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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE HISTÓRIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA

ISAAC HARILLO JEREZ

O OCASO DO FUTURO: INDÍCIOS DO FIM DO CRONÓTOPO MODERNO NOS CINEMAS DE ALEJANDRO GONZALEZ IÑÁRRITU E CHRISTOPHER NOLAN EM PERSPECTIVA COMPARADA

Rio de Janeiro

2018

ISAAC HARILLO JEREZ

O OCASO DO FUTURO: INDÍCIOS DO FIM DO CRONÓTOPO MODERNO NOS CINEMAS DE ALEJANDRO GONZALEZ IÑÁRRITU E CHRISTOPHER NOLAN EM PERSPECTIVA COMPARADA

Tese apresentada para obtenção do título de Doutor em História Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Orientador: Bruno Sciberras de Carvalho

Co-orientação: Eliska Altmann de Carvalho

Rio de Janeiro

2018

ISAAC HARILLO JEREZ

O OCASO DO FUTURO: INDÍCIOS DO FIM DO CRONÓTOPO MODERNO NOS CINEMAS DE ALEJANDRO GONZALEZ IÑÁRRITU E CHRISTOPHER NOLAN EM PERSPECTIVA COMPARADA

Tese apresentada para obtenção do título de Doutor em História Comparada pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Aprovada em ___ de ______de 2018.

______Bruno Sciberras de Carvalho, Professor Doutor, UFRJ

______José D’Assunção Barros, Professor Doutor, UFRRJ

______Ivo Jose de Aquino Coser, Professor Doutor, UFRJ

______João Alfredo Costa de Campos Melo Júnior, Professor Doutor, UFV

______Debora Breder Barreto, Professora Doutora, UCP

Agradecimentos

Essa jornada de formação, investigação e escrita não seria possível sem a ajuda da minha companheira, Rebeca, que esteve ao meu lado compartilhando os pequenos sucessos e me mantendo firme quando vieram os momentos mais duros. Entre as sombras que se levantam no horizonte de expectativas deste amado país e os momentos de delírio – e luta, uma vez que a educadores como nós não nos bastará sonhar - que me permitem escapar dele, espero sempre encontrar esse refúgio seguro. Agradeço ao Professor Wagner Pereira pela confiança e inestimáveis contribuições nesses primeiros passos, tanto na orientação como enquanto professor. Esta tese tampouco seria possível sem a solidariedade, confiança e compreensão do Professor Bruno Sciberras ao se encarregar da minha orientação, deixando ao longo das suas aulas e dos férteis encontros marcas na minha formação enquanto docente e pesquisador. Agradeço à coorientação da Professora Eliska Altman, com suas importantes indicações e esforço de leitura; ao Professor André Chevitarese pela excelente experiência proporcionada na disciplina de Seminário de História Comparada, assim como a irretocável – e humana - postura acadêmica; à contribuição e confiança do Professor Fábio Lessa na condição de Coordenador do PPGHC, assim como aos Professores Ivo Coser, José D’Assunção, Debora Breder e João Mello que aceitaram fazer parte deste momento tão importante, na condição de membros da banca de defesa. Sou grato ao Programa de Pós-graduação em História Comparada e à CAPES por investirem na minha qualificação e pesquisa por meio de uma bolsa de incentivo, sem a qual tampouco teria chegado até aqui. Espero que outros estudantes tenham a oportunidade que tive, de estudar em instituições públicas de excelência – como a UERJ ou a UFRJ –, com formação gratuita, onde existam condições de desenvolver, entre docentes, discentes e técnicos, o ensino, a pesquisa e a extensão de forma articulada. Agradeço também ao Prof. Marcelo Jasmin por ter me apresentado ao conjunto de reflexões e leituras tão caras à minha pesquisa, para além das estimulantes aulas que me ajudaram a crescer. Neste mesmo sentido não posso deixar de mencionar o papel da Professora Cristina Dias, do Prof. Valter Sinder e do Prof. Carlos Eduardo Rebelo, já que por meio deles descobri o educador que gostaria de me tornar. Por fim, agradeço aos maravilhosos amigos – cada um deles sabe que tem o seu nome aqui, gravado – e aos meus pais, José Botin e Maria Dolores Jerez, por me ajudarem em cada passo, sofrerem com os meus tropeços e festejarem as alegrias que pude lhes dar.

RESUMO

O presente trabalho investiga a construção do tempo no cinema transnacional contemporâneo, mais precisamente algumas das maneiras de produzir, perceber e perceber-se no tempo oferecidas por produtos de entretenimento audiovisual. Inspirado pelos trabalhos de autores como Hans Ulrich Gumbrecht acerca da constituição de uma nova estrutura temporal a partir, ao menos, da segunda metade do século XX, pretendo buscar indícios da desmontagem do “tempo histórico”. Seguindo a estela de Reinhart Koselleck, a tese operacionalizará aportes teórico-metodológicos acerca da linguagem cinematográfica – com especial destaque para os estudos de sobre a narrativa no cinema e de Gilles Lipovetsky sobre o cinema hipermoderno -, de forma a pensar as relações entre “espaço de experiência e horizonte de expectativas” inscritas e produzidas por filmes atuais.

A análise fílmica de seis longas distribuídos em dois dos mais importantes diretores do cinema transnacional, Alejandro Gonzalez Iñárritu e Christopher Nolan, buscará nessas obras indícios da desmontagem do cronótopo moderno - Amores Perros, Babel e The Revenant, de um lado, e Memento, e Interstellar, do outro.

Palavras-chave: Cinema, Narrativa, Temporalidade, Cronótopo e História Comparada.

ABSTRACT

This work investigates construction in contemporary transnational cinema, more precisely some of the ways of producing, perceiving and perceive itself in time on offered audiovisual entertainment products. Inspired by the works of authors such as Hans Ulrich Gumbrecht on the constitution of a new temporal structure starting at least in the second half of the twentieth century, I intend to research indications of the deconstruction of "historical time." Reinhart Koselleck’s path, the thesis will operationalize theoretical-methodological contributions about the cinematographic language - with special emphasis on the studies of David Bordwell on the narrative in the cinema and of Gilles Lipovetsky on the hypermodern cinema - in order to think the relations between "Experience space and horizon of expectations" inscribed and produced by current films.

The film analysis of six feature films distributed in two of the most important directors of the transnational cinema, Alejandro Gonzalez Iñárritu and Christopher Nolan, will seek in their works for indications of deconstruction of the modern chronotope - Amores Perros, Babel and The Revenant, on one hand, and Memento, Inception and Interstellar, on the other.

Keywords: Cinema, Narrative, Temporality, Chronotope and Comparative History.

Sumário INTRODUÇÃO ...... 9 A busca do presente ...... 12 A centralidade do cinema ...... 18 Direção, autoria e recorte ...... 22 CAPÍTULO I - IÑÁRRITU E A INEVITABILIDADE DO REAL ...... 27 1.1 Amores Perros ...... 27 1.1.1 Entrecruzamentos urbanos ...... 34 1.1.2 Da trama à história ...... 36 1.1.3 Refúgios familiares ...... 40 1.2 Babel ...... 45 1.2.1 (frágeis) Conexões em rede ...... 51 1.2.2 Uma narrativa multicultural ...... 57 1.3 O deslocamento do sujeito na narrativa fílmica ...... 62 CAPITULO II - NOLAN E OS LABIRINTOS DA PÓS-MODERNIDADE ...... 66 2.1 Memento ...... 67 2.1.1 Duas tramas em rota de colisão ...... 73 2.1.2 A fragilidade do relato ...... 79 2.2 Inception ...... 82 2.2.1 Sonhos dentro de sonhos ...... 85 2.2.2 Multiplicidade em camadas de profundidade ...... 93 2.3 O passado como a dimensão do presente ...... 100 CAPÍTULO III - IÑÁRRITU, NOLAN E O CINEMA SEM FUTURO ...... 103 3.1 The Revenant ...... 108 3.2 Interstellar ...... 116 3.3 Sem saída, sem entrada ...... 126 Considerações finais ...... 139 REFERENCIAS ...... 145

9

INTRODUÇÃO

O presente trabalho investiga a construção do tempo no cinema transnacional contemporâneo, mais precisamente algumas das maneiras de produzir, perceber e perceber-se no tempo oferecidas por produtos de entretenimento audiovisual. As articulações entre as diversas camadas do passado, presente e futuro; os lugares (papéis) dos sujeitos na construção da trama, do entorno, das trajetórias; os processos de afastamento ou imersão, sentido ou presença1, entendidos em função das estratégias narrativas, de uma pluralidade de canais - como “o olhar da câmera, a organização do décor e da mise-en-scène, emoldurados pelos agenciamentos de imagem e som feitos na montagem2” -, serão investigados por meio da análise fílmica de longas-metragens.

Inspirado pelos trabalhos de autores como Hans Ulrich Gumbrecht acerca da constituição de uma nova estrutura temporal a partir, ao menos, da segunda metade do século XX, pretendo buscar indícios da desmontagem do “tempo histórico” por eles sinalizada3. Seguindo a estela de Reinhart Koselleck, a tese operacionalizará aportes teórico-metodológicos acerca da linguagem cinematográfica – com especial destaque para os estudos de David Bordwell sobre a narrativa no cinema e de Gilles Lipovetsky sobre o “cinema hipermoderno” – ao lado de leituras interdisciplinares sobre a experiência pós-moderna – os ritmos, a(s) espacialidade(s), a multiplicação de pontos de referência e as crises de identidade, representação e reconhecimento típicos desta paisagem transcultural -, de forma a pensar as relações entre “espaço de experiência e horizonte de expectativas” inscritas e produzidas por filmes atuais4.

As profundas relações entre temporalidade e política5 permitirão pensar o lugar da utopia6, da crença assim como da descrença no homem enquanto legítimo fabricador de

1 Em alusão ao par conceitual em: GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010. 2 XAVIER, Ismail. O olhar e a voz: A narração multifocal do cinema e a cifra da História em “São Bernardo”. Literatura e Sociedade. Revista de Teoria Literária e Literatura Comparada, n. 2, p. 130, 1997. 3 Respeitadas as distâncias entre eles. É evidente que conceitos como “cronótopo”, de Gumbrecht, “compressão do espaço-tempo”, de David Harvey, ou “regimes de historicidade”, de François Hartog não são intercambiáveis, assim como existem diferenças importantes entre as concepções de história e tempo nas obras desses autores. 4 Entre os últimos anos da década de noventa e os primeiros anos do século XXI parece se montar um cenário distinto para a produção cinematográfica, tanto pela proliferação de telas e de produtos audiovisuais conexos (games, longas, curtas, animações, seriados), como tão bem discutem Lipovetsky e Serroy em “A Tela Global”, quanto pela intensificação de produções que não estão voltadas para mercados nacionais e resultam da colaboração de agentes de distintas partes do globo. A este período chamo de “atual”. 5 Tão bem estudadas por autores como Hannah Arendt e Reinhart Koselleck. 6 No sentido atribuído por Raymond Willians em “Utopia e Ficção Científica”: WILLIANS, Raymond. Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp, 2011. p. 267-290. 10 cenários futuros. Se a modernidade enquanto auto-referência histórica não pode ser compreendida sem o recurso ao papel e a natureza do sujeito histórico, o tempo, portanto, deverá ser tratado como objeto privilegiado de análise para a investigação sobre seu possível desmantelamento – enquanto auto-referência válida para o presente.

O trabalho confronta modelos teóricos interdisciplinares caros à teoria da história com um restrito grupo de artefatos culturais. Se a escolha pelo cinema como fonte responde tanto à centralidade da imagem no mundo contemporâneo quanto à sua recente expressão transnacional, a obra do mexicano Alejandro Gonzalez Iñárritu e do britânico Christopher Nolan, em particular, estão relacionadas com a representatividade nessa indústria de entretenimento. O sucesso nas bilheterias e entre a crítica especializada; sua importância na renovação da linguagem cinematográfica; e as pretensões de ultrapassar a esfera dos estados nacionais – na produção, na circulação e nas tramas que oferecem – fazem de filmes como Amores Perros, Babel, e The Revenant, no primeiro, ou Memento, Inception e Interstellar, no outro, peças importantes desse complexo mosaico multicultural.

Este trabalho não pretende - nem poderia - esgotar as possibilidades de análise dessas obras. O tratamento das suas formas narrativas será privilegiado por oferecer um fértil caminho para a compreensão das relações entre experiência e expectativa. Trata-se, portanto, de uma pesquisa que parte de questões pertinentes à teoria da história e a estas se dirige, sem negligenciar os principais temas oferecidos por suas tramas, os diálogos com os dilemas do seu tempo; seu lugar enquanto produto de entretenimento; e, claro, como se colocam dentro da própria história do cinema.

A viagem pelos universos e narrativas dessas obras ficcionais7 estará atenta a outra, dos entrecruzamentos dos seus autores: estrangeiros que, por diferentes trajetórias, convergiram para os grandes estúdios e produtoras, do rico e onipresente cinema estadunidense. As histórias e contra-histórias8 destes filmes ajudarão a compreender a importância do cinema no mundo contemporâneo. Contribuições para a história do cinema, para o fazer da história pelo cinema, mas principalmente, para melhor entender o lugar e o papel do próprio saber historiográfico.

7 São bem conhecidas as fragilidades das tentativas de distinguir a ficção da realidade no cinema – assim como na literatura e, para alguns, nas própria narrativa construídas pela história. A distinção entre gêneros como filme documentário e de ficção. Por outro lado, penso ser possível lançar mão deste termo para diferenciar àqueles filmes com pretensão de reconstruir acontecimentos “reais” – por meio da mobilização de versões produzidas por historiadores, recurso a documentos históricos – e aqueles que não, mesmo quando comprometidos com a reconstrução de um cenário verossímil. 8 FERRO, M. Filme: uma contra-análise da sociedade? In: LE GOFF, J.; NORA, P. (Orgs.). História: novos objetos. Trad.: Terezinha Marinho. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976. 11

Estou preocupado aqui com o fim da modernidade e início de uma experiência que não seria mais propriamente moderna. Mas o que queremos dizer com isso? Antiquitas e modernitas; modernidade e pós ou hiper-modernidade; período histórico e pós-histórico; são palavras que expressam “autoconsciência de nosso tempo como época em oposição ao passado9”, como se através delas fosse possível nomear “a despedida de um passado pela autoconsciência histórica de um novo presente10”. A onipresente expressão “mundo moderno”, então, abarca, ao mesmo tempo, ruptura e unidade, na pretensão de caracterizar nostra aetas por meio da oposição a um tempo outro, acabado e superado.

Mas apenas por meio dessa oposição nos depararíamos com tantas modernidades quanto sociedades. “Seríamos então a idade média de uma futura modernidade11”? E a “pós- modernidade, seria algo como uma modernidade ainda mais moderna”12?

Ainda que a reflexão que monta o problema de pesquisa seja devedora de contribuições de autores diversos, como François Hartog, Octavio Paz, David Harvey, Jean-François Lyotard, Niklas Luhmann, Zygmunt Bauman, Hans Robert Jauss, ou Hannah Arendt, o quadro de referências básico para pensar o tema da temporalidade é oferecido por Reinhart Koselleck, principalmente com operacionalização da relação entre “espaço de experiência e horizonte de expectativas”13, da qual surge articulação entre tempo, história (seu sentido, papel e estrutura narrativa) e política. As intuições de Gumbrecht – jamais convertidas em sistema, como bem reclama o autor – e os conceitos presentes em sua obra, tais como as noções de “cronótopo14”; “presente dilatado”, convertido em um “espaço de simultaneidades”; além de outras como “latência”, “presença”, guiarão toda a investigação.

9 JAUSS, Hans Robert. Tradição literária e consciência atual da modernidade. In: Historias de literatura. Rio de Janeiro: Editora Ática. p. 47 10 Ibid., p. 50 11 PAZ, Octavio. La busqueda del presente. Ciudad de Mexico: Vuelta, vol. 170, Janeiro de 1992, p. 12 12 Ibid., p. 12 13 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006. 14 “Gumbrecht toma de empréstimo o conceito de ‘cronótopo’ cunhado por Mikhail Bakhtin no texto "Formas do tempo e do cronótopo no romance: notas para uma poética histórica". Na teoria literária bakthiniana, "cronótopo" é o termo que indica como uma determinada articulação entre tempo e espaço se configura em certos gêneros, autores ou obras literárias específicos. Embora Gumbrecht, como Bakhtin, esteja interessado na historicidade de formas de temporalidade literárias, seu uso do termo "cronótopo" indica, antes de tudo, diferentes tipos de consciência histórica ou experiências da temporalidade e da historicidade da existência humana que variam, eles próprios, historicamente. Parece-me que o conceito de "cronótopo" em Gumbrecht é bastante próximo da categoria de "regimes de historicidade" de François Hartog, já que ambos, em seus diálogos com a teoria da história koselleckiana, estão atentos aos momentos de crise e transformação da experiência histórica do tempo. (MELLO, Luiza Laranjeira da Silva. Resenha. Hans Ulrich Gumbrecht. Depois de 1945: latência como origem do presente. Trad. Ana Isabel Soares. São Paulo, Editora da Unesp, 2014. Tempo soc. vol.27 no.2 São Paulo July/Dec. 2015, p. 339). 12

O amadurecimento desta pesquisa é devedor das leituras da sociologia do cinema de Pierre Sorlin e das contribuições dos trabalhos de Ismail Xavier e Jacques Aumont para a teoria do cinema e a análise fílmica. Mas foi nas reflexões Gilles Lippovetsky sobre a cultura audiovisual nos tempos hipermodernos e nos estudos sobre a narrativa cinematográfica de David Bordwell que encontrei importantes interseções entre o cinema transnacional e a crise da auto-referência moderna.

A busca do presente

La modernidad es una palabra en busca de su significado: ¿es una idea, un espejismo o un momento de la historia? ¿Somos hijos de la modernidad o ella es nuestra creación? Nadie lo sabe a ciencia cierta. Poco importa: la seguimos, la perseguimos. Para mí, en aquellos años, la modernidad se confundía con el presente o, más bien, lo producía: el presente era su flor extrema y última. Mi caso no es único ni excepcional: todos los poetas de nuestra época, desde el período simbolista, fascinados por esa figura a un tiempo magnética y elusiva, han corrido tras ella. El primero fue Baudelaire. El primero también que logró tocarla y así descubrir que no es sino tiempo que se deshace entre las manos. No referiré mis aventuras en la persecusión de la modernidad: son las de casi todos los poetas de nuestro siglo. La modernidad ha sido una pasión universal. Desde 1850 ha sido nuestra diosa y nuestro demonio. En los últimos años se ha pretendido exorcizarla y se habla mucho de la "postmodernidad". ¿Pero qué es la postmodernidad sino una modernidad aún más moderna?

(Octavio Paz, 1990, em seu discurso na Fundação Nobel)

A história do conceito de modernidade realizada por Hans Robert Jauss acena para ao menos duas contribuições para uma melhor compreensão da relação do uso do termo moderno com a autoconsciência de uma época e a forma de ordenação do tempo: a modernidade cada vez deixaria de ganhar sentido na oposição e na referência à um antigo qualquer, mas única e somente na oposição à si mesma – as aceleradas transformações da moda, por exemplo, ou demarcações artísticas e literárias que não durariam mais que uma geração -; a atualidade e fluidez da experiência moderna – a qual o termo moderno em parte faz referência – conviveria, por outro lado, com a percepção da existência de um passado familiar, integrado em nossa experiência e outro “ultrapassado”. 13

Se dessa “dupla natureza” do termo modernidade pretendêssemos extrair um conceito, teríamos que falar de uma época que rompeu com o passado, estando abandonada, desde então, ao movimento acelerado e descontrolado de mudanças, onde nada é estável e tudo lhe escapa – tudo que é sólido desmancha no ar15. Esse conceito fala agora de um tempo que é ontologicamente moderno, seja pelo culto ao novo, à atualidade dos objetos da experiência; seja porque perdeu qualquer outra referencia que não sua própria atualidade – ou seja, a ruptura como princípio confere a unidade e a singularidade da qual uma ideia de época não pode prescindir.

Desde sua história dos conceitos [Begriffsgeschichte], Reinhart Koselleck apontaria para mudanças semânticas que expressariam uma assimetria crescente entre espaço de experiência e horizonte de expectativas16. Usos lingüísticos em torno de conceitos como moderno, modernidade e história, identificariam um desencapsulamento do futuro; a crescente percepção da aceleração do tempo; e o abandono da exemplaridade do passado - o fim do velho topos da historia magistra vitae. A história, por tanto, ganharia os contornos de “um processo sucessivo, linear, e que jamais se repete17”.

Segundo Gumbrecht, a concepção do tempo como “agente natural e inevitável de mudança” solaparia pouco a pouco a validade dos exemplos históricos18. O caráter pedagógico das narrativas passadas acabaria deslocando os esforços para uma nova forma de “aprender com a história”: a “filosofia da História [...] transformou as estruturas do conhecimento sobre o passado, de uma coleção de historias isoladas (ou ‘exemplos’) para uma imagem totalizante da Historia como um movimento que transformaria continuamente as condições estruturais da ação humana19”.

Em meio a uma profunda antropologização do tempo, a sequência determinada pela natureza – o movimento das estrelas e a transposição hereditária de governantes -, cederia espaço para uma marcação propriamente histórica20. A Revolução Francesa pode ser um dos eventos emblemáticos desta passagem: instaurou o inesperado e completamente novo; fez ecoar as promessas de progresso, de um futuro luminoso; universalizou seu conteúdo em “coletivos

15 Como afirmara certa vez Karl Marx. Uma expressão que ganharia um sentido ainda mais sofisticado com Bergson. Ver em HALL, Stuart . A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. 16 KOSELLECK, Reinhart. Op.cit., 2006. 17 PAZ, Octavio. La busqueda del presente. Ciudad de Mexico: Vuelta, vol. 170, Janeiro de 1992, p. 12 18GUMBRECHT, Hans Ulrich. Em 1926: vivendo no limite do tempo. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 460. 19 Ibid., p. 460-461. 20 KOSELLECK, Reinhart. Op.cit.,p. 55. 14 singulares” que se estenderiam para a humanidade inteira – liberdade em face de “liberdades”, por exemplo -; e propôs a reforma de toda a historia e do próprio calendário à luz daquilo que ela inaugurara. Mas, talvez a principal ideia que ela tenha proclamado – e certamente imposto -, é a de que o homem é o senhor do seu destino, ator de uma história que é seu produto e que também o produz21.

Koselleck reconhece a importância do cristianismo na montagem do cronótopo histórico – pela linearidade, irreversibilidade da historia profana; o caminhar em direção à um fim, e a secularização. A percepção de uma aceleração do tempo teria se alimentado tanto da expectativa salvífica quanto da experiência produzida por épocas de crise e da maior dinâmica civilizacional das sociedades industriais22. Mas, o “sol da história [no mundo moderno] se chama ‘futuro’ e o nome do movimento em direção ao futuro é Progresso23”. O sujeito da mudança é, portanto, o homem, ainda que frequentemente tomado em abstrato: enquanto gênero humano, ou enquanto entes coletivos na forma de ocidente, nação, raça, ou até mesmo de “História”.

A aceleração do tempo correspondente as mudanças que tanto desconforto provocaram - dada a perda da continuidade das formas e da validade da experiência -, se desdobraria, na modernidade, na engenhosa combinação do prognóstico racional com a ideia de progresso, o que não só implicou no reconhecimento do “novo”, mas também na esperança de superação dos infortúnios presentes. Uma vez que o futuro passou a ser reconhecido como produto da ação humana, permite-se ao agente a concepção de projetos, a construção do amanhã desejado através da agencia orientada racionalmente. E mesmo quando o futuro imaginado apareceu como destino inexorável, como produto antecipado pelas das “leis da história”, sempre esteve à disposição do homem a possibilidade de acelerá-lo, de interferir em seu ritmo a fim de reduzir sua distância para com o tempo presente.

Como encontramos nas palavras de Arendt em “Entre o passado e futuro”, a teoria científica moderna tinha se tornado “uma hipótese de trabalho que muda conforme os resultados que produz e que depende, para sua validade, não do que ‘revela’, mas do fato de fazer funcionar24”. A história, que desde Vico encontrara sua possibilidade de cognição humana no fato de ser produto dos próprios homens25, “não mais compôs-se de feitos e sofrimentos dos

21 Algo que um século depois ganharia sua máxima expressão pelas mãos de Karl Marx, no conceito de auto-criação humana – um homem que ao criar o mundo recria sua própria humanidade. 22 PEREIRA, Matheus H. F.; Mata, Sergio da. Transformações da experiência do tempo e pluralização do presente. In: Varella, Flavia Florentino. et al. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p 13 23 PAZ, Octavio. Op.cit. p. 12 24 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 68 25 Ibid., p. 88 15 homens [imortalizados pela memória, como na historiografia grega,] e não contou mais a estória de eventos que afetaram a vida dos homens; tornou-se um processo feito pelo homem26”. E em meio a esse deslocamento das “coisas” para os “processos”, que fez das primeiras “subprodutos quase que acidentais” – incluído aqui o próprio homem -, o pensamento teria tentado apropriar- se de passado, presente e futuro como fez com os produtos do fabrico.

A historia e a política ver-se-iam conquistadas no espírito por uma forma de pensar que em muito se assemelha ao que já as tinha dominado em todo o resto: a racionalidade técnica, arte de realização de fins através dos meios mais eficientes, regia, desde então, o trabalho na fabrica; a administração dos negócios; o ritmo e o tipo das descobertas; mas também a guerra e as coisas de estado. Precisão; previsão; controle; projeto; método; eficácia; razão, termos comuns ao burguês, ao cientista, ao político e ao historiador. “Ser ‘científico’ implicava que alguém poderia ser capaz de controlar o futuro27”. Este “futuro-projeto” faria do presente mero meio para a realização de fins outros28.

As categorias de “espaço de experiência” e “horizonte de expectativas” aparecem aqui como duas categorias criadas por Koselleck para compreender de que maneira passado e futuro se articulam, sempre no presente. Permitem pensar como “cada uma das temporalidades (...) pode imaginariamente se alterar, contrair ou se expandir conforme cada época ou sociedade, modificando-se também a maneira como são pensadas e sentidas as relações entre eles29”.

Como bem sinaliza José D’Assunção Barros:

É importante ressaltar ainda que o “Passado presente” e o “Futuro presente”, ou o “campo de experiências” e o “horizonte de expectativas”, não constituem conceitos simétricos – ou “imagens especulares recíprocas” como alerta Koselleck. Imaginariamente, o campo de experiência, o presente, e o horizonte de expectativas podem produzir as relações mais diversas, e assim ocorre no decorrer da própria história. Há épocas em que o tempo parece aos seus contemporâneos desenrolar-se lentamente, outras, que parece acelerado, em função da rapidez das transformações políticas ou tecnológicas. Existem períodos da história crivados de movimentos revolucionários, nos quais os agentes que deles participam desenvolvem a sensação de que o futuro é aqui, agora, tendo se fundido ao presente. Em outros, inclusive, o futuro parece permanecer “atrelado

26 Ibid., p. 89 27 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Depois de 1945: latência como origem do presente. São Paulo: Editora Unesp, 2014. 28 Ver ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. 29 BARROS, José D’Assunção. Rupturas entre o presente e o passado: Leituras sobre as concepções de tempo de Koselleck e Hannah Arendt. Revista Páginas de Filosofia, v. 2, n. 2, p. 65-88, jul/dez. 2010, p. 67. 16

ao passado”, como naqueles em que as expectativas do futuro não se referem a este mundo, mas sim a outro que será escatologicamente trazido pela redenção dos tempos. As fusões e clivagens que se estabelecem imaginariamente entre as três temporalidades – passado, presente e futuro – podem aparecer ao ambiente mental predominante em cada época, e às consciências daqueles que vivem nestas várias épocas, de maneiras bem diferenciadas. Para Koselleck, o tempo histórico é ditado, de forma sempre diferente, pela tensão entre expectativas e experiência. Há, por exemplo, ações e práticas humanas que são constituídas precisamente desta tensão, como ocorre com a elaboração de “prognósticos”, que sempre exprimem uma expectativa a partir de certo campo de experiências (portanto, a partir de um “diagnóstico”). Diz-nos também o historiador alemão que “o que estende o horizonte de expectativa é o espaço de experiência aberto para o futuro”, o que se pode dar de múltiplas maneiras, conforme a relação estabelecida entre as duas instâncias. Como se disse, em cada época pode haver uma tendência distinta a reavaliar a tensão entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativas (ou entre o passado e o futuro, por intermédio da mediação do presente). Apenas para ilustrar com uma das hipóteses de Koselleck, na modernidade “as expectativas passam a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então”; em contrapartida, em todo o ambiente mental predominante no ocidente até meados do século XVII, o futuro parecia permanecer fortemente atrelado ao próprio passado. Poderíamos mesmo pensar em duas representações para os dois momentos da história das sensibilidades europeias em relação ao tempo, já que, no período propriamente moderno, “o espaço de experiência deixa de estar limitado pelo horizonte de expectativa; os limites de um e de outro se separam”30.

O percurso desenhado até aqui compõe o quadro de referência sobre o qual autores contemporâneos (com trabalhos dos anos 80 até os dias atuais) contrapõem seu próprio tempo, além de herdarem boa parte desse instrumental teórico. O presente foi entendido em contraste ou extensão com o passado – moderno. Porém, os caminhos são, agora, bem distintos daqueles de uma história conceitual, política ou das idéias.

O hoje, para Octavio Paz, se distinguiria fundamentalmente pelo “ocaso do futuro31”, acompanhado de um perigoso mergulho no presente. Em discurso realizado na entrega do Nobel de literatura, sintetizaria sua época da seguinte maneira:

Está em cheque a concepção de um processo aberto em direção ao infinito e sinônimo de progresso contínuo. (...) causamos danos talvez

30 BARROS, José D’Assunção. Op.cit. 2010. p. 72-74 31 Termo empregado por Octavio Paz em obras diversas obras. 17

irreparáveis ao meio natural e a própria espécie está ameaçada. Por outra parte, os instrumentos do progresso – a ciência e a técnica - demonstraram com terrível clareza que podem se converter facilmente em agentes de destruição. (...) A sorte do sujeito histórico, ou seja, a coletividade humana: poucas vezes povos e indivíduos sofreram tanto: duas guerras mundiais, despotismos nos cinco continentes, a bomba atômica e, enfim, a multiplicação de uma das instituições mais cruéis e mortíferas que conheceram os homens, o campo de concentração. Os benefícios da técnica moderna são intocáveis, mas é impossível fechar os olhos para (...) os danos sofridos milhares de inocentes no nosso século. [Para além disso], a ruína de todas as hipóteses filosóficas e históricas que pretendiam conhecer as leis do desenvolvimento histórico. Seus crentes, confiantes em serem donos das chaves da história, edificaram poderosos estados sobre pirâmides de cadáveres. Essas orgulhosas construções, destinadas em teoria a libertar os homens, se converteram rapidamente em gigantescas prisões32.

Ao sintomático discurso de Paz, podemos adicionar um sem número de sintomas apontados por Gumbrecht,33 de maneira ensaística e muito pessoal – nem por isso menos sofisticada e elegante: o medo em relação ao futuro e o desejo de que o tempo não passe; o interesse pela história, mais precisamente pelo consumo do passado em museus, salas de cinema, antiquários, biografias, obras de fantasia-épica34; a dilatação do presente experimentada pela conservação de outras formas arquitetônicas e de reprodução artificial de cenários de décadas anteriores; a proliferação de seriados e filmes de futuro distópico, seja pela extensão do presente em um amanhã sombrio, seja pelo consumo de eventos cataclísmicos ou pós-cataclísmicos35; a procura por artefatos culturais que produzem presença, imersão, em face do afastamento de culturas de sentido36.

A compreensão da constituição do sujeito na modernidade e sua transformação em “espaços de tempo pós-modernos” parece ser decisiva aqui37. Se o homem moderno viu a si mesmo como algo separado do corpo e ao mesmo tempo em uma posição excêntrica ao mundo, teríamos hoje, não apenas uma importante retomada do tema do corpo, do espaço e do tempo, como a confluência de espaços e tempo simultâneos, experimentados em transito: como em aeroportos ou na experiência cinematográfica e televisiva.

32 PAZ, Octavio. p. 13 33 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Lento presente: sintomatología del nuevo tiempo histórico. Madrid: Escolar y Mayo Editores, 2010. 34 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Op cit., 1999. 35 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Op cit., 2010. 36 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Op cit, 2010b. 37 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Op cit., 2010. 18

O cinema, então, consistiria ao mesmo tempo em expressão do desejo pela desaceleração, pela presentificação do passado, quanto em agente da constituição dessa nova maneira de estar no(s) espaço(s)-tempo. O aprimoramento dos recursos técnicos – como o 3D, o cinema interativo, a reprodução impecável de efeitos audiovisuais -; o cuidado na reconstrução de cenários passados; o aparecimento de linguagens que privilegiam a imersão e rompem com a linearidade. Gumbrecht, mesmo enquanto professor e pesquisador de literatura espanhola, assume que essas formas talvez sejam mais significativas para entender o presente do que documentos escritos ou análises de historia conceitual38.

François Hartog, construindo um novo instrumental conceitual mas ainda partindo dos trabalhos de Koselleck, em obras como “Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo”, apresentará a crise da conjuntura temporal contemporânea, marcada, segundo ele, pela deterioração do futurismo, pela incapacidade de abandonar o passado – proliferação de mecanismos de memória e patrimônio – e pelo presentismo, lugar do imediato e efêmero. A sucessão de eventos, escândalos; a incapacidade de acompanhar a velocidade do mercado e seu desajuste com o tempo da economia, da política, dos políticos. O homem contemporâneo se vê mergulhado no acontecimento imediatamente transmitido, noticiado; a novidade técnica ultrapassada em seu lançamento. Em suas palavras, “o século XX aliou, finalmente, futurismo e presentismo. Se ele inicialmente foi mais futurista que presentista, terminou mais presentista do que futurista39”. A câmera, as mídias audiovisuais, são, mais uma vez, testemunha e agente.

A centralidade do cinema

Marc Ferro – um dos pioneiros na utilização da cinema como fonte para a história e na reflexão metodológica - atribui centralidade ao cinema ficcional por integrar e exprimir o imaginário social. Assim, se o imaginário constitui “um dos motores da atividade humana”, força integrante da História, “o cinema, sobretudo a ficção, abre uma via real na direção de zonas psico-sócio-históricas jamais atingidas pela análise dos ‘documentos’40”. O filme de ficção, portanto, mesmo quando não nos fala sobre verdades históricas, é um documento

38 O que se expressa no pensamento de Gumbrecht no projeto de realização do livro Em 1926. 39 PEREIRA, Matheus H. F.; Mata, Sergio da. Transformações da experiência do tempo e pluralização do presente. In: Varella, Flavia Florentino. et al. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 20. 40 Ibid p. 23 19 histórico que pode informar acerca da maneira que imaginamos no presente – do qual presta testemunho.

Não há dúvida de que o cinema coexiste – nas duas últimas décadas - com outras formas audiovisuais que talvez possam vir a desempenhar um papel mais importante – e talvez já o tenham – nas sociedades ocidentais contemporâneas41. A televisão o computador e os videogames ocupam um lugar central – a primeira é a principal “fonte de massa” na história imediata42 -, além de criarem maiores condições de interatividade. Isso, porém, não reduz sua importância nas décadas anteriores, nem o coloca em lugar menos privilegiado em uma hierarquia das práticas e artefatos culturais – se é que isso faz algum sentido.

Por outro lado, “as publicações, os colóquios e as associações como a IAHIST (International Association for Audiovisual Media in History), se multiplicam para afirmar a afinidade entre cinema e história”43. Outros, mais prudentes, como Pierre Sorlin, nos recordam que “se o século XX viu se modificar nossa relação com o mundo das imagens (...) e somos mais condicionados pela mediação audiovisual, conhecemos ainda bem mal as modalidades e, sobretudo, os efeitos destas44.

Lipovetsky e Serroy apresentam interessantes interseções entre o cinema e as telas que compõe essa espécie de tudo-tela global45. Nos painéis – por vezes incógnitos - de segurança/controle que monitoram a vida cotidiana nos mais diversos espaços; nas telas que decoram ambientes corporativos; nos pequenos smart-fones; em computadores pessoais; ou nas grandes TVs que se destacam nos mais nobres cômodos de cada residência. Não importa se são destinadas para fins estéticos; publicitários; informacionais; de entretenimento; de sociabilidade; ou de trabalho – quase sempre todas essas dimensões se encontram em uma mesma superfície -, em todas poderíamos encontrar profundas influências da cultura e da linguagem cinematográfica, assim como o sentido inverso também parece verdadeiro.

Os autores oferecem uma série de exemplos, como das relações entre o star system e a cultura do selfie, da exibição - e invenção - da vida privada em espaços públicos; da utilização das técnicas de filmagem, edição e montagem na construção de games, anúncios ou ambientes

41 Ver MACHADO, Arlindo. Cinema e virtualidade. In: XAVIER, Ismail,(org.). O cinema no século. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 42 LAGNY, Michele. O cinema como fonte de História. In: Cinematógrafo. São Paulo: Ed. UNESP, 2009. p. 101 43 Ibid., p. 100 44 Ibid., p. 100 45 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A tela global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009. 20 virtuais; ou na própria construção de narrativas em múltiplas mídias. Em meio à desnarrativização e à crise de representação experimentadas por outras artes, como a literatura, nas primeiras décadas do século XX, o cinema teria se assentado como principal mola propulsora da “função expressiva-narrativa-onírica”, invadindo inclusive nossos esquemas de percepção:

O cinema é o que constrói uma percepção do mundo. Não apenas segundo o papel clássico que se atribui à arte, cuja função estética é fazer ver, através da obra, o que a princípio não se vê da realidade. Mas, de maneira mais radical, produzindo realidade. O que o cinema mostra não é somente um outro mundo, o do sonho e do irreal, mas nosso mundo mesmo transformado num misto de real e imagem-cinema. Ele produz sonho e realidade, uma realidade remodelada pelo espírito cinema, mas de maneira nenhuma irreal. Se permite a evasão, ele também convida a refazer os contornos do mundo. Oferece uma visão do mundo: o que chamamos a cinevisão.46

Os últimos anos da década de 90 e, principalmente, as duas primeiras décadas do século XXI consolidaram o assalto internacional de uma geração de cineastas “estrangeiros” nos grandes estúdios estadunidenses: o sucesso dos “três amigos” - Alfonso Cuarón – vencedor do Oscar de melhor diretor e melhor filme com Gravity - Alejandro Gonzalez Iñárritu, e Gillermo Del Toro – com duas verdadeiras peças de realismo-fantástico, como El espinazo del diablo e El Laberinto del Fauno, ou seus sucessos dirigindo franquias como Hellboy -; ao lado de outros latino-americanos como Walter Salles, Fernando Meireles ou Alejandro Agresti; do indiano Shyamalan – autor de obras carregadas de simbolismo como ; do neozelandês – com seus famosos épicos de fantasia, como a trilogia de O senhor dos Anéis -; do australiano – marcado pelo transito entre a linguagem cinematográfica hollywoodiana e aquela que se consagrou nos clipes musicais, como Moulin Rouge ou O grande Gatsby.

As conquistas de mercado e crítica, com direito a nominações e estatuetas em eventos como o , Golden Globe Awards ou o Festival international du film, em Cannes, por outro lado, dificilmente poderão ser tomadas como um renascimento do “cine mexicano” propriamente dito, tampouco como simples cooptação de talentos pela a indústria

46 Ibid., p. 304. 21 de cinema hollywoodiana. A internacionalização de realizadores do cinema47 – em suas diversas funções na produção e distribuição –, somada ao gradativo desaparecimento das “marcas de origem”; à multiplicação de fontes de investimento; às parcerias entre estúdios, agências de fomento estatais e poderosos grupos de entretenimento audiovisual; ao consumo e circulação de bens de cultura por “comunidades de sentimento”; e à dificuldade existente em operar nos velhos marcos nacionais48 em um mundo marcado por hibridismos, pelo trânsito entre o local e o global, pela configuração de “entre-lugares” que seriam melhor definidos como paisagens do que como fronteiras49, permitiriam fazer referência à uma cultura cinematográfica outra: o cinema transnacional.

Superadas as posturas ingênuas que olvidam a posição desigual dos atores na com- posição deste novo cenário e a interferência por parte dos estados nas “políticas culturais” que tanto podem determinar a sorte e a natureza de segmentos do cinema, multiplicam-se férteis abordagens que acenam para um duplo movimento: padronização das formas e temas em torno da narrativa e dos gêneros da indústria de Hollywood; e reconfiguração da estética, da narrativa e dos enredos do cinema estadunidense em função da influência estrangeira e da recepção de outros mercados. Esta transnacionalidade, responsável por tantos problemas para historiadores e cientistas sociais acostumados aos velhos e confortáveis recortes, abriria, então, novas chaves de análise para os estudos culturais.

Tendo em vista que a crise do “tempo histórico” e a emergência de um novo cronótopo é entendida, aqui, como parte de uma “teia cultural global de contornos históricos específicos50”, a utilização de fontes dessa natureza resultou estratégica para esta investigação. Ao mesmo tempo, atento à multiplicidade de lugares de fala e a assimetria entre as diversas culturas nessa realidade multicultural – “a constituição de um mercado transnacional e os debates sobre o multiculturalismo parecem andar juntos51” –, mas também à possibilidade da coexistência entre cronótopos distintos produzidos no centro e na periferia do mundo capitalista, essa escolha não deve silenciar as diferenças.

47 Sobre o tema, recomendo o texto de EDUARDO, Cléber. Diretores transnacionais latino-americanos (1985-2007). In: BAPTISTA, Mauro e MASCARELLO, Fernando (orgs.). Cinema mundial contemporâneo. Campinas: Papirus, 2012. 48 O texto “Reinventando o conceito de cinema nacional” apresenta uma rica discussão sobre a importância de repensar teoricamente a categoria “nacional” como recorte espacial em um mundo globalizado. 49 LOPES, Denílson. Paisagens Transculturais. In: MACHADO, SOARES e ARAÚJO (orgs). Estudos de cinema Socine. São Paulo: Annablume/Sccine, 2007. 50 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Op cit., 2014. p. 248 51 BENTES, Ivana. Do Nacional ao Transnacional. In.: Cinemais: Revista de cinema e outras questões audiovisuais. Rio de Janeiro: Editorial Cinemais, junho de 1998. 22

Também resultou interessante a representatividade dessas obras no imaginário contemporâneo e no próprio mercado cinematográfico. A ampla circulação; a expressividade nas bilheterias; atenção da crítica especializada; a presença em festivais e diversas premiações ou indicações contribuíram para a escolha dessas fontes. A temática dos filmes, o momento da produção e a sua linguagem cinematográfica – como veremos nos próximos capítulos -, foram igualmente decisivas.

Direção, autoria e recorte

Ao lançar nosso olhar sobre o cinema, percebemos paralelamente ao poder de Hollywood, uma profunda internacionalização das produções. Para além disso, a identificação da autoria e da nacionalidade é muito mais complicada no cinema do que em fontes escritas, como a literária. A criação de um filme depende de um grande número de agentes que intervém no processo de criação, sendo extremamente difícil isolar as contribuições de cada um deles: estúdios, agências fomentadoras, produtores e, claro, roteiristas e diretores – para listar aqueles que detém um maior nível de controle formal, mas sabemos que inúmeros outros, como atores, técnicos de filmagem, direção artística, cenografia e maquiagem, intercedem no processo criativo.

O filme é produto de um feixe de forças e atores que disputam o sentido, a forma e cada elemento entre a produção, pós-produção, circulação e consumo. É possível reconhecer a fotografia de um Emmanuel Lubezki em um filme dirigido por alguém com fortes marcas autorais – como em A árvore da vida, de -, assim como seria absurdo supor que a franquia seria a mesma sem a trilha sonora de John Williams. Guillermo Arriaga, roteirista dos três primeiros longas de Alejandro Gonzalez Iñárritu, recentemente provocou grande controvérsia na cerimônia de entrega do “oscar” ao reclamar a co-autoria de Babel.

Muito se disse sobre o poder dos produtores e a pequena liberdade dos diretores no studio system, algo que ainda alimenta a valorização de segmentos alternativos e/ou independentes. Porém, um olhar atento para a produção cinematográfica nas últimas décadas nos permite perceber que tanto o cinema hollywoodiano parece cada vez mais preocupado com a renovação da sua linguagem e temática – em função do assédio de outras mídias de entretenimento, das mudanças do perfil de consumo e da busca por novos mercados 23 consumidores -, como a multiplicação de agências de fomento, de políticas públicas estatais e de parcerias entre estúdios e distribuidoras criaram novos caminhos para intervenções autorais, capazes de negociar ou até mesmo violar os princípios narrativos e temáticos do cinema de gênero.

O tema da autoria é um problema teórico-metodológico – dentre outras coisas - em diversos universos artísticos. Porém podemos assumir como critérios para a autoria a evidência do envolvimento do diretor com todos os processos de produção e criação do filme e a existência de uma “assinatura”, seja pela estilística, seja pela temática52. Essas marcas, por outro lado, só poderiam ser avaliadas pela análise da obra do cineasta como um todo - mas é sem dúvida um traço característico da cultura cinematográfica estadunidense buscar por elas, algo que vale tanto para cineastas quanto para estúdios e consumidores53.

Não será pretensão da pesquisa avaliar a qualidade ou relevância de artefatos fílmicos pela sua natureza “autoral”. A escolha desse critério possibilita, na verdade, a criação de unidades de análise maiores que as próprias obras. Sendo possível, com isso, perceber as mudanças e permanências na temática, na estilística e na linguagem dos filmes à luz dos processos de entrecruzamento dos autores com o ponto para o qual convergem – ou do qual se afastam -, da pré à pós-produção. Procuraremos não perder de vista que:

O cinema se insere em uma complexa indústria cultural que se empenha em levar ao mercado aquela novidade que trará um atrativo especial ao produto fílmico, mas situando esta novidade em cuidadoso plano de equilíbrio em relação ao que o público pode assimilar naquele momento. Ao mesmo tempo, o novo alterna-se com a prática de citação de outros filmes, muito comum entre os cineastas, sem falar da possibilidade de assimilar idéias e soluções imagéticas singulares sem deixar claro que se trata de uma citação (...)”54.

