Capítulo 4 – trabalho e mudanças sociais 89 O trabalhador e o trabalho 90 O sentido do trabalho 91 Organização do trabalho no século XX 95 Trabalhador: a chave dos sistemas flexíveis de produção? 100 Novo perfil do trabalhador 102 O trabalho é central na vida em sociedade contemporânea? 105 O trabalho em crise 105 Os sindicatos e seus desafios na atualidade 107 O labirinto do mercado de trabalho 110 Desigualdades no mercado de trabalho: questões de gênero e étnico-raciais 112 Diálogos interdisciplinares 115 Revisar e sistematizar 116 Descubra mais 117 Bibliografia 117

Capítulo 5 – a cultura e suas transformações 119 Comunicação e cultura 120 O que é cultura? 122 Cultura e civilização 124 O relativismo cultural 126 Nós e os outros 127 Diversidade cultural na sociedade brasileira 132 As dinâmicas culturais 136 Mudanças culturais na sociedade global 137 Indústria cultural e práticas sociais 140 A cultura que se mundializa 142 Diálogos interdisciplinares 145 Revisar e sistematizar 146 Descubra mais 146 Bibliografia 147

Capítulo 6 – Sociedade e religião 149 A religião como instituição social 150 A religião na visão dos autores clássicos da Sociologia 153 Auguste Comte 153 Émile Durkheim 154 Max Weber 154 Karl Marx 155 A religião em tempos de globalização 156 Fundamentalismo religioso 159 Desfazendo mitos 160 Conflitos religiosos no mundo 161 A religiosidade no Brasil 164 Diálogos interdisciplinares 167 Revisar e sistematizar 168 Descubra mais 168 Bibliografia 169

6 • SUMÁRIO

Sociologia_vu_PNLD15_001a008_Iniciais.indd 6 5/27/13 5:14 PM Salmo Dansa /Arquivo da editora Salmo

Capítulo 4 Trabalho e mudanças sociais

EstudarEmos nEstE capítulo: que o significado e as características do trabalho variam conforme o tempo e as diferentes organizações sociais. Na so- ciedade ocidental, por exemplo, a moderna racionalização teve como consequência o aumento da produtividade, do controle e da subordinação do trabalhador ao processo produtivo. Com as inovações tecnológicas propiciadas pela mi- croeletrônica, a robótica e a informática, as empresas reestruturam sua produção, introduzindo novas formas de gestão da mão de obra. Disso resultaram a redução, em diversos setores, do contingente de trabalhadores empregados e a ampliação dos lucros, às quais se somaram outras formas de flexibilização resultantes das políticas neoliberais. Essas mudanças implicam alterações no perfil dos trabalhadores e novos desafios às organizações sindicais.

89

Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 89 5/27/13 5:22 PM O trabalhador e o trabalho

Eu às vezes fico a pensar Em outra vida ou lugar Estou cansado demais

a r o t i Eu não tenho tempo de ter d e

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o O tempo livre de ser v

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/ De nada ter que fazer

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É quando eu me encontro perdido

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l i F Nas coisas que eu criei [...] Eu acordo pra trabalhar Eu durmo pra trabalhar Eu corro pra trabalhar

VALLE, Marcos; VALLE, Paulo Sérgio. Capitão de indústria. In: . . EMI, 1996. 1 CD.

A letra dessa música nos alerta para o fato de o trabalho poder criar um conflito entre o ser, o ter e o fazer. Muitas dessas questões decorrem de pro- blemas históricos da formação do país e do sistema capitalista. Outras medi- das, mais recentes, como o estabelecimento de metas diárias e prêmios por produtividade, aperfeiçoam os métodos de controle sobre o trabalhador que, intensif icando sua atividade, aumenta a produtividade das empresas; ou seja, em menor tempo e com menos recursos, cresce a produção. Por estar intensamente integrado ao trabalho, o trabalhador tende a dei- xar de lado aspectos importantes de sua vida, como sugere a música: “Eu não tenho tempo de ter / O tempo livre de ser”. Essa sobrecarga de trabalho não leva em conta as necessidades do indivíduo e de sua família. Considere-se, por exemplo, as empregadas e os empregados domésticos que pernoitam em seus locais de trabalho, distanciando-se de seus familia- res; ou, ainda, os caminhoneiros que f icam mais de 24 horas sem dormir para cumprir os prazos das entregas e garantir a rentabilidade das empresas que os contratam, pondo em risco suas próprias vidas e as de outros. Hoje em dia, principalmente nas metrópoles, além de cumprirem a jor- nada normal de trabalho, muitos trabalhadores carregam o notebook (ou uti- lizam o computador pessoal) para terminar tarefas em casa. Os contatos por e-mail ou telefone celular também os mantêm conectados à empresa. O re- frão da música revela essa imposição da rotina de trabalho que interfere nas outras atividades: “Eu acordo pra trabalhar / Eu durmo pra trabalhar / Eu corro pra trabalhar”. A letra da música remete também às incertezas que rondam o trabalha- dor, seu trabalho e sua vida: “É quando eu me encontro perdido / Nas coisas que eu criei”. As condições de trabalho reduzem o espaço da criati- vidade, do livre pensar, do aperfeiçoamento, e parecem impedir o traba- lhador de viver plenamente. Elas podem levar a um trabalho alienado, aquele em que o trabalhador não se reconhece no produto do seu traba- lho nem consegue apreender o processo de produção como um todo. Ele não se vê como semelhante a outros trabalhadores e não se identif ica com eles. A teoria da alienação, desenvolvida originalmente por Karl Marx, nos

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Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 90 5/27/13 5:22 PM mostra que o trabalhador não se apropria de toda a riqueza que gera no processo produtivo. William Andrew/Photographer’s Choice/Getty Images Choice/Getty Andrew/Photographer’s William

Na imagem ao lado vemos um pai estadunidense dividindo-se entre os cuidados com o filho e as atividades de trabalho. Essa imagem exemplifica como os computadores ampliaram as possibilidades de trabalho para além do espaço da empresa. Foto de 2010.

O geógrafo britânico David Harvey (1935-) alerta que, nas condições de produção capitalista, a socialização do trabalhador envolve o controle social amplo das suas capacidades físicas e mentais. Ou seja, o controle do traba- lho, utilizado para f ins de acumulação, envolve elementos organizados não somente no local de trabalho como fora dele, estimulando a familiarização do trabalhador com os objetivos da empresa e convencendo-o a participar e a cooperar com o processo produtivo, estratégias típicas das novas formas de gestão do trabalho.

O sentido do trabalho hh suplício: tortura, punição corporal. A origem latina da palavra trabalho está rela- cionada ao tripalium, instrumento de suplício composto por três estacas. Isso porque, ao longo da História, o trabalho tem sido relacionado a esforço físico e cansaço e, em muitas sociedades, Marcus Pedrosa/Acervo do artista Marcus Pedrosa/Acervo ele constituiu uma obrigação à qual os seres hu- manos deveriam se submeter. Atualmente, o tra- balho é necessário para que se obtenha, em tro- ca, uma remuneração que permita ter uma vida digna. Mas trabalho é só isso?

Inicialmente, o tripalium era um instrumento utilizado na agricultura, sendo apenas posteriormente empregado com fins de tortura. Na foto de 2012, uma réplica.

Trabalho e mudanças sociais • 91

Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 91 5/27/13 5:22 PM O signif icado atribuído ao ato de trabalhar tem variado ao longo do tempo. Nas antigas Grécia e Roma, por exemplo, a base da mão de obra era escrava, constituída geralmente por prisioneiros de guerra ou escravizados por dívida. O trabalho manual era considerado indigno pelas elites, que usavam os escravos para a produção, dedicando seu tempo às atividades in- telectuais, políticas e artísticas. Naquelas duas sociedades também não exis- tia remuneração para o trabalho intelectual, político e artístico. Os proprie- tários de terras e escravos, que acumulavam riqueza, tornavam-se mecenas dos intelectuais, f ilósofos e artistas, ou seja, sustentavam-nos com seus bens para que continuassem produzindo pensamento, obras de arte, peças de teatro, etc. O trabalho político, por sua vez, era realizado pelos mecenas e pelos intelectuais, f ilósofos e artistas. Também é importante ressaltar que as mulheres, salvo exceções, eram excluídas tanto do trabalho político quanto da f ilosof ia, da arte e da intelectualidade. Na Idade Média, a sociedade europeia era hierarquizada e os trabalhado- res, chamados servos, estavam na posição mais baixa da estrutura social. Isso signif ica que sua função era trabalhar para que as camadas sociais mais altas, a nobreza e o clero, pudessem se dedicar a outras atividades, como as bata- lhas e os compromissos ligados à religião. Naquela época, nas sociedades feudais europeias, o que depois Marx chamou de meios de produção (ou seja,

Filipe Rocha/Arquivo da editora Filipe Rocha/Arquivo as ferramentas e recursos necessários para produzir qualquer coisa, desde alimentos até objetos, máquinas, etc.) já se encontravam concentrados nas mãos de alguns poucos homens, que transmitiam esses bens por meio de herança aos f ilhos homens e/ou dotes de casamento aos que desposassem suas f ilhas. A maioria da população trabalhava para esses proprietários, numa relação de dominação de classe da qual somos ainda herdeiros. O momento histórico de transição do regime feudal para o modo de produção capitalista, incluindo os contextos revolucionários estudados no capítulo 2, marcou uma fase de profundas transformações institucionais que resultaram no chamado capitalismo industrial. Durante a constituição do capitalismo industrial, no século XVIII, f ir- mou-se o trabalho assalariado, reservado aos indivíduos que não dispunham de posses (leia-se: de meios de produção). Por isso, eles precisavam vender ou alugar sua força de trabalho – energia despendida para realizar ativida- des – em troca de uma remuneração que garantisse seu sustento. No entan- to, o pagamento que o trabalhador recebe não corresponde ao valor daqui- lo que ele produziu. Essa diferença, que é apropriada pelo detentor dos meios de produção, é denominada mais-valia por Marx. Aos poucos, essa transformação envolveu toda a estrutura da sociedade que, sendo capitalista, mercantiliza, ou seja, transforma em mercadoria mui- tas de suas relações sociais, incluindo as de trabalho. O capitalismo, como um sistema de organização da produção material baseado na propriedade privada, conjuga capital e trabalho. O capital é o conjunto dos bens e meios de produção (como as máquinas, as ferramentas, os equipamentos, a terra, as instalações, o dinheiro, etc.) que são valorizados e multiplicados graças ao trabalho, físico e/ou mental, realizado por aqueles que, desprovidos dessas coisas, apenas dispõem de sua força como moeda de troca. Por isso, dizemos que o trabalho incorpora valor aos bens, ou seja, por meio do trabalho o ser humano transforma a natureza e a si próprio.

92 • capítulo 4

Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 92 5/27/13 5:22 PM Album/akg-images/Latinstock

Ao lado, xilogravura de Heinrich Leutemann, do século XIX, que mostra a alimentação de escravos romanos. Na Antiguidade, o trabalho manual era considerado indigno para as classes dominantes.

A noção de que o trabalho é uma atividade dignif icante foi construída historicamente. Na clássica obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, Max Weber mostra de que forma tais ideias impulsionaram o capitalismo em países protestantes. Antes da Reforma protestante, o catolicismo não valorizava o trabalho da forma como ele é valorizado hoje. Independentemente de traba- lhar ou não trabalhar (sustentar-se com o trabalho dos outros, como faziam os monarcas absolutistas e a nobreza, por exemplo), as pessoas ganhariam o Pa- raíso, após sua morte, dependendo da relação que tivessem com a prática re- ligiosa institucionalizada. Com a Reforma protestante, surgiu a ideia de que o acúmulo de riqueza ao longo da vida garantiria um lugar no céu. Essa mudan- ça de valores foi acompanhada da luta dos grupos burgueses para se f irmarem na sociedade. O acúmulo de riquezas e a ascensão social por meio do trabalho são frutos da mesma disputa. Essa ideologia do trabalho contribuiu e contri- bui ainda para que os detentores do capital mantenham privilégios.

a sociedade moderna ficou conhecida como a sociedade do trabalho, ou seja, que se institui e se organiza pelo e para o trabalho.

Por esse motivo, muitos sociólogos discutem hoje se a verdadeira emanci- pação dos indivíduos não estaria mais ligada ao ócio, ao lazer e ao tempo livre do que a um domínio maior do próprio trabalho (“desalienação”) e à reali- zação social pelo trabalho. O francês Paul Lafargue (1842-1911), que, curio- samente, era genro de Marx, publicou no f inal do século XIX um livro, O direito à preguiça, criticando justamente o que chamava de “culto ao trabalho” por parte dos trabalhadores e de alguns f ilósofos socialistas, como seu sogro. Cerca de um século mais tarde, o antropólogo político francês Pierre Clas- tres (1934-1977) publicou a famosa obra A Sociedade contra o Estado. Analisan- do sociedades consideradas “primitivas”, ele recusa a ideia de que o caminho tomado pelas sociedades europeias, no que diz respeito à concentração de bens, propriedades privadas e poder econômico e político, seja “natural” e se aplique à humanidade como um todo. Clastres ressalta que, em diversas socie- dades estudadas por etnógrafos na Antropologia, o entendimento do “traba- lho” e da “produção” são tais que não existe nem o trabalho individual nem o

Trabalho e mudanças sociais • 93

Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 93 5/27/13 5:22 PM Organização do trabalho no século XX

As crises econômicas, que de tempos em tempos assolam a sociedade capitalista, promovem alterações nas formas de produzir e de controlar o trabalho. Em parte do século XX, predominou em nossa sociedade, ainda que não de modo uniforme, um sistema específ ico de produção denomina- do fordismo. O fordismo consiste em um sistema de produção em massa cuja palavra- -chave é padronização (tanto das tarefas quanto do produto). Esse sistema que articula inovações técnicas e organizacionais visando à otimização da hh otimização: forma de obter melhores produção e ao consumo em massa foi empregado por Henry Ford (1863- condições para algo. No contexto de -1947) em sua fábrica de automóveis, sediada em Detroit (Estados Unidos), produção, significa produzir mais em nas primeiras décadas do século XX. Por meio da criação de linhas de mon- menos tempo ou com menos recursos. tagem, nas quais os operários f icavam parados enquanto as peças se movi- mentavam em esteiras rolantes, cada trabalhador executava apenas uma eta- pa do processo de trabalho. O taylorismo, sistema ao qual o fordismo é constantemente associado, foi desenvolvido pelo engenheiro norte-americano Frederick Winslow Taylor (1865-1915), no início do século XX, também com vistas a otimizar a produ- ção. Os trabalhadores são treinados para a alta produtividade mediante o uso ef iciente do tempo, a divisão de atividades, a separação entre concepção e execução das tarefas, a economia de movimentos exercidos em cada função. Essa racionalização científ ica do tempo e dos movimentos leva à especializa- ção e à intensif icação do ritmo de trabalho. O consagrado f ilme de Charles Chaplin, Tempos modernos, retrata de ma- neira instigante o trabalho de tipo fordista-taylorista, ao mesmo tempo que demonstra suas consequências para os indivíduos. United Artists/The Kobal Collection/The Picture Desk/Agência France-Presse Kobal Artists/The United

O filme Tempos modernos (1936), de Charles Chaplin, expressa uma crítica à produção fordista, que torna o trabalho repetitivo, monótono e alienante.

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Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 95 5/27/13 5:22 PM Nos anos 1960 e 1970, ocorreram importantes mudanças no âmbito do trabalho. Para adaptarem-se às oscilações do mercado, as empresas implan- taram um conjunto de inovações tecnológicas (derivadas da informática e da robótica) e organizacionais que alteraram a maneira de gerir o trabalho. A introdução de máquinas, equipamentos, programas, processos e novas formas de administrar os empregados levou à diminuição geral dos custos, a um maior controle sobre os trabalhadores e à redução de mão de obra utili- zada – correspondendo ao que se convencionou chamar produção enxuta. Nesse modelo de produção, de origem japonesa, também denominado toyotismo, o processo de trabalho é fl exibilizado: a mão de obra é multifun- cional, ou seja, deve se adequar a diferentes funções; há controle visual da produção, com a supervisão de todas as etapas, buscando a qualidade do produto f inal; e a produção é estabelecida segundo a demanda e a necessi- dade de produtos personalizados. Inaugura-se um tempo de grande fl exibi- lidade não apenas na produção, mas também nas relações sociais e do traba- lho, nas bases econômicas e geográf icas. Essa reorganização da produção, baseada na inovação de equipamentos, na fl exibilidade de tempo e de mão de obra, na redução do custo e no con- trole da qualidade, é denominada reestruturação produtiva. Desenvolvida nos países centrais nas décadas de 1970 e 1980, ela chegou ao Brasil com intensidade nos anos 1990, período marcado por ajustes políticos e sociais nas relações de trabalho. É importante conhecer as alterações que aconte- cem nas relações de trabalho, uma vez que essas se compõem de um conjun- to de leis e normas sociais que regulam a compra e a venda da força de tra- balho e também os confl itos que delas resultam. A maneira de produzir transitou da rigidez das formas de organização taylorista-fordistas, nas quais cada homem detinha um posto de trabalho e uma máquina, para a fl exibilização na produção, no trabalho e nos mercados. Isso não signif ica que a pro- dução fordista tenha desaparecido. Essas formas de produção coexistem e, muitas vezes, em uma mesma empresa, combinam-se elementos do fordismo, do taylorismo e de sistemas fl exíveis de produção. Presente na indústria e nos serviços, a pro- dução fl exível acontece por encomenda, uti- liza técnicas que produzem mais em menos tempo e com menor número de traba- lhadores, diferenciando-se da produ- ção fordista, que é baseada na pro- du ção em massa e com altos níveis de estoque. Algumas dessas mu- danças podem ser vistas no quadro a seguir, em que são comparadas as principais ca- racterísticas dos dois sistemas de produção, em países de ca-

Salmo Dansa/Arquivo da editora pitalismo avançado.

96 • capítulo 4

Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 96 5/27/13 5:22 PM O sistema de produção taylorista-fordista e o sistema de produção flexível

Aspectos Sistema taylorista-fordista de produção Sistema de produção flexível considerados Predominante no período de 1930 a 1970 Predominante a partir da década de 1970

Mercado – Objetiva o consumo de massa – Objetiva atingir nichos específicos de mercado

Produção – Produção em massa – Produção especializada – Rigidez e controle das etapas – Produção flexível em relação à organização e ao – Integração vertical, ou seja, todas as partes do trabalho produto são fabricadas na mesma empresa – Terceirização: transferência de parte da produção – Utilização de mão de obra intensiva para outras empresas, constituindo redes integradas de empresas – Redução dos postos de trabalho

Organização do – Tarefas mecânicas, fixas e bem definidas – Flexibilidade e multifuncionalidade trabalho – Hierarquização de cargos e salários – Redução das hierarquias internas – Fixação do trabalhador no posto de trabalho, – Trabalho em equipe; rodízio de tarefas, funções exercendo uma única função genéricas – Disciplinarização e controle do trabalhador – Intensificação do controle sobre o trabalhador – Contrato de trabalho formal por tempo por meio de equipamentos e autocontrole indeterminado – Diversificação das formas de contrato de trabalho (autônomo, por produção, por tempo determinado, etc.)

Inovações – Administração científica e centralizada – Administração científica técnicas e da produção – Organização da produção com tecnologia de organizacionais – Linhas de montagem e esteiras rolantes no base microeletrônica e células de produção processo produtivo associadas à linha de montagem – Produção em série – Produção por demanda – Separação entre a concepção e a execução do – Automação e robotização; integração entre trabalho empresas – Relativa integração entre concepção e execução do trabalho; responsabiliza o trabalhador pelos equipamentos e pela qualidade do produto; programas de participação do trabalhador (círculos de qualidade, sugestões, etc.)

Fábricas – Grandes estruturas de produção exigem elevados – Fábricas espalhadas pelos mercados mundiais investimentos – Reorganização do espaço físico das empresas – Concentração da produção em um único espaço – Descentralização da produção, apenas com – Concentração da produção e das decisões decisões centralizadas na matriz

Perspectiva do – Emprego estável, protegido – Crescimento da subcontratação e da consultoria trabalhador – Distribuição dos ganhos de produtividade por – Redução do número de trabalhadores protegidos, meio dos salários o que causa a precarização do trabalho – Grandes contingentes de trabalhadores – Novas formas de organização industrial e retorno – Rígido controle de tarefas de formas antigas, como trabalho em domicílio, – Remuneração salarial regular por tempo parcial, entre outras – Intensificação do ritmo de trabalho – Novas ferramentas de controle do trabalho – Introdução de formas de remuneração variáveis, como prêmios por produtividade e participação nos resultados

Adaptado de: HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1993; CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

Trabalho e mudanças sociais • 97

Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 97 5/27/13 5:22 PM Embora a forma como é organizada a produção não dependa do Estado, este exerce um papel no desenvolvimento da economia. Assim, no sistema taylorista-fordista de produção há maior intervenção do Estado na econo- mia: ele regulamenta as negociações entre capital e trabalho, oferece forma- ção técnica ao trabalhador e regula as atividades capitalistas e de interesse nacional. Quando a produção se tornou mais flexível, o Estado tendeu a reformular seu papel, buscando atrair investimentos externos e legislar pela desregulamentação e/ou flexibilização das relações de trabalho. hh logística: área que se ocupa do plane- Os sistemas flexíveis reduzem os estoques ao aprimorarem a logística jamento e da organização dos proces- interna e externa das empresas, por meio da organização de transportes e sos envolvidos em uma dada operação. de abastecimento. Com essa reestruturação da produção, o capital se prepa- ra para enfrentar crises, concorrência, oscilações econômicas e impasses téc- nicos, além de poder regular o uso da força de trabalho em face de tantas mudanças. Essa flexibilização pode ser compreendida como:

[...] a possibilidade de alteração da norma como forma de ajustar as condições contratuais, por exemplo, a uma nova realidade, a partir da introdução de inovações tecnológicas ou de processos, que podem ser negociados legitimamente entre os hh discricionário: isento de restrições, atores sociais ou impostos pelo poder discricionário da empresa, ou ainda através independente de regras. da atuação do Estado. Assim, em princípio, a flexibilidade pode significar a depres- são dos direitos com a finalidade de redução dos custos. Por outro lado, ela pode ser uma forma de adaptar as equipes e os processos produtivos às inovações tecnoló- gicas ou à mudança de estratégia da empresa, investindo e capacitando os recursos humanos ou até melhorando as condições de trabalho.

KREIN, José Dari. O aprofundamento da flexibilização das relações de trabalho no Brasil nos anos 90. Campinas: Ed. da Unicamp, 2001, mimeo. (Dissertação de Mestrado). p. 28.

Ser flexível signif ica realizar diferentes tarefas e fabricar diversas merca- dorias na mesma linha de produção, como quando variados modelos de carros são produzidos simultaneamente. Aliás, a indústria automobilística e o setor bancário são exemplos de ra- mos em que foram implantados siste- mas flexíveis de produção. Na indústria de veículos, a introdução de equipa-

Carlos Barria/Reuters/Latinstock mentos de microeletrônica e robótica trouxe para os trabalhadores maior responsabilização pelo processo de tra- balho e pelos resultados da produção. A informatização do trabalho agilizou as atividades bancárias, fazendo com que um mesmo funcionário concen- trasse mais tarefas. A revolução microeletrônica possi- bilitou a informatização do controle da produção, a agilização das compras e Funcionários trabalham em linha de montagem de fábrica de automóveis em do fluxo f inanceiro, além da gestão Chongqing, na China, em 2012. Atualmente, em muitas fábricas do setor planejada de todos os recursos, incluin- automotivo, parte dos trabalhadores é substituída por máquinas e robôs. do o chamado “recurso humano”.

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Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 98 5/27/13 5:23 PM O uso desses sistemas tecnológicos integrados permite controlar a pro- dução com acelerada comunicação e transferência de dados em tempo real.

a chamada terceira Revolução tecnológica, ocorrida nos anos 1970, automatizou o trabalho e introduziu a informática e a robótica, desenvolvendo a capacidade de acumular, armazenar, processar e distribuir informações.

Outro recurso bastante comum nos dias de hoje, a comunicação on-line permite que o capital seja investido e transferido de diversas partes do mun- do em tempo real, o que o torna mais volátil. Tal cenário, denominado f inanceirização do capital, indica que o capital f inanceiro exerce um papel supervalorizado na sociedade contemporânea: ele movimenta os negócios e gera riquezas, sem necessariamente aumentar a produção de bens. As políticas governamentais dos países em desenvolvimento, influencia- das pela ideologia política neoliberal, procuraram atrair recursos vindos dos países mais ricos (via bolsa de valores) para o seu Brendan McDermid/Reuters/Latinstock desenvolvimento nas últimas décadas do século XX. Esses investimentos externos nem sempre foram aplicados na produção de bens e de servi- ços locais, desvinculando-se da necessidade de criar empregos, distribuir renda e ampliar o mercado consumidor. Com isso, ocorreu maior concentração de riqueza, com uma minoria da população consumindo parte signif icativa da produção e a maioria tendo acesso restrito aos bens produzidos.

Corretores trabalham na Bolsa de Valores de Nova York, nos Estados Unidos, em fevereiro de 2013.

Neoliberalismo

O neoliberalismo é um movimento político e teóri- das corporações transnacionais, analisa o sociólogo co que concebe a sociedade assentada na liberdade brasileiro Giovanni Alves. Nesses termos, cabe ao Esta- dos indivíduos e de funcionamento do mercado. Inspi- do manter o equilíbrio entre os preços das mercado- rado no liberalismo clássico, que defende um capitalis- rias e dos salários e atentar para temas como a redu- mo livre de regras, o neoliberalismo rejeita a interven- ção dos gastos públicos. ção do Estado na economia e valoriza a superioridade No Brasil, as ideias neoliberais passaram a ter in- do mercado na vida social, incentivando a concorrên- fluência nas políticas governamentais na década de cia e a liberdade de iniciativa como mecanismos capa- 1990, inaugurando um novo padrão de desenvolvi- zes de assegurar a soberania do consumidor, o cresci- mento capitalista identificado principalmente com mento da riqueza e o desenvolvimento humano. um conjunto de medidas econômicas, como a redu- Considerado como ideologia política da classe ção da atividade econômica do Estado (por meio da que detém o capital na globalização, o neoliberalismo privatização de empresas estatais), a abertura comer- não implica “negar” o papel central do Estado na eco- cial, a reestruturação das políticas sociais e a desregu- nomia capitalista, mas reconstituí-lo segundo a lógica lamentação financeira e do mercado de trabalho.

