Do Paralamas Do Sucesso1 Jorge Cardoso Filho2
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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXI Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Juiz de Fora, 12 a 15 de junho de 2012 Alteridade como dimensão estética em Selvagem?, do Paralamas do Sucesso1 Jorge Cardoso Filho2 Resumo: O artigo analisa possíveis emergências de experiência estética com o álbum Selvagem?, da banda Paralamas do Sucesso, lançado em 1986 pela EMI- Odeon. Para tanto, o estudo se fundamenta nos conceitos de mediações e materialidades e tem como objetivo recuperar condições de emergência da experiência estética a partir dos modos de escuta que se desenvolveram naquele contexto. Conclui que uma dessas emergências estéticas estava ancorada num resgate da sensibilidade antropofágica presente em movimentos culturais brasileiros como a Semana de Arte Moderna e o Tropicalismo. O artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla, denominada Retóricas da escuta musical – da experiência estética às audibilidades na cultura midiática contemporânea. Palavras-Chave: Experiência estética; Antropofagia; Música Brasileira Popular 1. Introdução Esse artigo segue a sugestão, frequentemente implícita nos debates sobre modos de estudo da experiência estética, de analisar possíveis emergências desse tipo de experiência, articulando seus aspectos convencionais e estruturais aos aspectos singulares, que emergem situacionalmente devido a elementos contingentes, muitas vezes derivados das materialidades midiáticas (BRAGA, 2010). Para tanto, toma como objeto central de discussão a experiência da escuta musical, atravessada pelas diferentes mediações sociais (MARTÍN-BARBERO, 2001) e amparada em materialidades (GUMBRECHT, 2004), ambas determinantes na tonalização de tipos específicos de experiência. Desse modo, cada experiência aparece (SEEL, 2005) segundo condições dadas pelo seu contexto de emergência na interação com os sujeitos, desvelando assim suas singularidades. Nesse sentido, a escuta se constitui fundamentada na relação interativa que se estabelece entre ouvintes (suas competências físicas e simbólicas) e o ambiente 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Experiência Estética do XXI Encontro da Compós, na Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, de 12 a 15 de junho de 2012. 2 Doutor em Comunicação, UFMG. Docente do Centro de Artes, Humanidades e Letras, UFRB e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas, UFBA. [email protected] www.compos.org.br 1 Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXI Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Juiz de Fora, 12 a 15 de junho de 2012 (circunscrição histórico-técnica, traços de socialidade etc.), possibilitando as experiências musicais. Ela difere da audição (como capacidade de ouvir) porque possui uma natureza de ação. Escuto quando dirijo minha atenção à algo que ouvi (devido à capacidade), selecionando aspectos e isolando tons e timbres (SCHAEFFER, 2010; JOURDAIN, 1990; STOCKFELT, 2004). A escuta pode ser exercitada a fim de perceber sons de determinados instrumentos numa orquestra ou banda, o que significa que é possível aprender a escutar certas músicas, mesmo que não se desenvolva uma experiência prazeirosa com o que se está ouvindo. Quando outros aprendem e acionam os mesmos códigos para relacionamento e interação com a música, pode-se perceber uma prática de escuta recorrente, que guarda a potencialidade de tornar-se a prática de escuta hegemônica naquele ambiente, em um dado contexto ou um intervalo temporal mais amplo. Essas práticas de escuta servem, portanto, como indícios do tipo de experiência recorrente naquela condição. Como exemplos extremos, citamos a prática de escuta contemplativa, comum com expressões musicais que impõem um único regime de interação estésico, ou a escuta corporal, cujo cerne expressivo está ancorado numa escuta somática total ou sinestésica. Fruto da preocupação em compreender os padrões de experiência sensível que se apresentam nas relações com diferentes obras da música popular-massiva, o artigo tem um viés analítico e se organiza a partir de três etapas de aproximação com o fenômeno da experiência estética, não necessariamente suplementares, mas inter-relacionados: uma etapa histórica, uma etapa de estudo da interação com o singular e a etapa de dedução das experiências possíveis. Desse modo, o estudo se configura como uma tentativa de mapear a emergência de experiências em seus respectivos contextos e está inserido numa proposição mais ampla, a saber: a identificação de uma retórica da percepção, com ênfase na escuta musical, a partir de diferentes expressões musicais do Rock. Considerando o movimento conhecido como BRock – rock produzido pelas bandas brasileiras na