Estúdios de Hollywood, com capital e influência transnacional, detém controle sobre as grandes produções, ainda que por vezes apenas na distribuição e que não seja mais possível

52 AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Análisis del film. Barcelona, Buenos Aires, México: Paidós, 1990, p.41. 53 BERNARDET, Jean-Claude. O Autor no Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1994. 54 BARROS, D’assunção. A Cidade-Cinema Pós-Moderna, in NÓVOA, Jorge - org., Cinematógrafo: um olhar sobre a história. Salvador: EDUFBA, São Paulo: Ed. UNESP, 2009. p. 467 24 encontrar nelas um caráter marcantemente local ou nacional.55 Configura-se desta forma, como um privilegiado ponto de interseção.

A escolha dos dois autores teve por finalidade privilegiar esses deslocamentos e ajudar na identificação de múltiplas influencias culturais. Estes diretores são reconhecidos por levarem elementos novos para uma prática que apresentava sinais de esgotamento. Da mesma forma, o bem conhecido funcionamento da indústria de entretenimento hollywoodiana nos leva a pensar que foram cooptados por se adequarem àquela percepção “estatística” dos gostos e interesses dos consumidores, da mesma forma, por serem capazes de inserir alguma novidade que possa ser assimilada pelo grande público56.

Diretores Nolan e Iñárritu se posicionam no mercado e são mobilizados por agências de publicidade justamente enquanto representantes de determinados temas, estilos ou técnicas, quase sempre atrelados a algum sucesso de bilheteria e/ou número de estatuetas conquistadas em festivais. Podemos então tomá-los tanto como agentes como quanto referências para determinadas modalidades de intervenção. A comparação do cinema e das trajetórias de dois ou mais diretores podem ajudar a distinguir aquilo que é singular de cada obra das tendências mais gerais – do cinema assim como de algumas das maneiras de estar-no-mundo.

Esses diretores são, indiscutivelmente, dois dos nomes mais emblemáticos desse cinema transnacional. Suas obras são representantes de dispositivos narrativos e mudanças estéticas – como a não-linearidade; a construção de uma network narrative; a utilização de “planos sequência”; ou na construção de narrativas labirínticas, os puzzle films – que produzem temporalidades distintas daquela correspondente ao velho cronótopo.

Ao menos desde a década de 30 do século XX, historiadores parecem tornar-se mais conscientes dos problemas relacionados com uma historiografia comprometida com as velhas e artificiais molduras nacionais57. Em um primeiro momento, a comparação entre unidades mais rígidas como estados-nacionais parecia romper com o isolamento, abrir o diálogo, além de

55 LAGNY, Michele. O cinema como fonte de História. In: Cinematógrafo. São Paulo: Ed. UNESP, 2009. p. 101 56 Ver ADORNO e HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 57 Como podemos ver em BARROS, José D'Assunção. História Comparada - um novo modo de ver e fazer história. Revista de História Comparada. Junho 2007, v.1, n.1. p. 9; e em HEINZ, Flávio M.; KORNDÖRFER, Ana Paula. Comparações e comparatistas. In: HEINZ, Flávio M. (Org.). Experiências nacionais, temas transversais: subsídios para uma história comparada da América Latina. São Leopoldo: Oikos, 2009. 25 permitir um estudo mais atento para a complexidade, semelhanças e diferenças entre sociedades. Porém, a globalização e os fenômenos transnacionais colocaram em problemas esse tipo de recorte, além de dificultar a criação de matrizes comparativas – ao menos para um grande número de fenômenos.

Algumas das saídas encontradas para tais dificuldades apareceram nos primeiros anos do século XX, através do que vem sendo chamado de história conectada, história cruzada e de circulações – para alguns, com diferenças tão sutis que permitiriam ser trabalhadas como uma coisa só ou em conjunto. Aqui, trata-se da compreensão de um fenômeno através das interações e interconexões. Para a realização desta pesquisa procuro procurei seguir algumas das indicações de Michael Werner, Bénédicte Zimmnermann e Yves Cohen.

Os dois primeiros defendem a identificação de um ponto de interseção onde se produzem elementos que influenciam a todos. O cruzamento com esse ponto transformaria os fenômenos e os atores que o atravessam, logo, transcendendo espaços nacionais e sendo apreensíveis apenas tendo em vista esses entrecruzamentos. Podemos, então, entender fenômenos que se produzem em realidades nacionais através de feixes de forças originados fora desses espaços58.

Com Cohen59, por outro lado, aprendemos caminhos para identificar processos de migração de pessoas, idéias e artefatos, em idas e vindas que produzem, sempre, reconfigurações. O espaço é desenhado, então, pela rede de interações, pelos movimentos desses objetos, em vez de entendido como algo fixo e previamente definido. Estes referenciais orientaram, em primeiro lugar, na construção do recorte, operacionalizando assim a pesquisa posterior.

A comparação se dará entre obras e unidades (os próprios autores). A utilização de metodologias relacionais implicam também na comparação entre elementos em diferentes níveis, ainda que não sejam satisfeitos requisitos próprios de uma historiografia comparada tradicional. Aqui, como em Bloch60 ou Detienne61, buscar:

(...) iluminação recíproca (...) se dispõe a confrontar dois objetos ou realidades ainda não conhecidos de modo a que os traços

58 Ver em WERNER,Michael; ZIMMERMANN, Bénédicte. Beyond Comparison: Histoire Croisée and the challenge of reflexivity. History and Theory, 45, february 2006, 30-50. 59 COHEN, Deborah. Comparative History: buyer beware. GHI Bulletin, n.29 (Fall 2001), p.23-33 60 BLOCH, Marc. História e historiadores. Lisboa: Teorema, v. 31, 1998. 61 DETIENNE, Marcel. Comparar o incomparável. São Paulo: Idéias e Letras, 2004. 26

fundamentais de um ponham em relevo aspectos do outro, as variações de intensidade relativas à mútua presença de algum elemento comum. Será por fim possível, se o que se observa são dois objetos ou realidades dinâmicas em transformação, verificar como os elementos identificados através da comparação vão variando em alguma direção mais específica – de modo que se possa identificar um certo padrão de transformações no decurso de um tempo – e, mais ainda se temos duas realidades contíguas, como uma influência a outra e como as duas a partir da relação recíproca terminam por se transformar mutuamente62.

Afinal, o método comparativo permite pensar não apenas duas ou mais realidades histórico-sociais distintas, mas também repertórios de representações, práticas sociais, histórias de vida, mentalidades, desde que por mútua iluminação63.

Cada capítulo será centrado na análise de dois longas-metragens. No primeiro nos debruçaremos sobre Amores Perros e Babel, de Alejandro Gonzalez Iñárritu. No segundo sobre Memento e Inception, de Christopher Nolan. No terceiro, a análise de The Revenant e Interstellar será acompanhada por um balanço acerca da obra dos autores em perspectiva comparada e pelas maneiras como articulam passado, presente e futuro. Esta tese de doutoramento se propõe a entender não apenas como os protagonistas constroem as relações entre espaço de experiência e horizonte de expectativas, mas também sobre os dispositivos narrativos utilizados, as negociações com a legibilidade e a experiência dos espectadores na fruição da trama, ou as possibilidades oferecidas para com ela comporem a história – sendo, para tal, profundamente devedora dos estudos sobre a narrativa no cinema realizados por David Bordwell.

Nas considerações finais faremos breves apontamentos sobre as tendências dos produtos de entretenimento audiovisual nos últimos anos e as portas abertas para investigações futuras, assim sobre os alcances e limites destas.

62 BARROS, José D'Assunção. História Comparada - um novo modo de ver e fazer história. Revista de História Comparada. Junho 2007, v.1, n.1. p 6 63 Idem., p. 24 27

CAPÍTULO I - IÑÁRRITU E A INEVITABILIDADE DO REAL

1.1 Amores Perros

Lançado em 14 de maio do ano 2000 durante o festival de Cannes, na França - ganhando três prêmios, dentre eles, o prestigiado “Prêmio da Semana da Crítica” -, Amores Perros não tardou em ser identificado pela crítica internacional como a obra que representava “a renovação do cinema mexicano”. O realismo; a violência; a visceralidade; o ritmo vertiginoso; a multiplicação de “histórias” e de pontos de referência, foram alguns dos elementos evocados neste sentido. A sua estreia no circuito mexicano foi antecedida por uma dispendiosa campanha publicitária que atingiu diversas mídias e foi responsável pelo lançamento de músicas de bandas de crescente destaque, presentes na sua trilha sonora. O filme não passou pelas engrenagens burocráticas do estado, por meio dos incentivos e do controle do Instituto Mexicano de Cinematografía, nem o seu diretor pelos centros de formação convencionais. Alejandro González Iñárritu teve uma carreira anterior como locutor de rádio, diretor e produtor de comerciais televisivos, além de estar a frente de uma agência publicitária. A parceria entre produtoras como Altavista e Zeta films e o investimento do capital privado de diversas fontes demandaram uma estratégia de promoção que encontrou justamente na crítica estrangeira a legitimação necessária.

Não é de forma alguma por acaso que o êxito internacional do filme precedeu o seu êxito nacional. Uma vez que a enorme campanha de publicidade do filme se assentou no reconhecimento em Cannes, as audiências mexicanas adquiriram um renovado sentido de orgulho nacional e foram assisti-lo. Para dizer isso de uma maneira ainda menos eufemística, uma vez que a intelectualidade metropolitana aprovou o filme como representante de um “cinema mexicano” aceitável, os mexicanos se convenceram que o filme os representava orgulhosamente64.

Para além de uma arrecadação ao redor dos 10 milhões de dólares no circuito nacional, os 54 prêmios em festivais e outras 23 indicações parecem ter uma direta relação com outros 5

64 No original: No es en absoluto casual que el éxito internacional de la película precediera al éxito nacional. Una vez que la enorme campaña de publicidad de la película redituó en el reconocimiento en Cannes, las audiencias mexicanas adquirieron un sentido renovado de orgullo nacional y fueron a ver la película.50 Para ponerlo de um modo aún menos eufemístico, una vez que la intelectualidad metropolitana aprobó la película como representante de un «cine mexicano» aceptable, los mexicanos se convencieron de que el filme los representaba orgullosamente. (PRADO, Ignacio M. Sánchez. Amores Perros: Violencia exótica y miedo neoliberal. Revista de la Casa de las Américas, n 240, 2005, p.139-153). 28 milhões arrecadados nos EUA e cerca de 20 milhões no resto do mundo, números muito expressivos para uma produção concebida, fundamentalmente, para atender o mercado mexicano65. O sucesso junto ao público e a crítica especializada estrangeira colocaram o seu diretor e o roteirista com que trabalharia em outros dois longas (21 gramms e Babel), Guillermo Ariaga, no centro das atenções do mercado cinematográfico, além de alimentar um grande volume de publicações acadêmicas. A crítica latino-americana se viu bem mais dividida do que a europeia ou a estadunidense. Iñárritu foi muito questionado pelo valor artístico de Amores perros, tanto por ser difícil enquadra-lo no cinema de autor que emergira no México pelas mãos de cineastas como Arturo Ripstein e Jorge Fons; por romper com a estilística do realismo-mágico que marcou o sucesso de como agua para chocolate, de Alfonso Arau; quanto por abraçar uma estratégia mais “comercial”, reinventando o exotismo periférico, latino, construído agora em torno da violência; ou por expressar o ideário político que levou Vicente Fox e o seu partido (PAN) ao governo – uma bem conhecida mistura de propostas neoliberais com a defesa da moral cristã e do conservadorismo típico das classes médias. Não tenho qualquer intenção de discutir neste trabalho se produtos de entretenimento audiovisual podem ou não ser considerados mais ou menos artísticos – na verdade mantenho enormes suspeitas sobre a relevância desta discussão no âmbito da pesquisa contemporânea em história ou em ciências sociais, salvo quando o que está em questão são as formas pelas quais sociedades atribuem legitimidade e operam a distinção entre os artefatos culturais. Como mencionado anteriormente, a complexidade do cinema contemporâneo, a multiplicidade de atores intervindo durante todo o processo de planejamento, produção e pós-produção também trazem problemas para pensa-lo a partir da velha política de autores que marcou parte do século XX. O tema da autoria já foi tratado no capítulo anterior, mas a análise fílmica de Amores perros demanda desde já a devida atenção aos dois últimos termos dessa crítica. Quando indagado sobre a mexicanidad em suas obras, Iñárritu manifestou inúmeras vezes a sua disposição em se afastar das representações do México sujo dos filmes de Western estadunidenses ou daquele folclorizado, repleto de guitarras e narcotraficantes66. A violência, segundo Ignacio Sánches Prado, ocuparia aqui o lugar de símbolo da experiência urbana latino- americana.

65 Dados extraídos do site www..com e do artigo de Paul Julian Smith (SMITH, Paul Julian. Amores Perros. : Britsh Film Institute, 2003). 66 PRADO, Ignacio M. Sánchez. Amores Perros: Violencia exótica y miedo neoliberal. Revista de la Casa de las Américas, n 240, 2005, p.139-153. 29

Neste sentido, desde a época do seu lançamento – e utilizados inclusive como apelo comercial na sua divulgação em festivais - foram comuns os paralelismos estabelecidos entre a centralidade da violência na estética do filme e na obra de , principalmente em Pulp Fiction, ou em filmes como Lola rennt, de Tom Tykwer; Crash, de ; e Crouching Tiger, Hidden Dragon, de . Exemplos como o de Tarantino nos falam da “violência que se torna espetáculo em si mesma, seja como um desafio ao horizonte do representável ou como parodia da nonsense violence”67, em meio ao labirinto de referências cinematográficas sobre as quais se estruturam esses filmes. O violência no filme do referido cineasta mexicano não deve ser tratada como “metacinematográfica”, não está voltada para o próprio cinema de gênero, rendendo-lhe alguma homenagem, nem presta serviço apenas a sua espetacularização. Reencena na verdade a experiência pós-moderna das grandes urbes, apresentando um espaço marcado pela insegurança, onde a criminalidade e a ameaça do assassinato caminham juntas com a corrupção e a ausência do estado na proteção dos cidadãos. Está, ao lado do dinheiro e do “amor”, no centro de todas as experiências dos protagonistas, quase sempre atuando de forma intercambiável ou ao menos como se um fosse subproduto do outro – amores sempre “callejeros”, “perros”, no sentido de algo violento, irracional, associado muitas vezes à miséria material, à falta de caráter, mas também atribuído ao colonizado, usos comuns para essa adjetivação tão típica entre os mexicanos68. Para Iñárritu, a violência “é parte da nossa natureza, lamentavelmente. Leva muita dor para quem a gera ou a recebe, também confusão. Ficar contra a nossa natureza é parte de nós”69. Ela aparece naturalizada de sobremaneira entre as classes baixas, formando parte de sua existência, das práticas cotidianas; é meio para qualquer fim, principalmente para conseguir dinheiro – o trabalho aparece como um meio secundário -; é parte fundamental daquilo que nos define; e o resultado acidental – ainda que esperado - do choque entre protagonistas em meio aos contrastes, à velocidade e a desorientação. Ela produz a sutura de causalidade entre as histórias e os seus protagonistas por meio de um acidente de carro, mas a todo tempo conecta os elementos da trama, oferece ligações emocionais na montagem. Com fortes pretensões

67 No original: la violencia se vuelve espectáculo en sí misma, ya sea como un reto al horizonte de lo representable o como parodia de la “nonsense violence”. (SOLOMIANSKI, Alejandro. Significado estructural, historia y tercer mundo en Amores perros. A contra corriente. Vol. 3, No. 3, Spring 2006, 17- 36). 68 LEIVAS, Regina Zauk. Amores Perros: Arquitetônica em espelho estilhaçado. Pelotas, 2015. 69 No original: Es parte de nuestra naturaleza, lamentablemente. Lleva mucho dolor, para quien la genera o la recibe, también confusión. Ese estar en contra de nuestra naturaleza forma parte de nosotros. (PRADO, Ignacio M. Sánchez. Amores Perros: Violencia exótica y miedo neoliberal. Revista de la Casa de las Américas, n 240, 2005, p.139-153). 30 realistas, promove a urbanidade latino-americana e o encontro com o que nos define através do choque e da brutalidade, os quais cumprem, também, importantes funções estéticas e narrativas. Resulta importante ressaltar, como fazem Deleyto e Azcona, que a intensidade na representação da violência, da dor e dos sentimentos passionais que chamaram a atenção das plateias e da crítica no exterior não chamaram tanta atenção no México. A familiaridade da dor e a proximidade da morte estão muito presentes na cultura daquele país, algo que se expressa desde nas festas nacionais, com bonecos de esqueletos e personificações “da Morte”; na percepção da violência urbana e do poder do crime organizado – reforçados incansavelmente pelo cinema hollywoodiano -; mas também pela forte tradição do “melodrama” no cinema e na programação da TV. “As imagens ganham efeito ainda mais dramático pela utilização do processo de bleach- bypass que aumenta o contraste intensificando pretos, brancos e os tons de vermelho do sangue70”. A brutalidade em Amores Perros está fortemente ligada a uma cultura audiovisual com alcance global que, como entendida por Gilles Lipovetsky e Jean Serroy,

faz vibrar não tanto pelos acontecimentos narrados quanto pelo efeito das cores, dos sons, das formas, dos ritmos, e que se dirige ao que foi chamado ‘um novo espectador’. Busca extremos sensitivos em todas as direções e vinculada ao presenteísmo contemporâneo, marcado pelo desejo de vibrar na velocidade, de viver da intensidade do momento descontínuo de experimentar sensações diretas e imediatas. A obra se torna filme-instante feito de imagens-excesso ou de imagens sensoriais em sintonia com um individualismo hedonista e descompartimentado, típico da Me Generation.71

A violência não é uma novidade no cinema, de fato, assim como a sua banalização – principalmente nos blockbusters de ação. Mas ela agora aparece associada a um cinema cada vez mais voltado para as sensações, que busca romper com a velha separação entre sujeito e objeto, produzindo o mergulho profundo do espectador cada vez mais acostumado com a profusão de imagens em velocidade; a criação de mundos, personagens e ações por meio da computação gráfica que pareciam impossíveis a algumas décadas; pelas gigantescas telas IMAX; ou pelo consumo desenfreado, pela compulsão do sempre-mais, que parece ter tocado

70 GIUNTINI, Mauro. A narrativa cinematográfica de Alejandro Gonzalez Iñárritu. Tese (Doutorado em Comunicação) Programa de Pós-Graduação em Comunicação. UNB, 2015. 71 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A Tela Global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009, p. 52-53. 31 todas as esferas da vida e, evidentemente, o entretenimento audiovisual. Esse cinema não está marcado pela ruptura, mas sim pela saturação e vertigem do espectador. Ela caminha de mãos dadas com o efeito-choque na montagem, onde o golpe, o movimento brusco ou o impacto são mimetizados pelo corte, pela proliferação de tomadas tão rápidas que não permitem que sejam visualizadas integralmente. Faz parte de um movimento para frente, permitindo sempre mais sexo; mais velocidade; maior número de elementos e personagens; maiores monstros e explosões; perversões cada vez mais desumanas; e maior número de protagonistas, das network narrative aos filmes de super-herói – não basta um grande vilão ou um grande herói, se faz necessário reuni-los em grande número. O sangue de humanos e cães é exibido em abundância e em primeiríssimo plano para uma plateia acostumada às sensações fortes que pode provocar. Amores Perros é, neste sentido, uma peça típica da “imagem-excesso”72, ao lado de Pulp Fiction (1994), The Passion of the Christ (2004) – onde não basta contar uma história de sofrimento e redenção, mas trata-se de colocar cada expectador em seu lugar -, ou Fight Club (1999). Não veremos ao longo da trama monumentos ou paisagens que permitam a clara identificação da cidade. Apesar dos traços marcadamente locais na linguagem, o filme não oferece outros elementos que caracterizem o espaço e os habitantes. Iñárritu omite inclusive a presença de elementos rurais na cidade que podem ser encontrados a poucas quadras das principais avenidas, como cavalos e homens com sombreiros, além “do segmento dos completamente excluídos, as massas etnicamente aborígenes que compõe a maioria dos cinturões de pobreza e marginalização da cidade do México, fiquem sem representação no filme”73. A Cidade do México de Iñárritu é um cenário marcado pelo contraste entre as classes sociais típicas de qualquer cidade no continente. Elas se entrecruzam em um mesmo espaço urbano, por mais que estejam completamente cindidas e isoladas em seus ambientes familiares, ou separadas em bairros com diferentes perfis de renda, o que se expressa nas fachadas, nos vestuários, nos ofícios, assim como na visibilidade. Encontram-se fragilmente conectadas por meio dos serviços que as mais baixas prestam às outras, assim como pelo emaranhado de ruas e velozes avenidas.

72 Refiro-me a tipologia criada por Lipovetsky e Serroy em A Tela Global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. 73 No original: el segmento de los excluídos por completo, las masas étnicamente aborígenes que componen la mayoría de los cinturones de pobreza y marginación de la ciudad de México quedan sin representación en el filme. (SOLOMIANSKI, Alejandro. Significado estructural, historia y tercer mundo en Amores perros. A contra corriente. Vol. 3, No. 3, Spring 2006, 17-36). 32

A mise-en-scène é reforçada pela linguagem cinematográfica, operando uma espécie de confinamento. As ações se desenrolam fundamentalmente em espaços fechados e pequenos onde se faz inevitável a proximidade entre os corpos. Raros planos abertos são oferecidos ao longo do filme, optando quase sempre por enquadramentos fechados em primeira ou primeiríssima pessoa. A expressão facial, as interpretações que valorizem as emoções das personagens, são privilegiados desta maneira, reduzindo, porém, a quantidade de informações aos espectadores sobre o meio circundante. A utilização da câmera na mão, principalmente em cenas de alta tensão emocional, comprime ainda mais o espaço em cada cena, incluindo nele o próprio narrador. Como defende Mauro Giuntini, “a câmera é o artefato mediador do diretor ao narrar visualmente as histórias plano a plano e a instabilidade inerente de sua utilização na mão torna mais vívida sua presença, o que evidencia a narração visual do diretor74”. Iñárritu também defenderia em entrevista o uso da câmera na mão como um recurso mais próximo da maneira como experimentamos o mundo, em detrimento de recursos como a grua ou o tripé, considerados por ele como formas antinaturais de experimentar o mundo75. Pelas mãos de Rodrigo Prieto, diretor de fotografia, Amores perros logra incluir o próprio espectador no interior da cena, movendo-nos em meio aos personagens ou permitindo observar por seus olhos, como em alguns dos planos detalhe que abrem cada cena. Esta substituição do plano aberto pelo plano detalhe na abertura da cena - esquema típico de montagem do cinema hollywoodiano -, por si só, além de exigir da audiência uma maior atenção a fim de encaixar o pequeno fragmento apresentado no ambiente circundante e no fluxo de ações, reduz o nível de informação e dificulta que o espectador assuma a posição objetiva, distanciada, partindo de uma visão de conjunto. A velocidade do corte, tomadas com tempo médio inferior a dois segundos, principalmente em cenas de ação – como nas rinhas de cães ou na perseguição de carros que propicia o acidente – aumentam o ritmo ao mesmo tempo que produzem confusão. Somos arrastados pela profusão de imagens que se soma ao excesso de ruídos no som. Os cortes velozes; a transição entre planos fechados; a multiplicidade de elementos e figurantes exibidos parcialmente e por meros instantes – muitas vezes tomamos conhecimento deles apenas por partes dos seus corpos, por aparecerem fora de foco, pelos ruídos que produzem ou pelas

74 GIUNTINI, Mauro. Op cit., 2015 75 DELEYTO, Celestino; AZCONA, María del Mar. Alejandro Gonzáles Iñárritu: contemporary film directors. Illinois: University of Illinois Press, 2010. p. 134. 33 respostas nos corpos dos protagonistas – comprimem o espaço diegético e arrastam a audiência em meio à profusão. O mundo do enredo quase se restringe ao das falas, ações e reações dos personagens, para além de um ou outro objeto chave que circula entre cada núcleo e, de alguma forma, os conecta. Dinheiro, TVs ou cães são alguns desses objetos que operam ligações de sentido entre as cenas e os protagonistas. Amores Perros consiste naquilo que David Bordwell chama de network narrative76 – modalidade típica do cinema transnacional contemporâneo -, ou seja, uma trama composta por mais de um núcleo de ação, pelas histórias de diferentes protagonistas que se cruzam em algum momento de maneira fortuita, produzindo efeitos inesperados. O espectador é estimulado a buscar paralelismos entre cada núcleo, além de outros entre as cenas quando a montagem apresenta cada história de forma fragmentada, além de alimentar expectativa do contato entre os personagens, atuando de forma a antecipar esse momento. Costumam omitir informações sobre os protagonistas e deixar muitas lacunas na trama a serem preenchidas. São narrativas frequentemente utilizadas para reforçar a complexidade da experiência contemporânea, matizar diferenças sociais e marcar a importância do acaso nas trajetórias dos sujeitos. É uma estratégia narrativa muito presente na literatura latino-americana (como a de Jorge Luis Borges) e que guarda semelhanças com o multiprotagonismo das novelas televisivas. Dentro dessa categoria cinematográfica podemos destacar obras como Short Cuts (1993), de ; Traffic (2000), de Steven Soderberg; e Crash (2004), de . Se faz necessário, porém, retomar aqui as comparações com Pulp Fiction (1994), de Quentin Tarantino. Assim como o famoso filme independente do cineasta estadunidense, Amores Perros narra três histórias separadas por capítulos e contadas de forma não linear. Em vez do assalto em bar – a famosa cena de Pulp fiction -, um acidente automobilístico é antecipado e se constitui como nó para toda narrativa, sendo repetido outras três vezes a partir de outros pontos de vista. Situado temporalmente aproximadamente no meio da cadeia de eventos, transforma radicalmente as trajetórias dos personagens e atua como uma importante referência para a legibilidade da audiência. É a pedra angular da arquitetura do filme. No cinema clássico era muito recorrente o uso do flashback, ou seja, a apresentação de acontecimentos anteriores ao presente na narrativa a fim de explicar algo, fornecer informações complementares, contribuir para a melhor caracterização dos personagens e, por vezes, gerar

76 BORDWELL, David. Poetics of cinema. New York: Routledge, 2008. 34 suspense por meio do retardamento de algum acontecimento importante na trama. Consiste em uma viagem ao passado, por vezes realizado na forma de uma memória que acessamos dos personagens, aumentando a coerência interna e a familiarização dos espectadores. Aumenta o controle e a transparência. Para Bordwell e Thompson77, por outro lado, o flashfoward se trata da antecipação de uma cena, um salto ao futuro, aumentando a curiosidade por estimular uma postura ativa na compreensão do seu significado e da montagem de uma cadeia causal que permita chegar naquele ponto. Além disso, ao deslocar uma sequência desta maneira, o filme evidencia a diferença entre o tempo da trama e o tempo da história, tornando mais perceptíveis os dispositivos da narração e as manipulações produzidas por seus autores.

1.1.1 Entrecruzamentos urbanos

O primeiro longa-metragem de Iñárritu inicia com uma perseguição de carros nas ruas de da cidade. Dois jovens, Octavio e Jorge, tentam escapar de um furgão em alta velocidade que dispara contra eles. As tomadas acontecem fundamentalmente de dentro do carro, acessando o entorno e o perseguidor apenas por espelhos retrovisores ou pelas janelas. Os cortes são velozes (menos de dois segundos por tomada), os enquadramentos fechados e a câmera instável, mimetizando os movimentos bruscos de dentro do veículo. A desorientação provocada pela imagem e antecipação da sequência é reforçada pelos sons diegéticos de freadas e pneus, junto aos gritos dos personagens. No banco de trás vemos um cão ensanguentado e desacordado (Coffi). Em plano detalhe, a mão de Jorge coberta de sangue segura o ferimento enquanto este questiona Octavio pelo que fez e pede que ande mais rápido. Uma primeira colisão é evitada por pouco e os dois comemoram euforicamente quando pensam ter despistado os perseguidores. O Furgão amarelo retorna em seguida disparando, o que força Octavio a ultrapassar um sinal vermelho, colidindo com um automóvel que vem da sua esquerda. Uma tomada rápida mostra uma mulher agonizando, presa no automóvel, pedindo ajuda aos pedestres que se aproximam. Depois de um fade in, temos o primeiro intertítulo: Octavio y Susana. Daniel y Valeria e El Chivo y Maru consistem nos dois outros capítulos. Octavio, Valeria e El Chivo são os protagonistas em suas histórias, com diferentes pesos para Susana, Daniel e Maru em cada uma

77 BORDWELL, David & THOMPSON, Kristin. A arte do cinema: uma introdução. Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Editora da USP, 2013. 35 delas. A trama apresenta as histórias de forma fragmentada, entrecortando cada capítulo com cenas dos outros núcleos de ação:

O primeiro capítulo, Octavio e Susana, é o mais entrecortado pelos demais. Ele conta com sete inserções da história de El Chivo e quatro de Valeria. O segundo capítulo, “Daniel e Valeria”, é o mais homogêneo e sofre apenas duas inserções de cenas de El Chivo. O terceiro capítulo, El Chivo e Maru, conta com três intromissões da história de Octavio e uma menção à de Valeria, seu outdoor de propaganda de perfume sendo retirado de um prédio enquanto El Chivo passa em um carro roubado.78

Por três outras vezes o acidente será exibido. No primeiro capítulo aparece na ordem cronológica da história, ou seja, narra-se o percurso que levou Octavio, Jorge e Coffi até o fatídico acidente. Quase nenhuma nova informação é oferecida aqui, mas um novo tratamento do som na montagem retira a sincronia da imagem com a trilha sonora diegética, dando ênfase à experiência sensorial em face da omnisciência do espectador. Aproximadamente quatro minutos depois, já avançada a primeira hora de filme, conhecemos a colisão pelo ponto de vista de Valéria e Richie (o seu pequeno cão de companhia), abrindo o segundo capítulo. A câmera e os cortes são mais lentos no percurso de carro que antecede, trabalhando de acordo o tom descontraído da cena, onde a protagonista, feliz pelo novo apartamento e pela vida que inicia ao lado de Daniel, se desloca a procura de vinho para o almoço. O impacto do abalroamento é reforçado pelo impacto da imagem na montagem de dentro do carro. Por fim, alguns minutos depois do início do capítulo protagonizado por El Chivo, vemos o acidente desde uma perspectiva externa, de onde fora presenciado pelo personagem enquanto observava - na companhia dos seus cães e do carro-de-mão, repleto de entulho, com o qual transita pela cidade - um indivíduo que perseguia e planejava assassinar. Mais uma vez, como veremos ao longo do filme, os momentos de tensão são narrados por meio de cortes rápidos entre primeiro, primeiríssimo plano e plano detalhe. El Chivo ajuda a retirar Octavio do carro – aproveitando a oportunidade para roubar-lhe uma grande quantia de dinheiro -; percebe que Jorge está morto; observa como outras pessoas ajudam Valéria; e resgata Cofi depois deste ser abandonado gravemente ferido na calçada. Os sentidos e a ordem da sequência são muito diferentes em cada história. Ela se dá como clímax da primeira, já próxima do seu desfecho; é responsável por desencadear o conflito

78 GIUNTINI, Mauro. Op cit., 2015, p. 110. 36 na segunda, bem próxima do começo; e inicia o processo de redenção na terceira, sendo localizada no meio do curso de eventos. Esse incidente será o único encontro direto entre os protagonistas. O acaso, incontáveis variáveis que escapam ao controle dos agentes promovem um evento decisivo que redefine as suas vidas, causando dor, despedaçando sonhos e amores, mas também marcando um novo início para outros. Ao longo do enredo alguns pontos de contato, porém, podem ser identificados. Na saída de uma rinha de cães, logo no inicio do filme, Jarocho decide saciar a agressividade do seu cão colocando-o para brigar com alguns cães de rua. Atrás do carrinho de entulho aparece El Chivo com um facão que enfrenta o jovem bandido local e os seus amigos. Cofi, que havia fugido de casa por um descuido de Susana, passava pelo local e atraiu a atenção do grupo, que passa a persegui-lo. Jorge os acompanhava, reconheceu o cão de Octavio e Ramiro, mas não foi levado em conta. O Rottweiler terminaria matando o cão-de-briga de Jarocho e se mostrando a Octavio como uma boa forma de ganhar dinheiro, dando início à cadeia de eventos que culminaria no acidente, deixando o cão e boa parte do dinheiro das apostas nas mãos de El Chivo. Valéria passou por Martín de automóvel antes do acidente e este a viu no outdoor publicitário. Jorge e Octavio assistem um programa televisivo onde entrevistam duas celebridades que anunciam uma falsa relação. Valéria chama Richie para o seu colo e diz ser seu filho enquanto os jovens admiram a beleza da modelo. Breves interseções que podem ter efeitos imprevisíveis e compõe trajetórias demasiadamente complexas. A solidão, o isolamento, o confinamento, se vêm ainda mais reforçados em meio às multidões urbanas, por mais que estejam interconectadas pela mídia ou pelas redes de serviços.

1.1.2 Da trama à história

Amores perros é uma história multiprotagonista que se desenrola fundamentalmente em três núcleos de ação. No primeiro deles nos deparamos com uma família pobre que vive no subúrbio da cidade do México – ainda que não sejam oferecidos claros referenciais espaciais ou temporais durante o longa. Octavio (Gael Garcia Bernal) e Ramiro (Marco Péres) são irmãos e vivem na casa da mãe (Adriana Barraza), junto com Susana (Vanessa Bauche), esposa de Ramiro, o filho e Cofi, um Rottweiler. A trama, porém, primeiro exibe a Jorge (Humberto Busto), amigo de Octavio, e outros personagens ligados à casa onde se organizam rinhas de cães, como Jarocho (Gustavo Sanches Parra) – um criminal de bairro muito ativo nas apostas. As cenas na casa de Octavio são intercaladas com as dos combates caninos, reforçando a atmosfera de tensão existente naquele ambiente. 37

Ramiro é violento com Susana e tem dificuldade em cobrir as despesas da jovem esposa - ainda frequentando a escola – e do seu bebê. A mãe o pressiona por conta das despesas, mas busca mediar as tensões entre o casal e os irmãos. Octavio deseja Susana, enfrenta o esposo e busca seduzi-la em sua ausência. Ramiro realiza pequenos roubos a farmácias, enquanto Octavio encontra em Cofi a oportunidade de ganhar dinheiro com apostas e convence-la e partir com ele. As fortes tensões experimentadas na casa, principalmente a medida que cresce o desejo entre Octavio e Susana e o primeiro força situações às escondidas, encontram paralelismo com as primeiras aparições de outro núcleo, onde vemos Daniel (Alvaro Guerrero) com a esposa e as filhas, levando uma vida típica das classes médias-altas, enquanto atende telefonemas às escondidas de uma amante e experimenta com muito entusiasmo o novo romance. Um gradiente de tensão sexual é acompanhado pela segunda gravidez da jovem mãe; pela violência deflagrada entre os irmãos; a frequência das disputas travadas pelo cão; e o revanchismo crescente de Jarocho com relação a Octavio. Ramiro é sequestrado e espancado por homens a mando do irmão. Enquanto Octavio prepara a última – e mais rentável - luta de Cofi com outro cão de Jarocho, Susana e o marido fogem com o dinheiro das apostas. Apesar do desespero de Octavio, ele não desiste de encontrar a mulher que deseja e parte para a aposta, agora realizada em uma piscina pública abandonada. Jarocho mata Cofi com um tiro, Octavio o apunha-la e foge com Jorge e o cão ferido. A perseguição que se segue culmina no fatídico acidente de carros. A narrativa só voltará a apresentar sequências do núcleo de Octávio no terceiro capítulo. Ramiro foi morto em uma tentativa de assalto à banco e o irmão reencontra Susana no velório. Mesmo durante o luto, com a cabeça raspada, dificuldade para andar e diversos ferimentos, volta a tentar persuadir Susana a partir com ele para uma pequena cidade onde levariam uma vida idílica. Ele termina sozinho em uma rodoviária sem que a mulher que ama vá a seu encontro.

No segundo núcleo, protagonizado por Valéria (Gaya Toledo, atriz espanhola e única não latino-americana do elenco) e Daniel, nos deparamos com ambientes bem cuidados, limpos, maior claridade na iluminação e uma atmosfera aparentemente mais cordial. Valéria é apresentada como uma famosa modelo espanhola que representa uma importante campanha publicitária, com as fotos das suas longas pernas exibidas em outdoors pela cidade. Daniel é um influente editor de uma importante revista. Casado, com duas filhas, mas envolvido em um caso amoroso com a modelo. 38

Daniel é apresentado antes pela trama, adiando a entrada de Valéria até seu aparecimento em um programa televisivo assistido por Octavio e Jorge ou apenas exibida nas placas publicitárias. A pedido de Daniel e em troca da presença na capa da revista, Andrés Salgado (Ricardo Dalmacci) - um famoso ator mexicano – mantem um romance falso com fins publicitários com Valéria. Na saída do estúdio onde gravaram o programa, Andrés convence a modelo a almoçar com ele, mas na verdade a leva para um novo apartamento comprado por Daniel para viver com ela. Após receber a notícia de que o seu amante tinha deixado a esposa e, a partir daquele dia, dormiria ao seu lado todas as noites, Valéria pega o carro para comprar vinho e pão enquanto Daniel cozinha. O tranquilo passeio com Richie é abruptamente interrompido pela colisão. A mise-en-scène se transforma radicalmente, assim como a aparência e o estado de ânimo do casal. Os ambientes iluminados são substituídos por outros escuros, repletos de sombras projetadas – sobre os rostos inclusive. No hospital ficamos sabendo que Valéria não tem família no México nem ninguém na Espanha que possa responder por ela. O estado dela é delicado e corre risco de perder a perna se a recuperação não for adequada. Daniel assume os encargos e a leva para casa após as cirurgias. Valéria perde o contrato publicitário em função do acidente e Richie entra acidentalmente por um buraco no assoalho e não consegue voltar. O tormento se instaura na casa e temos algumas das cenas mais tensas da trama em função da demora para conseguir resgatar o cão e das virulentas discussões entre o casal. A falta de atitude de Daniel para retirar o cão parece associada com o custo em romper o piso – no dia em que se mudaram, quando o piso se rompeu, ele já sinalizara que não teve dinheiro para reformar o piso por priorizar outros aspectos, estéticos ao que parece, da reforma. O fim do contrato da modelo e as despesas médicas parecem ter agravado o caso. No fim, após os esforços indevidos de Valéria apesar do estado da perna, Daniel acaba destruindo o assoalho e resgatando o cão quase sem vida. Era tarde para a bela modelo, que teve finalmente a sua perna amputada. Daniel mostra arrependimento por abandonar a família. A cena em que ele e Valéria, na cadeira de rodas, observam em silêncio pela janela o espaço onde antes podíamos encontra-la exibida no outdoor, representa bem os sonhos despedaçados de ambos.

“Que es un fastasma?”, se indaga um velho comunista latino-americano que lutou entre os vermelhos contra as tropas franquistas na guerra civil espanhola em El espinazo del diablo (2001), filme do amigo de Iñárritu, . 39

Um evento terrivel, condenado a se repetir uma e outra vez. Um instante de dor, talvez. Algo morto que por momentos ainda parece vivo. Um sentimento suspenso no tempo, como uma fotografia embaçada. Como um inseto preso em âmbar. Um fastasma: é o que sou79.

“Um fantasma que segue vivo”, assim se define Martin, ou El Chivo (Emilio Echevarría), em uma das últimas cenas do filme, quando deixa um recado na secretária eletrônica de Maru, sua filha. Ele transita invisível pelas ruas da cidade, puxando um carro de mão com entulhos, rodeado por cães que apresentam a mesma aparência descuidada. Em suas interseções no primeiro capítulo vemos um homem de meia idade que observa por vezes entre janelas, faz recortes de jornais, prepara a arma e comete o assassinato de um homem de classe alta enquanto almoça em sofisticado restaurante. Mais tarde, sob a luz de velas, podemos vê-lo chorar ao ler o jornal e se deparar com a divulgação da morte e convocação para o enterro de uma mulher. No dia seguinte, enquanto acompanha o rito à distância, é notado por uma senhora e então revela-se que se trata da irmã de sua ex-mulher, recém falecida. A filha de El Chivo já é adulta mas pensa que o pai morreu. Ao longo do segundo capítulo vemos cenas de El Chivo seguindo, esperando e invadindo a casa da filha, onde se depara com fotografias dela com a sua nova família e um homem ocupando o seu lugar. Na abertura do último capítulo descobrimos a trajetória de El Chivo por meio de Leonardo (José Sefami), um policial corrupto, que a explica ao seu cliente, Gustavo (Rodrigo Murray) de forma anedótica. Martín era professor universitário mas abandonou a família para se juntar a um grupo guerrilheiro. Leonardo foi o seu captor e também quem o ajudou quando saiu da cadeia. Tinha se tornado alcoólatra e morador de rua. Desde então faz trabalhos como o que Gustavo estava encomendando. El Chivo resiste mas acaba aceitando a proposta de Leonardo e Gustavo. Enquanto estuda a distância os passos de Luis (Jorge Salinas), o seu alvo, presencia o acidente; ajuda Octavio; leva o dinheiro das rinhas e o cão. Não seria o acidente em si que provocaria a reviravolta na vida de El Chivo, mas sim elementos que passaram para as suas mãos por meio dele. O ex-professor cuida de Cofi em casa e o deixa descansando junto com os seus outros cães. O vemos seguir Luis pela cidade ao longo do dia a procura de uma oportunidade. Por

79 Monólogo que encerra o filme El espinazo del diablo, de Guillermo del Toro. Uma produção que envolve equipe, capital e locações espanholas e mexicanas. Foi lançado um ano após Amores perros, em 2001. 40 pouco não executou o assassinato à noite, na saída de um estabelecimento comercial, por conta de um grupo de crianças que atravessou o seu caminho. Ao voltar para casa, El Chivo e a plateia são surpreendidos com Cofi coberto pelo sangue dos outros cães. Em desespero ele tenta salvar uma pequena cadela que morre em seus braços assim que entram no carro. A matança realizada pelo cão de Octavio e as sequências seguintes, com os corpos sendo queimados e a dificuldade do dono dos cães em puxar o gatilho, resulta no ápice emocional da narrativa, provocando reações fortes na audiência – como em Cannes, onde se registraram muitas ocorrências de pessoas que não puderam permanecer na sala de exibição. Martin não pode matar o cão por parecer se identificar com ele. Os dois assassinos deveriam, desde então, trilhar destinos comuns. El Chivo sequestra Luis, em vez de mata-lo, descobre que é irmão de Gustavo e atrai o contratante até sua casa, colocando-os frente a frente. Os deixa então à própria sorte, amarrados com uma arma atirada ao chão entre eles. El Chivo repara e coloca os velhos óculos, se barbeia, corta os cabelos, se veste de forma digna e parte com Cofi. Antes de se perder de vista junto com o Rottweiler, por meio de uma paisagem desértica com areia escura, passa na casa da filha, substitui uma fotografia, deixa um grande volume de dinheiro e uma mensagem na caixa postal. Promete recuperar a dignidade para poder fazer parte de sua vida.