Trabalho e mudanças sociais • 99

Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 99 5/27/13 5:23 PM hh especulativo: que se aproveita da Com relação ao capitalismo f inanceiro com forte caráter especulativo oscilação do mercado financeiro para que tem prevalecido, vale lembrar que, no f inal dos anos 2000, a economia obter lucro rápido. mundial sofreu um forte abalo provocado pela crise f inanceira e imobiliária ocorrida nos Estados Unidos. As consequências nos anos seguintes atingi- ram os países da União Europeia e os chamados emergentes, desdobrando- -se numa grave crise político-econômica com reflexos em diferentes setores, levando milhões de trabalhadores de todos os níveis de escolaridade e qua- lif icação ao desemprego.

Orlando Pedroso/Arquivo da editora

a partir dos anos 1980, a política econômica neoliberal avançou em muitas partes do mundo visando garantir amplas liberdades ao mercado, o que, em contrapartida, afetou a regulação do trabalho.

Trabalhador: a chave dos sistemas flexíveis de produção?

A tendência de flexibilizar a produção, o trabalho e os produtos perpas- sa todas as esferas da sociedade e a própria vida dos indivíduos, do mercado de trabalho aos padrões de consumo, analisa André Gorz. Com o intuito de atingir outros mercados, surgem novos setores de produção e as empresas intensif icam os investimentos em inovações comerciais, tecnológicas, mer- cadológicas e organizacionais, aspectos fundamentais do fenômeno que Da- vid Harvey denomina acumulação flexível. As condições de trabalho tornam-se precárias devido à redução do número de trabalhadores contratados e a sua incorporação como terceiriza- dos à cadeia produtiva – nome dado ao conjunto de unidades que atuam de forma integrada na produção, distribuição e comercialização das mercado- rias. Os trabalhadores flexíveis têm menor remuneração e os empresários se desobrigam de alguns encargos sociais, contratando-os sem proteção nem garantias de estabilidade no cargo ou assistência social. Os estagiários exem- plif icam esses trabalhadores que podem ser dispensados mais facilmente pelas empresas, que os contratam, muitas vezes, em substituição a trabalha- dores efetivos com melhores condições salariais.

100 • capítulo 4

Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 100 5/27/13 5:23 PM Terceirização

Terceirização é o recurso mediante o qual uma de telecomunicações transfere para outras empresas empresa (em geral, de grande porte) transfere a res- as tarefas de instalação de terminais telefônicos. ponsabilidade de serviços ou de atividades produti- Reflexo da pressão, cada vez maior no capitalismo vas para uma empresa “terceira”. Essas atividades po- contemporâneo, pela redução de gastos e aumento dem ser feitas no interior da empresa contratante ou de lucros, a terceirização contribui para a precarização fora dela. das condições de trabalho e de salários. Em alguns ca- Em geral, as terceirizadas assumem funções auxi- sos, as terceirizadas oferecem salários abaixo da média liares nas empresas contratantes, como limpeza, segu- a seus funcionários, a fim de se mostrarem competiti- rança, cozinha, transporte, ou fornecem componentes vas e serem contratadas. Em outros, para dar contor- prontos (por exemplo, fornecendo peças para uma nos de legalidade ao trabalho de indivíduos sem regis- indústria automotiva). Porém, muitas vezes há a ter- tro, as contratantes exigem que o trabalhador abra ceirização da atividade-fim, ou seja, a atividade funda- uma empresa, a qual teria seus serviços contratados. mental da empresa contratante. É o que acontece, co- Nesses casos, além de ficar desprovido dos direitos mo exemplifica o sociólogo brasileiro Sandro Ruduit trabalhistas, o trabalhador precisa arcar com as despe- Garcia, quando uma empresa prestadora de serviços sas de manutenção de uma empresa.

A legislação trabalhista brasileira assegura uma série de direitos: carteira de trabalho assinada, exames médicos de admissão e demissão, repouso se- manal remunerado, salário pago até o quinto dia útil do mês, licença-mater- nidade, aviso prévio de trinta dias (em caso de demissão), seguro-desempre- go e outros. Porém, devido à pressão das empresas, nas últimas décadas do século XX, os governos do Brasil e de outros países criaram medidas para adequar o trabalho à produção flexível, alterando, para isso, os direitos do trabalhador. Sob influência do neoliberalismo, de crises econômicas e do índice de desemprego, os setores empresariais passaram a acusar o Estado de “excesso de proteção ao trabalhador”, tomando isso como obstáculo para novos negócios. As políticas de trabalho neoliberais adotadas traduziram-se numa série de leis e medidas favoráveis à flexibilização dos contratos de trabalho, dando maior liberdade às empresas para determinar as condições de contratação, de remuneração, de utilização e mesmo de demissão da mão de obra do trabalha- dor. Esse processo atingiu os trabalhado- res brasileiros de maneira contundente,

principalmente nos anos 1990. Moreira/Folhapress Leticia Como consequência da flexibilização das relações de trabalho, diminuiu a prote- ção social do trabalhador e aumentaram a instabilidade e a insegurança no mercado de trabalho, com alterações na previdên- cia social, no auxílio-saúde e em outros be- nefícios. Alguns direitos trabalhistas previs- tos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – como 13º- salário, descanso sema- nal remunerado, férias, salário-família e A carteira de trabalho é o documento em que fica registrado o contrato formal de outros – se mantêm regulados pelo Estado. trabalho no Brasil. Foto de 2010.

Trabalho e mudanças sociais • 101

Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 101 04/06/2013 09:52 A Justiça do Trabalho continua a regular e a f iscalizar as relações de traba- lho, embora certos direitos consagrados já sejam negociados entre empre- gado e empregador, como é o caso da jornada de trabalho, da hora extra e dos salários. Exemplos de fl exibilização são a modalidade de contratação por prazo determinado e a adoção do sistema de compensação de horas extras por meio de uma lei de 1998, que permite que as horas trabalhadas fora do expediente sejam computadas em um banco de horas, para poste- rior compensação.

Horas extras e banco de horas

Pela CLT, as horas trabalhadas além de oito horas do valor normal da hora-trabalho de segunda-feira a diárias são caracterizadas como horas extras. Nessa sábado e, aos domingos ou feriados, o acréscimo pas- condição, está previsto o pagamento de 50% a mais sa a 100%. Para evitar esse pagamento adicional, as empresas computam essas horas a mais para serem compensadas na forma de folgas, nos momentos de queda da produção. É um modo de estender a jornada de trabalho quando cresce a demanda e de diminuí-la em épocas Bruno Galvão/Acervo do artista Bruno Galvão/Acervo de pouco movimento, expondo os trabalha- dores às chamadas forças do mercado.

Direitos trabalhistas que eram garantidos aos trabalhadores há muito tempo hoje não são mais tão certos, como podemos observar na charge de Bruno Galvão, de 2008.

Novo perfil do trabalhador

Na atualidade, além de realizar as tarefas que lhe cabem diretamente, muitos trabalhadores se ocupam com a manutenção dos equipamentos que usam para trabalhar, observam as metas estabelecidas pela empresa, assumindo o compromisso de concretizá-las, cooperam com os colegas da equipe e também são corresponsáveis pela qualidade f inal do produ- to, cujo controle se inicia já na concepção do processo de produção. Pa- ra atender a esses requisitos, valoriza-se um novo perf il de trabalhador, escolarizado e com conhecimento tecnológico. São-lhe cobradas habili- dades como trabalhar bem em equipe, adaptar-se facilmente às mudan- ças, ser criativo, mostrar empenho e iniciativa para resolver imprevistos, além de acompanhar as mudanças na produção de bens e na prestação de serviços. Nesse contexto, as exigências das empresas quanto à formação dos prof is- sionais aumentaram e a preferência recai, em sua maioria, sobre prof issio- nais com conhecimentos de informática e domínio de língua estrangeira.

102 • capítulo 4

Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 102 5/27/13 5:23 PM Para alguns trabalhos é exigida formação superior. A busca de qualif ica- ção e de formação permanentes é até incentivada pelas empresas que, estra- tegicamente, selecionam os trabalhadores com mais credenciais, ainda que o cargo ou função não necessite disso. Algumas formas de as empresas pes- quisarem sobre jovens talentos para prof issões de nível universitário é a sele- ção deles na condição de estagiários e a contratação de trainees, prof issionais formados que passam por “aprendizado em serviço”, concorrendo com os efetivos em busca de vagas. Euler Junior/EM/D.A Press Euler Junior/EM/D.A

Na imagem, jovens de Belo Horizonte, Minas Gerais, em aula de informática, em 2011. Nos dias de hoje, os trabalhadores precisam se capacitar constantemente para conseguir (e manter) um posto razoável no mercado de trabalho formal.

Com o objetivo de aumentar a produção, as empresas adotam progra- mas, como sistemas de controle de qualidade, sistemas de melhoria contí- nua e treinamentos comportamentais, que favorecem o trabalho em equipe e o atingimento de metas corporativas. Durante esses programas e treina- mentos os trabalhadores dão sugestões, testam suas habilidades e realizam projetos. Essas modernas técnicas de gestão do trabalho convocam o traba- lhador a aderir às estratégias mercadológicas da empresa e a assumir suas tarefas como uma missão. Na prática, isso faz com que os trabalhadores precisem desempenhar várias tarefas: o bancário, por exemplo, que antes era operador de caixa, agora também vende seguros, títulos e produtos f inanceiros, sendo exigidos dele, para tanto, habilidades de venda, capacidade de gerenciamento, com- preensão do mercado f inanceiro e aptidão para oferecer atendimento per- sonalizado, além do cumprimento de metas. Bruno Galvão/Acervo do artista Bruno Galvão/Acervo

Charge de Bruno Galvão retratando a multifuncionalidade exigida dos trabalhadores nos dias atuais. Charge de 2010.

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Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 103 04/06/2013 09:53 Sob influência das estratégias flexíveis de trabalho praticadas pelas em- presas, o funcionário precisa desenvolver novas competências, qualif icar-se constantemente, estar física e emocionalmente saudável e engajar-se nos ob- jetivos da organização. Reforça-se, assim, a chamada individualização no tra- balho, processo que transfere para o trabalhador a responsabilidade de manter-se empregado. A nova geração de trabalhadores multifuncionais trabalha mais horas e em um ritmo mais intenso. O controle do tempo de trabalho, agora, está incorporado aos equipamentos e às máquinas, nas empresas e fora delas. Os trabalhadores podem ser chamados a qualquer momento para tarefas de emergência, disponibilizando seu tempo livre para o trabalho. Essa nova modalidade emergiu com o advento dos computadores e da internet e a popularização das linhas telefônicas móveis: é o teletrabalho. A precarização do trabalho signif ica, entre outras coisas, instabilidade em suas condições gerais e mudanças na atividade laboral, como ritmos in- tensif icados, aumentos exagerados da jornada diária, situações física e psico- logicamente extenuantes para o trabalhador. Também caracterizam o traba- lho precário a introdução de novas regras salariais, como a remuneração variável, que combina um salário f ixo e um ganho extra variável, de acordo com a produtividade do funcionário. Há ainda as alterações contratuais que, ao facilitarem os trâmites e a burocracia para a demissão de emprega- dos, como é o caso dos chamados temporários, aumentam a sensação de insegurança no trabalhador.

Teletrabalho: mais trabalho?

No contexto da Revolução Industrial, o trabalho A ideia de trabalho eletrônico data dos anos 1970, realizado pelo trabalhador em sua casa era uma mo- quando a crise do petróleo trouxe a necessidade de dalidade amplamente difundida. Todos os membros economizar combustível e a preocupação com os des- da família se envolviam na produção das mercado- locamentos para o local da empresa. O teletrabalho rias, ainda que não estivessem diretamente ligados era apresentado com as vantagens de maior convi- a ela. As fronteiras entre trabalho e família quase vência familiar. inexistiam. Por demandar competências específicas do tra- Devido à concentração do capital, à expansão balhador, alterações nas formas contratuais, no horá- da grande indústria, à ampliação do trabalho assa- rio e no tempo de trabalho, e não apenas no local, o lariado e às conquistas trabalhistas, o trabalho em teletrabalho apresenta-se como a flexibilização por domicílio tenderia a desaparecer. O espaço do tra- excelência, sobretudo do vínculo do emprego e de balho já não se confundia com a moradia do traba- suas garantias. Diversas pesquisas discutem as van- lhador: instrumentos de trabalho, máquinas e equi- tagens e as desvantagens dessas “novas” formas de pamentos integravam o ambiente próprio para as trabalho. atividades laborais – o escritório, a fábrica, a loja, a É importante ressaltar que o teletrabalho é mais oficina, etc. comum em ocupações ligadas ao trabalho intelectual, Entretanto, desde as últimas décadas do século em geral executado pelas classes médias e altas da so- XX, essa distância física foi quebrada com o avanço ciedade brasileira. Ele pressupõe que o trabalhador das tecnologias de informação e comunicação (TICs): tenha infraestrutura em sua casa, como internet via surgiram os trabalhadores a distância, conectados ao banda larga e um computador pessoal dedicado ao negócio por meio dos computadores, muitas vezes trabalho, além do domínio da língua escrita e de re- instalados em domicílio. cursos da informática.

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Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 104 5/27/13 5:23 PM O trabalho é central na vida em sociedade contemporânea? As mudanças no mundo do trabalho nas últimas décadas levaram cientis- tas sociais europeus a questionar se o trabalho ainda detinha uma posição central na organização da vida social. Para alguns, como o alemão Jürgen Habermas, conceitos como trabalho e capital tinham perdido espaço para ou- tros como informação e conhecimento. Habermas considera que é o plano do sim- bólico (propiciado pela comunicação) que organiza a vida social na contem- poraneidade, enquanto o trabalho garantiria apenas a subsistência. Essa posição foi rejeitada por autores como o sociólogo brasileiro Ricar- do Antunes (1953-). Para ele, o trabalho ainda é essencial para a organiza- ção da sociedade, pois continua sendo responsável pela produção tanto de riquezas (apropriadas pelos capitalistas) quanto de sentido simbólico (para os trabalhadores). As transformações decorrentes das novas tecnologias também levaram pensadores a questionar o futuro do trabalho material. Autores como os italianos Antonio Negri (1933-) e Maurizio Lazzarato (1955-) e o norte-ame- ricano Michael Hardt (1960-) acreditam que as características dos sistemas flexíveis de produção permitem a libertação do trabalho material. Para eles, nas formas flexíveis o trabalhador, sem a incumbência de tarefas mecânicas do fordismo-taylorismo, pode intervir diretamente no processo de trabalho e recuperar sua autonomia.

o trabalho é um dos principais fatores estruturantes das relações sociais, e compartilha essa condição com outras dimensões da vida, como o consumo e o lazer.

Vale destacar, porém, as duas principais críticas a essa visão. A primeira, feita por pensadores marxistas, é a de que o trabalhador flexível é ainda mais explorado e gera uma mais-valia ainda maior para o capitalista. A se- gunda é a de que nem mesmo nos países do capitalismo central, como os Estados Unidos, o Japão e os da Europa Ocidental, o trabalho material está perto de desaparecer – vide setores como a construção civil. hh O trabalho em crise É fato que a sociedade contemporânea continua se estruturando, em boa medida, pelo trabalho organizado socialmente. O desenvolvimento de moder- nas tecnologias de automação, comunicação e de informática reduziu o uso do trabalho humano, mas não o substituiu. Em alguns casos, por sinal, gerou a necessidade de novas funções assalariadas, como nas áreas de tecnologia da informação, informática e serviços. Continuamos a ser uma sociedade produ- tora de mercadorias, bens e serviços que são trocados continuamente. Jean/Arquivo da editora Jean/Arquivo

Acima, charge de Jean sobre a crise mundial e o desemprego.

Trabalho e mudanças sociais • 105

Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 105 5/27/13 5:23 PM Persiste, no entanto, a preocupação com o futuro do trabalho. Basta notar a diminuição do número de trabalhadores formais em um mundo em que a população dobrou em pouco mais de 20 anos, para se ter ideia do cenário atual. Enquanto o tempo de trabalho se estende para alguns poucos trabalhadores multifuncionais, milhões de outros indivíduos f icam desem- pregados. De que viverão as pessoas que não encontrarão emprego quando os sistemas flexíveis de trabalho predominarem? Desenha-se, assim, um quadro de desemprego estrutural, ou seja, resul- tante das mudanças na estrutura mesma da economia. Nas situações de de- semprego estrutural, o número de pessoas sem emprego mantém-se, no lon- go prazo, muito acima da quantidade de vagas disponíveis. Esse processo não se limita à esfera industrial e urbana. Pelo contrário: no campo, a mecanização agrária e o desenvolvimento de técnicas e insu- mos visando aumentar a produtividade na agricultura e na pecuária f izeram com que se produzisse cada vez mais com cada vez menos trabalhadores. O Brasil, grande produtor e exportador de produtos agropecuários, foi um dos países mais afetados por esse processo. Enquanto os grandes proprietários de terras contratam menos traba- lhadores porque investem em tecnologia e maquinário, os pequenos pro- prietários veem-se sem condições de compe- tir com os grandes produtores, pois não têm como f inanciar máquinas e insumos. Assim, nas últimas décadas, milhares de trabalhado- res rurais e pequenos agricultores trocaram o meio rural pela busca por emprego nas Yasuyoshi Chiba/Agência France-Presse Yasuyoshi médias e grandes cidades.

Colheitadeiras em plantação de soja no município de Campo Novo do Parecis, Mato Grosso, em 2012. As máquinas reduziram a necessidade de mão de obra no campo.

Trabalho, emprego e desemprego

Os termos trabalho e emprego são usados, mui- seguro, típico da era fordista, tende a decrescer em tas vezes, como sinônimos, mas nem sempre isso é termos relativos (quando comparado ao crescimento correto. do emprego precário e instável), pode-se afirmar que Emprego se refere ao vínculo de trabalho em o trabalho não corre o risco de desaparecer, já que se qualquer tipo de atividade econômica; designa o pos- trata da condição para a reprodução da própria vida, to ocupado por um trabalhador que realiza atividade segundo Karl Marx. remunerada formal, regulamentada, e que pode ser Desemprego é a situação em que não existem va- assalariado, autônomo ou prestador de serviços. Tra- gas remuneradas suficientes para o total de trabalha- balho é qualquer atividade que transforme a natureza dores disponíveis e que estão em busca de emprego. ou produza bens e serviços, independentemente da Em períodos de crise econômica, o decréscimo do em- existência de contrato formal. prego pode acontecer de forma rápida e atingir gran- Segundo essa distinção entre trabalho e empre- des dimensões, mesmo em países desenvolvidos, co- go, podemos interpretar a realidade que vivemos da mo aconteceu com os países europeus em período seguinte forma: enquanto o emprego, mais estável e recente.

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Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 106 5/27/13 5:23 PM pausa para rEflEtir

Leia os fragmentos abaixo e depois responda por escrito às questões propostas.

TexTO 1 O processo da reengenharia nas corporações está apenas começando e o de- semprego já está aumentando [...]. Um levantamento recente de desenvolvimento e de tendências tecnológicas nos setores agrícola, industrial e de serviços sugere que o mundo quase sem trabalhadores está se aproximando rapidamente e pode chegar muito antes de a sociedade ter tempo suficiente, tanto para discutir a abran- gência de suas implicações quanto para preparar-se para seu impacto total.

RIFKIN, Jeremy. O fim dos empregos. São Paulo: Makron Books, 1995. p. 113. TexTO 2 Em resumo, parece que, como tendência geral, não há relação estrutural siste- mática entre a difusão das tecnologias da informação e a evolução dos níveis de emprego na economia como um todo. Empregos estão sendo extintos e novos em- pregos estão sendo criados, mas a relação quantitativa entre as perdas e os ganhos varia entre empresas, indústrias, setores, regiões e países em função de competitivi- dade, estratégias empresariais, políticas governamentais, ambientais, ambientes institucionais e posição relativa no mercado global.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. v. 1. p. 284.

1. Os autores têm posições semelhantes? O que os aproxima e o que os distingue? 2. Pensando na realidade social brasileira, como você avalia essas duas teses? 3. Levando em consideração tudo o que vimos até agora no capítulo, você diria que os seres humanos podem viver sem trabalho? Por quê?

Os sindicatos e seus desafios na atualidade O trabalhador contemporâneo vive no contexto de transição do trabalho regulamentado e duradouro para formas de negação do trabalho-emprego, sua escassez e precarização. Essa situação é reforçada por múltiplas estratégias que individualizam o trabalhador: ele se torna flexível, clandestino, desloca- do de estruturas sindicais de defesa, com reduzidos direitos sociais e políticos. Os sindicatos – entidades nascidas para organizar os trabalhadores, encami- nhar suas reivindicações e representar seus interesses junto aos empregadores – tiveram seu poder de pressão reduzido. As mudanças no mundo do trabalho, decorrentes das políticas neoliberais, interromperam o processo de conquista de direitos e de ampliação da cidadania no país. Assim, hoje os sindicatos en- frentam desaf ios para garantir os direitos já alcançados pelos trabalhadores.

Albari Rosa/Gazeta do Povo/Futura Press

Trabalhadores metalúrgicos no Paraná fazem paralisações e discutem melhoria de salário durante assembleia realizada em 2011, em São José dos Pinhais.

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Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 107 5/27/13 5:23 PM São desaf ios sindicais: combinar estratégias de proteção do emprego e melhoria das condições de trabalho; responder ao cenário de flexibilidade e estimular a construção de identidades coletivas; posicionar-se com relação à reestruturação produtiva e garantir a negociação coletiva, ou seja, a regu- lação conjunta, entre empresários e trabalhadores, dos termos e das condi- ções do emprego. Um dos problemas enfrentados pela organização sindical é que ela tem representado majoritariamente os trabalhadores efetivos ou formais, isto é, aqueles que têm vínculo formal, carteira de trabalho assinada, pertencendo of icialmente a determinada categoria ou empresa. Há, porém, um segmento não organizado do mercado de trabalho, ou seja, que está na informalidade. Os trabalhadores desse grupo, que estão nas pequenas empresas ou trabalham por conta própria, vivem sem registro e/ ou remuneração f ixa e direitos trabalhistas, são facilmente substituídos e f icam mais tempo desempregados. No Brasil, em 2011, 45,4% dos trabalha- dores brasileiros em idade produtiva estavam na informalidade, de acordo com o IBGE – índice bem menor que o de 55,3%, constatado dez anos an- tes, mas ainda assim muito elevado. Muitos dos trabalhadores informais encontram-se submetidos a péssimas condições de trabalho e recebem baixíssimos salários. Esse é o caso dos car- voeiros, no Brasil, e de trabalhadores de outros setores, alguns dos quais vi- vendo em regime semelhante ao de escravidão em pleno século XXI. Já os trabalhadores terceirizados não dispõem, via de regra, de represen- tação sindical, pois operam para uma empresa que pode ser uma prestadora de serviços ou produtora de partes do produto. A redução das vagas de emprego e as no- vas condições de trabalho f izeram crescer a competição entre os trabalhadores, o que levou alguns sindicatos a aglutinar diferen-

Bianca Pyl/Repórter Brasil Bianca Pyl/Repórter tes interesses. Trata-se de uma tentativa de conter o avanço da precarização do traba- lho, incorporar os trabalhadores informais e ajustar a agenda para defender questões mais amplas da sociedade, como a previdên- cia, a saúde e a ecologia.

um dos maiores desafios dos trabalhadores e de suas organizações é universalizar os direitos, uma vez que os instrumentos de flexibilização do trabalho aumentaram as desigualdades sociais.

Flagrante de trabalho escravo contemporâneo em oficina de confecção na cidade de São Paulo, em 2011. A falta de oportunidades ou de condições de disputar uma vaga de trabalho formal leva alguns trabalhadores a se submeterem a condições de trabalho precárias, desumanas e inseguras.

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Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 108 5/27/13 5:23 PM Bruno Galvão/Acervo do artista Bruno Galvão/Acervo

Charge de 2011 retratando o sindicato como entidade responsável por proteger e garantir os direitos do trabalhador.

pEsquisa

Reúnam-se em grupos e realizem a atividade proposta a seguir. 1. Discutam o que é trabalho informal. 2. Façam uma lista das atividades informais que vocês conhecem. 3. Entrevistem três trabalhadores que se encontram na informalidade. Para isso uti- lizem as perguntas sugeridas abaixo: – Que tipo de trabalho você realiza? Especif ique algumas das atribuições desse trabalho. – Você já trabalhou com carteira assinada? Por quanto tempo? Em caso positivo: por que saiu desse emprego? – Qual o seu grau de instrução? Fez algum curso de qualif icação? 4. Após a entrevista, elaborem um pequeno relatório sobre o que descobriram. Conversem com os demais grupos e, com base nos dados colhidos por todos, apontem propostas e sugestões para mudar a realidade encontrada. Recomendação: Para fazer a entrevista, leve caneta e caderno. Identif ique-se como aluno do colé- gio e pergunte se o entrevistado pode conceder-lhe um tempo para responder a uma pesquisa sobre trabalho informal. Não esqueça de agradecer ao f inal. Mário Bittencourt/BA Press/Futura Press Press/Futura Mário Bittencourt/BA

Vendedores ambulantes oferecem bananas a motoristas em trecho urbano da BR-116, em Jequié, na Bahia, em 2013.

