XXV ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS

SEMINÁRIO TEMÁTICO: ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO

A CONSTRUÇÃO DA VEROSSIMILHANÇA NAS NOVELAS

Esther Hamburger Escola de Comunicações e Artes Universidade de São Paulo Agosto de 2001 (trabalho em andamento)

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As novelas brasileiras no final dos anos 70 e 80, podem ser pensadas como um produto local, alternativo aos textos importados e aos profissionais oriundos de outros países da América Latina. O produto nacional se diferenciava dos produtos importados pela referência à elementos, eventos e cenários brasileiros, cada vez mais situados em uma temporalidade contemporânea. Centradas em tramas e dramas familiares, as novelas nacionais vincularam o domínio doméstico, representado nos dilemas cotidianos da vida conjugal, em conflitos de geração, em relações amorosas, traições e lealdades, com o domínio da política nacional, representado nos debates da conjuntura sobre padrões legítimos de comportamento, referências a eventos, cores e símbolos da política nacional. A Rede Globo alcançou a preferência dos telepectadores através de uma combinação de injunções políticas com o regime militar1 e uma grade de programação fixa, baseada na combinação de novelas e jornais, conhecida como “sanduíche” e que pretendia transmitir um sentido de contemporaneidade, uma agilidade na conexão com o mundo, combinando certas convenções técnicas e formais presentes tanto nas novelas como nos jornais. No início dos anos 70, a rede Globo definiu uma série de convenções que formaram o modo narrativo que foi seguido até o final dos anos 80. Essa série de convenções conservou intacta a estrutura melodramática que baseia as novelas.2 As narrativas são movidas por quatro oposições - de classe social, gênero, geração e região geográfica - agrupadas em torno das categorias genéricas de “tradicional” e “moderno”, categorias presentes na teoria social e no discurso político e cultural dos anos 50 e 60, e que as novelas popularizaram. Em oposição a suas antecessessoras, e seguindo a linha sugerida pela pioneira , as novelas produzidas pela Rede Globo no período analisado, privilegiaram o imediato, atual e tangível, ao remoto e fantasioso, conectando plots românticos a representações verossímeis da vida cotidiana. Essa versão eletrônica do romance de folhetim do século XIX3 combina convenções advindas do repertório da notícia e do documentário. Este trabalho analisa 4 novelas em ordem cronológica, comparando as maneiras através das quais elas conectam o doméstico e o político, fazendo referências peculiares à nação. A idéia é

1 Sobre as relações da emissora com o regime militar ver por exemplo, Kehl, 1986 e Ortiz, 1987. 2 Ver Xavier (1997 e 2000), para uma definição de melodrama e para a base melodramática de uma mini-série; ver Joyrich, 1997 para uma definição das convenções formais do melodrama televisivo. 3 A origem folhetinesca da novela foi apontada por Ortiz (1987) e Meyer (1996) entre outros e é central na análise desenvolvida aqui. É o fato de ser feita enquanto está indo ao ar que permite que a novela 3 discutir as convenções formais através das quais as novelas da Globo definem as bases de um sistema de representação verossímil em que o contemporâneo é sucessivamente atualizado, no qual gêneros definidos como femininos e masculinos, como a ficção e a notícia, se interpenetram, e no qual questões domésticas privadas ganham expressão pública e questões públicas encontram representação privada. Veremos como as maneiras específicas como as novelas analisadas combinam convenções associadas ao repertório da ficção televisiva (pensada como feminina), com convenções formais retiradas do repertório da notícia e do documentário (pensada como masculina). As maneiras através das quais o espaço diegético da narrativa é organizado e as vezes, rompido, em conexão com referências extra-diegéticas constituem objeto de interesse particular aqui, demonstrando como as novelas redefinem relações da ficção e da notícia, do feminino e do masculino.4

1.1. Irmãos Coragem

Com Irmãos Coragem, as novelas e a rede Globo, assumiram a liderança da audiência de televisão. A primeira seqüência do compacto de duas horas a que tivemos acesso mostra um final de jogo emocionante no Maracanã, um gancho que alude à euforia futebolística reinante em 1970, no momento em que a novela foi ao ar. A seqüência mimetiza a narração futebolística de rádio e televisão. O vocabulário utilizado, a entonação de voz, a construção da narrativa sugerem um locutor de futebol transmitindo uma final de campeonato carioca, um clássico Fla-Flu. Como uma locução convencional, a narrativa descreve a emoção coletiva que enlaça torcedores e jogadores no estádio. O locutor capta e