1.1.3 Refúgios familiares

O filmografia de Alejandro Gonzalez Iñárritu e o roteiro de Guillermo Arriaga em Amores Perros não oferecem uma nítida caracterização dos personagens. Não são fornecidos pacotes de informações em meio ao processo de apresentação que permitam ao espectador traçar o seu perfil, entender as suas motivações, os seus medos, as suas potencialidades e construir possíveis trajetórias. Carecemos de heróis e vilãos, da figura do antagonista que abala a estabilidade do mundo do protagonista com o qual devemos construir uma identificação. Não temos flashbacks com elementos do passado que expliquem as tensões e as decisões no presente, tão comuns por meio do acesso à memória dos agentes, tampouco fluxos de consciência ou monólogos interiores que ampliem nosso conhecimento sobre eles e deixem evidentes a existência de contradições em seus discursos ou na própria narrativa. Podemos afirmar muito pouco sobre eles, quanto mais construir nexos causais que imprimam coerência, ordem, estabilidade, permitindo ao espectador fazer inferências ou antecipações de maior alcance. 41

Octavio deseja a esposa do irmão. Em função de sua rotina podemos dizer que não estuda nem tem um trabalho fixo. Não parece se engajar em ações criminosas até o momento que se envolve nas rinhas de cães, ainda que a ilegalidade e a violência pareçam bem presentes e naturalizadas em seu entorno. Constrói planos sempre imediatos para ter e manter Susana e não sabemos até onde é capaz de chegar para atingir esse fim. Apesar de por vezes simpático e afetuoso, contrata homens para, por meio da violência, afastar Ramiro do caminho de Susana, além de explorar Cofi nas brigas com outros cães. A jovem, por sua parte, tenta dar continuidade aos estudos apesar do filho pequeno mas sem que isso pareça estar atrelado a algum projeto de futuro claro. Tem problemas com a sua mãe por conta do alcoolismo. Se casou em função da gravidez mas deseja e tem afeto por Ramiro, ainda que responda ao de Octavio e chegue a deseja-lo. Não sabemos se realmente considerou a possibilidade de partir com o irmão mais novo ou apenas considerava conveniente receber suas ajudas, presentes e altas quantias de dinheiro Daniel é um bem sucedido editor, simpático no trato, amoroso com as filhas. Não é apresentado outro motivo para abandonar a família que o que sente por Valéria. Ela é apresentada como uma mulher fútil que vive da beleza e, assim como o amante, parece pouco preocupada com o que pode acontecer se, pelo tempo ou pela fatalidade, um dia vier a perde- la. Richie parece muito mais importante para Valéria do que para Daniel, que deseja apenas agrada-la e se livrar do problema sem grandes esforços econômicos. Ela mostra ter sentimentos verdadeiros pelo cão e acaba perdendo a perna por não suportar ficar na cama enquanto ele sofre. É intensa em suas discussões e parece autêntica em suas relações interpessoais, ainda que manipule a imprensa sem maiores escrúpulos Os quatro personagens principais dos dois primeiros capítulos tem elementos em comum que resultam relevantes para esta investigação. Ao recompor as suas trajetórias com aquilo que a trama oferece nos deparamos com sujeitos que parecem mergulhados no presente, não em um continuum que ata o passado e o futuro em uma cadeia racionalmente apreensível, mas no breve instante do agir, no imediato onde sensações e sentimentos intensos são experimentados e imprimem movimento, em meio a uma miríade de acontecimentos e agentes que os atravessam e circulam entre eles. Seu caráter, suas escolhas, não são justificados – nem por eles nem pela narrativa – por contarem com um determinado background que arrastam sobre novas condições. Não buscam referencias em sua experiência passada ou a de outros. Tampouco podemos atribuí-los a algum projeto de futuro ou construção ideal. Não estão preocupados com o que podem se tornar, com feitos que podem um dia conquistar ou a maneira como serão lembrados. 42

“Para hacer reír a diós, cuentale tus planes”. Quando Susana recupera o ditado proferido pela avó, o faz apenas como recurso retórico, não como uma lição da experiência. Na vida veloz da urbe pós-moderna não há lugar para planos ou sonhos. Responde-se de forma imediata com os recursos que pode contar. O futuro é uma dimensão fechada. El Chivo é o único personagem com um passado significativo. Ex-professor, “ex- guerrilheiro”, ex-marido e “ex-pai”, Martín é por ele mesmo entendido como um espectro do que foi. Um dia a utopia política preencheu de sentido toda a sua vida. Queria construir um mundo novo para compartilhá-lo com as mulheres da sua vida – a sua esposa e a sua filha, Maru. Em nome de um amanhã idílico foi capaz de matar. As convicções e projetos desse futuro-passado, sempre comprometidas com a luta contra a existência e consciência alienadas, conduziram à sua alienação completa enquanto sujeito. Se na aparência física é caracterizado de maneira a recordar, sem grandes esforços, das imagens de Karl Marx, na conduta parece não estar comprometido com nada nem ter um telos qualquer - matar é apenas uma maneira fácil de garantir a subsistência. Prisioneiro do passado, Martín vive em um lugar lúgubre amontoado de revistas, livros e jornais. Não retira disso alguma lição significativa ou projeta outros mundos possíveis para Maru. A morte da sua ex-mulher; a dor provocada pela matança de Cofi; ou a absurda da reencenação do mito de Caim e Abel por meio dos irmãos e empresários Gustavo e Luis, apenas despertam de alguma forma traços da humanidade perdida. El Chivo deseja nada mais do que ter a filha de volta. O dinheiro deixado em sua cama ou a recuperação de alguma dignidade são apenas meios para fazer disso possível. Precisa, para tal, deixar de viver entre os escombros do passado, abandonando o mundo onde o futuro constituía o leitmotiv da existência. O presente é o lugar onde habitam os homens e os seus amores perros.

Este é o caminho que me parece interessante para recuperar dois temas recorrentes nas críticas que o primeiro longa-metragem de Iñárrito recebeu: sobre os sentidos dessa “estética da brutalidade”, da violência enquanto epicentro da experiência latino-americana, assim como sobre os seus traços conservadores. As três histórias do filme tratam de conflitos familiares. Octavio luta com Ramiro e se mete em problemas com a gangue de Jarocho para roubar a mulher do irmão. Na fuga pela cidade, choca-se com Valéria quando esta buscava produtos para completar o almoço de comemoração da nova vida ao lado de Daniel, que termina arrependido deixar a esposa e os filhos. El Chivo passou por um purgatório depois de abandonar a família em função das suas convicções políticas. Seu retorno ao mundo dos vivos é movido pelo amor paterno, fazendo 43 com que desista do último assassinato e deixe que os irmãos resolvam as suas diferenças. Como nos melodramas das novelas transmitidas por Televisa, a infidelidade e o abandono são causas comuns de sofrimento e desestabilização das trajetórias individuais. O acidente, ainda que obra do acaso, pode ser lido como compensação e a família, como única forma de redenção. Ainda que o Iñárritu tenha afirmado mais de uma vez que a violência pode ser encontrada em todas as classes sociais e que apareça como alternativa de sobrevivência para as classes pobres, algo bem representado em seu filme, ela aparece naturalizada e esvaziada de questões políticas e éticas. Ela está atrelada, por um lado, à esfera familiar e aos valores que a estruturam, mas por outro aparece como resultado do contato entre classes sociais que ameaça o modo de vida das classes médias. A ausência do estado em todas as esferas reforça ainda mais a sensação de insegurança e o desejo de regulação exterior. A história de El Chivo é o único momento em que a trama aborda o uso da violência para fins de mudança social. Esse projeto, por sua vez, é tratado como algo que não pertence ao presente e que resultou na destruição de lares e indivíduos. Para Laura Podalski tal leitura da cidade está de acordo com uma “crise epistemológica que desestabilizou a compreensão que o sujeito tem da sociedade contemporânea e, talvez de maneira mais importante, da sua habilidade de fazer propostas substantivas para um futuro melhor”80. O registro afetivo típico das telenovelas, segundo ela, deixaria fora de discussão o registro político e social das ações. Em vez de pensar a cidade como um espaço público, portanto, Amores perros a representa como uma confusa interseção de esferas e interesses privados. Sem passado ou futuro, arrastado pelo fluxo de emoções e pela complexa teia de ações onde nunca se conhece todos os atores e os seus desdobramentos, personagem e espectador não tem condições de projetar mais que o próximo passo, sempre em resposta e nunca na transformação das circunstâncias. O esforço se dá na manutenção das rotinas, na amplificação do prazer e minimização dos danos, sem um amanhã projetado que sirva de referência, um passado exemplar que ofereça um guia, nem qualquer possibilidade de transformação radical das estruturas do presente. O estudo da linguagem cinematográfica, dos dispositivos narrativos, parece reforçar o viés conservador do filme. As altas pretensões realistas dos seus realizadores, quando somadas à predominância do enquadramento fechado e a ausência de planos abertos que permitam o afastamento e a compreensão do entorno; à velocidade do corte; ao impacto da profusão de imagens na montagem; ao enorme esforço requerido da audiência na inteligibilidade da trama

80 PODALSKY, Laura. Affecting Legacies. Historical Memory and Contemporary Structures of Feeling in Madagascar and Amores Perros. Screen, a. 44, No.3, 2003, p. 284. 44 e construção das histórias, dado baixo nível de informação e manipulação temporal, não atuam na crítica do real, mas na sensação de que é impossível de ultrapassá-lo. Ou seja, por um lado é naturalizado, por outro, minimizam-se os papéis da intencionalidade e da racionalidade humanas. A utilização do flashfoward em Amores Perros também merece considerações. Uma análise da repetição da cena de colisão de automóveis permite verificar que, ainda que cada uma traga novas tomadas e mais conteúdo informacional, não podemos dizer que sejam oferecidos novos “pontos de vista”, ou leituras alternativas. Nenhuma informação divergente, nenhum sentido alternativo. A repetição reforça, na verdade, a inevitabilidade do acaso, que quando entendida como castigo para personagens que se engajaram em romances proibidos, separando famílias, ganha tons de providência divina. A fala de Iñárrito, ao abordar os motivos pela escolha de uma estrutura narrativa não- linear para o seu segundo longa, 21 gramms, coincide com a análise realizada aqui:

Tudo parecia muito previsível. Eu percebi imediatamente que a história se beneficiaria com uma estrutura narrativa embaralhada, porque dessa forma, previsibilidade se tornaria inevitabilidade. E inevitabilidade, em oposição à previsibilidade, pode ser muito interessante para se contar uma história. (...)Eu estava com medo que os espectadores vissem o filme como um quebra-cabeças a ser resolvido. Eu não queria que eles pensassem muito sobre a estrutura. Eu estava buscando uma estrutura emocional em uma história completamente atemporal.81

No próximo capítulo discutiremos os efeitos das manipulações temporais responsáveis por construir narrativas não-lineares. Por agora é importante destacar que o engenho de Iñárritu na construção de uma arquitetura extremamente sofisticada foi bem sucedido em capturar o interesse de plateias, estimular uma postura ativa e, principalmente, em produzir fortes sensações por meio de um mergulho visceral. Em seu primeiro longa, porém, ao contrário de outras narrativas de rede, parece pouco preocupado em explorar a multiplicidade de pontos de referência, as experiências de alteridade, matizando e sensibilizando plateias com os contrastes.

81 No original: Everything seemed quite predictable. I immediately realized that the history would benefit from a scrambled narrative structure, because that way predicability would become inevitability. And inevitability, as opposed to predicability, can be a very interesting when telling a story. (...) was afraid that spectators would see the movie as a puzzle to be solved. I didn’t want them to think too much about the structure. I was looking for an emotional structure in a completely atemporal storyline. (DELEYTO, Celestino; AZCONA, María del Mar. Alejandro Gonzáles Iñárritu: contemporary film directors. Illinois: University of Illinois Press, 2010. p. 130) 45

Retomaremos essa reflexão na análise fílmica de Babel e ao recuperar aspectos de outros trabalhos ao longo da sua carreira.

1.2 Babel

O primeiro longa de Alejandro Gonzalez Iñárritu tem a violência urbana e a insegurança no centro da representação da sua urbe latina pós-moderna. Ele mesmo viria a ser vítima dela após o sucesso de Amores Perros, vendo sua família sendo alvo de sequestro e assaltos. Isso o levou a cruzar a fronteira junto com os seus principais colaboradores, levando o seu segundo projeto – com roteiro ainda em castellano - para o cinema independente estadunidense. Com distribuição da Focus Features (braço da Universal especializado nesse tipo de produção) e um elenco hollywoodiano - , Benicio Del Toro e Naomi Watts -, 21 Grams (2003) teve maior sucesso de público na Europa e no México do que nos EUA, logrando boa recepção da crítica especializada e algumas nomeações em festivais. Ainda apostando pelo multiprotagonismo - de forma mais tímida, trazendo três personagens com esse peso –, o filme nos apresenta a história de três estranhos que tem suas vidas conectadas por um atropelamento de carro. O personagem de Del Toro é um ex- presidiário que se tornou um religioso fervoroso e acaba atropelando o marido do personagem de Watts, deixando-a sozinha com as suas duas filhas. O personagem de Penn é um homem doente que recebe o coração do homem atropelado, passando a perseguir e terminando por se envolver com a viúva do antigo dono do seu órgão. O desejo de vingança acabaria produzindo o reencontro com o responsável pelo atropelamento. Desta vez, os personagens se vem para sempre conectados pela fatalidade. O coração consiste no objeto circundante que, transferido de mãos, produz a sutura emocional entre os sujeitos. O flashforward estruturante, ou seja, a antecipação de um evento cronologicamente posterior na narrativa e a repetição deste por meio de várias perspectivas foi a pedra angular da arquitetura de Amores Perros e foi mobilizado em 21 grams, um enredo que produz a fusão de dois eixos de ação mas não permite ao espectador qualquer ordenamento temporal da narrativa na maior parte do filme. A montagem não conta com o encadeamento causal como ponte entre as cenas, mas sim com os paralelismos emocionais e as semelhanças estéticas – na luz, cor, ou composição do cenário. Elementos típicos do melodrama, já presentes no longa-metragem anterior, girando em torno da família, do romance e da vida e morte, foram combinados com outros mais comuns no cinema de arte moderno, como a centralidade do imagem sobre a linguagem oral. 46

Babel, último filme da série conhecida como “trilogia da dor” ou “trilogia da morte”, por outro lado, por meio de uma aposta narrativa mais facilmente assimilável pelo público, ao mesmo tempo mais familiarizado com ele depois do sucesso de filmes de “histórias cruzadas”, teve uma circulação mais ampla e foi um sucesso de bilheteria, além de aparecer nas principais premiações. Com um investimento em torno de 20 milhões de dólares; arrecadação de 135 milhões; 6 indicações ao Oscar, como melhor filme, melhor direção e levando a estatueta pela trilha sonora de Gustavo Santaolalla; e três premiações em Cannes, o filme mudaria a posição do diretor com relação aos grandes estúdios da indústria. Produção transnacional por excelência, teve quatro locações (EUA, México, Japão e Marrocos); contou com atores e equipe técnica de todos eles, com uma interessante mistura de estrelas hollywoodianas com atores amadores, como no caso do núcleo marroquino; além de receber financiamento e colaboração de estúdios como a Paramaunt Vantage, dos EUA, Zeta Films, do México, e Central Films, da França. A diversidade de idiomas e de músicas na trilha sonora contribuiu para reforçar a atualidade dessa experiência cinematográfica. O longa-metragem oferece uma complexa trama montada à partir de quatro eixos de ação divididos em 24 sequências. O presente de Iñárritu é composto pela coexistência entre mundos distintos, porém, completamente interdependentes. Diferenças econômicas, fenotípicas, culturais e de pertencimento a regimes políticos convivem com o transito de pessoas e objetos. Esses deslocamentos e entrecruzamentos, longe de reduzirem a alteridade, produzindo alguma espécie de síntese ou reconciliação, parecem conduzir a experiências de sofrimento, brutalidade e isolamento, reconduzindo cada um para o refúgio familiar. As fronteiras oferecem não apenas uma nítida percepção da desigualdade entre os estados e os indivíduos em seu território – inclusive formal, uma vez que o tratamento e os direitos dizem respeito ao regime jurídico/político ao qual cada um pertence -, mas também na possibilidade de deslocar-se por eles. O dinamismo, a higiene, a quantidade de artefatos tecnológicos à disposição ou na composição do cenário, permite contrapor paisagens pós- modernas como a de Tóquio com vilarejos aparentemente pertencentes a um tempo outro. Os ambientes desertificados do Marrocos e do México constituem um claro exemplo daquela experiência tão bem descrita por Octavio Paz acerca de um presente cindido, da coexistência entre dois mundos para aqueles que vivem fora dos grandes centros. Ou seja, que o presente está lá fora, em Nova York, Londres ou Tókio, enquanto outros podem viver em um passado que tem nesses lugares seu futuro necessário ou desejado82.

82 Como em El Laberinto de la Soledad, de Octavio Paz. 47

Como exposto no capítulo de introdução, a escolha dos diretores e filmes tomados para a análise levou em conta, ao lado do impacto sobre a bilheteria e a crítica especializada, a relevância dos aspectos formais que oferecem para uma reflexão sobre o tempo enquanto auto- referência histórica e, evidentemente, como articulam alguns dos temas mais caros à reflexão sobre o mundo contemporâneo nos primeiros anos do século XXI. Ou seja, tendo sempre em mente que a forma também é conteúdo, pensar como transformações na narrativa do cinema respondem às tensões e narrativas sobre o estatuto do presente, produzindo ao mesmo tempo leituras que concorrem e contribuem para delimitar os seus contornos. A globalização, com a intensificação das trocas; do trânsito; das reduções das distâncias e da manutenção das fronteiras; da interdependência – sempre pensada enquanto “desenvolvimento desigual e combinado” -; do hibridismo; da complexidade cultural e identitária, aparece no filme ao lado de temas como solidão, insegurança e das diferentes redes de proteção dos indivíduos em função das classes sociais e “mundos” que habitam. A sua transnacionalidade se verifica, portanto, tanto a nível da produção e circulação quanto no produto final que entregam.

A interculturalidade no cinema tenta traduzir a experiência de viver entre duas ou mais culturas e sociedades diferentes, que concebem novas formas de pensar e de conhecimento. É um cinema compartilhado por pessoas que sofreram o deslocamento e que viveram os hibridismos e para quem a representação do cinema convencional – o cinema clássico, não é suficiente. Cinema multicultural, mestiço, pós-colonial, transnacional (...) muitas denominações para um gênero que se torna cada vez mais importante. Sua principal característica é a de extrapolar, de uma maneira original, as técnicas cinematográficas sobre temas e narrativas (roteiros) já bem conhecidos.83

No sentido dado por Lipovetsky e Serroy ao termo multiplex no cinema, “a clara diferenciação entre a ação principal e as complementares foi fraturada em uma forma marcada pela não-linearidade, descontinuidade e fragmentação dos padrões de narração”.84 Em oposição ao simplex dos produtos de entretenimento típicos de Hollywood, o multiplex parece tentar responder à complexidade do mundo contemporâneo, a multiplicação de agentes e pontos de referência; dos trânsitos vertiginosos de objetos e pessoas; além da combinação entre sínteses e contrastes produzidos pelo processo de globalização85.

83 FRANÇA, Andréa; LOPES, Denílson. Cinema, globalização e interculturalidade. Chapecó: Argos, 2010. p. 45. 84 GIUNTINI, Mauro. Op cit., 2015. p. 41 85 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A Tela Global: mídias culturais e cinema na era hipermoderna. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 67. 48

A multiplicação das trocas, a mistura étnica criada por fluxos migratórios e viagens, a abertura às outras culturas (significativamente ilustrada, num outro plano, pela world music) e a interpenetração cada vez maior dos povos e das consciências, gerada e desenvolvida pelos meios de comunicação e difusão da informação globalizados. Costuma- se associar a globalização a um poder de homogeneização dos produtos e das culturas, à uniformização das práticas, à ocidentalização ou à americanização do mundo. É não ver que ela se acompanha, ao mesmo tempo, não só de uma economia da variedade, mas também de um patchwork de referenciais, de formas culturais cada vez mais fluidas e imprevisíveis, mestiçadas e transnacionais, ‘caóticas’ e fractais. Na hora da globalização hipermoderna, as identidades se misturam, tornam-se voláteis, descompartimentadas e caleidoscópicas. Mesmo se a época testemunha a revitalização dos fundamentalismos religiosos e das identidades étnico-nacionais, o fato é que os modelos de estabilidade e de homogeneidade cedem o passo a fluxos discordantes, a processos de cruzamento das identidades tradicionais. Mais que qualquer outro, o mundo do cinema participa diretamente dessa dinâmica: um número crescente de realizadores se alimenta de uma multiplicidade de referências, identificando-se a grupos diversos, reivindicando filiações plurais que se recobrem apenas parcialmente, construindo assim um sincretismo cultural na verdade muito individualizado.86

Porém, como nos lembra Stuart Hall acerca das sociedades da modernidade tardia:

são caracterizadas pela diferença; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de ‘posições de sujeito’ – isto é, identidades – para os indivíduos. Se tais sociedades não se desintegram totalmente não é porque são unificadas, mas porque seus diferentes elementos e identidades podem sob certas circunstâncias, ser conjuntamente articulados.87

É um elemento típico das network narratives a busca por articulações entre as experiências, leituras e identidades fragmentadas. Na complexa arquitetura narrativa, no intrincado processo de montagem, contrastam ao mesmo tempo que conectam – ao menos emocionalmente – por meio da comparação e da transversalidade. Este estudo se interessa também pelas possibilidades de agência e posição dos sujeitos nas narrativas atuais uma vez afrontados com um cenário tão complexo. Nos perguntamos pela maneira que articulam experiência e expectativa e entendem o seu lugar na construção do

86 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. Ibid., p. 95-96. 87 HALL, Stuart . A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 17 49 entorno, do seus sucessos ou insucessos, assim como da constituição da sua própria autoimagem. No modelo simplex podemos acompanhar um único eixo de ação e um ou dois protagonistas claramente caracterizados. A apresentação dos personagens quase sempre em situação de estabilidade é acompanhada por alguma ocorrência que provoca um distúrbio em seu “mundo”. Passamos a percorrer linearmente as sequências de ações, com a fluidez de uma montagem que opera a ligação entre as cenas de maneira a exigir o mínimo esforço, evitando assimetrias entre trama e história que deixem em evidência a manipulação da narração. Não mais que um ou outro recuo ao passado (flashback) ou acesso às memórias, aos monólogos interiores, são permitidos, sempre contribuindo para aumentar a transparência das suas personalidades e escolhas. Algumas informações podem até ser retidas ou atrasadas, provocando o suspense, ou a surpresa pode ser incitada com um novo elemento que quebre com as antecipações intencionalmente guiadas mas operadas pelo público. Mas identificação do espectador com os protagonistas trabalha ao lado das estratégias que ampliam a legibilidade. O estereótipo, o clichê, a replicação das estruturas do real por meio da tela, com imagens estáveis do cotidiano que, quando perturbadas, devem ser reconduzidas pela trama a uma nova situação de ordem, são expressão do conformismo e tem nítidos contornos ideológicos88. O blockbuster dos anos 1980 não rompe com a previsibilidade – estilística mas também a nível de investimento - do cinema de gênero. Faz dele um espetáculo ainda maior por meio de grandes investimentos nas produções e publicidade, criando um emaranhado de produtos conexos que ampliam a fruição das narrativas para além do momento de exibição. Os filmes da franquia Star Wars, de ou Indiana Jones, de Spielberg, são casos típicos dos desdobramentos da “Nova Hollywood”, a qual operou renovações temáticas, estilísticas e narrativas, sem no entanto romper com a simplicidade do que é contado89. Os anos 1990 e as primeiras décadas do século XX viram “a combinação da imagem simplex e da imagem-excesso, a extrema simplicidade do seu ‘funcionamento’ dando amplitude a efeitos especiais cada vez mais assombrosos”90, nos épicos de fantasia, como a trilogia ; nos filmes de ação, como a franquia The Fast and the Furious; ou nos filmes de super-heróis retirados de revistas em quadrinhos, como Spider-Man. A mistura entre gêneros

88 Aqui a leitura de Adorno e Horkheimer acerca da indústria cultural ainda parece muito pertinente. ADORNO e HORKHEIMER. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 89 Não tenho a pretensão de reduzir a isso o rico movimento da Nova Hollywood. Para tal, é interessante contrapor leituras como, por exemplo, a de David Bordwell, Fernando Mascarello (MASCARELLO, Fernando. “Cinema Hollywoodiano Contemporâneo”. In: MASCARELLO, Fernando (org.). História do Cinema Mundial. Campinas: Papirus, 2006, p. 333-360) e Peter Lev (LEV, Peter. American Films of the 70s: Conflicting Visions. Austin: University of Texas Press, 2000). 90 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. Op cit., 2009. p. 92. 50 e o aumento de protagonistas, combinado com espetáculos visuais possibilitados pela combinação da computação gráfica, da gravação digital e da “captura de movimento”, criou caros espetáculos que exigiram estratégias para arrebatar públicos diferenciados. Como na transposição de best-sellers para a grande tela – The Da Vinci Code é um ótimo exemplo - teremos espaço para o romance, o drama, a ação, ou o suspense; nos filmes inspirados nos heróis da Marvel, que transitam entre a ação e a comédia, fazendo um sem fim de referências e agradando diferentes faixas etárias. A coexistência do simplex e do multiplex, para Lipovetzky e Serroy, está relacionada com a diversificação e desregulação do mercado cinematográfico, expandido agora por boa parte do globo. As tensões entre as espacialidades, culturas e sentimentos de pertencimento em múltiplos níveis se faz notar tanto pelas demandas quanto pela diversificação dos agentes na produção. Tendo os estúdios e distribuidoras de Hollywood uma força centrípeta que absorve talentos, linguagens e temáticas ao mesmo tempo que se faz omnipresente nas múltiplas telas conectadas por todo globo, parece claro que encontramos muito dela nas produções pulverizadas, mesmo as que parecem voltadas para mercados nacionais periféricos, ao mesmo tempo que absorve, reconfigura e se renova incessantemente. Penso, porém, que é importante enfatizar que os grandes estúdios estadunidenses, ao expandirem suas redes pelos continentes por meio da distribuição e da criação de braços menores, especializados em determinados “nichos”, muito atentos ao mercado ao mesmo tempo que participam de coproduções e investimentos em um sem número de filmes com orçamentos mais modestos, criam verdadeiros laboratórios, experimentando e desenvolvendo, assim como buscando identificar a aceitação de espectadores a determinados produtos. Ou seja, por meio deles familiarizam os espectadores com novas fórmulas, promovem cineastas e atores, preparam o terreno para as novas superproduções, ao mesmo tempo que coletam informações e minimizam as chances de fracassos de bilheteria. Desregulação, diversidade, espontaneidade e inovação caminham juntos com os esforços pela minimização dos riscos, manipulação da legibilidade e a suavização de rupturas, agora planejadas. A obra de Alejandro Gonzalez Iñárritu foi entendida aqui na negociação e participação da configuração desse cenário. Babel é produzida em meio ao sucesso de filmes histórias cruzadas, como Short cuts (1993), de Robert Altman; Crash (2005), de Paul Haggis; ou Amores Perros (2000), mas também ao lado de experiências como a de em Time cod (2001), com a tela dividida em quatro partes projetando histórias simultaneamente. O cineasta a esta altura começa a ser reconhecido como uma “marca”, projetando expectativas no público acerca das manipulações narrativas, dos entrecruzamentos acidentais entre múltiplos 51 protagonistas, mas também por uma estética realista que produzem intensa carga emotiva, brutalidade e visceralidade em seus filmes. Ele, os seus investidores e realizadores são sensíveis ao apetite por violência que o comparou a cineastas de sucesso como Quentin Tarantino, mas também à pertinência dos choques civilizacionais em um mundo globalizado, que aspira consumir outros mundos ao mesmo tempo que teme desaparecer em meio à fragilidade de suas fronteiras – por conta da proliferação de imigrantes ou de ameaças terroristas que assombram os países mais ricos, principalmente deste o 11 de setembro de 2001.

1.2.1 (frágeis) Conexões em rede

No primeiro eixo de ação, em uma despovoada paisagem do Marrocos, Hassan (Abdelkader Bara) caminha até a casa Abdullah (Mustapha Rachidi), onde troca um rifle e munição por uma cabra e uma quantia em dinheiro. O vestuário é simples e com características marcadamente locais, assim como a casa, onde chama a atenção a precariedade do mobiliário e a ausência de energia elétrica. A fotografia valoriza a intensidade da luz externa, com a predominância de tons de amarelo e ressaltando as marcas deixadas pelo sol, nos corpos humanos e na aparência queimada das rochas. Visando proteger o rebanho do assédio dos chacais, Abdullah entrega a arma aos filhos pré-adolescentes, Yussef (Boubker Ait El Caid), o caçula, e Ahmed (Said Tarchani), o mais velho, depois de não mais que uma breve demonstração sobre o seu funcionamento. O irmão mais velho encontra o outro espiando a irmã despida pelo buraco na parece externa da casa, o repreende e volta a faze-lo durante o trabalho de pastoreio. Transitamos entre tomadas externas e planos abertos com pouquíssimo movimento. Não são oferecidos pontos de referência, por outro lado, tampouco temos música extradiegética, destacando-se os ruídos do vento e das cabras. Os irmãos praticam com a arma de fogo e testam seu alcance. Um tiro irresponsável dirigido a um ônibus que lentamente percorre uma sinuosa estrada, parece provocar algum dano, fazendo com que o ônibus pare e os meninos saiam correndo. O filme produz um salto para outra sequência, nos Estados Unidos, onde duas crianças loiras correm para se esconder da sua babá Amelia (Adriana Barraza) - reforçando com a montagem o profundo contraste entre a infância de uns e outros. O ambiente é limpo, a casa é bem equipada, confortável e existe equilíbrio de luz e cores que faz desse um ambiente acolhedor. Amelia conversa ao telefone com o pai das crianças, Richard (Brad Pitt), recebendo 52 notícias sobre o estado de saúde da mãe, Susan (). É informada que um parente cuidará das crianças para que Amélia possa ir ao México assistir ao casamento do seu filho. Amélia coloca os dois na cama e reconforta a filha mais velha, que tem medo de dormir, uma vez que o seu irmão, ainda bebe, não despertou. Ouvimos os primeiros acordes da trilha sonora de Gustavo Santaolalla – vencedor do Oscar por esse filme e reconhecido pelos trabalhos nos filmes anteriores de Iñárritu. No dia seguinte a babá desperta com o toque do telefone. Um parente da família diz que não poderão ficar com as crianças em função do que aconteceu com Susan e, apesar dos pedidos de Amélia, recomenda que “remarquem para outra data”, diz ele. Ela liga e procura pessoas conhecidas para que alguém fique com as crianças por um dia. Os contatos e amigos de Amélia são outras imigrantes que trabalham como empregadas domésticas. Como ninguém pode se encarregar dos pequenos, ela decide levá-las para a festa, em um carro antigo, junto a seu sobrinho Santiago (Gael García Bernal). Voltamos para o Marrocos no terceiro eixo. A ligação entre as cenas é produzida pela luz do sol e pela paleta de cores. Tomadas externas mostram turistas brancos subindo em camelos e passeando por uma paisagem muito semelhante à do primeiro. Um casal americano é atendido, em inglês, por um garçom em uma tenda. Susan e Richard estão em uma espécie de “viagem de reconciliação” após a perda de um filho. Os dois parecem muito desgastados emocionalmente. Ela busca conversar sobre o problema de forma agressiva, ele evade. No ônibus, o isolamento entre ambos é claro. Um breve toque de mãos é o único gesto que os aproxima. Mais algumas notas da trilha sonora original enquanto alternam-se tomadas do deserto com deslocamentos a pé e internas, de Susan. A música silencia em uma longa tomada que a mostra dormindo. A diminuição do ritmo da montagem gera suspense, aumenta a expectativa, até que a turista americana é despertada quando uma bala silenciosa rompe o vidro e a atinge, provocando um grave ferimento. Agora em primeiríssimo plano, com a instável câmera de Rodrigo Prieto e transição entre planos muito velozes na montagem, Richard tenta entender o que aconteceu, procura pelo ferimento. O desespero se instala no ônibus e somos abruptamente transportados para uma partida de vôlei no Japão. Nessa quarta história temos contato com o mundo de Chieko (Rinko Kikuchi), uma adolescente surda-muda em fase de descoberta da sua sexualidade. Na discussão a partir da linguagem de sinais com o árbitro, ela termina expulsa e é repreendida por amigas no vestiário. No carro com o pai, Yasujiro (Kôji Yakusho), um empresário pertencente às classe abastadas, a vemos discutir por motivo fútil e reivindicar a atenção um dia dada pela mãe. A dor da sua perda parece construir um longo fosso entre os dois, reforçado por uma paleta de cores fria, que 53 ao mesmo tempo transmite uma sensação de esterilidade do ambiente muito distintas da poeira, do suor e da paleta quente que predomina no Marrocos ou, a seguir, no México. Somos levados por espaços barulhentos, repletos de painéis luminosos e com uma enorme densidade de pessoas. Chieko encontra amigas para comer em um estabelecimento com musica (diegética) e muitas máquinas de jogos eletrônicos. Ela e sua amiga despertam a atenção de rapazes, mas quando procuradas, eles recuam entre risadas ao perceber as limitações auditivas e da dificuldade de comunicação. A jovem retira a roupa íntima no banheiro, exibindo posteriormente parte da genitália ao abrir as pernas de frente a um rapazes sentados em nível inferior. Ela se despede entre as risadas das amigas. Retornamos para as paredes feitas de barro e as cabras do núcleo marroquino. A passagem entre as sequências é brusca, saindo de um espaço povoado e barulhento para outro desertificado onde apenas ouvimos o vento, mais uma vez. A mãe dos adolescentes os encontra no quarto durante o dia. Eles dizem que estão passando mal mas são obrigados a retomarem as tarefas. O caçula e a irmã trocam olhares de cumplicidade. A noite, todos comem juntos com as mãos, na mesma vasilha. O pai conta que se atrasou porque a polícia realizava buscas por conta da morte de uma turista americana. Se tratava de um disparo de um terrorista ainda desconhecido. Os jovens se entreolham assustados. Não conseguiriam dormir depois. Amelia, o sobrinho e as crianças americanas cruzam sem qualquer fiscalização a fronteira para o México. A música local toca alto dentro do carro, se misturando com a exterior e os ruídos de uma paisagem urbana subdesenvolvida. “A minha mãe disse que o México é muito perigoso”, comenta o garoto. Santiado responde ironicamente que é verdade, porque está cheio de mexicanos. A montagem entre cenas no carro e externas produz um pequeno videoclipe até que o carro abandona o asfalto e entra em uma paisagem rural, árida. Existe maior colorido que no eixo de Yussef e Ahmed, mas a incidência de luz e as colinas ao redor guardam grandes semelhanças. Amélia reencontra a família e o filho, já vestido para o casamento. As crianças brincam com outras que estão no rancho, por conta da festa. Debbi, a mais velha, consegue apanhar uma das galinhas. Na cena seguinte o irmão ajuda Santiago a abate-la, cercado por outros pequenos. Os irmãos ficam muito assustados quando o sobrinho de Amélia arranca a cabeça a galinha. O sangue e o seu semblante de dor operam ligação na passagem para o outro eixo, dentro do ônibus, onde Susan sangra muito assustada. Richard e o Guia turístico tentam ajuda-la e buscam alternativas. Não existe nenhum hospital em horas e decidem retornar até um vilarejo onde encontrariam um médico. A câmera sacode muito e alternamos rapidamente, com cortes de cerca de um segundo, entre o 54 primeiríssimo plano e o plano detalhe, simulando o tempo todo a perspectiva dos figurantes, atores secundários e protagonistas. Tomadas externas, ao longo do filme, mostram os deslocamentos por trilhas e estradas, mas neste eixo mostram o contraste do ônibus com a paisagem e os meios de transporte locais. Olhares assustados dos turistas em direção ao exterior, onde vemos pessoas pobres com roupas e símbolos que remetem a tradição islâmica, são contrapostos pela perspectiva deles, com seu espaço cortado por um veículo que não pertence àquele ambiente. Ao som do oud de Santaolalla – instrumento afro-mediterrâneo que lembra tanto instrumentos típicos do México como da cultura japonesa -, que segundo Iñárritu foi fundamental para oferecer ligações emocionais entre os núcleos de ação91, mas silenciado o som no mundo do filme, vemos Richard carregar Susan e seguir o guia pelo vilarejo. A câmera percorre o ambiente como mais um dos curiosos que os segue, as vezes também reproduzindo a perspectiva dos que observam e dos que são observados por eles. A montagem conecta tomadas de forma a produzir uma espacialidade circular, mesmo quando em movimento, como na sequência em questão. Chegam em uma casa simples, mas limpa e digna, colocando Susan em uma tapeçaria aos cuidados de uma idosa. Richard consegue contatar a cunhada por um telefone fixo, comunica o ocorrido, oferece referencias de sua localização e pede que entrem em contato com pessoas conhecidas que podem ajudar e com a embaixada, convencido que o seu Estado cuidará disso. O médico chega, constata que Susan precisará de um hospital, que tem um corte profundo e uma fratura e aplica pontos sem qualquer analgésico. Trata-se de um médico veterinário na verdade. O espaço da sala parece comprimido pela cinematografia. Durante o procedimento, eles seguram a mulher ferida enquanto ela grita e se contorce de dor em uma cena com forte carga dramática. Saltamos bruscamente para mais de vinte segundos de silêncio em um bem equipado consultório dentário no Japão, mimetizando no tratamento de som a perspectiva auditiva de Chieko e oferecendo contrastes entre os eixos. A jovem, sem saber lidar com suas pulsões sexuais não correspondidas, tenta beijar a força o dentista durante o atendimento e é expulsa do local. O som ambiente mais uma vez é suprimido enquanto a jovem abatida percorre as ruas a caminho de casa. No saguão do edifício é interpelada gentilmente por dois policiais. Eles precisam falar com o pai. Ela imagina que o

91 GARCÍA, Rodrigo. The Foundations of Babel: a conversation between Rodrigo García and Alejandro González Iñárritu. In: Babel: a film by Alejandro González Iñárritu. Ed. María Hargerman. Hong Kong: Tashen, 2007. 55 motivo seja ainda a morte da mãe. Em casa, enquanto transita entre canais de TV, vê a notícia sobre a investigação de um atentado terrorista, com as fotos dos meninos marroquinos e do pai deles aparecendo como suspeitos. Após uma ligação de voz e vídeo com uma amiga, volta a sair. No Marrocos, de pé antes do sol nascer, ao som de notas de um instrumento local, os garotos escondem o rifle entre rochas. Policiais fazem revistas na estrada, buscas nas montanhas e encontram cartuchos dos disparos, o que os leva ao antigo dono do rifle, Hassan. Uma comitiva de carros de polícia chegam em sua casa. Ele e sua esposa são rendidos com violência sem entender o que aconteceu. Abdullah manda os filhos levarem peles para vender. Hassan e a esposa são castigados com veemência e o marido conta que vendeu o rifle. A comitiva, em seguida, passa pelos irmãos em meio ao labirinto de montanhas, trilhas e estradas rudimentares. O policial pergunta pela casa de Abdullah mas Yussef o despista. Os dois correm para casa e contam tudo para o pai, dividindo acusações. O mais velho conta sobre as ações incestuosas dos irmãos menores, brigam enquanto o pai tenta separá-los, atônito, e as duas mulheres da casa mantém distância. A montagem obedece sempre essa ordem na passagem entre os eixos de ação. Temos momentos de distensão da carga dramática com a festa do casamento do filho de Amélia, embalados por musicas rancheiras e a composição de imagem e som na montagem que faz referência à cultura dos videoclipes. Amélia tem momentos amorosos com um homem viúvo. O mesmo se dá em Tóquio quando Chieko e a sua melhor amiga encontram um grupo de rapazes em uma praça, experimentando álcool e drogas com eles. O interesse por um deles, que parece corresponder, a leva até uma boate onde toca música eletrônica. A perspectiva sonora da personagem, por meio de silêncios que desorientam a audiência, é interposta pelo som da música diegética. A família de Abdullah cai em desgraça – como ele mesmo definiu. Após castigar os filhos pelos erros cometidos com a arma e pelas práticas proibidas entre irmãos, os homens partem pelas montanhas fugindo da polícia. Hassan e a esposa voltam a ser agredidos pelas autoridades marroquinas e então aparece a conexão dele com Yasujiro, por meio de uma fotografia. Ele teria presenteado Hassan, seu guia, enquanto esteve fazendo caça esportiva pela região. A polícia encontraria os três nas montanhas e dispararia sem qualquer pudor, atingindo o filho mais velho na perna. Enquanto o pai acudia Ahmed, o Yussef troca tiros com os policiais, atingindo um deles no ombro (mesma região onde Susan foi atingida). À noite, após a festa, Amelia e os filhos de Susan e Richard voltam para os EUA com Santiago, algo embriagado. No sentido inverso da fronteira se deparam com controles policiais 56 e são parados. A truculência policial provoca uma discussão com Santiago que, de maneira irresponsável, foge com o carro pelo deserto, abandonando a tia e as crianças em uma estrada de terra – aparentemente para protege-los, temendo por uma encontro violento com a polícia a seguir. Richard se aproxima do guia turístico, os dois trocam fotos. Susan dorme depois de ter compartilhado o fumo de algum entorpecente (penso que se tratava de ópio) com a anciã, o que aliviou as suas dores. Temos momentos de cumplicidade e hospitalidade seguidos por fortes tensões entre Richard e a polícia. Ao que parece a embaixada está providenciando um helicóptero e não existe nenhuma ambulância local a caminho por interferência dos próprios Estados Unidos. Richard se desespera, chega a dizer ao policial que a culpa “é da merda do seu país”. Apesar do embate diplomático entre os países, o casal estadunidense sabe que pode contar com o apoio e a força do seu estado ao qual pertencem. Os demais turistas, porém, com medo de sofrerem outros ataques, abandonam lá o casal. O detetive Kenji vai até o apartamento de Chieko uma vez chamado por ela. Ela conta uma versão sobre a morte da sua mãe – a qual seria retificada mais tarde pelo pai – mas o detetive, confuso, explica que procurou Yasujiro por outro motivo: confirmar a história sobre um rifle registrado em seu nome que teria sido utilizado em um ataque no Marrocos. A jovem enfrentaria mais uma rejeição sexual ao aparecer despida perante Yasujiro, ainda que este mostre sentir-se por um momento atraído por ela. O policial teve sensibilidade com a jovem e a tratou com afeto. Da noite em Tóquio voltamos para o calor do deserto da fronteira de Tijuana sob a implacável luz do sol. Amelia carrega as crianças até onde aguenta, sendo obrigada a deixa-las em uma sombra a procura de ajuda. Depois de vagar perdida encontra um policial de fronteira americano – com nítidas marcas da sua origem mexicana e é presa. As crianças foram resgatadas, mas Ela não voltaria a vê-las. Mais uma vez mal tratada pela polícia estadunidense, termina deportada, deixando para trás uma vida construída como imigrante, a sua casa assim como todos os seus bens materiais. O reencontro da imigrante mexicana com o filho, usando um vestido rasgado, suja e com a pele e lábios queimados pelo sol, é das cenas mais marcantes do filme. O som ambiente foi suprimido enquanto Amélia chora, ouvimos apenas a música do instrumento de cordas de Santaolalla. Ela opera a continuidade para cenas com o corpo de Ahmed sendo levado pelos policiais depois que o irmão se entregou pedindo para salva-lo. O vento que soprava nos cabelos da mexicana, nos de Yussef, ou sustentava os dois irmãos 57 enquanto brincavam em um passado recente – único flashback do longa - parte agora do helicóptero que resgata o casal. Richard e Susan se reconciliam enquanto esperam o helicóptero. São levados para um hospital de onde ele liga para Amélia. Podemos assistir, portanto, o outro lado da chamada que aparece no início do filme, deflagrando a assimetria temporal entre as histórias. Susan entra na cirurgia correndo risco de perder o braço. Os espectadores serão informados do destino do casal por meio de uma televisão. Um telejornal cobre o caso do casal americano atacado no Marrocos sob o olhar atento de Kenji. Eles retornaram para o seu país sem maiores consequências. Yasujiro mostrou preocupação com Hassan uma vez interpelado por Kenji, mas foi grosseiro quando o policial toca no assunto da morte da mulher. Ao chegar na cobertura, encontra a Chieko na varanda, nua, olhando para a paisagem urbana noturna. A câmera se afasta e oferece um plano aberto do longo abraço entre pai e filha.