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Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 109 5/27/13 5:23 PM O labirinto do mercado de trabalho

Quantas vezes perguntaram a você: o que vai ser quando crescer? Para qual curso vai prestar vestibular? Que prof issão gostaria de exercer? Muitas vezes, as respostas a essas questões expõem a indecisão dos jovens sobre qual prof issão escolher. Atualmente, quem tem uma formação ou uma carreira única perde espaço no mercado de trabalho em favor daqueles com trajetó- rias prof issionais mais complexas, em razão das mudanças ocorridas no âm- bito do trabalho. Hoje, o jovem tem dif iculdade para se inserir no mercado de trabalho, especialmente no primeiro emprego, por não ter experiência (assunto que será retomado no capítulo 10, sobre a juventude). As empresas costumam exigir também uma formação mínima, que inclui, pelo menos, o Ensino Mé- dio completo. Esses requisitos visam selecionar prof issionais qualif icados que estão disponíveis no mercado de trabalho. Esse é o nome dado ao arranjo de instituições sociais, econômicas, jurídicas e políticas que possibilita a compra e venda da força de trabalho, ou seja, dos indivíduos aptos ao trabalho.

o mercado de trabalho é complexo e depende de muitos fatores: da necessidade e disponibilidade de mão de obra até a criação de postos de trabalho; da diversidade nas relações entre as empresas de diferentes níveis à posição do país no cenário econômico global.

Com o aumento da concorrência entre os trabalhadores, os salários tendem a ser rebaixa- dos e os menos preparados são excluídos. O tra- balhador com mais anos de estudo tem mais Leo Drummond/Agência Nitro Leo chances de conseguir um emprego formal, em- bora isso não garanta bons salários, e com frequ- ência as pessoas têm exercido funções não com- patíveis com sua formação. A proporção de estagiários tem aumentado, mas ainda faltam empregos efetivos. As saídas para um mercado de trabalho in- certo não se apresentam de imediato. O desen- volvimento econômico, ainda que represente condição necessária para a geração de empre- gos, não é suf iciente para tal, e há setores que geram relativamente poucos empregos. Os pos- tos de trabalho praticamente não correspondem mais a funções delimitadas, pois essas são exerci- das por prof issionais de áreas e prof issões distin- tas que aplicam seus conhecimentos e habilida- des em tarefas complexas.

Ao lado, trabalhadores de empresa de reatores em Varginha, no estado de Minas Gerais, em foto de 2010. Atualmente, profissionais de áreas e formações distintas desempenham funções diversificadas, embora tenham sido contratados para uma atividade específica.

110 • capítulo 4

Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 110 5/27/13 5:23 PM A tendência tem sido o trabalho executado por equipes multidisciplina- res e trabalhadores polivalentes. A polivalência de um trabalhador signif ica que ele opera várias máquinas ao mesmo tempo ou realiza múltiplas tarefas simultâneas, como programação, preparação, limpeza e inspeção de uma máquina ou célula de trabalho. Grupos de trabalhadores são responsáveis por etapas da produção, além de cobrarem e executarem metas de qualida- de e de produtividade f ixadas pela empresa. Diante desse quadro, surgem experiências alternativas, como a do tra- balho solidário, que implica autonomia de tarefas, reciprocidade e solida- riedade em empreendimentos econômico-sociais e públicos. Nele, os laços sociais são valorizados, pois o objetivo é atender aos interesses coletivos, num modelo de produção mais voltado para a colaboração que para a con- corrência. Feiras solidárias, cooperativas populares, redes de solidariedade, moeda social, banco comunitário e organizações em assentamentos agrá- rios são algumas das atividades da economia solidária, no Brasil. A economia solidária contribui para a democratização da economia

por sua dupla dimensão – a econômica e a política –, na medida em que da editora Filipe Rocha/Arquivo os cidadãos se mobilizam para construir sua independência econômica por meio da associação e de cooperação, e que somente a ação pública é capaz de estabelecer direitos e def inir normas de uma redistribuição da riqueza que reduza desigualdades, como af irma o sociólogo francês Jean- -Louis Laville.

dEbatE

Leia o trecho abaixo, escrito em 1937 pelo jornalista e escritor inglês George Orwell (1903-1950), e observe como se retrata o indivíduo desempregado nessa época. Depois, reunidos em grupos, discutam e respondam às questões propostas.

Tomei consciência do problema do desemprego em 1928. [...] As classes médias ainda falavam “desses preguiçosos que vivem de subsídios”, dizendo que “todos es- ses homens podiam encontrar trabalho se quisessem”; e, naturalmente, essas opi- niões infiltravam-se na própria classe operária. Lembro-me do choque e do espanto que senti quando convivi pela primeira vez com vagabundos e mendigos, ao desco- brir que uma proporção razoável, talvez um quarto, desses seres, que me haviam ensinado a considerar como parasitas desavergonhados, eram afinal jovens minei- ros e operários têxteis respeitáveis que encaravam o seu destino com a expressão perdida de um animal apanhado numa armadilha. Simplesmente não compreen- diam o que lhes acontecera. Tinham sido trazidos ao mundo para trabalhar e, de repente, tudo se passava como se nunca mais viessem a ter a mínima hipótese de encontrar trabalho. Nestas condições, era inevitável sentirem-se, numa primeira fa- se, perseguidos por um sentimento de fracasso pessoal. Era a atitude que prevalecia entre os desempregados [...]. Era um desastre que acontecia a você como indivíduo e a culpa era sempre sua [...]. Quando um quarto de milhão de mineiros estão de- sempregados, faz parte da ordem das coisas que Alf Smith, mineiro a viver nas rue- las esconsas [da cidade inglesa] de Newcastle, fique sem trabalho. Não passa de um indivíduo entre um quarto de milhão, um dado estatístico. Enquanto Bert Jones, que mora na casa em frente, estiver empregado, Alf Smith será irremediavelmente levado a sentir-se desonrado, a considerar-se um falhado. Daí o terrível sentimento

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Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 111 5/27/13 5:23 PM de impotência e de desespero, talvez um dos piores males do desemprego – muito pior do que qualquer privação, pior do que a desmoralização causada pela ociosi- dade forçada, e pouco melhor do que o lamentável estado de degenerescência físi- ca dos filhos de Alf Smith, nascidos quando ele já era subsidiado pelo PAC [sigla em inglês para Comitê de Assistência Pública].

ORWELL, George. O caminho para Wigan Pier. Lisboa: Antígona, 2003. p. 116-118.

1. Quais são as constatações de Orwell ao deparar com a questão do desemprego na Grã-Bretanha da década de 1920? 2. Como era visto o desempregado no contexto da crise capitalista europeia do iní- cio do século XX? Na sua opinião, essa imagem é condizente com a realidade ou trata-se de uma visão preconceituosa e estereotipada? 3. Agora, converse com seus colegas e responda: essa visão sobre o desempregado ainda é comum nos dias de hoje? Por quê?

hh Desigualdades no mercado de trabalho: questões de gênero e étnico-raciais Você já percebeu que em algumas prof issões predominam mulheres e que certas atividades costumam f icar a cargo dos homens? Observe também como em determinados nichos do mercado de trabalho os afrodescenden- tes são maioria. O que produz essa participação desigual dos segmentos so- ciais no mercado de trabalho? A desigualdade social não se dá somente entre empregados e desempre- gados, trabalhador formal e informal, qualif icado e não qualif icado, com altos ou baixos salários, trabalhadores experientes ou jovens buscando o primeiro emprego, trabalhadores efetivos ou terceirizados, patrões e empre- gados. Outras formas de desigualdade, historicamente construídas, envol- vem a diversidade de gênero, raças e etnias. No século XVIII, por exemplo, o trabalho de mulheres e crianças era uti- lizado nas fábricas na Europa, assim como o dos homens, mas o valor da remu- neração delas era inferior. Embora as mulheres sempre tenham trabalhado, principalmente as mais pobres, no século XX a mão de obra feminina entrou maciçamente no mercado de trabalho: no período das duas guerras mundiais, para suprir a escassez de mão de obra, e após a década de 1970, com o cresci- mento da indústria, dos serviços e o surgimento de novas tecnologias. Contribuíram também para inserir a mulher no mercado de trabalho os movimentos feministas e a chamada liberação feminina, propiciada pelo uso da pílula anticoncepcional, que permitiu o planejamento familiar, entre outros fatores. Dados da Organização Mundial do Trabalho (OIT) mostra- ram que em 2005 as mulheres já eram 45% da mão de obra no mundo e que essa proporção era maior nas famílias com rendas mais baixas, devido à ne- cessidade de melhorar suas condições de vida. As mulheres representam mais da metade da população do Brasil, que era de 191 milhões de habitantes, em 2010, segundo o IBGE. De acordo com o Censo 2010, 37,3% das famílias têm mulheres como responsáveis,

Filipe Rocha/Arquivo da editora Filipe Rocha/Arquivo embora elas recebam, na média, salários inferiores aos dos homens.

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Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 112 5/27/13 5:23 PM Wesylle Santana Silveira/Acervo do fotógrafo Além de desvantagem na remuneração, elas enfrentam também o problema da dupla (ou tri- pla) jornada, pois trabalham fora, trabalham em casa (cuidando dos f ilhos e dos afazeres domésti- cos) e, muitas vezes, ainda frequentam cursos com vistas a melhorar sua carreira e remuneração. A desigualdade na distribuição das tarefas do- mésticas ainda é enorme: dados da Pesquisa Na- cional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2011 mostram que, entre as mulheres acima de 18 anos empregadas no mercado de trabalho, 89,4% tam- bém se ocupavam dos afazeres domésticos, en- quanto apenas 47% dos homens na mesma situa- ção o faziam. Entre os homens que se encontravam Marido e esposa dividem afazeres domésticos em Itaporã, Mato fora do mercado de trabalho, somente 45,5% se Grosso do Sul. Cenas como essa ainda são pouco comuns nos lares brasileiros, de acordo com dados da Pnad 2011. Foto de 2012. responsabilizavam por atividades domésticas. Pesquisas apontam que 28% das mulheres trabalhadoras no país se con- centram em algumas áreas do setor de prestação de serviços: saúde, educa- ção, comércio, serviços comunitários, domésticos e pessoais. Algumas prof is- sões são consideradas, pelo senso comum, “tipicamente” femininas: trabalhadoras domésticas, enfermeiras, prof issionais responsáveis pelo aten- dimento ao público, cuidadoras de crianças e de idosos. Além disso, as mu- lheres ocupam cargos mais baixos em prof issões valorizadas, sendo raras entre diretorias de grandes empresas, por exemplo. Habilidades como coordenação motora f ina, paciência, concentração, boa observação, dedicação, atenção e exercício simultâneo de várias tarefas são tradicionalmente atribuídas às mulheres, como se fossem características do gênero feminino. Isso é um mito, uma vez que tais habilidades podem ser desenvolvidas por qualquer um e foram adquiridas nas relações sociais his- tóricas entre homens e mulheres. As relações de gênero influenciam a inserção no mercado de trabalho, afetando a atividade da mulher. De modo geral, é maior o desemprego entre as mulheres do que entre os homens. Segundo a Pnad 2011, elas compunham 59% da população brasileira desocupada, ou seja, sem trabalho, mas que esta- va à procura de um. A mesma pesquisa indica que a taxa de desocupação en- tre mulheres era de 9,9%, enquanto entre homens era de 5,3%. A taxa, tanto para homens como para mulheres, era mais alta entre a população negra. Moacyr Lopes Junior/Folhapress Moacyr Lopes

Linha de produção de ovos de Páscoa em fábrica de chocolate, em São Paulo, na qual predomina a mão de obra feminina. Foto de 2009.

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Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 113 5/27/13 5:23 PM Outras distinções e desequilíbrios no mercado de trabalho se baseiam em fatores étnico-raciais. A escravização de africanos e descendentes até o f inal do século XIX e as dif iculdades de integração social e econômica im- postas aos libertos, após a abolição, demarcaram uma herança histórica de desigualdades. Associou-se a cor da pele à condição de escravos e a determi- nadas funções. Dessa forma, a discriminação social foi reforçada, embora seja veiculada uma imagem do Brasil como uma democracia racial. A forma velada de racismo dif iculta seu combate e impede a meta de participação igualitária desse segmento no mercado de trabalho. A temática das desigual- dades é trabalhada com mais detalhes no capítulo 1.

Mecanismos de discriminação étnico-racial no país se revelam na dinâmica do mercado de trabalho.

A população negra está mais sujeita ao desemprego, permanece mais tempo em busca de trabalho e costuma ocupar postos de menor prestígio e remuneração e na base da hierarquia das empresas. Pesquisas indicam que, quando estão empregados, os afrodescendentes ganham menos que os tra- balhadores brancos, mesmo quando têm idêntica formação, e também são maioria no setor informal. Pesquisa do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioe- conômicos (Dieese) realizada em 2010 mostra que a população negra brasi- leira tem uma trajetória desfavorável para se manter ou ascender no empre- go, quando comparada com a dos não negros no trabalho principal, nas principais Regiões Metropolitanas. Aproximadas, as taxas de desemprego por cor, entre 2007 e 2010, indicam um maior número de desempregados negros. Em função da pobreza de parte dessas famílias, a entrada dos jovens no mercado de trabalho costuma ser precoce, dif icultando a conclusão dos estudos de nível básico e o ingresso no ensino superior ou em cursos de qualif icação. Em razão do trabalho precário exercido, muitas vezes infor- mal, os negros precisam permanecer mais tempo trabalhando devido aos entraves para obter o direito de aposentadoria. Leia, a seguir, uma análise do economista Marcio Pochmann (1962-) sobre a discriminação no mercado de trabalho brasileiro.

A variação, entre 1992 e 2002, da taxa de desemprego da população branca de baixa renda (49,5%) é pouco maior que a verificada para a população negra nessa faixa (46,7%). Nas classes de maior rendimento, ocorreu justamente o contrário, ou seja, a desigualdade entre as raças na variação do desemprego foi ampliada. Assim, o desemprego dos negros de renda alta, entre 1992 e 2002, aumentou 68%, enquan- to o dos brancos dessa classe de rendimento cresceu 46,2%. De acordo com o com- portamento do desemprego, pode-se observar que a discriminação racial alcançou novas formas de manifestação, ainda mais sofisticadas. A taxa de desemprego dos negros pobres cresceu menos, uma vez que estes tenderam a estar associados, em geral, às ocupações mais precárias, enquanto o desemprego dos negros de média e alta renda explodiu, provavelmente porque, em um contexto de escassez de empre- gos especializados, o preconceito racial atuou como um requisito decisivo na contra- tação. Assim, a discriminação racial passou a excluir de ocupações mais nobres aque- les que, depois de muito esforço, haviam alcançado maior renda e escolaridade.

POCHMANN, Marcio. Desempregados do Brasil. In: ANTUNES, Ricardo (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 64-65.

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Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 114 5/27/13 5:23 PM A segmentação do mercado de trabalho e as diversas formas de discrimi- nação estão associadas à má distribuição da renda e à falta de políticas sociais que valorizem o trabalhador. Existem, porém, cada vez mais políticas públi- cas de cotas e outras ações af irmativas que visam ampliar o acesso a bens ou serviços essenciais para a parcela menos favorecida da população, promoven- do uma participação mais efetiva desses segmentos nas esferas de poder da sociedade. Essas políticas de inserção, embora amenizem o problema, con- centram-se nas consequências e não na causa do problema. A criação de mais vagas em universidades públicas e os programas públicos de f inanciamento da educação são formas capazes de compensar, em parte, as dif iculdades de acesso da população em geral à educação de qualidade, por exemplo.

pausa para rEflEtir

Leia o trecho abaixo, sobre o mito de Sísifo, e depois res- ponda à questão.

Por ter enganado Tânatos, deus da morte, sucessivas vezes, Sísifo foi condenado, por toda eternidade, a em- purrar uma pedra para o topo de uma montanha e, lá do alto, soltá-la de volta para baixo, repetindo o processo ininterruptamente. Com isso, tornou-se um símbolo do trabalho humano feito em vão.

Adaptado de: GUIA visual da mitologia no mundo. São Paulo: Abril, 2010. p. 171.

• Com base nos temas abordados no capítulo, em especial o conceito de trabalho alienado, responda: de que modo o mito de Sísifo manifesta-se na vida cotidiana dos traba- lhadores? The Art Archive/Musée Archéologique Naples/Gianni Dagli Orti/The Picture Desk/Agência France-Presse Naples/Gianni Dagli Orti/The Archéologique Archive/Musée Art The

Neste vaso grego datado do século IV a.C., Sísifo é representado cumprindo sua sina: empurrar inutilmente uma pedra que sempre voltará a rolar montanha abaixo.

diálogos intErdisciplinarEs

Produção de um conteúdo artístico-lúdico com base na comparação de conceitos li- gados à palavra “trabalho” na Sociologia, na Filosof ia e na Física. [As disciplinas tra- balhadas em conjunto são Língua Portuguesa, Arte, Sociologia, Filosof ia e Física.] Você certamente já ouviu falar muito em “trabalho”. Ao longo do capítulo 4, você pôde conhecer a abordagem sociológica para esse conceito. Ela não é a única. Com- pare as seguintes def inições de “trabalho”, dadas por três diferentes disciplinas: Sociologia/Ciências Sociais O trabalho é uma relação social produtiva submetida às exigências técnicas e mate- riais da produção. Portanto, o trabalho deve ser explicado no âmbito das especificidades de uma dada sociedade. Para Marx, por exemplo, o trabalho assalariado objetivado é o trabalho da época capitalista. Fonte: SPURK, Jan. A noção de trabalho em Karl Marx. In: MERCURE, Daniel; SPURK, Jan (Org.). O trabalho na história do pensamento ocidental. Petrópolis: Vozes, 2005.

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Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 115 5/27/13 5:23 PM Filosof ia Para o filósofo alemão Jürgen Habermas, o trabalho é uma ação racional com respei- to a fins, por meio da qual homens e mulheres se apropriam da natureza em busca da sobrevivência e interagem comunicativamente entre si. Fonte: HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência enquanto ideologia. In: Textos escolhidos. v. XLVIII. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 310-311. (Os Pensadores) Física Realizar trabalho em Física implica a transferência de energia de um sistema para outro e, para que isso ocorra, são necessários uma força e um deslocamento adequados. Fonte: DOCA, Ricardo Helou; BISCUOLA, Gualter José; VILLAS BÔAS, Newton. Física. São Paulo: Moderna, 2010.

Utilizando sua criatividade, escolha um dos projetos a seguir para realizar indivi- dualmente ou em grupo: a) escrever um poema; b) escrever uma paródia de uma música famosa; c) compor uma música e sua letra; d) escrever, ensaiar e apresentar uma cena curta (esquete) de teatro; e) fazer um vídeo curta-metragem de um minuto; f) elaborar, escrever o roteiro e gravar um programa de rádio; g) fazer uma obra de artes visuais (pintura, desenho, instalação); h) elaborar uma história em quadrinhos, charge ou tira; i) tirar fotograf ias, selecioná-las e realizar uma exposição. O seu projeto deve estabelecer uma comparação ou relação entre as três def inições apresentadas anteriormente. Quando todos os projetos estiverem prontos, organizem uma sessão para apresentá-los aos colegas de sala ou aos demais alunos da escola. Caso tenha outra ideia de projeto artístico-lúdico para trabalhar o tema, converse com o professor sobre a possibilidade de realizá-la.

rEvisar E sistEmatizar

1. Pode-se dizer que as relações de trabalho permanecem as mesmas ao longo da História? Justif ique sua resposta utilizando exemplos. 2. Descreva as principais características do fordismo e do taylorismo e iden- tif ique elementos deles na organização do trabalho na indústria brasileira. 3. Indique algumas implicações dos sistemas flexíveis de produção para o mercado de trabalho. 4. Explique as razões do crescimento do desemprego, nas últimas décadas, no mundo. 5. Analise a permanência de antigas formas de discriminação e desigual- dades no trabalho.

conceitos-chave: Trabalho, trabalho alienado, mais-valia, mundo do trabalho, força de trabalho, capital, relações de trabalho, fordismo, taylorismo, toyotismo, flexibilização, financeirização, cadeia produtiva, reestruturação produtiva, neoliberalismo, mercado de trabalho, emprego, desemprego, precarização do trabalho, sindicato, trabalho solidário, informalidade.

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Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 116 5/27/13 5:23 PM dEscubra mais

As Ciências Sociais na biblioteca ANTUNES, Ricardo (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. Tendo como tema principal o trabalho e o sindicalismo no Brasil atual, e tomando por base pesquisas recentes, os autores buscam compreender as transições por que tem passado o trabalho urbano. DOWBOR, Ladislau. O que acontece com o trabalho? São Paulo: Senac-SP, 2002. Leitura com discussões atuais sobre as macrotendências de mudanças no trabalho. Acompanha breve glossário. HOLZMANN, Lorena. O trabalho no cinema (e uma socióloga na plateia). Porto Alegre: Tomo Editorial, 2012. Valendo-se do cinema como meio de comunicação, são comentados alguns filmes que tratam do trabalho, seus conflitos e mudanças.

As Ciências Sociais no cinema Coisas belas e sujas, 2002, Inglaterra, direção de Stephen Frears. Com base na história de um médico nigeriano e uma jovem turca, em Londres, o filme discute a situação daqueles que lá trabalham ilegalmente. Eles não usam black-tie, 1981, Brasil, direção de Leon Hirszman. Na conjuntura do final da década de 1970, o filme retrata a angústia pessoal e de cunho político do trabalhador em participar do movimento grevista no ABC paulista.

Roger & eu, 1989, Estados Unidos, direção de Michael Moore. HirszmanLeon Produções/Embrafilme Documentário que relata o fechamento de onze fábricas de automóveis na cidade de Flint (EUA), Fernanda Montenegro e que deixou dezenas de milhares de pessoas sem trabalho. Gianfrancesco Guarnieri em Tempos modernos, 1936, Estados Unidos, direção de Charles Chaplin. cena do filme Eles não usam Filme clássico do que se tornou uma referência também por retratar a sociedade black-tie (1981), dirigido por industrial do início do século XX, em que prevalecia o sistema fordista de produção. Leon Hirszman.

As Ciências Sociais na rede Ministério do Trabalho e do Emprego. Disponível em: . Acesso em: 28 abr. 2013. Portal do Ministério disponibiliza dados, estatísticas e notícias sobre trabalho, emprego e renda. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: . Acesso em: 28 abr. 2013. Apresenta dados sobre o mundo do trabalho no Brasil. Instituto Observatório Social. Disponível em: . Acesso em: 28 abr. 2013. Traz informações sobre o panorama do trabalho e dos salários, do mercado de trabalho e da organização dos trabalhadores no Brasil. Organização Internacional do Trabalho (OIT). Disponível em: . Acesso em: 28 abr. 2013. O site traz informações atualizadas sobre temas como diálogo social, emprego, gênero e raça, proteção social, trabalho escravo e forçado, trabalho infantil, além de normas e convenções do trabalho e publicações. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Disponível em: . Acesso em: 28 abr. 2013.

Informações atualizadas e resultados de pesquisas sobre a realidade socioeconômica brasileira. Boitempo Reprodução/Editora

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Trabalho e mudanças sociais • 117

Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 117 5/27/13 5:23 PM CARMO, Paulo Sérgio. História e ética do trabalho no Brasil. São Paulo: Moderna, 1998. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura, v.1. 3.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. CATTANI, Antonio; HOLZMANN, Lorena (Org.). Dicionário de trabalho e tecnologia. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2006. CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. v.3. São Paulo: Cosac Naify, 2012. DAL ROSSO, Sadi. Mais trabalho! A intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2011. DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Anuário dos trabalhadores 2010-2011. 11.ed. São Paulo, 2011. DOWBOR, Ladislau. O que acontece com o trabalho? São Paulo: Senac-SP, 2002. FRANÇA FILHO, Genauto; LAVILLE, Jean-Louis. A economia solidária: uma abordagem internacional. Porto Ale- gre: Editora da UFRGS, 2004. GARCIA, Sandro Ruduit. Terceirização. In: CATTANI, Antonio David; HOLZMANN, Lorena (Org.). Dicionário de trabalho e tecnologia. 2.ed. Porto Alegre: Zouk, 2011. p. 423-426. GORZ, André. Adeus ao proletariado: para além do socialismo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

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118 • capítulo 4

Sociologia_vu_PNLD15_089a118_C04.indd 118 5/27/13 5:23 PM Salmo Dansa/Arquivo da editora Salmo

Capítulo 5 A cultura e suas transformações

EstudarEmos nEstE capítulo: a cultura, um aprendizado social que compreende a produção de bens materiais e simbólicos. Trataremos sobre a diversidade cultural na sociedade brasileira, e veremos que a identidade cultural envolve a experiência e a consciên- cia de pertencer a um coletivo. Todos produzem cultura, e os grupos sociais minoritários produzem culturas pró- prias, alternativas ou contra-hegemônicas. Desde que se firmou a sociedade de massas, nossos hábitos culturais também passaram a ser influenciados pelos meios de comunicação de massa. Ao analisar o novo sistema tecnoló- gico de comunicação da sociedade global, aprenderemos como ele pode aproximar grupos geograficamente distan- tes e, ao mesmo tempo, aprofundar as diferenças sociais, sinal de que a cultura é um fenômeno heterogêneo.

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 119 5/27/13 5:24 PM Comunicação e cultura

Se você é um usuário da internet ou de jogos eletrônicos, saiba que par- ticipa de uma nova cultura – a “cultura virtual do real”, assim denominada pelo sociólogo espanhol Manuel Castells (1942-). A realidade virtual é a ge- ração de um mundo artif icial com base na relação ser humano-máquina, cuja meta é envolver todos os sentidos do usuário. Acompanhemos a narra- tiva sobre uma mulher, no Japão, que destina algum tempo do seu dia para vivenciar outra identidade em um cenário de um mundo paralelo. Que cul-

Filipe Rocha/Arquivo da editora turas emergirão dessas realidades vividas virtualmente?