incorpore interferências e ruídos das mais diversas ordens, desde pressões advindas do compostamento dos índices do Ibope, até eventos, modas, ou pressões políticas. 4 Existem poucas análises empíricas de telenovelas, entre as quais os trabalhos pioneiros de Maria Rita Kehl (1986), Jane Sarques (1986) e Ondina Fachel Leal (1986), que lidam com novelas que estavam no ar no momento em que conduziam suas respectivas pesquisas. A falta de arquivos com fitas de novelas já transmitidas está em parte relacionada com essa precariedade analítica. O melhor arquivo existente, o Centro de Documentação (CEDOC) da Rede Globo, possui somente o primeiro e o último capítulo de cada novela, além de versões compactas de algumas novelas. O arquivo que restou da Rede Tupi, armazenado na Cinemateca e na TV Cultura, ainda não está disponível ao público. Esse texto se baseia na versão compactada de Irmãos Coragem e Selva de Pedra, produzidas e transmitidas como parte das comemorações de 15 anos de Rede Globo, em 1980 e nos primeiros e últimos capítulos de e Vale Tudo.. 4 salienta o suspense com uma seqüência de frases curtas e enxutas. É o minuto final de um clássico. O jogo está empatado. Os torcedores acompanham com a respiração suspensa uma jogada perigosa. O narrador clama por atenção. Ele mesmo segura a sua respiração. Ele então registra o gol e a reação apaixonada, a “explosão, a loucura, o grito da multidão”. O narrador emprega os termos técnicos adequados e lança mão dos termos convencionais no futebol brasileiro, como “torcida rubro-negra”, para designar os torcedores do Flamengo, ou termos como o “miolo” para designar o meio do campo. A narrativa sugere que os telespectadores poderiam estar assistindo a um jogo de futebol. As imagens também seguem as convenções adotadas pela reportagem esportiva. Uma seqüência “documental” mostra o estádio lotado de torcedores em um Domingo de clássico. Planos abertos revelam a vibração da multidão com a vitória do Flamengo, o time mais popular do Rio de Janeiro, sobre o Fluminense, conhecido como o time da elite carioca. Duda (Claudio Marzo), um dos três irmãos Coragem, que dão nome à história, veste o uniforme do Flamengo. Das arquibancadas fãs mobilizam as suas bandeiras. Ouve-se o zoar da torcida. As imagens reforçam o tom de atualidade que o texto sugere e ajudam a construir o suspense. Planos abertos se alternam com planos médios de fãs uniformizados e com planos de Duda avançando em direção ao gol no último minuto de jogo. Duda celebra a vitória com o time. O jogador se dirige também à torcida. Os repórteres entram em campo. O jogador é assediado pelos repórteres. Os telespectadores da novela acompanham a entrevista do personagem como se tivessem assistindo às declarações de seu jogador favorito. O repórter faz a pergunta convencional: quais são os planos de Duda depois dessa vitória espetacular, que o consagrou no Flamengo. O personagem olha para a câmera, o cinegrafista o enquadra no melhor estilo da reportagem documental, o personagem jogador revela que vai visitar sua família em sua cidade natal, Coroado. Ao falar ao microfone, e reconhecer a presença da câmera, olhando diretamente para o telespectador, através do aparelho videográfico, o ator rompe o domínio diegético da narrativa. A seqüência se apropria das convenções que definem o gênero documental e com isso transmite a sensação de contemporaneidade. Ao se dirigir aos telespectadores, Duda se dirige também a sua família na ficção, a não ser pelo fato, que os telespectadores saberão em seguida, que a televisão ainda não chegou à cidade de Coroado. 5

É 29 de junho de 1970 quando o primeiro capítulo de Irmãos Coragem vai ao ar. A Copa do Mundo de futebol no México, acabara há pouco. O Brasil se consagrara tricampeão mundial de futebol, trazendo para casa definitivamente a taça Jules Rimet, troféu disputado durante décadas pelas representações nacionais dos diversos países. Os jogos dessa Copa Mundial de futebol foram transmitidos ao vivo para a parcela do território nacional que então recebia sinais de televisão e estimularam uma onda de celebração nacionalista. Ao focalizar o futebol, Irmãos Coragem tratou de um assunto que ocupava grande parte dos brasileiros. A referência ao esporte nacional era um gancho que conectava a narrativa do folhetim eletrônico com um assunto da conjuntura que despertava interesse amplo. O futebol conecta a vida na várzea ao mundo do espetáculo global. O futebol não constitui tema central na história, mas compõe uma trama secundária. O futebol motiva um dos três protagonistas, irmãos Coragem a deixar sua pequena cidade natal, no interior do Brasil, onde o cavalo ainda é meio de transporte e onde a luz elétrica ainda não chegou na zona rural, para ascender socialmente longe de sua família na sedutora, mas “imoral” Rio de Janeiro. O futebol perde importância ao longo da história, quando Regina Duarte e Claudio Marzo são transferidos para a nova novela das 7hs e seus personagens, Duda e Ritinha, de volta à metrópole, desaparecem de cena. Retornando à primeira seqüência de Irmãos Coragem, a decisão do jogador de futebol, de comemorar o seu sucesso retornando a suas raízes na sua cidade natal, Coroado, leva os telespectadores do Rio de Janeiro à distante Coroado, pequena cidade rural de economia garimpeira. A menção de Duda em seu depoimento de final de jogo vitorioso concedido à televisão no interior do espaço diegético, conduz a narrativa do estádio lotado do Maracanã à principal locação de Irmãos Coragem, no estado de Minas Gerais. A oposição entre o pequeno vilarejo rural e a metrópole carioca é uma das tensões que alimenta a narrativa. Como não há nem televisão nem telefone na residência da família Coragem, vemos Jerônimo Coragem, o irmão caçula do jogador de futebol, representado pelo ator Claudio Marzo, abrindo um telegrama onde Duda informa sua chegada iminente. Podemos observar que aviões ou trens não chegam à cidadezinha, pois Duda vai chegar de ônibus. Empolgado com a novidade, Jerônimo leva a notícia, a cavalo, ao rancho da família na zona rural. Quando o irmão caçula entra no casebre, o cenário revela a ausência de aparelhos 6 eletrônicos e móveis chiques. Quando ele entrega o telegrama a sua mãe, percebemos que ela não lê. Com alguma dificuldade e pouca fluência o rapaz lê em voz alta para a mãe. Ela recomenda que Jerônimo vá levar a boa notícia a seu irmão João, que está trabalhando no garimpo. Jerônimo volta a seu cavalo e galopa até uma locação em um morro, à beira de um rio, onde seu irmão vem a seu encontro. Testemunhamos a celebração dos dois irmãos e assim somos apresentados a João, o primogênito e principal protagonista da história. A comemoração de João e Jerônimo é interrompida pela chegada de Juca Cipó e seu bando. Os capangas do Coronel Barros, o patriarca da região, entram em cena para ameaçar os heróis, introduzindo mais uma das tensões que movem a narrativa. Juca Cipó, personagem representado por Emiliano Queiroz, que no final aparece como o filho ilegítimo e retardado do coronel, aconselha os Coragem a não vender diamantes diretamente aos gringos, estrangeiros que varrem a região em busca de pedras preciosas. Todos os garimpeiros deveriam vender suas pedras para o coronel Pedro Barros, que então centralizaria o contato com os compradores estrangeiros. A cena, gravada em locação externa conclui a seqüência de abertura da novela, uma seqüência que apresentou as oposições entre a metrópole e a zona rural, entre o patriarca e jovens empreendedores, como conflitos centrais à narrativa. A vida na cidade pequena e “atrasada” gira em torno de algumas figuras arquétipas como o padre, o prefeito, o delegado, o médico, as prostitutas, o coronel e seus capangas. A família Coragem, composta de pai, mãe e três filhos, dois garimpeiros, um dos quais eventualmente se torna político e prefeito, e um jogador de futebol, que deixou a cidade 7 anos antes para tentar a vida na metrópole, representa a oposição ao modelo patriarcal que caracteriza a vida local. Irmãos Coragem foi divulgada, nas revistas especializadas em programação televisiva, como novela inspirada no gênero cinematográfico Western norte-americano. A presença de cavalos e revólveres em cenário rural aparece como demonstração de filiação ao bang-bang, conteúdo que teria atraído para as novelas o público masculino. E inúmeras citações a filmes como Era Uma Vez no Oeste de Sérgio Leone legitimam a referência..5 Mas a semelhança com o gênero estrangeiro, elemento relevante na construção do imaginário nacional norte-americano, é muito superficial. O indivíduo cowboy, ser solitário que contribui com a ocupação do oeste dos Estados