1.2.2 Uma narrativa multicultural

Um tiro acidental cria uma sequência de eventos que conectam os personagens e os estados. Interpretado inicialmente como um atentado terrorista do mundo árabe contra um ocidental, a polícia do Marrocos é obrigada a atuar de forma rápida na identificação e captura do atirador. A violência contra a população árabe em condição de escassez contrasta com o tratamento cordial e tolerante do detetive Kenji, que na procura do antigo dono do rifle acaba encontrando a sua filha, Chieko. Richard usa da sua condição de cidadão americano para pressionar as autoridades locais a conseguir um rápido transporte para a sua esposa. Amélia, por sua vez, tem dificuldades com a truculência policial no seu retorno aos EUA justamente por transportar crianças estadunidenses. A posição desigual dos personagens, portanto, está relacionada tanto com a classe social quanto pelo país de origem. As fronteiras se mostram mais fluidas para uns que para outros; a percepção da mídia é seletiva e o seu acesso não alcança a todos ou o faz de forma muito distinta – uma jovem de família abastada está cercada de dispositivos comunicacionais, enquanto a empregada mexicana não tem como pedir ajuda por um celular ou se orientar por um dispositivo de GPS integrado, e as famílias do Marrocos sequer contam com energia elétrica. -; a ação dos estados com os homens que habitam o território sob seu controle é assimétrica, implicando em uma ampla rede de proteção para uns e em um mecanismo de vigilância e coação para outros. Ao longo do filme os personagens estão sempre em transito, ainda que os meios e os motivos são muito dispares. O contato entre o caçador japonês e Hassan se dá em função do 58

ócio de um e da sobrevivência do outro. O rifle acaba caindo em mãos de uma família que precisa atribuir-lhe outra função. Susan acaba baleada enquanto viajava a turismo. Amélia deixou seus filhos no México atrás de melhores condições de vida e terminou perdendo tudo quando buscava atravessar a fronteira de volta para casa. Mais uma vez as relações familiares estão no centro de um filme de Iñárritu. O contato produzido por essas formas de transito, por outro lado, coloca em risco os membros das classes médias (o acidente de carro em Amores perros, o atropelamento em 21 grams ou o tiro em Babel), mas tem sempre consequências diferentes para os diferentes grupos de pertencimento. Ainda que no filme sejam adotados mecanismos de estruturação da narrativa mais simples que aumentam a legibilidade do público, ou que a montagem opere pausas nas situações de sofrimento em vez de prolonga-las, como nos dois longas anteriores, nos deparamos com uma problematização social da violência e da dor da qual tanto fora cobrado o diretor mexicano. Como nos seus dois longas anteriores – Amores Perros e 21 gramas -, a fala, o entendimento racional, são mobilizados como incapazes de resolver nossos conflitos e, na verdade, culpados pela produção deles mesmo sem intenção dos agentes. O corpo, o toque, por outro lado, se mostram como importante forma de reconciliação. Existe uma artificialidade do primeiro associada ao esforço pela reverberação da realidade no segundo. Em Babel, imersos em fluxos inescapáveis que parecem dar formas à vida, é no hoje, no imediato instante do agir e do sentir que experimentamos alguma reconciliação com o outro. Nos abraços da empregada doméstica mexicana com seu filho, após ser deportada e do pai com sua filha surda-muda, despida na varanda de um apartamento, em uma dessas ricas torres que compõe a paisagem de metrópoles pós-modernas; no corpo ensanguentado da turista americana, com o qual se entende tanto o marido quanto a senhora marroquina que lhe presta ajuda; ou no desespero do criador de cabras deitado sobre o filho baleado – que leva o irmão à se entregar após o disparo -, encontramos não algum tipo de superação, mas sim alguma forma de continuar vivendo. Um presente de simultaneidades espaciais e temporais, essa parece ser a melhor descrição para personagens que estão conectados por tragédias – assim como nos filmes Amores Perros e 21 grams – e são arrastados pela cadeia de eventos sem qualquer possibilidade de projetarem suas agências para além do momento da ação. Incapazes, portanto, de projetar um futuro dada a imersão no breve instante do agir. Os cortes sucessivos proporcionam um aceleramento da imagem no filme de Iñárritu. Mas em vez da linearidade típica de um road movie, como encontramos, por exemplo, em Alfonso Cuarón, ou nas fórmulas narrativas do cinema clássico hollywoodiano, os saltos entre 59 os diferentes eixos de ação produzem um efeito de simultaneidade temporal. O “cinema mosaico” construído de mãos dadas com Arriaga - seu roteirista - combina fragmentação com unidade, mesmo que por vezes ela seja mais frágil em primeiro plano – produzida por um acidente e fadada ao afastamento posterior entre os personagens – do que no pano de fundo. O afastamento do corte é combinado com uma brutalidade visceral, proporcionada tanto pela linguagem da câmera quanto da trama e da trilha sonora. Nos dois, a identificação produz- se, por tanto, mais pelo efeito estético, pelo movimento da câmera do que pela contiguidade espacial e temporal, ou pela caracterização dos agentes. A cinematografia de Babel tem como marca a multiplicação de pontos de referência, a construção de uma espacialidade circular e a utilização de enquadramentos fechados. Cortes entre tomadas sucessivas que mimetizam o olhar de figurantes espalhados pelo cenário, com outras, vindas do interior do centro da ação, que capturam o entorno e os observadores, produzem a sensação da construção de um espaço restrito, permitindo aos espectadores a composição da cena por meio do transito entre os pontos de vista. As cenas com grande carga dramática, fundamentalmente, em Iñárritu, nos momentos onde as personagens se encontram mais fragilizadas pela dor, pelo desejo, tomadas pelas necessidades do corpo, são apresentadas por meio do primeiro ou primeiríssimo plano, apesar da dificuldade de dar conta dos deslocamentos que resulta dessa escolha. A utilização de planos abertos ou gerais se dá em paisagens desoladoras e na ausência de pontos de referência, sempre seguidos pelo choque com planos muito fechados, sem nenhuma mediação por planos intermediários. A narrativa, por sua vez, oferece baixo nível de informação para o espectador. Quase nada sabemos sobre o passado dos personagens ou sobre os cenários, salvo sobre aquilo que se manifesta emocionalmente no curso da ação. Desaparece aquele observador onisciente, reforçado por planos abertos e pela exibição de todos os objetos que serão importantes na trama, que possui controle da cadeia de eventos e encontra na antecipação da próxima tomada ou sequência um dos elementos que capturam a sua atenção enquanto observador externo - tão típico do cinema estadunidense. Ainda que toda trama se desenrole em não mais do que cinco dias, Iñárritu combina a ausência de ordenamento temporal entre os eixos de ação com a linearidade dentro de cada um. O núcleo de ação da família marroquina é praticamente simultâneo ao dos turistas estadunidenses. O de Amélia se desenrola a partir da chegada de Susan e Richard no hospital, ou seja, na parte final da sua história. O mesmo acontece com as ações que se desenrolam em Tóquio. Resulta, portanto, difícil para o espectador juntar todos os eixos em uma única história 60 ordenada e coerente, mas a fácil organização dos quatro blocos em separado contribui para a assimilação e manutenção do esforço de composição da totalidade. Existem poucos elementos que sirvam como referência para a ordem temporal. Fundamentalmente temos o telefonema de Richard para Amélia e as matérias televisivas que Chieko assistem, em momentos separados, na TV. Artefatos dispares relacionados com a comunicação interpenetram a trama ao mesmo tempo que a sutura no espaço e no tempo – artifício, como vimos, utilizado por Iñárritu em Amores perros. Servem, ao mesmo tempo, para renovar o interesse dos espectadores e manter uma postura ativa, convidando a buscarem outras relações e ordenarem a trama na história. Na primeira metade do filme as passagens de uma sequência à outra reforçam o contraste entre a realidade dos agentes, algo que pode ser exemplificado nas corridas das crianças ou nas abordagens dos policiais, como vimos. A música diegética acompanha os contrastes desses espaços. Na segunda metade, por outro lado, predomina na montagem uma conexão emocional entre os distintos eixos, algo que se amplifica pela continuidade de uma música original extradiegética. Ela se descola da imagem ao tempo que a costura, mesmo quando faltam as relações causais a que estamos habituados. O longa-metragem também é muito marcado pelas manipulações no som e pelos silêncios. Em alguns momentos eles dizem respeito à perspectiva auditiva de Chieko, aproximando-nos dela. Em outros ela atua de forma expressiva, intensificando o isolamento, como da jovem japonesa em relação à sociedade que habita; reforçando a invisibilidade Amélia, incapaz de se fazer ouvir perante as autoridades estadunidenses; ou dando tons para a ausência de Ahmed, morto a pouco, na cena em que os meninos brincam de voar como pipas, amparados pelo vento. Ele também atua de forma intensificar os acordes da trilha sonora durante a transição entre núcleos de ação, principalmente na parte final do filme.

A música funciona como um amálgama, juntando a compreensão do detetive japonês, confortando a desiquilibrada Chieko, com o desespero do pai, abraçando o filho ferido. Os sofrimentos entrelaçados são muito distintos – psicológico de Chieko e físico de Ahmed – assim como a vinculação entre os envolvidos – a adolescente é uma desconhecida para Kenji e a outra relação é de pai e filho. Há também, nessa emenda, o contraste entre a pulsão sexual de vida e a ameaça da morte, tema recorrente na obra de Iñárritu de forma explícita ou nas entrelinhas. A música unificadora original extradiegética ressalta a conexão da solidariedade paternal com a sensibilidade de Kenji que, mesmo não correspondendo ao desejo sexual da estranha nua, que insiste em levar 61

a mão dele ao seu seio, consola afetuosamente a consternação da garota.92

A imersão em uma experiência visceral, onde somos convidados pela imagem à compô- la com o cheiro, o sabor, a angústia, a vulnerabilidade, o desejo, ou o ultraje; ao ritmo de acordes velozes insistentemente reproduzidos; aturdidos pela carência de informações e pela intercessão de eventos que atravessam as histórias dos personagens fragilmente conectados, deixa pouco espaço para o afastamento, a suspensão crítica e, principalmente, para a construção de cenários alternativos, quanto mais para a antecipação ou fabricação racional do futuro. A compressão do espaço-tempo se dá, aqui, tanto pela velocidade e quantidade de informação, quanto pela impossibilidade de escapar do presente. Esse presente se apresenta aqui como um eterno recomeço em meio às dificuldades de se comunicar com o outro. A história de Richard e Susan começa nesse esforço por recuperar o casamento e continuar as suas vidas depois de uma perda que jamais será superada. Está estampada no rosto dos personagens e na dificuldade que tem para conversar ou trocar olhares. O mesmo se dá com Chieko e o pai. A dor gerada pelo acaso e pela incomunicabilidade permitiram a aproximação entre os membros familiares até que a vida produza novos abalos à uma estabilidade que parece existir apenas nessa esfera privada. Nas histórias da família marroquina e de Amélia, por outro lado, acompanhamos as trajetórias modeladas por circunstancias acidentais que romperam com suas antigas configurações. Existe uma circularidade já verificada na análise de Amores perros. Octavio, Valeria, Yussef e Amélia passarão por intenso sofrimento e desconexão, em solidão, até que consigam restabelecer as suas vidas por meio de novas conexões ou recuperação das antigas, quando possível. Terão que atravessar aquilo que acompanhamos nas histórias de El Chivo, Susan e Chieko. O perdão, a reaproximação e o recolhimento oferecem o conforto e a segurança que não podem ser encontradas no transito caótico e nos choques resultantes. Babel apresenta um avanço em relação à leitura pretensamente realista do social, agora não apenas apresentando a violência de forma naturalizada mas também problematizando-a. Porém, por mais que o tiro não tivesse sido disparado sem a passagem de um artefato que partiu, dessa vez, de um membro das camadas econômicas privilegiadas, o acidente nos três filmes da “trilogia da morte” foram provocados pelo extrato mais pobre, atingindo em cheio um membro das classes médias.

92 GIUNTINI, Mauro. Op cit., 2015, p. 198. 62

1.3 O deslocamento do sujeito na narrativa fílmica

Neste capítulo levantamos algumas dúvidas sobre a amplitude multicultural e a sua aproximação com abordagens multiculturalistas, assim como até que ponto as inquestionáveis contribuições para a narrativa do cinema, a habilidade na superação de desafios técnicos e na produção de emoções intensas é, de fato, acompanhada por uma leitura da diversidade cultural que supere desgastados estereótipos e sistema de valores próprios do cinema mainstream estadunidense. Nos aprofundaremos no terceiro capítulo no registro temporal na qual esses filmes se inscrevem, nos sintomas que apresentam acerca do desmanche do cronótopo moderno e em algumas consequências políticas que caminham ao lado da sua cosmovisão do real. A análise fílmica desses dois longas, porém, já permitiu sinalizar para importantes indícios de mudança da posição e natureza do sujeito no presente, assim como para a própria forma como esse presente se configura. Recuperando as contribuições de Hans Ulrich Gumbrecht acerca da montagem do cronótopo moderno, ou historicista, Valdei Lopes de Araújo sintetiza assim a tese do autor desenvolvida na obra A modernização dos sentidos, mais precisamente no capítulo intitulado “cascatas de modernidade”:

A descrição de Gumbrecht do cronótopo historicista está relacionada com uma hipótese ampla a respeito da modernidade enquanto um fenômeno que pode ser entendido na sucessão de três grandes cascatas. A primeira teria início com a descoberta do Novo Mundo e a invenção da imprensa, metonímia de um processo geral de crise da autoridade do escrito e da desmaterialização da cultura, ou seja, o afastamento do corpo e suas marcas do processo de produção de sentido. Nesse momento surge o tipo de subjetividade ocidental, marcada pela oposição sujeito (puro espírito) e objeto (pura materialidade). O sujeito assume a função de um observador de primeira ordem, responsável pela produção de conhecimento sobre um mundo de objetos. Essa produção de conhecimento toma a forma de uma espécie de “leitura” da realidade em busca de seus sentidos profundos, emergindo o que Gumbrecht chama de “campo hermenêutico”. A segunda cascata corresponderia ao período entre 1780 e 1830, momento em que desponta a consciência da modernidade enquanto um conceito de época. A novidade é o surgimento de uma forma reflexiva de observação e a figura do “observador de segunda ordem”, ou seja, a validade do conhecimento produzido precisa ser testada em suas condições de produção, o sujeito de conhecimento torna-se ele mesmo objeto de observação. Esse relato corresponde aquilo que Foucault chamou de crise da representação, à tomada de consciência de que a representação de um determinado objeto ou fenômeno depende da posição ocupada pelo observador. É possível então produzir inúmeras representações diferentes sobre um mesmo objeto: “Nenhuma dessas 63

múltiplas representações pode jamais pretender ser mais adequada ou epistemologicamente superior a todas as outras”. A historicização de amplas camadas da realidade, acompanhadas do processo de narrativização, responde à crise de consciência provocada pela multiplicação das representações. Ao serem colocadas no interior de uma narrativa histórica essas diferenças são explicadas como momentos evolutivos de uma mesma identidade. O indivíduo pode assumir o papel de sujeito de sua própria história, sobrecarregando-se com as demandas por transformação e realização de um futuro utopicamente constituído. Em resumo, funda-se o que Gumbrecht tem chamado do cronótopo “tempo histórico” ou historicista. O terceiro momento, denominado alta-modernidade, teria lugar com as vanguardas de início do século XX, que consolidaram na compreensão geral a noção do moderno como constante auto-superação. Os resultados da multiplicação das representações parece agora extrapolar as soluções produzidas pelo processo de historicização, são visíveis os primeiros sintomas de erosão do campo hermenêutico aberto na primeira modernidade93.

Ao espectador do cinema clássico era permitida uma observação excêntrica ao mundo da história, a partir do qual podia realizar inferências racionais e controlava a cadeia de eventos. A combinação de planos mais abertos, onde podia acompanhar todo o fluxo da ação e os elementos importantes à disposição dos atores, com outros fechados, de maneira que pudesse perceber detalhes na interpretação ou objetos menores que deviam ser levados em conta, se somava à estabilidade da fotografia – por meio do uso de bases fixas, do travelling, da grua ou do zoom – e fluidez na montagem. As caracterizações dos personagens eram claras e a narrativa – muitas vezes por meio de flashbacks –, por vezes, buscava no passado os elementos que permitiam compreender o estado atual de cada um deles. Trama e história transcorriam linearmente no tempo e no espaço, assim como o faziam a câmera e a montagem na costura das tomadas e sequências. Existia um centro claro sobre o qual deveríamos manter a atenção e a narrativa dele não se desviava: a agência dos protagonistas. O centro do mundo do filme eram os sujeitos porque eram eles os entes responsáveis pela definição de cada cenário. Os espectadores acompanhavam os seus movimentos no espaço e no tempo, também sendo possível, por meio da imaginação e reforçado pela identificação com os personagens, colocar-se no lugar do outro, avaliar as alternativas e operar julgamentos. O futuro, enquanto resultado de variáveis conhecidas ou

93 ARAUJO, Valdei. Observando a observação: a descoberta do Clima Histórico e a emergência do cronótopo historicista, c. 1820. In: CARVALHO, José Murilo; CAMPOS, Adriana Pereira (Orgs.). Perspectivas da cidadania no Brasil Império. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2009, p. 281- 303

64 passiveis de conhecer e sempre voltado para entes da mesma natureza que a do público, era um espaço aberto para projeções e previsões, ao mesmo tempo que dele se esperava a superação do presente, ainda que fosse seu produto direto. Amores Perros e Babel são emblemas de uma outra narrativa cinematográfica que não possui mais um centro fixo de ação e causalidade, cujo multiprotagonismo não atua apenas para aumentar a sua complexidade, mas sim para produzir a representação de um mundo sem pontos fixos, onde o acaso se soma à multiplicidade de entes que não poderiam ser jamais apreendidos pela narrativa, por conseguinte pela audiência. A instabilidade da câmera; os enquadramentos fechados; a ausência de marcadores espaciais e temporais; a velocidade do corte; o impacto provocado pela imagem e pelo som; a valorização dos aspectos emocionais; dificultam esse distanciamento objetivo que caracteriza o velho cinema. Mergulhados em fluxos de ação que não tem seus efeitos previstos e são atravessados por forças que escapam às suas intenções, nos vemos como os personagens, confinados em ambientes fechados enquanto o mundo move-se, lá fora, mesmo quando ao nosso redor. Parecia pouco importante projetar e projetar-se no futuro para os pré-modernos, uma vez que o passado oferecia todas condições possíveis para a existência. Aqui repousava o papel pedagógico de uma História que funcionava como coletânea de eventos exemplares. Qualquer coisa fora disso não dizia respeito à agência humana, à História profana, mas sim à ação de forças que lhe escapavam. Para o homem moderno, por outro lado, “enquanto as configurações das experiências concluídas ocupavam o espaço da experiência, o futuro se percebia aberto ou sem ocupar ainda. Essa abertura se entendia também condicionada pela premissa de que o futuro seria (...) diferente do passado94”. Como o homem estava situado no centro do próprio movimento de mudança, tomado como seu agente, existia a possibilidade de antevê-lo ou desenhá-lo, conferindo segurança e dotando de sentido as suas ações. A sua história era tomada como uma jornada, um percurso no tempo, agora espacializado, no qual a consciência conseguiria mover- se. Nos filmes de Iñárritu, porém, estamos mergulhados em movimentos desenfreados que nos arrastam junto aos personagens, à deriva. Enquadramento e montagem nos oferecem de forma fragmentar esse movimento contínuo do entorno, tomado agora como uma multidão de

94 No original: Mientras las configuraciones de las experiencias concluidas ocupaban el espacio de la experiencia, el futuro se percibía abierto o sin ocupar todavía. Esta apertura se entendía además condicionada por la premisa de que el futuro sería, en cualquier caso, diferente del passado. (GUMBRECHT, Hans Ulrich. Lento presente: sintomatología del nuevo tiempo histórico. Madrid: Escolar y Mayo Editores, 2010, p. 22) 65 agentes incógnitos. O ruído da câmera e a profusão de imagens representam bem outro movimento: a inquietude de personagens que, por outro lado, não conseguem sair do lugar. O futuro não pode conferir alguma segurança, estabilidade, tanto pelo pessimismo quanto pela incapacidade de entender a sua direção, quanto mais de determina-la. O passado não aparece enquanto somatório, transposição ou processo formado por “experiências concluídas”, mas sim de eventos não superados que atormentam os personagens no presente, dilatado pela sobrecarga do ontem que não passa e pelas ameaças do amanhã. A utilização do flashforward em vários dos longas do diretor mexicano, como Amores Perros, ainda que antecipe um evento futuro e desperte curiosidade da audiência que buscará entender como foi produzido, reforça a sua inevitabilidade ao mesmo tempo que faz com que seja experimentado de forma simultânea – no agora em vez do mais tarde. A ruptura com a linearidade na trama por meio da montagem, no mesmo sentido, mantém o espectador em posição análoga à do mundo da história: na simultaneidade do presente que tudo retém e nenhuma alternativa oferece.

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CAPITULO II - NOLAN E OS LABIRINTOS DA PÓS-MODERNIDADE

O britânico Christopher Nolan, ao contrário do mexicano Alejandro Gonzalez Iñárritu, teve uma intensa formação acadêmica em literatura e cinema, transitando entre os Estados Unidos e a Inglaterra desde a primeira infância – seu pai era britânico, mas sua mãe era uma comissária de bordo estadunidense e tinha, inclusive, um tio trabalhando na NASA. Os seus primeiros experimentos cinematográficos na vida adulta remetem à faculdade, onde esteve à frente de laboratório de cinema, organizou com a sua esposa e colaboradora diversas mostras e filmou alguns curtas. O seu primeiro longa-metragem, Following (1998), contou com investimento pessoal (seis mil dólares), equipe técnica e elenco formado por ex-colegas de faculdade, mas teve sucesso em mostras e festivais menores e acabou fazendo dele um nome conhecido entre especialistas daquele país. Following nos apresenta, em preto e branco, a história de um escritor (Bill) que passa a perseguir pessoas a procura de inspiração para o seu ofício. Em uma dessas encontra Cobb, um ladrão que gosta de invadir os espaços privados de pessoas e experimenta viver como eles. Com uma trama que embaralha cronologicamente as cenas e exige grande esforço do espectador na sua reconstrução, Nolan apresenta personagens de difícil caracterização movidos por motivos desconhecidos ou contraditórios, que se somam com a montagem na produção de uma experiência que nos leva a duvidar de suas versões, assim como da própria narração. Em seu segundo filme, Memento (2000), Nolan realizou a adaptação de um conto escrito pelo irmão, – com quem faria parcerias em outros longas, como Interstellar (2014), o qual vem atuando na indústria do cinema por meio de roteiros, direção e produção de seriados televisivos de grande investimento, como Westworld, da HBO – e conseguiu vende-lo para estúdios do cinema independente estadunidense. Com investimento que variou de quatro milhões e meio à nove milhões de dólares95 e atores hollywoodianos com papéis secundários em grandes produções, arrecadando aproximadamente quarenta milhões entre o mercado estadunidense e o europeu, o sucesso de bilheteria foi acompanhado por um grande interesse

95 Como ao longo do texto, conto principalmente com informações oferecidas pelo site especializado imdb.com para levantar dados sobre produção, distribuição, arrecadação e premiações. Os dados são sempre cruzados com aqueles oferecidos em artigos especializados. Aqui, o valor de nove milhões atribuído pelo site entra em conflito com outros sites e artigos. 67 da crítica e a sua utilização frequente para fins pedagógicos e de pesquisa, em função dos seus engenhos narrativos. O filme também chamou a atenção de produtores e dos grandes estúdios, levando Nolan a ser convidado para dirigir Insomnia, único filme onde não foi responsável pelo roteiro e pela produção. O filme contou com grandes estrelas de Hollywood como , maior investimento e visibilidade, estabelecendo desde então uma importante parceria com os estúdios Warner na produção de alguns dos blockbusters de maior bilheteria e arrecadação global de todos os tempos. Memento, por outro lado, parece ter sido a obra que deu os tons da sua trajetória posterior, tanto pela temática quanto pelas manipulações e dispositivos narrativos.

2.1 Memento

A sofisticada arquitetura do longa é composta de 22 blocos – as vezes com mais de uma sequência – em preto e branco, onde Leonard () ao telefone ou em voz off se apresenta como narrador, e outros 23 blocos com cenas coloridas, apresentados de forma alternada. As primeiras são oferecidas pela trama de forma linear, ainda que não tenhamos como saber até o final do filme em que momento da história elas se encontram. São marcadas por forte contraste entre luz e sombra na fotografia, pela manipulação do som diegético, que transmite alguma artificialidade, tranquilidade e ausência de emoções, combinadas com tomadas longas de forma a manter um ritmo lento. Na famosa primeira cena, logo na abertura dos créditos, nos deparamos com a foto de um homicídio registrada por uma máquina “polaroid” que vai perdendo nitidez, enquanto é sacudida, até que retorne para a câmera e vejamos o assassinato de Teddy (Joe Pantoleano) retrocedendo no tempo, exibido de trás para frente, com o sangue retornando para a vítima ou a munição para a arma de fogo. A paleta de cores é fria, combinando com a apatia emocional do protagonista. Como em Alejandro Gonzalez Iñárritu – ainda que por estratégias distintas - o espaço é confinado pelo enquadramento, assim como pela ausência de referenciais espaciais. O transito dos personagens se dá por ambientes quase indiferenciáveis, algo que também se expressa na ausência de referências culturais ou nacionais claras. No famoso longa de Christopher Nolan não encontramos a diversidade social do cineasta mexicano. O seu presente é constituído por espaços, modos de vida e figurinos homogêneos que remetem à classe média de um país desenvolvido qualquer, o que vale para traficantes, atendentes de bar, policiais, contadores ou um investigador de seguradoras. 68

A história é contada por Nolan por meio da montagem paralela entre cenas em preto e branco e coloridas, que constituem a dupla temporalidade de blocos que caminham em sentidos inversos. Apresentadas em ordem não linear, as cenas coloridas contam a história de trás para frente. Partindo da morte de Teddy, o enredo retrocede para a sequência que culminou nos disparos, saltando para outro ponto atrás que termina sempre com a primeira tomada da sequência imediatamente anterior. Saltos no passado permitem ao expectador caminhar para frente e entender os motivos que levaram a determinadas ocorrências, ações, ou expliquem quem são os personagens envolvidos, reconstruindo a cadeia causal da história. O tempo e o ordenamento são oferecidos desde as primeiras tomadas como desafio para o espectador, demandando a sua atenção e gerando expectativa pela cena seguinte. O ritmo mais rápido na montagem, a apresentação do disparo de Leonard como conflito motriz, o desafio intelectual que o encadeamento apresenta, assim como a natureza informativa das cenas em preto e branco – preocupadas em caracterizar o personagem; oferecer explicações acerca condição mental de Leonard; sobre as estratégias utilizadas por ele para manter a sua rotina; ou contar os eventos passados que o levaram até ali -, faz com que as cenas em colorido se apresentem como principais e as outras como acessórias. Cada intromissão do monólogo do protagonista, portanto, causa confusão, ao mesmo tempo que fornece novas pistas e algum tempo para refletir sobre as questões em aberto. A repetição de elementos da trama no final de cada salto também contribui para a legibilidade, servindo como marcos temporais – uso muito frequente nas network narratives ou nas organizações fragmentadas e não lineares do enredo, como aponta David Bordwell96. Memento está construído de forma a contar a história de Leonard, um homem jovem que possui uma “condição” – nas palavras dele – que impede que ele retenha qualquer memória recente. Sofre do que cientificamente conhecemos como amnésia anterógrada, ou seja, sabe quem é e mantém informações sobre a sua vida até o momento do trauma, quando foi golpeado por um homem que teria estuprado e matado a sua esposa. Ele acorda a cada manhã confuso, como se estivesse despertando depois do incidente traumático, buscando entender onde está, com quem está se relacionando e que pistas tem do assassino em função dos retratos, cartões, papéis e tatuagens que faz em todo corpo. Diferente de “Sammy Jenkins”, um homem que sofre da mesma enfermidade e conheceu enquanto trabalhava para uma empresa de seguros investigando o seu caso – recorda da sua história exemplar por ter acontecido antes do trauma -, Leonard tem disciplina, uma

96 BORDWELL, David. Op cit., 2008.

69 estratégia e a vingança como motivação. Ele conta esse caso para todos os sujeitos com que se relaciona, reencenando o gesto com os espectadores por meio do monólogo. Sammy teve que se afastar do trabalho e nenhum tratamento logrou qualquer avanço para recuperar a sua autonomia. Terminaria em um hospital psiquiátrico depois de matar a sua própria esposa acidentalmente. Ela era diabética, duvidava da condição do esposo e pediu para que ele aplicar- se doses de insulina repetidamente, morrendo por conta da overdose. Como Leonard não pode confiar na memória, procura cercar-se de fatos por meio de registros e objetos. Opera, segundo ele, como um detetive da polícia, duvidando do relato, apoiando-se em dados objetivos e no ordenamento racional deles. As tatuagens servem para reconstrução das suas rotinas diárias, orientando-o no presente, mas também como registro das evidências que coleta ao longo da investigação e das conclusões que delas retira. O longa oferece duas instancias enunciativas: o relato que o protagonista faz de si mesmo e “dos fatos” por meio de uma versão coerente, organizada linearmente em preto e branco, e a narração operada pela montagem de planos coloridos. As duas articuladas reproduzem na fruição da obra pelos espectadores uma experiência semelhante à confusão mental do protagonista. Assim como Leonard, não conhecemos as circunstâncias que o levaram até o tiro no policial corrupto, Teddy. Cada personagem, por mais que o conheça e pareça intimamente relacionado com a cadeia de eventos, resulta em uma novidade. Compartilhamos com ele de uma versão coerente sobre seu passado e sua condição, mas carecemos da dimensão temporal em meio aos retratos e mensagens que carrega. “Ela se foi”, ele diz, “e o presente é um quebra-cabeça que rabisco em anotações”. A linguagem da câmera reforça esse mergulho no personagem por meio da utilização alternada entre campo e contra-campo, com ele sempre no centro do enquadramento, limitando o espectador àquilo que o personagem pode ver e como ele é visto ou se insere no ambiente. Leonard tem dificuldade em sentir emoções dada a desconexão com tudo em seu tempo presente, vendo todos como desconhecidos que servem como meio para um único fim: encontrar o culpado pela morte da sua esposa. A paleta de cores e a música extradiegética, baixa e contínua, acompanha tal estado emocional. As cenas escuras em preto e branco, por meio de planos fechados, fundamentalmente em um quarto de hotel, junto com a impessoalidade e indiferenciação dos ambientes por onde transita – motéis e bares baratos, casas de classe média ou terrenos baldios, sem qualquer referência espacial significativa - transmitem a solidão e fazem do espaço uma dimensão insignificante. Não pertencemos a um lugar nem nos conectamos a qualquer coisa. Como e com Leonard, buscamos o encaixe no “hoje” a partir de um passado fragmentado, cindido entre 70 um “ontem” que nunca passa, que se repete a todas as manhãs, e um “agora pouco” do qual carecemos de elementos suficientes para compreender. Se, evidentemente, temos muito menos informação do que ele, a medida que a narrativa avança, a nossa capacidade de reter permite que nos coloquemos na situação habitual do cinema clássico. Pouco a pouco saberemos mais e teremos a impressão de controlar melhor que os personagens as relações de causa e efeito, tanto pela amplitude dos elementos que possuímos quanto pela possibilidade de distanciamento. O conhecimento, no cinema clássico assim como nas formas de ciência e política que triunfaram na modernidade, confere controle aos sujeitos97. A narrativa, porém, evoluirá para colocar em cheque a veracidade dos relatos e dos elementos que são oferecidos como “fatos”. A nível da história temos a evidente fragilidade do protagonista e a facilidade com que o policial corrupto, Teddy, ou a namorada de um traficante, Natalie (Carrie-Anne Moss), o manipulam em função dos seus interesses. Evidências são produzidas para tal, ressignificando os elementos anteriores e deixando vestígios definitivos sobre o corpo, por exemplo. O próprio protagonista, como veremos, será o responsável por manipulações intencionais dos vestígios de memórias e das futuras articulações entre elas. A nível da trama existem fissuras e conflitos entre o que é dito – em voz off, por exemplo – e o que por breves momentos a imagem mostra. O ordenamento temporal também servirá para mudar as leituras que fazemos sobre as intenções e o caráter de cada personagem. Mas as quebras das regras que a narrativa estabeleceu desde o início retirariam o público do seu lugar de conforto – e poder. As sequências em preto e branco, que antes fundamentalmente serviam para apresentar o passado do personagem, fundem-se pouco a pouco com a cadeia de ações da imagem colorida, a medida que uma e outra caminham em direção ao assassinato do traficante namorado de Natalie, Jimmy. As imagens coloridas oferecem um segundo um relato alternativo acerca de Leonard, da sua trajetória e da própria morte da esposa, no final do filme, aumentando a insegurança do espectador sobre aquilo que pensa saber. Nolan em Memento reproduz algumas fórmulas utilizadas em Following, mas aqui se consagra como um cineasta que, no sentido trabalhado por analistas como Thomas Elsaesser ou Elliot Panek, se insere em uma vasta lista de filmes contemporâneos que buscam jogar uma espécie de jogo, de quebra-cabeça com o espectador. Por vezes acompanharemos um protagonista sendo manipulado por algum antagonista com enorme poder de planejamento e de controle sobre as suas ações – como em Saw (2005), conhecido no Brasil como “Jogos mortais”

97 Tenho em mente aqui contribuições dispares mas complementares como de Adorno e Horkheimer em “A dialética do esclarecimento”; Hannah Arendt em “A condição humana”; Eduard Said em “Cultura e Imperialismo”; ou Michael Foucault em “Vigiar e punir”. 71

-, mas o público é inserido no jogo por meio da frustração das suas expectativas. No puzzle film, a percepção do público, as informações que coletou ao longo da trama são violentamente falseadas por meio de manipulações da narração, produzindo reviravoltas que exigem do expectador a sua reconstrução, percorrendo as cenas na memória enquanto busca reordena-las e estabelecer novas cadeias causais9899. Em um ensaio publicado na revista Jump Cut, Jonathan Eig usaria o termo mindfuck para obras distribuídas entre o cinema dos grandes estúdios e independente estadunidense e transnacional. Elas apresentam um protagonista que desconhece ou está iludido acerca da situação em que vive, até mesmo da sua própria identidade, manipulando o espectador pela na narrativa e fazendo com que compartilhem de alguma forma o seu estado mental100. A reviravolta no final de The Sixth Sense (1999), de Night Shyamalan, é exemplar. Um tiro recebido pelo personagem de Bruce Willis no início se revela fatal mais tarde, fazendo com que ele se some aos fantasmas vistos e ajudados por um garoto de nove anos, mudando o sentido de quase todas as sequências. A trama retoma muitas delas em flashback, com mudanças de ritmo e manipulações de imagem e som, gerando grande impacto sobre o espectador. A fruição da narrativa costuma se estender para além do filme, prolongado o esforço pela composição de uma nova versão para o que foi experimentado na maior parte da exibição. O forte desajuste entre trama e história não implicaria, aqui, em uma narração que mente para o espectador. Ela segue na verdade as condições de percepção e compreensão dos próprios protagonistas – como a amnésia anterógrada em memento ou a condição de “fantasma” em The Sixth Sense –, de alguma forma mimetizada pela estrutura formal. As vezes carecemos de meios para assegurar se uma ou alguma das versões se aproxima da realidade, em outras somos convidados a testar a sua validade percorrendo mentalmente o filme, tamanha a plausibilidade e o nosso engajamento com a maneira anterior de perceber a cadeia de ações, ou, de forma mais dramática, a identidade do próprio protagonista. Em filmes como Fight Club (1999), de , Memento ou The Sixth Sense, “o peso da surpresa é tão grande que se sobrepõe a todo o resto da experiência cinematográfica”101. Podemos ser tentados aqui a afirmar que o modo como se conta é tão importante quanto a fábula que é contada, porém, isso implicaria em afirmar a existência de uma história fora da trama e

98 ELSAESSER, Thomas. The Mind-Game Film, in: Warren Buckland (org.), Puzzle Films: Complex Storytelling in Contemporary Cinema. Malden/Oxford: Wiley Blackwell, 2009. 99 Panek, Elliot. The Poet and The Detective: Defining the Psychological Puzzle Film, in Film Criticism, Volume 31, Issue: 1-2, Fall-Winter, 2006. 100 Eig, Jonathan. A Beautiful Mind (fuck): Hollywood Structures of Identity, in Jump Cut, volume 46, 2003. Disponivel em: http://www.ejumpcut.org/archive/jc46.2003/eig.mindfilms/ (Acesso em 10 fev. 2018). 101 Eig, Jonathan. A Beautiful Mind (fuck): Hollywood Structures of Identity. P. 72 das operações que o espectador realiza a partir dela. Se faz interessante recorrer às contribuições de Bordwell acerca desse sentido. Partindo de noções do formalismo russo como as de fábula (história) e syuzhet (trama), Bordwell defende que estas duas dimensões são articuladas pelo estilo cinematográfico na composição de qualquer narrativa.

a narrativa como processo, enquadrada como uma atividade de selecionar e organizar o material da história para se atingir objetivos específicos no espectador. Na óptica cognitivista, a história é resultante do processo de colher pistas, aplicar esquemas, formular e testar hipóteses, e a trama é a articulação e apresentação da história no filme. Para essa corrente teórica, a história nunca é materialmente apresentada na tela, e sim adivinhada por meio de deduções e inferências. A trama constitui um sistema, porque organiza os eventos da história de acordo com princípios específicos. O exame das relações entre as formas com que a trama apresenta as informações da história revela a tessitura das narrativas102.

Quando somos confrontados por múltiplas histórias (como em Amores Perros ou Babel) ou por linhas narrativas distintas exibidas em sequência, o espectador irá procurar uma relação causal ou espacial entre eles. Para Bordwell, enquanto assiste ao filme, o espectador constrói o cenário e os personagens por meio da cadeia de eventos, das relações de causa e efeito em espaços e tempos próprios. Essa seria a dimensão da fábula, ou seja “no padrão que o receptor da narrativa cria através de suposições e inferências” 103. Por meio da criação de hipóteses, da produção de inferências, sempre guiados pelas informações oferecidas. A fábula é um construto abstrato que existe na imaginação da audiência apenas104. Como bem sintetizam Huyer e Leites,

O syuzhet, por sua vez, refere-se à maneira como o filme apresenta a fabula. É um sistema que arranja componentes (os eventos da fabula) de acordo com princípios específicos. O que determina a ordem com que os eventos da historia serão apresentados é o syuzhet. Logo, este não implica em induzir o espectador a construir a fabula de um modo uno, logicamente puro e universal. Muito pelo contrario, o syuzhet se vale de ‘guiar o espectador na construção da fabula de um jeito bastante especifico, ao provocar expectativas particulares nesse ou naquele momento, incitando curiosidade e suspense, e pontuando surpresas pelo caminho’ (Bordwell, 1985: 52, tradução nossa). O syuzhet é, portanto, o ‘conjunto

102 GIUNTINI, Mauro. Op cit., 2015, p. 34. 103 BORDWELL, David. Narration in the fiction film. Madison: The University of Wisconsin Press, 1985. 104 HUYER, Guilherme Jorge; LEITES, Bruno. O flashback e a narrativa não-linear subjetiva em Following (de Christopher Nolan). In: Imagofagia, n 16, 2017. 73

organizado de elementos que nos fazem inferir e assimilar a informação da historia’ (1985: 52, tradução nossa). Por fim, temos o estilo cinematográfico, que, na concepção de Bordwell, consiste na maneira com que as técnicas cinematográficas são utilizadas na concepção do filme. Se pensarmos no processo de concepção do filme, a fabula estaria concentrada no argumento, o syuzhet na escaleta e na estrutura geral do roteiro, enquanto que o estilo seria assegurado na decupagem do roteiro, procedimento no qual diretor e cinegrafista decidem que planos, enquadramentos e movimentos de câmera irão adotar em quais cenas. O estilo, portanto, dentro da perspectiva que Bordwell adota para analisar a narrativa do cinema, diz respeito especificamente à natureza cinematográfica da narrativa. O syuzhet determina quais eventos da fabula serão apresentados e em qual ordem. O estilo determina de que maneira, cinematograficamente, o filme ira realizar essas “tarefas” estipuladas pelo syuzhet.105

Lacunas são deixadas por qualquer trama, uma vez que nem tudo pode ser representado, mesmo quando o tempo da história coincide com o da exibição. Como observa Ismail Xaviel106, elas podem ser encobertas por uma montagem que se incline na direção da transparência, como no cinema clássico, por meio da continuidade, homogeneidade e utilização de artifícios que aumentam a legibilidade na ligação entre as cenas, ou reforçadas pelo choque, contraste, ruptura no pensamento, deixando em evidência a instância do narrador. A opacidade se experimenta, portanto, de forma muito intensa nesse cinema onde a narração desorienta o espectador e exige que ordene e cubra as principais fissuras. Restará discutir se isso necessariamente implica em afastamento.

2.1.1 Duas tramas em rota de colisão

A reconstrução da trama - ainda que de maneira sintetizada - em sentido linear, cronológico, pode ajudar a perceber como atua na construção de sentidos, alterando o conteúdo da(s) história(s). Isso implica em começar pelas sequências em preto e branco até que elas se encontrem com as coloridas. Temos imagens de Leonard recém desperto em quarto de hotel. Em voz off ele reconstitui a busca por orientação inicial partindo de elementos próximos (chaves, estado e aparência do quarto, como está vestido) ou das anotações que acumula nos bolsos e pelo corpo. O telefone toca e alguém diz que se conhecem, mencionando a história de Sammy Jankis. A conversa parece artificial, como uma simples continuação do relato que Leonard iniciara. Ele

105 Ibid., p. 194-195. 106 XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 4ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. 74 conta a história de um homem com a mesma “condição” que, apesar de viver rodeado por anotações, não tinha um sistema, uma rotina estabelecida, assim como uma motivação, enquanto observa as suas tatuagens pelo corpo e parece ampliar a sua compreensão sobre o seu momento presente. Leonard trabalhava como investigador para uma empresa de seguros, utilizando técnicas de análise comportamental ou linguagem corporal para auxilia-lo nas entrevistas e verificar a autenticidade dos relatos. O caso de Jenkis se tornou um grande desafio, uma vez que não existiam provas conclusivas nem motivação para forjar a disfunção – estava próximo da aposentadoria. Era capaz de tarefas complexas apreendidas antes do acidente de carro, mas incapaz de recordar coisas que se deram a poucos minutos. O olhar dele a cada encontro parecia ser de reconhecimento, o que fortaleceu as suspeitas e investigações mais profundas. Casos anteriores mostravam que, ainda que não fosse possível aprender funções complexas novas, o condicionamento levava a algum nível de aprendizado, incorporando respostas de maneira instintiva. O contador não respondeu a testes de condicionamento, levando a Leonard assumir que a sua condição era psíquica e não física, não encontrando cobertura no seguro. O protagonista, por sua vez, conseguia restabelecer sua rotinas e aprender pelo condicionamento, garantindo autonomia. Para além das dívidas, Leonard levantou uma dúvida sobre a condição física do marido. Isso corroeu a esposa do contador por não entender exatamente o que acontecia com ele ou se estava fingindo – algo que não foi afirmado em nenhum momento da investigação. O investigador vasculha entre anotações pessoais e arquivos policiais que conseguiu por meio de “amigos” na polícia. Existem passagens riscadas no registro que o incomodam, assim como o fato de não terem investigado John G. Com a ajuda do interlocutor ao telefone, conclui que o homem que procura é um traficante de drogas. Enquanto ele faz tatuagem na perna com mais um fato – traficante de drogas -, retoma a triste história do casal. Ao ver uma nova tatuagem escondida por um curativo que diz “nunca atender o telefone”, Leonard pergunta a identidade do interlocutor, o qual desliga, deixando-o profundamente desorientado. Pega o telefone e pede que Burt, da recepção, não repasse outras ligações. Burt bate na porta e diz que se trata de um policial mas Leonard mais uma vez se recusa. Um envelope é deixado pela porta onde podemos ler “atenda a minha ligação” e aparece uma foto polaroyd manchada de sangue, com o próprio personagem sem camisa, ensanguentado, mas visivelmente feliz. Leonard atende à ligação. Se mostra muito nervoso, preocupado com a possibilidade de ter feito algo ruim e não se ecordar. Mais uma vez lembra de Sammy, de não acreditarem na 75 sua condição, retomando o relato sobre o casal de meia idade. A esposa duvidava do marido ao mesmo tempo que buscava formas para faze-lo recobrar a memória. Em determinado dia pediu para que ele lhe aplica-se insulina repetidas vezes, o que a levou a morte. Leonard mostra arrependimento por se equivocar na avaliação de Jenkis e da esposa. Não se tratava de trapaceiros. O marido passou a viver em um hospital psiquiátrico sem recordar do que ocorreu com a esposa. O policial ao telefone recupera o tema do traficante. Um tal Jimmy Grants que trafica no bar onde a namorada trabalha. Os dois combinam de pegá-lo e Leonard desce até o saguão, conde encontraria Gammell. Os dois vão até o estacionamento e Leonard o fotografa. Ele pede para que o chame de Teddy, por trabalhar disfarçado. O policial dá as referências mas não o acompanha. Ele chama Leonard como Lenny, mostrando intimidade com o protagonista. Ao chegar no local, Leonard se esconde, espera a chegada do traficante e é reconhecido por ele. Jimmy debocha, pergunta por Teddy e é golpeado. Leonard tenta render Jimmy que primeiro busca compra-lo com 200 mil dólares que se encontram no “Jaguar”, mas depois de reagir é asfixiado até desacordar. Leonard tira uma foto e troca as roupas com o traficante. Uma tomada reproduz a cena inicial do filme, com a foto ganhando cores, no sentido cronológico normal, mas com outra imagem no lugar. A sequência ganha cores quando se funde com parte contada em sentido inverso. A aproximadamente 10 minutos para o final do filme estamos alinhados no tempo cronológico e teremos, depois, que retroceder até o início. Leonard troca de roupas com Jimmy e o arrasta até um porão. Ao terminar de desce-lo ele diz a palavra Sammy, semi- desacordado, assustando o protagonista, que começa a olhar as fotos e se desespera achando que pegou a pessoa errada. Teddy chega de carro, não é reconhecido nem tampouco se apresenta. Leonard pede ajuda com um homem que encontrou e golpeia Teddy no porão. Teddy conta que ajudou a encontrar o assassino da sua mulher e é pressionado por Leonard por conta do dinheiro e por sentir-se ligado ao traficante pela história de Sammy. O policial, no calor do momento conta uma história alternativa sobre o passado de Leonard e Jenkins. Segundo o policial, a esposa de Leonard sobreviveu ao ataque mas não acreditava na doença do marido, que a mataria por doses repetidas de insulina. Samuel Jenkins era solteiro e um farsante, desmascarado por Lenny no passado. Imagens com a cortina plástica do banheiro sendo retiradas de cima da esposa depois do ataque se somam com um plano detalhe onde a vemos abrir os olhos. Elas substituem Leonard por Sammy enquanto sobrepõe o testemunho de Teddy. Mas por vezes são contrastadas com imagens alternativas, todas coloridas, sem manipulações que sinalizem qual seria a verdadeira. 76