O mundo de Mariko Ito, de 32 anos, moradora de Tóquio, usuária de Habitat, hh avatar: é uma palavra derivada de essa cidade japonesa de dez mil habitantes, que não se encontra no mapa, porque avatara, que significa ‘descida do céu à é uma cidade virtual fabricada pela Fujitsu e lançada na rede Nifty-Serve, em 1990. Terra’ em sânscrito, antiga língua in- Mariko Ito vai à Habitat ciberespacial, por uma ou duas horas todos os dias, porque, diana. Atualmente, a palavra tem sido diz ela, “é fantástico, lá, posso ser outra pessoa”. Lá, Mariko pode escolher sua roupa, largamente utilizada nos meios de co- sua aparência e seu sexo, optando entre os 1 100 rostos possíveis, depois de ter se municação e na informática para de- registrado como avatar ou residente. Atravessando o espelho da tela e entrando, do signar personagens que são criadas outro lado, num mundo ciberespacial, Mariko torna-se um avatar, isto é, uma reen- virtualmente à semelhança de seu criador (o usuário desses programas e carnação, ou uma metamorfose. Parece ficção, mas é realidade virtual. jogos de computador), possibilitando SANTOS, Laymert. Considerações sobre a realidade virtual. In: FERREIRA, Leila (Org.). A Sociologia no horizonte do século XXI. sua “entrada” no mundo virtual. São Paulo: Boitempo, 2002. p. 113-114. Century Fox/Divulgação th 20

Na foto ao lado, cena do filme Avatar, dirigido por James Cameron (Estados Unidos, 2009)

A concentração de conhecimentos tecnológicos, instituições, empresas e mão de obra qualif icada dá ensejo à era da informática, na expressão de Castells. Os novos sistemas de comunicação transformam o espaço e o tem- po, reintegrando-os em redes funcionais na cultura moderna. As alterações em ritmo acelerado nos meios de comunicação contribuí- ram para transformar o nosso estilo de vida, o modo de nos relacionarmos, produzirmos, consumirmos, de vivermos e até de morrermos. Essas grandes mudanças resultaram, segundo alguns historiadores e sociólogos, de uma Revolução Tecnológica que ocorreu na metade do século XX. Originada nos Estados Unidos e centrada na informação, esta revolução surgiu a partir de inovações na microeletrônica, como o circuito integrado, o microproces- sador e o microcomputador.

120 • capítulo 5

Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 120 5/27/13 5:24 PM Alberto Pomares/E+/Getty Images Pomares/E+/Getty Alberto

As tecnologias da informação e da comunicação contemporâneas permitem conciliar atividades de lazer e de trabalho, comunicar-se com familiares e amigos a distância, registrar momentos de lazer, resolver pendências como pagamentos em tempo real, entre outras facilidades. Data desconhecida. Os sistemas de comunicação modif icam nossa vida. Quem dispõe de te- lefone ou internet já não precisa mais se deslocar f isicamente para falar com pessoas, pagar contas bancárias, comprar ou vender produtos. Transações antes feitas entre duas ou mais pessoas agora são mediadas por máquinas. A ligação entre os mercados do mundo em tempo real também só foi possível com as tecnologias de informação. O sistema f inanceiro internacional habi- ta o ciberespaço – aquele espaço virtual em que se dá a comunicação entre indivíduos e grupos sem a presença física –, e pode ser responsável por crises e mudanças com desdobramentos globais imediatos. Mesmo que uma pes- soa não utilize os meios de comunicação virtuais, seu cotidiano está ligado de alguma forma a eles. Você já entrou em uma agência bancária e observou seu movimento? A pessoa se despoja de seus pertences metálicos para passar pela porta girató- ria; depois, retira uma senha que lhe dá acesso a um atendente apenas se pretender abrir uma conta-corrente ou resolver um problema específ ico, porque quase todos os demais serviços podem ser realizados por meio de máquinas eletrônicas. Retirar e depositar dinheiro, pagar con- tas, verif icar saldos: todas essas atividades, a partir dos anos 1990, passaram a ser realizadas diretamente entre o cliente e a máquina. As sociedades humanas se produzem e reproduzem em um Alex Silva/Agência Estado ambiente simbólico por meio do processo de socialização, co- mo estudamos no capítulo 3 deste livro. Isso signif ica que in- ternalizamos sistemas de signos produzidos culturalmente, co- mo é o caso da linguagem, da escrita, dos números, etc., ajustando-nos aos padrões de comportamento vigentes. Em toda relação que os seres humanos estabelecem com o seu en- torno, modif icando-o – das árvores fazem móveis, com os me- tais elaboram utensílios domésticos, em uma roda de batuque compõem músicas, produzem meios para se comunicar, por exemplo –, eles criam uma cultura plena de signif icados que Atualmente, é possível efetuar o pagamento de dá sentido à sua existência, af irma o antropólogo polonês Bro- uma fatura bancária ou consultar a movimentação nislaw Malinowski (1884-1942). financeira utilizando o celular. Foto de 2011.

A cultura e suas transformações • 121

Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 121 5/27/13 5:24 PM As conversas cotidianas, as coisas sobre as quais falamos, o modo de nos relacionarmos com fatos como nascimento, crescimento e morte são cultu- ra. A maneira de prepararmos as refeições e lidarmos com os alimentos, o modo como trabalhamos, nos vestimos, nos divertimos, as músicas que ouvi- mos, os f ilmes a que assistimos, enf im, o relacionamento com aquilo que nos rodeia: tudo que pode ser aprendido e ensinado faz parte da cultura. Mas, af inal, o que podemos entender por cultura?

O que é cultura?

Geralmente, quando falamos em cultura, a primeira ideia que nos vem à mente é algo relacionado ao teatro, à música, à literatura, à pintura, à escul- tura e a outras áreas das artes. Mas também são considerados como elemen- tos culturais de grande relevância as festas tradicionais, as lendas, o folclore e os costumes de um povo. Seu signif icado abrange ainda os meios de comu- nicação de massa, como a televisão, o rádio, a mídia impressa, a internet, o cinema, etc. Cultura, portanto, não se resume às manifestações artísticas, às tradições e aos hábitos de uma dada coletividade. Na Sociologia e na Antro- pologia, o conceito de cultura também está relacionado aos conhecimentos, às ideias e às crenças de uma sociedade e/ou das diversas sociedades.

Vinda do verbo latino colere, Cultura era o cultivo e o cuidado com as plantas, os animais e tudo que se relacionava com a terra; donde, agricultura. Por extensão, era usada para referir-se ao cuida- do com as crianças e sua educação, para o desenvolvimento de suas qualidades e faculdades naturais; donde, puericultura. O vo- Mauro holanda/Arquivo da editora cábulo estendia-se, ainda, ao cuidado com os deuses; donde, culto [na antiga Grécia]. A Cultura [...] era o cuidado com a terra para torná-la habitável e agradável aos homens, era também o cuidado com os deuses, os ancestrais e seus monumentos, ligando-se à me- mória e, por ser o cuidado com a educação, referia-se ao cultivo do Os hábitos alimentares também são manifestações culturais. Na foto acima, feijoada completa, prato muito espírito. Em latim, cultura animi era o espírito cultivado para a ver- apreciado da culinária brasileira. dade e a beleza, inseparáveis da Natureza e do Sagrado.

CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense,1986. p. 11.

O termo cultura foi aplicado em português por bastante tempo como si- nônimo de erudição, mas não existe diferença em termos de importância entre a chamada “alta cultura” e as expressões culturais populares, pois am- bas (cada uma a seu modo) são criadas e cultivadas pela participação efetiva do ser humano na sociedade. Foi pensando dessa forma que o antropólogo britânico Edward Tylor (1832-1917) concebeu cultura como a totalidade de conhecimento, crença e expressão emocional, à qual se somam as regras estabelecidas, os hábitos, comportamentos e habilidades adquiridas no con- vívio dos membros de uma sociedade.

tudo que pode ser aprendido e ensinado faz parte da cultura. Em toda relação que os seres humanos estabelecem com o seu entorno, modificando-o, eles criam uma cultura plena de significados que dá sentido à sua existência.

122 • capítulo 5

Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 122 5/27/13 5:24 PM Os nossos gostos, por exemplo, não são determinados antes do nasci- mento; ao contrário, resultam das relações que estabelecemos com os ou- tros indivíduos e com o meio em que vivemos. Eles são construídos cultural- mente no contínuo processo de interação social, o qual se dá pela comunicação e pela ação recíproca entre os indivíduos e os grupos sociais. Assim, aprendemos a gostar de rock, de f ilmes de ação, de sair com os amigos e até de consumir certos tipos de alimentos em vez de outros. Alguns entendimentos são fundamentais para o estudo da cultura. Os três principais axiomas sobre esta esfera da vida em sociedade, para as Ciên- cias Sociais, são: • A cultura é uma característica do ser humano como ser social; • A cultura é adquirida, um comportamento aprendido, como um patrimô- nio social; • Por meio da cultura se estabelece uma parte da relação ser humano-socie- dade-mundo. Assim como outras dimensões da vida social são interpretadas de dife- rentes maneiras, também a cultura é estudada por diferentes visões e meto- dologias. Acompanhemos as interpretações que alguns cientistas sociais fa- zem do fenômeno cultural que, por ser heterogêneo, durável, mas em contínua transformação, teve muitas tentativas de def inições.

Cultura: algumas leituras teóricas

Metodologia Representantes

Funcionalismo Para o antropólogo polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942) e para o antropólogo inglês (as instituições sociais Radcliffe-Brown (1881-1955): são vistas pela função - a cultura designa o modo de vida das diversas comunidades; as necessidades humanas são que desempenham universais e toda cultura cria instituições para atendê-las, desde as necessidades primárias às para estabilizar a emocionais e aquelas das atividades econômicas e políticas. sociedade) Para o antropólogo estadunidense Ralph Linton (1893-1953): - a cultura é um fenômeno universal e diferencia os grupos.

Estruturalismo Para o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009): (as culturas se - a cultura é uma forma universal da linguagem pela qual os seres humanos buscam diferenciar-se da estruturam por natureza e apresenta variações baseadas em pares de oposições (discrição e excesso, cru e cozido, padrões implícitos) etc.).

Estrutural- Para os sociólogos estadunidenses Talcott Parsons (1902-1979) e Robert Merton (1910-2003): -funcionalismo - a cultura de um povo ganha sentido na rede de relações sociais; (as estruturas sociais - sociedade e cultura são partes interdependentes do sistema social. delimitam a cultura)

Tendências recentes Para o antropólogo estadunidense Alfred Kroeber (1876-1960), numa linha de pensamento relativista (há relações entre os da Antropologia Cultural, misturam-se na cultura os elementos materiais e os ideológicos com o fenômenos) declínio das crenças mágicas; assim, ele argumenta que a cultura progride, evolui. O historiador britânico Edward Thompson (1924-1943), ao fazer a crítica ao materialismo histórico radical, entende a cultura como resultado das experiências comuns das pessoas (herdadas ou partilhadas), presentes em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais. O sociólogo britânico Anthony Giddens (1938-) vê, na cultura, a interdependência de aspectos intangíveis (subjetivos), como ideias, crenças e valores, e aspectos tangíveis (objetivos), como os objetos produzidos pelo ser humano, suas técnicas e tecnologias, trabalho, moradia, etc.

A cultura e suas transformações • 123

Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 123 5/27/13 5:24 PM A cultura é um nível particular da realidade social muito importante, pois suas dimensões objetiva e subjetiva não se contrapõem, ao contrário, elas se complementam e estão relacionadas numa organicidade vital. O fa- zer, o saber, o conviver dos seres humanos produzem padrões particulares

Filipe Rocha/Arquivo da editora Filipe Rocha/Arquivo de estar na sociedade; produzem cultura. Cultura, portanto, não se aplica a um grupo, ou a este ou àquele segmento social, mas está em nível global, dada a amplitude do campo da experiência existencial.

hh Cultura e civilização Em seu livro O processo civilizador, o sociólogo Norbert Elias defende que, mais do que pela “natureza humana”, o ser humano se def ine por meio da relação com o outro – ou seja, ele se faz humano e se torna membro da hu- manidade. Incompleto e dependente, até no aspecto biológico, ao nascer, o ser humano se humaniza porque necessita da família e das relações sociais típicas do seu grupo para se constituir. Ele depende, portanto, de seu con- texto cultural e social. Nesse sentido, é a cultura de uma sociedade que def ine os parâmetros do bem e do mal, do justo e do injusto, do lícito e do ilícito. Envolto nessa relação com sua cultura, o indivíduo pode se adaptar, se sujeitar ou se rebe- lar. Ainda segundo Elias, os ocidentais, por exemplo, nem sempre se com- portaram da maneira como o fazem hoje: alguns atributos que considera- mos típicos do indivíduo “civilizado” resultaram de lentas transformações, por meio das quais suas condutas, comportamentos e costumes foram sendo condicionados socialmente. Então, civilização e cultura coincidem? Aliás, o que signif ica exatamente civilização?

A partir do século XVIII, [...] o termo Cultura articula-se, ora positiva ora negati- vamente, com o termo Civilização. Este, derivando-se do latim cives e civitas, referia- -se ao civil como homem educado, polido e à ordem social (donde o surgimento da expressão Sociedade Civil). Entretanto, Civilização possuía um sentido mais amplo que civil. Significava, por um lado, o ponto final de uma situação histórica, seu aca- bamento ou perfeição, e, por outro lado, um estágio ou uma etapa do desenvolvi- mento histórico-social, pressupondo, assim, a noção de progresso.

CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 11-12.

Alguns cientistas sociais def inem os termos civilização e cultura como si- nônimos, outros os distinguem. É o caso de Norbert Elias, para quem civili- zação é a consciência que as sociedades ocidentais têm em relação a si pró- prias, ou seja, um termo que designa as alterações especif icamente ocidentais em dimensões de relacionamento e criatividade, como os costumes, a tecno- logia e o conhecimento científ ico. O historiador inglês Eric Hobsbawm (1917-2012) concebe como socie- dade “civilizada” aquela que determina regras e comportamentos de contro- le para seus membros e para os de outras sociedades. Desse tipo de prática pode-se citar o imperialismo do século XIX e início do XX, o qual nada mais era do que a supremacia de caráter territorial, cultural e f inanceiro exercida por uma nação sobre outra. Nessa época, os europeus def iniam a si mesmos

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 124 5/27/13 5:24 PM como “civilizados”, em oposição aos povos considerados por eles “selvagens” – os africanos, os asiáticos e os latino-americanos, ou seja, todos aqueles con- siderados diferentes deles. Esse discurso da superioridade europeia caracterizava o outro (o dife- rente) como algo fora do padrão, tornando-o um inimigo a ser vencido. Como analisa o antropólogo brasileiro Carlos Brandão (1940-), o argumen- to utilizado era o de que os outros povos precisavam também se tornar parte da “civilização”. O texto abaixo, do escritor britânico Joseph Kipling (1865- -1936), ilustra como era vista essa “missão” europeia com relação aos povos considerados não civilizados:

A nós – não aos outros – incumbe um dever precioso: levar a luz e a civilização aos lugares mais distantes do mundo. Despertar a alma da Ásia e África para as ideias morais da Europa; dar a milhões de homens, que sem isso não conheceriam a paz, nem a segurança, essas condições prévias do progresso humano.

KIPLING, Joseph apud COMBLAIN, José. Nação e nacionalismo. São Paulo: Duas Cidades, 1965. p. 240.

Na foto ao lado, da década de 1910, habitantes da atual República dos Camarões trabalham em plantação de café. Alguns povos do continente africano foram explorados pelos europeus visando atender aos Centre historique des Archives Nationales, Paris, France/Archives Charmet/the Bridgeman Art Library/Keystone Art Charmet/the Bridgeman France/Archives Nationales, Paris, Archives Centre historique des interesses destes.

Tendo em vista que o ser humano se coloca no mundo, o vê e o interpre- ta pela perspectiva da cultura em que se insere, uma tendência comum em nossa sociedade tem sido naturalizar o nosso próprio modo de vida como se fosse o único correto, tomando-o como padrão de análise na comparação com outras culturas. Tal atitude é denominada etnocentrismo. Esse compor- tamento explica a sensação de estranhamento causada por hábitos e valores diferentes daqueles com os quais estamos acostumados e que são preconiza- dos por nossa cultura. Conforme nos diz o antropólogo brasileiro Roque Laraia (1932-):

O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem como conse- quência a propensão em considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. Tal tendência, denominada etnocentrismo, é responsável em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos conflitos sociais.

LARAIA, Roque. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. p. 75.

A cultura e suas transformações • 125

Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 125 5/27/13 5:24 PM hh O relativismo cultural Para evitar visões distorcidas e etnocêntricas sobre o “outro” – como a expressa na citação de Kipling, anteriormente, – a Antropologia propõe uma análise sobre aquele que é diferente de nós fundada no chamado rela- tivismo cultural. Relativizar culturalmente signif ica que, ao falarmos sobre outros povos e grupos, precisamos antes nos indagar: como concebemos a sociedade da qual fazemos parte? Podemos def inir outros povos e culturas como primitivos ou arcaicos, civilizados ou não? Quais parâmetros seriam utilizados para tal def inição? Até que ponto uma classif icação desse tipo se- ria adequada, ou tendenciosa? Cabe refletir e entender que outras sociedades ou grupos sociais têm concepções e valores diferentes dos nossos acerca da vida e do mundo, por exemplo – nem melhores, nem piores. Isto pode ser explicado por inúme- ros fatores inter-relacionados, fruto das distintas experiências e de uma com- plexa teia de relações sociais, constituídas historicamente no âmbito de cada cultura. Nossa perspectiva cultural (a educação do nosso olhar) normalmente está relacionada com o lugar social ocupado por nós e as relações estabele- cidas com os demais, na sociedade. O modo como vemos o mundo, aprecia- mos as coisas de forma valorativa e moral, nossos comportamentos sociais e até posturas corporais são produtos de uma herança cultural, analisa Laraia. As Ciências Sociais, em especial a Antropologia, ao ampliar nosso conhe- cimento acerca de outras culturas e suas expressões, nos ajudam a relativizar nossa visão de mundo. Em outras palavras, fazem refletir sobre as diferenças entre as diversas culturas e aprimoram a perspectiva por meio da qual per- cebemos e interpretamos a própria cultura. Esse processo também nos ensi- na que muitos comportamentos e visões de mundo que nos parecem “natu- rais” ou “biológicos” na verdade são produtos da cultura, já que variam em diferentes grupos e sociedades. O reconhecimento da existência do outro, de culturas de diferentes hh alteridade: do latim alteritas (‘outro’), grupos, povos e sociedades (a alteridade), implica a experiência do conta- indica a condição daquilo que é dife- to com outras culturas, a aceitação das diferenças. Essa é uma forma de rente, distinto. desvendar alguns aspectos da nossa cultura que antes nos passavam des- percebidos.

pEsquisa

Compreendendo outras culturas, podemos passar a compreender melhor as nossas próprias. [...]. Cada sociedade humana é única, mas as instituições que ela compreende são variações de temas que são compartilhados por todas. Aprenden- do alguma coisa sobre estas variedades podemos aprender a nos ver no contexto etnográfico; podemos passar a ver que nossas soluções para os problemas comuns da vida em comunidade não são as únicas possíveis. Assim, aprendendo a impor- tância prática das crenças de feitiçaria para os Azande [grupo étnico do Norte da África Central, República Democrática do Congo], o ocidental pode vir a compreen- der algo de seu próprio passado; não faz muito tempo que os europeus ocidentais também acreditavam em feiticeiras e as destruíam quando eram descobertas.

BEATTIE, John. Introdução à Antropologia Social. São Paulo: Companhia Editora Nacional/Edusp, 1971, p. 322.

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 126 5/27/13 5:24 PM • A leitura deste fragmento da obra de John Beattie (1915-1990), antropólogo so- cial irlandês, nos faz pensar sobre o aprendizado da convivência e do respeito in- tercultural. Pesquise e apresente na turma alguns traços de outras culturas que se aproximam da nossa. Discutam sobre os contrastes e semelhanças no modo de viver desses povos.

Nós e os outros

A diversidade cultural diz respeito às distintas maneiras segundo as quais sociedades e grupos sociais se organizam e se relacionam entre si e com a natureza. Vivências em outras sociedades, leituras variadas, viagens, f ilmes retratando diferentes costumes podem se constituir em instrumentos que nos permitem refletir sobre o quanto somos diferentes ou iguais em relação a outros povos e culturas. Constatada a coexistência e a convivência de dife- rentes culturas, cabe às Ciências Sociais não apenas estudá-las e compará-las de maneira a evidenciar as diferenças nos modos de vida, mas favorecer a reflexão sobre a própria sociedade, seus valores e costumes. Tantas são as culturas quantos são os povos, os grupos sociais e as etnias existentes. Para além da diversidade de culturas, porém, as relações entre as diferentes culturas são marcadas pela desigualdade. Os interesses e as visões de mundo são distintos, gerando tensões no âmbito das sociedades e certa hierarquização entre povos e nações decorrentes de disputas de fundo político e econômico. Essa diferenciação social está explicitada, muitas vezes, na busca por emprego, nos diferentes locais de moradia, na necessidade de povos se deslocarem e/ou se abrigarem em acampamen- tos. Esses são apenas exemplos de conflitos de interesses que podem impli- car a luta por um espaço físico e cultural com os quais os grupos sociais se identif icam culturalmente. Filipe Rocha/Arquivo da editora Em decorrência de processos históricos de dominação e migração, entre outros, ocorrem também processos de interação cultural que implicam difu- são e reconf iguração da cultura, traços ou manifestações culturais espe- cíf icos. É como se sociedades distintas convivessem no interior de um mesmo grande grupo social. O resultado da influência cumulativa e da imbricação entre diferentes culturas pode ser identif icado no trecho a seguir.

O cidadão norte-americano desperta num leito construído segundo padrão originário do Oriente Próximo, mas modificado na Europa Setentrional, antes de ser transmitido à América. Sai debaixo de cobertas feitas de algodão cuja planta se tor- nou doméstica na Índia; ou de linho ou de lã de carneiro, um e outro domesticados no Oriente Próximo; ou de seda, cujo emprego foi descoberto na China. Todos estes materiais foram fiados e tecidos por processos inventados no Oriente Próximo. Ao levantar da cama faz uso dos “mocassins” que foram inventados pelos índios das florestas do Leste dos Estados Unidos e entra no quarto de banho cujos aparelhos são uma mistura de invenções europeias e norte-americanas, umas e outras recen- tes. Tira o pijama, que é vestuário inventado na Índia, e lava-se com sabão, que foi inventado pelos antigos gauleses, faz a barba, que é um rito masoquístico que pa- rece provir dos sumerianos ou do antigo Egito.

LINTON, Ralph. Apud LARAIA, Roque. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. p. 110.

A cultura e suas transformações • 127

Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 127 5/27/13 5:24 PM A interação cultural gera novas formas de identidade cultural. A consciên- cia de pertencer a determinado grupo social – seja por caracteres comuns de gênero ou de origem étnica, seja por interesses específ icos, prof issão, atividades realizadas, crenças e costumes semelhantes – aproxima os indiví- duos em determinada sociedade, levando à formação de agrupamentos de diversos tamanhos. Nesse sentido, a identidade cultural é aquela marca ca- racterística de um grupo social que partilha um ideal, valores, costumes e comportamentos formados ao longo da sua história. A identidade cultural de um grupo (independentemente de seu tamanho) é de extrema importância para seu reconhecimento social e político e assenta- -se em ideias e representações sociais. Ao se defrontarem, os grupos sociais podem desenvolver ideias de aceitação ou não de outros grupos, provocando disputas. Um exemplo é o f ilme brasileiro Cidade de Deus, inspirado no roman- ce de mesmo nome escrito pelo jornalista Paulo Lins e que se baseia em notí- cias de jornais sobre a comunidade carioca que batiza as obras. O protagonista Buscapé encontra-se em diferentes crises de identidade cultural. Por um lado, ele é morador da Cidade de Deus, pobre e negro. Quando começa a trabalhar no jornal, passa a conviver com pessoas brancas da classe média do Rio de Ja- neiro. Em vários momentos do f ilme ele se questiona se deveria “f icar de um lado ou de outro”, se deveria se identif icar mais com um grupo ou outro. É a partir da nossa identidade cultural que construímos a ideia de “eu”, “nós” e “outros”. A forma como o fazemos muitas vezes constrói fronteiras sociais ligadas à classe socioeconômica, à raça, ao gênero, ou mesmo a ou- tros fatores como o bairro onde moramos, os programas de TV de que gos- tamos, o tipo de roupa que preferimos, etc. Por meio destes e de muitos outros elementos combinados, identif icamos “semelhantes” e “outros” nas pessoas com quem compartilhamos a vida social. Algumas dessas fronteiras sociais, aliadas a tendências etnocêntricas que reproduzimos até hoje – em- bora tenham sido mais populares antes do século XX –, formavam as chama- das “teorias” sociais racistas. O2 Filmes/VideoFilmes/hank Levine Film O2 Filmes/VideoFilmes/hank Levine

Protagonista do filme Cidade de Deus, Buscapé (interpretado por Alexandre Rodrigues) se vê em crise de identidade depois que começa a conviver com uma realidade muito diferente daquela em que cresceu.

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 128 5/27/13 5:24 PM No decorrer do colonialismo do século XIX, emergiram diversas “teorias” racistas que tomaram a forma de “teorias sociais”, uma vez que os países euro- peus precisavam do aval da ciência para justif icar suas ações imperialistas na África e na Ásia, bem como as ações pregressas, durante a colonização das Amé- ricas, quando os europeus subjugaram indígenas e negros, forçando-os ao tra- balho doméstico e na lavoura. Nestes casos, as teorias sociais racistas desobriga- vam os grupos dominantes europeus de tratarem como humanos os indígenas e negros escravizados, uma vez que não eram considerados “semelhantes”, e sim “inferiores”. Vejamos algumas dessas “teorias”, que hoje são totalmente rechaça- das e recusadas pelas Ciências Sociais, pois não têm validade científ ica alguma; declaravam-se teorias, mas sempre foram ideologias.

Bases teóricas do racismo – século XIX

Denominação Justificativa

Arianismo Justificava a desigualdade entre os seres humanos e advertia contra o cruzamento das Classifica uma população em “limpos raças. Um de seus teóricos foi o filósofo francês Joseph Gobineau (1816-1882), que de sangue” e “infectos” distinguiu os semitas dos arianos, os quais seriam física, moral e culturalmente superiores. Essa teoria foi apropriada no século XX em defesa da superioridade germânica e induziu as experiências do Terceiro Reich, na Alemanha.