5 A inspiração da novela no filme merece maior atenção, mas não cabe no escopo desse trabalho. Vale citar o figurino dos capangas do coronel, inspirado no figurino dos membros do bando de Cheyenne no filme, a própria existência de um bando “do bem” na novela, ecoa o filme. A utilização do som e do 7

Unidos, figura a um só tempo justiceira e solidária, mas de certa maneira solitária, quase um outsider, que constitui o elemento central na narrativa norte-americana, está ausente de Irmãos Coragem. A figura individualista do cowboy compõe o repertório americano, mas não desempenha o mesmo papel no imaginário brasileiro. Ao centrar a narrativa na oposição à figura tirânica do coronel, Irmãos Coragem faz referência a uma figura paradigmática da história social brasileira. Coronelismo, Enxada e Voto, de Vítor Nunes Leal, publicado em 1946, permanece o estudo clássico das relações peculiares entre a teia de relaçcões locais e o emergente poder nacional, que teve na figura do coronel um mediador privilegiado.6 No trabalho de Nunes Leal, o coronel aparece como figura intrinsecamente transitória, típica do momento de expansão do poder central do estado, e de decréscimo do poder dos patriarcas locais. A beleza da análise de Nunes Leal está na identificação de um compromisso transitório entre o poder local e o poder crescente do estado nacional, no qual o coronel realiza a mediação privilegiada entre a polícia, a política, a economia local e a capital. A posição centralizadora privilegiada de que goza o coronel seria ameaçada pela extensão de hierarquias específicas com sede na capital da república. Mas enquanto isso, o coronel atua como mediador único das relações dos camponeses com o mundo exterior. A relação entre camponeses e coronel é baseada em uma rede intrincada que mistura relações pessoais, profissionais e políticas. Os coronéis mantêm camponeses em situação de dependência. Camponeses trabalham em troca não de um salário monetário, mas de comida, casa e proteção geral. Camponeses votam nos candidatos apoiados pelos coronéis. Esse poder local, baseado em um amálgama de relações públicas e privadas, constituiu a base do poder de barganha do coronel, na política estadual e federal, regida por uma hierarquia de coronéis. Coronéis trocam votos pelo controle das instituições públicas locais. De novo, para Nunes Leal, os coronéis são figuras transitórias, cuja base de legitimidade tende a ser abalada pelo aumento do controle estatal sobre instituições locais como a polícia. A base do poder dos coronéis para o autor, é instável. A figura ambivalente dos coronéis, a um só tempo padrinhos e patrões, amantes ardorosos e pais de famílias, proprietários rurais e controladores da delegacia, do tribunal de justiça e da

