UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Ana Carolina Campos Pereira Serpa Martins

LOBÃO: DO VÍMANA À VEJA

Juiz de Fora

2016

Ana Carolina Campos Pereira Serpa Martins

LOBÃO: DO VÍMANA À VEJA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito para obtenção do Título de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Dmitri Cerboncini Fernandes

Juiz de Fora

2016

Ana Carolina Campos Pereira Serpa Martins

LOBÃO: DO VÍMANA À VEJA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito para obtenção do Título de Mestre.

Aprovada em: 24 de junho de 2016

BANCA EXAMINADORA

______Dr. Dmitri Cerboncini Fernandes - Orientador Departamento de Ciências Sociais – UFJF

______Dra. Lidiane Soares Rodrigues Departamento de Ciências Sociais - UFSCar/SP

______Dr. Paulo Roberto Figueira Leal Departamento de Comunicação e Artes – UFJF

A Beth, Paulo, Luis Fernando, Paulo Guilherme e Flavinha, meus amores e companheiros de caminhada. AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dmitri Cerboncini Fernandes, que, de forma generosa e competente, forneceu todo o conhecimento e apoio necessários à realização deste trabalho. À amiga Vanessa Gomes de Castro, que, já tendo concluído essa jornada, apontou os caminhos, contribuindo para que eu chegasse até aqui. Aos professores Lidiane Soares Rodrigues e Paulo Roberto Figueira Leal que, dispondo de seu tempo e conhecimento, analisaram este trabalho e forneceram preciosas contribuições. Ao amigo José Wellington de Souza pelo companheirismo e auxílio em momentos importantes para a definição desta pesquisa. Aos professores Fernando Perlatto e Christiane Jalles pelas valiosas sugestões durante o exame de qualificação. À Maria Cecilia Müller de Rezende pela compreensão e generosidade, fundamentais para a realização da difícil tarefa de estudar e trabalhar. Aos talentosos colegas do Núcleo de Pesquisa sobre Preconceito, Autoridade e Ideologia, fonte constante de inspiração. À Universidade Federal de Juiz de Fora e ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, através de seus professores e funcionários, por fornecerem a estrutura necessária para o desenvolvimento deste trabalho.

RESUMO

De roqueiro a integrante da bateria da Mangueira, de morador da zona sul carioca a ‗xerife‘ da cela 11 da Polinter (Política Interestadual), de militante do Partido dos Trabalhadores a líder das passeatas pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT): eis alguns desafios impostos a quem pretende compreender a insólita trajetória de Lobão. A carreira de Lobão foi marcada pela inconstância de seus posicionamentos. Esquerda ou direita? Rock ou MPB? Grandes gravadoras ou mercado independente? Compreender as ditas contradições e as guinadas do músico nos campos artístico e político constituem o grande objetivo desta pesquisa. A seu modo, Lobão se faz presente há mais de quarenta anos na vida cultural e política do país, justificando o interesse na realização de um estudo acadêmico sobre sua trajetória.

Palavras-chave: sociologia da cultura; campo do rock brasileiro; música popular brasileira; política; direita; antipetismo.

ABSTRACT

From rocker to member of the drum section of Mangueira school, from resident of Southern to ―sheriff‖ of cell 11 of the Interstate Police Prison (Polinter), from Workers‘ Party (PT) militant to leader of protests demanding the impeachment of president Dilma Rousseff (PT): these are some of the challenges faced by someone trying to understand Lobão‘s peculiar trajectory. Lobão‘s career was characterized by the inconsistency of his positions. Left or right? Rock or Brazilian Popular Music (MPB)? Major record labels or independent market? Understanding such contradictions and the twists and turns of the musician‘s path in the artistic and political fields represent the main objective of this research. In his own way, Lobão has been present in ‘s cultural and political life for more than forty years, which justifies the idea of developing an academic study about his journey.

Key-words: sociology of culture; ; Brazilian popular music; politics; rightism; anti-PT movement.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 10 Algumas considerações sobre o jornalismo cultural brasileiro ...... 12

1 O CAMPO MUSICAL BRASILEIRO: DA MPB AO ROCK ...... 15 1.1 A configuração do campo musical nos anos 60 ...... 17 1.2 Correntes musicais em disputa ...... 20 1.3 O ressurgimento do pensamento oswaldiano na cultura nacional ...... 21 1.4 A Tropicália ...... 24 1.5 A indústria fonográfica ...... 29 1.6 Esse tal de rock and roll ...... 30 1.7 O mercado do rock ...... 32 1.8 O rock brasileiro na hierarquia dos gêneros ...... 34

2 A CONSOLIDAÇÃO DA CARREIRA DE LOBÃO NOS ANOS 80 ...... 42 2.1 Capitalizando o pioneirismo ...... 45 2.2 De baterista a frontman ...... 46 2.3 O roqueiro e o poeta ...... 50 2.4 O reconhecimento público ...... 52 2.5 O grupo de Lobão ...... 55 2.6 O rock errou? ...... 58 2.7 Vida Bandida ...... 61 2.8 Cuidado! ...... 62

3 OS DESAFIOS PARA PERMANECER NO MAINSTREAM ...... 65 3.1 O mercado independente ...... 68 3.1.1 A trajetória no universo paralelo ...... 73 3.2 O retorno ao mainstream ...... 74 3.3 As lutas classistas ...... 84 3.4 Posições em disputa ...... 86 3.4.1 O embate musical entre e Lobão ...... 92 3.4.2 A disputa entre Lobão e no campo do rock brasileiro ...... 100 3.4.3 A consagração através dos prêmios de música ...... 104

4 O ENVOLVIMENTO DE LOBÃO NAS DISPUTAS POLÍTICO-PARTIDÁRIAS ...... 109 4.1 Cláudio Tognolli, um elo com o movimento antipetista ...... 119 4.2 A formação de um novo grupo ...... 122 4.3 A atuação política na internet ...... 130 4.3.1 Os hangouts ...... 132 4.4 Homologia entre os campos político e musical ...... 133 4.5 A indeterminação artística e política ...... 137

5 ―QUEM É QUE VAI ANUNCIAR A PRÓXIMA ATRAÇÃO?‖ ...... 141

REFERÊNCIAS ...... 146

10

INTRODUÇÃO

"Ao longo desses 40 anos, fixou uma imagem complexa, ambígua, não raro contraditória - desperta paixões e ódios em proporções equivalentes -, e esse caráter sempre ambivalente é a própria essência de seu marketing pessoal. Com o perdão do clichê, há muitos, inúmeros Lobões: o grande artista, o homem que ama as polêmicas, o lobo em pele de cordeiro, o cordeiro em pele de lobo, o esquerdireirista, o falastrão que tempera genialidade musical com falatório político em ritmo de besteirol etc. etc. etc." (SANCHES, 2012)1. A descrição poderia definir com certa precisão alguns aspectos da trajetória de Lobão. Não é a ele, entretanto, que o trecho acima destacado se refere. Em uma nova leitura substitua 40 anos por 45 e Lobões por Caetanos e encontrará a verdadeira notícia, dedicada aos 70 anos do músico baiano. Apesar das aparentes semelhanças, os artistas ocupam polos opostos no campo da música brasileira. Enquanto Caetano lota shows, recebe prêmios e homenagens, Lobão envereda por outras atividades, como a literatura e as polêmicas políticas, para conquistar visibilidade e seguir produzindo. A aproximação entre os artistas será objeto de análise deste trabalho, não sendo, entretanto, seu foco principal. A escolha por iniciá-lo a partir desse aspecto tem por objetivo desconstruir parcialmente alguns estereótipos comumente associados ao roqueiro. No ambiente acadêmico, a escolha de Lobão como objeto de estudo foi alvo de questionamentos em diversas ocasiões. Sem considerar os aspectos significativos de sua trajetória, descredenciam-no antecipadamente como objeto digno de pesquisa. Por que estudar a trajetória de Lobão? Escutei diversas vezes. Respondo nesta oportunidade: pelo mesmo motivo que estudaria a carreira de Caetano Veloso. Do ponto de vista sociológico, o estudo das trajetórias de ambos os músicos auxilia na compreensão do desenvolvimento da cultura nacional. Desempenhando papéis centrais nos movimentos musicais a que pertenceram, o relativo sucesso ou fracasso não constitui aspecto determinante para sua relevância acadêmica. As contribuições de Lobão para o campo do rock nacional, o diálogo estabelecido com a tradição da música popular brasileira, os questionamentos à forma de atuação da indústria fonográfica, o envolvimento nas lutas classistas e sua incursão no universo da música independente fazem de sua trajetória um rico objeto de pesquisa.

1 SANCHES, Pedro Alexandre. De tropicalista inspirado, Caetano chega aos 70 abraçando contradições que um dia denunciou. UOL. 07 ago. 2012. Disponível em: Acesso em: 9 abr. 2016. 11

Outro fator que justifica a importância de se compreender a trajetória de Lobão, além de conferir atualidade ao tema, é a recente atuação política do músico. Antigo defensor do Partido dos Trabalhadores, a partir da publicação do livro Manifesto do nada na Terra do Nunca, Lobão aderiu abertamente ao movimento de oposição ao PT, figurando ao lado de notórios direitistas e liberais. As ideias apresentadas no livro obtiveram grande repercussão, com o músico se destacando como um importante interlocutor do movimento antipetista. Tal posicionamento fez com que Lobão ganhasse uma coluna na revista Veja, veículo que se transformou no maior porta voz das pautas de direita, agrupando notórios jornalistas conservadores. Com a visibilidade adquirida, Lobão foi objeto de discussões na imprensa, e seus posicionamentos passaram a ser debatidos tanto por aqueles que concordavam com seus argumentos quanto por aqueles que se opunham. Diversas matérias procuraram explicar sua ‗guinada à direita‘. As manchetes dão o tom da discussão: ―Por que Lobão e Roger se transformaram em dois derrotistas explícitos?‖ (MENEZES, 2013)2; ―Por que Lobão fala tanta bobagem?‖ (NOGUEIRA, 2013)3; ―Lobão faz (certo) sentido‖ (ALEXANDRE, 2014)4, ―Escribas de aluguel‖ (SADER, 2013)5, para citar algumas. Esses artigos recorrem reiteradamente à sociologia espontânea para explicar o fenômeno. A mudança de posicionamento de Lobão é elucidada, dessa forma, através de argumentos como o do ‗eterno adolescente‘ e do ‗roqueiro rebelde‘, que procura sistematicamente contestar o estabelecido; do ‗ex-músico‘ e ‗polemista fracassado‘, que utiliza a política para projetar sua carreira musical; e da ‗origem burguesa‘, que explicaria uma possível reconversão de classe social. As respostas não abarcam os diversos aspectos que contribuíram para o atual posicionamento político do músico. Utilizando pequenos fragmentos da realidade social para explicar a guinada política, simplificam demasiadamente o fenômeno. Uma pesquisa que pretenda analisar as guinadas artísticas e políticas de Lobão, indo além das prenoções e do senso comum, exige atenção para aspectos que extrapolam sua biografia, incluindo a compreensão dos contextos musical e político em que sua carreira se

2 MENEZES, Cynara. Por que Lobão e Roger se transformaram em dois derrotistas explícitos? Pragmatismo Político. 02 mai. 2013. Disponível em: Acesso em: 30 nov. 2014. 3 NOGUEIRA, Paulo. Por que Lobão fala tanta bobagem? Diário do Centro do Mundo. 6 set. 2013. Disponível em: Acesso em: 30 nov. 2014. 4 ALEXANDRE, Ricardo. Lobão faz (certo) sentido. R7. 05 nov. 2014. Disponível em: < http://entretenimento.r7.com/blogs/ricardo-alexandre/lobao-faz-certo-sentido-20141105/> Acesso em: 30 nov. 2014. 5 SADER, Emir. Escribas de aluguel. Blog da Boitempo. 21 ago. 2013. Disponível em: Acesso em: 02 dez. 2015. 12

insere. Para isso, norteou a pesquisa o aporte teórico fornecido por Pierre Bourdieu, através, principalmente, do livro As regras da arte, e por Norbert Elias, através de Mozart: Sociologia de um gênio. O presente trabalho foi desenvolvido a partir da hipótese da homologia entre os campos artístico e político. Faz-se premente, além disso, compreender o posicionamento de Lobão no campo musical para que seja possível explicar o atual engajamento antipetista do cantor. Nesse sentido, os principais desafios foram reconstituir o sistema de relações estabelecido no campo da música popular brasileira ao longo das últimas décadas e buscar compreender como Lobão se localizou nesse espaço de disputas para, assim, analisar suas tomadas de posição, incluindo as políticas. Com o intuito de aplicar um olhar sociológico à narrativa construída pelo músico - principalmente através de seus livros: a autobiografia 50 anos a mil, o Manifesto do Nada na Terra do Nunca e Em Busca do Rigor e da Misericórdia: reflexões de um ermitão urbano - foram analisadas diversas fontes de informação, com destaque para as notícias publicadas sobre o músico nos jornais O Globo, Jornal do Brasil e Folha de S. Paulo, no período de 1976 a 2016. Foram analisadas também as colunas de Lobão na revista Veja e os conteúdos postados na rede social . Contando, além disso, com o auxílio de livros que resgatam a história da música brasileira, com destaque para o movimento rock dos anos 80 e seus principais personagens, foi possível coletar informações que possibilitaram a compreensão de alguns de seus posicionamentos. Todos os aspectos apresentados fazem com que a trajetória de Lobão enquanto sujeito social e músico constitua um interessante objeto de pesquisa. Se estudada sociologicamente, poderá ajudar a compreender a sociedade brasileira contemporânea, com destaque para os campos da cultura e da política.

Algumas considerações sobre o jornalismo cultural brasileiro O conteúdo jornalístico produzido durante os mais de quarenta anos de vida pública de Lobão constituiu uma importante fonte de informação para a compreensão de sua trajetória. Através das páginas dos cadernos culturais dos principais jornais do país, foi possível reconstituir algumas das questões que nortearam a produção musical durante as últimas décadas. Além disso, o acesso às notícias factuais, aos embates – estimulados e retratados pela imprensa – e às manifestações dos artistas sobre os assuntos em pauta evitou que essa pesquisa ficasse restrita à análise que os músicos, sobretudo Lobão, realizam sobre seu campo de atuação a partir de uma visão retrospectiva, procurando estabelecer uma inteligibilidade 13

linear aos acontecimentos. O conteúdo produzido pela imprensa foi, dessa maneira, fundamental para evitar o que Bourdieu (1996c) denominou de ‗ilusão biográfica‘, permitindo reconstituir parcialmente a configuração do campo musical no decorrer da trajetória de Lobão e compreender como essa configuração orientou suas escolhas. Tendo em vista a relevância dessa fonte de informação, julgo importante abordar, de forma breve, algumas questões sobre o jornalismo cultural, com destaque para a crítica musical no país. A importância dos críticos para o campo cultural advém do capital simbólico que lhes confere autoridade para atuar no trabalho de consagração das obras. O crítico exerce importante papel na formação do gosto, atuando como mediador entre a obra de arte e o público, bem como orientando o consumo (BOURDIEU, 2004). Para um melhor entendimento dos parâmetros de apreciação musical estabelecidos pela crítica nacional, é necessário reportar aos textos de Mário de Andrade na imprensa. Conforme aponta Bollos (2006), o escritor modernista pode ser considerado o primeiro grande crítico musical do país, tendo atuado em jornais como Diário Nacional, Diário de S. Paulo e Folha da Manhã; nas revistas Ilustração Brasileira e Revista Nova. A preocupação com o estabelecimento de uma identidade nacional na música norteou seus escritos, com suas críticas sendo caracterizadas pelo teor informativo, analítico e didático, visando à ampliação da cultura do público leitor (RIBEIRO, 2008). O enfoque nacional-popular, presente na produção de Mário de Andrade, norteou o debate musical nas décadas seguintes. Com o surgimento da bossa nova, duas linhas de compreensão da produção musical foram adotadas pelos críticos: uma ligada aos elementos considerados autenticamente nacionais, que foi representada pelo crítico José Ramos Tinhorão, e outra que apostava na modernização da música brasileira, representada, dentre outros, por (RIBEIRO, 2008). Uma tendência que começou a ganhar destaque na crítica foi a preponderância assumida pelos aspectos políticos e ideológicos das obras. Estudiosos do assunto compreendem o fenômeno como decorrente da ausência de conhecimento técnico dos críticos em relação ao campo artístico objeto de análise, o que teria levado uma parcela cada vez mais significativa dos críticos a priorizar os aspectos externos à produção artística para fundamentar suas opiniões (BOLLOS, 2005).

Houve, portanto, uma mudança entre dois momentos do jornalismo cultural do país: a passagem de um jornalismo de características literárias e de militância em torno de valores, como fizeram Mário de Andrade e Otto Maria Carpeaux, por exemplo, décadas atrás, para o atual que se iniciou na década de 60, um modelo influenciado pela indústria cultural, que explora do texto um caráter ideológico, porém não discute a obra em si e seus aspectos estéticos. (BOLLOS, 2005, p. 60). 14

Há que se destacar, entretanto, o papel desempenhado pelos críticos na formação do gosto, através do trabalho de seleção de quais artistas merecem ser ouvidos. Napolitano (2006) destaca a influência que Tárik de Souza, Nelson Motta e Ana Maria Bahiana exerceram junto às plateias jovens dos anos 1970. No mesmo sentido, Dapieve (2015) aborda a importância de Ana Maria Bahiana, Maurício Kubrusly e Jamari França para a legitimação do rock nacional. Apesar disso, é possível observar na literatura sobre jornalismo cultural desenvolvido no país uma visão pessimista quanto aos rumos tomados pela área, com os cadernos sendo criticados por sua superficialidade, decorrente do excessivo destaque dado às celebridades, do ‗colunismo‘ e da ênfase na cobertura de eventos da indústria cultural (PIZA, 2010). Nesse sentido, a crítica vem se caracterizando por análises ―com poucas linhas e pouco destaque visual, mais e mais baseada no achismo, no palpite, no comentário mal fundamentado mesmo quando há espaço para fundamentá-lo" (PIZA, 2010, p. 59). Os dados coletados para esta pesquisa, a partir do noticiário cultural dos principais veículos de comunicação, devem ser compreendidos tendo em vista as características do jornalismo cultural nas últimas décadas. É possível verificar através do conteúdo das matérias sobre o trabalho de Lobão uma preponderância dos aspectos exteriores à produção artística, com tentativas cada vez mais escassas de julgamentos propriamente estéticos. O quadro descrito pode ser constatado através da crítica do jornal O Globo sobre seu último disco, O rigor e a misericórdia, abaixo reproduzida integralmente:

Crítica: Disco de Lobão tem fantasmagórico virtuosismo ‗O rigor e a misericórdia‘ tem filosofia, palavras e absoluta musicalidade do astro do rock Dramático, eventualmente afetado, furiosamente talentoso, Lobão lembra em muitos momentos o astro do rock (e só do rock) de décadas passadas em seu novo disco. Aos 58 anos, João Luiz Woerdenbag Filho, que nunca foi de economizar, não faz por menos: vocabulário, instrumental, melodia, performance vocal, tudo é marcado por um certo exagero, que dá uma cara ao disco, além da qualidade do compositor, cantor e instrumentista. Originalmente baterista, há décadas Lobão se defende bem em vários instrumentos, como mostra nos violões de aço (que dão o tom da maioria das músicas), guitarras e baixos deste ―O rigor e a misericórdia‖. O assunto favorito de Lobão nos últimos anos, a política, está presente em músicas como ―A marcha dos infames‖ e ―A posse dos impostores‖, mas na maior parte do disco ele é apenas Lobão, com sua filosofia, suas palavras e sua absoluta musicalidade. Cotação: Bom. (ARAÚJO, 2016)6.

6 ARAUJO, Bernardo. Crítica: Disco de Lobão tem fantasmagórico virtuosismo. O Globo. 25 nov. 2015. Disponível em: Acesso em: 23 mar. 2016. 15

1 O CAMPO MUSICAL BRASILEIRO: DA MPB AO ROCK

"Amado Caetano: Chega de verdade Viva alguns enganos Viva o samba‚ meio troncho Meio já cambaleando A bossa já não é tão nova Como pensam os americanos A Tropicália será sempre o nosso Sargent Pepper pós-baiano" (LOBÃO, 2001)7

João Luiz Woerdenbag Filho, popularmente conhecido como Lobão, nasceu em 1957, no Rio de Janeiro, no seio de uma família de classe média8 conservadora, para utilizar suas próprias palavras (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010). Seu pai, João Luiz Woerdenbag, trabalhou como mecânico de automóveis de luxo. A carreira paterna, bem como a condição financeira de sua família, apresenta uma trajetória descendente. No auge, chegou a possuir uma oficina com diversos funcionários, terminando, porém, como empregado de uma concessionária de carros importados. Advindo de uma família de posses, o pai de Lobão não deixou a mesma condição aos filhos. ―Meu avô era rico. Meu pai foi perdendo, perdendo, perdeu tudo‖ (SANCHES, 2011)9, afirmou o músico. A mãe, Ruth Araújo de Mattos, apesar de ter concluído os estudos superiores10, foi dona de casa durante os primeiros anos de casamento, passando a trabalhar como professora de inglês. A irmã caçula, Glória Maria, completa o núcleo familiar. A infância do músico11 foi marcada pela forte presença materna. A nefrose contraída aos dois anos de idade exigiu cuidados que reforçaram os laços entre mãe e filho. A superproteção de Ruth limitaria o convívio social de Lobão durante os primeiros anos de vida. A música, em especial a bateria, representara uma fuga diante das dificuldades de relacionamento na infância e uma forma de integração social na adolescência. A imersão nesse universo fez com que Lobão adquirisse uma sólida bagagem musical. Quando se profissionalizou, aos 17 anos, já dominava um vasto repertório, que ia de canções de rock

7 LOBÃO. Mano Caetano. In: LOBÃO. Uma Odisseia no Universo Paralelo. U.P. Produções, 2001. Faixa 13. 8 Ao longo de sua autobiografia Lobão destaca diversos índices que permitem compreender a condição financeira de sua família. Residiram em amplas casas na Zona Sul carioca, possuíam carros importados, sítio e os filhos estudaram em colégios particulares. 9 SANCHES, Pedro Alexandre. Lobão: a ovelha negra da música brasileira. IG. 11 fev. 2011. Disponível em: Acesso em: 18 out. 2014. 10 Em sua autobiografia Lobão não informa qual foi o curso superior de sua mãe, destacando apenas a fluência de Ruth nos idiomas inglês, francês e italiano e sua atuação como professora de línguas. 11 A autobiografia 50 anos a mil é a principal fonte de acesso aos acontecimentos que marcaram a infância e a adolescência de Lobão.

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tocadas na bateria a músicas eruditas no violão, com sua qualidade enquanto instrumentista sendo reconhecida entre os pares e pela crítica especializada. O gosto de Lobão pela música se desenvolveu durante o período de estabelecimento da MPB enquanto um dos gêneros de maior consagração, ao mesmo tempo em que o rock começava a ganhar importância entre o público jovem, ancorado no sucesso mundial de bandas americanas e inglesas. Na encruzilhada entre o rock e a MPB, a obra de Lobão representa um ponto de tensão entre as duas correntes. Pertencendo ao movimento que contribuiu para a consolidação do rock no país na década de 1980, seu posicionamento ao longo da carreira, entretanto, alterna momentos de defesa e de crítica ao gênero. Apesar de atualmente se assumir enquanto roqueiro e atuar em defesa de uma estética ―eletrificada, potente e livre de chavões preconcebidos como o da MPB‖ (LOBÃO, 2013, p. 34), Lobão nem sempre desejou pertencer ao rótulo. Ele afirma à revista Bizz, em 1999: ―o rock precisa ser questionado. As melhores pessoas que fizeram rock'n'roll não se satisfizeram com isso" (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010, p. 487). Com isso, aponta as limitações do estilo. Numa tentativa de dissociar sua imagem do estereótipo de roqueiro, procurou destacar seu domínio sobre outras formas de produção musical, tidas como mais complexas, como a bossa nova. ―Na minha geração, fui o cara mais MPB. Tive influência de bossa nova, harmonia. Poderia fazer carreira de bossanovista‖ (SANCHES, 2011)12, afirma. Lobão procura destacar com a fala que o rock foi uma opção estética, relacionada à valorização de um discurso simples e direto, e não um recurso diante da falta de conhecimento musical. Com o intuito de conquistar reconhecimento artístico, reproduz e legitima os parâmetros estabelecidos no campo da música brasileira. Apesar de tentar se distanciar das limitações que o termo roqueiro evoca, seu trabalho, sua imagem e suas possibilidades de atuação estão condicionadas à posição que o rock ocupa na hierarquia dos gêneros. Todas essas questões apresentadas por Lobão estão diretamente relacionadas ao contexto de consolidação do rock no país. Para se estabelecer, os jovens músicos inicialmente adotaram um discurso de diferenciação em relação à produção musical consagrada. Para uma melhor compreensão das posições em disputa, é preciso resgatar as questões que nortearam o estabelecimento da MPB - sigla que abarcou diversos projetos musicais como a bossa nova, a ‗esquerda universitária‘ e a Tropicália – enquanto gênero consagrado nos anos 60,

12 SANCHES, Pedro Alexandre. Lobão: a ovelha negra da música brasileira. IG. 11 fev. 2011. Disponível em: Acesso em: 18 out. 2014. 17

estabelecendo os parâmetros de música de qualidade durante as décadas seguintes (NAPOLITANO, 2002). É contra esse padrão estabelecido que a geração de jovens músicos dos anos 80 se posicionaria. Influenciados pelo som produzido em terras estrangeiras, os roqueiros procuraram distinguir seus trabalhos da produção consagrada no país. ―Era aquele preciosismo de araque, a genealogia, procurar a linha evolutiva (da música popular brasileira). Fomos fazer uma coisa simples, porque esse rococó é inócuo, cafona, culturalista. A nossa causa era derrotá-los, derrotar a MPB‖ (SANCHES, 2011)13, aponta Lobão sobre o que a MPB representava para a sua geração, destacando também a ambição de ruptura dos roqueiros no início do movimento. O enfraquecimento do nacional-popular na produção cultural, associado ao desejo dos jovens músicos de deixarem o anonimato social, norteou a busca da geração de 1980 "por um reconhecimento estético que exigia autonomia frente à MPB" (MAGI, 2011, p. 16).

1.1 A configuração do campo musical nos anos 60 Enquanto Lobão dava seus primeiros passos na música, descobrindo seu talento para a bateria, o país sofria importantes transformações. Em 1962, o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE) produziu o Anteprojeto do Manifesto do Centro Popular de Cultura, estabelecendo importantes diretrizes para a consolidação de uma esquerda cultural no Brasil. Escrito pelo sociólogo Carlos Estevam Martins, o documento postulava o compromisso da arte com as transformações sociais. Compreendida enquanto superestrutura, a arte só exerceria sua função enquanto arte popular revolucionária. No entendimento do CPC, a cultura deveria ser desenvolvida para o povo. Assim, a forma e o conteúdo de uma obra deveriam privilegiar a clareza, o que facilitaria sua apreensão pelas camadas mais baixas da população. De acordo com essa concepção, a arte deveria impulsionar a ação revolucionária, daí a importância de seu didatismo.

Desejando acima de tudo que sua arte seja eficaz, o artista popular não pode jamais ir além do limite que lhe é imposto pela capacidade que tenha o espectador para traduzir, em termos de sua própria experiência, aquilo que lhe pretende transmitir o falar simbólico do artista. A quem nos disser que isto representa um cerceamento da liberdade criadora, responderemos que sim; a quem nos disser que não devia ser assim, responderemos igualmente sim. O que só não podemos aceitar é a afirmação de que os valores formais sejam tão valiosos que em seu nome se justifique o nosso afastamento do

13 SANCHES, Pedro Alexandre. Lobão: a ovelha negra da música brasileira. IG. 11 fev. 2011. Disponível em: Acesso em: 18 out. 2014. 18

povo. Se estamos solidários com o povo é porque afirmamos que nossa arte só irá onde o povo consiga acompanhá-la, entendê-la e servir-se dela. (MARTINS, 1962, p. 160/161).

Em contraposição ao conceito de cultura preconizado pelo CPC estaria toda forma de arte que priorizasse a fruição estética, destinada a uma minoria, uma elite social. O academicismo artístico foi fortemente criticado por seu aspecto alienado frente aos problemas sociais. Esses artistas que, de acordo com a visão do CPC, estariam a serviço de causas antipopulares, poderiam dedicar-se livremente ao desenvolvimento da técnica, haja vista compartilharem o mesmo universo cultural de seu público. Dentro dessa concepção de esquerda revolucionária, seria um erro o conceito de uma arte autônoma, que se fecharia dentro de seus próprios parâmetros, em busca da superação de tensões próprias ao campo artístico, sem levar em conta as condições sociais e históricas. Para o CPC, só há possibilidade de transformação através do estabelecimento de uma oposição organizada. Dessa forma, dirige sua crítica até mesmo aos artistas que adotam uma postura contestatória, de inconformismo diante das contradições sociais, porém de forma independente. Na medida em que não articulariam sua ação, não conseguiriam atingir os detentores do poder e tampouco modificar a sociedade. As ideias apresentadas pelo Anteprojeto geraram polêmica dentro do próprio CPC. Nem todos concordaram com sua definição de arte engajada, principalmente no que tange ao distanciamento dos movimentos vanguardistas. No entanto, algumas de suas concepções ganharam força, modificando o panorama da arte nacional e consolidando a hegemonia dos comunistas no campo cultural até o final dos anos 1970 (NAPOLITANO, 2014). Diante da chegada dos militares ao poder, em diversas áreas, como na música, no cinema e no teatro, opor-se à ditadura transformou-se em um imperativo e, de alguma forma, a arte que não fosse contestatória passou a ser considerada alienada e a favor dos militares.

Seja no nível da produção em traços populistas, seja em relação às vanguardas, os temas da modernização, da democratização, o nacionalismo e a ―fé no povo‖ estarão no centro das discussões, informando e delineando a necessidade de uma arte participante, forjando o mito do alcance revolucionário da palavra poética. (HOLLANDA, 2004, p. 21).

Conceitos como cultura nacional-popular e arte engajada forneceram as bases do projeto artístico defendido por parte da MPB. Sob estas influências, o movimento se caracterizaria principalmente pela busca de uma sonoridade brasileira, em contraposição à música estrangeira, e pela temática social, de resistência à ditadura (NAPOLITANO, 2014). Com o 19

fortalecimento do ideal do artista engajado, a esquerda musical começou a se contrapor à bossa nova, conquistando um espaço de destaque no campo da música popular brasileira. Diferentemente da corrente majoritária da bossa nova, cujas letras ligadas às amenidades da zona sul e cuja influência do jazz distanciavam o gênero do momento vivido pelo país, os novos músicos privilegiaram os elementos musicais ligados à identidade nacional e os conteúdos mais politizados. Apesar de a estrutura formal bossanovista continuar sendo explorada pelos artistas, houve uma modificação quanto ao tema, com as letras das composições se transformando em instrumento de expressão política, através da chamada ‗canção de protesto‘ (SANTOS, 2013). Conforme definiu Napolitano, a MPB ―sintetizava a busca de uma nova canção que expressasse o Brasil como projeto de nação idealizada por uma cultura política influenciada pela ideologia nacional-popular e pelo ciclo de desenvolvimento industrial, impulsionado a partir dos anos 50" (NAPOLITANO, 2014, p. 1). A MPB, entretanto, não constitui um gênero homogêneo, abarcando experiências diversas poética e musicalmente. Conforme aponta Schwarz (2008), o projeto cultural de esquerda pôde continuar se desenvolvendo no país, mesmo após o início da ditadura, tendo em vista que os intelectuais não foram alvo da ação dos militares nos primeiros anos após o golpe. Foram perseguidos apenas aqueles que buscaram um contato direto com a população, através, por exemplo, da atuação junto aos sindicatos. Se a produção não foi afetada diretamente, o acesso às manifestações culturais da época, entretanto, ficou restrito a pequenos grupos de intelectuais, ficando tais manifestações impedidas de chegarem às classes populares. ―Cortadas naquela ocasião as pontes entre o movimento cultural e as massas, o Governo Castello Branco não impediu a circulação teórica ou artística do ideário de esquerda, que embora em área restrita floresceu extraordinariamente‖ (SCHWARZ, 2008, p. 72). Os espetáculos da época podiam ser compreendidos como ―verdadeiros meetings onde a intelligentzia renova entre seus pares suas inclinações populares, antiimperialistas, socialistas e revolucionárias‖ (HOLLANDA, 2004, p. 35). O público consumidor de arte no período, seja teatro, música ou cinema, era predominantemente a juventude universitária, que, animada pelo ideário de esquerda, começou a organizar grupos de oposição à ditadura, disposta a pegar em armas para derrubar o regime (SCHWARZ, 2008). Em reação ao fortalecimento dos movimentos contestatórios, o governo militar intensificou a repressão aos intelectuais, com a promulgação do Ato Institucional nº 5. Após um período de relativa liberdade artística após o golpe de 1964, os intelectuais transformaram-se em alvos do regime. O exílio e a censura prejudicaram a 20

produção musical, principalmente no período entre 1969 e 1973. A 'demanda reprimida' decorrente do afastamento de alguns dos principais nomes da música brasileira seria suprida a partir de 1975, em um ambiente mais propício à criação musical (NAPOLITANO, 2014). Ao mesmo tempo em que perseguiu os artistas engajados, o governo militar elaborou uma política cultural, passando a investir em produções de caráter nacionalista (HOLLANDA, 2004). A valorização dos elementos folclóricos, através da exaltação dos "tipos humanos brasileiros", unia, paradoxalmente, esquerda e direita. Apesar da mesma herança simbólica, os artistas engajados desenvolveram um nacionalismo crítico, através do conceito de cultura 'nacional-popular', enquanto os militares defendiam um nacionalismo integrador (NAPOLITANO, 2014).

1.2 Correntes musicais em disputa A década de 1960 foi composta por diversas correntes musicais, que disputaram espaço entre si. As preferências na casa de Lobão revelam, de forma geral, como os gostos se organizavam no espaço de uma típica família de classe média. Enquanto sua mãe, Ruth, preferia os músicos de MPB, que valorizavam os elementos nacionais, Lobão foi seduzido pelo rock. A Jovem Guarda e sua inocência juvenil agradava a ambos (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010). A popularidade da Jovem Guarda, entretanto, não se converteu em prestígio perante a classe artística. O iê-iê-iê era visto por uma parcela da esquerda musical, mais fortemente ligada à preservação dos elementos da tradição musical brasileira, como música colonizada e alienante. A rivalidade entre os movimentos atingiu seu momento mais marcante quando artistas como Elis Regina, , e Geraldo Vandré formaram, em 1967, a Frente Única da Música Popular Brasileira, organizando uma passeata contra a guitarra elétrica, instrumento utilizado pelos artistas da Jovem Guarda e considerado símbolo da dominação cultural estrangeira. Importante destacar, conforme narrado no documentário Uma Noite em 67, que a rivalidade entre os músicos de MPB e Jovem Guarda foi, em grande medida, estimulada pela TV Record que, possuindo contrato com artistas de ambos os movimentos, estrelas dos programas musicais do canal, possuía interesse na repercussão midiática da polêmica. A adesão dos artistas à passeata revela ao menos, na hipótese de inexistente concordância ideológica com a pauta da manifestação, a ausência de autonomia diante dos apelos sensacionalistas da indústria do entretenimento14.

14 Em entrevista para o documentário, alguns integrantes da passeata apresentaram justificativas distintas para a adesão. Enquanto o crítico musical Sérgio Cabral relata sua concordância com as questões evocadas pelo 21

Apesar do purismo de uma ala dos artistas brasileiros, o instrumento rapidamente integraria as composições de gêneros mais prestigiados no interior do campo da música popular brasileira. No mesmo ano, Gilberto Gil mudaria de lado e utilizaria a guitarra elétrica no III Festival de Música Popular Brasileira, marcando o início do movimento que ficaria conhecido como Tropicália. O festival de 1967 associou as diversas vertentes da música nacional: MPB engajada, Tropicalismo e Jovem Guarda. Na disputa, a MPB levaria a melhor, com Ponteio, de Edu Lobo e Capinam, sagrando-se campeã. Entretanto, as grandes novidades foram a segunda colocada, Domingo no parque, de Gilberto Gil, que trouxe ao palco a performance de , e a canção Alegria, alegria, de Caetano Veloso, que se apresentou acompanhado pelo grupo de rock argentino Beat Boys e terminou o festival na quarta posição. O conceito modernista de antropofagia forneceu as bases para o projeto tropicalista que se iniciara. A influência foi apropriada pelos músicos, que defendiam uma assimilação crítica de elementos da cultura estrangeira pela produção nacional, conforme pode ser observado no arranjo criado por Rogério Duprat para a canção Domingo no parque, que buscou associar elementos díspares como instrumentos ‗clássicos‘ e ritmos regionais, berimbau e guitarra elétrica (CAMPOS, 1974).

1.3 O ressurgimento do pensamento oswaldiano na cultura nacional Após décadas de ostracismo, o pensamento de Oswald de Andrade passou a exercer grande influência na cultura nacional. A retomada do ideário modernista uniu as vanguardas culturais da década de 1960, que orbitaram em torno da teoria da devoração e do tema do encontro cultural (FAVARETTO, 2000). A Poesia Concreta, o Neoconcretismo nas artes plásticas, o Cinema Novo, o e a Tropicália atuaram dentro de um contexto fortemente influenciado pelas ideias do Manifesto Antropófago de 1928. Conforme aponta Caetano Veloso, ―esse ‗antropófago indigesto‘, que a cultura brasileira rejeitou por décadas, e que criou a utopia brasileira de superação do messianismo patriarcal por um matriarcado primal e moderno, tornou-se para nós o grande pai‖ (VELOSO, 2008, p. 252).

movimento à época, ao afirmar: "nós nacionalistas, nós da esquerda, nós achávamos que a música brasileira não podia ser invadida pelo que vinha de fora e a guitarra elétrica era um símbolo dessa invasão", Gilberto Gil, por sua vez, justificou sua motivação de maneira diversa: "eu fui pela Elis, por causa dela, atendendo a ela e evidentemente a um grupo de colegas interessantes que estavam lá, foram lá, cada um com sua visão, cada um com sua maneira de ver a coisa. A minha visão era essa: aquela disputa era saudável até certo ponto, nesse sentido de estimular disputas, competições benignas. Mas eu não acreditava, não era um defensor ideológico da divisão dos territórios, não" (TERRA; CALIL, 2010). 22

O movimento concretista capitaneado por Augusto de Campos, e Décio Pignatari, em meados dos anos 1950, tornou-se conhecido pelo desenvolvimento do poema/objeto industrial que, seguindo o princípio da utilidade, sem negar sua preocupação pedagógica, buscava uma ―linguagem direta, economia e arquitetura funcional do verso‖ (CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, 1958, p. 175). Para os concretistas, o poema ―é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas‖ (CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, 1958, p. 175). A influência modernista pode ser observada no movimento concretista através da necessidade de conectar a produção literária brasileira ao discurso internacional. Seus representantes demonstravam uma preocupação com a inserção da poesia brasileira no debate internacional, difundindo no país, através de veículos de imprensa, dentre eles o Jornal do Brasil, o Correio Paulistano e O Estado de S. Paulo, a obra de autores como Mallarmé, Apollinaire, Joyce, Cummings e Ezra Pound (HOLLANDA, 2004). O diálogo com os poetas concretistas influenciou a concepção de cultura dos jovens tropicalistas. Augusto de Campos já antecipara em suas críticas musicais diversos aspectos que seriam trabalhados pelos artistas baianos. O poeta escreveu em defesa da Jovem Guarda, destacando a aproximação entre o canto de Roberto Carlos e e a interpretação de João Gilberto, assim como chamou atenção para a importância dos Beatles, que com o álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band associaram informação erudita e popular (CAMPOS, 1974). Além disso, os poetas forneceram uma base conceitual que fortaleceu as ideias que estavam sendo colocadas em prática pelos músicos. Foi, por exemplo, Augusto de Campos quem iniciou Caetano Veloso na poesia de Oswald de Andrade (VELOSO, 2008). A própria escrita concretista influenciaria algumas de suas composições, como é possível observar no disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circencis, com a utilização do recurso não verbal, através da forma visual assumida pela letra da música Bat Macumba. Ambos os movimentos ambicionavam equiparar a qualidade da produção cultural brasileira à internacional. Tal preocupação fica evidente na fala de Haroldo de Campos ao afirmar que um dos principais méritos da experiência concretista foi colocar a poesia brasileira no mesmo patamar das vanguardas mundiais, consolidando-a como um ―produto brasileiro de exportação no campo das ideias‖ (CAMPOS, 1960, p. 182). Da mesma forma, é possível observar no discurso de Caetano Veloso a vontade de igualar a sua produção musical a um padrão de qualidade externo. Ao relembrar as ambições artísticas de seu disco de estreia, afirmou que imaginava fazer ―um produto internacionalmente inatacável‖ (VELOSO, 2008, p. 177). 23

Entretanto, apesar dos aspectos em comum, é possível observar diferenças, sobretudo, em relação à compreensão social do subdesenvolvimento brasileiro. Os concretistas estavam imbuídos do ideal desenvolvimentista, acreditando que o subdesenvolvimento seria superado e o país passaria de receptor a produtor de cultura, sem questionar o vínculo de dependência que inter-relaciona as economias periféricas e centrais (HOLLANDA, 2004), conforme pode ser observado na fala de Augusto de Campos:

A expansão dos movimentos internacionais se processa usualmente dos países mais desenvolvidos para os menos desenvolvidos, o que significa que estes, o mais das vezes, são receptores de uma cultura de importação. Mas o processo pode ser revertido, na medida mesma em que os países menos desenvolvidos consigam, antropofagicamente — como diria Oswald de Andrade — deglutir a superior tecnologia dos supradesenvolvidos e devolver-lhes novos produtos acabados, condimentados por sua própria e diferente cultura. (CAMPOS, 1974, p. 60).

Tal ideia não foi compartilhada pelos tropicalistas, que, apesar de se esmerarem na produção de uma música com qualidade internacional, apresentavam uma visão crítica sobre o subdesenvolvimento brasileiro, consciente do processo de dependência cultural (HOLANDA, 2004). Outras vanguardas, que também mobilizaram as ideias modernistas, influenciaram a Tropicália, como o Cinema Novo, que, com Terra em transe de Glauber Rocha, serviu de inspiração para os músicos (VELOSO, 2008) e o Neoconcretismo nas artes plásticas, com destaque para a montagem de Tropicália (1967), de Hélio Oiticica, que acabou nomeando o movimento (JEZZINI, 2010). Música e artes plásticas estiveram juntas nas apresentações de Gilberto Gil, Caetano Veloso e Os Mutantes na boate Sucata no Rio de Janeiro, em 1968, com a obra do Hélio Oiticica, Homenagem a Cara de Cavalo (seja marginal, seja herói), exposta ao lado do palco. Associado a outros fatores, o conteúdo crítico do cartaz criado pelo artista plástico chamou a atenção da censura, contribuindo para a prisão de Gil e Caetano em dezembro do mesmo ano (VELOSO, 2008). É possível observar a influência do legado de Oswald também no Teatro Oficina, de José Celso Martinez Corrêa. A companhia apresentou em 1967 O rei da vela, peça de autoria do escritor modernista, que há trinta anos não era encenada. Em contraposição ao didatismo e simpatia do Teatro de Arena, o Oficina se expressava através do choque e do escândalo, com o objetivo de "atacar as ideias e imagens usuais da classe média, os seus instintos e sua pessoa física" (SCHWARZ, 2008, p. 103). Se é possível fazer uma analogia, o Teatro de Arena estaria para a MPB da mesma forma que o Teatro Oficina estaria para a Tropicália. 24

Caetano Veloso recorda os elementos em comum entre o projeto musical que estava sendo desenvolvido pelos músicos baianos e as ideias apresentadas pelo Teatro Oficina. O músico, inclusive, esteve entre a plateia que assistiu ao Rei da Vela. A encenação lhe casou grande impacto, por apresentar questões semelhantes às que estavam sendo trabalhadas pelo movimento tropicalista. ―Eu tinha escrito Tropicália havia pouco tempo quando O rei da vela estreou. Assistir a essa peça representou para mim a revelação de que havia de fato um movimento acontecendo no Brasil. Um movimento que transcendia o âmbito da música popular‖ (VELOSO, 2008, p. 239). Diante do exposto, é possível afirmar que a Tropicália fez parte de um projeto de cultura que congregava os mais diversos campos artísticos em torno de uma ideia semelhante, inspirada nos conceitos desenvolvidos por Oswald de Andrade. Estes movimentos foram importantes no sentido de inspirar e impulsionar o projeto musical desenvolvido pelos tropicalistas, além de contribuírem para sua legitimação e consagração.

1.4 A Tropicália Para se estabelecer, o tropicalismo teve que romper com alguns cânones da MPB, sigla que na segunda metade da década de 1960 possuía grande prestígio. Dentre as maiores estrelas do gênero estava . O músico consolidou sua obra enquanto sinônimo de qualidade musical, associando em suas canções o engajamento político e a tradição da música brasileira. Em oposição à ‗esquerda universitária‘, a Tropicália representou uma ―tentativa de criar estratégias culturais que se opusessem às das correntes nacionalistas e populistas‖ (FAVARETTO, 2000, p. 51). Nesse sentido, a imagem de Caetano foi construída no final da década de 1960 em contraposição à de Chico. Oriundos de uma mesma tradição musical, passaram a representar duas vertentes artísticas que se diferenciavam estética e ideologicamente. Enquanto Caetano representava o salto à modernidade, Chico, ligado à esquerda musical, simbolizava o apego à tradição (SANTOS, 2013). A busca por distinção pôde ser observada, inclusive, através do vestuário e do corte de cabelo adotados pelos músicos: enquanto este era ―um bonito rapaz de olhos verdes‖, aquele ―era um cara de cabelo grande‖ (VELOSO, 2008, p. 226). Sobre a oposição, Caetano relata:

É preciso ter em mente que a glória indiscutível de Chico nos anos 60 era um empecilho à afirmação do nosso projeto. Porque, em princípio, todos os seus apoiadores (que eram virtualmente todos os brasileiros) deveriam nos rejeitar. O máximo que podíamos fazer (...) era mostrar a quem ia se tornando partidário de nossa visão que não era preciso agredir Chico para 25

afirmá-la. Porque estávamos seguros de que a criação de Chico, ela mesma, ganharia com a relativização – além de ser estimulada por novos desafios. (VELOSO, 2008, p. 229).

