Xxv Encontro Anual Da Associação Nacional De Pós-Graduação E Pesquisa Em Ciências Sociais
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XXV ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS SEMINÁRIO TEMÁTICO: ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO A CONSTRUÇÃO DA VEROSSIMILHANÇA NAS NOVELAS Esther Hamburger Escola de Comunicações e Artes Universidade de São Paulo Agosto de 2001 (trabalho em andamento) 2 As novelas brasileiras no final dos anos 70 e 80, podem ser pensadas como um produto local, alternativo aos textos importados e aos profissionais oriundos de outros países da América Latina. O produto nacional se diferenciava dos produtos importados pela referência à elementos, eventos e cenários brasileiros, cada vez mais situados em uma temporalidade contemporânea. Centradas em tramas e dramas familiares, as novelas nacionais vincularam o domínio doméstico, representado nos dilemas cotidianos da vida conjugal, em conflitos de geração, em relações amorosas, traições e lealdades, com o domínio da política nacional, representado nos debates da conjuntura sobre padrões legítimos de comportamento, referências a eventos, cores e símbolos da política nacional. A Rede Globo alcançou a preferência dos telepectadores através de uma combinação de injunções políticas com o regime militar1 e uma grade de programação fixa, baseada na combinação de novelas e jornais, conhecida como “sanduíche” e que pretendia transmitir um sentido de contemporaneidade, uma agilidade na conexão com o mundo, combinando certas convenções técnicas e formais presentes tanto nas novelas como nos jornais. No início dos anos 70, a rede Globo definiu uma série de convenções que formaram o modo narrativo que foi seguido até o final dos anos 80. Essa série de convenções conservou intacta a estrutura melodramática que baseia as novelas.2 As narrativas são movidas por quatro oposições - de classe social, gênero, geração e região geográfica - agrupadas em torno das categorias genéricas de “tradicional” e “moderno”, categorias presentes na teoria social e no discurso político e cultural dos anos 50 e 60, e que as novelas popularizaram. Em oposição a suas antecessessoras, e seguindo a linha sugerida pela pioneira Beto Rockfeller, as novelas produzidas pela Rede Globo no período analisado, privilegiaram o imediato, atual e tangível, ao remoto e fantasioso, conectando plots românticos a representações verossímeis da vida cotidiana. Essa versão eletrônica do romance de folhetim do século XIX3 combina convenções advindas do repertório da notícia e do documentário. Este trabalho analisa 4 novelas em ordem cronológica, comparando as maneiras através das quais elas conectam o doméstico e o político, fazendo referências peculiares à nação. A idéia é 1 Sobre as relações da emissora com o regime militar ver por exemplo, Kehl, 1986 e Ortiz, 1987. 2 Ver Xavier (1997 e 2000), para uma definição de melodrama e para a base melodramática de uma mini-série; ver Joyrich, 1997 para uma definição das convenções formais do melodrama televisivo. 3 A origem folhetinesca da novela foi apontada por Ortiz (1987) e Meyer (1996) entre outros e é central na análise desenvolvida aqui. É o fato de ser feita enquanto está indo ao ar que permite que a novela 3 discutir as convenções formais através das quais as novelas da Globo definem as bases de um sistema de representação verossímil em que o contemporâneo é sucessivamente atualizado, no qual gêneros definidos como femininos e masculinos, como a ficção e a notícia, se interpenetram, e no qual questões domésticas privadas ganham expressão pública e questões públicas encontram representação privada. Veremos como as maneiras específicas como as novelas analisadas combinam convenções associadas ao repertório da ficção televisiva (pensada como feminina), com convenções formais retiradas do repertório da notícia e do documentário (pensada como masculina). As maneiras através das quais o espaço diegético da narrativa é organizado e as vezes, rompido, em conexão com referências extra-diegéticas constituem objeto de interesse particular aqui, demonstrando como as novelas redefinem relações da ficção e da notícia, do feminino e do masculino.4 1.1. Irmãos Coragem Com Irmãos Coragem, as novelas e a rede Globo, assumiram a liderança da audiência de televisão. A primeira seqüência do compacto de duas horas a que tivemos acesso mostra um final de jogo emocionante no Maracanã, um gancho que alude à euforia futebolística reinante em 1970, no momento em que a novela foi ao ar. A seqüência mimetiza a narração futebolística de rádio e televisão. O vocabulário utilizado, a entonação de voz, a construção da narrativa sugerem um locutor de futebol transmitindo uma final de campeonato carioca, um clássico Fla-Flu. Como uma locução convencional, a narrativa descreve a emoção coletiva que enlaça torcedores e jogadores no estádio. O locutor capta e incorpore interferências e ruídos das mais diversas ordens, desde pressões advindas do compostamento dos índices do Ibope, até eventos, modas, ou pressões políticas. 