforma em relativa. Portanto, do mesmo modo, as identidades das partes constitutivas dessa “nova” forma sonata passam a ser relativas. Nesse sentido a forma passou para a história com a denomi- nação de “Sonata Cíclica”, subvertendo a orientação de um fim pré-determinado. Essa ciclicidade temática não absoluta é o conceito subjacente que pode ser perfeitamente utilizado como referência ao pensamento cinemático da segunda trilogia de Sergio Leone. As fragmentações necessárias são compensadas com grande coerência por parte de Morricone. A ausência de uma hierarquia pré- concebida, não só potencializa a utilização e combinação dos temas, como engendra maior destaque na associação temática com as personagens. Miceli descreve algumas conseqüências desse novo procedimento:

Aqui, de fato, a fragmentação (já vista nos filmes precedentes enfocadas nas tripartições de segmentação estilística) torna-se uma macro-segmentação, pela qual os diversos segmentos podem agir com autonomia ainda maior, com a maleabilidade e as concisões necessárias ao filme (mas, qualquer

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segmento é uma peça fechada de per se), ou os segmentos podem concate- nar-se constituindo a “Peça das Peças”, voltada à pura escuta. É um meca- nismo perfeito, muito eficaz sob todos os pontos de vista, e suscita tal admi- ração a ponto de colocar na sombra (pelo menos aos meus ouvidos) os “fa- migerados” vocalizes. (MICELI, 2001:171)

Como na trilogia anterior, a confluência das elucidações de Esslin e Pren- dergast pode ser representada com o seguinte esquema geral:

Figura 83 – Leitmotivic Score: Esslin e Prendergast

340

4.14 - A MÚSICA DE C’ERA UNA VOLTA IL WESTERN - 1968 (ERA UMA VEZ NO OESTE)

4.14.1 - Ficha Técnica C’era una volta il West – Once upon a time in the West – Era uma vez no Oeste – Países: Itália/Espanha/Alemanha Ano: 1968 168’ (versão italiana); 164’ (versão francesa); 155’ (versão americana); Duração: 175’ (Versão integral restaurada – director’s cut) Direção: Sergio Leone Argumento: Dario Argento, Bernardo Bertolucci, Sergio Leone Roteiro: Sergio Donati, Sergio Leone Diálogos inglêses: Mickey Knox Produção: Bino Cicogna per Rafran Cinematografica, San Marco Films Produtor Executivo: Fulvio Morsella Empresas Produtoras: Rafran Cinematografica, San Marco Films Distribuição: Euro International Films/Paramount Intérpretes e Personagens

 Claudia Cardinale (Jill McBain),  Henry Fonda (Frank),  Jason Robards (Manuel “Cheyenne” Gutierrez),  Charles Bronson (O homem sem nome – Gaita),  Gabriele Ferzetti (Morton),  (o caçador Sam),  Woody Strode (Stony, o pistoleiro negro do prologo),  Jack Elam (Snaky, o pistoleiro que duela com a mosca no prólogo),  Marco Zuanelli (Wobbles),  Benito Stefanelli (membro do bando de Frank),  Keenan Wynn (xerife de Flagstone),  Frank Wolff (Brett McBain),  Lionel Stander (proprietario da estalagem),  Livio Andronico, Salvo Basile, Spartaco Conversi (membros do bando de Frank nos quais Cheyenne atira através do stivale),  Bruno Corazzari, Claudio Mancini (irmão maior de Gaita no flashback),  Conrado Sanmartin, Enzo Santaniello (Timmy McBain),  Simonetta Santaniello (Maureen McBain),  (membro della banda di Frank).

Não Creditados:  Dino Mele (Gaita menino no flashback),  Aldo Sambrell (membro do bando de Cheyenne),  Raffaella e Francesca Leone (garotas na estação de Flagstone),  Luana Strode (mulher indiana no prólogo),  Al Mulloch (Knuckles, o pistoleiro das mãos no prólogo)

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Fotografia (Techniscope, Technicolor): Tonino Delli Colli Montagem: Nino Baragli Efeitos Especiais: Eros Baciucchi e Giovanni Corridori Música: Ennio Morricone, regida pelo autor (RCA Italiana S.p.A.) Cenografia: Carlo Simi Costumes: Valeria Sponsali Cenas Internas: Cinecittà e Luce (Roma) Cenas Externas: Guadix, Almeria (Spagna), Arizona, Utah (Usa) Mestre de Armas: Benito Stefanelli Auxiliar de Direção: Giancarlo Santi Efeitos Sonoros: Luciano Anzellotti

4.14.2 - Comentários Iniciais Frayling (2005) conta que depois de completar IL BUONO, IL BRUTTO, IL CAT-

TIVO, Leone moveu-se para outro tipo de abordagem. Pouco antes do Natal de 1966, ele estava em Roma assistindo ao filme com o jovem crítico de jornal Dario Argento, que lhe apresentou o promissor cineasta Bernardo Bertolucci. Bertolucci disse a Le- one que havia apreciado muito o filme. Entre janeiro e março de 1967, os três cineas- tas – Leone, Bertolucci e Argento – assistiram, na sala de projeção da casa de Leone na Via Lisippo, a uma série de westerns clássicos, fantasiando sobre produzir “o Western derradeiro”. Leone, Bertolucci e Argento assistiram juntos a uma grande quantidade de Westerns hollywoodianos: o projeto resultante era para conter uma série de referên- cias explícitas aos westerns favoritos como elementos de um “afresco cinemático do nascimento da América”. Eles se debruçaram em mapas do Monument Valley na fronteira entre os estados do Arizona e Utah, onde John Ford filmou 10 de seus wes- terns de STAGECOACH, em 1939, a CHEYENNE AUTUMN, em 1964. O polimento da idéia do filme na casa de Leone transformou-se numa espécie de jogo que consistia em “pontuar as referências”, e eles inventaram nomes de personagens como Brett McBain, composto pelo nome de dois autores americanos, Ed Mcbain e Brett Halli- day. No processo, o complexo relacionamento entre os jovens cineastas italianos e o

342 cinema americano transformou-se num cenário onde o socialismo de Bertolucci reu- niu-se à melancolia e cinefilia de Leone. (FRAYLING, 2005:31) Na medida em que eles estavam absolutamente focados, as discussões parecem ter se centrado nos vários significados da frase C’era una volta, il West, que significa “Era uma vez, o West” e não como no título em inglês, Once Upon a Time in the West, com o significado de “Era uma vez, no West”. O tema central do projeto era sobre a chegada do progresso nas fronteiras do deserto, na forma de uma ferro- via transcontinental. Não existia nada de original nisso: THE IRON HORSE de 1924, dirigido por John Ford; UNION PACIFIC de 1939, dirigido por Cecil B. DeMille e, mais recentemente, HOW THE WEST WAS WON, de 1962, dividido em segmentos dirigidos por diretores diferentes: John Ford, Henry Hathaway, George Marshall e Richard Thorpe (não creditado), já tinham dado ao mesmo tema um tratamento épico. Porém, o interesse particular de Leone era explorar o relacionamento entre a ficção popular (“C’era una volta...”) e sua base histórica (“... il West”), um lamento simultâneo, tanto da época de ouro do western, quanto das suas possibilidades fabulares. (FRAYLING, 2005:31)

A idéia básica, naturalmente, era utilizar algumas convenções, dispositivos e definições do western americano e uma série de referências a westerns indi- viduais - usar essas coisas para contar minha versão da história do “nasci- mento de uma nação”. Assim, as conferências históricas incluíram debates sobre o confronto entre heróis dos westerns (“uma antiga raça de austeros individualistas”), uma nova era do boom da estrada de ferro e a sobrevivên- cia no complexo mundo adulto – através de imagens memoráveis – de contos de fada da infância sobre cowboys e tiroteios. Era como participar de um elaborado jogo. (LEONE. In: FRAYLING, 2005:33)

Quando o tratamento de C’ERA UNA VOLTA IL WEST começou a tomar forma, Leone viajou para os Estados Unidos. Num jipe alugado, ele fez o reconhecimento dos desertos de Colorado, Arizona e Novo México. Utilizando guias especializados, também visitou o Monument Valley em companhia do operador de câmera Tonino Delli Colli e do cenógrafo Carlo Simi. O local deveria ser o ponto chave da referência cinemática do filme – simbolizado por uma seqüência filmada verdadeiramente em Monument Valley de uma carroça passando pelo lado do Arizona. Para Leone, entre-

343 tanto, tais referências não seriam “calculadas em uma espécie de forma programada; elas estariam lá para dar a sensação de fundo de todo o western americano auxilian- do no contar este ‘conto de fadas’ em particular”. Frayling (2005) explica que, embora as referências explícitas aos filmes fossem destinadas a incrementar a quantidade de “visões caleidoscópicas de todo western americano postos conjuntamente”, e, embo- ra fosse assumido durante o filme – através de um processo de intertextualidade que hoje poderia ser chamado de pós-modernista – os espectadores reconheceriam as citações, mas de uma forma vaga. Portanto, o ponto chave era criar a impressão na audiência de estar assistindo a um filme que já haviam visto antes, em algum lugar, mas, com a percepção de que eles nunca tinham visto antes a história contada da- quela mesma maneira. Existia uma mistura de reconhecimento e surpresa, clichês visuais e trompe l’oeil219, nos quais Leone havia se esmerado desde PER UN PUGNO DI

DOLLARI e era a chave para manter-se à frente de sua audiência. (FRAYLING, 2005:33) Portanto, C’era una volta Il West (1968) é um filme western com um con- ceito muito mais ambicioso que os três filmes precedentes dirigidos por Sergio Le- one. Se fosse possível definir analogamente o conceito do filme em uma ação, muito provavelmente, o verbo apto a representá-la seria solenizar, tornar solene. A música é pensada nesse sentido, como produto de um gênero mais ambicioso, onde as dife- renciações estilísticas dos filmes predecessores deveriam resultar muito menos mar- cadas. É notável como a parte do suporte harmônico e o elemento tímbrico assumem na trilha musical uma maior importância, tomando um papel expressivo equivalente ao da parte melódica.

Outra presença constante, inaugurada na música em C’ERA UNA VOLTA IL

WEST, é a de um elemento que se tornará usual na música de cinema composta por Morricone: a utilização do pedal, com a função de preparar e introduzir as inserções musicais do filme. Como o próprio compositor sustenta, a música é um componente

219 Técnica que, com truques de perspectiva, cria uma ilusão de ótica que mostra objetos ou formas que não exis- tem realmente. Provém de uma expressão em língua francesa que significa literalmente “engana o olho” e é usa- da, principalmente, em pintura ou arquitetura.

344 estranho ao filme, um artifício que deve servir para sua valorização. Nessa perspecti- va o elemento musical deve ser utilizado com muito cuidado para que possa ser efe- tivo. Alguns dos momentos mais delicados podem ser criados da passagem do silên- cio para a música e vice-versa. A nota pedal, como utilizada no filme, propicia a pas- sagem gradativa do silêncio (musical) para a música. Além disso, atua também sobre o ouvinte, criando expectativas e tornando mais importante e lógica a intervenção musical. O retorno ao silêncio é obtido tanto pela repetição da nota pedal quanto por outras formas, como por exemplo, ruídos que sobreponham à música que termina. A gravação de músicas da trilha do filme foi um verdadeiro fenômeno no ano de seu lançamento: o compacto contendo os dois temas principais tornou-se o mais vendido em todo o mundo. O filme é muitas vezes considerado como a obra- prima de Sergio Leone: lento, meticuloso, ao mesmo tempo reverente e debochado. Além de Edda Dell’Orso, outros colaboradores importantes na trilha são I Cantori Moderni de Alessandro Alessandroni, com os assovios do próprio e a gaita de Franco De Gemini. A música auxilia a elevar o filme à categoria de “clássico”. Frayling (2005:82) comenta que Stanley Kubrick ficou tão impressionado com o trabalho de Morricone no filme que tentou contratá-lo, três anos depois, para compor a trilha de LARANJA MECÂNICA. A tentativa não frutificou, mas, Kubrick utilizou música pré-gravada com o intuito de conseguir o mesmo tipo de fusão com as ima- gens. Posteriormente, C’ERA UNA VOLTA IL WEST seria uma das referências do diretor nova yorkino na hora de estabelecer um ritmo narrativo para BARRY LYNDON (1975).

EM SUMA, C’ERA UNA VOLTA IL WEST pode ser considerado como uma das maiores homenagens ao gênero western. Andrade220 (2010) inclui o filme em dois restritíssimos grupos de filmes na história do cinema: o primeiro o dos filmes que se querem definitivos sobre um tema ou universo; o segundo, ainda menor, é o dos que são bem sucedidos nessa pretensão.

220 SIVOLELA, A. (Curador) Faroeste Spaghetti: O bangue-bangue à italiana. Centro cultural Banco do Brasil, 2010, p.70.

345

4.14.3 - Sinopse Um imigrante irlandês viúvo, Brett McBain compra um pedaço de terra ba- rata no meio do deserto e a chama de Sweetwater. Nas terras compradas existe água no subsolo, no meio do deserto. Isso significa que a estrada de ferro que está sendo construída tem de passar por ali, pois a máquina a vapor necessita de água para funcionar. Mr. Morton é o empresário que pretende levar a estrada de ferro des- de o Atlântico até o Pacífico. Ele vive em um vagão de trem devido a uma tuberculo- se óssea, enfermidade degenerativa que o obriga a caminhar de muletas. Ele é o chefe de Frank, que manda assustar a família McBain para conseguir comprar mais barato as suas terras. Porém, Frank e seu bando matam todos os membros da famí- lia, Brett e os três filhos, sem saber que o chefe da família havia casado em New Or- leans, em segredo, com Jill, que herda todas as terras. Posteriormente, os homens de Frank tratam de amedrontá-la para que, com medo, venda a propriedade em lei- lão por um preço subestimado de $ 500 dólares. Gaita, um misterioso personagem que toca o instrumento que lhe dá nome, num plano com o bandido Cheyenne, o en- trega às autoridades para receber a recompensa de $ 5.000 dólares, dinheiro que utiliza para comprar as terras e devolvê-la a Jill. Cheyenne é libertado do trem que o conduz a prisão por seus homens e se une a Gaita e Jill, que estão construindo em Sweetwater um novo povoado a entorno da estação.

Paralelamente, C’ERA UNA VOLTA IL WEST é a história da vingança de Gaita.

Do mesmo modo que o Coronel Mortimer em PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ, através de curtos flashbacks fragmentados ao longo de todo o filme, conhece-se que no passa- do ocorreu um evento traumático. No último dos flashbacks, revela-se que a causa do sofrimento de Gaita é Frank, que enforcou o irmão de Gaita pendurado em um arco próximo ao Monument Valley. Gaita enfrenta Frank num duelo em Sweetwater e, depois de matá-lo, entra na casa da fazenda onde Jill está na companhia de Che- yenne. Jill pede para que os dois permaneçam em Sweetwater com ela. Os dois não aceitam e preferem deixar o lugar. Cheyenne morre quase imediatamente, vítima do sangramento de um tiro que levou de Mr. Morton. Gaita se afasta com o corpo sem vida de Cheyenne, enquanto que a estrada de ferro com todos seus trabalhadores

346 chega a Sweetwater e Jill sai de casa para dar-lhes água. Os últimos cinco minutos carecem de diálogos. A conclusão, portanto, é transmitida pelo diretor mediante as imagens e a música, o tema de C’era una volta il West.

347

4.15 - ORGANIZAÇÃO TEMÁTICA DA TRILHA MUSICAL

4.15.1 - Decupagem Duração do filme: 165 minutos (2:44:31 [2 horas, quarenta e quatro minu- tos e trinta e um segundos] mais precisamente). Total das Inserções Musicais: 2:17:28 minutos ([duas horas, dezessete minutos e vinte e oito segundos] mais pre- cisamente). Porcentagem com música: 83%; porcentagem sem música: 17%. O filme foi decupado em 41 fragmentos (seqüências). Dos 41 fragmentos: 33 tem música; 8 não tem. A tabela abaixo apresenta 10 partes da decupagem do filme sem a pre- sença temática musical: 8 sem música e duas com sonoridades atemáticas de efeito.

1 00:00:00 00:09:53 00:09:53 Créditos Iniciais: Estação de Flagstone Sem Música Fragmento 1

2 00:32:16 00:32:39 00:00:23 Parada na estalagem Sem Música Fragmento 6

3 00:53:29 00:56:06 00:02:37 Surra em Wobbles Sem Música Fragmento 10

4 01:06:02 01:11:27 00:05:25 Morton e Frank Sem Música Fragmento 13

5 01:19:03 01:20:09 00:01:06 Jill e Wobbles Sem Música Fragmento 16

6 01:20:09 01:20:57 00:00:48 Wobbles avisa Morton Sem Música Fragmento 17

7 01:37:27 01:41:50 00:04:23 Cheyenne e Gaita de volta na fazenda McBain Sem Música Fragmento 23

8 01:46:47 01:49:15 00:02:28 Leilão da Fazenda MCBain Sem Música Fragmento 25

1 01:34:58 01:35:29 00:00:31 Vasculhando pela terceira vez Sonoridades Tensas Fragmento 21

Sonoridades Percussivas

2 02:03:06 02:09:59 00:06:53 Tentativa de matar Frank Fragmento 30 (L'Attentato)

4.15.2 - As faixas do CD das músicas do filme: “C’era una volta il West” A gravação, catalogada GDM 2062, lançado em 2005, respeita parcial- mente a ordem de entrada das inserções na película. As 27 faixas do CD, com dura- ção total de 1 hora, cinco minutos e um segundo 27 segundos, são as seguintes:

FAIXA NOME DURAÇÃO LEITMOTIV 1 C'era Una Volta Il West 03:43 1

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2 L'Uomo 01:03 4 3 Il Grande Massacro 02:40 4 4 Arrivo Alla Stazione 00:55 1 5 L'Orchestraccia 02:25 x-x-x 6 L'America Di Jill 02:47 1 7 Armonica 02:27 4 8 La Posada N. 1 01:39 2 9 Un Letto Troppo Grande 01:32 1 10 Jill 01:47 1 11 Frank 01:52 4 12 Cheyenne 01:16 2 13 La Posada N. 2 01:33 4 14 La Posada N. 3 01:19 2 e 3 15 Epilogo 01:14 4 16 Sul Tetto Del Treno 01:19 2 17 L'Uomo Dell'Armonica 03:30 4 18 In Una Stanza Con Poca Luce 05:08 1 19 L'Attentato 04:41 Sonoridades 20 Ritorno Al Treno 00:57 1 e 4 21 Morton 01:36 3 22 Come Una Sentenza 03:08 4 23 Duello Finale 03:35 4 24 L'Ultimo Rantolo 01:44 4 25 Nascita Di Una Città 04:25 1 26 Addio A Cheyenne 02:38 2 27 Finale 04:08 1

Na coluna da direita (leitmotiv) pode-se notar que de todas as faixas do CD, somente duas não se relacionam aos 4 leitmotivs criados por Morricone.

4.15.3 - Os Créditos Iniciais A presença da música nos Créditos Iniciais da primeira trilogia de Leone foi fundamental no estabelecimento de um pensamento composicional macro- estrutural relacionado ao developmental score de Prendergast. De modo contrário, a seqüência dos Créditos Iniciais de C’ERA UNA VOLTA IL WEST não tem música. Nos primeiros nove minutos e cinqüenta e oito segundos (00:09:58) do segmento preva- lece o silêncio musical e, “amplificando” a ausência da música, também uma ausên- cia quase total de diálogos. Numa citação às avessas dos Créditos Iniciais de HIGH

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NOON [MATAR OU MORRER], de 1952, dirigido por Fred Zinnemann, onde três homens passam o tempo esperando por Franck na estação de Hadleyville, Leone constrói a seqüência com tomadas de três bandidos mandados por Frank (Henry Fonda) para matar Gaita o personagem que deve chegar no trem que os três esperam na estação Cattle Corner. Além das imagens, os ruídos do “ambiente” são os elementos utiliza- dos por Leone para sonorizar a seqüência. O ranger de uma porta se abrindo, o arrastar de um giz que escreve numa lousa, o som do vento, de pássaros, de insetos, de passos, o ranger de um insistente moinho de vento, um galo que canta, entre outros, são editados com outras sonori- dades acusmáticas e prolongados artificialmente. Os caracteres utilizados para credi- tar os principais participantes do filme, não sugerem nenhuma constância rítmica, surgindo e desaparecendo pelos lados da tela aleatoriamente, sem sincronia e sem simetria entre eles. Quando um dos bandidos que espera sentado ao lado de uma janela fica irritado com o insistente som de um telégrafo e arranca os seus fios, todos os ruídos do ambiente param abruptamente, como numa música, reiniciando uma intermitência que enfatiza a presença e a combinação de cada uma das sonoridades, inclusive pela amplificação artificial. Sons como o de uma mosca incômoda para um dos homens, gotas de água caindo sobre o chapéu do outro ou o som do estalo dos dedos do terceiro, são ouvidos como se fizessem parte de uma música: um tipo de música composta por ruídos observáveis. O som crescente da chegada do trem so- brepõe a “sinfonia de ruídos”, finalizando a primeira parte da seqüência. Ennio Morricone, na Chigiana, relatou sobre essa inserção:

Gostaria de falar-lhes de um episódio que me ensinou muitíssimo, assim es- pero que possa ser útil também a vocês. Muitos anos fazem estive em Firen- ze, no Conservatório “Luigi Cherubini”, para realizar um concerto com o “Gruppo di Improvvisazione Nuova Consonanza . Nós deveríamos fazer a segunda parte do concerto e assim pensávamos de assistir a primeira parte. O concerto deveria começar às nove horas. O público esperava com muita educação, mas, passava das nove e quinze e não começava, nove e vinte e não começava. Num certo ponto chegou um senhor vestido com roupas bur- guesas que subiu no pequeno palco, um tipo de palco muito baixo. [...] Ele tirou o casaco, colocou-o em um cabide, pegou uma escada, a apoiou e subiu nela. Eram nove e meia e as pessoas, naturalmente, conversavam, à espera que o concerto começasse, sem prestar atenção naquele homem sobre a es-

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cada, que tinha começado a manipulá-la de modo estranho, produzindo al- gumas sonoridades... Nove e quarenta, nove e cinqüenta... Então o público começou a perguntar-se se aquele homem lá em cima não poderia represen- tar alguma coisa que talvez estivesse em causa e, pouco a pouco, fez-se si- lêncio. O homem continuou destemido, no silêncio absoluto. Chegamos às dez e quinze. O homem desceu da escada, pegou o casaco e foi embora. Fim da primeira parte. O evento deixou o público muito perplexo; ninguém en- tendia a razão daquela exibição, porém não reagiu como nos concertos de Cage em Darmstadt. Ele permaneceu em silêncio, educadíssimo. Eu procurei entender por minha conta do porque e cheguei a certas conclusões. E são conclusões que reputo uteis para a música, mas, para a música de cinema em modo particular. O som, qualquer som de nossa vida, retirado do contexto que o produz assume com o tempo, no silêncio, uma outra valência, um outro significado. O zumbido de uma mosca em frente de um microfone, isolado de todo o resto, escutado no silêncio, não é mais aquilo que pensávamos, mas toda uma outra coisa. (MORRICONE, 2001:200-201 )

Morricone contou esse episódio de Firenze para Sergio Leone, que já ti- nha um interesse particular pelo potencial expressivo dos ruídos. Porém, ele ressalta:

Esses primeiros minutos do filme C’ERA UNA VOLTA IL WEST enfatiza os sons isolados, mas, não é a mesma coisa do episódio relatado, porque no filme nós vemos o moinho ranger, vemos a gota que cai no chapéu do pistoleiro, por isso aqueles sons, mesmo enfatizados, inserem-se num contexto natural. De qualquer forma se tratou de um experimento importante e todos atribuí- ram àqueles minutos iniciais uma solução genial. Naturalmente isso teve conseqüências também no meu ofício. Não digo que foi um raciocínio instan- tâneo, ao invés uma maturação lentíssima, quase imperceptível, mas, pouco a pouco, encontrei a chave para as soluções nascentes do episódio. Por exemplo, na escolha dos timbres e na redução dos materiais temáticos. To- dos os materiais que concorrem à agregação musical partem, talvez, daquela experiência Fiorentina. Lembrando de C’ERA UNA VOLTA IL WEST penso nas três notas da gaita de boca – sobretudo na peça ‘L’uomo dell’armonica’ – que eram assim necessárias próprio em sua auto-redução extrema, e que comportavam diversas implicações: a co-existência de nível externo e nível interno, o valor simbólico que aqueles três sons assumem na história e por isso as suas reiterações obsessivas. (Idem)

4.16 - TEMAS PRINCIPAIS (LEITMOTIVS)

C'ERA UNA VOLTA IL WEST é considerado como um exemplo clássico tanto do cinema western quanto da utilização da música no cinema em geral. A articulação leitmotívica precisa dos temas musicais relacionados ao conceito estereotipado dos

351 principais protagonistas, bem como da sua integração macro-estrutural no filme, é reflexo direto da decisão de compor a música em pré-produção, antes das filmagens. O conceito do filme foi formulado por Leone como uma homenagem der- radeira ao western americano:

[Uma] dança da morte, [na qual] eu queria tomar todos os personagens mais estereotipados do Western americano – por empréstimo! [1] A melhor prostituta de New Orleans; [2] o bandido romântico; [3] o homem de negó- cios que se imagina como um pistoleiro; [4] o assassino que é meio homem de negócios, meio pistoleiro e que quer ingressar no novo mundo dos negó- cios; [5] o vingador solitário. Com esses cinco personagens arquetípicos mais estereotipados do Western americano, eu queria apresentar uma home- nagem ao Western e, ao mesmo tempo, mostrar as mutações pelas quais a sociedade americana passou naquele tempo. Assim, a história é sobre um nascimento e uma morte. [...] um afresco cinemático do nascimento de uma nação. (LEONE. In:FRAYLING, 2005:31)

Desse modo, na pré-produção de C’ERA UNA VOLTA IL WEST (antes do início das filmagens), Sergio Leone encomendou um tema para cada personagem “estere- otipado” do filme. Ennio Morricone compôs os temas utilizando as referências do di- retor na elaboração de suas idéias. Essa inversão no processo normal da composi- ção das músicas permitiu que Sergio Leone filmasse a ação dos personagens em torno de uma música existente, funcionando como referencial importante na “criação dos ritmos” e, muitas vezes, auxiliando os atores no entendimento de algumas cenas particulares. Ela também ajudou os atores a entenderem melhor seus personagens. A presença da música articula a trama do filme, de acordo com os perso- nagens ou conceitos que representam, amplificando as suas relações. Se nos filmes de Leone a peculiaridade e o ritmo dos olhares e os silêncios são elementos funda- mentais na construção da expressividade poética, a música torna esses olhares e silêncios muito mais expressivos: quase tudo é pontuado pela música. De fato, neste filme, mais que nos anteriores, a música é um elemento que motiva e traduz o com- portamento dos personagens de modo direto ou indireto. Morricone recorre as características da tri-partição dos filmes anteriores, na elaboração de cada um dos temas. Porém, à pedido de Leone, a música deveria fixar-se em padrões mais sóbrios e convencionais.

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C’ERA UNA VOLTA IL WEST é, de certa forma, o ápice da visão western de Sergio Leone. Com este filme o diretor queria romper com o clichê da “tri- logia dos dólares” que o havia levado ao sucesso. O filmme todo é permeado por uma espécie de languidez agonizante; o efeito sonoro é mais suave e “parado”; mesmo o assovio de Alessandro Alessandroni ocorre numa vari- ante mais sóbria em relação aos outros westerrns. (MORRICONE, 2007:66)

A figura abaixo sintetiza a conexão entre os segmentos da tri-partição e os temas solicitados por Leone:

Figura 84 – Leitmotivs de C’era una vvolta il West (1968)

4.16.1 - Jill (Claudia Cardinale): “A melhor prostituta de New Orleans” Jill se casou “secretamente” com Brett McBain (Frank Wolff). Quando ela chega ao rancho da família em Sweetwater para iniciar a noova vida junto ao marido e seus três filhos, encontra-os todos mortos, assassinados brutalmente por Frank e seu bando. Em torno dela, e da terra que herda do marido, orbita toda a trama princi- pal do filme, intere -relacionada com os demais personagens masculinos. A música de seu leitmotiv “empresta” à personagem Jill um tom esperan- çoso e angelical, mas, exorbitando o escopo da própria personagem, transforma-se

353 na síntese do próprio filme, um símbolo que aponta para o futuro de uma sociedade em formação.

Desse modo, o leitmotiv de Jill e o do filme C’ERA UNA VOLTA IL WEST, é o mesmo.

Figura 85 – Tema do filme e leitmotiv de Jill

A música possui uma melodia "romântica", muito "doce", fortemente carac- terizada pela presença do tratamento orquestral sinfônico e da voz da soprano Edda Dell'Orso sem texto. O caráter da música é associado à bondade de Jill, mas, tam-

354 bém sua solidão, uma representação irônica do atual caráter quase religioso da per- sonagem em comparação ao de seu passado. No ponto de vista do filme, a música simboliza uma relutante esperança que contrasta com o ambiente de violência e mor- te. No curso de Musica per film, Chigiana, Siena-Itália, Morricone foi indagado por um dos presentes sobre a utilização constante da voz de Edda Dell’Orso e a ten- dência natural ao desgaste revelado num “sentimentalismo” contrastante com a sua tendência à constante experimentação, Morricone concordou:

É verdade, a usei demais. A utilizei 10, 15 vezes, porém, outros abusaram de maneira nem sempre adequada (com algumas exceções, nas quais foi utiliza- da muito bem) e isso provocou mesmo uma inflação. Em certo momento não se podia mais. Porém, deve-se ter em conta o fato de que o público da época a apreciava muitíssimo, mas, sobretudo se deve pensar em suas grandes qua- lidades e na capacidade de adaptar-se a todas as exigências. Eu a fiz fazer de tudo. Recordo-me de um arranjo de um samba em Fá menor, a história da folia de uma mulher que um dia depois do fim do carnaval ainda dançava, sua cabeça ainda permanecia figurada pelo carnaval. Harmonizei a peça de uma forma bastante normal e a voz contraponteava uma série dodecafônica com intervalos muito estranhos. Era dificílimo inseri-la num contexto tonal assim preciso, mas ela o fez com grande facilidade. Certo, os experimentos portam as soluções e as soluções a certo ponto se exaurem, por isso, ocorre transformá-las e renová-las.. (MORRICONE, 2001:169-170)

A tabela abaixo apresenta as 10 inserções do tema de Jill e do filme:

1 00:23:48 00:29:41 00:05:53 A chegada de Jill na estação de Flagstone Tema de Jill Fragmento 4

2 00:29:41 00:32:16 00:02:35 Monument Valey Tema de Jill Fragmento 5

3 00:46:11 00:51:12 00:05:01 Água Doce: A Fazenda McBain Tema de Jill Fragmento 8

4 00:51:12 00:53:29 00:02:17 Vasculhando a casa dos McBain Tema de Jill Fragmento 9

5 00:56:06 00:58:13 00:02:07 Vasculhando a casa dos McBain Tema de Jill Fragmento 11

6 01:11:27 01:14:05 00:02:38 De agora em diante não haverá mais surpresas Tema de Jill Fragmento 14

7 01:34:08 01:34:58 00:00:50 Jill recebe a madeira da Estação Tema de Jill Fragmento 20

8 01:41:50 01:46:47 00:04:57 Jill e Frank Tema de Jill Fragmento 24

9 02:30:41 02:36:09 00:05:28 A despedida de Jill e Cheyenne Tema de Jill Fragmento 39

10 02:40:08 02:44:31 00:04:23 A chegada do primeiro trem Tema de Jill Fragmento 41

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4.16.1.1: Jill chega à estação O tratamento que Morricone deu ao tema de Jill, desde a apresentação da personagem descendo do trem na estação de Flagstone, e as recorrências posterio- res, com ou sem variação, utilizadas durante toddo o filme, revelam a importância cen- tral que a personagem adquire na narrativa do fillme. Na apresentação da personagem Jill, um apito de uma chaminé saindo fumaça (inicialmente fora de foco) revela um trem que chega e para na estação de Flagstone.

Figura 86 – Chegada do trem eem Flagstone

Quando o som de sua chegada se toorna mais ameno, ouve-se, misturado com as sonoridades "naturalísticas" do ambiente da estação e da cidade, L'orches- traccia, um ragtime no estilo de Scot Joplin, em Ré Maior, arranjado como se fosse um "country", que Morricone escreveu como a única peça de ambientação, portanto, secundária na organização temática da trilha muusical. A melodia e a execução, pre- sumivelmente diegética, está a cargo de um grupo de instrumentos tradicionais: a melodia é executada por uma rabeca (um violino tocando no estilo fiddle), um banjo no acompanhamento, intervenções de um portamento de uma flauta doce com êm- bolo e uma tuba realizando a linha do baixo. De modo anempático, a música com características jocosas e festivas, ambienta o clima inicial da cena, mas, destoa completamente, da narrativa que segue.

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Figura 87 – Chegada de Jill

Jill desce do trem, sorridente. Ela veio de New Orleans, com quem casou secretamente com um dos seus clientes, Brett McBain. Ela veio para Flagstone mo- rar com ele e seus três filhos em Sweetwater, a fazenda doos McBain. Jill olha entorno, procurando reconhecer seu futuro filho que, como combi- nado com o marido, viria buscá-la. Enquanto procura, um homem pergunta se são suas algumas malas. Ela diz que sim. Seu rosto começa a mostrar traços de preocu- pação. Como ninguém aparece, ela se dirige para o lado externo do escritório central da estação juntamente com dois homens que carregam as suas malas. Ela, sem entender, procura por entre índios e homens que passam por perto. Então, ela para num local olhando fixamente para o relógio da estação de Flagstone. L'orchestraccia é propositalmente cortada em FADE OUT, juntamente com as sonoridades "natura- lísticas", ouve-se um som pedal grave da nota Ré e a introdução de seu leitmotiv em terças paralelas executadas por uma celesta e vibrafone, como se fosse uma caixi- nha de música.

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Figura 88 – Início do “Tema de Jill”

Seu olhar está completamente transformado peela preocupação. Ela tira o seu relógio de bolso para confirmar o horário (os dois relógios marcam horários dife- rentes). Na repetição da melodia em terças, com a entrada das cordas como acom- panhamento, ela olha mais um pouco para o trem e para a estação, agora vazia. Quando sua música inicia a melodia principal, solada pela voz de Edda Dell'Orso, ela começa a caminhar na direção da saída da estação. Ela entra no escritório central e pergunta alguma coisa para o atendente, seguinddo em direçção à porta de saída. Uma câmera, capta as imagens por uma janela do lado de fora do escritório.

Figura 89 – Saindo da Estação de Flagstone

No momento em que ela vai passar pela porta de saída, gentilmente aber- ta pelo atendente, a música inicia uma pequena ponte com as trompas num crescen- do para um tutti orquestral com sentido de retomar novamente a melodia principal. Sincronizada com a música, a câmera num movimento ascendente, passa por cima do escritório da estação, revelando, em panorâmica, todo o West de Sergio Leone.

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Novamente, qualquer roteirista teria grande dificculdade em descrever com palavras esse momento cinematográfico que pode ser definido, tecnicamente, por Lebhafftt221.

Morricone comenta essa cena da chegada à estação:

O compositor pode dar ao diretor sinais sonoros dos pretextos de sincronias potenciais. Quando Leone me contou o filmme, absolutamente não me disse nada que existiria um relógio enquadrado no edifício da estação. Para essa cena eu tinha composto a introdução da peça com vibrafone e celesta, e ele fez a escolha casual tornar-se o som de um relógio. A atriz passa do local dos trens nos trilhos por dentro do escritório para sair da estação, por uma porta. A cena também é um exemplo de eficácia da trilha musical, mas, tam- bém de sintonia com o diretor. Criei a peça, o tema de Jill, e uma ponte mu- sical com um crescendo que leva a recorrência da melodia principal. Leone transformou essa ponte musical numa ponte cinematográfica. (MORRICO- NE, 2007:65)

Do lado de fora da estação, no centro de Flagstone, a música inicia a re- petição da melodia principal do tema de Jill nas cordas, acompanhada pela orquestra e um coral, com Jill numa charrete alugada que a conduzirá, através do deserto, à fazenda dos McBain. No momento em que a charrete está saindo da cidade, a músi- ca termina. O condutor da charrete pergunta: “Qual é o nome do lugar?” Jill respon- de: “Água Doce (Sweetwater). O condutor não conhece o lugar e Jill enfatiza: “É a fazenda do Brett McBain”. Então o condutor diz: “Mcbain? Claro. Aquele irlandês tei-

221 A palavra alemã “lebhaft” pode ser utilizada como o nome dde um movimento de uma peça (por exemplo, o terceiro movimento de Trauermusik de Paul Hindemith) ou como uma diretiva para executar certa passagem de uma composição musical de uma forma muito enérgica. Cinematograficamente, esse termo foi utilizado por Spi- elberg referindo-se à música de John Williams na famosa seqüência em que as bicicletas voam na fuga do E.T., o Extra Terrestre. (DVD2 – Bonus – ET. o Extraterrestre, Edição de Colecionador).

