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Telenovela e Imprensa: quando o jornalismo investiga a ficção1

DANIEL, Arthur Ovidio (Mestrando)2 Universidade Federal de Juiz de Fora / MG

Resumo: O sucesso da no Brasil influencia diretamente o mercado das revistas especializadas, que acompanham a evolução do gênero enquanto consagram práticas tradicionais para atrair e fidelizar leitores. Trata-se de uma lógica mútua: o público compra a revista buscando a telenovela, a revista promove a telenovela conquistando o público, e a telenovela renova o interesse de ambos, diluindo as emoções diariamente. Para entender este processo, o presente artigo faz um levantamento histórico das publicações; mostra o potencial da teledramaturgia em extrapolar os limites do jornalismo especializado; identifica algumas estratégias de apuração, cobertura e divulgação de notícias; explica momentos de tensão no relacionamento entre as emissoras de televisão e as revistas; e apresenta os instrumentos para a opinião dos leitores. A conclusão versa a respeito do fascínio que a telenovela exerce, o objeto ideal para alcançar as subjetividades de um público que, ao mesmo tempo, é leitor e espectador.

Palavras-chave: Mídia Impressa; Telenovela; Imprensa Especializada; Revista.

1 INTRODUÇÃO

A década de 60 seria marcada pela revolução: na música popular (com os festivais televisivos), no espetáculo midiático (com a chegada do homem à Lua e a aplicação do sistema de transmissão via satélite), nas relações sociais (com a contracultura e a pílula anticoncepcional) e na política (com o início da Ditadura Militar). Entretanto, a primeira das revoluções se daria na televisão – através de um verdadeiro fenômeno de massa chamado “telenovela diária”. Era um formato importado da Argentina que acabou por estabelecer a noção moderna de hábito no telespectador. A estreia deu-se na TV Excelsior, a partir de julho de 1963, com a produção 2-5499

1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Impressa, integrante do 9º Encontro Nacional de História da Mídia, 2013. 2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFJF (2012-2014) com linha de pesquisa na área de Comunicação e Identidade. Bacharel em Comunicação Social pela UFJF (2010). Ocupado3. A telenovela era então uma fórmula mais barata e mais rentável de se produzir, em comparação ao teleteatro (na época um dos formatos televisivos de maior repercussão). O produto “surge como uma narrativa apropriada para ampliar o público das emissoras [...] o que chama a atenção é que sua introdução se faz claramente dentro de uma estratégia de conquista de mercado” (ORTIZ et al., 1989, p.58-59), resumem José Mário Ortiz e Silvia Borelli. Títulos posteriores como A Moça que Veio de Longe (1964), O Direito de Nascer (1965), (1965), O Cara Suja (1965), Eu Compro Essa Mulher (1965), O Sheik de Agadir (1966), A Rainha Louca (1967), Antônio Maria (1968), (1968) e (1968), dentre outros, foram os responsáveis por despertarem no público também a ligação passional – necessária, pois, ao hábito. Roberta Manuela Barros de Andrade falou sobre um engajamento pessoal, pois “assistir à telenovela é muito mais do que vê-la, é estar envolvido em sua trama, é se deixar levar pelo suspense, é compartilhar emoções com as personagens, discutir suas motivações psicológicas e suas condutas.” (ANDRADE, 2003, p.52) Tratava-se de um convite aceito pela audiência que se materializava na repercussão obtida. Consideramos que parte desta ‘materialização’, decorrente do encontro entre telespectador e telenovela, tem se realizado por meio da imprensa – em especial, as revistas especializadas. A lógica é a seguinte: a telenovela desperta o interesse da audiência e esta procura uma revista especializada para se inteirar das próximas emoções a seguir. Com uma cobertura de promoção à novela, a revista renova aquele interesse e garante a audiência dos próximos capítulos, num eterno ciclo. Entretanto, se o papel deste tipo de imprensa é manter a devoção do público para com as novelas, que ferramentas têm sido utilizadas para investigar a ficção?