4 Existem poucas análises empíricas de telenovelas, entre as quais os trabalhos pioneiros de Maria Rita Kehl (1986), Jane Sarques (1986) e Ondina Fachel Leal (1986), que lidam com novelas que estavam no ar no momento em que conduziam suas respectivas pesquisas. A falta de arquivos com fitas de novelas já transmitidas está em parte relacionada com essa precariedade analítica. O melhor arquivo existente, o Centro de Documentação (CEDOC) da Rede Globo, possui somente o primeiro e o último capítulo de cada novela, além de versões compactas de algumas novelas. O arquivo que restou da Rede Tupi, armazenado na Cinemateca e na TV Cultura, ainda não está disponível ao público. Esse texto se baseia na versão compactada de Irmãos Coragem e Selva de Pedra, produzidas e transmitidas como parte das comemorações de 15 anos de Rede Globo, em 1980 e nos primeiros e últimos capítulos de Roque Santeiro e Vale Tudo.. 4 salienta o suspense com uma seqüência de frases curtas e enxutas. É o minuto final de um clássico. O jogo está empatado. Os torcedores acompanham com a respiração suspensa uma jogada perigosa. O narrador clama por atenção. Ele mesmo segura a sua respiração. Ele então registra o gol e a reação apaixonada, a “explosão, a loucura, o grito da multidão”. O narrador emprega os termos técnicos adequados e lança mão dos termos convencionais no futebol brasileiro, como “torcida rubro-negra”, para designar os torcedores do Flamengo, ou termos como o “miolo” para designar o meio do campo. A narrativa sugere que os telespectadores poderiam estar assistindo a um jogo de futebol. As imagens também seguem as convenções adotadas pela reportagem esportiva. Uma seqüência “documental” mostra o estádio lotado de torcedores em um Domingo de clássico. Planos abertos revelam a vibração da multidão com a vitória do Flamengo, o time mais popular do Rio de Janeiro, sobre o Fluminense, conhecido como o time da elite carioca. Duda (Claudio Marzo), um dos três irmãos Coragem, que dão nome à história, veste o uniforme do Flamengo. Das arquibancadas fãs mobilizam as suas bandeiras. Ouve-se o zoar da torcida. As imagens reforçam o tom de atualidade que o texto sugere e ajudam a construir o suspense. Planos abertos se alternam com planos médios de fãs uniformizados e com planos de Duda avançando em direção ao gol no último minuto de jogo. Duda celebra a vitória com o time. O jogador se dirige também à torcida. Os repórteres entram em campo. O jogador é assediado pelos repórteres. Os telespectadores da novela acompanham a entrevista do personagem como se tivessem assistindo às declarações de seu jogador favorito. O repórter faz a pergunta convencional: quais são os planos de Duda depois dessa vitória espetacular, que o consagrou no Flamengo. O personagem olha para a câmera, o cinegrafista o enquadra no melhor estilo da reportagem documental, o personagem jogador revela que vai visitar sua família em sua cidade natal, Coroado. Ao falar ao microfone, e reconhecer a presença da câmera, olhando diretamente para o telespectador, através do aparelho videográfico, o ator rompe o domínio diegético da narrativa. A seqüência se apropria das convenções que definem o gênero documental e com isso transmite a sensação de contemporaneidade. Ao se dirigir aos telespectadores, Duda se dirige também a sua família na ficção, a não ser pelo fato, que os telespectadores saberão em seguida, que a televisão ainda não chegou à cidade de Coroado. 5 É 29 de junho de 1970 quando o primeiro capítulo de Irmãos Coragem vai ao ar. A Copa do Mundo de futebol no México, acabara há pouco. O Brasil se consagrara tricampeão mundial de futebol, trazendo para casa definitivamente a taça Jules Rimet, troféu disputado durante décadas pelas representações nacionais dos diversos países. Os jogos dessa Copa Mundial de futebol foram transmitidos ao vivo para a parcela do território nacional que então recebia sinais de televisão e estimularam uma onda de celebração nacionalista. Ao focalizar o futebol, Irmãos Coragem tratou de um assunto que ocupava grande parte dos brasileiros. A referência ao esporte nacional era um gancho que conectava a narrativa do folhetim eletrônico com um assunto da conjuntura que despertava interesse amplo. O futebol conecta a vida na várzea ao mundo do espetáculo global. O futebol não constitui tema central na história, mas compõe uma trama secundária. O futebol motiva um dos três protagonistas, irmãos Coragem a deixar sua pequena cidade natal, no interior do Brasil, onde o cavalo ainda é meio de transporte e onde a luz elétrica ainda não chegou na zona rural, para ascender socialmente longe de sua família na sedutora, mas “imoral” Rio de Janeiro. O futebol perde importância ao longo da história, quando Regina Duarte e Claudio Marzo são transferidos para a nova novela das 7hs e seus personagens, Duda e Ritinha, de volta à metrópole, desaparecem de cena. Retornando à primeira seqüência de Irmãos Coragem, a decisão do jogador de futebol, de comemorar o seu sucesso retornando a suas raízes na sua cidade natal, Coroado, leva os telespectadores do Rio de Janeiro à distante Coroado, pequena cidade rural de economia garimpeira.