359 moso que tem aquele lote de areia no meio do nada. Água Doce! Só um louco como ele chamaria aquilo de Água Doce”. Um tremulo do acorde de Sol# aumentado pon- tuado por sons graves da orquestra e um ostinato nos cellos com as notas Mi, Sol#, Lá, sublinha o tom de preocupação de Jill com as informações obtidas enquanto que as imagens da saída da cidade mostram no horizonte o deserto, dessa vez, da “ver- dadeira” paisagem dos westerns americanos. O acorde aumentado é transformado numa variação da ponte anterior le- vando novamente para a melodia principal do tema de Jill. A música novamente se expande de forma aberta, acompanhada pela imagem da charrete passando pelo Monument Valey e do trabalho dos operários na construção da estrada de ferro, o momento de transição por que passa a comunidade antiga do western, enfocado por Leone. A música termina com a charrete parando em uma estalagem.

4.16.1.2: Todos mortos No momento em que Jill chega na fazenda e encontra todos mortos, inicia seu leitmotiv. A música articula toda a seqüência onde Jill revela que estava casada com Brett McBain e, portanto, era agora a Sra. McBain. No momento do enterro do marido e dos três filhos a música termina numa coda, finalizando a música e a cena.

4.16.1.3: Jill chega em casa. Funeral e solidão Essas cenas são inteiramente dedicadas a destacar a impressão de sur- presa e solidão inesperada de Jill. A música utiliza três variações de seu leitmotiv sem a natureza expansiva que dispunha anteriormente, articulado à natureza intros- pectiva da personagem.

4.16.1.4: Epílogo e créditos finais Na cena final, a chegada do trem a Sweetwater representa a chegada de um futuro que sepulta definitivamente o passado, imprimindo-se na visão do início de uma nova era. A música de Jill, em seu ápice, transforma-se definitivamente na mú- sica do filme, articulando a visão do futuro, finalizada numa impressão de “um filme já

360 visto antes, em algum lugar, mas, com a percepção de que nunca com a história con- tada da mesma maneira”.

4.16.2 - Cheyenne (Jason Robards): “O bandido romântico” Cheyenne é um bandido triste e solitário que procura viver a vida com sa- bedoria. Ao contrário do que sugere o momento da apresentação do personagem, ele possui grande inteligência e “ética”. Um homem de ação, como demonstra ao matar os homens de Frank e Mr. Morton no trem. Acaba por manter uma grande re- lação afetiva com Jill e uma relação muito curiosa com Gaiita, sobre o qual deixa cla- ro que “tem algo a ver com a morte”. O tema de Cheyenne utiliza um piano de saloonn e um banjo acompanhan- do a melodia assoviada por Alessandro Alessandroni. Portanto, na perspectiva da tri- partição do primeiro filme, esse tema é derivado do “modo arcaico” ou “primitivo”.

Figura 90 – Leitmotiv de Cheyenne

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O tema de Cheyenne é bem-humorado e leve. O acompanhamento do pi- ano e do banjo com o ritmo do “galope de um cavalo”é o que mais marca a associa- ção com o protagonista, mas que pode variar de caráter, dependendo do entorno da situação. A precisão do acompanhamento se transforma em função da confiança que sugere o personagem. Assim, enquanto não se conhece o personagem, na sua apresentação, soa sombrio. Porém, na medida em que as inteções de Cheyenne vão se tornando mais claras, principalmente através da relação com Jill, o tema adquire um caráter jocoso e casual. No momento de sua morte, Cheyenne solicita a Gaita que vire de costas enquanto ele morre, ferido por um tiro, fora da vista de Sweetwa- ter. No momento de seu falecimento, seu tema também é utilizado ironicamente, pois Morricone escreveu estrategicamente uma pausa geral de um compasso inteiro, pró- ximo a cadência final, para destacar o exato momento de sua morte.

A tabela abaixo apresenta as 9 inserções do tema de Cheyenne:

1 00:32:39 00:46:11 00:13:32 Estalagem: Cheyenne e Gaita Tema do Cheyenne Fragmento 6

2 00:58:13 01:06:02 00:07:49 Encontro de Jill com Cheyenne Tema do Cheyenne Fragmento 12

3 01:14:05 01:19:03 00:04:58 Jill e Gaita Tema do Cheyenne Fragmento 15

4 01:28:24 01:34:08 00:05:44 Morton, Gaita e Cheyenne Tema do Cheyenne Fragmento 19

5 01:53:35 01:55:37 00:02:02 Continuação do Leilão Tema do Cheyenne Fragmento 27

6 01:55:37 01:57:22 00:01:45 Vagão do trem de Morton / Cheyenne vai preso Tema do Cheyenne Fragmento 28

7 02:14:09 02:15:29 00:01:20 Os trilhos chegando na Fazenda MCBain Tema do Cheyenne Fragmento 32

8 02:20:45 02:21:54 00:01:09 Jill e Cheyenne Tema do Cheyenne Fragmento 35

9 02:36:09 02:40:08 00:03:59 A morte de Cheyenne Tema do Cheyenne Fragmento 40

4.16.2.1: Cheyenne e Gaita na estalagem Na cena dentro da estalagem, Cheyenne é apresentado pelo seu leitmotiv. Após o som de cavalos e tiros (diegéticos e offscreen), a porta da estalagem é en- quadrada com o início do leitmotiv de Cheyenne que entra na estalagem de costas. Ele se aproxima do balcão e pede uma garrafa. Tira a rolha com o dente e, no movi- mento de erguer os braços, percebe-se que ele está algemado. O tema termina am-

362 plificando seu olhar tenebroso e sombrio. Ouve-se o som diegético de uma gaita de boca em fade in anunciando a presença de Gaita. Cheyenne procura a fonte da me- lodia, arremessando um lampião na direção do canto do balcão de onde o som pa- rece vir. A parada do lampião é o ponto exato da sincronia entre o rosto de Gaita, que toca seu instrumento sentado no balcão, e a entrada do som distorcido da guitar- ra com a melodia de Frank. Cheyenne repara no tiro que Gaita levou. Enquanto a música toca Cheyenne arremessa um revólver a Gaita como se fosse um diálogo. Na finalização da música Gaita, somente com dois dedos, gira o revólver no balcão para a direção oposta a dele. Ele volta a tocar o seu leitmotiv. Nesse momento um homem que está sentado numa cadeira da estalagem tenta sacar um revólver contra Che- yenne. Seu leitmotiv retorna com a reprova do bandido que afirma ao desconhecido: “Você não sabe tocar”. É interessante notar que o primeiro diálogo entre Gaita e Cheyenne foi todo construído com os seus respectivos leitmotivs.

4.16.2.2: Cheyenne invade a casa de Jill A entrada de Cheyenne na casa de Jill é anunciada pelo tema do bandido, a melodia principal é executada por um banjo com um acompanhamento de uma no- ta pedal (Lá aguda) e acordes sustentados pelas cordas da orquestra. A inserção cria um tom ambíguo que não revela as intenções de Cheyenne, mas, a posição de fraqueza de Jill: sua casa, seu espaço privado foi invadido por um estranho e pela música do estranho. Mas, curiosamente, logo depois do diálogo entre os dois, a mú- sica anuncia que Jill recuperou o controle sobre seu espaço e que Cheyenne se ren- deu aos seus encantos, transformando-se em jocosa e “galopante”.

4.16.3 - Mr. Morton (Gabrielle Ferzetti): “O homem de negócios que se imagi- na como um pistoleiro” Mr. Morton é um astuto empresário que tem como sonho levar a estrada de ferro desde o Atlântico até o Pacífico. Na trajetória, com o respaldo de seu fiel escudeiro contratado, Frank e sua gangue, ele não mede esforços para obter vanta- gens comerciais em “transações”, muitas vezes, pouco ortodoxas. Devido a uma do-

363 ença degenerativa (tuberculose óssea), Mr. Morton vive num vagão de trem adapta- do às suas necessidades especiais. Seu leitmotiv compõe uma melodia curta e de caráter modal, associado ao seu desejo de chegar até o mar.

Figura 91 – Leitmotiv de Mr. Morton

Na organização temática da trilha mussical do filme, o leitmotiv de Mr. Mor- ton pode ser classificado como secundário, pois mesmo que também seja um leitmo- tiv, o poder centralizador dos demais temas, priincipalmente pelo destaque e quanti- dade de utilizações, relegam-no, inevitavelmente, a uma posição menos evidente. Na música de Mr. Morton o compositor Morricone integra o som das onddas do mar, re- presentando o objetivo do desejo do personagem: levar a estrada de ferro até o Oceano Pacífico. Durante o filme, o Barão da estrada de ferro Mr. Morton tenta ado- tar os métodos do pistoleiro Frank sem obter sucesso. Ele não consegue realizar seu sonho e, ao invés, morre rastejando como uma cobra em direção a uma poça d’água no deserto. Seu canto fúnebre é o seu próprio leitmotiv, a mesma música introduzida sob seu olhar longínquo numa pintura do oceano. Na referida tri-partição do primeiro filme, como o tema de Jill, ele também é derivado do modo “pseudo-sinfônico”. A tabela abaixo apresenta as 3 inserçõões do tema de Mr. Morton:

1 01:35:29 01:37:27 00:01:58 Morton e Frank Tema do Morton Externa Fragmento 22

2 01:49:15 01:53:35 00:04:20 Morton no vagão do trem Tema do Morton Externa Fragmento 26

3 02:09:59 02:14:09 00:04:10 A Morte de Morton Tema do Morton Externa Fragmento 32

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4.16.4 - Frank (Henry Fonda): “o assassino que é meio homem de negócios, meio pistoleiro e que quer ingressar no novo mundo dos negócios”; e Gaita (Clarles Bronson): “o vingador solitário” Morricone não conseguiu se livrar completamente da exigência de um te- ma para o confronto final (o duelo), mas, conseguiu pulverizá-lo na trilha musical associando a peça aos dois personagens que estão envolvidos no duelo final: Gaita e Frank. Desse modo, a música que serve como leitmotiv para os dois personagens porta, em contraponto, as duas referências melódicas dos personagens, num tema ameaçador, o único que conserva todas as características da tri-partição original do primeiro filme. O tema que parece ser de Gaita, de fato não pertence apenas ao perso- nagem. Ele é utilizado como memória de um passado que tem de ser vingado. É o tema de uma idéia, um conceito muito preciso, que envolve os dois personagens (Gaita e Frank). Assim, a ambivalência do tema, que, a priori, pode parecer estranha, pontua tanto a intenção dos atos reprováveis de Frank quanto a necessidade que sejam interrompidos por Gaita.

O dispositivo interno (diegético) criado no filme PER QUALCHE DOLLARO IN

PIÙ: o tema criado por Morricone a partir da melodia que imitava o som de um relógio de bolso que representou a relação estabelecida na narrativa fílmica entre Índio, o

Coronel Mortimer e uma mulher assassinada; é recorrente em C'ERA UNA VOLTA IL

WEST, a melodia obstinada da gaita de boca torna-se o símbolo do ódio e da vingan- ça que movem Gaita contra Frank. Ela materializa-se no próprio instrumento que o personagem de Charles Bronson mantém em seu pescoço durante todo o filme com o propósito de “devolvê-la” ao seu legítimo proprietário no exato momento de sua morte. Gaita é o personagem que herda as características do “homem sem no- me” interpretado por Clint Eastwood nos três filmes anteriores. Os traços étnicos evi- dentes no rosto do ator tornaram-no perfeito para, no filme de Leone, interpretar o último representante de “uma antiga raça”. De forma análoga aos personagens inter- pretados por Clint Eastwood na primeira trilogia, durante o filme não é possível saber

365 o que ele busca nem quem ele é. É um personagem sem nome, solitário, quase sempre calado e que aparece quando menos se espera. As únicas evidências de sua personalidade é a sua marcada hostilidade em relação ao pistoleiro Franck e o nome pelo qual passa a ser chamado no filme: “Gaita” (“Harmonica”, em italiano), referên- cia ao instrumento que ele carrega pendurado no pescoço e, no qual, executa diege- ticamente com constância uma obstinada melodia de três notas (Mi, Dó e Mib).

Figura 92 – Motivo do personagem Gaita

Quando a música é utilizada externamente (não-diegética), Morricone em- prega conjuntamente com essa melodia da gaita de boca, uma figura como acompa- nhamento, inicialmente na viola, onde realiza permutaçõess das três notas numa figu- ra de quatro colcheias, uma técnica recorrente desde o primeiro filme, mas que se acentuou marcadamente no filme anterior. Ao leitmotiv de gaita é acrescentada em contraponto uma melodia executada por uma guitarra elétrica com distorção no modo de Lá eólio, mas, como no primeiro filme, dúbia em relação à tonalidade de Lá menor ou, até um Mi frígio. O motivo pelo qual o instrumento é utilizado pelo personagem só será re- velado no final do filme, nas imagens do último duelo. Nas seqüências finais do filme, a insistência na superposição dos temas de Gaita e Frank que pontuou todo o filme, revela que fatalmente os dois se encontrariam para decidir as suas velhas pendên- cias. Frank não obteve sucesso em promover sua transformação de um pistolei- ro para um homem de negócios. No momento de sua morte, ele se dá conta que ele é “somente um homem”, enquanto também descobre exatamente quem é seu inimi- go: a gaita, enfiada em sua boca, executa o seu estertor de morte.

366

Figura 93 – Leitmotiv de Gaita e de Frank

A peça completa foi concebida por Morricone como portadora do “julga- mento final”. Ela também é ouvida completa na cena do massacre da família dos McBain. Na cena do duelo final, Morricone substitui a guitarra distorcidda pelo trompe- te no estilo mariachi como no “Deguello”. Porém, dependendo das circunstâncias, o tema é apresentado completo ou fragmentado, inclusive com a separação e/ou vari- ação dos dois motivos. A tabela abaixo apresenta as 14 inserções do tema de Gaita e Frank:

1 00:09:53 00:14:18 00:04:25 Apresentação de Personagem Gaita Tema do Gaita e Fraank Fragmento 2

2 00:14:18 00:23:48 00:09:30 O Massacre dos McBain Tema do Frank e Gaaita Fragmento 3

3 00:32:39 00:46:11 00:13:32 Estalagem: Cheyenne e Gaita Tema do Gaita e Frank Fragmento 7

4 00:56:06 00:58:13 00:02:07 Vasculhando a casa dos McBaain Tema do Gaita Fragmento 11

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5 00:58:13 01:06:02 00:07:49 Encontro de Jill com Cheyenne Tema do Frank Fragmento 12

6 01:14:05 01:19:03 00:04:58 Jill e Gaita Tema do Gaita; Fragmento 14

7 01:20:57 01:28:24 00:07:27 Morton, Frank, Wobbles e Gaita Tema do Gaita e Frank Fragmento 18

8 01:57:22 02:03:06 00:05:44 Gaita e Frank Tema do Frank e Gaita Fragmento 29

9 02:09:59 02:14:09 00:04:10 A Morte de Morton Tema do Frank Fragmento 31

10 02:15:29 02:16:57 00:01:28 Jill e Cheyenne Tema do Gaita Fragmento 33

11 02:16:57 02:20:45 00:03:48 Frank e Cheyenne Tema do Frank Fragmento 34

12 02:21:54 02:24:49 00:02:55 O ajuste final Tema do Gaita e Frank Fragmento 36

13 02:24:49 02:28:17 00:03:28 Flashback de Gaita Tema do Gaita e Frank Fragmento 37

14 02:28:17 02:30:41 00:02:24 A morte de Frank Tema do Gaita Fragmento 38

4.16.4.1: Gaita enfrenta três homens armados O personagem Gaita é apresentado primeiramente pelo seu leitmotiv, o fragmento do tema que referencia o foco da relação de ódio de Gaita por Frank. No momento da melodia de Frank ela é variada e executada lentamente. Quando Gaita para de tocar e pergunta por Frank inicia o tema como uma melodia crepuscular, afli- ta, executada sem a gaita de boca, com um tom ameaçador e sinistro, que acaba pouco antes do tiroteio. Os três homens são mortos por Gaita.

4.16.4.2: O assassinato da família MacBain O leitmotiv de Frank e Gaita é utilizado no momento do assassinato da família McBain por Frank e sua gangue. Os dois leitmotivs sobrepostos com o som da gaita de boca e da guitarra distorcida são acompanhados pela orquestra e um coral, revelando-se num tom muito mais agressivo, ameaçador e épico. A música é definitivamente associada à denúncia da violência e da morte, sacralizando-a como ritual, o ritual da morte, característica que será recorrente em todo o filme. Essa é a fazenda dos McBain em Sweetwater (Água Doce). Será o lugar central do filme. Brett (o pai dos McBain), Jimmy, Maureen, Patrick, seus filhos, pre- param uma festa de recepção para Jill. Patrick é incumbido pelo pai de buscá-la ("sua mãe") na estação. Ele confronta o pai afirmando que ela não é a mãe (nossa mãe morreu faz 6 anos); /// Ouve-se uma revoada de pássaros e um tiro. Maureen cai morta. O pai é atingido e morto, Patrick é atingido e morto, na entrada de Jimmy na varanda o tema de Frank Inicia; Frank dá uma cuspida; Frank mata Jimmy; Corte no tiro

368

4.16.4.3: Gaita salva Jill aos olhos de Cheyenne Na ameaça de dois homens de Frank à cavalo se aproximando e são eli- minados por Gaita o que o torna, aos olhos de Jill e de Cheyenne (que observou a cena à distância) um personagem de confiança. Quando morreu, a primeira edição aparece Cheyenne impacto no lado positivo, e não será mais alterado.

4.16.4.4: Primeiro encontro entre Frank e Gaita O flashback que é inserido após o primeiro encontro entre os dois perso- nagens inclui um fragmento da gaita (tema de Frank e Gaita), de forma indireta. É a primeira vez que se ouve o tema de Gaita executado por outra pessoa, que referen- cia a origem da existência do tema, como se aplica a um evento do passado, ainda não é esclarecido, mas, é uma a evidência que relaciona os dois. Na entrevista, ela soa a segunda parte do tema, que não tem harmônico, e reforça a relação da música com as duas personagens.

4.16.4.5: O duelo final A cena do duelo é uma montagem paralela entre o tempo real do confron- to e o tempo em flashback que, finalmente, revela o motivo do duelo pela articulação do do leitmotiv musical. Tempo do duelo: A música inicia com a figura do ostinato da viola (sem as notas iniciais da gaita de boca), num crescendo constante, enquanto Frank e Gaita se dirigem ao centro de uma arena redonda (como nos filmes anteriores). Os dois se olham atentamente. Frank gira em torno de Gaita que permanece mais fixo. A músi- ca consegue dotar a cena de um caráter de ritual, enfatizado pela presença das vo- zes sem palavras. Desde sua primeira inserção ela portou a razão do encontro entre os dois personagens. Esse é o momento de resolução, a explicação das intenções do personagem Gaita por todo o filme. No diminuendo da música, Gaita se aproxima mais de Frank. Os dois estão agora em posição. A música termina. O som do vento se faz presente. A imagem em plano fechado mostra o rosto de Frank. Tempo do flashback: Num close extremo no rosto de Gaita, as notas de seu leitmotiv são "dolorosamente" apresentadas enquanto a imagem mostra, em

369 flashback, o rosto de um homem barbudo. É o rosto de Frank, bem mais moço. Ele tira uma gaita de boca do bolso da camisa e o som da gaita se mistura ao som do vento e da entrada do ostinato da viola. Tempo do duelo: A imagem volta em plano fechado no rosto de Gaita. Um zoom aproxima cada vez mais o rosto até que somente os seus dois olhos estejam enquadrados na tela inteira. Um violoncelo anuncia a melodia de Frank e a volta ao momento do flashback. Tempo do flashback: Frank, com a gaita na mão diz para um jovem rapaz: "Mantenha o seu irmão feliz". Ele enfia a gaita na boca do menino que esta imóvel e soando muito. A guitarra distorcida inicia a melodia de Frank enquanto a imagem vai abrindo para mostrar a cena patética de um rapaz em pé e com as mãos amarradas para trás, sustentando em seu ombro um homem com uma corda no pescoço presa numa espécie de arco (parecido com um arco romano) ao lado do Monument Valey. Dois homens armados observam, um em cada pilar curvado do arco. A camêra afas- ta até uma panorâmica e a imagem é cortada em plano fechado para o rosto de Frank barbudo. No corte para o rapaz com a gaita na boca, percebe-se que ele está exausto e tremendo muito. A câmera em Pan up chega ao rosto do homem com a forca no pescoço. Numa tomada oposta, de cima para baixo, vê-se o homem balan- çando. O rapaz balança muito, tentando se manter em pé, mas olha para os olhos de Frank. Ele está com um sorriso sarcástico nos lábios. Numa seqüência de cortes muito rápidos, todos os rostos são mostrados, até os olhos do menino parar a se- qüência preenchendo toda a tela. O corpo do menino cai no solo empoeirado em slow motion enquanto Frank sorri. Na queda a gaita cai de sua boca. A música termi- na ficando o som intermitente de um sino (o mesmo do primeiro filme). Tempo do duelo: Os dois, no tempo real, são muito rápidos, ouve-se dois tiros, quase que simultâneos. A imagem mostra o rosto de Frank em plano fechado. Frank está cambaleante. A imagem é cortada para o rosto de Jill dentro da casa que apresenta um olhar de preocupação. Cheyenne que se barbeava com uma navalha se corta. A imagem volta para a cintura de Frank, tentando colocar a arma no coldre. Ele não consegue e derruba a arma no chão. Cambaleando, ele cai de joelhos, de

370 costas para Gaita que se aproxima. Sem poder resistir ao ferimento, Frank cai de lado no chão. A câmera mostra o rosto de Gaita num ângulo de baixo para cima e, logo, corta para a tomada oposta, de Frank caído. Frank pergunta: "Quem é você?" Gaita arranca a sua gaita de boca do pescoço e se ajoelha na direção de Frank. Gai- ta enfia o instrumento na boca de Frank. A respiração de Frank reproduz no instru- mento o ostensivo leitmotiv. Frank segura a gaita nos seus dentes. O leitmotiv se tor- na estridente e desafinado. Tempo do Flashback: A imagem mostra novamente a queda em slow mo- tion do rapaz no solo empoeirado. Tempo do duelo: O leitmotiv fica mais rápido e desafinado enquanto o ros- to de Frank termina de desabar, derrubando a gaita de sua boca que corta o leitmo- tiv. Portanto, no flashback paralelo ao tempo do duelo, o instrumento e o leit- motiv do gaita são explicados: o instrumento era de Frank, que com extrema cruel- dade colocou em sua boca quando ainda era um rapaz e tentava em vão sustentar seu irmão nos ombros para que não morresse enforcado. Portanto, há uma ligação deliberada com o passado: tanto o leitmotiv quanto o instrumento são os símbolos de uma experiência traumática de Gaita quando adolescente. Em sua vingança, Gaita simplesmente coloca o instrumento na boca de Frank, resultando, com seu último suspiro, no som distorcido do tema que havia soado por todo o filme.

371

4.17 - A MÚSICA DE C’ERA UNA VOLTA L’ AMERICA – 1984 (ERA UMA VEZ NA AMÉRICA)

Julgo C’era uma volta in America um dos resultados cine-musicais mais importantes, não só da parceria Leone-Morricone, mas de todo o cinema do pós-guerra, e assim parece que lhe seja evidente o problema do obstáculo à renovação ou, se preferir, da persistência de modelos estilísticos testados e aprovados aos quais o diretor se afei- çoou. Entendi, mesmo que sem entusiasmo, a sensualidade dos vocalizes angelicais em C’era una volta Il West – compensados, por sorte, pela presença áspera e arra- nhada da guitarra elétrica no L’uomo dell’armonica –, enquanto que aquele mesmo erotismo enfadonho, em carta envernizada, ideal quanto inexistente, não o entendo – antes me incomoda – no último, extraordinário filme de Leone (Tema de Débora). O problema é estabelecer aonde termina o sentimento e começa o sentimentalismo. Pa- ra mim o sentimentalismo começa mesmo quando ataca a voz feminina. (MICELI, 2001:171)

4.17.1 - Ficha Técnica

4.17.2 - Comentários Iniciais Era Uma Vez na América (1984) foi o último filme dirigido por Sergio Le- one antes de seu falecimento em 1989. A gestação do filme, “o projeto dos sonhos” de Leone, exigiu do diretor muitos anos de trabalho antes do início das filmagens. O filme é baseado no livro “The Hoods” escrito por Harry Grey222. Leone projetava um filme com mais ambições que as do livro, de cunho mais biográfico.

Eu não queria contar estritamente a história de um gangster, como o livro faz. Queria fazer um filme sobre a recordação, o passar do tempo, a amiza- de, a solidão e a morte. As seqüências do meu filme são fragmentos de me-

222 Publicado em 1953, o livro é, em parte, autobiográfico. O autor foi um gangster de pequeno calibre nos anos 1920 e 1930. Harry Grey escreveu o romance durante um período de detenção no cárcere de Sing Sing. Leone teve em mente “The Hoods” como possível projeto desde a primeira vez que teve acesso ao livro, em meados da década de 1960. A história, tal como planejou o diretor, seguia a infância da personagem no bairro judeu de Nova York em 1923, depois, sua época como gângster em 1933 e seu regresso a cidade – e suas recordações – em 1968. Esta última parte não estava no romance. Precisamente em 1968, na estréia de “C’era una volta il West”, Sergio Leone e Fulvio Morsella encontraram com Harry Grey que então contava com 70 anos de idade. Encontra- ram-se num bar de ambiente duvidoso e foi ali que Leone descobriu claramente: “The Hoods” era uma autobio- grafia do próprio Grey. Ao imaginar como um antigo mafioso contemplaria sua vida desde a perspectiva da idade madura, aproximadamente 35 anos depois, Leone teve a idéia de acrescentar a “terceira idade” a história. (AGUILAR, N. Sergio Leone: Érase uma vez en América, 2002).

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mória que atravessam a consciência do protagonista, levando-o a descobrir uma realidade que ignorav. (LEONE223)

Em outra ocasião, Leone acrescentou:

A personagem central do filme será o tempo. Com o passar dos anos as per- sonagens mudam de aspecto e, às vezes, até de identidade. No entanto, per- manecem fieis ao seu passado e determinadas por ele. O tempo as separou, o tempo as enfrenta, o tempo volta a reuni-las. (LEONE224)

De forma análoga aos westerns, Leone extraiu da história e da sociedade americana do início do século 20 o eixo dramático que conduziu o roteiro. Sua abor- dagem se afastou radicalmente das de Coppola nos filmes COTTON CLUB (1984), THE

GODFATHER (O PODEROSO CHEFÃO, 1972) e THE GODFATHER II (O PODEROSO CHEFÃO II, 1974); como também se desviou de outros filmes sobre gangsters, geralmente mais centrados em cenas de ação (muitas vezes, violentas), mas sem grande reper- cussão sobre o próprio o gênero cinematográfico. Ao invés, Leone fez com o “filme de gangster” o mesmo que ERA UMA VEZ NO OESTE havia feito com os “filmes de wes- terns”. A diferença é que os gangsters não são estereótipos, mas são enfocados pri- meiramente como judeus imigrantes (descendentes do leste europeu) que, de fato, foram assentados em guetos no início do século 20, época do nascimento da New York contemporânea. Os períodos históricos abordados abarcam aproximadamente 50 anos, enfatizados nas décadas de 1920, 1930 e 1960 e, paralelamente a teleolo- gia da história principal, pode-se acompanhar o desmoronar do chamado “sonho americano”, ideologia que dificilmente deixa de encontrar reflexos nos próprios so- nhos, seja em âmbito pessoal como social.

Devido ao longo período de gestação de ERA UMA VEZ NA AMÉRICA, muitas das idéias musicais de Ennio Morricone foram “rascunhadas” e gravadas em “temp- tracks” no período de 1979 a 1982, e foi dessas idéias que a trilha musical definitiva se desenvolveu. A gravação aconteceu em Roma em dezembro de 1983 e grande parte dela foi utilizada por Leone nos sets de filmagens.

223 AGUILAR, C. Sergio Leone. Madri: Cátedra, 1990, pp. 126-127. Entrevista realizada em janeiro de 1985; In: FRAILE, J. R. Ennio Morricone: Música, Cine e Historia. Salamanca: Gráficas Verona, 2000, p. 204. 224 Idem, p.130, entrevista realizada em outubro de 1982.

373

A grande virtude da trilha musical sustenta-se na forma como se articula e auxilia a narrativa do filme. A narrativa de C’ERA UNA VOLTA L’AMERICA é composta por uma complexa teia de memórias, formada por sentimentos e lembranças do protago- nista Noodles, apresentadas em constantes flashbacks e flash-forwards dispostos em ordem não cronológica, estabelecendo o intrincado ciclo da história. Todo esse emaranhado gerou algumas especulações sobre se o filme está baseado em eventos “reais”, ou seja, vividos diegeticamente pela personagem, ou é um reflexo das aluci- nações induzidas pelo ópio, ingerido por Noodles na introdução e no final do filme.

4.17.3 - Sinopse Simplificando notavelmente, pode-se dizer que o filme narra a vida de um gangster conhecido por Noodles. Sem respeitar a ordem seguida no filme, que passa de um episódio temporal ao outro seguindo a linha dos pensamentos e dos senti- mentos de Noodles (a música ajuda a seguir essa linha), o eixo de toda a narrativa é construído pelo seu olhar. É através de seus olhos, de seus pensamentos e de seus sentimentos que se percorrem três períodos diferentes da sua vida: 1923, 1933 e 1968. Em 1923, era um rapaz de família pobre, sem instrução, que passa o seu tempo na rua com seus amigos, todos pequenos delinqüentes, realizando “serviços” para Bugsy, o chefe da gangue do bairro judeu. Durante um desses serviços, No- odles conhece Max. Entre eles nascerá uma profunda amizade, mas, sobretudo, a vontade de “serem independentes” de Bugsy, de não haver nenhum chefe. Assim cinco rapazes: Noodles, Max, Cockeye, Patsy e Dominic criam sua própria gangue que tem como sede o restaurante do pai de Fat Moe, outro amigo, cuja irmã, Débora, Noodles é apaixonado. Na ascensão da gangue de Noodles o confronto com Bugsy torna-se inevitável. Como resultado o pequeno Dominic é assassinado com um tiro por Bugsy. Em represália, Noodles o mata, passando dez anos na prisão pelo assas- sinato de Bugsy e de um policial que tentou interceder no momento do assassinato. Chega-se assim em 1933. No momento em que Noodles sai da prisão, depois de haver cumprido sua pena, reintegra-se aos amigos que continuaram com o

374 próprio “trabalho” da gangue, sob o disfarce de uma empresa de serviços funerários, e abriram um bar (speakease) clandestino nos fundos do restaurante que agora per- tence a Fat Moe. Porém, durante os dez anos, eles não se esqueceram do amigo Noodles, que mesmo na prisão, continuou a fazer parte da sociedade. Eles sustenta- ram a família de Noodles durante os 10 anos na prisão. Noodles retoma a sua vida de gangster e reencontra Débora. Ela foi a força de seu pensamento para resistir aos dez anos de prisão, mas, não obstante, o sentimento que perpassa entre os dois é de que não foram feitos para um para o outro, de permanecerem juntos. Débora quer realizar o próprio sonho de tornar-se uma estrela de teatro, mas Noodles, possessivo demais, não lhe permitiria, “lhe trancaria num local e jogaria a chave fora”. A vida da gang prossegue com a realização de vários “serviços” até o fim da “lei seca”. Nesse momento os quatro amigos temem pelo fim da sociedade, e Max tem uma idéia que rapidamente se torna uma obsessão: roubar o Federal Reserve Bank. Todos pensam que Max está enlouquecendo. Noodles e Carol, a namorada de Max, formulam um plano para salvar Max e a gangue. No projeto os quatro seriam surpreendidos e pre- sos pela polícia, durante um último “trabalho” com o transporte de bebidas. A prisão forjada da gangue daria tempo para Max recobrar a razão e esquecer a loucura sui- cida de roubar o banco. Porém, Max estava mais lúcido do que todos pensavam. Na tarde em que aconteceria a prisão da gangue, ele deu um jeito de retirar Noodles do “trabalho” que, dessa forma, seria realizado somente pelos três: Max, Cockeye e Patsy. O mecanismo da armadilha de Noodles, porém, falhou. Na intervenção da po- lícia os três amigos Max, Patsy e Cockeye são mortos. O corpo carbonizado de Max fica irreconhecível. Com um grande complexo de culpa e, perseguido pela Máfia, a Noodles não restou outra coisa que mudar de identidade e fugir sem nenhum dinhei- ro, pois, o dinheiro do “fundo de garantia” da gangue havia desaparecido misteriosa- mente. Em 1968, Noodles retorna a New York devido ao recebimento de uma car- ta, remetida pela sinagoga para que providenciasse a transladação dos corpos de Max, Patsy e Cockeye do cemitério hebraico, e um convite, para uma festa na casa de um político importante, conhecido como Senador Bailey. Evidentemente alguém

375 havia encontrado Noodles e o local onde se escondeu por todos aqueles 35 anos. O motivo do retorno de Noodles é saber quem descobriu e por qual razão. Ele desco- bre que quem o encontrou foi o Senador Bailey: o próprio Max. Max encenou a pró- pria morte para trocar de identidade e começar uma nova vida independente da gan- gue, mas, tendo feito um “jogo sujo”, se encontrava com problemas muito sérios que, como conseqüência, não apresentavam outra possibilidade que sua própria morte. Por esse motivo tinha pensado em Noodles: “não havia coisa melhor que morrer pe- las mãos de um amigo traído que, certamente, exigiria vingança”. Mas, Noodles re- cusa-se a vingança, pois numa tarde de 35 anos antes, Max havia salvo sua vida e, também, porque para ele o seu amigo Max havia morrido mesmo naquela tarde de muito tempo atrás. Ao “Senador Bailey” não resta outra coisa que morrer.

376

4.17.4 - Decupagem Na decupagem do filme existem 70 inserções musicais, totalizando 2 ho- ras 4 minutos e 48 segundos de música (o filme tem 3 horas e 49 minutos de dura- ção). 41 minutos e 43 segundos de música diegética; 1 hora 19 minutos e 2 segun- dos de música extra-diegética; 4 minutos e três segundos de música híbrida (com características diegéticas e extra-diegéticas) utilizadas em momentos denominados de “montagem sonora”.

4.17.5 - As faixas do CD das músicas do filme: “Once Upon a Time in Ameri- ca” A gravação, catalogada 7-4321-61976-2-0, lançado em 1998, não respeita a ordem de entrada das inserções na película. As 19 faixas do CD, com duração total de 1 hora, quatorze minutos e trinta segundos, são as seguintes:

Nº NOME DA FAIXA DURAÇÃO

1 Once Upon a Time in America 00:02:11

2 Poverty 00:03:37

3 Deborah's Theme 00:04:24

4 Childhood Memories 00:03:22

5 Amapola 00:05:21

6 Friends 00:01:34

7 Prohibition Dirge 00:04:20

8 Cockeye's Song 00:04:20

9 Amapola - Parte 2 00:03:07

10 Childhood Poverty 00:01:41

11 Photographic Memories 00:01:00

12 Friends 00:01:23

13 Friendship & Love 00:04:14

14 Speakeasy 00:02:21

15 Deborah's Theme-Amapola 00:06:13 Suite from Once Upon a Time in America (Includes 16 00:13:32

Amapola) [#]

17 Poverty [Temp. Version][#] 00:03:26

18 Unused Theme [#] 00:04:46

19 Unused Theme [Version 2][#] 00:03:38

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Em seu âmago, a trilha sonora musical é construída a partir da utilização de temas principais e secundários, pela forma como são conectados às relações pessoais do personagem principal (Noodles, interpretado por Robert De Niro) e, ain- da, diferenciados pelo modo de como são orquestrados e executados. Nesse senti- do, ERA UMA VEZ NA AMÉRICA é muito similar à ERA UMA VEZ NO OESTE, que também utilizou o mesmo conceito leitmotívico similar. Porém, em ERA UMA VEZ NA AMÉRICA, Morricone prescindiu dos traços tão característicos que o tornaram popular nos wes- terns italianos, dando lugar a uma trilha musical com características mais românticas e melancólicas que, na época, pretendeu ser fiel aos três momentos temporais em que se remetem o filme: 1923, 1933 e 1968. Morricone construiu uma partitura que sublinha tanto as relações tempo- rais específicas quanto algumas mais genéricas. Uma das referências temporais está no estilo jazzístico próprio de New Orleans dos anos 20 e 30. Esse estilo gera um tom irônico quando contraposto ao restante da música da trilha musical, dotando o filme de um profundo sentimento nostálgico. Os temas compostos por Morricone, além de identificar relações com per- sonagens, buscam expressar o tempo em suas marcas principais: a pobreza da in- fância e da juventude dos protagonistas, a “eterna” amizade, o ideal de perfeição de um amor inatingível e, finalmente, o cansaço, solidão e a desilusão. Um dos fatores coercitivos da trilha musical está nas tonalidades escolhi- das dos principais temas, o primeiro em Mi menor, três em Mi Maior e “Amapola” em Lá Maior, respectivamente. Cada um deles possui intrinsecamente as qualidades modulares, ou seja, pode ser combinado, com ou sem variação e em qualquer or- dem, com os demais. Como já foi abordado, esse método de composição permite que cada in- serção seja fácil e imediatamente reconhecível, mesmo quando em seqüências muito breves em que os temas não são apresentados completos, mas, mediante a poucos fragmentos. Trata-se de um fator que permite a valorização em grau máximo do ele- mento musical e, conseqüentemente, também do filme. Tudo isso representa certa

378 adaptabilidade da própria música, pois, pelo fato de ser construída de modo fragmen- tário permite adaptar-se aos episódios fílmicos, também muito breves, sem perder a própria identidade.