Darwinismo social Inspirados na teoria da seleção natural das espécies, do naturalista britânico Charles Defende a sobrevivência dos mais Darwin (1809-1882), teóricos sociais buscaram aplicar a mesma ideia à sociedade aptos humana, afirmando que só os mais capazes sobreviveriam.

Evolucionismo social Essa teoria pensava a espécie humana como única, com desenvolvimento desigual e Trabalha com o conceito de evolução diferentes formas de organização. Para seus teóricos, a sociedade europeia tinha da humanidade, dividindo os atingido o progresso, ponto máximo da evolução – a “civilização” –, enquanto povos indivíduos em categorias, como “menos evoluídos” eram considerados “primitivos”. Um representante deste selvageria, barbárie e civilização pensamento foi o filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903).

Eugenia Inspirada na proposta do cientista inglês Francis Galton (1822-1911), defendia a Defende a pureza das raças seleção, pelo Estado, de jovens saudáveis e fortes, aptos para procriar seres mais capazes. Acreditando ser possível a “purificação” da raça, essa teoria chegou a propor a esterilização de doentes, criminosos, judeus e ciganos. Essas ideias inspiraram as terríveis experiências pseudocientíficas do Terceiro Reich na Alemanha.

Essas correntes de pensamento desenvolvidas no século XIX tiveram reper- cussão social, com desdobramentos políticos entre as nações, no século XX. Em diversos momentos, a adesão dos brancos a tais ideias dif icultou a acei- tação da diversidade étnica e cultural, ratif icando a ideia de que o outro (não branco) é ameaçador, estranho, estrangeiro, diferente. As descobertas dos horrores provocados durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) – com os campos de concentração e a eliminação de judeus, ciganos e doentes – não foram suf icientes para derrotar o precon- ceito e o racismo. Na Europa, sobretudo nos anos 1980, com o aumento da imigração vinda das ex-colônias, reemergiram nacionalismos de caráter conservador, fundados no racismo, na intolerância e na xenofobia. Quan- hh xenofobia: nome dado ao senti- do a sensação de pertencimento (o sentimento coletivo de pertencer a mento de ódio ou aversão ao que uma nação, a um grupo social, partilhar um sistema de valores, experiên- é estrangeiro. cias, tradições e a mesma língua) se torna exacerbada, muitas formas de violência vêm à tona.

A cultura e suas transformações • 129

Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 129 5/27/13 5:24 PM No Brasil, o período de escravidão também era embasado nestas “teorias”. Na época, diversas fontes supostamente “científ icas” defendiam que os negros eram “naturalmente” mais fortes do que os brancos e, portanto, “forjados” pa- ra o trabalho braçal. As mesmas “teorias” defendiam que eles não seriam hu- manos, mas uma sub-raça, e por este motivo não teriam direitos como os bran- cos. Embora a abolição da escravidão no Brasil tenha acontecido em 1888, políticas racistas continuaram a ser colocadas em prática pelo Estado. Um exemplo de política racista foram os acordos de imigração, feitos com países europeus para trazer imigrantes e “branquear” a população. Com a força de trabalho semiescrava branca dos imigrantes, os proprietários de terra não pre- cisavam pagar salários aos seus ex-escravos, coisa que eles se recusavam a fazer, podendo pagar salários àqueles que eles julgavam dignos disso – seus “seme- lhantes” brancos. Os escravos libertos f icaram à margem da sociedade, e os imigrantes brancos recém-chegados tinham mais direitos sociais que eles, po- dendo inclusive comprar terras quando acumulassem algum dinheiro, coisa que era vetada socialmente aos negros. Ou seja, os proprietários de terra recu- savam-se a vendê-las a negros, priorizando os imigrantes europeus brancos. Essas “teorias” desempenharam o papel de ideologias, que têm, entre suas f inalidades políticas e econômicas, a dominação, o controle e a subor- dinação de indivíduos e grupos sociais.

Ideologia e cultura

Muitas manifestações culturais são expressões da ideologia, um conceito importante e polêmico. Ele expressa um fenômeno que ocorre no plano das ideias e pensamentos sobre a realidade material. A palavra ideologia tem muitos sentidos e foi criada, em 1801, pelo filósofo francês Destutt de Acervo Iconographia/Reminiscências Acervo Tracy (1754-1836), que a empregou como ciência das ideias (fatos da consciência). Ideologia também pode designar uma doutrina, um conjunto de ideias que infl uencia grupos sociais, legitimando formas de ação: doutrinas econômicas, políticas, filosóficas, etc. Em meados do século XIX, Marx e Engels deram ao termo sua concepção política. Presente no dia a dia, a ideologia justifica as posições que assumimos e nos dá sua visão das relações sociais. Ela se manifesta nas representações sociais, em palavras, sentimentos e condutas que se cristalizam nas crenças, nas reli- giões, na filosofia, no direito, na política, etc. Ao instaurar essas crenças, a ideologia sustenta a dominação social, estudada no capítulo 1, porque ela explica o fato de a sociedade ser de um modo e não de outro, valendo-se de justificativas convenientes aos que ocupam postos de mando. Com isso, ela faci- lita a aceitação dessa realidade desigual, legitima de- Cartaz de propaganda ofi cial do governo militar brasileiro, veiculado em 1976. A ideologia nos dá a visão que as classes terminadas posições políticas e justifica práticas so- dominantes querem que tenhamos, para ocultar ou dissimular os ciais que reproduzem as relações de dominação. fatos da realidade.

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 130 5/27/13 5:24 PM Mesmo nos dias de hoje, minorias populacionais no mundo todo enfren- tam a discriminação e os ataques de grupos racistas, oriundos da não aceita- ção da diferença e de uma visão deturpada de superioridade cultural que desrespeita o outro. No Brasil, apesar da linha de pensamento sociológico que, nos anos 1930, cunhou o mito de existir uma “democracia racial” – uma sociedade multirracial e livre de preconceitos –, indígenas e negros ainda são alvos de discriminação social, bem como os nordestinos que mi- graram devido ao contexto econômico desfavorável em seus estados de ori- gem, especialmente na segunda metade do século XX.

A descoberta dos horrores provocados nos campos de concentração, por exemplo, não foi suficiente para derrotar o preconceito e o racismo. Na foto colorizada ao lado, Hitler durante comício em Dortmund, Alemanha, na década de 1930. hulton-Deutsch Collection/Corbis/Latinstock hulton-Deutsch

Transporte de um comboio de negros,

aquarela de Johann Moritz Rugendas que RJ. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Reprodução/Fundação retrata um comboio de escravos durante parada em um rancho no interior do Brasil do século XIX. O viés racista da sociedade brasileira nos períodos colonial e imperial deixou resquícios em formas de discriminação racial vistas na atualidade.

No f inal do século XX, as questões étnico-religiosas e os conflitos cultu- rais ganharam espaço novamente na esfera pública. O antropólogo estadu- nidense Clifford Geertz (1926-2006) observou como algumas identif icações do tipo “sou indiano” ou “sou xiita” se difundiram em várias partes do mun- do. Como cada indivíduo pertencente a um grupo com cultura própria tem sua concepção desse grupo e do sentimento de pertencimento a ele, pode- -se dizer que essa construção mental depende mais de fatores coletivos gru- pais do que somente do indivíduo. Dessa forma, uma pessoa geralmente se identif ica não só por seu nome e sobrenome, mas também por meio de marcadores coletivos/sociais, como nacionalidade (brasileiro), prof issão (socióloga), fenótipo ou aparência física (negro, ruiva), etc. Nossa associa- ção com estes marcadores também acontece pelo contexto em que nos identif icamos. Se estamos num grupo apenas de brasileiros, muito provavel- mente não nos identif icaremos com esse marcador.

A cultura e suas transformações • 131

Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 131 5/27/13 5:24 PM Encontro com ciEntistas sociais

A identidade cultural também tem um propósito político, muitas vezes. No caso dos países que foram colonizados, como o Brasil, a criação de uma identidade cultu- ral nacional teve e tem um papel fundamental para que o Estado se f irme após a in- dependência. Em muitos países da América Latina, a identidade cultural dos povos formou o Estado. No Brasil, num processo “de cima para baixo”, o Estado se instituiu antes que houvesse uma identidade nacional popular. No início do século XX, mui- tos sociólogos, intelectuais e pensadores brasileiros dedicaram-se a investigar a cul- tura brasileira, perguntando-se o que teríamos de específ ico em nossa identidade, o que nos tornaria brasileiros. Também foram feitos esforços em vários governos (co- mo no Estado Novo de Getúlio Vargas) para instaurar símbolos de uma cultura na- cional. Uma das obras clássicas da Antropologia brasileira, O povo brasileiro (1995), de Darcy Ribeiro (1922-1997), investiga a trajetória de nossa identidade cultural nacional. Leia um trecho da conclusão desta obra, abaixo, e depois responda às questões no caderno.

Nós, brasileiros, [...] somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mesti- ço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriun- dos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na ninguen- dade. Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico-nacional, a de bra- sileiros. Um povo, até hoje, em ser, na dura busca de seu destino. [...] É de assinalar que, apesar de feitos pela fusão de matrizes tão diferenciadas, os brasileiros são, hoje, um dos povos mais homogêneos linguística e culturalmente e também um dos mais integrados socialmente da Terra. Falam uma mesma língua, sem dialetos. Não abrigam nenhum contingente reivindicativo de autonomia, nem se apegam a nenhum passado. Estamos abertos é para o futuro.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 410. (Cia. de Bolso)

1. O Brasil é um país culturalmente muito diverso. Você consegue dar exemplos de diversidade cultural entre bairros, cidades, regiões do país? Que costumes são si- milares e diferentes entre esses lugares que você conhece? (Se você nunca tiver saído da sua cidade, pense nas pessoas que já conheceu que vinham de outros locais, ou nas coisas que vê na televisão, no cinema, nos jornais e livros.) 2. Que características identificam você como brasileiro/a? Será que estas caracterís- ticas são comuns a todos os brasileiros e brasileiras? 3. Segundo Darcy Ribeiro, os esforços para construir no Brasil uma identidade cul- tural nacional teriam dado certo? Qual a sua opinião, pensando na realidade brasileira dos dias de hoje?

Diversidade cultural na sociedade brasileira

O Brasil é uma nação pluriétnica e multicultural, composta por diversas formas de organização social em diferentes grupos. Podemos observar essa diversidade e suas variações, por exemplo, entre os proprietários de terras, os dirigentes e os representantes políticos, os moradores das favelas nas

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 132 5/27/13 5:24 PM grandes cidades, a população jovem que cursa o Ensino Médio em escolas públicas. Neste país com indivíduos tão diferentes entre si – pela cor da pe- le, pela classe social a que se integram, pela região onde moram, pela gera- ção a que pertencem, etc. – existem um racismo difuso e uma discriminação velada, porém efetivos. Esses sentimentos perpassam as relações sociais, seja no trabalho, seja na escola, e se expressam na intolerância cotidiana e na não aceitação da diferença, seja ela de cor de pele, de comportamento, de costumes ou de aparência. Desconsiderar a diversidade cultural, muitas vezes, nos impede de perce- ber que a desigualdade social e a discriminação restringem o acesso aos bens materiais e culturais por amplos setores da população. Desencadeadas pelo preconceito e pela concentração de renda (e de poder), novas formas de exclusão social derivam hoje do desemprego, do trabalho precário, das exi- gências da tecnologia informacional, próprias do moderno processo de pro- dução capitalista. Lula Marques/Folha Imagem Lula Marques/Folha

Na foto ao lado, indígenas da Reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, protestam em frente ao Congresso Nacional (Brasília), em 2008, pela demarcação de suas terras.

Devido à desigualdade social marcante no Brasil, surgem diferentes con- cepções e representações da realidade nacional. A cultura, assim como os códigos de conduta e de sobrevivência entre as populações marginalizadas – moradores de rua, de comunidades de baixa renda, desempregados –, expressam modos de vida muito particulares. O caso das comunidades in- dígenas brasileiras é signif icativo para pensarmos na marginalização de certas culturas. Durante muitos séculos, os indígenas não foram respeitados em seus costu- mes e no seu direito ao uso das terras. Os povos indígenas que sobreviveram ao genocídio causado pela colonização foram limitados a espaços onde não con- seguem viver sua cultura de forma plena. A falta de respeito à sua cultura tam- bém faz com que empresas multinacionais e fazendeiros se aproveitem ilegal- mente de suas terras, muitas vezes acabando com a sustentabilidade dos recursos naturais que as tribos utilizariam como forma de subsistência.

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 133 5/27/13 5:24 PM A Constituição brasileira de 1988 garante a demarcação das terras in- dígenas com o objetivo de reverter algumas injustiças e proporcionar

Renato Soares/Pulsar Imagens Soares/Pulsar Renato condições de subsistência para o modo de vida de suas populações, embora o conflito com fazendeiros e representantes do agronegócio seja constante. Ainda que muitos de seus traços culturais estejam presentes em nosso cotidiano e seja signif icati- va a sua contribuição para o desen- volvimento do país, a participação desses povos em nossa história conti- nua pouco valorizada pela maioria das pessoas. Um processo semelhante ocor- reu com os negros escravizados, cuja Índios Kuikuro em festa do chegada ao Brasil se relaciona aos Kuarup na aldeia Afukuri, no processos de escravização e deportação de pessoas da África para a América. Parque Indígena do Xingu, em Na visão do antropólogo Carlos Brandão, esse grupo étnico também foi 2012. “educado” pelos europeus, ou seja, tornado “igual” para melhor servir aos interesses dos grandes proprietários de terra. Aos africanos trazidos e a seus descendentes foram impostas a língua e a religião dos colonizadores para que pudessem entender as ordens recebidas e obedecer. Muitas vezes as culturas do branco, ou seja, dos europeus e seus descen- dentes foram (e são) julgadas superiores às outras, o que resultou no passa- do e no presente em diversas formas de resistência à dominação cultural. Um episódio histórico de 1835, na Bahia, ilustra uma resistência, a dos Malês, escravos africanos de religião muçulmana, dispostos a abolir a domi- nação dos senhores brancos. A revolta foi duramente reprimida pelas for- ças of iciais. A importância dos africanos e seus descendentes para a história do Bra- sil, como alertam diversos estudos culturais, precisa ser reconhecida e valo- rizada. Os registros de sua trajetória, de sua cultura e de seu trabalho – fun- damentais para nossa economia – estão muito aquém da riqueza e da diversidade de sua participação. Visando reparar essa situação e expor o preconceito existente na nossa sociedade, alguns sociólogos se dedicaram ao tema, como foi o caso de Florestan Fernandes, em A integração do negro na sociedade de classes (1964), e de Octavio Ianni, com As metamorfoses do escravo (1962) e Raças e classes sociais no Brasil (1966). Esses estudos mostram que o preconceito e o racismo têm raízes em condições sociais históricas. Os direitos conquistados na legislação por esses grupos não têm sido suf icientes para constituir uma sociedade de justiça e democracia. Basta lembrar que a discriminação é considerada crime desde a Constituição de 1988, mas nem por isso ela deixou de existir. Em seus artigos 215 e 216, por exemplo, a Constituição discorre sobre a possibilidade de regulariza- ção de terras para as comunidades remanescentes de quilombos, reco- nhecendo a propriedade def initiva sobre elas, desde que ocupadas por

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 134 5/27/13 5:24 PM descendentes de escravos. Porém, como no caso das terras indígenas, muitos processos de regularização demoram anos para serem concluídos, devido à pressão de grupos econômicos. Ainda que indivíduos e famílias pertencentes aos grupos denomina- dos minorias estejam conseguindo galgar posições valorizadas social e economicamente pela conquista de um emprego formal ou de melhores condições de vida, superando preconceitos, barreiras econômicas e cultu- rais, os dados estatísticos brasileiros revelam a persistência da desigualda- de social racial. O racismo é uma construção histórica que resiste no campo simbólico, ou seja, nas ideias que as pessoas têm sobre “ser negro” e “ser branco”. Os estudos sobre esse tema sugerem que o combate ao preconceito precisa ser enfrentado pelo Estado por meio da educação e de políticas af irmati- vas, com o objetivo de desenvolver a cidadania plena, isto é, com todos os direitos sociais e políticos assegurados, como veremos no capítulo 7.

a construção de uma identidade nacional está ligada à ideia de pertencimento a um território, a um país ou a um povo. assim, as diferenças culturais estão presentes na formação da sociedade.

Há, no mundo atual, intenso imbricamento cultural entre as realidades locais e a global. O diverso e o diferente se ampliam para além das questões étnico-raciais. As demais culturas estrangeiras, especialmente as europeias e a estadunidense, influenciam na constante transformação da cultura brasi- leira, seja pela presença do imigrante em nossa história, seja pelo desen- volvimento do mercado de consumo – moda, tecnologia, artes, conhecimentos variados – e dos meios de comunicação de massa. Alex Almeida/Folhapress Acima, descendentes de japoneses no monumento em homenagem ao Centenário da Imigração Japonesa, concebido pela artista plástica Tomie Ohtake e instalado no Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP). Foto de 2008.

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 135 5/27/13 5:24 PM dEbatE

A cultura brasileira deve tributo aos primeiros habitantes das nossas terras e, no entanto, até hoje há dif iculdades para garantir aos povos indígenas os direitos que lhes foram assegurados pela Constituição brasileira de 1988. A matéria jornalística abaixo é um convite a essa reflexão. Depois da leitura, em equipe, discutam a ques- tão colocada. [...] na Amazônia, a Funai resgatou em agosto [de 2007] dois índios isolados no meio de uma área tomada pela extração ilegal de madeira, na região mais violenta do Brasil [Colniza, em Mato Grosso]. Falantes da língua tupi kawahib, chamados de piripkuras, são os últimos sobreviventes de massacres perpetra- dos ao longo dos últimos 20 anos. Nunca haviam feito contato tão próximo com sertanistas da fundação [Funai]. Viviam escondidos, à espreita do movimento de madeireiros [...]. Ao contrário do resto de seu povo, os índios, que atendem pe- los nomes de Tucan, com cerca de 50 anos, e Mande-I, com mais ou menos 35, conseguiram desenvolver estratégias de sobrevivência extremamente sofistica- das para uma vida sem contato em uma floresta.

MILANEZ, Felipe; ALCâNTARA, Araquém. Contato na selva. Especial de CartaCapital, 31 out. 2007. p. 10.

• Por meio desse texto f ica claro que, muito além do direito de expressão da pró- pria cultura, os indígenas estão sendo privados de outros direitos básicos, previs- tos por nossa Constituição. Pensando sobre isso, discorra em algumas linhas sobre a integração dos povos indígenas na construção do Brasil.

Palê Zuppani/Pulsar Imagens hh As dinâmicas culturais Ao observarmos nosso país, podemos nos perguntar: de onde vêm nosso modo de vida, nossos hábitos, os objetos do dia a dia? Por que o Brasil se apresenta tão diverso regionalmente? A ocupação das terras pelos colonizadores, o uso de mão de obra africana e indígena e a vinda de imigrantes a partir do século XIX trouxeram contri- buições que f izeram a diversidade cultural do país. Com os imigrantes euro- peus e asiáticos, entre outros, vieram costumes, tradições, manifestações artís- ticas, culinárias, crenças e ritos religiosos de suas culturas de origem, além de conhecimentos próprios de suas ocupações prof issionais, como agricultores, marceneiros, ourives, comerciantes, artesãos, artistas, construtores, operários que eram. Muitos desses imigrantes também contribuíram com a própria or- ganização dos trabalhadores e de seus movimentos associativos, quando o Bra- sil, antes um país de base econômica predominantemente rural, transitava para uma economia urbano-industrial.

o convívio de povos tão diferentes em regiões diversas é responsável pela variedade de características culturais no cenário nacional. Acima, em Juazeiro, na Bahia, vaqueiro vestindo roupa As migrações internas propiciaram não apenas crescimento econômico tradicional: o gibão. Foto de como trocas e o aprendizado intercultural. Esses fluxos de população ocor- 2008. Os diferentes trajes reram em diversos momentos e por razões distintas, como evasão das regiões usados, conforme as regiões do país, revelam traços culturais semiáridas devido às secas, modernização da agricultura, criação e transporte específicos de determinados de gado, expansão da fronteira agrícola, exploração dos recursos minerais, grupos sociais. entre outras atividades.

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 136 5/27/13 5:24 PM As migrações, porém, não ocorreram sem conflitos. Muitas foram as dis- putas e as dif iculdades por que passaram os migrantes: enfrentamentos com o poder local, a luta pela terra, a procura por trabalho, os problemas de adap- tação às regiões receptoras, a exploração do trabalho. Os nordestinos que fo- ram para São Paulo e para os estados da Amazônia; os gaúchos e catarinenses instalados no sudoeste do Paraná; os sulistas nos estados de Rondônia e Mato Grosso; os paulistas e mineiros no norte do Paraná e no Rio de Janeiro; são exemplos que reconf iguram a diversidade dos costumes e das tradições. Essa dinâmica cultural é resultado do movimento da sociedade e nela interfere. Ela leva a culinária, os valores, as tradições artísticas, os modos de vida típicos de uma região para outra. Por exemplo, o pão de queijo, o chur- rasco, a tapioca, a polenta, a pizza, o vatapá, a feijoada, o quibe e outros qui- tutes são elementos portadores de identidade cultural. O mesmo intercâmbio cultural ocorre com manifes- tações como o bumba meu boi, a Festa do Divino, o fan- dango, entre outras, quando levadas de seus locais de origem para outras regiões. Quando se pensa em cultura, é preciso considerar as influências mútuas e de como Carrilho/Folhapress Pedro elas coexistem e subsistem. A cultura e sua relação com as classes sociais é um te- ma recorrente nas Ciências Sociais, gerando muitos e ca- lorosos debates, como estudado no capítulo 1. Para a psi- cóloga brasileira Ecléa Bosi, a cultura formada por expressões típicas e espontâneas vindas do povo articula uma concepção do mundo que é diferente das visões da elite, a chamada cultura erudita. A f ilósofa Marilena Chaui (1941-) pondera que, quando determinada prática cultural é def inida como “popular”, ela assimila as divi- sões da sociedade em classes e tende a ocultar as ideias dominantes. Não é possível def inir manifestações culturais de mo- do fragmentado, pois os diversos grupos coexistem e ex- pressam sua visão de mundo e representações sociais com base também nas relações estabelecidas com os demais. A crítica social da literatura de cordel no Nordeste brasileiro é um exemplo disso. Outro exemplo se refere à capoeira, criada pelos africanos escravizados no Brasil colonial. Co- mo uma dança/luta, ela está diretamente relacionada à Literatura de cordel no Mercado de Artesanato Paraibano, oposição estabelecida entre escravos e seus senhores. em João Pessoa (PB). Foto de 2008.

Mudanças culturais na sociedade global

Como produtores e consumidores de cultura, os grupos socioculturais se diferenciam e podem reproduzir simbolicamente as relações de poder vigen- tes, e até contestar determinadas formas culturais no interior de sua comuni- dade e da sociedade. De que modo distinguimos uma comunidade de uma sociedade, ainda mais quando as relações entre as realidades locais e a global tendem a ser mais intensas e interinfluentes?

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 137 5/27/13 5:24 PM Comunidade e sociedade

O sociólogo alemão Ferdinand Tönnies foi o pri- Por ser um representante da Sociologia clássica, meiro a empregar o termo comunidade, contrapon- Tönnies conceitua sociedade contrapondo-a ao con- do-o ao conceito de sociedade, dentro da tradição ceito de comunidade. Assim, ele classifica sociedade sociológica de classificar os fenômenos sociais. como um fenômeno em que há relações contratuais, Segundo Tönnies, comunidade refere-se a uma regidas por interesses econômicos, culturais, políticos, coletividade na qual é alto o grau de coesão com base tomando por modelo a sociedade industrial, da qual em valores, interesses, normas e costumes partilhados as fábricas, as organizações e o Estado moderno são as pelos indivíduos e grupos que a integram. Em termos principais expressões. físico-territoriais, comunidade corresponde a um A análise de Tönnies exclui, porém, outros mode- agrupamento cujos laços de vizinhança, consanguini- los de sociedade, sendo, portanto, eurocêntrica. Ela dade e/ou étnicos criam condições de afinidades en- nos serve aqui para compreender o contexto em que tre os membros. vivemos hoje, e não para generalizações.

O desenvolvimento da sociedade moderna mostrou que as relações so- ciais tendem a mesclar o que é comum (partilhado em pequenos grupos) com o que se apresenta na extensão da sociedade. Comunidade também pode se referir, genérica e idealmente, a um modelo de vida coletiva, não necessariamente delimitado no espaço geográf ico (caso das comunidades que não estão próximas, mas se apoiam), que apresentam interesses comuns e ligações afetivas. O processo de globalização, visto no capítulo 1, no que se refere às diver- sas culturas, apresenta uma ambivalência: por um lado, pode representar algum risco para as identidades culturais de variados grupos sociais locais quando em contato ou sob o domínio de uma outra cultura (certa tendên- cia de homogeneização); por outro, a diversidade tende a se reaf irmar tam- bém, seja pela via de resistência, seja pelo uso de suas tecnologias (como a internet) para a difusão de suas manifestações. De fato, com a globalização emergiu o debate sobre “cultura global”. Alguns autores consideram que a globalização levaria à homogeneização cultural. No entanto, as relações em sociedade são mais complexas. Não podemos af irmar que há uma cultura global de modo def initivo nem que a globalização padronizou os povos culturalmente, já que estes se apropriam da “cultura global” de várias formas. Na contramão das mudanças acarretadas pela globalização, alguns gru- pos sociais tendem a criar resistências à homogeneização da cultura. A ques- tão da identidade desponta como um elemento-chave nesse processo de af irmação. As minorias sociais alimentam a ideia de identidade para buscar reconhecimento e inserção social quando grandes transformações as atin- gem e menosprezam seus modos de vida ou suas “comunidades”. As minorias sociais não são def inidas pela questão numérica, mas pelas dif iculdades impostas a esses grupos no acesso às instâncias de poder e pela situação discriminatória e excludente em que se encontram. Por exemplo, o número de indivíduos que se consideram negros e pardos no Brasil, se- gundo o IBGE, corresponde proporcionalmente à população que se diz branca. Entretanto, se comparados aos brancos, apresentam reduzida pre-

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 138 5/27/13 5:24 PM sença em funções socialmente mais valorizadas e com melhores salários. Co- locadas em situações como essas, sobretudo por fatores históricos, tais mino- rias enfrentam dif iculdades em manter ou melhorar sua condição socioeconômica e em expressar suas tradições culturais. Muitas manifestações culturais alternativas são consideradas contra- -hegemônicas, por serem reações à cultura dominante e à sua visão do mundo. Hegemonia cultural é o conceito utilizado pelo cientista político italiano Antonio Gramsci para designar a dominação de uma classe social sobre outra fundada na ideologia e, portanto, no convencimento (e não na coerção).