Vale ressalvar que o debate estético-ideológico entre o nacional-popular e as vanguardas não impediu o diálogo entre as correntes, sendo importante relativizar a oposição. Tanto o Concretismo quanto a Tropicália, herdeiros do conceito antropofágico modernista, formularam projetos nacional-populares para a cultura. Dessa forma, é possível afirmar que ―nem o núcleo nacional-popular per si rejeitava a pesquisa estética, nem a vanguarda deixou de pensar (criticamente) a nação-povo" (NAPOLITANO, 2014, p. 44). Apesar da necessidade inicial de ruptura com a MPB e seus representantes, Caetano desenvolveu ao longo de sua carreira um discurso em defesa da ‗linha evolutiva‘ da música popular brasileira, conectando os elementos modernos do tropicalismo à tradição. O artista pretendia suceder a linhagem musical representada por , Mario Reis, e João Gilberto. O movimento tinha a bossa nova como um referencial do que se ambicionava criar e se propunha para a cultura nacional: a assimilação da informação estrangeira na criação de um produto original e ao mesmo tempo brasileiro (VELOSO, 2008). A presença de Nara Leão, representante da bossa nova e da MPB, no projeto inaugural do tropicalismo, revela o viés conciliador das propostas. Após a consagração, os artistas baianos voltariam a trabalhar em conjunto com as outras vertentes da MPB. O marco inaugural do movimento foi o lançamento de Tropicália ou Panis et Circencis, em 1968. Participaram da gravação do disco-manifesto Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes, e Nara Leão. Produzido por Manoel Berenbein e com arranjos do maestro Rogério Duprat, o álbum apresenta influências estéticas da Semana de Arte Moderna de 1922 e das inovações apresentadas no LP Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, dos Beatles. Inspirados na produção do quarteto inglês, ―o disco é estruturado, musicalmente, como uma polifonia, ou longa suíte; as faixas sucedem-se sem interrupção, com a abertura recapitulada no final" (FAVARETTO, 2000, p. 83). Sob a influência do Manifesto Antropófago, os tropicalistas buscaram uma aproximação entre as raízes culturais nacionais e estrangeiras, associando elementos até então separados na canção brasileira.

A ideia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estávamos ‗comendo‘ os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva. (VELOSO, 2008, p. 242).

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Se a Jovem Guarda havia iniciado a tentativa de utilizar elementos da música americana em suas composições, atingindo um público predominantemente jovem, com o tropicalismo a experiência ganhou complexidade. As pretensões vanguardistas dos músicos baianos possibilitaram a inserção de alguns aspectos do iê-iê-iê, como o internacionalismo e a popularidade, dentro de um projeto culturalmente mais ambicioso. Em contraposição às diretrizes preconizadas pelo CPC, a Tropicália adotou uma postura crítica em relação à intelectualidade de esquerda, defendeu a valorização dos meios de comunicação de massa como um importante instrumento de difusão cultural e a aproximação com os movimentos de vanguarda. Rompendo com a ortodoxia de certa corrente da MPB, os tropicalistas se contrapunham à necessidade de articular sua arte em função da luta contra o regime militar. Passaram a questionar o autoritarismo existente nos movimentos de esquerda e a própria ideia de tomada de poder, priorizando as questões comportamentais em seus discursos (HOLLANDA, 2004). O Tropicalismo, personificado nas figuras de Gil e Caetano, foi objeto de crítica da esquerda mais ortodoxa. O caráter alegórico de suas composições e o modo não político de se opor ao status-quo não foi compreendido por todos. A prisão dos líderes tropicalistas, entretanto, promoveria uma aproximação entre os movimentos. O aumento da repressão, ao final da década de 1960, ajudou a consolidar a MPB como espaço único de resistência cultural e política. A articulação entre os músicos no enfrentamento aos militares possibilitou a aproximação dos artistas de esquerda com os tropicalistas. Neste contexto, Caetano e Gil, "considerados 'alienados' pela esquerda, foram relativamente 'redimidos'" (NAPOLITANO, 2002, p. 3). Os baianos retornaram do exílio para ocupar um lugar de destaque no interior da MPB. A análise de Nelson Coutinho (2005), autor fortemente influenciado pelas teorias marxista e gramsciana, demonstra como o projeto tropicalista foi ressignificado por uma parcela da esquerda. O movimento, que inicialmente possuía um caráter alegórico, não contribuindo para a resolução das contradições sociais brasileiras, passou a atuar de forma crítica, em oposição ao governo militar, tal qual a esquerda MPBista, colaborando para a constituição de uma música nacional-popular.

Essa dialética interna do movimento tropicalista – a contradição dinâmica entre a conquista de uma nova temática e seu tratamento ainda tendencialmente alegórico – levaria os seus melhores representantes a abandonar progressivamente, em muitas de suas produções, a alegoria irracionalista, e a optar por uma dura crítica, nada populista nem ingênua, da cotidianidade capitalista moderna que 27

o CME (capitalismo monopolista de estado) ia implantando em nosso País. Foi assim que produções como Janelas abertas de Caetano Veloso (para darmos apenas um exemplo) convergiram objetivamente com Sinal Fechado de ou com Cotidiano de Chico Buarque (e aqui também me limito a exemplos singulares) para criar em nosso País uma música nacional-popular de alto nível, adequada – em seu pluralismo e em sua complexidade – às necessidades dos novos tempos. (COUTINHO, 2005, p. 74).

Alguns fatores ajudam a compreender o sucesso do empreendimento artístico. Primeiramente, há que se destacar que os músicos baianos já estavam inseridos e gozavam de relativo reconhecimento dentro da música popular brasileira à época de suas primeiras experimentações tropicalistas. Gilberto Gil participava do programa O Fino da Bossa, comandado por Elis Regina e , Maria Bethânia - que, apesar de não integrar o movimento, possuía forte ligação com o grupo, contribuindo para seu estabelecimento - já adquirira projeção nacional com o sucesso do show Opinião e Caetano Veloso já havia conquistado boas colocações em festivais de música e tornara-se conhecido por uma parcela do público devido à participação no programa Esta Noite se Improvisa (VELOSO, 2008). O capital social e cultural angariado por seus integrantes contribuiu para que as ideias apresentadas pelo grupo merecessem espaço e fossem discutidas entre os músicos, ao invés de simplesmente rechaçadas ou consideradas indignas de debate. Uma parte da legitimação conquistada pode ser explicada pelo apoio de intelectuais que corroboraram os conceitos desenvolvidos pelos músicos baianos, com destaque para os poetas concretistas. Conforme relembra Caetano Veloso, eles realizaram uma ―defesa ostensiva dos tropicalistas‖ (VELOSO, 2008, p. 220). Desde as primeiras intervenções da Tropicália na cultura nacional, Augusto de Campos tratou de endossá-las através de artigos na imprensa, conforme se depreende do trecho extraído do artigo Explosão de Alegria Alegria, publicado em 1967. Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, parece-me assumir, neste momento, uma importância semelhante a Desafinado, como expressão de uma tomada de posição crítica em face dos rumos da música popular brasileira. (...) Pode- se dizer que Alegria, Alegria e Domingo no Parque representam duas faces complementares de uma mesma atitude, de um mesmo movimento no sentido de livrar a música nacional do "sistema fechado" de preconceitos supostamente "nacionalistas", mas na verdade apenas solipsistas e isolacionistas, e dar-lhe, outra vez, como nos tempos áureos da bossa-nova, condições de liberdade para a pesquisa e a experimentação, essenciais, mesmo nas manifestações artísticas de largo consumo, como é a música popular, para evitar a estagnação. (CAMPOS, 1974, p. 151/152).

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O último aspecto a ser abordado é a contribuição dos maestros Rogério Duprat, Júlio Medaglia e Damiano Cozzela para o movimento. Ligados à música erudita de vanguarda, com destaque para o dodecafonismo, agregaram novas informações na construção de arranjos para as canções tropicalistas. Além disso, a atuação dos maestros nos discos do grupo pode ser compreendida como uma chancela de artistas eruditos à arte popular que estava sendo desenvolvida. O apoio de artistas de campos simbolicamente mais valorizados, como a poesia e a música erudita, contribuiu para o sucesso do movimento, que rapidamente se estabeleceu como referencial de qualidade dentro da música popular. A forma como exploraram os veículos de comunicação garantiu que seus representantes adquirissem relativa popularidade. Sobre esse aspecto, vale destacar que outros músicos de MPB também buscaram essa aproximação com os veículos de comunicação de massa. Os maiores ídolos do movimento possuíram programas de televisão como O fino da bossa, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, e Pra ver a banda passar, com Chico Buarque e Nara Leão. Os festivais de música televisionados também contribuíram para a popularização e a consagração dos artistas de MPB. No começo dos anos 1970, alguns dos conflitos que haviam dividido o meio musical, marcados principalmente pelas diferenças quanto à aceitação de elementos estrangeiros na produção cultural brasileira, foram resolvidos. Artistas de bossa nova, jovem guarda, tropicália e MPB começaram a dialogar, encerrando divergências estéticas que haviam produzido rivalidades e consolidando o grupo como representante da música brasileira de qualidade. Dessa forma, após o exílio entre 1969 e 1971, Gilberto Gil e Caetano Veloso retornariam ao país sem a necessidade de dar continuidade ao movimento tropicalista, tendo em vista que já haviam alcançado seus objetivos e encontravam-se inseridos na MPB. O lançamento do LP Caetano e Chico Juntos e Ao Vivo (1972) representou a união das correntes, contribuindo para a formação de uma frente ampla da MPB. O disco representou, dessa forma, a ―consagração de um processo de renovação musical que se iniciara com a Bossa Nova, em 1959" (NAPOLITANO, 2002, p. 7). Fortalecida enquanto grupo, a MPB conseguiu consolidar uma posição privilegiada dentro do campo musical, significando ―uma música socialmente valorizada, sinônimo de 'bom gosto', mesmo vendendo menos que as músicas consideradas de 'baixa qualidade' pela crítica musical" (NAPOLITANO, 2014, p. 4). Sobre o legado tropicalista, mais especificamente, é possível afirmar que o movimento contribuiu em certos aspectos para a consolidação do rock brasileiro. A inclusão de elementos do rock e do pop norte-americanos em seus trabalhos e a temática mais livre das letras já 29

antecipavam algumas caraterísticas que seriam exploradas pela geração de 1980. A concepção que os tropicalistas faziam dos meios de comunicação de massa também constituiu uma tendência. Normalmente vista com desconfiança, a televisão passou a ser encarada como aliada na divulgação cultural, devendo, por esse motivo, ser explorada.

1.5 A indústria fonográfica Comercialmente, os artistas do primeiro time da MPB e os artistas populares não disputavam espaço nas gravadoras; ao contrário, faziam parte de uma mesma estratégia mercadológica. As empresas buscavam formar catálogos ecléticos que incluíssem artistas de maior prestígio e artistas mais comerciais. A Philips, por exemplo, possuía em seu casting os músicos Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina, Maria Bethânia e Gal Costa, e utilizava o selo Polydor para contratar os artistas populares como Odair José, Hyldon, e Evaldo Braga (BARCINSKI, 2014). ―Na lógica da indústria cultural sob o capital monopolista, estes dois polos se alimentavam mutuamente, sendo complementares, dada a lógica de segmentação do mercado" (NAPOLITANO, 2002, p. 5). Embora vendendo menos que os chamados artistas comerciais, os MPBistas possuíam um público fiel, prestígio simbólico e trabalhos duradouros, tendo sido importantes para a consolidação da indústria de discos (NAPOLITANO, 2014).

Segundo a lógica dos empresários, o mercado consumidor de produtos dos artistas de marketing deve financiar a permanência de artistas autênticos, não fabricados pelas companhias, considerando o alto custo destes últimos e o retorno, a médio prazo dos investimentos. (DIAS, 2008, p. 94).

O período foi marcado também por importantes transformações no mercado fonográfico brasileiro. Apoiada no 'milagre econômico' ocorrido durante o governo Médici, a venda de discos aumentou significativamente. Segundo os dados disponibilizados pela Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD), o mercado de música cresceu quase dez vezes no período de 1966 a 1979, passando de 5,5 milhões para 52,6 milhões de unidades vendidas (VICENTE, 2008). O crescimento refletiu nos resultados comerciais dos músicos de MPB. Durante os anos 70, o reconhecimento estético esteve associado à popularidade, com seus artistas atingindo um público mais amplo, indo além do tradicional ―jovem-classe-média-de- esquerda‖ (NAPOLITANO, 2010, p. 399). No início da década de 1980, o panorama se modificaria. Apesar dos contratos lucrativos com as gravadoras, os grandes nomes da música brasileira não estavam vendendo 30

muitos discos. ―Quando o Nopem divulgou a lista dos discos mais vendidos no Brasil em 1979, parecia que a MPB ‗clássica‘ havia sido aniquilada. Dos trinta discos no topo, apenas dois haviam sido gravados por artistas do primeiro time da música brasileira: Roberto Carlos, do ‗Rei‘, e Álibi, de Maria Bethânia‖ (BARCINSKI, 2014, p. 121). Foi neste cenário que o rock começou a se destacar. ―A partir daí, a MPB manterá intacta sua aura de 'qualidade musical' e trilha sonora da resistência, mas deixará de ser o carro-chefe da indústria fonográfica brasileira, cada vez mais direcionada às várias linguagens do pop, com suas atitudes e estilos próprios" (NAPOLITANO, 2014, p. 11).

1.6 Esse tal de rock and roll Na década de 1950, o rock surgiu nos Estados Unidos produzindo uma síntese de diversas influências afro-americanas. A soma de rhythm and blues, folk e country provocou uma revolução na música mundial. Entretanto, não há como falar sobre um único rock and roll. As múltiplas bases musicais proporcionaram o surgimento de diversas correntes dentro do movimento, indo do rock clássico ao heavy metal, passando pelo folk, soul music e punk (FRIEDLANDER, 2013). As letras, que a princípio falavam sobre histórias adolescentes, amor e sexo, adquiriram, nos anos 60, caráter contestador, de crítica social. Os Beatles, maior fenômeno do gênero, refletem em sua trajetória o amadurecimento do rock. Considerados pelos jornais britânicos como diversão inocente, passariam a tratar de questões políticas e filosóficas em sua obra. Tal evolução desafiou os críticos a levarem o rock a sério, possibilitando sua compreensão como forma de arte (FRIEDLANDER, 2013).

Uma metamorfose estava acontecendo, transformando a banda de músicos pop otimistas e despreocupados em artistas culturalmente consequentes. O rock, um gênero que nem mesmo seus mais sérios defensores poderiam chamar de filosoficamente importante, estava adquirindo uma dimensão ‗séria‘. E os Beatles estavam entre os pioneiros. (FRIEDLANDER, 2013, p. 132/133).

O sucesso comercial aliado ao prestígio que os roqueiros conquistaram nos Estados Unidos e na Inglaterra transformou-se no ideal perseguido pelos jovens músicos brasileiros que admiravam o som. As canções do gênero começaram a tocar nas rádios brasileiras ainda na década de 50, dando início à assimilação. Cauby Peixoto, Celly Campello e Tony Campello realizariam as primeiras tentativas de produzir rock no Brasil, sob influência das músicas norte-americanas (DAPIEVE, 2015). O primeiro movimento de destaque seria a 31

Jovem Guarda que, apesar de simbolicamente desprestigiada, obteve grande popularidade. Os Mutantes, paralelamente, tornar-se-iam a grande referência do gênero no país. Na década de 70, e manteriam o rock em evidência, porém sem constituir um movimento. Os roqueiros dos anos 80 consolidariam definitivamente o gênero no Brasil, influenciados predominantemente pelo rock progressivo, o punk e a new wave. O rock progressivo representou uma alternativa ao hard rock desenvolvido na década de 1970, cujo maior ícone era o Led Zeppellin. Ao invés de adotar a fórmula do som mais pesado, com letras sobre sexo e drogas, o progressivo priorizava músicas bem orquestradas, com melodia, harmonia e ritmos mais complexos, e letras mais densas (FRIEDLANDER, 2013). A influência do rock progressivo determinou a guinada musical dos Mutantes, que, após a saída de Rita Lee, embarcaram em um som mais elaborado, virtuosístico, distanciando- se das raízes brasileiras presentes em seu trabalho até então. Gênesis, Yes, Pink Floyd, King Crimson também serviram de referência para as bandas que estavam surgindo no underground da cena rock dos anos 1970, como foi o caso do Vímana, primeira banda de Lobão. Os músicos que se dedicaram ao rock progressivo não atingiram sucesso comercial no Brasil, ficando restritos a um pequeno círculo de admiradores. A fala de Lulu Santos retrata esse universo: ―A sensação que eu tinha era a de que, no Rio de Janeiro, haviam 500 pessoas que gostavam do som‖ (ALEXANDRE, 2013, p. 16). Já o punk conquistaria relativa popularidade no país, no contexto do movimento rock dos anos 80. O gênero surgiu na Inglaterra, de 1976, em um período de crise econômica. A soma de ritmo frenético, letras contestatórias, harmonias pouco elaboradas e aparência provocativa definiam o estilo. Bandas como Sex Pistols, Clash, Ramones renovaram o rock, com seu ―comportamento chocante, rude e obsceno, vestimentas esdrúxulas, música minimalista e letras agressivas – produziram um efeito que foi se espalhando, primeiro no mundo da música, depois para o mundo exterior‖ (FRIEDLANDER, 2013, p. 363/364). Apesar da agressividade, os elementos do punk foram absorvidos pelo mercado, servindo de base para as bandas new wave. O minimalismo, a base rítmica, as letras críticas, porém mais leves, a aparência não convencional e a performance de palco formaram o legado do punk para artistas como Elvis Costello and the Atractions, Police, Jam e Talking Heads (FRIEDLANDER, 2013). O new wave influenciou, predominantemente, as bandas de rock do Rio de Janeiro, com destaque para a Blitz, primeiro fenômeno comercial do gênero nos anos 80. 32

A descontração das músicas cariocas, tidas como mais comerciais, contrastava com o som mais 'pesado' dos paulistas, influenciados, predominantemente, pelo punk. Com letras agressivas, harmonias simples e comportamento provocador, o punk também foi uma das principais influências do rock de Brasília. Enquanto as bandas de punk-rock de Brasília, como Legião Urbana, Plebe Rude e eram formadas por jovens de classe média alta, o punk paulistano se desenvolveu na periferia, por integrantes de classe baixa (MAGI, 2011). O movimento punk paulistano esteve entre os pioneiros da década de 1980 que buscaram romper com a ordem estabelecida pela MPB. Clemente Tadeu Nascimento publicaria em 1982 o Manifesto Punk: Fora com o mofo da MPB! Fim da ideia da falsa liberdade! Em suas palavras: Nós, os punks, estamos movimentando a periferia – que foi traída e esquecida pelo estrelismo dos astros da MPB (…) Nossos astros da MPB estão cada vez mais velhos e cansados e os novos astros que surgem apenas repetem tudo o que já foi feito, tornando a música popular uma música massificante e chata (…) Nós, os punks, somos uma nova face da música popular brasileira, com nossa música não damos a ninguém uma ideia de falsa liberdade. Relatamos a verdade sem disfarces, não queremos enganar ninguém. Procuramos algo que a MPB já não tem mais e ficou perdido nos antigos festivais da Record e que nunca mais poderá ser revivido por nenhuma produção da Rede Globo de Televisão. Nós estamos aqui para revolucionar a música popular brasileira, para dizer a verdade sem disfarces (e não tornar bela a imunda realidade): para pintar de negro a asa branca, atrasar o trem das onze, pisar sobre as flores de Geraldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer. (NASCIMENTO, 1982, p. 70/71).

1.7 O mercado do rock Diversos aspectos contribuíram para a expansão do rock brasileiro na década de 1980; dentre eles é possível destacar a existência de um circuito formado por rádios, casas de shows e espaço na imprensa especializada que possibilitou a divulgação do trabalho desenvolvido pelos novos músicos. No Rio de Janeiro, a Fluminense FM de Niterói esteve entre as principais incentivadoras. Além de tocar os sucessos internacionais de rock, abriu espaço para as bandas brasileiras que estavam surgindo, promoveu shows e movimentou a cena. Idealizada por Luiz Antônio Mello e Samuel Wainer Filho, ex-empresário dos Mutantes, a Maldita, como era conhecida, impulsionou o rock carioca, colocando as fitas demos de bandas iniciantes para tocar (ALEXANDRE, 2013; DAPIEVE, 2015). Em 1982, a estrutura do Circo Voador também ajudou a divulgar os novos trabalhos. Passaram pela lona erguida na praia do Arpoador nomes como Blitz (com Lobão na bateria), Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude, contribuindo para o que ficaria conhecido como o Verão do Rock. Conforme afirma Leoni, 33

integrante da banda à época, ―tocar na rádio (Fluminense) e no Circo Voador era um jeito de criar um público rapidamente, sem precisar das gravadoras‖ (ALEXANDRE, 2013, p. 120). Maggi (2011) destaca, em seu estudo sobre a banda Legião Urbana, a contribuição de jovens jornalistas, que possuíam os mesmos referenciais da geração de músicos dos anos 80, para a consolidação do movimento no país. Esses novos profissionais foram aos poucos conquistando espaço na imprensa, ajudando a divulgar o gênero e agregando visibilidade ao trabalho dos roqueiros. Além de possuírem habitus semelhantes, os jornalistas e críticos musicais muitas vezes possuíam suas próprias bandas ou tinham alguma ligação com a cena, como, por exemplo, Alex Antunes, , Paulo Ricardo e Bia Abramo.

A crítica cultural gera efeitos objetivos sobre a consagração ou o esquecimento de determinada obra e, é claro, de seus autores também. No caso do rock brasileiro dos anos 1980, a grande imprensa foi fundamental para a consagração das bandas enquanto ‗porta-vozes de uma nova geração‘. (MAGGI, 2011, p. 35). O movimento foi rapidamente absorvido pelos grandes selos, que viram no gênero um produto lucrativo. Enquanto os medalhões da MPB exigiam grandes investimentos na gravação de discos, com a elaboração de repertório, arranjos, contratação de músicos renomados, os jovens roqueiros assinavam com as gravadoras por valores baixos, possuíam repertório próprio, precisando apenas de um produtor e horas de estúdio para desenvolverem seus trabalhos. Além disso, suas músicas podiam ser testadas comercialmente através dos compactos, diminuindo os riscos de prejuízo com os lançamentos de LPs. A economia no processo de produção se reverteria em promoção e marketing, ampliando as vendas (ALEXANDRE, 2013). Assim como o baixo custo de produção, o interesse das gravadoras no mercado consumidor jovem contribuiu para o fortalecimento do gênero no país. O investimento da indústria fonográfica brasileira nesse nicho acompanhou a tendência internacional do mercado de discos de valorização do público entre 13 e 25 anos (DIAS, 2008).

O sucesso comercial do movimento começaria a enfrentar os primeiros desafios ainda no final da década. O panorama da indústria fonográfica em 1988 era de retração das vendas, segundo a avaliação dos executivos das grandes gravadoras. Sobre a participação dos gêneros no mercado, apesar do espaço conquistado pelos músicos românticos (também chamados de bregas) e pela MPB, o rock ainda dominava o mercado nacional de discos, conforme análise do presidente da Som Livre à época, João Araújo: "o rock está para o brega na proporção de 60% para 40%, enquanto chega a 70%, em relação à música popular brasileira" (DUMAR, 34

1998)15. A retração do mercado fonográfico se aprofundaria nos anos seguintes, com as vendas diminuindo 44% de 1989 a 1991, sendo o samba, a lambada e o rock os gêneros mais afetados (NATALI, 1991)16. A conjuntura econômica, com os Planos Collor I e II, fornece subsídios para explicar a crise no setor (DIAS, 2008). No início dos anos 90 a mídia começou a explorar o que seria o fim do movimento roqueiro. Os sintomas que permitiam afirmar que o potencial da geração dos anos 80 havia se esgotado eram ―os números fornecidos pelas gravadoras, o volume de execução nas rádios e de aparições na TV‖ (MIGUEL, 1993)17. No decorrer da década, a situação se manteria. Das inúmeras bandas que despontaram no período, apenas , Legião Urbana e Lulu Santos conquistaram bons resultados em 1995, vendendo juntos quase dois milhões de discos. A maior parte dos roqueiros, entretanto, não conseguiu manter a popularidade conquistada, dentre eles Lobão, que tocou no Metropolitan para 150 pagantes, menor público da história da casa de shows, que possui capacidade para 10 mil pessoas (FERREIRA, 1996)18.

1.8 O rock brasileiro na hierarquia dos gêneros O cenário de abertura política associado ao contexto cultural, com o enfraquecimento do conceito nacional-popular, possibilitou o desenvolvimento do rock no Brasil (MAGI, 2011). Não que nos anos anteriores ele não estivesse presente no país, mas nos anos 80 o rock avançou na superação da desvalorização associada ao estilo. As iniciativas anteriores, como a Jovem Guarda, não possibilitaram ao rock ocupar uma posição simbólica de destaque no cenário nacional. O iê-iê-iê, apesar do sucesso popular, era tido pela crítica como uma fase de "importação e assimilação" (CAMPOS, 1974, p. 187) da música popular internacional. O rock brasileiro produzido até então ―não conseguiu se constituir em um campo de produção simbólica, isto é, não conquistou espaço dentro das grandes gravadoras, tinha um espaço restrito nos jornais de grande circulação e um público tido como 'alternativo'" (MAGI, 2011, p. 28). Para se estabelecerem, os músicos dos anos 80 tiveram que enfrentar a desconfiança dos artistas de MPB, simbolicamente mais valorizados. Em reportagem do jornal O Globo, com o objetivo de ressaltar a superioridade das gerações anteriores em relação aos jovens artistas,

15 DUMAR, Deborah. Quem vende mesmo. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 12. 29 mai. 1988. 16 NATALI, João Batista. Indústria do disco encolhe 44% em dois anos. Folha de S. Paulo. Ilustrada, p. 3. 24 dez. 1991. 17 MIGUEL, Antônio Carlos Miguel. A geração perdida do rock. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 15 mai 1993. 18 FERREIRA, Mauro. A crise do Brock. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 17 fev. 1996. 35

com destaque para os nomes de Caetano Veloso e Tom Jobim no campo musical, o depoimento de Moraes Moreira revela como os músicos estabelecidos enxergavam os roqueiros. Moraes recorda o tempo em que integrou o conjunto Novos Baianos, procurando contrapor sua trajetória - em que as conquistas foram resultado da ―dedicação de uma vida‖ - ao sucesso fácil da geração de músicos dos anos 80.

O pessoal da geração 80 ainda tem muita estrada pela frente, muito o que aprender. Na verdade ficou muito fácil. Qualquer garoto sabendo dois acordes já fazia logo sucesso. E uma semana depois estava acabado. Só quando passou o pente fino é que ficou realmente o que tinha valor. (PINTO, 1987)19.

No mesmo sentido, ao comparar os movimentos musicais consolidados durante os anos 60 e 80, Gilberto Gil, apesar da integração com os roqueiros através de parcerias musicais, procurou destacar a superioridade de sua geração, tendo em vista o contexto histórico adverso em que suas carreiras se constituíram. "Eles não tiveram ditadura, censura ou exílio. Tiveram abertura, escancaro e vigília. Não foram forjados em altos fornos, mas em micro-ondas. Neles fizeram torradas do pão que o diabo havia amassado na geração anterior" (MIGUEL; LEÃO, 1996)20. Em contraposição, os jovens artistas procuraram no início do movimento marcar uma diferença em relação à produção dos músicos já consagrados, defendendo um estilo mais simples e direto de produzir canções, influenciados pelos movimentos de rock internacionais, com destaque para o punk e a new wave. A fala do jornalista Okky de Souza demonstra a despretensão dos roqueiros quando comparada aos músicos de MPB: ―Quem quer fazer arte com rock? Ninguém. A gente quer é fazer música, falar para o povo, fazer uma piada. Rock‘n‘roll não é arte, é outra coisa. É atitude, é identificação com a juventude. Aí começou a surgir uma geração que não tinha problemas com isso‖ (ALEXANDRE, 2013, p. 133). Pensamento corroborado, através de depoimentos, pelos músicos no começo do movimento, como Lobão, que definiu sua produção musical como "bossa wave. Música brasileira. Música do inesperado. O que der e vier. O maior sucesso da gente é agora porque falamos das coisas que sentimos agora" (FERREIRA, 1983)21. Herbert Vianna também realizou um discurso em

19 PINTO, Marcus Barros. É grave a crise. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 12. 8 nov. 1987. 20 MIGUEL, Antonio Carlos; LEÃO, Tom. Retrato de geração. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 20 out. 1996. 21 FERREIRA, Sonia Nolasco. Paralamas e Lobão, rock bem brasileiro para americano ouvir. O Globo. Matutina, Cultura, p. 25. 01 out. 1983. 36

defesa da originalidade do rock brasileiro. Sobre a música produzida por sua geração em comparação às outras iniciativas de estabelecer o gênero no país, afirmou:

O que se fez até agora não tinha ligação com nossa vida urbana. Era rock traduzido, praticamente. Nosso negócio é incorporar a música popular brasileira. Quando componho, acho que tem que ter elementos de identificação com o povo, tem que ter imagens que ele vê na rua. O grupo tem que estar atento a tudo, ao momento presente e aos fatos, não só a sentimentos. Tocando em concerto, tem que dar vontade de dançar. É para ser música largada. (FERREIRA, 1983)22.

Apesar da defesa da simplicidade e da espontaneidade do rock, os depoimentos citados refletem a preocupação dos artistas em afirmar seu pertencimento ao que se entende por música popular brasileira. Conforme será abordado posteriormente, os críticos cobrarão dos jovens músicos o estabelecimento de um diálogo entre cultura universal e nacional em suas composições. Apesar da busca dos roqueiros por sonoridades que tivessem alguma identificação com a cultura brasileira, é possível afirmar que eles procuraram, ao menos no início do movimento, estabelecer um distanciamento em relação aos artistas de MPB, desenvolvendo uma postura crítica à produção musical consagrada. Em matéria do Jornal do Brasil intitulada O que pensam esses jovens roqueiros brasileiros, publicada em 1984, Lobão e os músicos do Paralamas do Sucesso apresentam suas opiniões sobre o trabalho dos grandes nomes da MPB: - é uma coisa melancólica, parada no tempo. O Chico está insosso. (João Alberto Baroni, 22 anos, bateria dos Paralamas). - Coração de Estudante, do Milton, que está tocando no rádio, podia ter sido feita em 1964. (Herbert Vianna, guitarrista do Paralamas). - O Chico tem talento, mas está inócuo, muito lamentoso. Isso não leva a nada. Parece o sujeito que leva uma bofetada e faz um discurso brilhante como resposta à ofensa, mas fica naquilo. (Lobão). (JORNAL DO BRASIL, 1984)23.

Em Lobão, essa busca por ruptura com as gerações anteriores assume grandes proporções, como é possível observar no depoimento de , em 1985: ―O Caetano acha que nossa geração não tá com nada, que a dele é que foi boa. (Mas) o Lobão também é muito radical. Ele e a Marina têm uma coisa genial de ‗vamos cortar as cabeças. Para uma geração prevalecer tem que cortar a cabeça da outra‘" (BIZZ, 1985)24. A relação conflituosa de Lobão

22 FERREIRA, Sonia Nolasco. Paralamas e Lobão, rock bem brasileiro para americano ouvir. O Globo. Matutina, Cultura, p. 25. 01 out. 1983. 23 Jornal do Brasil. O que pensam esses jovens roqueiros brasileiros. 29 jul. 1984. Disponível em: Acesso em: 18 out. 2015. 24 BIZZ. Cazuza x Lobão. Edição nº 2, p. 32-33, set. 1985. Disponível em: Acesso em: 06 jun. 2015. 37

com a tradição da música brasileira assumiu grande importância em sua trajetória, não arrefecendo com o passar dos anos, ao contrário do que pôde ser observado no discurso da maioria dos roqueiros, em que a contestação inicial é seguida pelo reconhecimento da qualidade musical da geração anterior e pela aproximação com seus representantes. É possível afirmar que, ainda na década de 1980, as pretensões de ruptura deram lugar à integração do gênero ao cenário musical brasileiro, com uma coexistência mais harmoniosa entre as gerações. Tal constatação pode ser observada através das parcerias musicais entre artistas de rock e MPB ainda nos anos 80. Gilberto Gil compôs com os Paralamas do Sucesso, em 1986, a canção A Novidade. O músico baiano faria ainda Um Trem para as Estrelas (1987) em parceria com Cazuza. Cazuza teria diversas músicas cantadas por artistas de MPB: regravaria Pro dia Nascer Feliz em 1983, mesmo ano em que Caetano Veloso incluiria Todo Amor que Houver Nessa Vida no repertório de seu show e Gal Costa cantaria, em 1988, com grande sucesso, a música Brasil. O cantor Leoni, ex-integrante do conjunto Kid Abelha, ao descrever a experiência de gravar com o cantor Ney Matogrosso, retratou a aproximação entre as gerações: ―as estrelas também já estão procurando esse entrosamento, que antes não havia‖ (FRANÇA, 1986)25. A parceria mais simbólica, entretanto, seria a regravação da música Me Chama de Lobão por João Gilberto, em 1986. A importância é explicada pelo ineditismo da iniciativa – o músico baiano nunca havia regravado uma canção de rock – mas, principalmente, devido à posição de destaque que João Gilberto ocupa no cenário da cultura nacional, com seu legado bossanovista tendo contribuído para a formação musical dos artistas de MPB, com destaque para sua influência sobre os tropicalistas. Conquistado o sucesso comercial, uma parte dos roqueiros buscaria, na segunda metade da década, novos referenciais para atualizar o estilo. No contexto em que as gravadoras, estimuladas pelo sucesso das bandas de rock, investiram na contratação de muitos artistas do gênero, a iniciativa pode ser compreendida como uma busca por distinção. Da mesma forma, é possível interpretar tal iniciativa como uma tentativa de conquistar reconhecimento simbólico, visando à consolidação de suas carreiras em longo prazo, para além de um modismo. A matéria da jornalista Ana Maria Bahiana, ao retratar o momento do rock nacional, demostra como o gênero era questionado por uma parcela dos críticos. "Desde fins de 85, uma

25 FRANÇA, Jamari. Um primo-irmão do anarquismo. Jornal do Brasil. 30 mar. 1986. Disponível em: . Acesso em: 13 ago. 2015. 38

porção ponderável dos novos talentos surgidos na maré do rock vem se perguntando se é só isso que querem fazer, e se é só isso que o público quer, ou merece, ouvir. E descobrindo que a resposta é ‗não‘‖ (BAHIANA, 1986)26. A saída encontrada pelos músicos para superar o suposto esgotamento do estilo foi agregar novas sonoridades ao rock. Entre os exemplos de artistas que apostaram na tendência aparecem Lobão e seu interesse pelo samba, Renato Russo cantando , Cazuza interpretando Lupicínio Rodrigues e a redescoberta de Gilberto Gil, e Paulinho da Viola pelos Paralamas do Sucesso (BAHIANA, 1986). Após a afirmação inicial, em que contribuíram para revigorar o panorama da música nacional, os roqueiros conviveram com a cobrança da crítica quanto à autenticidade de suas obras e o futuro de suas carreiras. No debate promovido pelo Jornal do Brasil, em 198627, que reuniu o músico Leoni, o letrista Bernardo Vilhena, os críticos Tárik de Souza e Jamari França e o jornalista Otávio Costa, para discutir os rumos do rock brasileiro, é possível observar a importância dada pelos críticos à aproximação do gênero com o legado da música brasileira, bem como a assimilação desse discurso pelos artistas. Leoni, por exemplo, aborda a diluição do movimento e descreve a procura dos músicos de sua geração por elementos capazes de garantir maior prestígio ao rock e uma carreira sólida para seus adeptos:

Agora há uma tendência a sofisticar um pouco mais, a procurar outros caminhos que não só o romântico, a procurar uma saída mais poética, temas que não estão sendo abordados. Do jeito que estava, havia muita gente falando a mesma coisa, tudo ficou muito diluído. Isso é que gerou essa coisa comercial. Todo mundo entrou na mesma onda, usou os mesmos assuntos, o telefone, o elevador, essa coisa urbana. Era uma coisa muito fácil, todo mundo foi fazendo. Agora há uma tendência a mudar, porque as pessoas também estão crescendo. (FRANÇA, 1986).

Críticas e indagações sobre as consequências culturais do rock são realizadas em diversos momentos ao longo do debate. Tárik de Souza contrapõe a perenidade da obra dos artistas de MPB à instantaneidade dos sucessos dos jovens músicos. Diante da afirmação, Leoni reconhece a qualidade da geração anterior: ―não se pode negar o valor de tudo que já foi feito nessa cultura brasileira que está aí, do Gil, do Caetano, de Maria Bethânia" (FRANÇA, 1986). O crítico destaca ainda a distância que separa o rock da tradição musical

26 BAHIANA, Ana Maria. O rock brasileiro nos embalos da Mãe África. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, 1. 08 abr. 1986. 27 FRANÇA, Jamari. Um primo-irmão do anarquismo. Jornal do Brasil. 30 mar. 1986. Disponível em: . Acesso em: 13 ago. 2015.

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brasileira, demonstrando a existência de uma agenda temática na mídia em torno da questão da linha evolutiva da música popular brasileira. Bernardo Vilhena contra-argumenta, reconhecendo com isso a legitimidade da questão, afirmando que "Lobão pôs uma bossa nova no disco‖ O rock errou. Na visão do letrista, o rock caminharia em direção à música brasileira, assim como ocorreu com a bossa nova, que conseguiu trabalhar a informação do jazz gerando um produto tipicamente brasileiro. Já no final da década, ganharia destaque o argumento de que o movimento roqueiro havia se esgotado no Brasil. O crítico Nelson Motta, em matéria intitulada O rock não morreu. Apenas agoniza, abordou a falta de informação nova no gênero, apostando no esgotamento de sua estética. Em sua opinião, somente os músicos consolidados sobreviveriam à moda, dentre eles destaca Titãs, Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, , Lobão, Lulu Santos, Marina e Cazuza (MOTTA, 1989)28. O argumento do jornalista foi corroborado por diversos artistas pertencentes ao gênero. Lulu Santos foi um dos que apresentaram visão parelha sobre o momento vivido pelo rock brasileiro, posicionando-se a favor dos argumentos apresentados pelo crítico. Acreditando no esgotamento do estilo, apostou "na música popular brasileira contemporânea, dos trios elétricos e do Jorge Ben, por exemplo, como linguagem internacional" (ABIRACHED, 1989)29. Sem discordar totalmente, Renato Russo também repercutiu o assunto:

Acho que, depois de algumas brigas, o rock é música popular e brasileira, como a Xuxa e o Caetano. Acho que a estética do rock pode estar esgotada, mas não a ética. Isso ainda me interessa, essa visão de mundo que se expressa de uma forma meio marginal e sensível. Por mais assimilado pelo sistema, o rock é alternativo. Cazuza é rock, apesar de estar superfirme na MPB, outros também. O rock não está agonizando; o que agoniza é o Estado, é tudo. A música fica. (ABIRACHED, 1989).

Contrários ao prognóstico, figuraram alguns dos músicos excluídos da lista de prováveis sobreviventes da geração 80. O cantor Leo Jaime questionou a cobrança de sofisticação, frequente entre os críticos, apostando na perenidade da linguagem simples do rock. "O que há de comum nessa baboseira toda é que cobram intelectualidade do rock. É que nem fazer debate sobre piada. O fim. Gostou, compra; não gostou, não compra‖ (JAIME, 1989)30. O vocalista do , Roger Moreira, questionou a pertinência da discussão, procurando desqualificar o crítico: "Não está morrendo não (...). Isso é coisa de nego que não

28 MOTTA, Nelson. O rock não morreu. Apenas agoniza. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 11 jan. 1989. 29 ABIRACHED, Milton. O rock rola entre a vida e a morte. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 3. 12 jan. 1989. 30 JAIME, Leo. Quem matou 'all that rock, man'?. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 3. 12 jan. 1989. 40

era roqueiro, pegou a onda e agora fica matando o rock" (ABIRACHED, 1989)31. Selvagem Big Abreu, do João Penca e seus Miquinhos Amestrados, qualificou a questão como falta de assunto, afirmando não possuir interesse em ―tropicalizar‖ o trabalho de sua banda, em referência à tendência de buscar em outros ritmos saídas para o suposto esgotamento do rock (ABIRACHED, 1989). Lobão adotou uma postura intermediária em relação à polêmica. Apesar de acreditar ―existir uma expectativa lúgubre em relação ao rock" e de suas críticas anteriores ao gênero, continuou apostando na sonoridade. Sobre o disco lançado em 1989, Sob o sol de Parador, afirmaria: "é o disco mais rock'n'roll que já fiz. Aliás, não quero me desvencilhar do rock. Seria uma desonestidade, uma traição. O rock pode ter errado, mas não tanto..." (TEIXEIRA, 1989)32. Lobão buscaria efetivamente alternativas ao rock, a partir do lançamento de Nostalgia da Modernidade, em 1995. Na trajetória do músico, a polarização rock/MPB, estilos representados em sua visão pela oposição entre elementos estrangeiros e nacionais, seria objetos de constante reflexão, norteando sua produção. Sem conseguir conformar os dois polos, Lobão alternou, ao longo da carreira, períodos de defesa do rock e de aproximação da MPB. Em alguns momentos, flertou com a possibilidade de desenvolver um trabalho mais próximo da MPB, enquanto, em outros discos, apostou no rock.

Minhas preocupações estéticas, ontológicas e existenciais são nômades. Entro em contradição. Já defendi acirradamente a MPB fazendo o disco Nostalgia da Modernidade, ortodoxo, jobiniano, tradicional, pegando a ambiência do Festival Internacional da Canção (...) Não existe vida inteligente sem contradição. Não tenho uma posição unívoca, experimentei a fundo desde música eletrônica a viola caipira a violão clássico a música de câmara a chorinho. (CASTRO, 2004)33.

A mesma instabilidade pode ser observada nos discursos do músico. Assim como criticou os grandes nomes da MPB em alguns momentos, em outros os defendeu, como ao afirmar em 1988 – ano de lançamento do disco Cuidado!, trabalho no qual apostou na fusão entre samba e rock para revolucionar a música brasileira - sentir "mais substância em Chico Buarque, Tom Jobim, Caetano e Gilberto Gil" do que em seus colegas de geração (RIBEIRO;

31 ABIRACHED, Milton. O rock rola entre a vida e a morte. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 3. 12 jan. 1989. 32 TEIXEIRA, Fernanda. Lobão, agora com as garras aparadas. O Estado de S. Paulo. Caderno 2, p. 39. 16 ago. 1989. 33 CASTRO, Fernando de. Lobão: aquele que não livra a cara de ninguém. Pasquim. 20ª semana de 2004. Disponível em: Acesso em: 28 nov. 2014. 41

RODRIGUES, 1988)34. Se a visão de Lobão sobre os músicos consagrados é conflituosa, com relação à sua própria geração construiu um discurso que se repetiria ao longo dos anos. Lobão questionará reiteradamente a qualidade musical do rock produzido nos anos 80, procurando deslegitimar o movimento, reivindicando para si e para seu grupo o mérito pela produção autêntica, de real valor artístico, realizada no período.

34 RIBEIRO, Alfredo; RODRIGUES, Fábio. O pequeno grande Lobo. Jornal do Brasil. 17 jan. 1988. Disponível em: Acesso em: 23 ago. 2015. 42

2 A CONSOLIDAÇÃO DA CARREIRA DE LOBÃO NOS ANOS 80

"Hoje é festa na floresta, toda tribo ateia som Toda taba ateia sol, só tomando água de coco Infeliz de quem tá triste No meio dessa confusão" (LOBÃO; VILHENA; BARROSO, 1984)35

A trajetória musical de Lobão iniciou-se aos cinco anos de idade, através da bateria. O interesse pelo rock estimulou o aprendizado do novo instrumento. A família do músico, entretanto, não era aberta ao estilo, que desde o final de 1950 já produzia ídolos como Elvis Presley, Chuck Berry e Bill Haley, dificultando o seu acesso às novidades. As canções que faziam parte de seu ambiente doméstico pertenciam à Jovem Guarda, Tropicália e MPB, além dos sucessos populares da época. Apesar da resistência materna, com o fenômeno mundial dos Beatles e a consequente popularização do rock no Brasil, marcada pelo surgimento de programas de rádio especializados, que divulgavam os principais lançamentos do exterior, o rock passou a chegar com mais facilidade aos ouvidos de Lobão. Relembrando o período, o músico descreve o impacto após conhecer o som produzido pelo quarteto inglês: ―Tudo mudou de lugar na minha cabeça. Fiquei maravilhado! Mas, para meu azar, minha mãe não pensava da mesma maneira...‖ (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010, p. 40). Apesar do pouco acesso ao rock dentro de casa, Lobão foi se aproximando cada vez mais do estilo, que se transformaria em sua principal influência. À base musical roqueira somar-se-ia o interesse pela MPB, através da obra de Chico Buarque, Edu Lobo e Milton Nascimento, e pela Tropicália, com os músicos baianos exercendo grande influência em sua trajetória. Lobão afirma ter sido um ―fã ardoroso‖ de Gilberto Gil e Caetano Veloso (LOBÃO, 2013, p. 42). Os progressos musicais de Lobão eram inversamente proporcionais ao desempenho escolar. A dedicação aos instrumentos, primeiramente à bateria, depois ao violão, não encontrava paralelo nas disciplinas do ensino formal, levando Lobão a repetir o 1º e o 2º ano do colegial. O crescente envolvimento com a música somado aos fracassos escolares contribuíram para transformar a carreira de músico em uma possibilidade real. A profissionalização, entretanto, não estava nos planos dos pais de Lobão. Isso pode ter motivado sua incursão no universo da música erudita, acreditando que, através de uma música

35 LOBÃO; VILHENA, Bernardo; BARROSO, Júlio. Corações Psicodélicos. In: LOBÃO E OS RONALDOS. Ronaldo foi pra Guerra. RCA Victor, 1984. Faixa 1. 43

socialmente consagrada, poderia conciliar suas pretensões às expectativas familiares. Mais do que um astro de rock, Lobão queria ser um maestro (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010). Seu ingresso na escola do maestro César Guerra Peixe, onde aprenderia violão clássico, significava um passo importante em direção à carreira de músico erudito. Se bem sucedido nos estudos poderia dar prosseguimento ao seu sonho de se tornar maestro. Apesar do aprendizado de um repertório que extrapolava os limites da música popular, a passagem pelo ensino formal de violão não foi exitosa, como é possível observar através da brevidade com que o assunto é abordado em sua autobiografia e pelo fato de Lobão não conseguir desenvolver a habilidade de ler partituras, fundamental para que suas ambições se concretizassem, o que só ocorreria na década de 90, conforme relata:

Continuava a estudar violão clássico... apenas me recusava terminantemente a ler música. Preguiçoso mental que era, tirava tudo de ouvido, até um dia que meu professor, meio desconfiado, enquanto executava um prelúdio de Villa-Lobos, trocou as partituras e eu continuei tocando a peça até o fim, crente que o convencia... Só vim aprender a ler e escrever música no início dos anos 1990. (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010, p. 129/130).