Como em C’ERA UNA VOLTA IL WEST (ERA UMA VEZ NO OESTE), a trilha sonora musical de C’ERA UNA VOLTA L’AMERICA (ERA UMA VEZ NA AMÉRICA) propõe “velada- mente” o ritmo do filme. Os temas serviram para a marcação das cenas no set de filmagem, e na montagem final são retomados, na maioria das vezes, integralmente. A trilha musical é dividida em temas pré-existentes e originais que, de acordo com a importância nas inserções, assumem distinções primárias ou secundá- rias.

4.17.6 - Temas pré-existentes Peças já existentes, normalmente conhecidas e de outros autores, utiliza- dos por Morricone e Leone no filme principalmente como música diegética. Leone desejava canções, porém, sem letra, que fizessem referências históricas precisas, mas, sobretudo que fossem capaz de evocar o sentimento nostálgico do próprio fil- me. A escolha foi: "Summertime” (Porgy and Bess – George Gershwin); “Night and Day” (Cole Porter); “Yesterday” (John Lennon e Paul McCartney); “Amapola” (Joseph M. La Calle). Um caso a parte foi a escolha da Abertura da ópera “La Gazza Ladra” de Gioacchino Rossini, escolhida por Carla Leone, esposa do diretor Sergio Leone. Somente uma das canções é utilizada com letra no filme: “God Bless Ame- rica" (composta por Irving Berlin).

4.17.6.1: God Bless America Irving Berlin, judeu imigrante da Sibéria (Rússia) para os E.U.A., em 1893, um dos grandes precursores na composição de canções americanas no século 20, compôs originalmente a canção "God Bless America" em 1918, tendo em mente fa- tos e eventos associados diretamente à Primeira Guerra Mundial. A mãe de Berlin utilizava com freqüência a expressão "God Bless America" para expressar a gratidão que sentia pelo país. No outono de 1938, quando a segunda guerra ameaçava a Eu-

379 ropa, Berlin decidiu escrever uma "canção de paz". Ele resgatou a canção que havia composto e fez algumas alterações no sentido de "refletir o estado diferente do mun- do". "God Bless America" foi gravada e executada no rádio pela cantora Kate Smith durante o "Armistice Day" (11 de novembro de 1938). Berlin afirmou que escreveu a canção com o objetivo de expressar sua gratidão à America por todas oportunidades que lhe haviam sido dadas. A música e a performance de Kate Smith foram utilizadas em peças de teatro com teor patriótico e no filme "This is the Army" [Forja de Heróis], 1943, dirigido por Dirigido por Michael Curtiz. Embora tenha recebido várias críticas apontando seu conteúdo ideológico de propaganda, reacionário ou, simplesmente, sentimentalista, a canção tornou-se tão popular que transformou-se num símbolo do chamado "americanismo", formando-se, por vezes, movimeentos no sentido de trans- formá-la num hino nacional.

Figura 94 – Letra de “God Bless America” de Irwin Berlin

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Figura 95 – Partitura de “God Bless America” de Irwin Berlin

A música é Inserida em dois momentos do filme (fragmentos 1 e 68). Tan- to na primeira quanto na segunda inserção sua utilização é diegética tendo como fonte sonora os rádios dos carros que participam da comemoração do fim da "Lei Seca". Ela também inicia do mesmo ponto nas duas inserrções (Primeira Inserção - Segunda Inserção).

1 00:01:15 00:03:49 Primeira Inserção dieggética

68 01:40:33 01:41:26 Segunda Inserção dieggética

381

Na primeira inserção o caráter diegético não é muito claro, mas o ponto de sincronia (o final da música) estabelece-se no primeiro tiro que mata Eve, a namora- da de Noodles. Na segunda inserção, pode-se observar o aspecto de comemoração dos carros que cruzam com Noodles, todos estão alegres e bebendo. O caráter diegético da primeira inserção, fica fortalecido, mas, cria uma ambigüidade. Em princípio, a comemoração está associada (sonoramente) no filme ao final da "Lei Seca", portan- to, 1933. Cria-se a ambigüidade quando se nota que estamos em 1968 (o que não é muito claro para o espectador normal) Noodles está velho e os carros que passam por ele não são típicos de 1968, mas da década de 1930, portanto, anteriores ao que está se mostrando. Qual é o significado dessa ambigüidade? Em relação à “God Bless America”, a questão que fica dessas inserções é: se não estamos mais em 1933, mas, em 1968, porque a música é utilizada da mesma forma (como se estives- se em 1933)? Uma das críticas que foram feitas ao filme centra-se no anacronismo por parte de Sergio Leone, pois, no caso, a gravação incluída dessa música só foi utili- zada de fato no rádio americano depois de 1943. Morricone e Leone certamente sa- biam disso. Portanto, a idéia que prevalece nessa inserção não é a de caracterizar uma época específica. “God Bless America” é um símbolo dos Estados Unidos e do americanis- mo. Como um símbolo não-oficial carrega uma dualidade intrínseca adquirida após anos de utilização. Por um lado representa poeticamente a simplicidade de uma mãe (a mãe de Irving Berlin) imigrante que agradece e roga a Deus que abençoe a terra que a acolheu; por outro, devido inclusive ao modo como foi utilizada durante tanto tempo, evoca toda a decrepitude de uma nação que também se corrompeu. Possivelmente, a idéia na utilização assenta-se nessa dicotomia intrínseca da canção que reflete os anseios e a morte do chamado "sonho americano". A gêne- sis desse sonho pode ser localizada na recomendação do estabelecimento dos prin- cípios fundamentais da chamada Sociedade Americana (o "americanismo") pela "Na-

382 tional Americanism Commission of the American Legion", em 1919, numa convenção nacional em Minneapolis (Minnesota). Portanto, por um lado, a inserção é uma homenagem verdadeira de Leone a América (refletida primeiramente na própria gratidão que a mãe de Irwing Berlin sentia e posteriormente pelo próprio relato de gratidão à América feita por Berlin); por outro, a inserção relaciona o mesmo tipo de decrepitude da canção como uma das possíveis leituras do filme, sublinhando todo o conteúdo ideológico que se apossou tanto da canção quanto da história. Nas duas audições da música nos dois contextos onde estão inseridas, implicam nesse possível desgaste proposto. Na realidade do filme, a ambigüidade criada na mistura dos dois momen- tos (1933 e 1968) pode reforçar a tese de que toda a história não passar da imagina- ção de Noodles sob efeito do ópio.

4.17.6.2: Summertime; Night and Day e Yesterday “Summertime” e “Night and Day” são peças utilizadas internamente (diegé- ticas) com clara função de ambientação e de referência temporal no andamento não linear do filme. Nas suas inserções são, normalmente, executadas por um piano que pode ser visto ou inferido nas cenas. “Night and Day” tem um arranjo especial para jazz band no momento em que Noodles e Max estão na Flórida e ficam sabendo pelo jornal do final da “Lei Seca”. Esse também é o caso de “Yesterday” que em duas de três utilizações, é ouvido diegeticamente num piano. Porém, no momento da primeira passagem de 1933, no momento em que Noodles se prepara para “partir para qualquer lugar com o primeiro” trem, para 1968, o tema é ouvido externamente (extra-diegético). No seu ataque, ouve-se a palavra Yesterday e, posteriormente, Suddenly como se a música fosse ser executada com a letra, o que não se confirma no prosseguimento do arran- jo para orquestra. O sucesso da canção dos Beatles em 1968, torna plausível que Noodles conhecesse a canção e que, portanto, pudesse estar em sua mente, como uma expressão de seus pensamentos e sentimentos.

383

4.17.6.3: “La Gazza Ladra” A abertura de “La Gazza Ladra” de Rossini é utilizada somente em uma cena, o momento que a gangue de Noodles troca a identidade de recém-nascidos na maternidade de um hospital. A música cobre completamente os diálogos e os ruídos, articulando a animação da seqüência. Somente no fim é sobreposto o som do choro dos bebês, demonstrando que a tarefa estava cumprida. É evidente o tom anempáti- co da música e das imagens e, além disso, a discrepância estilística em relação ao tratamento do restante das cenas do filme. O efeito grotesco da situação, finaliza uma cena que, se executada de outro modo, poderia enfatizar demasiadamente a violência da tarefa na narrativa. Portanto, ela é uma oportunidade de relaxamento e preparação para o nível de envolvimento das cenas subseqüentes.

4.17.7 - Temas Principais No que se refere à música original, Leone tinha exigências precisas. O papel da música deveria ser fundamental, na evocação de lembranças, sentimentos e nas passagens de uma época para outra. Outra exigência específica foi com o per- sonagem Cockeye que toca diegeticamente uma pequena flauta de pã (como em

PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ em relação ao personagem Índio que era caracterizado pelo som diegético do relógio de bolso; e em C’ERA UNA VOLTA IL WEST, em relação ao personagem Gaita e seu instrumento). Seguindo os mesmos procedimentos dos dois primeiros filmes da segunda trilogia, grande parte da trilha musical já estava pronta e gravada antes das filma- gens. Novamente a utilização da música nos sets de filmagem auxiliou os atores nas interpretações, permitindo a obtenção de um ritmo e de uma sincronia extraordinária na articulação dos componentes narrativos imagéticos, sonoros e musicais. Cinco temas principais e recorrentes são pensados como leitmotifs. Qua- tro deles são originais: Once Upon a Time in America, Poverty, Cockeye’s Song, e Debora’s Song; e um de música pré-existente: “Amapola”. Porém,o conceito de leitmotiv utilizado por Morricone no filme é diferente do utilizado em C’ERA UNA VOLTA IL WEST, onde cada tema se associava diretamente

384 a um personagem protagonista. Os Leitmotivs musicais de C’ERA UNA VOLTA

L’AMERICA são associados ao olhar (ponto de vista) e sentimentos do personagem Noodles (Robert De Niro), ou seja, é através da ação de Noodles que todos o filme se desenvolve. Noodles está presente em todas as seqüências do filme (exceto as duas primeiras). Toda cronologia não linear da história é disparada, por alguma ra- zão, por Noodles. Nessa perspectiva, Morricone não escreveu um leitmotiv específi- co para ele. Ao invés, escreveu os temas associados às relações e sentimentos de Noodles. O tema da América, o seu lugar – Once upon a time in America –; Débora, o seu ideal de amor – Debora’s Song e Amapola –; e sua gangue, o ideal de amizade e trabalho – Poverty e Cockeye’s Songn .

4.17.7.1: Tema 1: Poverty

Figura 96 – Melodia de Poverty

Caracteriza-se como um tema nostálgico que representa os anseios do grupo quando enveredado ao mundo do crime. A melodia é ouvida no piano, flauta ou bandolim. Sua grande importância na trilha musical é devido à sua natureza que, associado às imagens da gangue, também refllete a angústia de Noodles. O tema articula os momentos mais “penosamente” emotivos do filme. É o tema da “pobreza” e do “caminho” seguido pela gangue. Ele articula o vínculo primário do ambiente e da vida dos personagens do grupo de Noodles, uniddos pela ammizade da infância, atribu- indo conotações “popularescas” e de pobreza, onde fundamentalmentte reina a triste- za e a desolação, na idéia de uma "vida melhor".

385

Portanto, é o tema que, normalmente, se refere às reminiscências nostál- gicas do passado de Noodles refletido no relacionamento afetivo do grupo de ami- gos.

A idéia temática, o cromatismo e a instrumentação, aquele cromatismo po- pularesco, provém da época na qual o filme se desenvolve. Recordo-me de quando era menino e escutava Appassionatamente de Rulli225: aquelas músi- cas um pouco nostálgicas, antigas e modernas... eram os modos típicos de uma época. É necessário trabalhar sobre as sugestões que provêm da ceno- grafia, dos costumes, mas, não tanto para resolver a situação de um tema predominante, para procurar dar as músicas uma ambientação, um clima sonoro plausível que compreenda também a idéia temática. (MORRICONE, 2001:190)

A conotação “mafiosa” do tema, com um sabor do sul da Itália é compará- vel ao tema de D. Corleone, escrito por Nino Rota para o filme de Francis Ford Cop- pola, O PODEROSO CHEFÃO, de 1972. Em relação aos outros temas da trilha musical, ele é um pouco mais arti- culado que “Once upon a time in America” e o “Debora’s Song”. No CD, faixa 2, denominada Poverty, estão acoplados dois temas: Tema1 e um tema não utilizado no filme com solo de flauta. Porém, na faixa 10 do CD: Chil- dhood Poverty, o Tema 1 é executado por bandolim e orquestra, sem a combinação com outro tema qualquer. Durante o filme o Tema 1 é utilizado sete vezes. Quatro delas está aco- plado modularmente com o Tema 3 (Tema 1 + Tema 3) sublinhando a técnica modu- lar de Ennio Morricone. Na quarta inserção (fragmento 10) ele é variado de forma jazzística ambientando a época de 1923, onde está inserido.

225 Dino Rulli (1890-1930), compositor romano, foi o autor, entre outras, de Addio tabarin e Scettico Blues.

386

A tabela abaixo apresenta todas as insserções do Tema 1:

Nº INÍCIO FIM DURAÇÃO IDENTIFICAÇÃO Classificação

extra-

1 00:13:20 00:14:53 0:01:33 Salvando FAT MOE diegética

FAT MOE’S DRINKS ANDD SAND- extra- 2 00:24:36 00:27:44 0:03:08 diegética WICHES extra-

3 00:42:14 00:43:10 0:00:56 Primeiro Espelho diegética extra-

4 00:43:10 00:43:38 0:00:28 Serviço para Bugsy diegética extra-

5 00:56:40 00:59:04 0:02:24 DOCE X SEXO diegética Noodles vai para a Penitencciaria do extra- 6 01:27:30 01:29:38 0:02:08 Departamento de Polícia de New diegética

York VOLTA AO TEATRO CHINÊS (DÉ- extra- 7 01:41:26 01:44:55 0:03:29 CADA DE 19330) – APRONTANDO- diegética

SE PARA O ÓPIO

4.17.7.2: Tema 2: “Cockeyes’ Song”

Figura 97 – Melodia de Cockeyes’ Song

Como o tema anterior, também se refere ao grupo de Noodles, porém, re- flete mais diretamente os momentos de decadência da gangue até sua completa ex- tinção. Se “Poverty” articula-se na pobreza e desolação da decadência do grupo de

387

Noodles, “Cockeye’s Song” associa-se aos seus momentos de violência. Executado na flauta de pã por Gheorghe Zamfir é, portanto, associado diegeticamente à perso- nagem Cockeye na ação no filme (como já foi abordado, isso já havia sido feito com a gaita de boca no filme ERA UMA VEZ NO OESTE). Cockeye (William Forsythe) toca o trecho inicial desse tema, ou do Tema 3, numa pequena flauta de pã que carrega consigo, portanto, no nível interno (diegético). O tema é construído pela repetição obsessiva de tercinas, criando, em momentos de confronto, uma tensão análoga às peças dos duelos dos filmes anterio- res de Leone, porém, os pistoleiros do “novo velho-oeste” italiano são substituídos por gangsters da “moderna” New York. A instabilidade tonal, também reflete o mes- mo tipo de ambigüidade harmônica do pensamento musical da primeira trilogia. O tema não está em Mi Maior, como a armadura de clave sugere, mas, pela progres- são dos acordes, (Lá menor, Mi maior, Mi menor, Si maior e Mi maior [terça de picar- dia]). A utilização das tercinas cria os mesmos desenhos dos ostinatos utilizados em

IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO. A tabela abaixo apresenta todas as inserções do Tema 2:

Classificação Nº INÍCIO FIM DURAÇÃO IDENTIFICAÇÃO objetiva extra-

1 00:20:24 00:21:27 0:01:03 Estação de Trem diegética extra-

2 01:14:10 01:15:11 0:01:01 Surra em Noodles e Max diegética extra-

3 01:24:17 01:25:39 0:01:22 O Escorregão de DOMINIC diegética

Noodles abrindo e entrando no Mauso- extra- 4 01:30:06 01:31:06 0:01:00 diegética léu até fechar a porta, por dentro extra-

5 01:31:20 01:31:42 0:00:22 Reabrindo a porta do Mausoléu diegética extra-

6 01:32:07 01:32:29 0:00:22 Ainda no Mausoléu diegética

7 00:41:45 00:43:12 0:01:27 O TRONO DE MAX – TOMANDO CAFÉ diegética

8 00:47:43 00:47:57 0:00:14 MAX – COMO TRATAR AS MULHERES diegética

388

4.17.7.3: Tema 3: “Once Upon a Time in America”

Figura 98 – Tema de C’era una volta l’America

O tema, em Mi maior, é construído em progressão, a partir da repetição rítmica e melódica com pequenas variações, de uma célula muito simples e de pro- porções reduzidas. A primeira nota da célula, a mais longa (uma semibreve) pode, no decorrer da melodia inteira, tanto ser considerada inicial de uma nova célula quanto final da célula anterior. Qualquer uma delas podem ser convertidas em uma nota “pedal”, um modo sutil de entrada, permanência e/ou saída do tema, uma forma bas- tante efetiva de preparação gradual da presença musical no filme. Essa possibilidade se apresenta devido ao caráter menos articuladdo em relação ao tema precedente, novamente baseado em uma “micro-célula”, ritmmicamente uniforme e sobreposta a pequenas variações, quase transposições. O tema é o mais central na trilha inteira, pois porta um sentimento de nos- talgia que, quando modularmente associado aos demais temas, sublinha a corrupção tanto do grupo de Noodles quanto da própria América. Tem características elegíacas quando dominado pelas coro das. Seu tom pode ser considerado mais melancólico em relação aos outros temas, e reflete a própria angústia de Noodles no decorrer do fil- me. A sua curta extensão facilita sua memorização, além de possibilitar que seja executado por inteiro ou repetido, com uma instruumentação diversificada.

389

Na enfatização de sua importância como “Tema Central” no filme, Leone utilizou “Once upon a time in America” 17 vezes, em duas versões principais:

 Versão orquestral - estruturado no modo de utilização "pseudo-sinfônico" da orquestra com a predominância da melodia nas cordas. Essa versão é a utili- zada, principalmente, na época de 1933 ou 1968.  Versão jazzística (“Friends”) - A uniformidade das “micro-células” torna o te- ma particularmente dúctil, apto a submeter-se a transformações radicais, como em efeito acontece no filme, transformando Once upon a time in Ame- rica em um tema de Jazz band. Isso pode ser feito em virtude da essenciali- dade da célula rítmico-melódica. Se o tema fosse escrito sobre uma melodia muito articulada e com ritmo muito variado, não seria fácil adaptá-lo a outro contexto. Ele é adaptado ao ritmo e a formação de um pequeno grupo de jazz com a melodia no clarinete ou na flauta. Essa versão ambienta a época de 1923. Nessa forma estilizada a melodia também é executada diegetica- mente por Cockeye na flauta de pã que, quase sempre, carrega consigo. O tema também é, nessa forma, assoviado pelos membros do grupo de No- odles e, em especial, por Dominic, antes de sua morte.

390

A tabela abaixo apresenta todas as inserções do Tema 3:

Classificação Nº INÍCIO FIM DURAÇÃO IDENTIFICAÇÃO Objetiva

FAT MOE’S DRINKS AND SAND- extra- 1 00:24:36 00:27:44 0:03:08 diegética WICHES Esperando para roubar o relógio do 2 00:45:29 00:46:04 0:00:35 diegética

bêbado Cockeye executa novamente o tema na 3 00:48:12 00:48:43 0:00:31 diegética

flauta de pan extra-

4 00:55:01 00:56:18 0:01:17 Meu tio diegética extra-

5 00:56:40 00:59:04 0:02:24 DOCE X SEXO diegética

6 01:20:50 01:21:38 0:00:48 Após o serviço do SAL para Capuano híbrida

7 01:23:32 01:24:16 0:00:44 New York (antiga) diegética

Noodles vai para a Penitenciaria do extra- 8 01:27:30 01:29:38 0:02:08 diegética Departamento de Polícia de New York extra-

9 01:31:42 01:32:07 0:00:25 A sepultura dos três: diegética extra-

1 01:32:42 01:33:24 0:00:42 A CHAVE diegética extra-

11 00:01:51 00:02:25 0:00:34 O CARRO NO MAR diegética extra-

12 00:38:50 00:41:02 0:02:12 O estupro de Débora diegética extra-

13 00:54:06 00:54:26 0:00:20 Noodles e Max – Indo para a Praia diegética extra-

14 00:57:40 00:59:39 0:01:59 O SONHO LOUCO DE MAX diegética extra-

15 01:22:48 01:24:49 0:02:01 NOODLES VÊ DAVID diegética extra-

16 01:31:53 01:33:23 0:01:30 POR QUE NÃO ATIRA? diegética VOLTA AO TEATRO CHINÊS (DÉCA- extra- 17 01:41:26 01:44:55 0:03:29 DA DE 1930) – APRONTANDO-SE diegética

PARA O ÓPIO

391

4.17.7.4: Tema 4: “Debora’s Song”

Figura 99 – Melodia do Tema de Débora

É um dos dois leitmotivs associados ao sentimento afetivo de Noodles por Débora (o outro é Amapola). A música também ficou conhecida como “Tema de Amor”. Muito parecido em seu tom ao anterior, difere prinncipalmente no aspecto de ser mais obsessivo e um pouco mais passional em seu comportamento. A música foi um tema composto para um filme de Zeffirelli na década de 1970 e não utilizada (re- jeitada). Uma das características mais debatidas com referência a música para ci- nema de Ennio Morricone está no fato de que alguns de seus temas terem sido com- postos para outros filmes anteriores e, por qualquer motivo, não utilizados.

Morricone compôs partituras para aproximadamente 300 filmes em somente duas décadas, numa ampla gama de estilos musicais e fílmicos, escrevendo muito rapidamente e basicamente seguindo suas próprias inclinações para o som. Freqüentemente, ao invés dde sincronizar a música diretamente com o filme, Morricone escreve uma série de temas que acredita encaixar-se e per- mite ao diretor escolher aqueles que parecem ser os mais apropriados (Os descartados, com freqüência aparecem em outros filmes totalmente diferen- tes). Enquanto que muitos críticos objetam com relação a esse procedimento, permanece notável o quanto sua música tem, sem dúvida, contribuído aos filmes em que é utilizada. (LARSON. In: LEINBERGER, 2004:26)

Atualmente, a música de Morricone ffoi utilizada em mais de 400 filmes, programas de televisão e vídeo games, a maioria produzidos na Itália. O fato de al- gumas de suas músicas para filme poderem ter ssido escritas antes para outros proje-

392 tos e terem sido descartadas pode parecer, em princípio, um despropósito, pois o paradigma corrente apregoa que somente o próprio filme deva ser a fonte de inspira- ção da música original do compositor. Entretanto, na mão de Morricone, esse método de composição é consistente e coerente com sua habilidade em escrever pequenas unidades que podem ser conectadas, formando idéias musicais maiores e mais completas, criando um todo que é, muitas vezes, maior do que a soma de suas par- tes. É a combinação das partes mais apropriadas que permite a Morricone adaptar os velhos temas musicais, ou as idéias musicais descartadas anteriormente, em no- vos filmes. O fato de sua música contribuir significantemente aos filmes em que apa- recem, particularmente quando dada uma quantidade razoável de tempo e espaço, como é o caso de C’ERA UNA VOLTA L’AMERICA de Leone, é evidência da efetividade desse procedimento. Ele é uma reminiscência, apesar de mais sofisticado, da prática do cinema mudo, quando pequenas peças de uma biblioteca de música eram seleci- onadas baseadas em climas desejados para os diversos momentos do filme. No ca- so dos filmes mudos, a música selecionada freqüentemente era diferente de uma sala para outra, e de uma execução para outra, tornando uma análise crítica imprati- cável. Morricone, no curso da Chigiana, comentou sobre esse procedimento:

Leone tinha o gosto de pegar os temas que haviam sido descartados por ou- tros diretores. Alguns dos temas de seus filmes têm essa origem. Existe um precedente que deve ser explicado. No filme Per un pugno di dollari, Leone queria inserir o Deguello. Eu ameacei deixar o filme porque não podia acei- tar que uma cena importante houvesse uma música de outro compositor. Le- one cedeu, mas me pediu que escrevesse uma peça que parecesse com o De- guello. Constrito a fazer uma espécie de imitação, como uma forma de vin- gança peguei um tema que tinha escrito e utilizado alguns anos antes para ‘I drammi Marini’ de O’Neill, colocando o trompete e escrevendo alguns melismas típicos da música mexicana (outros foram improvisados pelo solis- ta, Michele Lacerenza). Mais tarde confessei a verdade a Leone e, desde en- tão, quis sempre meus temas pré-existentes, mas, sobretudo os refutados por outros diretores. Tornou-se um hábito. Ele sempre me dizia: “O que descar- tou aquele tolo do Z...? ... Este?... É belíssimo”. E assim foi. (MORRICONE, 2001:198)

393

Nas inserções do Tema de Débora encontra-se com maior evidência, a função do pedal como dispositivo que propicia a delicada passagem entre silêncio (da pista musical) e música. Podemos notar a dilatação melódica e o uso das pau- sas, que “espaçam” as semi-frases com um sentido de suspensão, de espera. Uma espera que se dilui quando a articulação segue na direção do ponto culminante da peça. Miceli (2001: 187) afirma que “esse caráter constante é típico do desenvolvi- mento melódico em Morricone”. Morricone concorda:

Eu, em geral, utilizo os pedais; talvez os utilizo demais, mas, são úteis, são as coisas mais simples para começar. Um pedal não irritante, mas que faça sentir que a música está entrando, ou seja, entrou. O tema que entra sem preparação corre o risco de não ser recebido como mereceria, enquanto que um pedal predispõe, assinala, cria uma expectativa. E depois, além da valo- rização do tema, é a passagem mesma do silêncio ao som que vai preparada, mas sem grandiosidade, de forma simples, de maneira, diria, quase “não musical”. A mesma coisa vale para o fechamento, que deve ser expressiva, mas delicada. Ocorre voltar ao silêncio musical com discrição, salvo exce- ções. Essas são regras fundamentais que colidem, porém, com a tendência que tem os diretores a rechear os seus filmes de música, com a conseqüência que a presença musical se desqualifica e não oferece mais a contribuição que poderia ter dado. (MORRICONE, 2001:189)

A tabela abaixo apresenta todas as inserções do Tema 4:

Classificação Nº INÍCIO FIM DURAÇÃO IDENTIFICAÇÃO Objetiva extra-

1 00:34:29 00:37:06 0:02:37 Tenho dormido cedo diegética extra-

2 01:02:39 01:04:30 0:01:51 A primeira vez de Noodles e Max diegética extra-

3 01:07:48 01:10:28 0:02:40 Débora lê para Noodles diegética extra-

4 01:15:11 01:15:45 0:00:34 Débora não socorre Noodles diegética extra-

5 00:26:26 00:26:53 0:00:27 Noodles e Débora diegética

NA AREIA DA PRAIA DO RESTAU- extra- 6 00:31:38 00:34:18 0:02:40 diegética RANTE

7 01:12:00 01:13:14 0:01:14 VOCÊ É LOUCO MESMO extra-

394

diegética

O REENCONTRO COM DÉBOORA NO extra- 8 01:13:14 01:18:12 0:04:58 diegética CAMARIM DE UM TEATRO

DESPEDIDA DE NOODLES E DÉBO- extra- 9 01:21:45 01:22:48 0:01:03 diegética RA extra-

10 01:44:56 01:49:14 0:04:18 CRÉDITOS FINAIS diegética extra-

11 00:34:29 00:37:06 0:02:37 Tenho dormido cedo diegética extra-

12 01:02:39 01:04:30 0:01:51 A primeira vez de Noodles e Max diegética extra-

13 01:07:48 01:10:28 0:02:40 Débora lê para Noodles diegética

4.17.7.5: Tema 5: “Amapola”

Figura 100 – Melodia de Amapola

Amapola é o nome de uma canção popular escrita pelo compositor espa- nhol Joseph LaCalle226 com letra em espanhol. A letra em inglês foi escrita, posteri-

226 LaCalle (1860 - 1937) nasceu em Cadiz, Espanha e emigrou ppara os USA ainda muito jovem. Foi clarinetista, compositor e regente participando de inúmeras bandas como instrumentista incluindo John Phillip Sousa Band, the Gilmore Band, the 7th Regiment Band, the Hoadley Musical Society Amateur Orchestra e the Columbia Spa- nish Band. Atuou como regente em sua própria banda, The LaCalle Band e The 23rd Regiment Band. Participou das primeiras gravações da Columbia e outras companhias de gravações. Compôs várias canções e marchas inclu- indo "Twenty-third Regiment March" 1902; "Pobrecito Faraon" 1923; "Amapola" 1924; "Aquel Beso" 1927; and "The Light That Never Fails (Luz Eterna)" 1928. No final de seus dias LaCalle trabalhava como crítico musical para a Columbia Phonograph Company. Ele fundou a Companhia de Teatro Espanhol no Brooklyn e apresentou

395 ormente, por Albert Gamse. Embora o lançamento da canção Amapola tenha sido em 1924, a versão mais popular foi a da gravação de Jimmy Dorsey com os vocalis- tas Helen O'Connel e Bob Eberly, com letra em inglês lançada pela Decca Records e catalogada com o número 3629. Essa gravação atingiu a Billboard em 14 de março de 1941 e permaneceu por 14 semanas, chegando ao primeiro lugar.

AMAPOLA (PRETTY LITTLE POPPY) AMAPOLA Amapola My pretty little poppy Amapola, You're like that lovely flower, so sweet lindisima amapola and heavenly Sera siempre mi alma Since I found you Tuya sola My heart is wrapped around you Yo te quiero amada niña mia And loving you it seems to beat a rhap- Igual que ama la flor la luz del dia sody Amapola, lindisima amapola Amapola No seas tan ingrata The pretty little poppy Mirame Must copy its endearing charm from Amapola, amapola you Como puedes tu vivir tan sola Amapola, Amapola How I long to hear you say, "I love you."

No filme, Amapola faz parte de um dos cinco temas principais, utilizado como um dos dois leitmotivs que caracterizam a relação de Noodles com a persona- gem Débora. Normalmente, quando a música assume esse nível de importância nos filmes com trilha de Morricone, ele próprio compõe o tema. Porque Leone fez ques- tão de utilizar especificamente Amapola?

Zarzuelas para o público americano. Influenciou e promoveu a música cubana. Morreu no dia 11 de junho de 1937 no Brooklyn, Nova York, com 77 anos de idade.

396

Uma das hipóteses à resposta dessaa questão estabelece-se nas músicas ouvidas por Leone e por Morricone na transição de suas infâncias para a juventude. O famoso tenor italiano Tito Schipa, um dos vários mitos italianos, fez muito sucesso com a gravação dessa canção e talvez por isso a canção tenha sido incluída por Le- one como recordação e menção ao seu tempo da “Viale Glorioso”, em Roma, de on- de ele adapta e transpõe vários casos acontecidos em sua época para seus filmes.

Figura 101 – Tito Schipa: Amapola

Outra gravação de grande sucesso da canção, que influenciou o próprio Morricone na época de arranjador da RCA, foi no ano de 1963 do grupo SpotNicks.

Figura 102 – SpotNicks: Amapola

397

Outra possibilidade de resposta, que não exclui a precedente, centra-se no nome dessa flor associado ao efeito de Débora em Noodles. Amapola é o nome de uma flor que significa “bela flor”.

Figura 103 – Amapola (Papoula)

A Amapola é conhecida e chamada na América do Sul de Papoula. A pa- poula (nome científico: Papaver somniferumé) é uma planta da Famíília das Papave- ráceas, também conhecida como dormideira. É uma herbácea anual que apresenta propriedades alimentares, oleaginosas e medicinais. Na mitologia grega era relacionada a Hipnos, o ddeus do sono, pai de Mor- pheu, que a tinha como planta favorita e, por isso, era representado com os frutos desta planta na mão. Há também uma estreitaa relação entre a papoula e a deusa grega Nix, a Noite. Deusa das Trevas, filha do Caos, é na verdade a mais antiga das divindades. Freqüentemente, ela é representada coroada de papoulas e envolta num grande manto negro e estrelado. Em muitas referências ela se localiza no Tártaro, entre o Sono e a Morte, seus dois filhos. Os romanos não a representavam em um carro, mas sempre adormecida. Na Mesopotâmia, curavam-se doenças como insônia e constipação intestinal com infusões obtidas a partir da papoula. Os antigos comiam a flor inteira ou a maceravam para obter o sumo. Mais tarde, os assírios e depois os babilônios herdaram a arte de extrair o suco leitoso dos frutos para fazer remédios: o Ópio. Na caracterização da relação de Noodles com a personagem Débora, Amapola pode novamente reforçar a teoria de que tudo não passa de alucinação de

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Noodles pela ingestão do ópio. Em cinco de seis inserções ela é interna (diegética) e somente em uma externa (extra-diegética):

Classificação Nº INÍCIO FIM DURAÇÃO IDENTIFICAÇÃO Objetiva FLASHBACK (década de 1 00:37:06 00:39:34 0:02:28 diegética

1920) Noodles pego em flagran- 2 01:05:44 01:07:23 0:01:39 diegética

te

3 01:44:22 01:47:36 0:03:14 Reencontro com Débora diegética No Restaurante Exclusivo 4 00:26:53 00:29:58 0:03:05 Diegética

à beira-mar NOODLES e DÉBORA 5 00:29:58 00:31:38 0:01:40 DANÇAM NO RESTAU- Diegética

RANTE

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4.17.8 - Música original secundária Temas secundários compostos por Morricone, pensados ou não como leitmotivs, que não têm a mesma importância na narrativa em relação ao grupo de temas da música original principal. “Prohibition Dirge”, “Speakeasy”.

4.17.8.1: “Prohibition Dirge227” (Música para o enterro da “Lei Seca”) Morricone escreveu “Prohibition Dirge” para ironicamente (já que com o fi- nal da “lei Seca” a bebida alcoólica estaria liberada e os gangsters contrabandistas estariam virtualmente desempregados) festejar a morte da “lei Seca”, ou seja, o fune- ral da “Lei Seca”. Com o tom irônico ele consegue ambientar a época utilizando uma formação dos primeiros grupos de jazz tradicional. Pode-se interpretar “Prohibition Dirge” como a música que prenuncia a morte do próprio bando de Noodles que do ponto de vista do momento da história se desfaz. Todos deveriam morrer, mas, so- mente Max, Patsy e Cockeye morrem.

4.17.8.2: “Speakeasy228” Morricone escreveu “Speakeasy” aproveitando a mesma formação do gru- po de jazz tradicional utilizado em “Prohibition Dirge” seguindo o mesmo tom irônico da festa da morte da “lei Seca”, ou seja, do funeral da “Lei Seca”. A música possui características de ambientação da época e do local do speakeasy.

227 A história da palavra dirge ilustra como uma palavra com conotações neutras, tal como dirigir, pode passar a ter um conteúdo emotivo devido a um uso especializado. A palavra latina dirige é uma forma do verbo dirigere, “dirigir, guiar”, utilizada em comandos especializados. No Ofício da Morte, dirige é a primeira palavra na abertu- ra da antífona do primeiro noturno de Matins: “Dirige, Domine, Deus meus, in conspectu tuo viam meam”. A parte do Ofício da morte que inicia com esta antífona passou a se chamar Drige no latim eclesiástico. A palavra, então, foi incorporada no inglês como dirige, escrita pela primeira vez nos anos de 1200. Dirige foi então esten- dida para referir-se ao canto ou a leitura do Ofício da Morte como parte de um serviço funerário ou memorial. Na idade média a palavra foi encurtada para dirge, embora ainda fosse pronunciada com as duas sílabas. Após a Idade Média a palavra tomou os sentidos de “hino ou lamento funerário” e/ou “um poema de lamento ou compo- sição musical”, e passou a ser pronunciada somente com as duas sílabas. 228 Esse era o nome dado a um estabelecimento (bar ou night club) ilegal utilizado para venda e consumo de bebi- das alcoólicas durante o período de 1920 – 1933 (um pouco mais longo em alguns estados) da história dos Esta- dos Unidos conhecido como Prohibition (“Lei Seca”), quando a venda, manufatura e transporte de bebidas alcoó- licas tornou-se ilegal. Em muitos bares speakeasy tocaram as primeiras bandas de jazz tradicional.

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4.17.9 - Síntese da organização temática da trilha musical A próxima figura ilustra a conexão doos temas principais (módulos) como leitmotivs a partir do “olhar” de Noodles:

Figura 104 – Os leitmotivs de “C’era una volta l’America”

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4.17.10 - A estrutura temporal circular do filme

Figura 105 – Os eventos e a estrutura temporal Circular do Filme

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4.18 - A MÚSICA DE THE MISSION – 1986 (A MISSÃO)

A luta entre a igreja, portugueses e espanhóis para tomar o poder em um dos territórios colonizados na América do Sul no século 17.

4.18.1 - Ficha Técnica

Título Original: The Mission

Produção: Warner Bros (Fernando Ghia e David Puttnam)

Diretor: Roland Joffé

Roteiro: Robert Bolt

Edição e Montagem: Jim Clark

Diretor de Fotografía: Chris Mendes

Intérpretes Principais:

Robert De Niro...... Rodrigo Mendonza Jeremy Irons...... Padre Gabriel Ray McAnally...... Cardeal Altamirano Ronald Pickup...... Hontar Chuck Low...... Cabeça

Nacionalidade: Inglesa e Americana, 1986.