2 UM MERCADO EM EVOLUÇÃO

Historicamente, a imprensa especializada em tem como público- alvo a mulher. Portanto, sempre abrigou temas “supostamente” interessantes a esta leitora: narrativas romantizadas, poesias, dicas para o lar, conselhos amorosos e serviços de utilidade pessoal. Em seus estudos sobre estes tipos de publicação, Dulcília

3 A princípio, a novela 2-5499 Ocupado era exibida três vezes por semana. Em setembro de 1963, passou a ser diária. Schroeder Buitoni explica como a revista pode ser considerada a feminização da imprensa:

Lazer e um certo luxo foram-se associando à ideia de revista no século XX. E a imprensa feminina elegeu a revista como seu veículo por excelência. Revista é ilustração, é cor, jogo, prazer, é linguagem mais pessoal, é variedade: a imprensa feminina usa tudo isso. Com o desenvolvimento da indústria de cosméticos, de moda e de produtos para a família e a casa, e com o respectivo progresso da publicidade, as revistas femininas tornaram-se peças fundamentais no mercado dos países capitalistas. (BUITONI, 1986, p.17-18)

Ao contrário das outras mídias, que buscam o factual e a rapidez em divulgar notícias, a mídia revista trabalha sob outro prisma: a novidade. Este é um elemento que pressupõe uma relação de presença efetiva no mundo histórico. Nas palavras de BUITONI, “a ancoragem temporal desloca-se para uma relação mental: a revista (ou a indústria, a publicidade) inventa um modismo que logo é apresentado como o que existe de mais ‘atual’” (1986, p.13). Estar em sintonia com as demandas de seu entorno histórico-social é a garantia de sobrevivência das revistas – em especial, das que cobrem a telenovela e seus desdobramentos culturais. Totalmente concebida e focada para o público feminino (pela utilização clara do apelo à “leitora”, pelo uso de cores e diagramação e linguagem convencionalmente associadas à mulher, dentre outras questões) a imprensa especializada em telenovelas e mundo artístico tem, paulatinamente, reconstruído seu discurso para atender às expectativas destas leitoras e fazer frente à concorrência. Ao debruçarmos sobre a história da dramaturgia eletrônica brasileira, é possível verificar um crescente interesse da imprensa para com as produções unitárias e seriadas do rádio e da televisão. Concomitantemente à evolução dos formatos, artigos a respeito destes programas em revistas de variedades e jornais já podiam ser lidos na década de 30. No final dos anos 1940 e início dos anos 1950, com a televisão sendo a grande novidade, a mídia impressa começa a se organizar sistematicamente para a cobertura do meio. Publicações radiofônicas criam colunas sobre a TV e surgem títulos especializados (7 Dias na TV4, Revista da Televisão, São Paulo na TV5, Show TV, TV

4 A primeira revista especializada em televisão, lançada em 25/08/1952, em São Paulo. (RIXA, 2000, p.280) 5 Publicada entre 1959 e 1969, em São Paulo (RIXA, 2000, p.223). Programas6). Na década seguinte, a exibição diária da telenovela deu novo fôlego à cobertura da imprensa especializada, que tratou de refazer o esquema básico utilizado na era das clássicas radionovelas: apresentavam o resumo dos capítulos já exibidos, entrevistas com atores e autores, segredos dos bastidores, pôsteres dos artistas, cartas dos leitores, promoções. Mais títulos surgiram: Revista do Rádio e TV, Intervalo, Contigo!, Ilusão, Grande Hotel7, Cartaz8, Sétimo Céu9 e TV Guia10 foram algumas das publicações que, em maior ou menor grau, acolheram o mercado ávido por notícias sobre as novelas da televisão. Entrementes, era um contexto benéfico para estas coberturas, segundo Muniz Sodré:

A partir de 1960, com o desenvolvimento das agências noticiosas e o aprimoramento da notícia, do serviço fotográfico e do segundo caderno dos jornais, com a multiplicação das revistas especializadas, com o grande boom da televisão, em suma, com o bombardeio do público pelos veículos de massa, o jornalismo de revista mudou. (SODRÉ, 1975, p.42)