silêncio na novela, especialmente nas cenas em que os bandidos invadem o rancho da família Coragem também merece menção. 6 Para uma revisão recente da literatura sobre o assunto, especialmente do significado da obra de Nunes Leal, ver José Murilo de Carvalho, 1997, “mandonismo, Coronelismo… 8 prefeitura, não é assunto exclusivo das ciências sociais. A literatura brasileira, o teatro, o cinema e a cultura popular, tematizaram repetidamente o assunto. Ao mobilizar a figura familiar do coronel, Irmãos Coragem trouxe para a televisão uma figura nacional, recorrente na literatura de Jorge Amado ou no célebre O Coronel e o Lobisomem de José Cândido de Carvalho. Coronéis são figuras paradigmáticas na primeira fase do cinema novo, especialmente no trabalho de Glauber Rocha, ao qual Roque Santeiro alude. Nessas obras clássicas do repertório nacional, o coronel aparece associado ao Brasil patriarcal, ao atraso ao qual o programa de “modernização” que galvanizou o país nos anos 50 e 60, perpassando diversas correntes políticas e ideológicas, se opunha. Há diversas representações do coronel, figura que expressa as maneiras pelas quais o público e o privado, o político e o doméstico se relacionam no Brasil de maneira sui generis. O trabalho de Nunes Leal enfatiza a transitoriedade da figura. Já José Murilo de Carvalho, retomando o tema décadas depois, reconhece a longevidade do coronel. Jorge Amado realça a ambigüidade pessoal da figura, amada e odiada por seus concidadãos, ótica que aparece em Irmãos Coragem, talvez a primeira novela a tratar do tema, e é repetidamente reiterada nas novelas que abordaram o assunto posteriormente. O coronel retorna ao universo telenovelístico em novelas produzidas para o horário das 10, dedicado a novelas que podiam experimentar mais. O Bem Amado (1974), primeira novela a cores da televisão brasileira e Saramandaia (1976) com seus personagens que voam e explodem, novelas de autoria de Dias Gomes, são exemplos de seriados que trataram do assunto em estilo que fez alusão ao realismo fantástico da literatura latino-americana do período, na qual a figura do coronel também está presente. Gabriela (1975), adaptada por Walter Durst do romance homônimo de Jorge Amado, considerada por muitos como a melhor novela da história, constitui um bom exemplo do tratamento crítico, mas sempre ambivalente, que o coronel representa. Irmãos Coragem trabalha nesse registro de maneira menos aberta à ambigüidade. Enquanto novelas posteriores privilegiam o tratamento ambíguo, em IC, o coronel aparece como vilão. Roque Santeiro, abordada a seguir, representa o coronel sinhozinho Malta com ambigüidade. O personagem ontológico, representado por Lima Duarte é autoritário, mandão, desonesto, antiquado, o que pode gerar identificações negativas. Mas o coronel exibe suas fraquezas. Em sua privacidade, sua amante, a também ontológica Porcina, o controla. Ela é mulher decidida, assertiva, sensual. Sua ascendência sobre o amado não chega a ponto de convencê-lo a 9 casar-se formalmente. Morar em casas separadas permite que ela realiza sua sensualidade de maneira ampla, que inclui escapadas. Mesmo no interior de sua família, sua filha, criada no Rio de Janeiro, mantém certa ascendência sobre o pai. Ao contrário de Pedro Barros, que termina a novela derrotado, Sinhozinho Malta sai vitorioso. A novela trouxe algumas inovações formais que se consolidaram em exemplares posteriores do gênero, como as tramas paralelas, uma convenção teledramática que complexifica a narrativa e permite aos autores mais espaço para encompridar histórias, modificar dramas em função de pressões como a da censura, mudar a trajetória de personagens que eventualmente não caiam no gosto do público. Irmãos Coragem inovou também ao apresentar uma variedade de cenários maior do que os usuais dois cenários convencionais nas novelas anteriores. O número de personagens na trama também cresceu. (Xexéu, 1996). Esse conjunto de inovações formais contribuiu para que a novela transmitisse um senso de dinamismo que combina bem com as idéias de modernidade e contemporaneidade que se tornariam a marca do gênero. Irmãos Coragem constitui um bom exemplo de novela com três tramas principais, cada uma lidando com conjuntos diferentes de oposições. Cada um dos irmãos Coragem e seus pares românticos comandam uma linha possível da história. Aqui o coronel é vencido. Ele começa por perder o controle sobre sua família. A filha casa com seu inimigo, um garimpeiro de poucos recursos financeiros. A mulher o abandona. Alguns de seus aliados, como o padre e o médico, se mudam para o lado da justiça e da honestidade. Pedro Barros perde também o controle sobre a polícia, quando o delegado corrupto é demitido e substituído por um profissional sem compromissos locais. Traído, o coronel acaba ainda perdendo seu dinheiro e sendo obrigado a vender sua casa. O drama culmina com o personagem insandecido ateando fogo à sua casa e à toda a cidade. Vemos a igreja sendo destruída pelo fogo para desespero do padre. João Coragem encontra o sino da igreja no meio da destruição. Demonstrando que agora ele é o novo líder, João encerra a novela com um discurso conclamando o povo para reconstruir a igreja e a cidade inteira. E a novela termina com esse clamor emocionado por um esforço coletivo de reconstrução de fundação de uma nova Coroado, baseada não em algum modelo político ou ideológico, mas em valores morais positivos como honestidade, justiça, trabalho e juventude. Irmãos Coragem é um épico otimista do “país do futuro” transmitido durante os anos duros da repressão política e que pode ser interpretado alegoricamente como um panfleto anti-autoritário (Xexéu, 1996). 10