Duração: 128 minutos

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4.18.2 - Comentários Iniciais

Vamos agora nos aproximar de alguns casos de interação máxima entre os diversos componentes, com particular referimento à caracterização tímbrica e mais em geral estilística, em tese como dados conotativos precisos no interior do filme. Sem esque- cer as caracterizações temáticas, vistas não como meras funções simbólicas a serviço da narração fílmica (ou seja, o típico comentário), mas, como elementos narrativos parentéticos e, algumas vezes, primários. (MICELI, 2001:172)

Em 1986, Morricone compôs somente duas trilhas musicais para o cine- ma: THE MISSION e MOSCA ADDIO, de Mauro Bolognini, produção italiana. Essa pe- quena quantidade em sua produção, que durante algum tempo atingiu a quantidade de 20 trilhas musicais ao ano (em 1985 nenhuma trilha sonora musical para o cinema foi composta por Morricone), reflete a decisão do compositor em concentrar-se ex- clusivamente na composição de música de concerto. O próprio Morricone aponta dois motivos principais229:

1. Nos anos oitenta eu reduzi o meu trabalho para o cinema. Sobretudo para escrever música de concerto. Assim tive que renunciar a fazer a trilha musical de alguns fil- mes.

2. Mas com relação ao mercado americano a coisa era diferente. Meu pagamento na América naquele momento em que eu não tratava, não tratava porque não trato nun- ca de dinheiro. Um pouco por timidez, um pouco... Eu ganhava praticamente o mes- mo que o pior compositor americano. Então decidi parar de trabalhar para o cinema americano. Depois do sucesso de “A Missão”, meu pagamento aumentou e agora es- tamos no máximo possível. Ali nasce minha ressurreição para o mercado americano.

Miceli230 comenta que os motivos de uma redução tão drástica e sem pre- cedentes no trabalho de Morricone, reforçado diretamente pela hipótese, por parte de Morricone, de um abandono definitivo do cinema, devem-se principalmente ao proje- to da composição da ópera Il Musicologo. O projeto do melodrama, em dois atos e um epílogo, sobre um libreto do próprio Miceli, foi abandonado quando o primeiro ato já estava composto.

229 Ennio Morricone. In: (1995) Ennio Morricone, Documentário, Londres: BBC. 230 MICELI, Sergio (1994) Morricone, La Musica, Il Cinema. Milano: Mucchi Editore, p. 281.

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Pensei em não compor mais para o cinema e voltar minha atenção totalmen- te à produção de concerto. Mas, essa é uma promessa que faço a cada dez anos e ainda não consegui mantê-la. Talvez porque o cinema sempre me deu muita satisfação. Porém, devo dizer que reduzi notavelmente minha atividade musical para filmes e, a partir dos anos 80, recomecei a escrever música de concerto231.

Fernando Ghia, um dos produtores do filme A MISSÃO, refere que os pro- cedimentos relacionados à contratação de Morricone no filme não foram bem os usuais. Eu não pedi a Morricone para fazer a música do filme... pedi a ele que assis- tisse ao filme. David Puttnam, o outro produtor, acrescenta que Morricone ficou muito impressionado com as cenas do filme e afirmou que não poderia aceitar aquele tra- balho por acreditar que não seria capaz de realizar a composição da trilha sonora (Documentário,1995:BBC).

Os diretores têm com freqüência uma relação difícil com a trilha sonora de seus filmes desde que não são muitos os que possuem uma preparação real neste campo. Mesmo Roland Joffé se aproxima sempre com certo temor na escolha musical para seu filme e com freqüência se sente mais seguro com a presença de um tema único que retorna em outras versões como, por exem- plo, em L’OMBRA DI MILLE SOLI [FAT MAN AND LITTLE BOY – 1989]. É um grande diretor e, em minha opinião, demonstrou inequivocamente essa con- dição numa obra prima como A MISSÃO, filme que me deu muita satisfação. A trilha sonora da Missão é, sem dúvida, uma das mais importantes da mi- nha carreira, plena de pathos e muito complexa do ponto de vista musical. Tive a oportunidade de ingressar num campo que sempre me interessou mui- to, a síntese entre culturas diferentes. O encontro entre a tradição vocal dos indígenas e os cantos litúrgicos gregorianos está na base da partitura do filme que, nesse aspecto simultâneo étnico e tradicional, sempre exerceu um grande fascínio sobre o público232.

É difícil saber com certeza o motivo da resistência inicial de Morricone em compor a trilha do filme. Além dos motivos já mencionados, talvez sua relutância es- tivesse também ligada ao próprio conceito do filme em relação às suas crenças pes- soais.

231 CONTE, Mario (1997) La “Via crucis”: Un’opera di Ennio Morricone per il giubileo. Revista Messagero di sant’Antonio. http://www.messaggerosantantonio.it/messaggero/ pagina_articolo.asp? IDX=667IDRX=56. Último acesso: 31/agosto/2008. 232 LUCCI, G. Morricone: Cinema e oltre. Milano: Mondadori Electa S.p.A., 2007, p.128.

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Na minha vida, nunca interrompi minhas relações com Deus. Mais recente- mente, porém, estou mais atento à minha vida espiritual. O porquê eu não sei. Sinto que é justo assim. Oro e também faço a comunhão todos os dias. Vou à igreja às 7 horas da manhã, não me confesso com muita freqüência, porque não me encontro em faltas graves. Porque entro em uma igreja? O faço pela atenção que devo a uma presença divina que é particular naquele lugar233.

Como o filme já estava com a primeira montagem realizada, a música do filme foi, obviamente, composta em pós-produção. David Puttnam (idem) também relata que apesar da resistência, “por uns dólares a mais”, Morricone acabou acei- tando “a missão”. O filme está baseado em acontecimentos históricos reais sobre as deno- minadas guerras guaranis, nas quais, os exércitos espanhóis e portugueses lidera- dos pelo Marquês de Pombal perpetraram o assassinato indiscriminado de milhares de indígenas. As Missões ou Reduções eram construídas e organizadas pelos mem- bros da “companhia de Jesus”, fundada, em 1534, para a defesa da fé e da justiça, a favor do diálogo intercultural e inter-religioso. Conesa (2008234) recorda que “o cami- nho do paraíso” defendido pela companhia de Jesus se assemelhava ao Aguyé gua- rani com destino a Terra sem mal.

Por esse caminho, os índios nativos e os jesuítas uniram sua fé e sua força no combate contra os colonos espanhóis e portugueses. Por ele, para além da reconstrução histórica, a película narra a eterna luta dos seres humanos pela liberdade e esperança de uma convivência em harmonia: um combate nas alturas que se torna o eminente protagonista no roteiro musical do filme. (CONESA, 2008)

Não obstante, no século 17, as missões que os jesuítas haviam construído nos territórios atuais do Brasil, Paraguai e Argentina constituíram-se numa grande ameaça ao afã colonialista dos governos totalitários da Espanha e de Portugal, que se propuseram a extinguir com essa ordem. Em desespero, os índios nativos e os jesuítas uniram sua fé e sua força na tentativa de combater os ideais colonizadores dos espanhóis e portugueses. A defesa da Missão de San Carlo é o centro onde todo

233 Ennio Morricone, in: CONTI, M., op. cit. 234 CONESA, A. The Mission. 2008. http://www.mundobso.com/es/verestudio.php?id=56, último acesso, 12 de setembro de 2010.

406 o filme orbita. Mais que uma reconstrução histórica, ela retrata a luta eterna do ser humano pela liberdade e esperança de uma convivência em harmonia: um combate nas alturas que se reflete como o grande protagonista do roteiro musical do filme. Morricone resume o conceito do filme:

O filme se desenvolvia na América do Sul, em 1750... Os Jesuítas foram para a América portando a fé cristã, mas, portavam também sua experiência mu- sical na música litúrgica e na música da Renascença e Pós-Renascença [Barroca]. O tema do Padre Gabriel foi escrito bastante condicionado pela mímica dos dedos que fazia Jeremy Irons no filme. Esses três componentes: o oboé; a música dos Índios, pelo menos a idealizada; e a música ocidental en- sinada aos Jesuítas na América do Sul por outras pessoas, era o problema na composição de um todo, único. A união desses três elementos nessa músi- ca é aquilo que, para mim, é o resultado mais importante, no qual me reco- nheço também espiritualmente e tecnicamente. Sobretudo tecnicamente, mas também espiritualmente. A conjunção dessas três idéias em uma idéia única era claramente o símbolo da espiritualidade buscada e da união dessas duas entidades espirituais, bem diferentes, mas que buscaram uma comunhão no filme. Tanto que morrem juntas, chegando ao máximo com o sacrifício dos valores235.

Morricone, portanto, objetivou a realização concreta dessa comunhão no modo de concepção da trilha sonora do filme. Sua técnica modular, com base nas micro-células, nunca se mostrou tão vital e pertinente. Como já foi abordado, esse modo de composição, baseado na imitação musical e desenvolvido a partir das téc- nicas contrapontísticas franco-flamencas, permite a Morricone que melodias inde- pendentes, utilizadas isoladamente como peças diferentes na micro-estrutura da tri- lha musical, possam também ser combinadas e sobrepostas, ou seja, utilizadas tam- bém interdependentemente em seu conjunto de temas. Nessa concepção revela-se tecnicamente uma das possibilidades na assunção de como a unidade da trilha mu- sical pode ser observada na macro-estrutura fílmica.

O filme não é uma tentativa de reprodução histórica no sentido literal, o que pode ser confuso já que inicia informando à audiência que “os acontecimentos da história são verídicos, ocorreram nas fronteiras da Argentina, Paraguai e Brasil no

235 Ennio Morricone, in: Ennio Morricone (1995), op. cit.

407 ano de 1750”. Trata-se da dramatização do evento ocorrido e é neste sentido que deve ser entendida a afirmação de veracidade. Para o diretor Roland Joffé o filme representava a possibilidade de uma ponte entre o público do chamado ‘filme de arte’ e um filme para o público em geral:

Eu não gosto de fazer filmes para pequenos grupos de pessoas ou elites. Po- rém, ao mesmo tempo, quero que a audiência leve alguma coisa para casa, alguma coisa que as encorajem a pensar. (JOFFÉ236)

Em 1986, a estréia do filme representou um acontecimento notável nas salas de cinemas de todo o mundo. Com o suporte positivo de seu trabalho anterior, Gritos do Silêncio, filme que denunciou as atrocidades de Camboja explorando o te- ma de repórteres de guerra, as campanhas publicitárias criaram a expectativa de que se tratava de uma obra ambiciosa com uma fotografia maravilhosa e alto orçamento. O público mais iniciado conhecia, antes da estréia, a índole da mensagem: um confli- to entre o poder espiritual e o temporal, entre igreja e estado, na América Latina co- lonial (GOMIS237).

236 Entrevista com Roland Joffé sobre “the mission”. Realizada no Trento Cinema «Incontri Internazionali con la Musica per il Cinema», Trento: ed. V Curzel, Servizio Attività Culturali della Provincia Autonoma di Trento, 1988, pp.75-77. 237 GOMIS, M. M. El ocaso de la compañía de jesús en América Latina. La misión. In: Historia y Cine, Ed. José Uroz: Publicaciones de La universidad de Alicante.

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4.19 - ORGANIZAÇÃO TEMÁTICA DA TRILHA MUSICAL

4.19.1 - Decupagem Duração do filme: 125 minutos (2:05:39 [duas horas, cinco minutos e trinta e nove segundos] mais precisamente). Total das Inserções Musicais: 77 minutos (1:17:13 [uma hora, dezessete minutos e treze segundos] mais precisamente). Porcentagem com música: 61%; porcentagem sem música: 39%. O filme foi decupado em 93 partes contidas em 26 fragmentos (seqüên- cias). A diferença entre parte e fragmento é que o segundo é um trecho mais completo e que pode conter várias inserções musicais; portanto, parte é um trecho do fragmento que contém somente uma ou nenhuma inserção musical. Das 93 partes: 56 têm música; 37 não têm. A tabela abaixo apresenta as 56 inserções musicais e seus respectivos fragmentos:

Nº DURA- IDENTIFICA- CLASSIFICAÇÃO Nº INÍCIO FIM DERIVAÇÃO NOME NO CD FRAGMENTO OR ÇÃO ÇÃO OBJETIVA

Rodrigo contem- 1 23 00:24:11 00:24:32 00:00:21 Alone Alone Extra-Diegética Fragmento 10 pla os amantes

Rodrigo espera o Música típica / Diegética / Extra- 2 24 00:24:32 00:25:19 00:00:47 Alone Fragmento 10 momento exato Alone Diegética

Rodrigo surpre- 3 25 00:25:19 00:26:02 00:00:43 Alone Alone Extra-Diegética Fragmento 10 ende os amantes

Felipe vai atrás 4 26 00:26:02 00:26:26 00:00:24 Alone Alone Extra-Diegética Fragmento 10 de Rodrigo Os irmãos se 5 27 00:26:26 00:26:38 00:00:12 Alone Alone Extra-Diegética Fragmento 10 enfrentam A Missão do Ave Maria - 6 48 00:54:27 00:55:24 00:00:57 Cardeal na Ave Maria Guarani Diegética Framento 16 solo América Missa de Boas- vindas (Coral Ave Maria 7 60 01:18:48 01:21:05 00:02:17 Ave Maria Guarani Diegética Fragmento 19 Indígena) - O Guarani poder do Índio e

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da Missão

Volta à Declara- ção do Cardeal: Ave Maria 8 61 01:21:05 01:21:33 00:00:28 Ave Maria Guarani Diegética Fragmento 19 Reflexão sobre o Guarani Índio O Inimigo chega Ave Maria na Missão: A Guarani Estupidez da sobreposta as 9 84 01:47:51 01:49:23 00:01:32 Ave Maria Guarani Diegética Fragmento 24 Guerra - Os sonoridades Soldados Vaci- orquestrais e lam percussivas Ave-Maria é Mendonza sobreposta as consegue abater sonoridades 10 87 01:53:06 01:53:36 00:00:30 Ave Maria Guarani Extra-Diegética Fragmento 24 4 soldados orquestrais e inimigos dos sons das armas Volta Ave- A matança da Maria conjun- 11 89 01:54:54 01:55:54 00:01:00 comunidade tamente com Ave Maria Guarani Extra-Diegética Fragmento 24 indígena todas as sonoridades ../... Os irmãos 12 20 00:18:54 00:20:21 00:01:27 Mendonza: Brothers Brothers Extra-Diegética Fragmento 7 Rodrigo e Felipe A verdade: O irmão Felipe ama e é amado 13 21 00:20:21 00:22:35 00:02:14 Carlota Carlota Extra-Diegética Fragmento 8 por Carlota a mulher amada por Rodrigo Rodrigo olha para o irmão 14 29 00:27:02 00:27:33 00:00:31 Carlota Carlota Extra-Diegética Fragmento 10 morto e Carlota chorando Pe. Gabriel senta e pega o Oboé de 15 11 00:10:40 00:11:44 00:01:04 Gabriel's Oboe Diegética Fragmento 3 oboé (O poder Gabriel da música) Pe. Gabriel tenta Oboé de 16 13 00:11:58 00:12:40 00:00:42 continuar tocan- Gabriel's Oboe Diegética Fragmento 3 Gabriel do O Pe. Gabriel é aceito pela Tema do Pe. 17 15 00:13:43 00:14:26 00:00:43 Gabriel's Oboe Extra-Diegética Fragmento 3 comunidade Gabriel indígena Volta à declara- Tema do Pe. 18 16 00:14:26 00:14:44 00:00:18 Gabriel's Oboe Extra-Diegética Fragmento 3 ção do Cardeal Gabriel

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Tema do Pe. 19 38 00:41:40 00:43:21 00:01:41 Sublimação Gabriel's Oboe Extra-Diegética Fragmento 13 Gabriel Os Índios Luta- rão pela Missão - Sonoridades Os Missionários 20 63 01:24:47 01:26:00 00:01:13 orquestrais - Gabriel's Oboe Extra-Diegética Fragmento 20 devem voltar Introdução para Assunção com o Cardeal Os Índios não querem voltar Tema do Pe. 21 64 01:26:00 01:26:18 00:00:18 Gabriel's Oboe Extra-Diegética Fragmento 20 para a Selva: O Gabriel Diabo vive lá. Som das O Índio recupera Cataratas / e entrega as Sonoridades 22 65 01:26:18 01:28:30 00:02:12 armas para Gabriel's Oboe Extra-Diegética Fragmento 21 Orquestrais / Mendonza: É Tema de hora de Lutar Gabriel The Sword / Não posso 23 77 01:38:27 01:39:13 00:00:46 Tema de Gabriel's Oboe Extra-Diegética Fragmento 23 abençoá-lo Gabriel O tema do Pe. A Morte do Pe. Gabriel é Gabriel: O 24 90 01:55:54 01:57:29 00:01:35 sobreposto à Gabriel's Oboe Extra-Diegética Fragmento 24 Sacrifício da todas as comunidade sonoridades Declaração do 25 4 00:00:46 00:01:30 00:00:44 Sons Mix Guarani Extra-Diegética Fragmento 1 Cardeal Flash-Back - Cardeal como narrador - voz 26 5 00:01:30 00:04:23 00:02:53 Sons Mix Guarani Sobreposição Fragmento 1 over - O papel dos Jesuítas - O Martírio Recebendo a Instrumentos 27 59 01:17:47 01:18:48 00:01:01 Guarani Diegética Fragmento 19 autoridade indígenas Os Sobreviven- 28 92 01:58:51 02:00:49 00:01:58 Miserere Miserere Extra-Diegética Fragmento 26 tes Festa da padro- eira nas ruas de 29 22 00:22:35 00:24:11 00:01:36 Assunção - Música típica Música Diegética Diegética Fragmento 9 Felipe e Carlota se encontram Cumprimentos a Música Festi- 30 45 00:50:30 00:50:58 00:00:28 Música Diegética Extra-Diegética Fragmento 14 Rodrigo va Típica Música Barro- 31 53 01:08:46 01:09:30 00:00:44 O Índio artesão Música Diegética Extra-Diegética Fragmento 17 ca Créditos Finais - Assim na On Earth As It Is In 32 93 02:00:49 02:04:40 00:03:51 O Olhar do Terra como no Extra-Diegética Fragmento 26 Heaven Cardeal Céu

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A penitência 33 32 00:31:44 00:35:24 00:03:40 (ascenção) de Penance Penance Extra-Diegética Fragmento 12 Mendonza Possibilidade de 34 36 00:39:40 00:40:24 00:00:44 vingança dos Penance Penance Extra-Diegética Fragmento 13 índios Tambores de Guerra com sonoridades graves (Piano Preparação do e pífanos + 35 78 01:39:13 01:42:42 00:03:29 Refusal híbrido Fragmento 23 Sacrifício instrumentos orquestrais) [Citação da Sagração de Stravinsky] O exército Volta das inimigo continua sonoridades avançando: orquestrais e 36 82 01:45:24 01:46:52 00:01:28 Primeiros dispa- Refusal Extra-Diegética Fragmento 23 dos instru- ros de Canhões - mentos dos Voltar para a índios Missão Ainda com as sonoridades orquestrais e dos instru- mentos dos O Início da índios enco- 37 83 01:46:53 01:47:51 00:00:58 Refusal Extra diegética Fragmento 23 Derrota bertos pelos tiros das armas e dos canhões [Volta a Sagração] O Pe. Gabriel e a comunidade Volta das indígena fazem sonoridades 38 86 01:51:10 01:53:06 00:01:56 uma passeata Refusal Extra-Diegética Fragmento 24 lembrando a em meio ao caos Sagração - O exército abre fogo Glissandos juntamente com as Sono- Mendonza é ridades 39 88 01:53:36 01:54:54 00:01:18 atingido mortal- Refusal Extra-Diegética Fragmento 24 orquestrais mente sobrepõem-se à Ave-Maria em Fade-out

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Conversa do Pe. Gabriel com 40 31 00:28:44 00:31:44 00:03:00 Remorse Remorse Extra-Diegética Fragmento 11 Rodrigo Men- donza A Inspeção do The Mission / 41 51 01:05:28 01:07:27 00:01:59 Cardeal às Te Deum Extra-Diegética Fragmento 17 Te Deum Missões 42 6 00:04:23 00:06:21 00:01:58 Créditos Iniciais The Mission The Mission Diegética Fragmento 1 ../... Ascenção 43 9 00:08:23 00:09:48 00:01:25 do Pe. Gabriel - The Mission The Mission Diegética Fragmento 2 Atingindo o Topo A Evangelização Variação do 44 43 00:46:53 00:48:59 00:02:06 de Rodrigo: O tema da The Mission Extra-Diegética Fragmento 14 Amor Missão Os Preparativos 45 67 01:29:37 01:30:04 00:00:27 The Sword The Sword Extra-Diegética Fragmento 22 para a guerra A Tomada das 46 69 01:30:26 01:31:15 00:00:49 The Sword The Sword Extra-Diegética Fragmento 22 Missões Preparativos 47 70 01:31:15 01:32:38 00:01:23 para o fim da The Sword The Sword Extra-Diegética Fragmento 22 Missão Estratégias desesperadas / Sonoridades 48 71 01:32:38 01:34:58 00:02:20 The Sword Extra-Diegética Fragmento 22 Assaltando o Tensas invasor Estratégias desesperadas / Sonoridades 49 72 01:34:58 01:35:38 00:00:40 The Sword Extra-Diegética Fragmento 22 As Tentativas de Tensas Defesas Os soldados Sonoridades 50 73 01:35:38 01:36:43 00:01:05 sobem as Cata- The Sword Extra-Diegética Fragmento 22 Tensas ratas A Espada de 51 75 01:37:03 01:37:20 00:00:17 The Sword The Sword Extra-Diegética Fragmento 23 Mendonza Rodrigo Men- Penance / 52 17 00:14:44 00:17:54 00:03:10 Vita Nostra Extra-Diegética Fragmento 4 donza Asuncion Sobreposição: Tema do Pe. O Paraíso na 53 39 00:43:21 00:44:58 00:01:37 Gabriel com o Vita Nostra Extra-Diegética Fragmento 13 terra Coral Vita Nostra Variação do Um pedaço do tema do Pe. 54 58 01:15:58 01:17:47 00:01:49 Vita Nostra Extra-Diegética Fragmento 19 Jardim do Éden Gabriel / Vita Nostra Sonoridades A guerra começa Orquestrais 55 79 01:42:42 01:44:36 00:01:54 Vita Nostra Extra-Diegética Fragmento 23 no Rio conduzindo a Vita Nostra 56 81 01:44:53 01:45:24 00:00:31 A Coragem dos Volta Vita Vita Nostra Extra-Diegética Fragmento 23

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Índios Nostra

4.19.2 - As faixas do CD das músicas do filme: “The Mission” A gravação, catalogada CDV 2402, lançado em 1998, respeita somente em parte a ordem de entrada das inserções no filme, com a diferença mais notável estabelecida na troca da última inserção, On earth as it is in Heaven, a dos créditos finais, posicionada como a primeira faixa do CD. As 20 faixas do CD, com duração total de 47 minutos e 53 segundos, são as seguintes:

FAIXA NOME DURAÇÃO

1 On Earth as it is in Heaven 3:48 2 Falls 1:53 3 Gabriel’s Oboe 2:12 4 Ave Maria Guarani 2:48 5 Brothers 1:30 6 Carlotta 1:19 7 Vita Nostra 1:52 8 Climb 1:35 9 Remorse 2:46 10 Penance 4:00 11 The Mission 2:47 12 River 1:57 13 Gabriel’s Oboe 2:38 14 Te Deum Guarani 0:46 15 Refusal 3:28 16 Assuncion 1:25 17 Alone 4:18 18 Guarani 3:54 19 The Sword 1:58 20 Miserere 0:59

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A trilha musical de Ennio Morricone emula a música sacra de procedência européia do Século XVIII com a música folclórica da América do Sul no tom espiritual da própria história. Os sons étnicos foram interpretados com a colaboração do grupo inglês Incantation, especializado no folclore andino; enquanto que outra intervenção destacada na trilha musical é a do músico contemporâneo David Bedford, que regeu os coros da primeira película de Roland Joffé, THE KILLING FIELDS (1984), e que foi encarregado desta vez de reger as vozes guaranis compostas por Morricone (CO- NESA, 2008).

4.19.3 - Conceito

Nesse filme tive um problema que apareceu pouco a pouco e que não me foi anteci- pado nem pelo diretor e nem pelo produtor. O filme é ambientado numa missão cató- lica da América do Sul (mais exatamente na fronteira entre a Argentina e o Brasil), na primeira metade do século 18. Existem padres que ensinam música aos indígenas, transmitindo o que se fazia na Europa naquela época. Em outra o jesuíta que é o che- fe da missão (Pe. Gabriel, interpretado por Jeremy Irons) toca o oboé. Existe um contexto litúrgico que necessitava ter presente, ainda ligado à tradição ocidental, mas nesse caso referido à música sacra (o uso que fiz do coral é, digamos, “palestri- niano”), e depois, mesmo pela ambientação, era para se considerar uma música dos índios, uma música étnica. (MORRICONE, 2001:172)

Portanto, o pensamento composicional de Morricone e o conceito da trilha musical levou em consideração:

1. O fato de um dos protagonistas do filme (Padre Gabriel) tocar o oboé e, portanto, portar uma experiência musical instrumental específica pós-renascentista [Barroca] ligada à própria época (o filme é ambientado na segunda metade do século 18); 2. A tradição musical da igreja depois do Concílio de Trento, trazida à América do Sul pelos jesuítas; 3. A música étnica (índios da América do Sul).

Isso tudo determinou – cronologicamente – a ordem de criação de temas baseado em três núcleos principais: A – música do oboé; B – música da igreja; C – música étnica. Portanto, a trilha musical do filme pode ser observada a partir da or- ganização da música nesses três núcleos temáticos. Obviamente, os temas vincula- dos aos núcleos centrais, além de assumirem uma importância dramática maior em

415 relação à micro-estrutura, conotam também, em suas relações, o pensamento ma- cro-estrutural da trilha musical do filme.

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4.20 - NÚCLEOS TEMÁTICOS DE “THE MISSION”

4.20.1 - Núcleo A: O oboé do Padre Gabriel

4.20.1.1: Tema Principal 1: Gabriel’s Oboe A composição da melodia do tema do oboé estava vinculada – sugerindo alguns intervalos, mas principalmente as contrações dos valores melódicos238 – ao episódio de nível interno (diegético) no qual o Padre Gabriel aparece tocando o ins- trumento239.

Figura 106 – Melodia do oboé: Padre Gabriel

238 A cena tinha como “temp track” o Adágio do Concerto para oboé em Ré menor do compositor italiano Ales- sandro Marcello (1669-1747). A composição para oboé, cordas e baixo contínuo é talvez a mais conhecida do compositor e foi divulgado graças a Johann Sebastian Bach, que o transcreveu para cravo (BWV 974). O Padre Gabriel (Jeremy Irons) seguiu a referência da música no “dedilhado” que, posteriormente, serviu de referência ao compositor Ennio Morricone. 239 Barkley explica que, primeiramente, o timbre nasal do oboé [que será o leitmotiv do Padre Gabriel] contrasta com o timbre aéreo das flautas autóctones [que representará os índios]. Em segundo lugar, a melodia está baseada em ornamentos barrocos conhecidos como gruppo (um grupo de semicolcheias que tem em comum a primeira e terceira notas) e mezzo circulo, (um grupo de semicolcheias que tem em comum a segunda e a quarta notas), figuras retóricas da chamada musica poetica que, segundo a autora, confere ao tema um sentido musical do perí- odo Barroco (BARKELEY, E. F. The Mission: The Film and Its Music. http://chnm.gmu.edu/worldhistorysources/d/268/whm.html, último acesso em 25/02/2010).

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Na referida cena, compostas pelas partes 15, 16, 17 e 18 (fragmento 3), numa clara menção ao mito de Orfeu e Eurídice240 (no mito “a música abranda as fe- ras”), a melodia é ouvida pela primeira vez quando o Padre Gabriel, logo após a sua ascenção ao território das missões, executa diegeticamente (nível interno) a melodia no oboé.

Figura 107 – Padre Gabriel – The Mission (1986)

O tema musical é utilizado pelo padre como uma linguagem de aproxima- ção e entendimento entre ele, a “selva e os selvagens”. Os índios são vistos escon- didos atrás das árvores, observando o Padre Gabriel com bastante cautela, mas fas- cinados pela música que, na execução, se expaande, com adição de efeitos de rever- beração, ecoando sobre uma série de imagens imponentes da selva e do som de um

240 Orfeu era filho de Apolo e da musa Calíope. De seu pai, recebeu uma lira de ouro, que tocava com tal perfei- ção, que o encanto da música tornava-se irresistível. Toda a natureza se renddia ao som deslumbrante dos seus acordes: sua música abrandava a todos e deixava em transe os animais, homens e deuses. Orfeu era adorado e admirado com tal intensidade por todos os homens e mulheres que, irresistivelmente, o desejavam para si. Orfeu era amado por muitas mulheres, mas amava Eurídice e casou-se com ela. Certo dia, enquanto Eurídice passeava com as ninfas, suas amigas, o pastor Aristeu avistou-a. Fascinaddo pela sua beleza ele tentou conquistá-la. Ame- drontada, Eurídice correu e na fuga pisou numa serpente que a picou e causou-lhe a morte. Desesperado, em vão Orfeu passou a cantar a imensa dor que lhe oprimia o coração. Inconsolável, resolveu descer ao local dos mortos para procurar Eurídice. No reino de Hades, tangeu as cordas de ssua lira de forma tão pungente e harmoniosa, que por alguns momentos transformou as trevas dos infernos fazendo suspender os suplícios dos condenados e como- vendo as divindades infernais. Perséfone e Hades entregaram Euurídice a Orfeuu, com uma condição: Orfeu sairia na frente, seguido de Eurídice, e não deveria voltara -se para olháá-la enquanto ela não chegasse à superfície. Orfeu aceitou a imposição e os dois amados saíram. Mas, a ansiedade de Orfeu o traiu: num átimo, ele olhou para trás a fim de certificar-se da presença da amada e Eurídice lhe foi arrebatada. Eurídice estava perdida para seempre. Posteriormente, as Mênades, enlouquecidas de paixão, o disputaram e perseguiram sem trégua e, finalmente, no afã desesperado, o dilaceraram. Orfeu morreu vítima do próprio encanto. Então, ele cantou o seu amor para sem- pre e sua lira reluz nos céus como constelação. Morto, Orfeu desceu ao Hades e lá encontrou sua Eurídice. Juntos permaneceram para sempre, como fonte de inspiração de poetas e deuses.

418 pássaro. Na aproximação dos índios, sons percussivos de um tambor são sobrepos- tos, revelando tanto o perigo, do ponto de vista do Padre Gabriel, quanto a relutância dos indígenas na aceitação do humano diferente que, numa experiência anterior, já havia causado problema.

De acordo com a expressão a música amansa as feras, este tema puro e deli- cado se apresenta na cena como uma arma de entendimento muito poderosa que o Padre Gabriel brinda aos indígenas do mesmo modo que (segundo as Sagradas Escrituras) Deus deu a palavra ao homem. E é que, seguindo uma afirmação do próprio protagonista, Deus é amor. (CONESA, 2008)

Na montagem da cena (parte 15, fragmento 3), as notas entoadas pelo je- suíta são percebidas claramente como internas (diegéticas), não somente pelas sin- cronias explícitas com as imagens, mas pela nudez dos sons, privados de filtros acústicos (do mesmo modo que ocorria com Gaita em C’ERA UNA VOLTA IL WEST e com Cockeye em C’ERA UNA VOLTA L’AMERICA), numa leitura resumida e irregular da melodia e pela incerteza da emissão, que traduzem o medo, enquanto que os guer- reiros o circundam brandindo as armas: “suspeitos, mas, ao mesmo tempo, atraídos, ‘amansados’”. Superado o momento mais crítico, no qual o instrumento é tomado e que- brado em duas partes (parte 16, fragmento 3) por um índio mais cauteloso do grupo, no ato reparador da restituição e aceitação do padre pelos índios, o tema é apresen- tado em forma instrumental integral no nível externo ou extra-diegético (parte 17, fra- gmento 3)241. O tema do oboé será, desse momento em diante, o leitmotiv do Padre Gabriel.

De todos os personagens do filme somente o Padre Gabriel é aquele que procura uma co-existência impossível entre as exigências opostas. Ele per- manece ao lado dos guaranis para morrer sem combater. Um padre, mas ele próprio abandonado pela sua Igreja. Então o tema não seria mais uma men- sagem genérica de fé cristã, mas, a materialização musical de um sentimento de amor – mais que de civilização – idealizado acima de qualquer partido. (MICELI, 1994:286)

241 Morricone refere que por causa da brevidade da cena ele ficou constrito a apresentar o tema na versão orques- tral completa imediatamente, de forma a concluir a exposição, perdendo assim uma graduação que seria benéfica para ambos os componentes (MICELI, 1994:286).

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Portanto, o som do oboé é capaz de formalizar e sintetizar em termos mu- sicais a sua ética, a sua fé: o Padre Gabriel vive e morre por sua “missão” de sacer- dote, para quem a fé e o amor cristão podem mover montanhas.

Uma clara mensagem em tal sentido, talvez a mais evidente de uma tendên- cia didática, é na cena que precede a consagração de Rodrigo Mendonza (Robert De Niro) com o nome de Padre Inácio (it. Ignazio), no qual o Padre Gabriel lê uma famosa passagem da primeira carta do apóstolo Paulo aos Coríntios242: “... Ainda que eu ffaalasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse Amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine ...” Em suma: se o Padre Gabriel é amor (mais que civilização) e o oboé é o seu instrumentum, o oboé é amor. NNaaturalmente, o nível mediado do tema é con- siderado menos artificioso que o nível externo, pois, como produto, apresen- tado pela primeira vez, de um dos próprios personagens do filme, é como se não pertencesse mais à vontade representativa do diretor e do compositor. (CONESA, 2008)

Dois momentos exemplificam essa perspectiva temática: na parte 19 (fra- gmento 13) seqüência em que Rodrigo, ex-mercaador de esccravos e assassino de seu próprio irmão, terminada uma dura penitência, estoura em lágrimas recebendo o abraço do Padre Gabriel;

Figura 108 – Padre Gabriel e Rodrigo Mendonza: The Mission (1986)

e na parte 24 (fragmento 24) no último instante de vida do Capitão Rodrigo e do Padre Gabriel.

242 I Coríntios é como é conhecida a primeira epístola de S. Paulo à igreja em Corinto, muito embora possa ter sido a segunda carta do apóstolo aos cristãos daquela cidade. É nesta carta que é encontrada a famosa passagem sobre a importância do amor genuíno, no capítulo 13; e também sobre dons espirituais, no capítulo 12. Por isso, I Coríntios é considerada uma das epístolas mais poéticas do "Apostolo dos Gentios" como Paulo de Tarso chegou a ser chamado.

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Figura 109 – Morte do Padrre Gabriel

O tema 1 é sobreposto, por um breve instante, quando Rodrigo, caído no chão e impotente, segue com os olhos o seu suuperior até que seja atingido por um tiro. O sentido de “emanação” da música do própprio personagem é evidente. Um dos índios reassume o papel do Padre Gabriel levando a cruz de prata do altar, para le- var a cabo o sacrifício de suas próprias vidas.

Figura 110 – Cardeal Altamirano

No término da cena da matança, sobrepondo a imagem ddas chamas do conflito, o corte para a figura do narrador, o Cardeal Altamirano, é bem sugestiva, pela força simbólica do antagonismo maniqueísta criado: Deus versus o diabo.

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4.20.1.2: Tema secundário derivado do Tema 1

4.20.1.2.1 ‐ The Sword Utilizando a mesma melodia do tema do Padre Gabriel, Morricone deriva “Sword”. Sobre uma nota pedal grave (nota Lá), nas cordas, Morricone mescla e con- trapõe o som do oboé com intervenções de um trompete acompanhado por acordes tensos da orquestra e por um motivo percussivo e grave de um piano. Uma ocarina acompanhada pelas cordas, intercala as sonoridades da inserção. O tema é ouvido pela primeira vez na parte 45 (fragmento 22) no momento que um menino guarani devolve à Rodrigo Mendonza a sua própria espada. Neste momento Rodrigo percebe que só o ideal do amor, cultivado pelo Padre Gabriel, não é mais suficiente para de- fender “A Missão” e que, portanto, ele deve recorrer à força para defendê-la. O tema resgata a natureza guerreira do personagem pervertendo o tema do amor, que apa- rece variado, com um caráter que procura refletir a forma guerreira de entender “A Missão”, claramente, em perigo. Confirmando o pressuposto, o Padre Gabriel não abençoa Rodrigo em sua decisão porque não está de acordo com sua forma de atu- ar. E, no entanto, isso não impede que os dois apóiem um mesmo ideal, revelados no mesmo tema musical.

4.20.2 - Núcleo B: Harmonização da melodia do Tema 1

4.20.2.1: Tema Principal 2: Moteto: Conspectus Tuus

A harmonização é aquela [a mesma], salvo em um ponto em que mudei porque depois de estar tanto em Ré Maior teria dificuldades de modular para o vi grau e, desse mo- do, não teria condições de realizar todo o implante. (Ennio Morricone)

A harmonização do tema do oboé é transformada numa progressão har- mônica que serve de base à composição de um moteto em estilo palestriniano. A peça pode ser realizada só com as cordas sinfônicas e/ou com um coral, no último caso com um texto em latim.