Importante frisar que a força do gênero e a diversidade de tematizações chegaram a ultrapassar os limites do jornalismo especializado, gerando capas e matérias em revistas de diferentes editorias. A mídia impressa pautada pela teledramaturgia foi um dos temas abordados por Maria Lourdes Motter no livro Ficção e Realidade – A construção do cotidiano na telenovela. A hipótese do agenda-setting inspirou o trabalho de Motter, que explicou suas ponderações:

O agenda-setting pressupõe que a compreensão que as pessoas têm de boa parte da realidade social vem através dos meios [...] Devemos esclarecer que ela não está sendo considerada por nós do ponto de vista de sua influência sobre o público, especificamente. Para nós, o que importa é a pauta que uma mídia elabora e difunde para outras mídias [...] as emanações da mídia, sejam oriundas da ficção ou de outros gêneros, impregnam a cultura e passam a ser mais um traço na sua composição, entendida a cultura como um processo em permanente movimento [...]. (MOTTER, 2003, p.128-129)

Motter deteve-se em matérias que transcendiam o simples comentário sobre

6 Publicada entre 1955 e 1963, no Rio de Janeiro (RIXA, 2000, p.223). 7 Publicada desde 1947, a partir dos anos 1970 passará a pautar-se também pelas telenovelas. 8 Publicada entre 1971 e 1973. 9 Publicada entre 1964 e 1991. 10 Título de uma publicação dos anos 1960. O mesmo nome seria usado por outra revista, publicada pela Editora Abril em 1976. a história narrada; seu interesse foi verificar como a ficção televisiva pode gerar assunto para a grande imprensa informativa “como temas sociais, pautas sérias, assuntos de real interesse para discussão” (MOTTER, 2003, p.129). É possível observar, contudo, que o destaque dado à telenovela pelos meios impressos tem se justificado não somente pelo caráter “engajado”, mas por vários outros fatores, como: a surpresa da opinião pública com o sucesso do gênero nos anos 1960; o acerto pontual da TV Tupi e a evolução da telenovela nos anos 1970; as produções emblemáticas pelo contexto sociopolítico nos anos 1980; a guerra de audiência e a explosão do merchandising social nos anos 1990; os escândalos envolvendo artistas e o poder de sedução de atores e atrizes nos anos 2000 (ver Tabela 1).

Tabela 1 – Exemplos da telenovela nas revistas brasileiras entre 1965-2010

FATOS E FOTOS Nº 237 VEJA Nº 35 07/05/1969 MANCHETE Nº1427 VEJA Nº 891 02/10/1985 20/08/1965 A explosão da 25/08/1979 O sucesso nacional de Com O Direito de Nascer, o teledramaturgia no país e O destaque e as polêmicas , que Brasil assistiu à sua primeira a inovação de Beto da novela das oito com a lançou bordões e se novela de grande sucesso. Rockfeller. estreia de . tornou um marco.

PLAYBOY Nº 355 NOVA ESCOLA CAPRICHO Nº 1090 MANEQUIM Nº 402 FEVEREIRO/2005 ED. ESPECIAL FEVEREIRO/2010 JUNHO/1993 Uma tradição entre OUTUBRO/2006 Astro de Malhação, líder O par romântico de algumas jovens atrizes: A síndrome de Down foi o de banda e filho do cantor iria estrelar a novela Sonho Bárbara Borges posou principal merchandising Fábio Jr., Fiuk era o Meu e já mostrava os modelos nua após o sucesso em social de Páginas da Vida. queridinho das para a nova produção. . adolescentes. FONTE: Arquivo pessoal e Internet 3 AS REGRAS DO JOGO