O traficante morto no porão não era o culpado pelo ataque, como assume o policial. Ele afirma ter ajudado Leonard a encontra-lo a mais de um ano atrás, mas ele se esqueceu e não quis acreditar. A foto recebida no hotel remontaria a esses eventos. Se tratariam de apenas dois viciados que não sabiam que aquela mulher morava com um homem. Teddy sugere que Leonard não quer parar e que ele apenas dá a ele o que quer. O acusa de manipular as evidencias do relatório por ele entregue, arrancando doze páginas e criando um verdadeiro quebra-cabeças, de forma a encontrar múltiplos John G. - Teddy mesmo tem como nome verdadeiro John Edward Gammell. Leonard joga as chaves de Teddy na vegetação, entra na caminhonete e manipula as “evidências”: queima a foto do traficante morto; a atribuída a morte do verdadeiro alvo; escreve atrás de uma foto de Teddy “não acredite em suas mentiras”; e, por fim, um bilhete onde registra a evidência 6: placa do carro, transcrevendo a placa do carro de Teddy. A voz off confirma as suas intenções. Ele decide esquecer as palavras de Teddy e o que acaba de fazer, forjando em Teddy um novo John G. a ser revelado posteriormente. Sai com o Jaguar do traficante, suas roupas e dinheiro, apesar dos avisos do policial. Enquanto dirige, por meio de um monólogo interior, o ouvimos: “Eu tenho que acreditar em um mundo fora da minha própria mente. Tenho que acreditar que as minhas ações ainda tem significado, mesmo que não possa lembrar delas. Eu tenho que acreditar que quando os meus olhos estão fechados (Leonard os fecha), o mundo ainda está aqui. Eu acredito que o mundo ainda está aqui? (tomadas rápidas com a mulher de Leonard deitada sobre o seu peito, já com as tatuagens). Sim. Todos nós precisamos de memórias para nos lembrarmos de quem somos. Eu não sou diferente”. Leonard freia o carro bruscamente em uma loja de tatuagens, com o bilhete com o número da placa, momento onde termina o filme seguido pelos créditos. A história continuaria a cores com Leonard fazendo a tatuagem em uma loja com o fato 6. Teddy o encontra, busca convence-lo a trocar de roupas e mente sobre um policial que o procura no hotel, manda envelopes, e teria algo a ver com a morte de um traficante. Já não se recorda do q aconteceu a pouco, mas olha fixamente para os olhos durante a história e suspeita o tempo todo, buscando com perguntas perceber alguma contradição. Em um cômodo onde iria se vestir, vê a mensagem escrita a próprio punho sobre as mentiras de Teddy, encontra no paletó um porta-copos de um bar com uma mensagem de Natalie e foge. Chegando ao referido bar, Freddie’s, Natalie vai ao seu encontro pensando se tratar de Jimmy, pede desculpas e sai preocupada. Leonard, em seguida, entra no bar. Natalie o indaga por estar vestido assim, pergunta o que quer, se é o Teddy ou trabalha para ele. Ele fala sobre a 77 sua condição e ela diz que Jimmy já tinha falado sobre ele. Ela pega uma caneca de cerveja, cospe, manda que outros façam o mesmo e entrega para ele, confirmando a sua incapacidade de recordar o que viu em instantes. Os dois aparecem juntos na casa de Natalie. Ela se mostra solidária com o protagonista e, ao ver os arquivos, questiona sobre os motivos que impedem a polícia de resolver o caso. Temos um flashback do ataque. Leonard estava dormindo e despertou com um ruído forte. Pega a arma, arromba a porta do banheiro e dispara contra um homem mascarado que está próximo da sua mulher, no chão, por baixo de uma cortina plástica. Um outro homem o atira contra o espelho e ele cai ao lado da esposa, com sangue saindo da sua cabeça. Leonard está convencido da existência de um segundo homem mas a polícia não acreditou no seu testemunho. Provas teriam sido forjadas nesse sentido. Natalie o convida para ficar em sua casa enquanto resolve o caso e sai para trabalhar. Leonard tira uma foto dela. Natalie entra em casa preocupada. Estão atrás dela por conta do dinheiro que Jimmy levava. Ela diz a Leonard que irá utilizá-lo. Começa então a provocar uma discussão com ele, levando-o ao limite. A câmera, em momentos de tensão como esse, se mostra mais instável, transitando pelo cenário com enquadramentos fechados e cortes sucessivos que lembram a cinematografia de Rodrigo Prieto, diretor de fotografia de Iñárritu. Nolan imprime cortes velozes entre tomadas no esquema de campo e contra-campo, combinando com planos detalhe que servem para ampliar o conhecimento do espectador e permitir algumas antecipações – como quando Natalie guarda todas as canetas em sua bolsa, impedindo o registro do ocorrido por Leonard. Leonard agride Natalie, que sai da casa com ar triunfante. Leonard não consegue nada para escrever, enquanto ouvimos os seus pensamentos, tentando desesperadamente manter o foco, nitidamente em descompasso com o movimento dos lábios. A porta do carro se fecha e Natalie retorna. O protagonista está confuso e não recorda do ocorrido. Natalie diz ter sido espancada por Dodd. Ela o culpa por ter procurado o outro traficante por sua recomendação enquanto Leonard busca acalmá-la. O ritmo da montagem é lento e a câmera estável, mantendo cada personagem no centro da imagem. Leonard ouve a história de Dodd, se sente responsável e parte atrás dele. No carro encontra Teddy, levando um grande susto e reagindo de forma violenta. Ele tenta convence-lo a distanciar-se de Natalie e sair da cidade, por conta do seu envolvimento com drogas e com Jimmy, além de estar convencido que ela irá utiliza-lo. Leonard já oferece uma nova versão dos fatos, atribuindo o Jaguar e as roupas caras ao seguro que tinha com a sua esposa. Teddy volta a pressionar e pede que escreva na foto de Natalie que não pode confiar 78 nela. Quando deixa o carro, o protagonista vê a mensagem sobre Teddy em sua foto e risca a mensagem sobre Natalie. Volta ao hotel depois de ver tal endereço em outro porta-copos, no carro. Depois de reproduzir no motel, com uma prostituta, o momento em que desperta com barulho no banheiro, em meio a objetos da esposa espalhados pelo quarto, Leonard vai até um cemitério e queima uma série de lembranças dela. Em um flashback Leonard questiona a esposa sobre o sentido de ler um mesmo livro repetidas vezes. “Sempre achei que o prazer de um livro está em saber o que acontece em seguida”. Enquanto queima as coisas se questiona também sobre quantas outras vezes pode ter queimado coisas dela tentando se despedir. “Não consigo lembrar de te esquecer”. No transito, de manhã, Dodd persegue Leonard pelas ruas da cidade. Não temos aqui nem em nenhum outro momento do filme planos abertos que permitam identificar a cidade ou extrair maior informação. Ele reconheceu o carro e a perseguição segue a pé. Leonard esquece do que está acontecendo no meio da corrida e quase leva um tiro, mas escapa e se dirige ao quarto de Dodd em um hotel, onde o espera. Mais uma vez se esquece do que faz naquele lugar e entra no banho. O traficante e o protagonista são surpreendidos dentro da habitação e, depois do embate físico, Dodd termina trancado em um armário. Leonard adormece e acorda desnorteado, descobrindo o homem no armário. Teddy continua atrás dele e aparece, ajudando-o a descobrir quem é o indivíduo amarrado e a se livrar dele. O conduzem para um lugar remoto, aplicam um susto e o liberam. Leonard não entende porque fez isso e acredita que está sendo manipulado para pegar a pessoa errada. Na casa de Natalie a pressiona para saber porque fez isso com Dodd. Ela o reconforta, destroem as evidencias do que fez com o traficante a pedido dela, percorrendo mais tarde as tatuagens em seu corpo. Os dois tem um momento íntimo, de cumplicidade e dormem juntos, ocupando cada um o lugar daquele que o outro perdeu. Antes de dormir, Leonard escreve em uma foto que Natalie o ajudará por pena, já que também perdeu alguém – Leonard destruiu os fragmentos que remetem ao que fez com Jimmy. De manhã Natalie diz que vai tentar descobrir o dono da placa que ele tatuou na perna. Ela o beija e diz que acha que ele se lembrará dela mais tarde. Ao sair, mais uma vez, Teddy o intercepta. Em uma conversa enquanto almoçam, Teddy pergunta sobre John G. e o recorda que pode estar sendo manipulado para pegar o cara errado. Leonard afirma que se sustenta por fatos, não pela memória. No hotel ele descobre que esteve hospedado no quarto errado e foi utilizado pelo dono do hotel para pagar mais diárias. O recepcionista o adverte e ele parte para o encontro com Natalie. 79

No restaurante ela se mostra ressentida por não ter sido reconhecida. Após conversa áspera entrega papéis que revelam que um J. Gammel é o dono da placa do carro. Ela não sabe que Gammel é Teddy, alguém que responsabiliza pela morte do namorado, mas sim que se trata de um policial com quem já foi visto. Ela pede que ele feche os olhos e fale sobre a esposa. Vemos tomadas que mostram fragmentos dela, por vezes distorcidas em momentos descosidos e triviais, mas que transmitem intensidade junto com a fala de Leonard. “Você pode sentir os detalhes. Os pequenos pedaços que nunca se preocupou em traduzir em palavras. Pode sentir esses momentos extremos, mesmo que não queira. Ao juntar tudo isso você pode sentir uma pessoa. O suficiente para saber quanta falta ela faz, e o quanto odeia a pessoa que a levou embora”. Natalie coloca um endereço entre os papéis. Um lugar fora da cidade onde sabe que eram feitos negócios. De volta ao quarto de hotel Leonard organiza fotografias em um quadro, analisa documentos e percorre as pistas em seu corpo, concluindo que encontrou o John G. que procura. Escreve em uma foto que se trata dele e deve mata-lo; veste-se, pega a arma e se prepara para o encontro com Teddy, que ocorre no saguão do hotel – rejeitando mais uma vez o apelido de Lenny, utilizado também por Natalie e pela sua esposa. Os dois retornam ao local da morte de Jimmy. Teddy tenta persuadi-lo não ir para lá e, logo, a partir, mas o acompanha até o interior do recinto. Após reler a mensagem na fotografia, Leonard agride Teddy e o rende. O policial volta a questionar a identidade e o passado do personagem. “Isso é o que você era, não o que se tornou”. Leonard não aceita ir ao porão para ver o que Teddy poderia ter a mostrar sobre a sua identidade, executando-o com um tiro na cabeça.

2.1.2 A fragilidade do relato

A fratura da história de Memento em duas linhas narrativas com vetores opostos tem consequências para a fruição e compreensão muito significativas, ultrapassando a experiência de participação em um jogo de quebra-cabeças. Ela permite, como já vimos, a identificação entre espectador e protagonista por meio da similaridade entre a fragmentação da trama e da sua consciência, assim como pela caracterização inicial da identidade do personagem por meio de um relato que se verificará duvidoso para ambos. 80

Como percebe Efrén Cuevas107, ela se combina em uma focalização interna fixa, uma vez que percorremos a narrativa apenas por meio de Leonard e acessamos apenas as suas intenções e fluxos de consciência. Essa estratégia faz do filme um ótimo exemplo cinematográfico da representação da identidade pessoal entendida em um sentido narrativo, como encontramos em Paul Ricoeur108. O personagem busca se apresentar e explicar incansavelmente por meio da comparação com Sammy Jenkis, oferecendo uma imagem coerente de si na mediação entre o seu passado, os motivos que, legados por ele, o movem no presente, e as estratégias pelas quais opera as suas escolhas e avança na direção do seu objetivo. A racionalidade na construção do próprio relato se apresenta como a medida para a sua atuação no presente em função de uma marcha a um futuro desejado, reproduzindo a racionalidade tecno-científica na forma e conteúdo. Em primeiro lugar na coerência interna e no frio ajuste entre meios e fins – reforçado pela paleta de cores e apatia do personagem, em segundo pela mobilização de técnicas pseudo-científicas de análise comportamental, condicionamento e investigação – que desdenham inclusive do papel da memória na reconstrução dos eventos. A verdade acerca do presente e passado se desvelaria se obedecidas as leis e os métodos que regem o seu funcionamento. Esse recurso guarda profundas similaridades com os “meta-relatos de legitimação” que tanta importância tiveram não apenas como instrumento de dominação das potências capitalistas modernas109, mas na construção dos projetos identitários dos estados nacionais, responsáveis pela consolidação de uma autoimagem superior à do “outro”. Esse “outro” é aqui também caracterizado por sua perda de autonomia e completa incapacidade de produzir verdades sobre o mundo e sobre si mesmo - como Jenkis, que termina internado, ou aqueles relatos descartados por investigadores e policiais – como ele mesmo e o seu interlocutor, Teddy. A autenticidade desse relato, porém, se vê reforçada pela estruturação da narrativa e fragilizada por falseamentos ao longo da história. Por um lado temos o desconforto provocado por cada salto ao passado nos permite experimentar as múltiplas possiblidades de arranjos com o mesmo punhado de elementos que a trama oferece e conta Leonard. As lacunas e a interpretações dos “fatos” demandam um importante esforço criador, ao mesmo tempo que se revelam produzidos pelo próprio protagonista e manipulados a partir dos seus desejos, inclusive

107 CUEVAS, Efrén. Christopher Nolan visto desde Gerard Genette: análisis narratológico de Memento. P. 191. 108 RICOEUR, Paul. Sí mismo como otro. Madrid: Siglo XXI de España editores, 1996 109 Como encontramos em críticos da modernidade como Jean-françois Lyotard, em “A condição pós- moderna, Eduard Said em “Cultura e Imperialismo” ou na historiografia acerca da construção de identidades nacionais, como em Erick Hobsbawm em “A invenção das tradições”. 81 o desejo de não recordar ou de se permitir acreditar em outra coisa. A montagem paralela oferece contrastes com a versão oferecida em preto e branco. A trama, por outro lado, oferece uma série de exemplos que contradizem o protagonista. Quando busca lembrar da esposa, de como ela era, recorre a sensações que permitem conhece- la ainda que não tenham importância em uma cadeia causal ou possam ser expressadas pela linguagem. A sua própria busca parte de uma memória que confere a certeza da existência de um segundo agressor, ainda que as evidencias periciais e a sua condição mental – uma circunstância objetiva – tenham levado a polícia à descartar equivocadamente o testemunho de Leonard. O olhar de reconhecimento de Jenkis levava a concluir que ele interpretava, porém, dotado de intencionalidade, o contador reproduzia com ele as expectativas dos demais, evitando assim a reprovação e o constrangimento. A montagem paralela ainda contribui no contraste entre duas narrativas alternativas sobre a identidade de Leonard: aquela oferecida pelo personagem e outra, apresentada pelo policial. Nesta última a distinção de Leonard e Sammy Jenkis parece ter tons menos nítidos, natureza duvidosa uma vez que no filme de Nolan – como nas narrativas nacionalistas ou nas legitimadoras da identidade moderna, ocidental – a construção do “outro” parece dizer mais sobre aquele que o produz do que sobre o seu referente.

O espectador se vê obrigado a submeter o relato à uma detida reavaliação para tentar descobrir os fundamentos e contradições que sustentam uma das duas versões. Na busca se descobrem três imagens muito breves, mas que projetam interrogações significativas sobre os acontecimentos mostrados; imagens que não parecem responder à focalização de nenhum personagem, mas sim a uma intromissão da instancia narrativa responsável pelo relato110.

A primeira, na ordem do enredo, diz respeito à tomada com o beliscão de Leonard na esposa, rememorado durante uma tatuagem, que no discurso disruptivo de Teddy é repetido com Leonard aplicado a insulina e, em seguida, com a versão anterior. A segunda mostra Leonard no lugar de Sammy na cadeira de rodas. A terceira, por outro lado, em vez de responder ao discurso de Teddy, se dá na sequência final do filme, quando Leonard dirigindo, ao fechar os olhos, vê a sua esposa sobre o seu dorso já completamente tatuado.

110 CUEVAS, Efrén. Op cit., p. 195. 82

A elas somamos imagens com a esposa de Leonard abrindo os olhos no chão, mas assim como as primeiras, não podemos afirmar com convicção que se tratam de construções mentais de Leonard motivadas pelo contexto ou são inserções do narrador fílmico. A crise de identidade, intensificada pela dificuldade em construir um relato coerente quando o tempo se encontra cindido entre um passado que nunca passa e um presente que se dilata, incapaz de sentir o tempo e, portanto de cicatrizar as feridas – como nos diz o próprio personagem -, é intensificada pela forma fílmica, portanto. A sua apresentação cronologicamente invertida ao lado da focalização interna, subjetiva, colocam protagonista e espectador em situação de bloqueio narrativo. A sua superação aparente é apenas reforçada pelo aparecimento de um ponto de vista alternativo, sem que seja possível superar o impasse. A importância e, ao mesmo tempo, a fragilidade da memória é experimentada ao lado da valorização da emoção, das sensações, enquanto formas de conhecimento não linguísticos e narrativos. Eles não se encontram organizados por alguma cadeia causal ou selecionados por critérios racionais, mas são experimentados sempre enquanto presente.

2.2 Inception

O sucesso de Memento garantiu a Christopher Nolan convite para dirigir um filme produzido pela Alcon Entertainment, estúdio parceiro da Warner na distribuição e financiamento. O suspense policial contou com elenco recheado por estrelas hollywoodianas com Pacino, Hillary Swank ou Robin Willians e alguns dos elementos psicológicos e narrativos que marcariam dos seus longas posteriores, com personagens ambíguos, atormentados, com dificuldade em perceber o mundo e a si mesmos com clareza, e viradas na parte final da trama que conduzem o espectador ao reordenamento da cadeia de eventos e da caracterização inicial dos personagens. A estrutura narrativa, por outro lado, se mostrou convencional quando comparada àquela típica dessa indústria. A história de Insomnia se passa em uma pequena vila do Alaska, onde dois policiais de contribuem na busca do responsável pela da morte de uma jovem. A neblina, os dias intermináveis, a dificuldade para dormir, contribuem para a confusão mental do protagonista, desestabilizado por matar acidentalmente o seu parceiro mas ser obrigado a modificar a cena do crime em função de uma investigação que os dois atravessavam na corregedoria. Esse filme marcaria o início de uma parceria com os estúdios Warner, ao lado de produtoras como a britânica Syncopy ou a estadunidense Legendary Pictures, com as quais 83 trabalhou com grande controle sobre os roteiros e a produção. A trilogia do homem-morcego ( Beginns, de 2005, The Dark Knight, de 2008, e , de 2012), principalmente os dois últimos filmes, contaram com enormes investimentos e arrecadações que ultrapassaram um bilhão de dólares cada um, colocando-se entre as maiores da história. The Dark Knight contou com no papel do “coringa”, oferecendo uma das atuações mais aclamadas pela crítica do cinema contemporâneo. Ledger morreu aparentemente por overdose de calmantes antes da estreia, com rumores que especulavam um suicídio e o vinculavam à experiência extrema de interpretar a versão do personagem no longa – o que acabou contribuindo para a sua promoção. O Batman de Nolan (), semelhante aos demais vilões da história, é um personagem solitário, desencaixado, marcado por um passado traumático que é incapaz de superar – a famosa morte dos pais durante um assalto -, que leva uma vida dupla, onde cada uma parece reivindicar a sua identidade dominante. Narrado fundamentalmente por meio da montagem paralela e com enorme contribuição da trilha sonora de , com quem trabalharia em todos os longas posteriores, a adaptação dos quadrinhos é marcada pela profundidade dramática e psicológica; pela verossimilhança de paisagens urbanas transnacionais, compostas em cada filme pela mistura de locações de metrópoles estadunidenses e asiáticas e fortalecidas pela quase ausência de imagens computadorizadas – marca dos filmes atuais -; mas também pela imersão e vertigem causadas pela baixa luminosidade nos dois primeiros filmes, velocidade do corte e impacto da imagem causada pela montagem. (2006) e Inception foram produzidos no intervalo entre um filme e outro da trilogia. O primeiro não teve um investimento tão alto quanto dos outros (40 milhões contra pelo menos 150 milhões nos demais e 250 em The Dark Knight Rises), mas logrou uma boa bilheteria e atraiu o interesse dos estudiosos de cinema, com uma grande quantidade de artigos. Tal atenção se deu por conta da criativa organização do filme em atos que simulavam, cada um deles, os passos de um truque de mágica, como descrito pelo personagem de , um velho engenheiro de truques, por meio do uso do flashfoward logo na abertura. A história fala da obsessiva disputa entre dois mágicos – perto do final descobrimos que se tratam de 3, uma vez que gêmeos dividiam a vida de uma mesma pessoa para assegurar o segredo do seu principal número –, Alfred Borden (Chistian Bale) e Robert Angier () que se destroem no esforço de superar o rival ou lograr a vingança pela morte de uma assistente de palco. 84

O engenheiro mostra para uma menina os três atos de um truque de mágica: apresenta- se um objeto para em seguida transformá-lo e por fim traze-lo de volta. Se trata, portanto, daquilo que não somos capazes de ver justamente por não olhar para o que realmente interessa, em parte pelo engenho do mágico que desvia a nossa atenção, mas também em função de uma plateia que deseja ser iludida. Os paralelos com o cinema e a atuação dos cineastas são vários. Se o primeiro, por exemplo, como vemos em Bordwell acerca da narrativa do cinema clássico de Hollywood111, parece reproduzir os três atos que estruturam esses produtos de entretenimento – apresentação dos personagens seguida por desestabilização das suas rotinas e o seu restabelecimento no ultimo terço -, cineastas, da mesma forma, buscam novas fórmulas, técnicas, dispositivos, para surpreender revitalizar o interesse da audiência, renovando o seu próprio campo de atuação. A história de cada um deles e as suas diferentes versões são contadas pela leitura dos seus diários, criando distintas camadas narrativas e aumentando a complexidade da trama. A fragmentação e ausência de rigorosa linearidade são dispositivos utilizados por Nolan para, como um mágico, desviar o espectador daquilo que será revelado apenas nas sequências finais do filme. O ambiente sombrio da Inglaterra vitoriana ou das montanhas dos Estados Unidos, com ruas escuras escuros ou espaços enevoados contribuem para ampliar o suspense e buscar por pistas escondidas. Como vimos acerca dos puzzle films, Nolan joga com as próprias regras do cinema, rompendo com a transparência da narrativa, deixando clara a manipulação na narração e estimulando o público a tomar uma postura ativa, desempenhando determinados dispositivos na compreensão de forma consciente ao invés de conduzi-lo de maneira que se mantenha oculta a sua presença.

Inception (2010) trata da extração e inserção de memórias ou ideias em meio aos sonhos. Cobb (Leonardo Di Caprio) é um extrator, trabalha roubando segredos de homens poderosos para os seus rivais. Junto com uma equipe de especialistas em tecnologias informáticas, no funcionamento da mente ou manipulações de sedativos, desenhando a arquitetura de sonhos que serão compartilhados pela maioria dos seus membros. O filme reproduz dispositivos narrativos típicos de filmes de assaltos, como o sucesso Ocean's Eleven (2001, conhecido no Brasil como “Onze homens e um segredo”), onde a apresentação de um protagonista ultra motivado e de um roubo quase impossível é seguido pela

111 BORDWELL, David. O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos. In: RAMOS,Fernão Pessoa (org.). Teoria Contemporânea de cinema: volume 2 – documentário e narrativa ficcional. São Paulo: Senac, 2005, p. 227-301. 85 montagem da equipe, com personagens um tanto quanto caricatos; elaboração e explicação do plano ao telespectador; e pela sua execução, sempre atravessada pelo aparecimento de alguma novidade que exige improvisação e causa danos à equipe. Fissuras entre os personagens ou segredos revelados em meio às cenas de ação criam novos conflitos e atuam de forma a frustrar parcialmente o plano. Christopher Nolan produz uma releitura de um clichê que se torna muito mais sofisticada do que essa fórmula pode sugerir, mantendo temas e elementos caros à sua filmografia e experimentando estratégias de montagem inovadoras. A legibilidade e familiaridade do consumidor desse tipo de produto de entretenimento, assim como da fiel clientela que acompanha a trajetória do cineasta, asseguraram uma arrecadação de mais de 800 milhões de dólares, logrando uma crítica muito favorável por parte de especialistas da imprensa e nomeações em premiações, como nas oito indicações ao “Oscar” e os prêmios na fotografia, efeitos visuais, mixagem e edição de som. Nolan, porém, depois de Memento, não se configuraria como um “cineasta de festivais”, tanto por não passar por eles na estratégia de promoção dos seus longas, quanto por serem identificados como blockbusters, a face oposta do que muitos consideram um filme de arte ou vanguardista. Inception, como veremos, consiste em uma peça de um cenário onde as velhas fronteiras entre entretenimento, mainstreen, indústria e reprodução em série, de um lado, e vanguarda, arte, cinema de autor e criatividade, inovação, de outro, se mostram extremamente difusas.

2.2.1 Sonhos dentro de sonhos

O longa abre com um flashfoward, onde vemos em câmera lenta o choque das ondas do mar contra as rochas, em plano fechado. Tomadas da água atingindo o rosto de Cobb contra a areia, ferido, em ritmo normal são alternadas no esquema de campo e contra-campo com outras dos filhos dele brincando na areia, também em slow motion. Ele é resgatado por seguranças japoneses e encaminhado a uma mansão com telhados característicos no topo de uma rocha. Um homem de idade muito avançada se interessa por ele quando os seus funcionários mostram um pequeno peão de metal. Cobb come encurvado na mesa. As cores são quentes e transmitem um tom familiar para o ambiente. Vemos Saito () muito envelhecido falar sobre como o peão o lembra de um homem de conceitos radicais que conheceu em um sonho muito esquecido, a muito tempo. Saltamos para uma tomada de Saito mais jovem, no mesmo salão, ouvindo Cobb com certa indiferença afirmar que uma ideia é o parasita mais difícil de arrancar do cérebro uma vez 86 que se instala nele. Junto a Arthur (Joseph Gordon-Levitt), tenta persuadi-lo a contratá-los para treinar o seu subconsciente contra extratores que roubam segredos. Estão vestidos com trajes de gala, em uma festa, se apresentando como os mais habilidosos extratores. Saito os deixa e diz que analisará a proposta. O salão treme e eles se perguntam sobre o que acontece “lá em cima”. Um plano detalhe mostra ponteiros do relógio acelerando seguido de tomadas com explosões e homens correndo em um ambiente aberto. Cobb e Arthur dormem sentados, Saito na cama, todos conectados por fios. Um homem checa os seus sinais vitais. Outra tomada em plano detalhe dos ponteiros agora desacelerando, com outro carro explodindo em câmera lenta. Saltamos para Cobb e Arthur na festa. Os dois estão preocupados uma vez que “Saito sabe”, mas Cobb está confiante de que a informação esteja no cofre. Telhas caem dos telhados, o ambiente vibra por vezes. Arthur se preocupa ao ver Mal () e pede que Cobb cuide disso. Ele vai ao encontro da bela mulher que observa o mar por uma varanda. Ela pergunta se ele sentiu a sua falta, mas Cobb diz não poder confiar nela. Em um quarto ele amarra uma corda em uma cadeira para poder escalar até outro andar e pede que ela se sente. Mal pergunta se as crianças sentiram a sua falta. Ele desce mas Mal desaparece, quase derrubando o protagonista em um precipício. Os enquadramentos são sempre fechados e a tensão, o perigo, implicam sempre na redução do tempo das tomadas. Cobb invade o salão onde se encontra o cofre, depois da festa, deixando um envelope e tirando outro. As luzes se acendem com Saito chegando na companhia de Mal, que tem Arthur rendido por uma arma apontada. Saito exige que Cobb entregue o nome de quem o contratou. Mal sabe que, a julgar pela decoração, estão na mente de Arthur, disparando em suas pernas. Cobb dispara na cabeça dele e ele desperta imediatamente no ambiente anterior, enquanto os outros ainda dormem, e tenta junto ao arquiteto sustentar um pouco mais o sonho, dando algum tempo a Cobb. O protagonista foge pela construção enquanto tudo desmorona, trocando tiros com seguranças. Saito desperta depois de ser soterrado. Cobb espia os papéis que roubou do cofre enquanto, na montagem paralela, o seu corpo desacordado cai em uma banheira em câmera lenta. A medida que o corpo penetra na água ela toma a construção em sua direção, até que desperta agora com a projeção em ritmo natural. Saito luta com os três homens até ser desacordado. Do lado de fora, homens destroem tudo ao entorno em uma composição que lembra a periferia de um centro urbano subdesenvolvido. Os homens e as suas roupas alternam tons de marrom. Saito está acordado em uma cadeira sendo interrogado, do lado de dentro. Os homens do lado de fora se aproximam 87 do edifício. As tomadas aqui são intercaladas com tomadas em um trem japonês, onde os mesmos personagens dormem enquanto um jovem coloca um fone de ouvido no arquiteto e toca uma música em francês – uma versão sombria e mais lenta de Je ne regrette trién, de Edith Piaf. Arthur percebe a música na camada em que está desperto, ela ressoa no ambiente de forma muito mais lenta. Eles estão em um quarto onde Saito costuma encontrar a sua amante. Ele se surpreende por terem descoberto o lugar e diz ter deixado que invadissem a sua mente. Estava testando-os. Quando Cobb o atira ao chão e o ameaça com a pistola, Saito, tocando o tapete com os dedos, se dá conta que aquele não é o seu (esse não é feito de algodão, mas sim de poliéster). Estão sonhando ainda, agora no sonho do arquiteto, que demostra arrependimento pelo erro cometido. Arthur acorda no trem. Saito está surpreso por Cobb ter logrado um sonho dentro de um outro sonho. Os homens invadem o apartamento e atacam Coob e o arquiteto, que acorda com a música agora no ritmo normal, sendo repreendido pelo erro do tapete por Arthur, que faz o mesmo com Cobb acerca da aparição de Mal, enquanto confere os sinais vitais de Saito. Os homens desmontam toda a estrutura móvel da cabine do trem e partem. Saito desperta mais tarde e vê o jovem japonês lendo gibis. Ele sorri. Temos uma tomada aérea de uma grande cidade a noite, sem qualquer elemento que permita identificá-la. Dentro de um quarto, Cobb observa o pequeno peão girar com uma arma próxima da cabeça. O peão para e ele mostra alívio, largando a arma. O telefone toca e ele fala com os filhos. Tomadas em câmera lenta com eles brincando em um gramado, sempre de costas, como na primeira sequência do filme, acompanham a cena. Em função do que a avó teria lhe dito, a filha diz que sabe que ele não voltará. Ele pede para falar com a avó mas ela se recusa. Em seguida o filho pergunta se a mãe está com ele, mas Cobb diz que ela não está mais aqui. Arthur bate na porta. Diz estar preocupado com ele. As interferências de Mal são cada vez mais preocupantes. Cobb se esquiva e diz ter tudo sob controle, enquanto saem para fugir de helicóptero. A COBOL Engenharia deve estar atrás deles por não terem concluído o trabalho. No helicóptero encontram Saito, seguranças e o arquiteto rendido. Na descrição densa dessa primeira parte do filme podemos entrar quase todos os elementos que estarão em jogo até o final. Nolan manipula o espaço e o tempo por meio da sobreposição de eixos de ação divididos em camadas de sonho. Em cada nível fora da realidade o tempo passa mais lentamente, de forma que cinco minutos podem se converter em uma hora em uma camada, uma semana na segunda e alguns anos na terceira. Os efeitos sobre uma geram consequências na seguinte, principalmente quando provocam sensações, como a música, a água ou a sensação de cair. A física também se vê 88 alterada, podendo fazer com que a queda em uma van enquanto dormem neutralize a gravidade um nível abaixo. Um tiro em uma camada superior pode ser sentido na seguinte, ainda que com consequências retardadas; a morte em um nível te atira ao imediatamente acima. Em cada camada eles sonham na mente de um, mas o subconsciente daqueles que nela estão inseridos percebe incoerências físicas ou perturbações emocionais, podendo se voltar contra os demais. Os indivíduos com os quais a “vítima” preenche os espaços são projeções que atuam na defesa do sonhador. A cada nível, o subconsciente reage com maior violência aos distúrbios acima. Esse “acima e abaixo” conferem uma dimensão espacial para o mergulho, representada no filme também pela arquitetura elaborada por Cobb para buscar aprisionar as manifestações de Mal, ao mesmo tempo que lhe permite reviver as memórias na qual está com ela e os seus filhos. Um elevador desce por fragmentos de memória, encontrando no último nível a perturbadora lembrança do suicídio da esposa. O retardamento da música de Piaf ecoando pelas camadas e da imagem por meio do slow motion ou pela utilização de relógios em planos detalhe, se somam aos diálogos que oferecem informações aos espectadores, com novas referências de tempo e espaço. Ainda que diálogos informacionais no curso da ação sejam frequentes mas apresentados com grande velocidade, sem tempo para pausas, eles tomam conta dos momentos de estabilidade da narrativa, principalmente ao longo da segunda parte, responsável pelo montagem da equipe, elaboração do plano e treinamento do novo membro. A entrada da perspicaz jovem parece cumprir principalmente esse papel. Por meio dela somos apresentados à teorias sobre sonhos e aos elementos que precisamos dominar para que a trama seja compreensível. Nolan foi amplamente criticado nos seus últimos longas, como Inception ou Interstellar justamente pelo abuso desse tipo de recurso narrativo, como veremos no próximo capítulo. A complexidade de dispositivos narrativos, como o flashfoward, a não linearidade e a montagem paralela entre eixos de ação interdependentes se soma à do funcionamento da mente e das teorias psicológicas mobilizadas, exigindo muita atenção e participação ativa do espectador. A utilização de uma perspectiva subjetiva na maior parte do tempo - uma vez que é por meio de Cobb, das suas lembranças e tormentos que acompanhamos a cadeia de ações - acaba, nas mãos de Nolan, por nos fazer transitar entre o tempo da ação e os seus fragmentos de memória, muitos deles experimentados em sonhos. Tomadas rápidas como as de Mal ou das crianças na praia se sobrepõe à fala de personagens, tornando presente eventos cronologicamente situados no passado. A caracterização dos personagens é fácil e estereotipada. Arthur, homem de confiança de Cobb, é responsável pelas pesquisas sobre os alvos. Organizado, metódico, prudente mas 89 sem muita criatividade. A formalidade com que atua se expressa em sua aparência e nos ambientes que produz em seus sonhos, sempre equilibrados e planejados. O falsificador, Eames (), é a sua face oposta. Ainda que mantenha um ar britânico de formalidade, é irônico, criativo e dissimulado. Tem no improviso e na interpretação as suas principais qualidades, sendo o responsável por personificar pessoas nos sonhos. A juventude da arquiteta, Ariadne (Ellen Page), se expressa no vestuário e postura despojada, assim como na curiosidade. É sagaz, tem raciocínio rápido, qualidades fundamentais para recriar criar e recriar os ambientes nos sonhos. Yusuf (Dileep Rao) é o químico responsável pelos compostos, tem um estilo alternativo, despreocupado com a aparência e se orgulha muito do produto que oferece, com muitas similaridades com produtores e traficantes de drogas em filmes juvenis – tem o melhor produto do mercado e é capaz de desenvolver compostos novos para qualquer efeito. Saito encarna o espírito aventureiro que é associado ao burguês da era de ouro do capitalismo, combinado com um código ético caro à representação do homem japonês – é um homem de palavra, portanto. Seu esforço para destruir um império energético encontra legitimidade no risco – ou melhor, na narrativa acerca do risco – que essas atividades monopolistas representam globalmente. Robert Fischer () é o filho de um bilionário a beira da morte, com aparência frágil, personalidade superficial, mas carente do afeto e reconhecimento do pai. Cobb – nome utilizado por Nolan em seu primeiro longa experimental, Following, para um ladrão - é um homem obcecado por voltar para a sua família, nos EUA e com dificuldade de separar sonho e realidade, tanto pelas décadas que passou no limbo com Mal – aquela se tornou a realidade dos dois – quanto pelo tempo que passa sonhando com ela. Como um viciado qualquer, resiste a admitir que tem um problema e não consegue lidar com ele. O pião é das poucas ferramentas que possui para saber se está sonhando ou acordado. Mal, por sua vez, é uma projeção realizada por Cobb acerca da sua falecida esposa. Bela, envolvente, elegante mas nada confiável. Aparece sempre buscando sabotar os planos de Cobb para que ele se junte a ela em sua realidade. No helicóptero, Saito oferece a Cobb um novo trabalho: inserir uma ideia na mente de alguém. Arthur rejeita a possibilidade de imediato mas Cobb diz já tê-lo feito, ainda que se trate de algo muito difícil, uma vez que o sujeito precisaria perceber a ideia como sua. Saito seduz Cobb prometendo resolver os seus problemas com a justiça, com um único telefonema, mostrando por outro lado o imenso poder do empresário. Ele deve fazer com que o filho de Maurice Fischer – que está a ponto de morrer - decida separar o império do pai. A única garantia de que Saito fará o que promete, porém, é a sua palavra. 90

Cobb vai com Arthur para Paris, onde se instalam enquanto preparam tudo. Ele encontra Miles (Michael Caine), avô dos seus filhos (não fica claro se é pai de Cobb ou de Mal, mas a cordialidade distante entre os dois sugere que seja o seu sogro), em uma universidade a procura de um novo arquiteto talentoso e fala superficialmente dos seus planos para voltar para casa. Não pode trabalhar como arquiteto porque Mal não deixa, segundo conta. Mill, nitidamente com pena, pede que “volte para a realidade”, mas apresenta a sua aluna, Ariadne. Cobb pede que a jovem desenhe labirintos em pouco tempo, até se convencer que é a pessoa certa para o trabalho. Temos várias sequências com diálogos informacionais em meio a passeios por cidades em sonhos de Cobb. Ela mostra uma enorme facilidade para modificar o ambiente, criar estruturas ou alterar drasticamente a física do sonho. Vemos reações negativas das projeções do subconsciente de Cobb até que, em uma cena na qual, ao colocar dois gigantescos espelhos em uma ponte, um contra o outro, multiplicando os personagens infinitamente em todas as direções, Mal aparece e a esfaqueia. Ariadne ameaça abandonar o projeto mas retorna por conta do entusiasmo que isso provoca, com todo esse potencial criativo. Cobb se arrisca indo até Mombaça, no Quênia, a procura de Eames. Em conversa em um bar ele fala sobre a necessidade de implantar a ideia como uma semente, a partir de formações elementares, sugerindo explorar a relação de Robert com o pai, isso daria maiores chances de prosperar do que apostando por noções políticas antimonopolistas, por exemplo. Os dois se vem perseguidos por caçadores de recompensas pelas ruelas da cidade africana e acabam resgatados por Saito. Enquanto Ariadne aprende em Paris, Cobb e os outros visitam o químico Yusuf que é convencido a participar diretamente no campo pela primeira vez, desenvolveendo sedativos que permitam mergulhar em três camadas de sonho sem perder alguns elementos sensoriais, como a de cair. Conhecem o lugar onde ele testa os seus compostos entre viciados, pessoas que só por meio deles conseguem sonhar. Um velho se dirige a Cobb: [Essas pessoas] “vem aqui para serem acordados. O sonho tornou-se a realidade deles. Quem é você para dizer o contrário?”. Cobb experimenta a substância e retorna consternado, tamanha a vivacidade dessa experiência. Saito fala de Robert Fischer e das suas motivações pessoais. Temos tomadas do pai, moribundo em uma cama ao lado do filho e do tio, que parece cuidar de todos os negócios. Eames já aparece infiltrado tomando notas. Ariadne constrói o seu totem – com peso e características únicas que ajudam ao sonhador a discernir se estão fora ou dentro. Durante a elaboração do plano, Cobb defende que precisam encontrar uma forma de fazer da relação com o pai mais significativa. As emoções significativas, para ele, suplantam as negativas. Todos precisariam de uma reconciliação, de uma catarse. 91

Ariadne vê Coob sonhando sozinho e entra em compartilhamento para investigar. Descobre que ele construiu andares acessíveis por um elevador onde reproduziu lembranças com Mal, com os filhos. Ela o encontra com esposa em um momento íntimo, na casa deles, o pressiona sobre os riscos disso e exige que conte tudo para a equipe. Eles passeiam por algumas das suas memórias mas Ariadne escapa e vai até o último nível, encontrando Mal em um quarto de hotel revirado. Ela tenta ataca-los. A morte do pai de Robert acelera o plano. Saito comprou uma companhia aérea para poderem trabalhar sem interrupções na primeira classe – o empresário decidiu participar da ação para assegurar os seus interesses -, onde o herdeiro viajará da Austrália para os EUA levando o corpo de Maurice. Cobb busca se aproximar de Robert e coloca sedativo em sua bebida. A equipe monta tudo e iniciam o primeiro mergulho. Estão no sonho de Yusuf. Chove forte o que é atribuído a sua vontade de urinar. Emboscam Robert em um táxi mas um trem cortando o asfalto da rua a toda velocidade faz com que o subconsciente da vítima reaja violentamente. Descobrem ali que ele recebeu treinamento contra invasores desse tipo e a sua mente reage de forma militarizada. Arthur não teve acesso a essa informação e é responsabilizado. Saito é gravemente ferido e, apenas então Cobb e Yusuf contam a todos que, por conta da forte sedação necessária para as três camadas, a morte em vez de despertá-los os conduziriam ao limbo – uma quarta e última camada -, onde vagueariam por décadas ou séculos, destruindo a sua sanidade. Continuar mergulhando seria a única forma de sair em função dos ataques do subconsciente de Robert. Mais uma vez Ariadne opera como interlocutora por meio da qual o narrador transmite informações ao espectador. Ele conta como junto com Mal trabalhou na compreensão dos níveis dos sonhos, antes que entendessem com precisão as diferenças temporais entre eles, ficando presos “nas margens do subconsciente”. Os dois perderam a noção de realidade e envelheceram juntos construindo cidades inteiras a partir de suas memórias. Mal tinha trancado o seu totem em um cofre e assumido aquela como a sua realidade. Duas almas envelhecidas em corpos de jovens. Mal não conseguiria se apartar de uma ideia fixa: ainda estavam sonhando e precisavam se matar para voltar para casa. No aniversário de casamento do casal ela montou em um hotel um cenário perfeito para cometer o suicídio e forçar Cobb a fazer o mesmo, uma vez que seria incriminado por sua morte. O protagonista teve que fugir depois que Mal se atirou do parapeito de um prédio, deixando os seus filhos para trás. Todos são levados, então, a uma van em movimento e entram na mente de Artur. Yusuf deverá dirigir até uma ponte, se chocar contra o parapeito e cair na água, despertando-os da 92 camada seguinte. A música os avisaria do momento no qual devem estar despertos na segunda camada para poderem retornar à primeira. A orquestração e controle do tempo resulta chave para a experiência do espectador, assim como para o sucesso dos personagens. Os extratores vão construindo ao longo das camadas experiências em torno do sequestro de Robert e da relação com o tio, representado por Eames disfarçado, de forma que ele se reconcilie com o pai na última e reforce esse sentimento ao subir em cada uma delas de volta. Na segunda camada estão em um hotel e na terceira em uma labiríntica fortaleza, em uma montanha nevada, construída por Ariadne. A perseguição à Yusuf pelas ruas de uma cidade; o enfrentamento de Arthur com os seguranças do hotel, sofrendo com os efeitos da gravidade pelos bruscos movimentos na Van, um nível acima e, mais tarde, pela sua queda de uma ponte, que a neutraliza; e o enfrentamento do resto da equipe, esquiando por montanhas e invadindo a fortaleza onde se encontra o último cofre, consiste no ápice da narrativa. O sofisticado engenho narrativo de Nolan permite estender essa experiência por aproximadamente cinquenta minutos – a queda da Van na água se prolonga por vinte sete minutos, exibida em ritmo extremamente lento, situando temporalmente as demais camadas em relação a essa. Mal mata Robert e vai com ele para o limbo antes que ele visite o cofre. Saito morre e está perdido por lá também. Cobb e Ariadne mergulham propositalmente no limbo, de forma compartilhada, para voltar com Robert assim que Eaman use um desfibrilador. Algumas batidas de coração nesse nível significariam minutos no outro, dando uma chance de operar um “quique” (a sensação de cair que te leva ao nível seguinte, acima). Em uma costa desolada, centenas de construções se despedaçam pelos efeitos do tempo. Cobb sabe que Mal está em um apartamento esperando por eles, com Fischer. Neste momento ele conta que aprendeu sobre a inserção por ser o responsável por implantar essa ideia na esposa. O vemos agora velho e cansado das décadas em que esteve preso com ela. Ele coloca o pião em movimento, no cofre (o pião não para no mundo dos sonhos), e a convence a despertar. Os dois se matam no trilho de um trem e despertam em casa. “Uma simples e pequena ideia pode crescer para definir ou destruir você”, afirma Cobb ao entrar no apartamento. Mal ofereceria um relato alternativo: “Está tão certo do seu mundo? Do que é real? Acha que ele é? Ou acha que está perdido como eu estava?”. “Eu sei o que é real, Mal”, retruca Coob. “Nenhuma dúvida cruel? Não se sente atormentado Cobb? Perseguido pelo mundo por empresas anônimas ou por forças policiais? Assim como as projeções perseguem o sonhador. Admita, já não acredita em uma só realidade. Então escolha, escolha ficar aqui”. 93

Quando Mal pede que os seus filhos olhem para trás (Cobb não consegue ver os seus rostos nos sonhos ou em lembranças), Cobb se recusa a olhar. Ele recusa a acreditar que ela é real uma vez que percebe o quanto a projeção que faz dela não dá conta de tudo que ela era mas é incapaz de descrever. A complexidade da identidade do outro e das sensações e emoções que nos provocam não poderiam ser, senão, reduzidas nessa imagem incompleta. Quando Robert desperta com o desfibrilador, Ariadne e ele pulam, mas Cobb fica para encontrar Saito e convence-lo a voltar antes que se tenha esquecido de quem era e, evidentemente, da promessa que fez. No cofre, Robert encontra Maurice no leito de morte. O pai pede que ele abra outro pequeno cofre ao lado da cama, onde encontra não apenas o testamento alternativo - com o qual Robert desmantelaria o império do pai -, mas um cata-vento de papel que está presente em uma foto de infância que Robert leva na carteira. O pai lhe diz que sua decepção é apenas a de que o seu filho não tenha tentado ser ele mesmo, em vez de ser como o seu pai. A catarse emocional será transmitida nível a nível por intermédio de diálogo com o tio. Cobb acaba se perdendo no limbo e retornamos na cena exibida em flashback, no início do filme. Ele convence Saito, extremamente velho uma vez que entrou no limbo antes de Cobb, a voltar para a realidade. A sincronização do chute funciona e todos despertam no avião. Saito está visivelmente confuso, mas realiza a ligação antes que o avião pouse nos EUA. Cobb consegue passar pela alfandega, é recebido por Miles e retorna para casa. Tudo se assemelha ao lugar que ele se revive em seus sonhos. Ele coloca o peão para girar, confuso, mas a sua atenção é interrompida quando Miles chama as crianças. Temos uma tomada externa, supostamente com a perspectiva subjetiva de Cobb com os dois de costas, exatamente como nos seus sonhos e memórias, em slow motion. Eles se viram e temos um outro plano, em ritmo normal, onde aparecem pela porta de vidro. Eles se abraçam. O filme termina com uma das tomadas mais icônicas do cinema contemporâneo: o peão continua girando. Balança, talvez perdendo algo de força, mas a tela escura com os créditos nos impede confirmar se ele realmente parou, como no real, ou se ele gira indefinidamente e o protagonista, portanto, continua a sonhar.