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Figura 111 – Harmonização: Moteto “Conspectus Tuus”

Portanto, Conspectus Tuus, foi transformado num moteto coral estilo pa- lestriniano a quatro vozes a partir da própria harmonização do tema do oboé. Miceli faz uma observação sobre o procedimento:

Não somente por esse vínculo harmônico congênito, deve-se observar que o estilo a capela pós-concílio di Trento que Morricone utiliza, não será lite- ralmente em benefício do resultado. De fato, não estando interessado num exercício de estilo servil, o temperamento do compositorr surge então, para além de uma legitimidade explícita – visto quue, além disso, confronta-se uma escrita tonal com outra modal –, a peça se aproxima à expressividade palpi- tante de um Tomas Luis de Victoria que a Palestrina, especialmente na har- monia. (Miceli, 2001:196)

As quatro vozes são escritas observando a técnica do “contraponto inver- sível” que, portanto, possibilita sua reutilização também com os outros núcleos temá- ticos, uma espécie de componente polivalente virtual. Conspectus Tuus mostra, nos compassos iniciais, um caráter mais próximo a um coral harmonizado que a um mo- teto. Posteriormente, a textura pouco mais imiitativa e virtuosística, aproximam-no mais do moteto. A peça com o texto não foi utilizada isoladamente durante todo o filme. O texto em latim do moteto foi escrito por Maria Travia, mulher de Ennio Morricone: Conspectus nostra absentia sic perit pauperum nostra Conspectus nostra absentia sic perit pauperum spes Tua voluntas inertia nostra perit populorum fides Tua costantitia humilitas Mergunt in temporum ruinam

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4.20.3 - Núcleo C: música étnica – “Vita Nostra”

4.20.3.1: Tema Principal 3: River È a idéia principal que representa o povo indígena:

Figura 112 – Tema étnico: River

Esse tema apresenta características típicas das composições para o ci- nema de Morricone. Miceli (1994:288) comenta que a sua simplicidade desarmante – como a de muitos temas nos filmes de Leone – é pensada principalmente em termos de invenção e elaboração tímbrica, como componente inseparável dos outros nú- cleos temáticos, e não como um simples revestimento postiço. A forte carga de ins- trumentos autóctones indígenas assinala a presença do povo guarani em seu com- bate pela sobrevivência. Normalmente, ela é empática com os acontecimentos onde está inserida, interferindo no ritmo da ação, pelo aumento gradativo da textura e do nível sonoro. Na parte 53 (fragmento 13), o tema é ouvido logo após o momento em que Rodrigo completa sua ascensão redentora, quando o Padre Gabriel e Mendonza tra- balham de forma conjunta na construção do ideal da Missão. Sobre a melodia do Padre Gabriel executada por uma flauta, no momento em que a cruz ascende ao alto da igreja, o tema começa a soar, composto de percussões indígenas e vozes corais potentes.

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Figura 113 – Comunhão

O caráter épico da comunhão paradisíaca é evidente, revelando na simul- taneidade da sobreposição e justaposição dos temas em contraponto, a maneira pela qual Morricone simboliza musicalmente a união da igreja com o povo indígena. Na cena, mesmo que a composição adquira seu ápice sonoro quando os guaranis co- brem o dorso de Mendonza com as pinturas guerreiras da tribo, o tema também pre- nuncia os acontecimentos: os homens do povo guarani caçam um javali, mas o per- sonagem de Robert de Niro não se atreve a empunhar uma arma para matá-lo. Na batalha final contra os exércitos dos colonizadoores o tema reforça a voz dos guara- nis, renovando o mesmo tom épico e o ideal da Missão. Em suma, a união dos dois temas centrais, o do amor e o dos índios, sim- boliza a possibilidade de comunhão da diversidade da natureza humana.

4.20.3.2: Temas Secundários derivados do Tema 3

4.20.3.2.1 ‐ Asuncion: Na parte 52 (fragmento 4) “Asuncion” é ouvido quando o Capitão Rodrigo Mendonza leva à cavalo alguns índios capturaddos no alto das cataratas para serem comercializados como escravos em Assunção. O motivo da melodia é executado in- sistentemente por uma quena grave (flauta autóctone) sob uma base rítmica sincrô- nica com o ritmo do “galope dos cavalos” e pizzicatos das cordas.

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4.20.3.2.2 ‐ Guarani: Guarani é toda composta por sonoridades percussivas autóctones relacio- nadas aos índios. A concepção primitiva de Morricone, utilizada desde o primeiro fil- me de Leone, revela-se na utilização de quenas (flautas autóctones) graves e agu- das, assovios (píus) dos mais diversos, ocarinas e de um tambor. Em meio a essas sonoridades é sobreposta uma figura melódica aguda obstinada nas cordas em se- gundas-menores (reforçando as notas Sol e Fá#) com intervenções de um som per- cussivo grave do bumbo da orquestra. As quenas intervém com o motivo rítmico e melódico de “Vita Nostra”. O tema é o primeiro ouvido no filme, partes 25 e 26 (fragmento 1), pontu- ando o momento exato do início de um flashback. Na seqüência, o Cardeal Altamira- no dita uma carta endereçada ao Papa da igreja católica que o incumbiu de julgar “A Missão”. O relato do Cardeal se transforma na voz do narrador de toda a história. De fato, todos os acontecimentos se apresentam em flashback no filme. O tempo real da narração do Cardeal Altamirano resulta numa carta distorcida das imagens e da mú- sica dos eventos em flashback. Portanto, as flautas autóctones, as cordas orquestrais e a percussão con- formam o tema nessa inserção como um prelúdio à teleologia trágica no desenvolvi- mento da história. A música apresenta o mundo misterioso e inóspito da selva num tom de ameaça e de suspense. Sobre as imagens narradas pelo Cardeal Altamirano a música resulta anempática, de modo que pode parecer que está equivocada, que não se refere ao que está sendo mostrado no filme. De fato, a música é sobreposta por “La Folia243” executada diegeticamente pelo Padre Gabriel e um grupo de crianças indígenas tocando violino. O caráter antagônico da sobreposição, mesmo velando a real ameaça, impõem-se sobre a melodia de “La Folia”, enquanto a voz over do Car- deal afirma que “As nobres almas destes índios se inclinam para a música”.

243 “La Folia” (também escrito “Follia”) é um antigo tema europeu formado por um melodia muito simples sobre uma progressão harmônica padronizada ((i-V-i-VII / III-VII-[i ou VI]-V / i-V-i-VII / III-VII-[i ou VI7]-IV[4-3]- i). Pelas suas características peculiares, a peça foi, e é até hoje, muito utilizada pedagogicamente (http://en.wikipedia.org/ wiki/Folia, último acesso em 6 de outubro de 2011).

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A antecipação anempática do tema sobre as primeiras imagens do filme é uma “suspensão” que só resolverá no confronto final (fragmento 24), quando o tom ameaçador das flautas autóctones são reproduzidos reiteradamente na imagem dos soldados espanhóis e portugueses atacando a missão. Portanto, a tensão prenunci- ada pelo tema sobre as imagens iniciais do Cardeal Altamirano prenunciava o devas- tador final da Missão.

4.20.4 - Tema Principal 4: The Mission Das notas principais do tema “River” (núcleo temático C) foi derivada a melodia do tema: The Mission.

Figura 114 – The Mission (1986)

É o tema que será associado tanto ao título do filme, nos créditos iniciais, quanto ao principal objetivo dos seus dois protagonistas principais: Padre Gabriel (Jeremy Irons) e o Capitão Mendonza (Robert De Niro). Empregando o tratamento composicional sincrético (“contaminado”) entre a concepção “primitiva”, representado pela intervenção de flautas com características étnicas (autóctones) indígenas, e a concepção “pseudo-sinfônica”, principalmente na utilização dos instrumentos de arco com a harmonia lenta e grandiloqüente do mote- to, o tema articula-se na composição da dramaticidade da narrativa como símbolo do objetivo idealizado pelas personagens do filme: a Missão de São Carlos – local aci- ma das Cataratas do Iguaçu onde se busca construir um paraíso em que a convivên- cia das culturas diferentes possa basear-se na justiça divina e no amor. O tema é também associado às Cataratas do Iguaçu. Entre outras, sua utilização conota:

 divisão/separação: o É o símbolo da “divisão das águas” (planos) onde a parte de cima aponta para a possibilidade de um paraíso na terra, revelando sua im- ponência tanto aos jesuítas quanto ao espectador.

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 ascensão literal e simbólica. o Do Padre Gabriel e de Rodrigo Mendonza à comunidade Guarani do al- to das Cataratas.

4.20.4.1: Temas secundários derivados do Tema 4: The Mission

4.20.4.1.1 ‐ Falls/Climb e Penance/Remorse Para representar a complexidade do ideal da Missão, Morricone deriva de seu tema mais dois pares de temas dedicados, respectivamente, ao amor e fé do Padre Gabriel e ao espírito guerreiro e irreverente do Capitão Rodrigo. Uma contra- dição que se configura na natureza dual do próprio filme: Falls/Climb e Penan- ce/Remorse. Os dois pares são associados, respectivamente, as ascensões do Pa- dre Gabriel e de Rodrigo Mendonza ao alto das cataratas. Portanto, os dois pares de temas são dedicados, respectivamente, ao amor incondicional [de Gabriel] e à força desnorteada [de Rodrigo], ressaltando o caráter antagônico dos dois personagens. Na parte 43 (fragmento 2) Falls/Climb são ouvidos pela primeira vez no momento de ascensão do Padre Gabriel. Apesar de derivados, ambos têm a mesma instrumentação e o mesmo caráter do tema da Missão, refletindo a pureza, abnega- ção e fé do personagem na sua “missão” pessoal. Na parte 33 (fragmento 12) Penance/Remorse, são articulados à ascen- são de Rodrigo Mendonza. O caráter do tema da Missão é transformado de forma a assumir um caráter mais ambíguo e tétrico, que contrasta com a fé e o amor no ideal de liberdade do Padre Gabriel. O tema articula-se à penitência244 e ao caminho de

244 A penitência de Mendonza é uma clara menção ao Mito de Sísifo. Na literatura grega Sísifo foi condenado a empurrar incessantemente uma pedra até o topo de um monte apenas para vê-la rolar até embaixo novamente, uma metáfora dolorosa para muitos tipos de trabalhos: fúteis, sem esperança e repetitivos. Camus tenta extrair da lenda homérica as circunstâncias exatas que levaram a este extremo castigo. A lenda declara que Sísifo se rebelou contra os deuses, que ele não os levou a sério e tentou roubar os seus segredos. Outra lenda traz que Sísifo conse- guiu prender a morte em cadeias e que foi punido por isto por Plutão. Para Camus, a negativa de Sísifo da morte e dos deuses faz dele o mais absurdo dos heróis, e seu castigo igualmente a maior metáfora para o homem existen- cial. Para Camus, o momento chave no castigo de Sísifo está naquele instante em que a pedra rola monte abaixo e Sísifo sabe que ele deve ir atrás dela e tentar, em vão como sempre, empurrá-la para o alto do monte e além. Para Camus, este é o momento da consciência adquirida. “Cada um de nós deve, em algum momento, vislumbrar o conhecimento e chegar à conclusão de que não importa quão duro a gente trabalhe, estamos fadados a falhar no sentido de que mais cedo ou mais tarde morreremos”. Sísifo [e Mendonza], como homem, é rebelde mas inca- paz, e é naqueles momentos de consciência que ele consegue transcendência sobre os deuses. No final das contas, Camus vê em Sísifo não a imagem de um trabalho duro contínuo, cansativo e incessante, mas a de um homem que reconhece que seu destino lhe pertence. Ele e somente ele pode determinar a essência da existência. Camus

428 redenção que o personagem deve empreender para purgar-se. De fato, na primeira aparição do capitão Mendonza no filme, o tema principal já é ouvido desse modo, revelando inicialmente o personagem como uma das maiores ameaças da Missão. Em outra cena posterior, quando o Padre Gabriel visita a Mendonza no convento, a conversa entre eles também é acompanhada pelo mesmo tema ambíguo. Conesa (2008) descreve Penance como “herdeira” (sic) das formas com- posicionais de Bernard Hermann [provavelmente do tema de Vertigo], uma variação que se desenvolve em espiral, baseando-se na contínua reiteração de arpejos disso- nantes.

Assim, a peça evoca, simultaneamente, a ação do personagem (que cai e se levanta uma e outra vez) e seus sentimentos de desorientação. Lograda a re- denção de Mendonza, o tema principal original é ouvido de novo, quase de forma imperceptível, quando ele lê (em voz off) as crenças religiosas de fé, esperança e caridade incluídas em um livro que recebeu do Padre Gabriel. Durante a leitura, o antigo mercenário assume e interioriza, definitivamente, a sua “missão”.

Desse modo, “Remorse” inicia com o mesmo clima ambíguo e tétrico, mas caminha para, pouco a pouco, retomar o mesmo caráter do tema original da Missão, articulando a ascensão simbólica do Capitão Rodrigo Mendonza.

4.20.4.2: Miserere Da mesma melodia de a Missão, Morricone também deriva Miserere. O Miserere (misericórdia) é parte da missa católica dos Mortos (o Ré- quiem). O Miserere é cantado por uma voz branca (parte 28, fragmento 26) associa- do a uma menina sobrevivente da destruição da missão, no final do filme. Ela é ex- traída do mesmo motivo de "Vitta Nostra”.

Sergio Miceli acrescenta e comenta a inserção245:

termina seu ensaio com Sísifo no pé do monte, preparado para suportar o exercício tortuoso e inútil de rolar a pedra monte acima uma vez mais, mas Camus não vê Sísifo como atormentado, castigado; pelo contrário, ele vê Sísifo aliviado. Aliviado porque descobriu o segredo da vida. “A luta pelas alturas é suficiente para encher o coração do homem” (CAMUS, Albert O Mito De Sísifo). 245 Sergio Miceli, in: Ennio Morricone (1995), op. cit.

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Nesse complexo relacionamento entre valores espirituais e musicais, Morri- cone se manteve revolvido, são palavras suas, porque viu realizado, concre- tamente, com uma grande dignidade, um princípio no qual sempre acreditou. O princípio de que a Música pode ser fonte de salvação. Parece-me verda- deiramente significativo que entre os sobreviventes, a menininha indígena que vai recolher qualquer coisa dos avanços daquele momento de civilidade, tem em frente a si dois objetos: um violino e um candelabro, e, sem hesita- ção, escolhe o violino. Creio que é sobre esse ponto que se aninha um dos mais belos temas que Morricone escreveu [Miserere].

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4.20.4.3: Corais à cappela Para a ordem dos jesuítas o canto coral constituiu uma das principais fer- ramentas ligadas à catequese utilizada nas missões. No filme, os cantos dos índios, aprendidos dos jesuítas, não representam diretamente a emanação étnica das tradições indígenas, mas, uma nascente assimi- lação cultural, portadora de novos valores espirituais. Em suas inserções, os corais conotam dois tipos de associações principais e simultâneas: espiritual e colonialista. Se, por um lado, os corais interpretam as possibilidades pedagógicas e o fascínio indígena, revelados numa grandiosidade intuitiva do potencial das arquiteturas poli- fônicas, por outro lado, conectam-se diretamente às forças antagônicas reveladas nas atitudes de três personagens: nas dúvidas do julgamento do Cardeal Altamirano (Ray McAnally) enviado pelo Papa; na arrogância espanhola de Don Cabeza (Chuck Low); e na astúcia do português Don Hontar (Ronald Pickup).

4.20.4.3.1 ‐ Ave Maria Guarani A “Ave Maria Guarani” pode ser pensada como a peça que dá voz ao povo indígena e une, assim, as crenças religiosas européias com a alma espiritual dos guaranis, ignorada sob o pré-julgamento de selvagens. A Ave Maria Guarani sempre aparece em nível interno (diegeticamente) e, nesse sentido, representa a voz dos habitantes da missão, um povoado que os colonos não permitem expressar-se com palavras. O tema é usado pela primeira vez na audiência do tribunal cantada por um menino indígena (parte 6, fragmento 16). A escolha de Morricone da Ave Maria é importante na medida em que as palavras remetem ao anjo Gabriel (xará do Padre Gabriel), como o anjo que anuncia à virgem Maria que ela está grávida do filho de Deus. Desde então Maria é considerada pela tradição católica uma intermediária, uma advogada. O católico costuma usar esta oração para pedir a Maria que interce- da com Cristo em seu nome. No filme, o Padre Gabriel usa a música como um pedi- do da Igreja para interceder a favor dos guaranis e preservar as missões como um

431 refúgio contra os escravocratas. Além disso, na discussão central da cena em ques- tão, entre portugueses, espanhóis e jesuítas, o modo de cantar do pequeno índio deixa claro que seu povo não está formado por animais selvagens (que é a opinião dos colonizadores espanhóis e portugueses), mas, por pessoas e “gentes” com alma, espirituais (que é o ponto de vista defendido pelos jesuítas). Na seqüência (parte 7, fragmento 19), o tema articula-se novamente como súplica. Sobre as imagens da recepção do Cardeal Altamirano, na missão de São Carlos, e das ações cotidianas dos indígenas no esforço de construir a missão, o tema é considerado por Conesa (2008) como um canto dos anjos, já que alguns dos indígenas que a interpretam estão vestidos de branco e rodeiam o Cardeal Altamira- no: “é como se quisessem demonstrar que a verdadeira palavra de Deus não é transmitida por ele (ou pela Igreja que representa), mas pela música”. De fato, na parte 9 (fragmento 24), em uma das últimas cenas do filme, quando os portugueses perpetram o incêndio da missão de São Carlos e iniciam a matança de mulheres e crianças indígenas ali refugiadas, a Ave Maria Guarani se revela como a única arma que eles utilizam para se defender. No momento citado o tema tem um caráter anempático frente à guerra. Depois da morte do Capitão Rodrigo Mendonza (fragmento 24) o tema é sobreposto pela música da guerra (“Guarani”), que sobrepõe também o tema do amor (“Gabriel’s Oboe”), no instante em que morre o Padre Gabriel.

4.20.4.3.2 ‐ Te Deum O Tema é inserido pela primeira vez na parte 41, fragmento 17. O Te Deum é um dos primeiros hinos cristãos, tradicional da ação de graças. Nele, encon- tramos palavras reveladoras para o argumento do filme: Cremos que um dia virás como juiz. Rogamos-te, pois, que venhas em ajuda de teus servos [...] Que tua mise- ricórdia, Senhor, venha sobre nós, como a esperamos de Ti. Portanto, a Ave Maria e o Te Deum funcionam como oração e súplica dire- ta ao Cardeal Altamirano, a quem cabe julgar a continuidade das missões.

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4.20.5 - On the earth as it is in Heaven: A Síntese da orrganização temática no filme A figura abaixo sintetiza a organização temática do filme:

Figura 115 – Organização Temática de “A Missão” (1986)

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4.20.5.1: Os Créditos Finais

Joffè é um grande diretor, porém um daqueles que tem medo da música e talvez tema que a expressividade doada pela música à cena ressalte uma carência sua. Isso eu entendi em muitos discursos sobre a Missão, mas, sobretudo em outros filmes onde trabalhamos os dois somente, enquanto que na Missão existia um produtor italiano (Fernando Ghia) que o convidava a deixar as coisas como estavam, como eu as tinha pensado. Por exemplo, no final, durante a matança, Joffé queria mesclar a Ave Maria Guarani e o tema do oboé. Eu não queria assim, mas ele não me ouviu e fez um pasti- cho. Por isso estou certo de seu temor pela música, além disso, sempre a deixou com o volume baixo nos momentos mais expressivos do filme. (Ennio Morricone)

A modularidade e o potencial dialético da música, presentes desde Per un pugno di dollari e nos filmes posteriores de Leone, atualizam-se concretamente nos núcleos temáticos principais de A MISSÃO. Porém, considerando os valores leitmotívi- cos associados aos módulos temáticos independentes, temos, na justaposição de temas, uma situação contínua de acordo e de conflito, uma relação dialética entre as partes que assume um significado simbólico preciso no filme, presente também como lógica da partitura. Além disso, os temas principais dos módulos A, B e C podem ser execu- tados isoladamente ou nas possíveis combinações A-B / A-C / B-C / A-B-C.

Figura 116 – On Earth as It is In Heaven – Créditos Finais

Quis misturar conjuntamente as três idéias, e o fiz em todo o filme, prevale- cendo duplas: oboé e coro; oboé e música dos índios; música dos índios e coro litúrgico. Somente no final misturei todos os três componentes – havia previsto desde o início, então foi feito sem nenhum esforço – com a idéia de interpretar a comunhão dos padres com os índios. O empenho técnico da música é análogo ao empenho que existe na comunhão entre eles. Para mim,

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atingir esse resultado foi um grande motivo de satisfação, porque era difícil encontrar um caminho tão autônomo, mas também tão misturado, dos três componentes. (MORRICONE, 2001:172)

Desse modo, Joffé reservou o ápice da trilha musical para os Créditos Fi- nais. Um amálgama de temas autônomos executados por uma orquestra sinfônica com os temas de dois corais distintos e em compassos diferentes, um quaternário e outro ternário, mais o tema do oboé e o da percussão autóctone. Todos concebidos como leitmotivs, representando os três elementos isolados citados por Morricone e que, quando combinados, simbolizam a espiritualidade almejada, a união dos ele- mentos: o próprio conceito de ‘Novo Mundo’. Para Miceli (1994) trata-se de um dos resultados mais altos atingidos na música para filmes, não só na produção de Ennio Morricone:

Já vimos, tratando do método dos níveis, que o nível externo [extra- diegético], para além das qualidades musicais, é sempre destinado a parecer um ato artificial, aceito por convenção e por seu indubitável potencial ritua- lístico e auto-celebrativo. Mas, neste caso – e assim dizendo chegamos à mú- sica em questão – a mistura dos três níveis mediados [meta-diegéticos] e a sua pré-existente colocação no filme portam a um nível externo privado de seu maior defeito. As suas co-existências formam o sigilo, mas, sobretudo o significado mais potente e menos didático, menos retórico que se possa ima- ginar. [...] Casos desse gênero são encontrados raramente na história das relações entre música e cinema. Pode-se pensar em Aleksandr Nevskij, mas a aproximação é imprópria porque a relação diretor-compositor, o seus modos de trabalhar, já garantiam um resultado fora do comum. . (MICELI, 2001:280)

Algumas críticas endereçadas ao filme apontam que as referencias musi- cais apresentam problemas estilísticos e deslizes cronológicos como, por exemplo, na presença dos arcos246. Miceli (2001) refuta o purismo de tais críticas lembrando que, no caso da música, a inserção dos arcos reforça as partes do coro a capela, com o resultado de propor ao mesmo tempo um reconhecimento de fundo melódico contra uma diversidade tímbrica. Ele acrescenta:

Esta é a música do artífice que nasce descoberta e no fechar das cortinas – no ponto de transição entre ficção e realidade – oferecendo-se ao especta-

246 No filme também é visível um laboratório de luteria construído pelos jesuítas.

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dor. Nesse gesto pode-se intuir uma alusão secreta autobiográfica, uma de- claração de competência, de identificação artística e espiritual (um pouco como quando os pintores do Renascimento se auto-retratavam num ângulo de uma figura do altar), mas sobre esse ponto não posso continuar, pois, es- tou de frente ao próprio autor. (MICELI, 2001)

O filme foi marcante, na época de seu lançamento, por apresentar a pro- blemática da vida comunitária com o outro, com o diferente. Embora a trilha de Mor- ricone propenda para um significado de uma comunhão utópica, o trágico resultado corrobora para uma visão pessimista da história narrada pelo filme. O material musi- cal é organizado de modo a poder articular características narrativas análogas às pertencentes à dramaturgia: podem “agir” como “atores” no palco, respondendo a um roteiro, que é a própria simbologia composicional. Miceli formula uma opinião interessante que corrobora com algumas críti- cas feitas ao filme:

Tentei imaginar que coisa teria acontecido à Missão se Joffè tivesse agido, não como Eisenstein, mas, como Leone. O tema do oboé dá origem a todo o resto e o esquema harmônico permanece o mesmo. Este, como dizia, é um dos resultados mais altos atingidos pela música no cinema – em sentido for- mal e conceitual – também se, infelizmente, apresente ausências sob o plano dos equilíbrios, das relações recíprocas entre música e imagem. Se poderia pensar que Joffè não tenha se dado conta do potencial extraordinário dispo- nível, ou era tarde demais para intervir em favor de um resultado mais am- plo e efetivo.

Seja como for, o empenho artesanal do músico na composição, em pós- produção, das inserções musicais do filme é análogo aos dos jesuítas e dos índios representados. A música de Ennio Morricone foi pensada precisamente para o filme, mas, pelos seus múltiplos valores, deve permanecer como um grande modelo de trilha musical cinematográfica.

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4.21 - A MÚSICA DE CANONE INVERSO: MAKING LOVE – 2000

4.21.1 - Ficha Técnica Canone Inverso - Making Love Adaptação do Livro “Canone Inverso” de Paolo Maurensig Nacionalidade: Itália Ano: terminado no ano de 1999 e lançado no ano de 2000 Duração: 1h 57m Diretor: Ricky Tognazzi. Roteiro: Simona Izzo, Ricky Tognazzi e Graziano Diana Produção: Vittorio Cecchi Gori Produtor executivo: Mario Cotone Elenco – na ordem dos créditos Ator Interpreta Personagem/Papel Hans Matheson Jeno Varga O Violinista Mélanie Thierry Sophie Levi A Pianista Lee Williams David Blau O filho do Barão Blau David Blau Gabriel Byrne Narrador do Flashback(2) O Homem do Violino Ricky Tognazzi O Jovem Barão Blau No Flashback(2) do filme Peter Vaughan O Velho Barão Blau No tempo diegético real do filme Nia Roberts Costanza No tempo diegético real do filme Adriano Pappalardo Wolf O Padrasto de Jeno Varga Andy Luotto Maestro Hischbaum Diretor do Colegium Musicum Professor de Violino do Colegium Musi- Mattia Sbragia Maestro Weigel cum Domiziana Giordano Baronesa Blau A mãe de David Andrea Prodan Carlo Marido de Sophie Levi Rachel Shelley Mãe de Jeno No tempo do Flashback(2) Música Original: Composta, Orquestrada e Dirigida por Ennio Morricone Edição: Carla Simoncelli Produção Designers: Francesco Bronzi Decoradores: Nello Giorgetti Costume Designers: Alfonsina Lettieri Maquiagem: Giusy Bovino Estilista chefe Gerenciamento de Produção: Alessandro Baragli Supervisor de Pós-Produção Unidade II Diretores ou Assistente Fabrizio Sergenti Castellani Diretor assistente de Diretores: Departamento de Arte: David Orlandelli “storyboard” artista Tullio Morganti Som Departmento de Som: Fabio Venturi Engenheiro da trilha musical Companhias Produtoras Cecchi Gori Group Tiger Cinematográfica

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Mario e Vittorio Cecchi Gori - C.E.I.A.D. Distribuidores Cecchi Gori Distribuzione (Itália)

Tabela 11 – Ficha Técnica – “Canone Inverso”

4.21.2 - Comentários Iniciais O filme CANONE INVERSO é uma adaptação baseada no romance homôni- mo de Paolo Maurensig. Sua ação dramática remete a uma linha narrativa semelhan- te à de “O Violino Vermelho247”, ou seja, explorar o mistério por trás da vida dos donos de um violino especial que, no início do filme, está sendo vendido num leilão. O filme foi calculadamente lançado primeiramente no mercado doméstico europeu, em inglês com uma dublagem em italiano, no início da primavera de 2000 com uma verba de aproximadamente três milhões de dólares. Os produtores “Cecchi Gori” realizaram sua première no mercado de Cannes. Fez parte da estratégia de lançamento proporcionar uma maior visibilidade ao diretor Ricky Tognazzi que ainda carece de trabalhos mais distintivos (ele foi o diretor de filmes como LA SCORTA, 1993 e ULTRA, 1992). Nesse sentido, o CANONE INVERSO representa uma tentativa habilido- sa de inserir o diretor italiano no mercado com características inglesas seguindo seu

épico televisivo (HBO) EXCELLENT CADAVERS, de 1998, lançado em DVD em 1999. No filme, um violino raro, a memória de uma composição musical um “Ca- none Inverso” e um filho recém-nascido, Jeno (Hans Matheson), foi tudo que foi dei- xado para uma mulher e humilde fazendeira (Rachel Shelley) pelo pai, Barão Blau (Peter Vaughan), um jovem judeu que os abandonou na época do final da Primeira Guerra Mundial. A peça canônica é executada por dois violinistas que se conhecem quando estudantes num conservatório. Posteriormente, na presença da música, eles descobrem que são irmãos. O “Canone Inverso” protagoniza a história intrincada so- bre o amor, a música, a paixão e o destino, tendo como pano de fundo os aconteci-

247 Filme, dirigido por François Girard, conta a saga de um violino vermelho. Inicia a história do violino vermelho no século 18, quando um artesão italiano o constrói um instrumento perfeito, no intuito de homenagear sua espo- sa, que está prestes a ter um filho. Mas uma tragédia ocorre e a esposa e o filho morrem no parto. O violino é construído e, ao longo dos 300 anos seguintes, passa de mão em mão por diversos continentes, sempre produzin- do belos sons e acompanhado por uma misteriosa sina, até parar numa casa de leilões de instrumentos raros. A trilha musical, composta por John Corigliano, reflete com mestria os diversos períodos históricos relacionados à história do violino vermelho concomitante com diversos estilos musicais da própria História da Música.

438 mentos relacionados à presença da Tchecoslováquia nas duas grandes guerras mundiais e o episódio histórico de 1968, que ficou conhecido como “A Primavera de Praga248”, quando os tanques soviéticos invadiram a cidade. Num primeiro contato com o filme, o apelo da adaptação literária parece convencional e antigo. A produção foi planejada para ir de encontro a uma platafor- ma comercial onde o livro desse drama europeu, foi e ainda é muito apreciado. Po- rém, no modo complexo como a música foi utilizada no filme, articula todo um conte- údo de ordem simbólica que expande concretamente as suas potencialidades de lei- tura, interpretação e compreensão, contribuindo para uma multiplicidade de significa- dos enriquecedores.

A motivação da análise do filme se deu através de seu título CANONE IN-

VERSO: “porque Ennio Morricone e Ricky Tognazzi utilizaram uma forma contrapontís- tica hermética num filme com características hollywoodianas?”

248 O ano de 1968 foi o ano que marcou o fim da “Primavera de Praga”, um experimento de “socialismo com face humana” comandado pelo líder do Partido Comunista da então Tchecoslováquia, Alexander Dubcek. O movi- mento representava o desabrochar da democracia atrás da Cortina de Ferro. Mudanças inéditas no bloco socialista eram adotadas no país: imprensa livre, judiciário independente e tolerância religiosa. Dubcek introduzia reformas políticas e econômicas, com o apoio do Comitê Central. O mundo olhava para Praga com apreensão. O que fari- am os soviéticos e os seus vizinhos comunistas? As liberdades conquistadas em poucos dias pelo povo tcheco eram inadmissíveis para as velhas lideranças das “Democracias Populares”. Se elas vingassem em Praga eles teriam que também liberalizar os seus regimes. Além disso, existiam as conseqüências geopolíticas, uma brecha na muralha soviética: uma Tchecoslováquia social-democrata e independente significava o enfraquecimento do Pacto de Varsóvia, o sistema defensivo anti-OTAN montado pela URSS em 1955. Então, numa operação militar de surpresa, as tropas do Pacto de Varsóvia lideradas pelos tanques da URSS entraram em Praga no dia 20 de agosto de 1968. A “Primavera de Praga” sucumbia perante a força bruta. Sepultaram naquele momento qualquer perspectiva do socialismo poder conviver com um regime de liberdade. Dubcek foi levado a Moscou e depois destituído. Cancelaram-se as reformas, mas elas lançaram a semente do que vinte anos depois seria adotado pela própria hierarquia soviética representada pela política da glasnost de Michail Gorbachov. Como um toque pesso- al e trágico, em protesto contra a supressão das liberdades recém conquistadas, o jovem Jan Palach incinerou-se numa praça de Praga em 16 de janeiro de 1969.

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4.22 - ORGANIZAÇÃO TEMÁTICA DA TRILHA MUSICAL

4.22.1 - Decupagem Duração do filme: 117 minutos (1:57:39 [uma hora, cinqüenta e sete minu- tos e trinta e nove segundos] mais precisamente). Total das Inserções Musicais: 104 minutos (1:44:26 [uma hora, quarenta e quatro minutos e vinte e seis segundos] mais precisamente). Porcentagem com música: 88%; porcentagem sem música: 12%. O filme foi decupado em 59 fragmentos A tabela abaixo apresenta as inserções musicais e seus respectivos frag- mentos:

Nº Início Fim Referência Fragmento ED: Canone Inverso Abertura 1 0:00:00 0:01:59 Fragmento 1 Créditos Iniciais 1

1 – Fragmento 2

2 0:02:52 0:03:20 ED: Intermezzi – 1:20 2 – Fragmento 3

3 – Fragmento 4

Música Diegética 3 0:05:00 0:06:02 Fragmento 5 Pessoas da Primavera de Praga 4 0:06:15 0:06:33 ED: Tema d’Amore Disperato (cordas) D: Canone Inverso (Nel Campo) Solo no violino

Fragmento 6 5 0:07:26 0:08:28 Interferências extra-diegéticas: Coro infantil e Orques- tra; Termina só com o solo diegético. 2 ED: Canone Inverso Cantada em bocca chiusa por uma 6 0:10:42 0:11:07 voz feminina Fragmento 7 3

7 0:11:30 0:11:45 ED: Vaghi Riflessi D: Canone Inverso 1 – Fragmento 8 8 0:11:52 0:12:41 Agora diegeticamente cantado pela mãe do menino, 2 – Fragmento 9

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levando para ED: “in bicicletta” 4 D: Estudos progressivos no violino Emenda em música extra-diegética 9 0:13:21 0:14:24 (Jeno – crescido) Volta num estudo (diegético) Jeno quebra as cordas do Fragmento 10 violino tocando. ED: Intermezzi 10 0:14:48 0:15:14 (Jeno recebe o violino do pai) 11 0:15:14 0:15:19 D: Anúncio pelo rádio do concerto de Sophie Levy.

12 0:15:21 0:16:45 D: Finale di un concerto romantico interotto. 1 – Fragmento 11

D: O locutor do rádio anuncia o final inesperado do 13 0:16:47 0:16:51 2 – Fragmento 12 concerto ED:Trecho do Concerto Interrompido 14 0:18:28 0:18:39 Fragmento 13 Solo de violino D:Som de Música de Piano (ao longe) 15 0:18:44 0:20:20 Sophie Levy – Estudando

Fragmento 14 Parte do piano do Concerto Interrompido 16 0:20:35 0:21:45 ED: Chiaro Di Luna Di Giorno

1 – Fragmento 15

2 – Fragmento 16 17 0:22:31 0:23:13 ED: final do “Chiaro Di Luna Di Giorno” 3 – Fragmento 17

4 – Fragmento 18

18 0:26:24 0:26:51 ED: Con disperata gioia Fragmento 19 Concerto de Madame Levy – Boemia 1 – Fragmento 20 Chiaro Di Luna Di Giorno 19 0:29:42 0:30:48 (inicialmente diegético) 2 – Fragmento 21

Passa para a orquestra 3 – Fragmento 22 extra-diegeticamente.

Solo violino do tema principal do Concerto Interrompido 20 0:31:50 0:32:15 Inicia extra-diegético; Termina diegético. Chiaro Di Luna Di Giorno 21 0:33:08 0:33:23 Sophie Levy sentada ao piano Fragmento 23 com corte súbito na música. Retoma a música no piano; 22 0:33:34 0:34:11 Música passa a orquestra; Volta o tempo da narração (Primeiro Flash-back).

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Tema do Canone Inverso (Morte da mãe e do futuro irmão) Inicia Extra-diegético; Torna-se Diegética: 23 0:34:35 0:35:10 Jeno tocando ao lado do caixão de sua mãe dentro da igreja. Fragmento 24 5

ED: Repetição do primeiro dos estudos progressivos 24 0:35:41 0:36:05 (metálico e desafinado); Jeno grita por sua mãe. 25 0:36:30 0:37:09 ED: Elmetti Di Fuoco Fragmento 25 26 0:37:42 0:38:24 D: Som de Instrumentos de Orquestra Afinando ED: Tema d’Amore Disperato; 27 0:38:28 0:39:30 Fragmento 26 Primeiro Beijo de Jeno e Sophie 28 0:39:33 0:39:50 D: Volta o som da orquestra afinando D: Som de instrumentos diversos 29 0:41:16 0:41:46 (na escola de música) Fragmento 27 Jeno encantado com a escola de música. 30 0:41:46 0:41:54 Som: Professor (Maestro Weigel) afinando um violino Fragmento 28 D: Jeno executando a Ciaccona para a classe. 31 0:42:35 0:42:47 (O professor Weigel interrompe) Jeno, depois da bronca do professor, reinicia a Ciac-

Fragmento 29 32 0:43:04 0:43:23 conna de Bach. (O Maestro Weigel interrompe novamente) 33 0:43:46 0:43:54 D: Franz executa a Ciaccona no lugar de Jeno. D:Capriccio – La Caccia 34 0:44:25 0:44:33 Tocada por Jeno. O bedel interrompe pedindo silêncio. Jeno insiste em tocar; 35 0:44:37 0:44:49 O bedel, irritado, vai chamar o Maestro Weigel D: A música de Jeno é respondida por outro aluno da escola em outro quarto (o aluno é o irmão de Jeno)

Fragmento 30 Inicia-se um diálogo entre os dois tocando o Capriccio – La Caccia; 36 0:44:51 0:46:13 Eles saem do quarto e tocam pelos corredores escuros da escola, procurando se esconder do Bedel e do Ma- estro Weigel. Termina com o Maestro Weigel confiscando o violino de Jeno (que foi deixado pelo pai) Jeno, de castigo (sem instrumento), executa (mimeti- zando como se estivesse com o violino) o Capriccio 37 0:46:37 0:46:42 Fragmento 31 cantarolando as notas da melodia. (O “irmão” (David) surge na janela).