Se uma telenovela faz sucesso com o público, é natural que a revista especializada ofereça espaço proporcional em suas páginas a esta produção. Para a imprensa, tudo será notícia: o perfil dos personagens, o carisma dos artistas, os temas retratados, as próximas emoções. O grande conflito reside neste detalhe: as próximas emoções. Se a telenovela apresenta segredos que somente deverão ser revelados no momento certo (isto é, no momento desejado pelo autor), a sanha da imprensa consiste nisto – descobrir e divulgar que segredos são estes. Em 1966, o jogo ainda não tinha regras muito definidas. Estava no ar, por exemplo, uma novela de grande repercussão em São Paulo, A Grande Viagem11, escrita por Ivani Ribeiro. Uma quadrilha de assaltantes se infiltrou em um luxuoso transatlântico. A intenção deles era direcionar o navio a uma ilha, onde estava escondida uma fabulosa fortuna. Por toda a história, entretanto, o público não soube quem era o chefe da quadrilha e seu cúmplice. O site Teledramaturgia explicou que “a imprensa revelou o final. Ivani reescreveu o último capítulo, gravado só no dia em que foi ao ar, mantendo assim o grande mistério”. Para surpreender o público, Ivani apontou como o verdadeiro criminoso o velho Pedro, morador da ilha, que havia se fingido de morto (um dos assaltantes o havia “matado” no meio da novela). Teria sido este o final originalmente escolhido por Ivani? Um ano e meio depois, novamente a autora se inspirou no suspense: criou Os Fantoches12, trama na qual um milionário convidou um grupo de parentes e amigos para se hospedar em seu hotel de luxo. Todos eram manipulados pelo anfitrião, obsessivo em saber quem era seu amigo de verdade. O recurso das cartas anônimas também foi utilizado, obrigando a TV Excelsior a se adiantar: a emissora solicitou à imprensa que não revelasse o autor das cartas até o último capítulo, no que foi atendida. Com o tempo, autores e emissoras foram se esmerando na confecção de tramas deste feitio – e, a cada novela, as soluções dadas apresentaram os mais diversos motivos para um mesmo recurso: quem matou Luciano? (Véu de Noiva, TV Globo, 1969), quem matou Nívea? (Assim na Terra como no Céu, Rede Globo, 1970), quem matou Max? (Cavalo de Aço, Rede Globo, 1973), quem morreu e quem matou? (O

11 Exibida pela TV Excelsior às 19:30h, de novembro de 1965 a fevereiro de 1966. 12 Exibida pela TV Excelsior às 19:30h, de julho de 1967 a janeiro de 1968. Rebu, Rede Globo, 1974), quem matou Salomão Hayalla? (O Astro, Rede Globo, 1977), quem matou Gil? (, Rede Tupi, 1978), quem matou Miguel Fragonard? (Água Viva, Rede Globo, 1980), quem matou Odete Roitman? (Vale Tudo, Rede Globo, 1988), e muitos outros casos. Em alguns, a imprensa acertava o final; em outros, o autor conseguia manter as rédeas de sua criação. Dois telenovelistas experientes, Manoel Carlos e Silvio de Abreu, consideram esta “competição” válida:

Os autores reclamam porque a imprensa antecipa as tramas da novela. Eu nunca liguei [...] O fato de você contar em sua revista que no meu próximo capítulo um personagem vai morrer não atrapalha em nada. Acho improvável que o cara desista de ver um capítulo porque já leu sobre ele. Até porque assistir à cena é muito diferente do que lê-la na revista. Quanto mais divulgação, melhor. A novela precisa de capa de revista. (Manoel Carlos, CONTIGO!, 30/09/1997, p.38)

A novela não pode abrir mão da imprensa. Não podemos brigar com a imprensa, mas caminhar junto com ela. Porque a novela só existe socialmente, em termos de uma paixão nacional, quando está em todos os jornais, em todas as revistas, em todas as conversas, em todos os salões de cabeleireiro. A imprensa é primordial para que isso aconteça. (Silvio de Abreu, GLOBO, 2008, p.310- 311)

Entretanto, outro autor conhecido, Gilberto Braga, questiona tanto os objetivos destas publicações quanto o interesse do público:

[A telenovela Vale Tudo13] fazia tanto sucesso que começaram a perguntar “quem matou Odete Roitman?” muito antes de a personagem morrer. Os jornalistas sabiam que ela ia morrer e começaram a publicar. Eu ficava chocado. [...] Eu me sentia muito ofendido na época, porque achava um absurdo a imprensa publicar o que iria acontecer na novela. Só depois de é que a ficha caiu para mim. Não é por desrespeito à novela que a imprensa publica o que vai acontecer, é porque vende. O espectador quer saber, fica curioso. [...] Não sei quando começou essa inversão de dizer o que vai acontecer no dia seguinte. Atualmente, os repórteres que fazem isso são cumprimentados pelo editor, como se tivessem dado um furo jornalístico. (GLOBO, 2008, p.390)