2.2.2 Multiplicidade em camadas de profundidade

Inception nos confronta com uma temática muito presente em filmes recentes: a possibilidade de que a nossa vida não passe de um sonho ou de algum outro tipo de farsa produzida pelo auto engano. Matrix (1999) e Vanilla sky (2001) são exemplos de filmes que 94 abordaram o tema de vidas experimentadas em sonhos produzidos por máquinas, ainda que no primeiro os humanos fossem prisioneiros delas e, no segundo, essa fosse a vontade do protagonista. Em The Sixth Sense (1999) e The Others, os protagonistas não percebem que estão mortos, enquanto em Shutter Island (2010) um personagem interpretado por DiCaprio cria uma elaborada fantasia para não reconhecer que está preso em um manicômio judiciário e aceitar que é responsável pelo passado que o atormenta. Nolan, porém, diferentemente desses filmes, deixa fissuras abertas que permitem leituras conflitantes. A tomada com o pião em movimento; diálogos que parecem insinuações, como Miles pedindo que retorne para a realidade ou o velho em Mombaça sugerindo que o sonho se tornou a realidade de Cobb; ou as indagações de Mal sobre as perseguições ao longo do mundo que tanto se assemelham àquelas das projeções nos sonhos. Também devemos nos recordar que as sensações são, segundo afirma Ariadne, o fundamento da experiência onírica, mas é justamente nelas que Cobb se sustenta para operar a distinção entre sonho e realidade. A narrativa reforçou o peso desses elementos. Nolan constrói uma trama fragmentada que impede na maior parte do tempo que acompanhemos o percurso completo e, principalmente, o ponto de partida do protagonista que o leva a cada lugar e encontro com personagens. A montagem opera saltos, transições bruscas não apenas entre eixos de ação, mas entre cenas dentro de cada um. Porém, na primeira parte do filme, Cobb explica para Ariadne que uma das principais características do sonho é que somos pegos no meio dele sem conseguirmos reconstruir o percurso completo. A narrativa, ao mesmo tempo, principalmente quando assume uma perspectiva subjetiva de Cobb, penetra a tela com tomadas descosidas do eixo de ação, com velocidade de exibição antinatural, que se assemelham às manipulações operadas entre os níveis de sonhos pela montagem paralela. Em outros momentos, produz contradições no relato do protagonista, mostrando casal ainda jovem colocando a cabeça nos trilhos, e mais tarde, nos mesmos trilhos, as mãos enrugadas pelo passar dos anos em plano detalhe. As tomadas externas se dão apenas em sonhos, em ruas estreitas assemelhadas a longos corredores. A única exceção parece ser a perseguição em Mombaça, que possui elementos muito semelhantes à camada de sonho onde se encontram no apartamento de Saito. Os ambientes internos nos sonhos, por sua vez, são desenhados como labirintos. Existe uma analogia importante também entre a montagem e o edifício de memórias criado por Cobb. O protagonista já nos tinha advertido sobre o perigo de criar sonhos a partir de memórias. A trama, por meio da montagem paralela, permite ao espectador experimentar de maneira simultânea os cinco níveis, do real até o limbo, ao mesmo tempo que saltamos entre as 95 memórias e sonhos de Cobb – indistintas na fotografia – e o próprio mundo que se encontraria fora do sonho. A construção onírica de memórias também é experimentada como níveis sobrepostos que coexistem e pelos quais passamos não apenas quando Ariadne os invade, mas a todo tempo que acompanhamos a perspectiva de Cobb. Enquanto desperto, o protagonista não precisa se locomover por espaços abertos como ruas e estradas para chegar aos seus destinos, está sempre lá, em ambientes fechados ou longe das perigosas multidões. O mesmo se dá em seu edifício de memórias, podendo saltar entre uma e outra por meio de outro ambiente fechado, o do elevador. A trilha sonora de Hans Zimmer e os efeitos e mixagem de som tem um peso enorme no funcionamento do longa e contribuem para nos aprofundarmos na labiríntica e ambígua arquitetura de Inception. Ainda que a música diegética de Edith Piaf apenas reverbere entre as camadas de sonho ou no sentido do real para os próximos níveis, distorcendo-se em função da dilatação temporal, a trilha sonora extra diegética parte de uma manipulação da principal, valendo-se das pulsações graves de sua abertura, com tons ainda mais graves, muita reverberação e efeitos de eco. Manipulações semelhantes se fazem presentes nas versões distorcidas da musica diegética, camadas abaixo. Nos deparamos com a captura e a manipulação dos sons em geral, como tiros, explosões, janelas quebrando ou o impacto contra a água. Eles reverberam e se distorcem, ligando os sonhos. Neste sentido, a fronteira entre o diegético e o extra-diegético se apresenta tão difusa quanto do real e do sonho no filme, fundindo essas dimensões emocionalmente – que como insiste o roteiro de Nolan, é a chave para compreensão e o fundamento das ideias que nos definem.

A negociação entre “real e ficcional” no cinema se veria decomposta nos esforços pela replicação das estruturas do presente, formas do cotidiano – como nos alertaram os críticos da sociedade e cultura de massas, como Adorno e Horkheimer – ou por sua denúncia, transgressão e crítica – como se constituíram as vanguardas -, por décadas servindo para diferenciar o cinema de entretenimento daquele entendido enquanto realização artística. Um e outro atuaram buscando cada uma destas dimensões limites, inevitavelmente destinados a jamais realiza-las integralmente. O cinema, que desde os irmãos Lumière se debateu entre a vocação para registro do mundo real ou para uma “fábrica de sonhos”, a medida que se configurou enquanto forma narrativa, se tornou um verdadeiro híbrido de reprodução e ilusão. Os estados e outros entes 96 entenderam rapidamente o seu potencial, não apenas enquanto meio de propaganda político- ideológica, forma de conformação e ressignificação da realidade por meio daquilo das histórias que contava e das formas como representava112, mas também o de produzir uma outra camada de experiência que passara a compor parte da própria realidade. O “mundo do cinema”, composto de regras próprias que fomentam expectativas em plateias cada vez mais acostumadas a fazer a sua leitura113. Em primeiro lugar é importante ter em mente que Inception é produzido em uma época marcada pela intercessão entre a imagem digital capturada e as adições, supressões e transmutações realizadas pela computação gráfica, de forma fazer do cineasta um diretor e designer, dividindo a sua atenção entre a montagem da mise-en-scène e a mesa digitalizadora, mas também por trabalhar na composição da imagem em camadas. Esse cinema alterou profundamente a produção, ao mesmo tempo que abriu portas para a construção a partir da imaginação, permitindo recriar mundos e construir sequencias que violam os limites – inclusive da física – ou ignoram os obstáculos impostos pela filmagem. A experiência com as múltiplas telas que se espalham em ambientes laborais, muitas vezes concentrando o nosso trabalho sobre elas – como a tela do notebook ou do desktop -, em outras decorando os ambientes ou servindo como meios de orientação e informação instantânea; que compõem espaços lúdicos, de bares à museus interativos; centralizam o lazer em nossos ambientes privados, com a exibição de grandes eventos esportivos, o streeming de filmes e seriados ou o na fruição dos jogos de vídeo-game; ou fazem de nós produtores independentes de conteúdo por meio de dispositivos pessoais e o seu compartilhamento em redes sociais, se somam ao estabelecimento do império do hipertexto, uma cultura constituída pela navegação veloz entre camadas de informação. Os consumidores e produtores de cinema se relacionam, portanto, de forma muito familiar com a imagem digital, em uma experiência que exige imersão e afastamento constantes no transito entre mídias ou no próprio trabalho em cada uma delas. A “cine-visão”, como argumentam Lipovetzky e Serroy, modelou a nossa percepção da realidade ao mesmo tempo que ofereceu suas formas e legibilidades para esses múltiplos meios – até mesmo no nosso desejo por visibilidade; na construção das nossas identidades virtuais, tão influenciadas pelo espectro do star system; ou pela maneira com que nelas narramos histórias. Também é verdade que os espectadores se acostumaram com uma postura muito mais

112 Para tal resulta fundamental o trabalho de Wagner Pinheiro Pereira em “O poder das imagens”. PEREIRA, Wagner Pinheiro. O poder das imagens: cinema e política nos governos de Adolf Hitler e de Franklin D. Roosevelt. São Paulo: Alameda, 2012 113 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. Op cit. 2009. 97 ativa frente a essas telas, transitando horizontalmente entre elas ao mesmo tempo que trafegam em camadas informacionais em profundidade. Trata-se também de atingir, de prender a atenção - por longos 120 minutos, ou no caso do referido Longa de Nolan, em torno de duas horas e vinte minutos - de um público que assumiu a feição de um consumidor voraz. Ele reflete durante a exibição sobre os artifícios e novas tecnologias empregados para produzir os efeitos que consome entra as mídias, desejando sempre um pouco mais. Maiores telas; mais efeitos especiais e sonoros; maior velocidade; mais protagonistas; a multiplicação de histórias em uma mesma trama; mais identidades representadas; cadeias de relações causais convergentes; complexificação do espaço-tempo; reviravoltas surpreendentes; emoções mais intensas, mas principalmente, lacunas a serem preenchidas pelo espectador elevado a nível de coautor. A experiência deve se estender, se possível, para o antes e o depois da exibição, nos produtos conexos, mas também com as leituras de ultra-consumidores de cada nicho, elevados ao nível de especialistas. Conexões desconhecidas e referências à outras obras devem ser desvendadas. O cinema respondeu a essas mudanças nos meios técnicos e nas formas de sociabilidade e consumo altamente virtualizadas construindo-se como uma atividade cada vez mais auto-referencial, hipertextual e virtualizada. O longa-metragem de Nolan explora muito bem a articulação entre a imagem-excesso e a imagem-distância que definiriam o hipercinema114. Por um lado, nas cenas de ação, a profusão de imagens na montagem, o impacto do som e a fusão da música diegética com a extra-diegética causam uma verdadeira vertigem ao espectador, que é arrastado pelo fluxo de ações com imagens que se sobrepõem na tela em planos muito fechados. O movimento da câmera, que simula o dos personagens – com a câmera na mão em alguns, mas em outros simulando condições de ausência gravitacional ou deslizando sobre trilhos ao lado de esquiadores -, por vezes se reveza com o esquema de campo contra-campo. Junto com a utilização predominante da perspectiva subjetiva do protagonista, com a repetição de memórias e da aparição constante na tela de Mal e dos filhos, elementos que causam a sobrecarga emocional de Cobb, assim como da valorização da expressão dos personagens sobre o controle da cadeia causal ou da sua espacialidade, temos poderosos dispositivos de imersão. Por outro, a complexidade da história e da montagem exigem um distanciamento crítico e reconstruções da própria história presumida pelo espectador em função do aparecimento de versões alternativas. Diálogos informacionais produzem pausas e afastamentos, mas são

114 Ibid., 2009 98 fundamentais nos filmes de Nolan para conhecer as regras que estruturam aquela realidade e os próprios dispositivos narrativos. Eles conferem alguma estabilidade, verossimilhança e permitem a sua assimilação, condições para os mergulhos posteriores. A apresentação de uma extração frustrada no início do filme, seguida pelas explicações sobre o funcionamento diegético dos sonhos – importa menos se de fato assim opera a nossa mente fora do universo da história – e do planejamento da inserção servem para preparar espectador e protagonista para a sua execução.

Paradoxal cinema hipermoderno: ao mesmo tempo em que a lógica do excesso o mergulha, o engloba num espetáculo que atua de maneira sensorial e sensitiva, uma outra lógica se desenvolve, em sentido contrário, que implica uma atitude, se não especulativa, pelo menos cognitiva. Piscadelas de olho, conotações, alusões, referências: não se contam mais os filmes que exacerbam a distância, o recuo do filme em relação a si mesmo, induzindo um semelhante distanciamento, em relação ao filme, por parte do espectador. Com isso uma outra forma de multiplexidade se introduz no núcleo mesmo do dispositivo fílmico contemporâneo: ela define a terceira figura característica do hipercinema e que chamamos aqui a imagem-distância. Essa combinação de dispositivos contrários – simplicidade / multiplexidade, sensação imediata / distanciamento crítico – é uma das grandes figuras do cinema por vir.115

O puzzle film de Christopher Nolan – mais em Memento e Inception do que em The Prestige - ao contrário do que por vezes se atribui a esse tipo de filme, aposta pela emoção como o fundamento das ideias, da identidade, da compreensão da natureza do mundo que por elas são apreendidas, assim como dos sentidos tomados no curso da ação. Isso vale tanto para os personagens quanto para os espectadores em seu processo de assimilação da trama. O peso, o significado pessoal, a familiaridade são elementos indispensáveis para que o totem não possa ser reproduzido no sonho, garantindo uma ponte com o mundo fora dele. Para implantar uma ideia, a equipe trabalha ao longo das camadas com a relação de Robert com o pai, buscando por meio de uma catarse, uma redenção mais uma vez mediada por um artefato de memória, o cata-vento. Um e outro atuam no sentido de orientar, definir quem somos, mas também podem ter consequências devastadoras, como o peão girando implantado por Cobb no cofre de Mal.

115 Ibid., p. 121. 99

“Você espera por um trem, um trem que irá te levar para muito longe. Sabe onde espera que ele possa te levar, mas não tem certeza e não faz diferença. Como pode não se importar aonde ele irá leva-la?” afirma Mal no apartamento onde cometera suicídio. “Porque estaremos juntos”, responde Cobb. Essa fala, que se repete enquanto o protagonista relembra da cena da morte, com Mal agora no parapeito. Os dois teriam saído do limbo colocando a cabeça nos trilhos. Um trem atravessou as ruas da primeira camada de sonho quase provocando o fim da missão. As longas explanações com o intuito de informar o espectador, os diálogos onde expressam as suas ideias e os planejamentos elaborados pelos personagens não oferecem os elementos necessários para compreender as verdadeiras motivações de Cobb. Ele parece fazer exatamente o inverso do que defende racionalmente em função da obsessão de voltar para os seus filhos, a culpa pelo que aconteceu com a sua esposa e a dificuldade em viver sem ela. As tomadas que oferecem fragmentos de memórias com grande carga emocional explicam melhor as suas tomadas de decisão e o leitmotiv do personagem. Como nas óperas de Richard Wagner, a repetição de temas da composição musical que preenchem as tristes lembranças de Cobb nas cenas em que ele toma decisões capitais, reforçam a compreensão das seus motivos condutores. Elas o definem. A cadeia de ações está fragmentada por uma montagem que não se constrói em torno da transparência, pela fluidez e naturalidade. De saltos espaciais entre distintas partes do planeta, que parece extremamente pequeno, tanto pela acessibilidade dos transportes aéreos, quanto pela ausência de elementos que operem como indicadores na trama acerca do espaço e tempo percorrido, ao transito vertical entre níveis de ação, por mais que tenham sido oferecidos elementos que facilitem a assimilação, somos arrastados como um trem em alta velocidade pelo choque de imagens e conexão emocional da trilha sonora. O trem não pode ter o seu destino racionalmente projetado ou antecipado. No filme, aparece sem aviso e os seus trilhos se perdem de vista sem nada que nos informe para onde vai, ainda que existam esperanças – e não expectativas, no sentido de projeções para a ação no presente. Tampouco se atribui a isso grande importância. O refúgio para a incerteza e incapacidade de atuar na construção intencional desses cenários se dá no encontro com o outro, na proximidade, nas relações familiares. A impossibilidade de reconstruí-las, em Nolan ou em Iñárritu, resulta no desamparo, na solidão e na ausência de sentido. Os personagens, nessa condição, são prisioneiros de um passado que precisam de alguma forma restituir, mesmo que pelo acumulo de lembranças e sensações no presente.

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2.3 O passado como a dimensão do presente

Em sua formulação ideal típica, o cronótopo historicista estabilizaria a crise da representação instaurando uma nova forma hegemônica de se relacionar com o passado concentrada na historicização e narrativização de quase toda a realidade. Uma das faces mais visíveis desse processo foi o surgimento das filosofias da história, que permitiram lidar com a sensação de aceleração do tempo e perda do passado a partir de conceitos como progresso e evolução. Assim, a perda de contato com o passado era compensada com a promessa de que a descoberta de seu sentido e sua evolução era capaz de reintegrar toda a história humana no futuro116.

Em filmes de histórias cruzadas e multiprotagonismo como os estudados no Capítulo I a complexidade se dá horizontalmente, produzindo uma descentralização do sujeito em relação ao mundo da história. Isso diz respeito tanto ao espectador na sua composição, por meio da trama, impedido de ocupar o lugar de um observador de segunda ordem, excêntrico ao mundo mas ainda capaz de identificar no movimento dos atores, os quais acompanha, as transformações deles e do entorno, quanto aos próprios personagens, atirados ao um turbilhão, com escassa capacidade de previsão, antecipação, ou experiências que permitam compreender e orientar a ação no presente. Em puzzle films como Memento e Inception, por outro lado, a perspectiva subjetiva se vê falseada pelas manipulações da narrativa, tanto no falseamento das versões por meio das quais compomos fragilmente a história, quanto pela complexificação vertical da realidade em camadas de memória, sonho, sentido, sem que tenhamos instrumentos oferecidos pela narrativa para distingui-los. Isso tem consequências fundamentais para a auto-referência histórica do sujeito e, por conseguinte, para a sua forma de estar no tempo. Como bem esclarece Gumbrecht:

Supomos que um particular solapamento das dimensões espacial e temporal respondiam às estruturas constitutivas da subjetividade moderna. Essa subjetividade, ou mais precisamente, a possibilidade de pensa-la de forma transcendente, servia para satisfazer os requisitos da objetividade, verdade e consenso que, ao longo de séculos, exigiu a ciência e, por vezes, inclusive a política. Mas se os tempos/espaços da modernidade entraram (...) em um processo de reestruturação ou inclusive de dissolução, está claro que já não podemos aspirar a realizar

116 ARAUJO, Valdei. Observando a observação: a descoberta do Clima Histórico e a emergência do cronótopo historicista, c. 1820. In: CARVALHO, José Murilo; CAMPOS, Adriana Pereira (Orgs.). Perspectivas da cidadania no Brasil Império. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2009, p. 281- 303 101

os objetivos totalizadores de objetividade, verdade e consenso. Ainda que não se possa considerar que os meios de comunicação sejam a única causa desse reajuste, nossa experiência dos mesmos permite imaginar a transformação ocorrida. Esses meios constituem uma realidade comum porque cada usuário, de forma individual, seleciona e combina partes do difundido por ele, Igualmente, a temporalidade e espacialidade, depois da sua transformação pós-moderna, podem ser experimentadas livremente por cada indivíduo, uma vez que já não dependem daquela esfera intersubjetiva onde se lograva a coordenação recíproca da experiência. Talvez, simplesmente, essa situação seja característica da etapa atual da história da práxis do conhecimento. Na idade média, o homem se considerava a si mesmo parte do cosmos. Apenas nos inícios da modernidade começou a ocupar a posição excêntrica de observador dos fenômenos, mas sem ser consciente da paradoxal pretensão de querer ser ao mesmo tempo observador e parte desse mundo. Se confiamos na análise de Michel Foucault, com a passagem do século XVIII ao XIX surgem pela primeira vez claros indícios de que o homem começou a observar-se no mesmo ato de observar, e na medida que essa posição secundária de observador se institucionalizou, se estabeleceu a convicção de que todo o conhecimento depende tanto da posição como o aparelho cognitivo do observador. Aqui convergem a breve história epistemológica do observador e as consequências da transformação pos-moderna do tempo e do espaço: a experiência do outro só pode ser experimentada enquanto experiência individual do observador e, por conseguinte, apenas como experiência contingente em relação ao outro.

O mergulho em um personagem não permite revelar as suas reais intenções nem existe um aparelho cognitivo médio, de funcionamento normal, a partir do qual a verdade possa ser conhecida. Na fragilidade do relato, na impossibilidade de acessar verdadeiramente o outro ou encontrar uma posição de observação superior – vimos como o movimento da câmera e a montagem paralela entre camadas de memória, sonho e versões propositalmente forjadas não oferecem base segura, apesar dos diálogos informacionais, uma vez que estes estão mais comprometidos com a apresentação das regras do jogo -, a narrativa dirige o público de encontro com as emoções. Não podemos por meio delas fabricar cenários futuros confiáveis ou aumentar a previsibilidade. A emoção, aqui, se dirige do presente em direção ao passado, verdadeiro frente aberto em suas tramas e responsável, inclusive, pela perturbação mental que experimentamos por meio do protagonista. A montagem de Memento de trás para frente da mesma forma que o flashforward em Inception ou a cena do reencontro de Cobb com os filhos, acompanhada pela tomada do peão girando e por intromissões de outras que dizem respeito às memórias do personagem, entendidos dessa maneira, deixam de ser um simples recurso na composição de 102 um quebra-cabeça. São movimentos para trás em função de um presente sobrecarregado de passado, bloqueado por ele, arrastando personagens e público na busca por algum tipo de saída e de entrada – como veremos no Capítulo III. A multiplexidade, a profusão de imagens, o excesso, a vertigem, o sempre mais dos quais nos fala Lipovetzky e Serroy, atuam de maneiras muito distintas nos longas dos dois diretores – horizontal ou verticalmente, por exemplo - um e outro, porém, bloqueando o futuro. Mas se em Iñárritu não conseguimos respirar para além de um hoje vertiginoso e visceral, em Nolan, no duplo jogo entre imersão e afastamento, opacidade e transparência, somos conduzidos sempre ao passado que insiste em não ficar para trás.

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CAPÍTULO III - IÑÁRRITU, NOLAN E O CINEMA SEM FUTURO

As premiações nas quais concorreu Babel foram precedidas pela reivindicação de coautoria pelo roteirista mexicano Guillermo Arriaga, com quem Alejandro Gonzalez Iñárritu trabalhou al longo da “trilogia da morte”. Depois de impedir a entrada de Arriaga em Cannes ou no “Oscar” – pelo qual foi duramente criticado -, o cineasta anunciaria que esse seria o seu último trabalho com “histórias cruzadas”, algo que cumprira nos três longas seguintes. Em Biutiful (2010), uma produção em colaboração entre a mexicana Cha Cha Cha Films – da qual fazem parte os “três amigos” Iñárritu, Alfonso Cuarón e Guillermo del Toro – e os canais espanhóis Televisión Española e Televisón de Catalulya, encontramos a utilização de alguns dispositivos narrativos, elementos estilísticos dos filmes e temáticas anteriores. O filme não contou com a colaboração de Arriaga, mas sim com o diretor de fotografia Rodrigo Prieto e trilha sonora de Gustavo Santaolalla. A história é construída no subúrbio da cidade de Barcelona, mostrando um cenário marcado pela imigração e pelas consequências da globalização, tanto pelo complexo mosaico cultural, a mistura de idiomas, quanto pela miséria de migrantes africanos ou chineses, por exemplo. Acompanhamos aqui a história de Uxbal (Javier Barden), um homem que sofre de uma doença terminal e procura reunir dinheiro e encontrar alguém que possa cuidar dos filhos, uma vez que não pode contar com a mãe, uma dependente química, ou com a sua família - não sabe nada do pai e a tempo perdera a mãe. O protagonista está envolvido com pirataria e mão de obra ilegal, sendo amplamente explorado no filme como diversos grupos humanos vivem nas margens da legalidade e ilegalidade. O estado, por sua vez, em vez de oferecer uma rede de proteção eficaz, opera fundamente como mecanismo externo de coerção. A família e os problemas causados pela sua manifestação disfuncional tem centralidade na temática, ao lado da solidão e da morte, reforçados por uma cinematografia que produz o confinamento – como vimos no capítulo I –, pelos planos detalhe de insetos que se interpõe entre cenas, ou pela presença de fantasmas – Uxbal tem a capacidade de interagir com eles – que ajudam a construir um cenário que faz lembrar do realismo fantástico que consagrou a literatura latino-americana no século XX. O longa é estruturado de maneira linear, com a trama construída em torno das relações de causa e efeito. Alguns eventos de alta intensidade emocional são resultado de escolhas equivocadas do protagonista mas que não foram previstas por ele. 104

A inevitabilidade da morte constrói um horizonte de expectativas fechado, onde a única fissura diz respeito às condições nas quais serão criados os seus filhos, ainda que condenados à ausência do pai, como ele. Um flashfoward que antecipa a cena final do filme, com o fim da vida de Uxbal, faz com que espectador e protagonista compartilhem da ausência de futuro uma vez anunciado o final da vida – um pelo dispositivo narrativo, o outro pelo parecer médico. No resto da trama veremos o esforço de um pai para minimizar os efeitos da ausência experimentada por ele e que se reproduzirá em seus filhos, ou seja, o futuro deles de alguma forma replicará o passado do personagem de Bardem. O longa teve boa resposta da crítica especializada, algumas indicações em festivais, ainda que não tenha sido acompanhado por uma expressiva bilheteria – arrecadou cinco milhões nos EUA e vinte e cinco se contados os outros países e outras formas de distribuição/exibição. O diretor explorou timidamente um recurso que ganharia força nos últimos anos, sendo explorado com maestria pelas colaborações entre os também mexicanos Alfonso Cuarón e Emmanuel Lubezki, em filmes como Y tu mamá tambien (2001), Children of men (2006) e Gravity (2013). O plano-sequência e a entrada em cena de Lubezki seriam “protagonistas” na cinematografia – assim como na atenção da crítica – nos dois últimos trabalhos de Iñárritu: Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance) (2014) e The Revenant (2015). Esses filmes expressam bem o assalto mexicano aos grandes estúdios estadunidenses e no cenário transnacional. Isso fica bem ilustrado com o Oscar de melhor diretor recebido em 2014 por Cuarón, devido ao seu trabalho em Gravity; por Iñárrito em 2015 e 2016 por Birdman – que também receberia de melhor filme e melhor roteiro, este último assinado pelo diretor com outros colaboradores - e The Revenant; ou pelos prêmios de direção e melhor filme recebido por Del Toro em 2018, com o Longa The Shape of Wather. Lubezki seria o diretor de fotografia nos três primeiros e levaria o título pelos três de forma consecutiva. Birman se tratou de um filme experimental – como definido pelo diretor em entrevistas – onde ele e Lubezki buscaram maneiras de expressar a confusão mental de um ator em crise, replicada pelos ininterruptos movimentos da câmera entre um labirinto de corredores e espaços apertados em um teatro da Broadway. Feito a partir de longos planos-sequência – alguns superiores a dez minutos - que criam a ilusão de se tratar de uma tomada única, sem cortes, e tendo como trilha sonora apenas os sons da bateria de Antonio Sanchez, somados aos desafios de coreografia do elenco e da câmera em sequências tão longas, planejadas previamente, de 105 forma que a pré-produção tenha assumido por vezes o papel da montagem na pós-produção, o longa-metragem exibiu ao máximo as habilidades do seu diretor e da sua equipe técnica117. A história trata de um ator de cinema, Riggan Thomson (Michael Keaton), que um dia teve grande fama, principalmente por encarnar um super-herói – Birdman – em uma famosa franquia. O protagonista, assim como o próprio Keaton, veriam sua carreira decair depois de recusar atuar em um novo filme com esse papel. Riggan se envolveria com atuação e direção de uma peça na Broadway para dar a volta por cima e alavancar a sua carreira. Ele é atormentado pelo personagem que um dia interpretou, com extensos monólogos interiores e intromissões no fluxo de ação, colocando em cheque desde o início a sua sanidade mental. A intermitência entre fantasia e realidade, porém, se conjuga na apresentação para o espectador de um mundo por trás dos bastidores bem distinto do glamour que acompanha o star system. Contando com um orçamento mediano (dezenove milhões de dólares) e colaboração entre produtoras menores do mercado independente estadunidense, a boa bilheteria alcançada parece resultado não apenas da conquista de um público fiel, mas das premiações. Boa parte da crítica especializada, porém, apesar de reconhecer os efeitos logrados por Iñárritu, assumiu que os excessos (duração do filme, tempo e usos dos planos-sequência, movimentos da câmera, trilha sonora constituída apenas de uma bateria) se tratavam de exibicionismo, virtuosismo do cineasta. A análise do longa, porém, me levam a entender que o uso excessivo de todos esses elementos tem fundamental importância em produzir o incômodo, as sensações de claustrofobia e a perturbação experimentadas pelo protagonista. É evidente, por outro lado, que a configuração do mercado cinematográfico exige e premia esse tipo de exibicionismo técnico, permitindo elevar diretores enquanto autores ao patamar de celebridades. Nomes como o de Iñárritu ou Nolan estão associados a nichos de consumo de cinéfilos da mesma forma que são verdadeiras “grifes”. Podemos dizer que compreenderam e incorporaram a lógica do campo, um bom caminho para lograr a sua proeminência nele em forma de prestígio, por exemplo, algo comum ao cinema ou à lógica acadêmica – como nos ensinaria um Pierre Bourdieu118. Christopher Nolan terminaria a trilogia de Batman com outro recorde de bilheteria, muito em função dos logros de Dark Knight. Interstellar (2014) e (2017) foram superproduções com grande impacto mediático, altíssimos investimentos publicitários por todo

117 https://www.hollywoodreporter.com/behind-screen/oscars-birdman-cinematographer-reveals-secrets- 760590. 118 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 13ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. 106 o planeta, o que criou enormes expectativas entre público e especialistas. Os longas não tiveram a contribuição de , laureado diretor de fotografia com quem trabalhou desde Memento e que iniciou uma tardia carreira de diretor no blockbuster Transcendence, contando com a contribuição de Nolan como produtor. Com apenas algumas indicações, as premiações não acompanharam o entusiasmo de fãs e as enormes arrecadações dos últimos filmes de Nolan (675 e 525 milhões, respectivamente). A crítica especializada, apesar da recepção favorável, também mostraria incômodo por uma primazia da técnica e manipulação narrativa, talvez, não justificada pela história; pelo excesso de diálogos informacionais e a necessidade de explicar o que a imagem mostra, dada a complexidade do roteiro, em Interstellar; ou pelas minorias não representadas, pela homenagem nacionalista e demasiadamente enaltecedora do herói britânico em Dunkirk. Essa última crítica se deu em meio às fortes tensões políticas relacionadas com o Brexit, atribuindo ao filme uma leitura favorável ao movimento, o que exigiu de Nolan diversas respostas à imprensa119. Em Dunkirk, da mesma forma que na maioria dos seus longas - incluindo as tomadas noturnas de ação nos filmes sobre o personagem dos quadrinhos da DC Comics -, Nolan apostaria por filmagens em locações em espaços abertos, iluminação natural e filmagem em película no formato IMAX. Aqui, repetiu a parceria com o diretor de fotografia suíço , profissional com expressiva trajetória na Europa mas quase desconhecido pelos estúdios de Hollywood até o trabalho em Interstellar. O filme contou com locações nos países baixos, EUA, França e Reino Unido, colaborações de empresas distribuídas pelo globo e produção fundamentalmente estadunidense e britânica. Em seu primeiro trabalho de reconstrução histórica, afastando-se dos filmes da Segunda Guerra convencionais na indústria, Nolan montou uma trama que apresenta três histórias que se passam em distintos intervalos de tempo mas coincidem na parte final do filme. Durante uma semana acompanhamos os esforços de Tommy () e outros soldados para conseguir um lugar nos navios que deixam a pequena cidade de Dunquerque, na França, onde centenas de milhares de soldados estão acuados pelo exército alemão; em jornada de aproximadamente um dia, Mr. Dawson (), acompanhado por um dos seus filhos e o melhor amigo, leva sua pequena embarcação pelo canal da mancha para ajudar no resgate dos soldados; Farrier (Tom Hardy) e outro membro da força aérea fazem o percurso pelo ar

119 https://www.screendaily.com/news/christopher-nolan-why-dunkirk-is-anything-but-a-brexit- movie/5124612.article 107 com seus Spitfires de forma a proteger os homens em terra e mar, em um eixo de ação que tem uma hora de duração. Nolan levou o multiprotagonisto e a multiplicidade de histórias para abordar um evento passado, produzindo uma verdadeira experiência de simultaneidade. O tique-taque do relógio de bolso do cineasta, sintetizado por Hanz Zimmer na trilha sonora120, mantém a unidade emocional e a conexão entre eixos de ação a cada salto entre eles, na montagem, enquanto caminham um ao encontro do outro. Aqui, diferente do uso convencional desse tipo de narrativa, trata-se mais de ampliar a experimentação do evento histórico pelos diferentes espaços e tempos em que ele se produziu do que reforçar os contrastes, a diversidade cultural ou a multiplicidade de leituras. Até mesmo a necessidade de retornar para casa, em fuga, no primeiro eixo converge com os esforços heroicos de militares e civis nos outros dois, não se tratando de covardes mas sim de bravos sobreviventes que precisam se agrupar em sua terra para lutarem em sua proteção, uma nova frente portanto. Em entrevista durante a promoção do longa-metragem, o diretor voltaria a mostrar a relevância que dá às sensações sobre o encadeamento lógico ou o rigor nos dados, afirmando que “ao usar a ficção, pude explicar vários aspectos do que aconteceu em Dunquerque de maneira mais eficaz e com maior clareza emocional do que seguindo estritamente os fatos”121, como feito na tradição documentarista. A multiplicação de eixos de ação; a verossimilhança lograda pela combinação de pesquisa, precisão dos efeitos digitais e utilização de película na fotografia em locações reais, com luminosidade natural; e a ênfase em uma experiência sensorial reforçada pela linguagem da câmera, instável e muito próxima dos personagens, combinada com planos abertos de paisagens desoladoras, com uma paleta de cores fria que beira o monocromático, trabalharam para fortalecer uma leitura sem fissuras, coerente, dos eventos e atores envolvidos de um lado. O “outro”, o inimigo, é importante ressaltar, sequer ocupa lugar central no enquadramento nas pouquíssimas vezes que é representado. Consiste mais em uma fantasmagoria omnipresente e mortífera que em uma existência humana propriamente dita. A ambiguidade e a apresentação de versões alternativas na narrativa a serem operadas pelo espectador, elementos tão marcantes da cinematografia de Christopher Nolan, desaparecem justamente quando este constrói uma narrativa comprometida com a reconstrução passado do

120 https://archive.is/20170712105412/http://www.businessinsider.com/christopher-nolan-dunkirk- interview-2017-7 121 No original: “By using fiction, I was able to explain various aspects of what happened in Dunkirk more efficiently and with more emotional clarity than by just following strict facts”. (https://archive.is/20170626105556/http://www.dga.org/Craft/DGAQ/All-Articles/1703-Summer- 2017/WWII-Dunkirk.aspx#selection-1785.250-1785.418) 108 seu país. A “clareza emocional”, portanto, é subproduto de uma apresentação unidimensional multiplicada nas três histórias, todas contando linearmente a jornada de volta para casa. A maestria nos efeitos, na construção da narrativa, mas principalmente na produção de um poderoso mergulho no mundo do filme – reconheço que na condição de consumidor de cinema fui capturado durante a exibição do filme em uma das gigantescas telas IMAX para as quais foi projetado -, não devem entorpecer o pesquisador. Em vez de criar apenas uma nova escala de valores para avaliar as obras, devemos ter em mente os milhões de cadáveres legitimados durante a própria Grande Guerra por discursos nacionalistas (essencializados, monolíticos, construídos em torno de um inimigo comum omnipresente e do enaltecimento de uma “comunidade imaginada” qualquer) não tão distintos desse122. Isso se faz necessário também em função dos conflitos migratórios e levantes xenofóbicos dentro do Reino Unido, por exemplo. Ainda que esta pesquisa não tenha como finalidade investigar essas dimensões da obra, no mínimo cobram o seu lugar na reflexão ou nos trabalhos futuros.

3.1 The Revenant

A estrutura narrativa de The Revenant, longa com maior investimento da carreira de Iñárritu (135 milhões, aproximadamente), é a mais próxima daquela utilizada pelo cinema clássico hollywoodiano123, ainda que negociados com elementos marcantes do cinema contemporâneo. Eles operam na releitura de uma obra literária inspirada no famoso explorador Hugh Glass e eventos que remetem aos desafios pela sobrevivência e a bravura dos exploradores durante o período da colonização da América do Norte. Com roteiro inspirado no livro The Revenant: A Novel of Revenge (2002), do escritor, professor e embaixador estadunidense Michael Punke124. Existem diversas obras publicadas sobre Glass, principalmente sobre as suas expedições na Rocky Mountain Fur Company. O livro fala de eventos posteriores que teriam se dado enquanto ele trabalhou sob o comando do capitão Andrew Henry, mas o filme constrói um recorte ainda menor, contando a saga de Glass

122 Além das obras de Edward Said e Stuart Hall sobre a construção do discurso imperialista ocidental às quais me referi no capítulo 1, parto de outras contribuições como: ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das letras, 2008; HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1990; ou, acerca dos usos do discurso cinematográfico, PEREIRA, Wagner Pinheiro. O império das imagens de Hitler: O projeto de expansão internacional do modelo de cinema nazista na Europa e na América Latina. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2008. 123 Ver em BORDWELL, David. O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos. In.: RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria contemporânea do Cinema (vol. II). São Paulo: Editora SENAE, 2005. 124 PUNKE, Michael. The Revenant. London: The Borough Press, 2015. 109

(Leonardo DiCaprio) para sobreviver ao ataque de uma Ursa, retornar para a sua companhia e se vingar de John Fitzgerald (Tom Hardy). Uma descrição detalhada dos primeiros doze minutos do longa servirá para elucidar a estratégia de Iñárritu para reconstruir esse emblemático mito que faz parte da fundação dos Estados Unidos da América. Na primeira tomada do longa a câmera percorre os rostos de Glass, um menino e uma nativa-americana enquanto dormem. Em voz-off ouvimos o homem branco falar em um idioma indígena, estimulando a continuar respirando e lutando, apesar do desejo de que isso acabe. A câmera continua movendo-se lentamente em direção à uma grande árvore por uma paisagem descampada, com colinas ao redor, baixa luminosidade por conta do tempo ruim que se aproxima e do cair do dia. Do lado esquerdo do quadro a mulher e a criança brincam sustentados pelo vento – uma tomada que recorda a dos meninos marroquinos em Babel -, do direito, em contra-plongée, Glass se aproxima, de costas para o espectador. Tomadas em slow motion com primeiro plano do menino sorrindo e da mãe são cortadas por outra noturna, com uma casa em chamas enquanto um soldado branco, fora de foco, se afasta com uma tocha. No centro do quadro vemos o filho mestiço de Glass, Hawk (Forrest Goodluck), com o rosto queimado. O vento traz brasas do fogo em direção da tela, que se confundem com os flocos de neve, uma vez que o terreno está coberto por eles. Outra tomada, em velocidade de exibição normal, não sabemos se no amanhecer ou anoitecer, com a aldeia destruída, em chamas, o pai sentado segurando o filho desacordado no chão, seguida de um primeiríssimo plano de Glass, visivelmente abalado, olhando para o vazio com a árvore e a aldeia como pano de fundo. A tela escurece enquanto o som da água corrente substitui o do vento. A música extra- diegética se confunde com os sons do ambiente selvagem. Em um plano com duração bem extensa (2 min), Lubezki mostra a água e as raízes a medida que avança pela floresta. Aos poucos as árvores se revelam entre luz e sombra, com a fonte luminosa no centro, criando uma correspondência visual com as tomadas anteriores. Não existe ruído na imagem apesar da utilização da câmera livre. A lente angular – ao longo do filme serão utilizadas versões dela de 12 à 21 mm, aplicadas a uma ARRI Alexa, com filmagem digital, diminuindo a granulação pela baixa luminosidade – distorce as bordas e os três homens (Hawk, Glass e outro membro da companhia) a medida que eles a ultrapassam, caminhando lentamente enquanto caçam com os seus rifles. A paleta de cores frias, em tons de azul, é substituída por outros tons um pouco mais quentes a medida que a luz invade timidamente o cenário. A câmera se move cuidadosamente espiando o lugar como mais um outro entre os personagens. Um alce é avistado, e ela se aproxima com Glass até o seu disparo. 110

A montagem corta para Fitzgerald escutando o tiro enquanto urina. Ele começa a reclamar e se alarma com a possibilidade que os nativos também o tenham percebido. A Câmera se afasta sem cortes oferecendo a primeira tomada aberta, onde vemos um rio que corta de forma sinuosa a vegetação. Em uma clareira aberta por eles, homens arrancam peles de animais, montam fardos, com sangue e vísceras marcando os tons do ambiente. Ele dá comandos até ser chamado pelo capitão Andrew Henry (Domhnall Gleeson), conversam sobre o atraso, o cansaço da equipe e a necessidade de partir de manhã. Tomadas longas, com a câmera posicionada um pouco abaixo dos rostos dos personagens, transita em torno do jovem Bridger (Will Poulter). Os tons de marrom e cinza dos troncos e da lama se misturam aos rostos sujos dos homens. As suas piadas são interrompidas pelo aparecimento de um homem nu com uma flecha nas costas. Um deles começa a passar diretrizes mas é interrompido quando uma flecha silenciosa atravessa a sua garganta. Todos ficam alertas recuando com as armas sem saber exatamente de onde partiu o projétil, até que outro provoca os primeiros disparos. Temos uma tomada com Glass tirando a pele do animal enquanto o sangue se espalha na água. Ao ouvi-los, ele prepara a arma e parte com Hawk na direção. O capitão e a equipe se escondem entre as árvores. Tiros de flechas incendiadas cortam as copas das árvores e a câmera de Lubezki gira pelo ambiente filmando de baixo para cima, assim como se abaixa com os demais, rasteja e reage aos sobressaltos do início do ataque empreendido pelos nativos. Apesar disso, ela por vezes retarda o seu movimento, sem muitas vibrações na imagem, se aproximando dos rostos dos atores, valorizando com isso as suas expressões. Espectadores e personagens não conseguem identificar a localização dos inimigos, estão encurralados, confinados em espaço aberto tanto pela proximidade entre corpos e lente, quanto pelas ameaçadoras copas que se erguem acima deles. Tomada com Glass e Hawk correndo em direção à câmera. Outra, se afastando dela, indígenas a cavalo invadem o acampamento já entre chamas. Um plano sequência de dois minutos mostra Glass no acampamento chamando o filho para os barcos. Os enfrentamentos se espalham, capturados aos pedaços por entre as arvores ou em meio ao movimento da câmera, surpreendendo a coreografia de tantos figurantes, atores e do próprio Lubezki e da equipe técnica de suporte. Glass atinge um, é jogado ao chão por outro e, resistindo à asfixia, é salvo por um golpe anônimo que derruba o oponente. Uma flecha que veio de cima abate um dos homens brancos, e Glass atira nele, escondido nas copas, em resposta. A câmera perde Glass e observa um homem mais velho que golpeia o rosto do nativo já abatido, sendo acertado no olho em seguida. 111

Um novo plano-sequência inicia com um líder nativo a cavalo decapitando o homem recém ferido. Da direita para a esquerda ele passa na frente da câmera que o acompanha, se expondo na clareira iluminada pelo sol que se encontra paralelo ao horizonte e satura a imagem. O chefe é alvejado no ombro e caímos junto com ele, rastejamos até que recebe o chute no rosto de Fitzgerald, que passa a ter a atenção de Lubezki. Enquanto grita para que apanhem as peles e pega um fardo, se depara com um guerreiro nativo de grande envergadura que o leva ao chão, mas consegue se livrar estocando-o com uma faca. A câmera parece segui-lo, mas depois que um cavalo cruza na sua frente ela muda de direção, acompanhando um homem branco grande, corpulento, que mata um cavalo e entra em um pequeno casebre, onde vemos um ferido pedindo para que algo seja entregue à sua filha, morrendo em seguida. Com a supressão quase completa do som diegéticos e aumento da intensidade da trilha sonora, um novo plano sequência mostra a fuga para o barco, já com o sol parcialmente coberto. Glass e o capitão e Fitzgerald tentam ajudar os seus. A câmera mergulha com Bridger enquanto tentam afoga-lo, retorna sem nenhum corte e segue com eles até o barco. Ela gira e retorna mostrando os que ficaram para trás e um plano aberto com a cena da batalha; sobe, mostrando a fumaça acima das copas e os pássaros, mas quando desce a narrativa opera um pequeno salto no tempo. Os nativos agora cuidam dos seus feridos, vemos as baixas do outro lado enquanto um homem de idade avançada entoa cânticos. O chefe, ferido, explica que trocarão as peles com os franceses por cavalos e continuarão a procurar por sua filha. Um dos elementos mais marcantes da cinematografia de The Revenant é aquilo que Suppia entendeu como “tentativa de preservação da continuidade do espaço e do tempo, numa espécie de apologia do plano-seqüência”125. De mãos dadas com o premiado diretor de fotografia Emmanuel Lubezki – amigo de infância de Alfonso Cuarón e com participação tão decisiva em seus filmes que, para muitos, ocuparia lugar semelhante ao do roteirista Guillermo Arriaga na trilogia da morte de Iñarrítu -, o diretor apresenta ao público a contra-intuitiva mistura de cortes pontuais em momentos de estabilidade, com planos-sequência de até sete minutos – justamente em cenas de ação, perseguição ou no ápice da narrativa. Com uma câmera solta, que passeia pelo cenário como um expectador invisível, se aproximando e afastando dos personagens, ao ponto até de, por momentos, abandoná-los, Iñárritu e Lubezki produzem um poderoso efeito de imersão. Se o corte oferece tradicionalmente a possibilidade de aceleramento da imagem, em The Revenant, com planos-sequência combinados à uma fotografia que aproxima o espectador da