Apesar disso, Lobão buscou capitalizar a experiência pelo universo da música erudita para se distinguir dos colegas de geração. Mesmo que breve, sua passagem pela escola de música, bem como o fato de tocar vários instrumentos e conhecer diversos gêneros musicais, serviram de argumento para sustentar sua superioridade em relação aos outros roqueiros. ―Eu não sou um roqueiro típico, daqueles que as pessoas chamam de burro. Tenho uma certa cultura (...) Eu gosto de música clássica, gosto de choro, toco praticamente todo o repertório de violão, toco todas as músicas do Villa-Lobos, do Pixinguinha, do Garoto‖ (COMIN; FERNANDES, 2005, p. 187). Impossibilitado de se tornar maestro, seguiria profissionalmente como músico popular. Nesta seara, Lobão se destacaria, ingressando aos 16 anos, como baterista, na banda de rock progressivo Vímana. Entrar para o conjunto representava um grande salto para o ainda adolescente aspirante a músico. Apesar de nunca ter gravado um disco, o Vímana era uma banda promissora no cenário do rock progressivo carioca. Seus integrantes, Lulu Santos (guitarra), Ritchie (vocais), Luiz Paulo Simas (teclados) e Fernando Gama (baixo), eram todos mais experientes que Lobão - Lulu Santos e Fernando Gama já haviam tocado no Veludo Elétrico, e Paulo Simas no Módulo 1000 - e, além disso, a banda contava com uma estrutura técnica profissional e possuía um grupo de fãs que prestigiava as apresentações do conjunto (ALEXANDRE, 2013; DAPIEVE, 2015). Antes de ingressar como baterista, Lobão já havia, 44

inclusive, assistido a um show da banda. O Vímana representava, assim, um auspicioso início de carreira para Lobão.

O Vímana tinha PA próprio, um sem número de microfones, monitores, tinha técnico de som próprio, roadies (nem no mainstream MPB daquela época haviam inventado a figura do roadie). Estava completamente fascinado! Todo o equipamento deles era de última geração, os instrumentos!! (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010, p. 154).

Convidados para formar a banda de apoio da peça de teatro Feiticeira, estrelada pela atriz Marília Pera, os músicos do Vímana passaram uma temporada em São Paulo. Lobão ainda não havia alcançado a maioridade quando saiu de casa, abandonando os estudos, sem completar o ensino médio. Ao produtor musical Nelson Motta, casado com Marilia Pera à época, coube a tarefa de convencer o pai de Lobão sobre a mudança, tornando-se tutor do baterista, conforme recorda:

Lobão era enorme, mas só tinha 16 anos, tocava violão clássico e bateria, era um músico talentosíssimo e um garoto tão doce e inteligente que não hesitei em assinar um documento em cartório me responsabilizando totalmente por sua integridade física e moral e por todos os seus atos. (MOTTA, 2009, p. 285).

A temporada em São Paulo acabou precocemente devido à baixa bilheteria da peça. A experiência, entretanto, serviria para consolidar o relacionamento dos músicos com o jornalista Nelson Motta, que se transformou em um entusiasta da banda, contribuindo para a divulgação do trabalho do Vímana na grande mídia. Em sua coluna no jornal O Globo, reiterou diversas vezes a qualidade do repertório desenvolvido pelo grupo, apostando em seu sucesso. A relevância do apoio de Nelson Motta deve ser considerada, tendo em vista sua trajetória. O jornalista pertenceu a um grupo de jovens músicos, constituído também por Edu Lobo, Dori Caymmi e Chico Buarque, que esteve integrado ao ambiente da bossa nova carioca e que posteriormente se destacaria nos festivais de música dos anos 60 e 70. Como letrista, venceu a fase nacional do I Festival Internacional da Canção de 1966, com a música Saveiros, composta em parceria com Dori Caymmi e interpretada por . Atuou nas mais diversas áreas do campo musical, organizando festivais, como o e o Som, Sol e Surf, trabalhando como produtor musical, escrevendo músicas, críticas musicais e livros sobre o tema (MOTTA, 2009). Nelson Motta possuía, dessa forma, um grande trânsito no ambiente da música popular brasileira, podendo ajudar a projetar a carreira da banda. Em sua coluna de 29 de julho de 1976, ao noticiar o retorno do Vímana aos palcos do Rio de Janeiro, destacou a mudança conceitual pela qual a banda passava, ―resultante do 45

afastamento do rock progressivo até então desenvolvido pelo grupo e tendo em vista uma maior aproximação com o público, sem, contudo, deixar de lado 'a linguagem rock'" e a parceria iniciada com o poeta Bernardo Vilhena, letrista de algumas músicas do conjunto e de futuras canções de Lobão (MOTTA, 1976)36. Em outubro do mesmo ano, o crítico musical não conteve elogios à banda, destacando a qualidade técnica de seus integrantes na matéria intitulada ‘Vímana: a energia mágica de um novo grupo’. Em suas palavras:

Tenho o prazer de informar à seleta que o atual show do Vímana é um espetáculo lindíssimo, de alta precisão técnica, swing, alegria e vitalidade. Confesso que também fiquei indignado quando terminou. Só deu para sossegar quando o grupo bisou a música 'Zebra‘, feita pelo baterista Lobão, de 18 anos (...) Nessas alturas pode-se dizer que, de praticamente tudo que se ouviu este ano (além dos stars), os dois grupos que apresentaram um trabalho novo, vitalizante e criativo foram a Barca do Sol e o Vímana. Inclusive muito superior em pique e vontade de tocar a muitos e consagrados stars do firmamento aborígene. (MOTTA, 1976)37.

Disposto a produzir um som mais comercial, o Vímana foi contratado pela Som Livre. Ainda citando a coluna de Nelson Motta, o jornalista destacou o lançamento do compacto Zebra, acreditando que a música estaria ―destinada aos primeiros lugares das paradas de sucessos e com plenas chances de satisfazer ao mesmo tempo os ouvidos mais exigentes e os corpos mais ouriçados‖ (MOTTA, 1976)38. Apesar do prognóstico, o sucesso não se concretizaria. No mesmo período em que havia assinado com a gravadora, a banda receberia um convite para tocar com Patrick Moraz, ex-tecladista do grupo de rock progressivo Yes. A proposta representava a possibilidade de uma carreira internacional, o que levou os músicos a abandonarem os projetos em curso para se dedicarem exclusivamente aos planos do artista estrangeiro. Após um período de ensaios, em que Lulu Santos deixaria a banda, Patrick desistiu do projeto, colocando um ponto final nas esperanças de sucesso mundial e no próprio Vímana. Em pouco tempo, três ex-membros da banda ganhariam destaque na cena roqueira que despontava no Brasil: Ritchie, Lulu Santos e Lobão.

2.1 Capitalizando o pioneirismo A experiência como integrante de banda de rock nos anos 70 foi recorrentemente utilizada por Lobão para marcar uma diferença em relação aos roqueiros da década seguinte. Lobão procurou destacar a posse de uma formação musical ampla e sofisticada quando

36 MOTTA, Nelson. Vímana no MAM. O Globo. Matutina, Cultura, p. 48. 29 jul. 1976. 37 MOTTA, Nelson. Vímana: a energia mágica de um novo grupo. O Globo. Matutina, Cultura, p. 40. 12 out. 1976. 38 MOTTA, Nelson. Deu zebra no Vímana, o sucesso sem loteria. O Globo. Matutina, Cultura, p. 29. 29 out. 1976. 46

comparada às influências dos músicos mais jovens. ―Os caras que começaram a gostar de punk tocavam com dois acordes, mas eu já tinha um background todo, não tinha saco pra ouvir God Save the Queen‖ (SOLNIK; SCHAHIN, 2014)39. Em diversos depoimentos, Lobão procurou dissociar seu nome do movimento dos anos 80, em seu ponto de vista mais comercial e menos inventivo. Ao pioneirismo e à vanguarda dos músicos dos anos 70, contrapõe-se a diluição dos anos 80. Em sua opinião, bandas como Legião Urbana, Paralamas do Sucesso e Titãs pertencem a uma geração posterior a dele. Seu grupo seria formado por Júlio Barroso, Cazuza, Marina Lima, Lulu Santos, Ritchie. ―Somos pessoas dos anos 70 (…) Eu não sou dessa geração, Legião Urbana é quase dez anos depois de mim!‖ (SANCHES, 2011)40. O argumento pode ser compreendido como uma busca por distinção no campo do rock nacional. No momento em que um grande número de bandas começava a conquistar destaque no mercado musical, reivindicar a condição de pioneiro agregou valor simbólico ao trabalho e à figura de Lobão. À medida que os artistas pertencentes ao seu grupo vêm a falecer (Júlio Barroso em 1984 e Cazuza em 1990) esse discurso se reforça.

2.2 De baterista a frontman No início da década de 80, Lobão, cuja carreira ainda não deslanchara, dividia-se entre vários afazeres. Trabalhou como baterista para diversos artistas, como Marina Lima, e Walter Franco, formou a Blitz com Evandro Mesquita, Ricardo Barreto, Antônio Pedro Fortuna, William "Billy" Forghieri, e Marcia Bulcão, e gravou o repertório de Cena de Cinema, que seria seu disco de estreia. Dois caminhos se apresentaram a partir de então. Com o interesse da gravadora Odeon na Blitz, Lobão teria que optar entre seguir como baterista da banda ou investir em seu trabalho solo. A Odeon só fecharia contrato com Lobão caso ele desistisse de Cena de Cinema. Indeciso, gravou o primeiro LP da Blitz como músico de estúdio. Permanecer na banda seria a opção comercialmente mais acertada, tendo em vista que a Blitz era a principal aposta da gravadora e o compacto da música Você não soube me amar estava fazendo sucesso nas rádios de todo país, gerando contratos lucrativos para os integrantes do grupo. Em contrapartida, significaria abrir mão de uma posição de destaque no cenário musical. Na Blitz,

39 SOLNIK, Alex; SCHAHIN, Camilla. S.A.X Magazine. 14 jan. 2014. Disponível em: Acesso em: 11 ago. 2015. 40 SANCHES, Pedro Alexandre. Lobão: a ovelha negra da música brasileira. IG. 11 fev. 2011. Disponível em: Acesso em: 18 out. 2014. 47

Lobão seria ‗apenas‘ um baterista, tendo seu trabalho autoral tolhido, já que a maioria das composições continuaria sendo produzida por Evandro Mesquita e Ricardo Barreto. Decidido a optar pela carreira solo, antes de abandonar definitivamente o projeto, Lobão apareceria com a Blitz em uma matéria de capa realizada pela revista Isto É. Lobão procurava com a divulgação despertar o interesse de outras gravadoras em seu LP Cena de Cinema. Foi o que ocorreu, com a RCA Victor fechando contrato com o músico, acreditando que, impulsionado pelo sucesso da Blitz, o trabalho de Lobão poderia alcançar boas vendagens. A saída de Lobão despertou a curiosidade da imprensa e dos próprios músicos, contribuindo para a divulgação de seu disco e para o fortalecimento de sua imagem.

A espetacular opção de Lobão, de abandonar o grupo de maior sucesso do momento e vender para a RCA a fita do seu Cena de Cinema, chocou e dividiu a cena roqueira carioca. Para uns, era um doidão que estava rasgando um bilhete premiado; para outros um herói, que recusava o estrelato para fazer sua arte independente. (MOTTA, 2009, p. 353).

Conforme é possível observar através do depoimento de Nelson Motta, alguns interpretaram a decisão de Lobão de abandonar a Blitz como uma atitude típica dos artistas que não fazem concessões comerciais em detrimento da integridade de sua obra. A recusa ao sucesso imediato seria, assim, capitalizada simbolicamente pelo músico. Lobão evocaria, a partir desse ponto de vista, a figura heroica do artista rebelde, livre de amarras estéticas, econômicas e políticas, que alimentaria ao longo da carreira. Lobão alega que um dos motivos de sua saída da Blitz, além da exigência da gravadora para que desistisse do lançamento de seu álbum solo, decorreu de divergências quanto aos rumos que a banda estaria tomando. Afirmou que a interferência da gravadora estava transformando a Blitz em uma banda adolescente, que eles ―queriam evidenciar exageradamente a parte humorística e as vozes estridentes das garotas para vender a Blitz como bandinha de iê-iê-iê, uma espécie de patotinha do rock inofensivo‖ (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010, p. 229), distanciando-a de sua intenção original. O argumento se enfraquece, entretanto, quando comparamos os discos de estreia da Blitz e de Lobão. É possível observar semelhanças entre os projetos. A própria capa do LP Cena de Cinema evoca uma estética de história em quadrinhos semelhante à proposta de As aventuras da Blitz. A influência new wave também se faz sentir nos dois trabalhos. Se nas letras de Bernardo Vilhena para o álbum de Lobão ―a cultura new wave é acionada como símbolo de uma geração influenciada pela televisão, pelos quadrinhos, pelo cinema e pela estética pop" (CAVALCANTI, 2010, p. 104), o mesmo raciocínio pode ser aplicado às 48

composições de Evandro Mesquita e Ricardo Barreto para a Blitz. As diferenças não são tão grandes quanto o discurso de Lobão parece evidenciar. É possível interpretar o episódio como uma busca por posições privilegiadas no campo musical. Analisando a trajetória de Lobão até o momento, é possível cogitar que o músico ambicionasse mais do que ser o baterista da Blitz. A própria iniciativa de gravar um disco solo demonstra seu desejo de desenvolver um trabalho autoral, em que ele estivesse à frente, o que não seria possível através da banda, devido à posição de liderança exercida por Evandro Mesquita. Confiante em seu potencial enquanto músico, apesar do semianonimato, Lobão já havia integrado uma banda de destaque na cena independente do rock carioca, o Vímana, flertara com a possibilidade de sucesso internacional integrando o projeto de Patrick Moraz, ex- integrante do Yes, e contava com o reconhecimento dentro do campo do rock, com diversos artistas colaborando na gravação de seu primeiro álbum, com destaque para Marina Lima, Lulu Santos e Ritchie. Todos esses fatores podem ter contribuído para elevar suas expectativas em relação à própria carreira, fazendo com que Lobão apostasse no sucesso de seu trabalho solo. A própria versão de Evandro Mesquita, líder da Blitz, sobre o episódio reforça esse entendimento. Conforme é possível observar através de seu relato, Lobão já não cabia no papel de baterista da Blitz, alimentando expectativas quanto a uma carreira de maior destaque. Lobão estava cada vez mais envolvido com o Bernardo (Vilhena), que era letrista. Mas eu era o letrista da Blitz, compunha junto com o (Ricardo) Barreto, então o Bernardo não teria muito espaço – seu canal para gravar um disco seria Lobão. Aí começou uma história de ‗o Lobão tem fãs‘, o ‗Lobão tem um trabalho próprio‘. Eu não poderia tirar minhas próprias músicas do disco da Blitz para que o Lobão e o Bernardo botassem as deles. (ALEXANDRE, 2013, p. 108).

Da mesma forma, retomando a fala de Nelson Motta, Lobão não seria um ―doidão que estava rasgando um bilhete premiado‖; ao contrário, sua breve passagem pela Blitz possibilitou sua entrada para a gravadora RCA, que em outras circunstâncias não teria interesse na contratação do músico. Se comercialmente Lobão demoraria a colher os frutos de sua decisão, simbolicamente o músico saiu fortalecido do episódio da Blitz. Lobão abandonara definitivamente o papel de baterista passando a atuar como frontman. Sem Lobão, a Blitz se tornaria o primeiro fenômeno comercial do rock nos anos 80. Com seu estilo descontraído, cheio de apelos teatrais, como os diálogos entre Evandro Mesquita e as backing vocals, e figurinos elaborados, a temporada de As Aventuras da Blitz foi embalada pelos sucessos Você não soube me amar e Mais uma de amor (Geme, Geme). O 49

sucesso da banda fez com que as gravadoras investissem no gênero, em busca de novas apostas (DAPIEVE, 2015). Conforme depoimento de Herbert Vianna, após o sucesso das primeiras bandas, ―as gravadoras contratavam qualquer um, todo mundo teria seu contrato‖ (ALEXANDRE, 2013, p. 138). Dentro dessa lógica, o primeiro ex-Vímana a fazer sucesso foi Ritchie. Contratado pela CBS lançou em fevereiro de 1983 o compacto da música Menina Veneno, composta em parceria com o letrista Bernardo Vilhena. Com a canção tocando nas rádios de todo o Brasil, o compacto vendeu 800 mil unidades, e o LP Voo de Coração, lançado em seguida, alcançaria a marca de 1,2 milhão de cópias vendidas (ALEXANDRE, 2013). Partindo para um estilo mais pop, Lulu Santos também encontrou seu espaço. Sem alcançar o sucesso meteórico de Blitz e Ritchie, o guitarrista foi consolidando sua carreira através de uma sequência de músicas de sucesso (DAPIEVE, 2015). Nesse contexto em que as bandas de rock começaram a ganhar visibilidade, o álbum Cena de Cinema, lançado em novembro de 1982, foi bem acolhido pela crítica. A passagem de Lobão pela Blitz também contribuiu para despertar o interesse da imprensa pelo seu trabalho. Ana Maria Bahiana mencionou o disco em matéria sobre os destaques musicais do ano. Ao lado de Djavan, Alceu Valença, , Caetano Veloso, Blitz, Barão Vermelho e Lulu Santos, figurou "a surpreendente virada de Lobão, o homem que criou a Blitz e abandonou a bateria do grupo para se lançar como guitarrista e compositor de um elepê estimulante, Cena de Cinema" (BAHIANA, 1983)41. Também abordando a guinada na carreira do músico com sua saída da Blitz, a crítica de Artur Xéxeo para a revista Isto É destaca a qualidade e o pioneirismo de seu primeiro trabalho. Acredita, entretanto, que a demora no lançamento do LP, que havia sido gravado no ano anterior, prejudicou o aspecto de novidade que a obra continha. Para ele, Lobão ―conseguiu a exótica façanha de fazer uma obra de vanguarda que chega às lojas como peça de museu‖ (XÉXEO, 1983)42. O interesse da imprensa no trabalho de Lobão, entretanto, não se converteu em vendas. Apesar de o músico ter se tornado mais conhecido e gozar de prestígio dentro da cena roqueira, o álbum não alcançou popularidade, vendendo em torno de 6 mil cópias (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010). A título de comparação, o primeiro LP de Lulu Santos, Tempos Modernos, lançado em 1982, conquistou 56 mil compradores, e o trabalho lançado no ano

41 BAHIANA, Ana Maria. Com a criação que ressurge, sinais de vida no planeta música popular. E, pela qualidade, 82 foi de Djavan. O Globo. Matutina, p. 3. 02 jan. 1983. 42 XEXÉO, Artur. Tudo muito bom, só que atrasado. Isto É. p. 5. 12 jan. 1983. 50

seguinte, O ritmo do momento, alcançou a marca de 90 mil cópias vendidas (DAPIEVE, 2015).

2.3 O roqueiro e o poeta Faz-se necessário destacar a importância de Bernardo Vilhena para a carreira de Lobão. Conforme mencionado anteriormente, Evandro Mesquita credita a ele uma parcela de culpa pela saída de Lobão da Blitz. Além de escrever nove das dez músicas de Cena de Cinema, Bernardo também ajudou a produzir o LP. Letrista de alguns dos maiores sucessos do músico, com destaque para Corações Psicodélicos, O Rock Errou, Vida Bandida e Vida Louca Vida, a parceria se estenderia ao longo da década de 1980. Oito anos mais velho que Lobão, Bernardo Vilhena integrou o Nuvem Cigana, grupo de poetas inseridos no movimento que ficou conhecido como poesia marginal. Conforme analisa Heloísa Buarque de Hollanda (2004), no contexto da década de 1970, Chacal, Charles, Bernardo Vilhena, dentre outros, começam a criar poesia fora das estruturas institucionais de produção, estabelecendo uma literatura à margem, desconectada dos movimentos culturais de esquerda, assim como da vanguarda e da universidade, atuando diretamente na produção, edição e distribuição de seus livros. Avesso às ortodoxias e à valorização do futuro, seja do ponto de vista do pensamento marxista ou liberal, sua produção se caracterizou pela valorização do presente, do cotidiano, do flash, ―pela rejeição manifesta pela técnica, pela busca do ‗novo‘, pelo caráter programático ou militante representado pelos movimentos de vanguarda‖ (HOLANDA, 2004, p. 113). A produção do grupo Nuvem Cigana esteve reunida na revista Almanaque Biotônico Vitalidade. Ao invés da tradicional noite de autógrafos, os lançamentos da publicação eram marcados pelos happenings, com leituras dramatizadas dos poemas e shows de rock. Há que se mencionar, no contexto da década de 70, que os poetas marginais também dialogavam com a concepção de cultura oswaldiana, conforme é possível observar nos versos de João Carlos Pádua para o Almanaque Biotônico Vitalidade de 1976:

ver com olhos livres, comer de tudo. o vomitar de todos (...) pela deglutição do bispo. contra a sardinha em lata. contra a lata. pela luta (...) a europa curva-se anti o brasil ogum é de lei. (PÁDUA, 1976, p. 230/231).

A iniciativa dos poetas marginais pode ser compreendida como prenúncio da postura que marcaria os músicos da década de 1980. Com seu estilo despretensioso, assim como o dos roqueiros, eles se distanciariam da erudição, da preocupação com a vanguarda, através da 51

valorização de uma produção mais espontânea, ligada às questões do cotidiano e sua banalidade (HOLLANDA, 2004). Essas tendências podem ser observadas nas ideias contidas no poema de Charles: Na festinha xic paparica-se o artista na rua o escracho é total a sabedoria tá mais na rua que no livros em geral (essa é a batida mas batendo é que faz render) bom é falar bobagem e jogar pelada um exercício contra a genialidade (espacinho) os mestres da vanguarda vem de complicar a gente vem de viver/brincar e anotar chegou a hora nem que seja para agitar a água mexer a sujeira que descansa a tanto tempo no fundo do co (r) po palavra de poeta no papel. (CHARLES, 1976, p. 232).

Não por acaso, muitos dos poetas marginais escreveriam letras de música, várias delas em parceria com os roqueiros dos anos 80. Bernardo Vilhena produziu ao lado de vários artistas43, a parceria com Lobão, porém, seria a de maior destaque. No segundo LP, com a banda os Ronaldos, a contribuição de Bernardo pôde ser observada em um terço das doze canções do álbum. Em O Rock Errou, a parceria voltou a se intensificar, com o poeta compondo seis letras para o disco, assim como em Vida Bandida, álbum em que participaria de sete das dez canções. Nos agradecimentos do disco, é possível observar como Vilhena integrava o trabalho de Lobão. Ao final das dedicatórias, Lobão escreve: ―Eu e Bernardo oferecemos, agradecemos e nos rendemos a nossas mulheres Danielle Daumerie e Isabella Lago‖. Mais do que um parceiro, Vilhena aparece como artista produtor daquele trabalho, com direito a dedicá-lo à sua esposa.

43 ―Como letrista Bernardo Vilhena compôs com Ritchie: [―Menina veneno‖, ―A mulher invisível‖, ―A vida tem dessas coisas‖, ―Telenotícias‖, ―O trem vai‖, ―Três e já‖, ―E a vida continua‖, ―Horizonte perdido‖, ―A sombra da partida‖, ―Tudo normal‖, ―Mais você‖, ―Relógios‖, ―Sede de viver‖, ―Pelo interfone‖, ―No olhar‖, ―Vôo de coração‖, ―Casanova‖, ―Parabéns pra você‖, ―No olhar‖, ―Só pra o vento‖, ―Nesse avião‖, ―Lágrimas demais‖]; com a Blitz: [―Mais uma de amor (geme, geme)‖, ―Louca paixão‖ e ―Charme de artista‖]; com Lulu Santos: [―Gosto de batom‖, ―Ouça a canção‖ e ―Din don‖]; com Cláudio Zoli: [―Amor demais‖, ―Paraíso‖, ―Flor do futuro‖, ―Sem dizer adeus‖, ―Pista vazia‖, ―Na rede‖, ―Vivo nesse mundo‖]; com a Cidade Negra: [―Falar a verdade‖, ― A cor do sol‖, ―Estar só‖, ―Os anjos‖, ―SOS Brasil‖, e ―O erê‖]; com a banda Rádio Taxi: [―Bailarina‖ e ―Mil beijos‖]; com a Banda Black Rio: [―Deixe-me sonhar‖ e ―Sexta-feira carioca‖]; com Wilson Simoninha: [―Livre para viver‖, ―Lua clara‖ e ―Aquele gol‖]; ―Antes que o amor acabe‖ com Nelson Motta, ―Banana split‖ com Erasmo Carlos, , ―Nosso fim‖ com Capital Inicial, ―Perdão, talvez‖ com Ed Motta e ,; ―Proceder‖ com Max de Castro, ―Idade da luz‖ com Flávio Venturini; e ―Seja melhor‖ com Pedro Mariano‖ (CAVALCANTI, 2010, p. 103). 52

No disco Cuidado! Bernardo contribuiu com sete das nove faixas, além de ter produzido o LP ao lado de Lobão e Ivo Meirelles. Com apenas três composições em Sob o Sol de Parador, as letras do poeta começaram a perder espaço diante da participação de outros compositores, dentre eles Tavinho Paes com quatro canções no álbum. A música Essa noite, não, seria o último grande sucesso da dupla e o maior destaque do disco. A parceria chegaria ao fim em 1991, com o lançamento do álbum O inferno é fogo, em que Bernardo contribuiu apenas com a letra da canção Viver ou não, faixa que encerra o disco.

2.4 O reconhecimento público No final do ano de 1983, os músicos que faziam parte do círculo de amizades de Lobão haviam todos encontrado seu espaço no mercado. Evandro Mesquita, Ritchie, Lulu Santos e Júlio Barroso estavam tocando nas rádios e se apresentando nos programas de televisão, enquanto Lobão permanecia no semianonimato, respaldado pela crítica especializada, porém sem alcançar popularidade. Apesar de inserido no meio musical há vários anos, Lobão demorou um pouco mais do que seus antigos companheiros de banda para se destacar no cenário do rock dos anos 1980. Com seus próximos trabalhos, ao longo da década iria pouco a pouco conquistando espaço, sem nunca se transformar em um fenômeno de vendas. Como a carreira solo não havia decolado, Lobão realizou a última tentativa de formar uma banda com Alice Pink Pank, Guto Barros, Odeid Pomeranblum e Baster Barros. Do segundo LP com a banda Lobão e os Ronaldos, lançado em 1984, ficariam marcadas em seu repertório as canções Me Chama, seu maior sucesso, com letra e música de sua autoria, e Corações Psicodélicos, parceria com Bernardo Vilhena e Júlio Barroso. Apesar do apelo radiofônico das canções, o disco venderia pouco se comparado ao resultado comercial de outras bandas no período. Enquanto no mesmo ano o LP O Passo do Lui dos Paralamas do Sucesso vendeu 200 mil cópias (CEZIMBRA, 1986)44, o disco Tudo Azul de Lulu Santos alcançou a marca de 400 mil LPs vendidos (O ESTADO DE S. PAULO)45 e o Maior Abandonado do Barão Vermelho ganhou disco de ouro, ultrapassando as 100 mil cópias (ALVES, 2000), o disco de Lobão, apesar das músicas de destaque, conquistou apenas 23 mil compradores (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010).

44 CEZIMBRA, Márcia. Os Paralamas trocam rock por e samba. Folha de S. Paulo. Ilustrada, p. 61. 11 abr. 1986. 45 O ESTADO DE S. PAULO. A afirmação do maior hitmaker do brasil. 26 dez. 2010. Disponível em: < http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,a-afirmacao-do-maior-hitmaker-do-brasil-imp-,658210> Acesso em: 03 fev. 2016. 53

O cenário se repetiria ao longo da carreira do cantor. De forma geral, a obra de Lobão obteve pouco sucesso mercadológico, conforme o próprio músico afirma: ―Eu nunca vendi discos. Infelizmente, vendi mais discos na época em que estive preso‖ (AGUIAR, 2008)46. Sua melhor marca, mesmo com todo o apelo midiático, seria as 350 mil cópias vendidas do LP Vida Bandida (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010). Na visão do músico, o potencial de seus trabalhos não correspondia às vendagens alcançadas, o que o levaria a questionar os números apresentados pelas gravadoras. Para embasar seu argumento, Lobão compara os resultados de seus discos com outros sucessos da época.

Em 84, quando saiu Me Chama e tive a maior execução em rádio da década, batendo de longe Menina Veneno, os números oficiais diziam que Menina Veneno vendeu um milhão de cópias. Loura Gelada vendeu 1,2 milhão. Aí fui ver quanto vendeu Me Chama: 23 mil cópias. Perguntei: ‗Mas como é comprovado isso?‘. (CASTRO, 2004)47.

Lobão, que já atuava na cena roqueira carioca desde a segunda metade dos anos 70, viu músicos com carreiras mais breves rapidamente conquistarem o sucesso comercial. Essa ascensão, somada ao fato de Lobão considerar-se mais qualificado do que os novos músicos pode ter contribuído para alguns de seus posicionamentos. Dentre eles, podemos destacar a elaboração de um discurso crítico em relação à geração dos anos 80, uma busca pela valorização dos aspectos simbólicos de sua obra e a oposição às gravadoras, representada pelo seu engajamento na luta pela numeração dos discos e contra o jabá48. Sobre o primeiro aspecto, Lobão questionará, através da mídia, a autenticidade de boa parte das bandas de rock que despontavam na cena. Procurando desqualificar a produção dos músicos de sua geração, Lobão argumentaria que muitas das bandas dos anos 80 imitavam o rock produzido no exterior, sem apresentar nenhuma originalidade. O foco de sua crítica seria a banda Paralamas do Sucesso. Lobão, ainda no início da década, acusa o trio de copiar suas ideias e com isso conquistar um reconhecimento que lhe era devido. Conforme analisa retrospectivamente, os Paralamas ―era uma das bandas que mais me envergonhava, porque

46 AGUIAR, Aurora. "O Rio é o túmulo do rock". Quem Acontece. 28 jul. 2008. Disponível em: Acesso em: 04 dez. 2014. 47 CASTRO, Fernando de. Lobão: aquele que não livra a cara de ninguém. Pasquim. 20ª semana de 2004. Disponível em: Acesso em: 28 nov. 2014. 48 Prática caracterizada pela necessidade de artistas e gravadoras pagarem para que suas canções toquem nas rádios. Tal artifício é utilizado para popularizar uma música, na tentativa de emplacar um fenômeno de vendas. 54

representava uma coisa de uma qualidade que iam associar a mim (...) ali está talvez o epicentro do meu nojo pelos anos 80" (DYNAMITE, 2005)49. O argumento evoluiria para a tentativa de se distinguir do movimento roqueiro. Conforme abordado anteriormente, Lobão elaborou um discurso afirmando pertencer a uma geração de pioneiros do rock, anterior à fase tida por ele como mais comercial, de menor valor artístico. O seu grupo incluiria desta forma - além de Lulu Santos, Ritchie e Marina Lima – Bernardo Vilhena e Júlio Barroso. Em sua visão, existe um aspecto que os diferenciavam dos músicos que surgiriam depois: a autenticidade. ―O que determina os anos 80 é se permitir ser pop. A partir do momento em que começa a copiar, começam os 80: Kid Abelha, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Engenheiros do Hawaii‖ (SANCHES, 2011)50. A dificuldade em consolidar comercialmente sua carreira também pode ter contribuído para que Lobão enfatizasse os aspectos simbólicos de sua obra, adotando um discurso marcado pela preocupação com a qualidade de suas produções. Lobão procurou, dessa forma, posicionar seu trabalho como artisticamente relevante, realizando, assim, um discurso de aproximação entre a prática musical popular, por ele desenvolvida, e valores oriundos de campos artísticos simbolicamente mais valorizados. Quando afirma em entrevista que ―estamos numa época em que se tem de provocar as pessoas. Quer moleza? Vai ouvir Lulu Santos. Eu não sou churrascaria, não sou vitrola. Sou um artista, não um entretenedor‖ (COHEN, 2002)51, procura distinguir os músicos comerciais ou entretenedores, no caso Lulu Santos, dos músicos autênticos, verdadeiros artistas como ele. O resultado mercadológico de suas obras também levará Lobão a contestar os números apresentados por sua gravadora, culminando em seu futuro engajamento na luta pelo estabelecimento de uma lei que determinasse a numeração dos discos, trazendo com isso maior transparência ao processo de contabilização das vendas, e pela proibição do jabá, o que, em sua opinião, contribuiria para a diversidade musical nas rádios, além de favorecê-lo, tendo em vista que, à medida que foi se afastando da indústria fonográfica rumo à cena independente, a frequência com que suas músicas tocavam nas rádios diminuiu, principalmente suas novas canções.

49 DYNAMITE. A volta do artista ao mercado musical. Edição 83, junho de 2005. Disponível em: Acesso em: 7 mai. 2015. 50 SANCHES, Pedro Alexandre. Lobão: a ovelha negra da música brasileira. IG. 11 fev. 2011. Disponível em: Acesso em: 18 out. 2014. 51 COHEN, Vivianne. "Não peguei aids por sorte". Isto É Gente. 28 jan. 2002. Disponível em: Acesso em: 8 abr. 2015. 55

2.5 O grupo de Lobão

A saída de Lobão da banda formada com os Ronaldos marcou o período de aproximação com o músico Cazuza. Ambos passavam por um momento semelhante: assim como Lobão, Cazuza havia deixado seu conjunto para seguir carreira solo. Em matéria sobre o lançamento de seu primeiro disco, Cazuza expõe os motivos de sua decisão. "Deixei o Barão, para me livrar do rótulo de cantor de rock, exclusivamente. Agora eu canto tudo, mas sou fiel ao rock" (O GLOBO, 1985)52. Além da amizade, iniciou-se uma parceria entre Lobão e Cazuza no campo musical, que resultaria em algumas canções gravadas. Uma breve análise da trajetória dos artistas aponta algumas semelhanças que ajudam a compreender a aproximação entre os músicos. Lobão era apenas alguns meses mais velho do que Cazuza, ambos foram criados na zona sul do Rio de Janeiro, tendo frequentado inclusive o mesmo pediatra, Rinaldo De Lamare – Cazuza devido a uma rinite alérgica e Lobão por causa da nefrose. Foram educados por mães controladoras e passaram por uma série de colégios particulares, devido ao mau rendimento escolar. A dificuldade em escolher uma profissão os aproximaria ainda mais da música. Apresentam, entretanto, formações artísticas diversas. Cazuza sempre esteve ligado à música através da profissão do pai, João Araújo, que após trabalhar diversos anos na indústria fonográfica chegou à presidência da gravadora Som Livre. Por este motivo, Cazuza conviveu com as maiores estrelas da música brasileira, dentre elas Elis Regina, Jair Rodrigues, os Novos Baianos, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Gal Costa: "Desde pequeno fui tiete de todo o pessoal da MPB (...) Só fui curtir rock, Janis Joplin, meus ídolos dos Rolling Stones, lá pelos 14 anos, quando dei uma pirada" (ARAÚJO, 1997, p. 222). É possível afirmar que, apesar do interesse pelo rock, a formação de Cazuza é mais ligada à MPB, à linhagem da música brasileira. Em outro depoimento sobre suas influências musicais, Cazuza afirma:

Sou um cara que ouve muita música brasileira. Eu não conheço os grupos lá de fora, não conheço o rock internacional. Conheço Janis Joplin, blues, Stones, Beatles. Estou super por fora do new wave, pós-punk, etc. Sou um cara mais ligado nas coisas daqui do que nas de fora. Então, minha influência do rock veio a partir de Rita Lee, Jovem Guarda, Raul Seixas. Eu me coloco dentro de um rock que já está sendo feito há muito tempo, um rock mais genuíno. (ARAÚJO, 1997, p. 230).

Lobão, desde a infância, esteve ligado ao aprendizado de música, através de instrumentos como a bateria e o violão; porém, com uma formação musical voltada predominantemente para o rock. Sobre o aspecto socioeconômico, suas trajetórias apresentam

52 O Globo. Cazuza lança o primeiro elepê solo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 18 nov. 1985. 56

diferenças. Enquanto a família de Lobão foi perdendo gradativamente poder aquisitivo, a de Cazuza fez o caminho inverso: de classe média foi ascendendo financeiramente, apoiada na carreira de sucesso de João Araújo. Admirador do trabalho de Cazuza, Lobão evocará sua importância para o desenvolvimento do rock nacional reiteradas vezes, da mesma forma como evoca a figura de Júlio Barroso, líder da Gang 90 e as Absurdettes. Júlio Barroso, além de amigo de Lobão, foi um pioneiro do movimento rock dos anos 80, sendo importante apontar alguns aspectos que marcaram sua carreira. Nascido no Rio de Janeiro, trabalhou como jornalista, editando em meados dos anos 70 a revista Música do Planeta Terra, que possuía entre seus colaboradores Caetano Veloso e Gilberto Gil. Contribuiu também com a revista SomTrês no final da década de 1970, ao lado de Lulu Santos e Paulo Ricardo, futuro vocalista da banda RPM. Trabalhou como disc-jóquei na boate Pauliceia Desvairada. Com a Gang 90 e As Absurdettes, participou do festival MPB-81, chegando às finais com a canção Perdidos na selva. Em 1983, lançou o LP Essa tal de Gang 90 & As Absurdettes, pela RCA, mesma gravadora de Lobão. O compacto da música Nosso louco amor, trilha da novela da Globo Louco Amor, vendeu quase 100 mil cópias. O músico faleceu aos 30 anos, em 6 de julho de 1984, após cair do seu apartamento, no 11º andar (DAPIEVE, 2015). Lobão construirá o argumento justificando o enfraquecimento do rock após os anos 80 como decorrente da morte precoce de importantes figuras da cena como Júlio Barroso e Cazuza (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010). Segundo aponta, os músicos possuíam capital cultural e social suficientes para agregar legitimidade ao gênero. Sobre os impactos da perda do líder da Gang 90, avalia: Sem o Júlio nós não temos mais uma turma; agora somos um monte de ninguéns!... Chegou a hora dos nossos inimigos se apoderarem da cena para formar alianças, justamente com aqueles que mais queríamos ver longe (...) A partir de então minha vida se resumiria em antes e depois daquele instante. (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010, p. 13/15).

Lobão e Cazuza buscaram em suas carreiras estabelecer uma ligação direta entre vida e arte (CAVALCANTI, 2010), raciocínio que também pode ser aplicado à trajetória de Júlio. Suas atitudes e suas canções refletem as experiências ligadas à boêmia do baixo . É possível afirmar que os músicos chegaram a formar um grupo com ideias próprias dentro do rock, apesar da morte precoce de Júlio Barroso, conforme pode ser observado através da crítica do jornalista Mauro Dias sobre o show O rock errou:

Lobão e seu grupo (como seus parceiros mais constantes, Cazuza, e o falecido Júlio Barroso) sustentam uma proposta estética elaborada, uma 57

visão de mundo que pode ser discutida, jamais ignorada ou jogada aos rótulos. O trabalho é inteligente, em todos os níveis: na música, na poesia, nos arranjos, na definição cênica. (DIAS, 1986)53.

O jornalista segue tecendo algumas críticas à proposta artística de Lobão, mas deixa claro que, para a imprensa da época, os nomes dos três músicos estavam associados. A despeito das afinidades existentes, o argumento de grupo elaborado por Lobão é passível de algumas críticas. Lobão em diversos momentos idealiza o potencial que a associação teria na música brasileira, mais especificamente, no sentido de superação da Tropicália – uma das principais ambições de Lobão.

Isso, com toda certeza, eu, Júlio, Cazuza, a gente no Baixo dizia: a gente não pode deixar isso. A gente tava a fim de criar um plano para destituir esses caras, porque eles se infiltraram como um parasita no intestino e criaram um presente contínuo como um eterno retorno do mesmo. (DYNAMITE, 2005)54.

A despeito das pretensões de Lobão, Cazuza demonstrou em diversos momentos não se incomodar com a influência que Gilberto Gil e Caetano Veloso exerciam na música brasileira, tendo inclusive se classificado "como bom filho da Tropicália" (ARAÚJO, 1997, p. 238). Em outro depoimento, busca analisar a forma como Lobão reage aos músicos baianos, não demonstrando as mesmas preocupações de ruptura:

Lobão deve amar muito o Caetano. Deve se pegar com a coisa do Caetano achar a geração dele muito melhor. Mas eu tenho orgulho de fazer parte de uma geração que tem o Renato Russo, o , o Lobão, uma geração que acabou com essa história de que rock é bobagem. (ARAÚJO, 1997, p. 234).

Além de utilizar a perda dos amigos para explicar o fracasso de suas ambições artísticas no panorama mais amplo da música brasileira, Lobão procurou construir a imagem do artista solitário em entrevistas e através de letras de música, como nos versos de Das tripas coração: ―Quero saber quem é que vai guardar toda essa dor. De ficar, sozinho, no convés, sem a tripulação?... Sou eu...‖ (LOBÃO, 2012)55. Lobão reivindica, assim, o pertencimento a uma estirpe de artistas que atuaram nos anos 80 em defesa de um projeto artístico autêntico, a despeito de preocupações comerciais imediatas.

53 DIAS, Mauro. Uma proposta inteligente que cai no vazio. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 7. 18 jul. 1986. 54 DYNAMITE. A volta do artista ao mercado musical. Edição 83, junho de 2005. Disponível em: Acesso em: 7 mai. 2015. 55 LOBÃO. Das tripas coração. In: Lobão. Lobão elétrico: lino, sexy & brutal. Deckdisc e U.P. Edições, 2012. Faixa 10. 58

2.6 O rock errou? "Se alguém não está pensando em abraçar a bossa nova e abandonar o barco do rock - que segundo os boatos estaria fazendo água e com seus dias contados no Brasil - este alguém é João Luis Woerdenbag Filho" (MENDES, 1985)56. Quem leu a matéria do Jornal do Brasil de 27 de outubro de 1985 não poderia imaginar que o próximo álbum de Lobão se chamaria justamente O rock errou. À reportagem, Lobão afirmou que seu rock estava ficando cada vez mais hard, com elementos de Led Zepelin e AC/DC. Mudando a direção, seis meses depois, em abril de 1986, Lobão lançaria o LP que marcaria uma nova etapa de sua carreira. A própria capa apresenta signos da mudança, o colorido dos trabalhos anteriores dá lugar a uma temática soturna e polêmica. Lobão aparece vestido de padre, com sua futura mulher Danielle Daumerie nua, coberta apenas por um fino véu. Musicalmente, ―Lobão rompe com as questões estéticas da new wave e desenvolve uma linguagem mais roqueira‖ (CAVALCANTI, 2010, p. 105), além de explorar novas sonoridades. Lobão relaciona a maior diversidade musical do LP à influência exercida pelos músicos Torcuato Mariano (guitarra), João Batista (baixo) e Jurim Moreira (bateria) que formavam sua banda de apoio. Utilizando um argumento semelhante ao de Cazuza, alega que sua saída dos Ronaldos foi motivada pela ortodoxia dos integrantes, que não estavam dispostos a explorar outras possibilidades musicais para além do rock.

Eu não tenho compromisso com nenhum tipo de estilo a não ser o meu e, por isso, queria diversificar mais, queria mais participação da banda com a qual eu tocava. Nada disso acontecia com os Ronaldos, pois o Guto queria aquela dureza do rock, nada de música negra, e a banda participava menos. (SILVA, 1986)57.