Entrementes, a divulgação de cenas ou capítulos falsos de uma telenovela é um expediente utilizado para tentar evitar que a imprensa divulgue os verdadeiros acontecimentos que ainda estão para ser exibidos. Em última instância, é o triunfo da vontade do autor (com o respaldo da emissora) sobre os objetivos da imprensa; é como se ele reafirmasse sua prerrogativa total em determinar quando aquela emoção

13 Exibida pela Rede Globo às 20:30h, de maio de 1988 a janeiro de 1989. específica deve ser apresentada ao público. Na semana derradeira, por exemplo, as principais personagens de Avenida Brasil14 gravaram seis cenas extras que não foram utilizadas – o intuito era apenas despistar elenco e produção sobre o verdadeiro desfecho da novela. Dois bons exemplos para revelar a maturidade alcançada pela cobertura de telenovelas foram orquestrados pelo teledramaturgo Silvio de Abreu. Foi durante a reta final de A Próxima Vítima15, escrita por ele, que a revista Contigo! destacou alguns repórteres para cobrir exclusivamente a produção e descobrir os segredos da trama16 – resultando em uma tiragem semanal de cerca de 420 mil exemplares, em outubro de 1995. Um editorial extraordinário, publicado na edição nº 1048, comemorava o fato e contextualizava a importância de um compromisso com o público-leitor:

Pela terceira semana consecutiva Contigo! supera seu próprio recorde de venda. É a revista que mais vende em bancas no país. Contigo! atinge esta performance num momento muito especial da teledramaturgia nacional. As redes de TV investem milhões de dólares em superproduções, valorizando o talento e o trabalho de atores, autores, diretores [...] Sempre antenada no universo da TV e dos seus leitores, Contigo! enfrenta desafios, quebra barreiras, aposta o talento de seus profissionais para chegar, semanalmente, às suas mãos com o que é quente nas novelas e no mundo mágico da telinha. (CONTIGO!, Ed.1048, 17/10/1995, p.3)

Na mesma edição, a revista apontava a personagem Carmela, interpretada por Yoná Magalhães, como a serial killer da novela. Esta matéria de capa rendeu quatro páginas e trouxe fragmentos da sinopse, rememoração de cenas, dados de uma fonte “ligada à alta cúpula da Rede Globo” e a análise de um psicólogo – elementos para comprovar a veracidade da apuração feita pela revista. Importante considerar a própria manchete da capa, em forma de pergunta: “Carmela assassina?” – mais um dado que reforçou a transparência do jornalismo que se quis levar ao público; aquele que apresenta provas, mas concede o benefício da dúvida – afinal, o formato telenovela é dinâmico e até o encerramento do último capítulo tudo poderia acontecer (como de fato aconteceu: o autor apresentou como verdadeiro assassino o personagem Adalberto, interpretado por Cecil Thiré). Silvio de Abreu revelou sua luta para driblar a imprensa:

Um dos principais problemas era a briga diária com a imprensa, porque eu

14 Exibida pela Rede Globo às 21h, de março a outubro de 2012. 15 Exibida pela Rede Globo, às 20:30h, de março a novembro de 1995. 16 O editorial também revelava que a repórter Patrícia Logulo atuou como figurante em uma cena de A Próxima Vítima. estava fazendo uma história de suspense e não queria que eles divulgassem os capítulos. Mas eles divulgavam todos os dias. Então eu mandava capítulo falso, fazia outra história. Os jornais publicavam uma história, e eu fazia acontecer outra no vídeo, um trabalho de cão. Era fundamental esconder da imprensa quem morreria, para que o público tivesse o impacto quando assistisse. Quando publicavam o que iria acontecer, eu escrevia cenas falsas, e combinava com o Jorginho de gravar uma cena diferente, que era enviada secretamente só para ele, sem nunca trair a minha ideia ou a coerência da história. Era um problema, mas foi um enorme sucesso. (GLOBO, 2008, p.307)