442

38 0:48:24 0:49:21 ED: Goliardi e Sport Fragmento 32 39 0:49:41 0:50:44 D: Goliardi Fragmento 33 ED: Tema d'Amore Disperato 40 0:51:37 0:52:03 Fragmento 34 (Sophie Levy visita o conservatório no dia de ano novo)

ED:Chiaro Di Luna Di Giorno; 1 – Fragmento 35 41 0:53:56 0:55:04 Sophie Levy discursa para os alunos. 2 – Fragmento 36

D: Finale di un concerto romantico interotto (acompanhamento de piano); Audição-Concurso entre os alunos de violino do conser- vatório. 42 0:56:47 0:58:29 (Os finalistas são David e Jeno [irmãos]) Fragmento 37 Maestro Weigel discorda do resultado da banca, no caso de Jeno, e abandona a audição. O concurso não pode terminar e será remarcado em outra data. ED: Avvolgente; Invasão de Praga pelas tropas de Hitler. 43 0:59:59 1:01:20 1 – Fragmento 38 Os alemães enviam uma comissão de controle no 2 – Fragmento 39 conservatório. ED: sininhos; 44 1:04:39 1:04:51 Fragmento 40 O nome de Costanza é pronunciado. D: Song that my mother taught me [per violino solo] A mãe de David se engana pensando que ele está 45 1:05:39 1:06:42 Fragmento 41 tocando, mas na verdade é Jeno quem toca. David vê o violino de Jeno. ED: Vaghi Riflessi (?) 46 1:08:19 1:09:22 Fragmento 42 Jeno é apresentado para o pai. O concerto do Teatro Tanz ED: Vaghi Riflessi. 47 1:09:38 1:10:54 Fragmento 43 A final do concurso é acertada (a peça a ser executada, pelos dois finalistas, é o Canone Inverso 48 1:11:11 1:11:18 Aparece a partitura do Canone Inverso Jeno olhando para a partitura ED: O som de sua mãe cantando a melodia principal do 49 1:11:19 1:11:34 Canone Inverso 6 D: Canone Inverso

Fragmento 44 Final do Concurso. 50 1:12:00 1:12:28 David inicia como primeiro violino (Jeno o segundo); David não consegue prosseguir tocando. 7 D: Canone Inverso 51 1:12:41 1:12:59 David se desculpa e tenta novamente Da Capo;

443

Novamente David não consegue prosseguir tocando. 8 D: Canone Inverso O Maestro Ischbaw sugere que Jeno tente tocar a primeira voz; 52 1:13:25 1:13:54 Novamente David não consegue executar a peça até o fim; David decreta Jeno como vencedor do concurso. 9 ED: Vaghi Riflessi 53 1:14:57 1:16:13 Diálogo entre os dois irmãos (constatação): 1 – Fragmento 45 Wolf não é meu pai. 2 – Fragmento 46 ED: Tema d’Amore Disperato 3 – Fragmento 47 54 1:16:54 1:17:48 Jeno deixa a casa do pai; devolve o violino para o pai.

ED: Tema d’Amore Disperato 1 – Fragmento 48 55 1:20:10 1:21:00 2 – Fragmento 49 Jeno pede a Sophie para não ir embora. 3 – Fragmento 50

ED: Chiaro Di Luna Di Giorno 56 1:23:17 1:24:28 Sophie vai participar do concerto. 1 – Fragmento 51 2 – Fragmento 52 Os dois fazem amor. ED: Finale di un Concerto Romântico Interotto (Introdução); David vai ao concerto contrariando o pai. A música passa ao estado diegético; é o concerto de 57 1:25:44 1:29:10 1 – Fragmento 53 Jeno e Sophie; 2 – Fragmento 54 O concerto é interrompido por soldados alemães pren- dendo todos os judeus (inclusive Jeno e Sophie) [bem na cadência de engano]; D: Nel Campo (Canone Inverso) Eu sou sua neta. 58 1:31:24 1:31:55 Fragmento 55 Recordo aquela música. 10

ED: Canone Inverso Fragmentos; 1 – Fragmento 56 59 1:32:16 1:32:52 O rabino diz que Jeno morreu. 11 2 – Fragmento 57

ED: Vaghi Reflessi. 60 1:34:10 1:36:52 Foram para Treblinka

Fragmento 58 ED: Vaghi Reflessi(Lembranças do Cânone Inverso) 61 1:35:24 1:36:52 O rabino não mentiu; Jeno é David

444

MD: Goliardi 62 1:37:28 1:38:16 No Colegium Music; “Estamos fazendo o Amor”; ED: Tema d’Amore Disperato; 63 1:38:58 1:39:50 Constanza encontra David; Fragmento 59 Os 3 juntos. MD: Goliardi; 64 1:40:00 1:40:36 A Música é a espada com a qual conquistaremos o mundo.

ED: Transição para Finale di un Concerto Romantico 65 1:40:36 1:44:26 Fragmento 59 Interotto (até a cadência interrompida ou de engano; Créditos Finais

4.22.2 - Gravação Musical (CD) A gravação, catalogada CDV 2402, não respeita, necessariamente, a or- dem de entrada das inserções na película. As 21 faixas do CD, com duração total de 50 minutos e 14 segundos, são as seguintes:

Nº. Nome Duração 1 Canone Inverso Primo [2:28] 2 Tema D'Amore Disperato [2:08] 3 Finale Di Un "Concerto Romantico Interotto" [4:25] 4 Chiaro Di Luna Di Giorno [2:46] 5 Goliardi E Sport [1:56] 6 Con Disperata Gioia [2:08] 7 Intermezzi [2:02] 8 Capriccio "La Caccia" [3:25] 9 Ciaccona [1:10] 10 Songs That My Mother Taught Me [1:27] 11 Nel Campo [2:12] 12 Avvolgente [4:12] 13 Elmetti Di Fuoco [2:49] 14 Corsa [0:44] 15 Canone Inverso Primo, Canone Inverso Secondo [2:29] 16 Piccoli Studi [4:41] 17 Vaghi Riflessi [1:58] 18 In Bicicletta [1:05] 19 Goliardi [1:10] 20 All'Aperto [2:44] 21 Canone Inverso [2:14]

Tabela 12 – As Faixas do CD – Canone Inverso

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4.22.2.1: Agrupamento Temático no CD Dura- Grupo Nº Nome Comentários ção

Orquestração de Morricone do tema principal de Clair de Lune 1 4 Chiaro Di Luna Di Giorno [2:46] da suíte Bergamasque de Claude Debussy. Leitmotiv de Sophie Levy, a pianista. Finale Di Un "Concerto 3 [4:25] A Música mais elaborada do filme. Romantico Interrotto" 2 2 Tema D'Amore Disperato [2:08] Parte {B} do Finale di Un Concerto Romantico Interroto. 6 Con Disperata Gioia [2:08] Parte {C} do Finale di Un Concerto Romantico Interroto 5 Goliardi E Sport [1:56] Música marcial e festiva. 3 19 Goliardi [1:10] Improviso dos músicos com o tema de Goliardi e Sport 7 Intermezzi [2:02] Inserções Intermediárias sem peso de Leitmotiv. Música composta com um caráter solene. Acordes suspensivos orquestrais são executados lentamente e entremeados de pau- 4 sas, dando um caráter hesitante e trágico. Na gravação do CD 17 Vaghi Riflessi [1:58] (e não no filme) serve como introdução da parte {C} do Finale di um Concerto Romântico Interroto o Tema d’Amore Disperato (Tema de Amor Desesperado), um dos motivos condutores do par romântico. 12 Avvolgente [4:12] Sonoridades em ritmo de marcha e com um clima suspensivo 5 Faz parte do tema do “mal” no filme. 13 Elmetti Di Fuoco [2:49] Sonoridades em ritmo de marcha com sonoridades suspensivas Faz parte do tema do “mal” no filme. 8 Capriccio "La Caccia" [3:25] Capricho nº 9 de Paganini. 9 Ciaccona [1:10] Suíte nº 2 para violino de Bach. Songs That My Mother 10 [1:27] Als die alte mutter op.55 – Dvorak. Taught Me 6 14 Corsa [0:44] Composta como um estudo de violino em que Morricone mostra as habilidades virtuoses do instrumentista. 16 Piccoli Studi [4:41] Pequenos estudos, um pequeno grupo de peças para violino solo, derivados dos temas principais do filme. 20 All'Aperto [2:44] ‘All’aperto ’é um romance em estilo cigano que também apre- senta características virtuosísticas em relação ao violino. 1 Canone Inverso [2:28] Música principal do filme 11 Nel Campo [2:12] Música Principal do Filme. Canone Inverso Primo, O “Canone Inverso Secondo“ é uma espécie de variação do 15 [2:29] primeiro com uma harmonia mais cromática e que também é 7 Canone Inverso Secondo retrogradada. (não é utilizado no filme) 18 In Bicicletta [1:05] O Lebhalt ou Luft. Variação orquestral do tema principal do filme. 21 Canone Inverso [2:14] O Tema Principal do Cd, do filme e deste trabalho. Executado só pelos dois violinos. Tabela 13 – Grupos temáticos da trilha sonora musical do “Canone Inverso”

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4.22.3 - Conceito

Com o diretor Rick Tognazzi tive a oportunidade de confrontar-me livremen- te, pois é um diretor que deseja experimentar soluções novas, também no âmbito musical. Isto acontece particularmente no filme Canone Inverso, am- bientado na área balcânica da ex-Jugoslavia que tem como protagonistas uma pianista e um violinista. Inicialmente, de forma a ter um compositor mais familiarizado com essa cultura, o trabalho seria confiado a Goran Bre- govic. Todavia, diversas exigências, ditadas pela presença no filme de um “cânone inverso” e de um “concerto romântico para violino e piano”, cola- boraram para que eu fosse escolhido na composição da trilha musical do filme (MORRICONE249)

O agrupamento das faixas do CD apresenta sete grupos temáticos.  Grupo 1 – Leitmotiv da pianista Sophie Levi: o Material derivado da orquestração de Morricone do tema principal de Clair de Lune da Suíte Bergamasque de Claude Debussy;  Grupo 2 – Leitmotiv do par romântico Jeno e Sophie: o Material derivado do “Finale di un Concerto Romantico Interrotto”;  Grupo 3 – Ambientação do Colegium Musicum: o Peças que sublinham a irreverência dos alunos no tratamento ofe- recido pelo conservatório Colegium Musicum, no início da Segun- da Guerra Mundial;  Grupo 4 – Sonoridades “climáticas” derivadas do Grupo 3: o Sonoridades compostas por acordes suspensivos orquestrais exe- cutados lentamente e entremeados de pausas, dando um caráter hesitante e trágico;  Grupo 5 – Sonoridades dos alemães: o A música da “maldade”. Ritmos percussivos de marcha, com so- noridades “dissonantes” e suspensivas;  Grupo 6 – Músicas pré-existentes: o executadas diegeticamente pelos violinos.  Grupo 7 – Leitmotiv do filme e de todos os protagonistas principais: o Material derivado do “Canone Inverso”;

249 Morricone, E. In: LUCCI, G. Morricone, Cinema e Oltre. Milano: Mondadori Electa S.p.A., 2007, p.196.

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4.23 - GRUPO 1: LEITMOTIV DA PIANISTA SOPHIE LEVI

4.23.1 - Chiaro di Luna di Giorno A música que será o leitmotiv pessoal de Sophie Levi. No CD Morricone chamou de Chiaro Di Luna Di Giorno (Claro da Lua de Dia). A faixa é uma delicada orquestração de Morricone da peça Clair de Lune, terceiro movimento da Suíte Ber- gamasque (1890) de Claude Debussy. Uma das especulações de por que Ennio Morricone escolheu essa peça para representar a pianista Sophie Levi tem relação com o tema da perseguição na- zista aos judeus na II Guerra, o pano de fundo do filme. Sophie Levi vai morrer em Treblinka, um campo de concentração Em sua dissertação de mestrado “A Produção Pianística de Claude De- bussy Durante a Primeira Guerra Mundial”, Benedetti nos mostra os efeitos causados pela Guerra na vida e na obra do compositor Claude Debussy, que foi invadido por um extremo patriotismo, e a influência deste nacionalismo nas obras escritas naquele período. Segundo a escritora, os efeitos provocados pela Guerra em Debussy resul- tam em um nacionalismo exagerado, e vários de seus escritos desse período, como os artigos publicados pelas revistas especializadas da época e suas correspondên- cias, testemunham o culto a um sentimento de repugnância a toda e qualquer forma de expressão cultural que viesse de terreno inimigo, em particular da Alemanha. Como exemplo a autora cita o trecho de uma carta endereçada a Igor Stravinsky em 24 de outubro de 1915 onde o compositor coloca abertamente todo o deu sentimento de ódio em relação aos alemães:

Nestes últimos anos, quando senti os miasmas austro-germânicos se expan- direm sobre a arte, eu desejaria ter mais autoridade para gritar minha in- quietude, para advertir sobre o perigo que corremos, sem desconfiar. Como não adivinhamos que essas pessoas tentavam a destruição da nossa arte, como eles preparavam a destruição de nossos países? O ódio que sinto por esta raça vai até o último dos alemães! Existirá um último alemão? Pois es- tou convencido que os soldados se reproduzem entre eles. (in LESURE, 1980: 266)

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Nesse sentido, ainda no texto da autora, Debussy buscaria inspiração em uma geração de músicos franceses esquecidos durante o Romantismo e que marca- ram a História da Música com uma escola nacional, a do século XVIII, pois seria no início desse século que, com François Couperin e Jean Philippe Rameau, a escola francesa conheceria o seu apogeu.

Os primeiros traços desta febre de tentar ressuscitar os músicos e a música francesa do século XVIII acontecem no final do século XIX, com a Suíte Ber- gamasque (escrita em 1890 e revisada logo antes da sua publicação, em 1905). [...] Debussy torna-se então um militante, difundindo em alta voz a “ideologia ramista”. Como crítico, escreve vários artigos, nos quais prega a volta de uma música francesa inspirada em seus ancestrais, como o famoso artigo escrito em novembro de 1912, intitulado “Jean-Philippe Rameau”, encomendado por seu amigo André Caplet, que se encontrava em tournée pelos Estados Unidos (BENEDETTI, 2005:2).

Nesse artigo citado pela autora, Debussy coloca Rameau como “uma das bases mais seguras da música”. Para Debussy, Rameau é o antídoto da música itali- ana e alemã, e, sob a égide patriótica, Debussy milita a favor de uma espécie de eli- tismo. Ele teme “que nossos ouvidos tenham perdido a faculdade de escutar com uma atenção delicada esta música que proíbe a si mesma qualquer ruído desgracio- so, mas reserva a acolhida de uma polidez encantadora aos que sabem ouvi-la.” (DEBUSSY, 1987: 205 – in BENEDETTI) Portanto, esse leitmotiv escolhido por Morricone para representar Sophie Levi, tenta exprimir todas as características que serão tão peculiares à personagem no filme: a música que representa uma famosa pianista concertista; delicadeza e um sentimento geral anti-germanismo, revelado na abordagem da perseguição nazista aos judeus (Sophie Levi é judia).

4.23.1.1: Indo para a cidade: “Clair de La Lune di Giorno” A cena inicia com Jeno na caminhonete com Wolf indo para a cidade en- tregar uma carga de produtos derivados da criação dos porcos. Jeno está escreven- do e cantarolando a música, mas finge que está fazendo a contabilidade de Wolf re- lacionada à entrega dos produtos. Jeno volta o seu olhar para a partitura “oculta” dentro do livro de contabilidade. A melodia do segmento [b] da parte A do Concerto é

449 ouvida com o timbre solo de violino, como se fosse o resultado da audição interior de Jeno. A imagem corta a caminhonete onde estão os dois entrando na cidade. Pode- mos ouvir o som de buzinas de carros sobrepondo-se ao fragmento da audição inte- rior de Jeno. Quando Jeno começa a descarregar os produtos da caminhonete, começa a ouvir uma “música distante” (a música está mixada com volume muito baixo). De- pois de se auto questionar se a música não é produto de sua imaginação, ele cami- nha em direção ao som da música que está ouvindo. À medida que Jeno se aproxima de um hotel numa praça, começa-se também a discernir a música. Trata-se de um fragmento do Finale di un Concerto Interroto, tocado num piano dentro de um dos quartos do hotel. O fragmento é inter- rompido e, depois de um pequeno silêncio, volta com o momento [a] da parte A. O quarto de onde vem o som está localizado no alto do prédio. Jeno, muito curioso, sobe numa árvore da praça para poder olhar na altura da direção da janela de onde vem o som. Quem estaria tocando? Jeno escala a ár- vore até o topo e enxerga a figura de Sophie Levi tocando num piano de cauda den- tro de uma grande sala no hotel. Jeno quase perde o fôlego. Sophie está estudando o concerto. Seu rosto mostra traços de preocupação com sinais de reprovação à própria performance no piano até não conseguir prosseguir, interrompendo nova- mente o “Finale di un Concerto Interrotto”. Ela se levanta ao mesmo tempo em que fecha o piano, batendo a tampa, Jeno perde o equilíbrio e cai de cima da árvore gri- tando. Sophie ouve o grito e se dirige à janela para olhar. Ela vê Jeno mancando enquanto se afasta da praça. No corte da cena é introduzida a música que será o leitmotiv pessoal de Sophie Levi. No CD Morricone chamou de “Chiaro Di Luna Di Giorno”.

4.23.1.2: Na casa de Banhos: A primeira conversa de Jeno com Sophie A música conduz para uma tomada em movimento de cima para baixo ini- ciando em ECU do teto de vidro de um local com uma arquitetura deslumbrante (pro-

450 vavelmente dentro do mesmo hotel onde Sophie Levi está hospedada). Em baixo pode-se ver Sophie nadando completamente nua em uma piscina no interior do re- cinto na direção da escada de saída. Sophie olha para o teto e a câmera, ao mesmo tempo em que evita exibir toda a sua nudez, nos mostra a perspectiva de seu olhar, um teto de vidro transparente por onde entra e passa a claridade do dia (Chiaro di Luna di Giorno). Sophie nada em direção da mesma escada onde uma senhora fun- cionária do hotel está aguardando Sophie com uma toalha aberta. Ela se envolve na toalha e começa a se enxugar. Nesse momento a porta é aberta Jeno que entra, sorrateiramente, no re- cinto. Sophie senta-se num local coberto com uma grande toalha branca e a senhora funcionária se dirige para outra sala do recinto deixando-a sozinha. Jeno, observan- do essa imagem paradisíaca com Sophie coberta com uma toalha muito curta, apro- veita para se aproximar. No diálogo entre os dois Jeno se apresenta como violinista e revela que sempre foi seu fã e que gostaria de tocar com o concerto com ela. A funcionária do hotel aparece e persegue Jeno batendo-lhe com uma toa- lha nas costas. A música e a imagem são cortadas sincronicamente.

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4.23.2 - Grupo 2: Finale di un Concerto Romantico Interroto Morricone escreveu uma música típica de um concerto romântico duplo, para violino e piano (em cânone): Finale de um Concerto Romantico Interroto (Final de um Concerto Romântico Interrompido). Como o próprio nome diz, nas três vezes que essa música é executada (todas diegeticamente) no decorrer do filme, por algum motivo, é interrompida.

O concerto duplo romântico que se escuta no fim do filme deveria ter sido composto (por exigência de credibilidade da história) por um autor judeu. O único compositor de cultura hebraica do passado que compôs um concerto duplo foi Mendelssohn, mas, como sua obra não era suficientemente dramá- tica para o filme, decidimos não inspirar-se nela. Depois de várias reflexões fui encarregado de escrever o breve Finale di un concerto romantico com três minutos e vinte segundos de duração [00:03:30]. (Morricone, 2007:199)

O concerto foi composto em três partes. Na parte A e C, o violino propõe os temas que são respondidos pelo piano em cânone.

Cumprir as exigências impostas à peça na narrativa do filme em três minutos e vinte segundos significou um grande desafio. Encontrei a solução fazendo o violino e o piano executarem alguns temas contemporaneamente, mas, com um compasso de distância, ou seja, em cânone. Eis como nasce, então, uma forma de sonata absolutamente nova, com ótimo resultado cinematográfico, não obstante a dificulade inicial da duração mínima deste concerto, não por acaso chamado de ‘Concerto Interrotto’. (MORRICONE, 2007:199)

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A forma como a peça foi composta pode ser observada no ggráfico absaixo:

Parte (Módulo) Características

Introdução Pedal de cordas na nota lá grave [a]: Solo de Violino com o piano em cânone; Parte {A} [b]: Violino com piano; ([a], [b] – [a], [b’] como transição) [a]: Tutti das cordas e acompanhamento da orquestra; [b’]: Transição executada pelo piano, flauta e madeiras. [a]: Solo de Violino; Parte {B} ([a], [a]) [b]: Tutti orquestral.

[a]: Violiino e volta o piano em cânone; Parte {C} ([a], [a]) [b]: Tutti orquestral.

Tutttti orquestral (ala Brahms). Coda “Encerra” (no CD) com uma cadência de engano.

Gráfico 2 - Finale di un Concerto Romantico Interroto

Introdução

Figura 117 – Introdução do Finale di un Concerto Romanticco Interroto

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Parte {A}

Figura 118 – Parte {A} do concerto

A peça porta vários tipos de motivos condutores (leitmotiiv) relacionados aos personagens Jeno (o violino) e Sophie (o piaano). Como peça completa representa o objetivo profissional e afetivo de Jeno que durante sua vida inteira preparou-a para tocar junto com Sophie Levi. Em vários momentos do filme essa situação obstinada reflete claramente que esse é o seu maior objetivo. As inserções derivadas do material temático da peça cumprem objetivos narrativos bem complexos em sua funcionalidade. De um modo geral, ela contextua- liza o tempo e espaço da ação fílmica, mas, como leitmotiv do par romântico, expres-

454 sa e suscita os sentimentos entre os dois. Além disso, ela também é utilizada como elemento de continuidade temporal. O desmembramento da peça em suas partes constituintes gera dois mó- dulos que são utilizados isoladamente. Os dois módulos são orquestrados de forma a parecerem diferentes de sua utilização no concerto. Eles diferem no timbre, no cará- ter e no andamento (ambos são executados mais lentamente do que no Concerto). A parte {B} do concerto gera um “módulo” que tem no CD o nome de Te- ma d’Amore Disperato (Tema de Amor Desesperado). A melodia principal da parte {B} assume um caráter melancólico reforçado por um acompanhamento com batidas percussivas imitando as batidas de um coração humano. Representa a impossibili- dade da relação amorosa entre os dois. A parte {C} do concerto gera um “módulo” denominado no CD Con Dispe- rata Gioia (Com Alegria Desesperada). Como o próprio nome dado por Morricone a esse módulo ele apresenta um clima distinto do anterior com um “clima mais alegre”, mas, ao mesmo tempo, “desesperado”, ou seja, representa a possibilidade, mesmo com todos os entraves narrativos, dos dois ficarem juntos.

4.23.2.1: Sophie Levi: a pianista Ouvimos a voz de um narrador de rádio falando em alemão anunciando um concerto ao vivo em Viena. Jeno tenta sintonizar uma estação de rádio que se encontra com muita interferência e ruídos. Dada a dificuldade da sintonização, Jeno perde a paciência e dá uma pancada no rádio com a mão direita. Imediatamente a sintonia se estabelece e temos o início do Finale di un Concerto Interrotto. Enquanto ouvimos a Introdução, Jeno rapidamente pega o seu violino da caixa e corre na frente da estante pré-posicionada próxima ao rádio, com as partitu- ras do concerto já dispostas sobre ela. Jeno se acomoda em frente da estante e co- meça a tocar, lendo a parte do solista do Concerto. No segmento [b] da parte A do Concerto, a câmera fecha nas partituras apoiadas na estante. Na capa de uma das partituras pode-se ler: KONZERT VE VÍDNI UVEDE KONCERT MLADÉ FRAN-

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COUSKÉ KLAVÍRISTKY SOPHIE LEVY. Pode-se ver também o desenho em preto e branco (como numa partitura antiga) de uma pianista tocando piano.

Figura 119 – Sophie Levi

A câmera continua fechando nas mãos da pianista do desenho até sobre- por-se à imagem “real” de Sophie Levi tocando piano no próprio concerto que está sendo transmitido pelo rádio. A partir de então temos uma alternância entre a ima- gem de Sophie e a de Jeno e das expressões de cada um deles. Subitamente, no momento da repettição da parte A (o tutti orquestral) acontece algum problema no local do concerto em Viena. O que se ouve é um aglo- merado sonoro sem sentido em relação à música do concerto. As partes normais da música e os solistas saem fora de sincronia e, descontinuada e lentamente, tentam prosseguir até serem obrigados a parar. Ouvimos gritos de pessoas que fazem parte do público do teatro onde o concerto está sendo executado. As vozes vão se avolu- mando até que se ouve um silêncio absoluto. O narrador do rádio entra para pedir desculpas: “Sentimos muito, mas somos obrigados a interromper o concerto por mo- tivos técnicos”. Estamos próximo ao início da Segunda Guerra Mundial. O concerto foi boicotado por parte do público anti-semita. Sophie Levi também é judia.

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4.24 - GRUPO 3: AMBIENTAÇÃO DO COLEGIUM MUSICUM

4.24.1 - Goliardi e Sport Goliardo vem do francês antigo gouliard referenciando um “clérigo que le- va uma vida irregular”. Esse termo foi utilizado durante a Idade Média para referir-se a certos tipos de “clérigos vagabundos” e aos estudantes pobres pícaros que prolife- raram na Europa com o auge da vida urbana e no surgimento da universidade no século 13. A maior parte deles estudou nas universidades da França, Alemanha, Itá- lia e Inglaterra250. Esse termo se aplica bem à situação em que as personagens de Jeno, David e outros alunos estão representando no contexto do excesso de rigor por parte do Colegium Musicum.

4.25 - GRUPO 4: SONORIDADES “CLIMÁTICAS”

4.25.1 - Jeno Crescendo e Recebendo o Violino: A herança do pai verdadeiro Toda a montagem que segue é muito efetiva no sentido de demonstrar a capacidade da articulação da música com as imagens e demais sonoridades no ci- nema. As trocas das músicas que se seguirão, algumas tocadas no violino diegeti- camente e outras extra-diegéticas, são sobrepostas com imagens diferentes, sinteti- zando o crescimento de Jeno.

250 Não obstante, a figura do goliardo pode ser rastreada até épocas muito anteriores. Já no século 4, o concilio de Nicea condenava certo tipo de clérigos de vida licenciosa que poderiam ser equiparados ao goliardo. Na regra beneditina e outros textos canônicos posteriores volta-se a mencionar a figura do clérigo vagabundo e ocioso. Parece que o nome procede de gula («guloso»), por seu insaciável apetite, e da analogia fonética de Golias, que procede do gigante bíblico Goliat, a quem se identificava desde os antigos com o diabo. Não é estranho, pois, que os concílios condenassem de forma recorrente aos goliardos e sua vida dissipada. Crê-se inclusive que em algum momento chegaram a criar alguma espécie de seita ou confraria. Porém, além de sua forma de vida, o que mais interessa dos goliardos era sua relação com a literatura. Muitos deles escreveram poesia satírica em latim, onde, expressavam seu descontentamento, criticavam a igreja, a socie- dade e ao poder, assim como composições líricas onde elogiavam o vinho, as tabernas, o jogo, as mulheres e o amor. A poesia goliardesca foi cultivada por toda Europa durante a Idade Média. As composições, quase sempre anônimas, são bem diversas: desde poemas simples até outros muito elaborados e retóricos. (COROMINAS, J. Breve Diccionario etimológico de la lengua castellana. Madri: Gredos, 1961).

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A seqüência abre com uma cena que irá ser recorrente em outro momento do filme. É uma cena que representa o estado de desespero e aflição de Jeno que sofria muito com a ausência do pai. Depois de uma briga de criança, um menino o chama de bastardo. Depois de socá-lo, Jeno corre, sem parar, dentro de um bosque fechado, como se ele pudesse se esconder de seus problemas na densa vegetação. Ouvimos sua respiração ofegante e os gritos (offscreen) de sua mãe afirmando que vai encontrá-lo como sempre. Rick Tognazzi cita Sergio Leone: a câmera faz um movimento similar ao filme, IL BUONO, IL BRUTTO, IL CATTIVO, na cena do cemitério abordada como “L’estasi dell’oro”. O ritmo dos passos de Jeno vai aumentando gradativamente, alternando repetidamente tomadas laterais de sua face com tomadas dele próprio, correndo contra um fundo verde de árvores e plantas cada vez mais rápido, confuso e vertigi- noso, como se o fundo representasse o seu próprio estado emotivo. No corte da cena Tognazzi insere a sonoridade que no CD Morricone chamou de “Corsa”, referindo-se ao motivo da citação. A imagem é cortada para a partitura do estudo de violino todo em semicolcheias. A sonoridade é característica de um estudo virtuoso próprio para o instrumento e vai, concomitantemente, introdu- zir em flashforward, conjuntamente com a voz do narrador, momentos que represen- tam o crescimento, tanto da idade quanto na habilidade com o violino, de Jeno em relação à passagem de tempo. A câmera abre da partitura da Corsa e, em plano médio, mostra um se- nhor fumando charuto. Trata-se do professor de violino de Jeno que está apresen- tando (agora diegeticamente) o estudo para ele, um pouco mais crescido em relação à cena anterior. Podemos perceber a dificuldade que a peça oferece a Jeno, enquan- to que o professor marca os compassos com a mão do charuto. A voz de David (narrador – VOZ OVER) é sobreposta: “Era verdade. Ela me encontrava sempre. Por isso nunca tinha medo de sair para longe”. No momento da nota final do estudo é introduzido um fragmento de “Pic- coli Studi” (Pequenos Estudos) derivado da parte {C} do “Finale de um Concerto In- terroto”. A imagem corta para Jeno tocando ao ar livre (está nevando) para os porcos

458 em cima da cerca do chiqueiro. Como o próprio padrasto comentará, “Jeno pode acalmar os porcos tocando violino para eles”. A imagem mostra primeiramente o pa- drasto trabalhando e observando Jeno tocando e, depois, a imagem da a mãe de Jeno abrindo uma janela na fazenda. A mãe de Jeno está mais velha. A música que se sobrepõe é “All’aperto”, uma música muito viva com ritmo dançante e característi- cas ciganas. A música está sendo executada em uma festa na fazenda, ao ar livre. Um acordeão, dois violinos e um contrabaixo acompanham vivamente a música para as pessoas dançarem. Jeno, ainda menino, entra na hora do solo. Está vestido com roupa de festa, inclusive suspensórios, solando a música “cigana” com muita destre- za. A música e o modo seguro com que Jeno toca demonstram como evoluiu no ins- trumento. A música “cigana” é sobreposta à cena em que, extra-diegeticamente, en- tra o tema que, no CD, Ennio Morricone chamou de Intermezzi. Jeno, ainda menino, gira uma manivela do lado direito de uma máquina de estilhaçar cana de açúcar para preparar a ração dos porcos. Ouvimos sem interrupção o som das lâminas da má- quina cortando o material num plano superior ao da música. A câmera, num movi- mento da direita para a esquerda, em plano fechado nos estilhaços localizados no centro da máquina. Num movimento lateral e ascendente de aproximação ao outro lado, mostra Jeno, girando a manivela, agora do lado esquerdo da máquina, como um rapaz de aproximadamente 18 anos de idade. O tempo passou. A música, o som e a imagem são cortados para a mãe se dirigindo a um quarto onde Jeno está estudando. A música que ele executa faz parte da faixa do CD “Piccoli Studi”. Jeno está executando bruscamente alguns acordes no violino en- quanto que sua mãe observa-o com a porta entreaberta. Ele põe tanta força no arco que quebra as cordas do instrumento, conjuntamente com um grito. O corte da cena acontece com a expressão da mãe e com Jeno olhando preocupado para o instru- mento. Na cena seguinte vemos as mãos de Jeno em plano fechado colocando cor- das novas no instrumento. As mãos da mãe, também em plano fechado, carrega o estojo com o violino que era do verdadeiro pai de Jeno. Só ouvimos os ruídos diegé-

459 ticos pertinentes aos instrumentos. A mãe retira o instrumento da caixa e o passa para as mãos de Jeno.

4.25.2 - Desespero - Momento meta-diegético Depois da morte da mãe de Jeno, Ricky Tognazzi resgata da cena que vimos projetada anteriormente quando Jeno era criança. Como já foi dito, a cena re- presenta o estado de desespero e aflição de Jeno. Na cena anterior o som de “Cor- sa” era sobreposto com o som da voz da mãe afirmando que ia “encontrar como sempre” Jeno. Nesta cena, “Corsa” pontua da mesma forma a figura de Jeno correndo desesperado dentro do mesmo bosque fechado, só que agora, ao invés de querer esconder-se de seus problemas na densa vegetação, enquanto ouvíamos a sua res- piração ofegante e os gritos de sua mãe afirmando que iria, como sempre, encontrá- lo, ouvimos os gritos de Jeno chamando pela mãe. Da mesma forma, o ritmo dos passos de Jeno, ainda com a roupa do enterro da mãe e do irmão, vai aumentando gradativamente conjuntamente com a alternância repetida de tomadas laterais de sua face, com tomadas dele próprio correndo contra um fundo verde de árvores e plantas, cada vez mais confuso e vertiginoso. Como da primeira vez, é como se o fundo em movimento com a música representassem o seu próprio estado emotivo, chamando pela mãe morta.

4.25.3 - Intermezzi Os intermezzi são compostos de sonoridades orquestrais de progressões harmônicas e melódicas derivadas do material da melodia principal do “Canone In- verso” utilizando basicamente as duas colcheias e a mínima (às vezes utilizada como semínima) da célula rítmica e melódica inicial do motivo principal.

460

4.26 - GRUPO 5: SONORIDADES DOS ALEMÃES.

4.26.1 - Elmeti di Fuoco O leitmotiv dos alemães (as forças da maldade) é ouvido pela primeira vez na cena em que Jeno anda numa calçada e vê o cartaz do concerto de Sophie Levi pichado com a suástica, o símbolo do nazismo, e escrito JUDE (JUDEU). Num ata- que de raiva arranca o cartaz de sua moldura. Nesse exato momento é introduzida a música “Elmeti Di Fuoco” (Capacetes ou Elmos de Fogo), o leitmotiv que vai repre- sentar os nazistas. O tratamento musical se dá com um pesado tratamento marcial. A peça é grave, pesada, dissonante e incisiva. Jeno olhando a frente vê dois rapazes simpatizantes do nazismo pichando outros cartazes do concerto de Sophie Levi. Enfurecido, parte para cima dos dois. Os dois são bem mais fortes que Jeno. Jeno afasta os dois e acerta um soco em um de- les. Os dois revidam conjuntamente e põe, com socos e chutes, Jeno a nocaute. A música é cortada no momento se aproxima um carro com Carlo, o marido de Sophie, e a própria Sophie Levi acompanhada de uma mulher (sua secretária) para socorrê- lo.

4.27 - GRUPO 6: MÚSICAS PRÉ-EXISTENTES EXECUTADAS DIEGETICAMENTE PELOS VIOLINOS

4.27.1 - A Ciaccona251 de Bach De acordo com a temática musical do filme “Canone Inverso” e o impor- tante papel que o violino ocupa, seria fácil pressupor razões óbvias na escolha da Ciaccona de Bach (BWV 1004) por Ennio Morricone. Mas, muitas outras músicas também poderiam cumprir esse papel e Morricone, como sempre, está muito atento aos significados das músicas escolhidas para compor as suas trilhas sonoras musi-

251 O mesmo que Passacaglia (Ciaccona) - Dança espanhola que surgiu no século XVI e foi difundida por toda a Europa. Segue uma forma musical em compasso ternário e andamento lento, usada entre outros por J.S.Bach e Brahms.

461 cais nos filmes. A citação de Cribari Neto que segue apresenta um aspecto bem inte- ressante que se encaixa muito bem nas intenções do filme:

A música de Bach contém uma forte ligação com a Matemática. Essa ligação é feita sem detrimento do conteúdo artístico; pelo contrário, música e núme- ros se mesclam numa entidade única, alcançando profundezas artísticas an- tes impensáveis. O conteúdo matemático nem sempre é evidente. De acordo com o matemático e filósofo Gottfried Wilhelm Leibniz: "Music is the hidden arithmetical reckoning of the unconscious spirit." Se assim for, poucos músi- cos se igualam a Bach. Um exemplo é a Ciaccona (BWV 1004), composta quando do falecimento de sua primeira esposa, Maria Barbara, em 1720. Um texto belamente criptografado nesta peça somente foi desvendado em 1994, a descoberta cabendo à professora Helga Thoene, da Universidade de Dusseldorf. Ela mostrou que a Ciaccona é, de fato, um epitáfio em forma musical, por conter um texto escondido/codificado nas notas musicais252.

Um epitáfio “simbólico” liga-se diretamente com a história trágica de Jeno e Sophie no filme.

4.27.1.1: Aula com o Maestro Weigel A cena inicia com uma visão panorâmica da arquitetura da antiga classe do conservatório, com o teto abobadado, as paredes com quadros de compositores, vê-se seis alunos em pé, aguardando a primeira aula. Entre eles Jeno, esperando a ordem do professor Weigel para sentarem-se nas carteiras e, mais ao fundo sentado numa escrivaninha, o Bedel, na realidade secretário particular do Maestro Weigel. O Maestro Weigel está de pé, em frente a sua mesa, regulando as cordas de um violi- no. O Maestro Weigel pede a todos que se sentem e, parecendo escolher ale- atoriamente chama Yeno: “Demonstre para os seus colegas que o dinheiro que o governo gasta para honrar-nos com sua presença é bem empregado. E peço que omita toda a extravagância com a qual convenceu o diretor maestro Hischbaum [no exame de ingresso do conservatório]. Execute a Ciaccona”. Pode-se perceber o mal-estar da classe e de Jeno com o pedido descabi- do do maestro. Jeno se coloca em posição de tocar o violino à frente de uma estante

252 CRIBARI NETO, F. Por que eu gosto da música de Johann Sebastian Bach. Último acesso em 20 de junho de 2007.

462 com a partitura ao lado da mesa do Maestro Weigel. Jeno começa a tocar a Ciacco- na com um som pesado, romântico e extremamente metálico. O maestro faz uma cara de quem está ouvindo impropérios e, aos gritos, ordena que pare de tocar. Jeno completamente sem jeito e desconsolado para de tocar e abaixa a cabeça. O Maestro o repreende: “Acredito que lhe pedi a Ciaccona de Johann Se- bastian Bach, senhor Varga, não esta sua variação acrobática. Se atenha somente a partitura então, continue”. Jeno recomeça a tocar novamente a Ciaccona de onde tinha parado. O resultado é pior do que a vez anterior. O Maestro o interrompe novamente, dessa vez em definitivo, pedindo para que vá se sentar. Jeno vai para a sua carteira completamente desconsolado. David, um dos alunos, olha para trás na direção a Jeno tentando reanimá-lo. Ouvimos em segundo plano Franz, o aluno preferido do Maestro Weigel, executando a Ciaccona de Bach.

4.27.2 - Capriccio “La Caccia” A peça em Mi Maior tem a forma de um Rondó. Seu título La Caccia é apócrifo. É estruturada em intervalos harmônicos de terças, quintas e sextas (os que ressoam durante as batidas de caça) e, sobretudo, pela imitação de flautas e trom- pas, dando-lhe um ar descritivo acentuado.

463

Figura 120 – La Caccia (Nicolò PAGANINI, 24 Capricci for viollin solo, Nº 9).

A escolha dessa peça não se dá só em relação à temática do violino no filme, mas, também por possibilitar uma execuçção em forma de diálogo entre dois violinos, o grande objetivo cinemático.

4.27.2.1: O Violino de Jeno é Confiscado No corredor da escola o Bedel dá ordens expressas para que todos se di- rijam aos quartos de dormir e, imediatamente, apaga as luzes do corredor. A imagem mostra Jeno, ainda revolttado com os acontecimentos da sua primeira aula, no quarto retirando o seu precioso instrumento da caixa. Pode-se ver do lado de dentro da tampa da caixa, onde o arco do instrumento está guardado, a foto do pai no exército com o violino (a mesma foto da parrede na cena que sua mãe

464 o embalara com o “Canone Inverso”). Entre outros papéis, fotos e partituras, ressalta a capa da partitura do “Finale di un Concerto Interroto” com o desenho em preto e branco de Sophie Levi. Jeno retira o arco da caixa, empunha o violino e executa o início do Capri- ccio n.9 – “La Caccia” de Nicolò Paganini. O Bedel ouve o som da música de Jeno e pede silêncio. Como Jeno não atende prontamente, o Bedel bate seguidas vezes na porta (o quarto nº. 34) de seu quarto gritando para que fique quieto. Jeno faz uma pequena pausa, mas resolve desconsiderar o pedido do Bedel, continuando a tocar de onde parou. O Bedel vendo que seu pedido não foi atendido vai correndo comuni- car ao Maestro Weigel. Jeno termina o trecho que estava tocando e faz um gesto de repudio à si- tuação. Quando vai guardar o violino na caixa ouve o som de um violino distante con- tinuando a peça de onde ele havia parado. Jeno procura localizar a origem do som musical e, agachado no chão do quarto, logo após o som do outro violino cessar, toca novamente o curto motivo principal da música. A imagem é cortada para o quarto de David, com ar de felicidade, continuando a frase musical iniciada com o motivo tocado por Jeno. Jeno responde continuando de onde ele parou, iniciando-se um grande diálogo musical. Os dois não se agüentam de felicidade. No momento que entra a segunda parte da música, uma parte mais virtuosa, o Bedel aparece ao lado do Maestro Weigel na direção da porta de seu quarto. Jeno e David saem tocando alternadamente pelos corredores escuros do Colegium provocando uma verdadeira caçada (“La Caccia”) por parte do Maestro e do Bedel. Todo esse episódio, meio tragicômico, tem como finalidade objetiva, do ponto de vista dramático, o confisco do violino de Jeno pelo Maestro Weigel para que David (irmão de Jeno) não possa vê-lo (a história do violino é famosa na família). No momento da primeira aula de violino de Jeno, ele não chegou a usar o próprio violino (a herança de seu pai verdadeiro). O Maestro e o Bedel continuam por um bom tempo a tentar capturar Jeno que se diverte com a situação. Um aviso de David é em vão. O Maestro Weigel pega

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Jeno literalmente pelo “cangote”. A música, logicamente, é interrompida nesse mo- mento. A próxima seqüência mostra Jeno de castigo trancado em um quarto. Po- de-se ver uma janela com grades atrás dele. Jeno, sem o instrumento, cantarola e gesticula como se estivesse com o violino estudando La Caccia. David surge nas grades da janela e chama Jeno que, desde então, tornam-se grandes amigos.

4.27.3 - Songs that my mother taught me Essa inserção acontece quando a mãe de David, na mansão dos Blau, es- tá preparando os utensílios para um jantar especial pela “volta” de David do conser- vatório. Ela está na sala de jantar com duas empregadas. Uma delas, já uma senho- ra, está em primeiro plano e outra, em segundo plano, mais jovem. A empregada mais velha conversa com a mãe de David que não está prestando atenção no que a ela está dizendo. Ela ouve o som de alguém tocando uma melodia no violino e sai da sala de jantar em direção ao som exclamando: “Este é David”, e chama o nome do filho em voz alta. A música que se houve tem o nome sugestivo de Song that my mother taught me (Canção que minha mãe cantava para mim). A música é de Dvorak. David atende o chamado da mãe e, ela, desconcertada, percebe que quem está tocando o instrumento e a música tão conhecidos é na reali- dade Jeno. Songs my mother taught me (Als die alte Mutter) (Canções que minha mãe ensinou para mim), faz parte do ciclo de canções para voz, piano e violino (Melodias Ciganas - Gypsy Melodies), B. 104/4 (Op. 55/4) –, a alusão do título da canção, já teria uma grande justificativa, tanto no conteúdo dramático quanto no momento da narrativa. Indo além, a música é de Antonin Dvorak253 (1841-1904) e faz uma analogia direta da história de vida de Dvorak e a de Jeno, nosso personagem principal.

253 Dvorak nasceu em 8 de setembro de 1841, em Nelahozeves, Boêmia, e faleceu em 1 de maio de 1904, em Praga. Começou a estudar violino muito cedo, e em virtude dos progressos que demonstrara, seu pai resolveu mandá-lo estudar em Praga. De temperamento modesto, aos poucos se impunha como compositor. Consciente da importância da música popular do seu país, passa a estudá-la e, inspirando-se nela, produz obras que chamam a atenção do mundo sobre sua pessoa. Em Londres, em 1891, é diplomado Doutor em Música pela Universidade de

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As primeiras melodias ciganas (1880) de Dvorak irradiam um clima muito típico. Ne- las Dvorak utiliza os poemas de Adolf Heyduk (publicado em 1859) construindo uma visão romântica da liberdade cigana, enfatizando a espontaneidade com que viam o amor pela música e pelo canto. Kdyz mne stara matka (songs my mother taught me) tornou-se desde sua composição um grande sucesso popular. As melodias foram compostas para textos em alemão e dedicadas a um grande admirador de Dvorak, o cantor vienense Gustav Walter. Todas as letras desse ciclo de canções mencionam a relação terna entre mãe e filho, mas, na canção utilizada, mesmo que as letras não sejam utilizadas por Morricone, é um presságio à eminente tragédia. Mesmo não uti- lizada, a letra da canção termina com o verso sugestivo “mesmo quando o peito do irmão, exala o último respiro de vida”.

4.28 - GRUPO 7: CANONE INVERSO

4.28.1 - Construindo o “Canone Inverso” O grau de importância micro e macro-estrutural que o “Canone Inverso” assume no filme está presente desde seu procedimento composicional. A idéia principal do procedimento na formação de um cânone254 é a de que uma única melodia seja executada contra ela própria por uma ou mais vozes ou par- tes. Portanto, o cânone é realizado quando as diversas vozes participantes executam imitações ou “cópias” da melodia principal. O mais direto e conhecido de todos os tipos de cânones é o perpétuo ou circular (“Round”), como Frère Jacques. Nesse tipo de cânone a melodia inicia numa primeira voz e, após um intervalo temporal determinado, uma segunda voz executa uma “cópia” da melodia enquanto a primeira prossegue executando o restante da mesma melodia. Normalmente, após o mesmo intervalo temporal da entrada da se-

Cambridge. Em 1892 é nomeado Diretor do Conservatório de Nova York, onde permaneceu três anos. Regres- sando a Praga reassume o cargo de Diretor do Conservatório, onde permanece até a morte. (Fonte: http://br.geocities. com/nipemetal/ compositores.html – acesso em 06 de junho de 2007). 254 A etimologia da palavra cânone remete-nos a canon, termo de origem grega que significa lei ou regra.

467 gunda voz, uma terceira entra com outra “cópia” da melodia da primeira, enquanto as duas primeiras prosseguem executando seus respectivos momentos diferentes da mesma idéia melódica. A idéia do nome provém, principalmente, pelo motivo de que quando qualquer uma das vozes integrantes atinge o final da melodia, retorna imedi- atamente para o início dela executando-a novamente. Esse procedimento de retorno “perpétuo” de uma voz ao início da idéia principal, enquanto as outras ainda estão executando outras partes complementares da mesma idéia é que gera essa analogia visual com o círculo, ou seja, um retorno perpétuo análogo ao movimento circular. Hofstadter (1979:8-9) comenta esse fato:

A maioria dos temas não logra harmonizar-se consigo mesmo desse modo. Para que um tema possa servir como tema de um cânone, cada uma de suas notas tem de poder desempenhar um papel duplo (ou triplo, ou quádruplo [de acordo com o número de vozes participantes]): em primeiro lugar, ela deve ser parte da melodia e, em segundo lugar, parte de um contraponto com a mesma melodia, harmonizando-se com ela. Quando há três vozes canôni- cas, por exemplo, cada nota do tema deve atuar de duas maneiras harmôni- cas diferentes, além de atuar melodicamente. Assim, cada nota de um cânone tem mais de uma significado musical; o ouvido e o cérebro do ouvinte dis- cernem automaticamente o significado apropriado, referindo-se ao contex- to255.

Existem, naturalmente, outros tipos mais complexos de cânones que vari- am em sua organização de acordo com a quantidade de vozes e o procedimento imi- tativo utilizado. Morricone emprega o tipo conhecido como cânone inverso. O mesmo termo adotado pelo compositor é utilizado como referência a três instâncias diferen- tes e complementares no filme: CANONE INVERSO, se referindo ao filme; “Canone In- verso”, o nome da música principal composta por Ennio Morricone; e cânone inverso, a tipologia canônica que referencia seu modelo composicional.

O CANONE INVERSO constitui-se por personagens que orbitam em torno da herança de um violino e de uma música especial: o “Canone Inverso”. O modelo câ- none inverso estabelece-se no conflito principal do argumento, principalmente, em torno da música e do ideal do músico. O espaço e o tempo da ação, em idas e vin-

255 HOFSTADTER, D. R. Gödel, Escher, Bach: an Eternal Golden Braid. New York: Penguin Books, 1979, pp. 8-9.

468 das de flashbacks sobrepostos, foi preenchido pela Tchecoslováquia, abarcando desde o final da Primeira Guerra Mundial, passando pela Segunda e terminando na chamada “Primavera de Praga” (1968). Na sua forma mais simples, a utilizada por Morricone, o cânone inverso é composto por duas linhas melódicas (“duas vozes”) em contraponto, de modo que um dos executantes realiza uma das melodias da primeirra a última nota e o outro, simultaneamente, da última à primeira. Portanto, a primeira nota de uma das melodi- as é a última da outra; a segunda nota da primeira melodia é igual a penúltima da outra, e assim por diante. Isso implica que uma melodia é o retrógrado da outra. O movimento retrógrado, a principal característica técnica desse tipo de escrita, será constantemente referenciado nos flashbacks doo filme como retornare indietro (voltar para trás). A idéia principal da melodia de Morricone para o “Canone Inverso” coadu- na-se, mais uma vez, ao seu procedimento “micro-celular” e “modular”:

Figura 121 – Idéia principal do “Canone Inverso”

Em Lá menor, a “micro célula” de Morricone vai do I ao V (da Tônica a Dominante). Morricone faz da idéia inicial um motivo musical ao repetir a mesma idéia numa forma padronizada:

Figura 122 – Motivo do “Canone Inverso”

O motivo criado “responde” o motivo inicial indo do V ao I (da Dominante a Tônica). Até aqui a melodia principal do cânone foi obtida a partir da justaposição

469 seqüencial das duas figuras padronizadas. O mecanismo elementar de antecedência e conseqüência transforma a justaposição seqüencial numa idéia melódica completa.

Figura 123 – Melodia principal do “Canone Inverso”

O processo melódico de um cânone inverso a duas vozes é obtido através da cópia das melodias à partir da metade e de tráás para frente.

Figura 124 – Procedimento de composiçãão do “Canone Inverso”

A melodia completa do “Canone Invverso” tem 18 notas. Isso quer dizer que a nota 1 (Lá) de qualquer das melodias é igual a 18 (Lá) da outra melodia; 2 (Si) = 17 (Si), 3 (Lá) =16 (Lá) , 4 (Si) =15 (Si), 5 (Dó) =14 (Dó), 6 (Ré) =13 (Ré) ... 9 (Lá) = 9 (Lá) ... 18 (Lá) =1 (Lá). A soma de suas localizações é sempre 19 (a quantidade de notas + 1).

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18

Figura 125 – O espelhamento retrógraddo do “Canone Inverso”

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Pode-se inferir que a estrutura básica do gráfico resultante é somente de dois tipos. Um deles é, como no caso de nosso exemplo, quando a série de eventos tem uma quantidade par de elementos; e, o segundo, quanndo a quantidade é impar. No segundo caso, o número central fica isolado. Com a estrutura do cânone inverso completa, Morricone deriva a música “Canone Inverso” completa:

Figura 126 – O “Canone IInverso”

A música é composta de 4 módulos (partes) derivados da iddéia principal: o primeiro módulo é o original; o segundo modulo é obtido por transposição de terça- menor acima em relação ao módulo original; o terceiro módulo por transposição de quinta-justa acima do original; finalmente, o quarrto é a repetição do primeiro. A tona- lidade central é lá menor, passando por dó maior para regressar novamente ao tom.

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Como música principal do filme, ela é utilizada 11 vezes. Ela articula o nascimento e a morte; sublinha a relação entre pais e filhos; serve como acalanto ou música fúnebre; e é utilizada como peça de confronto. Morricone varia suas apari- ções com novas orquestrações, andamento e caráter.

472

4.28.2 - As inserções do canone inverso

1 Abertura – Créditos Iniciais 0:00:00 0:01:59 Externa (Não-diegética)

Canone Inverso (Nel Campo) Solo no violino Interna (Diegética): 2 Interferências extra-diegéticas: Coro infantil e Orquestra; 0:07:26 0:08:28

Termina só com o solo diegético.

3 Cantada em bocca chiusa por uma voz feminina 0:10:42 0:11:07 ED: Canone Inverso

D: Canone Inverso Agora diegeticamente 4 Lebhaft 0:11:52 0:12:41 cantado pela mãe do menino, levando para ED: “in bicicletta” Inicia Extra-diegético; Torna-se Diegética: Tema do Canone Inverso Jeno tocando ao lado 5 (Morte da mãe e do futuro irmão) 0:34:35 0:35:10 do caixão de sua mãe

dentro da igreja.

ED: O som de sua mãe Jeno olhando para a partitura cantando a melodia 6 1:11:19 1:11:34 principal do Canone Inverso Final do Concurso. D: Canone Inverso 7 David inicia como primeiro violino (Jeno o segundo); 1:12:00 1:12:28

David não consegue prosseguir tocando. D: Canone Inverso; David se desculpa e tenta novamente Da Capo; Novamente David não 8 1:12:41 1:12:59 consegue prosseguir tocando. O Maestro Ischbaw sugere que Jeno tente tocar a primeira voz; D: Canone Inverso; 9 1:13:25 1:13:54 Novamente David não consegue executar a peça até o fim; David decreta Jeno como vencedor do concurso. D: Nel Campo (Canone Eu sou sua neta. 10 1:31:24 1:31:55 Inverso); Recordo aquela música.

ED: Canone Inverso 11 O rabino diz que Jeno morreu. 1:32:16 1:36:52 Fragmentos;

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4.28.2.1: Créditos Iniciais: “Canone Inverso” Contemporaneamente, nem todos os filmes começam com uma seção que, através dos anos, tornou-se convencional, tanto pela quantidade quanto pela qualidade de sua utilização: a seção de abertura de um filme. Esse segmento, nor- malmente, referido como seção inicial, ou seção de “créditos iniciais”, tem como obje- tivo principal situar o espectador em relação à narrativa do filme que está começan- do. Carrasco (1985) chama a atenção à importância dos créditos iniciais:

De um modo genérico, todos os créditos iniciais têm por objetivo direcionar a atenção do espectador para o início da narrativa. Eles são o espaço reser- vado ao narrador para a sua preleção inicial. É como se todos eles nos dis- sessem, “preste atenção, o filme começou. Você vai assistir a uma estória chamada... interpretada por... escrita por... com música de... dirigida por...”. Além disso, a abertura já informa, em grande parte, o que o público pode es- perar do filme, se se trata de uma comédia, de ficção-científica ou de misté- rio. A abertura costuma também conter dados de estilo, tais como ritmo, am- bientação, enfoque, entre outros. Todas essas informações são passadas em conjunto, pelas imagens (inclusive o tipo de letra usado nos créditos) e, es- pecialmente, pela música. (CARRASCO, 1985:80-81)

Nesse sentido, os “Créditos Iniciais” do filme CANONE INVERSO apresentam informações que dirigem a atenção do espectador para o ponto inicial da narrativa: o leilão de um violino com características especiais. As informações apresentadas des- tacam as características do instrumento e da temática central do filme: a música. Os elementos utilizados são sóbrios e normais, o que já antecipa os pri- meiros dados sobre o gênero, estilo e ambientação tradicional do filme. Porém, antes do ingresso da música “Canone Inverso”, uma sonoridade presente passa quase que despercebida, talvez em função do baixo volume em que nesse momento foi proposi- talmente mixada. Ela denota outro procedimento muito comum, só que não no cine- ma: a afinação de uma orquestra sinfônica, ou seja, a sonoridade óbvia dos músicos de uma orquestra afinando os seus instrumentos, preparando-se para um concerto, o momento que precede o início de qualquer apresentação orquestral no teatro. Esse é o anúncio da importância que a música e os músicos têm nesse filme. Após aproximadamente 8 segundos das sonoridades, ouvimos 2 segundos de silêncio, silêncio que precede a introdução de uma melodia executada por um cravo

474 e acompanhada pelas cordas com predominância homofônica – uma introdução no modo menor (lá menor). Na tela, no momento em que é apresentado o crédito escrito de “Hans Matheson”, e com predominância de planos fechados, é mostrado inicial- mente o estandarte na parte dianteira inferior de um violino. Os movimentos da câ- mera nesse momento são todos verticais, e vão, aos poucos, revelando o restante do instrumento. “Melanie Thierry” é creditada quando outra imagem é sobreposta do mesmo violino mostrando um entalhe esculpido no lugar de sua voluta tradicional – uma espécie de carranca. Essa carranca será a marca de reconhecimento desse instrumento em particular, um elemento narrativo importante no decorrer do filme. Durante grande parte da seqüência o violino está girando. A introdução da música pelo cravo termina com o início da melodia principal do “Canone Inverso”, executada por um violino, sincronizada com o momento em que é exibido o título do filme: CA-

NONE INVERSO – MAKING LOVE. Quando os créditos são trocados para “Ricy Tognazzi”, ainda com os mesmos procedimentos em relação às imagens do violino ao fundo, ouvimos outra melodia, a melodia retrogradada, um pouco mais grave destacada por outro violino, dialogando com a melodia principal executada pelo primeiro instrumento. O cravo se recolhe, limitando-se a executar acordes homofônicos que acompanham o procedi- mento canônico dois violinos conjuntamente com o acompanhamento homofônico das cordas da orquestra. No momento que os créditos são trocados para “musiche composte, or- chestrate e dirette da ENNIO MORRICONE”, são visualizados outros instrumentos musicais. Os procedimentos das tomadas são parecidos com os anteriores, mas, o movimento da câmera se dá horizontalmente, da esquerda para a direita. São visualizados, mais à esquerda, um alaúde. Ao centro, uma espécie de harpa e à direita a parte superior do braço de outro violino com certeza muito antigo, o que se revela posteriormente, tanto pelo seu estranho formato quanto pela quanti- dade de cordas, somente duas. Com o restante do traveling da câmera podemos visualizar muitos outros instrumentos, clarinetes, oboés, flautas, alaúdes de muitos tipos, todos muito antigos. Então, percebe-se que os instrumentos estão agrupados

475 lado a lado numa bancada, provavelmente sendo exibidos. Trata-se de um leilão. O movimento da câmera termina com a imagem do instrumento seguro por um auxiliar, próximo ao leiloeiro oficial em sua bancada. A música também termina. Ela foi intei- ramente executada, apresentando ao público a música que será utilizada como a grande marca do filme. Ennio Morricone inseriu o “Canone Inverso” com uma sonori- dade orquestral romântica, de acordo com as exigências da ambientação, ressaltan- do o fundo mítico-musical europeu que circundará todo o filme com o tema da músi- ca, de músicos e do amor.

4.28.2.2: Canone Inverso: “Nel Campo” Essa seqüência é estabelecida no interior de um flashback que tem como narradora, Costanza (ainda como uma personagem que não se sabe o nome), filha de Jeno e Sophie, conversando com o Barão Blau no local do leilão. Na seqüência, um homem (que se chama David e é irmão de Jeno) cami- nha numa rua com a mão esquerda no bolso e carrega uma caixa de violino na mão direita. O homem para em frente a uma grande janela na entrada do café e fixa o olhar num casal que está sentado à esquerda do café. Percebe-se que é Costanza, nossa narradora do flashback, conversando com seu namorado. O namorado se in- comoda quando percebe, através do olhar na direção da janela, a presença de Da- vid. A imagem é cortada em tomada oposta (de dentro do bar) e temos a imagem do homem olhando fixamente pela janela. A imagem de Costanza e do namorado está distorcida em seu reflexo no vidro transparente da janela. O homem se dirige à porta do café e entra no recinto, caminhando em direção à mesa do casal e de seus acompanhantes. Seus passos são lentos, porém, decididos. Seus olhos encaram firmemente Costanza. David abre a caixa do violino e retira o instrumento. Pode-se notar a car- ranca característica do instrumento do leilão (dos créditos iniciais). O homem coloca uma flanela no ombro esquerdo e se coloca em posição de tocar alguma coisa. O namorado de Costanza arremessa uma moeda na mesa em direção ao homem afir-

476 mando que não é necessário que ele toque pois todos ali são músicos. David res- ponde que não vai tocar para eles, mas, “para as mulheres que têm nos olhos a me- mória do mundo”. Para espanto de todos os presentes na mesa, o homem começa a tocar. A melodia é a principal do “Canone Inverso”. Costanza, que estava conversando com a amiga, olha na direção do homem. Ela parece reconhecer a melodia. Na continuida- de do solo interno (diegético) da música, entra o acompanhamento externo da or- questra (extra-diegeticamente). A câmera fecha no rosto de David. Ele está com os olhos fechados e abre-os fitando, enquanto toca, os olhos de Costanza.

4.28.2.3: Flashback dentro do flashback – O efeito do “Canone Inverso” É sobreposta uma imagem representando lembranças de Costanza que acabam por fixar-se num corredor que parece de uma prisão (reminiscências da in- fância de Costanza apresentadas na forma de “diálogo interior”, um flashback dentro do flashback). A música causou em Costanza o que o próprio homem do violino des- creverá posteriormente: O “Canone Inverso” te faz retornar no tempo, ao tempo em que Costanza era criança. Nas imagens das lembranças de Costanza, podemos ver crianças, todas mal vestidas (e com a mesma roupa), dirigindo-se na direção de uma porta aberta por onde passa uma grande quantidade de luz. A imagem corta para os pés das cri- anças caminhando, todos os sapatos também são iguais. Nesse momento inicia o terceiro módulo do “Canone Inverso”. Um coral de vozes brancas interfere ritmica- mente na música, incorporando-se a ela como um motivo infantil em lá-lá-lá. A ima- gem corta para os rostos das crianças que estranhamente apresentam um sorriso que não combina, por estar em contraste, com o tom obscuro da cena. A próxima tomada é especialmente diferente e difícil de ser descrita. A câmera em plano fechado, filmando do chão, de baixo para cima, mostra um rosto invertido (de ponta cabeça) na tela com o céu azul e algumas nuvens no fundo. Esse é claramente o ponto de vista de alguém olhando do chão para cima. O flashback termina. A imagem volta para Costanza, no café (fim de suas lembranças). O coral e

477 a orquestra desaparecem, ficando só o som do homem tocando no violino o quarto módulo da melodia principal do “Canone Inverso”. Quando a música termina todos no bar movimentado (menos Costanza e seus companheiros) aplaudem. O homem guarda o violino na caixa, olha mais uma vez para Costanza e caminha em direção a porta de saída com a mesma decisão que tinha ao entrar, sem dizer nem uma pala- vra. Próximo a porta, olha novamente para Costanza e sai.

4.28.2.4: Canone Inverso – A Boca Chiusa Desculpando-se com todos na mesa, Costanza, visivelmente perturbada, imediatamente se levanta e vai atrás do homem do violino. Quando o encontra, tem início um segundo flashback (daqui para frente chamado de flashback(2)), e que tem como narrador uma personagem (David Varga, o Homem do Violino), que, reforçan- do, no tempo interior da narrativa, está sendo narrado pela própria Costanza, no pri- meiro flashback (flashback(1)). A época da narrativa do Homem do Violino não é fixa, mas começa no tempo da Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), passa pela Se- gunda Guerra Mundial (1939 – 1945) e termina na Primavera de Praga em 1968, abrangendo um período próximo a 50 anos. O principal objetivo de David no Flash- back(2) é narrar a vida de seu irmão Jeno Varga. Configura-se inicialmente como uma auto-narrativa, pois David se apresenta a Costanza como sendo o próprio Jeno: o pai verdadeiro e desconhecido de Costanza. David inicia a história de Jeno: “Um dia um homem se enamorou de uma mulher. Quando a abandonou deixou com ela este violino, aquela música que toquei e eu mesmo. Aquela música é um cânone Inverso”. Costanza pergunta: “Quer dizer que se pode tocá-la ao contrário?” David, responde: “Sim, te faz caminhar para trás, ao tempo quando era uma criança”. Concomitantemente, à descrição do efeito do “Canone Inverso”, dada pelo próprio David se passando por Jeno, inicia a música “Canone Inverso”, extra- diegeticamente, cantada por uma voz de mulher em boca chiusa. A música é inserida extra-diegeticamente, cantada por uma voz de mulher em boca chiusa.

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No momento em que se adentra no flashback(2) ouvimos mais claramente o som da voz de uma mulher cantando a melodia principal do “Canone Inverso” em boca chiusa. A imagem do violino do leilão surge com a mulher acariciando-o, deita- da numa cama em companhia de um menininho, Jeno quando criança. A melodia torna-se diegética, pois está sendo cantada pela mãe como um acalanto, embalando o filho para dormir. Este é o momento do filme que é revelado a música “Canone Inverso” foi composta pelo pai de Jeno que, partindo para a guerra (Primeira Guerra Mundial), deixou com a mãe o violino, a música e o filho Jeno. A melodia termina com a criança comentando com a mãe que quer tocar aquele instrumento. Ela responde que sabe disso, mas, que primeiro ele tem de es- tudar para aprender a tocá-lo. Ele então pergunta porque ela não o ensina. Ela res- ponde que é porque não sabe música e que se o seu pai estivesse ali, com certeza, lhe ensinaria. A criança pergunta como era seu pai. Ela responde que era Judeu co- mo eles e que havia partido para a guerra. O menino, com sono, pede para que a mãe cante a música do pai. A mãe de Jeno, atendendo ao pedido do menino, canta novamente em boca chiusa a melodia principal do “Canone Inverso” como um acalanto, para fazer Jeno dormir. No momento em que a mãe de Jeno está acariciando seus cabelos, ouve-se um som extra-diegético de cordas na região grave da orquestra que prosse- gue o canto da mãe e emenda com a melodia principal. A orquestra executa o tercei- ro módulo do “Canone Inverso” até o fim da música.

4.28.2.4.1 ‐ In Bicicleta: Lebhaft A forma como Morricone tratou essa inserção configura um momento mu- sical cinematográfico muito especial referido como lebhaft256 (com muita vida, viva- mente) ou Luft, um grande momento cinematográfico. No CD Morricone chama-o de

256 A palavra alemã pode ser utilizada como o nome de um movimento de uma peça (por exemplo, o terceiro movimento de Trauermusik de Paul Hindemith) ou como uma diretiva para executar-se certa passagem de uma composição musical de uma forma muito viva. Cinematograficamente, esse termo foi utilizado por Spielberg referindo-se à música de John Williams da famosa seqüência em que as bicicletas voam na fuga do ET. (DVD2 (Bônus) - E.T. O Extraterrestre, Edição de Colecionador).

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“In Bicicletta” (uma menção sutilíssima ao momento das bicicletas do filme “ET – O

EXTRATERRESTRE”). O lebhalt representa um momento com um efeito grandioso, às vezes, como ponto culminante. Normalmente, é executado com um grande crescen- do orquestral muito envolvente, que, no caso, ajuda muito a situar Jeno nesse mo- mento do início de sua vida e colabora na atualização do tempo do discurso em flashback (Jeno crescendo) como se fosse o tempo “real” do discurso diegético na seqüência do filme. Além disso, como efeito da montagem musical e imagética pode- se obter mais “fôlego”, uma possibilidade de renovação e continuidade do discurso sob ponto de vista do espectador. O tempo adianta-se um pouco, num flashforward, em relação ao tempo da narrativa do flashback(2). Na imagem sobreposta observamos uma roda de bicicleta girando. A imagem que se revela é a da mãe andando de bicicleta com Jeno, pouco mais crescido, no bagageiro agarrado à cintura dela. A paisagem é a de uma fazen- da. A mãe de Jeno casou com um fazendeiro criador de porcos. Jeno agora tem um padrasto, Wolf (Adriano Pappalardo).

4.28.2.5: Morte da mãe de Jeno A cena acontece dentro no flashback(2), na fazenda, Jeno e a mãe estão trabalhando num celeiro, a mãe de Jeno grávida. Segurando a grande barriga ela sente violentamente as primeiras dores do parto e grita para Jeno para chamar Wolf, seu padrasto. No momento em que Jeno sai correndo para chamar Wolf, ouve-se melo- dia principal do “Canone Inverso”, tocada somente por um violino. Após um corte se- co na imagem de Jeno correndo, fechado num plano médio vemos Wolf. Ele está sentado ao lado de algumas pessoas dentro de uma igreja, o solo do violino preen- che toda a igreja. A voz do narrador (David, o narrador do flashback(2)) sobrepõe-se à música: “Toquei para ela e para o meu pequeno desconhecido irmão, a mesma música com que me ninava”. A música se transforma em interna (diegética). Jeno está tocando ao lado de um caixão. A mãe e o futuro irmão morreram no parto.

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Na igreja, além das pessoas e de Jeno tocando ao lado do caixão, a câ- mera mostra o vulto de um homem misterioso escondido na penumbra da sacristia esforçando-se para não ser visto (Barão Blau, o verdadeiro pai de Jeno). Os sinos da igreja começam a tocar junto com a música tocada por Jeno enquanto que a câmera dá uma visão panorâmica do triste recinto. No corte da mú- sica e da imagem, com os sons das badaladas dos sinos prosseguindo, vemos Wolf colocar um caixão pequeno ao lado de um grande no carro fúnebre. Jeno passa ao lado cabisbaixo quando vê e ouve um carro dar a partida e ir embora. Wolf se apro- xima de Jeno e os dois se abraçam, chorando.

4.28.2.6: A partitura do “Canone Inverso” Toda história do filme até esse momento tem uma ligação capital com a música “Canone Inverso”. Os momentos narrativos mais importantes mencionam-na literalmente na diegesis do filme mesmo quando ela foi apresentada extra- diegeticamente. Nesse segmento, a música “Canone Inverso” se “materializa” atra- vés de sua partitura numa situação de disputa da final do concurso do Colegium Mu- sicum, etapa que teve de ser adiada pela invasão dos nazistas. O prêmio para o vencedor do concurso é a participação num concerto duplo como solista ao lado da famosa pianista Sophie Levi, no Teatro Tanz. A peça que será executada é um Con- certo escrito por um compositor Judeu (na realidade por Ennio Morricone) o “Finale di un Concerto Romantico Interroto”. Os dois finalistas são grandes amigos, músicos e violinistas, mas, exata- mente nesse momento do filme, descobrem que são irmãos. Portanto, o momento é o ponto a partir do qual a narrativa inicia a teleologia de resolução trágica, na final de um concurso que dará direito ao vencedor de executar o concerto com Sophie, a mu- lher amada de Jeno. Na imagem da partitura da peça “Canone Inverso”, escrita pelo Barão Blau, o pai de Jeno e David e que será utilizada como peça de confronto na final do concurso, visualiza-se a data da composição original: 2 de dezembro de 1919.

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Figura 127 – Data da composição do “Canone Inverso”: 02/12/1919

4.28.2.7: “Canone Inverso”: O Confronto David é designado como o primeiro violino, o que executa a melodia origi- nal do cânone inverso. Porém, no momento em que os doois iniciam a tocar, David, não consegue prosseguir tocando.

4.28.2.8: “Canone Inverso”: Da Capo David se desculpa e pede que reiniciem a peça novamente do início, mas, novamente não consegue prosseguir tocando.

4.28.2.9: “Canone Inverso”: A Troca das Melodias Hischbaum, o maestro que está julgando a final do concurso sugere que Jeno faça o primeiro violino e não mais a melodia retrógrada do papel do segundo violino. Na tentativa, novamente David não consegue se concentrar para tocar a melodia do segundo violino e afirma que não existe motivo para que continuem e, desse modo, ele mesmo declara Jeno como o vencedor do concurso.

4.28.2.10: Canone Inverso: “Nel Campo” Nessa cena Costanza está conversando com o Barão Blau no tempo real da história e no mesmo local do leilão que iniciou o filme. Ela conta para o Barão que Praga se tornou parte do estado soviético e que seu pai, Jeno, havia desaparecido na noite. Ela prossegue: “Junto com ele a li- berdade. Nunca mais o vi novamente. Fiz o impossível para encontrá-lo. Depois de

482 muito pesquisar descobri que Sophie Levi morreu num campo de concentração. Mas, do amor dela e Jeno nasceu uma menina. Não quer saber se ela sobreviveu? Porque sou eu aquela menina”. Em flashback, as imagens resgatam as lembranças do diálogo interior de Costanza, mostradas na segunda inserção do “Canone Inverso” onde, em plano fe- chado, filmando do chão, de baixo para cima, terminou com um rosto invertido (de ponta cabeça) na tela com o céu azul e algumas nuvens no fundo. Dessa vez a seqüência revela o rosto como de Sophie Levi, a mãe de Costanza. Do lado oposto de uma cerca nota-se a presença de Jeno, tocando o “Ca- none Inverso” para as duas. A voz over de Costanza termina o flashback dizendo: Me recordo daquela música e do meu pai que a tocava para mim. Para mim e para minha mãe. A mesma música que tocou naquele bar”.

4.28.2.11: Canone Inverso: Jeno está morto De volta ao tempo real da narrativa Costanza tenta convencer o Barão Blau: “Ele não me encontrou por acaso. Meu pai estava me procurando. Ele me re- conheceu, entende? Me deixou o violino dele. Era ele, mas mais tarde descobri uma coisa que pôs tudo em dúvida”. Novamente em Flashback as imagens mostram Costanza e um rabino num cemitério judeu. O rabino leva Costanza para ver a Sepultura de Jeno. Só um trecho do final de uma única melodia do “Canone Inverso” é executada pelas cordas, extra-diegeticamente. Enquanto o Rabino explica que Jeno estava muito doente quando voltou do campo de concentração e não resistiu. Na cena é possível deduzir que a peça foi composta em homenagem ao nascimento do filho Jeno, pouco antes de ser abandonado pelo pai. Isso também pode ser constatado nas datas de sua tumba, quando Costanza, sua filha está a pro- cura do pai.

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Figura 128 – Ano de nascimento e morte de Jeno Varga

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4.29 - A MÚSICA COMO PERSONAGEM

É difícil sustentar a possibilidade, latente à própria dramaturgia específica de um filme, da música ser utilizada como personagem “real” do objeto audiovisual. Carrasco (1993) nos lembra desse fato quando afirma que todo drama se desenvolve através da ação representada. Assim, na base de qualquer drama estaria a idéia de personagem.

Costuma-se dizer que a música é um personagem a mais no filme. Esta afir- mação não é muito precisa, pois, em última análise, o personagem é aquele que executa a ação dramática, e a música não age. Mas, em certo sentido, ela possui um grau de verdade, se partirmos da premissa de que o cinema possui uma dramaturgia específica, onde a função originalmente creditada ao texto no drama tradicional pode ser substituída por recursos articulató- rios não verbais257.

Concordando com essa perspectiva, Mauro Giorgetti258 se coloca a ques- tão: Como definir um personagem fílmico?

Pode-se afirmar que se trata de entidade que essencialmente age, ou seja, o que caracteriza o personagem é a ação (exercida sobre outros personagens e, por conseguinte, sobre o roteiro em geral). Ora, a partir do momento em que a música exerce influência, maior ou menor, sobre um ou mais persona- gens do filme, é lícito reivindicar para ela também a condição de persona- gem; note-se que, para tanto, é vital que os personagens do filme tenham consciência de sua existência, o que vale dizer que a música, se assim pode- mos dizer, passa a existir dentro da película, fazendo parte indissolúvel do roteiro (grifo nosso). (GIORGETTI, 2007)

O problema dessa afirmação é que as características citadas são pertinen- tes a quase todas as músicas utilizadas diegeticamente no cinema. Portanto, a per- gunta persiste, como, quando e porque a música pode adquirir o status de persona- gem? O próprio Giorgetti tenta responder a questão relacionando outras caracte- rísticas fundamentais que podem ajudar a responder a estas perguntas:

257 CARRASCO, C. Trilha Musical – Música e Articulação Fílmica, 1993, p. 14. 258 GIORGETTI, M. A Música como Personagem. (http://www.mnemocine.com.br/cinema/ somtex- tos/comoperson.htm - último acesso em 03 de junho de 2007).

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 destina-se à música papel de complemento da ação, entendendo-se o termo em sua acepção mais ampla, que pode apontar para uma série de alternati- vas;  evoca alguma situação, circunstância, acontecimento, etc., que interessam diretamente a um ou mais personagens (reais), e neste sentido atua pratica- mente como testemunha viva, cuja função é despertar ou intensificar lem- branças de qualquer natureza (e talvez seja este o emprego mais comum);  auxilia o personagem que não consegue mais se exprimir por si próprio, quando trata-se de transmitir alguma emoção, sentimento, etc., que excede- lhe a capacidade de expressão, ou mesmo quando o diretor entende que a música será mais eficaz que o próprio ator em determinada situação dramá- tico-expressiva.

No caso do “Canone Inverso”, a música se configura em todos os itens ci- tados, mas vai além. 1. Ela foi composta pelo personagem (Barão Blau) que desencadeia toda a história. É como se o próprio personagem escrevesse simbolicamen- te o roteiro de todo o restante dos acontecimentos. 2. Nas suas duas melodias principais, executadas retrogradamente, ela representa dois lados opostos do Barão Blau. O primeiro definido pelo próprio Barão como muito jovem e fraco; o segundo, o aristocrático, duas facetas em contramão como as duas melodias no “Canone Inver- so”. 3. Cada faceta gera um filho: Jeno e David. O primeiro, abandonado pelo Barão, ainda criança, ama a música, mas tem que cuidar dos negócios do padrasto; o segundo, convivendo com ele, ama os negócios, mas é obrigado a estudar música no Colegium Musicum. Os dois filhos se co- nhecem e tornam-se grandes amigos no conservatório, amigos que, por força do destino trágico, enfrentar-se-ão numa disputa que tem como armas seus violinos, o de Jeno deixado como herança pelo pró- prio pai, e a execução do próprio “Canone Inverso”. 4. A descoberta da verdade revela-se catastrófica. A constatação se dá quando Jeno vence o concurso do Colegium Musicum, realizando lite-

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ralmente a inversão narrada pelo próprio David se passando por Jeno: “David não veio dormir aquela noite. A nossa amizade iniciou o seu de- clínio... o seu ‘Canone Inverso’” – a inversão do “canone Inverso”. 5. As características canônicas da música estão presentes na maneira como a narrativa avança: “uma música que te faz voltar para trás, ao tempo em que era criança”. E, realmente, tanto a presença diegética ou extra-diegética da música “Canone Inverso” remetem a momentos em flashback, com flashbacks dentro do flashback, realizando esse in- tento, anunciado como efeito pelo próprio filme: “Te fa retornar indietro” (Te faz ir para trás – retornar). 6. Ennio Morricone e Rick Tognazzi trataram a música “Canone Inverso” com alguns cuidados fundamentais, o que reforça a idéia da possível caracterização de personagem:

o introduziram a música, prevista desde o roteiro, com lógica e coerência na montagem (já a partir dos créditos iniciais); o diferenciaram efetivamente a música (“Canone Inverso”) do restante da música do filme; o “materializaram” a música, com sua partitura, revelando in- clusive a data de sua composição (a mesma data do nasci- mento de Jeno), sublinhando a grande importância atribuída.

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4.29.1 - A Forma das Inserções do Canone Inverso

A repetição de vários elementos a intervalos regulares cria um tipo de desenho; os contrastes violentos e as transições abruptas e surpreendentes, outro, completamente diferente. Pode haver esquemas de intensidades que crescem até um clímax para de- pois baixar, formas ascendentes de intensificação gradativa de todos os elementos (velocidade, andamento, ritmo de luz, cor) e outras, descendentes, nas quais elas gradativamente se atenuam; ou ainda outras, circulares, nas quais o final retoma a configuração inicial259 (grifo nosso).

Estruturar narrativamente um filme a partir de uma não-linearidade é um dos pressupostos que fazem da montagem no cinema um dos instrumentos mais valiosos quando se quer contar uma história. Há várias formas de conseguir efeitos temporais sofisticados, sendo as mais conhecidas relacionadas ao flashback e o flashforward. Infindáveis exemplos da utilização desses dispositivos podem ser cita- dos devido a quantidade bastante significativa de filmes que utilizam esses recursos em sua narrativa. Um filme que recentemente levou ao extremo esses procedimentos foi Memento (Amnésia), lançado em 2000, o mesmo ano de lançamento do “Canone Inverso”.

Para contar essa história não bastou ao diretor um roteiro linear. O filme é todo recortado e de trás para frente; cenas em preto-e-branco em ordem cronológica alternam-se com as coloridas e contam o início da história jun- tamente com outra, contada por Leonard, o caso de Sammy Jankins, um ho- mem que sofria do mesmo problema de Leonard acusado de ter matado a es- posa diabética. A genialidade deste recurso faz com que o espectador parti- cipe da ausência de memória da personagem. Quem assiste ao filme fica perdido, sem saber o que acontece no instante seguinte, só aos poucos con- segue montar o quebra-cabeças e participar deste jogo, construindo uma memória que a personagem não tem. As cenas em preto-e-branco se encon- tram com as cenas coloridas no fim (começo?) do filme, formando uma se- qüência260.

O suporte principal para essa idéia interessante e, ao mesmo tempo, complicada, parte do conteúdo imagético. O filme começa literalmente de trás para frente, ou seja, retrogradamente. Vemos uma bala voltando para o cano de um revól-

259 ESSLIN, M. Uma anatomia do drama. Trad. Barbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar Editores S.A. 1986. 260 DWORZAK, R. H. Um Passeio pelos meandros da memória: Do romance “relato de um certo oriente” ao filme “Amnésia”. http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=285&rv=Literatura. Acesso em 6/6/2007.

488 ver, sangue numa parede escorrendo para cima. Logo depois, a ação passa a obe- decer as leis normais da física, mas não a ordem cronológica normal.

Os acontecimentos que pontuam o roteiro (baseado no conto Memento Nori, escrito por Jonathan Nolan, irmão do diretor), são apresentados em formato de contagem regressiva, cada seqüência nos leva ao passado, e não ao futu- ro. Munido de polaróides, anotações e tatuagens no corpo (estilo herói de história em quadrinhos), Leonard tenta desvendar a morte da mulher, perdi- do no tempo e tentando encontrar-se no espaço, munido de anotações e ima- gens rudimentares261.

Na epígrafe acima, Esslin (1986) afirma que uma combinação de elemen- tos espaciais permite um número infinito de permutações estruturais entre a unidade espacial em diversidade rítmica, por um lado, e unidade de andamento e tom em uma imensa variedade de mudanças visuais, por outro.

A verdade essencial a ser lembrada, entretanto, é a de que enquanto a au- sência de uma forma é amorfa, destituída de estrutura discernível, toda for- ma, toda estrutura, depende da articulação e da conjunção de elementos dis- tintos. Isso é suficientemente importante na dimensão espacial, na qual a dis- tribuição dos personagens pelo palco, a distribuição da cor e da luz, deter- minam a diferença, entre o caos e o compreensível. Na dimensão temporal, porém, esse aspecto ainda é mais vital: do mesmo modo que uma peça musi- cal caminha com seus próprios ritmos e precisa ser subdividida em seções distintas, nas estrofes e coros de uma canção, nos movimentos de uma sonata ou de uma sinfonia, assim também o movimento de qualquer forma dramáti- ca tem de ser igualmente articulado e formulado. [...] Clareza de estrutura e um nítido "balisamente" do curso da ação são, assim, elementos formais da maior importância na construção do drama. E quanto maior for a variação entre cada segmento e o seu vizinho mais próximo, menor será o perigo da monotonia, outra assustadora fonte de tédio.

Essa afirmação de Esslin auxilia no balizamento de nossa questão chave da relação neste filme: “porque Ennio Morricone e Ricky Tognazzi utilizaram uma forma contra- pontística hermética num filme com características hollywoodianas?”

261 MENDONÇA FILHO, K. Não lembro, daí não existo. 2001. http://cf.uol.com.br /cinemascopio/critica.cfm? CodCritica=623. Acesso em 9/6/2007.

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A estrutura dramática do filme constituiu-se principalmente por persona- gens que orbitaram em torno da herança de um violino e de uma música especial – o “Canone Inverso”; o espaço da ação foi preenchido pela Tchecoslováquia; o tempo da ação, todo em idas e vindas de flashbacks, abarcaram desde o final da Primeira Guerra Mundial, passando pela Segunda Guerra Mundial e terminando na chamada “Primavera de Praga”; e, finalmente, o conflito principal do argumento estabeleceu- se, principalmente, em torno da música e do ideal do músico. Em tese, a estrutura narrativa foi vinculada veladamente ao mesmo tipo de estrutura do cânone inverso implicando diretamente no como a história foi contada, organizadas em cenas e seqüências, sucedendo-se, logicamente, em flashbacks, tentando refletir o efeito de “voltar para trás, ao tempo que era criança”.

A música principal, que serviu como motivo condutor, foi utilizada 11 ve- zes: 1. Nos “Créditos Iniciais” com sentido de nascimento da própria música e do filme; 2. No Flashback (como lembranças interiores) de Costanza den- tro do Flashback(1) – Nel Campo; 3. Como transição para o flashback(2) – A mãe de Jeno cantan- do em Boca Chiusa; 4. Como Acalanto – para fazer Jeno quando criança dormir; 5. Como Música Fúnebre – Na missa do enterro da mãe e do ir- mão de Jeno (que morreram no parto); 6. A Materialização (presença diegética da partitura); 7. O Confronto (David é o primeiro violino e Jeno o segundo); 8. Da Capo (David não consegue executar e pede para recome- çar); 9. Troca (Jeno passa para o primeiro violino); 10. Nel Campo (resgate do momento 2); 11. Jeno está morto.

No filme não foram somente as imagens, como no exemplo de Memento, o foco referencial para sua montagem, mas, a forma canônica da música “Canone

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Inverso”. Nessa perspectiva, a estrutura262 da montagem fílmica pôs em relevo o sis- tema de relações entre os diversos momentos constituintes do filme, de forma que cada momento adquirisse significado a partir do vínculo estabelecido com os outros momentos e estes com a própria música “Canone Inverso” ou com o seu movimento retrógrado característico. Os resultados obtidos conduz ao seguinte gráfico: Estrutura Dramática do Canone Inverso

1 Abertura

2 (5) Nel Campo

3 (6) Boca Chiusa

4 (8) Acalanto

5 (23) Morte da mãe A Soma das

6 + 6 Inversões é (49) A Presença Diegética igual a 12

7 (50) Confronto

8 (51) Da Capo

9 (52) Canone Inverso (troca)

10 Canone Inverso Eu sou sua neta (58) (Nel Campo)

11 Canone Inverso (59) Jeno está morto

Gráfico 3 – Estrutura preliminar das inserções do “Canone Inverso”

262 Termo de diversas aplicações nas ciências humanas e sociais (provém do latim structura, “construção”, numa acepção arquitetural, e partilha a mesma dificuldade de definição em outras línguas com termos como o alemão Gestalt e o inglês pattern), entrou na teoria da literatura através dos trabalhos dos formalistas russos (Jakobson e Tynianov, sobretudo) e da fenomenologia de Roman Ingarden, que concebiam a obra de arte como um sistema complexo constituído por diferentes níveis de significação, necessariamente relacionados entre si.

491

Esse gráfico preliminar exibe relações espelhadas com vários graus de in- terpretação. Dois dos momentos espelhados podem ser considerados evidentes e, portanto, irrefutáveis:

 na inserção central nº. 6, a música “Canone Inverso” se “materializa” visual- mente através de sua partitura numa situação de disputa entre dois grandes amigos, músicos e violinistas, mas, que na realidade do filme são irmãos (o que só é revelado nesse momento). Além disso, o momento é o ponto culmi- nante onde eles vão disputar a final de um concurso que dará direito ao ven- cedor de executar um concerto com a mulher amada de Jeno, a pianista que se ofereceu para tocar nesse evento.  na inserção 2 com a 10 (Nel Campo). Elas se complementam. A inserção 2 apresenta a imagem de uma personagem e uma situação que fica desco- nhecida e sem resolução; o momento 10 revela a personagem como a pia- nista Sophie Levi, a mãe de Costanza, narradora dos dois momentos.

A inserção 1 com a 11 é aceitável desde que se considere a primeira co- mo um nascimento e a última como morte, o que é plausível. Na inserção 1 (Créditos Iniciais) ouvimos o “Canone Inverso” pela primeira vez. Ele foi composto pelo barão Blau em comemoração ao nascimento de Jeno seu primeiro filho. Logo após, o barão Blau abandona a mãe e Jeno. A inserção 11 relaciona-se com a morte de Jeno. Na seqüência é apresentado seu túmulo à Costanza, sua filha, e a data de sua morte. As mais problemáticas são as inserções de nº. 3, 4 e 5 relacionadas com as de nº. 7, 8 e 9 (3 com a 9, 4 com a 8 e 5 com a 7). Apesar de haver possibilidades de interpretação, esses são momentos onde a relação retrógrada direta é menos evidente.

Dividindo o total do filme em suas partes constituintes, nota-se que os três pares problemáticos estão situados numa mesma “subestrutura” de ordem temática, ou seja, os momentos 3, 4 e 5 estão relacionados ao tempo de convivência de Jeno com a mãe; os momentos 7, 8 e 9 relacionam-se ao confronto entre os irmãos, quando toda verdade sobre os dois emerge. Portanto, eles podem ser facilmente ob- servados teleologicamente, ou seja, numa relação de causa e efeito.

492

Dessa forma obtemos o próximo gráfico:

Preâmbulo 1 – Abertura – O Cânone Inverso 1 A –

Introdução –> TRD Introdução: O Leilão

-> Flashback(1) Flashback(1) – agosto de 1968 (Primavera de Praga)

2 – Canone Inverso – Nel Campo

-> Flashback(A1) Flaschback dentro do flashback – O efeito do “Canone Inver-

so” B – 2 B – 2

Transição para o Flashback(2) dentro do Flashback(1) -> Flashback(1) Anúncio do Flashback(2) dentro do Flashback(1)

Transição 3 – Canone Inverso – A Boca Chiusa

O Flashback(2)

4 – Canone Inverso – Acalanto

Jeno e Wolf, o padrasto: Dono de uma fazenda de criação de

porcos

“Briga entre crianças”: Jeno bastardo

Desespero: momento meta-diegético

Jeno Crescendo e Recebendo o Violino: Herança do Pai Ver-

dadeiro C -> Flashback(2) Finale de Um Concerto Interrompido: Sophie Levi 3, 4 e 5 5 3, 4 e A Primeira Inserção do Finale de Um Concerto Interroto no

filme

A mãe de Jeno Grávida

Indo para a cidade: Clair de La Lune di Giorno (O Leitmotiv

de Sophie Levi)

Espiando Sophie

Na casa de Banhos: A primeira conversa de Jeno com Sophie

Jeno não volta com Wolf

493

Jeno descobre o quarto do Hotel de Sophie Levi

No quarto de Sophie Levi

Jeno no Concerto de Sophie Levi

Jeno toca para Sophie pela primeira vez

Interrupção(1) -> De volta ao Flaschback(1) Flashback(1)

5 – Canone Inverso – Morte da mãe

De volta ao Flashback(2): A Morte da mãe de Jeno

Desespero - Momento meta-diegético

Nazistas: O anti-semitismo

“Nem tudo não está na música: Além da Música... O silêncio”

Indo para o Colegium Musicum com Wolf

No Colegium Musicum

Aula com o Maestro Weigel: A Ciaccona de Bach

Capriccio “La Caccia” de Paganini: O Violino Confiscado -> Flashback(2)

O Castigo de Jeno: O Encontro com David

O músico e a música

Confidências Noturnas: A Incapturabilidade da Mulher e da

Música

Definição de Música de Jeno: Goliardi e Sport

De volta ao banho frio

A Vingança no Banho

Improviso: Goliardi

Estamos Fazendo Amor: O Fazer Musical

Interrupção(2) -> Volta para o flashback(1)

Flashback(1)

De Volta ao Flashback(2) – Primeiro dia do Ano Novo de

-> Flashback(2) 1939

494

Anúncio do Prêmio do Concurso: Concerto com Sophie

O Discurso de Sophie Levi: A solidão do músico

Sophie deixando o Colegium Musicum

Interrupção(3) -> Retorna ao Flashback(1) Flashback(1)

Volta para o Flashback(2): O medo de David

O Concurso de Fim de Curso: Finale de um Concerto Interroto

Anúncio dos Finalistas

Adiamento do Confronto Final

15 de Março: A Invasão de Praga Pelas Tropas de Hitler

Jeno e David: Uma Possível Despedida

Jeno: Assume ser Judeu

Juntos: Jeno, David e o Violino

A chegada na Mansão dos Blau

Os Antepassados dos Blau: O nome de Costanza

O quarto de David: A Alma que Passa Através da Eterna

-> Flashback(2) Prisão da Morte

A Mãe confunde David e Jeno

David vê o Violino de Seu Pai

A Mesma Foto: Pré-Anúncio do Cânone Inverso

Jeno começa a desconfiar de quem é

O Encontro entre Pai e Filho Bastardo

Prêmio: O Concerto do Teatro Tanz

6 – Canone Inverso – A Presença Diegética

Jeno Olhando a Partitura Composta em 1919 D – 6

David: O Primeiro

7 – Canone Inverso – Confronto E

8 – Canone Inverso – Da Capo 9 7, 8 e

495

9 – Canone Inverso – Troca das Melodias

Troca do Primeiro: Jeno é o Vencedor

Ruptura entre os Irmãos: Wolf não é meu pai

David: O “Conforto” da Mãe

Jeno: Em Busca do Destino

Devolução da Herança do Pai: O Violino

Interrupção(4[R]) ->

Volta ao “Tempo Real” do filme TRD

Volta ao Flashback(2): A Verdade do Pai

Fuga dos judeus

Preparativos para o Concerto Final Interrompido Flashback(2)

Encontro com Wolf: Não Haverá Concerto

Sophie na Estação de Trem: De partida

Jeno vai avisar o Maestro no Teatro

A realização dos 2 Fazendo Amor: A Concepção de Costanza grandes objetivos de

Vai Haver Concerto Jeno

O Concerto do Teatro Tanz – Introdução: David Vai ao Con-

certo

Última Interrupção: Finale de Un Concerto Interroto

-> Volta ao Flash- Saída do Flaschback(2: Volta para o Flashback(1)

back(1) A Invasão dos Soviéticos: A Primavera de Praga

496

-> Volta ao Tempo

Saída do Flashback(1): Volta ao Tempo Diegético Real Real Diegético

10 – Canone Inverso – Eu sou sua neta – Nel Campo

Flashback(A [TRD]) Resgate do Flashback: No Campo de Concentração F – 10 10 F –

-> TRD Volta para o “Tempo Real”

11 – Canone Inverso – Jeno está morto Flashback(B) Em Flashback: A Sepultura de Jeno (1919-1945)

-> TRD Volta ao “Tempo Real”: Eu Sou Sua Neta

Flashback(C) -> G – 11 Tempo do Flash- Flashback: Jeno está Morto

back(1)

Volta ao “Tempo Real” da Narrativa -> TRD

De Volta ao Colegium Musicum Abandonado

Flashback(D) ->

Tempo do Flash- Flashback: Goliardi

back(2)

TRD Volta ao “Tempo Real”

TRD+Flashback(2) Mistura do “Tempo Real” com o “Flashback(2)”: FIM

Créditos Finais

Gráfico 4 – A Estrutura Narrativa do Filme

O gráfico foi construído à partir dos tempos da narrativa: o Na coluna da esquerda temos o enquadramento do tempo da narrativa em: . Abertura (Créditos Iniciais); . TRD – Tempo Real Diegético; . Flashback(1); . Flashback(2);

497

. flashbacks de interrupção (retornos momentâ- neos aos flashbacks anteriores ou ao tempo real diegético; . Créditos Finais. o Na coluna central um nome de referência às seqüên- cias do filme; o Na coluna da direita uma cor relacionando-se com as inserções da música “Canone Inverso”.

498

Na união dos dois gráficos temos:

1 4.30 - ABERTURA O CÂNONE INVERSO 2 (5) 4.31 - CANONE INVERSO NEL CAMPO 3 (6) 4.32 - CANONE INVERSO BOCA CHIUSA 4 (8) 4.33 - CANONE INVERSO ACALANTO 5 (23) 4.34 - CANONE INVERSO MORTE DA MÃE A Soma das 6 + 6 (49) 4.35 - CANONE INVERSO A PRESENÇA DIEGÉTICA Inversões é 7 (50) 4.36 - CANONE INVERSO CONFRONTO 8 (51) 4.37 - CANONE INVERSO DA CAPO 9 (52) 4.38 - CANONE INVERSO INVERSÃO 4.39 - CANONE INVERSO 10 (58) EU SOU SUA NETA 4.40 - (NEL CAMPO) 11 (59) 4.41 - CANONE INVERSO JENO ESTÁ MORTO

Simplificando: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 Jeno gética Nel Campo Nel Campo Jeno e David Presença Die- Morte de Jeno Nascimento de A Mãe de Jeno Confronto entre

Gráfico 5 – Gráfico Sintético das Inserções

Portanto, é notável que os momentos de inserção da música “Canone In- verso” de Ennio Morricone referenciam-se no mesmo modo que a estrutura do câno- ne inverso no filme CANONE INVERSO.

499

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O pensamento musical no cinema exemplificado pela “música aplicada” de Ennio Morricone, estabeleceu-se na idéia de confluência entre dois pensamentos relacionados à música de cinema, duas abordagens: uma musicológica, histórica e teórica, voltada a apresentar e discutir instrumentos idôneos na análise das relações intercorrentes entre música e imagem; a outra, profissional, artesanal, estritamente relativa a um pensamento e uma praxe compositiva desenvolvida dentro dos vínculos impostos pela própria produção e linguagem cinematográfica exemplificados pela música aplicada de Ennio Morricone. Desde a seção de Apresentação, três conceitos permearam todo o traba- lho: 1 – o ofício do músico no cinema; 2 – uma estética pessoal; 3 – a música aplica- da. A seção introdutória, “Música de cinema: aspectos e problemas de uma atividade composicional do ‘nosso tempo’”, suscitou o escopo exploratório e qualitati- vo da tese, engajada na observação do ofício do músico Ennio Morricone e de sua “música aplicada”, um contexto amplo que, no âmbito da arte contemporânea, com- promete-se com a própria compreensão do trabalho audiovisual. Na primeira parte do trabalho foram apresentados e discutidos alguns tó- picos que referenciam o escopo da composição audiovisual cinematográfica: música, sons e imagens em movimento combinados no objeto fílmico. Percorrendo possibili- dades, algumas vezes antagônicas, observou-se a origem de alguns princípios mais seminais que delineam a parte do corpo conceitual sobre a música no objeto fílmico, o que, genericamente, foi denominado de “pensamento musical no cinema”. Os tópi- cos percorridos revelaram-se como uma combinação eclética apoiada no âmago da tensão semântica entre a denominada “música absoluta” e a “música aplicada”. A segunda parte do trabalho apresentou alguns capítulos do processo que acabaram por transformar Ennio Morricone num dos personagens mais atuantes na história da música de cinema. A trajetória biográfica delineada forneceu evidências importantes de como Morricone foi iniciado e de alguns desdobramentos posteriores

500 na sua carreira. Na apresentação das informações percorreu-se alguns fatos que pontuaram sua história de vida até seu ingresso no cinema, no início da década de 1960, momento determinante que, por fim, acabaram por constituir o âmago de seu pensamento musical aplicado. Na terceira parte, a partir das inserções musicais na micro-estrutura de se- te filmes e da observação de algumas relações audiovisuais criadas no processo nar- rativo da história, foram pontuadas características do pensamento organizacional da trilha sonora como um todo, ou seja, de sua macro-estrutura, a organização temática das músicas utilizadas em cada filme. O trabalho de Ennio Morricone junto a Sergio Leone resiste aos 47 anos do hiato temporal. Iniciando com revisões medíocres da crítica na década de 1960, com o passar dos anos, passaram a ser referências e muito aclamados, com fre- qüência sendo descritos como “operísticos” na forma, estilo e função. O fato de que tantas influências possam ser sintetizadas em suas composições de cinema é real- mente uma das marcas da obra de Ennio Morricone. Amalgamando as influências do rock-and-roll dos anos 1960, da música folclórica, música popular italiana, celta e outras músicas étnicas, canto gregoriano, serialismo, musique concrète, música ele- troacústica, música de cinema hollywoodiana e a música de vanguarda da época de seu ingresso no cinema, criou uma obra extremamente coerente e efetiva. O ecle- tismo e o sincretismo das composições permitiram que elas fossem também percebi- das como música popular, características que somadas às fílmicas contribuíram para o grande sucesso independente obtido na vendagem dos álbuns com a gravação de cada uma das trilhas sonoras musicais dos filmes. A organização temática nos filmes de Leone referenciados no deve- lopmental score, na primeira trilogia e no leitmotivic score, na segunda, revelaram-se como ferramentas analíticas pertinentes à compreensão do pensamento musical da macro-estrutura formal à partir das inserções individuais nos filmes, sua micro- estrutura. As trilhas musicais nos filmes analisados são extremamente econômicas em suas conexões temáticas. Organizadas a partir de unidades melódicas muito pe-

501 quenas, que Miceli (1994) denomina de “micro-células”, permitem o seu reconheci- mento imediato e grande flexibilidade em suas variações e combinações. As melodi- as resultantes são evocativas e memoráveis. Desde a década de 1970, no momento em que o nome de Morricone é creditado nos filmes em que compôs a música, aparece de uma forma padronizada: Música Composta, Orquestrada e Dirigida por Ennio Morricone. Com o tempo, essa frase tornou-se um tipo de slogan autoral, muitas vezes, considerado, no mínimo, provocador em relação à praxe musical do cinema, principalmente, às estabelecidas por Hollywood. Porém, isso significa que quando Morricone compõe para filmes, em- prega as mesmas práticas e tradições sinfônicas utilizadas por um compositor de música de concerto, criando cada trabalho desde sua concepção, como uma idéia musical, até sua completude, um opus completo a ser executado. Isso parece central no seu pensamento composicional. Ele é autor da música como o diretor é autor do filme. Mesmo com o acúmulo de tarefas que isso representa quando comparado com o procedimento padrão hollywoodiano, foi capaz de produzir trilhas musicais numa quantidade exorbitante, não raro, trabalhando anualmente mais de 20 partituras para filmes. Alguns temas são o resultado de especulações sobre intervalos melódicos e suas combinações harmônicas (tema de Frank e Gaita [C’ERA UNA VOLTA IL WEST]; tema do Índio [PER QUALCHE DOLLARO IN PIÙ]; entre outros). Porém, outro princípio im- portante que conforma o pensamento musical de Morricone para o cinema é o da “auto-celebração da sonoridade”. As músicas dos sete filmes analisados foram dife- renciadas pelo seu modo de utilizar e entender os instrumentos musicais. A orques- tra sinfônica, a “jazz band”, os agrupamentos de câmera, os instrumentos autócto- nes, o assovio humano, o coral tradicional, os vocais sem palavras, o solo vocal fe- minino, o órgão de tubos ou elétrico, a gaita de boca, o acordeão, as flautas doces, as ocarinas, os sinos, o violão, a guitarra e o contrabaixo elétricos, os trompetes no estilo mariachi, a flauta de pã, as cornetas militares, os saxofones, as diversas per- cussões, a bateria, entre outros, representam um componente importante de sua “assinatura” musical, muitas vezes também referido como sua “paleta de cores” ou,

502 ainda, seu timbre. Com muita habilidade ele foi capaz de mixar, muitas vezes de mo- do inusitado, sons de instrumentos acústicos (como os do violão, flauta doce sopra- no, corne-inglês, trompete e as cordas da orquestra) com instrumentos elétricos (gui- tarra e o órgão) e, ainda, com sons eletroacústicos, às vezes melhores descritos co- mo pertencentes à música concreta. Mesmo que Morricone enfatize que a sua música de cinema (música apli- cada), antes de ser música de cinema, pode sustentar-se isoladamente em suas próprias bases (música absoluta), ele desenvolveu, no arco temporal de 25 anos das duas trilogias de Leone, uma profunda consciência das especificidades do objeto fílmico. Mesmo que seus temas memoráveis possam ser apreciados isoladamente, grande parte da aplicação micro-estrutural nos filmes estudados, articulam-se perfei- tamente aos demais elementos narrativos.

Dos condicionamentos iniciais de PER UN PUGNO DI DOLLARI ao CANONE IN-

VERSO, o compositor Morricone atingiu resultados que se articularam efetivamente na narrativa dos próprios filmes, cumpriram exigências da direção e do público e, tam- bém, apresentaram um resultado que permite reconhecê-lo nas composições. Vários pontos merecem ser lembrados e, espera-se, possam representar uma contribuição efetiva aos futuros trabalhos sobre a música de Ennio Morricone e do pensamento musical no cinema. Geral:

 O estudo da cinematografia enfatizado pela via musical, música de cinema, remete a uma pletora de textos que, com certeza, muito acrescenta no en- tendimento da música utilizada, mas, principalmente como objeto isolado, ensimesmado, separado do meio audiovisual, o que parece inviabilizar um ti- po de abordagem um pouco mais generalizada e satisfatória na integralidade do objeto fílmico.  A música de cinema tem sua razão de ser, sua essência, no próprio meio que a transmite, portanto, deve ser “lida”, ouvida ou interpretada na vertente do espectador de cinema. A audição da música fora das telas pode oferecer diversas perspectivas mais ou menos atraentes, porém, nunca será a manei- ra de compreender o seu verdadeiro alcance.  A música deve ser valorada como um dos componentes chaves na eficácia das estratégias narrativas dos produtores para captar e manter a atenção do espectador, atuando simultaneamente como indutora e condutora da explo-

503

ração audiovisual que o receptor realiza, tanto de modo ativo como passivo, na tela e nos alto-falantes do cinema durante o transcurso da mensagem au- diovisual.  A diversidade e simultaneidade de funções que a música pode adquirir num filme estão relacionadas a um sistema sinergético: um objeto audiovisual complexo cuja resultante é muito maior do que a soma individual de suas partes (objeto reduzido, na maioria das vezes, às imagens em movimento e a trilha sonora que o compõe), uma resultante extraordinária para a ordem de potencialidades de seus componentes em isolamento.

Ennio Morricone:

 A música de cinema de Ennio Morricone referencia-se na tradição dos gran- des compositores clássicos, compactua com convenções da trilhas musicais de Hollywood, mas, indo além, incorpora elementos de quaisquer outros pe- ríodos e estilos musicais – medieval, popular, étnico ou de vanguarda – de forma a perseguir uma determinada meta cinemática.  Existem muitas características na música de cinema de Ennio Morricone que tornam o seu estilo reconhecível, o que ele mesmo refere como sua própria “caligrafia”. Sem dúvida, em sua vasta obra musical para o cinema encon- tram-se algumas similaridades de procedimentos, mas não uma música for- mulada, previsível e imitativa de si própria. Ao contrário, uma das caracterís- ticas de Morricone é sua constante busca pelo novo e funcional, pela música “absoluta-aplicada”.  Embora reconheça que tanto as convenções do gênero fílmico quanto as do gênero musical constituam fatores importantes na forma de pensar e elabo- rar a música dos filmes, ele não se liga somente a esses fatores. Ele utilizou o termo “compositor camaleão” quando abordou sobre a dificuldade em li- vrar-se de certos rótulos que lhe foram imputados graças ao sucesso e o tipo de diretor com o qual estava vinculado.  O desenvolvimento de seus traços característicos está plenamente delineado nas duas trilogias de Sergio Leone (eminentemente com filmes westerns) que abarcaram 25 anos (1964-1989) de relacionamento, mas, para além do gênero, Morricone desenvolveu na parceria o pensamento musical de todos os outros gêneros cinematográficos que trabalhou: drama, comédia, terror, bélico, denúncia social, thrillers, erótico, policial, gângster, histórico, entre ou- tros. Isso pode ser constato em filmes muito aclamados pela originalidade de sua música: THE MISSION, 1986; THE UNTOUCHABLES, 1987; CASUALTIES OF WAR, 1989; BUGSY, 1991, MALÈNA, 2000, MISSION TO MARS, 2000, entre ou- tros.  Na perspectiva de integração da música, composta por Ennio Morricone, com os sons, os diálogos e as imagens em movimento, todos articulados à narrativa, uma característica se destaca como fundamental: sincronia. Os pontos de sincronização, definidos por Miceli como explícitos ou implícitos (Chion os define como “pontos de verticalidade”) auxiliam a estruturar todo o

504

fluxo rítmico, dramático e emocional do filme conectados ao pensamento musical do compositor. Sua “música aplicada” no contexto fílmico, contexto onde coexistem diversas forças narrativas, simultaneamente guia e são gui- adas por essas forças, criando, como disse Johnny Wingstedt: "um exemplo fascinante de sinergia” (quando o todo é alguma coisa muito maior que a soma das partes".

Com 82 anos de idade, Morricone ainda mantém uma rígida agenda de trabalho como “compositor, orquestrador e regente”, sempre motivado pelo seu raro e admirável trabalho ético. Talvez a contribuição mais significante de Ennio Morrico- ne ao “pensamento musical do cinema” não possa ser encontrada na trilha musical de um único filme, mas, o seu desejo apaixonado de continuar a experimentar e re- novar as possibilidades da “nobre arte” se encontra, certamente, em todos eles. Espera-se ter sido demonstrado que, na confluência da pesquisa teórica e prática sobre a música de cinema de Ennio Morricone, seja estabelecida uma linha mais receptiva e flexível em relação ao conhecimento construído pela Musicologia e pelos estudos contemporâneos sobre o cinema. Só nessa perspectiva, o trabalho contribui, embora modestamente, para que os estudos sobre a música no cinema de Ennio Morricone se tornem um campo de conhecimento mais presente e motivador do entendimento, cada vez mais profundo e fascinante do objeto fílmico audiovisual. É necessário destacar, novamente, o respaldo que o “Grupo de Pesquisa em Música Aplicada à Dramaturgia e ao Audiovisual” da UNICAMP deu à pesquisa. Um grande número de referências utilizadas no trabalho foram constituídas pela constante troca de informações e pelo estudo em grupo de filmes e da literatura so- bre a música no cinema, ao longo dos oito anos de convivência com o Prof. Dr. Claudiney Carrasco e alunos que participaram das atividades.

505

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6.2 - DOCUMENTÁRIO

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