Sobre o título do álbum, Lobão procurou descontruir o argumento, em entrevista à época do lançamento do disco, de que o nome escolhido representava uma crítica ao gênero. ―Foi apenas um álibi. Eu nunca quis dizer exatamente isso. Adoro rock. Não sei por que tanta gente ficou em cima de uma frase, interpretando, achando que eu estava numa de pesquisar samba, MPB ou fosse lá o que fosse. Para mim, existe tudo junto e assim viva la différence‖

56 MENDES, Antônio José. Um tecno-apache no Parque. Jornal do Brasil. 27 out.1985. Disponível em: Acesso em: 5 jun. 2015. 57 SILVA, Beatriz Coelho. Astral gregário, Lobão surpreende: 'O rock errou'. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 10. 23 mar. 1986. 59

(PESSOA, 1986)58. Apesar disso, o título foi compreendido pela imprensa como uma crítica ao rock brasileiro, o que já era esperado tendo em vista as questões em voga no campo musical, com destaque para o suposto desgaste do movimento roqueiro alardeado pelos críticos, e as reiteradas provocações de Lobão aos colegas de geração. Em matéria de divulgação do álbum, é possível observar a abordagem explorando a polêmica: "são onze faixas e uma evidente insatisfação com a mediocridade e a hipocrisia das imitações de bandas inglesas e americanas que proliferam entre os novos grupos nacionais" (O GLOBO, 1986)59. Analisando a faixa que deu nome ao disco é possível compreender melhor a proposta artística do músico. Se há críticas ao gênero no tema da canção, Lobão as faz em ritmo de rock, utilizando a ironia como recurso estilístico. A letra e a música, portanto, permeiam de ambiguidade a mensagem, tornando possíveis as diferentes interpretações. Além de O rock errou, outras faixas de destaque no trabalho foram: A voz da Razão, cantada por Elza Soares, em que elementos do samba são explorados; Revanche, música que faz referência às canções de protesto, típicas da MPB, sendo entoada por Lobão nos palanques petistas nas eleições de 1989, e o rock Canos Silenciosos, que faz uma crítica ao abuso de poder policial, que levaria alguns roqueiros à prisão, incluindo o próprio Lobão no ano seguinte. Conforme afirmou o crítico musical Ricardo Alexandre, ―ainda que musicalmente o cantor estivesse muito mais próximo do rock formal, Lobão aderiu a um engajado discurso de cisão em relação ao que se convencionou chamar de rock brasileiro‖ (ALEXANDRE, 2013, p. 307). Comercialmente, o LP foi mais bem sucedido do que seus trabalhos anteriores, com Lobão atingindo pela primeira vez a marca de 100 mil discos vendidos (DAPIEVE, 2015). O ano ficaria marcado também pela regravação de Me Chama por João Gilberto, com a música integrando a trilha sonora da novela Hipertensão, da TV Globo. Ter uma música regravada por João Gilberto, um dos pais da bossa nova, admirado e reverenciado por bossanovistas, tropicalistas e MPBistas, simbolizava o reconhecimento da qualidade do trabalho de Lobão. A importância é potencializada pelo exclusivismo da escolha, sendo Me Chama a única música de rock cantada por João Gilberto até então (MIGUEL, 1998)60. A postura do roqueiro diante da regravação não foi de reverência, como, por exemplo, a atitude adotada por Cazuza ao ter uma música cantada por Caetano Veloso, quando afirmou tratar-se de um sonho realizado (ARAÚJO, 1997). Lobão alternaria momentos de elogio e

58 PESSOA, Isa. 'Viva o rock que não tem medo da diferença'. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 16 jul. 1986. 59 O GLOBO. Lobão, o orgulho de ler Nietzsche e ser um maldito. Matutina, Jornais de Bairro, p. 13. 26 mai. 1986. 60 MIGUEL, Antonio Carlos. Arte da canção sofre com o excesso de letras discursivas. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 6. 16 abril. 1998. 60

crítica à versão. Em matéria abordando o assunto em 1987, o roqueiro não contestou a interpretação de João Gilberto, conforme faria em alguns depoimentos posteriores. "Na conversa com João Gilberto, Lobão não soube afirmar qual seria a melhor das versões de Me Chama, pois, pelo telefone, os arranjos de cordas faziam com que soassem parecidas. Antes de mais nada, ser gravado pelo mestre da bossa-nova era um super-presente aos 29 anos" (DUMAR, 1987)61. Com o passar dos anos, Lobão adotou um discurso crítico ao resultado da regravação: Na verdade ele assassinou a música, né? Cortou até o "nem sempre se vê lágrimas no escuro", porque não entendeu. Tem que dessacralizar esse cara e essa coisa da bossa nova (...) Não tem ninguém que o João Gilberto tenha chamado mais para ir na casa dele do que eu. E eu nunca fui. (SCHOTT, 2008)62.

Considerando a discrepância entre os dois registros da canção, os questionamentos podem ser entendidos como decorrentes do confronto entre propostas musicais diversas. De um lado a bossa nova (entendida simbolicamente como MPB), através da versão criada pelo músico baiano, com arranjos, harmonias e fraseados típicos de seu estilo, e de outro o rock através da gravação original da canção. Ao questionar a proposta de João Gilberto para sua música, Lobão estaria atacando a complexidade representada pela bossa nova em defesa da simplicidade do rock. Falei com ele: ―Pô João, você assassinou a música! Você acha que se eu quisesse uma música cheia de harmonias faria com três acordes? Pô, eu sei harmonia, consigo entortar, mas não quero!‖ A música é assim (cantando bem marcado): ―Nem! Sem! Pre! Se! Vê!‖. Não tem circunvoluções. A dramaticidade tá na repetição. Tudo bem, é a interpretação dele. (CASTRO, 2004)63.

A inconstância de suas declarações pôde ser observada em seu depoimento sobre a canção Me Chama, incluída pela revista na lista das 100 maiores músicas brasileiras, na 47ª posição. Adotando um tom mais conciliador, o músico afirmou sobre a regravação: Quanto à versão do João Gilberto, achei carinhoso da parte dele inserir uma canção minha em seu repertório, uma vez que ele já não gravava nada diferente havia uns 20 anos. O arranjo ficou lindo, a interpretação impecável. Minha pequena aflição consiste em perceber que a frase do refrão que originou a música foi evaporada. Depois, vim a saber, pelo próprio João, que

61 DUMAR, Deborah. Lobão se despede no Circo. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 06 fev.1987. 62 SCHOTT, Ricardo. Lobão ataca o modo de vida carioca, Gilberto Gil e a bossa nova. JB ONLINE. 19 ago. 2008. Disponível em: Acesso em: 21 out. 2015. 63 CASTRO, Fernando de. Lobão: aquele que não livra a cara de ninguém. Pasquim. 20ª semana de 2004. Disponível em: Acesso em: 28 nov. 2014. 61

ele a tirou por não ter entendido o significado. Como já dizia eu, nem sempre se vê mágica no absurdo. (ROLLING STONE, 2009)64.

2.7 Vida bandida O próximo trabalho de Lobão seria marcado por episódios envolvendo sua vida pessoal. O lançamento do LP Vida Bandida ocorreu no momento em que enfrentava problemas com a polícia por porte de drogas. Flagrado com maconha e cocaína na alfândega do aeroporto do Galeão – o músico já havia sido preso pelo porte das mesmas drogas um ano antes e ainda seria julgado por novo flagrante, dessa vez com maconha e haxixe – foi condenado a um ano de prisão pelo juiz Paulo César Dias Panza, da 2ª Vara Criminal do Rio de Janeiro. A revista Veja, em matéria intitulada Drogado Risonho, reprovou o comportamento do músico, afirmando que ele estava condenado "a seguir uma nova carreira – a de presidiário" (VEJA, 1987)65. Ao retratar sua trajetória artística, o periódico, entretanto, destacou sua importância para o rock brasileiro, definindo Lobão como ―músico de sucesso‖, que ―funciona como uma espécie de guru para seus pares‖. Se nos anos 60 e 70 os artistas brasileiros foram presos devido à perseguição política, os músicos dos anos 80 ganhariam destaque no noticiário policial devido ao porte de drogas. Foram flagrados pela polícia os músicos dos Titãs Arnaldo Antunes, Tony Belloto e ; Maurício, do Ultraje a Rigor; diversos músicos do Barão Vermelho e Paulo Ricardo. Entretanto, seria Lobão quem melhor capitalizaria a polêmica (ALEXANDRE, 2013, p. 331). Conforme analisa Cavalcanti (2010), diante da prisão, Lobão assumiu a marginalidade como uma bandeira poética. Enquanto outros músicos que se encontravam na mesma situação procuraram desvincular sua imagem artística do episódio, como foi o caso de Arnaldo Antunes, que optou por se redimir da condição de transgressor, Lobão assumiu e explorou o papel que a mídia lhe concedera.

Sua reação à prisão é oposta a de Arnaldo Antunes, já que, após o cárcere, Lobão assume a marginalidade quase que como uma bandeira poética e nomeia seu próximo disco com ela. Já Antunes ao ser solto busca desmentir um papel transgressivo que poderia estar intrínseco ao papel de um ―artista marginal‖, procurando diferenciar arte e vida. Por sua vez, Lobão assume uma ―sina marginal‖ após seu encarceramento. (CAVALCANTI, 2010, p. 107/108).

Lobão utilizou o período em que esteve preso como uma marca de distinção, capitalizando a imagem de outsider, conforme destaca o depoimento do músico sobre o

64 ROLLING STONE. 100 maiores músicas brasileiras. Ed. 37, out. 2009. Disponível em: Acesso em: 05 nov. 2015. 65 VEJA. Drogado Risonho. Ed. 977. 27 mai. 1987. 62

episódio: ―sofro um preconceito muito grande, passei por cento e não sei quantos processos, virei um preso político e fui perseguido. Mas me orgulho muito disso, é uma coisa que só fez crescer a minha história‖ (COHEN, 2002)66. Conforme destaca Cavalcanti (2010), este tipo de postura desviante é valorizada no campo do rock. Foi possível que Lobão explorasse, dessa forma, a idealização de rebeldia e transgressão associada ao gênero. O disco do músico abordando a temática potencializou ainda mais o interesse da mídia por essa faceta do artista. Lobão fez questão de destacar sua integração com o universo desviante ao dedicar a faixa título do álbum aos detentos, à ―galera da 11‖, cela em que esteve preso durante sua passagem pela Polinter (Polícia Interestadual). O poema Vida Bandida, que dá nome à canção e ao álbum, foi escrito por Bernardo Vilhena em 1975 e musicado 12 anos depois por Lobão (CRUZ, 2015)67. Além dela, outras canções exploraram a temática do desajuste, da inadequação do artista, como Esse mundo que eu vivo, Vida louca vida, Nem bem, nem mal, Chorando pelo campo e Da natureza dos lobos (CAVALCANTI, 2010). ―As temáticas noturnas de suas canções entram em confluência com certa visão de um artista marginal que prova do desterro do mundo através da ideia do outsider, encontrando unidade no desajuste e porto no desvio‖ (CAVALCANTI, 2010, p. 108). Toda a exposição midiática envolvendo o lançamento transformou o disco em uma grande aposta mercadológica. O resultado efetivo frustrou as pretensões de Lobão. Em entrevista, acusou a gravadora RCA "de incompetente na divulgação do disco Vida Bandida‖. Sua expectativa era vender 700 mil cópias, decepcionando-se com a marca de 300 mil unidades (RIBEIRO; RODRIGUES, 1988)68. Na mesma matéria, o músico aponta a produção independente como um caminho a ser seguido em caso de dificuldades com as gravadoras, o que se concretizaria no futuro.

2.8 Cuidado! No trabalho seguinte ao que seria o auge da carreira de Lobão, o músico prosseguiu em sua tentativa de encontrar novas sonoridades para o rock. A proposta do disco Cuidado! reflete a experiência de tocar na bateria da escola de samba Mangueira, em 1988. Sua

66 COHEN, Vivianne. "Não peguei aids por sorte". Isto É Gente. 28 jan. 2002. Disponível em: Acesso em: 8 abr. 2015. 67 CRUZ, Felipe Branco. "O Lobão virou um palhaço" diz Bernardo Vilhena, autor de "Vida Bandida". UOL. 18 ago. 2015. Disponível em:< http://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2015/08/18/o-lobao-virou-um-palhaco- diz-bernardo-vilhena-autor-de-vida-bandida.htm> Acesso: 23 out. 2015. 68 RIBEIRO, Alfredo; RODRIGUES, Fábio. O pequeno grande Lobo. Jornal do Brasil. 17. jan. 1988. Disponível em: Acesso em: 15 set. 2015. 63

intenção era ―unir a Zona Norte à Zona Sul, promover uma nova linguagem que se destacasse daquela profusão daquelas cópias descaradas dos anos 1980‖ (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010, p. 373). Buscando distanciar-se do movimento, afirmaria: "eu não faço rock, faço é heavy samba" (RIBEIRO; RODRIGUES, 1988)69 e teceria críticas específicas contra os Paralamas do Sucesso, Capital Inicial, Ira! e Plebe Rude. Lobão pretendia revolucionar a MPB com o trabalho. As entrevistas concedidas por Lobão em 1988 revelam a falta de foco do músico, ao mesmo tempo em que evidenciam sua frustração em relação às conquistas que obteve até o momento. Para o jornalista Milton Abirached (1988)70, afirma estar escrevendo um roteiro para cinema, com Robert de Niro e Keith Richards como protagonistas, reforça o descontentamento com o rock brasileiro, declarando não pertencer ao estilo e, insatisfeito com a cena musical do país, revela a intenção de iniciar uma carreira no exterior. Projeta que aos quarentas anos irá ―tocar cello, violão clássico e envelhecer nobremente, porque não vou ficar tocando rock'n'roll, entendeu?", desfere críticas aos colegas de geração e aos artistas consagrados e se indispõe com sua gravadora, declarando estar acostumado com a ―bandidagem‖ da RCA. As altas expectativas, entretanto, foram embasadas em um disco artisticamente frágil. Acostumado a receber elogios da crítica especializada, Cuidado! é um disco contestado por alguns especialistas (GIRON, 1989)71 e, posteriormente, pelo próprio autor. O trabalho, produzido por Lobão, Bernardo Vilhena e Ivo Meirelles, pode ser descrito como precipitado. Apesar da vontade de criar uma obra relevante, a proposta e a confecção do disco foram realizadas às pressas, impactando no resultado final. As nove faixas do LP, que foram gravadas e mixadas em apenas um mês (DAPIEVE, 2015), não chegavam a 35 minutos. Sobre o fracasso da iniciativa, analisa: ―a certeza da certeza faz o louco pensar que é um gênio… ficamos apenas na vontade... Faltou humildade, sobrou soberba...‖ (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010, p. 377). Ao longo dos anos 80, Lobão gravou seis discos. Desde 1986 passou a produzir um trabalho por ano, sendo o último, lançado em 1989, o LP Sob o Sol de Parador. Procurando reencontrar o sucesso, tendo em vista que o disco Cuidado! ―não alargou a brecha na mídia aberta por Vida Bandida‖ (DAPIEVE, 2015, p. 53), vendendo 100 mil cópias (LOBÃO;

69 RIBEIRO, Alfredo; RODRIGUES, Fábio. O pequeno grande Lobo. Jornal do Brasil. 17. jan. 1988. Disponível em: Acesso em: 15 set. 2015. 70 ABIRACHED, M. O show do homem-múmia. O Globo, Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 29 ago. 1988. 71 GIRON, Luís Antônio. Um sinal de morte no rock. O Estado de S. Paulo. Caderno 2. 16 ago. 1989. 64

TOGNOLLI, 2010), o novo álbum foi produzido por , conhecido no meio musical como produtor de discos comercialmente bem sucedidos, tendo contribuído para o sucesso de diversos artistas da década de 1980 como Kid Abelha, Lulu Santos, Paralamas do Sucesso e Titãs (ALEXANDRE, 2013). Em ano eleitoral, o músico apostou em um ―rock mais pesado, político‖ (GIRON, 1989), com destaque para as faixas Panamericana e Quem quer votar. As declarações políticas de Lobão, entretanto, ganhariam mais destaque do que suas músicas. Ansiando participar do debate em torno das eleições presidenciais, em agosto de 1989 declarou estar indeciso entre apoiar Brizola ou Roberto Freire (DUMAR, 1989)72, mas acabaria subindo nos palanques petistas em defesa de Lula. No dia da eleição fez campanha para o candidato durante uma participação no programa Domingão do Faustão, caracterizando crime eleitoral. O episódio ligaria o nome de Lobão ao partido. ―A partir daquele período, eu não estaria mais alijado do jogo político no país. Virei um petista circunstancial, mesmo porque aquela patuscada no Faustão formou uma espécie de elo metafísico com o partido‖ (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010, p. 184). Apresentando uma queda em relação aos números do álbum anterior, Sob o sol de Parador venderia 80 mil cópias. Em contrapartida, seria indicado para o Prêmio Sharp, concorrendo em duas categorias: melhor álbum e melhor música pop-rock, com a canção Azul e amarelo (escrita em parceria com Cazuza). Procurando demonstrar indiferença às honrarias, tipificando uma atitude de autonomia artística, Lobão ironizou a indicação: "alguma coisa estou fazendo de errado" (DUMAR, 1990)73. Na década seguinte, Lobão enfrentaria diversos desafios: a falta de consolidação comercial de sua carreira, agravada pelo enfraquecimento do rock enquanto fenômeno de vendas; o término da parceria com o letrista Bernardo Vilhena; o isolamento no campo musical decorrente das críticas desferidas aos músicos de sua geração e aos artistas consagrados, intensificado pelas mortes de Júlio Barroso e Cazuza, que, além de amigos, eram coautores de diversas canções de Lobão, e a deterioração de sua relação com as gravadoras após diversos depoimentos do músico questionando a idoneidade dos números apresentados pela indústria.

72 DUMAR, Deborah. Por amor ao 'disco de risco'. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 01 ago. 1989. 73 DUMAR, Deborah. A solidão da fera. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 3. 12 ago. 1990. 65

3 OS DESAFIOS PARA PERMANECER NO MAINSTREAM

Como cair do céu é tão simples Queda que a tudo e a todos transtorna Ah! As bombas‚ a chuva‚ os anjos e os loucos O mundo todo na velocidade terrível da queda (LOBÃO, 1995)74

Após os controvertidos discos Cuidado! e Sob o sol de Parador, Lobão apostaria no lançamento de um LP revisitando antigos sucessos. Vivo foi gravado em 1990 durante o festival Hollywood Rock, evento em que o show de Lobão foi eleito o melhor pelo público, segundo pesquisa do DataFolha (FOLHA DE S. PAULO, 1990)75. A iniciativa, entretanto, foi duramente criticada pelo jornal paulistano, que questionou a qualidade da apresentação e o fraco desempenho da banda, qualificando o projeto como ―uma maneira que o músico achou de ganhar dinheiro fácil em momento de entressafra criativa" (FOLHA DE S. PAULO, 1990). A crítica não foi unânime, com a performance sendo elogiada por outros veículos de comunicação (FERREIRA, 1991)76. O ano seguinte começou com o show do músico no II. Com o intuito de causar escândalo, Lobão escolhera o dia do heavy metal para apresentar seu repertório acompanhado por uma bateria de escola de samba. "Fiz o show com 40 ritmistas da Mangueira na noite de heavy metal porque queria provocar" (FILHO, 2007)77. Crítico contumaz do estilo, um mês antes do evento, o músico já desafiara seu público do festival, predominantemente metaleiro, ao afirmar detestar heavy metal (MUNIZ, 1990)78. Lobão já estava preparado para a rejeição da plateia, que, em sua maioria, não apreciava a fusão entre rock e elementos do samba, mas acreditava que a estrutura montada para o espetáculo o protegeria, permitindo que a proposta fosse apresentada até o fim. Isso não ocorreu devido a mudanças de última hora que aproximaram o palco do público. O show teve que ser interrompido precocemente, devido à rejeição da plateia, que, ao arremessar objetos no palco, impediu que a apresentação prosseguisse em segurança. Ainda em 1991, Lobão produziria o LP O inferno é fogo. O disco não foi bem aceito por parte da crítica (FERREIRA, 1991)79, e, posteriormente, teve seu conceito criticado pelo próprio autor. Ao analisar o repertório do disco, Lobão afirmou no ano seguinte ao

74 LOBÃO. A Queda. In: LOBÃO. Nostalgia da Modernidade. Virgin, 1995. Faixa 1. 75 FOLHA DE S. PAULO. 'Vivo' é registro de displicência de Lobão. Ilustrada, p. 4. 5 set. 1990. 76 FERREIRA, Mauro. Lobo de garras pouco afiadas. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 3. 07 out. 1991. 77 FILHO, William Helal. 'Não se pode demonizar as gravadoras'. O Globo. Matutina, Megazine, p. 4. 24 abr. 2007. 78 MUNIZ, Hélio. Lobão em ritmo crítico. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 3. 19 dez. 1990. 79 FERREIRA, Mauro. Lobo de garras pouco afiadas. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 3. 07 out. 1991. 66

lançamento que ―estava fazendo um protesto burro", com algumas letras com as quais não concordava mais, como Presidente mauricinho (ROMANHOLLI , 1992)80. O tom crítico ao analisar a própria obra retrospectivamente, marcaria o discurso de Lobão em outras oportunidades. Sobre o disco anterior, enquanto no lançamento de Sob o sol de Parador afirmou: "foi o álbum mais difícil da minha carreira. Mas, de uma forma ou de outra, é o que está me recompensando mais, em termos de qualidade" (TEIXEIRA, 1989)81, no ano seguinte declarou que o LP foi o pior disco de estúdio gravado por ele, contestando a produção de Liminha (MUNIZ, 1990)82. O mesmo ocorrendo com Cuidado!, que, de acordo com sua análise, foi ―um disco de final de contrato e foi gravado apenas em nove dias, rapidinho (...) É um elepê quase inacabado, de nove músicas, que não tem pé nem cabeça" (TEIXEIRA, 1989). Até seu disco de maior sucesso, Vida Bandida, foi contestado, com o músico considerando-o "de uma grandiloquência muito cafona" (PAIVA, 1998)83. O inferno é fogo ficou marcado como o último trabalho com Bernardo Vilhena, seu parceiro musical mais constante durante os anos 80 e coautor de alguns de seus maiores sucessos. No disco, o poeta assina em parceria com Lobão e Ivo Meirelles a canção Viver ou não. Selaria também o fim do contrato com a gravadora BMG, antiga RCA Victor, após o lançamento de três discos de pouco sucesso comercial. Sobre as vendas de seus LPs e a preocupação em não abandonar o mainstream, analisa:

Parei realmente de fazer músicas de tanto sucesso. Provavelmente, não fui muito inspirado. Não sei se o que me dá prazer de fazer atualmente é compatível mercadologicamente (...) mas não quero ser maldito e nem desejo fazer nada que seja inviável comercialmente. (FERREIRA, 1994).

O ano de 1991 ficaria marcado negativamente na carreira do músico. A sequência de fracassos faria Lobão buscar novos referenciais para sua obra. Durante os quatro anos em que ficou sem gravar, o próximo trabalho seria lançado em 1995, o músico buscou reposicionar sua carreira, afastando-se da sonoridade mais pesada adotada em Sob o sol de Parador e O inferno é fogo, numa negação do estilo adotado até então. "Tenho muita vergonha dessa praia do rock'n'roll. Chega de barulho (...) quero evitar o rock'n'roll de qualquer maneira‖

80 ROMANHOLLI, Luiz Henrique. Rock na idade da razão. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 3. 23 abr. 1992 81 TEIXEIRA, Fernanda. Lobão, agora com as garras aparadas. O Estado de S. Paulo. Caderno 2, p. 39. 16 ago. 1989. 82 MUNIZ, Hélio. Lobão em ritmo crítico. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 3. 19 dez. 1990. 83 PAIVA, Anabela. Lobão arma novo bote. Jornal do Brasil, 9 jan. 1998. Disponível em: Acesso em: 02 jan. 2016. 67

(GARAMBONE, 1993)84. Alguns aspectos do momento ruim vivenciado pelo músico foram reunidos em matéria do jornal O Globo, ilustrando as dificuldades em que sua carreira se encontrava. O ano que passou não deixou saudades. Lobão comeu o pão que o diabo amassou: recebeu uma 'salva de latas' no Rock in Rio II, deu com os burros n'água no Morro da Urca, lançou Vivo no Canecão vazio, e esbravejou por causa do som e da plateia morna no Rio Show Festival. Se não bastasse, quebrou o braço esquerdo num acidente de moto. (MOREIRA, 1992)85.

Durante a pausa na produção de novos trabalhos, Lobão realizou apresentações menores, adotando o formato acústico, apenas voz e violão (FERREIRA, 1994)86. O escasso retorno comercial e simbólico de seus últimos trabalhos levaria o músico a buscar uma aproximação com a MPB. A busca de superação do estilo consagrado, que marcou o início da carreira de Lobão, daria lugar a uma tentativa de pertencer ao gênero. Essa guinada artística pode ser compreendida como uma tentativa de conquistar o prestígio comumente associado ao estilo, bem como a necessidade de encontrar um novo nicho de mercado que reabilitasse comercialmente sua carreira. Em 1996, o músico participaria do show de Gilberto Gil no festival Hollywood Rock, cantando Me chama e Rádio blá (MIGUEL,1996)87, o que reforça suas intenções de aproximação com a MPB. Importante observar que o início dos anos 90 é marcado por uma retração do mercado conquistado pelo rock na década de 1980, gerando desconfiança tanto da crítica especializada quanto da indústria fonográfica quanto ao futuro do gênero, com um grupo restrito de bandas e cantores dedicados ao estilo alcançando sucesso comercial. Contratado pela gravadora Virgin Records lançou Nostalgia da Modernidade, trabalho que apresenta uma proposta diferente dos LPs anteriores, apostando na diversidade de ritmos, passando pelo samba em Luz da madrugada, pelo xote em Coração aberto, pelo chorinho em A flor do vazio e pelo blues em Samsara blues, além do rock. (ALMEIDA, 1995)88. Apesar do sucesso da música A queda, trilha de novela da Rede Globo, e das críticas elogiosas da imprensa, o disco não ultrapassou as 20 mil cópias vendidas (PAIVA, 1998)89. Os resultados

84 GARAMBONE, Sidney. Lobão diz sentir vergonha do estridente pop atual. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 2. 23 jun. 1993. 85 MOREIRA, Paulo Ricardo. O Imperator arde em chamas. O Globo. Matutina, Rio Show, p. 9. 10 jan. 1992. 86 FERREIRA. Mauro. O solitário mostra as garras. O Globo. Matutina, Rio Show, p. 28. 21 jan. 1994. 87 MIGUEL, Antônio Carlos, NAME, Daniela, MILLER, Paula. Como uma canção de despedida. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 6. 30 jan. 1996. 88 ALMEIDA, Carlos Helí de. Lobão muda de rótulos em novo CD. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 4. 26 out. 1995 89 PAIVA, Anabela. Lobão arma novo bote. Jornal do Brasil, 9 jan. 1998. Disponível em: Acesso em: 02 jan. 2016. 68

modestos fizeram com que a Virgin rescindisse o contrato com o músico. Um dos aspectos que o resultado evidencia é a dificuldade encontrada por Lobão para se desvincular do rótulo de roqueiro, desagradando seu antigo público com a mudança de estilo, sem necessariamente conquistar novos ouvintes entre os apreciadores de MPB. "É frustrante ser apreciado por uma multidão pelo que você não é" (ALMEIDA, 1995)90. Após três anos, lançaria o disco Noite, pela MCA Records, e a história se repetiria. Continuando sua aproximação com a MPB, o trabalho desta vez associaria influências eletrônicas de ―techno, jungle e drum'n'bass". "Só fiz o disco dessa maneira para poder dizer que cometi um disco de MPB" (THEVENET, 1998)91. Em Noite, Lobão procurou criar um disco conceitual, com as 11 faixas possuindo uma unidade estilística. Outro aspecto que marca o trabalho é a ausência de parceiros, com todas as canções compostas por Lobão (PAIVA, 1998)92. Apesar dos elogios da crítica especializada, o sucesso não viria, levando, novamente, ao término de contrato com a gravadora.

3.1 O mercado independente Considerando a informação de que era preciso vender 100 mil discos para que um trabalho inédito gravado com tecnologia de ponta desse lucro para a gravadora (VEJA, 1993)93, é possível afirmar, de acordo com os dados de vendagens apresentados pela indústria, que Lobão não foi um artista rentável durante os anos 90. Não conseguindo viabilizar o lançamento de um disco de músicas inéditas dentro de um grande selo, restou a Lobão investir no mercado independente, para continuar produzindo. Dias (2008) apresenta três motivações que direcionam o artista à produção independente: a possibilidade de veiculação de propostas estéticas diferentes, não acolhidas pelas grandes empresas; um espaço para divulgação de trabalhos que ainda não despertam o interesse das majors94, com o objetivo de fortalecer o produto a ponto de atrair as grandes gravadoras, ou uma mistura das duas motivações anteriores, em que o desenvolvimento de um trabalho independente possibilitasse, eventualmente, a conquista de um espaço junto ao

90 ALMEIDA, Carlos Helí de. Lobão muda de rótulos em novo CD. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 4. 26 out. 1995 91 THEVENET, Claudia. Lobão à luz de Depeche Mode e Bach. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 6. 16 abr. 1998. 92 PAIVA, Anabela. Lobão arma novo bote. Jornal do Brasil, 9 jan. 1998. Disponível em: Acesso em: 02 jan. 2016. 93 VEJA. A explosão do CD. Ed. 1320. p. 106. 29 dez. 1993. 94 Termo utilizado para referir-se às grandes gravadoras em contraposição às pequenas empresas denominadas indies. 69

grande público. Diante dessas possibilidades, é possível incluir a investida de Lobão no terceiro grupo apresentado. Ao optar pela independência, Lobão não pretendia desenvolver um trabalho vanguardista a ponto de se distanciar do mainstream. Sua longa carreira não permitiria sua inclusão na segunda classificação, em que a independência funciona como uma espécie de vitrine ou de fase de teste para o ingresso de artistas nos grandes selos. O trabalho de Lobão pode ser classificado, desta forma, em uma posição intermediária, já que buscava liberdade de criação para seguir compondo, mas sem abandonar a intenção de atingir o grande público. Para que sua iniciativa obtivesse sucesso, Lobão teve que enfrentar dois dos principais desafios do mercado independente. Superadas as limitações técnicas de gravação com os avanços tecnológicos que possibilitam que um CD seja produzido mesmo com uma pequena estrutura, as principais dificuldades foram a distribuição e a difusão do trabalho (DIAS, 2008). Para solucionar o primeiro aspecto, Lobão recorreu a uma estratégia já utilizada por outros artistas, comercializando o disco encartado a uma revista. A manobra, além de diminuir os impostos sobre o produto, permitindo que o álbum fosse lançado a um preço convidativo, resolveu o problema de distribuição, com a venda através das bancas de jornal. Quanto à difusão, o fato de Lobão ter seu nome consolidado no mercado e possuir trânsito junto aos meios de comunicação de massa possibilitou que seu trabalho fosse amplamente divulgado. Apesar da produção e da distribuição alternativas, o músico contou com os meios tradicionais de comunicação para divulgar o projeto. Lobão destacou a importância de sua participação no Domingão do Faustão para o sucesso de vendas do disco A vida é doce. ―Se eu não tivesse feito o Faustão, estava terminado, ia ser um desastre, um vexame‖ (SANCHES, 2011)95. Durante o programa, o músico utilizou a artimanha, comum entre as gravadoras, de inflacionar a real vendagem do trabalho, para despertar o interesse do público. Além disso, o ineditismo da iniciativa atraiu o interesse da imprensa, possibilitando que A vida é doce alcançasse a marca de 97 mil cópias vendidas e fosse eleito pela crítica especializada como um dos melhores discos de 1999 (MIGUEL, 199996; DAPIEVE, 199997; JÚNIOR, 200098;

95 SANCHES, Pedro Alexandre. Lobão: a ovelha negra da música brasileira. IG. 11 fev. 2011. Disponível em: Acesso em: 18 out. 2014. 96 MIGUEL, Antonio Carlos. Boas e arrojadas ideias que foram bem resolvidas. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 4. 25 nov. 1999. 97 DAPIEVE, Arthur. CD fora de loja. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 8. 17 dez. 1999. 98 JÚNIOR, José Flávio. Declaração de independência de alta classe. Showbizz, p. 62. jan. 2000. 70

LEÃO, 200099). O músico atingiria, assim, no momento mais delicado de sua carreira, reconhecimento artístico e relativo sucesso comercial. A vida é doce encerra a trilogia de álbuns dedicados à adoção de uma nova linguagem musical, marcada pela aproximação com elementos da MPB (SANCHES, 1999)100. Lobão buscou com esses trabalhos reposicionar sua carreira, procurando distanciar-se do rótulo de roqueiro, sem, entretanto, abandonar o estilo em suas composições. Além disso, tentou capitalizar o aspecto marginal da obra criada a partir de 1995, período em que a experimentação artística esteve associada ao pouco retorno comercial, apelo esse intensificado por sua saída das grandes gravadoras.

Costumo dizer que estou desenvolvendo o marketing do fracasso. Saliento em meus shows como a maioria das minhas obras é de um fracasso retumbante e, em seguida, executo uma das minhas canções prediletas, mostrando que o constrangimento de ninguém saber da existência dela não tem nada a ver com sua qualidade e sim com inépcia do organismo que cuidou daquele trabalho, de forma tão indigente e estúpida. (SANCHES, 1999).

O músico procurou relacionar seu ingresso no mercado independente à figura heroica do artista rebelde que prioriza a autenticidade de sua obra em detrimento do retorno comercial. A cobertura da imprensa sobre o assunto contribuiria para reforçar o discurso outsider do artista

(FOLHA, 1999101; VEJA, 2000102). Lobão constrói, assim, sua imagem em oposição aos valores dominantes. No episódio abordado, esses valores são representados pelas grandes gravadoras e seus executivos, que priorizam o lucro em detrimento da qualidade artística. "Os executivos da indústria fonográfica não conseguem distinguir minhas músicas daquelas feitas por Claudinho & Buchecha. Por isso, resolvi trabalhar por conta própria" (VEJA, 2000). Lobão procurou confrontar esses interesses através de sua criação artística, bem como politicamente, através da luta pela regulamentação de alguns aspectos que envolvem a produção fonográfica, como a criação da lei que estabelecesse a numeração dos discos, conforme será abordado a seguir. Sobre a investida de Lobão contra a indústria fonográfica, cabe a pergunta: Como ter certeza se não são as gravadoras que, mantendo-o à distância, permitem a Lobão assumir a sua distância em relação a elas? Os resultados de A vida é doce possibilitaram que a estratégia fosse mantida, com Lobão recorrendo ao mesmo artifício para lançar 2001: uma odisseia no Universo Paralelo.

99 LEÃO, Tom. Ronaldo foi para a universidade. O Globo. Matutina, Megazine, p. 16. 17 out. 2000. 100 SANCHES, Pedro Alexandre. As sete vidas de Lobão. Folha de S. Paulo. 4º Caderno, p. 1 e 6. 3 nov. 1999. 101 FOLHA DE S. PAULO. Mundo e submundo se enfrentam na conclusão da trilogia. 4º Caderno, p. 6. 3 nov. 1999. 102 VEJA. Doce Vingança. Ed. 1632, p. 138/139. 19 jan. 2000. 71

Com apelo comercial ainda maior, tendo em vista tratar-se de um disco ao vivo com diversas regravações e duas canções inéditas, Lobão pretendia superar o resultado do primeiro trabalho independente, projetando, junto à imprensa, a venda de 300 mil cópias (COHEN, 2002)103. Lobão justificou o projeto como uma forma de divulgar suas composições da década de 90, que não atingiram o grande público (COHEN, 2002). Apesar da expectativa, o disco vendeu apenas 18 mil unidades (PIMENTEL, 2007)104. A iniciativa, entretanto, continuou rendendo novos frutos, como a criação da revista Outracoisa. Com assuntos relacionados à indústria cultural, cada edição vinha acompanhada de um CD inédito. O projeto contou com a colaboração dos jornalistas Antônio Carlos Miguel e Silvio Essinger, dos cartunistas , Angeli e Adão Iturrusgarai e do diretor de teatro Zé Celso Martinez Corrêa. Além disso, segundo Lobão, recebeu um 'exíguo' patrocínio da Petrobras (SANCHES, 2003105; BRITO, 2003106). Com o objetivo de apresentar novas propostas para a cultura nacional, desenvolvendo um jornalismo combativo, o editorial de apresentação da publicação, escrito por Lobão, demonstra sua visão sobre o campo artístico brasileiro. A gente quer transitar para além desse Brasil oficial, rançoso, criador de impossibilidades para vender facilidades; a gente quer existir para além desse coronelato de luminárias desbotadas, desse mausoléu de capitanias hereditárias, onde a vida vem regurgitando orgulhos fermentados de uma cultura cheia de dogmas, verdades varicosas, misérias embelezadas e, não raro, belezas miseráveis. (LOBÃO, 2003)107.

A revista permaneceu no mercado por cinco anos, contabilizando 22 edições. Entre 2003 e 2008, a iniciativa divulgou o trabalho de artistas como BNegão, Mombojó, Cachorro Grande, Arnaldo Baptista, Plebe Rude, Carbona e Vanguart, que tiveram seus discos comercializados em bancas de jornal. O projeto abrigou também o lançamento do décimo álbum solo de Lobão. Não seria bem sucedida, entretanto, a tentativa de criar um movimento articulado em torno da revista, conforme relata o músico.

Eu lancei mais de 50 artistas. Pensei que poderia fazer uns concertos, as pessoas se unificarem, um falar bem do outro, fazer aquele lobby que a

103 COHEN, Vivianne. "Não peguei aids por sorte". Isto É Gente. 28 jan. 2002. Disponível em: Acesso em: 8 abr. 2015. 104 PIMENTEL, Luiz Cesar. Lobão macho alfa. Rolling Stone. Ed. 08, mai. 2007. Disponível em: Acesso em: 12 set. 2014. 105 SANCHES, Pedro Alexandre. 'Jornalista' Lobão vende música em banca. Folha de S. Paulo. Ilustrada, p. 5. 7 nov. 2003. 106 BRITO, Hagamenon. Lobão lança nova revista com CD, a "Outracoisa". Terra. 12 nov. 2003. Disponível em: Acesso em: 12 ago. 2015. 107 LOBÃO. Essa tal de OutraCoisa. 2ª edição. nov. 2003. Disponível em: Acesso em: 07 abr. 2015. 72

Tropicália fez muito bem - dentro de um nicho todos eles se uniram, depois a Tropicália que brigava com os mineiros, os mineiros que brigavam com os cariocas, eles se uniram e viraram a MPB, começaram a cantar juntos - o que é uma coisa que é uma organização e é uma coisa louvável. Isso não aconteceu até hoje e parece que não vai acontecer. (LOBÃO, 2015)108.

Canções dentro da noite escura, lançado em 2005, seria o único trabalho de músicas inéditas lançado por Lobão nos anos 2000. Com canções que resgatam poesias de Cazuza e Júlio Barroso, incluindo também uma música em homenagem a Cássia Eller – que na opinião do músico encontrava-se entre as melhores cantoras do Brasil, cuja morte representou uma enorme perda para o rock brasileiro (LOBÃO, 2015) – o disco retrata o isolamento do músico no campo musical. Tal isolamento pode ser observado no próprio processo de confecção do disco, com Lobão tocando todos os instrumentos, exceto a bateria (MIGUEL, 2003)109. A melancolia dos versos das canções reforça o aspecto maldito de sua carreira após os anos 80, como é possível observar no trecho abaixo de A balada do inimigo:

E eu deslizo pro fundo de um quarto escuro Já não sei mais aonde estou Pra mim o mundo é só mais um quarto escuro E a devastação da vida Um cobertor

Talvez algumas lágrimas Nos tornem um pouco mais inchados e vazios É rapa Não há estilo sem fracasso (LOBÃO, 2005)110

O músico classifica a criação como um manifesto antitropicalista (PIMENTEL, 2005)111, demonstrando sua relação conflituosa com o movimento. Sem obter popularidade, o disco não chegaria a 20 mil cópias vendidas (PIMENTEL, 2007)112, encerrando o ciclo independente de Lobão, que se encontrava esgotado, sem alcançar resultados que se aproximassem do obtido com A vida é doce. Sem muitas possibilidades, Lobão voltaria para uma major para gravar um disco acústico.

108 LOBÃO. ‗Artivismo‘: como os artistas brasileiros podem se engajar na luta para derrubar o governo petista. Transmitido em: 9 jun. 2015. 1:08:14. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=jWbfQ-anw0w> Acesso em: 15 mar. 2016. 109 MIGUEL, Antonio Carlos. Lobão uiva sobre a noite. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 2. 15 jul. 2003. 110 LOBÃO. A Balada do Inimigo. In: LOBÃO. Canções dentro da Noite Escura. L&C Editora e U.P. Edições, 2005. Faixa 8. 111 PIMENTEL, João. O Lobo falante. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 14 mai. 2005. 112 PIMENTEL, Luiz Cesar. Lobão macho alfa. Rolling Stone. Ed. 08, mai. 2007. Disponível em: Acesso em: 12 set. 2014. 73

3.1.1 A trajetória no universo paralelo Desde que Lobão decidiu apostar no mercado independente, no final dos anos 90, até seu retorno às gravadoras, seu posicionamento em relação à escolha de uma via alternativa apresentou mudanças, acompanhando a configuração do mercado e os resultados alcançados por seus discos. Sua incursão no mercado independente não foi política, sendo a única alternativa para o lançamento de novos trabalhos, tendo em vista o desinteresse das gravadoras em suas composições inéditas. Sobre a situação em que sua carreira se encontrava em 1998, relata: "Tenho repertório pronto para um novo disco, provavelmente será por outra gravadora. Há dois meses a Universal nem atende meus telefonemas, vou ter que botar anúncio no jornal (...) Minha saída mesmo, por mais que goste de grana, deve ser o independente" (SANCHES, 1998)113. O contexto de enfraquecimento das gravadoras, justificado pela indústria como consequência da pirataria, o ineditismo da iniciativa, bem como o fato de Lobão ter seu nome consolidado no mercado e uma rede de contatos possibilitaram a divulgação do álbum na grande mídia, contribuindo para que o primeiro disco obtivesse bons resultados de vendas. A iniciativa garantiria a Lobão um papel de destaque na cena musical, transformando-o em representante de um mercado, que, apesar de economicamente dominado, simbolicamente representava a experimentação, a vanguarda, a novidade, valores capitalizados pelo roqueiro. Com sua proposta sendo seguida por outros músicos, muitos deles através da revista Outracoisa, a iniciativa de Lobão ganhou ainda mais destaque. As conquistas obtidas no início da empreitada independente, com o lançamento de um disco bem sucedido e da revista Outracoisa, fizeram com que Lobão adotasse uma postura otimista em relação ao potencial do projeto. Em entrevista realizada antes do lançamento de seu terceiro disco independente, Lobão procurou demonstrar sua superioridade em relação aos outros artistas, considerando que, além de criador, agora dominava os meandros de produção, comercialização e divulgação de sua obra.

Eles estão tentando, mas é muito difícil, eu sou um homem de negócios, eles não tem tamanho para me absorver mais. Eu vou falar com eles, fiz um universo, tenho revista, entro no Fantástico, no Faustão, tenho forte penetração no Brasil inteiro, vendo cem mil cópias… O que eles vão me propor melhor do que isso? Mas eu, com humildade, ouvirei o que eles têm a

113 SANCHES, Pedro Alexandre. Lobão mostra o "velho" disco novo ao vivo em SP. Folha de S. Paulo. Especial A, p. 1. 6 out. 1998. 74

me dizer, porque afinal de contas, eles têm todo o meu acervo lá, 90% do que eu fiz tá lá, e muito me interessa pegar isso. (DYNAMITE, 2005)114.

Apesar do aparente otimismo, os resultados já não eram mais os mesmos. O trabalho anterior, Uma odisseia no universo paralelo, de forte apelo comercial, tendo em vista tratar-se de um disco ao vivo com canções de seus álbuns anteriores, não alcançou o resultado esperado por Lobão, com números muito abaixo da expectativa, o mesmo ocorrendo com o disco lançado em 2005, Canções dentro da noite escura. Com o segundo revés, o músico começou a procurar novas alternativas para seguir produzindo com alguma visibilidade, o que culminaria em seu retorno ao mercado tradicional de discos. Encerrada a trajetória independente, Lobão adotaria um discurso crítico em relação à experiência. Afirmaria pertencer ao mainstream, contestando os músicos que fazem do mercado independente uma escolha ideológica. Em suas palavras: ―independente não é uma atitude, é uma condição. É segunda divisão, é grupo de acesso. Ninguém consegue virar um Roberto Carlos, um Michael Jackson sendo independente. Qual a graça de ser campeão da segunda divisão?‖ (TRIGO, 2008)115. Esses aspectos não impediram que o músico capitalizasse simbolicamente a experiência. O episódio reforçou sua imagem de artista que não se submete às exigências do mercado, priorizando a qualidade de seu trabalho.