O mesmo autor, em sua telenovela seguinte (Torre de Babel17), criou um mote diferente: a explosão de um grande shopping, resultando várias mortes. Havia um homem, José Clementino (Tony Ramos), ex-presidiário que, desde o primeiro capítulo, vinha planejando tal feito. Ele queria vingança contra o dono do shopping, César Toledo (Tarcísio Meira), o grande responsável por sua prisão no passado. Entretanto, teria sido ele mesmo o autor da explosão? Depois de acirrada cobertura da imprensa, a divulgação de capítulos falsos e a gravação de muitos finais, chegou-se ao veredicto: a culpada era Sandrinha (Adriana Esteves), a vigarista que queria colocar o pai, José Clementino, de volta à cadeia. A cobertura de Torre de Babel foi incrementada com um molho a mais: a inquirição direta do leitor, mediada pela imprensa. Foi em novembro de 1995 que a revista Contigo! viabilizou a ideia de uma seção do gênero “Fale com o Autor”. A novela Explode Coração18, escrita por Glória Perez, acabava de estrear e trazia, como importante elemento dramático, a Internet – o casal protagonista se conhecia através de um programa on line de bate-papos. Uma novidade para o público e uma oportunidade para a revista Contigo! que, apoiada pela autora, abriu dois canais, um virtual (e-mail, mas denominado código, conforme a linguagem da revista na época) e um tradicional (cartas) para que as perguntas dos leitores fossem respondidas por Glória Perez:

Dona de ideias bastante avançadas, Glória Perez enfoca em Explode Coração o que há de mais moderno em termos de tecnologia: a Internet. [...] Já que antes mesmo de começar a escrever Explode Coração Glória enviou mensagens aos usuários da Internet pedindo dicas para o desenvolvimento da trama, Contigo! resolveu incentivá-la a manter esse esquema interativo durante a novela inteira. [...] (CONTIGO!, Ed.1052, 14/11/1995, p.17)

A revista Contigo! manteve este espaço na cobertura das novelas das oito da

17 Exibida pela Rede Globo às 20:30h, de maio de 1998 a janeiro de 1999. 18 Exibida pela Rede Globo às 20:30h, de novembro de 1995 a maio de 1996. 19 Rede Globo com algumas interrupções , até o ano 2000 – transferindo, posteriormente, esta atribuição para as revistas especializadas da Editora Abril: Tititi20 e Minha Novela21. Tornou-se um recurso de sucesso neste tipo de imprensa, mesmo não sendo utilizado por todas as publicações. Era um prenúncio do que estava por vir. Conforme verificamos na contemporaneidade, a Internet impulsiona a comunicação globalizada, dá a palavra a quem não tinha, facilita a participação voluntária. Pierre Lévy propõe o conceito da virtualização, elaborando um modelo “todos-todos”: emissores e receptores não configuram papéis fixos, mas possibilitam uma intensa troca cultural. Para Lévy, a tecnologia virtual permite a “fuga” do presente sem, entretanto, excluir o contato físico – um plausível desdobramento no contexto social (1996). Para o teórico, o fato de se poder estar em vários lugares ao mesmo tempo é, portanto, uma das vantagens da virtualização. Por sua vez, Michel Maffesoli acredita que a Internet estabelece a proxemia, ou seja, a formação de tribos ou grupos no espaço virtual em contrapartida ao mantenimento das distâncias físicas no mundo social. Este processo, nas palavras do estudioso, define que “o coeficiente de presença não é absoluto, e cada um pode participar de uma infinidade de grupos, investindo em cada um deles uma parte importante de si” (MAFFESOLI, 2006, p. 233). Uma nova geração de espectadores, portanto, vem criando uma relação diferenciada com a televisão, as revistas e as demais mídias. O público está mais crítico, mais consciente do que deseja absorver como conhecimento – e, naturalmente, mais dividido. Uma das armas utilizada pela imprensa especializada em telenovelas para conter uma potencial debandada de leitores é a feitura de manchetes que não correspondem totalmente à realidade ficcional – mas que ainda permanecem eficazes para chamar a atenção do público. Este é um recurso antiquíssimo – usado largamente pela revista Amiga TV Tudo, a referência em televisão e teledramaturgia nos anos 1970 e 1980. Em formato grande, Amiga trazia capas que apostavam na expressividade das imagens para