Resistência e culturas alternativas

Muitas vezes, grupos considerados minorias sociais contestador, que procura mostrar a cidade em seus propõem culturas alternativas ou formas diferenciadas diversos aspectos. Os jovens que o integram consi- de expressão, criando processos de resistência e afirma- deram-no uma filosofia de vida que difunde a “voz da ção. Alguns exemplos desse tipo de manifestação são o periferia”. Mediante suas narrativas, propõem a revi- movimento hip-hop e o funk, entre outros. talização do espaço urbano com práticas que propi- O funk carioca surgiu na década de 1970 com os ciam a criação de grupos artísticos e políticos. O hip- denominados bailes “da pesada”, festas populares com -hop tem várias manifestações em artes distintas, potentes equipamentos de som. Seu impacto decorre como o grafite, o rap ou a dança break, embora não do fato de reunirem milhares de jovens para encon- tros musicais e dançantes. Os grupos de “funkeiros”, se limite a elas. antes concentrados no Rio de Janeiro, difundiram-se Ao contestarem as organizações dominantes e os para outras regiões do país. mecanismos de dominação cultural, esses movimen- Hip-hop é um movimento social com traços de tos constroem identidades coletivas baseadas em rei- cultura de rua, definição que enfatiza seu caráter vindicações, aspirações e desejos comuns. thiago Domingos/Futura Press thiago Domingos/Futura Christophe Simon/Agência France-Presse

DJ toca em baile funk da comunidade Rocinha, na capital do Rio Apresentação de hip-hop em galeria no centro de São Paulo (SP), de Janeiro, em março de 2012. em 2009.

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 139 5/27/13 5:24 PM Indústria cultural e práticas sociais

Nos dias de hoje, as culturas são influenciadas tanto pelos costumes locais como por comportamentos que, em certa medida, tendem a uniformizar as expressões culturais pelo mundo. Contudo, apesar de sofrerem modif icações, as diferentes culturas locais não desaparecem. A cultura é um processo social refeito e renovado continuamente. Analisemos como isso ocorre. hh hábitos culturais: são manifesta- Os hábitos culturais são influenciados por modismos, imposições e estí- ções e costumes que dão significado às mulos ao consumo, que é um comportamento social ligado ao estilo de vida práticas sociais de grupos da popula- na sociedade contemporânea e envolve aquisição, troca ou obtenção de ser- ção. Uma parte desses hábitos se for- viços e bens materiais ou simbólicos, supondo seu uso, gozo e fruição. ma pela maneira como os indivíduos O consumo na atualidade é proporcionado por um sistema flexível de utilizam seu tempo, no modo de con- viver e agregar prazer àquilo que fa- produção e de ampla circulação de mercadorias e tem provocado mudanças zem e nas relações que estabelecem. nos hábitos culturais e nos espaços de comercialização. Desse modo, nos free shops, shopping centers, parques temáticos, nas redes de hipermercados, cida- des turísticas, no mercado virtual on-line, o consumo ocorre sem fronteiras para a origem das mercadorias e o tempo de funcionamento é liberado ao ritmo da acumulação capitalista. Certos gostos e hábitos são associados pela publicidade a determinadas faixas etárias; outros, aos mundos “masculino” ou “feminino”; alguns se constituem como preferências prof issionais; há ainda a diferenciação decor- rente da renda e das classes sociais. Isso mostra que o consumo é diferencia- do e os produtos e serviços são destinados a públicos determinados, segundo o que a cultura hegemonicamente atribui a cada grupo social. Segundo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, em nossos tempos a posição econômica não necessariamente garante a distinção social. Sendo assim, muitas vezes recorremos ao gosto, associado à classe socioeconômica, como forma de nos distinguirmos de uns e nos identif icarmos com outros grupos. A formação de hábitos e práticas culturais não é igual para todos os seg- mentos sociais, sendo diferenciada culturalmente (e não biologicamente) por fatores como idade, etnia, sexo, ocupação prof issional, pertencimento a as- sociações, organizações, agrupamentos def inidos e outros. A variedade de perf is pode ser observada quando nos referimos, por exemplo, ao segmento social de “jovens estudantes da escola pública brasileira”. Os hábitos culturais recebem influência dos meios de comunicação de massa em sua formação e transformação, devido à sua possibilidade de co- municação com milhões de pessoas para informar, entreter e educar. A tele- visão, o rádio, o jornal impresso, o cinema, etc. são considerados veículos de ampla difusão porque atingem a massa, ou seja, uma quantidade indetermi- nada de indivíduos que, de maneira anônima e difusa no espaço-tempo, congrega-se numa mesma atividade e/ou interesse. Quando se refere à pro- dução industrial e/ou ao consumo, o termo faz referência a algo que busca atingir a maioria da população. Esse potencial quantitativo também está nas expressões “massa revolucionária” ou “democracia de massas”. Normalmente, no Brasil, os conteúdos veiculados pelos meios de comu- nicação de massa são def inidos pelas emissoras, privadas ou estatais, e repro- duzem a ideologia e os interesses dos grupos que os administram. O rádio, hoje em dia, é um meio que se conjuga a outras atividades, como ao trajeto de automóvel entre a residência e o trabalho, e é muito ouvido por aqueles

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 140 5/27/13 5:24 PM que exercem atividades solitárias e isoladas. A televisão, por sua vez, é cons- tante em moradias, lanchonetes e até nas salas de espera de consultórios médicos, funcionando também como mediadora de transações comerciais de objetos e serviços. Já o cinema, um hábito cultural ainda restrito a alguns segmentos sociais, tem se popularizado por meio dos aparelhos de DVD, das locadoras de f ilmes e de sua exibição em canais de TV. Zanone Fraissat/Folha Imagem Zanone Fraissat/Folha

Os hábitos culturais são influenciados pelos meios de comunicação de massa. Ao lado, consumidores em loja de eletrodomésticos aproveitam para assistir à televisão. Foto de 2009. Esses meios de comunicação e outros mais são representativos da indústria cultural, um termo empregado pela primeira vez, em 1947, pelos sociólogos alemães Max Horkheimer e Theodor Adorno, para dizer que a produção ar- tística e cultural veiculada pelos meios de comunicação de massa insufla o consumo por ser transformada em mercadoria. Os produtos culturais – publi- cações impressas, DVDs e f ilmes, obras de arte, composições musicais, etc. – se assemelham assim, de certa forma, aos produtos industriais. A sociedade contemporânea institui uma cultura do lazer padronizada pelos meios de comunicação de massa. Essa aproximação da cultura com o produto industrial estimula o público a esperar por próximos lançamentos – de músicas, f ilmes, equipamentos de som e imagem – que se tornam bens rapidamente obsoletos. Logo, a cultura tem, na atualidade, sua face mais visível na forma de bens e serviços e, muitas vezes, nem percebemos sua di- mensão de uma produção acumulada, transmitida, herdada socialmente, como nos alerta o texto do crítico literário Alfredo Bosi (1936-):

[...] ficamos irritados quando falta luz. Aí telefonamos para reclamar que está faltando luz. Parece que é um dever que os outros nos forneçam esse milagre. São realmente poucos os que podem entender todo o mecanismo que vem desde as águas da represa até os fios da nossa casa e produz para nós o fenômeno da luz. Digo que todos esses exemplos ilustram a ideia de que ter cultura é possuir uma alta soma de objetos da civilização. É uma ideia (ou uma atitude) que nos barbariza; no fundo, somos bárbaros no sentido de que usamos os bens, mas não consegui- mos pensá-los. No entanto, cultura é vida pensada. [...] Em vez de tratar a cultura como uma soma de coisas desfrutáveis, coisas de consumo, deveríamos pensar a cultura como o fruto de um trabalho. Deslocar a ideia de mercadoria a ser exibida para a ideia de trabalho a ser empreendido. Acho que é essa a ideia-chave, o projeto que eu diria recuperador.

BOSI, Alfredo. Cultura como tradição. In: Cultura brasileira: tradição/contradição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Funarte, 1987. p. 38.

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 141 5/27/13 5:24 PM O pensamento expresso por Bosi nos mostra que a cultura é fruto do empenho acumulado de diversas gerações e de vários grupos sociais que dela participam de diferentes formas – produzem, compartilham e reproduzem cultura, em seus aspectos materiais e imateriais. O autor nos diz mais: ele nos convida a pensar a cultura como trabalho de muitas gerações.

A cultura que se mundializa

A produção de bens de consumo se tornou flexível, como estudamos no capítulo 4, quando foram introduzidos, na década de 1970, processos de automação e inovações na organização do trabalho, responsáveis pela redu- ção do tempo de produção e do tempo de consumo. Essas transformações levam à mundialização da cultura, analisada pelo sociólogo brasileiro Rena- to Ortiz (1947-) como um acontecimento histórico, no qual as formações nacionais rompem com as realidades locais e as tradições regionais. Nesse processo chamado de desenraizamento cultural, algumas referências socio- culturais são retiradas dos indivíduos. A cultura que ganha ares de fenômeno mundializado desestabiliza a tra- dição, destituindo-a de seu papel legitimador das práticas e concepções de mundo tradicionais. A cultura se torna flexível. Para designar esse grande processo sociocultural que não é homogêneo nem se explica territorialmente, mas impõe uma nova lógica de tempo e espaço, o sociólogo brasileiro Octavio Ianni emprega a expressão “moderni- dade-mundo”, que é a sociedade global, o world system, onde as relações dos universos micro e macrossocial, entre as dimensões local e global, são inten- sas, mútuas e extensivas.

Na transição do século XX para o XXI, uma cultura mundializada, sob efeito das comunicações e da informatização, atravessa as fronteiras nacionais. o consumo passa a ser seu traço dominante. Karina tengan/Acervo da fotógrafa tengan/Acervo Karina

Consumidores fazem compras de Natal em shopping de Belo Horizonte, Minas Gerais. Foto de 2011.

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 142 5/27/13 5:24 PM Determinadas práticas culturais – como o esporte, a moda, os estilos de penteados, as compras, os jogos, os rituais sociais – nivelam a cultura dos setores sociais, sobrepondo hierarquias sociais e extrapolando as fronteiras físicas e sociais, avalia o crítico literário inglês Steven Connor (1955-). Isso signif ica que as esferas do cultural, do social e do econômico deixam de ser distinguíveis umas das outras. O rock é um exemplo de fenômeno de influên- cia global que unif ica gostos, mas se combina com uma pluralidade de esti- los, de mídias e de identidades étnicas espalhadas pelo mundo. Album/Latinstock

Centenas de fãs assistem a show de Elvis Presley, em 1957.

A nova conf iguração da cultura transnacionalizada, por ultrapassar fron- teiras, aproxima grupos distantes geograf icamente, mas também aprofunda distâncias sociais pela desigualdade no acesso a bens materiais e simbólicos. São múltiplos os processos socioculturais que atravessam territórios e ocea- nos, mesclando culturas. Assim, modos de ser, agir, sentir, pensar e imaginar já não se encontram distantes, provocando um “etnocentrismo às avessas”, segundo o sociólogo Renato Ortiz. Chamamos contradições sociais às diver- gências e contraposições existentes nas relações sociais dentro da sociedade capitalista. O processo de transculturação – pelo qual as diferentes culturas transitam entre as nações – tem criado novas conf igurações com elementos de várias culturas, mantendo aspectos locais, tribais, regionais e nacionais, ou seja, pro- voca a ocidentalização, a orientalização, a africanização, a indigenização. Co- mo exemplo, basta observar as pulseiras de adorno que usamos, o nosso corte de cabelo, a linguagem com que nos comunicamos usualmente. Essas mani- festações fazem surgir expressões sociais sincréticas, mistas, que vão acentuan- do traços culturais ao mesmo tempo que reinterpretam a realidade social a que se referem. Nossa sociedade sofre as consequências de um modo de vida em que persiste um desenvolvimento desigual, em que tudo é comercializado, em que a técnica domina as energias naturais, submetendo o ser humano à ló- gica determinista das máquinas no trabalho, nas famílias, nos bancos, nos edifícios, na infraestrutura da vida urbana.

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 143 5/27/13 5:24 PM tiago Queiroz/Agência Estado

Ao lado, moradores da aldeia Kaxinawá em Santa Rosa do Purus, no Acre, fronteira com o Peru, em campanha social para registrar os cidadãos acrianos. Foto de 2009. As sociedades são afetadas por culturas próximas às suas, como o que acontece em regiões de fronteira, mas também são influenciadas internacionalmente em razão do acesso digital e da comunicação, que torna próximo o que antes era distante.

São muitas as ambivalências da trajetória histórica da ciência, da técnica, da economia, da urbanização, da tecnologia, da burocracia e, mesmo, de uma individualização generalizada.

Em termos culturais, a sociedade moderna tende a ser individualizadora, af irma o sociólogo alemão Ulrich Beck (1944-). Ele concebe a individualiza- ção provocada pelo processo de modernização contínua e inacabada da nossa sociedade, na qual indivíduos e grupos são chamados a participar, mas não há redes de segurança socialmente construídas. Assim, o individualismo cresce à medida que as relações sociais são renegociadas cotidianamente e os indivídu- os vendem sua força de trabalho cada qual separadamente. Valorizadas excessivamente, a razão e a autonomia individual são fontes do comportamento individualista, que se fecha a iniciativas da coletividade. Pode-se dizer que a mercantilização da vida tem sufocado manifestações so- lidárias. Mas essa solidariedade de resistência em moldes mais coletivos não é o mesmo fenômeno tratado pela Sociologia.

Solidariedade social

Originalmente, o conceito de solidariedade foi ria pela diferenciação e interdependência entre in- pensado pelo sociólogo francês Émile Durkheim co- divíduos e grupos. mo laços de coesão social, conforme o tipo de so- Organizados institucionalmente, indivíduos e gru- ciedade, que visam à sua integração. Assim, nas so- pos cumpririam diferentes funções ou necessidades ciedades ditas simples, nas quais os indivíduos e sociais, mantendo a vida social estável e em harmonia. grupos são mais semelhantes e intercambiáveis, Devido à maior densidade das relações nas sociedades prevaleceria a solidariedade mecânica, enquanto complexas, surgiram outros sentidos para solidarieda- na sociedade industrial moderna, com a divisão do de, entre eles, o sentimento de comunhão de interes- trabalho social, a solidariedade orgânica responde- ses, por instalar a reciprocidade nas relações sociais.

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Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 144 5/27/13 5:25 PM Diante disso, o f ilósofo Edgar Morin propõe a adoção de uma “política de civilização”. O que vem a ser essa política? Uma política de civilização propõe tomar consciência das ameaças à vida física e psíquica do ser humano em sociedade, vencer o pensamento compar- timentado, individualista, construir resistências e deter o ritmo desenfreado do progresso a qualquer custo, a necessidade da modernização contínua. Morin convida-nos a utilizar os aspectos positivos das ciências, das técnicas, do Estado em prol de avançar em solidarie- dade e ética. André Goldman e Marina Cavalcante/Ad2m Comunicação

Cortejo de encerramento da Mostra Artística da Teia Brasil 2010 – Tambores Digitais, em Fortaleza, capital do Ceará. Eventos como esse valorizam a diversidade e a solidariedade nas manifestações culturais.

diálogos intErdisciplinarEs

Considerando o exposto neste capítulo, formem equipes e escolham uma das se- guintes pesquisas aqui propostas, sobre diversidade cultural e etnocentrismo. Para enriquecer sua pesquisa e ampliar seus conhecimentos sobre a nossa e outras cultu- ras, vocês devem pesquisar na internet e consultar os livros de Sociologia, História e Geograf ia (peçam orientação aos professores dessas disciplinas, sobre os sites a se- rem consultados e outras dúvidas e, se possível, reúnam algumas ilustrações).

pEsquisa 1

O Brasil é conhecido por abrigar grande diversidade cultural, devido ao seu proces- so de colonização, aos movimentos migratórios, internos e externos, ao tamanho de seu território e às diferenças regionais, entre outros fatores. Pesquisem e elaborem uma síntese sobre os costumes, as tradições, as influências e contribuições das etnias que povoaram o Brasil, especif icamente a sua região (cidade ou estado), procuran- do identif icar traços dessas culturas e o contexto histórico e geográf ico em que se inserem.

pEsquisa 2

No passado e na atualidade, registram-se alguns conflitos sociais (interculturais), de caráter etnocêntrico, que envolvem questões étnicas e/ou religiosas. Para conhecer mais, escolham um destes fenômenos/eventos históricos e pesquisem sobre: o tipo de conflito, denominação e grupos envolvidos; o contexto histórico e geográf ico em que se insere; sua origem e principais motivações; implicações sociais e econômicas.

A cultura e suas transformações • 145

Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 145 5/27/13 5:25 PM rEvisar E sistEmatizar

1. Estabeleça as diferenças entre cultura e civilização. 2. Destaque as bases das ideologias racistas e explique suas distinções. 3. Que processos levam à formação de uma identidade cultural? 4. Em que consiste o etnocentrismo? Arquivo da editora Filipe Rocha/ 5. Quais concepções sobre cultura aprofundam as desigualdades sociais? Justif ique. 6. O que você entende por diversidade cultural? Cite alguns exemplos deste fenômeno e como ele se apresenta no Brasil. 7. Estabeleça uma relação entre hábitos culturais, meios de comunicação de massa e indústria cultural.

conceitos-chave: Cultura, civilização, identidade cultural, diversidade cultural, ideologia, visão de mundo, representações sociais, comunidade, sociedade, minorias sociais, etnocentrismo, indústria cultural, massa, consumo, desenraizamento cultural, distinção social, solidariedade.

dEscubra mais

As Ciências Sociais na biblioteca ORWELL, George. Dias na Birmânia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Um madeireiro inglês reflete sobre demonstrações de racismo na ex-colônia britânica.

SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 1984. O autor analisa de modo abrangente o conceito e as visões de cultura.

As Ciências Sociais no cinema Matrix, 1999, Estados Unidos, direção de Andy e Larry Wachowski. Um hacker descobre que máquinas dotadas de inteligência artificial dominam a humanidade.

Quilombo, 1984, Brasil, direção de Cacá Diegues. Escravos fugidos das plantações canavieiras do Nordeste, no século XVII, organizam uma república livre, o Quilombo dos Palmares, que sobreviveu por mais de 70 anos.

Serras da desordem, 2008, Brasil, direção de Andrea Tonacci. Índio Carapiru, expulso de sua aldeia natal, no Maranhão, segue um périplo de perda de identidade.

As Ciências Sociais na rede Cultura Afro-Brasileira. Disponível em: . Acesso em: 23 nov. 2012. Site com informações diversas sobre a cultura, arte, religião e história afro-brasileira.

Memorial do Imigrante. Disponível em: . Acesso em: 23 nov. 2012. Site com várias informações sobre os imigrantes vindos para nosso país.

Povos Indígenas no Brasil. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt> Acesso em: 11 dez. 2012. Site aborda questões atuais das culturas indígenas Bororo, Kayapó, Xingu, Yanomami, Guarani, Kaiowá e outras.

146 • capítulo 5

Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 146 5/27/13 5:25 PM bibliografia ADORNO, Theodor; HORKHEIMER. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. AKTOUF, Omar. O simbolismo e a cultura de empresa: dos abusos conceituais às lições empíricas. In: TÔRRES, Ofélia (Org.). O indivíduo na organização: dimensões esquecidas. São Paulo: Atlas, 1994, p. 39-80. ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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A cultura e suas transformações • 147

Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 147 5/27/13 5:25 PM MALINOWSKI, Bronislaw. Uma teoria científica da cultura. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1975. MARTINEZ, Paulo. Heróis vencidos. São Paulo: Contexto, 1996. MILANEZ, Felipe; ALCÂNTARA, Milanez. Contato na selva. Especial de CartaCapital, 31 out. 2007. p. 10-15. MINAYO, Maria Cecília. O conceito de representações sociais dentro da sociologia clássica. In: GUARES- CHI, Pedrinho; JOVCHLOVITCH, Sandra (Org.). Textos em representações sociais. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 89-112. MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1994. _. A política de civilização. In: NAÏR, Sami; MORIN, Edgar. Uma política de civilização. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p. 133-170. ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. Companhia das Letras, 2007. p. 410 (Cia. de Bolso). SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 1984. SANTOS, Laymert. Considerações sobre a realidade virtual. In: FERREIRA, Leila (Org.). A Sociologia no horizonte do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2002. p. 113-121. SIMÕES, Julio Assis; GIUMBELLI, Emerson. Cultura e alteridade. In: MORAES, Amaury César (Coord.). Sociologia: ensino médio. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010. (Coleção Explorando o Ensino; v. 15). Disponível em: . Acesso em: 9 dez. 2012. VALADE, Bernard. Cultura. In: BOUDON, Raymond. (Org.). Tratado de Sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 489-518. ZUGUEIB NETO, Jamil (Org.). Identidades e crises sociais na contemporaneidade. Curitiba: Ed. da UFPR, 2005. Filipe Rocha/Arquivo da editora Filipe Rocha/Arquivo

148 • capítulo 5

Sociologia_vu_PNLD15_119a148_C05.indd 148 5/27/13 5:25 PM Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 149 Ciências Sociais, estáentre osobjetivos deste dadiscussão capítulo. noticiados cotidianamente como deorigemreligiosa. Compreender areal natureza detaisconflitos, soba óptica das mentalismo religioso eaglobalização, além de analisar a natureza de alguns conflitos em diferentes do mundo, partes religiosidade contemporânea, nomundoeBrasil. Indagaremos tambémseexiste algumarelação entre ofunda- comomas nãoadescaracteriza fenômenosocial. Debateremos docrescimento osignificado dasreligiões eosentido da a religião, quetambéméumainstituiçãosocial. Veremos queamodernidadetraz alterações para opapeldareligião, EstudarEmos nEstEcapítulo:

Salmo Dansa/Arquivo da editora Sociedade ereligião Capítulo 6 149 5/28/13 8:42 AM A religião como instituição social

DIA NACIONAL DE COMBATE À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA Com apoio da Fundação Cultural Palmares, Comissão de Combate à Intolerância Religiosa lança livro e DVD sobre o tema

Cerca de 300 participantes – religiosos das mais diversas vertentes, além de autoridades governamentais – prestigiaram o lançamento do livro e do DVD Ca- minhando a gente se entende, realizado na última segunda-feira, 23/1 [de 2012], no auditório Gilberto Freyre, no Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro. [...] O lançamento do livro integrou as comemorações pelo 21 de janeiro – Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. [...] O babalaô Ivanir dos Santos, interlocutor da CCIR e mediador da solenidade, anunciou que, com esse evento, o objetivo da Comissão era “compartilhar mo- mentos de refl exão sobre o sentido da liberdade religiosa”.

Disponível em: . Acesso em: 7 nov. 2012. Filipe Rocha/Arquivo da editora Filipe Rocha/Arquivo

Em dezembro de 2007 foi of icializada, no Brasil, a Lei n. 11 635, que criou o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A comemoração na data de 21 de janeiro lembra o enfrentamento do preconceito e as for- mas de estimular a sociedade a valorizar a diversidade religiosa. Você imagi- na qual foi a razão que levou à criação dessa data? Pensando na realidade mundial, considera necessário esse tipo de ação? Você deve se lembrar de estudos nas aulas de História em que o papel determinante da religião, em diferentes períodos, era destacado tanto na vida íntima das pessoas quanto nas relações políticas e econômicas da socie- dade. Será que isso mudou? É possível que o avanço da Ciência e seus des- dobramentos na vida social tragam consigo o declínio da religião? Em sua opinião, as pessoas hoje estão mais ou menos descrentes em uma esfera di- vina? Podemos atribuir à religião a responsabilidade por alguns dos grandes confl itos ocorridos na atualidade? Existe alguma relação entre globalização e fundamentalismos? Como as Ciências Sociais analisam o papel da religião nas relações sociais contemporâneas? Essas são algumas das indagações ana- lisadas neste capítulo. As Ciências Sociais desmitif icam ideias, concepções e preconceitos acerca das relações sociais e dos acontecimentos políticos, culturais, econômicos e religiosos. Por meio do processo de desnaturalização, ela demonstra que fe- nômenos aparentemente naturais têm caráter social e histórico, isto é, são produtos de relações sociais contextualizadas no tempo e no espaço. Seguin- do tal linha de pensamento, vamos analisar a religião como instituição social. Valendo-se das teorias para explicar a dimensão social (como vimos no capítulo 2), a Sociologia procura compreender quais elementos da realidade empírica e histórica e quais do pensamento lógico justif icam (“tornam natu- ral”) um modo de ser de uma sociedade, de um grupo e mesmo de uma classe

150 • CAPítulo 6

Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 150 5/28/13 8:42 AM social. De um lado, a religião é um fenômeno vivido muitas vezes sem questio- namentos, de forma aparentemente espontânea, pelos indivíduos e grupos sociais em sua rotina; de outro lado, a religião é passível de explicação cien- tíf ica como um acontecimento presente em muitas sociedades; nesse caso, é um fenômeno social. O trabalho da Sociologia é “desnaturalizar” os fenôme- nos sociais, problematizando-os e mostrando sua origem, seus elementos constitutivos e suas relações com outros fenômenos. Émile Durkheim diria que a religião é um fato social por ser observável e assimilada pelos indivíduos e grupos, existindo na extensão de uma determinada sociedade. O termo religião vem do latim religare e signif ica ‘algo que liga o ser hu- mano ao sagrado’. Para o antropólogo Clifford Geertz, a religião é uma das dimensões da cultura, consistindo em um sistema de símbolos que propi- ciam intensas motivações aos indivíduos. Sua existência social tem por base a vontade de crer das pessoas e a construção de uma manifestação coletiva vinda dessa crença. A religião é considerada uma instituição social por ser constante ao lon- go da nossa história e exercer um padrão de controle na sociedade e uma programação da conduta individual. Dessa forma, ela apresenta característi- cas próprias das instituições sociais: é socialmente coercitiva, é exterior aos indivíduos, possui objetividade e historicidade, detém autoridade moral.

A religião é um dos principais objetos de estudo das Ciências Sociais. Para a Sociologia, ela é um fenômeno social, ainda que trate de algo não palpável ou visível: a ligação do indivíduo com o sagrado.

O surgimento das religiões relaciona-se à vontade humana de explicar questões como a origem do Universo, o mistério da vida e da morte, a rela- ção entre indivíduo e natureza, a possibilidade de transcendência, a consti- tuição da matéria e do espírito, as dimensões do natural e do sobrenatural. De acordo com o sociólogo francês Jean Baechler (1937-), o fenômeno religioso é um impulso que impele o indivíduo a superar sua condição hu- mana para se abrir a algo que o supera e ao mesmo tempo o engloba, seja esse “algo” imanente, ou seja, manifesto concretamente, seja transcendente, além da experiência concreta. Revelam-se, então, as produções sociais da religião – agrupamentos, ritos, crenças, costumes, regras de conduta – por meio das quais os seres humanos procuram a harmonia de sua existência. Ainda segundo Baechler, o fenômeno religioso implica a ação de atores sociais, como os produtores, os gestores e os f iéis. Os gestores (líderes e di- rigentes religiosos) organizam, por meio das práticas religiosas, a difusão da fé entre os crentes, aqueles que buscam entrar em contato com a esfera di- vina. Já os responsáveis pela fonte original do conjunto de crenças religiosas são personagens místicos, como Jesus Cristo, Maomé, Buda, os primeiros antepassados, para citar exemplos do cristianismo, do islamismo, do budis- mo e de muitas religiões indígenas. Na def inição dos sociólogos Peter Berger e Thomas Luckmann, no processo de institucionalização social, isto é, no processo de repetição de uma ação que def ine um padrão de conduta so- cial, aceito e legitimado coletivamente por determinado grupo, os gestores lançam mão de práticas como crenças, gestos, formação de comunidades e regras de conduta.

Sociedade e religião • 151

Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 151 5/28/13 8:42 AM Popperfoto/Getty Images Popperfoto/Getty Teresa Berlinck/Acervo da artista Berlinck/Acervo Teresa Museu do Prado, Madri, Espanha. Museu do Prado, The Bridgeman Art Library/Getty Images Library/Getty Art The Bridgeman Biblioteca Nacional de Paris/Archives Charmet/ Biblioteca Nacional de Paris/Archives

Gravura de data desconhecida Detalhe de Cristo na cruz (c. 1632), O orixá Oxóssi, representado Esta ilustração chinesa, do representa o profeta Maomé, do pintor espanhol Diego acima em aquarela de Teresa século XVIII, mostra Buda fundador do islamismo, em Velázquez. Berlinck feita em 2011. sentado em cima de uma flor cena de combate. de lótus.

Uma crença pode se cristalizar em mitos, dogmas ou construções teoló- gicas. Frutos da imaginação humana, em oposição ao componente racional, os mitos são narrativas fantasiosas e alegóricas, geralmente ligadas à nature- za, que revelam soluções para problemas existenciais e sociais, como o sofri- mento. Os mitos estão presentes em todas as culturas e representam simbo- licamente fenômenos humanos ou da natureza, como o mito da criação do mundo. Quando assumem, em uma religião, o caráter de verdades doutri- nárias a serem aceitas sem discussão, por serem consideradas de origem di- vina, as crenças constituem dogmas. Já as construções teológicas são regras, procedimentos e interpretações elaboradas, no decorrer do tempo, por aqueles reconhecidos como intermediários entre a divindade e o mundo profano. As bases de uma crença mobilizam as emoções e a sensibilidade dos f iéis, traduzindo-se em práticas religiosas, tais como celebrações, dan- ças, transes, sacrifícios, ritos, orações, gestos sistematizados, que são dirigi- das a uma comunidade congregada por cerimônias, que marcam o tempo e o espaço com simbolismo próprio.

As religiões [...] propõem regras de vida sob a forma de obrigações e de proibi- ções. [...] Algumas são pontuais ou referem-se às consequências diretas de uma de- terminada prescrição religiosa relativa a um determinado aspecto de uma dada sociedade. Se, por exemplo, o judaísmo e o islã proíbem o consumo de carne de porco, daí resulta que o porco está ausente das comunidades judaicas e muçulma- nas. A partir do momento que o vinho é indispensável à celebração da missa, em virtude de um dogma central do cristianismo, a vinha é cultivada nos países cris- tãos. [...] podemos demonstrar, com base em documentos, que não há um único domínio da vida social que não tenha sido afetado, mais ou menos decisivamente, pela religião.

BAECHLER, Jean. Religião. In: BOUDON, Raymond (Org.). Tratado de Sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 465.

152 • CAPítulo 6

Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 152 5/28/13 8:42 AM O fenômeno religioso tem, portanto, muitas facetas, e é heterogêneo por se basear em diversas fontes de inspiração e interesses relacionados à condição humana. Nas diferentes interpretações sobre sua existência, as re- ligiões destacam-se por sua função moral, por consolidar costumes e pelo caráter ideológico de suas ações, que procuram justif icar uma ordem social como se ela fosse natural.

A religião na visão dos autores clássicos da Sociologia

Um dos desaf ios da So- ciologia ao tratar do fenôme- no religioso é que ele abarca

dois universos: o espaço pri- Images Nazir/Getty Yawar vado, relativo à intimidade, e o espaço público, que lhe dá o caráter social. Os autores clássicos voltaram seu olhar para a religião como um fe- nômeno social e procuraram interpretá-lo.

hh Auguste Comte A obra do francês Auguste Comte, por exemplo, iden- tif ica o fenômeno religioso como um estágio relativa- mente “primitivo” da evolu- ção social e cultural da humanidade, que ele chama de “estado teológi- Mulheres hindus seguram oferendas de água e leite para a co”. Nessa fase, o ser humano tenderia a passar, gradativamente, da deusa Shiva, uma das principais crença em muitos deuses (politeísmo) para a crença em um Deus único divindades do hinduísmo, (monoteísmo). Para elaborar tal teoria de caráter evolutivo, Comte pro- durante o festival de Maha Shivratri, em fevereiro de 2012, cura demonstrar que a História é o desenvolvimento evolutivo-temporal em Jammu, no território da do espírito humano, entendendo que, após uma segunda fase, classif ica- Caxemira administrado pela da por ele como metafísica, haveria um terceiro estágio, “mais aprimora- Índia. Milhares de hindus de do”, da humanidade, fundado na razão e na ciência. Veja abaixo o esque- diversas partes da Índia lotam os templos em celebração à ma analítico de Comte. deusa.

“Lei dos três estados ou estágios”, de Auguste Comte

Estágios Características

O ser humano acredita em muitos deuses e evolui para a crença em um só Teológico Deus (fase religiosa).

Metafísico Indagações ontológicas, acerca da origem do ser humano (fase filosófica).

Estágio mais evoluído da humanidade, correspondendo ao uso da razão e da Positivo política (fase científica).

Sociedade e religião • 153

Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 153 5/28/13 8:42 AM hh Émile Durkheim Já a abordagem funcionalista de Émile Durkheim considera o conteúdo das doutrinas e os sentimentos religiosos como impedimentos ao progresso. O autor propõe em seu livro As formas elementares da vida religiosa, de 1912, que uma das principais funções sociais da religião é de natureza moral, ou seja, manter a coesão social, a união dos seus membros, assegurando a esta- bilidade da sociedade por meio de relações harmoniosas. Para Durkheim, a religião consiste em um sistema de crenças e de prá- ticas relativas ao sagrado que une indivíduos em uma comunidade moral, regida por princípios e valores específ icos. Defende ainda que seu funda- mento não está no sobrenatural ou na ideia de Deus, mas na distinção entre os conceitos de sagrado e profano. O sagrado indica uma realidade diferente, protegida, superior e separada do que é mundano (profano), Cui Shenyi/Xinhua/Agência France-Presse Cui Shenyi/Xinhua/Agência na qual a coletividade projeta e objetiva a própria consciência religiosa e à qual presta reverência. 06_f007A_SOCg15S A religião satisfaz necessidades do ser humano, como a curiosidade, o desejo de segurança, a tendência à vida em comunidade, os problemas de consciência e o estabelecimento de normas. Nessa linha de pensamento, em sociedades tradicionais a religião organizava as relações sociais e o pró- Chineses celebram o Ano-Novo prio tempo. Porém, à medida que essas sociedades se modernizaram e os Chinês em Shangqiu, em conhecimentos científ icos ganharam mais espaço, a religião perdeu força fevereiro de 2013. Embora preservem as comemorações como centro da vida social. Durkheim duvidava de que a religião, como culturais, religiosas e místicas um sistema de ideias que desempenharam ao longo da história um impor- relacionadas ao seu tradicional tante papel de integração social, fosse um mero conjunto de ilusões. Para calendário lunar, os chineses ele, o Direito, a moral e a própria ciência não somente nasceram da reli- utilizam o calendário gregoriano (ocidental e de base gião como foram com ela confundidos por muito tempo. solar) no dia a dia. Durkheim explica o fenômeno religioso pela garantia da ordem social, ressaltando seu fundamento moral em diferentes culturas.

hh Max Weber O pensamento do sociólogo alemão Max Weber segue uma linha distin- ta daquela de Durkheim. Weber via a religião como uma dimensão social depositária de signif icados culturais por meio dos quais indivíduos e coleti- vidades interpretavam sua condição de vida, construíam uma identidade e controlavam o ambiente como um todo. Weber acreditava que a força da religião estaria em declínio, na medida em que a sociedade moderna se afastava das crenças fundadas em supersti- ções, religiões, costumes e hábitos ancestrais como um todo. Desse modo, enquanto nas sociedades tradicionais a religião e as crenças a ela relaciona- das eram centrais, na modernidade ocorria uma crescente racionalização e consequente afastamento do campo religioso, decorrentes do desenvolvi- mento da ciência, da tecnologia e da burocracia. A esse processo de declínio do poder da religião nas diferentes dimen- sões da vida social, que passa a ser explicada também pela ciência, Weber denominou secularização. A secularização é a passagem de fenômenos que até então eram do domínio religioso ou sagrado para a esfera mundana, ou

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Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 154 5/28/13 8:42 AM seja, de certas representações do mundo e do lugar do homem no mundo deixam de ser sagradas ou místicas e ganham uma explicação racional, científ ica e técni- ca. A secularização favoreceu o movimento histórico ocorrido com as Revoluções Burguesas, como estuda- do no capítulo 2, resultando na separação entre reli- gião e Estado. Weber, perguntando-se como as religiões afetavam Imagno/Getty Images/Museu do Louvre, Paris, França. Paris, Images/Museu do Louvre, Imagno/Getty a economia, demonstra na obra A ética protestante e o es- pírito do capitalismo, publicada em 1905, a proximidade entre os valores apregoados pelo protestantismo e a moral veiculada pela sociedade capitalista moderna. Nessa obra, ele defende que o surgimento do “espírito do capitalismo” – um conjunto de qualidades intelec- tuais e morais indispensáveis à racionalização econô- mica – foi possível graças a algumas qualidades exalta- O banqueiro e sua esposa (1444), pintura de Quentin Metsys. das e preconizadas pela religião protestante (a chamada Antes da Reforma protestante, no século XVI, a usura era “ética protestante”), em especial a visão do lucro obti- considerada na Europa como contrária aos valores religiosos, do por meio de trabalho racional como virtude. como se pode observar na tela: a mulher desvia o olhar da Bíblia para ver as moedas. hh Karl Marx O pensador alemão Karl Marx concebia a religião como responsável pe- la alienação do indivíduo na estrutura da produção material da sociedade capitalista. Ele criou a famosa expressão “a religião é o ópio – ou lenitivo – hh lenitivo: aquilo que abranda, que do povo”, que está no livro Crítica da filosofia do direito de Hegel, de 1844, no acalma, que traz consolo. qual af irma que a religião é uma forma de o ser humano se tornar alheio, afastar-se da vida moderna. Considerava a religião uma expressão da imper- feita consciência de si do homem: não do homem como indivíduo abstrato, mas como homem social. No livro A ideologia alemã, de 1845, Marx e seu colega Friedrich Engels propunham a história como uma série de transformações sociais e materiais. Nesse sentido, a religião era um obstáculo ao progresso e à emancipação político-social, ou seja, à possibilidade de os homens organizados mudarem as estruturas sociais. Para o pensamento marxista, as religiões poderiam ocultar as forças de mudança e encobrir os conflitos sociais ao tomá-los como desígnios divi- nos, naturalizando-os. Ao fazer isso, a religião nega aos seres humanos a capacidade de decidirem sobre si, seu destino, seu país, sua sociedade, e de transformarem a realidade. A realidade pesquisada por Marx era a luta de classes provocada por interesses materiais conflitantes; daí a sua crítica de que toda ideologia (conceito estudado no capítulo 5), para rea- lizar a f inalidade a que se propõe – satisfazer-nos com ideias em detrimen- to do real conhecimento da realidade –, desenvolve-se com base em cren- ças preexistentes a f im de mascarar a realidade social. Ainda que dif iram em sua abordagem, pode-se perceber que esses quatro autores clássicos – Comte, Durkheim, Weber e Marx – caracterizaram a reli- gião como uma instituição de grande influência nas relações sociais ao longo da história.

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Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 155 5/28/13 8:42 AM Encontro com os cIEntIstas socIaIs

Na Sociologia clássica prevaleceu a ideia de que a religião era uma força que decres- cia na medida em que as sociedades atingiam a modernidade. Pensando sobre isso, leia o trecho abaixo, escrito por Durkheim em 1893, e responda à questão a seguir.

Ora, se há uma verdade que a história pôs fora de dúvida é que a religião abarca uma porção cada vez menor da vida social. Inicialmente, ela estende-se a tudo; tudo que é social é religioso. Depois, pouco a pouco, as funções políticas, econômicas, científicas desvinculam-se da função religiosa, constituem-se à parte e tomam um caráter temporal cada vez mais patente. Deus, se assim nos podemos exprimir, que no princípio estava presente em todas as relações humanas, retira-se delas progres- sivamente; abandona o mundo aos homens e às suas disputas.

DURKHEIM, Émile. da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1977. p. 197. Filipe Rocha/Arquivo da editora Filipe Rocha/Arquivo

• Com base nesse trecho, discuta com seus colegas o lugar que a religião ocupa nas relações sociais na sociedade atual. A religião em tempos de globalização

A expressão “desencantamento do mundo”, que consiste no movimento pelo qual a esfera do sagrado vai sendo invadida por manifestações profanas e explicações racionais, foi cunhada por Weber em sua análise sobre a rela- ção entre religião e modernidade. A secularização das instituições e das re- lações sociais, pela qual elas se desprenderam da explicação religiosa e se tornaram laicas, a separação entre a e o Estado e a emergência da ciência substituindo, aos poucos, o espaço ocupado pela magia fazem com que a religião deixe de ser o elemento central de organização da sociedade. Muitas vezes esse debate levou (e ainda leva) a discussões sobre um possível “f im da religião”, reavivando o confronto entre revelação e razão para expli- car a realidade social. Hoje, diante de novas religiões, do fundamentalismo, dos confl itos re- ligiosos e dos fanatismos, muitos autores defendem a ideia de que vivemos um retorno ao sagrado. Porém, não se trata de um consenso. Na visão do sociólogo brasileiro Renato Ortiz, por exemplo, a religião nunca deixou de estar presente na sociedade. Nesse sentido, vale indagar se nos depara- mos com o declínio, a transformação ou o renascimento da religiosidade, como sugere o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-). A ideia do f im da religião ou do seu enfraquecimento nas relações so- ciais está associada, muitas vezes, à perspectiva positivista que prevê etapas sucessivas de desenvolvimento na sociedade. Esse pensamento considera o desenrolar da história como uma escala evolutiva crescente de aconteci- Lidove Noviny/Ondrej Nemec/Getty Images Nemec/Getty Noviny/Ondrej Lidove mentos em direção ao progresso. Seguindo essa linha, diversas teorias con- ceberam o término da religião como decorrência dos avanços científ icos e consideraram as sociedades tradicionais “arcaicas”, por se orientarem pe- O sociólogo polonês Zygmunt los valores morais da religião. Entretanto, alguns pensadores refutam tal Bauman, em retrato de 2010. opinião, como expõe o sociólogo francês Jean Baechler:

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Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 156 5/28/13 8:42 AM [...] Normalmente, o progresso técnico contemporâneo deveria fazer recuar e desaparecer o recurso à magia e à intercessão. Este “normalmente” proporciona- -nos uma outra maiúscula, a maiúscula do Progresso. Com efeito, para o Homem, a magia e o recurso aos deuses retrocederam perante a eficácia técnica. Hoje em dia, o Homem recorre mais prontamente aos antibióticos do que aos amuletos, e aos adubos químicos do que à bênção dos campos. Mas as coisas nem sempre são assim tão simples. As técnicas eficazes podem ser inacessíveis. A eficácia nunca vai a ponto de excluir o fracasso. Apesar de todos os progressos da Medicina, os homens contraem doenças e acabam por morrer. Sobretudo, a vida de cada um é dominada pela incerteza radical que afeta tudo aquilo que advém da ação: nin- guém controla jamais o resultado nem as consequências de qualquer empreendi- mento. Essa incerteza faz a fortuna das cartomantes, das quiromantes, dos faze- dores de horóscopos, de todos os que prometem reduzir ou suprimir a incerteza através de métodos que só podem ser irracionais, dado que a matéria tratada é racionalmente incerta. BAECHLER, Jean. Religião. In: BOUDON, Raymond (Org.). Tratado de Sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 483.

A relação de contraposição comumente estabelecida entre religião e ciên- cia tem sua base na ideia de que a fé se opõe à consciência científ ica, como se a primeira f izesse parte da irracionalidade e a ciência se inserisse no ter- reno do racional. Será que a ciência, em suas descobertas e aplicações, é sempre racional? O capítulo 11, que discute meio ambiente, vai lhe permitir refletir mais profundamente sobre isso. Ao contrário do que haviam suposto alguns autores no passado, a socie- dade industrial não trouxe necessariamente o desaparecimento da religião, apenas limitou-a como forma de organização social. Podemos af irmar que a modernidade abriu espaço para uma maior diversidade de práticas reli- giosas. Prova disso é que as sociedades modernas globalizadas são conside- radas multirreligiosas, ou seja, abrigam um número elevado de religiões simultaneamente.

A modernidade-mundo não se organiza segundo princípios religiosos (o que não significa que não existam países, por exemplo, no mundo árabe, onde o pre- domínio da religião, como “consciência coletiva”, não tenha um peso capital). Ape- sar do florescimento de novas crenças religiosas, da intensificação de uma religio- sidade individualizada, da vitalidade de religiões que pareciam extintas, uma constatação se impõe: o lugar que o universo religioso ocupava nas sociedades tradicionais foi definitivamente remodelado pela modernidade. Entretanto, não se pode deixar de entender que a ação das religiões num mundo globalizado adquire uma outra configuração. ORTIZ, Renato. Anotações sobre religião e globalização. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 16. n. 47, out. 2001, p. 64.

A consciência coletiva, citada por Ortiz, refere-se a valores, sentimen- tos, crenças e tradições que são legitimados e repetidos ao longo das ge- rações. Segundo Durkheim, a consciência coletiva exerce coerção sobre as consciências individuais (ainda que, muitas vezes, de forma velada, por ser tomada como um processo “natural”), reforçando hábitos, costumes e representações sociais nas sociedades. Como fenômeno, a consciência co- letiva é perceptível, sobretudo, nas sociedades tradicionais, nas quais indi-

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Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 157 5/28/13 8:42 AM víduos e grupos são muito semelhantes e o controle social de uns sobre outros é exercido mais diretamente. Nessas sociedades, segundo Durkheim, a religião concentra essa pressão conformadora das consciên- cias individuais para preservar a ordem social. Danilo Verpa/Folhapress A globalização recente, estudada no capítu- lo 1, como todo grande processo sociocultural, gera desigualdades e diversidades entre grupos e nações, pois não acontece com a mesma inten- sidade e do mesmo modo em todos os lugares; por outro lado, ela tende a homogeneizar os comportamentos sociais espalhados pelo globo. Nesse sentido, a religião passa a desempenhar com mais intensidade um papel de resistência, por ser uma dimensão que confere identidade ao ser humano, ao reunir as pessoas e fornecer um referencial comum aos grupos sociais. Uma prática religiosa, por exemplo, cria af inidade de pensamentos e permite compartilhar experiên- cias entre os integrantes de um determinado grupo social. Localizada em São Paulo, a Cristoteca é um espaço As crenças religiosas, enquanto “consciências coletivas”, aglutinam o que se en- destinado aos jovens católicos contrava antes disperso. [...] A memória é uma técnica coletiva de celebração das para apresentações de shows, baladas de música eletrônica e lembranças, aproxima o passado, soldando os indivíduos no seio de uma mesma missas, que expressa uma comunidade. Ora, como tem sido apontado por inúmeros autores, a temática da parcela da diversidade da identidade transforma-se radicalmente com o processo de globalização. Ela se tor- religiosidade no Brasil contemporâneo. Foto de 2007. na crucial. A crise das identidades nacionais abre espaço para a explosão de identi- dades étnicas, particulares, e até mesmo de dimensões identitárias mundializadas, forjadas no seio de fluxos transnacionais de consumo.

ORTIZ, Renato. Anotações sobre religião e globalização. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 16, n. 47, out. 2001, p. 65-66.

A difusão dos meios de comunicação favoreceu a expansão das religiões e até a multiplicação de manifestações religiosas. Se antes a pregação era li- mitada pelo espaço físico, hoje a comunicação on-line rompe essas barreiras. As religiões puderam diversif icar seus meios de divulgação com emissoras de rádio e televisão, CDs, editoras, revistas, vídeos, objetos religiosos e lembran- ças, serviços de terapia e aconselhamento, imóveis e estruturas de marketing. Segundo o sociólogo brasileiro Antônio Flávio Pierucci (1945-2012), esses elementos se caracterizam como atividades econômicas desenvolvidas pelas organizações religiosas para atingir públicos específ icos de adeptos/clientes.

Na era globalizada, os meios de comunicação não apenas permitem a articulação das ações dos grupos religiosos como também as potencializam.

Nas últimas décadas do século XX, em meio aos avanços tecnológicos e científ icos, à globalização e à disseminação mais intensa da informação, ve- rif icamos o crescimento de algumas religiões e o avanço do fundamentalis- mo religioso. Esse cenário desafia as Ciências Sociais a refletir sobre a exis- tência, ou não, de um novo papel da religião na sociedade.

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Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 158 5/28/13 8:42 AM Ismoyo/Agência France-Presse Fundamentalismo religioso

O fundamentalismo religioso foi re- conhecido como fenômeno recentemen- te, quando o termo passou a ser mais uti- lizado pelos cientistas sociais. O sociólogo britânico Anthony Giddens o descreve como um movimento de adesão incondi- cional a determinados valores e crenças, cujos adeptos têm um entendimento lite- ral dos seus livros sagrados. Nos casos mais radicais, isso se reverte em meios violentos para a imposição dessa leitura ao restante da sociedade. Na visão de Zygmunt Bauman, o radi- calismo religioso resulta do desgaste dos elementos que mantêm unida uma con- gregação de f iéis, levando alguns grupos a desejarem identif icar e eliminar aquilo que pareça indiferente ou discordante com relação ao conjunto de princípios que professam. Manifestantes indonésios reivindicam, em Jacarta, capital Valores sociais como a fé, a conf iança e a capacidade de autoaf irmação do país, a expulsão da são oferecidos aos f iéis por meio de regras simples dos fundamentalistas, os população Ahmadiyah, um quais rejeitam, contudo, o diálogo com os que pensam de maneira diferente grupo islâmico considerado herético pelos mais ortodoxos. da sua. A Indonésia é o país com a Para Bauman, o fascínio exercido pelo fundamentalismo provém de sua maior concentração de promessa de “libertar” o indivíduo da autossuf iciência a que estava condena- praticantes do islamismo. Foto de 2011. do, informando-o do que ele deve fazer, eximindo-o, de certa forma, da responsabilidade sobre seus atos e ações. Assim, ele oferece uma “racionali- dade alternativa” que se opõe às incertezas da vida e aos seus riscos. O fundamentalismo pode vir associado a situações de desigualdade so- cial por fornecer às populações pobres e injustiçadas um sentido já def inido para a realidade vivida, a qual, sob outra visão, elas seriam incitadas a trans- formar, segundo Bauman. Os despojados de hoje são indivíduos frustrados diante da impossibilidade de consumir tudo o que a sociedade oferece os- tensivamente, e os movimentos religiosos fundamentalistas denotam parte do mal-estar da sociedade contemporânea, causado, entre outros fatores, pelo desemprego e pelo desamparo social, por exemplo. Essa sociedade, identif icada com a condição sociocultural do capitalismo contemporâneo, aposta no consumo, no poder econômico-f inanceiro exacerbado; nela, tudo se torna efêmero e fragmentado, prevalecendo a diversidade e a flexibilida- de nos relacionamentos nas diversas instâncias sociais. Para explicar a insta- bilidade da sociedade contemporânea, Bauman utiliza a metáfora do estado de “liquidez” da matéria e denomina “realidade líquida” as mudanças re- pentinas e estímulos constantemente renovados da presente fase da histó- ria, que se apresenta imprevisível, indeterminada.