3.2 O retorno ao mainstream O retorno às gravadoras, em 2007, com o lançamento do Acústico MTV foi uma tentativa de revigorar sua carreira. Grande crítico do formato, questionou em diversas oportunidades a qualidade dos acústicos e o fato de o projeto ter sido utilizado por diversos artistas como uma forma de reconquistar a visibilidade perdida. Sobre a iniciativa, afirmou anos antes: ―Nunca vi alguém se dar bem depois de gravar um acústico. Deveria acontecer aqui o que ocorre nos Estados Unidos. A Alanis Morissette está no auge do sucesso e faz um acústico. Não é fazer porque está escondido‖ (COHEN, 2002)116. Contradizendo os próprios argumentos, o músico utilizou o Acústico para retornar aos holofotes e divulgar sua obra para uma plateia mais ampla. Lobão fugiria das críticas, utilizando o mesmo argumento acionado para justificar o lançamento do disco ao vivo Uma odisseia no universo paralelo, afirmando

114 DYNAMITE. A volta do artista ao mercado musical. Edição 83, junho de 2005. Disponível em: Acesso em: 7 mai. 2015. 115 TRIGO, Luciano. Lobão solta o verbo. G1. 05 nov. 2008. Disponível em: Acesso em: 2 out. 2014. 116 COHEN, Vivianne. "Não peguei aids por sorte". Isto É Gente. 28 jan. 2002. Disponível em: Acesso em: 8 abr. 2015. 75

que o projeto levaria ao grande público parte de seu trabalho lançado de forma independente, por esse motivo menos conhecido, sem destacar antigos sucessos dos anos 80. Outro aspecto questionado foi seu retorno à Sony/BMG, gravadora alvo de diversas críticas de Lobão. Sobre o presidente da companhia, Alexandre Schiavo, havia afirmado anteriormente que "a mediocridade é uma utopia para ele" (ARAUJO, 2007)117. Com o contrato, o músico voltava a integrar o esquema de produção anteriormente criticado. Lobão justificou a decisão afirmando que os novos executivos da empresa não possuíam relação com os erros cometidos no passado e que os mesmos pensavam de maneira diferente (ARAUJO,

2007). Outro argumento utilizado para justificar seu retorno à Sony/BMG, gravadora contra a qual moveu processos na justiça, foi a exigência contratual de relançamento dos discos produzidos na década de 80, que estavam fora de catálogo, e a gravação de um disco de canções inéditas (SAITO, 2007)118. Os projetos acabariam não se concretizando. A gravadora colocaria no mercado apenas uma compilação do repertório gravado durante o período de 1981 a 1991, lançando um box contendo três CDs mais o DVD Acústico MTV. Com o novo posicionamento, sua opinião sobre aspectos da indústria fonográfica anteriormente questionados, como o jabá e o alto preço de comercialização dos CDs, modificou-se. Indagado sobre o retorno de suas músicas à programação das rádios, abandonou as críticas de outrora, não demonstrando preocupação em desfrutar de eventuais vícios do mercado. "Nem quero saber se a companhia está pagando jabá, mas acho que não, pois eles não têm mais dinheiro. Estou nos primeiros lugares depois de décadas banido" (ARAUJO, 2007). Da mesma forma, não questionou os valores cobrados pelo seu disco, ao contrário, justificou o alto custo como decorrente da qualidade do material, algo difícil em sua opinião, de ser adquirido no mercado independente: "Vendo para quem tem dinheiro. Quem não tem vai comprar pirata. Independente é barato porque suprime a produção. Mas se quiser disco muito bom tem que ter gravadora" (FILHO, 2007)119. Desde o início dos anos 90, Lobão enfrentou dificuldades para desenvolver sua carreira. A independência foi uma saída para continuar produzindo, sem, entretanto, representar uma alternativa que garantisse visibilidade ao seu trabalho em longo prazo. A gravação do acústico representou, assim, uma possibilidade de continuar no mainstream. É importante não perder

117 ARAUJO, Bernardo. Teto de vidro de Lobão é metralhado em DVD. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 2. 18 abr. 2007. 118 SAITO, Bruno Yutaka. 'Sei que vão me chamar de traidor', diz Lobão. Folha de S. Paulo. Ilustrada, p. 4. 30 mar. 2007. 119 FILHO, William Helal. 'Não se pode demonizar as gravadoras'. O Globo. Matutina, Megazine, p. 4. 24 abr. 2007. 76

de vista que o músico tem como referencial os números do grande mercado, não pretendendo ficar restrito à cena de música alternativa. Além disso, o músico já não apresentava condições de resistir ao retorno comercial imediato, em detrimento de uma possível valorização futura de sua obra – conforme ocorreu nos episódios de sua saída da Blitz e de sua incursão pelo mercado independente – levando-o a rever suas posições. "Se eu for destruído enquanto criador, e minha criatura sobreviver, tô no lucro, é tudo o que quero" (SAITO, 2007)120. A declaração de Lobão demonstra a preocupação econômica que envolveu a decisão. Apesar do apelo comercial do projeto, do investimento realizado pela gravadora e da divulgação através da emissora MTV, comercialmente o resultado obtido foi muito semelhante ao alcançado com seu disco ao vivo gravado de forma independente seis anos antes. O Acústico MTV vendeu 23 mil cópias, cinco mil a mais do que Uma odisseia no universo paralelo. O fraco desempenho comercial não refletiu o acolhimento da obra pela imprensa, com comentários elogiosos da crítica especializada (PIMENTEL, 2007121; FINOTI, 2007122). A qualidade do projeto seria referendada pela conquista do Grammy Latino de melhor álbum de rock de 2007. Lobão gravou o disco acústico em um ano comercialmente ruim para o mercado fonográfico. Em 2007, as vendas de disco foram baixas, com nenhum lançamento ultrapassando a marca de 300 mil cópias (LICHOTE, 2008)123. Além disso, o projeto da emissora paulistana já não apresentava o poder de alavancar sua carreira, assim como ocorreu com algumas produções anteriores. A MTV lançaria apenas mais quatro discos explorando o formato. Restou a Lobão capitalizar o fracasso, transformando seu fraco desempenho comercial em argumento para sua posição de ‗maldito‘. Contrapondo a baixa vendagem ao prestígio conferido pelo prêmio conquistado, afirmaria: "o segundo pior bateu 350 mil cópias, enquanto o meu, 25 mil. Mas ganhei o Grammy" (REIS, 2010)124. Lobão destaca dessa forma que os números ruins não estão relacionados à qualidade de seu trabalho. Sem perspectivas na carreira musical após o fracasso do acústico, Lobão procuraria outros campos de atuação para se manter em evidência. Os trabalhos televisivos e editoriais ganhariam destaque em detrimento das composições.

120 SAITO, Bruno Yutaka. 'Sei que vão me chamar de traidor', diz Lobão. Folha de S. Paulo. Ilustrada, p. 4. 30 mar. 2007 121 PIMENTEL, João. Lobão faz as pazes com sua própria carreira. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 2. 18 abr. 2007. 122 FINOTI, Ivan. Aquele lance de ‗Cordeirão‘... Era apenas a pele mesmo. Folha de S. Paulo. Ilustrada, p. 9. 15 abr. 2007. 123 LICHOTE, Leonardo. O ano 'não' da música. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 04 abr. 2008. 124 REIS, Luiz Felipe. A volta do estrangeiro. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1/2. 02 jul. 2010. 77

Estava consciente de que se ficasse à mercê do resultado de vendas catastrófico do Acústico, poderia dar como encerrada a minha carreira... Assim, tive que lançar mão de minha personalidade cada vez mais multifacetada, novamente me reinventar e iniciar a minha carreira de homem de TV. (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010, p. 537).

A primeira experiência na TV ocorreria em 2005, quando integrou o elenco do programa Saca Rolha, na Rede 21. Ao lado de Marcelo Tas e Mariana Weickert, desempenhou a função de entrevistador na atração. A experiência abriria caminho para outras oportunidades, sendo convidado para comandar diversos programas no canal MTV durante o período de 2007 a 2010, dentre eles: Debate, Código, Lobotomia e Lobão ao Mar. Os compromissos profissionais motivariam sua mudança do Rio de Janeiro para São Paulo (REIS, 2010)125. Uma rápida passagem pelo programa A Liga, na , em 2012, encerra a trajetória televisiva do músico. O sucesso só retornaria, entretanto, com o ingresso no mercado editorial, em 2010. O lançamento de sua autobiografia 50 anos a mil, publicada em parceria com o jornalista Cláudio Tognolli, ganharia destaque na mídia, com as principais publicações fazendo reportagens sobre o livro e diversas entrevistas em programas televisivos (REIS, 2010; LICHOTE126, 2010; PRETO, 2010127; MARTINS, 2010128). O livro alcançou a marca de 150 mil cópias vendidas (MELLO, 2014)129, impulsionando sua carreira mais do que a maioria dos discos. No ano seguinte, gravou o que seria o terceiro disco compilando antigas canções em menos de dez anos. Lançado em 2012, Lobão elétrico: lino, sexy & brutal possui apenas uma canção inédita: Das tripas coração. A música feita em homenagem a Cazuza, Júlio Barroso e Ezequiel Neves, fala sobre o isolamento do músico após a perda dos amigos, sendo utilizada na abertura de sua autobiografia. O projeto realizado pela produtora de Lobão, Universo Paralelo, e distribuído pela gravadora Deckdisc, juntar-se-ia a Uma odisseia no universo paralelo e o Acústico MTV na tentativa de resgatar o repertório menos popular do músico. Em 2013, lançou seu segundo livro, Manifesto do nada na terra do nunca, no qual expõe seus pensamentos sobre cultura e política, além de relatar alguns episódios biográficos. O mote do livro é uma resposta às ideias apresentadas por Oswald de Andrade no Manifesto

125 REIS, Luiz Felipe. A volta do estrangeiro. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1/2. 02 jul. 2010. 126 LICHOTE, Leonardo. Vida, louca vida. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1/2. 28 nov. 2010. 127 PRETO, Marcus. No pós-futuro, Lobão, 52, vê o passado. Folha de S. Paulo. Ilustrada, p. 4. 11 jun. 2010. 128 MARTINS, Sérgio. Até a última gota. Veja. Ed. 2193, p. 220/221. 01 dez. 2010. 129 MELLO, Patrícia Campos. Lobão cantou 'Lula-lá' em 1989 e hoje integra linha de frente do antipetismo. Folha de S. Paulo. 14 dez. 2014. Disponível em: Acesso em: 18 dez. 2014. 78

Antropófago. Lobão argumenta que as raízes de seu descontentamento com o cenário cultural brasileiro decorrem da influência que os modernistas exerceram na constituição da identidade nacional – principalmente nos movimentos culturais da década de 1960 – através da valorização da brasilidade, impedindo que as contribuições da cultura universal fossem realmente assimiladas. Segundo seu raciocínio, as atuações do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), no início dos anos 50, e do Centro Popular de Cultura (CPC), na década de 1960 – instituições alinhadas à esquerda – contribuíram para a consolidação do nacionalismo na cultura, em oposição ao ‗colonizado‘ e ao ‗alienado‘. Com a posterior sedimentação no imaginário nacional da MPB como melhor representante da pureza genealógica da canção brasileira, Lobão estabelece o elo entre a ‗busca da brasilidade‘, a esquerda e a MPB, que impediu o rock de conquistar legitimidade no cenário nacional e, consequentemente, contribuiu para a perda de autenticidade de seu projeto artístico. Através do Manifesto, Lobão insere-se no debate político atual. Em um contexto de polarização política, o músico optou por se posicionar à direita, consciente da polêmica que suscitaria. ―Eu sabia que ia chutar casa de marimbondo‖ (RODA VIVA, 2013)130. Influenciado pelas ideias defendidas pelo filósofo e astrólogo Olavo de Carvalho, o músico criticou a Comissão Nacional da Verdade criada pelo governo com o intuito de apurar violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, questionou supostas ligações entre o PT e as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), reclamou do ‗patrulhamento ideológico‘ dos movimentos de esquerda, apontou a relação do PT com as ditaduras cubanas e iranianas e alertou para a ameaça comunista representada pelo Foro de São Paulo. Para Lobão, a política adotada pelo PT teria sido responsável pela revitalização do conceito nacional-popular no campo cultural. Impulsionada pelo governo, a MPB manteve seu domínio, impedindo a renovação musical e um possível protagonismo do rock.

Existe uma invariância de estruturas que governam o (des)conhecimento, sancionadas por uma cartilha ideológica, emulando um presente decalcado de um passado cenograficamente glorioso e impossível de ser superado. Na música, a MPB (...) é o exemplo típico de indução por meio da repetição obsessiva para dar a ideia de que a qualidade e a excelência do nosso cancioneiro, de que os grandes gênios e arautos da liberdade eram um fenômeno

130 RODA VIVA. ―Eu sabia que seria como chutar casa de maribondo‖. 02 dez. 2013. Disponível em: Acesso em: 08 out. 2014. 79

exclusivo daquela época e daquela sigla de proveta. (LOBÃO, 2013, p. 25).

As ideias apresentadas por Lobão tiveram diferentes acolhidas. A revista Veja concedeu espaço em suas ‗Páginas Amarelas‘ para que Lobão expusesse os pensamentos abordados no livro, momento em que foi convidado para integrar o quadro de colunistas da publicação. Conforme aponta Silva (2005), as ‗Páginas Amarelas‘ de Veja podem ser consideradas uma extensão do editorial da revista, utilizada para construir consenso sobre o que está sendo defendido. A seção é comumente utilizada para dar voz a alguém que expresse um argumento que a revista não pode defender abertamente. Os colunistas da publicação também repercutiram suas ideias, com destaque para e Augusto Nunes, o último tendo inclusive reproduzido trechos do livro em sua página no site da revista. Em contrapartida, sua guinada à direita foi duramente criticada pelos simpatizantes dos movimentos de esquerda. Argumentaram que o engajamento de Lobão prejudicaria sua carreira artística e sua credibilidade no meio musical e, além disso, acreditavam que o músico havia escolhido o lado errado ao associar sua imagem à de direitistas como Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino e Reinaldo Azevedo. As 50 mil cópias vendidas de seu segundo livro (ESSINGER, 2015)131 transformariam o mercado editorial em uma possibilidade de carreira mais promissora do que o fonográfico, diante dos sucessivos fracassos comerciais de seus discos. ―Hoje, sou um escritor best seller, com muito mais poderio de vendagens nos livros que em disco‖, reconhece o artista (BRÊDA, 2015)132. Além disso, após a publicação, Lobão conquistaria grande visibilidade midiática, transformando-se em uma figura de destaque dentro do movimento de oposição ao Partido dos Trabalhadores. O fato de Lobão ter sido citado na lista elaborada pelo vice-presidente nacional e coordenador das Redes Sociais do PT à época, Alberto Cantalice, entre os representantes da mídia que procuram com suas críticas desgastar o governo petista, confirma o papel de destaque do músico no embate político.

Personificados em Reinaldo Azevedo, Arnaldo Jabor, Demétrio Magnoli, Guilherme Fiúza, Augusto Nunes, Diogo Mainardi, Lobão, Gentili, entre outros menos votados, suas pregações nas páginas dos veículos conservadores estimulam setores reacionários e exclusivistas da

131 ESSINGER, Silvio. 'Todo roqueiro é conservador'. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 25 nov. 2015. 132 BRÊDA, Lucas. Lobão lança financiamento coletivo para bancar o álbum O rigor e a misericórdia. Rolling Stones. 28 jun. 2015. Disponível em: Acesso em: 12 nov. 2015. 80

sociedade brasileira a maldizer os pobres e sua presença cada vez maior nos aeroportos, nos shoppings e nos restaurantes. (CANTALICE, 2014)133.

O contexto de polarização política após as eleições presidenciais de 2014, com o PT mantendo-se no poder por uma vantagem de apenas 3,28% dos votos válidos, contribuiu para ampliar a visibilidade de Lobão. O músico assumiria posição de destaque, transformando-se em ―‗muso‘ das manifestações contra o governo‖ (MELLO, 2014)134, pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff. No mercado editorial, Lobão conquistou boas vendagens. Explorando a polêmica política, alcançou a visibilidade necessária para viabilizar o lançamento de seu novo disco de canções inéditas, através de um financiamento coletivo. O apoio ao projeto do músico ultrapassou a meta inicial de arrecadação de R$ 80 mil, totalizando R$97.693,00135, o que possibilitou a concretização do disco O rigor e a misericórdia, após 10 anos sem lançar um trabalho inédito – o anterior havia sido Canções dentro da noite escura, de 2005, último trabalho independente de Lobão. O disco foi resultado de um processo solitário de produção, com Lobão criando todas as canções, assumindo a produção e tocando todos os instrumentos, exceto pelo solo de guitarra da canção A esperança é a praia de um outro mar, criado e executado por seu sobrinho João Puig (LOBÃO, 2015). O envolvimento político do cantor despertou grande expectativa sobre a temática das canções. A influência do contexto político em sua arte resultou diretamente em três composições: A marcha dos infames, Os Vulneráveis e A posse dos impostores. Assim como o conteúdo, a sonoridade dramática e "marcada por um certo exagero" do álbum (ARAUJO, 2015)136 parecem refletir o contexto atual. A primeira canção foi criada em resposta à inclusão de Lobão na lista de opositores do PT, elaborada por Alberto Cantalice. Sem fazer menção direta a partidos ou a políticos, o músico acusa os detentores do poder de polarizarem a nação: ―Apedrejando irmãos/ E os que não são iguais‖, de corrupção: ―Tanto martírio em vão/Estupro da nação‖, ―E o sangue dos ladrões/ de outros carnavais‖, de enganarem a população: ―E até quando ouvir/ Cretinos e boçais/ Mentir, mentir, mentir/ Eternamente mentir?‖ e finaliza convocando uma reação

133 CANTALICE, Alberto. Alberto Cantalice: A desmoralização dos pitbulls da grande mídia. 16 jun. 2014. Disponível em Acesso em: 9 mar. 2016. 134 MELLO, Patrícia Campos. Lobão cantou 'Lula-lá' em 1989 e hoje integra linha de frente do antipetismo. Folha de S. Paulo. 14 dez. 2014. Disponível em: Acesso em: 18 dez. 2014. 135 Informações disponíveis em: Acesso em: 12 nov. 2015. 136 ARAUJO, Bernardo. Fantasmagórico virtuosismo. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 25 nov. 2015. 81

popular diante do estado de coisas descrito ao longo da canção: ―Mas o dia chegará/ Em que o chão da Pátria irá tremer/ E o que não é não mais será/ Em nome do povo, o Poder‖.

A marcha dos infames

Aqueles que não são E que jamais serão Abusam do Poder, Demência e obsessão.

Insistem em atacar Com as chagas abertas do rancor, E aos incautos fazer crer Que seu ódio no peito é amor

Tanto martírio em vão, Estupro da nação, Até quando esse sonho ruim, esse pesadelo sem fim?

Apedrejando irmãos E os que não são iguais, A destruição é a fé, E a morte e a vida, banais.

E um céu sem esperança, A Infâmia cobriu, Com o manto da ignorância, O desastre que nos pariu.

E o sangue dos ladrões De outros carnavais Na veia de vilões, tratados como heróis.

E até quando ouvir Cretinos e boçais Mentir, mentir, mentir, Eternamente mentir?

Mas o dia chegará Em que o chão da Pátria irá tremer, E o que não é não mais será Em nome do povo, o Poder. (LOBÃO, 2015)137

Em Os Vulneráveis, Lobão segue defendendo a necessidade de enfrentamento ao poder instituído: ―Pode demorar‚ mas a verdade vem/ E nem pensar/ Em esmorecer/ Estamos todos prontos para a ação! Ação!‖. Faz críticas às políticas de esquerda e a relevância dos

137 LOBÃO. A Marcha dos Infames. In: LOBÃO. O Rigor e a Misericórdia. U.P. Edições, 2015. 1 CD. Faixa3. 82

programas sociais para a manutenção do governo ―E quer trocar inoperância por compaixão?/ Não! Não!‖. Responde aos seus opositores, afirmando que permanecerá fazendo oposição ao governo, apesar das críticas: ―E é fatal/ Me intimidar/ Pois meu possível nunca me abandonou‖. Finaliza defendendo a autonomia de seu posicionamento político: ―Por isso evito os rebanhos/ E os donos do poder‖.

Os Vulneráveis

Aqui se faz Aqui se paga Pode demorar‚ mas a verdade vem

E nem pensar Em esmorecer Estamos todos prontos para a ação! Ação!

O bobo sempre comemora As vitórias que perdeu E tudo mais o que não lhe pertence Pois não percebe o que é seu

E agora estamos Cara a cara E quer trocar inoperância por compaixão? Não! Não!

E é fatal Me intimidar Pois meu possível nunca me abandonou

A incoerência de quem fala Depende de quem vai ouvir Por isso evito os rebanhos E os donos do poder (LOBÃO, 2015)138

A posse dos impostores desenvolve algumas questões abordadas no Manifesto do Nada na Terra do Nunca. No livro, Lobão defende a importância do legado modernista para a constituição do caráter do povo brasileiro, em que a precariedade é valorizada em detrimento da competência, a exemplo do protagonista Macunaíma do livro de Mário de Andrade. Nesse sentido, a primeira estrofe da canção pode ser interpretada como uma crítica aos valores morais brasileiros. A música segue defendendo o poder das manifestações populares para a retirada do governo atual do poder e finaliza com críticas diretas à presidente Dilma Rousseff, descrita como a ―impostora eleita‖.

138 LOBÃO. Os Vulneráveis. In: LOBÃO. O Rigor e a Misericórdia. U.P. Edições, 2015. 1 CD. Faixa 2. 83

A Posse dos Impostores

Não há sombra de fúria no Planalto Central Só a fraqueza mortal do rebanho no redil É a Odisseia do Insulto‚ a vitória ideal Do fracasso‚ do débil‚ do inútil servil Da Terra do Nunca‚ onde é proibido crescer À Terra do Menos onde o esmero é encolher Paraíso minúsculo do impostor Da fraude sem escândalos‚ amnésia e calor Esterilizando mamatas‚ silêncio e lorota A mordaça é a grana e a patrulha‚ a chacota Gritar vou gritar: Até quando vão enganar O rebanho no redil alegre a sambar?

Quem precisa correr‚ quem precisa lutar? Quem precisa mentir‚ quem precisa sangrar? Quantos já se calaram quantos se foram em vão? Resistir será fútil quando as ruas se inundarão Há uma sombra de fúria na impostora eleita Cercada de castrados com a nossa receita Com a pompa vulgar de um butijão de gás Estamos fartos de um país frouxo injusto e ineficaz (LOBÃO, 2015)139

Além do disco, o músico lançaria o livro Em busca do rigor e da misericórdia: reflexões de um ermitão urbano descrevendo o processo criativo de produção do álbum, além de apresentar sua visão sobre o contexto político do país. Se, conforme afirma, é melhor vendedor de livros do que de discos, o lançamento conjunto das obras pode ser compreendido como uma estratégia para alavancar as vendas de seu trabalho fonográfico. Analisando a trajetória de Lobão, é significativo contrapor o trabalho em equipe do disco de estreia ao exercício individual de produção que marca seu último álbum. Enquanto Cena de Cinema foi resultado de um trabalho coletivo, produzido sob o signo da cooperação entre pares, contando com a participação de diversos amigos do meio musical, que conviviam com Lobão no início da cena roqueira dos anos 80 como Marina Lima, Ritchie, Lulu Santos e Bernardo Vilhena, O rigor e a misericórdia, um trabalho estritamente individual, reflete seu isolamento, ao mesmo tempo em que destaca seu domínio técnico do ofício. Descrevendo-se como ermitão no título do livro, a solidão é uma temática constante em seus últimos trabalhos e um aspecto relevante de seu posicionamento atual no campo musical.

139 LOBÃO. A Posse dos Impostores. In: LOBÃO. O Rigor e a Misericórdia. U.P. Edições, 2015. 1 CD. Faixa 9. 84

3.3 As lutas classistas A iniciativa de Lobão de lançar seus discos de forma independente foi favorecida pelo contexto de enfraquecimento da indústria fonográfica no final dos anos 90 e início dos anos 2000. A pirataria foi apontada pela indústria como uma das principais causas para a queda nas vendas de discos. Em meio aos debates, Lobão utilizava seu trabalho como argumento para a já antiga divergência com as gravadoras quanto à transparência na contabilidade dos discos. Desde meados da década de 80, o músico já demonstrava desconfiança em relação ao resultado comercial de seus LPs, questionando os números apresentados pela indústria. Ao lançar seus discos numerados em bancas de jornal a um preço menor do que o praticado pelas grandes empresas, Lobão colocou em prática sua principal bandeira política para a classe. As discussões em torno do estabelecimento de uma lei que exigisse a numeração dos discos marcou o ano de 2002, com a tramitação de um projeto de lei da deputada Tânia Soares (PCdoB/SE). Lobão ganhou espaço na mídia no papel de líder do movimento entre os músicos. A luta de um artista independente contra as grandes gravadoras foi o mote das principais coberturas. A indústria procurou desqualificar os argumentos de Lobão sob a alegação de que o músico questionava os números oficiais por não vender discos. (ARAUJO, 2002)140. O debate colocaria Lobão e Caetano Veloso em lados opostos, dividindo a classe artística. Apoiando o projeto de lei, além do roqueiro, figuravam , Chico Buarque, e Djavan; em oposição à proposta estavam Caetano Veloso, , Rita Lee, Roberto Carlos, Lulu Santos e a indústria fonográfica, representada pelos presidentes de gravadoras (ARAUJO, 2002; BARBOSA, 2002141). Com a criação de um grupo de trabalho para debater a questão, após o veto ao projeto inicial, o Decreto nº 4.533 foi sancionado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 19 de dezembro de 2002, estabelecendo a obrigatoriedade da numeração de CDs por lotes e pela inserção de um código digital que identificasse os autores e intérpretes das faixas musicais. O envolvimento de Lobão na aprovação do decreto proporcionou que ele fosse eleito o personagem musical do ano pelo jornal O Globo, demonstrando o destaque conseguido com a causa (MIGUEL; ARAUJO; PIMENTEL, 2002)142. A numeração não seria o único ponto em que o músico se oporia aos interesses das grandes empresas, posicionando-se do lado economicamente dominado. Lobão atuou contra o

140 ARAUJO, Bernardo. A briga dos números. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 13 jul. 2002. 141 BARBOSA, Marco Antonio. MPB racha ao discutir numeração de CDs. Clique Music. 09 jul. 2002. Disponível em: Acesso em: 15 nov. 2015. 142 MIGUEL, Antonio Carlos; ARAUJO, Bernardo; PIMENTEL, João. Louco com causa. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 27 dez. 2002 85

movimento antipirataria promovido pelos produtores de discos, com o argumento de que a "pirataria oficial é muito pior que a paraguaia, que é sintoma, não a doença" (SANCHES, 1998)143. Além disso, ele se opôs ao fechamento das rádios piratas, em contraposição à campanha realizada pelas estações de rádio, sob a alegação de que as transmissões clandestinas poderiam ocasionar queda de aviões. Em gesto simbólico, Lobão lançaria seu disco A vida é doce na rádio comunitária de Heliópolis (98,3 MHz), em manifestação de apoio à sua manutenção (CASTRO, 2000)144. Além disso, a ação funcionaria como um protesto devido à ausência de suas canções criadas nos anos 90 na grade de programação das emissoras. O motivo de seu chamado ‗exílio‘ artístico - forma como denominou a pouca visibilidade de seu trabalho na grande mídia – seria a prática do jabá. Lobão manifestou também seu desacordo em relação à operacionalização de políticas públicas na área da cultura. O músico questionou o conteúdo da Lei Rouanet, cuja aprovação nos editais do Ministério da Cultura possibilita a captação de recursos junto às empresas para desenvolvimento de projetos culturais, permitindo que as mesmas descontem os valores investidos no imposto de renda. O cerne das críticas do músico é o fato de artistas renomados conseguirem o benefício, dentre eles Gilberto Gil, Maria Bethânia, Vanessa da Mata e . Além disso, na opinião de Lobão, a prática seria uma forma de cooptação da classe artística que, contemplada com recursos estatais, perderia liberdade de criação e de manifestação política. Apesar das críticas, Lobão participou de um dos editais do Ministério da Cultura, tendo seu projeto, visando à gravação do DVD Lobão Elétrico, aprovado para captar até R$ 1.925.850,00. O músico desistiu do apoio, sob alegação de que o projeto havia sido inscrito no edital sem seu conhecimento e por discordar dos termos da lei, acreditando que os incentivos deveriam beneficiar estritamente "artistas em início de carreira ou que transitem por segmentos de difícil acesso ao público, como música experimental, erudita, instrumental" (LOBÃO, 2015)145. De acordo com dados do Ministério da Cultura, o projeto de Lobão, cadastrado sob o número 124569, foi aprovado em 09 de agosto de 2013, sendo arquivado em 03 de setembro do mesmo ano por desistência do proponente, sem captar nenhum recurso. A atuação mais recente de Lobão em questões políticas referentes à classe artística esteve relacionada à gestão coletiva de direitos autorais. O principal ponto de discussão

143 SANCHES, Pedro Alexandre. Lobão mostra o "velho" disco novo ao vivo em SP. Folha de S. Paulo. Especial A, p. 1. 6 out. 1998. 144 CASTRO, Daniel. Lobão hasteia bandeira dos piratas. Folha de S. Paulo. Ilustrada, p. 18. 28 jan. 2000. 145 Lobão. Nota do artista. 22 dez. 2015. Disponível em: < https://www.facebook.com/Lobaooficial/photos/pcb. 936899319726738/936899159726754/?type=3&theater> Acesso em: 30 dez. 2015. 86

envolveu a participação do Estado no processo, através do exercício das funções de fiscalização, regulação e supervisão das associações de direitos autorais e do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD). Lobão, ao lado da União Brasileira de Compositores, da Associação Brasileira de Música e Artes e da Federação Ibero-Latino- americana de Artistas, Intérpretes e Executantes, defendeu uma ação direta de inconstitucionalidade da lei nº 12.853/2013, que estabeleceu a norma. Do lado oposto encontravam-se a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, o Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, o Grupo de Ação Parlamentar Pró-Música e a associação denominada Procure Saber, representada pela Sra. Paula Mafra Lavigne, ex-esposa e empresária de Caetano Veloso. Criada em 2013 para discutir questões relativas à classe artística, integram a associação Procure Saber Caetano Veloso, Chico Buarque, Djavan, Erasmo Carlos, Gilberto Gil e Milton Nascimento, além de outros artistas de destaque na música brasileira dos mais diversos gêneros, com muitos dos quais Lobão já se indispôs. O Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do pedido de inconstitucionalidade da Lei de Direitos Autorais com o ministro relator do processo, Luiz, Fux, votando pela improcedência da ação. Os ministros Edson Fachin, Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber e Cármen Lúcia acompanharam a decisão do relator. Apesar da ampla margem de votos favoráveis à manutenção da lei nº 12.853/2013, a causa ainda não foi plenamente julgada, com a sessão sendo suspensa após o pedido de vista do processo do ministro Marco Aurélio Mello (MPF, 2016)146.

3.4 Posições em disputa A busca de Lobão por posições privilegiadas no campo musical brasileiro pode ser compreendida através da interlocução mantida ao longo da carreira com dois de seus pares: Caetano Veloso e Herbert Vianna. Os músicos foram alvos da atenção de Lobão, através de comentários concedidos à imprensa. Essas declarações contêm informações que ajudam a compreender as ambições de Lobão, bem como a configuração do espaço musical ao longo de sua trajetória. O músico baiano, que teve sua posição de destaque na cultura brasileira consolidada ao final dos anos 60, com a afirmação da Tropicália, foi uma das referências musicais do roqueiro. A relação entre Lobão e Caetano pode ser compreendida nos termos em que

146 MPF. PGR sustenta constitucionalidade de norma que regulamenta gestão coletiva dos direitos autorais. 28 abr. 2016. Disponível em: Acesso em: 05 mai. 2016. 87

Bourdieu (1999a) aborda a necessidade de legitimação dos artistas mais jovens. Dessa forma, caberia aos recém-chegados no campo assumir uma atitude de ruptura e distinção em relação aos artistas já estabelecidos, procurando distanciar-se de tudo o que os músicos consagrados representam. Caetano é encarado, assim, como um ídolo a ser superado. Ocupando uma posição ambicionada por Lobão, foi alvo de críticas, ao mesmo tempo em que despertou a admiração do roqueiro. Conforme será exposto, apesar da ambição de ruptura em relação aos tropicalistas, Caetano exerceu influência em diversos aspectos do trabalho de Lobão e de sua ‗persona‘ pública. A Tropicália modificou o panorama da música brasileira. Com uma proposta de modernização, o grupo baiano conquistou um espaço de destaque no campo musical, espaço esse consolidado nas décadas seguintes. Assumindo a posição de líder do movimento ao lado de Gilberto Gil, Caetano Veloso se destacou pela preocupação com as questões conceituais que envolviam a Tropicália e com os rumos da cultura brasileira em geral, através da defesa do conceito de ‗linha evolutiva‘ na música popular brasileira. Buscou afirmar suas ideias, em um primeiro momento, através de performances polêmicas, chocando os opositores e com isso atraindo a atenção da crítica e do público. Os recursos utilizados iam do corte de cabelo e figurino extravagantes, passando por depoimentos e declarações na imprensa, alcançando o repertório e às apresentações (VELOSO, 2012). Assim como Caetano, Lobão adotou uma postura crítica em relação à cultura nacional. Enquanto os músicos baianos se contrapunham ao sectarismo de uma parcela da MPB, preocupada com a preservação da tradição musical brasileira e com o engajamento político de sua produção musical, Lobão questionaria, por sua vez, a gênese das ideias tropicalistas, o que resultaria na publicação do Manifesto do nada na terra do nunca. No livro, Lobão desenvolve uma argumentação em contraposição às ideias contidas no Manifesto Antropofágico. Ao contestar as ideias de Oswald de Andrade, o músico demonstra que o principal alvo de suas críticas, mais do que a MPB de forma geral, é a Tropicália, movimento influenciado pelo legado do escritor modernista. Outro ponto de aproximação com o músico baiano é o destaque conseguido na mídia devido às polêmicas que suscita. Nesse sentido, é possível fazer um paralelo entre a apresentação de Caetano Veloso na terceira edição do Festival Internacional da Canção, de 1968, e a performance de Lobão no Rock in Rio II, de 1991. Conforme rememora o músico tropicalista, a apresentação da música É proibido proibir durante o evento da Rede Globo foi pensada para se transformar em um happening. A introdução atonal, desenvolvida pelo maestro Rogério Duprat, o visual do cantor com roupas de plástico e colares feitos de fios elétricos, as vaias do público, o discurso 88

contestando a reprovação da plateia, tudo foi criado para que a apresentação possuísse um grande poder de escândalo (VELOSO, 2012). Também com o intuito de causar polêmica, a apresentação de Lobão no Rock in Rio II foi programada para a noite em que bandas de heavy metal subiriam ao palco. Lobão queria provocar o público, optando por participar do festival no dia em que sua apresentação provocasse maior choque. "Eu escolhi aquela noite a dedo, os caras queriam me colocar do lado do Prince, e eu disse: não!‖ (DYNAMITE, 2005)147. O rechaço da plateia já era esperado, tendo em vista que o grande destaque de seu show seria a percussão da escola de samba Mangueira, elemento pouco apreciado pelos ouvintes do heavy metal à época. A estrutura do palco, que deixava o músico muito próximo da plateia, inviabilizou a apresentação, que teve que ser encerrada na segunda música, após diversos objetos serem atirados em Lobão e sua banda (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010). O episódio envolvendo o roqueiro, comumente interpretado como um fracasso, tendo em vista que o objetivo da apresentação não foi atingido, pode ser compreendido como simbolicamente bem sucedido. Bürger (2012), ao analisar os movimentos artísticos de vanguarda do início do século XX, afirma que o choque do receptor passou a ser encarado como um indicador da intenção artística, podendo os episódios descritos serem analisados sob essa perspectiva. A incompreensão das massas seria, portanto, um sinal de autenticidade. Tal visão pode ser confirmada pela satisfação dos artistas com os resultados de suas apresentações. ―Eu me sentia orgulhoso, sem embargo‖ (VELOSO, 2012, p. 297), afirmou Caetano. Adotando o mesmo tom, Lobão analisa: ―Eu levei lata no Rock in Rio porque as pessoas não conseguiam me definir. Eu acho isso ótimo‖ (COMIN; FERNANDES, 2005, p. 184). Os músicos, apesar de possuírem trajetórias diferentes, apresentam questões semelhantes. Ambos buscaram, por vias distintas, uma proposta de atualização da música popular. Enquanto Caetano defendeu uma evolução, buscando associar informação estrangeira à música brasileira, sem com isso abandonar a tradição, Lobão, apesar da inconstância, deseja que a estética do rock seja valorizada e possa de fato pertencer à música brasileira. O interesse compartilhado pelos aspectos que envolvem o desenvolvimento da cultura nacional ajuda a compreender a interlocução estabelecida entre os músicos ao longo das últimas décadas.

147 DYNAMITE. A volta do artista ao mercado musical. Edição 83, junho de 2005. Disponível em: Acesso em: 7 mai. 2015. 89

Ainda no início de sua carreira, enquanto tocava com os Ronaldos, depoimentos revelam a busca de Lobão pela superação do tropicalismo. ―Depois da Tropicália, a Ronaldália', só que a primeira era regional e a segunda intergaláctica" (FRANÇA, 1984)148, afirma, demonstrando suas pretensões. Na tentativa de conquistar esse espaço, Lobão procurou se destacar enquanto um dos principais ‗pensadores‘ do rock nacional, desempenhando o papel de analista da cena, desferindo críticas tanto aos roqueiros quanto às principais figuras da MPB. Para fazer jus e reforçar essa imagem, o músico carioca procurou, através de entrevistas, demonstrar a posse de um capital cultural que o diferenciasse dos músicos de sua geração e da imagem socialmente desvalorizada dos roqueiros no campo musical brasileiro. Enquanto Herbert Vianna afirmava gostar de "literatura rápida tipo Cantatas Literárias, da Brasiliense", em contraponto, Lobão afirmava ler Eça de Queiroz ―para entender o lusitanismo daqui, a ótica portuguesa em relação ao Brasil, a cultura do fado" (JORNAL DO BRASIL, 1984)149. Em outra oportunidade, relatou que ―até os 14 anos vivia preso em casa, em Ipanema, lendo Nietzsche, livros sobre umbanda, Monteiro Lobato e André Breton" (O GLOBO, 1986)150. Em contraposição à falta de ensino formal, interrompido ainda no segundo grau, o músico procurou destacar a posse de uma cultura ampla, que envolvia a leitura de filósofos, clássicos da literatura e a apreciação de música erudita. Sobre a influência de Caetano, é possível observar em diversos depoimentos de Lobão como os posicionamentos do músico baiano nortearam suas ações. Quando perguntado sobre atender aos pedidos de músicas dos fãs nos shows, afirmou seguir a postura adotada pelo tropicalista: ―Eu faço questão de não tocar. Caetano faz isso também. Alguém pede a ele: ‗Toca Leãozinho. Ele diz: ‗Ia tocar, não toco mais‘. Para um artista de verdade, isso é uma 151 ofensa. Isso só se faz com cantor de churrascaria‖ (AGUIAR, 2008) . Sobre a utilização dos veículos de comunicação de massa para a divulgação de ideias, o roqueiro declarou ser necessário ―usar a televisão da maneira mais pragmática em relação aos nossos objetivos‖ (COMIN; FERNANDES, 2005, p. 185), frase que poderia ter sido dita por Caetano no final

148 FRANÇA, Jamari. Os nossos ídolos do "rock". Jornal do Brasil. 07. dez. 1984. Disponível em: Acesso em: 15 set. 2015. 149 Jornal do Brasil. O que pensam esses jovens roqueiros brasileiros. 29 jul. 1984. Disponível em: Acesso em: 18 out. 2015. 150 O GLOBO. Lobão, o orgulho de ler Nietzsche e ser um maldito. Matutina, Jornais de Bairro, p. 13. 26 mai. 1986. 151 AGUIAR, Aurora. "O Rio é o túmulo do rock". Revista Quem. 28 jul. 2008. Disponível em: Acesso em: 04 dez. 2014. 90

dos anos 60. Em outros momentos, apesar de não fazer referência direta, adota valores semelhantes, como não permitir que suas músicas sejam utilizadas em campanhas publicitárias (VELOSO, 2012; LOBÃO; TOGNOLLI, 2010). No mesmo sentido, Lobão reproduz as ideias desenvolvidas por Caetano Veloso, como quando, a respeito de seu próximo disco após o lançamento de O inferno é fogo, afirmou dedicar-se a pesquisas sobre a música brasileira pré-bossa nova, das décadas de 30 e 40, procurando aplicar, assim, o conceito de ‗linha evolutiva‘ desenvolvido pelo artista baiano. "Gosto de rock e toco rock, mas tenho medo de perder uma identidade nossa, brasileira" (ROMANHOLLI, 1992)152. Lobão demonstra uma preocupação em se equiparar aos músicos consagrados de MPB, o que motivaria sua incursão no gênero durante os anos 90. Em diversas oportunidades é possível observar como o músico reproduz em suas falas a dominação da MPB sobre o rock no campo musical. "Para minha geração, tenho uma cultura razoável. Roqueiro é coisa de gente burra. Sou músico popular brasileiro. O que me coloca à parte e faz meu trabalho diferente do Caetano Veloso?" (PAIVA, 1998)153. A fala de Lobão pode ser compreendida nos termos em que Bourdieu descreve os mecanismos da dominação simbólica: Quando os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são produto da dominação, ou, em outros termos, quando seus pensamentos e suas percepções estão estruturados de conformidade com as estruturas mesmas da relação da dominação que lhes é imposta, seus atos de conhecimento são, inevitavelmente, atos de reconhecimento, de submissão. (BOURDIEU, 2014, p. 27).

Influenciado pelos valores estabelecidos no campo da música brasileira, Lobão alternaria, ao longo da carreira, momentos de defesa e de crítica ao rock. Quando disposto a defender o estilo, a compreensão sobre a importância do rock para a cultura brasileira se transformou no principal ponto de tensão entre os artistas. Apesar de inserir elementos do gênero em suas composições, Caetano Veloso entende o estilo como artisticamente inferior. Essa visão pode ser observada através da distinção que o músico baiano estabelece entre os apreciadores de bossa nova e os de rock, destacando a superioridade dos primeiros em detrimento das limitações que o ritmo americano impõe aos seus ouvintes.

Ter tido o rock‘n‘roll como algo relativamente desprezível durante os anos decisivos da nossa formação – e, em contrapartida, ter tido a bossa nova

152 ROMANHOLLI, Luiz Henrique. Rock na idade da razão. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 3. 23 abr. 1992. 153 PAIVA, Anabela. Lobão arma novo bote. Jornal do Brasil, 9 jan. 1998. Disponível em: Acesso em: 02 jan. 2016. 91

como trilha sonora da nossa rebeldia – significa, para nós, brasileiros da minha geração, o direito de imaginar uma interferência ambiciosa no futuro do mundo. Direito que passa imediatamente a ser vivido como um dever. (VELOSO, 2012, p. 49).

O músico baiano prossegue descrevendo os jovens influenciados pelo rock na década de 1950 como ―um modelo pouco atraente porque embora fossem exóticos eram medíocres‖ (VELOSO, 2012, p. 20). Em outro momento, analisa o gênero como um ―gesto de recusa a toda sofisticação‖ (VELOSO, 2012, p. 37) e destaca o ―desprestígio do rock como acontecimento cultural de interesse‖ (VELOSO, 2012, p. 43). Em sua visão, toda desvalorização do estilo só foi atenuada no Brasil devido à ação da Tropicália, cuja influência de seus membros alçou o ―rock‘n‘roll para o convívio das coisas respeitáveis‖ (VELOSO, 2012, p. 46). Leitor de Verdade Tropical, livro em que Caetano narra sua trajetória artística e desenvolve os argumentos acima citados, as ideias apresentadas desagradaram Lobão (PAIVA, 1998)154. Em resposta à valorização da bossa nova, defendida por Caetano, Lobão procurou em algumas oportunidades contestar o gênero: ―Acho que a bossa nova é uma língua morta (...) não posso acreditar que uma pessoa que tem aparelhos sensoriais em algum estado razoável possa achar que aquilo é interessante‖ (AGUIAR, 2008)155. Apesar da tentativa de desvalorização da bossa nova, Lobão não nega a influência do estilo em sua formação musical. Os artistas entram em desacordo também quanto à sacralização da figura de João Gilberto. Influência central na formação musical dos tropicalistas, as críticas do roqueiro à versão bossanovista de Me Chama atingem também a devoção de Caetano ao músico e seu simbolismo para a geração dos anos 60. Enquanto Caetano afirma que a regravação de Desde que o samba é samba por João Gilberto foi um grande presente em sua vida (ÉPOCA, 2003)156, Lobão construirá o argumento de que João ‗assassinou‘ sua música. Em artigo no qual escreve sobre o ídolo, Caetano destaca que o bossanovista ―foi e é o maior deslumbramento‖ de sua vida (VELOSO, 2011)157. Na mesma oportunidade, procura defendê- lo das críticas desferidas por Lobão afirmando que ―João dá a Me chama a mágica que a

154 PAIVA, Anabela. Lobão arma novo bote. Jornal do Brasil, 9 jan. 1998. Disponível em: Acesso em: 02 jan. 2016. 155 AGUIAR, Aurora. "O Rio é o túmulo do rock". Quem Acontece. 28 jul. 2008. Disponível em: Acesso em: 04 dez. 2014. 156 ÉPOCA. Leia comentários de Caetano Veloso sobre suas músicas. 13 nov. 2003. Disponível em: Acesso em: 02 jan. 2016. 157 VELOSO, Caetano. João Gilberto. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 2. 05 jun. 2011. 92

canção não sabia dizer que tinha‖. Relativizando o argumento, também tece elogios ao roqueiro ao afirmar que o verso, ‗Nem sempre se vê mágica no absurdo‘, omitido na regravação, ―é frase de gênio‖. A interlocução entre os artistas alterna momentos de elogios e críticas. Sem, entretanto, abdicar da exposição pública decorrente do embate, os músicos procuraram alimentar a discussão. Caetano, que declarou ser Lobão capaz de escrever uma frase de gênio, em junho de 2011, em março do mesmo ano havia afirmado ter sido o jornalista Cláudio Tognolli o escritor da autobiografia do roqueiro, ―pois este é incapaz de redigir (não é todo cantor de rádio que escreve um Verdade Tropical)‖ (VELOSO, 2011)158. Lobão enxergou na crítica a visão preconceituosa de um MPBista diante da produção de um roqueiro, conforme se depreende de sua fala: Nosso bardo de Santo Amaro da Purificação amargou uma dupla derrota: tentou tirar onda com seu livro autocentrado e, pois, irrelevante, e, atirando a esmo, errou o alvo ao mirar contra mim como alguém incapaz de redigir. Mas isso tem história... E precisa ficar, de início, na conta do melífluo preconceito dos MPBistas para com os roqueiros: os dendê boys way of cursing. (LOBÃO, 2015, p. 29).

Seguindo a mesma linha, Lobão falaria sobre Caetano: "a nossa tensão é contínua. Não temos a menor vergonha na cara e por mais que a gente se esbofeteie, não rola nenhum baixo- astral quando a gente se encontra (...) no fundo, no fundo, a gente se ama" (SANTOS, 2004)159, para dois dias depois afirmar, ao ser questionado sobre tirar uma foto com o músico baiano durante um evento: "A gente não se gosta, não tem por que‖ (SANTOS, 2004)160. Mais importante do que os argumentos e a coerência do discurso é o destaque midiático que o embate proporciona aos músicos.

3.4.1 O embate musical entre Caetano Veloso e Lobão O envolvimento entre os artistas inspirou a criação de composições durante os anos 2000. O embate musical teve início com uma canção de Caetano dedicada a Raul Seixas. Lançada em 2000, no disco Noites do Norte, a letra de Rock’n’Raul foi construída como se o próprio roqueiro falasse em primeira pessoa. Os versos giram em torno da admiração de Raul pelos Estados Unidos e sua consequente opção pelo rock como projeto artístico. Conforme aponta o autor, a música faz uma menção ―de raspão‖ a Lobão através do verso ‗E o Lobo

158 VELOSO, Caetano. Bethânia. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 2. 27 mar. 2011. 159 SANTOS, Joaquim Ferreira dos. Carcando Caê e Gil também. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 3. 31 ago. 2004. 160 SANTOS, Joaquim Ferreira dos. Noite de paz, amor e um certo grilo. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 3. 02 set. 2004. 93

bolo‘ inserido na letra para rimar com Ouro de Tolo, título de uma canção de Raul (LUNA; MARSIGLIA, 2001)161. A explicação possuiu o claro intuito de diminuir a importância da referência, o que não impediu a disputa que se seguiria em torno do significado da letra.