19 Dependia da disponibilidade dos autores. Depois de Explode Coração veio O Fim do Mundo e , duas produções escritas por um só autor a cada vez – não tiveram, portanto, este canal de comunicação. As novelas seguintes (, Por Amor, Torre de Babel e ) tinham coautores que revezavam com os titulares nas respostas ao público. 20 Criada em 1998. 21 Criada em 1999. informar, seja no detalhamento de cenas ou no close up do rosto dos atores. As manchetes refletiam uma tendência no jornalismo especializado de então: poucas chamadas, mas com abuso das cores e da ambiguidade – este último recurso, uma herança da Revista do Rádio. As orações eram afirmativas ou interrogativas e expressavam situações gerais das tramas em destaque: “Suspense de Nara faz Fogo crescer“ (sobre a novela ), “O final feliz de ” (07/04/76), “Um pai para Téo” (sobre a novela ) (13/01/77), “Marron-Glacé termina o ano com festa”. Isto quando não utilizava trocadilhos com os nomes das novelas: “Festa na Selva!” (sobre a novela Selva de Pedra), “Rodrigo e seu Cavalo de Aço”, “Enfarte quase atrapalha o sonho de Cláudio Cavalcanti” (sobre a novela O Feijão e o Sonho), “Primeira morte no caminho do Profeta” (sobre a novela ). O leitor também era “enganado” quando a revista, tradicionalmente, utilizava o nome dos atores (e não de seus personagens em voga) quer as chamadas se referissem às tramas das novelas, quer se tratassem de outros assuntos com algum toque de “polêmica”. Pérolas do tipo “Dercy Gonçalves luta contra a AIDS” ou “Vera Fischer comete incesto” podiam ser vistas semanalmente nas bancas – mas, naturalmente, quando o leitor comprava a revista e lia as reportagens, descobria que Dercy Gonçalves havia se tornado madrinha de uma campanha de conscientização sobre a AIDS e que a personagem que Vera Fischer interpretava na novela se apaixonava pelo próprio filho sem saber. Outras chamadas espirituosas: “Agora, Tarcísio só beija Suzana” (sobre a novela ), “Morte misteriosa complica o Louco Amor de Fábio Jr. e Bruna Lombardi”, “Lucélia Santos faz macumba e ganha novo amor”, (sobre a novela Carmem), “Cláudia Raia raptada no dia do casamento” (sobre a novela Sassaricando). Esta tendência começou a mudar a partir dos anos 1980 e intensificou-se nos anos seguintes. O depoimento do autor de novelas Walcyr Carrasco, que trabalhou como diretor de redação da revista Contigo! entre os anos de 1993 e 1995, é esclarecedor neste sentido:

A experiência na Contigo foi muito boa. Uma das coisas que fiz na revista foi determinar que não se podiam mais colocar manchetes de capa que confundissem o nome do ator com o nome do personagem [...] O público quer clareza, não quer ser confundido. Essa separação foi bem legal. Antes, a revista fazia confusão entre o público e o privado. (AUTORES, 2008, p.359)

A contribuição de Carrasco foi o início de uma revolução na imprensa especializada. Na transição do século XX para o XXI, com a presença da Internet e o aumento do poder de compra das classes C, D e E, o conteúdo das revistas sobre telenovelas se modificou ligeiramente. O empresário Ângelo Rossi, um dos responsáveis pela implantação da revista Ana Maria (a pioneira do segmento de revistas “populares”, criada em 1996), explicou a intenção por trás deste projeto:

A Ana Maria nasceu da seguinte ideia: num país como o Brasil, onde 70% da população não sabe realmente ler, não tem um segmento de revista "popular". A princípio a ideia era lançar a R$ 1,00 e deu certo logo no início, foi um sucesso. A fórmula não é muito complicada, nós nos inspiramos na revista Maria, portuguesa, e deu certo. Uma revista bem-feita, interessante e decente por um preço baixo. (EM REVISTA, Ed.5, 2005)

Ana Maria promoveu a abertura de mercado com ingredientes irresistíveis: Formato de bolso, preço acessível, menor número de páginas, promoções, serviços e a interatividade crescente – elementos que reconfigurariam as atuais publicações especializadas na cobertura de telenovelas (TV Brasil, Minha Novela, Tititi, SuperNovelas, Guia da TV, dentre outras), atualmente inseridas neste contexto de revistas “populares”. No atual panorama da televisão brasileira, que vê sua audiência pulverizada pelo surgimento de novas mídias, buscar a identificação leitor-revista ainda é o objetivo número um.