125 SUPPIA Alfredo L. P. de O. Realismo e cinema de ficção científica: equilíbrio delicado. In: Revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFJF. Juiz de Fora: 2009. p. 6 112 tela de projeção e se move como se ele lá estivesse, combinado com a utilização de enquadramentos muito fechados em meio à cenas de ação, que captura apenas fragmentos da totalidade de ações que interceptam a trajetória do personagem, enquanto compõe o pano de fundo, logra uma sensação de ritmo acelerado ao lado da potencialização do efeito de presença, contraditoriamente prolongando a experimentação desses momentos. O público é capturado para a realidade fílmica, dividindo com os personagens os seus movimentos entre golpes, quedas, mergulhos na água, ou sensações como o frio, resultantes do embaçamento da câmera, as suas dores, desde as expressões faciais em primeiríssimo plano aos respingos de sangue tantas vezes mantidos na tela. A identificação produz-se, por tanto, tanto pelo efeito estético, pelo movimento da câmera e a contiguidade espacial e temporal, quanto pelos temas abordados e a caracterização dos agentes. A viagem no barco começa a desenhar as diferenças entre Glass e Fitzgerald. O capitão Henry se inclina pela experiência do primeiro e decidem abandonar o barco, esconder as peles e cruzar o território Ree. Os Arikara estariam ao seu encalço e Glass teme uma emboscada no rio. Fitzgerald começa a provocar o guia da expedição em função do seu filho mestiço. “Só estou dizendo, selvagem é selvagem”. Ele levanta dúvidas sobre as condições nas quais Glass e o filho sobreviveram durante um ataque dos seus compatriotas, acusando-o de matar um tenente. “Atirou em um dos seus para salvar esse cão aí?”. Hawk ameaçou responder de forma violenta o ataque de Fitzgerald mas foi contido e repreendido por Glass, que responde as provocações apenas mantendo-se “do lado certo da arma”. Em idioma Pawnee, diz a Hawk: “eu falei para ser invisível. Se quiser sobreviver fique de boca fechada. Eles não ouvem a sua voz, só veem a cor do seu rosto. Entendeu? Precisa me obedecer, filho”. Temos tomadas da viagem, em ambientes frios e húmidos. O longa continua explorando a relação de Glass com o filho. Em um dos momentos em que se destacou para caçar, o protagonista se deparou com dois filhotes de urso e acabou surpreendido pela mãe, que o feriu gravemente, dando início a um plano-sequência extremamente violento e intenso, com mais de seis minutos de duração. Fazendo-se de morto, Glass consegue pegar o Rifle e disparar contra a mãe, o que os atirou em um combate corporal que terminou com a morte da Ursa, mas o deixou com graves ferimentos. O grupo encontra Glass entre a vida e a morte, agonizando pelos ferimentos. Entre gritos, o capitão aplica os seus conhecimentos superficiais de primeiros socorros suturando ferimentos e imobilizando membros fraturados. Ninguém acredita que sobreviva mais que algumas horas. O enredo, a noite, mostra o chefe dos Pawnee negociando as peles dos americanos com uma expedição francesa. A postura de respeito do indígena é contrastada pela 113 ausência de respeito do europeu, que o toma por selvagem e ingênuo. Durante os deboches e negativas o líder francês em colocar cavalos na negociação, o Chefe mostra entender o idioma estrangeiro, ameaça o europeu e exige os animais por ser a forma de continuar buscando a sua filha raptada, fazendo-o ceder. Os homens de Henry carregam Glass no dia seguinte por meio de terrenos sinuosos, riachos e duras subidas. Em uma delas, com todos exauridos, a travessia se mostra impossível carregando o guia. Henry chega a apontar a arma para sacrifica-lo, mas recua e oferece uma retribuição para quem ficar com ele até que morra, enterrá-lo, ou possam retornar para busca- los, com o apoio do forte. Bridger e Hawk decidem ficar e oferecem as suas partes da recompensa para quem os acompanhar. Fitzgerald aceita, uma vez que isso reduziria as perdas causadas pelo ataque dias antes. Agarrando-se à vida, acompanhamos Glass em seus sonhos pela aldeia em chamas ou por cemitérios ancestrais. Os dois inimigos tem um momento a sós. Enquanto o ferido não consegue falar, o outro tenta convence-lo a desistir, certo de que os Rees estão próximos. Um piscar de olhos parece confirmar que Glass aceitou morrer para salvar os demais. Enquanto Fitzgerald o sufocava, em meio a uma rudimentar prece, Hawk o atinge e chama por Bridger. O experiente explorador tenta se explicar e impedir que o rapaz continue gritando pelo companheiro em busca de ajuda, o que denunciaria a sua posição. Fitzgerald então, perante o olhar desesperado e impotente do pai, esfaqueia Hawk até a morte. Quando Bridger volta, é persuadido de que Hawk deve ter sido pego pelos Rees e que eles se encontram nas proximidades. Fitzgerald coloca Glass em uma cova rasa, cobre-o parcialmente com terra, e o deixa para morrer sem o seu rifle. O jovem rapaz deixa o seu cantil com água e parte. Iñárritu, que participou da elaboração do roteiro, incluiu um filho mestiço na história que não existia no livro de Punke. Por meio disso o cineasta mexicano inseriria dois aspectos marcantes da sua obra em conjunto: a centralidade das relações familiares e os conflitos e danos causados pelo contato entre diferentes. O primeiro permite construir um passado idílico, que não pode ser reconstruído, reforçado por flashbacks que transitam entre o sonho e a memória. Hawk é o último vínculo que sobrevive dele e confere sentido à sua existência. Do desejo por vingar a morte do filho, como veremos, Glass tiraria forças para sobreviver em condições extremas, enquanto no livro é enfatizado o desejo de vingança pelo abandono, mas, principalmente, o instinto de sobrevivência e a resiliência que marcam o espírito daqueles desbravadores. O segundo faz de Glass um personagem entre dois mundos, mas sem um lugar claro em nenhum deles. Toda a experiência é construída a partir da perspectiva subjetiva do protagonista, 114 o que permite aos espectadores se identificar com ambos, ao mesmo tempo que é mantido algum distanciamento com um e outro justamente por conta desse desencaixe. Glass sobrevive a uma noite em sua cova e, rastejando, encontra o corpo do filho congelado. Ficando com ele até conseguir reunir forças para partir. Bridger termina descobrindo que Fitzgerald o enganara mas é forçado por ele a seguir e contar outra versão ao chegar no Forte. Quando a trama apresenta sequências que não as do protagonista, o faz a partir do núcleo do antagonista, tornando cada vez mais forte o sentido da jornada do primeiro. A jornada de retorno de Glass é marcada tanto pela angustiante luta pela sobrevivência em um ambiente tão hostil, quanto pelo reencontro com o seu passado. O personagem encontra um indígena que teve a sua família e o seu povo dizimados por um grupo rival. Ele compartilha uma fogueira e uma carcaça de Búfalo – vemos Glass comendo o fígado cru do animal -, e acaba levando-o em seu cavalo. Paisagens exuberantes em locações nos EUA, Canadá e Argentina, na Patagônia, são o cenário para as jornadas do índio Pawnee e Glass, ou da companhia americana. A fotografia de Lubezki produz verdadeiras pinturas em cada fotograma, justificando as premiações por esse trabalho. A narrativa de Iñárritu não oferece nítidos marcadores espaciais e temporais, ainda que seja possível saber que dias se passaram pela alternância entre cenas diurnas e noturnas, ou pela resposta do corpo do personagem de DiCaprio aos ferimentos. Alguns momentos de distensão são oferecidos pela trama de Iñárritu, com os dois homens brincando com os flocos de neve. Glass chega a sucumbir em meio a uma tempestade, mas foi curado pelo companheiro de viagem, que montou um abrigo aquecido – evidenciando a relevância dos seus saberes para sobreviver naquele ambiente – e o deixou, seguindo o seu curso. Mais tarde, em sua jornada de retorno, encontraria o recente amigo enforcado em uma arvore com uma placa que dizia, em francês: “somos todos selvagens”. Ele entra escondido no acampamento da companhia francesa e vê uma indígena sendo estuprada pelo comandante, oferecendo ajuda à jovem mulher. Glass solta os cavalos, atira para chamar a atenção e os dois escapam em sentidos opostos, mas não antes que ela pudesse arrancar a genitália do agressor com uma faca. Glass acabaria sendo encontrado e atacado pelos nativos que buscavam a filha do Chefe Pawnee sequestrada – que ele libertara no dia anterior, caindo em um precipício. Nessa noite, dormiria dentro corpo do próprio cavalo. A solidão do personagem é muito explorada por Iñárritu, tanto em distantes planos abertos de paisagens remotas, ou em tomadas noturnas onde ele luta, desperto, para se aquecer, deixando mensagens em rochas ou no gelo. “Fitzgerald matou o meu filho”. 115

No forte, depois que o assassino de Hawk recebera a recompensa por supostamente cuidar do pai, um sobrevivente do acampamento francês pede abrigo. Leva com ele o cantil que Bridger deixou com Glass. Os homens assumem que Hawk ou algum outro que se perdeu do grupo pode estar vivo. O capitão parte com os seus na busca. Fitzgerald, porém, sabe o que aquilo significa, rouba o cofre da guarnição e parte. Glass é resgatado e, ao voltarem para o forte, o capitão e o sobrevivente começam a caçada. Antes, em um intenso diálogo, Glass afirma não ter medo da morte por já estar morto. Fitzgerald tirou o único que lhe restava. O corpo mutilado, porém recém limpo, com a forte luz branca que parte da janela e deixa os seus olhos com tons muito claros de azul, com expressão vazia, fazem com que se assemelhe a um cadáver. O capitão, por outro lado, assim como o Chefe Pawnee, tem cada vez mais ressaltada a sua postura honrada e altruísta. Na caçada pelas montanhas, Henry e Glass se separam em certa altura, mas o primeiro acaba sendo morto por Fitzgerald. Entre armadilhas e perseguições, os dois terminariam em um confronto marcado pela brutalidade, com partes do corpo arrancadas por lâminas ou mordidas; sangue se espalhando pela neve; entre gritos de dor e ódio, em um plano-sequência em primeira pessoa, com a imagem distorcida pela proximidade com a lente angular, e respingos de sangue ou flocos de neve acumulados na tela. Com Fitzgerald rendido e gravemente ferido, Glass vê como o Chefe Pawnee, a sua filha e outros do grupo se aproximam lentamente a cavalo. Ele recorda da frase do amigo nativo, morto pelos franceses: “a vingança está nas mãos de Deus, não nas minhas”, atirando o inimigo ainda vivo no rio, em direção ao grupo. O assassino de Hawk tem o seu escalpo arrancado mais uma vez (um dia já fora marcado assim pelos nativos) pelo Chefe. Uma tomada o mostra sem vida, submerso. Os dois homens se olham por algum tempo enquanto o grupo apenas passa próximo a Glass. Existe altivez e olhar de respeito na mulher que o homem branco ajudou. Ferido, exausto, iniciando o retorno, ouvimos a voz de uma mulher em idioma indígena falar com Glass. Em plano e contra-plano, com um close up de Glass e a mulher vista acima, em contra-plongée, a nativa se despede e parte com semblante alegre. As copas das árvores, como ao longo de todo filme, ressaltam o quão pequenos somos perante a natureza, em tomadas que recordam muito os sentidos religiosos trabalhados por Terrence Malick e Lubezki em The Tree of Life (2011). Glass treme de frio e a tela escurece pouco depois de olhá-la diretamente. Existe talvez alívio, mas certamente um profundo vazio em seu semblante. A jornada de vingança terminou e já não resta nada mais que o mantenha vivo, conectado a este mundo. No romance de Punke o espírito de sobrevivência, a natureza aventureira, a resiliência e as suas habilidades, respeitada a dimensão do acaso que 116 acompanham qualquer experiência, foram responsáveis pelo seu retorno. Iñárritu, ao centrar a jornada em torno da vingança pelo assassinato de Hank, faz com que se esgote com a morte de Fitzgerald a motivação de Glass. Não existe o que comemorar nem feitos pelos que se orgulhar. Não se trata de uma história de superação, de uma volta por cima. Glass de alguma forma morreu e foi sepultado pelo assassino do seu filho.

3.2 Interstellar

A jornada espacial de Interestellar também explora a centralidade relação entre pais e filhos na sobrevivência e nas principais tomadas de decisão. Com uma narrativa estruturada linearmente até a última parte do filme, marcada pela montagem paralela entre eixos de ação que se passam em tempos e ritmos diferentes, cujas conexões são fundamentalmente emocionais, veremos o amor e os laços familiares ocupando um lugar muito pouco comum em filmes de ficção científica. O roteiro de Jonathan Nolan, irmão de Christopher, foi escrito sob encomenda de em função de um projeto controlado pela . Jonathan trabalhou por anos no projeto em busca de suficiente sustentação científica. O famoso físico teórico Kip Thorn foi a principal inspiração e fonte acerca da teoria da relatividade e das consequências da gravidade no espaço-tempo. As relações familiares são destaque em boa parte da cinematografia de Spielberg e talvez por isso tenham sido muito exploradas na história. Mudanças no cenário da indústria que aproximariam o laureado diretor estadunidense em direção à The Walt Disney Company, junto com o seu estúdio DreamWorks, levaram a entrada de Christopher Nolan no projeto, com a colaboração da Warner Bros e da britânica Syncopy Films - o diretor trabalhou com as duas em quase todos os seus filmes126127. O roteiro final foi escrito pelos irmãos depois de selecionar e reorganizar o vasto material de Jonathan128. Em função da sua aposta por criar experiências verossímeis para os espectadores, mas também para os atores, favorecendo a imersão de ambos, Nolan combinou locações reais com reproduções de ambientes internos inteiros em estúdio, filmados com a tecnologia IMAX; tomadas produzidas a partir da captura de movimento de aviões a jato, por exemplo, com a liberdade da computação gráfica justamente onde ela oferecia novas possibilidades. Essa combinação vai na contramão da tendência na produção de blockbusters de ação, ficção

126 https://www.hollywoodreporter.com/heat-vision/official-christopher-nolans-interstellar-be-426889 127 http://www.sciencemag.org/news/2014/11/physicist-who-inspired-interstellar-spills-backstory-and- scene-makes-him-cringe 128 https://www.hollywoodreporter.com/news/interstellars-christopher-nolan-stars-gather-742727 117 científica, medieval-fantasia ou adaptações dos heróis dos quadrinhos onde sequências ou até mesmo filmes inteiros podem ser produzidos com a captura de movimento e atuação dos atores em salas com fundos verdes, interagindo com personagens e objetos que serão preenchidos apenas na pós-produção. O longa nos apresenta um futuro próximo – assumimos isso ainda que não sejam oferecidos marcadores temporais e espaciais claros – onde o planeta sofreria uma grave crise ambiental e alimentar que teria levado ao colapso de estados e a morte de milhões. Tempestades de poeira e pragas varrem as plantações. Existe baixo nível de informação da trama a esse respeito, o que contrasta com as informações de ordem “científica” que ocupam a maior parte da primeira hora de filme, por meio de diálogos informacionais bastante artificiais. A história se passa em algum lugar rural dos EUA, com o foco dirigido sobre a família que planta milho para sobreviver, apesar das crescentes dificuldades para garantir as colheitas. Quase nada sabemos sobre qualquer coisa que não faça parte do entorno imediato dos protagonistas. A exibição inicia com a tomada de parte de uma estante com livros, onde repousa a réplica de um ônibus espacial típico das missões da NASA. Poeira cai sobre a estante e temos o título do filme exibido. A trilha sonora “etérea” do órgão de Hans Zimmer soa junto com o barulho do vento e se mantém apesar do fade out da imagem. Temos um flashfoward – ainda que só mais tarde conseguiremos situá-lo cronologicamente no futuro da história - onde podemos ver uma mulher de idade avançada (Murph Cooper, nesta fase interpretada por ) falando, em um documentário, que o seu pai era um fazendeiro naquela época, como todos, ainda que tivesse um passado distinto. Imagens de um milharal com a voz dela sobreposta parecem dar sentido ao vento que sopra forte. Ele ficaria ainda mais intenso quando saltamos para um flashback, por meio de uma tomada externa da aeronave “ranger”, seguida por uma sequência do acidente de Cooper (Matthew McConaughey). A trama agora mostra Murph pequena () preocupada com o pai que acaba de ter mais um pesadelo com o acidente. Inicialmente pensou se tratar do “fantasma”. Cooper a manda para a cama e caminha para a janela, onde amanhece o dia. Ele olha para a plantação de milho e a cena é invadida pelo som do flashfoward onde a mesma senhora fala sobre a praga que matou o trigo e da poeira. Imagens do documentário com outros idosos desconhecidos são intercortadas por outras, do tempo que tomaremos como presente durante o desenrolar da trama, onde a plantação é castigada por tempestades de poeira, como ela cobre as casas e invade os ambientes internos. Em um deles Donald (), sogro de Cooper, prepara o café da manhã. 118

Tom (Timothée Chalamet), o filho mais velho, implica com a irmã caçula acerca do seu “fantasma”, a quem ela atribui a culpa pelos livros e objetos do pai que repetidamente caem da estante. Cooper incentiva Murph a estudar cientificamente o fenômeno: “Não me diga que tem medo de fantasma. É preciso ir além. Registre os fatos, analise-os, entenda os motivos e apresente as suas conclusões”. De saída para uma reunião de pais na escola avistam uma plantação sendo queimada por conta da praga. Se trata da última safra de quiabo da história. Donald recomenda que Cooper seja gentil com a professora de história de Murph, uma vez que é solteira e seria necessário repovoar o planeta. No caminho, enquanto concertam o pneu do carro, Murph questiona o pai pelo nome que lhe deram. Ele diz que não encaravam a “lei de Murph” como algo ruim, mas sim que se algo pode acontecer, acontecerá. Um grande drone militar indiano passa por cima deles e se atiram na caça do objeto em meio às plantações. Cooper consegue faze-lo pousar, o desmonta e retira os valiosos painéis solares. Ficamos sabendo que a força aérea indiana foi desativada a uma década e ele voa sozinho desde então. Na escola, justifica o seu atraso ao diretor e à professora por conta do pneu e do valioso drone, mas os dois não dão importância ao artefato. Primeiro falam de Tom, que estaria sendo preparado para ser fazendeiro. Cooper se revolta porque deseja que o filho frequente à faculdade, mas para além das escassas vagas e notas insuficientes, o estado parece muito mais preocupado com criar fazendeiros do que educar para a ciência, por exemplo – Cooper mesmo era engenheiro, piloto da NASA e agora trabalha na agricultura. A Professora, ao falar de Murph, relata alguns conflitos entre alunos por conta de um livro do pai que ela levou para a escola, o qual falava das missões Apollo. A professora diz que esses livros foram corrigidos, sinalizando que na verdade a ida à lua teria sido forjada como forma de estimular gastos que levaram à falência da URSS. Nas versões atualizadas as crianças não são estimuladas a investir em “máquinas inúteis”. “Para não repetir os excessos e desperdícios do século XX, as crianças tem que estudar este planeta, não contos sobre como deixa-lo”. Cooper relembra que “entre aquelas máquinas inúteis estava a ressonância magnética. Se isso ainda existisse teríamos visto o tumor no cérebro da minha esposa antes dela morrer ao invés de depois”. Ele se comprometeu a presentear a filha ao invés de castiga-la, o que renderia uma suspensão para a caçula. Em casa ele tenta resolver uma anomalia que confunde os sistemas de GPS das colheitadeiras e as dirige para a casa. Livros continuam a cair da estante e Murph acredita que se trate de um código. Cooper não parece acreditar que a estante esteja se comunicando. 119

À noite, na varanda conversando com o sogro sobre a reunião na escola Cooper afirmaria: “parece que esquecemos quem nós somos, Donald. Exploradores, pioneiros, não trabalhadores braçais”. Donald retrucaria dizendo que a sua infância era marcada pelo continuo aparecimento de novidades, engenhos e ideias, assim como pelo consumo desenfreado de seis bilhões de pessoas. Ele repreende Cooper por não se adaptar, continuar desencaixado, dizendo que Tom, por outro lado, se adaptará bem. Cooper continuou: “Nós costumávamos olhar para o céu e imaginar o nosso lugar nas estrelas. Agora só olhamos para baixo e nos preocupamos com o nosso lugar na poeira”. Cooper aqui dava mostras de um comportamento contestador, inconformado com a situação presente, ao mesmo tempo frustrado por não ter continuado com a sua carreira, mas sustentado nesse mundo onde não encontra o seu lugar pelo amor pelos filhos, principalmente pela relação com Murph. Em novas tomadas do documentário outros idosos relembram a época em que a natureza se voltou contra todos e de um evento específico, quando uma grande tempestade de poeira veio do desfiladeiro. Imagens e sons de um jogo de baseball são penetradas pela voz do entrevistado que as invade, operando a continuidade entre as cenas e servindo de marcador temporal. A esta altura a trama já ofereceu pistas ao espectador de que se tratam de cenas que se passam em um tempo posterior à do eixo de ação de ação de Cooper com a família. A tempestade interrompe o evento esportivo. Em casa, Murph deixou a janela do quarto aberta e o quarto foi tomado pela poeira. Um abajur no chão permite que pai e filha percebam que linhas são formadas pela poeira caindo. Intrigado, Cooper reflete sobre o que vê e descobre que se trata de uma anomalia gravitacional. As linhas são coordenadas em binário. Cooper decide verificar o lugar indicado pelas supostas coordenadas. Murph o acompanha, depois de se esconder na caminhonete. Ao chegar, a noite, em local protegido, Cooper tenta romper a cerca mas é apanhado pela segurança. Lá dentro, após ser interrogado por TARS, um robô com inteligência artificial muito desenvolvida, o tempo todo apenas preocupado com a filha, conhece a Dra. Brand (), filha de um professor que conheceu enquanto era piloto. O protagonista descobre que está em uma base da NASA e é levado para uma reunião com os responsáveis pelo projeto. Aproximando-se da primeira meia hora de exibição Nolan dá início, aqui, ao conjunto de sequências que prepararão a jornada de Cooper ao espaço. O Professor Brand (Michael Caine) terá aqui um papel semelhante ao de outros personagens interpretados por ele na cinematografia do diretor, como o mordomo Alfred, na trilogia do Batman; o engenheiro de truques, em The prestigie,; ou, em menor medida, o professor que é sogro de Cobb, em Inception: ajudará a explicar para protagonistas e espectadores o que está em jogo, a partir de 120 diálogos informacionais decisivos para a legibilidade da trama. Com ele passearemos pelas instalações ainda em construção, com uma nave em fase de acabamento, pelos laboratórios onde cientistas estudam a praga, buscam soluções e fazem prognósticos, ou pelos bancos de fertilidade onde são preparadas bombas populacionais. Para além da destruição das fontes de alimento, em anos (no máximo poucas décadas) a humanidade estaria condenada a sufocar por conta de uma atmosfera demasiadamente carregada de nitrogênio. Não existiria nenhuma saída que não abandonar o planeta. A geração de Murph seria a última da Terra. Cooper, por outro lado, sabe que não existe nenhum planeta com potencial para manter a vida como conhecemos a milhares de anos de viagem. Conhecer os planos da NASA implicaria porém, em aceitar pilotar a nave. As coordenadas enviadas por “eles” até Cooper e a experiência anterior fizeram dele a melhor escolha para a missão. “Por quanto tempo ficaria fora?”. “Difícil saber. Anos?”, diz Brand. “Tenho filhos, professor”. “Então vá e salve-os”. “Quem são ‘eles’?”. Cooper sorri. Um “buraco de minhoca” foi aberto a 48 anos e, até onde a física compreende, não poderia se tratar de um fenômeno natural. Estaria acompanhado por uma série de anomalias gravitacionais como as presenciadas pela família do protagonista. Essa distorção do espaço- tempo permitiria viajara para outra galáxia com alguns sistemas com potencialidade para a vida. Um grupo de exploradores teriam partido a anos e enviado dados que apontam para ao menos três planetas que poderiam receber a espécie humana. Uma nova missão partiria agora para verificar a possibilidade de habitar em alguns deles, além de iniciar a colonização por meio de uma “bomba populacional”, com muita diversidade genética. Esse seria o plano B, onde a espécie seria salva ainda que os habitantes da Terra, porém, não tivessem chance. Porém, em função dos dados coletados nas anomalias, o professor trabalha na elaboração de uma formulação teórico-matemática que permitiria manipular a gravidade e, com isso, deslocar, por exemplo, a estação inteira. O plano A depende do trabalho dele, mas também dos dados que as missões puderem oferecer, além da existência de um planeta a ser habitado. Murph não aceita a partida do pai. A ligação emocional entre eles é intensa e muito bem explorada ao longo do filme. A montagem paralela é conectada pelo amor entre os dois. Por um lado temos a sobrevivência na Terra, com Tom () na fazenda junto com a sua nova família e os esforços de Murph, agora adulta (), ao lado do professor, em busca por soluções para os quebra-cabeças teóricos. Do outro, a jornada pelo espaço de Cooper, Brand, os cientistas Romilly (David Giasy) e Doyle (Wes Bentley), além dos robôs TARS (voz 121 de ) e CASE (voz de ). A trilha e as pontes sonoras produzidas pela edição atuam sempre no plano dos sentimentos entre pai e filha. O piloto tenta fazer as pazes antes de sair. Ela afirma que decifrou outra nova mensagem dos livros na estante: “Fica”. Cooper assume que se trata de um esforço da filha para impedir a partida. Ele entrega um relógio para que um dia possam comparar a diferença de tempo – cogita que quando voltar possam até ter a mesma idade – mas ela o arremessa para longe, aparentemente travando o ponteiro. O pai deixa a fazenda sob responsabilidade do filho. Enquanto parte de carro, entre lágrimas, uma câmera acoplada na lateral do carro e apontando para a casa que é deixada para trás mimetiza as filmagens de lançamentos espaciais. Podemos ouvir por meio da ponte sonora a contagem regressiva até o lançamento, quando finalmente temos tomadas da nave de Cooper. A trilha sonora teria dos poucos momentos de silêncio, valorizando a intermitência da ausência de som nas tomadas externas no espaço para a presença dele dentro da nave. A viagem segue com belas tomadas no espaço que foram comparadas às do filme de , 2001:A Space Odyssey ou às do mais recente Gravity, de Alfonso Cuarón, com a fotografia de Emmanuel Lubezki. As representações de Saturno, do “buraco de minhoca” esférico ou de um buraco negro foram aclamadas por boa parte da comunidade científica129. O sistema acessado depois da travessia pela anomalia do espaço-tempo contava três planetas com sinais positivos enviados por seus tripulantes, todos marcados pela presença do grande buraco negro Gargântua. A equipe teve que decidir qual planeta visitar primeiro, consciente que talvez não tenham combustível para passar por todos. O planeta de Edmunds era o mais distante e não enviava sinais a três anos, ainda que se mostrasse muito promissor; o de Miller estava mais próximo da nave mas também de Gargântua; enquanto o do Dr. Mann, líder do projeto e reconhecido como o mais brilhante da sua geração, estava um pouco mais distante da nave mas ainda próximo do buraco negro. Eles escolhem o segundo, mas a presença do fenômeno provocaria uma enorme alteração do espaço-tempo, fazendo com que cada hora lá correspondesse a anos na Terra. Cooper se vê obrigado a usar uma manobra que gastará mais combustível mas economizará tempo, algo precioso tanto pela urgência da população quanto pelos familiares que deixaram lá. Diálogos informacionais bastante artificiais explicam como a gravidade pode afetar o tempo, usando linguagem coloquial e tratando de coisas que qualquer membro da tripulação conheceria muito bem de antemão.

129 Ver mais sobre em no artigo Física do filme Interstellar, do Professor da Universidade de Coimbra Pedro V. P. da Cunha. Disponível em: https://www.spf.pt/magazines/GFIS/117/article/956/pdf 122

Chegando em uma superfície coberta por água, encontram destroços da nave de Miller, que pode ter morrido a apenas algumas horas atrás em função da relatividade. Acabam sendo atingidos por ondas gigantes e Doyle não consegue retornar a tempo. Os atrasos para reparos levam a que 23 anos se passem na Terra, como informados por Romilly ao regressar à nave. Cooper corre para assistir as mensagens gravadas por seus familiares enquanto somos informados sobre os avanços que ele fez coletando dados de Gargântua e da ação da gravidade. Não pôde enviar dados ao Professor Brand, ainda que as mensagens cheguem até a nave. Cooper vê, em minutos, gravações do seu filho tornando-se um homem, apresentando o seu filho, ou relatando a morte dele e do seu avô, Donald. Tom se despede, dizendo que é hora de esquece-lo. Murph ficou sem enviar nenhuma mensagem por todos esses anos. O fez, porém, no dia do aniversário em que completou a idade do pai, quando partiu. O trama salta para a base na NASA onde Murph trabalha ao lado do Professor Brand, muito envelhecido, já em cadeira de rodas. Eles continuam trabalhando na teoria, até que ela se dá conta que existe um problema fundamental na formulação. Brand se esquiva dizendo estar cansado. A tripulação debate sobre que planeta visitar. A esta altura Cooper já sabe que a Dra. Brand tinha um romance com Edmunds e considera que o julgamento dela não é racional nem objetivo. Decidem, então, partir até o planeta de Mann apesar da proximidade com o buraco negro. A personagem reconhece que escolhe também em função do que o coração e a intuição lhe dizem, tentando inutilmente argumentar sobre a importância do amor nas nossas escolhas, ou sobre como ele pode, como a gravidade, atravessar tempo e espaço. Na Terra, Murph visita o irmão e a família. Ela fica preocupada com o estado de saúde do filho e da esposa. De volta a base, à beira da morte, o Professor conta à Murph que mentira para ela, que o pai não retornaria. O plano A seria um embuste. No gélido planeta de Mann, com nuvens congeladas onde pousam a nave, encontram o acampamento do prestigiado cientista. Ele dorme, o seu robô está desmontado, e quando tirado do sono profundo, chora abraçado com Cooper. Mann fala sobre a dificuldade de viver sozinho, sem a perspectiva de se encontrar com um semelhante ou pessoa querida. Sobre o seu planeta, oferece dados promissores sobre a superfície. Uma mensagem é recebida e exibida perante todos por TARS. Murph comunica a Brand a morte do seu pai mas a questiona se ele sabia que não existe o plano A, “se me deixou aqui para morrer”. Mann confirma que o professor já teria terminado as equações e elas não podiam atender ao que se esperava sem mais dados, como os produzidos por Romilly ou, talvez, extraídos do próprio buraco negro, da singularidade, para além do horizonte de eventos. Mann argumenta sobre o sacrifício necessário para a resistência da espécie para além da Terra. Cooper está 123 preocupado com as pessoas que deixaram para morrer dando o caso como encerrado. Cooper decide voltar para casa. Antes lançarão TARS em Gargântua na esperança de que ele possa coletar os dados sobre a singularidade que faltam para resolver o dilema teórico. O piloto tem pressa em voltar e sai para explorar com Mann enquanto os outros se preparam para montar as novas instalações. A montagem paralela reduz a assimetria na exibição dos eixos de ação justamente quando alcançamos o ápice da narrativa e a virada na história que condicionará a cadeia de ações. Nolan mais uma vez usa desse recurso – como em Dark Knight ou em Inception – para prolongar os momentos mais intensos e decisivos da história. Enquanto Mann discorre sobre a importância de estar ligado a outros, na família por exemplo, como o fundamento do que nos faz humanos. Sem lograr muito interesse de Cooper, fala sobre a dificuldade que as máquinas tem em improvisar ou resistir em ambientes desconhecidos por não terem medo da morte. O instinto de sobrevivência, segundo ele, se estenderia dos pais para os filhos. “O que as pesquisas indicam ser a ultima visão antes da morte? Seus filhos, os rostos deles. Na hora da morte a sua mente o incentiva a sobreviver, por eles”. Enquanto isso, o médico amigo de Murph a acompanha até a fazenda durante uma tempestade de poeira e avalia as condições de saúde da esposa e filho de Tom. Eles precisam ser levados de lá, conclui. Mann trai a equipe, retira o comunicador de Cooper e o atira em um desfiladeiro, sendo arrastado por ele. Os dois lutam enquanto Tom chega em casa e agride o médico, discutindo fortemente com a irmã. O cientista conta como alterou os dados porque queria que fossem resgata-lo. Não existia uma superfície com condições favoráveis para eles naquele planeta. Ele rompe o capacete do piloto e o deixa para trás. Mann conclui que ninguém está preparado para viver ou morrer sozinho. Murph diz ao irmão que o pai os deixou lá para morrer e parte. No meio do caminho muda de direção e ateia fogo na plantação. Cooper consegue contatar Brand, que o resgata com a nave. Ele avisa da traição e, antes que pudessem comunicar Rommilly, o acampamento explode enquanto tentava inicializar o velho robô de do Dr. Enquanto Tom cuida do incêndio, eles retornam para a casa a fim de levar mãe e filho até um hospital. Brand e Cooper retornam para a nave principal buscando impedir que Mann tente acoplar com a sua e os deixe para trás, da mesma forma que sabem que as mudanças que foram feitas no dispositivo poderiam provocar um acidente. Pai e filha, distantes no tempo e no espaço, lutam em meio a condições muito duras para a espécie humana. No espaço ou no planeta devastado, a natureza sem impõe sobre eles de forma implacável. Mann termina provocando um acidente no espaço e destrói parcialmente a nave principal, o que lhe custa a vida. A trilha sonora de Hans Zimmer não oferece chance para 124 respirar até que os dois últimos membros da missão conseguem salvar a nave em um primeiro momento. Agora, dentro dela, enquanto avaliam os danos e pensam em uma forma de evitar que sejam sugados por Gargântua, apenas ouvimos os ruídos de dentro dos capacetes, o som portanto tem uma perspectiva subjetiva. Os danos impedem um retorno à Terra, mas sim uma viagem até o planeta de Edmund, usando o buraco negro para lança-los, com um efeito “estilingue”, em função da falta de combustível. Mais uma vez veremos como a habilidade do protagonista é ressaltada, seja improvisando ou assumindo o controle quando os sistemas computadorizados se tornam inoperantes. A inteligência artificial presente nos robôs já considerara impossível a manobra que ele realizou para acoplar com a nave principal girando velozmente. A tecnologia, a inteligência artificial e a robótica no longa de Nolan são vistas de forma otimista, como um complemento para a sobrevivência humana – inclusive oferecendo alguma companhia -, mas jamais como o seu substituto – tema tão importante da ficção científica, na literatura e no cinema ocidentais, ao longo do século XX e início do XXI. Brand inicialmente rejeita que TARS seja sacrificado no buraco negro. Ele e CASE, porém, ainda que dialoguem com a equipe como se fossem outros tripulantes, não tem medo ou qualquer outro sentimento que faça deles humanos. Lançar TARS é talvez a última esperança para a humanidade na Terra - fora dela, no planeta de Edmunds, poderia encontrar um novo começo. A relatividade, porém, custara demasiados anos aos dois caso sobrevivam. Terão se passado décadas, no mínimo. Cooper também se vê obrigado ao sacrifício para dar alguma chance à Brand, sendo sugado pelo buraco com a nave de apoio. Enquanto o piloto sofre com os efeitos da gravidade, sendo arrastado sem nenhum controle, Tom luta contra o incêndio que se espalha e Murph reflete sobre o fantasma da estante reunindo os velhos pertences. Cooper, depois de ejetar da nave, é arrastado para dentro de um espaço multidimensional. Aqui iniciamos a parte final do filme, que provocou muita dificuldade de assimilação na audiência, ao mesmo tempo que agradou menos a crítica. O protagonista se encontra flutuando entre um labirinto de janelas para o quarto de Murph, vistos como por trás da estante de livros. Cada uma apresenta algum momento no tempo de Murph. Os próprios corredores do lugar parecem gigantescos livros da estante distorcidos. Confuso, ele derruba alguns dos livros vendo Murph do outro lado, se trata da cena não apresentada pela trama em que livros caem junto com uma das miniaturas do pai, mencionada no café da manhã, logo no início do filme. 125

Pulamos para Murph adulta, recolocando a miniatura na estante, mas retornamos para ela pequena se aproximando, intrigada, apanhando o objeto no chão. Cooper grita desesperado mas não pode se fazer ouvir. Ele começa a se movimentar pelo lugar e entender do que se trata, ao mesmo tempo (tempo da trama, não da história) em que temos tomadas da cientista, adulta, refletindo no quarto, sentando-se na cama, ao lado de outras da menina fazendo o mesmo. Cooper tenta enviar uma mensagem em código Morse, enquanto Murph reproduz o mesmo a partir dos vazios entre os livros. “Fica”, diz ele, enquanto a menina anota o padrão no caderno e a adulta parece começar a compreender algo, assustada. Em plano, detalhe coloca o relógio presenteado pelo pai na estante. Cooper revive a cena da despedida fracassada com a filha, vendo como ela atira o relógio. Ele deseja que a filha o convença a ficar, o que não acontece. A cientista folheia o caderno. Cooper se revolta, entre lágrimas, enquanto se vê deixando o quarto. Derruba mais um livro que chama a atenção dele no passado. Murph entende agora: “Era você. Você era o meu fantasma”. TARS consegue se contatar com o piloto. Diz estar em algum lugar da quinta dimensão “deles”. Cooper começa a se questionar sobre de quem se tratariam e quais seriam as suas intenções. TARS afirma que todo esse constructo tridimensional em uma realidade pentadimensional parece ter a função de fazer com que o protagonista entenda algo. A gravidade atravessaria as dimensões de tempo e espaço, sendo possível com ela, por exemplo, transmitir uma mensagem. O tempo, aqui, ganharia uma dimensão física. TARS coletou os dados quânticos em Gargântua, mas não consegue enviá-los. Cooper busca então formas fazer com que cheguem à filha por meio de manipulações gravitacionais no quarto. Murph busca então novas mensagens do pai pelo quarto. O pai conclui que “eles”, na verdade, se tratam da própria humanidade, agora capaz de navegar no tempo assim como no espaço. Ele testa manipular a queda da poeira no quarto, enviando as coordenadas da base NASA enquanto TARS prepara os dados em código binário. “Achei que tinham me escolhido. Não me escolheram, escolheram a ela”. “Eles”, portanto, não conseguiriam encontrar uma forma de se comunicar com o passado por não terem uma relação significativa com essa dimensão. A ligação de pai e filha permitiria essa comunicação. O piloto viaja pelos incontáveis momentos que teve com a filha e decide transmitir a mensagem pelo relógio que deu à Murph. Ela é pressionada pelo amigo a partir, uma vez que Tom está a caminho. TARS questiona Cooper sobre como pode ter certeza de que a filha pegará o relógio e perceberá a mensagem. “Porque eu o dei para ela”, responde. Após perceber a mensagem sendo transmitida 126 pelo ponteiro, Murph desce enquanto os dois homens se aproximam e abraça o irmão. “Era ele o tempo todo! Ele vai nos salvar!”. Na base, mais tarde, vemos Murph jogando papéis ao vento e gritando “Eureca, Eureca!”. Enquanto o espaço dimensional se fecha, Cooper fala de uma humanidade, em uma nova civilização, que poderá ultrapassar as dimensões que conhecemos. Agora, vagando em espaço aberto próximo à saturno, o vemos ser socorrido por uma nave. Ele desperta em um quarto de hospital, limpo e iluminado. 124 anos se passaram. Está em uma estação que leva o nome de Cooper em homenagem à filha, descobrindo que ela ainda vive e está a caminho. O protagonista é levado pela bela estação cilíndrica com a gravidade controlada artificialmente. Uma casa foi construída reproduzindo a fazenda onde viveram. É utilizada como museu, mas permitem que fique nela. Telas transmitem as entrevistas de sobreviventes que vemos no início do filme. A noite, bebendo uma cerveja na varanda da casa na companhia de TARS: “Não gosto muito disso. De fingir que estamos onde começamos. Quero saber onde estamos. Para onde vamos”. Cooper visita a filha, extremamente idosa, em um quarto de hospital. A família dela está lá dentro mas ele é um estranho para todos. Em meio ao emotivo encontro, Murph diz que nenhum pai deveria ver a filha morrer, pedindo que parta para encontrar Brand. A exibição termina com Brand em um planeta árido, ao lado do túmulo que construiu para Edmund. Cooper pega uma nave escondido com TARS e parte ao seu encontro, enquanto ela se aproxima de uma estrutura montada onde dá início à colonização fora da Terra – uma bandeira dos EUA balança com o vento. Ouvimos a voz de Murph, trêmula por conta da idade, atravessando as tomadas na estação e no novo planeta: “Ela está lá fora, montando acampamento. Sozinha. Em uma galáxia estranha. Talvez agora mesmo esteja se preparando para um longo cochilo, à luz do nosso novo sol, na nossa nova casa”.

3.3 Sem saída, sem entrada

Os dois últimos filmes de Alejandro Gonzalez Iñárritu e Christopher Nolan, do ponto de vista dos dispositivos narrativos que empregam, se afastam dos modelos aos que eram frequentemente associados como os seus principais representantes: filmes de histórias cruzadas, de multiprotagonismo, no primeiro, ou os puzzle films, no segundo. Ambos também apresentariam narrativas estruturadas de forma mais linear e menos fragmentada que os filmes analisados nesta pesquisa. Birdman e Dunkirk, para além disso, representaram importantes mudanças de foco dos cineastas. 127

Iñárritu, aqui, se afastou da discussão sobre os choques entre diferentes em um cenário globalizado, por uma história de um ator decadente, atormentado pelo sucesso passado de um personagem, que busca reconhecimento em meio à uma profunda confusão mental, muito bem reproduzida pelas longas e claustrofóbicas tomadas entre os labirínticos bastidores da Broadway. Ironicamente, justamente quando se afastou de uma abordagem “realista” da complexidade da experiência contemporânea, da multiplicação de atores e de pontos de referência, o diretor produziu uma leitura muito menos monolítica, permitindo ao espectador a construção de leituras alternativas. Como nos dois filmes de Nolan analisados no capítulo II, o mergulho na mente de um protagonista assombrado pelo passado implica na fragilidade do relato que parte de sua perspectiva subjetiva. Nolan, reconstruiu um episódio da Segunda Guerra a partir de uma narrativa que explorou ao limite a montagem paralela e os múltiplos eixos de ação, todos corroborando com a mesma leitura heroica, nacionalista, sem lugar para as fissuras e ambiguidades que marcaram as suas tramas e protagonistas em longas anteriores. Não se tata em Dunkirk de apresentar os múltiplos lados e versões, de superar as versões reducionistas ou de operar relativizações. A complexidade e a multiplicidade estão comprometidas com uma experiência do excesso, do híper, portanto, da própria experiência do espectador enquanto consumidor. Por terra, pelo ar ou pelo mar, a narrativa nunca ultrapassa a superfície, onde vemos as respostas dos personagens àquilo que se impõe de forma imediata. Não existe um passado ou um futuro que lhes confira sentido. Os três eixos de ação se passam em intervalos de tempo distintos e são apresentados em simultaneidade, convergindo no final do filme. Restritos ao somatório daquilo que pode ser percebido no entorno de cada personagem, a fusão dos seus eixos na história e a sua repetição a partir de distintos pontos de vista, além da ilusão de apreender o evento como um todo, reforça o discurso do “narrador”. Não são deixadas as lacunas a serem preenchidas pelo público. Em Birdman e Dunkirk podemos observar como na complexa indústria audiovisual contemporânea, com a participação de múltiplas fontes de investimento e a descentralização da produção, pós-produção e distribuição, são possíveis fórmulas transgressoras, mesmo quando o voo dos seus diretores se afastam das próprias convenções, daquilo que se espera deles enquanto produto. Percebemos por outro lado que eles dialogam com maneiras de construir a narrativa que obtiveram sucesso em longas recentes, sem perder totalmente a sua identidade – como Iñárritu e a utilização do plano-sequência que consagrou Cuarón em Children of Men ou Gravity, ou Nolan lançando mão do multiprotagonismo e da divisão em três histórias, algo inusual em um “filme de guerra”, mas presente, por exemplo, nos filmes do diretor mexicano. 128

Interstellar e The Revenant, ao tratarem de jornadas descoladas do nosso presente, um dentro do espectro da ficção científica, com viagens para galáxias distantes, o outro com uma história sobre a exploração e conquista do território americano, com elementos típicos do gênero do western, são produto de profundas negociações entre as temáticas e estilos de cada diretor com os gêneros consolidados. Por outro lado, como é comum nas superproduções contemporâneas, ultrapassam cada um deles com a utilização de elementos próprios de outros, o que permite que atinja diferentes públicos. As longas viagens por ambientes inóspitos exigiu trabalhar melhor a profundidade de campo, apesar dos enquadramentos fechados e da câmera solta, sempre muito próxima. Tomadas com perspectiva subjetiva, em esquema de campo e contra-campo, outras com a câmera presa no exterior das naves, no primeiro, ou a filmagem em contra-plongée de forma a capturar as copas das árvores e a utilização da lente grande angular, no outro, foram combinadas com tomadas abertas, planos gerais, explorando a solidão e fazendo do homem pequeno frente a natureza. Ela, desta forma, é apresentada como hostil, algo que se impõe sobre os atores, mas fonte de profunda beleza. A necessidade de procurar um abrigo, um local fechado onde possamos nos proteger do frio, dos animais selvagens, das tempestades de poeira ou de condições que poderiam nos matar em segundos – como expostos ao vácuo – faz dos espaços abertos os verdadeiros rivais, fontes de conflitos. Não podemos domá-los, mas apenas atravessá-los ou construir pequenos espaços seguros. Isso curiosamente vale para pensar os espaços urbanos nos outros longas trabalhados aqui. As ruas da cidade são marcadas pelo conflito, pela violência assim como pelo acaso que pode produzir todo tipo de acidente. Os raros planos gerais exploram justamente a desconexão, o isolamento – como de El Chivo empurrando o carrinho de entulhos ou partindo com Cofi, em Amores Perros, a tomada aérea de Tóquio a noite, no final de Babel, ou aquelas no limbo, em que Cobb transita em meio a corredores apertados entre edifícios, em Inception. Os ambientes familiares são o refúgio para a solidão e uma natureza – seja ela criada pelo homem ou não – que escapa completamente ao seu controle e não pode prever os seus movimentos. Ismail Xavier ao se referir sobre tendências do cinema dos anos 90, principalmente o brasileiro e latino-americano sinalizaria:

Há aqui a atenção ao caráter e ao que está afeito à personalidade, pois o terreno das disposições psicológicas e morais é entendido como a fonte maior dos problemas. O social é natureza, quadro indiscutível, sem história, que oferece apenas a moldura, não havendo nos dramas 129

uma inquietação dirigida aos problemas de estrutura, ao que condiciona ou impulsiona a ação, empurra os indivíduos para o salve-se quem puder130.