Rock'n'Raul

Quando eu passei por aqui A minha luta foi exibir Uma vontade fela-da-puta De ser americano

(E hoje olha os mano)

De ficar só no Arkansas Esbórnia na Califórnia Dias ruins em New Orleans O grande mago em Chicago

Ter um rancho de éter no Texas Uma plantation de maconha no Wyoming Nada de axé, Dodô e Curuzu A verdadeira Bahia é o

Rock'n'me Rock'n'you Rock'n'roll Rock'n'Raul

Hoje qualquer zé-mané Qualquer caetano Pode dizer Que na Bahia Meu Krig-Ha Bandolo É puro ouro de tolo

(E o lobo bolo)

Mas minha alegria Minha ironia É bem maior do que essa porcaria

Ter um rancho de éter no Texas Uma plantation de maconha no Wyoming Nada de axé, Dodô e Curuzu A verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul

Rock'n'me Rock'n'you Rock'n'roll Rock'n'Raul (VELOSO, 2000)162

161 LUNA, Fernando; MARSIGLIA, Ivan. Um tapinha não dói. Revista Trip. Vol. 14, nº 91. jul. 2001. 94

A música foi compreendida por Lobão como uma dúbia homenagem ao músico já falecido (BARTOLOMEI, 2001)163. A ambiguidade na interpretação foi alimentada pelo antigo antagonismo existente entre Caetano e Raul na cena musical de Salvador do início da década de 60. Enquanto Raul gostava de rock and roll e tocava no Cine Teatro Roma, Caetano e sua turma eram seguidores da bossa nova e se apresentavam no Teatro Vila Velha. Sobre o panorama musical da época, o músico tropicalista descreve as diferenças existentes entre as propostas de trabalho, destacando a superioridade simbólica de sua produção artística em relação a de Raul: Os nossos shows do Vila Velha – que são o marco desse primeiro momento – conheceram um grande sucesso junto a um público predominantemente universitário e gozaram de prestígio na imprensa local. Os shows de Raul contavam com uma plateia grande, adolescente e suburbana e eram noticiados pela imprensa sem antipatia, mas não poderiam suscitar o respeito que nosso grupo de compositores, músicos e cantores de música popular brasileira moderna encontrava entre os chamados formadores de opinião. Raul sabia de nós tanto quanto nós dele. Possivelmente mais. (VELOSO, 2008, p. 45).

Raul Seixas também abordou as posições distintas ocupadas pelos músicos no contexto cultural soteropolitano de sua juventude na letra da canção Rock’n’roll:

Há muito tempo atrás na velha Bahia Eu imitava Little Richard e me contorcia as pessoas se afastavam pensando que eu tava tendo um ataque de epilepsia (de epilepsia)

No teatro Vila Velha, velho conceito de moral Bosta Nova pra universitário, gente fina, intelectual Oxalá, oxum dendê oxossi de não sei o quê (de não sei o quê) (NOVA; SEIXAS, 1989)164

As divergências entre os projetos artísticos dos cantores se relativizariam com o passar dos anos, sobretudo após o desenvolvimento do tropicalismo. Assim como Caetano passou a utilizar elementos do rock em suas composições, Raul trabalhou os ritmos brasileiros. O roqueiro, entretanto, procurou estabelecer uma distância formal em relação ao projeto

162 VELOSO, Caetano. Rock'n'Raul. In: VELOSO, Caetano. Noites do Norte. Universal Music, 2000. 1 CD. Faixa 5. 163 BARTOLOMEI, Marcelo. Lobão critica Caetano com "declaração de amor" em música. Folha de S. Paulo. 27 jun. 2001. Disponível em: Acesso em: 16 abr. 2016. 164 NOVA, Marcelo; SEIXAS, Raul. Rock‘n‘roll. In: NOVA, Marcelo; SEIXAS, Raul. A Panela do Diabo. Warner Music, 1989. 1 CD. Faixa 2. 95

tropicalista, como revela a letra de As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor, cantada como um repente nordestino: ―Acredite que eu não tenho nada a ver/ Com a linha evolutiva da Música Popular Brasileira/ A única linha que eu conheço/ É a linha de empinar uma bandeira‖165. Conforme aponta Nery (2012), o conceito de linha evolutiva da MPB despertava a desconfiança de Raul Seixas, com o artista propondo a superação do debate. Os músicos continuariam, dessa forma, ocupando espaços distintos no campo da música brasileira. A composição de Caetano motivou uma resposta de Lobão também em forma de música, através dos 79 versos de Mano Caetano. O roqueiro definiu a criação como ―o maior esporro que ele (Caetano) já levou e ao mesmo tempo uma declaração de amor‖ (CASTRO, 2004)166. A desproporção da resposta reflete o impacto que a obra e os posicionamentos de Caetano exercem em Lobão. Na canção, é possível encontrar diversas referências às obras e à trajetória do músico baiano.

Mano Caetano

O que fazer do ouro de tolo Quando um doce bardo brada à toda a brida Em velas pandas‚ suas esquisitas rimas? Geografia de verdades‚ Guanabaras postiças Saudades banguelas, tropicais preguiças?

A boca cheia de dentes De um implacável sorriso Morre a cada instante Que devora a voz do morto‚ e com isso Ressuscita vampira‚ sem o menor aviso

A voz do morto que não presta depoimento Perpetua seu silêncio de esquecimento Na lápide pós-moderna do eterno desalento

E é o Raul‚ é o Jackson‚ é o povo brasileiro É o hip hop‚ a entropia‚ entropicália do pandeiro Do passado e do futuro‚ sem presente nem devir

É o puteiro que os canalhas Não conseguem habitar mas cafetinam É a beleza de veludo Que o sub-mundo tem pra dar Mas os canalhas subestimam E regurgitando territórios-corrimões De um rebolado agonizante

165 SEIXAS, Raul. As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor. In: SEIXAS, Raul. Gita. PolyGram, 1974. 1 CD. Faixa 3. 166 CASTRO, Fernando de. Lobão: aquele que não livra a cara de ninguém. Pasquim. 20ª semana de 2004. Disponível em: Acesso em: 28 nov. 2014. 96

Resta o glamour fim-de-festa-ACM De um império do medo carnavalizante

Será que a hora é essa? A boca cheia de dentes vaticina Não pros mano‚ Não pras mina Sim pro meu umbigo‚ meu abrigo Minhas tetas profanadas Santo Amaro doce amaro Vacas purificadas

Amaro bárbaro‚ Dândi-dendê Minhas narinas ao relento Cumulando de bundões Que‚ por anos acalento Estes sim‚ um monte de zé mané Que sob minha égide se transformam em gênios Sem quê nem porquê Sobrancelho Victor Mature Delineando barravento Eu‚ americano? Não‚ baiano Soy lobo por ti Hollywood Quem puder me desnature

Sob o sol de Copacabana Sob o sol de Copacabana

E eu soy lobo-bolo? lobo-bolo Tipo‚ pra rimar com ouro-de-tolo? Oh‚ Narciso peixe ornamental! Tease me‚ tease me outra vez Ou em banto baiano Ou em português de Portugal Se quiser‚ até mesmo em americano De Natal

Isso é língua! Língua é festa! Que um involuntário da fátria Com certeza me empresta Numa canção de exílio manifesta Aquele banzo (saudade) baiano Meu amado Caetano Me ensinando a falar inglês ‚ London E verdades‚ que eu‚ Lobón contesto Como empolgado aprendiz Enviando esta aresta A quem tanto me disse e diz

Amado Caetano: Chega de verdade Viva alguns enganos Viva o samba‚ meio troncho Meio já cambaleando A bossa já não é tão nova 97

Como pensam os americanos A tropicália será sempre o nosso Sargent Pepper pós-baiano

O Roque errou‚ você sabe Digo isso sem engano E eu sei que vou te amar‚ seja lá como for‚ portanto Um beijo no seu lado super bacana Uma borracha no dark side-macbeth-ACM‚por enquanto

Ah! já ia me esquecendo! lembranças do ariano Lupicínias saudações aqui do mano‚ Esta bala perdida que te fala, rapá! Te amo‚ te amo (LOBÃO, 2001)167

O título da canção, ao mesmo tempo em que assinala uma proximidade afetiva entre os artistas, faz referência à música Mano Caetano escrita por Jorge Ben Jor em comemoração ao retorno do músico baiano do exílio em Londres (OLIVEIRA, 2012). Ao contrário do tom festivo da canção de 1971, a música de Lobão adota um tom crítico em relação ao homenageado. Em ritmo de rap, a música questiona as intenções do ―doce bardo‖ ao compor Rock in Raul. As três primeiras estrofes aludem à canção que motivou a resposta. Dedicadas a contestar a homenagem, a iniciativa é caracterizada como ―saudades banguelas‖, em que Caetano ―devora a voz do morto‖, ―que não presta depoimento‖ e ―com isso ressuscita vampira‖. Os versos seguintes, em que o nome do roqueiro baiano aparece associado ao de Jackson do Pandeiro, podem ser compreendidos como uma defesa do projeto musical de Raul Seixas como constitutivo da cultural nacional. Prossegue criticando alguns posicionamentos do músico tropicalista, como suas declarações legitimando artistas associados aos fenômenos pop produzidos pela indústria cultural. Em entrevistas, Caetano afirmou, por exemplo, achar o ―Xandy (vocalista do Harmonia do Samba) um grande artista. Como é grande também o samba do Recôncavo feito pelo É o Tchan!" (CARDOSO, 2001)168. Essas declarações demonstram a confortável posição de autoridade ocupada por Caetano no campo musical, que lhe permite, inclusive, demonstrar apreço por produtos culturais normalmente contestados.

Aquele que se sente seguro quanto a sua identidade cultural pode jogar com a regra do jogo cultural, pode brincar com fogo, dizendo, por exemplo, que

167 LOBÃO. Mano Caetano. In: LOBÃO. Uma Odisseia no Universo Paralelo. U.P. Produções, 2001. Faixa 13. 168 CARDOSO, Tom. Caetano Veloso diz que máfia do dendê é uma bobagem. Clique Music. 01 fev. 2001. Disponível em: Acesso em: 15 abr. 2016. 98

gosta de Tchaikovski ou de Gershwin, ou até mesmo ter o ‗peito‘ de apreciar Aznavour ou filmes de classe B. (BOURDIEU, 1996b, p. 104).

Recorrendo ao expediente utilizado por Caetano em Rock in Raul, nos versos seguintes quem fala é o ―amaro bárbaro‖, referência à banda Doces Bárbaros composta pelos baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia: ―Minhas narinas ao relento/ Cumulando de bundões/ Que‚ por anos acalento/ Estes sim‚ um monte de zé mané/ Que sob minha égide se transformam em gênios‖. Enquanto músicos que na opinião de Lobão possuem menor valor artístico são aclamados por Caetano, sua obra não recebe a chancela do músico, levando à crítica: ―É a beleza de veludo/ Que o sub-mundo tem pra dar/ Mas os canalhas subestimam‖. A música traz algumas referências pessoais como o fato de Caetano mexer a sobrancelha à la Victor Mature, ator americano. Menciona sua terra natal Santo Amaro e o exílio em Londres. Faz alusão às canções Língua, London, London e Soy loco por ti América e ao livro Verdade tropical. Sobre o fato de ter sido mencionado na canção de Caetano, responde: ―Oh‚ Narciso peixe ornamental!/ Tease me‚ tease me outra vez/ Ou em banto baiano/ Ou em português de Portugal/ Se quiser‚ até mesmo em americano/ De Natal‖. Procura relativizar as disputas existentes entre os gêneros musicais na cultura brasileira: ―Viva o samba‚ meio troncho/ Meio já cambaleando/ A bossa já não é tão nova/ Como pensam os americanos/ A tropicália será sempre o nosso/ Sargent Pepper pós-baiano/ O Roque errou‚ você sabe/ Digo isso sem engano‖. Sem desenvolver a ideia, aborda a suposta proximidade do tropicalista com o político baiano Antônio Carlos Magalhães. ―Uma borracha no dark side-macbeth-ACM‚ por enquanto‖. Apesar das críticas, finaliza se descrevendo como um ―empolgado aprendiz/ Enviando esta aresta/ A quem tanto me disse e diz (...) Esta bala perdida que te fala‚ rapá!/ Te amo‚ te amo‖. O diálogo musical estabelecido entre os artistas se encerraria em 2008, com a tréplica de Caetano Veloso, Lobão tem razão. Conforme indica o título da canção, em seus versos, o músico baiano adota um discurso conciliador, concordando com o roqueiro em algumas de suas colocações, como quando diz: ―Chega de verdade/ Viva alguns enganos‖. Além disso, elogia a iniciativa do músico de associar rock e samba no final dos anos 80, bem como demonstra não se incomodar com as críticas direcionadas a ele. Apesar do discurso pacificador da letra, a forma adotada pela canção abre margens para novas interpretações. Enquanto na homenagem a Raul Seixas, a guitarra elétrica possui destaque no arranjo, demonstrando a intenção de estabelecer um diálogo com o rock, a canção para Lobão não 99

possui a mesma potência, privilegiando os elementos da MPB, através da opção pelo violão e pelo estilo de cantar bossanovista. Somente no final da música há um solo de guitarra.

Lobão tem razão

Lobão tem razão Irmão meu Lobão Chega de verdade É o que a mulher diz Tô tão infeliz Um crucificado Deitado ao lado Os nervos tremem No chão do quarto Por onde o semên Se espalhou

O mundo acabou Mas elas virão E nos salvarão A ambos nós dois O medo já foi O homem é o próprio Lobão do homem Ela só vem Quando os mortos Somem Ela que quase Nos matou

Chove devagar Sobre o Redentor Se ela me chamar Agora Eu vou

Mais vale um Lobão Do que um leão Meto um sincerão E nada se dá O rock acertou Quando você tocou Com sua banda E tamborim Na escola de samba E falou mal Do seu amor (VELOSO, 2009)169

Se a letra da música poderia sugerir uma possível trégua, o músico baiano tratou logo de contradizer sua criação ao declarar no show de gravação de seu DVD Obra em Progresso, em

169 VELOSO, Caetano. Lobão tem Razão. In: VELOSO, Caetano. Zii Zie. Universal Music, 2009. Faixa 4. 100

que abriu o espetáculo com a canção, não dar razão a qualquer coisa dita pelo roqueiro (JORNAL DO BRASIL, 2008)170. Os músicos seguiriam suas carreiras como ―admiradores mútuos e adversários no teatro de símbolos da MPB‖ (LUNA; MARSIGLIA, 2001)171.

3.4.2 A disputa entre Lobão e Herbert Vianna no campo do rock brasileiro

No início da década de 1980, Lobão e Herbert Vianna disputaram uma posição de destaque no campo do rock nacional. Diferentemente da relação estabelecida com Caetano Veloso, Lobão iniciou o embate com o vocalista dos Paralamas do Sucesso simbolicamente em vantagem. Inserido na cena musical carioca desde meados dos anos 70, período em que integrou a banda Vímana, Lobão possuía capital cultural e social para sair vitorioso da contenda. Na gravação de seu primeiro disco, Cena de Cinema, contou com o apoio de vários colegas de profissão e, além disso, conhecia profissionais que poderiam auxiliar na divulgação de seu trabalho nos meios de comunicação, como o crítico musical Nelson Motta e o produtor musical da Rede Globo, Guto Graça Mello (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010). Após o lançamento de seus primeiros discos, o trabalho dos Paralamas do Sucesso mostrou ser mais eficiente comercialmente. Enquanto os LPs de Lobão Cena de Cinema, Ronaldo foi pra Guerra (com a banda os Ronaldos) e O Rock Errou venderam, respectivamente, 6, 23 e 100 mil cópias, os Paralamas venderam com Cinema Mudo172, O Passo do Lui e Selvagem?, 4, 200 e 600 mil discos (CEZIMBRA, 1986173; GRILLO, 1987174). Somando-se os números, Lobão havia angariado 129 mil compradores para suas obras contra 804 mil do trio. Comercialmente derrotado, à época do lançamento do disco O rock errou, ironicamente pede desculpas por ―vender menos discos que eles" (ABIRACHED, 1986)175. À medida que os Paralamas iam adquirindo popularidade e a carreira de Lobão não deslanchava comercialmente, o trio foi se fortalecendo, conquistando uma posição de destaque no rock brasileiro dos anos 80. A participação da banda na primeira edição do Rock in Rio, em 1985, acentuaria ainda mais essa diferença. O evento projetou os Paralamas

170 JORNAL DO BRASIL. Caetano canta para Lobão e lê entrevista do músico em jornal. 20 ago. 2008. Disponível em: Acesso em: 15 out. 2014. 171 LUNA, Fernando; MARSIGLIA, Ivan. Um tapinha não dói. Revista Trip. Vol. 14, nº 91. jul. 2001. 172 Vale destacar que após o sucesso das apresentações dos Paralamas do Sucesso no Rock em Rio I, as vendas do disco de estreia aumentaram significativamente, com chegando a 35 mil cópias vendidas (CEZIMBRA, 1986). 173 CEZIMBRA, Márcia. Os Paralamas trocam rock por reggae e samba. Folha de S. Paulo. Ilustrada, p. 61. 11 abr. 1986. 174 GRILLO, Cristina. Paralamas fazem retrospectiva em LP ao vivo. Folha de S. Paulo. Ilustrada, p. 31. 2 out. 1987. 175 ABIRACHED, Milton. Lobão errou e ainda faz puro rock. O Globo. Matutina, p. 12. 22 jul. 1986. 101

nacionalmente, com o trio elevando seu cachê, realizando mais shows e em locais cada vez maiores. ―Nos já éramos conhecidos no Rio de Janeiro, por meio do rádio. O festival projetou isso para o resto do país‖ (ALEXANDRE, 2013, p. 233), analisou o vocalista. Herbert Vianna recorda o show realizado em junho do mesmo ano, em Porto Alegre, para exemplificar o crescimento da popularidade dos Paralamas após a participação no festival:

Chegamos na cidade e nos avisaram que os ingressos já estavam esgotados havia dias, 17 mil pagantes. Havíamos, antecipadamente, batido o recorde de bilheteria do ginásio, que era de Roberto Carlos. O contratante nos perguntou se poderia agendar um show extra, para o dia seguinte. Sem chance, tínhamos shows em todos os dias daquela semana. Concluiu-se que o melhor seria fazer outra apresentação na mesma noite. Abriram a bilheteria e foram vendidos mais 17 mil ingressos. Era essa a proporção da coisa. (ALEXANDRE, 2013, p. 233/234).

O ano marcou também a ascensão das bandas de Brasília no cenário do rock nacional, o que colaborou para o fortalecimento dos Paralamas no campo. Constituído, predominantemente, por grupos do Rio de Janeiro e de São Paulo, o panorama se modificaria em 1985 com o lançamento dos primeiros trabalhos de Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude. Os músicos dos Paralamas atuaram diretamente para que as bandas da capital federal Legião Urbana e Plebe Rude assinassem seus primeiros contratos com a EMI, mesma gravadora do trio. O disco de estreia da Plebe Rude, O concreto já rachou, foi produzido por Herbert Vianna, e a gravação da música Química, de Renato Russo, pelos Paralamas contribuiu para que a gravadora se interessasse pelo trabalho da Legião, conforme recorda o diretor-artístico da EMI entre 83 e 93, Jorge Davidson:

Estava no estúdio com os Paralamas e eles começaram a tocar Química. Ele (Herbert Vianna) me disse que era de um amigo dele, chamado Renato Manfredini Jr., que morava em Brasília e era tudo que ele – Herbert – gostaria de ser. Isso me impressionou mais ainda, porque eu já achava aquele rapaz ali o máximo e ele estava me dizendo que o outro era mais maravilhoso ainda. A partir daí, me interessei em ouvir a Legião. Recebi uma fita – por meio dos Paralamas também. Era voz e violão, o Renato tocando Eduardo & Mônica, Geração Coca-Cola, entre outras. Aquilo me impressionou terrivelmente! Acabei de ouvir a fita e liguei para Brasília para convidá-lo a vir ao Rio conversar conosco‖. (TUCORI; MENOTTI, 1999, p. 79/80)176.

O êxito no Brasil abriu caminho para o sucesso internacional dos Paralamas, com o público latino-americano passando a constituir um mercado importante para a banda. Em alguns momentos, inclusive, seus trabalhos obtiveram melhores resultados comerciais em

176 TUCORI, Fernando; MENOTTI, Alex. Música Urbana: Uma breve história da Legião. 89 Revista Rock. nº 12 out./nov. 1999. 102

terras estrangeiras do que no país, como no caso do disco Severino, lançado em 1994, que vendeu 100 mil cópias na e 90 mil no Brasil (FOLHA, 1997)177. Após o sucesso em diversos países da América do Sul, com destaque para os mercados do e da Argentina, o trio seria convidado para participar do prestigiado Festival de Jazz de Montreux, em 1987 (MANSUR, 1987)178. O convívio de Lobão com os músicos dos Paralamas, que no início da década de 1980 era publicamente pacífico, com os artistas excursionando juntos para apresentações em Nova Iorque, em 1983 (FERREIRA, 1983)179, e com os Paralamas dedicando seu show no Rock in Rio I a Lobão, começaria a se deteriorar. Lobão passaria a desferir críticas ao trabalho do conjunto durante entrevistas. Em 1986, classificou os músicos dos Paralamas de ―embrionários e osmóticos‖, questionando a originalidade de suas canções ao afirmar que ―em metade do compasso você ouve o Police e na outra o Gilberto Gil‖ (LO PRETE, 1986)180. O músico iniciaria, assim, uma batalha simbólica, no sentido de desqualificar artisticamente a produção dos Paralamas, procurando contrapor a autenticidade de seu trabalho à proposta comercial do conjunto. Acusou o trio de copiar diversos conceitos de seus trabalhos iniciais, indo do tom de voz à temática das canções, o que, segundo Lobão, teria grande impacto em sua carreira. Achando que ele estava me copiando, eu abdicava das coisas para não ficar igual a ele. Faço Cena de Cinema (1982), ele faz Cinema Mudo (1983), com a voz igual à minha. Tive que trocar de voz. Não é um plágio, mas é o conceito. Faço Me Chama (1984), ele faz Me Liga (1984). Chamo Elza Soares, o cara chama Elza Soares. Vou fazer um disco de samba para fugir dele, eles vêm com Alagados (1986) e se tornam pioneiros! Pô, é para enlouquecer. (SANCHES, 2011)181.

Diante das acusações, os músicos dos Paralamas procuraram despotencializar os argumentos, adotando um discurso conciliador, como pode ser observado na afirmação de Herbert Vianna: ―eu adoro o Lobão, ele é uma bandeira de suas próprias ideias, vai fundo (...) Gosto dele. Isso de ele arrasar com a gente deve ser parte da sua performance" (MANSUR,

177 Folha de S. Paulo. Paralamas foi o mais pedido na MTV Latina. Ilustrada, p.1. 15 jan. 1997. 178 MANSUR, Luiz Carlos. De Alagados a Montreaux. Jornal do Brasil. 14 abr. 1987. Disponível em: Acesso em: 12 jun. 2015. 179 FERREIRA, Sonia Nolasco. Paralamas e Lobão, rock bem brasileiro para americano ouvir. O Globo. Matutina, Cultura, p. 25. 01 out. 1983. 180 LO PRETE, Renata. Lobão mostra em SP por que o rock errou. Folha de S. Paulo. Ilustrada, p. 48. 14. mai. 1986. 181 SANCHES, Pedro Alexandre. Lobão: a ovelha negra da música brasileira. IG. 11 fev. 2011. Disponível em: Acesso em: 18 out. 2014. 103

1987)182. Lobão continuaria fazendo suas críticas, a despeito das respostas econômicas de seus adversários. Em referência à banda, declarou sua intenção de ir embora do país, pois "não dá para carregar o Brasil nas costas o tempo todo‖, e seguiu afirmando que os Paralamas "copiaram todo mundo", sendo, por esse motivo, "um conjunto de covers" (ABIRACHED, 1988)183. Lobão utilizou o suposto plágio do trio para justificar alguns de seus posicionamentos no campo. Em sua opinião, a banda obteve conquistas destinadas a ele, prejudicando sua carreira. ―Nada do que eu fazia acontecia‖. Além disso, creditou seu isolamento ao episódio: ―perdi todos os meus amigos‖ (SANCHES, 2011)184. É possível afirmar que a disputa contribuiu para a elaboração de seu discurso de dissociação do movimento roqueiro dos anos 80. Com os Paralamas saindo vitoriosos do embate, através da consolidação de uma carreira de sucesso nos anos seguintes, ou seja, atingindo alguns dos objetivos almejados por Lobão, o músico procuraria destacar a autenticidade de sua obra e o aspecto ‗maldito‘ de sua trajetória artística, em uma tentativa de distinção, visando à conquista de novos espaços no campo. Em depoimentos, procurou contrapor sua preocupação com os aspectos simbólicos que envolvem sua obra às supostas concessões comerciais feitas por Herbert Vianna.

Veja o Herbert (Vianna), dos Paralamas. Como é que pode um cara que fez propaganda da Telemar, uma empresa espúria, ganhar uma grana e cantar indignado Que país é esse? (...) Não vendo minhas ideias porque não vou pulverizar minha credibilidade. Recebi uma proposta milionária de um fabricante de celular que queria dar U$ 1 milhão por Me Chama. (...) De-ter- mi-na-dos artistas são entertainers, não lidam com arte. Eu tenho a pretensão de fazer arte. E quem faz arte tem que segurar uma peteca. (ISTO É, 1999)185.

A interlocução estabelecida entre os artistas nos últimos trinta anos permanece atual, centrando-se nas mesmas questões, o que revela que as posições no campo musical permaneceram relativamente inalteradas. Apesar do fracasso parcial, assumido por Lobão, o músico continua disposto a lutar por posições privilegiadas. Seus alvos permanecem os mesmos, assim como suas ambições.

182 MANSUR, Luiz Carlos. De Alagados a Montreaux. Jornal do Brasil. 14 abr. 1987. Disponível em: Acesso em: 12 jun. 2015 183 ABIRACHED, Milton. O show do homem-múmia. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 29 ago. 1988. 184 SANCHES, Pedro Alexandre. Lobão: a ovelha negra da música brasileira. IG. 11 fev. 2011. Disponível em: Acesso em: 18 out. 2014. 185 ISTO É. Uivo de Guerra. Edição 1572. 17 nov. 1999. Disponível em: Acesso em: 2 mar. 2016.

104

3.4.3 A consagração através dos prêmios de música O reconhecimento obtido através dos prêmios de música ajuda a ilustrar a distância existente entre as carreiras de Lobão e de seus ‗rivais‘ Caetano Veloso e Herbert Vianna. A compilação dos resultados do Prêmio da Música Brasileira, do Prêmio Multishow, do Video Music Brasil (VMB) e do Grammy Latino possibilitará uma comparação entre as conquistas alcançadas pelos músicos em termos de consagração e prestígio de suas obras, compreendendo o poder de consagrar das premiações como o ato de sancionar uma ordem estabelecida (BOURDIEU, 1996b). Antes será necessário discriminar as características de cada evento, para uma análise mais precisa de seu significado. O Prêmio da Música Brasileira, através de um júri especializado, elege, anualmente, os destaques da música nacional. São premiados o melhor álbum, cantor, cantora e grupo de cada gênero: MPB, Pop/Rock/Reggae/Hip-hop/, Samba, Canção Popular, Regional, Instrumental, além das categorias: arranjador, projeto visual, revelação, canção do ano, DVD, álbum clássico, álbum eletrônico, álbum em língua estrangeira, álbum infantil e álbum projeto especial. Desde a primeira edição, em 1988, quando se chamava Prêmio Sharp – entre os anos de 2003 e 2008 seria denominado Prêmio Tim de Música - as categorias sofreram modificações incorporando novos estilos musicais, a exemplo do reggae, funk e hip-hop. Para concorrer ao prêmio, artistas e gravadoras inscrevem seus produtos. O material recebido é selecionado e julgado por uma comissão de especialistas. A participação popular é bastante restrita, com a média das notas concedidas pelo público aos três finalistas de cada categoria equivalendo à nota de um jurado. Ao longo de sua história, o prêmio sofreu uma interrupção, não sendo realizado nos anos 2000 e 2001186. Desde 1994, o Prêmio Multishow premia anualmente os artistas que mais se destacaram na opinião do público, tanto a lista de indicados quanto os ganhadores são definidos pela audiência. A partir de 2011, o prêmio incorporou categorias eleitas por um júri especializado, com o objetivo de contemplar artistas cujas obras não possuem a massificação necessária para atrair o grande público, conforme afirma o diretor da emissora responsável pela realização do evento, Guilherme Zattar. "A gente está num país com uma desigualdade cultural muito radical, então nem todos os artistas chegam nas pontas. É de propósito que fazemos essa mistura. O papel do júri é justamente trazer à tona uma turma maravilhosa que está sob a

186 Informações completas sobre o Prêmio da Música Brasileira estão disponíveis em: < http://www.premiodamusica.com.br/> Acesso em: 01 abr. 2016. 105

água" (TRAMONTINA, 2015)187. Das categorias iniciais, a saber, melhor grupo, cantor, cantora, revelação e clipe, apenas a última foi extinta. Em contrapartida, novos prêmios foram criados, com destaque para melhor show, música e música-chiclete, escolhidos através do voto popular, e artista revelação, melhor álbum, novo hit e melhor show, escolhidos pelo júri especializado188. O Video Music Brasil foi criado, em 1995, com o objetivo de premiar os melhores clipes do ano. O evento realizado pela MTV contemplava no início dez categorias: clipe do ano, clipe artista revelação, democlipe, direção, edição, fotografia, melhores clipes nos segmentos pop, MPB, rap e rock. Em 2007, as categorias foram reformuladas, passando a priorizar a premiação de artistas e músicas em detrimento dos clipes. Ao longo das edições, vários sistemas de votação foram adotados, em uma tentativa de conciliar a opinião dos especialistas e da audiência da emissora, com algumas categorias sendo escolhidas pelo júri técnico e outras através do voto popular. A realização do evento foi interrompida no ano de 2013189. O Grammy Latino elege os destaques da produção musical latino-americana desde o ano 2000. Além dos prêmios gerais, em que os trabalhos inscritos por todos os países concorrem, há categorias específicas para a produção musical brasileira. Atualmente, são concedidos 48 prêmios, sete deles exclusivamente para os artistas nacionais. Os prêmios gerais são distribuídos nas categorias: gravação do ano, álbum do ano, canção do ano e artista revelação, dentre outros, além dos destaques nos gêneros pop, urbano, rock, alternativo, tropical, instrumental, tradicional, jazz, cristão, infantil e clássico. As categorias específicas para música brasileira são: álbum pop contemporâneo, álbum de rock, álbum de samba/pagode, álbum de música popular brasileira, álbum de música sertaneja, álbum de música de raízes brasileiras e canção brasileira. Para concorrer aos prêmios, os trabalhos devem ser inscritos pelas gravadoras. Os vencedores são escolhidos pelos membros da Academia Latina da Gravação190. Fazer uma comparação entre o número de prêmios recebidos por Lobão, Caetano Veloso e Herbert Vianna (através dos Paralamas do Sucesso) requer algumas ressalvas. Os

187 TRAMONTINA, Mariana. Diretor fala de "abismo" em Prêmio Multishow: "Não dizemos quem é melhor". Uol. 01 set. 2015. Disponível em: Acesso em: 01 abr. 2016. 188 Informações completas sobre o Prêmio Multishow estão disponíveis em: Acesso em: 01 abr. 2016. 189 Informações disponíveis em: e Acesso em: 01 abr. 2016. 190 Informações completas sobre o Grammy Latino estão disponíveis em: < http://www.latingrammy.com/pt> Acesso em: 01 abr. 2016. 106

concursos aqui analisados tiveram suas primeiras edições após o período de maior popularidade da carreira de Lobão. A premiação mais longeva data de 1988, época em que as vendas de seus discos já se encontravam em declínio. Se tal conjuntura dificultaria a conquista de prêmios conferidos através do voto popular, a princípio, não impediria seu reconhecimento pela crítica especializada, já que o músico continuou produzindo novos trabalhos durante as décadas de 1990 e 2000. Dentre os três artistas, Caetano foi o que obteve o maior número de prêmios, 28 no total, contra 21 de Herbert e apenas um de Lobão. Desde que conquistou, em 1990, a categoria de melhor álbum de MPB por Estrangeiro no Prêmio da Música Brasileira, o músico baiano não passou mais de dois anos sem ser premiado. O último deles foi o Grammy Latino de melhor canção brasileira, por a Bossa nova é foda, em 2014. A maior parte das conquistas foi concedida por jurados especializados: 12 vitórias no Prêmio da Música Brasileira, 11 no Grammy Latino, uma no VMB e uma no Prêmio Multishow. Através do voto popular, conquistou três prêmios do Multishow, evento em que foi homenageado, ao lado de Gilberto Gil, pelos 50 anos de carreira em 2015191. Herbert Vianna também conquistou prêmios de forma constante ao longo da carreira, o primeiro deles em 1988 e o último em 2015, ambos concedidos pelo Prêmio da Música Brasileira, na categoria de melhor grupo de pop/rock. Através do reconhecimento dos especialistas, conquistou 8 vezes o Prêmio da Música Brasileira, 5 vezes o VMB e 4 Grammys. O voto popular proporcionou duas vitórias no Prêmio Multishow e no VMB. Assim como Caetano, Herbert Vianna foi homenageado no Prêmio Multishow de 2004192. Lobão conquistou seu único prêmio no Grammy Latino de 2007, na categoria de melhor álbum de rock brasileiro pelo Acústico MTV. Na mesma ocasião, os Paralamas do Sucesso receberam o prêmio à excelência musical, homenagem concedidas ―a artistas que, durante suas vidas, deram contribuições criativas de excepcional importância artística no campo da gravação‖, através de votação do Conselho Diretivo da Academia Latina da Gravação, conforme informado no site da premiação.

191 Não foram contabilizados os prêmios técnicos destinados aos discos e clipes de Caetano Veloso. São eles: projeto visual por Estrangeiro (1990), projeto visual por Circuladô (1992), projeto visual por Circuladô ao vivo (1993), projeto visual por Abraçaço (2013) - todos concedidos pelo Prêmio da Música Brasileira - e fotografia pelo clipe da música Todo errado, conquistado no VMB de 2002. 192 Não foram contabilizados os prêmios técnicos conquistados no VMB pelos clipes dos Paralamas do Sucesso: direção e edição por Lourinha bombril (1996); direção, direção de arte e fotografia por Ela disse adeus (1998) e edição por Depois da queda o coice (1999). Também não foram considerados os prêmios de melhor instrumentista conquistados pelos outros integrantes da banda: três prêmios Multishow para João Barone (1999, 2003 e 2011) e a escolha de e João Barone na categoria banda dos sonhos do VMB de 2008. 107

Vale destacar que tal comparação só é possível devido ao fato dos três artistas atuarem no campo da indústria cultural, destinado ao ‗grande público‘, não desenvolvendo trabalhos experimentais restritos a um pequeno círculo de admiradores, campo próprio da produção erudita. Nesse sentido, os prêmios conquistados revelam a solidez das carreiras de Caetano Veloso e Herbert Vianna, que seguiram obtendo reconhecimento de forma regular ao longo dos anos. No caso do vocalista do Paralamas do Sucesso, fica evidenciado que, além do prestígio popular comprovado através da vendagem de seus discos, o trabalho do músico foi chancelado por uma parcela da crítica especializada, através dos prêmios concedidos por júris técnicos. O trabalho de Lobão, em contraposição, foi sistematicamente ignorado pelas premiações analisadas, a despeito da confiança na qualidade de seu trabalho manifestada em depoimentos. "Só consigo enxergar Caetano, Chico... Dá minha estatura, só pessoas mais velhas, ou talvez mais novas" (SANCHES, 1999)193. Apesar de acreditar que, em termos de qualidade, sua obra se equipara à de Caetano Veloso e supera a de Herbert Vianna, as instâncias de consagração não atestam tal fato194.

Segue relação dos prêmios conquistados por Caetano Veloso nos eventos analisados:

Ano Premiação Categoria 1990 Prêmio da Música Brasileira Álbum de MPB por Estrangeiro 1990 Prêmio da Música Brasileira Cantor de MPB 1992 Prêmio da Música Brasileira Cantor de MPB 1993 Prêmio da Música Brasileira Álbum de MPB por Circuladô vivo 1993 Prêmio da Música Brasileira Cantor de MPB 1995 Prêmio da Música Brasileira Canção do ano por Fina Estampa 1997 Prêmio da Música Brasileira Trilha Sonora por Tieta do Agreste 1998 Video Music Brasil Clipe de MPB por Não enche 1999 Prêmio Multishow Cantor 2000 Grammy Latino Álbum de MPB por Livro 2001 Grammy Latino Álbum de MPB por Noites do Norte 2001 Prêmio Multishow Cantor 2003 Grammy Latino Álbum de MPB por Eu não peço desculpa 2004 Prêmio Multishow Cantor 2005 Prêmio da Música Brasileira Álbum em língua estrangeira por A foreign sound 2007 Grammy Latino Álbum de cantor e compositor por Cê 2007 Grammy Latino Canção brasileira por Não me arrependo 2007 Prêmio da Música Brasileira Álbum de pop/rock por Cê 2007 Prêmio da Música Brasileira Cantor pop/rock 2009 Grammy Latino Álbum de cantor e compositor por Zii e Zie 2009 Grammy Latino Vídeo longo por E a música de Tom Jobim 2010 Prêmio da Música Brasileira Cantor pop/rock/reggae/hip-hop/funk

193 SANCHES, Pedro Alexandre. As sete vidas de Lobão. Folha de S. Paulo. 4º Caderno, p. 1 e 6. 3 nov. 1999. 194 Não cabe neste trabalho questionar a legitimidade dessas premiações, nem as disputas e relações de poder em jogo. A análise pretendeu apenas constatar os resultados e o que eles simbolizaram para as carreiras dos músicos. 108

2011 Grammy Latino Álbum de rock brasileiro por Zii e Zie - ao vivo 2012 Grammy Latino Álbum de MPB por Especial Ivete, Gil e Caetano 2013 Grammy Latino Álbum de cantor e compositor por Abraçaço 2013 Prêmio da Música Brasileira Cantor pop/rock/reggae/hip-hop/funk 2013 Prêmio Multishow Show por Abraçaço 2014 Grammy Latino Canção brasileira por A bossa nova é foda

A seguir, tem-se a relação dos prêmios conquistados por Herbert Vianna, através dos Paralamas do Sucesso, nos eventos analisados:

Ano Premiação Categoria 1988 Prêmio da Música Brasileira Grupo de pop/rock 1992 Prêmio da Música Brasileira Grupo de pop/rock 1995 Prêmio da Música Brasileira Canção de MPB por A novidade 1995 Video Music Brasil Clipe pop por Uma brasileira 1995 Video Music Brasil Clipe do ano – escolha da audiência 1996 Prêmio da Música Brasileira Grupo de pop/rock 1996 Video Music Brasil Clipe do ano por Lourinha brombril 1996 Prêmio Multishow Grupo nacional 1997 Prêmio da Música Brasileira Canção de pop/rock por Lá bella luna 1997 Video Music Brasil Clipe do ano por Busca Vida 1998 Video Music Brasil Clipe do ano por Ela disse adeus 1998 Video Music Brasil Clipe pop por Ela disse adeus 1999 Prêmio da Música Brasileira Grupo de pop/rock 2000 Grammy Latino Álbum de rock brasileiro por Acústico MTV 2003 Grammy Latino Álbum de rock brasileiro por 2003 Prêmio Multishow Grupo nacional 2006 Grammy Latino Álbum de rock brasileiro por Hoje 2007 Grammy Latino Excelência musical 2009 Video Music Brasil Show 2010 Prêmio da Música Brasileira Grupo de pop/rock/reggae/hip-hop/funk 2015 Prêmio da Música Brasileira Grupo de pop/rock/reggae/hip-hop/funk

109

4 O ENVOLVIMENTO DE LOBÃO NAS DISPUTAS POLÍTICO-PARTIDÁRIAS

―E nem pensar Em esmorecer Estamos todos prontos para a ação! Ação!‖ (LOBÃO, 2015)195

―Nunca me interessei por política. Eu detesto essa coisa de partes, de lados, esquerdas e direita, coisas partidas, partidos políticos. Para mim, o artista é um ser político pelo seu próprio comportamento, pelo que faz, pelas polêmicas que cria‖, afirmou Lobão quando questionado sobre seu envolvimento político-partidário (PESSOA, 1986)196. A declaração, ainda no início da carreira, contrasta com o futuro envolvimento político do músico, que três anos depois faria campanha para o candidato a presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores e, décadas mais tarde, ganharia destaque como um dos integrantes do movimento de oposição ao PT. Na década de 1980, a luta pela redemocratização do país ganhou importância no debate público, favorecendo o envolvimento da classe artística nas questões políticas. Em 1987, Lobão figurou entre os artistas que utilizaram seus espetáculos para manifestar apoio ao movimento pelas eleições diretas no país. Modificando o refrão da música Revanche, cantou à época: "Eu não quero mais nenhuma chance/ Eu quero diretas-já" (DUMAR, 1987)197. A mesma composição seria entoada nos palanques petistas de 1989 durante a campanha eleitoral. Além dos discursos, a temática política começava a ser abordada em seus discos. Em Cuidado!, de 1988, a canção O eleito desferiu críticas ao presidente José Sarney:

O palácio é o refúgio mais que perfeito Para os seus desejos mais que secretos Lá ele se imagina o eleito Sem nenhuma eleição por perto. (LOBÃO; VILHENA, 1988)198

A possibilidade de eleger democraticamente o presidente da república, após 25 anos de Ditadura Militar, conferiu grande expectativa ao pleito. Disposto a participar da política partidária, mas ainda sem definir seu candidato, Lobão demonstrava predileção pelos políticos de esquerda: ―Eu não quero ver mais um país de direita. Isso com certeza‖ (LOBÃO,

195 LOBÃO. Os Vulneráveis. In: LOBÃO. O Rigor e a Misericórdia. U.P. Edições, 2015. 1 CD. Faixa 2. 196 PESSOA, Isa. 'Viva o rock que não tem medo da diferença'. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1, 16 jul. 1986. 197 DUMAR, Deborah. Showmício. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 04 jul. 1987. 198 LOBÃO; VILHENA, Bernardo. O Eleito. In: LOBÃO. Cuidado! RCA Victor, 1988. Faixa 2. 110

1989)199. No início do processo, demonstrou preferência pelas candidaturas de Leonel Brizola, do Partido Democrático Trabalhista (PDT), e Roberto Freire, do Partido Comunista Brasileiro (PCB) (DUMAR, 1989)200, mas acabou aderindo à campanha de Lula. Na ocasião, Lula foi o candidato que obteve maior adesão da classe artística, com destaque para o segundo turno das eleições, quando o apoio conquistado por outros partidos de esquerda foi direcionado para a campanha petista, em oposição à candidatura de , do Partido da Reconstrução Nacional (PRN). Cerca de 150 celebridades participaram da gravação do programa eleitoral do PT, entoando o jingle ‗Lula-lá‘, com destaque, entre os músicos, para a presença de Chico Buarque, Gal Costa, Djavan, Wagner Tiso e Geraldo Azevedo (FOLHA, 1989)201. Caetano Veloso e Gilberto Gil também participaram do horário eleitoral petista em outra oportunidade (FOLHA, 1989)202. Nesse contexto de grande adesão de artistas à campanha de Lula, o posicionamento de Lobão não conquistaria grande visibilidade, não fosse sua participação no programa Domingão do Faustão, da Rede Globo, pedindo votos para o candidato petista no dia da eleição. O episódio potencializou a importância de seu apoio político, que de outra forma não ganharia o mesmo destaque. Lobão seguiria abordando o tema nas músicas Panamericana e Quem quer votar, do LP Sob o sol de Parador (1989). A letra da primeira canção retrata o contexto político latino- americano, adotando um discurso crítico aos governos autoritários. Os versos contrapõem referências às ditaduras na região, como ―Quem são os ditadores do Partido Colorado? O que é a democracia ao sul do Equador? Quem são os militares ao sul da Cordilheira? Quem são os salvadores do povo de El Salvador?, a movimentos de resistência como ―Quem são os Montoneros? Quem são os Tupamaros? Las madres y abuelitas na Praça de Maio‖. Os questionamentos são concluídos com a famosa frase de Che Guevara: ―Hay que endurecer sin perder la ternura”. Panamericana

Quem são os ditadores Do Partido Colorado? O que é a democracia ao sul

199 Entrevista concedida ao programa Jô Soares Onze e Meia. 1989. Disponível em: Acesso em: 07 abr. 2015. 200 DUMAR, Deborah. Por amor ao 'disco‘ de risco. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1, 01 ago. 1989. 201 Folha de S. Paulo. PT reúne 150 artistas em videoclip que vai ao ar no fim-de-semana. Caderno Diretas-89, p. B7. 01 dez. 1989. Disponível em: Acesso em: 21 mar. 2016. 202 Folha de S. Paulo. Collor e Lula abrem hoje a segunda etapa da disputa eleitoral na TV. Caderno Diretas-89, p. B1. 28 nov. 1989. Disponível em: Acesso em: 21 mar. 2016. 111

Do Equador? Quem são os militares ao sul Da Cordilheira? Quem são os salvadores do povo De El Salvador? Em Parador Quem são os assassinos dos Índios brasileiros? Quem são os estrangeiros Que financiam o terror? Em Parador

Hay que endurecer Sin perder la ternura Hay que endurecer Sin perder la ternura Hay que endurecer Sin perder la ternura Ao sol de Parador

Quem são os índios incas Que plantam cocaína? Quem são os traficantes Com armas e gasolina? Quem são os Montoneros? Quem são los Tupamaros? Las madres e abuelitas Na praça de maio Em Parador Quem são os contra-revolucionários De Sandino? O que é a presidência no Canal do Panamá? Em Parador

Hay que endurecer Sin perder la ternura Hay que endurecer Sin perder la ternura Hay que endurecer Sin perder la ternura Ao sol de Parador

Quem são os guerrilheiros de Farrabundo Marti? Quem são os fuzileiros Do M - 19? Quem são os luminosos que Acendem o Sendero? Quem são os para-militares Do alti-plano? Em Parador Quem são os vudanizados que Querem ton ton macutes? Quem são os encarnados que 112

Inspiram as falanges? Em Parador

Hay que endurecer Sin perder la ternura Hay que endurecer Sin perder la ternura Hay que endurecer Sin perder la ternura Ao sol de Parador (LOBÃO; PAES; BRANDÃO, 1989)203

A canção Quem quer votar, como indica o próprio nome, aborda a retomada das eleições diretas com a redemocratização do país. Ao invés da euforia, adota um tom crítico, de descrença no sistema político, como demonstram os versos: ―A política faliu. Não dá pra acreditar. Até o que é civil parece militar‖. Assim como em Panamericana, a letra recorre à contraposição, dessa vez para destacar as diferenças entre os políticos e a população. De um lado, está ―Quem vai ao comício. Quem ganha jeton. Quem vai legislar. Quem é marajá", de outro, encontra-se ―Quem vai ao trabalho. Quem ganha salário. Quem tem sindicato. Quem é bóia-fria‖, compondo o quadro de desigualdade. O questionamento é finalizado da seguinte forma: ―Que país é esse rico e esfomeado‖.

Quem quer votar A política faliu Não dá pra acreditar Até o que é civil Parece militar

Voto de cabresto Voto de operário Voto de indeciso Voto milionário Voto de fantasma Voto que atrapalha Voto de palpite Voto de canalha

Quem quer votar Quem vai votar

Quem vai ao comício Quem vai ao trabalho Quem ganha jeton Quem ganha salário Quem tem sindicato

203 LOBÃO; PAES, Tavinho; BRANDÃO, Arnaldo. Panamericana. In: LOBÃO. Sob o Sol de Parador. RCA Victor, 1989. Faixa 1. 113

Quem vai legislar Quem é bóia-fria Quem é marajá

Quem quer votar Quem vai votar

Quem é o presidente Quem é o delegado Diga qual dos dois é mais abandonado Quem que vai dar certo Quem vai dar errado Que país é esse rico e esfomeado

Quem quer votar Quem vai votar (LOBÃO; PAES; BRANDÃO, 1989)204

Encerrando a fase em que a política exerceu maior influência em suas canções, Lobão lançou, em 1991, a música Presidente Mauricinho, uma crítica ao estilo de vida do candidato vitorioso Fernando Collor de Mello. Em comum, as três canções possuem letras factuais, descrevendo um contexto específico da história política brasileira e latino-americana, sendo, por esse motivo, facilmente datadas.

Presidente Mauricinho

O presidente sai de moto Pelo eixão monumental O presidente anda a mil No país do carnaval O presidente tira fotos Com um índio no palácio O presidente sai com o Papa E sua corte é um esculacho

O presidente tá no Polo Sul Tá jogando com a seleção O presidente de avião à jato Dá mais bandeira que doidão O presidente casou com uma gata Dispensou e casou com outra E a gata era milionária Não ligou e deu a maior força

Aí... aí... aí‚ ô jet-ski

O presidente é um lorde inglês Sonhando com o primeiro mundo

204 LOBÃO; PAES, Tavinho; BRANDÃO, Arnaldo. Quem quer votar. In: LOBÃO. Sob o Sol de Parador. RCA Victor, 1989. Faixa 2. 114

Ser presidente até que é um bom emprego Num país de vagabundos Já foi marca de cigarros De conhaque e de cachaça O presidente é a maior palha E ainda vai virar fumaça

Aí... aí... aí‚ ô jet-ski (LOBÃO; PAES, 1991)205

Após um período sem que a política ganhasse destaque em sua carreira, o músico voltaria a se envolver em questões que extrapolavam os limites de sua criação musical com o ingresso no mercado independente. Além do esforço de viabilização de sua produção, o músico iniciou um confronto direto, através das páginas dos jornais, com as grandes gravadoras, criticando sua forma de operação, mais especificamente a ausência de controle dos artistas sobre a comercialização dos discos, a ingerência das empresas no processo criativo dos músicos e a utilização do jabá como mecanismo de divulgação das canções. Sua atuação para que o projeto de lei nº 4.540-A, de 2001, visando à numeração dos discos, fosse aprovado projetou sua imagem como uma das lideranças da classe artística. Manifestando apoio aos candidatos petistas desde 1989, de acordo com o discurso de Lobão, suas convicções políticas e o consequente apoio ao partido começaram a se desgastar com a indicação de Gilberto Gil para ministro da Cultura, ainda em 2002 (LOBÃO, 2013). Adversários no campo musical – Lobão sempre alimentou a ambição de superar o legado tropicalista – e no campo político – estiveram em lados opostos em assuntos envolvendo a classe artística – a chegada de Gilberto Gil ao ministério representava o fortalecimento de uma visão divergente, que a partir de então passaria a definir as políticas públicas para a área. Outro motivo alegado pelo músico para justificar seu descontentamento com o PT e sua futura mudança de posicionamento político foi a insatisfação com a conduta ética do partido. Lobão começou a criticar publicamente a esquerda em 2004, sem, entretanto, atacar diretamente nenhuma sigla partidária. Sutil em suas falas, o músico procurava contrapor a eficiência da direita à inoperância da esquerda, através de exemplos de sua vida pessoal, como ao rememorar os tempos de escola:

Quando entrei no São Vicente ficou mais legal, tinha cineclube, Ciclo Buñuel... Tinha também a esquerda festiva que era um horror, era o Moacir Góes que agora fica fazendo filme de Jesus Cristo, então nós éramos a direita. Meu colega Inácio era fã do Delfim Netto! Mas a gente era mesmo de direita porque achava a esquerda uma merda. O pessoal de direita fazia

205 LOBÃO; PAES, Tavinho. Presidente Mauricinho. In: LOBÃO. O Inferno é Fogo. RCA Victor, 1991. Faixa 5. 115

show do Gonzaguinha, show do Abacate Flutuante, e o pessoal da esquerda não fazia nada, um pessoal inoperante, tinha uns saraus com luz escura, um anti-clima, falavam em ‗liberdade de expressão‘ (...) Eles tinham essa coisa anódina, sangue de barata, os caras todos... (arriado sobre a mesa)... mofados... (canta com voz deprimida) ―Salve/ como é que vai?/ amigo há quanto tempo?‖ (pega sua própria mão e começa a dar tapas revoltados nela). Isso é o que atravanca o Brasil! (CASTRO, 2004)206.

A mudança de posicionamento político de Lobão ocorreu no momento em que sua carreira artística enfrentava dificuldades. A postura crítica em relação aos interesses das majors e em defesa de um projeto musical autêntico, baseado na qualidade artística – posição fortalecida através do prestígio adquirido pela revista Outracoisa no início dos anos 2000 – seria reconsiderada. Sem conseguir permanecer independente, após o fraco desempenho comercial dos trabalhos Uma odisseia no universo paralelo e Canções dentro da noite escura e temendo perder espaço na mídia, teria início uma guinada na carreira do músico. Importante frisar que a perspectiva de sucesso de Lobão é baseada nos números do mainstream, dessa forma, o que seria um bom resultado de vendas para o universo independente pode representar um fracasso sob o ponto de vista da indústria fonográfica. O ano de 2007 pode ser considerado um marco na guinada artística e política do músico. Disposto a retornar ao esquema das grandes gravadoras, aceitaria produzir um disco de forte apelo comercial. Cabe aqui reiterar que a saída de Lobão da indústria fonográfica, com o lançamento de A vida é doce no mercado independente, não foi ideologicamente motivada, apesar de o músico procurar capitalizar o prestígio advindo da experiência, e que sua obra a partir de então continuou adotando o formato de canções pop, concebidas sem perder de vista o apelo radiofônico. As mudanças no campo musical foram acompanhadas pela revisão de seus posicionamentos políticos, com Lobão aprofundando suas críticas ao pensamento de esquerda.

Eu acho que essa minha nova aventura será um case de sociologia!!! O fato de me assumir absolutamente contra a corrente da esquerda brasileira será meu novo e favorito prato no cardápio. Caiu uma ficha enorme quanto a isso, tipo uma revelação (apesar de ser o óbvio ululusantos!!!!) (SANCHES, 2007)207.

206 CASTRO, Fernando de. Lobão: aquele que não livra a cara de ninguém. Pasquim. 20ª semana de 2004. Disponível em: Acesso em: 28 nov. 2014. 207 SANCHES, Pedro Alexandre. Entrevista com o lobisomen. 22 mai. 2007. Disponível em: Acesso em: 30 dez. 2015. 116

A valorização de uma postura marginal, de confronto aos valores estabelecidos, deu lugar à defesa do mercado e as críticas ao sistema seriam abandonadas diante da convergência de interesses. No decorrer dos anos 80, à medida que a vendagem oficial de seus discos ficava aquem da expectativa, Lobão foi projetando sua imagem em contraposição aos valores representados pelas gravadoras, contestando várias práticas de mercado adotadas pela indústria fonográfica. Em entrevistas o músico não escondia sua insatisfação, chegando a afirmar sobre a gravadora RCA: "Eu digo a eles 'eu quero ficar aqui, já estou acostumado com a bandidagem de vocês; senão, vou ter que entender outros bandidos‘". (ABIRACHED, 1988)208. A postura de ataque à indústria fonográfica foi intensificada a partir de 1999 com o lançamento de A vida é doce nas bandas de jornal, o que, segundo o músico, seria uma resposta à "máfia da Associação Brasileira de Produtores de Discos‖ (SUKMAN, 1999)209. No início dos anos 2000, ainda imerso no projeto independente, o músico manteve seu discurso contestatório em relação ao método de trabalho adotado pelas empresas.

As pessoas que estão lá não gostam de música. Se gostassem, não viveriam mudando os discos depois de os artistas terem colocado tanto esforço neles; não dariam dinheiro às rádios para que tocassem suas músicas. Acho que um artista deveria, por lei, ganhar pelo menos R$ 1 por CD vendido. Nem o Roberto Carlos ganha isso. É vergonhoso. (ARAÚJO, 2001)210.

Com seu retorno a uma grande gravadora, abandonaria as críticas de outrora, sob a alegação de que o mercado havia mudado e que os novos executivos já não cometeriam os mesmos erros do passado, tentando, com isso, justificar a guinada. O gerente-geral da Sony BMG, Alexandre Schiavo, deixou de ser alvo de suas críticas. ―Fiquei superbrother dele. O que demonizaram as gravadoras... Hoje as coisas são feitas de maneira diferente" (SAITO, 2007)211, declarou Lobão sobre o executivo, sem parecer se incluir no grupo dos que ‗demonizaram‘ as gravadoras. Indo além, o músico estaria disposto a utilizar os conhecimentos adquiridos com o episódio da aprovação do decreto de numeração dos discos, em que foi ao congresso pleitear apoio ao projeto, para, dessa vez, auxiliar nos interesses da indústria.

208 ABIRACHED, M. O show do homem-múmia. O Globo, Matutina, Segundo Caderno, p. 1, 29 ago. 1988. 209 SUKMAN, Hugo. Lobão traduz provocação verbal em música. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 4. 25 nov. 1999. 210 ARAÚJO, Bernardo. O mais novo grito de independência de Lobão. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 2. 22 dez. 2001. 211 SAITO, Bruno Yutaka. 'Sei que vão me chamar de traidor', diz Lobão. Folha de S. Paulo. Ilustrada, p. 4. 30 mar. 2007. 117

Tenho um plano para desvilanizar a indústria fonográfica: restaurar o "disco é cultura" e deduzir os 25% do preço final do CD. Não é só isso: destributalizar toda a cadeia de produção, desde o papel, a matéria plástica do CD, etc. e tal. Pedi ao [Alexandre] Schiavo [atual presidente da Sony BMG] para escrutinar todo o metabolismo tributário, para depois formarmos uma comissão para um périplo pelo Planalto... Creio que a gente tem muita chance de vitória, afinal de contas, se [o livro] Marimbondos de Fogo [de José Sarney] é cultura... Kelly Key também é!!!, e xequemate, eh, eh!! (SANCHES, 2007)212.

A mudança esteve associada à reconfiguração do posicionamento político do músico, que passou a criticar os valores de esquerda, em defesa do mercado. "Sou animal predador. Dinheiro é meu tacape. Mas aqui predomina a cultura esquerdista, sem glamour. Ter dinheiro, no Brasil, é pecado" (FILHO, 2007)213. Abandonando a ideia de modificar o sistema, o músico atuou em defesa dos interesses individuais de sua carreira, visando sua manutenção. Antes contrário ao pagamento de jabá, após retornar a uma grande gravadora, com suas músicas tocando nas rádios, afirmaria: "Eu não pago jabá. Por que eu assinado [com uma gravadora], toco [nas rádios], e não assinado, não toco? Eu não tenho nada a ver com isso. Eu tô numa gravadora e pronto" (SAITO, 2007)214. Apesar da nova convicção, Lobão demonstraria receio em se associar ao movimento direitista. Quando assim se define, procura esclarecer que utiliza o termo ―no sentido de ser a favor do capitalismo, da meritocracia, da competitividade, do lucro‖ (SANCHES, 2011)215, caracterizando-se, portanto, mais como um liberal. Para desviar do embate político, procurou destacar suas discordâncias com ambas as correntes políticas, afirmando que a ―direita e a esquerda são a mesma coisa: conservadoras, nacionalistas, caretas, retrógradas e adoram uma ditadura‖ (SANCHES, 2011). Em 2011, os posicionamentos políticos do músico ganharam maior visibilidade, prenunciando alguns dos argumentos utilizados na produção de seu Manifesto em 2013. Convidado para falar sobre sua autobiografia no evento literário Festival da Mantiqueira, explicitou algumas de suas opiniões sobre o campo político e cultural. Retornando às velhas críticas aos músicos consagrados, à MPB e à Tropicália, o destaque seria suas opiniões

212 SANCHES, Pedro Alexandre. Entrevista com o lobisomen. 22 mai. 2007. Disponível em: Acesso em: 30 dez. 2015. 213 FILHO, William Helal. 'Não se pode demonizar as gravadoras'. O Globo. Matutina, Megazine, p. 4. 24 abr. 2007. 214 SAITO, Bruno Yutaka. 'Sei que vão me chamar de traidor', diz Lobão. Folha de S. Paulo. Ilustrada, p. 4. 30 mar. 2007. 215 SANCHES, Pedro Alexandre. Lobão: a ovelha negra da música brasileira. IG. 11 fev. 2011. Disponível em: Acesso em: 18 out. 2014. 118

políticas. Contestou a criação da Comissão Nacional da Verdade, por sua suposta imparcialidade, procurando relativizar a repressão ocorrida durante a ditadura ao defender a isonomia entre os atos de tortura praticados pelo governo contra os militantes de esquerda e os crimes cometidos pelo movimento de resistência durante o combate ao regime. Além disso, defendeu a ideia de que, no golpe de 1964, os militares atuaram em defesa da soberania nacional frente à ameaça de implantação de uma ditadura do proletariado pelos movimentos de esquerda. Tinha que repensar a Ditadura Militar. Essa Comissão da Verdade que tem agora, que loucura que é isso. Tem que ter anistia para os caras de esquerda que sequestravam embaixador e os caras que torturavam, arrancavam umas unhazinhas, não? Essa foi horrível [risos]. A gente vivia uma guerra, as pessoas não estavam lutando por uma democracia, as pessoas estavam lutando por uma ditadura do proletariado. Os militares foram lá e defenderam nossa soberania (...). Então os caras que sequestravam fulano, beltrano, eles eram mais bonzinhos do que o cara que arrancava unha nos calabouços. Vamos fazer essa equação? Não bate, cara! Pensa bem. Tem que ser um cara muito escroto para poder falar sobre isso, mas isso é a pura verdade. (LOBÃO, 2011)216.

O jornal Folha de S. Paulo repercutiu a declaração (ALMEIDA, 2011)217 em reportagem contestada pelo músico sob alegação de que sua fala fora descontextualizada. Ressignificando seu discurso, afirmou: "O que eu quis dizer (...) é que a direita torturadora e a esquerda vítima eram iguais porque eram retrógradas e nacionalistas. Eram pessoas que gostavam de tirania (...). Ninguém ali estava lutando por uma democracia‖ (FOLHA, 2011)218. Diante da repercussão, Lobão se defendeu afirmando que seus opositores não seriam capazes de ‗simonalizá-lo‘ (CULT, 2011)219, em referência ao cantor Wilson Simonal, que teve sua carreira prejudicada devido à acusação de possuir ligações com o regime militar. Lobão, entretanto, não estava sozinho na defesa do argumento. Outros críticos do movimento de esquerda manifestaram seu descontentamento com a criação da Comissão Nacional da Verdade. Ainda em 2011, o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) afirmou que a iniciativa tratava-se de ―uma farsa, uma mentira. É um projeto que caminha apenas para apurar o que eles querem. Eles não querem apurar justiçamento no Araguaia, roubos,

216 Entrevista concedida durante o Festival da Mantiqueira. 29 mai. 2011. Disponível em: Acesso em: 14 jan. 2016. 217 ALMEIDA, Marco Rodrigo. Lobão critica João Gilberto e Chico Buarque em palestra. Folha de S. Paulo. Ilustrada, p. E5. 31 mai. 2011. 218 FOLHA DE S. PAULO. Após fala sobre ditadura, Lobão critica reportagem da Folha. Ilustrada, E3. 02 jun. 2011. 219 CULT. "Não serei 'simonalizado'". 02 jun. 2011. Disponível em: < http://revistacult.uol.com.br/home/2011 /06/nao-serei-simonalizado-diz-lobao/> Acesso em: 11 nov. 2014. 119

sequestros, execuções e justiçamentos‖ (BORGES, 2011)220. No mesmo sentido, Reinaldo Azevedo, colunista da revista Veja, levantou questionamentos quanto à parcialidade da Comissão: ―Contará a verdade sobre as 119 pessoas assassinadas pelos terroristas de esquerda?‖ (AZEVEDO, 2011)221, indagou. No ano seguinte, Olavo de Carvalho manifestaria sua opinião: A história que a ‗Comissão da Verdade‘ vai publicar daqui a dois anos está pronta desde a década de 60. O simples fato de que os comissionados se comprometam a excluir do seu campo de investigações os crimes cometidos pelos terroristas já determina que, no essencial, nada na narrativa consagrada será alterado, exceto para reforçar algum ponto em que a maldade da direita e a santidade da esquerda não tenham sido realçadas com a devida ênfase. (CARVALHO, 2012)222.

4.1 Cláudio Tognolli, um elo com o movimento antipetista Coautor da bibliografia de Lobão, Cláudio Tognolli integrou o cenário de bandas de rock dos anos 80 e, conforme relata, esteve a um passo do sucesso: ―eu toquei no RPM e saí do RPM seis meses antes de ele estourar‖ (AMARAL et al., 1998)223. Optando pela carreira de jornalista, a aproximação com Lobão só ocorreria anos depois em decorrência da entrevista concedida por Tognolli à revista Caros Amigos, em 1998. Na oportunidade, o jornalista denunciou o que chamou de ―Máfia do Dendê‖, acusando os músicos baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Betânia e João Gilberto de cooptarem jornalistas e pessoas com cargos executivos em jornais para que produzissem conteúdo favorável ao grupo e seus aliados. Tognolli explicou como operava a suposta ―máfia‖:

Nós sabemos como funciona, é a história de como são articuladas as pautas dentro das redações para que não se fale mal deles. E qualquer artista que seja ungido pela Máfia do Dendê, a mesma coisa. Se ela aponta e fala ‗esse novo valor tem a minha benção‘, ninguém vai poder falar mal. Eu mesmo, em lugares que trabalhei, e como tinha cargo de confiança, cansei de fazer reportagens que eu sabia serem indicadas pela Máfia do Dendê. Era aniversário do Dorival Caymmi, o Gilberto Gil sugeriu que fosse feito isso, da forma que ele queria. Eu estive lá. Isso é a prova de uma operação. Foi no Rio de Janeiro, na casa do José Maurício Machline. (AMARAL et al., 1998, p. 27).

220 BORGES, Laryssa. Bolsonaro invade coletiva e acusa farsa na Comissão da Verdade. Terra, 13 set. 2011. Disponível em: Acesso em: 28 mar. 2016. 221 AZEVEDO, Reinaldo. Com quantas mentiras se faz uma Comissão da Verdade? Veja, 10 set. 2011. Disponível em: Acesso em: 28 mar. 2016. 222 CARVALHO, Olavo de. Promessa cumprida. Diário do Comércio. 28 mai. 2012. Disponível em: Acesso em: 28 mar. 2016. 223 AMARAL, Marina et al. Espeto no vespeiro. Caros Amigos, ano I, número, 12, p. 26/33. Mar. 1998. 120

A denúncia ia ao encontro das críticas desferidas por Lobão aos músicos baianos, despertando a atenção do cantor. ―Soube que Lobão leu aquilo e gostou muito, mas eu só iria ter contanto com ele pessoalmente cinco anos mais tarde, quando fizemos duas capas com ele na revista Caros Amigos‖, relembra o jornalista (JORNAL DO BRASIL, 2011)224. Atuando nos principais veículos de comunicação do país, Cláudio Tognolli iniciou sua carreira na revista Veja (1985-1988), com passagens pela Folha de S. Paulo (1988- 1995), Jornal da Tarde (1995-1999), rádio Jovem Pan (1999-2006), revista Galileu (2006-2008), revista Consultor Jurídico (2000-2010) e Brasil 247 (2010-2012). Atualmente trabalha para o portal Yahoo, para as revista Sax, Rolling Stones e Joyce Pascowitch, e para a rádio Jovem Pan. É professor concursado da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), lecionando também nas Faculdades Integradas Alcântara Machado (TOGNOLLI, 2015)225. Apesar da opção pela carreira jornalística, Cláudio Tognolli não abandonou completamente a música. Como guitarrista da banda Bomba Garay, formada pelos também jornalistas Sérgio Malbergier (bateria) e Fabio Pagotto (baixo) e com o presidente do Grupo Folha, Luiz Frias, nos vocais, chegou a abrir, em 2010, um show de Lobão (VAZ, 2010)226. Ao longo da carreira, escreveu diversos livros227, com destaque para as obras lançadas em parceria com Romeu Tuma Júnior: Assassinato de reputações: um crime de estado, lançado em 2013, e Assassinato de reputações 2: muito além da Lava Jato, publicado em 2016. Delegado da Polícia Civil do Estado de São Paulo, Tuma Júnior chegou a secretário nacional de Justiça em 2007, durante o governo Lula. Não resistindo às denúncias que associavam seu nome ao do contrabandista Li Kwok Kwen, foi demitido do cargo em junho de 2010 (CARVALHO; MALTCHIK, 2010)228.

224 JORNAL DO BRASIL. O homem que domou o Lobão. 10 jan. 2011. Disponível em: Acesso em: 25 fev. 2015. 225 TOGNOLLI, Cláudio Júlio. Currículo do sistema currículo Lattes. [Brasília], 07 dez. 2015. Disponível em: < http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4745191P4> Acesso em: 05 mar. 2016. 226 VAZ, Juliana. Passada sua fase acústica, Lobão volta a ser elétrico. Folha de S. Paulo. Ilustrada, p. E14. 7 ago. 2010. 227 Além das obras citadas, Tognolli é autor de: O Século do Crime (1996), Mundo pós-moderno, A sociedade dos chavões: presença e lugar-comum na comunicação (2001), A falácia genética: a ideologia do DNA na imprensa (2003), Mídia, Máfias e Rock'n'Roll (2007), Balenciaga Torres e os Corações Pelludos (2010) e Bem- Vindo ao Inferno. Vale destacar que o último livro citado foi prefaciado pelo juiz Sérgio Moro, que ganhou notoriedade no contexto político atual por ser o responsável pelo julgamento dos crimes investigados na Operação Lava Jato, e por sua esposa, a advogada Rosângela Wolff Moro (MARTÍN, 2015). MARTÍN, María. Sergio Moro: "O apoio da população sempre é importante". El País. 14 mai. 2015. Disponível em: Acesso em: 08 mar. 2016. 228 CARVALHO, Jailton de; MALTCHIK, Roberto. Romeu Tuma Júnior, secretário nacional de Justiça, é exonerado do cargo após denúncias de ... O Globo. 14 jun. 2010. Disponível em: 121

As duas obras apresentam denúncias contra o governo do PT e algumas de suas lideranças. No primeiro livro, Tuma Júnior acusa o governo de produzir dossiês contra adversários políticos, esquema do qual acredita ter sido vítima. Em uma reportagem de sete páginas, a revista Veja concedeu espaço para que o ex-secretário nacional de Justiça apresentasse as denúncias abordadas no livro (BONIN, 2013)229. Além disso, assim como ocorreu com o Manifesto de Lobão, diversos colunistas da publicação à época, como Reinaldo Azevedo, Rodrigo Constantino e Felipe Moura Brasil, repercutiram suas denúncias (AZEVEDO, 2013230; CONSTANTINO, 2014231; BRASIL, 2014232). A obra mais recente da dupla Tuma Júnior e Cláudio Tognolli busca associar a presidente Dilma Rousseff ao esquema de corrupção investigado na chamada Operação Lava Jato, utilizando como principal indício um bilhete do doleiro Alberto Youssef no qual ―o nome de Dilma aparece próximo a valores‖ (PARDELLAS, 2016)233. A proximidade entre Lobão e Cláudio Tognolli iria além da parceria literária. Graças à afinidade política, o músico e o jornalista continuariam atuando juntos, com o objetivo de enfraquecer o Partido dos Trabalhadores. Aliados a Romeu Tuma Júnior, constituiriam um grupo articulado de oposição ao governo, atuando, principalmente, através das redes sociais, conforme afirma o músico:

Não posso olhar para 2014 sem contemplar os tantos eventos rebuliçosos em que me meti. Foram muitos acontecimentos quentes! Passeatas, hangouts, encontros físicos e virtuais com inúmeras figuras da maior importância no tal mosaico da genuína oposição brasileira. Destaco os nossos antológicos armossos semanais no Spot, com Cláudio Tognolli, Sérgio Malbergier, Márcio Chaer, Romeu Tuma Jr., Miguel Barella, entre outros, de onde brotaram grandes ideias, articulações e projetos de livros, e para onde sempre um dos comensais levava notícias fresquinhas dos bastidores do

Acesso em: 14 mar. 2016. 229 BONIN, Robson. O livro bomba. Veja. Edição 2351. p. 74/80. 11 dez. 2013. 230 AZEVEDO, Reinaldo. O LIVRO-BOMBA – Tuma Jr. revela os detalhes do estado policial petista. Partido usa o governo para divulgar dossiês apócrifos e perseguir adversários. Caso dos trens em SP estava na lista. Ele tem documentos e quer falar no Congresso. Mais: diz que Lula foi informante da ditadura, e o contato era seu pai, então chefe do Dops. Veja. 07 dez. 2013. Disponível em: Acesso em: 15 mar. 2016. 231 CONSTANTINO, Rodrigo. Romeu Tuma Jr. no Roda Viva: era para a república vir abaixo se fosse um país sério!. Veja. 3 fev. 2014. Disponível em: Acesso em: 15 mar. 2016. 232 BRASIL, Felipe Moura. Tuma Jr. bota Lula, Gilberto Carvalho e imprensa na Roda: "Quem fala apanha. Quem não fala... não acontece nada". Veja. 04 fev. 2014. Disponível em: Acesso em: 15 mar. 2016. 233 PARDELLAS, Sérgio. O bilhete que liga o doleira a Dilma. Isto É. Edição 2414, 11 mar. 2016. Disponível em: Acesso em: 14 mar. 2016. 122

governo, da música ou da política internacional. (LOBÃO, 2015, p. 166/167).

4.2 A formação de um novo grupo A interlocução de Lobão com representantes do movimento conservador, em especial Olavo de Carvalho, fortaleceu seu posicionamento político, com o músico aderindo abertamente à direita e passando a atuar em oposição ao PT, o que até então não era observado. O astrólogo e filósofo forneceu argumentos para os ataques de Lobão ao partido. ―Foi através de Olavo, por exemplo, que soube da existência do Foro de São Paulo, e isso sem falar na descoberta de uma vastíssima bibliografia sobre assuntos jamais vasculhados por mim‖ (LOBÃO, 2015, p. 77), declarou sobre a influência. Outros nomes importantes para seu embasamento político foram: ―Rodrigo Constantino, Bruno Garschagen, Bene Barbosa, Tomás Giulliano, Percival Puggina, Felipe Moura Brasil, Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi, Guilherme Fiuza, Augusto Nunes e Romeu Tuma Jr.‖ (LOBÃO, 2015, p. 79). Inserido no mercado editorial com relativo sucesso, após o lançamento de sua autobiografia, Lobão escreveria sobre sua visão em relação à política e à cultura brasileira. Com a publicação do Manifesto do nada na terra do nunca, em 2013, Lobão entrou definitivamente no polarizado front político. ‗Vamos assassinar a presidenta da república?’ e ‗O reacionário’, títulos de capítulos do livro, demonstram a linha de pensamento adotada. No Manifesto, Lobão desfere críticas à presidente Dilma Rousseff, à intelectualidade de esquerda, à MPB, ao Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, à instauração da Comissão Nacional da Verdade, ao Foro de São Paulo e à patrulha ideológica. Dentre os aspectos abordados, os intelectuais figuram entre os principais alvos de Lobão e de uma parcela do movimento que combate a esquerda no país. Alguns de seus representantes, como Olavo de Carvalho (1994)234 e Rodrigo Constantino (2014)235, defendem a tese de que, seguindo o teórico marxista Antonio Gramsci, o PT conseguiu estabelecer com a contribuição da intelectualidade, ou seja, jornalistas, professores universitários e artistas, uma hegemonia de esquerda no país. Na visão do músico, a mesma intelligentsia que fortaleceu a esquerda atuou na consagração da MPB em detrimento do rock, com seus músicos sendo valorizados pela academia e por outras esferas de consagração, como os prêmios de música. Sob seu ponto de vista, combatendo os intelectuais atinge-se também o

234 CARVALHO, Olavo. Sto. Antonio Gramsci e a salvação do Brasil. In: A Nova Era e a Revolução Cultural. 1994. Disponível em: Acesso em: 22 nov. 2014. 235 CONSTANTINO, Rodrigo. É preciso entender Gramsci para compreender o PT. Ou: É a cultura, estúpido! Veja. Disponível em: Acesso em: 22 nov. 2014. 123

movimento musical, o que justificaria, em parte, a adesão do músico ao movimento. Vale destacar que no período independente, em que as universidades se transformaram em um importante espaço para a divulgação de seu trabalho, o músico demonstrava uma visão diferente sobre o que agora denomina de ―universotário‖. Em diálogo com o ambiente acadêmico, demonstrava otimismo em relação ao ensino superior do país, chegando a afirmar: "o universitário está articulado, sabe conjugar o que aprende na faculdade com a vida real" 236 (LEÃO, 2000) . A valorização da esfera cultural para o êxito político, defendida pelos direitistas, ajuda a compreender a importância de Lobão para as ambições do movimento de oposição ao governo. A popularidade do músico, sua inserção na mídia e visibilidade auxiliaram na divulgação das ideias defendidas pelo grupo. Após declarar seu novo posicionamento político, Lobão foi objeto de diversas matérias na imprensa, além de destaque nas redes sociais. Com a vitória de Dilma Rousseff no pleito, o músico chegaria a ocupar a sétima posição entre os assuntos mais discutidos no Twitter com a hashtag ―Tchau Lobão‖, em referência à declaração de que sairia do país caso a candidata petista ganhasse o pleito (BBC, 2014)237. O fato destaca o apelo midiático do músico e sua relevância para um movimento que pretende contrapor a hegemonia cultural conquistada pela esquerda. O número de seguidores de Lobão na rede social Twitter, reforça a importância de Lobão para a disseminação das ideias direitistas. Comparado com alguns de seus interlocutores, que apresentam posicionamento político semelhante, o músico possui um número significativamente maior de seguidores na rede. Enquanto Olavo de Carvalho é seguido por 93,9 mil internautas, Rodrigo Constantino por 67,6 mil, Joice Hasselmann por 57,1 mil, Romeu Tuma Júnior por 66,2 mil e Cláudio Tognolli por 22 mil, Lobão possui mais seguidores do que todos juntos, falando para um público de 317 mil pessoas238. A rede social de Lobão funciona, dessa forma, como uma plataforma de disseminação das ideias produzidas pelo grupo. O mercado editorial também representou um importante espaço para a divulgação das ideias direitistas, com o Manifesto de Lobão vendendo 50 mil unidades, acompanhando o sucesso de outras publicações de temática conservadora. Lançados no mesmo ano, O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, de Olavo de Carvalho, alcançou a marca de

236 LEÃO, Tom. Ronaldo foi para a universidade. O Globo. Matutina, Megazine, p. 16. 17 out. 2000. 237 BBC. #SalaSocial: Destino de Lobão e eleições no Brasil dominam Twitter mundial. 24 out. 2014. Disponível em: Acesso em: 31 out. 2014. 238 Os dados correspondem ao número de seguidores no dia 25 de março de 2016. 124

120 mil exemplares (CAMPOS, 2015)239, e Esquerda Caviar, de Rodrigo Constantino, vendeu 50 mil cópias (BORGES, 2015)240. Logo após a publicação do livro, Lobão ganhou uma coluna na revista Veja, integrando o time de opositores do PT na imprensa. A partir de então, o músico passou a fazer críticas constantes ao governo federal nas páginas do semanário. Em sua coluna de estreia, o músico argumentou contra os apoiadores da esquerda, principalmente no campo cultural. Criticou o que denominou de ―rebeldes chapa-branca‖, que em sua definição são aqueles que criticam o sistema ao mesmo tempo em que são chancelados por ele, dentre os quais cita: os Racionais MC‘s, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Pablo Capilé e Paula Lavigne. Em sua articulação, implicitamente, defende a tese de que o verdadeiro rebelde é ele, que faz oposição ao governo estabelecido. Finalizou seu primeiro artigo destacando sua disposição para atacar a esquerda: ―Tentarei tratar dessa miséria que nos assola como se estivesse praticando um novo esporte: épater la gauche‖ (LOBÃO, 2013)241. Nos textos seguintes, fez críticas diretas ao PT, sobretudo à política cultural do partido242, falou sobre a ‗patrulha ideológica‘243, mencionando os questionamentos de que foi alvo após a publicação do Manifesto, destacou a má qualidade dos serviços públicos244 e, fugindo da temática política, abordou seu ofício de baterista245. Lobão abandonou sua ainda incipiente coluna na revista em 2014, alegando falta de tempo para conciliar a nova atividade com seu trabalho musical (LOBÃO, 2015). As sucessivas vitórias do Partido dos Trabalhadores nos pleitos para o executivo nacional e a consequente hegemonia de um projeto político para o país contribuíram para o surgimento de uma reação às mudanças sociais ocorridas no período. O momento político em que a falta de crescimento econômico colocava em xeque as reformas do governo, com a gestão petista sendo fortemente contestada por setores da imprensa e movimentos sociais, contribuiu para o fortalecimento da oposição ao partido. Nesse contexto, a guinada de Lobão ganhou ressonância. O fenômeno de fortalecimento do conservadorismo no país contou com o

239 CAMPOS, Mateus. Editor de nomes conservadores, Carlos Andreazza se firma como voz dissonante do mercado de livros. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 1. 31 jul. 2015. 240 BORGES, Rodolfo. A direita brasileira que saiu do armário não para de vender livros. El País. 01 ago. 2015. Disponível em: Acesso em: 11 dez. 2015. 241 LOBÃO. A era do rebelde chapa-branca. Veja. Edição 2347. 13 nov. 2013. 242 Idem. Hello! Palco não é palanque! Veja. Edição 2374. 21 mai. 2014. 243 Idem. Eu, coxinha. Veja. Edição 2355. 08 jan. 2014. 244 Idem. Cenas de aeroporto. Veja. Edição 2364. 12 mar. 2014. 245 Idem. O baterista. Veja. Edição 2372. 05 mai. 2014. 125

apoio de outros músicos de sua geração como Roger, do Ultraje a Rigor e , ex- Titãs, interlocutores constantes de Lobão nas críticas ao governo. Com a eleição presidencial de 2014, Lobão passou de crítico do PT a militante do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira). Com a possibilidade de vitória de Aécio Neves no segundo turno, Lobão atuou como cabo eleitoral do candidato tucano. Com a derrota, Lobão radicalizou ainda mais seu posicionamento ao liderar as passeatas pelo impeachment da presidente reeleita Dilma Rousseff, alegando fraude eleitoral. O apoio ao PSDB, entretanto, arrefeceu após as eleições. Diante da hesitação do partido tucano em liderar as passeatas pró-impeachment, Lobão optou por não manifestar apoio a nenhuma sigla partidária, sob o argumento de que ―no Brasil todos os partidos são de esquerda‖ (SOLNIK; SCHAHIN, 2014)246. O último livro de Lobão, Em Busca do Rigor e da Misericórdia - Reflexões de um Ermitão Urbano, lançado em 2015, aborda o processo criativo de produção de seu último disco (LOBÃO, 2015), sem deixar de mencionar seu envolvimento político recente. As duas áreas, cultura e política, dividem espaço no discurso do cantor. Sem desenvolver argumentos políticos elaborados, suas críticas à esquerda são em grande medida influenciadas por outros articulistas, como Olavo de Carvalho, e a originalidade de seu discurso restringe-se à tentativa de relacionar o contexto político atual ao cenário musical do país. Isolado no campo musical, Lobão encontrou um novo grupo entre os opositores ao governo do Partido dos Trabalhadores, que inclui figuras heterogêneas como Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino, Cláudio Tognolli, Romeu Tuma Júnior, Joice Hasselmann, dentre outros. Através, principalmente, de recursos disponibilizados pela internet, os integrantes do grupo atuam na divulgação dos trabalhos de seus membros, cada vez mais relacionados ao contexto político atual, assim como atuam a fim de atingir o objetivo central que os une: retirar o PT do poder. Com a ajuda do grupo, Lobão se estabeleceria como o músico símbolo da direita brasileira, representando para os opositores ao governo do PT o mesmo que Chico Buarque representa para o movimento de esquerda. ―Mais Lobão e menos Chico Buarque‖ foi o argumento desenvolvido por Rodrigo Constantino em artigo para o jornal O Globo, enaltecendo o novo posicionamento político do cantor. O economista aborda alguns aspectos que diferenciam o roqueiro e o MPBista e que fazem de Lobão uma figura necessária, em seu ponto de vista:

246 SOLNIK, Alex; SCHAHIN, Camilla. S.A.X Magazine. 14 jan. 2014. Disponível em: Acesso em: 11 ago. 2015. 126

O roqueiro rejeita essa típica visão brasileira de vitimização das minorias, de culpar o ―sistema‖ por crimes individuais, de olhar para o governo como um messias salvador para todos os males. A ideia romântica do ―Bom Selvagem‖ de Rousseau, tão encantadora para uma elite culpada, é totalmente rechaçada por Lobão. Compare isso às letras de Chico Buarque, ícone dessa esquerda festiva, sempre enaltecendo os ―humildes‖: o pivete, a prostituta, os sem-terra. A retórica sensacionalista, a preocupação com a imagem perante o grande público, a sensação de pertencer ao seleto grupo da ―Beautiful People‖ são mais importantes, para essas pessoas, do que os resultados concretos de suas ideias. (CONSTANTINO, 2013)247.

Constantino reforçou o argumento em outro artigo, ao afirmar: "se Chico Buarque está de um lado, e Lobão do outro, eu já tenho quase certeza de qual será o meu lado, e ele terá som de guitarra elétrica‖ (CONSTANTINO, 2013)248. A polarização defendida pelo colunista seria reproduzida, em outras oportunidades, por representantes do movimento anti-PT, como no comentário da jornalista Raquel Sheherazade no Twitter: "mais vale um @lobaoeletrico protestando na Paulista que um Chico Buarque em Paris defendendo um governo corrupto" (BBC, 2015)249. Olavo de Carvalho iria além, procurando desqualificar artisticamente o MPBista, durante uma conversa com Lobão transmitida on-line:

Se você pegar o maior ídolo (da esquerda), o Chico Buarque é um cara medíocre. Se fizer uma discussão entre eu e o Chico Buarque ele não aguenta cinco minutos. Eles não têm força para isso. O Chico Buarque, a única diferença dele para as outras pessoas é o seguinte: ele comprou um dicionário de rimas, então ele consegue compor. Faz uns poeminhas primários, mas até que estão bem feitinhos. (CARVALHO, 2013)250.

Chico Buarque se transformaria, assim, em um alvo dos opositores do governo, chegando a ser hostilizando por um grupo de jovens no Rio de Janeiro devido à sua atuação em defesa do Partido dos Trabalhadores (LEAL; REZENDE, 2015)251. O fato demonstra a capacidade de disseminação dos argumentos de Lobão quando amparados e amplificados por

247 CONSTANTINO, Rodrigo. Mais Lobão e menos Chico Buarque. O Globo. 14 jun. 2013. Disponível em: Acesso em: 28 mar. 2016. 248 CONSTANTINO, Rodrigo. Lobão detona na Flip. 06 jul. 2013. Disponível em: Acesso em: 28 mar. 2016. 249 BBC. De Lobão a Duvivier: o que os campeões de seguidores dizem sobre corrupção? 17 mar. 2015. Disponível em: Acesso em: 7 mar. 2016. 250 CARVALHO, Olavo de. Bate-papo Lobão e Olavo de Carvalho. 18 ago. 2013. 31'15''. Disponível em: Acesso em: 17 fev. 2016. 251 LEAL, Luciana Nunes; REZENDE, Constança. Chico Buarque é hostilizado por grupo antipetista no Leblon. O Estado de S. Paulo. 22 dez. 2015. Disponível em: Acesso em: 28 mar. 2016. 127

seu grupo. Crítico de longa data do MPBista, Lobão conseguiria ao menos no julgamento dos direitistas superar Chico Buarque, cabendo destacar que tal reconhecimento não está relacionado às suas qualidades artísticas, mas ao seu posicionamento político. Os principais interlocutores de Lobão constituem um grupo integrado, a princípio, apenas pelo objetivo comum de inviabilizar politicamente o Partido dos Trabalhadores, através da militância pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff e pela prisão do ex- presidente Lula. Além da pauta antipetista, poucas afinidades ideológicas restam entre seus membros, conforme revela a fala do músico: ―O fenômeno da união de vários segmentos heterogêneos, conflitantes e aparentemente irreconciliáveis da sociedade brasileira em torno de uma questão única e aglutinadora, retirar o PT do poder, é algo inédito, poderoso e extremamente rico‖ (LOBÃO, 2015, p. 75). No caso específico de Lobão, a incoerência representada por sua associação com representantes da direita, como Olavo de Carvalho, pode ser analisada através de dois pontos de vista: como a defesa de ideias conservadoras contradiz a imagem construída pelo músico ao longo de sua carreira, e, por outro lado, como os representantes desse pensamento tiveram que fazer concessões ideológicas para que Lobão pudesse pertencer ao grupo, desempenhando até um relativo protagonismo no movimento. Através de entrevistas e de sua autobiografia, o músico procurou valorizar os aspectos marginais de sua trajetória. Tema de seu álbum mais popular, Vida Bandida, a relação de Lobão com o submundo da contravenção teve início com sua prisão por porte de drogas, em 1987. Em seu relato sobre o período, o músico procura valorizar simbolicamente a experiência. Sobre a prisão, recorda:

Às vezes ficava olhando para as paredes a filosofar... Que paradoxo... Aquilo ali era simplesmente uma tortura em forma de retenção, no entanto, me sentia um privilegiado... Estava testemunhando e vivenciando fatos inacreditáveis, sentia na pele um tipo de desgraça que é corriqueira para um grande número de brasileiros e me rejubilava em saber que, através daquela experiência, me tornei um deles. Pensava que tinha sido acometido por uma graça divina em poder ter forças e condições de ser feliz em meio àquilo tudo e, de alguma forma, ter podido ajudar, ainda que tão pouco, alguns companheiros. (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010, p. 325).

Classificado pela revista Veja como um ―caso crônico de consumo e apologia de drogas‖ (VEJA, 1987)252, Lobão aprofundaria ainda mais sua relação com a ‗bandidagem‘ após a prisão, passando a frequentar os morros cariocas, incluindo a Mangueira, Tuiuti, Barreira do Vasco, Jacaré, Macacos e Rocinha (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010, p. 387). O

252 VEJA. Drogado Risonho. Ed. 977. 27 mai. 1987. 128

músico resume sua associação com a marginalidade de forma quase cinematográfica: "virei mascote do CV [Comando Vermelho]. Aprendi a atirar de bazuca, um tenente-coronel me dava aula de tiros toda quinta-feira, contratado por um cara de uma boca [-de-fumo]" (PIMENTEL, 2007)253. Em contraposição, Olavo de Carvalho e Rodrigo Constantino, em conversa com o próprio músico, desenvolvem uma crítica ao relativismo moral e à valorização da criminalidade pela indústria cultural. A trajetória de Lobão poderia exemplificar o fenômeno de valorização dos aspectos marginais na arte tão criticados por seus interlocutores. O fato, entretanto, foi negligenciado tanto por Olavo quanto por Constantino, que não fizeram nenhuma referência ao passado de Lobão durante o diálogo. O músico por sua vez silenciou diante dos argumentos que descontruíam sua trajetória.

Essa é a realidade que a gente vive aqui, há muitos anos, essa vitimização e essa glamourização do que há de pior, da escória, dos bandidos (...). Muito disso que a gente vê hoje começou lá na década de 60 com aquele pessoal todo, a revolução cultural. Essa glamourização do bandido, do bad guy, isso tem em vários filmes que começaram lá em Hollywood daquela época. Você pintar o cara que é o gangster, o cara que é o traficante, o cara que é o mafioso como o cara legal e a polícia como bandido. (CONSTANTINO, 2014)254.

Quanto ao segundo aspecto apontado, cabe destacar que, em um contexto diverso, de menor polarização política, a aproximação de Lobão com representantes do pensamento de direita dificilmente aconteceria. O conceito de intelectual elaborado por alguns integrantes do movimento de oposição ao PT, que nesse momento apoiam Lobão, não é compatível com o papel social desempenhado por um roqueiro. Através dos escritos de Olavo de Carvalho e Reinaldo Azevedo, é possível observar que o cantor não teria seus argumentos considerados não fosse a atual convergência de interesses. Para Olavo de Carvalho, a base de atuação de um governo de direita no Brasil deveria ser o desenvolvimento de uma educação clássica, destinada a uma elite intelectual, que se responsabilizaria pela disseminação do conhecimento adquirido para o restante da população - além do enfoque moral, religioso e tradicional e da defesa de uma economia de mercado (CORREIA, 2008)255. Quando analisamos outros textos de sua autoria, fica claro que o termo

253 PIMENTEL, Luiz Cesar. Lobão macho alfa. Rolling Stone. Ed. 08, mai. 2007. Disponível em: Acesso em: 12 set. 2014. 254 CONSTANTINO, Rodrigo. Lobão traz Olavo de Carvalho e Rodrigo Constantino, ao vivo e em cores. 30 jan. 2014. 16'30''. Disponível em: Acesso em: 17 fev. 2016. 255 CORREIA, Karla. Educar todo mundo não funciona. Jornal do Brasil. 01 jun. 2008. Disponível em: Acesso em: 24 mar. 2016. 129

educação clássica não inclui a valorização da cultura popular, muito menos do rock como gênero digno de legitimidade. Ao contrário, em seu ponto de vista, o contexto que possibilitou o desenvolvimento do estilo contribuiu para o enfraquecimento do ensino tradicional, representando, por esse motivo, um retrocesso.