4 CONCLUSÃO

Embora permaneça com o objetivo de frustrar a intenção dos autores em garantir o sigilo das tramas até o momento ideal de mostrá-lo – isto é, no momento da exibição do capítulo – a imprensa atual vem sabendo conduzir este processo de “antecipar emoções” por, constantemente, buscar entender a relação que o público mantém com a teledramaturgia diária. A pesquisadora Cristina Brandão afirma que existe um fascínio perpretado pela telenovela, porque:

As audiências muitas vezes se veem ligadas a valores nos quais elas não sabiam que acreditavam, ou, o inverso, constatando com surpresa seu envolvimento a uma situação vista, a priori, com indiferença. Cada telespectador controla sua aproximação ou distanciamento dos valores sociais celebrados pelas telenovelas. (FARIA, 2007)

Todas as ferramentas utilizadas pelas revistas especializadas são a aplicação do jornalismo clássico, que apura os fatos e busca a imparcialidade. Trata-se, porém, de ferramentas superlativas a serviço de notícias que, não podemos esquecer, ainda não aconteceram. Com quem determinada personagem vai ficar ou como vai ser o final da história são informações em devir – estão no entre-lugar próprio dos processos ligados à telenovela, donde o que está na sinopse inicial ou na mente do autor muitas vezes não se concretiza ou se aproveita para exibição. É preciso considerar as possíveis subjetividades do público que estão em jogo. Se o objetivo da telenovela é dominar o controle, atrair o espectador e mantê-lo fiel – ao mesmo tempo, instigando e tolhendo a urgência daquela história que está sendo contada – a atuação das “manchetes reveladoras”, das “cenas falsas” e do “vazamento de capítulos” constitui-se em uma quebra deste objetivo. A conclusão lógica é que, uma vez o público conhecendo de antemão o que vai acontecer, as expectativas são satisfeitas antes do tempo pré-determinado, pois

As telenovelas jogam com as expectativas melodramáticas da audiência, continuamente estimulando o desejo de conclusão da história. Sugerem esse desejo como irrealizável porque apontam para conclusões direcionadas para novas tensões. A necessidade de retorno à ordem é sempre adiada indefinidamente por meses e meses, estabelecendo-se o suspense da narrativa. (FARIA, 2007)

Manter o suspense é a deixa para que o autor faça uso da maleabilidade da telenovela e subverta a lógica, surpreendendo o público-leitor. Às vezes, nada acontece e tudo fica previsível, como o final de Insensato Coração (onde os capítulos vazados pela imprensa realmente foram ao ar)22. Às vezes, o autor ri por último, como Silvio de Abreu no final de A Próxima Vítima (que modificou quem seria o assassino da história). De uma maneira ou de outra, a imprensa agradece: tudo será devidamente noticiado.

22 http://natelinha.uol.com.br/noticias/2011/08/20/capitulos-vazados-da-novela-insensato-coracao-se- concretizam-153436.php

5 REFERÊNCIAS

ANDRADE, Roberta Manuela Barros de. O fascínio de Sherazade: os usos sociais da telenovela. São Paulo: Annablume Editora, Volume 1, 2003.

BUITONI, Dulcília Helen Schroeder. Imprensa Feminina. Série Princípios. São Paulo: Ática, 1986.

FARIA, Maria Cristina Brandão. Telenovelas e Identidade. Apresentação pública do grupo de pesquisa “Comunicação, Identidade e Cidadania” do Mestrado em Comunicação Social da UFJF. Juiz de Fora: 2007

GLOBO, Projeto Memória. Autores: Histórias da Teledramaturgia. Rio de Janeiro: Globo, 2008.

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