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Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 159 5/28/13 8:42 AM hh Desfazendo mitos O fato de alguns ataques de grupos terroristas serem feitos em nome de uma crença não signif ica que todos os adeptos daquela religião sejam terro- ristas em potencial. Apenas alguns grupos apresentam reações fundamenta- listas violentas diante do outro, daquele que é alheio ou discordante com relação à sua crença religiosa. Entre os estudos sobre o terrorismo, é preciso destacar aqueles que sina- lizam para a situação de empobrecimento e marginalização de vastas popu- lações em diversas partes do mundo, sobretudo após os anos 1990. Muitas congregações religiosas assumem obrigações e deveres que foram abando- nados pelo Estado, que, como temos visto ao longo dos capítulos, reduziu seu papel no sistema de proteção social em tempos de neoliberalismo. As- sim, outros fatores sociais e políticos também estão relacionados ao tema do terrorismo, mostrando que suas motivações estão para além das questões puramente religiosas. Por vezes o terrorismo está relacionado ao fundamentalismo religioso, mas convém lembrar que nem todos os atos terroristas têm uma motivação religiosa, tal como o caso de grupos separatistas na Espa- nha (como o ETA, movimento pela indepen- dência do País Basco). Tampouco se deve asso- ciar o terrorismo a religiões específ icas. O Spencer Platt/Getty Images Spencer Platt/Getty historiador inglês Eric Hobsbawm (1917-2012) relaciona o aumento da violência no mundo atual com as guerras no f inal do século XX, quando os Estados nacionais perderam em par- te o monopólio do poder e da violência, os quais mantinham os cidadãos mais passivos e disciplinados, respeitadores dos limites estabe- lecidos pelas leis. Como exemplo da intensif ica- ção da violência social tem-se o caso do Sri Lanka, cuja população, composta de uma maio- ria budista e uma minoria hinduísta, hoje en- volvida em sérios conflitos, antes tinha uma convivência pacíf ica. Os ataques às Torres Gêmeas, em Nova York, e ao prédio do Pentágono, sede do De- partamento de Defesa dos Estados Unidos, em Washington, ocorridos em 11 de setem- bro de 2001, colocaram sob suspeita a reli- gião islâmica e seus seguidores. Nesse contex- A foto retrata o momento em que um avião se chocou com a torre sul do to, o então presidente dos Estados Unidos, World Trade Center, complexo comercial em Nova York, nos Estados George W. Bush, fez uma convocação inter- Unidos, e explodiu. Minutos antes, outro avião já havia colidido com a torre norte. O ataque, ocorrido em 11 de setembro de 2001, foi atribuído nacional para a luta contra o terrorismo, na ao grupo fundamentalista islâmico Al-Qaeda. forma de uma “cruzada” do Ocidente cristão contra os muçulmanos do mundo. Desse mo- do, generalizou-se a ideia de que o islamismo era sinônimo de terrorismo – ideia reforçada pela mídia de grande circulação, o que gerou um aumento da intolerância e da violência no mundo.

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Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 160 5/28/13 8:42 AM No século XX, nas duas guerras mundiais e, depois, nos confl itos ocor- ridos durante a Guerra Fria, houve desrespeito aos princípios convencio- nados entre a maioria dos Estados como os de uma “guerra civilizada” por meio das Convenções de Genebra de 1929 e 1949, segundo os quais a população civil deve ser protegida, os países neutros não podem ser ata- cados e os prisioneiros de guerra devem ter sua integridade física assegu- rada, entre outros cuidados. Muitas vezes o discurso do respeito às regras e aos valores não é cumprido e produz uma situação que Hobsbawm de- nomina “retorno à barbárie”, expressando atos criminosos que têm a po- pulação civil por alvo, como acontece nos ataques terroristas. Af inal, como começa o terrorismo? Os terroristas alegam reagir em legítima defesa a um ataque anterior vindo da parte do Estado ou do sis- tema. Para os que praticam o terror, trata-se de um contra-ataque àquele que o privou de outra forma de reação, como a negociação. Veiculador de reivindicações nem sempre precisas, o terrorismo não deixa de ser uma estratégia política que usa a violência, física ou psicológica, em ataques a governos, a grupos políticos ou mesmo à população, criando um pavor incontrolável, o terror, que se expande além do círculo de suas vítimas. Conflitos religiosos no mundo

FOLHA Online, 26 out. 2012. Disponível em: . Acesso em: 3 abr. 2013. confl ito religioso em Mianmar chega a 112

O GLOBO, 20 fev. 2013. Disponível em: . Acesso em: 3 abr. 2013. reduto islâmico da Nigéria Décimo monge tibetano ateia fogo ao corpo em ESTADAO.com.br, 26 out. 2011. Disponível em: . Acesso em: 3 abr. 2013.

As manchetes acima, publicadas em diversas mídias no Brasil, desta- cam confl itos em que o caráter religioso está presente. Esses, entretanto, não são os únicos. Podemos citar também, por exemplo, as ações desenca- deadas pelo Exército Republicano Irlandês, o IRA, inseridas em uma dis- puta na Irlanda do Norte entre protestantes que desejam continuar inte- grados ao Reino Unido e católicos que querem a união com a República da Irlanda. A guerra entre palestinos e judeus, desde a criação do Estado de Israel, em 1948, também está relacionada (embora não se limite) à questão religiosa. Outro confl ito religioso ocorre entre Índia e Paquistão, pela posse da região da Caxemira, de maioria muçulmana, conf igurado como uma batalha entre hindus e muçulmanos. Em países africanos –

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Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 161 5/28/13 8:42 AM especialmente República Democrática do Congo, Ruanda e Burundi –, nos anos 1990, violentos embates foram apresentados como de caráter étnico e/ou religioso. Será que a Sociologia e a História permitem generalizar a denominação de tais conflitos como “guerras religiosas”? Até que ponto a religião é real- mente um fator determinante nesses episódios? Será que, por trás da justif ica- tiva da religião, não existem outras razões? Essas são questões que as Ciências Sociais buscam responder. conflitos na caxemira (2010) No conflito pela região da Caxemira (norte da

70° L Zona contestada pela Índia e do Paquistão), por exemplo, são comuns as Índia e pela China CAXEMIRA AFEGANISTÃO referências a diferenças religiosas. A historiograf ia, Islamabad Zona contestada pela CHINA Índia e pelo Paquistão porém, também aponta outros fatores como moti- vadores para os conflitos, como os problemas de- PAQUISTÃO Délhi IRÃ NEPAL correntes do processo de colonização e as divisões Nova Délhi BUTÃO Portal de Mapas/Arquivo da editora Portal Karachi incentivadas pela Inglaterra no período em que os BANGLADESH Mar indianos lutavam por sua independência. Kolkata Arábico ÍNDIA MIANMAR No caso do conflito entre árabes e judeus na Golfo Mumbai de Palestina, vale assinalar que, apesar das guerras e Hyderabad Bengala OCEANO da violência que o caracterizam nos dias de hoje, ÍNDICO esses dois povos mantiveram relações harmonio- OCEANO ÍNDICO sas durante um longo período da história. Isso 10 ° N ocorreu, por exemplo, na época em que os ára- bes ocuparam a península Ibérica (711-1492), SRI LANKA Posicionamento dos mísseis quando os judeus que lá viviam desfrutaram de balísticos Instalações nucleares liberdade religiosa e cultural. Outro exemplo são 0 510 1 020 Violências étnicas km as pequenas colônias judaicas remanescentes no Atentados terroristas Oriente Médio que viviam em paz com a maioria Adaptado de: Le Monde diplomatique, 2010. p. 212. muçulmana há menos de um século.

Israel (1948-1949) conflitos árabe–israelenses (1956-2000) 35° L 35° L LÍBANO LÍBANO 32° N Mar Mediterrâneo SÍRIA SÍRIA Mar Mediterrâneo Golã Allmaps/Arquivo da editora Allmaps/Arquivo da editora Telavive Cisjordânia Jerusalém 32° N Telavive Cisjordânia Gaza Mar Morto Jerusalém ISRAEL

JORDÂNIA Mar Morto Suez ISRAEL Península do Sinai

G ARÁBIA JORDÂNIA o SAUDITA l f o

d EGITO e S EGITO u e Ofensivas em 1956 z (Guerra de Suez) Territórios ocupados por Palestina sob domínio Mar Vermelho Israel por ocasião da Guerra britânico (até 1948) dos Seis Dias (1967) Estado de Israel (1948) Guerra do Yom Kippur (1973) 0 50 100 Israel após conflitos de 0 90 180 Ocupação do sul do Líbano 1949 km km por Israel (1982-2000)

Adaptado de: DUBY, Georges. Atlas Histórico Mundial. Madrid: Debate, 1989. p. 213. Adaptado de: DUBY, Georges. Atlas Histórico Mundial. Madrid: Debate, 1989. p. 214-215.

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Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 162 5/28/13 8:42 AM Portanto, a intolerância religiosa ou pseudoétnica não parece suf iciente para explicar o conflito entre esses povos, pois se trata de uma questão gera- da por disputas políticas e fatores sociais e econômicos. O conflito tomou proporções maiores sobretudo a partir da criação do Estado de Israel (1948), do qual, após a Primeira Guerra Árabe-Israelense (1948-1949), os árabes palestinos foram expulsos.

Conflitos sociais

Para compreendermos melhor os contextos de tológicos da sociedade que põem em risco a inte- confronto entre grupos sociais inspirados por moti- gração social. vos declarados como religiosos, é interessante nos Com Weber, o conflito social passa a ser visto co- determos sobre o conceito sociológico de conflito mo uma ação cotidiana, resultado de uma relação de social. Não é simples defini-lo, pois o risco de con- concorrência entre indivíduos. Na teoria weberiana, frontação entre adversários, indivíduos e/ou grupos como cada um tem a intenção de fazer triunfar sua remete à natureza do próprio sistema social. Veja- própria vontade, o conflito perde o seu caráter “pato- mos, então, algumas das diferentes concepções so- lógico” e aplica-se a todo sistema social. ciológicas de ontem e de hoje. Para algumas teorias, os conflitos sociais são res- O darwinismo social, elaborado pelo filósofo in- ponsáveis pelas mudanças históricas centrais, como a glês Herbert Spencer, considerava o conflito um interpretação dialética de Marx da luta de classes. O ponto central, na medida em que acreditava na norte-americano Lewis Coser (1913-2003) faz uma “evolução” da sociedade como decorrente da “so- abordagem funcionalista do conflito, considerando-o brevivência do mais forte”. Já a vertente funcionalis- a mola para a renovação e a mudança da sociedade, ta, inaugurada por Durkheim, contrapõe consenso por gerar novas normas e novas instituições. Outro so- e conflito. Embora reconheçam uma “dimensão con- ciólogo contemporâneo, o alemão Ralf Dahrendorf flitual” na sociedade, ou seja, uma tensão perma- (1929-2009), observa que a sociedade contemporâ- nentemente moderada pela solidariedade social nea vai institucionalizando o conflito, ou seja, emer- (vista no capítulo 5), os funcionalistas consideram gem instituições de regulação dos conflitos, em que as situações conflituosas (conflitos étnico-raciais, os parceiros se acertam e recorrem a mediações e for- guerras, revoluções, etc.) disfuncionais, estados pa- mas de conciliação próprias do mundo industrial.

Diante desses e de outros conflitos, não apenas religiosos, cabe destacar que a realidade social comporta múltiplas di- mensões – política, econômica, cultural, histórica – e um dos desaf ios do conhecimento científ ico consiste em montar os muitos quebra-cabeças de que é composta a história. Para isso, Baz Ratner/Reuters/Latinstock é necessário sempre ir além das aparências dos fatos e das in- terpretações prontas e, no caso de conflitos religiosos, observar o princípio do teórico militar prussiano Carl Clausewitz (1780- -1831) de que toda guerra se subordina aos interesses políticos.

pEsquIsa

Em equipe, pesquisem sobre algum conflito tido como religioso ocorrido no século XX ou no XXI, levantando suas causas, batalhas e desdobramentos. Após a busca de informações (em livros, mídias im- Judeu ortodoxo caminha ao lado do muro em pressas e na internet), o resultado da pesquisa de cada grupo deve ser torno do túmulo de Raquel, personagem bíblica, em Belém. Erguido com o pretexto de proteger apresentado para a turma. Fiquem atentos para outras motivações, as peregrinações judaicas ao templo, o muro é de natureza econômica, social e/ou política, que colaborem para um dos elementos estruturais de segregação da uma melhor compreensão do conflito selecionado. Palestina. Foto de 2012.

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Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 163 5/28/13 8:42 AM Algumas sugestões de temas de pesquisa são: • o conflito palestino-israelense; • o conflito entre indianos e paquistaneses na região da Caxemira; • o conflito entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte; • a Revolução Iraniana e suas implicações no cenário atual do país; • os conflitos étnico-religiosos na região da ex-Iugoslávia nos anos 1990.

A religiosidade no Brasil

O Brasil é um Estado laico, ou seja, legalmente o Estado é independente e não está submetido aos desígnios de qualquer conf issão religiosa. Além disso, os cidadãos têm a garantia constitucional de poderem professar a re- ligião que desejarem, sem discriminações. Diz o inciso VI do artigo 5 da Constituição Brasileira: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na for- ma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”. No Brasil e no mundo, tem aumentado o número de grupos religiosos, que em sua maioria representam cisões nas denominações religiosas mais antigas. É o caso, na América Latina e no Brasil, da expansão de grupos de caráter protestante e pentecostal. Embora os católicos ainda sejam a maioria da população brasileira, a proporção com relação ao total caiu de 73,6% em 2000 para 64,6% em 2010, de acordo com o Censo Demográf ico 2010, do IBGE. Já os seguidores de denominações evangélicas, que representavam 15,4% da população em 2000, chegaram a 22,2% em 2010 – um aumento de cerca de 16 milhões de pessoas. Algumas pesquisas antropológicas discutem a tese de que a conversão a esses novos grupos religiosos seria, em parte, uma reação à situação de pobreza e de marginalidade da população.

população evangélica no Brasil população católica apostólica romana por estado, em % (2010) no Brasil por estado, em % (2010)

OCEANO OCEANO RR ATLÂNTICO RR AP AP ATLÂNTICO Equador Equador 0º 0º

AM PA AM PA MA CE MA CE RN RN PB PB PI PI PE PE Mapas: Portal de Mapas/Arquivo da editora Mapas: Portal AC AC AL AL TO RO TO SE RO SE BA BA MT MT

DF DF

GO GO

MG MG ES MS MS ES

SP SP RJ RJ Trópico de Trópico de Ca Capricórnio pricórnio PR PR

De 9,7% a 15% SC De 45,8% a 50% SC

De 15,1% a 20% RS De 50,1% a 65% RS

De 20,1% a 30% De 65,1% a 75% 0 610 km 0 610 km De 30,1% a 33,8% De 75,1% a 85% 45º O 45º O

Adaptado de: CENSO Demográfico 2010. Disponível em: Adaptado de: CENSO Demográfico 2010. Disponível em: . Acesso em: 9 jan. 2013. . Acesso em: 9 jan. 2013.

164 • CAPítulo 6

Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 164 5/28/13 8:42 AM O Censo 2010 também aponta um aumento do nú- mero de pessoas que se declaram sem religião, no mes- mo período, de 7,3% para 8% da população brasileira. Para a antropóloga brasileira Regina Novaes (1952-), uma explicação possível para esse crescimento, sobre- tudo entre os jovens, está menos relacionada ao ateís- Luciano da Matta/Ag. A Tarde/Folhapress A Luciano da Matta/Ag. mo e mais a formas de ligação com o sagrado e com o religioso desvinculadas de instituições religiosas. Essas formas se expressam numa espiritualidade individuali- zada e também na participação em manifestações cole- tivas, como festas religiosas e seus símbolos. Ainda de acordo com o Censo, os seguidores da umbanda e do candomblé mantiveram-se em 0,3% em 2010, enquanto a população que se declara espírita passou de 1,3%, em 2000, para 2%, em 2010. Embora sejam contingentes populacionais pequenos, a presen- ça dessas religiões nas representações sociais e nas ma- nifestações culturais e artísticas no Brasil são signif ica- tivas, o que revela que sua influência vai além daqueles que se declaram adeptos desses grupos religiosos. É recorrente a fala de que o Brasil é um país em que o sincretismo religioso está muito presente, ou seja, no qual elementos de cultos e doutrinas diferentes se com- Fiéis durante lavagem das escadarias da Igreja do Senhor do Bonfim, em Salvador, Bahia. Foto de 2009. binam e são reinterpretados. Para o antropólogo e soció- logo francês radicado no Brasil Pierre Sanchis (1928-), o sincretismo não é próprio do campo da religião, mas sim da cultura, e se dá no interior de uma relação desigual entre duas culturas ou duas religiões. Essa desigualdade é consequência de relações históricas de dominação de classe, dominação polí- tica ou hegemonia cultural, em que elementos de uma religião subjugada ou discriminada são incorporados às práticas religiosas dominantes. Assim sen- do, é preciso considerar a diferença entre declarações de identidade (associa- das à instituição religiosa), em geral captadas pelo Censo, e declarações de convicções (associadas à vivência e às crenças dos indivíduos). No conjunto das manifestações religiosas brasileiras, a umbanda seria, segundo o sociólogo francês Roger Bastide, a expressão ideológica da inte- gração do negro à sociedade nacional. No período colonial e do Brasil Im- pério, a repressão dos colonizadores portugueses e luso-descendentes, pri- meiro, e das autoridades of iciais, depois, às religiões africanas e afro-brasileiras levaram os seus adeptos a fazerem adaptações para escapar da perseguição. Foi assim que entidades divinas como os orixás do povo ioruba e os inquices dos povos bantos foram associados a santos católicos, como, por exemplo, nas associações entre a orixá Iemanjá e a inquice Dandalunda com Nossa Senhora, ou entre a orixá Iansã e Santa Bárbara. A umbanda, fundada no século XX, resultou da sistematização de um processo maior de modif ica- ções, como a crença da manifestação de espíritos errantes em sessões medi- únicas e o abandono de rituais de sacrifício. Já o candomblé é a mais difundida entre as religiões trazidas pelos grupos africanos para o Brasil, tendo preservado muitas das características originais, apesar das mudanças. Seus rituais costumam ser embalados por cantos, em

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Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 165 5/28/13 8:42 AM terreiros, como são chamados os locais de culto aos orixás, onde se realizam oferendas aos deuses e são feitas consultas espirituais. Tais locais são cuidados e dirigidos por um pai (babalorixá) ou uma mãe (ialorixá) de santo. As religiões dos indígenas brasileiros são tão diversas quanto são os po- vos indígenas que habitam o território nacional, e muitas delas são ainda hoje praticadas. Recentemente houve grande aumento de pesquisas que oferecem aos etnólogos material para o melhor conhecimento da sociedade brasileira. Estudos sobre os movimentos messiânicos no Brasil revelam, por exemplo, a associação de personagens míticos e rituais de origem indígena à sua ação política, como na Guerra do Contestado, região em disputa pelos estados do Paraná e de Santa Catarina no início do século XX.

dEBatE

De que forma o sincretismo religioso está presente nas práticas sociais do brasileiro? Segundo o que aprendemos neste capítulo, você diria que somos ou não um povo religioso? Acompanhe a exposição do antropólogo brasileiro Roberto DaMatta (1936-) e, em equipe, discutam o assunto.

Do mesmo modo que temos pais, padrinhos e patrões, temos também entida- des sobrenaturais que nos protegem. E elas podem ser de duas tradições religiosas aparentemente divergentes. Isso realmente não importa. O que para um norte- -americano calvinista, um inglês puritano ou um francês católico seria sinal de su- perstição e até mesmo de cinismo ou ignorância, para nós é modo de ampliar nossa proteção. E também, penso, um modo de enfatizar essa enorme e comovente fé que todos nós temos na eternidade da vida. Assim, essas experiências religiosas são todas complementares entre si, nunca mutuamente excludentes. O que uma delas fornece em excesso, a outra nega. E o que uma permite, a outra pode proibir. O que uma intelectualiza, a outra traduz num código de sensual devoção. Aqui também nós, brasileiros, buscamos o ambíguo e a relação entre esse mundo e o outro [...] Assim, se no Natal vamos sempre à Missa do Galo, no dia 31 de dezembro vamos todos à praia vestidos de branco, festejar o nosso orixá ou receber os bons fluidos da atmosfera de esperança que lá se forma. Somos todos mentirosos? Claro que não! Somos, isso sim, profundamente religiosos.

DAMATTA, Roberto. o que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p. 115-116.

pausa para rEflEtIr

Quando tratamos de religião, estão em pauta questões referentes aos direitos huma- nos, por serem eles inerentes a todas as pessoas, independentemente de sexo, na- cionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. As sociedades de- vem garantir aos indivíduos e grupos sociais o direito à vida e à liberdade, o direito ao trabalho e à educação, mediante o poder político organizado. Essas garantias ao cidadão têm inspiração, por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos Huma- nos, um dos documentos básicos das Nações Unidas, assinada em 1948, logo após a Segunda Guerra Mundial. A Declaração contém os direitos de todos os seres huma- nos, mencionando, entre outros assuntos, a questão da religião. Acompanhemos um excerto do texto original: artigos I, II e XVIII:

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Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 166 5/28/13 8:42 AM Declaração Universal dos Direitos Humanos (Adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948)

Artigo I. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dota- dos de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fra- ternidade. Artigo II. 1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabe- lecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, ri- queza, nascimento, ou qualquer outra condição. 2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídi- ca ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania. Artigo XVIII. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência, religião; este di- reito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.

NAÇÕES Unidas. declaração dos direitos humanos. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2012.

1. O que af irma a Declaração Universal dos Direitos Humanos a respeito da religião? 2. Pelo que vemos diariamente nos noticiários e pelo que estudamos neste capítulo, sabemos que existem manifestações de intolerância religiosa em diversas partes do mundo. Na sua opinião, é possível conciliar liberdade religiosa, tolerância e direitos humanos? Qual seria o papel do Estado em relação a essa questão?

dIálogos IntErdIscIplInarEs

Considerando o que você aprendeu neste capítulo, sugerimos que pro- cure conhecer mais sobre as religiões afro-brasileiras, como segue: 1. Faça uma pesquisa na internet sobre as religiões afro-brasileiras (candomblé e umbanda), seus símbolos, rituais e divindades, estabelecendo as semelhanças e diferenças entre ambas, e escreva uma breve síntese. Finalize seu texto com um comentário sobre o sincretismo religioso no Brasil e os locais em que há maior presença das religiões afro-brasileiras no país. 2. Pesquise as músicas interpretadas por Clara Nunes e Maria Bethânia que fazem referência a essas religiões. Selecione algumas dessas letras de música ou assista aos clipes disponíveis na internet. 3. Apresente o material que conseguiu produzir em sua aula de: • Sociologia, de forma a provocar um debate sobre religiões afro-brasileiras e a noção de sincretismo religioso;

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Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 167 5/28/13 8:42 AM • Língua Portuguesa, para analisar o texto produzido, do ponto de vista da estru- tura, normatização e argumentação; • Música/Arte, para estudar a composição musical, seu ritmo e forma de expressão; • Geograf ia, para verif icar os estados do país onde as religiões afro-brasileiras estão mais presentes.

rEvIsar E sIstEmatIzar

1. Como os chamados “autores clássicos” da Sociologia analisam o tema da religião na modernidade? 2. Qual é a análise de Renato Ortiz sobre a religião na realidade atual? Para o autor, é correto af irmar que ela está em declínio? 3. Por que a religião é considerada culpada por inúmeros conflitos, sobre- tudo após os atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Uni- dos? Essa perspectiva de análise é correta? Justif ique sua resposta. 4. Relacione globalização, religião e fundamentalismo religioso. 5. Quais são as tendências apontadas por pesquisas recentes quanto ao comportamento dos brasileiros com relação às práticas religiosas? 6. Pode-se observar ao longo da história, em períodos diversos, uma es- treita relação entre o Estado e as religiões institucionalizadas. De que forma essas instituições se influenciam nos dias de hoje? Filipe Rocha/Arquivo da editora Filipe Rocha/Arquivo

conceitos-chave: Religião, processo de desnaturalização, secularização, fundamentalismo religioso, fenômeno religioso, consciência coletiva, sagrado, institucionalização social, conflitos sociais, sincretismo religioso.

dEscuBra maIs

As Ciências Sociais na biblioteca DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004. Essa obra trata do Islã, das suas origens à atualidade, além de conflitos que envolvem direta ou indiretamente a religião islâmica. PINSKY, Carla B.; PINSKY, Jaime. Faces do fanatismo. São Paulo: Contexto, 2004. Essa reflexão mostra os vários tipos de fanatismos na realidade histórica e social, e que o religioso é apenas um deles. Divulgação/Embrafilmes As Ciências Sociais no cinema A árvore dos tamancos, 1978, Itália/França, direção de Ermanno Olmi. História em uma aldeia italiana que mostra o papel da fé religiosa na vida simples dos camponeses, entre a incerteza e o idealismo. Domingo sangrento, 2001, Inglaterra, direção de Paul Greengrass. Narra o início do confronto entre o IRA e o exército britânico, que provocou uma guerra civil. O nome da rosa, 1986, Alemanha/França/Itália, direção de Jean-Jacques Annaud. História escrita por Umberto Eco e adaptada para o cinema que possibilita refletir sobre o papel da Igreja católica e sua relação com o conhecimento na Idade Média. Cartaz do filme O pagador de O pagador de promessas, 1962, Brasil, direção de Anselmo Duarte. promessas, dirigido por Filme clássico do cinema brasileiro que, sem se restringir à questão religiosa, revela o preconceito, Anselmo Duarte. a intolerância e o dogmatismo na realidade social.

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Sociologia_vu_PNLD15_149a170_C06.indd 168 5/28/13 8:42 AM As Ciências Sociais na rede Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: . Acesso em: 6 nov. 2012. No site do IBGE é possível acessar dados e estatísticas sobre as religiões no Brasil.

Retratos das Religiões no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 2 set. 2012. Site ligado à Fundação Getúlio Vargas que traz informações e dados sobre as religiões no Brasil.

Atlântico Negro – na rota dos orixás. Disponível em: . Acesso em: 6 nov. 2012. Vídeo dirigido por Renato Barbieri sobre as religiões e os diversos tipos de cultos afro-brasileiros.

BIBlIografIa AQUINO, Rubin et al. História das sociedades. Rio de Janeiro: Editora ao Livro Técnico, 1997.

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