1.2 Selva de Pedra

Dois anos depois de Irmãos Coragem, Janete Clair escreveu Selva de Pedra, uma novela que parte da oposição entre uma cidade pequena, menos remota que a Coroado da novela anterior, representada pela cidade de Campos, cidade de médio porte situada ao norte do estado do Rio de Janeiro. Embora Campos não seja tão distante ou rural quanto Coroado, também representa o local das relações “tradicionais”, em oposição ao Rio de Janeiro, representado como reino das possibilidades, mas também do cinismo. Selva de Pedra é uma das novelas mais populares produzidas pela Rede Globo. Foi exibida de 12 de abril de 1972 a 13 de janeiro de 1973, tendo obtido média de 77%7. Dada sua popularidade, essa novela foi a primeira a ser re-exibida, em forma compacta, em 1975, quando a primeira versão da novela Roque Santeiro foi censurada e enquanto a emissora não produzia uma nova série. Selva de Pedra foi também re-gravada, a cores, em 1986. Enquanto Irmãos Coragem se passou principalmente em Coroado, a narrativa de Selva de Pedra é principalmente urbana. Seu cenário representa o que a literatura descreve como o mundo glamouroso do consumo, inacessível a maioria dos telespectadores. (Kehl, 1986) Selva de Pedra é sobre a trajetória de um outsider, um caipira, que vem domesticar a metrópole, uma trama que estava presente, como vimos, na trama paralela de Irmãos Coragem. Tanto os créditos, quanto as seqüências de abertura da secunda versão reforçam a maneira pela qual já na primeira versão a trama as referências à paisagem portuária carioca, aos imensos navios, aos guindastes que carregam e descarregam volumes grandes de mercadorias a serem transportados, fazem referência ao universo extra-diegético contemporâneo como o universo em que se passam os dramas retratados. A seqüência de abertura representa o brotar de imagens geradas em computador de arranhacéus que mimetizam o crescimento acelerado das árvores da floresta de concreto. Os edifícios revestidos de vidro nas janelas, brotam de uma terra avermelhada deserta de verdes. O rosto dos atores, referência ao universo diegético que se anuncia, aparece refletido na fachada dos monumentos arquitetônicos da urbe de terceiro mundo no limiar do terceiro milênio. Diferentemente de outras novelas mencionadas aqui, a música tema da novela não foi especialmente composta, nem é um clássico do repertório nacional. Selva de Pedra teve uma canção americana, “Lullaby”, como tema. A música, como outras em seu lugar foi

7 Ver McAnany, Fadul e Morales, 1997. 11 sucesso que alimentou o repertório das rádios e ajudou a vender “LPs”, mas a letra sobre a relação mãe adolescente/ filho, narrada por este, aparentemente pouco tinha a ver com a trama da novela, ou com as imagens mostradas na seqüência de abertura. Enquanto a primeira seqüência do compacto da primeira versão de Selva de Pedra apresenta o conflito entre dois irmãos, o rico que voa de helicóptero e o pobre, pregando no chão, na primeira seqüência da segunda versão, tomadas aéreas do Rio de Janeiro se alternam com tomadas em primeiro plano de um homem em um carro de luxo. Dirigido por um chauffeur, o carro do milionário nos leva por um passeio de reconhecimento através da paisagem metropolitana, pontes, avenidas e túneis. No trajeto da mansão, onde mora o personagem, para o porto, os telespectadores são apresentados ao cenário principal da trama. Tomadas curtas documentam viadutos, indústrias, navios, estivadores de capacete, sugerindo o moderno mundo do trabalho industrial como cenário da trama da novela. A escala dos navios gigantes contrasta com a escala dos pequenos trabalhadores do porto. A indústria de embarcações navais encompassa o espírito industrial urbano, o espírito da “Selva de Pedra” que talvez possa ser domesticado, como sugere o discurso longo e dramático de Simone, no momento crucial do julgamento de Cristiano no último capítulo da novela. Tanto Selva de Pedra, como Irmãos Coragem terminam com longos discursos morais que afirmam a justiça e a derrota das forças do obscurantismo que dominam, de maneiras diferentes, tanto as pequenas cidades de origem dos personagens, quanto as locações metropolitanas. As duas novelas também enfatizam a possibilidade de usar a natureza ingênua dos personagens que vêm do interior para subjugar o meio urbano, apresentado como a um só tempo terrível, ameaçador, mas atraente, liberal e glamouroso.