1968 não foi propriamente um capítulo da história; foi uma crise abrupta de esquecimento, quando o acesso cognitivo a milênios de tradição cultural se tornou inviável graças ao consumo conspícuo de dois poderosos estupefacientes. De um lado, veio a repentina substituição do ensino tradicional, baseado em letras clássicas e ciências físicas, pela nova cultura de sexo, drogas, rock‘n‘roll e guevarismo, criada para atender a um público de adolescentes que a prosperidade da classe média no pós-guerra transformara em consumidores independentes e vorazes (...) De outro, as próprias instituições nominalmente encarregadas de conservar a inteligibilidade do passado foram incapacitadas para essa tarefa pela disseminação epidêmica da moda ―desconstrucionista‖. (CARVALHO, 2013, p. 259).

Indo além, Olavo de Carvalho não considera artistas populares como intelectuais. Enxergá-los dessa forma, representaria um rebaixamento no nível de exigência. Segundo esse ponto de vista, um manifesto, típico instrumento de engajamento político utilizado por intelectuais em defesa de suas convicções (BOBBIO, 1997), não possuiria legitimidade quando elaborado por um roqueiro.

O total domínio da cultura por uma corrente política, qualquer que seja, constitui já um mal em si. Mas o que aconteceu no Brasil foi muito mais grave: 1) Aquele domínio implicava, desde logo, o rebaixamento proposital do nível de exigência, em vista da ampliação semântica do termo 'intelectual', que no contexto gramsciano abrange a totalidade dos indivíduos, com qualquer nível de instrução ou QI, que possam atuar na propaganda ideológica. Daí derivou a promoção de sambistas, roqueiros, publicitários e strip-teasers ao estatuto de 'intelectuais', que resultou, em última análise, nesse descalabro da promoção do sr. Gilberto Gil ao cargo de ministro 'da cultura'. (CARVALHO, 2013, p. 275).

Ao contrário, entende como um erro a inclusão de artistas populares na categoria de intelectuais. O que não impediu, entretanto, que Lobão tivesse suas ideias acolhidas e divulgadas por Olavo de Carvalho, numa aparente concessão em benefício do objetivo comum. O mesmo raciocínio pode ser estendido à análise da fala de Reinaldo Azevedo. Para o colunista, a atividade reflexiva não integra as atribuições de um artista, tendo o músico extrapolado sua função social ao elaborar as ideias apresentadas no Manifesto. Além disso, acredita que o fato de encontrar em Lobão um defensor de seu ponto de vista, e não em verdadeiros intelectuais, demonstra a decadência do pensamento brasileiro. 130

Quando um cantor e compositor enxerga a evidência que os intelectuais do complexo Pucusp se negam a ver, algo está muito errado no… Complexo Pucusp e no país. Não que um roqueiro esteja impedido de ter essa visão da realidade e de fazer avaliações sensatas. Mas convenham: um artista, em essência, é pago para divertir e para se divertir. Eu ainda acredito que a função primeira da arte é a fruição. Com mais elaboração em alguns casos, com menos em outros, acho que é a gratuidade do belo (ainda que do ―belo horrível‖) o diferencial da dimensão estética. O que quero dizer é que Lobão pode, mas não é obrigado, a pensar. A zerda no Brasil é que os intelectuais, estes sim, estão obrigados a pensar, mas, no momento, não podem porque se tornaram meros esbirros do poder. (AZEVEDO, 2013)256.

4.3 A atuação política na internet Com o intuito de difundir suas crenças políticas, Lobão faz uso frequente das redes sociais. Dentre elas, a utilizada com maior assiduidade pelo músico para manifestar sua insatisfação com a esquerda e, especialmente, com o Partido dos Trabalhadores e seus representantes é o Twitter. Por esse motivo, a análise das postagens de Lobão auxilia na compreensão do posicionamento adotado pelo músico nos últimos anos. O Twitter funciona como uma ferramenta de envio e recebimento de mensagens de texto de até 140 caracteres. As postagens do músico em seu perfil são emitidas diretamente para seus 317 mil seguidores, podendo assumir uma propagação mais difusa, conforme suas mensagens são replicadas. A análise do conteúdo produzido por Lobão se restringiu às mensagens que mencionam o Partido dos Trabalhadores, a presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula, no período de fevereiro de 2009 – data de criação de sua conta – a dezembro de 2015. Durante o primeiro ano, Lobão não utilizou a ferramenta para falar sobre os assuntos pesquisados. Somente em fevereiro de 2010, um ano após a criação de sua página, começou a emitir opiniões criticando o partido e seus políticos. A respeito de Dilma, iniciou suas postagens com ataques pessoais, resvalando no machismo, como quando publicou a seguinte opinião: ―observando-a severamente, concluo que nem para assistente de secretária eu a contrataria‖257. Sobre Lula afirmou: ―Só no Brasil mesmo pra ter um cara como Lula em alta, depois de oito anos de roubalheiras, incompetência e orgulho da própria precariedade‖258. Os comentários sobre o PT foram direcionados principalmente às políticas culturais adotadas pelo partido, que, em sua opinião, favoreceram gêneros como o sertanejo e o axé, em detrimento do rock. ―O PT é o

256 AZEVEDO, Reinaldo. Lobão descasca , Dilma, o PT e mais um pouco. E acontece o óbvio: vira alvo da Al Qaeda eletrônica nas redes sociais. Veja. 02 mai. 2013. Disponível em: Acesso em: 17 fev. 2016. 257 Comentário postado no perfil @lobaoeletrico em 31 out. 2010. 258 Comentário postado no perfil @lobaoeletrico em 11 mar. 2010. 131

túmulo do roquenrou e da liberdade de expressão... e olha que já fiz campanha pro PT por uns 15 anos seguidos!‖259. No contexto de eleições presidenciais, procura, a princípio, desvincular-se da polarização existente entre PT e PSDB, criticando ambos os partidos e seus candidatos. ―Triste é sair de casa pra votar na Dilma ou no Serra ou em qualquer um desses aí!!‖260. Sem muito entusiasmo, entretanto, manifestaria em seguida sua predileção pelo candidato tucano: ―Vou votar no Serra só porque a Dilma é o fim de todas as picadas. Com essa reviravolta sou capaz de ir até o Rio votar‖261. Após a vitória da candidata petista, Lobão permaneceria um longo período sem abordar o assunto. Postou apenas dois comentários sobre Dilma ao longo do ano de 2011, aliviando o tom das críticas: ―Olha... taí... eu dei um refresco na Dilma... acabei me emocionando... uma mulé na presidência (mulé é péssimo!)‖262 e ―Olha... tô gostando de ver a Dilma‖263. No segundo semestre de 2012, retomaria definitivamente as pautas políticas e a hostilidade em relação à Dilma, ao Lula e ao PT. Os ataques se basearam principalmente nas denúncias de corrupção envolvendo o partido e seus aliados, como quando afirma: ―PT só tem bandido‖264. Com o fim das eleições, voltaria a criticar o PSDB utilizando como argumento a proximidade programática entre os partidos: ―PT e PSDB são a mesmíssima merda e se odeiam somente porque dois bicudos não se beijam‖265. É possível observar a intensificação dos comentários políticos de Lobão a partir de 2013. Com sistemáticas manifestações de desapreço ao PT, replica em seu perfil notícias acusando os políticos do partido de corrupção, com destaque para o conteúdo da revista Veja e de seus colunistas Reinaldo Azevedo e Rodrigo Constantino. No mesmo sentido, repercute as denúncias constantes no livro Assassinato de Reputações, de Romeu Tuma Júnior, que em sua opinião ―tem provas para derrubar uns 20 governos do PT‖. Além da corrupção, o partido é criticado por Lobão nas redes sociais por sua relação com os governos de esquerda na América Latina. O chamado ‗bolivarianismo‘ é motivo de diversos comentários, como o que busca associar a política brasileira à venezuelana: ―Ditadura quem quer é o PT com seus projetos bolivarianos. Olhe o passo-a-passo chavista na e compare‖266. Outro ponto de destaque em suas postagens é a defesa da criação de um movimento articulado de oposição ao PT. Propõe a unificação das diversas correntes em torno da pauta antipetista, para que seja

259 Comentário postado no perfil @lobaoeletrico em 10 mar. 2010. 260 Comentário postado no perfil @lobaoeletrico em 16 set. 2010. 261 Comentário postado no perfil @lobaoeletrico em 16 out. 2010. 262 Comentário postado no perfil @lobaoeletrico em 19 fev. 2011. 263 Comentário postado no perfil @lobaoeletrico em 19 mar. 2011. 264 Comentário postado no perfil @lobaoeletrico em 15 set. 2012. 265 Comentário postado no perfil @lobaoeletrico em 27 ago. 2012. 266 Comentário postado no perfil @lobaoeletrico em 03 nov. 2014. 132

possível retirar o partido do poder. ―Se houvesse um movimento pra fazer uma agenda contra o PT eu estava dentro na hora. Esse sim é o primeiro motivo‖267. Em ano de disputa eleitoral, Lobão foi progressivamente abandonando as críticas ao PSDB, para apoiar novamente seu candidato à Presidência da República, alegando ser essa a única forma de derrotar o PT. ―Temos que votar no PSDB. Não há outra saída. Se não votarmos, é o mesmo que votar no PT‖268. Os comentários anti-PT são intensificados diante da possibilidade de vitória da oposição nas urnas. Focadas nas críticas ao partido, as postagens de Lobão revelam a inexistência de proposições para o futuro político brasileiro. ―Dilma e PT têm que cair! O resto é detalhe. Aécio neles!‖269. Mesmo após a vitória do PT nas eleições, não abandonou seu objetivo político, apoiando o movimento que pedia o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Quatro dias após a reeleição da presidente, já convocava seu público para as manifestações: ―sábado quero ver e abraçar todo mundo na Paulista!!!! Impeachment Dilma já!!!‖270. A partir de então, o tema do impeachment de Dilma passou a ser recorrente nos comentários de Lobão. Durante o ano de 2015, prosseguiria em suas críticas ao partido, à corrupção, ao bolivarianismo, às qualidades pessoais da presidente e de seus eleitores. Além da revista Veja, passa a replicar com frequência o conteúdo do site O antagonista com denúncias contra o governo. Criado em 2015, por Diogo Mainardi e Mario Sabino, ambos ex- funcionários de Veja, o site foi criado, conforme revelam na própria página, com a intenção de fazer oposição ao PT, visando atingir um público politicamente identificado com a direita271. Entre as notícias do site, é possível encontrar chamadas convocando o público para as manifestações pelo impeachment da presidente (O ANTAGONISTA, 2016)272. O mote das postagens de Lobão continuou sendo o antipetismo: ―Só para ficar registrado aqui! Nós vamos expulsar essa senhora do palácio do planalto e o PT da vida pública‖273.

4.3.1 Os hangouts A tão pretendida formação de um movimento coordenado de oposição ao Partido dos Trabalhadores se tornou mais factível a partir da realização de hangouts. A ferramenta de

267 Comentário postado no perfil @lobaoeletrico em 15 jun. 2013. 268 Comentário postado no perfil @lobaoeletrico em 19 jun. 2014. 269 Comentário postado no perfil @lobaoeletrico em 04 out. 2014. 270 Comentário postado no perfil @lobaoeletrico em 30 out. 2014. 271 MAINARDI, Diogo; SABINO, Mario. Diogo Mainardi + Mario Sabino, os antagonistas. O Antagonista. Disponível em: Acesso em: 06 abr. 2016. 272 O ANTAGONISTA. Final de Dilma Rousseff. Disponível em: < http://www.oantagonista.com/posts/final-de- dilma-rousseff> Acesso em: 06 abr. 2016. 273 Comentário postado no perfil @lobaoeletrico em 07 fev. 2014. 133

videoconferência, que permite gravar e transmitir conteúdo ao vivo, é utilizada por Lobão com a finalidade ―de divulgação e aperfeiçoamento de ideias, alianças e troca de preciosas informações‖ entre seus aliados (LOBÃO, 2015, p. 80). Desde agosto de 2013, sistematicamente, o músico conversa com integrantes do movimento de oposição ao PT sobre os fatos políticos atuais, com o objetivo de desenvolver estratégias para retirar o partido do poder274. Ao longo do período, Lobão realizou mais de 40 entrevistas, assim como participou como convidado de outros hangouts realizados com objetivos semelhantes. Já conversaram com o músico: Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino, Joice Hasselmann, Ciro Pessoa, Cláudio Tognolli, Romeu Tuma Júnior, Danilo Gentili, Roger Moreira, Felipe Moura Brasil, Raquel Sheherazade, Luiz Felipe Pondé, Flávio Morgenstern, Martim Vasques da Cunha, Bene Barbosa, Thomas Giulliano, Percival Puggina dentre outros. Com duração média superior a uma hora, as conversas giram em torno de críticas à esquerda, procurando apresentar fatos e argumentos que sustentem o antipetismo defendido pelos seus participantes. Em diversas oportunidades, autores de lançamentos literários que abordam a temática são convidados para expor seus argumentos, com a conversa funcionando para a disseminação de ideias, assim como para a divulgação dos trabalhos. Esquerda Caviar, de Rodrigo Constantino, Assassinato de reputações e Assassinato de Reputações II, de Romeu Tuma Júnior e Cláudio Tognolli, A civilização Ocidental, de Thomas Giulliano e Por trás da Máscara, de Flávio Morgenstern, foram o foco de algumas entrevistas.

4.4 Homologia entre os campos político e musical A relação entre os campos político e artístico marcou a história recente da música brasileira, com a atuação de destaque que artistas e intelectuais exerceram na constituição de uma frente de oposição à Ditadura Militar. O projeto que estabeleceu o que conhecemos hoje por Música Popular Brasileira foi fortemente influenciado pelo pensamento de esquerda. Conceitos como cultura nacional-popular e arte engajada nortearam a produção de músicos ligados ao movimento. Sem perder de vista o contexto de constituição da MPB, Lobão relaciona a ascensão do Partido dos Trabalhadores à manutenção da sigla enquanto gênero de maior prestígio no campo da música popular. A crítica remete à ligação histórica do partido com a esquerda e ao fato de Gilberto Gil ter assumido o Ministério da Cultura, em 2003. ―Ele (Lula) colocou a

274 As entrevistas realizadas por Lobão estão disponíveis em: . Acesso em: 25 mar. 2016. 134

raposa no galinheiro e, de fato, para a música independente e para quem não era de sua turma foi um desastre‖ (LOBÃO, 2013, p. 127/128). Importante destacar que a chegada do PT ao poder e de Gilberto Gil ao ministério coincide com o momento em que Lobão empreendia a revista Outracoisa. Otimista quanto ao desenvolvimento do projeto, Lobão não demonstrou, a princípio, descontentamento com a gestão da cultura brasileira. Sobre a atuação de Gil, afirmou: ―o ministério tem se empenhado muito em estreitar relações mais fortes com os artistas em geral e isso é fundamental. Estamos torcendo muito para que o ministro consiga desenvolver os seus projetos ao longo do mandato‖ (BRITO, 2003)275. Quando o mercado alternativo deixou de impulsionar sua carreira, o posicionamento se modificaria. Vieram as críticas, com Lobão acusando o ministro de beneficiar colegas consagrados através da Lei Rouanet, em detrimento de uma política que apoiasse os músicos independentes. Em seu entendimento, a política do ministério contribuiu para o enfraquecimento da cena. Além disso, atribuiu à gestão do músico baiano o fortalecimento comercial de gêneros como o pagode, o axé e o sertanejo.

Na gestão do Gil tinha projeto para a Vanessa da Mata, que é da Sony, Ivete Sangalo toda hora, Cláudia Leite toda hora, Carlinhos Brown toda hora, Caetano. É uma vergonha a gestão do Gilberto Gil. (…) E outra coisa que as pessoas não se lembram, é que em 2002 na hora que ele entrou, nós estávamos conseguindo refazer o cenário da música independente, o pagode tinha se retraído, o axé voltou para Bahia, o sertanejo voltou pro campo. De repente, não mais que de repente o que aconteceu: a revitalização de todos esses segmentos. Estava lá o Sr. Gilberto Gil dando trela, milhões e milhões distribuídos para todo mundo. (LOBÃO, 2011)276.

Para compreender as questões em jogo no depoimento de Lobão, é preciso destacar que a construção social do papel desempenhado por artistas faz com que eles sejam comumente associados aos valores de esquerda. Conforme aponta Bourdieu (1996a), ao tratar do processo que possibilitou a autonomia, mesmo que relativa, do campo artístico frente aos outros campos de poder (econômico, político, religioso), o século XIX presenciou uma mudança radical na forma de compreender a arte e a função do artista na sociedade, culminando na constituição dos valores artísticos em oposição aos valores burgueses. Em contraposição ao anti-intelectualismo da burguesia em ascensão, a figura do artista passou a exigir um

275 BRITO, Hagamenon. Lobão lança nova revista com CD, a "Outracoisa". Terra. 12 nov. 2003. Disponível em: Acesso em: 12 ago. 2015 276 Entrevista para a rádio CBN em 2011. Disponível em: Acesso em: 16 de abril de 2015. 135

distanciamento em relação aos valores dominantes. O surgimento da boêmia, com todo o seu caráter de contestação da ordem social vigente, reforçou o imaginário do artista independente, que não se submete aos jogos de poder em busca do sucesso a qualquer preço. Procurando demonstrar que os músicos citados utilizam recursos governamentais para desenvolver seus trabalhos, Lobão empreende uma tentativa de atingir a autonomia artística de seus adversários, ao aproximá-los dos valores dominantes. Agindo dessa forma, além de enfraquecer simbolicamente os músicos, procura destacar sua posição de artista independente, que não se submente ao poder e suas facilidades. Através de sua fala, é possível observar também a tentativa de atribuir o fim de sua carreira independente à política cultural do governo petista. O músico utiliza, assim, questões inerentes ao campo político para justificar os fracassos artísticos. Quando afirma que ―essa geração de 64 (...) vai cair quando cair o PT‖ (LOBÃO, 2015)277, demonstra acreditar na premissa de que transformações internas no campo podem derivar de transformações externas, sendo, dessa forma, as rupturas políticas capazes de alterar as relações de força estabelecidas no campo artístico (BOURDIEU, 1996a, p. 290). Em momentos anteriores, o músico desenvolveu argumento semelhante, procurando destacar a influência da política na produção musical. Em 1988, afirmou que, ―analisando historicamente, você vê que o período de qualidade das coisas depende muito de uma administração governamental eficaz (...) A música popular brasileira hoje tem uma característica de diluição‖ (JORNAL HOJE, 1988)278. Segundo Bourdieu (1996a), quanto mais baixa a posição ocupada pelo artista na hierarquia interna do campo maior é a probabilidade dele recorrer a recursos externos na resolução de conflitos internos. Maior também é a possibilidade de que se submeta às exigências de poderes como Estado, partido, economia e jornalismo, para resolver questões inerentes ao campo artístico. Nesse sentido, a fragilidade da carreira de Lobão diante da impossibilidade de continuar independente e permanecer no mainstream, após o fraco desempenho comercial dos trabalhos lançados em 2001 e 2005, potencializada pelas baixas vendas do Acústico MTV, pode ajudar a compreender a adesão de Lobão à direita, bem como a preponderância que os assuntos políticos assumiram em sua carreira.

277 LOBÃO. Lobão, Joice Hasselmann e Rodrigo Constantino: HANGOUT. 2 dez 2015. Disponível em: Acesso em: 20 dez. 2015. 278 Entrevistado por Leda Nagle, para o Jornal Hoje. Disponível em: Acesso em: 21 de nov. 2015.

136

Outro aspecto relevante sobre a relação evocada por Lobão entre os campos político e artístico é a justificativa apresentada para se defender das acusações de incoerência, devido à sua guinada política. Ao integrar um grupo que compartilha interesses semelhantes aos dos representantes do poder econômico, Lobão abandonou, definitivamente, sua imagem de artista que se opõem aos valores dominantes. O alinhamento de objetivos entre o movimento antipetista e os representantes do poder econômico fica evidente na fala de Rodrigo Constantino, em um hangout promovido pelo Instituto Liberal com Lobão, ao revelar a classe que possui maior interesse nas ideias providas por seu instituto e que, por esse motivo, deveria contribuir de forma mais incisiva para o projeto de disseminação das ideias liberais:

Estamos fazendo este tipo de hangout justamente para levar uma mensagem para mais gente. Contribuam, colaborem, entrem no site, ajudem a financiar essa causa, porque a gente precisa disto também, né? Tem uma turma da elite que gosta muito de criticar tudo e todos e não faz nada: não dá a cara a tapa, não ajuda a escrever, não ajuda a financiar, não dá a sua cota em prol de um país melhor e acha que vai cair do céu a solução. Não funciona assim. Tem que arregaçar as mangas e trabalhar. Estamos aqui para isso. (CONSTANTINO, 2014)279.

Lobão, entretanto, nega a incoerência de sua guinada política, justificando a associação com os direitistas como um ato de ‗rebeldia‘, de quem enfrenta o poder político estabelecido. Sobre os artistas e intelectuais apoiadores e/ou beneficiários das políticas públicas do PT, afirma: E daí a inversão dos fatos: vocês são os chapas-brancas! Vocês são os militantes e patrulheiros ideológicos de plantão! Vocês se locupletam com verbas públicas! Vocês são a força de engenharia social de um governo corrupto e incompetente e isso é muito feio, pra não entrar muito fundo na questão. O rebelde aqui sou eu, companheiro. (LOBÃO, 2015, p. 43).

Tal raciocínio também está presente nos versos finais da canção Os Vulneráveis, de seu último trabalho: A incoerência de quem fala Depende de quem vai ouvir Por isso evito os rebanhos E os donos do poder (LOBÃO, 2016)280

Todas as idas e vindas dentro do campo artístico e político são justificadas pelo músico como decorrentes da liberdade de posicionamento que a figura do artista lhe confere.

279 Hangout do Instituto Liberal: Rodrigo Constantino (presidente do instituto), Paulo Figueiredo e Bernardo Santoro (diretores do instituto) sabatinam Lobão. 28 set. 2014. Disponível em: Acesso em: 07 mar. 2016. 280 LOBÃO. Os Vulneráveis. In: LOBÃO. O Rigor e a Misericórdia. U.P. Edições, 2016. 1 CD. Faixa 2. 137

Esquerda ou direita? Rock ou MPB? Grandes gravadoras ou mercado independente? Lobão se considera livre para transitar entre esses polos, afirmando não pertencer efetivamente a nenhum deles.

4.5 A indeterminação artística e política

Penso que há várias síndromes de um artista brasileiro nesse sentido: ou você reage a essa colonização e se torna um ‗ariano suassunista‘, ou absorve tudo de maneira indiscriminada. Vejo várias falhas nesses dois modelos, e procuro transitar entre os dois. Eu fiquei no meio. (COMIN; FERNANDES, 2005, p. 185).

A última frase do trecho em destaque funciona como uma síntese para compreender a trajetória artística de Lobão. Alternando momentos de ruptura e de adesão à MPB, é possível afirmar que sua obra foi marcada pela relação conflituosa com a tradição da música brasileira. O gênero consolidado nos anos 60 privilegiou os elementos nacionais, cujo contraponto seria o rock e sua informação universal. O projeto musical de Lobão teve como referência os valores consolidados pela MPB, fosse com o intuito de superá-los, através do rock, ou de pertencer à sigla. No início dos anos 80, em consonância com o movimento roqueiro que buscava se estabelecer, o músico adotou o discurso de ruptura com a MPB. Os jovens artistas defendiam uma produção simples e direta, inspirada em bandas estrangeiras, em contraposição ao suposto preciosismo dos consagrados músicos brasileiros. Lutavam para modificar os parâmetros de apreciação da música popular, em que a MPB era sinônimo de produção de qualidade. Após as primeiras conquistas, com o rock estabelecido comercialmente no país, os artistas procuraram consolidar suas carreiras e alcançar prestígio. Para isso, era necessário se destacar em meio à profusão de bandas que disputavam espaço no mercado. Em busca de legitimidade, os músicos passaram a agregar novas sonoridades ao rock, dentre eles Lobão, que, com o disco O rock errou, estabeleceu um diálogo com o samba e com elementos da MPB. A fase marca um período de aproximação entre os roqueiros e os artistas de MPB, com os jovens músicos abandonando o discurso de ruptura. Lobão inicia aí uma tentativa de se desvincular do movimento forjado nos anos 80. Acreditando que o rock ocupava um lugar desvalorizado na cultura nacional, procurou evitar o rótulo de roqueiro, tido como depreciativo. A MPB deixaria de ser o foco das críticas de Lobão, com o músico passando a atacar seus colegas de geração. Começaria, assim, uma batalha simbólica na tentativa de desqualificar os trabalhos produzidos pelos roqueiros – em 138

especial a obra dos Paralamas do Sucesso – sob o argumento de que não possuíam autenticidade. Ao mesmo tempo, procurava destacar seu trabalho como sinônimo de qualidade, acreditando que sua cultura musical o diferenciava da maioria dos integrantes do movimento. Apesar das críticas ao gênero, Lobão continuaria apostando no rock até 1991. A partir de então, a carreira de Lobão seria marcada por um período de experimentação. Sem perder de vista o objetivo de conquistar uma posição de destaque no campo da MPB, Lobão associou o rock a outros gêneros musicais como tecno, trip hop, bossa nova e samba. Sobre a incursão no universo tecno, afirmou: "uso uma vestimenta inteligentemente provocativa para vasculhar a MPB. Estou provocando aquilo que amo" (SANCHES, 1998)281. A mudança de posicionamento de Lobão demonstra sua tentativa de conquistar espaço dentro de um campo simbolicamente valorizado da música popular. Com a nova proposta de trabalho, o artista priorizou a conquista de um nicho de mercado prestigiado à manutenção de seu público formado durante os anos 80, o qual poderia desagradar com a nova sonoridade adotada em suas músicas. Quando Lobão afirma: "prefiro morrer de fome a ter um cara na plateia que queira ouvir aquela música que começou a namorar a patroa. Esse público não quero" (DEL RÉ, 2005)282, demonstra estar à procura de um público que aprecie sua obra, em detrimento dos fãs que o seguem devido aos sucessos radiofônicos. À medida que aprofundou a experiência, menos sucesso comercial seus trabalhos conquistaram, levando ao término de seus contratos com as grandes gravadoras no final da década. O músico seguiria sua produção de maneira independente, vendendo seus discos em bancas de jornal. O pioneirismo da iniciativa contribuiu para o único sucesso comercial de seus trabalhos lançados após os anos 80. Com as vendas retornando aos antigos patamares nos lançamentos seguintes, o mercado alternativo não constituiu uma via que possibilitasse a continuidade de sua carreira. Privilegiando os aspectos econômicos, o músico retornou ao mainstream para gravar um produto de forte apelo comercial, o Acústico MTV, também sem êxito. Lobão passaria dez anos sem produzir um disco de inéditas. O período, entretanto, marcou a retomada do discurso de ruptura com a MPB. Disposto novamente a atuar em defesa da estética do rock, o músico voltou a atacar os artistas consagrados durante a década de 1960. Além disso, passou a criticar a fase de maior entusiasmo com a sigla, como o disco

281 SANCHES, Pedro Alexandre. Lobão. Folha de S. Paulo. Ilustrada, p. 7. 17 abr. 1998. 282 DEL RÉ, Adriana. A metralhadora Lobão. O Estado de S. Paulo. Caderno 2, p. 31. 20 jun 2005. 139

Nostalgia da modernidade, que atualmente abomina pela reverência à MPB. "Deixei de ouvir rock para estudar choro" (REIS, 2010)283, relata sobre o período. O retorno à posição inicial demonstra como o músico não logrou êxito em sua expectativa de provocar mudanças na música brasileira, bem como de conquistar reconhecimento popular. O músico talentoso, multi-instrumentista, influente na cena musical dos anos 80 encontrava-se, mais de três décadas depois, tendo que procurar novas alternativas para seguir produzindo. Segundo a avaliação do próprio músico, sua carreira artística estava praticamente inviabilizada. "Ser músico no Brasil atualmente, não somente é humilhante, como é impossível. Escritor é difícil, mas dá ainda para fazer. Mas música... eu me vejo atualmente como um músico diletante, eu estou praticamente pagando para tocar" (LOBÃO, 2011)284. A falta de constância das escolhas artísticas de Lobão pode ajudar a compreender o seu relativo fracasso. Mudando de referenciais ao longo da carreira, o músico não privilegiou a consolidação de um público específico. Ao descredenciar o rock para apostar em uma estética mais próxima da MPB, o músico colocou em risco o público formado nos anos 80. Ao abandonar a cena alternativa e retornar ao mainstream, desagradou o público que se vinculou ao artista por suas propostas de independência. No mesmo sentido, é possível afirmar que sua carreira apresenta uma indeterminação quanto à valorização dos aspectos econômicos e a busca por consagração, o que também pode ter contribuído para impedir o êxito de Lobão. Assim como realizou trabalhos em que não há concessão à facilidade, com poucas canções cantaroláveis, radiofônicas (SANCHES, 1998)285, em outros momentos rendeu-se ao mercado, como quando iniciou sua carreira como apresentador de TV. De maneira geral, sua obra se localiza entre os dois polos, sem ser excessivamente comercial nem adquirir alto grau de prestígio no universo mais amplo da música popular brasileira, o que dificultou a consolidação de seu trabalho. No contexto de explosão do rock nos anos 80, suas músicas não possuíam apelo comercial suficiente para atingir a vendagem conquistada por outras bandas do gênero. Quanto optou por apostar em novas sonoridades nos anos 90, era apenas um ‗roqueiro‘ que não conseguia alcançar o resultado necessário para conquistar o almejado prestígio. A crítica do jornalista Mauro Dias revela aspectos interessantes sobre o posicionamento da obra de Lobão e a decorrente dificuldade de estabelecer um público para sua obra:

283 REIS, Luiz Felipe. A volta do estrangeiro. O Globo. Matutina, Segundo Caderno, p. 2. 02 jul. 2010. 284 Entrevista concedida durante o Festival da Mantiqueira. 29 mai. 2011. Disponível em: Acesso em: 14 jan. 2016. 285 SANCHES, Pedro Alexandre. Lobão. Folha de S. Paulo. Ilustrada, p. 7. 17 abr. 1998. 140

O trabalho é inteligente, em todos os níveis: na música, na poesia, nos arranjos, na definição cênica. O lado escatológico - como em Junkie bacana - é inofensivo. Apenas sugere métrica para o coloquial de qualquer criança de cinco anos de idade. Mas é justamente aí que reside o problema. O rock visceral do compositor elabora-se a partir de uma visão de mundo elitizada, adulta. Seu consumidor-padrão seria o jovem adolescente de classe média alta, com tempo para entediar-se no mundo que o cerca e com informações suficientes para sustentar um questionamento. Um modelo, enfim, que tem pouquíssimo a ver com nossa realidade terceiro mundista (...) Pode-se fazer coro com o astro: afinal, quem é que vai pagar por isso?. (DIAS, 1986)286.

Some-se ao fracasso de sua trajetória o fato de seus principais adversários no campo artístico, representados por Caetano Veloso e Herbert Vianna, possuírem carreiras consolidadas simbólica e comercialmente. Acreditando merecer maior proeminência do que a alcançada, o músico desenvolveu um ressentimento pelo panorama musical, que se estenderia para outros campos, como o político. Sua avaliação da conjuntura atual permite confirmar a decepção. Para Lobão, vivemos na ―Terra do Nunca em que nada leva a lugar nenhum. A vítima vira infratora, a incompetência é vendida como prosperidade, o obtuso é virtuoso e os medíocres são os grandes vencedores. Aqui, só a mamata é levada a sério‖ (LOBÃO, 2014)287. Conforme aponta Bourdieu (1996a), o conservadorismo estaria diretamente relacionado ao ressentimento, à ambição frustrada, o que ajuda a compreender o posicionamento político atual de Lobão.

O ressentimento é uma revolta submissa. A decepção, pela ambição que nela se trai, constitui uma confissão de reconhecimento. O conservadorismo nunca se enganou nestas matérias: sabe ver aqui a melhor homenagem que é possível prestar-se à ordem social, a do despeito e da ambição frustrada; como sabe detectar a verdade de mais do que uma revolta juvenil na trajetória que conduz da boêmia revoltada da adolescência ao conservadorismo desenganado ou ao fanatismo reacionário da idade madura. (BOURDIEU, 1996a, p. 38).

286 DIAS, Mauro. Uma proposta inteligente que cai no vazio. O Globo. 18 jul. 1986. 287 LOBÃO. Cenas de aeroporto. Veja. Edição 2364. 12 mar. 2014. 141

5 “QUEM É QUE VAI ANUNCIAR A PRÓXIMA ATRAÇÃO?”

―E mais uma vez‚ quem sabe‚ Eu altere os meus planos‖ (LOBÃO, 2005)288

Seguindo os apontamentos de Norbert Elias, não é possível compreender a trajetória de Lobão e suas guinadas sem considerar o significado de realização e de fracasso segundo seus próprios parâmetros. ―Para se compreender alguém, é preciso conhecer os anseios primordiais que este deseja satisfazer‖ (ELIAS, 1995, p. 13). No caso de Lobão, suas ambições iniciais revelam o desejo de modificar a relação de forças existente no campo musical brasileiro, conquistando, através da produção de canções de rock, o mesmo prestígio destinado aos músicos de MPB na indústria fonográfica. O roqueiro demonstrava confiança na possibilidade de alcançar tal objetivo, expectativa justificada pela posse de capitais econômicos, culturais e sociais. O jovem de classe média alta, antes dos 25 anos, já possuía experiência no meio musical, estando integrado ao ambiente cultural carioca e aos principais personagens do meio roqueiro que despontava. Mesmo com a projeção conquistada durante os anos 80, o rock teve sua perenidade, enquanto projeto artístico relevante, questionada pelos críticos da grande imprensa. O desafio de permanecer no mainstream marcou a trajetória de Lobão a partir de então, com o músico adotando posições cada vez mais radicais no campo. A primeira guinada foi artística, com o músico buscando uma aproximação com a MPB. Sem êxito, a iniciativa não contribuiu para o aumento de seu prestígio, nem para a conquista de um novo público. O resultado levaria à incursão de Lobão no universo independente. O relativo sucesso da empreitada agregou reconhecimento simbólico ao músico, não representando, entretanto, uma alternativa em longo prazo. Sem abdicar do grande mercado, o músico seguiu para posições cada vez mais desvalorizadas no campo cultural. Muito distante de alcançar êxito em seu projeto artístico, a maior preocupação de Lobão passou a envolver os aspectos econômicos de sua carreira. Para isso, o músico precisou manter-se em evidência e conquistar novos nichos de mercado. Sem conseguir visibilidade com seus discos, apostou em outras áreas de atuação, buscando impedir o que, em seu ponto de vista, seria seu maior fracasso: abandonar a fama. Questionado sobre o

288 LOBÃO. Vamos para o espaço! In: LOBÃO. Canções dentro da Noite Escura. L&C Editora e U.P. Edições, 2005. Faixa 6. 142

que faria após o lançamento do disco acústico, o músico demonstrou que, independente do projeto, não desejava retornar ao anonimato.

Estou a fim de fazer uma arruaça – não estou com vontade de pendurar as chuteiras. Quero montar uma banda em que seja apenas baterista – que não componho, cante, nada, só toque bateria. Que estilo será essa banda?, pergunto. Lobônico, claro. Mas quero o anonimato. Retruco: Como assim? Não, anonimato, não, corrige-se prontamente. (PIMENTEL, 2007)289.

A saída foi investir no universo da TV. Perguntado sobre qual seria sua próxima reinvenção, o músico demonstra as preocupações comerciais que passaram a nortear sua carreira: ―Não sei, as coisas vêm no vai-da-valsa. Entrei na MTV, meu público agora tem 13 anos de idade. Sou esperto, não sou mau caráter. Vou agenciar minha vida. Saí da MTV no final do ano, preciso gravar meu disco, acho que esse livro vai dar um filme‖ (SANCHES, 2011)290. A despeito de seu envolvimento político, da atuação como apresentador de TV, da investida como escritor, há que se considerar que o que move a carreira de Lobão é a música. Quando articula pensamentos políticos, dificilmente consegue fazê-lo sem levar em conta as questões envolvidas no campo cultural. Seja no conteúdo, ora centrado nos questionamentos às políticas públicas para a área ora no ataque aos artistas ligados ao movimento de esquerda, seja na forma, a exemplo das diversas canções de temática política compostas nos últimos anos. Apesar da posição desvantajosa e da frustração no campo musical, Lobão demonstra disposição em continuar perseguindo suas ambições. ―Parece que está tudo ainda por fazer. Eu penso que o grosso do meu trabalho ainda não foi posto para fora. Eu tenho feito, hoje, 20% do que quero fazer‖ (AGUIAR, 2008)291. Sem desistir de ter sua obra consagrada, acredita ainda ser possível alcançar o auge de sua carreira. ―Beethoven, Strauss, Jorge Luis Borges, ... Sempre procurei ícones, exemplos, que tiveram o apogeu na senilidade. Não estou tão velho, mas estou ficando melhor. E feliz com isso‖ (PIMENTEL, 2007)292.

289 PIMENTEL, Luiz Cesar. Lobão macho alfa. Rolling Stone. Ed. 08, mai. 2007. Disponível em: Acesso em: 12 set. 2014. 290 SANCHES, Pedro Alexandre. Lobão: a ovelha negra da música brasileira. IG. 11 fev. 2011. Disponível em: Acesso em: 18 out. 2014. 291 AGUIAR, Aurora. "O Rio é o túmulo do rock". Quem Acontece. 28 jul. 2008. Disponível em: Acesso em: 04 dez. 2014. 292 PIMENTEL, Luiz Cesar. Lobão macho alfa. Rolling Stone. Ed. 08, mai. 2007. Disponível em: Acesso em: 12 set. 2014. 143

Diante do fracasso parcial, Lobão parece acreditar que, na tênue linha que separa o artista falhado do artista maldito, a segunda opção prevalecerá.

Não é com certeza fácil, nem sequer para o próprio criador na intimidade de sua experiência, discernir o que separa o artista falhado, boêmio, que prolonga a revolta adolescente para lá do limite sociologicamente assinalado, do ‗artista maldito‘, vítima provisória da reação suscitada pela revolução simbólica que opera. Enquanto o novo princípio de legitimidade, que permite ver na maldição presente um sinal da eleição futura, não for reconhecido por todos, enquanto por conseguinte um novo regime estético não for instaurado no campo, e, para além deste, no próprio campo do poder, o artista herético fica votado a uma extraordinária incerteza, princípio de uma tensão terrível. (BOURDIEU, 1996a, p. 85).

A canção A gente vai se amar, que encerra os álbuns Canções dentro da noite escura e Acústico MTV, ajuda a compreender os sentimentos do músico no período em que sua trajetória passava por transformações, podendo ser interpretada como uma expectativa de redenção futura de sua trajetória artística . Diz a letra:

Não demora por favor Que eu só quero te encontrar Pra te dar de volta Tudo o que eu sonhei

Nesse tempo que eu passei A viver depois do fim Eu me abrigo nessa noite escura

E as derrotas que eu embelezei Minhas ilhas flutuando pelo ar E as histórias que eu ainda vou contar

E depois da escuridão Haverá um lindo sol E a gente vai se amar E a gente vai se amar E a gente vai se amar (LOBÃO, 2005)293

Na música, Lobão contrapõe ‗a noite escura‘ a ‗um lindo sol‘, podendo o primeiro elemento ser interpretado como o presente e o segundo como suas esperanças quanto ao futuro. Dessa forma, as dificuldades representadas pelos versos sombrios da segunda estrofe seriam superadas, levando ao final redentor da canção. A expectativa de redenção artística no futuro não pode ser completamente descartada, tendo em vista o reconhecimento que o músico angariou durante sua carreira entre a crítica

293 LOBÃO. A gente vai se amar. In: LOBÃO. Canções dentro da Noite Escura. L&C Editora e U.P. Edições, 2005. Faixa 13. 144

musical e os próprios pares. A fala do produtor Liminha, que muitas vezes foi criticado por Lobão, ajuda a compreender a opinião que uma parte da classe artística possui sobre o músico: ―Às vezes eu acho que ele não usa a inteligência muito a favor dele. Ele não consegue às vezes se segurar, ele às vezes fala algumas coisas que não precisava falar, para não se comprometer. Mas realmente eu gosto do Lobão, acho ele muito talentoso‖ (SALLVA; JANNARELLI, 2011)294. Além disso, a despeito de seu proclamado ―exílio artístico‖, seu novo disco foi amplamente divulgado pela imprensa. Os comentários da crítica especializada a respeito do trabalho em grande medida reforçam a qualidade artística do músico. A crítica do jornal O Globo descreveu Lobão como ―dramático, eventualmente afetado, furiosamente talentoso‖ e que ―O rigor e a misericórdia tem filosofia, palavras e absoluta musicalidade do astro do rock‖ (ARAUJO, 2016)295. A crítica da Folha de S. Paulo destacou as diversas referências musicais utilizadas na obra, que resultaram em um "trabalho inclassificável", sua originalidade, "a mistura soa fresca, sem sinal de cópia ou pastiche" e a perenidade do disco, que "provavelmente continuará ótimo daqui a dez anos" (MENEZES, 2016)296. A análise da revista Época enfatizou o contexto político em que a carreira de Lobão se insere:

Essa faceta de ativista político eclipsou o mérito musical de Lobão, um roqueiro inventivo que foi essencial para a reconfiguração do gênero nos anos 1980. Pois é esse aspecto, negligenciado, que ele retoma agora com O rigor e a misericórdia (...) No álbum, Lobão reitera seu compromisso com a inovação e se esmera em experimentações bem-sucedidas. (GARCIA, 2016)297.

A maior dificuldade de encerrar a análise de uma trajetória em curso é a indeterminação de seu desfecho. Não há como assegurar os efeitos do atual posicionamento político de Lobão. Terá ele comprometido sua trajetória artística ao privilegiar uma aliança com representantes do poder econômico e da política de direita? Ou terá Lobão encontrado mais uma saída, em meio às adversidades, para seguir produzindo para o grande público, o que de outra forma não aconteceria? Certa, porém, é a visibilidade midiática conquistada pelo músico

294 SALLVA, Fábio; JANNARELLI, Rafael. Lobão – Não Há Estilo Sem Fracasso. 2011. Disponível em: Acesso em: 14 abr. 2016. 295 ARAUJO, Bernardo. Crítica: Disco de Lobão tem fantasmagórico virtuosismo. O Globo. 25 nov. 2015. Disponível em: Acesso em: 14 abr. 2016. 296 MENEZES, Thales de. Do heavy metal a baladas, disco de Lobão transborda boas referências. Folha de S. Paulo. 05 abr. 2016. Disponível em: Acesso em: 14 abr. 2016. 297 GARCIA, Sérgio. Lobão renasce com elegância. Época. 11 abr. 2016. Disponível em: Acesso em: 14 abr. 2016. 145

devido às polêmicas recentes. Lobão demonstrou em toda sua trajetória a habilidade de conjugar sua produção musical a outras atividades que o mantiveram em evidência ao longo dos últimos 40 anos. Seja como escritor, agitador cultural da cena musical independente, representante de interesses classistas ou apresentador, o nome de Lobão segue sendo lembrado. Finalizo, dessa forma, com o questionamento feito na canção El Desdichado II, que o músico define como uma ‗autopsicografia‘ (LOBÃO; TOGNOLLI, 2010) e que sintetiza a tônica de sua tortuosa trajetória:

Eu sou a Contramão da contradição Que se entrega a qualquer deus-novo-embrião pra traficar O meu futuro por um inferno mais tranquilo

Eu sou Nada e é isso que me convém Eu sou o sub-do-mundo e o que será Que me detém? (LOBÃO, 1999)298

298 LOBÃO. El Desdichado II. In: LOBÃO. A Vida é Doce. Net Records, MID Produções e U.P. Edições, 1999. 1 CD. Faixa 1. 146

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SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: Por uma história política. Organização: René Rémond. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003. p. 231-269.

TOGNOLLI, Cláudio. Mídias, máfias e rock'n'roll: bastidores do jornalismo e outros segredos indispensáveis para estudantes, profissionais e leitores. São Paulo: Editora do Bispo, 2007.

VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

VICENTE, Eduardo. Segmentação e consumo: a produção fonográfica brasileira - 1965 - 1999. ArtCultura, Uberlândia, v. 10, n. 16, p. 103-121, jan./jun. 2008.

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FONTES UTILIZADAS

Documentários em DVD

TROPICÁLIA. Direção: Marcelo Machado. Produção: Denise Gomes e Paula Cosenza. Brasil: Bossa Nova Films e Imagem Filmes, 2012. 87 min.

UMA noite em 67. Direção: Renato Terra e Ricardo Calil. Produção: João Moreira Salles e Maurício Andrade Ramos. Brasil: Video Filmes e Record Entretenimento, 2010. 85 min.

Discografia

Lobão

Cena de Cinema. RCA Victor, 1982.

Ronaldo foi pra Guerra. RCA Victor, 1984.

O Rock Errou. RCA Victor, 1986.

Vida Bandida. RCA Victor, 1987.

Cuidado! RCA Victor, 1988.

Sob o Sol de Parador. RCA Victor, 1989.

Vivo. RCA Victor, 1990.

O Inferno é Fogo. RCA Victor, 1991.

Nostalgia da Modernidade. Virgin, 1995.

Noite. MCA Records, 1998.

A Vida é Doce. Net Records, MID Produções e U.P. Edições, 1999.

Uma Odisséia no Universo Paralelo. Pop Corn Records e U.P. Edições, 2001.

Canções dentro da Noite Escura. L&C Editora e U.P. Edições, 2005.

Acústico MTV. Sony/BMG, 2007.

Lobão Elétrico: Lino, Sexy & Brutal. Deckdisc e U.P. Edições, 2012.

O Rigor e a Misericórdia. U.P. Edições, 2015.