Ao diagnóstico de Xavier somaria que nos dois cineastas que trabalho aqui, essa natureza, esse lá fora, é produtor de conflitos, impõe desafios e, quando invade a esfera privada provoca grandes danos. Cobb vive fugindo de corporações e da Interpol, quando não o faz das projeções do inconsciente e Cooper do planeta que o repele ou das condições extremas fora dele. Em nenhum deles Nolan apresenta nítidas distinções de classe, conflitos sociais resultantes do choque entre diferentes. Temos uma classe média indiferenciada em todo o globo – com exceção dos homens por trás das poucas corporações que tem o controle de tudo, mas que se elevam acima da lei e das ruas por onde transitam todos os demais -, cujos espaços de sociabilidade, inclusive, são paisagens sem marcadores culturais ou nacionais. Mesmo quando dependentes químicos que invadem uma casa e destroem uma família, deixando um homem à deriva, sem memória, não são apresentados elementos em um pano de fundo que sinalizem para as tensões e desigualdades sociais que caminham de mão dadas com a criminalidade urbana. Não importa quantos Johns G. ele inventar e matar, eles continuarão existindo por todos os lugares, lá fora, como indica Teddy. Cobb só tem duas maneiras de evitar que o ambiente externo o persiga em seus refúgios ou quando precisa transitar por eles: não realizar mudanças bruscas na realidade, uma vez que elas atraem cada vez mais projeções e as torna violentas, dentro do sonho, ou dá sinais de sua localização para os inimigos, fora dele; e conseguir que uma entidade mais poderosa do que ele atue sobre o sistema, como Saito por meio da sua rede de influência e dos seus inesgotáveis recursos econômicos. Cooper, Brand e Murph sabem que não podem lutar contra o planeta terra. Procuram um novo lar com condições preexistentes que sejam favoráveis. Para tal precisarão contar com o apoio “deles”, uma entidade que habita no futuro e atravessa as fronteiras do tempo e do espaço para salvá-los. Com isso não digo que não tenha sido fundamental a sua agência, reforçada por Nolan pelas habilidades de cada um e a disposição ao sacrifício. Mas o entorno continua sendo tomado como imutável e as condições que permitirão a sua sobrevivência e a construção de uma nova sociedade vieram de um ator externo, desconhecido. Octavio e Valéria tem os seus sonhos frustrados em um cruzamento, mas El Chivo viu a sua vida arrasada justamente quando tentou transformar esse entorno. Iñárritu trabalha com a multiplicidade, com a diferença e a desigualdade, mas não a problematiza. O tecido social é

130 XAVIER, Ismail. In Revista Praga, n.9, 2000, p. 136-137. 130 uma segunda natureza, tão inóspita, anterior e acima dos planos humanos quanto a outra, à qual se enfrenta o explorador Hugh Glass. Mais do que isso, a existência das classes baixas implica em situação de vulnerabilidade para as altas, entendidas as primeiras como aquelas que provocam danos às demais, ainda que sem intenção. Octavio provoca o acidente e os meninos marroquinos disparam a arma. É verdade que os homicídios realizados por El Chivo são contratados por pessoas abastadas, mas é ele que os realiza, pelo pouco dinheiro que precisa para sobreviver. O empresário japonês entregou a arma que seria usada de forma irresponsável por terceiros, além de não ter sido tratado como responsável pelo narrador. Não existe em nenhum desses longas um espaço público. É importante ressaltar que nem mesmo as instituições políticas ou o estado se fazem presentes diretamente. As vezes as vemos representadas por policiais corruptos à paisana – como o que contrata EL Chivo ou aquele que manipula o “homem sem memória”, mas sempre atuando em função de interesses privados. Parecem ter colapsado logo no início da crise alimentar e ambiental que arrasou o mundo de Cooper. O projeto da NASA, ainda que implique na atuação do estado, é organizado de forma paralela e controlado por um pequeno grupo de pessoas, com uma organização fundamentalmente familiar e sem a participação ou conhecimento do mundo externo. Os protagonistas são marcados por trajetórias descarrilhadas, que frustraram aquilo que projetaram para as suas vidas sem que seja possível recomeçar de onde se desviaram, mantendo o mesmo sentido. Em alguns casos observamos o próprio processo, como no de Octavio e Valeria em Amores Perros, ou Youssef e Amelia em Babel. Todos os demais se tratam de personagens congestionados por um passado que não podem superar, projetando-se sobre o presente e recolocando-se no futuro alguma esperança frágil de reencontro ou reconforto. O abandono da família e o frustrado engajamento na guerrilha, por parte do ex-professor universitário; o casal estadunidense que perdeu um filho; a jovem japonesa que perdeu a mãe; a morte da esposa, a destruição da aldeia e o posterior assassinado do filho, por parte do explorador; um assassinato que levou a sua esposa e toda memória recente do jovem investigador de seguros; um extrator de sonhos atormentado pelo suicídio da esposa e a distância dos filhos; ou a frustração de um astronauta convertido em fazendeiro, que também perdeu a esposa em uma época em que existia uma carência de recursos para trata-la. Em todos eles nos deparamos com personagens ambíguos, cujos relatos que fazem sobre si mesmos são duvidosos, ao mesmo tempo que o baixo nível de informação sobre o seu passado, origem, contribuam para a sua opacidade. Nos três longas de Alejandro Gonzalez Iñárritu que tomamos para análise aqui, porém, a incapacidade de construir um relato coerente e preciso dado o baixo nível de informação e ausência de monólogos interiores – com exceção 131 dos flashbacks de Glass ainda entre os nativos que transitam entre delírio e memória - foi acompanhado por um compromisso com o realismo dos instantes narrados, não mais que alguns dias, onde a emoção e a visceralidade promovem “clareza emocional” – como afirmaria o próprio diretor. Nolan oferece mais informações acerca dos personagens ao longo da trama, explorando flashbacks e sobre eles até mesmo construindo uma estrutura em montagem paralela – como em Memento e Inception -; promovendo monólogos interiores; e relatos inicialmente coerentes sobre si mesmos. As tramas terminariam por oferecer leituras alternativas, grandes viradas, que nos obrigam a reconstruir o que foi exibido e deixa lacunas sobre os próprios eventos, assim como sobre as intenções dos personagens. Ainda que Interstellar traga caracterizações muito mais nítidas e coerentes, as emoções, o amor, conferem uma base confiável, ainda que não possam ser convertidos em sistema ou produzir um planejamento racional compreensível para os demais.

Os dois diretores apostam por estratégias narrativas que operam junto com essas temáticas, reforçando o confinamento; o descarrilamento; a opacidade; a perda de controle da cadeia de eventos; o frágil lugar que ocupa enquanto agente do mundo da história. Elementos de fundamental importância na compreensão do novo cronótopo, conforme Hans Ulrich Gumbrecht. Em Depois de 1945: Latência como origem do presente, Gumbrech busca em meio a uma mistura de relatos biográficos, escritos filosóficos (como de Heidegger, Sartre, Camus ou Arendt) e análise de obras literárias, expressões das primeiras fissuras do “tempo histórico”. O pós-guerra não se trataria aqui do Sattelzeit de Reinhart Koseleck, ou seja, de um momento de ruptura que operaria a separação do futuro e do passado – que o historiador alemão investigara a partir da história dos conceitos, das transformações semânticas. O autor se debruça aqui sobre os efeitos latentes do impacto de duas guerras mundiais; do fracasso das utopias políticas – no que diz respeito à construção de futuros luminosos por meio da razão e agência humana, associados ao capitalismo, ao socialismo ou ao comunismo -; da emergência de regimes autoritários e totalitários; mas principalmente da ameaça de desaparecimento da espécie humana por meio do cálculo racional, dos enegrecidos céus dos campos de extermínio, aos subitamente iluminados céus de Hiroshima e Nagasaki.

Em 6 de agosto de 1945, quando pela primeira vez explodiu uma bomba nuclear sobre uma cidade deserta, a imagem do suicídio coletivo de um país – estendido a toda a Humanidade – transformou-se numa 132

possibilidade material ao alcance da tecnologia, e isso o mundo não poderá esquecer. Sabemos – mais até pelos rostos imortalizados num punhado de fotos do que pelas palavras dos sobreviventes – que as mulheres e os homens que viveram aqueles momentos em Hiroshima acreditaram que tinha chegado o início do fim do mundo. Nunca Haverá futuro suficiente para provar-lhes o contrário131.

A latência diz respeito justamente à presença desse passado que não conseguimos ultrapassar. Ele tem uma presença invisível, aparentemente difusa, mas é sentido por meio da stimmung, ou seja, de uma atmosfera e disposição de ânimo que tem um toque material sobre o corpo, como a música, que ainda que não possa ser apanhada, produz sentimentos e sensações132. Gumbrecht encontra três configurações específicas de stimmung relacionadas com esse passado latente. A primeira diz respeito ao confinamento, “combinando a sensação claustrofóbica de estar preso em um espaço sem saída, com a obsessão contrária, mas complementar, de estar fora de um espaço que não permite nenhuma entrada133”. Por um lado a frustração na construção de um futuro diferente do passado e do presente que é a sua extensão produziriam uma sensação compartilhada de claustrofobia, de estar preso em uma condição que não se pode superar, uma vez que ela nos acompanha a medida que tentamos nos afastar. Mas ela é experimentada ao lado do medo de lançar-se para além do familiar, uma vez que os preços por nossas aventuras foram dos mais altos. Falamos de um recuo para a esfera da intimidade mas também da interioridade. A opacidade do eu, do outro, e do mundo que por meio deles já não se acessa, encontram expressão na multiplicação de situações onde se manifesta a má-fé, no sentido sartriano, somadas à aposta por métodos de investigação do comportamento e de interrogatório que

131 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Op cit., 2014. p. 36 132 Ainda que em Atmosfera, ambiência e Stimmung Gumbrecht ofereça uma discussão mais ampla sobre o conceito a partir dos seus sentidos na língua alemã e as possibilidades filosóficas que ele abre para os estudos culturais, ficamos aqui com a definição oferecida por ele em Depois 1945: “A palavra stimmung é mais frequentemente (e corretamente) traduzida como ‘disposição’; num registro mais metafórico, a expressão pode ser vertida em ‘clima’ ou ‘atmosfera’. O que essas metáforas (...) partilham com a palavra stimmung – cuja raíz etimológica é stimme, palavra alemã que significa ‘voz’ – é que todas sugerem a presença de um toque material, tipicamente um toque muito leve, sobre o corpo de alguém ou alguma coisa que (a) percebe. Clima, sons, música, todos tem sobre nós um impacto material, embora invisível. Toni Morrison descreveu esse aspecto de stimmung através do paradoxo de ‘ser tocado desde dentro’. (...) faz despertar dentro de nós sentimentos de desconforto para os quais dificilmente temos conceitos descritivos. No sentido duplo de um fugaz contato físico e de sentimentos que não somos capazes de controlar, os stimmungen formam parte objetiva das situações e das épocas históricas. Como tal - isto é, enquanto condições de ‘sensibilidade objetiva’ -, constituem uma dimensão crucial, ainda que negligenciada em larga medida, daquilo que pode tornar o passado, para nós, numa coisa presente – imediata e intuitivamente presente”. (GUMBRECHT, Hans Ulrich. Depois de 1945: latência como origem do presente. São Paulo: Editora Unesp, 2014. p. 42) 133 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Op cit., 2014. p. 61 133 permitam extrair os sentidos ocultos por trás dos sujeitos. Ruíam, de fato, os fundamentos do sujeito cartesiano em meio ao aparecimento de desesperadas empreitadas por resgatar a verdade, e, logo, o próprio homem. O descarrilhamento, por fim, diz respeito a compreensão “de que modo o seu presente difere daquilo que havia sido previsto que fosse, quando era ainda o futuro do passado. Descobrimos aqui uma convergência entre a experiência da decepção e o sonho da calma134”. Em meio à velocidade das transformações do mundo capitalista e à crescente fluidez das relações, da impermanência das formas, e a perda de controle dos destinos individuais e coletivos, encontramos os esforços dos sujeitos pela construção de espaços seguros, previsíveis, que lhe sirvam de amparo.

Essas três configurações (...) são dominadas pelos efeitos de exclusão e de não realização. O que parecia ser inteiramente alcançável nas muitas ilusões da agência humana (individual e coletiva), que prevaleceu durante a primeira metade do século XX, começava agora, lenta mas firmemente, a parecer remoto e congelado em memórias cada vez com menos energias para mantê-las vivas. Em termos objetivos, as condições de vida do pós-guerra tinham melhorado para centenas de milhões de pessoas; ao mesmo tempo, no entanto, o luminoso horizonte de antes perdera o brilho e a vida, muita da sua intensidade. A humanidade – entendida como processo histórico – estava cada vez mais paralisada por restrições invisíveis que pareciam não querer abrandar. É esta situação – o processo lento, quase imperceptível, que ocorreu ao longo das últimas sete décadas – que gostaria de descrever. Embora o ritmo de nossas atividades e invenções possa ser acelerado, já não podemos ter certeza se passaremos para o limiar do futuro. (...) O tempo – hoje e para nós – parece revelar uma nova estrutura e se desdobrar num ritmo que é diferente do ‘tempo histórico’ que governou o século XIX e o começo do XX. Neste novo cronótopo – para o qual ainda não existe nome, apesar de vivermos dentro de suas formas – a agência, a segurança e o progresso histórico da humanidade desapareceram numa memória distante. Apenas nos restam o desejo não redimido, a incerteza e a desorientação. Ao mesmo tempo ameaça-nos um futuro que jamais escolhemos. Não há nem escape nem grande ideia sobre onde estamos neste momento – ou sobre onde deveríamos estar135.

Gumbrecht entende o fechamento do futuro enquanto um acúmulo frustrações e restrições que já se manifestavam por meio dessas stimmungs no pós-guerra, ainda que assumam diferentes formas ao longo do tempo. O fim do socialismo real com a queda da URSS;

134 Ibid., p. 60. 135 Ibid., 62-63. 134 o fortalecimento do capitalismo e a complexificação das relações de produção e consumo em uma teia global; acompanhada pela instabilidade econômica e fragilidade dos estados frente ao capital financeiro transnacional, são alguns dos exemplos que contribuíram para solapar a concepção do amanhã como um horizonte de expectativas aberto. Não resistiram as alternativas que se ofereciam ao presente, ao mesmo tempo que carecemos de instrumentos intelectuais – ou da confiança neles - que permitam apreende-lo, em meio à velocidade acelerada e à complexidade contemporâneas. Mas esse ocaso do futuro deve ser entendido também em um cenário marcado pelo acúmulo de passado uma vez que não conseguimos transpô-lo. O amanhã, nas poucas vezes que é de alguma forma mobilizado, consiste em um retorno para as condições que propiciaram o descarrilhamento. Apenas um dos seis longas analisados aqui apresenta uma rota de fuga e um novo começo. Em Interstellar a ação de entidades que transitam no tempo permitiu que parte da humanidade – mais uma vez representada pelos EUA no cinema, diga-se de passagem – voltasse a acreditar, ainda que timidamente e contra a opinião pública, na possibilidade de habitar outros mundos e ter um novo início. Para Cooper isso significava retomar o curso que foi abandonado uma vez que a natureza cobrou o preço pelos excessos do século XX. O protagonista voltou para a antiga carreira e se lançou a procurar uma nova casa, “longe da poeira”. Aquela disposição de animo, típica dos homens que habitavam o cronótopo moderno, só pode encontrar um lugar uma vez que um agente externo abriu uma porta em um futuro que estava fechado. O buraco de minhoca permitiria ter acesso a lugares demasiadamente distantes para uma viagem espacial convencional. Com isso Nolan não reproduz as velhas histórias com novas roupagens. Em primeiro lugar temos um desencapsulamento do futuro por meio do retorno ao passado realizados por um agente externo. Cooper foi colocado naquele ambiente em que podia transitar pelo tempo como uma dimensão espacial por homens do futuro, que aprenderam a viver em cinco dimensões e tentam salvar os seus antepassados e, com isso, iniciar algo novo. Para isso, porém, tiveram que encontrar uma forma de se comunicar no tempo, de enviar uma mensagem que fosse percebida e compreendida. A ligação entre pai e filha, a emoção, foi a ponte que encontraram com o seu próprio passado, o qual era marcado pela incapacidade de superar a sua própria circunstância. Naquele espaço tridimensional dentro de Gargântua, Cooper assiste por trás da estante momentos com a sua filha e interage com ela, como o seu fantasma. Em algum momento compreende que foi ele mesmo que se levou até lá, transmitindo coordenadas, por exemplo, por 135 meio da manipulação da gravidade. Ou seja, o presente oferecido pela trama já fora produto da ação do futuro, em uma cadeia de causalidade extremamente complexa que se reproduz no tempo como uma espiral, mas permite a abertura de novas possibilidades. O homem do futuro, portanto, teve que se voltar ao passado para produzir uma rota alternativa, promovendo uma mudança em seu próprio presente, em um procedimento que serve de alusão para o ofício do historiador. Não existe saída nem entrada nos outros longas. Por vezes, como em Octavio, Valeria, no núcleo marroquino ou em Amélia, o “tempo representado é narcísico, sem passado, vazio no seu não propósito de transformação ou na sua desesperança para o futuro, pois acreditasse apolítico. No máximo, o tempo carrega uma percepção nostálgica e sem conteúdo136”. Nos outros, está tão saturado de passado que se encontra congelado. Na reafirmação do real ou na dúvida lançada acerca dele, a velocidade dos fluxos nos quais somos arrastados, a incapacidade de respirar para além desse presente tão complexo e fluído, encontra no acúmulo do ontem que nunca passa o complemento para o ocaso do amanhã. Encontram-se todos esses personagens e o público – ao menos assim desejam os seus diretores - mergulhados em uma sufocante experiência de simultaneidades. A crise da crença da razão científica enquanto legítima maneira de conhecer junto com a dos meta-relatos de legitimação que sustentavam os projetos de futuro (ciência, democracia, progresso), como sinalizada por Lyotard - do qual o próprio Gumbrecht diz partir – fariam parte de um deslocamento do sujeito frente a história e o saber em geral. No lugar da nítida separação entre observador e objeto; da ênfase de uma cultura de sentido, marcada pela centralidade da linguagem conceitual e pelo processo hermenêutico; da ruptura entre mente e corpo, teríamos um lento emergir de uma cultura de presença, que reencontra o corpo e uma experiência material com o mundo. A ênfase na emoção nas tramas e histórias, mas também a utilização de dispositivos narrativos que buscam a imersão, também combinam a profusão, a vertigem, com o refúgio em conexões subjetivas, na interioridade. O presente, como bem sinalizaram Gumbrecht e Paz137, é o lugar próprio da presença. A multiplicação de experiências sensuais em simultaneidade e a sua centralidade na agência humana são expressões e produtos de uma sociedade presentista. A jornadas de Cooper, Brand, Mann e Murph, por outro lado, expressam a necessidade de

136 Em alusão a análise de Ismail Xavier acerca desse “novo cinema”. Em CAMPO, Monica Brincalepe. História e cinema: o tempo como representação em Lucrecia Martel e Beto Brant / Mônica Brincale Campo. Campinas, SP: 2010. P. 45 137 Como em GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010; ou em PAZ, Octavio. La busqueda del presente. Ciudad de Mexico: Vuelta, vol. 170, Janeiro de 1992. 136 reconciliação entre razão e emoção, distanciamento objetivo e conexão subjetiva, sentido e presença.

se o cinema em sua narrativa clássica é reconhecido como o discurso da imagem, o som aqui é o espaço privilegiado da tensão narrativa e o responsável pelos momentos de mudança de seu discurso; portanto, é importantíssimo como recurso na diegese (...). O som é também narrativa: ele constitui parte integrante do discurso fílmico e nutre a intelecção do mesmo com informações que mais que complementam a narrativa ao serem submetidos às imagens, assumem espaço independente e compõem sentidos novos na trama138.

Essa nova – enquanto dominante - articulação entre som e imagem que Monica Brincalepe Campo encontra em filmes como os da argentina Lucrecia Martel, produzem, como vimos, toques materiais sobre o corpo fundamentais na sutura da montagem. A ligação entre as cenas passa a ser muito mais emocional do que racional, o que contribui para experimentar sequências sem contiguidade espacial e temporal, em simultaneidade. Em sua tese de doutoramento - História e cinema: o tempo como representação em Lucrecia Martel e Beto Brant, a historiadora compara o entusiasmo com o tempo do puro presente, com o tempo do pensamento por parte da crítica especializada argentina com a recepção negativa por parte de críticos brasileiros como Ismail Xavier ao que chamou de tempo vazio. Enquanto uma era enaltecida por romper com a produção passada e soltar-se das amarras causais com o passado e o futuro, o outro seria uma expressão conformista, que nega a história e não se compromete com a transformação do presente139. Gumbrecht, por mais que comemore o advento do presente e as possibilidades filosóficas que assim se abrem, como do reencontro com o corpo, a investigação nas humanidades para além do sentido ou do fim da teleologia, demonstra preocupação com a inação, a paralisia frente aos grandes desafios experimentados pelas sociedades contemporâneas. As reflexões acerca do futuro dos seus filhos resultam esclarecedoras:

Acredito que a vida deles se desenvolverá num futuro que pertence à construção de um tempo diferente daquele em que eu nasci. Neste novo cronótopo, o futuro já não será vivenciado como um horizonte aberto de possibilidades entre as quais podemos escolher, mas sim como uma multiplicidade de ameaças que se aproximam. Em vez de uma série de escolhas que eles tem de fazer, a vida dos meus netos será uma

138 CAMPO, Monica Brincalepe. História e cinema: o tempo como representação em Lucrecia Martel e Beto Brant / Mônica Brincale Campo. Campinas, SP: 2010. p. 69. 139 Ibid., p. 45. 137

sequência de desafios para sua sobrevivência. Não discutirei aqui os méritos nem as incertezas de prognósticos como ‘o aquecimento global’ ou ‘o esgotamento dos recursos naturais’; basta notar o modo como nos afetam, como parecem inevitáveis, e como até os mais empenhados esforços ecológicos parecem desacelerar de modo pouco significativo sua vinda. Por outro lado, Clara e Diego não serão mais capazes de deixar nenhum passado definitivamente para trás, e assim o passado invadirá o presente deles – tal como já começou a fazer, sob a forma de ondas de nostalgia, múltiplas e em permanente retorno. A capacidade de armazenamento, sem precedentes, de todos os omponentes de mídia eletrônica vai constantemente compondo este efeito. Entre aquele outro futuro e este passado diferente, o presente dos meus netos não será um ‘momento imperceptivelmente curto de transição’ (na desccrição que Charles Baudelaire fez do presente do cronótopo que habitava), mas sim um feixe em constante aumento das simultaneidades. Quando nada pode ser deixado para trás, cada passado recente se impõe, no presente, sobre os passados prévios armazenados, e neste presente do novo cronótopo, que sempre está aumentando, haverá um sentido menor daquilo que cada um dos ‘agoras’ – cada presente – realmente é. (...) O presente sempre em expansão começou a nos dar a impressão de que estamos encurralados num momento de estagnação. O tempo deixa de ser considerado um agente absoluto de mudança. Ao mesmo tempo, dentro do presente em expansão, certas atividades e comportamentos – certamente todas as formas de comportamento facilitadas pela tecnologia eletrônica – vão acelerar e consumir cada vez mais tempo que temos ao nosso dispor, sem produzir nenhum sentido de direção nem realização. Se o “velho presente” – o presente de transição e da mudança – era o habitat epistemológico do Sujeito cartesiano (...), então o novo presente, o ‘presente expandido’ de simultaneidades informará um tipo diferente de autorreferência. Pode residir aqui o motivo para todos os esforços feitos nas Artes e Humanidades, ao longo das últimas décadas, para regressar ao ‘corpo’ enquanto nossa autoimagem predominante; estes esforços acadêmicos podem nos dar uma abertura para uma vontade, nas gerações vindouras, de levar uma vida mais sensual. Claro que a incapacidade de deixar para trás qualquer passado também se aplica ao legado do cronótopo anterior. Uma vez que somos incapazes de deixar para trás seja o que for do passado, meus netos poderão continuar a utilizar – reciclando – conceitos do cronótopo anterior, mesmo se fazê-lo já não corresponda ao comportamento do cotidiano deles dentro das alteradas dimensões do passado, do futuro e do presente.140

Octavio Paz encerraria assim o seu discurso ao receber o premio Nobel:

Perseguimos a modernidade em suas incessantes metamorfoses e nunca logramos apanhá-la. Se escapa sempre: cada encontro é fuga. A abraçamos e no mesmo momento se dissipa: era apenas um pouco de

140 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Op cit., 2014. p. 318-319. 138

ar. É o instante, esse pássaro qe está em todas as partes e em nenhuma. Queremos apanhá-lo vivo mas abre as asas e desvanece, feito um punhado de sílabas. Ficamos com as mãos vazias. Então as portas da percepção se entreabrem e aparece o outro tempo, o verdadeiro, o que buscávamos sem saber: o presente, a presença.141

141 No Original: Perseguimos a la modernidad en sus incesantes metamorfosis y nunca logramos asirla. Se escapa siempre: cada encuentro es una fuga. La abrazamos y al punto se disipa: sólo era un poco de aire. Es el instante, ese pájaro que está en todas partes y en ninguna. Queremos asirlo vivo pero abre las alas y se desvanece, vuelto un puñado de sílabas. Nos quedamos con las manos vacías. Entonces las puertas de la percepción se entreabren y aparece el otro tiempo, el verdadero, el que buscábamos sin saberlo: el presente, la presencia. (PAZ, Octavio. La busqueda del presente. Ciudad de Mexico: Vuelta, vol. 170, Janeiro de 1992). 139

Considerações finais

A utilização de fontes audiovisuais como o cinema para o trabalho do historiador – em uma história cultural do social, na história de um segmento artístico, assim como na investigação teórica – se mostrou extremamente desafiadora. Para além da dificuldade existente na transposição de uma linguagem não escrita para outra escrita, ela exige a mobilização de autores e teorias de múltiplas disciplinas e a articulação conceitual entre elas. O problema de pesquisa, o objeto de investigação e os referenciais teóricos orientam a pesquisa sobre esses artefatos sem esgotar as possibilidades de análise, o que gera desconforto ao mesmo tempo que abre novas rotas para trabalhos futuros.

Ao concentrar o olhar nas relações entre espaço de experiência e horizonte de expectativas, privilegiei aqui as formas narrativas, a maneira com que o espectador se relaciona com elas e a mobilização do passado e do futuro nas tomadas de decisão dos personagens, nas possibilidades abertas para a agência. Foi possível observar nestas obras importantes indícios da desmontagem do cronótopo histórico que vem sendo sinalizada por autores como Hans Ulrich Gumbrecht e François Hartog.

Por caminhos distintos e diferentes tradições teóricas, pesquisadores voltados para o cinema e o audiovisual em geral também manifestam, ao menos desde os anos 90, “a sensação de estar diante de um eterno presente cotidiano, emaranhado na ausência de passado ou de perspectiva de futuro”142.

Pierre Sorlin já sinalizara para o impacto que o imediatismo e a necessidade de sobrepor novidades instantâneas da televisão produzira sobre a maneira como narramos, ou sobre a legibilidade da audiência143. Ela se aproximaria da crônica, enquanto se diferencia do discurso histórico e da narrativa clássica do cinema justamente por não pensar a articulação entre passado e futuro por meio do processo. A relação íntima que construímos com essa tela, nos ambientes privados ou compondo cada espaço público, teria possibilitado que invadisse profundamente a maneira como experimentamos e conhecemos o mundo.

Lipovetsky, ainda que argumente sobre a importância da “cinevisão” no mundo contemporâneo e o legado que oferece para as demais telas que mediam, hoje, toda a nossa

142 CAMPO, Monica Brincalepe. História e cinema: o tempo como representação em Lucrecia Martel e Beto Brant / Mônica Brincale Campo. Campinas, SP: 2010. p. 91. 143 SORLIN, Pierre. “Televisão: outra inteligência do passado”. In NÓVOA, Jorge, FRESSATO , Soleni e FEIGEILSON, Kristian (org.). Cinematógrafo: um olhar sobre a História. Salvador: UDUFBA/ São Paulo: Ed. daUNESP, 2009. 140 existência, também reconheceria, junto com autores como Bordwell ou Xavier, a influência que a televisão exerceu sobre a linguagem cinematográfica. Desse aparelho que opera em favor da crônica e do impacto imediato pela imagem, Iñárritu parece ter tirado o corte sucessivo, o enquadramento fechado, a profusão de imagens, mas também o multiprotagonismo e os conflitos íntimos tão caros ao melodrama televisivo.

Jamais supondo que Nolan possa ter escapado do poder da lógica televisiva, a sua obra parece estar comprometida com a sobrevivência do cinema em tempos em que o audiovisual e os próprios filmes de ficção convivem também com o streaming em telas residenciais de grande resolução ou em dispositivos portáteis, como o smartphone. Ele sabe que assegurar a atenção desse público, tão habituado também ao transito rápido entre conteúdos por meio da lógica hipertextual demanda, além de enormes telas e sistemas de som, ou do filme aproximado da lógica do espetáculo, precisa encontrar formas de capturar a sua atenção. A aposta por experiências sensoriais imersivas e a construção de narrativas complexas, dispostas em camadas, horizontal e verticalmente, são algumas das respostas encontradas pelo diretor.

Todas elas, como vimos, atuam na transformação da narrativa cinematográfica atingindo o coração dos grandes estúdios e das superproduções. Mas não esgotam as maneiras como esse tipo de produto expressa e produz outras configurações do tempo.

Se proliferam por todos os lados, nas últimas duas décadas, filmes e seriados que abordam o futuro da humanidade com grande pessimismo. Como resultados acidentais da agência humana nos deparamos com colapsos ambientais; epidemias produzidas em laboratório; apocalipses zumbi, delas resultantes; levante de máquinas dotadas de inteligência artificial; cenários marcados pela superpopulação e solapamento das democracias frente ao controle omnipresente de corporações; aumento da distância entre as classes sociais, que se elevam muitas vezes acima do próprio planeta; conflitos religiosos e migratórios; ou, claro, a velha sombra de guerras intestinas que nos levem a usar os nossos extensos arsenais atômicos. Com frequência também por agentes outros, como crises de fertilidade de razões desconhecidas; desastres naturais; ou invasões alienígenas.

São raríssimos os exemplos de produtos de entretenimento audiovisual que apresentem um futuro otimista. Todos, curiosamente, parecem replicações muitas vezes desgastadas do presente, ainda que repletas de dispositivos tecnológicos ainda por inventar. O passado por outro lado, ou é consumido insistentemente com enorme rigor de reconstrução – principalmente na composição do cenário, da atmosfera do período -, ou nos permite experimentar mundos 141 fantásticos e aventuras épicas, como se tivéssemos deslocado para um passado muito distante não apenas a nossa capacidade de imaginar mundos possíveis – e de fabricá-los com incrível verossimilhança -, mas elementos de virtude e grandes feitos que já não encontram outro lugar.

Riquíssimas pesquisas com outras abordagens se abrem aqui, como as análises representacionais tão exploradas nos estudos voltados para uma história cultural ou social. Aqui, porém, me pareceu importante explorar aspectos ligados à narrativa, à linguagem cinematográfica que se ofereciam em meio ao estabelecimento de um cinema transnacional. Essas escolhas me permitiram pensar o lugar do sujeito histórico – ou a saída de cena da própria possibilidade de encontrar o homem nessa posição.

No cronótopo moderno – ou historicista – o homem passeia na história, move-se afastando-se do passado pelas mudanças que impõe, deixando-o sempre para trás, e em direção ao futuro que é seu subproduto. “Na idade média, o passado está se distanciando e o futuro se aproximando, no cronótopo historicista são os homens que se movem144”. Este cenário marcado pela instabilidade, onde o passado perdeu pouco a pouco o seu caráter exemplar, se agrava pela crise de representação provocada pelo aparecimento de um observador de segunda ordem “aquele que se auto-observa no ato de observar, (...)uma existência auto-reflexiva”. O problema correlato da perspectiva implica na proliferação de representações e na própria dificuldade em reconciliar os sentidos com os conceitos, o corpo com a mente145.

Como sinalizam autores como Gumbrecht ou Lyothard, a historicização na forma de uma narrativa permite integrar representações diversas. Reduzindo a complexidade, a pluralidade, por meio da identificação dos elementos fundamentais que atuam na mudança histórica, nas leis que explicam o seu próprio funcionamento, mas também na redução dos múltiplos agentes por meio da adoção de coletivos singulares – como humanidade ou nação -, a história encontrou novas formas de aprender com o passado. Com narrativas lineares, centradas em um pequeno número de agentes observados desde uma perspectiva objetiva, era possível mover-nos por meio da imaginação entre passado e futuro, entendidas as assimetrias entre essas dimensões enquanto um processo racionalmente apreensível.

As narrativas contemporâneas, por outro lado, parecem cumprir cada vez menos com esse papel, na História assim como no Cinema. Encontramos indícios de que a posição do

144 GUMBRECHT, Hans Ulrich. Depois de “Depois de Aprender com a história”, o que fazer com o passado agora? In: Aprender com a história? O passado e o futuro de uma questão. Org. NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena Miranda; Araújo, Valdei Lopes. Rio de Janeiro: Editora UFV, 2011, p.37. 145 Ibid. p. 35. 142 sujeito e a sua autorreferência nesse novo cronótopo é outra, como vimos ao longo das análises fílmicas. Nem sujeito que governa o movimento, o ritmo, o curso, nem viajante que sobre ele se desloca. O homem parece cada vez mais à deriva.

Desaparece também por todo lado a confiança de que devemos buscar no passado a orientação para o presente. No sentido inverso, porém, nunca foi tão forte o desejo por consumir o passado, de experimentá-lo e preservá-lo. Investimos nossa imaginação de mãos dadas com a computação gráfica na construção de incontáveis mundos possíveis, tão distantes do presente que se encontram fora do nosso espaço de experiência - “há muito, muito tempo atrás”. Sonhamos não mais com o que pode estar por vir, mas sim com o que poderia ter sido.

Como vimos, não é recente a percepção de que experimentamos o presente não mais como aquele breve instante do agir, deslocado do passado que o ultrapassa e dirigido ao futuro que controla. Se as utopias ou todo e qualquer projeto de futuro resultam sem lugar, para muitos, o que se expressa não apenas no levante conservador, ultranacionalista e intolerante que se veste de liberal – do Brexit na casa de Nolan ao muro que separa o sonho americano dos conterrâneos de Iñàrritu, passando pelo perigoso cenário eleitoral brasileiro, a partir do qual escrevo - mas também na timidez e nos cuidados de políticos profissionais orientados pelo cálculo de risco ao sugerirem qualquer mudança, por mais sutil e reformista que seja –, em grande parte se deve ao fato de que elas pressupõem uma assimetria entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativas que se dissolveu em meio a um presente saturado por todas as dimensões que retém e um futuro que não oferece qualquer alternativa.

Isso coloca grandes desafios para o fazer história, uma vez que resulta difícil crer que essa disciplina sustente a sua legitimidade apenas no interesse de experimentar o passado ou impedir que ele passe, por meio de políticas de preservação, construção de ambientes imersivos, reconstrução em produtos de entretenimento audiovisual, ou na descrição minuciosa daquilo que se perdeu no tempo.

Esta tese foi construída a partir do incômodo. Ao longo da trajetória de pesquisa, porém, ele parece ter se convertido em urgência – intelectual e existencial – de reivindicar o “direito ao delírio”, como proposto por Eduardo Galeano:

Quando estava em uma Universidade, fazendo uma palestra com um grande amigo, um diretor de cinema argentino, Fernando Birri, e então os estudantes faziam perguntas, a um e outro, e ele recebeu a mais difícil de todas: ‘Para que serve a utopia?’ Eu o olhei com pena, pensei: que 143 problema agora. Mas ele contestou estupendamente, da melhor maneira. Disse que a utopia está no horizonte. E disse “eu sei muito bem que nunca a alcançarei. Se caminhar dez passos ela se distanciará dez passos. Quanto mais a procure menos a encontrarei, porque ela se distancia a medida que eu me aproximo. Boa pergunta não é? Para que serve? Pois a utopia serve para isso, para caminhar”. (...) Que tal se deliramos por um momento? Que tal se dirigimos o olhar para além da infâmia para adivinhar outro mundo possível? O ar estará limpo de todo veneno que não provenha dos medos humanos ou das humanas paixões. Nas ruas, os automóveis serão esmagados pelos cães. As pessoas não serão conduzidas pelo automóvel nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelo supermercado, nem tampouco serão observadas pelo televisor. A televisão deixará de ser o membro mais importante da família e será tratado como o ferro ou a máquina de lavar. Se incorporará aos códigos penais o delito de estupidez, que cometem os que vivem por ter ou ganhar em vez de viver por viver apenas, como canta o pássaro sem saber o que canta e como joga o menino sem saber ao que joga. (...) Ninguém viverá para trabalhar, mas todos trabalharemos para viver. Os economistas não chamarão de “nível de vida” ao “padrão de consumo” nem “qualidade de vida” à “quantidade de coisas”. Os cozinheiros não acreditarão que as lagostas adoram ser fervidas vivas; os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos; nem os políticos acreditarão que os pobres adoram comer promessas. A solenidade não será vista como uma virtude e ninguém levará a sério a alguém que não seja capaz de rir de si mesmo. A morte e o dinheiro perderão os seus poderes e, nem por disfunção nem por fortuna, se converterá o canalha em virtuoso cavaleiro. A comida não será uma mercadoria nem a comunicação um negócio, por que uma e outra são direitos humanos. Ninguém morrerá de fome porque ninguém morrerá de indigestão. Os meninos de rua não serão tratados como lixo, porque não existirão meninos na rua. Os meninos ricos não serão tratados como se fossem dinheiro porque não existirão meninos ricos. A educação não será o privilégio de quem possa pagar, e a polícia não será a maldição de quem não possa compra-la. A justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viver separadas, voltarão a juntar-se, bem coladinhas. Na Argentina as “locas da plaza de mayo” serão um exemplo de saúde mental porque se negaram a esquecer nos tempos da amnesia obrigatória. A santa mãe igreja produzirá algumas erratas das tábuas de Moisés e o sexto mandamento ordenará festejar o corpo. A igreja também ditará outro mandamento do qual se esquecera Deus: “Amarás a natureza da qual formas parte”. Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma. Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles se desesperaram de tanto esperar e eles se perderam por tanto buscar. Seremos compatriotas e contemporâneos de todos que tenham vontade de beleza e vontade de justiça (...) sem que importe nem um pouco as fronteiras do mapa ou do 144

tempo. Seremos imperfeitos, porque a imperfeição continuará sendo o enfadonho privilégio dos deuses146.

146 Extraído de um fragmento de programa de entrevistas https://www.youtube.com/watch?v=Z3A9NybYZj8. (Acessado em 28 de agosto de 2018) 145

REFERENCIAS

Fontes – documentos fílmicos

Amores Perros

México, 154 min, 2000 Direção: Alejandro Gonzalez Iñárritu Companhias Produtoras: Zeta Film, Alta Vista Films Produção: Alejandro Gonzalez Iñárritu Produtores associados: Raúl Olvera Ferrer, Guillermo Arriaga, Pelayo Gutiérrez, Mónica Lozano Serrano. Produtores executivos: Martha Sosa Elizondo, Francisco González Compeán Roteiro: Guillermo Arriaga Diretor de Fotografia: Rodrigo Prieto Edição: Alejandro Gonzalez Iñárritu, Luis Carballar, Fernando Péres Unda Música: Gustavo Santaolalla Direção de arte: Melo Hinojosa Designer de produção: Gabriela Diaque Som: Antonio Diego, Martín Hernándes Decoradora de set: Julieta Álvares Efeitos especiais: Alex Vasquez Eveitos visuais: Guillermo Franco Guevara, Miguel Moreno Elenco: Emilio Echevarría, Gael Garcia Bernal, Goya Toledo, Álvaro Guerrero, Vanessa Bauche, Jorge Salinas, Marco Péres, Rodrigo Murray, Humberto Busto, Geraldo Campbell, Adriana Barraza, Laura Almeda, Ricardo Dalmacci, Gustavo Sánches Parra.

Babel

França, México e EUA, 143 min, 2006 Direção: Alejandro Gonzalez Iñárritu Companhias Produtoras: Anonymous Content, Zeta Filme, Central Filmes, Paramount Pictures, Paramount Vantage Produção: Alejandro Gonzalez Iñárritu, Jon Kilik, Steve Golin Produtor associados: Corinne Golden Weber Line Producer: Ahmed Abounouom (Marrocos), Norihisa Harada (Japão), Kay Ueda (Japão), Tita Lombardo (México) Roteiro: Guillermo Arriaga Diretor de Fotografia: Rodrigo Prieto Edição: Stephen Mirrione, Douglas Crise Música: Gustavo Santaolalla Direção de arte: Claudia Vásquez Lostau (México), Rio Sujimoto (Japão) Designer de produção: Brigitte Bloch Som: Martín Hernándes Elenco: Brad Pitt, Cate Blanchett, Mohamed Akhzam, Sfia Ait Benboullah, Boubker Ait El Caid, Said Tarchani, Mustapha Rachidi, Abdelkader Bara, Adriana Barraza, Elle Fanning, Nathan Gamble, Gael García Benal, Robert Esquivel, Rinko 146

Kikuchi, Kôji Yakusho, Satoshi Nikaido.

Inception

Reino Unido, EUA, 148 min, 2010 Direção: Christopher Nolan Companhias Produtoras: Warner Bros, , Syncopy Produção: Christopher Nolan, Produtor associado: Thomas Hayslip Line Producer: Zakaria Alaoui (Marrocos), John Bernard (França) Roteiro: Christopher Nnolan Diretor de Fotografia: Wally Pfister Edição: Música: Hans Zimmer Direção de arte: Brad Ricker Designer de produção: Elenco: Leonardo DiCaprio, Joseph Gordon-Levitt, Ellen Page, Tom Hardy, Ken Watanabe, Dileep Rao, Cillian Murphy, Tom Berenger, Marion Cotillard, Pete Postlethwaite, Michael Caine, , Tai-Li Lee, Claire Geare, Magnus Nolan, Taylor Geare, Johnathan Geare, Tohoru Masamune, Yuji Okumoto, Earl Cameron, Ryan Hayward, Miranda Nolan, Russ Fega, Tim Kelleher, Talulah Riley, Nicolas Clerc, Coralie Dedykere, Silvie Laguna, Virgile Bramly, Jean-Michel Dagory, Helena Cullinan, Mark Fleischmann, Shelley Lang, Adam Cole, Jack Murray, Kraig Thornber, Angela Nathenson, Natasha Beaumont, Marc Raducci, Carl Gilliard, Jill Maddrell, Alex Lombard, Nicole Pulliam, Peter Basham, , Felix Scott, Andrew Pleavin, Lisa Reynolds, Jason Tendell, Jack Gilroy, Shannon Welles

Interstellar

Reino Unido, EUA, 169 min, 2014 Direção: Christopher Nolan Companhias Produtoras: Paramount Pictures, Warner Bros, Legendary Entertainment, Syncopy, Productions Produção: Christopher Nolan, Lynda Obst Produtores executivos: , Thomas Tull, Jordan Goldberg, Jake Myers Roteiro: Jonathan Nolan, Christopher Nnolan Diretor de Fotografia: Hoyte Van Hoytema Edição: Lee Smith Música: Hans Zimmer Direção de arte: Dean Wolcott Designer de produção: Elenco: Ellen Burstyn , Matthew McConaughey, Mackenzie Foy, John Lithgow, Timothée Chalamet, David Oyelowo, Collette Wolfe, Francis X. McCarthy, Bill Irwin, Anne Hathaway, Andrew Borba, Wes Bentley, , Michael Caine, David Gyasi, Josh Stewart, Casey Affleck, Leah Cairns, Jessica Chastain, William Dickinson, , , Flora Nolan, Griffen Fraser, Jeff Hephner, Lena Georgas, , Brooke Smith, Russ Fega.

Memento 147

EUA, 113 min, 2000 Direção: Christopher Nolan Companhias Produtoras: Newmarket Capital Group, Team Todd, I Remember Productions, Summit Entertainment Produção: Jennifer Todd, Produtor executivo: Aaron Ryder Roteiro: Jonathan Nolan, Christopher Nnolan Diretor de Fotografia: Wally Pfister Edição: Música: Direção de arte: Danielle Berman Designer de produção: Patti Podesta Elenco: Guy Pearce, Carrie-Anne Moss, , , Russ Fega, Jorja Fox, Stephen Tobolowsky, Harriet Sansom Harris, , , Kimberly Campbell, Marianne Muellerleile, Larry Holden.

The Revenant

EUA, Hong Kong, Taiwan, 156 min, 2015 Direção: Alejandro Gonzalez Iñárritu Companhias Produtoras: Regency Enterpris, RatPac Entertainment, New Regency Pictures, Anonymous Content, M Productions, Appian Way, Alpha Pictures, CatchPlay, Alpha Pictures (II). Produção: Alejandro Gonzalez Iñárritu, Steve Golin, Keith Redmon, Arnon Milchan, James W. Skotchdopole Roteiro: Mark L. Smith e Alejandro G. Iñárritu adaptando o romance de Michael Punke Diretor de Fotografia: Emmanuel Lubezky Edição: Stephen Mirrione Música: Alva Noto, Ryuichi Sakamoto Direção de arte: Michael Diner, Isabelle Guay Designer de produção: Jack Fisk Elenco: Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Domhnall Gleeson, Will Poulter, Forrest Goodluck, Paul Anderson, Kristoffer Joner, Duane Howard, Melaw Nakehk'o, Arthur Redcloud, Lukas Haas as Jones, Brendan Fletcher, Grace Dove.

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