1.3 Verde, Amarelo e Azul: Roque Santeiro. Ao saltar de Irmãos Coragem e Selva de Pedra, produções do início dos anos 70 para a Segunda versão de Roque Santeiro, novela baseada em texto teatral de Dias Gomes, e Vale Tudo, de Gilberto Braga, estamos passando de tempos onde a televisão atingia a uma minoria de domicílios localizados na região sudeste, para tempos em que os sinais televisivos atingem um número bem maior de domicílios equipados com aparelhos televisivos, em praticamente todo o território nacional. Saltamos também de novelas confinadas ao que a indústria define como 12 domínio feminino, para novelas que lidaram explicitamente com questões políticas, afetas ao domínio masculino do espaço público. Mas as convenções narrativas do melodrama se mantêm. A comparação entre duas novelas do início dos anos 70, uma rural e uma urbana, uma considerada “realista” e outra melodramática, com dois sucessos de público e crítica dos anos 80, também uma rural e uma urbana, uma “realista” e outra “melodrama moderno”, não pretende sintetizar a história do gênero. A idéia aqui é realçar a mudança nas maneiras pelas quais novelas tomaram parte em uma esfera pública emergente. O contraste entre esses dois pares de narrativas explora as maneiras pelas quais certas convenções estabelecidas no início dos anos 70 servem de base para seriados que expandem as fronteiras do gênero, fazendo referências explícitas à nação, enquanto outras são questionadas. Comparando Roque Santeiro e Vale Tudo com Irmãos Coragem e Selva de Pedra, ironia e cinismo emergem como elementos dramáticos ausentes nos anos 70. E as cores nacionais passam a ser referências explícitas em vinhetas de abertura que apresentam narrativas que fazem referências explícitas ao imaginário nacional, bem como a eventos da conjuntura nacional. Novelas subseqüentes como Roda de Fogo, O Salvador da Pátria, Pantanal, Deus Nos Acuda e Pátria Minha, replicaram essas referências a símbolos nacionais. Vale notar que dois títulos incluem a palavra “pátria” no título. A referência explícita às cores nacionais nas vinhetas de abertura, juntamente com referências narrativas específicas a eventos políticos ou a práticas políticas conhecidas, situam as oposições convencionais entre rural e urbano, homem e mulher, pais e filhos, ricos e poderosos e pobres e desprovidos de poder em termos da nação. Roque Santeiro e Vale Tudo compartilham a estrutura narrativa, personagens arquétipos e o mesmo apelo à representar o contemporâneo. Ambas novelas produzidas no período de redemocratização, fazem referência à corrupção que caracteriza a ordem social e política brasileira. Roque Santeiro enfatiza as maneiras paradoxais pelas quais a “modernização”, encarnada em transportes e comunicação, em mulheres liberadas e sensuais, que desfrutam do mesmo tipo de liberdade sexual de que os homens desfrutam, em idéias políticas iluministas, e na razão secular, não substitui a ordem social previamente estabelecida. Contemporaneidade, representada aqui nessa pequena cidade nordestina, significa mudança, mas de maneiras inesperadas, que preservam elementos básicos. 13

As resistência das relações tradicionais de poder são simbolizadas pela persistência do coronel como mediador privilegiado entre a cidade e o mundo exterior. O coronel viaja em seu avião particular, se locomove em sua limosine. Sua autoridade inquestionável é confirmada pela decisão da heroína de ficar com ele, renunciando à fuga com o mais jovem e moderno Roque, em uma cena de último capítulo inspirada na cena final de Casa Blanca. Em Roque Santeiro, a sucessão que aconteceu em outras histórias de coronel, como Gabriela ou O Bem Amado, não ocorreu. Essa novela enfatiza a força da tradição, representada em cenários rurais e paisagens naturais, em oposição à fraqueza da modernidade, reduzida ao mundo exterior, ironicamente representado no congestionamento na vitória régia da vinheta de abertura.

1.4: Vale Tudo: Ainda as cores nacionais. Como IC, SP e Roque Santeiro, a análise das tensões entre vinheta de abertura e seqüência inicial de Vale Tudo, bem como o exame do papel do documentário nesse jogo, é revelador. Enquanto Roque Santeiro tem uma vinheta de abertura em linguagem de desenho animado e uma seqüência inicial que alude ao documentário, Vale Tudo combina documentário e melodrama de maneira específica. Essa novela apresenta uma vinheta de abertura inspirada em documentários turísticos – de viagem, os “travelogues” e uma seqüência de abertura melodramática convencional. Cada uma desses fragmentos dessa novela, e a tensão entre ambos, sintetizam as maneiras pelas quais Vale Tudo provocou atenção pública, mobilizando preocupações latentes e exercendo um efeito sinergético na esfera pública brasileira. Vale Tudo extrapolou o domínio feminino das telenovelas. Embora confinada às seções culturais dos jornais, Vale Tudo gozou de intensa cobertura jornalística, além de altos índices de IBOPE. Como acontece freqüentemente, Vale Tudo transformou-se em uma moeda comum, cujo significado e valor foi disputado em diversas arenas, por diversas forças e pessoas. A análise da vinheta de abertura e primeira seqüência, aliada à análise da abordagem presente na cobertura de imprensa e propaganda, sugere que ao discutir quem matou Odete Roitman, a mulher de negócios demoníaca, telespectadores mobilizaram uma discussão sobre corrupção política e de classe no Brasil contemporâneo. Vale Tudo foi ao ar de 16 de maio de 1988 a 7 de janeiro de 1989. A novela foi escrita por Gilberto Braga com a colaboração de Aguinaldo Silva e Leonor Brasseres, uma equipe da Segunda geração de autores globais. 14