década de 80 – nos interessa investigar desvios e continuidades das práticas de escuta na interação que se estabeleceu entre ouvintes e o álbum Selvagem?, dos Paralamas do Sucesso, lançado pela EMI-Odeon em 1986. Selvagem? vendeu cerca de 650 mil cópias no primeiro ano de excursão e está entre alguns dos álbuns mais importantes da música brasileira www.compos.org.br 2 Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXI Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Juiz de Fora, 12 a 15 de junho de 2012 daquela década, junto com Dois (Legião Urbana), Cabeça Dinossauro (Titãs), Rádio Pirata (RPM) e Nós vamos invadir sua praia (Ultraje a Rigor). O efervescente contexto de exploração de uma sonoridade roqueira brasileira favorece um contraponto ao tipo específico de escuta que se configurou com o trabalho dos Paralamas do Sucesso. A banda lançou seu primeiro disco em 1983, denominado Cinema Mudo, já pela EMI-Odeon. Seguiram-se os álbuns O Passo do Lui (1984), Selvagem? (1986), D (1987), Bora Bora (1988), Big Bang (1989), Os Grãos (1991), Severino (1994), Vamo Batê Lata – Paralamas ao vivo (1995), 9 Luas (1996), Hey Na Na (1998), Acústico MTV (1999) e Longo Caminho (2002), Uns Dias Ao Vivo (2004), Hoje (2005), Rock in Rio 1985 (2007), Brasil Afora (2009) e Multishow Ao Vivo (2011). A banda manteve como cerne, ao longo de cerca de 30 anos de existência, o guitarrista e vocalista Herbert Vianna3, o baterista João Barone e o baixista Bi Ribeiro, embora outros músicos tenham sido incorporados com o passar dos anos. A recepção estética de seus trabalhos foi controversa nos anos 80, devido ao apagamento das marcas genéricas do Rock, é importante, portanto, investigar como esse apagamento possibilitou a emergência de um tipo de experiência. Mediações com BRock e com o Paralamas O governo apresenta suas armas Discurso reticente, novidade inconsistente E a liberdade cai por terra Aos pés de um filme de Godard (Herbert Vianna, Selvagem) Em 1986, o Brasil passava pelo processo de redemocratização política após mais de 20 anos de ditadura militar. O movimento das Diretas Já, em 1985, foi um marco da reivindicação popular pela participação na política nacional que reverberou em versos musicais de muitas bandas do BRock. Ultraje a Rigor, em Inútil, faz uma crítica bem humorada à escolha indireta do presidente Tancredo Neves pelo colégio eleitoral “a gente não sabemos tomar conta da gente/ a gente não sabemos escolher presidente”, Legião Urbana, em Geração Coca-Cola, aponta os caminhos de engajamento daquela juventude “somos os filhos da revolução/ somos burgueses sem religião/ somos o futuro da nação/ 3 Em 2001, um ano antes do lançamento de Longo Caminho, um acidente de ultraleve tirou a vida da esposa de Herbert Vianna, Lucy Vianna, e deixou-o um gravemente ferido. www.compos.org.br 3 Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXI Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Juiz de Fora, 12 a 15 de junho de 2012 geração coca-cola”. Os Paralamas do Sucesso, na canção Selvagem, preferem um discurso mais direto, mostrando as contradições de um governo que pretende redemocratizar, mas ainda pratica a censura. Importantes bandas como Titãs, Blitz, Barão Vermelho, RPM, Engenheiros do Hawaii, Vímana, Kid Abelha e os Abóboras Selvagens, Ira!, Aborto Elétrico, Gang 90 & As Absurdetes entre tantas outras, emergiram nesse contexto e constituíram o BRock (ULHOA, 2003 e 2004; DAPIEVE, 2000). Embora não seja possível caracterizá-lo como um movimento autoconsciente que reivindicasse a produção de Rock autenticamente brasileiro nem um projeto poético definido, havia uma conjuntura bastante favorável para a emergência do BRock como movimento musical na década de 80. Arthur Dapieve (2000), por exemplo, sugere que essa efervescência era fruto do processo de egocentrismo pelo qual passava a MPB, que vinha se autocelebrando em festivais promovidos pelas redes de TV – os chamados festivais MPB-80, MPB-81 etc. Tal como o rock lá fora, a MPB se aburguesara, autocomplacente e autofágica – estéril. Sustentar esse gênero hipertrofiado saia caro para as gravadoras – mas isso elas só iriam perceber quando lhes fosse esfregado na cara. O disco tronco principal da MPB tinha um intérprete caro, que cantava um repertório caro (em direitos autorais) sustentado por músicos e produtores caros, sem falar em eventuais participações especiais ou gravações no exterior (DAPIEVE, 2000, p. 23). Isso significa que as próprias lógicas de produção na sua interseção com as matrizes históricas colocavam os meios de comunicação de massa, sobretudo os programas de TV, como institucionalidades fundamentais da experiência musical. Se a MPB fora importante como trilha sonora do protesto e da luta política, nas décadas 60 e 70, tinha perdido sua força nos anos 80, quando aderiu