Vale Tudo conta a história de quem está disposto a fazer qualquer coisa para subir na vida, como trair a própria mãe, roubar a sogra, sonegar impostos, enviar dinheiro ilegal para contas secretas for a do país e mesmo comercializar o próprio filho no mercado negro de bebês – mas não são punidos. A maior parte dessas práticas pode ser universalmente reconhecidas como más, mas no Brasil naquele momento, elas possuíam significado especial. Enquanto mediadora entre a narrativa e os comerciais, a vinheta de abertura introduz mais uma tensão nessas relações. A vinheta lida com ícones nacionais e rompe com convenções do documentário de viagem, trazendo imagens turísticas editadas de maneira irônica, na medida em que alterna imagens conhecidas - como praias, cidades históricas, selva - com imagens dificilmente atraentes - como pessoas pobres, inundações e explosões. Ao fazê-lo, a vinheta chama a atenção para aspectos da vida brasileira, e para locais, em geral excluídos de roteiros turísticos. Ao mostrar lado da moeda, a vinheta insinua a falsidade dos comerciais de turismo. Nesse sentido a vinheta de abertura pode ser interpretada como um antídoto para a mensagem otimista da propaganda turística. Ela pode também ser interpretada como um antídoto, como se advertisse para o fato de que uma viagem dificilmente resolverá seus problemas, ou ainda sobre como esses anúncios turísticos são superficiais e evitam abordar problemas sociais concretos, ou talvez ainda um aviso de que “nessa novela nós vamos olhar para o Brasil real com um olhar crítico em vez do olhar mascarado da propaganda turística. As interpretações listadas acima não exaurem os significados da vinheta. Essa versão crítica do travelólogo estimulou anúncios nos intervalos comerciais da novela. Em um desses anúncios, pessoas felizes aproveitam a vida desfrutando das maravilhas de um loteamento a beira mar, isoladas das tragédias nacionais, em condomínios fechados. O contraste aqui então opera entre o reino privado feliz, onde comprar parece solucionar problemas e um reino público onde não há solução à vista. Mimetizando o travelólogo, a vinheta de abertura faz a atmosfera claustrofóbica associada com o melodrama televisivo mais efetiva. Aqui a vinheta de abertura funciona tanto para estender o alcance de Vale Tudo a problemas de nacionalidade e política, e para atribuir a essas questões um senso dramático de sem solução que a narrativa em si ecoa. Em dezembro de 1988, os últimos capítulos de Vale Tudo atingiram índices de audiência acima de 80%. A novela ocupou a primeira página dos jornais, esteve na pauta das revistas de Domingo dos principais jornais. Expressando o debate gerado pela novela, no dia em que o último episódio foi ao ar, uma manchete da Folha de S.Paulo tematizou o suspense: “O país 15 descobre hoje à noite quem matou Odete Roitman”. Ironicamente, alguns dias antes Aguinaldo Silva deu declarações contrariando a norma que valoriza a repercussão que um produto cultural atinge em outros meios. Os autores da novela manifestaram sua preocupação com o fato de que a novela pudesse restringir a participação popular na vida pública (FSP 20/12/88). Independente das intenções dos profissionais que fizeram a novela, Vale Tudo mobilizou uma experiência emocional de falência nacional à qual diferentes telespectadores atribuem significados diferentes. Enquanto afirmação de impotência diante do rumo das coisas, a novela abriu espaço para a expressão coletiva de sentimentos diferentes e contraditórios sobre os rumos da nação. Alguns telespectadores possivelmente interpretaram Vale Tudo como uma crítica progressista do modernismo complexo brasileiro, um instrumento poderoso, capaz de traduzir questões da política para o cotidiano dos telespectadores no seu espaço doméstico, além de estimular a participação popular. Outros telespectadores possivelmente viram na novela um alerta para o caráter necessariamente corrupto da ordem política, que se resolveria somente com uma ordem moral rígida, ou mesmo com uma exaltação consumista e fútil do glamour. Talvez a apropriação melodramática que a novela faz da política sugira que no Brasil, as coisas não mudam. Ao invés de exaltar “O país do futuro” construído em outras novelas, em Vale Tudo o Brasil aparece enredado nas malhas repetitivas do melodrama. Atualizando ansiedades coletivas sobre o futuro, a novela mobiliza críticas sobre o desdobramento dos eventos, talvez sugerindo que se a política se tornou tão corrupta, a lógica do Vale Tudo se justifica. E a popularidade dos vilões ambiciosos, mas charmosos, reforça essa versão. A construção complexa e ambígua da nacionalidade operada pela novela contrasta também com construções posteriores do Brasil, como país de paisagens maravilhosas, mulheres e misticismo, inauguradas com “Pantanal” na Rede Manchete e posteriormente encampadas pela Rede Globo.

1.5 Irmãos Coragem, Selva de Pedra, Roque Santeiro e Vale Tudo: Construções do Brasil. Nos anos 70 e 80, de produções promocionais de companhias de sabão, as novelas vieram a ser reconhecidas como um espaço legítimo para a mobilização de diversos modelos de estrutura familiar e de relações de gênero e como espaço legítimo de interpretação e reinterpretação da nacionalidade. Elas adquiriram esse caráter como uma conseqüência não antecipada de sua busca por uma atualidade imediata, que potencializa o seu valor comercial na medida em que a torna espaço privilegiado para a propaganda de novos produtos e para a demonstração pedagógica de 16 novos hábitos, associados a estilos de vida “modernos”. Como explicar que apesar do universo retratado nessas novelas não representar a diversidade étnica e racial brasileira,8 apesar da qualidade de vida dos personagens da ficção ser apresentada de acordo com padrões visivelmente mais elevados que os padrões vigentes na sociedade brasileira, as novelas apareçam como representação verossímil do Brasil? A questão é aonde reside a legitimidade de representações sociologicamente discrepantes da sociedade? A verossimilhança do universo ficcional das novelas é construída através da apropriação recorrente de elementos da linguagem jornalística para aludir a eventos da conjuntura, elementos da cultura e da história do Brasil9. Misturando convenções da ficção com convenções da notícia, as novelas foram fazendo referências a repertórios nacionais e inadvertidamente se estabeleceram como repertório compartilhado, espaço virtual promíscuo, cuja verossimilhança depende da apropriação e elaboração de elementos do cotidiano – uma convenção inaugurada nos folhetins do século XIX. Esse repertório compartilhado é fruto também da agenda ideológica dos profissionais que inventaram o gênero. Em sua busca pelo imediato, as novelas combinaram convenções formais retiradas do repertório da ficção televisiva feita para mulher com convenções retiradas da notícia e do documentário. Ao fazê-lo, novelas se oferecem como conexão entre o domínio privado da vida doméstica e o domínio público da política, forjando um estranho senso de comunidade nacional. A seqüência de documentário esportivo no início de Irmãos Coragem situa o drama do irmão que deixa sua cidadezinha natal, longínqua e anacrônica, mas familiar, para vencer na cidade grande, glamourosa e cosmopolita, um drama situado no espaço – no território brasileiro, nas paisagens do estado de Minas Gerais e da metrópole, e no tempo – contemporâneo ao da narrativa. A coincidência no tempo e no espaço permite e reforça a conexão entre o drama privado dos personagens e uma ampla comunidade possível de telespectadores através do país. De maneira semelhante, Selva de Pedra, como o título sugere, define o domínio diegético da narrativa como o domínio da cidade. As tomadas documentais de ruas, calçadas, carros, faróis, edifícios na vinheta aludem ao anonimato da vida pública na cidade grande. Nesse contexto, a história convencional do homem que perde a ingenuidade ao entrar em contato com a atmosfera frívola de seus parentes ricos, a vingança de sua mulher, sua troca de identidade, e a reconciliação

8 Para uma pesquisa detalhada sobre a sub-representação dos negros nas novelas ver Areaújo, 2000. 9 Para uma discussão da apropriação da história nas novelas ver Kornis, 2000. 17 do casal em um final clássico do melodrama, selada pela notícia da gravidez dela, representa os dilemas com os quais se defrontam migrantes que nesses anos trocaram o habitat rural pelo ambiente urbano. Selva de Pedra tematiza os desafios morais com os quais se defrontam os que desejam manter seus laços de família e comunitários e subir na escala social na cidade grande, um argumento muito parecido com o de Vale Tudo. Ambas as novelas têm em comum a problematização da trajetória de personagens originários da metrópole, que por motivos diversos se afastaram e retornam para ascender na escala social. A vocação de Vale Tudo para falar do Brasil é enfatizada na vinheta de abertura, em estilo de montagem, que contrasta com sua narrativa convencional e repetitiva de amor e traição. Aqui, como em outras novelas, tomadas aéreas de paisagens específicas pontuam a narrativa, situando o drama em locais facilmente identificáveis. Essa convenção narrativa realiza a vocação da televisão em estender o olhar do telespectador a lugares distantes, acrescentando um motivo turístico que vai consolidando imagens de locais e associando-os a determinados modos de conduta na vida cotidiana. Mas ela também reforça o senso de pertencimento a uma comunidade imaginária, uma que se torna menos abstrata e mais familiar na exibição de paisagens visuais. Roque Santeiro é explicitamente um drama sobre uma cidade que vive de uma mentira. A narrativa apela a conhecidas artimanhas melodramáticas como a troca de indentidade. Mas aqui ao invés da esposa que finge estar morta para escapar à perseguição de seu marido, de Selva de Pedra, temos um homem que se finge de morto para fugir do confinamento e da pobreza em sua cidade natal com dinheiro suficiente para se estabelecer e vir a conhecer o mundo exterior. Como a personagem feminina de Selva de Pedra, Roque volta e a identidade disfarçada oferece motivo para mover a história. Ambos movidos por motivos morais, ela pelo desejo de vingança, ele pela culpa, os personagens disfarçados vão aos poucos se revelando, oferecendo assuntos para os capítulos diários. A troca de identidades está também presente em Irmãos Coragem, na personalidade atormentada e literalmente dividida da protagonista interpretada por Glória Menezes. Se as convenções desenvolvidas na produção de novelas mesclam gêneros narrativos e gêneros masculino e feminino permitindo a conexão entre o doméstico e o político de maneira específica, as oposições que movem as 4 narrativas analisadas contribuíram para forjar a originalidade dessa experiência. As narrativas dessas novelas se desenvolvem em torno de uma tensão principal entre modernidade e tradição estruturadas em termos de uma oposição entre 18 locações metropolitanas e pequenas cidades do interior. Essas oposições principais comandam uma série de oposições entre ricos e pobres, poderosos e desprovidos de poder, honestos e desonestos, pais e filhos, adultos e jovens, homens e mulheres. Ao construir universos classificados como “modernos”, que se opõem a universos classificados como “tradicionais”, essas novelas aludiram a um paradigma persistente de representação do Brasil como o “país do futuro”, um paradigma que de alguma forma referenciou os militares e os comunistas, a direita e a esquerda. Ao captar e expressar com maestria o universo ideológico no interior do qual diversas forças políticas se posicionavam, as novelas se tornaram um espaço público privilegiado, um que estabeleceu conexões crescentes com outros domínios públicos.

Referências: