UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO POLÍTICO E ECONÔMICO

CIDADANIA E PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL Paradigma da Operação Lava Jato

Matheus Castro Almeida Prado de Siqueira

SÃO PAULO – 2018

Matheus Castro Almeida Prado de Siqueira

CIDADANIA E PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL Paradigma da Operação Lava Jato

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito Político e Econômico.

Orientador: Professor Doutor José Carlos Francisco

SÃO PAULO – 2018

S618c Siqueira, Matheus Castro Almeida Prado de.

Cidadania e princípio do juiz natural : paradigma da Operação Lava Jato / Matheus Castro Almeida Prado de Siqueira. – 2018.

153 f. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2018. Orientador: José Carlos Francisco. Referências bibliográficas: f. 12 8-133.

1. Cidadania. 2. Princípio do juiz natural. 3. Princípio do Promotor

natural. 4. Competência jurisdicional. 5. Operação Lava Jato. I. Francisco, José Carlos, orientador . II. Título

CDDir 341.438

Bibliotecário Responsável: Hernani Correa Medola – CRB 8/9942

Agradecimentos

A realização deste trabalho não seria possível sem o suporte e o apoio incondicional dados pelos meus pais Aurea e Francisco os quais estão sempre dispostos a me ajudar e auxiliar em quaisquer das questões da vida.

Agradeço também ao meu orientador Professor Doutor José Carlos Francisco pelo incentivo ao estudo da temática do princípio do juiz natural, bem como por todo o auxílio dado para o seu adequado desenvolvimento.

Agradeço aos Professores Doutores Guilherme Madeira Dezem e José Marcos Lunardelli, pelas valiosas e construtivas críticas ao trabalho quando da banca de qualificação.

Agradeço ao Professor Doutor Felipe Chiarello por todo o apoio e incentivo.

Agradeço, finalmente, ao meu irmão, Marcelo, por todas as discussões e ideias trocadas a respeito deste trabalho.

Muito obrigado!

Resumo

Este trabalho trata da temática da cidadania relacionada ao princípio do juiz natural tendo por objetivo central verificar os elementos do referido princípio na Constituição Federal e sua importância para a cidadania plena no Estado Democrático de Direito, bem como a sua aplicabilidade na denominada Operação Lava Jato. Dessa forma, aborda-se a importância dos princípios postos pela Constituição Federal e da sua correta interpretação, bem como o contexto histórico e desenvolvimento do princípio do juiz natural nas constituições brasileiras e nos tratados internacionais. Verifica-se, ainda, os elementos do princípio do juiz natural e o tratamento dado a eles pela Constituição Federal de 1988 bem como sua extensão ao princípio do promotor natural e do delegado natural. Após, é analisada a questão da jurisdição e da competência e sua interação com o princípio, sendo, então, expostas as regras de concretização da competência no processo penal e as consequências de sua violação. Por fim, verifica-se a consistência do princípio na denominada Operação Lava Jato sendo abordado os aspectos da especialização de varas por resoluções de tribunais, bem como da própria competência para julgar os casos da operação, aos quais foram constatadas violações ao princípio constitucional tanto no que se refere à criação de varas especializadas, quanto às regras de competência postas pela legislação infraconstitucional.

Palavras-chave: Cidadania, princípio do juiz natural, princípio do promotor natural, competência jurisdicional e Operação Lava Jato.

Abstract

This dissertation addresses the subject of citizenship related to the principle of the natural judge, with the central objective of verifying the elements of such principle in the Federal Constitution and its importance for full citizenship in the Democratic State of Law, as well as its applicability in the so - called Car Wash Operation. Thus, an analysis of the importance of the principles’ set forth by the Federal Constitution - and their correct interpretation - is carried out, as well as an analysis of the historical context and development of the principle in Brazilian constitutions and international treaties. The elements of the natural judge’s principle and the treatment given to them by the Federal Constitution of 1988 as well as its extension to the principle of the natural prosecutor and the natural delegate is also verified. Afterwards, the question of jurisdiction and its interaction with the principle, the rules of jurisdiction in the code of criminal procedure and the consequences of their violation are analyzed. Finally, the consistency of the principle in the Car Wash Operation is scrutinized, being also examined the aspects of the specialization of lower courts by court’s resolutions, as well as the jurisdiction to judge the cases of the operation, where upon violations to the constitutional principle in both the setting up of specialized lower courts and the jurisdiction rules set forth by infra-constitutional legislation have been identified.

Keywords: Citizenship, principle of the natural judge, principle of the natural prosecutor, jurisdiction and Car Wash Operation.

Sumário

Introdução...... 8 1. EXERCÍCIO DA CIDADANIA POR MEIO DO ACESSO À JUSTIÇA INDEPENDENTE E IMPARCIAL...... 10 1.1 A relevância dos princípios processuais postos pela Constituição...... 15 1.2 O princípio do juiz natural garantidor da independência e da imparcialidade do julgamento...... 24 1.3 O surgimento do princípio do juiz natural e o seu contexto histórico...... 24 1.4 Evolução do princípio do juiz natural nas constituições brasileiras...... 27 1.5 Afirmação do princípio do juiz natural nas demais sociedades democráticas contemporâneas...... 32 1.6 A consolidação do princípio no âmbito dos tratados internacionais...... 33 1.6.1 O Tribunal de Nuremberg como marco de descumprimento do princípio do juiz natural...... 35 1.6.2 A criação do Tribunal Penal Internacional...... 37 1.6.3 Tratados internacionais e a proteção ao princípio do juiz natural...... 38 1.6.4 A hierarquia e a efetividade dos tratados internacionais na Constituição Federal...... 41 2. ELEMENTOS DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E SUA EXTENSÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL...... 45 2.1 A imparcialidade como elemento fundamental ao princípio do juiz natural...... 49 2.2 Independência elementar ao princípio do juiz natural...... 52 2.3 Acusação justa com o princípio do promotor natural...... 57 2.4 Princípio que também se estende ao delegado natural...... 64 2.5 Arbitragem e princípio do juiz natural...... 68 2.6 Princípio do juiz natural relacionado à jurisdição e à competência...... 71 2.7 Competência no processo penal...... 75 2.8 Consequências do descumprimento do princípio do juiz natural...... 80 3. O CASO DA OPERAÇÃO LAVA JATO E A CONSISTÊNCIA DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO...... 86

3.1 A criação de Varas especializadas confrontada com o princípio do juiz natural...... 89 3.1.1 Finalidade da especialização – julgamentos mais céleres e efetivos...... 90 3.1.2 Especialização por resoluções dos tribunais: A reserva de lei, a separação dos poderes e o princípio do juiz natural...... 94 3.2 Análise da competência na Operação Lava Jato...... 99 3.2.1 Os institutos da conexão e da continência e a relevância para a definição da competência na operação...... 101 3.2.2 Critérios de definição do foro prevalecente na Operação Lava Jato e sua eventual conformidade com o princípio do juiz natural...... 109 3.2.3 A questão de ordem apreciada pelo Supremo Tribunal Federal em virtude da Reclamação nº 17.623/PR...... 123 Conclusão...... 126 Referências...... 128 Anexos...... 134 Decisão proferida na exceção de incompetência nº 5044009-71.2014.404.7000 (ação penal nº 5025687-03.2014.404.7000)...... 135 Decisão proferida na exceção de incompetência nº 5029451-94.2014.404.7000 (ação penal nº 5025699-17.2014.404.7000)...... 142 Decisão proferida na exceção de incompetência nº 5052019-07.2014.404.7000 (ação penal nº 5047229-77.2014.404.7000)...... 149

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Introdução

A presente dissertação pretende analisar a relação do desenvolvimento da cidadania plena vinculada ao princípio do juiz natural, instituto imprescindível ao Estado Democrático de Direito. Nessa esteira, a Constituição Federal de 1988, ao colocar como um de seus valores supremos a justiça, afirmou o mencionado princípio em sua lista de direitos fundamentais.

Desse modo, questiona-se se os dispositivos trazidos pela Carta Cidadã resguardam adequadamente o direito do jurisdicionado de obter acesso a uma justiça independente e imparcial.

Verificada a interação do princípio do juiz natural com as demais normas constitucionais, analisar-se-á também a sua relação com as normas de competência postas na Constituição e na legislação infraconstitucional.

Finalmente, considerando os aspectos abordados do princípio, será analisada a sua aplicabilidade na denominada Operação Lava Jato, ao se considerar a complexidade da referida operação, de inegável importância no cenário político e econômico do país e os diversos questionamentos acerca da consistência do princípio na operação.

Com efeito, vincula-se o presente estudo a linha de pesquisa da cidadania modelando o Estado, ao se considerar a elaboração de aprofundada análise do mencionado princípio e sua essencialidade para a obtenção da cidadania plena no Estado Democrático de Direito.

Para tanto, essa dissertação abordará em seu capítulo primeiro, justamente a amplitude do conceito de cidadania e sua relação com o acesso à justiça independente e imparcial, momento no qual será analisada a sistemática de interpretação principiológica na Constituição Federal, bem como o contexto histórico do surgimento no princípio, além de sua sedimentação ao longo das Constituições brasileiras e na legislação estrangeira. Por fim, será exposta a relação entre princípio do juiz natural e

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os tratados internacionais bem como a interação desses tratados com a Constituição brasileira.

Em seu capítulo segundo, serão analisados os elementos do princípio do juiz natural na Constituição Federal, apontando-se as garantias e as vedações determinadas pela referida Carta ao Poder Judiciário e aos seus membros, de modo a garantir a imparcialidade e a independência dos julgamentos. Após será estudada a extensão do princípio do juiz natural aos princípios do promotor natural e do delegado natural, bem como sua interação com o instituto da arbitragem.

Será, ainda, abordada a questão da jurisdição e da competência como forma de materialização do princípio, momento no qual se analisará as regras de competência, em especial, no processo penal, bem como as consequências da violação dessas regras no que tange ao princípio do juiz natural.

Finalmente, em seu derradeiro capítulo, será analisada a aplicação do princípio do juiz natural ao caso da Operação Lava Jato. Referida operação, que atingiu proporção incomum no cenário brasileiro, investigou – e ainda investiga – crimes em diversas partes do território nacional, mas, não obstante tal fato, tramitou inicialmente apenas perante o juízo especializado da 13ª Vara Federal de Curitiba, situação que gera frequentes indagações a respeito da observância das normas de competência e, portanto, do próprio princípio do juiz natural.

Desse modo, será verificada a problemática da especialização de varas por resoluções de tribunais, sua constitucionalidade e a sua interação com o princípio do juiz natural. Após, será feita a devida averiguação da competência da mencionada Vara Federal e a sua eventual conformidade com o princípio, por meio da análise dos principais argumentos utilizados pelo juízo para afirmar sua competência quando do julgamento das diversas exceções de incompetência opostas pelos réus.

Para elaboração da presente dissertação foi realizada pesquisa bibliográfica, normativa e jurisprudencial tendo consistido no estudo dos principais livros e artigos jurídicos a respeito dos temas constitucionais e processuais tratados, bem como da jurisprudência e da própria legislação pertinente.

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1. EXERCÍCIO DA CIDADANIA POR MEIO DO ACESSO À JUSTIÇA INDEPENDENTE E IMPARCIAL

A cidadania plena, conceito oriundo da aderência da integralidade de direitos civis, políticos e sociais aos cidadãos de um determinado Estado, é um ideal perseguido por muitas nações.

Ainda que o conceito de cidadania possua dose de considerável abstração, pode-se afirmar que cidadão é o indivíduo que possui direitos e deveres perante o Estado Democrático de Direito, sendo a cidadania a possibilidade de os indivíduos inseridos no Estado usufruírem desses direitos, ao mesmo tempo em que estão sujeitos a deveres na esfera civil, política e social.

Aqui, vale ressaltar, conforme expõe Jaime Pinsk, que:

Cidadania não é uma definição estanque, mas um conceito histórico, o que significa que seu sentido varia no tempo e no espaço. [...] Não apenas pelas regras que definem quem é ou não titular da cidadania, mas também pelos direitos e deveres distintos que caracterizam o cidadão em cada um dos Estados-nacionais e contemporâneos.1

Embora a conquista da plenitude da cidadania seja de difícil acesso, tem-se, numa cronologia lógica e natural, que se desenvolve primeiramente com a conquista dos direitos civis, seguidos pelos direitos políticos e, por fim, pelos direitos sociais.

Nesse sentido, os direitos civis, na definição trazida por José Murilo de Carvalho, são:

[...] os direitos fundamentais à vida à liberdade, à propriedade, à igualdade, perante a lei. Eles se desdobram-na garantia de ir e vir, de escolher o trabalho, de manifestar o pensamento, de organizar-se, de ter respeitada a inviolabilidade do lar e da correspondência, de não ser preso a não ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, de não ser condenado sem processo legal regular. São direitos cuja garantia se baseia na existência de uma justiça independente, eficiente, barata e acessível a todos. São eles que garantem as relações civilizadas entre as pessoas e a própria existência da

1 PINSK, Jaime. História da cidadania. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 2010, p. 8.

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sociedade civil surgida com o desenvolvimento do capitalismo. Sua pedra de toque é a liberdade individual.2

Já os direitos políticos se referem ao direito a participação do cidadão no governo, como o direito ao voto e da livre criação e participação em partidos políticos, essenciais à democracia.

Por fim, os direitos sociais garantem ao cidadão acesso à educação, a um sistema de saúde adequado, à aposentadoria e ao pleno emprego. Os direitos sociais também são responsáveis por amenizar a desigualdade social trazida pelo capitalismo, visando a uma verdadeira justiça social.3

O primeiro país a desenvolver a cidadania segundo a cronologia exposta foi a Inglaterra. No caso inglês, após a consolidação os direitos civis, o povo, por meio de veementes protestos, obteve seu direito ao voto, consolidando seus direitos políticos. Com o voto popular, foram eleitos diversos membros do Partido Trabalhista, os quais foram responsáveis pela introdução dos direitos sociais no país.4

Aqui, importante salientar que embora haja clara lógica na ordem de obtenção desses direitos fundamentais à cidadania plena, tem-se que esta não se coloca como uma regra absoluta. Um exemplo disso é o caso brasileiro, no qual se viu uma verdadeira inversão na ordem de obtenção desses direitos.

No Brasil, os direitos sociais se sobressaíram, tendo sua consolidação vindo antes mesmo dos direitos civis e políticos.

Como é cediço, a abolição da escravidão no Brasil ocorreu muito tardiamente, apenas em 1888. Nesse período até o ano de 1930, vigorou no Brasil o predomínio do coronelismo, no qual as pessoas se sujeitavam a “lei do coronel” e não usufruíam

2 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O longo caminho. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 9. 3 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O longo caminho. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 10. 4 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O longo caminho. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 11.

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efetivamente de suas liberdades individuais ou de quaisquer outros direitos civis e políticos.

Esse cenário foi alterado de maneira peculiar com o início da era de Getúlio Vargas (de 1930 até 1945 e de 1951 até 1954). Embora o referido governo não tenha trazido avanços significativos quanto aos direitos civis e políticos, pois se tratava de uma ditadura, os direitos sociais ganharam destaque com fortalecimento dos sindicatos, a aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, além de consideráveis avanços na área da previdência.

Nesse ponto, José Murilo de Carvalho traz adequada crítica a esse processo:

Se os avanços dos direitos políticos após o movimento de 1930 foi limitado e sujeito a sérios recuos, o mesmo não se deu com os direitos sociais. [...] O período entre 1930 e 1945 foi o grande momento da legislação social. Mas foi uma legislação introduzida em ambiente de baixa ou nula participação política e de precária vigência de direitos civis. Este pecado de origem e a maneira como foram distribuídos os benefícios sociais tornaram duvidosa sua definição como conquista democrática e comprometeram em parte sua contribuição para o desenvolvimento de uma cidadania ativa.5

Apesar dos inegáveis avanços relativos aos direitos sociais, a ditadura de Getúlio Vargas, como frisado, afastou grande parte dos direitos políticos e civis da população, como usualmente ocorre em qualquer regime ditatorial.

Com o fim da era de Getúlio Vargas, sobreveio no Brasil período de crescimento de direitos civis e políticos com a volta da liberdade de manifestação do pensamento e com a realização de eleições, no qual se sucederam diversos presidentes, dentre eles, Juscelino Kubitscheck responsável pela promoção de grandes obras de infraestrutura e significativo avanço econômico.

Essa guinada para o progresso, contudo, não durou até 1964 ano em que, após o fracassado governo de Jânio Quadros, a instabilidade democrática e institucional culminou no golpe militar que perdurou de 1964 até 1985.

5 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O longo caminho. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 110.

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O período da ditadura militar, assim como já ocorrera na ditadura de Getúlio Vargas, foi marcado pelo predomínio e pelo autoritarismo do Poder Executivo sobre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, a população teve tolhido o direito à liberdade de expressão e manifestação, o direito de voto, bem como de pleno acesso à justiça.

No que se refere a restrição e a clara influência que o regime militar teve perante o Poder Judiciário, deve-se destacar o Ato Institucional nº 2 que reformou o Poder Judiciário para aumentar o número de juízes dos tribunais superiores, nomeando partidários do regime, bem como o Ato Institucional nº 5 que além de fechar o Congresso Nacional, suspendeu o habeas corpus para crimes contra a segurança nacional.

Ademais, como é cediço, houve, no período militar, verdadeira suspensão velada do devido processo legal e dos princípios e garantias processuais dos cidadãos com inúmeras execuções sumárias de opositores do regime.6

Essa triste e desastrada situação, evidentemente, reduziu muito os direitos civis e políticos da população brasileira. Tal contexto histórico, deixa evidente a importância e a relevância de, terminado o regime militar, ter-se restituído o Estado Democrático de Direito no Brasil, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que assegurou o retorno da democracia, da liberdade de expressão e da separação dos poderes, ambiente favorável ao desenvolvimento da cidadania.

Desde seu preâmbulo, nota-se que a Constituição Federal de 1988 reservou especial atenção para a proteção dos direitos sociais e individuais dos cidadãos, prezando pela igualdade e pela paz na ordem interna e internacional, veja-se:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem

6 Como se denota, por exemplo, da seguinte reportagem publicada pelo jornal Folha de São Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/05/chefe-da-cia-disse-que-geisel-assumiu-controle-sobre execucoes-sumarias-na-ditadura.shtml. Acesso em 15.06.2018.

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interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Além disso, logo em seu artigo primeiro, a Carta afirma seus fundamentos na soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e no pluralismo político. Estabelece também, em seu artigo terceiro, seus objetivos fundamentais, quais sejam a construção de uma sociedade livre justa e solidária, o desenvolvimento social, a erradicação da pobreza e redução das desigualdades e a promoção do bem sem qualquer discriminação.

Nessa esteira, Eduardo C.B. Bittar reitera a importância da Constituição para o soerguimento do Estado Democrático de Direito, funcionando como uma diretriz para o progresso social:

Se uma Constituição é, acima de tudo, documento do povo de um Estado, e é nesta medida que ela não somente retrata os valores assentados como valores-norte, como também se torna a meta axiológica instituída como referência-guia para a atuação das instituições sócio-políticas e jurídicas em operação numa sociedade, seu compromisso é de fato conduzir a distribuição de justiça produzindo caminhos para o desenvolvimento sócio-humano. Isto significa dizer que uma Constituição representa um documento de fundamental valia para a criação de uma cultura da cidadania. O compromisso primeiro de uma Constituição, neste sentido, é o de permitir que a ética viceje, no convívio social, estruturando condições de justiça distributiva impeditivas da excessiva desigualdade social, fator de forte desarranjo social.7

Ademais, justamente devido a esse passado de prejuízos para a democracia e para os demais direitos civis, com significativo descrédito da população na justiça, a Constituição de 1988 se preocupou em afirmar o amplo acesso à justiça aos seus cidadãos, bem como a garantia de um julgamento justo por um juiz previamente competente, independente e imparcial, conforme se extrai do artigo 5º, incisos XXXV, XXXVII, LIII da Constituição Federal8.

7 BITTAR, Eduardo C. B. Ética, cidadania e constituição: o direito à dignidade e à condição humana. Revista brasileira de direito constitucional, v. 8, n. 1, 2006, p. 126. 8 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; [...] XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção; [...]

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Nesse sentido, a Constituição de 1988, fundada na separação e harmonia entre os três poderes (vide art. 2º9), outorgou plena autonomia administrativa ao Poder Judiciário, garantindo também aos magistrados a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos, de modo a preservar a imparcialidade das decisões judiciais. Nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco:

[...] confiou ao Judiciário papel até então não outorgado por nenhuma outra Constituição. Conferiu-se autonomia institucional, desconhecida na história de nosso modelo constitucional e que se revela, igualmente, singular ou digna de destaque também no plano do direito comparado. Buscou-se garantir a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário. Assegurou-se a autonomia funcional dos magistrados. O modelo presente, no entanto, consagra o livre acesso ao Judiciário. Os princípios da proteção judicial efetiva (art. 5º XXXV), do juiz natural (art. 5º XXXVII e LIII) e do devido processo legal (art. 5º, LV) têm influência decisiva no processo organizatório da Justiça, especialmente no que concerne às garantias da magistratura e à estruturação dos órgãos.10

Essa inequívoca independência entre os poderes e afirmação de direitos fundamentais tornou a Carta conhecida como “Constituição Cidadã”, pois garante aos cidadãos, após longo período de precariedade de direitos, ao menos teoricamente, a possibilidade de exercer e usufruir de seus direitos e deveres civis, políticos e sociais, essenciais ao Estado Democrático de Direito e ao exercício da cidadania.

1.1 A relevância dos princípios processuais postos pela Constituição

A Constituição Federal de 1988, fundada nos ideais democráticos e nos valores da cidadania, trouxe importantes princípios garantidores dos direitos fundamentais. Desse modo, deve-se, primeiramente, enfatizar a importância dos princípios para a correta interpretação e aplicação das normas jurídicas.

Isso porque, tem-se que os princípios trazidos pela Constituição Federal se colocam como verdadeiros pilares para aplicação do direito, devendo ser

LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; [...]. 9 Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. 10 MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 991.

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integralmente respeitados e servindo de base para a interpretação da lei. A esse respeito, Luis Roberto Barroso afirma o seguinte:

O ponto de partida do interprete há que ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui. A atividade de interpretação da Constituição deve começar pela identificação do princípio maior que rege o tema a ser apreciado, descendo do mais genérico ao mais especifico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie. [...] Cabe-lhes, em primeiro lugar, embasar as decisões políticas fundamentais tomadas pelo constituinte e expressar os valores superiores que inspiraram a criação ou reorganização de um dado Estado. Eles fincam os alicerces e traçam as linhas mestras das instituições, dando-lhes o impulso vital inicial. Em segundo lugar, aos princípios se reserva a função de ser o fio condutor dos diferentes segmentos do Texto Constitucional, dando unidade ao sistema normativo. Um documento marcantemente político como a Constituição, fundado em compromissos entre correntes opostas de opinião, abriga normas à primeira vista contraditórias. Compete aos princípios compatibiliza-las, integrando-as à harmonia do sistema. E, por fim, na sua principal dimensão operativa, dirigem-se os princípios ao Executivo, Legislativo e Judiciário, condicionando a atuação dos poderes públicos e pautando a interpretação e aplicação de todas as normas jurídicas vigentes.11

Nesse sentido, não há espaço para uma interpretação das normas de forma meramente literal, numa simples aplicação positivista dos dispositivos, sob pena de se restringir demasiadamente a função do operador do direito e impossibilitar a correta aplicação do ordenamento aos casos concretos. Por conseguinte, a adequada prática da hermenêutica jurídica, à luz dos princípios constitucionais se faz fundamental ao Estado Democrático de Direito.

Nessa toada, Jorge Miranda ressalta a importância da aplicação com coerência das normas jurídicas e da necessidade de se interpretar o direito projetado nos princípios:

O Direito não é mero somatório de regras avulsas, produto de atos de vontade, ou mera concatenação de fórmulas verbais articuladas entre si. O Direito é ordenamento ou conjunto significativo e não conjunção resultada de vigência simultânea; é coerência ou, talvez mais

11 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 155-160.

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rigorosamente, consistência; é unidade de sentido, é valor incorporado em regra. E esse ordenamento, esse conjunto, essa unidade, esse valor, projeta-se ou traduz-se em princípios [...].12

Desse modo, deve o operador do direito se valer, com coerência, do arcabouço principiológico fornecido pela Constituição Federal para interpretar a legislação infraconstitucional, bem como a própria Constituição Federal. Além disso, deve-se destacar também a importância dos princípios para o preenchimento de lacunas, conforme ressaltam Info Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marioni e Daniel Mitidiero13:

[...] o efeito mais relevante e próprio dos princípios fundamentais, qual seja, o de servirem como critério material para a interpretação e integração do direito infraconstitucional, mas também, especialmente no caso dos princípios fundamentais, para a interpretação da própria constituição. Nesse sentido, o intérprete/aplicador, no âmbito de suas respectivas limitações funcionais, deverá sempre privilegiar uma interpretação o mais conforme possível aos princípios fundamentais, afastando as opções interpretativas incompatíveis. No caso de se verificarem lacunas na esfera infraconstitucional, serão os princípios constitucionais, com destaque para os princípios fundamentais, acessados para a sua adequada superação, o que de resto, corresponde ao que estabelece também a lei geral de introdução as normas.14

Essa compreensão da relevância dos princípios postos pela Constituição e de sua importância fundamental para aplicação da lei, torna evidente o atual estágio de evolução do direito, no qual se percebe superado o Estado Legislativo do Direito, marcado pela proeminência do legislador ordinário e do direito positivo, para dar-se lugar ao Estado Constitucional de Direito e do constitucionalismo material, no qual os princípios e o próprio ordenamento constitucional ganham destaque tanto no que se refere à interpretação do texto legal quanto à interpretação do próprio caso concreto.15

12 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 4 ed. Coimbra: Coimbra ed., 1990, p. 197/198. 13 No mesmo sentido, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira: “Assim, em primeiro lugar, a interpretação deve ser conforme à Constituição, encarada esta de forma global, com ponderação de valores entre os direitos fundamentais adequados e o bem protegido pela lei restritiva.” (OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. Cadernos do Programa de Pós- Graduação em Direito–PPGDir./UFRGS, v. 2, n. 4, 2004 p. 125). 14 SARLET, Ingo. MARIONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 252-253. 15 FRANCISCO, José Carlos. (Neo)constitucionalismo na pós-modernidade: princípios fundamentais e justiça no caso concreto. Neoconstituicionalismo e atividade jurisdicional: do passivismo ao ativismo judicial. José Carlos Francisco (Coordenador e coautor). Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 53.

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José Carlos Francisco ressalta essa conjuntura de transição, no qual o positivismo jurídico exclusivo perdeu espaço:

[...] ao longo do século XX, o modelo de positivismo jurídico exclusivo (sustentado em idealismo formal) foi criticado justamente por proporcionar apenas justiça formal, independentemente da correspondência do conteúdo da norma com os valores sociais e padrões éticos vividos na realidade concreta. Por sua vez, e sem menosprezar os resultados positivos proporcionados pela experiência liberal no que concerne à valorização das liberdades, da segurança jurídica e da previsibilidade das ações estatais, a concepção de justiça formal foi insuficiente para a manutenção desse modelo em razão das crises sociais e econômicas cíclicas, motivando transformações na compreensão das responsabilidades e nos mecanismos de organização socioeconômica da sociedade e do Estado já na década de 1930 e intensificadas após a Segunda Grande Guerra.16

A experiência histórica demonstra que o modelo centrado unicamente no positivismo jurídico exclusivo e no idealismo formal, trouxe graves malefícios para a sociedade ao “legitimar” ações dissociadas de seus valores éticos, dando azo para a consolidação de regimes autoritários como o fascismo e o nazismo.

O crescimento dos regimes autoritários culminou no acirramento da tensão internacional dando-se início a Segunda Guerra Mundial que vitimou milhões de pessoas e registrou infindáveis violações aos direitos humanos. Um absoluto desastre político, econômico e humanitário.

Esse contexto, impulsionou o desenvolvimento de um modelo neoconstitucional no qual a ponderação dos princípios constitucionais ganha destaque em detrimento da mera aplicação do texto legal, dificultando a legitimação de atrocidades como as ocorridas na Segunda Guerra Mundial, ao se considerar que eventuais leis nesse sentido violariam os princípios mais elementares das

16 FRANCISCO, José Carlos. (Neo)constitucionalismo na pós-modernidade: princípios fundamentais e justiça no caso concreto. Neoconstituicionalismo e atividade jurisdicional: do passivismo ao ativismo judicial. José Carlos Francisco (Coordenador e coautor). Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 70. (Aqui, deve-se frisar a ressalva feito pelo autor [p. 64 e 65] no que se refere ao positivismo jurídico inclusivo segundo o qual: “alguns elementos neoconstitucionais também se viabilizam mesmo numa visão positivista inclusiva ou moderada, pela qual o processo de hermenêutica aceitaria a influência de aspectos morais, éticos, econômicos e políticos e demais manifestações da sociedade quando possíveis de compreensão no significado de princípios positivados.”).

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Constituições democráticas que prezam pela dignidade da pessoa humana e pela construção de uma cidadania plena. 17

Aqui, vale trazer o conceito de Neoconstitucionalismo de Luis Pietro Sanchís, devidamente destacado por José Carlos Francisco18, o qual o define como uma teoria firmada em pressupostos que valorizam a aplicação dos princípios em detrimento de regras:

[...] daí porque a aplicação do ordenamento depende de mais ponderação do que de subsunção, revelando a onipotência da Constituição em relação a todas as áreas jurídicas, a tal ponto que o ordenamento constitucional deve ser a referência para a solução de todos os conflitos minimamente relevantes, do que resulta a diminuição dos espaços de opção legislativa ou regulamentar e, por certo, na ampliação das atribuições judiciais (em detrimento da autonomia do legislador ordinário, concluindo pela coexistência de uma constelação plural de valores (às vezes tendencialmente contraditórios) em lugar de homogeneidade ideológica. 19

Nesse contexto Celso Antônio Bandeira de Melo ressalta a importância da estrutura principiológica para a aplicação do direito, ao frisar a gravidade da violação dos princípios no Estado Democrático de direito:

Princípio, já averbamos alhures, é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e

17 Luis Roberto Barroso também traz importante contribuição: “O positivismo pretendeu ser uma teoria do Direito, na qual o estudioso assumisse uma atitude cognoscitiva (de conhecimento), fundada em juízos de fato. Mas resultou sendo uma ideologia, movida por juízos de valor, por ter se tornado não apenas um modo de entender o Direito, como também de querer o Direito. O fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados. A ideia de que o debate acerca da justiça se encerrava quando da positivação da norma tinha um caráter legitimador da ordem estabelecida. Qualquer ordem. Sem embargo da resistência filosófica de outros movimentos influentes nas primeiras décadas do século XX, a decadência do positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da auto-cidade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já́ não tinha aceitação no pensamento esclarecido.” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 326-327). 18 FRANCISCO, José Carlos. (Neo)constitucionalismo na pós-modernidade: princípios fundamentais e justiça no caso concreto. Neoconstituicionalismo e atividade jurisdicional: do passivismo ao ativismo judicial. José Carlos Francisco (Coordenador e coautor). Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 54-55. 19 SANCHÍS, Luis Pietro. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madrid: Editorial Trotta, 2003.

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servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido humano. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço e corrosão de sua estrutura-mestra.20

Demonstrado a importância dos princípios para interpretação e aplicação das normas jurídicas, no que compete ao presente trabalho, se faz de suma importância também apresentar a relevância dos chamados princípios processuais para o Estado Democrático de Direito.

Com efeito, o processo é o instrumento que garante ao cidadão-jurisdicionado a possibilidade de acesso à justiça para a defesa de seus direitos fundamentais e manutenção de sua cidadania plena. Desse modo, os diversos princípios processuais como, por exemplo, o do devido processo legal21, o do juiz natural, o da inafastabilidade do controle jurisdicional22, o da ampla-defesa e o do contraditório23, devem ser prontamente observados quando da aplicação da norma processual.24

Nesse sentido, José Augusto Delgado esclarece:

O processo é que assegura a efetivação dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, quando violados, com base nas linhas

20 MELO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo: Ed. RT, 1986, p. 230. 21 LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; 22 XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; 23 LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; 24 Sobre o tema, Cândido Rangel Dinamarco afirma que: “Falar em acesso à ordem jurídica justa, por exemplo (ou na garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional), é invocar os próprios fins do Estado moderno, que se preocupa com o bem comum, e portanto, com a felicidade das pessoas. Valorizar o princípio do contraditório equivale a trazer ao processo um dos componentes do próprio regime democrático, que é a participação dos indivíduos como elemento de legitimação do exercício do poder e imposição das decisões tomadas por quem o exerce. Cuidar da garantia do devido processo legal no processo civil vale por traduzir em termos processuais os princípios da legalidade e da supremacia da Constituição, também inerentes à democracia moderna. Garantir a imparcialidade nos julgamentos mediante o estabelecimento do juiz natural significa assegurar a impessoalidade no exercício do poder estatal pelos juízes, agentes públicos que não devem atuar segundo a sua vontade própria e seus próprios interesse mas para a consecução, por meios constitucionalmente legítimos, dos fins do Estado, etc.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: vol. I. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 323).

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principiológicas traçadas pela Constituição. É instrumento que o Estado está obrigado a usar e representa uma prestação de garantia, através da qual o fundamento da norma se preserva e são protegidos os direitos essenciais do cidadão. É o único meio de se fazer com que os valores incorporados pela Constituição, em seu contexto, sejam cumpridos, atingindo o fim precípuo a que se propõem - o estabelecimento da paz social. [...] Os princípios que comandam as garantias processuais do cidadão são relevantes no contexto constitucional porque decorrem do que substancialmente foi inserido no texto da Carta Magna. Esta, ao se apresentar como sendo o conjunto de normas jurídicas fundamentais definidoras de uma ordem jurídico-política e de uma ordem de valores acatados pela Nação, há de permitir que sejam extraídas de seu conteúdo as ideias forças que fizeram com que se considere a ordenação sistemática e racional da comunidade política com capacidade de produzir efeitos processuais que garantam os direitos fundamentais estabelecidos para o cidadão. Daí decorre a função excepcional dos princípios jurídicos processuais para eficácia dos direitos, liberdades e garantias oferecidas aos jurisdicionados.25

Dos diversos princípios processuais trazidos pela Constituição Federal, tem- se que o princípio do devido processo legal, também chamado por parte da doutrina como o princípio do processo justo26 se coloca como fundamental para todos os outros princípios processuais resguardados pela Carta.

Referido princípio, previsto no art. 5º, LIV, o qual estabelece que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal, garante aos

25 DELGADO, José Augusto. A supremacia dos princípios nas garantias processuais do cidadão. In: ALMEIDA FILHO, Agassiz de. CRUZ, Danielle da Rocha (Coord.). Estado de Direito e Direitos Fundamentais: Homenagem ao jurista Mário Moacyr Porto. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 319-338. 26 Daniel Mitidiero prefere o termo “processo justo”, criticando a expressão “devido processo legal” em duas frentes: “Em primeiro lugar porque remete ao contexto cultural do Estado de Direito (Rechtsstaat, État Légal), em que o processo era concebido unicamente como um anteparo ao arbítrio estatal, ao passo que hoje o Estado Constitucional (Verfassungsstaat, État de Droit) tem por missão colaborar na realização da tutela efetiva dos direitos mediante a organização de um processo justo. Em segundo lugar, porque dá azo a que se procure, por conta da tradição estadunidense em que colhida, uma dimensão substancial à previsão (substantive due process of law), quando inexiste necessidade de pensa-la para além de sua dimensão processual no direito brasileiro. De um lado, é preciso perceber que os deveres de proporcionalidade e de razoabilidade não decorrem de uma suposta dimensão substancial do devido processo, como parece à parcela da doutrina e como durante bom tempo se entendeu na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Aliás, mesmo no direito estadunidense semelhante entendimento não se figura correto. Os postulados da proporcionalidade decorrem dos princípios da liberdade e da igualdade – as posições jurídicas têm de ser exercidas de forma proporcional e razoável dentro do Estado Constitucional. De outro, importa ter presente que não é necessário recorrer ao conceito de substantive due process of law ‘com o objetivo de reconhecer e proteger direitos fundamentais implícitos’, na medida em que nossa Constituição conta expressamente com um catálogo aberto de direitos fundamentais (art. 5º, § 2º), o que desde logo permite a consecução desse mesmo fim: reconhecimento e proteção de direitos fundamentais implicitamente previstos e mesmo não previstos na constituição (conceito material de direitos fundamentais).” (MITIDIERO, Daniel. Direito fundamental ao processo justo. Revista Magister de direito civil e processual civil, n. 45, 2011).

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cidadãos o direito perseguir a tutela jurisdicional competente para resguardar o bem da vida ameaçado, devendo o processo se desenrolar de forma justa, independente e imparcial.

Desse modo, não seria desarrazoado afirmar que os demais princípios do processo – aqui, leia-se o do juiz natural, o da inafastabilidade de jurisdição, da efetividade, do contraditório, da ampla-defesa, da razoável duração do processo, entre outros – poderiam ser extraídos do próprio princípio do devido processo legal27.

Ademais, como enfatiza Guilherme Madeira Dezem, fazendo referência à lição de Alberto Silva Franco e Maurício Zanoide, uma parte da doutrina entende o princípio do devido processo legal como uma verdadeira cláusula de segurança com a capacidade de sanar eventual lacuna no sistema dos princípios processuais.28

Desse modo, tem-se que o referido princípio se relaciona diretamente com o ideal de justiça, objetivo fundamental da Constituição, sendo um mandamento basilar para a manutenção de todos os direitos e deveres dos cidadãos e do próprio Estado Democrático de Direito.

Não por outro motivo o princípio do devido processo legal ou do processo justo se consolidou nas constituições democráticas modernas, majoritariamente no período posterior à segunda guerra mundial, bem como nos principais tratados internacionais em vigor.

Aqui, vale destacar a posição de Humberto Theodoro Junior que, em consonância com parte da doutrina, enaltece a relação entre o princípio do devido processo legal e o ideal de perseguição da justiça, o que justificaria a nomenclatura do princípio do processo justo:

27 Nelson Nery Junior possui entendimento conforme: “Em nosso parecer, bastaria a norma constitucional haver adotado o princípio do due process of law para que daí decorressem todas as consequências processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e a uma sentença justa. É por assim dizer, o gênero do qual todos os demais princípios e regras constitucionais são espécie.” (NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 12. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 106). 28 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 4. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018, p. 120.

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O processo justo, porém, impõe-se entre nós como uma decorrência natural e obrigatória dos valores agasalhados nos princípios fundamentais que dão estrutura à nossa ordem constitucional. Vale a pena recordar que, já no preâmbulo da Constituição brasileira atual, ficou declarado que a justiça, como outros valores igualmente relevantes e supremos (como liberdade, bem-estar, igualdade e segurança), integraria as metas a serem atingidas pelo Estado Democrático de Direito. E o seu art. 3º reafirmou que, entre os “objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil”, aparece em primeiro lugar o de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Dúvida não há, de tal sorte, que nossa Constituição assenta o Estado Democrático de Direito brasileiro sobre o valor supremo e fundamental da justiça. Desse modo a concepção da garantia de devido processo legal, expressa em seu art. 5º, no LIV, não pode ter outro sentido senão o de um processo justo.29

Nessa toada, o princípio do juiz natural, objeto de estudo do presente trabalho, também se coloca como fundamental para a preservação da justiça no processo, ao assegurar, ao cidadão, um julgamento independente e imparcial, realizado pelo juiz competente previamente constituído.

Ademais, justamente por ser um princípio, o juiz natural, verdadeiro mandamento de otimização30 posto pela Constituição Federal deve ser sempre interpretado de maneira ampliativa. Isso porque, além das garantias expressas trazidas pelos incisos XXXVII e LIII do artigo 5º da Carta, há diversos outros dispositivos colocados pela Constituição com a clara finalidade de salvaguardar o princípio, tais como os que garantem a independência de atuação do Poder Judiciário e do próprio Ministério Público.

Por conseguinte, antes mesmo de ser uma garantia do cidadão, o juiz natural deve ser percebido como um princípio basilar do Estado Democrático de Direito, constituindo-se, portanto, em um princípio-garantia31 que contribui para a sustentação do Estado lastreado pelos ideais de justiça e garante aos seus cidadãos um julgamento realizado por juiz independente e imparcial.

29 JUNIOR, Humberto Theodoro. O compromisso do Projeto de Novo Código de Processo Civil com o processo justo. Revista de informação legislativa, ano 48, abr./jun. Brasília, 2011, p. 243. 30 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 86. 31 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 38. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 95.

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1.2 O princípio do juiz natural garantidor da independência e da imparcialidade do julgamento

O princípio processual do juiz natural se faz fundamental ao Estado Democrático de Direito moderno, pois resguarda aos cidadãos, o direito a um julgamento independente e imparcial, realizado por um juiz previamente competente, sendo expressamente vedada a instituição de tribunais de exceção.

Atento a importância desse princípio para o adequado funcionamento do Estado Democrático, e, em consonância com as demais constituições democráticas modernas e com os tratados internacionais de direitos humanos, o constituinte brasileiro afirmou devidamente o princípio no art. 5º, incisos XXXVII e LIII, da Constituição Cidadã, bem como ao fixar as diversas garantias dos membros do Poder Judiciário e também do próprio Ministério Público.

Dessa forma, antes de se analisar de maneira detalhada e aprofundada os elementos que cercam o princípio, é necessário compreender o contexto de seu surgimento, sua sedimentação nas Constituições brasileiras e sua consolidação no direito estrangeiro e nos tratados internacionais, para que se perceba a sua absoluta relevância no modelo dos Estados democráticos que possuem a cidadania como princípio fundamental, como é o caso do Brasil.

1.3 O surgimento do princípio do juiz natural e o seu contexto histórico

O princípio do juiz natural foi concebido a partir do momento em que a figura moderna de juiz foi consolidada, ao se dissociar da imagem do rei, que, no período absolutista, absorvia parte considerável das funções do Estado.32

Antes dessa separação entre juízes e monarcas, no período da idade média, tem-se que a função jurisdicional esteve sempre atrelada à autoridade do Imperador ou do Papa que delegavam seus poderes para quem lhes conviessem.

32 BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 54.

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Esse processo também se estendeu ao sistema feudal, no qual o senhor feudal delegava a função jurisdicional aos seus aliados, fato que, evidentemente, não permitia um julgamento isento por parte dos juízes delegados.33 Portanto, no direito medieval, as jurisdições desenvolvidas possuíam, majoritariamente, origem delegada.

Nesse período, pode-se citar, a Magna Carta, na Inglaterra, como o primeiro instrumento a limitar os poderes do rei, e como uma referência, ainda que frágil, do que viria a se chamar o princípio do juiz natural. Referida Carta, em seu artigo 39, estabelecia que nenhum homem livre seria privado de sua liberdade sem o juízo legal dos seus pares ou segundo as leis da terra.34

Esse quadro – de predomínio da jurisdição delegada – começa a se modificar com a formação dos Estados nacionais, período no qual a jurisdição adquire maior autonomia, se desvinculando de um único poder central, entre os séculos XVII e XVIII. Tal fenômeno acontece primordialmente na França e na Inglaterra, que passaram por consideráveis tensões entre os juízes os quais visavam a sua independência e os reis que relutavam em perder parcela de seus poderes.

Aqui, deve-se pontuar a importância e o pioneirismo da Petition of Rights de 1628, promulgada na Inglaterra, que pela primeira vez afirma, em seus pontos 3,7,8 e 935 a necessidade de se proibir a instituição de juízes post factum por qualquer

33 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. Ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 539. 34 BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 46. 35 III - "E considerando igualmente que, pelo estatuto chamado A Grande Carta das Liberdades da Inglaterra, é declarado e ordenado que nenhum homem livre seja detido ou preso, ou espoliado das suas terras e liberdades, ou de seus livres costumes, ou banido ou exilado, ou de qualquer maneira exilado, ou de qualquer maneira destruído, senão pelo legítimo julgamento de seus pares, ou pela lei da terra". VII - "E considerando que também por autoridade do Parlamento no ano vigésimo quinto do reino do Rei Eduardo III, declarou-se e ordenou-se que nenhum homem deveria ser prejulgado de vida ou membro contra a forma da Grande Carta e a lei da terra; e pela referida Grande Carta e outras leis e estatutos de vosso reino, nenhum homem deve ser condenado à morte senão pelas leis estabelecidas neste vosso reino, ou pelos costumes do dito reino, ou por ato do Parlamento; e considerando que nenhum criminoso, seja qual for, está dispensado dos processos a serem usados, e das punições a serem infligidas pelas leis e estatutos deste vosso reino; entretanto, nestes últimos tempos foram expedidas diversas incumbências sob o grande selo de Vossa Majestade pelas quais certas pessoas foram nomeadas comissários com poder e autoridade para procederem dentro da terra conforme a justiça da lei marcial, contra soldados e marinheiros, ou pessoas dissolutas que a eles se reunissem, que cometessem qualquer assassinato, roubo, crime grave, motim ou outra qualquer infração ou delito, e por meio de processo sumário e ordem de conformidade com a lei marcial e segundo se faz uso nos

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soberano, visando, assim, a garantia de um julgamento imparcial e sem influências políticas.36

Na mesma linha, outro instrumento que merece destaque, pois consolida diversos direitos dos cidadãos ingleses, diminuindo a influência e a arbitrariedade dos monarcas, é o Bill of Rights de 1689.

A primeira aparição do termo “juiz natural” surgiu em 1766, baseada no pensamento iluminista francês e utilizada para afirmar a oposição de seus ideais aos juízes extraordinários, sendo, posteriormente, ratificada pela Constituição Francesa de 1791.

Referido diploma, em seu artigo 4º, capítulo V, título III, estabeleceu que “os cidadãos não podem ser destituídos dos juízes que a lei lhes confere, por qualquer incumbência ou outras atribuições e avocações, salvo aquelas que as leis determinaram”37.

Nota-se, portanto, evidente mudança na relação entre a sociedade e o Estado, no qual a arbitrariedade dos monarcas não era mais tolerada, passando as Constituições a adquirirem papel fundamental nas democracias europeias as quais prezavam pela separação e harmonia entre os três poderes e pelo desenvolvimento do conceito de cidadania.

exércitos em tempo de guerra; promovessem o julgamento e a condenação de tais criminosos, e os fizessem executar e morrer de acordo com a lei marcial". VIII - "Sob tal pretexto alguns súditos de Vossa Majestade foram mortos por certos comissários, quando e onde, se merecessem a morte pelas leis e estatutos da terra, pelas mesmas leis e estatutos poderiam ter sido julgados e por nenhuma outra deveriam ter sido julgados e executados". IX - "...comissões essas, como quaisquer outras de igual natureza, são total e diretamente contrárias às ditas leis e costumes deste reino" (GRINOVER, Ada Pellegrini. O princípio do juiz natural e sua dupla garantia. Revista de Processo. Vol. 29, p. 11 - 33, jan-mar 1983). 36 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. Ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 544. 37 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. Ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 544. A Constituição americana de 1787 também já proclamava que “em todos os processos criminais o acusado terá direito a julgamento pronto e público por um Júri imparcial do Estado e distrito onde o crime tiver sido cometido, distrito previamente determinado por lei.” (GRINOVER, Ada Pellegrini. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. FERNANDES, Antonio Scarance. As nulidades no processo penal. 12ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 43).

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Diante disso, tem-se que o antigo “juiz delegado”, comissário do rei, passou a, paulatinamente, dar lugar para um “juiz natural” que, conforme os ideais iluministas, seriam independentes, separando o Poder Judiciário da influência do Poder Executivo e do Poder Legislativo.38

Após o surgimento do termo juiz natural, os demais Estados europeus, seguindo a tendência iluminista, inseriram em suas constituições o princípio da independência dos juízes, bem como a ideia fundamental de separação dos poderes, consolidando o princípio do juiz natural.

1.4 Evolução do princípio do juiz natural nas constituições brasileiras

No caso brasileiro, tem-se que o princípio do juiz natural foi resguardado desde a primeira Constituição Imperial de 1824 em seu artigo 179, incisos XI e XVII, veja-se:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte: [...]

XI. Ninguem será sentenciado, senão pela Autoridade competente, por virtude de Lei anterior, e na fórma por ella prescripta.

XVII. A' excepção das Causas, que por sua natureza pertencem a Juizos particulares, na conformidade das Leis, não haverá Foro privilegiado, nem Commissões especiaes nas Causas civeis, ou crimes.39

Aqui, deve-se salientar que a referida Constituição foi elaborada em um contexto eminentemente liberal-burguês, tendo recebido significativa influência da matriz constitucional francesa e dos ideais iluministas. 40 Contudo, apesar dessa Carta afirmar inúmeros direitos fundamentais e sociais, previu também, o chamado Poder

38 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. Ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 540. 39 CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as constituições brasileiras. Campinas: Bookseller, 2001, p. 42- 43. 40 SARLET, Ingo. Marioni, Luiz Guilherme. Mitidiero, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 227.

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Moderador, por meio do qual Dom Pedro I, contraditoriamente aos ideais constituintes, manteve o autoritarismo predominante no Império.

A título exemplificativo, vale destacar os artigos 99, 101, VII e 154 da Constituição de 1824:

Art. 99. A pessoa do Imperador é inviolável, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma.

Art. 101. O imperador exerce o Poder Moderador: [...]

VII. Suspendendo Magistrados nos casos do Art. 154.

Art. 154. O Imperador poderá suspendel-os por queixas contra eles feitas, precedendo audiencia dos mesmos Juizes, informação necessaria, e ouvido o Conselho de Estado. Os papeis, que lhes são concernentes, serão remetidos á Relação do respectivo Districto, para proceder na fórma da Lei.

Como se percebe, a Constituição de 1824, apesar de receber influências iluministas, não se afastou integralmente dos ideais absolutistas. A leitura dos artigos supracitados deixa evidente a posição contraditória da Constituição ao prever hipótese de ingerência do Imperador na atividade jurisdicional, fato que inevitavelmente fragiliza a independência e a imparcialidade do juiz, comprometendo a plena vigência do princípio do juiz natural.

Com a proclamação da república e com a promulgação da segunda Constituição do Brasil de 1891, tem-se o completo afastamento dos ideais absolutistas e o consequente fortalecimento das instituições democráticas.

Nesse sentido, a Constituição de 1891, promulgada sob forte influência positivista e norte-americana, extinguiu o famigerado Poder Moderador, firmando-se na clássica separação de poderes de Montesquieu.41

41 CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as constituições brasileiras. Campinas: Bookseller, 2001, p. 49- 50.

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No que se refere a salvaguarda do princípio do juiz natural, tem-se que referida Carta, no mesmo sentido da Constituição de 1891, prezou pela manutenção do mencionado princípio:

Art. 72. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdades á segurança individual e á propriedade nos termos seguintes: [...]

§ 15. Ninguem será sentenciado, sinão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior e na forma por ella regulada.42

Referida Carta, apesar de ter tido sua vigência por período de tempo considerável, vigeu durante o período histórico marcado por uma conjuntura política oligárquica apelidada de “política do café com leite” evidenciando um descompasso entre o avanço normativo alcançado e a sociedade da época, que culminou no movimento revolucionário de 1930 e com a promulgação da Constituição de 1934.43

A Constituição de 1934, foi marcada por significativas influências sociais exercidas pela Constituição mexicana de 1917, alemã de 1919 e soviética de 1918, contudo, a Carta também ficou conhecida pelo seu curtíssimo período de vigência, de apenas três anos.

No que se refere ao princípio do juiz natural, esse foi assegurado em seu artigo 113, incisos 25 e 26:

Art. 113. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes, no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á subsistencia, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes: [...]

25) Não haverá fôro privilegiado nem tribunaes de expepção; admitem-se, porém, juízos especiaes em razão da natureza das causas.

42 CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as constituições brasileiras. Campinas: Bookseller, 2001, p. 71- 72. 43 SARLET, Ingo. Marioni, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 227.

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26) Ninguem será processado, nem sentenciado, senão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior ao facto, e na forma por ella prescripta.44

O mencionado diploma, como visto, não pôde vigorar de forma plena, ao se considerar que foi logo substituído, de maneira autoritária, pela Carta de 1937 (conhecida como “polaca”), outorgada por Getúlio Vargas, durante a ditadura do estado novo.

Referida Constituição, frisando sua característica eminentemente autoritária, também ficou marcada como a única da história do país a não conter qualquer previsão do princípio do juiz natural.

Com a deposição de Getúlio Vargas, e a posterior posse de Gaspar Dutra, adveio a Constituição de 1946 que refutou os elementos autoritários da Carta de 1937, resguardando novamente os direitos fundamentais e sociais. Nessa carta, o princípio do juiz natural foi devidamente afirmado em seu artigo 141, parágrafos 26 e 27, veja- se:

Art. 141. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos têrmos seguintes: [...]

§ 26. Não haverá fôro privilegiado nem juízes e tribunais de exceção.

§ 27. Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente e na forma de lei anterior.45

Em 1964, contudo, o Brasil vivenciou, novamente, um período de ditadura, com o golpe militar. Os militares, por conseguinte, decidiram por formular uma nova Constituição que melhor atendesse aos seus interesses, a qual entrou em vigor em 1967 tendo sido emendada em 1969.

44 CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as constituições brasileiras. Campinas: Bookseller, 2001, p. 129- 131. 45 CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as constituições brasileiras. Campinas: Bookseller, 2001, p. 243- 245.

31

A mencionada Constituição, contraditoriamente, pois vigeu em período de enorme restrição de direitos civis e políticos, previa o princípio do juiz natural em seu artigo 150 § 15:

Art. 150. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

§ 15. A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela inerentes. Não haverá fôro privilegiado nem tribunais de exceção.46

Apesar dessa previsão constitucional, como visto, no período da ditadura militar, o Poder Judiciário restou enfraquecido, tendo o movimento repressivo da ditadura executado inúmeros brasileiros sem que fosse respeitado quaisquer dos direitos fundamentais básicos dos cidadãos.

Finalmente, com o restabelecimento da democracia no Brasil, foi promulgada a Constituição Federal de 1988, apelidada de Constituição Cidadã, por resguardar amplamente direitos fundamentais e sociais dos cidadãos. Como não poderia deixar de ser, a Carta garantiu o princípio do juiz natural em seu artigo 5º, incisos XXXVII e LIII:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção.

LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.

Demonstrado o histórico do surgimento do princípio do juiz natural e de sua sedimentação nas constituições brasileiras, impõe-se também salientar sua consolidação no cenário legislativo internacional.

46 CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as constituições brasileiras. Campinas: Bookseller, 2001, p. 346- 348.

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1.5 Afirmação do princípio do juiz natural nas demais sociedades democráticas contemporâneas

Assim como no Brasil, o princípio do juiz natural também foi afirmado em diversas constituições de outros Estados Democráticos de Direito47 preocupadas com a manutenção da independência e da imparcialidade de seus magistrados.

Não obstante tal fato, apesar de, como visto, o termo juiz natural ter surgido inicialmente na França, tendo posteriormente sido firmado na Constituição Francesa de 1791, de maneira peculiar, pois destoa dos rumos adotados por outros países europeus, o princípio sofreu considerável enfraquecimento ordenamentos constitucionais franceses supervenientes.48

Nesse sentido, a Constituição Francesa atualmente em vigor, datada de 1958, não faz menção ao princípio. Thierry Renoux, contudo, salienta que no ordenamento francês, a doutrina e a jurisprudência extraem o princípio do juiz natural do próprio princípio da igualdade, tendo parte da doutrina também se valido do princípio da legalidade como base para o princípio do juiz natural.49

O mesmo cenário não ocorre na atual Constituição Italiana de 1947, a qual afirma devidamente, como destaca Mario Pisani50, o princípio do juiz natural em seus artigos 25 e 102, veja-se:

Art. 25, caput: Ninguém pode ser subtraído do juiz natural pré- constituído por lei.

47 Não se pretende, aqui, apontar como o princípio é abordado em cada um dos Estados Democráticos da atualidade, se limitando o presente trabalho a apontar a abordagem do princípio nos países que comumente influenciam o direito brasileiro. 48 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 3. Ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 544. 49 Conforme explica Gustavo Badaró se referindo à lição de Thierry S. Renoux (RENOUX, Thierry S. Il principio del giudice naturale nel diritto constituzionale francese. Il principio di precostituzione del giudice (Atti del Convegno organizzato dal Consiglio Superiore dela magistratura e dall’Associazione “Vittorio Bachelet”, Roma, 14-15 febbraio 1992). Quaderni del Consiglio Superiore dela Magistratura. 1993. n.66, p. 158-197). Badaró, destaca, ainda, a tripla identidade do princípio do juiz natural extraída do princípio da igualdade, se configurando na identidade de jurisdição, de regras processuais e de regras substanciais. (BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 63-64). 50 PISANI, Mario. La garanzia del giudice naturale nella constituzione italiana. Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, 1961, p. 414-428.

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Art. 102: A função jurisdicional é exercida pelos magistrados ordinários instituídos e regulados pelas normas de organização judiciária. Não podem ser instituídos juízes extraordinários ou juízes especiais. Podem somente instituir-se, junto aos órgãos jurisdicionais ordinários, seções especializadas para determinadas matérias, mesmo com a participação de cidadãos idôneos, estranhos à magistratura. A lei regula os casos e as formas de participação direta do povo na administração da justiça.51

Nessa toada, a Constituição da Espanha, de 1978, também resguarda o princípio em seus artigos 24.2 e 117.6:

Art. 24.2: Todos têm direito ao juiz ordinário predeterminado pela lei, à defesa e à assistência de advogado, a ser informados da acusação contra si deduzida, a um processo público sem dilações indevidas e com todas as garantias, a utilizar meios de prova adequados a sua defesa, a não prestar declarações contra si próprio, a não se confessarem culpados e à presunção de inocência.

Art. 117.6: Se proíbem os tribunais de exceção.52

Finalmente, a atual Constituição Portuguesa de 1976, conforme sustenta Jorge Figueiredo Dias53, prevê o referido princípio em seu artigo 32, n. 9 o qual estabelece que nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.54

Como se percebe, parcela significante do constitucionalismo contemporâneo adotou o princípio do juiz natural em suas Cartas, conjuntura que reitera a importância do postulado para o regime democrático e para os seus cidadãos.

1.6 A consolidação do princípio no âmbito dos tratados internacionais

Antes de se adentrar na afirmação do princípio do juiz natural nos tratados internacionais, necessário se faz contextualizar, ainda que brevemente, a composição

51 GRINOVER, Ada Pellegrini. O princípio do juiz natural e sua dupla garantia. Revista de Processo. Vol. 29, p. 11 - 33, jan-mar 1983. 52 BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 71. 53 FIGUEIREDO DIAS, Jorge. Direito Processual Penal. vol 1. Coimbra: Ed. Coimbra, 1974, p. 322. 54 BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 74.

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social responsável pelo fortalecimento dos organismos internacionais, bem como dos tratados, com destaque para a defesa dos direitos humanos no cenário global.

Com efeito, o século XX, como é cediço, foi marcado por violentos conflitos entre as mais poderosas nações, destacando-se, aqui, as duas grandes guerras mundiais que exterminaram milhões de seres humanos.

Esse cenário de extrema e reiterada violência e violações de direitos humanos, motivado também por interesses políticos e econômicos antagônicos, despertou a necessidade de criação de órgãos e tratados internacionais por meio dos quais fosse possível a manutenção da paz e a solução dos conflitos de interesses entre as nações.

Nessa toada, Thomas Buergenthal destaca:

O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse.55

Desse modo, a Organização das Nações Unidas – ONU foi criada em 1945, com a finalidade de preservar a paz e promover os direitos humanos, conforme se extrai do preâmbulo de sua carta de fundação:

Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que, por duas vezes no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes de direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla. E para tais fins praticar a tolerância e viver em paz uns com os outros, como bons vizinhos, unir nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, garantir, pela aceitação de princípios e a instituição de métodos, que a força armada não será usada a não ser

55 BUERGENTHAL, Thomas. International human rights. Minnesota: West Publishing, 1998, p. 17.

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no interesse comum, e empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos. Resolvemos conjugar nossos esforços para a consecução desses objetivos. Em vista disso, nossos respectivos governos, por intermédio de representantes reunidos na cidade de São Francisco, depois de exibirem seus plenos poderes, que foram achados em boa e devida forma, concordaram com a presente Carta das Nações Unidas e estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que será conhecida pelo nome de ‘Organização das Nações Unidas.56

Por conseguinte, após a Segunda Guerra Mundial, percebe-se clara a valorização internacional dos direitos humanos com a criação de mecanismos para a proteção da paz.

No que tange ao princípio do juiz natural, deve ser destacado a criação do Tribunal de Nuremberg, constituído no mesmo ano de 1945, que, se por um lado foi visto como um avanço na integração da comunidade internacional e no combate às violações de direitos humanos, por outro, violou frontalmente o princípio ao se colocar como um dos Tribunais de exceção mais famosos da história.

1.6.1 O Tribunal de Nuremberg como marco de descumprimento do princípio do juiz natural

Após a segunda guerra mundial (1939 até 1945), com a vitória dos Aliados, e com a descoberta das absurdas violações aos direitos humanos cometidas pelos nazistas, foi celebrado um acordo, entre os países vencedores, para constituição de um Tribunal Militar Internacional, o “Tribunal de Nuremberg” que deveria realizar os julgamentos dos crimes de guerra.

Nas palavras de Luís Wanderley Torres:

A decisão de julgar criminosos de guerra se manteve secreta até o término do conflito, em maio de 1945. E nesse mês, vitoriosos os Aliados, propuseram os Estados Unidas à Inglaterra, Rússia e França um plano com o fim de ser organizado um Tribunal Internacional, com poder e jurisdição para julgar e condenar os grandes criminosos de guerra. Esse Tribunal Militar Internacional resultou do Acordo Celebrado em Londres, a 8 de agosto de 1945.57

56 Disponível em https://nacoesunidas.org/conheca/. Acesso em 20.10.2017. 57 TORRES, Luís Wanderley. Crimes de guerra. O genocídio. São Paulo: Fulgor, 1967, p. 31.

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Quanto a competência do referido Tribunal, Flavia Piovesan, expõe de maneira detalhada:

Com a competência de julgar os crimes cometidos ao longo do nazismo, seja pelos líderes do partido, seja pelos oficiais militares, o Tribunal de Nuremberg teve sua composição e seus procedimentos básicos fixados pelo Acordo de Londres. Nos termos do art. 6º desse Acordo, são crimes sob a jurisdição do Tribunal que demandam responsabilidade individual: a) crimes contra a paz (planejar, preparar, incitar ou contribuir para a guerra de agressão ou para a guerra, em violação aos tratados e acordo internacionais, ou participar de plano comum ou conspiração para a realização das referidas ações); b) crimes de guerra (violações ao direito e ao direito costumeiro da guerra; tais violações devem incluir – mas não serem limitadas a – assassinato, tratamento cruel, deportação de populações civis que estejam ou não em territórios ocupados, para trabalho escravo ou para qualquer outro propósito, assassinato ou tratamento cruel de prisioneiros de guerra ou de pessoas em alto-mar, assassinato de reféns, saque à propriedade pública ou privada, destruição de vilas ou cidades, devastação injustificada por ordem militar); c) crimes contra a humanidade (assassinato, extermínio, escravidão, deportação ou outro ato desumano cometido contra a população civil, antes ou durante a guerra, ou perseguições baseadas em critérios raciais, políticos e religiosos, para a execução de crime ou em conexão com crime de jurisdição do Tribunal, independentemente se em violação ou não ao direito doméstico de determinado país em que foi perpetrado).58

Em que pese o referido Tribunal tenha significativa importância como marco para a proteção e internacionalização dos direitos humanos, tendo condenado muitos dos criminosos de guerra responsáveis pelo genocídio de milhões de pessoas, tem- se que o Tribunal de Nuremberg acabou por violar inequivocamente o princípio do juiz natural.

Isso porque, além de ter sido criado após os fatos, revelando-se um verdadeiro tribunal de exceção, o que já denota grave violação ao princípio do juiz natural, foi constituído apenas por juízes provenientes dos países vencedores do conflito59, fato que, evidentemente, comprometeu, em absoluto, a imparcialidade e a

58 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 14. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 193-194. 59 SCALQUETTE, Rodrigo Arnoni. Elementos da Soberania e do Tribunal Penal Internacional. São Paulo: LTCE Editora, 2007, p. 52.

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independência do julgamento, ficando conhecido também como julgamento pautado pela “justiça dos vencedores”.

Não por outro motivo, tal evento histórico é reiteradamente usado pela doutrina como exemplo de violação ao princípio do juiz natural, pois privou o direito fundamental dos réus a um julgamento independente e imparcial, elementos essenciais à justiça.

Cumpre ressaltar também que outros tribunais ad hoc foram constituídos por resolução do Conselho de Segurança da ONU para julgamento de crimes contra a humanidade, como, por exemplo, os Tribunais da Bósnia e da Ruanda.60

Esse cenário de reiteradas violações ao princípio do juiz natural, que afetava a credibilidade dos julgamentos internacionais realizados, chamou a atenção da comunidade internacional para a criação de uma Corte Internacional Criminal permanente, único meio capaz de garantir uma jurisdição internacional imparcial, independente e objetiva.61

1.6.2 A criação do Tribunal Penal Internacional

Justamente devido a mácula deixada pelo Tribunal de Nuremberg, no que se refere a sua comprometida imparcialidade e independência, bem como pela necessidade de constituição de tribunais de exceção para julgamento crimes contra os direitos humanos, que poderiam sofrer influências políticas indesejadas, foi constituído, em 2002, em decorrência do Tratado de Roma firmado em 1998, o Tribunal Penal Internacional com competência para julgar graves crimes contra a humanidade.

Sobre a importância da instituição do referido Tribunal, assevera Flávia Piovesan:

60 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 14. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 301. 61 GRAEFRATH, B. Universal criminal jurisdiction and na international criminal court, European Journal International Law, 1990, p. 67.

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O Tribunal Penal Internacional permite limitar a seletividade política até então existente. [...] o Tribunal Penal Internacional assenta-se no primado da legalidade, mediante uma justiça preestabelecida, permanente e independente, aplicável igualmente a todos os Estados que a reconhecem, capaz de assegurar direitos e combater a impunidade, especialmente a dos mais graves crimes internacionais. Consagra-se o princípio da universalidade, na medida em que o Estatuto de Roma aplica-se universalmente a todos os Estados- partes, que são iguais frente ao Tribunal Penal, afastando-se a relação entre “vencedores” e “vencidos”.62

Importante também consignar o caráter subsidiário e complementar do referido Tribunal, de modo que é responsabilidade dos Estados realizarem o julgamento por crimes internacionais contra os direitos humanos, só possuindo jurisdição em caso de inércia do sistema judicial interno do Estado.63

Dessa forma, com a constituição do Tribunal Penal Internacional64, tem-se evidente evolução no que se refere à defesa dos direitos humanos, ao se considerar a extinção dos tribunais de exceção para julgamento de crimes internacionais contra a humanidade, privilegiando-se a competência de um tribunal pré-constituído, portanto, independente e imparcial, em plena conformidade com o princípio do juiz natural.

1.6.3 Tratados internacionais e a proteção ao princípio do juiz natural

Como se percebe, o contexto da política mundial no cenário posterior à segunda guerra mundial foi de clara aproximação entre as principais nações do

62 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 14. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 304-305. No mesmo sentido, ressaltando a problemática existente antes da constituição do Tribunal internacionais, no que se refere aos tribunais de exceção criados, Sylvia Helena Steiner assevera: “A normativa internacional anteriormente existente cuidava do estabelecimento de Tribunais ad hoc, que se cumpriram e estão cumprindo papel relevante na evolução dos sistemas internacionais de proteção aos direitos fundamentais, poderiam ser vistos com restrições, na medida em que assemelhados a tribunais de exceção, criados para processo e julgamento de fatos ocorridos antes ou durante sua instalação.” (STEINER, Sylvia Helena F. O perfil do juiz do Tribunal Penal Internacional in Tribunal Penal Internacional. Organizadores Fauzi Hassan Choukr e Kai Ambos São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 293). 63 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 14. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 305. 64 A Emenda Constitucional nº 45 de 2004 incluiu o § 4º no artigo 5º da Constituição Federal o qual estabelece que: O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão. O Brasil ratificou o Estatuto de Roma, o qual previa o Tribunal Penal Internacional em 20 de junho de 2002.

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mundo, que, depois de vivenciarem tanta violência, resolveram por unir esforços para criar um mecanismo de manutenção da paz.

Dessa conformidade de interesses surgiu, conforme já mencionado, em 24 de outubro de 1945, a ONU (Organização das Nações Unidas), que se colocou como ponto de partida para a elaboração de diversos diplomas internacionais de proteção aos direitos humanos e da paz.

Nesse sentido, o primeiro documento que merece destaque é a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 194865, documento aprovado sem qualquer questionamento ou reserva feita pelos Estados aos seus princípios, o que o torna de absoluta legitimidade.

Ao que interessa ao presente trabalho, deve-se destacar que em seu artigo 10, a declaração de direitos, dispõe:

Art. 10: Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um Tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ela.

Na mesma linha, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966 assevera:

Artigo 14 – 1. Todas as pessoas são iguais perante os Tribunais e Cortes de Justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias por um Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil [...].

65 Para Flávia Piovesan, ainda que a Declaração Universal dos Direitos Humanos não assuma forma de tratado internacional “apresenta força jurídica obrigatória e vinculante, na medida em que constitui a interpretação autorizada da expressão ‘direitos humanos’ constantes dos arts. 1º e 55 da Carta das Nações Unidas. Ressalte-se que, à luz da Carta, os Estados assumem o compromisso de assegurar o respeito universal e efetivo aos direitos humanos. (PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 14. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 219).

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A Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica) também assegura o princípio do juiz natural, ao afirmar em seu artigo 8º o seguinte:

Artigo 8º - Garantias Judiciais, 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.

No que se refere ao supracitado artigo, tem-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos já se utilizou do referido dispositivo para fundamentar suas decisões, preservando o princípio do juiz natural, como destaca Gustavo Henrique Badaró, por exemplo, no caso Cesti Hurtado vs Peru:

Resumidamente, o caso pode ser assim historiado: Gustavo Adolfo Cesti Hurtado, cidadão peruano, foi capitão do Exército do Peru, tendo se retirado da ativa em 1984. Posteriormente, no ano de 1996, foi gerente geral de uma empresa de segurança que celebrou contratos com o exército peruano. Em novembro de 1996 teve início, perante a Justiça Militar, um processo contra Cesti Hurtado, que foi acusado de crime de fraude, desobediência e atos atentatórios ao dever e dignidade da função militar. Sendo ordenada a sua prisão cautelar. Posteriormente, mesmo ignorando uma decisão da corte Superior de Lima, que havia reconhecido a incompetência da Justiça Militar, o processo teve continuidade peral tal foro, e Celso Hurtado foi condenado a sete anos de prisão. A Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu pela violação da garantia do juiz competente uma vez que, “o Sr. Hurtado, por ser um militar da reserva, não poderia ser julgado por um tribunal militar”. No caso, como visto, não se tratava de julgamento por fatos cometidos na qualidade de militar, no período em que integrou o exército.66

Diante do acima exposto, nota-se a preocupação da comunidade internacional em afirmar e zelar pelo cumprimento do princípio do juiz natural, ao consigná-lo em diversos tratados, todos, ressalte-se, ratificados pelo Brasil.

66 BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 86-87.

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Surge, no entanto, questionamos acerca da hierarquia e efetividade dos tratados perante a Constituição Federal, os quais serão, ainda que brevemente, esclarecidos a seguir.

1.6.4 A hierarquia e a efetividade dos tratados internacionais na Constituição Federal

A Constituição Cidadã de 1988, em conformidade com sua característica democrática e social, atribuiu grande importância ao Direito Internacional e aos tratados internacionais, com destaque para os tratados que versem sobre os direitos humanos.

Nesse sentido, estabeleceu como princípios norteadores de suas relações internacionais, conforme se extrai de seu artigo 4º, a independência nacional, a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos, a não-intervenção, a igualdade entre os Estados, a defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos, o repúdio ao terrorismo e ao racismo, a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e a concessão de asilo político. Referida Carta também afirmou o objetivo de buscar a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina.

No que se refere ao procedimento para celebração de tratados internacionais, tem-se que a Carta, em seu artigo 84, VIII67, determinou ser de competência privativa do Presidente da República a celebração de tratados, convenções e atos internacionais. Esse ato do Presidente deve, obrigatoriamente, ser referendado pelo Congresso Nacional, conforme disposto em seu artigo 49, I68. Após, por costume, o tratado deverá ser promulgado por decreto presidencial, seguido de sua publicação.

67 Art 84 - Compete privativamente ao Presidente da República: [...] VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional; [...]. 68 Art 49 - É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional; [...].

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Do acima exposto, extrai-se a necessária harmonia entre os poderes, por meio do sistema de freios e contrapesos estabelecido pela Constituição, que exige plena colaboração dos Poderes Executivo e Legislativo para a incorporação dos tratados internacionais.69

Quanto a hierarquia dada pela Carta aos tratados internacionais, deve-se atentar ao disposto nos parágrafos 2º e 3º de seu artigo 5º que estabelecem:

Art. 5º: [...]

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

Da leitura desses dispositivos pode-se extrair algumas interpretações a respeito da intenção do legislador ao determinar um rol aberto de direitos fundamentais, bem como ao estabelecer a possibilidade de os tratados de direitos humanos se equivalerem a emendas constitucionais, desde que observados os requisitos formais elencados. Das interpretações possíveis, duas parecem ser as mais acertadas.

No que tange aos tratados internacionais de direito humanos, a corrente capitaneada por Flavia Piovesan, sustenta que referidos tratados possuem hierarquia constitucional, independentemente de terem sido aprovados conforme o rito previsto no § 3º. Para a professora:

Em suma, a hierarquia constitucional dos tratados de proteção dos direitos humanos decorre da previsão constitucional do art. 5º, 2º, à luz de uma interpretação sistemática e teleológica da Carta, particularmente da prioridade que atribui aos direitos fundamentais e ao princípio da dignidade da pessoa humana. Essa opção do constituinte de 1988 se justifica em face do caráter especial dos

69 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 14. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 110.

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tratados de direitos humanos e, no entender de parte da doutrina da superioridade desses tratados no plano internacional. [...] Reitere-se que, por força do art. 5º, §2º, todos os tratados de direitos humanos, independentemente do quórum de sua aprovação, são materialmente constitucionais, compondo o bloco de constitucionalidade. O quórum qualificado está tão somente a reforçar tal natureza, ao adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados, propiciando a “constitucionalização formal” [...].70

Já o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal, firmado no julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.363, é no sentido de que os tratados internacionais de direitos humanos possuam hierarquia de norma supralegal, isto é, superior à lei ordinária, mas inferior à Constituição Federal.

No que se refere aos tratados internacionais que versem sobre temas que não os direitos humanos, o entendimento majoritário da doutrina e também do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que sua hierarquia é de lei ordinária, conforme expõe Luis Roberto Barroso:

Os tratados internacionais, em geral, são incorporados ao direito interno em nível de igualdade com a legislação ordinária. Inexistindo entre o tratado e a lei relação de hierarquia, sujeitam-se eles à regra geral de que a norma posterior prevalece sobre a anterior. A derrogação do tratado pela lei não exclui eventual responsabilidade internacional do Estado, se este não se valer do meio institucional próprio de extinção de um tratado, que é a denúncia.71

Finalmente, quanto aos efeitos dos tratados internacionais de direitos humanos, particularmente na esfera do princípio do juiz natural, tem-se que a Constituição Federal está em plena conformidade com os tratados internacionais de direitos humanos, já mencionados no capítulo anterior, que versam sobre o tema.

Desse modo, conforme assevera Flávia Piovesan, para casos em que os tratados estão em conformidade com os dizeres constitucionais:

Nesse caso, os tratados internacionais de direitos humanos estarão a reforçar o valor jurídico de direitos constitucionalmente assegurados,

70 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 14. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 130. 71 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 7. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 34.

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de forma que eventual violação do direito importará em responsabilização não apenas nacional, mas também internacional.72

Esclarecida a temática dos tratados internacionais, no que se refere ao escopo do presente trabalho, bem como demonstrado todo o contexto de surgimento e consolidação do princípio do juiz natural, impõe-se, a seguir, analisar de maneira aprofundada todos os elementos resguardados pelo princípio, bem como sua extensão na Constituição Federal.

72 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 14. Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 164.

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2. ELEMENTOS DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL E SUA EXTENSÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Conforme exposto no capítulo anterior, o princípio do juiz natural é fundamental ao exercício da cidadania plena, ao resguardar o direito do cidadão de obter uma tutela jurisdicional independente e imparcial.

A Constituição Federal, para isso, além de, como já salientado, ter dado o devido destaque ao ideal de perseguição da justiça (vide seu preâmbulo e art. 3º), afirmou como direito fundamental a proibição aos tribunais de exceção (art. 5º, XXXVII) e a obrigatoriedade de os cidadãos serem processados e sentenciados apenas pela autoridade competente (art. 5º, LIII).

Justamente desses dois dispositivos é que emana o princípio do juiz natural. Nesse sentido, ao dispor que não haverá juízo ou tribunal de exceção a Constituição impede que tribunais sejam constituídos após os fatos, o que possibilitaria eventual escolha política dos julgadores de acordo com interesses escusos que não o de buscar a justiça no caso concreto.

Tal situação, evidentemente, violaria de forma cabal a imparcialidade e a independência do julgamento – como o ocorrido em Nuremberg, fenômeno que não se admite num Estado Democrático de Direito fundado com base nos ideais de cidadania e no princípio da dignidade da pessoa humana.

Ao afirmar que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente a Carta de 1988 resguarda ao cidadão o direito de ser julgado por juiz, e não por qualquer outra pessoa, cuja competência já se faz predefinida em lei. Como se percebe, esse dispositivo constitucional, na mesma esteira da vedação aos tribunais de exceção, visa a garantir ao jurisdicionado o direito de ser julgado por um juiz independente e imparcial, pois já abstratamente predefinido em lei, sendo absolutamente vedado a manipulação ou escolha arbitrária de magistrados para julgar determinado caso concreto.73

73 Esse também é o entendimento de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: “Juiz competente, diante do quadro constitucional de 88, é, sem sombra de dúvida, o Juiz Natural ou Juiz Legal, de modo a se poder

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Aqui, vale trazer o oportuno comentário de José Frederico Marques a respeito do inciso LIII do artigo 5º da Constituição Federal, ressaltando a absoluta essencialidade do dispositivo ao Estado de Direito moderno:

Nesse texto constitucional se encontra cristalizado o preceito cardeal e básico do poder de julgar em matéria penal, porque se traçam os limites impostos ao poder punitivo em relação ao direito de liberdade, não só impedindo que órgãos não-judiciários se arvorem em autoridades judicantes, como também obstando que a justiça penal seja confiada, no tocante à jurisdição, a órgãos não-previstos expressamente pelo própria constituição. De duas maneiras deve ser entendida e interpretada a expressão constitucional “autoridade competente”, usada no texto aludido. Em primeiro lugar, o que se destaca na expressão constitucional – é a determinação indeclinável de que somente poderá processar e sentenciar a autoridade investida de jurisdição. Para alguns, trata-se de regra acima das contingências do próprio direito positivo e da lei escrita: nesse sentido o preceito implica em algo de essencial ao Estado moderno que transcende mesmo os quadros jurídicos das garantias constitucionais. [...] Em segundo lugar, a expressão “autoridade competente” equivale às de juiz natural, ou juiz legal, que em outras legislações vêm usadas. Assim como aos órgãos administrativos e legislativos não cabe o poder de julgar, também falece jurisdição a juízes e tribunais não previstos em lei.74

Quanto ao arcabouço de proteção do princípio, englobados pelos incisos XXXVII e LIII do artigo 5º da Constituição, Nelson Nery Junior afirma ser possível a sua divisão em três dimensões, quais sejam, a vedação aos tribunais de exceção, a de que todos possuem o direito de se submeter a julgamento por um juiz competente e pré-constituído na forma da lei, bem como a necessidade de o julgador ser imparcial.75

Já para Cândido Rangel Dinamarco a proteção dada pelo princípio se subdivide por meio do trinômio no qual os julgamentos devem ser realizados por juiz

dizer ser dele a competência exclusiva para os atos aos quais está preordenado. Excluem-se todos os demais, evitando-se, desse modo, manipulações indesejáveis (produtoras de uma desordem intragável em um Estado Democrático de Direito), com vilipêndio das regras de garantia [...]”. (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O princípio do juiz natural na CF/88. Ordem e desordem. Revista de informação legislativa. Brasília a. 45, n. 179 jul./set., 2008). 74 MARQUES, José Frederico. Da competência em matéria penal. Campinas: Millennium, 2000, p. 66- 67. 75 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 12. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 162.

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e não por outras pessoas ou funcionários, o órgão judiciário deve ser preexistente, sendo vedado a constituição de tribunais após os fatos e, finalmente, o juiz deve ser o competente, conforme a Constituição e a lei.76

Nesse ponto, cumpre desde logo apontar a divergência doutrinaria existente em torno do princípio no que se refere ao seu alcance. Nesse sentido, para Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes a interpretação dada ao art. 5, inciso LIII da Constituição Federal deve ser a de que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade constitucionalmente competente.77

Para os mencionados professores, o princípio não alcançaria o disposto na legislação infraconstitucional, restringindo-se, como visto, as competências fixadas na Constituição, por conseguinte, os critérios de distribuição de competência infraconstitucionais serviriam apenas para satisfazer à organização judiciária.

Referida interpretação, contudo, restringe demasiadamente o direito fundamental posto pela constituição, o que não parece ter sido a intenção do constituinte.

Nesse sentido expõe Gustavo Henrique Badaró:

76 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: vol. I. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 333. Para Maria Lúcia Karam: “À primeira proibição do juízo ou tribunal de exceção, destinada a impedir a arbitrária indicação de um órgão escolhido para, em caráter especial, conhecer e decidir sobre determinada causa, soma-se a necessidade de prévia delimitação do âmbito de atuação do órgão ou grupo de órgãos jurisdicionais regularmente instituídos, a impor a definição de parâmetros básicos para o estabelecimento de sua competência. Assim, abrangendo a proibição de tribunais de exceção e a garantia do juiz competente, o significado do princípio do juiz natural lega um primeiro e imperativo reconhecimento de que somente o órgão jurisdicional pré-constituído, ou seja, o órgão cuja competência resulta no momento do fato, de determinadas normas abstratas já existentes é que poderá legitimamente exercer a jurisdição em um processo dado.” (KARAM. Maria Lúcia. Competência no Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 46); Brito, Fabretti e Lima também conceituam o princípio: “O princípio do juiz natural visa garantir a existência de um juiz imparcial através da fixação de competência. Sabe-se assim por qual juízo será apreciada a questão, porém não por qualquer juiz. Por tal princípio se regula e legitima um juízo, atribuindo-lhe poderes de jurisdição. A imparcialidade do juiz é pressuposto para que a relação processual se instaure validamente.” (BRITO, Alexis Couto de. FABRETTI, Humberto Barrionuevo. LIMA, Marco Antônio Ferreira. Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2012, p. 28). 77 GRINOVER, Ada Pellegrini. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. FERNANDES, Antonio Scarance. As nulidades no processo penal. 12ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 44.

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Por outro lado, e este parece o ponto mais relevante, se a intenção do legislador constituinte fosse apenas assegurar o julgamento pelo juiz constitucionalmente competente, isto é, aquele cuja competência “derive de fontes constitucionais”, bastaria que expressamente o dissesse. A redação do inc. LIII do art. 5º seria “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade constitucionalmente competente”. Portanto, a corrente que interpreta o dispositivo constitucional com tal limitação, está criando uma restrição indevida a direito fundamental, que não foi prevista pela Constituição, nem encontra justificativa diante de qualquer outro direito fundamental.78

Logo, tem-se que o princípio do juiz natural alcança plenamente a legislação infraconstitucional, devendo essa indicar o juiz competente, nas hipóteses em que, na esfera de competência dos órgãos jurisdicionais estabelecidos pela Constituição, houver necessidade de complementação, mediante lei ordinária, de seu processo de concretização.79

Outro aspecto do princípio que merece esclarecimento é o seu termo a quo de incidência, ao se considerar a diferença do momento de incidência do princípio no âmbito do processo penal e no âmbito do processo civil.

Como visto, o princípio do juiz natural visa a garantir ao jurisdicionado o direito de ser julgado por um juiz independente e imparcial, pois já abstratamente predefinido em lei. Desse modo, no processo penal, o termo a quo de incidência do princípio se firma na data do acontecimento do fato a ser julgado, de modo que eventuais alterações de competência posteriores ao cometimento do delito a ser processado e julgado não poderão alterar a sua competência, mas apenas a competência para os casos futuros ao início de vigência da norma.

78 BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 152. 79 Nesse sentido, assevera José Frederico Marques: “Esses juízes são, principalmente, aqueles da justiça comum ou ordinária. Na falta de dispositivo expresso decorrente de norma contida na própria constituição, autoridade competente é o órgão da justiça comum que for indicado pela lei de processo ou de organização judiciária”. (MARQUES, José Frederico. Da competência em matéria penal. Campinas: Millennium, 2000, p. 68).

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Caso assim não fosse, o jurisdicionado teria seu direito a um julgamento independente e imparcial evidentemente abalado, pois bastaria que após o cometimento do delito se alterasse a competência de julgamento da referida infração para manipular o juízo competente, situação que não se pode admitir em um Estado Democrático de Direito.

Já no que tange ao processo civil, em que os cidadãos comparecem com suas pretensões e estas são julgadas, não os fatos propriamente ditos80 o termo a quo de incidência do princípio passa a ser o da distribuição da petição inicial conforme dispõe o artigo 43 do Código de Processo Civil81.

Ademais, como bem salienta Gustavo Henrique Badaró:

No caso penal, que em regra é regido por um princípio de obrigatoriedade da ação penal, a imputação penal, enquanto a atribuição de um fato penalmente relevante a alguém, deve levar ao processo todo o “trecho de realidade”, com relevância jurídico-penal, para ser verificado juridicamente. De outro lado, o campo não penal, em que vigora a disponibilidade de propor ou não a demanda, e de delimitar a porção da realidade levada a juízo, é possível que o autor “escolha uma parte da realidade subsumida a uma determinada categoria jurídica”. Em outras palavras, antes de efetiva propositura da demanda não se pode saber qual porção do litígio será selecionada pelo autor para constituir o objeto do processo civil. [...] É o autor que determinará quando e em que medida tal conflito será trazido para dentro do processo, delimitado pelo pedido que ele formular. [...] Nesse contexto, sequer seria possível considerar um momento ou mesmo um elemento anterior ao processo como apto a definir o termo a quo da predeterminação do juiz competente.82

Pontuados os principais aspectos do princípio do juiz natural, passa-se a analisar seus elementos fundamentais e sua extensão ao longo da Constituição Federal.

2.1 A imparcialidade como elemento fundamental ao princípio do juiz natural

80 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: vol. I. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 333. 81 Art. 43. Determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta. 82 BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 173-175.

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O conceito de imparcialidade pode ser definido como a propriedade de o juiz permanecer equidistante das partes, não favorecendo qualquer dos polos do processo por razões emocionais alheias as provas dos autos. Nesse sentido, o próprio Código de Ética da Magistratura traz a definição de imparcialidade em seus artigos 8º e 9º determinando a maneira como o juiz deve ser portar na condução do processo:

Art. 8º O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito.

Art. 9º Ao magistrado, no desempenho de sua atividade, cumpre dispensar às partes igualdade de tratamento, vedada qualquer espécie de injustificada discriminação. Parágrafo único. Não se considera tratamento discriminatório injustificado. I - a audiência concedida a apenas uma das partes ou seu advogado, contanto que se assegure igual direito à parte contrária, caso seja solicitado; II - o tratamento diferenciado resultante de lei.

Ainda no que se refere a imparcialidade, André Machado Maya, interpretando as palavras de Isabel Trujillo, assevera:

Imparcialidade, nesse contexto, é um valor estruturante do ordenamento jurídico que ganhou relevo com o desenvolvimento do direito desde o paradigma racionalista do Estado moderno, sendo atualmente concebida como um princípio normativo indiscutido, uma atitude ou um valor central que dá ensejo à regra fundamental de uma ética fundada sobre o respeito às pessoas em função de sua igual dignidade. Sob está ótica, a imparcialidade é concebida como uma regra básica de tratamento que tem por pressuposto a noção de igualdade, integrando, ao lado das ideias de Justiça, certeza e equidade, o grupo de valores jurídicos.83

Para Cândido Rangel Dinamarco:

A imparcialidade, conquanto importantíssima, não é um valor em si própria, mas fator para o culto de uma fundamental virtude democrática refletida no processo, que é a igualdade. Quer-se o juiz

83 MAYA, André Machado. Imparcialidade e processo penal: da prevenção da competência ao juiz de garantias. 2ª ed. São Paulo, Atlas, 2014, p. 46.

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imparcial, para que dê tratamento igual aos litigantes ao longo do processo e na decisão da causa.84

Em forte posicionamento, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho, afirmam ser a imparcialidade essencial a própria função jurisdicional, de modo que, em caso de violação ao princípio, não haveria sequer jurisdição possível.

A imparcialidade do juiz, mais do que simples atributo da função jurisdicional, é vista hodiernamente como seu caráter essencial, sendo o princípio do juiz natural erigido em núcleo essencial do exercício da função. Mais do que direito subjetivo da parte e para além do conteúdo individualista dos direitos processuais, o princípio do juiz natural é garantia da própria jurisdição, seu elemento essencial, sua qualificação substancial. Sem juiz natural, não há jurisdição possível.85

Importante pontuar necessária distinção entre o dever de imparcialidade do juiz e a ideia de neutralidade objetiva do juiz. Enquanto o primeiro conceito, conforme exaustivamente exposto acima, se faz essencial à jurisdição estatal, a neutralidade objetiva do juiz não pode ser exigida, ao se considerar a absoluta impossibilidade de o magistrado adotar uma posição neutra quanto às coisas da vida, isto é, quanto aos seus princípios éticos, filosóficos, culturais e políticos inerentes a sua formação pessoal.86

Dessa forma, se faz razoável esperar que o juiz, enquanto indivíduo inserido na sociedade, considere seus valores pessoais sem que isso afete, de maneira alguma, a sua imparcialidade no que se refere ao tratamento igualitário dos sujeitos do processo (neutralidade subjetiva).

Ademais, em casos em que configurada a parcialidade do magistrado, a legislação processual civil e processual penal determinam o impedimento, para os casos de parcialidade por causas objetivas, bem como determinam a suspeição para

84 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: vol. I. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 331. 85 GRINOVER, Ada Pellegrini. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. FERNANDES, Antonio Scarance. As nulidades no processo penal. 12ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 41. 86 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 12. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 174.

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as hipóteses de parcialidade por causas subjetivas. Em qualquer dos casos, o magistrado deverá ser substituído por seu substituto legal.

2.2 Independência elementar ao princípio do juiz natural

Conjuntamente com a imparcialidade, outro elemento fundamental ao princípio do juiz natural e ao próprio Estado Democrático de Direito é a independência. Isso porque, o Poder Judiciário, como guardião da Constituição e dos direitos fundamentais deve possuir absoluta independência para exercer a jurisdição, não devendo estar sujeito a qualquer pressão de cunho político dos outros Poderes do Estado quando do exercício de suas funções típicas e também de suas funções atípicas.

Do mesmo modo, o magistrado, ao apreciar o caso concreto, interpretar e aplicar a lei, deve atuar com absoluta independência, sem que sofra pressões indevidas de juízes pertencentes a instâncias superiores, bem como de outros agentes políticos alheios à lide.

Os juízes, apesar de estarem inseridos em uma carreira com diferentes instâncias e graus de jurisdição, não estão, e nem poderiam estar, subordinados a magistrados pertencentes aos tribunais, de modo que devem proferir decisões de forma totalmente independente, não podendo sofrer qualquer tipo de retaliação.

Aqui, deve-se esclarecer que essa independência se estende em duas diferentes esferas, quais sejam, a independência do próprio Poder Judiciário, como instituição, e a independência de seus membros. Nesse sentido, Fábio Konder Comparato, explica:

Esclareçamos, desde logo, o sentido técnico do termo. Diz-se que o Poder Judiciário em seu conjunto é independente, quando não está submetido aos demais Poderes do Estado. Por sua vez, dizem-se independentes os magistrados, quando não há subordinação hierárquica entre eles, não obstante a multiplicidade de instâncias e graus de jurisdição. Com efeito, ao contrário da forma como é

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estruturada a administração pública, os magistrados não dão nem recebem ordens, uns dos outros.87

Desse modo, para uma adequada analise da independência do magistrado, deve-se, primeiro, ressaltar a independência do próprio Poder Judiciário, que foi devidamente afirmada na Constituição Federal.

Nesse sentido, a Carta de 1988 conferiu, em seu artigo 9988, plena autonomia institucional ao Poder Judiciário, assegurando sua independência administrativa e financeira perante o Poder Executivo e o Poder Legislativo.

Assegurada a independência da instituição do Poder Judiciário, a Carta de 1988 também demonstrou justificável preocupação em dar ao magistrado diversas garantias para que possa decidir com plena independência, sem a possibilidade de sofrer qualquer tipo de represália. Além disso, o texto constitucional trouxe uma série de vedações aos juízes, com o objetivo de salvaguardar a independência e a própria imparcialidade, elementos que possuem clara interligação.

87 COMPARATO, Fábio Konder. O Poder Judiciário no regime democrático. Estudos avançados, v. 18, p. 151-159, 2004. No mesmo sentido, Nelson Nery Junior aduz que “A independência tem dupla vertente, pois significa o Poder Judiciário estar livre de interferências institucionais dos Poderes Executivo e Legislativo e, de outra parte, o órgão jurisdicional e o juiz pessoa física estarem submetidos exclusivamente à lei e não a critérios particulares ou discriminadores.” (NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 12. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 168). 88 Art. 99. Ao Poder Judiciário é assegurada autonomia administrativa e financeira. § 1º Os tribunais elaborarão suas propostas orçamentárias dentro dos limites estipulados conjuntamente com os demais Poderes na lei de diretrizes orçamentárias. § 2º O encaminhamento da proposta, ouvidos os outros tribunais interessados, compete: I - no âmbito da União, aos Presidentes do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, com a aprovação dos respectivos tribunais; II - no âmbito dos Estados e no do Distrito Federal e Territórios, aos Presidentes dos Tribunais de Justiça, com a aprovação dos respectivos tribunais. § 3º Se os órgãos referidos no § 2º não encaminharem as respectivas propostas orçamentárias dentro do prazo estabelecido na lei de diretrizes orçamentárias, o Poder Executivo considerará, para fins de consolidação da proposta orçamentária anual, os valores aprovados na lei orçamentária vigente, ajustados de acordo com os limites estipulados na forma do § 1º deste artigo. § 4º Se as propostas orçamentárias de que trata este artigo forem encaminhadas em desacordo com os limites estipulados na forma do § 1º, o Poder Executivo procederá aos ajustes necessários para fins de consolidação da proposta orçamentária anual. § 5º Durante a execução orçamentária do exercício, não poderá haver a realização de despesas ou a assunção de obrigações que extrapolem os limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias, exceto se previamente autorizadas, mediante a abertura de créditos suplementares ou especiais.

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A esse respeito, veja-se o artigo 95 da Constituição Federal:

Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias: I - vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado; II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII; III - irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I. Parágrafo único. Aos juízes é vedado: I - exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério; II - receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo; III - dedicar-se à atividade político-partidária; IV - receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei; V - exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração.

No que se refere a vitaliciedade, essa protege o magistrado de perder o cargo por decisões arbitrárias ou políticas. Com isso, o juiz, cumprido o estágio probatório de dois anos, só perderá o cargo após sentença judicial transitada em julgado, assegurada a ampla defesa e o contraditório.

Nos casos dos magistrados dos tribunais superiores e dos magistrados que ingressaram pelo quinto constitucional, a vitaliciedade é adquirida imediatamente, sem necessidade de estágio probatório. Por fim, cabe apenas ressaltar a hipótese de responsabilização política nos casos de crimes de responsabilidade cometidos por ministros do Supremo Tribunal Federal, cuja competência para julgamento pertence ao Senado Federal.89

A inamovibilidade garante ao magistrado que não seja removido do cargo por meio de decisões arbitrarias por parte dos tribunais de grau superior. Assim, um juiz

89 Conforme artigo 52, II da Constituição Federal: Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: [...] II - processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade; [...].

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não será impedido de analisar qualquer caso concreto por motivos políticos e interesses escusos.

Por fim, a irredutibilidade de subsídio resguarda o juiz de ter seus subsídios diminuídos, como forma de retaliação por parte do Poder Legislativo na hipótese de decisão que contrarie determinados interesses, completando o arcabouço de garantias da independência dos magistrados.

Como se percebe, essas três garantias dos magistrados acima expostas, possuem papel fundamental na preservação da independência judicial, atividade que, conforme bem expõe André Ramos Tavares é essencial para a efetividade dos direitos fundamentais colocados na Constituição:

Sabe-se que a tríplice garantia procurou afastar o magistrado das intempéries políticas, criando-lhe segurança para o exercício de sua precípua função: julgar com absoluta isenção. [...] No Estado Constitucional Contemporâneo – em ilação plenamente válida para o Brasil – o Judiciário ocupa papel primordial diante da declaração de Direitos Fundamentais. É, antes de tudo, o Guardião dos Direitos Fundamentais. Cabe a ele zelar pela integralidade e eficácia desses Direitos, não se esmorecendo diante de qualquer pressão, interna ou externa. E é aqui que reside a finalidade das garantias mencionadas: obter um Judiciário que possa atender efetivamente aos direitos da sociedade. Portanto, trata-se de uma tríplice garantia, voltada para a eficácia e efetividade dos direitos. [...] A posição detida pelo Judiciário, no cenário dos direitos, torna-o constante alvo do engenho daqueles que desprezam esses direitos e procuram manipular o sistema em detrimento da sociedade e em prol de um aproveitamento egoístico dos resultados assim obtidos. É por isso – por ser o Guardião dos Direitos Fundamentais – que o Judiciário deve ser suficientemente e adequadamente protegido, o que se dá por meio das salvaguardas já mencionadas. Não há efetividade de Direitos Fundamentais sem um Judiciário ativo e vigoroso. E a tríplice garantia do Judiciário (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios) tem essa finalidade, mantendo-o forte e íntegro.90

90 TAVARES, André Ramos. Manual do Poder Judiciário Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 238- 239. Em entendimento conforme: “O Trinômio vitaliciedade-inamovibilidade-irredutibilidade de vencimentos assim como a definição tão objetiva quanto possível dos critérios para a carreira dos juízes (art. 93, incs. I-III) são penhores da independência destes perante os órgãos dos demais Poderes do Estado. Também o Poder Judiciário como um todo é dotado de uma série de prerrogativas institucionais: autogoverno, autonomia administrativa e orçamentária etc. (art. 96 – infra, nn. 207 ss.). A independência é um indispensável fator de imparcialidade.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: vol. I. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 332).

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A Constituição Federal, como visto, também impõe uma série de vedações ao exercício da magistratura com a finalidade de assegurar a independência e a própria imparcialidade do juiz. Nesse sentido, aos magistrados é vedado exercer qualquer outro cargo ou função exceto uma de magistério, receber quaisquer valores a título de custas judiciais, bem como valores de pessoas físicas ou jurídicas. O juiz também não deve envolver-se em atividades político-partidárias, nem exercer a advocacia, no mesmo tribunal em que atuou, por um período de três anos, evitando-se assim, qualquer possível troca de favores ou de influências.

Nesse ponto, deve-se salientar que o trinômio de garantias acima exposto – vitaliciedade-inamovibilidade-irredutibilidade – não deve, de maneira alguma, ser considerado um privilégio da magistratura, pois se tratam, tais garantias, de valores essenciais para proteção do próprio regime democrático, conferindo tratamento desigual, apenas na medida da desigualdade necessária ao equilíbrio do Estado.

Sobre as garantias trazidas pela Constituição, Alexandre de Moraes sustenta justamente a importância das garantias para o adequado funcionamento dos Poderes, relacionando-as com o princípio da igualdade e com a independência necessária para a livre atuação do magistrado:

A Constituição Federal de 1988 adotou, como já visto anteriormente, o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, mostrando-nos que o tratamento desigual dos casos desiguais, à medida que se desigualam, é exigência do próprio conceito de Justiça, ou ainda, que o princípio da isonomia protege certas finalidades, o que, de resto, não é uma particularidade do tema em estudo, mas de todo o direito, que há de ser examinado sempre à luz da teleologia que o informa, somente sendo ferido quando não se encontra a serviço de uma finalidade própria, escolhida pelo direito. [...] O objetivo colimado pela Constituição Federal, ao estabelecer diversas funções, imunidades e garantias aos detentores das funções soberanas do Estado, Poderes Legislativo, Executivo, Judiciário e a Instituição do Ministério Público, é a defesa do regime democrático, dos direitos fundamentais e da própria Separação de Poderes, legitimando, pois, o tratamento diferenciado fixado a seus membros, em face do princípio da igualdade. Assim, estas eventuais diferenciações são compatíveis com a cláusula igualitária por existência de um vínculo de correlação lógica entre o tópico diferencial acolhido por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, pois compatível

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com interesses prestigiados na Constituição. [...] As garantias conferidas aos membros do Poder Judiciário têm assim como condão conferir à instituição a necessária independência para o exercício da Jurisdição, resguardando-a das pressões do Legislativo e do Executivo, não se caracterizando, pois, os predicamentos da magistratura como privilégio dos magistrados, mas sim como meio de assegurar o seu livre desempenho, de molde a revelar a independência e autonomia do Judiciário.91

Finalmente, o Código de Ética da Magistratura, em seus artigos 4º, 5º, 6º e 7º traz uma série de condutas que devem ser seguidas pelos juízes para a manutenção da independência judicial:

Art. 4º Exige-se do magistrado que seja eticamente independente e que não interfira, de qualquer modo, na atuação jurisdicional de outro colega, exceto em respeito às normas legais.

Art. 5º Impõe-se ao magistrado pautar-se no desempenho de suas atividades sem receber indevidas influências externas e estranhas à justa convicção que deve formar para a solução dos casos que lhe sejam submetidos.

Art. 6º É dever do magistrado denunciar qualquer interferência que vise a limitar sua independência.

Art. 7º A independência judicial implica que ao magistrado é vedado participar de atividade político-partidária.92

De todo o acima exposto, conclui-se que a Constituição Federal acertadamente prezou pela absoluta imparcialidade e independência dos juízes. Tais elementos garantem a plenitude do princípio do juiz natural, permitindo que os cidadãos tenham direito a um julgamento realizado por juiz competente, independente e imparcial.

2.3 Acusação justa com o princípio do promotor natural

Uma interpretação ampliativa do disposto no artigo 5º, incisos XXXVII e LIII da Constituição Federal permite extrair, além do princípio do juiz natural, a ideia de imparcialidade e independência também do promotor natural, assegurando ao acusado, o direito a uma acusação justa.

91 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 31ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 427-428 e 528. 92 Texto extraído de http://www.cnj.jus.br/publicacoes/codigo-de-etica-da-magistratura. Acesso em 15.06.2018.

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Para que se possa melhor compreender o surgimento da teoria e sua consolidação no direito brasileiro, deve-se, primeiramente, notar o inédito tratamento dado pela Constituição de 1988 ao Ministério Público, que reservou enorme importância à instituição.

Referida Carta em seu artigo 127 estabelece que o Ministério Público, como função essencial à justiça, é fundamental jurisdição Estatal, sendo incumbido de preservar a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis.

Nesse sentido, o referido órgão possui a função de promover, privativamente, a ação penal pública. A Constituição também lhe confere legitimidade para a propositura de ação civil pública na defesa de interesses difusos e coletivos, bem como para realizar investigações na fase de inquérito, entre outras funções determinadas no artigo 129 da Carta.

O Ministério Público possui como princípios institucionais a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. O princípio da unidade determina que o Ministério Público constitui um único organismo, não se podendo dissociar o membro do órgão.

Já o princípio da indivisibilidade consiste na possibilidade de um membro do parquet ser substituído por outro, sem que esse fato cause a cindibilidade da instituição. Tais substituições não devem ocorrer, logicamente, de maneira arbitrária, devendo haver permissão legal para tanto, bem como que o ato decorra de autoridade com a devida atribuição para este fim.93

Finalmente, o princípio da independência funcional, garante ao membro do Ministério Público plena liberdade de ofício, não se submetendo às ordens de superiores hierárquicos, nem de pressões advindas de outros órgãos e poderes da república. Referido princípio, de suma importância para a instituição, é também

93 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. O ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural. Atribuição e conflito. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 43-45.

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resguardado pelas garantias e vedações dos membros do Ministério Público, semelhantes as garantias pertencentes aos próprios membros do Poder Judiciário.

Nessa esteira, o § 5º, incisos I e II, do artigo 128 da Constituição Federal, garante aos membros do Ministério Público as seguintes prerrogativas e vedações:

[...] I – As seguintes garantias: a) vitaliciedade, após dois anos de exercício, não podendo perder o cargo senão por sentença judicial transitada em julgado; b) inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, mediante decisão do órgão colegiado competente do Ministério Público, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, assegurada ampla defesa; c) irredutibilidade de subsídio, fixado na forma do art. 39, § 4º, e ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 150, II, 153, III, 153, § 2º, I; II - as seguintes vedações: a) receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais; b) exercer a advocacia; c) participar de sociedade comercial, na forma da lei; d) exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outra função pública, salvo uma de magistério; e) exercer atividade político-partidária; f) receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei.

Como se percebe, tais garantias e vedações asseguram que os membros do parquet oficiem de maneira independente e imparcial. Ademais, na mesma linha dos magistrados, para os casos em que constatada parcialidade do promotor de justiça, a legislação processual civil e processual penal determinam o impedimento, para os casos de parcialidade por causas objetivas, bem como impõem a suspeição para as hipóteses de parcialidade por causas subjetivas, tais hipóteses exigem o afastamento do promotor do caso dando-se lugar ao seu substituto legal.

Expostos as funções, os princípios e as prerrogativas basilares da instituição, passa-se a análise do princípio do promotor natural. Conforme já ventilado, o artigo 5º, incisos XXXVII e LIII estabelecem que não haverá juízo ou tribunal de exceção e que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente. Uma interpretação ampliativa e coerente desses direitos fundamentais, em consonância com os princípios e garantias postos ao Ministério Público pela própria Constituição Federal, permite extrair da Carta o princípio do promotor natural, o qual

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resguarda aos cidadãos o direito de não ser acusado por um promotor de exceção, bem como de ser processado – e não apenas sentenciado – pela autoridade competente.

Nesse sentido, Guilherme Madeira Dezem salienta:

A partir da leitura do termo “processado”, tem-se entendido que se refere ele à ideia do promotor natural. Também não se pode esquecer que o princípio do promotor natural é vinculado à ideia de inamovibilidade, bem como à ideia de que o promotor ocupe efetivamente cargos determinados por lei.94

Com efeito, o princípio do promotor natural, surge da necessidade de coibir que o Procurador Geral de Justiça, possa designar, arbitrariamente, os membros de Ministério Público para atuarem em determinado caso concreto, fato que poderia afetar a independência e imparcialidade do promotor.95 Nessa toada, Hugo Nigro Mazzilli destaca a importância do princípio, o colocando como o primeiro direito do acusado:

Realmente, este é o primeiro direito do acusado: não apenas o de ser julgado por um órgão independente do Estado, mas, até mesmo antes disso, o de receber a acusação independente de um órgão do Estado escolhido previamente segundo critérios e atribuições legais, abolidos não só o procedimento de ofício e a acusação privada, como enfim e principalmente eliminada a figura do próprio acusador público por encomenda, escolhido pelo Procurador-Geral de Justiça.96

Reitera-se que a garantia dada pela Constituição no sentido de o jurisdicionado ser processado apenas pela autoridade competente, somada a garantia de inamovibilidade e da independência do membro do Ministério Público, consagra

94 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 4. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018, p. 134. 95 No mesmo sentido é o entendimento de Nelson Nery Junior: Isso quer significar que o jurisdicionado tem a garantia constitucional de ver-se processado e julgado pelas autoridades competentes, previamente estabelecidas pelas leis processuais e de organização judiciária. Estão vedadas as designações discricionárias de promotores ad hoc pelo Procurador-Geral de Justiça, feitas a pretexto da unidade e chefia da instituição. (NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 12. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 204). 96 MAZZILLI, Hugo Nigro. O Ministério Público na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 79.

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em absoluto a existência do princípio do promotor natural no ordenamento constitucional.

Aqui, vale transcrever o entendimento de Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, veemente defensor da existência do princípio:

A teoria do promotor natural ou legal, como anteriormente afirmado, decorre do princípio da independência, que é imanente à própria Constituição. Ela resulta, de um lado, da garantia de toda e qualquer pessoa física, jurídica ou formal que figure em determinado processo que reclame a intervenção do Ministério Público, em ter um órgão específico do parquet atuando livremente com atribuição predeterminada em lei, e, portanto, o direito subjetivo do cidadão ao Promotor (aqui no sentido lato), legalmente legitimado para o processo. Por outro lado, ela se constitui também como garantia constitucional do princípio da independência funcional, compreendendo o direito do promotor de oficiar nos processos afetos ao âmbito de suas atribuições. Este princípio, na realidade, é verdadeira garantia constitucional, menos dos membros do parquet e mais da própria sociedade, do próprio cidadão, que tem assegurando, nos diversos processos em que o MP atua, que nenhuma autoridade poderá escolher Promotor ou Procurador específico para determinada causa, bem como que o pronunciamento deste membro do MP dar-se-á livremente, sem qualquer tipo de interferência de terceiros. Esta garantia social e individual permite ao Ministério Público cumprir, livre de pressões e influências, a sua missão constitucional de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Qual a garantia que se poderia dar a alguém, à própria sociedade, de que a lei seria cumprida, na hipótese de ficar ao arbítrio de determinada autoridade a escolha do membro do Ministério Público para examinar da conveniência ou não de promover ação penal em face de alta autoridade pública; para promover ou não ação cível contra poderosa fábrica que polui o ar de determinada região pobre; para promover ação visando a apurar abuso e omissões de autoridades; para coibir abuso de autoridade ou poder econômico; para intervir, em geral, nos processos nos quais está em jogo direito social ou individual indisponível? Certamente nenhuma.97

Desse modo, para que se configure a efetividade do princípio é necessário que cada órgão da instituição possua suas atribuições fixadas em lei, bem como que o promotor de justiça ocupante do cargo seja o responsável legal pelo ofício daquele órgão.98

97 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. O ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural. Atribuição e conflito. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 50-51. 98 CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. O ministério Público no processo civil e penal. Promotor natural. Atribuição e conflito. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 51.

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Deve-se ressaltar também, que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência do princípio na Constituição, em histórico acórdão de relatoria do Ministro Celso de Mello, o qual vale citar a sua ementa:

"HABEAS CORPUS" - MINISTÉRIO PÚBLICO - SUA DESTINAÇÃO CONSTITUCIONAL - PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS - A QUESTÃO DO PROMOTOR NATURAL EM FACE DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 - ALEGADO EXCESSO NO EXERCÍCIO DO PODER DE DENUNCIAR - INOCORRENCIA - CONSTRANGIMENTO INJUSTO NÃO CARACTERIZADO - PEDIDO INDEFERIDO. - O postulado do Promotor Natural, que se revela imanente ao sistema constitucional brasileiro, repele, a partir da vedação de designações casuísticas efetuadas pela Chefia da Instituição, a figura do acusador de exceção. Esse princípio consagra uma garantia de ordem jurídica, destinada tanto a proteger o membro do Ministério Público, na medida em que lhe assegura o exercício pleno e independente do seu oficio, quanto a tutelar a própria coletividade, a quem se reconhece o direito de ver atuando, em quaisquer causas, apenas o Promotor cuja intervenção se justifique a partir de critérios abstratos e pré-determinados, estabelecidos em lei. A matriz constitucional desse princípio assenta- se nas clausulas da independência funcional e da inamovibilidade dos membros da Instituição. O postulado do Promotor Natural limita, por isso mesmo, o poder do Procurador-Geral que, embora expressão visível da unidade institucional, não deve exercer a Chefia do Ministério Público de modo hegemônico e incontrastável. Posição dos Ministros CELSO DE MELLO (Relator), SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO. Divergência, apenas, quanto a aplicabilidade imediata do princípio do Promotor Natural: necessidade da "interpositio legislatoris" para efeito de atuação do princípio (Ministro CELSO DE MELLO); incidência do postulado, independentemente de intermediação legislativa (Ministros SEPÚLVEDA PERTENCE, MARCO AURÉLIO e CARLOS VELLOSO). - Reconhecimento da possibilidade de instituição do princípio do Promotor Natural mediante lei (Ministro SYDNEY SANCHES). - Posição de expressa rejeição a existência desse princípio consignada nos votos dos Ministros PAULO BROSSARD, OCTAVIO GALLOTTI, NÉRI DA SILVEIRA e MOREIRA ALVES.99

Demonstrada a plena vigência do princípio do promotor natural na ordem constitucional brasileira, se faz importante esclarecer a questão da formação grupos especiais, com a finalidade de auxiliar o trabalho do promotor de justiça ou do procurador da república, pelo Ministério Público e o eventual conflito da criação de tais grupos com o princípio do promotor natural.

99 STF, Tribunal Pleno, HC 67.759/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 06.08.1992.

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Com a cada vez maior sofisticação e complexidade de crimes cometidos por grandes organizações criminosas, bem como a necessidade de haver um maior intercâmbio de conhecimento e de informações entre os membros do parquet com a finalidade de combater com mais agilidade e eficiência tais crimes, a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (lei nº 8265 de 1993) e a Lei Complementar que determina as normas de organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União (lei complementar nº 75 de 1993) estabeleceram a possibilidade de criação dos denominados Centros de Apoio Operacional100 e Câmaras de Coordenação e Revisão101, respectivamente.

Além desses mencionados grupos previstos em lei, o Ministério Público Federal tem se valido da criação de Forças-Tarefas as quais reúnem diversos procuradores com a finalidade de integrar e qualificar as investigações de determinado caso.

Para que não violem o princípio do promotor natural, esses grupos especiais devem sempre atuar com o devido consentimento do promotor natural, não podendo

100 Art. 33. Os Centros de Apoio Operacional são órgãos auxiliares da atividade funcional do Ministério Público, competindo-lhes, na forma da Lei Orgânica: I - estimular a integração e o intercâmbio entre órgãos de execução que atuem na mesma área de atividade e que tenham atribuições comuns; II - remeter informações técnico-jurídicas, sem caráter vinculativo, aos órgãos ligados à sua atividade; III - estabelecer intercâmbio permanente com entidades ou órgãos públicos ou privados que atuem em áreas afins, para obtenção de elementos técnicos especializados necessários ao desempenho de suas funções; IV - remeter, anualmente, ao Procurador-Geral de Justiça relatório das atividades do Ministério Público relativas às suas áreas de atribuições; V - exercer outras funções compatíveis com suas finalidades, vedado o exercício de qualquer atividade de órgão de execução, bem como a expedição de atos normativos a estes dirigidos. 101 Art. 62. Compete às Câmaras de Coordenação e Revisão: I - promover a integração e a coordenação dos órgãos institucionais que atuem em ofícios ligados ao setor de sua competência, observado o princípio da independência funcional; II - manter intercâmbio com órgãos ou entidades que atuem em áreas afins; III - encaminhar informações técnico-jurídicas aos órgãos institucionais que atuem em seu setor; IV - manifestar-se sobre o arquivamento de inquérito policial, inquérito parlamentar ou peças de informação, exceto nos casos de competência originária do Procurador-Geral; V - resolver sobre a distribuição especial de feitos que, por sua contínua reiteração, devam receber tratamento uniforme; VI - resolver sobre a distribuição especial de inquéritos, feitos e procedimentos, quando a matéria, por sua natureza ou relevância, assim o exigir; VII - decidir os conflitos de atribuições entre os órgãos do Ministério Público Federal. Parágrafo único. A competência fixada nos incisos V e VI será exercida segundo critérios objetivos previamente estabelecidos pelo Conselho Superior.

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usurpar sua competência. Dessa forma, o promotor natural do caso é quem deve exercer os atos de execução, sendo auxiliado pelo respectivo grupo especial.

Por conseguinte, não há que se falar em violação do princípio do promotor natural, pois referidos grupos não vinculam o promotor natural, se prestando apenas para auxiliar os membros do Ministério Público de maneira a dar maior presteza e coordenação para as suas atividades, em absoluta consonância com o interesse público.102

2.4 Princípio que também se estende ao delegado natural

Embora a jurisprudência ainda não possua posicionamento consolidado, uma parcela da doutrina já admite a existência do princípio do delegado natural, garantidor da atuação independente e imparcial do delegado.

Desse modo, deve-se apontar, de início, a previsão constitucional da figura do delegado de polícia, integrante do Poder Executivo, a qual garante aos cidadãos a segurança pública preservadora da ordem e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, exercendo a função de polícia judiciária e a de apurar as infrações penais.103

102 Nesse sentido o STJ já decidiu: “não ofende o princípio constitucional do promotor natural a denúncia oferecida por Promotor de Justiça integrante do grupo especializado para acompanhar as ações penais relativamente a crimes de extorsão mediante sequestro, tráfico de entorpecentes, praticados em bando ou quadrilha.” (RSTJ - 39/213). 103 Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. § 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei; II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência; III - exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras; IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.[...]

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A fase investigativa do inquérito policial, apesar de possuir natureza administrativa, possui inegável importância para o processo penal. Ademais, o delegado, no caso de prisão em flagrante, é o primeiro a realizar o juízo de tipicidade do fato104, sendo também o primeiro responsável pela garantia dos direitos fundamentais e humanos do acusado.

Por conseguinte, não seria razoável esperar do delegado uma atuação que não estritamente imparcial e independente, ao se considerar sua evidente relevância para a condução das investigações criminais.

Nessa esteira, e em se tratando o inquérito, conforme já salientado, de procedimento administrativo, comandado por um membro da administração pública, impõe-se a observância do princípio da impessoalidade105, conforme determina o artigo 37 da Constituição Cidadã:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...].

Somado a esse dever constitucional de impessoalidade do delegado, o artigo 2º da lei nº 12830/2013, para parte da doutrina, positivou a existência do princípio do delegado natural, veja-se:

Art. 2o As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado. § 1o Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.

§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. [...]. 104 LIMA FILHO, Eujecio Coutrim. Princípio do Delegado Natural e o sistema de garantias constitucionais. Disponível em https://canalcienciascriminais.com.br/principio-delegado-natural. Acesso em 04.11.2017. 105 ARAÚJO, Moacir Martini de. O princípio do delegado natural como efetivação do estado democrática de direito. Revista Brasileira de Ciências Policiais. Brasília, v. 3, n. 1, p. 27-41, jan/jun 2012.

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§ 2o Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos. [...] § 4o O inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei em curso somente poderá ser avocado ou redistribuído por superior hierárquico, mediante despacho fundamentado, por motivo de interesse público ou nas hipóteses de inobservância dos procedimentos previstos em regulamento da corporação que prejudique a eficácia da investigação. § 5o A remoção do delegado de polícia dar-se-á somente por ato fundamentado. § 6o O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.

Como se percebe, os parágrafos 4º e 5º do referido artigo estabeleceram a vedação da avocação ou da redistribuição do inquérito policial pelo superior hierárquico, salvo nas hipóteses expressamente previstas de inobservância de procedimento que prejudiquem as investigações, e de motivos de interesse público. Restou estabelecido, ainda, que a remoção do delegado dar-se-á somente por ato fundamentado.106

Destarte, tem-se que em decorrência do disposto acima, restou vedado, no direito pátrio, a figura de um delegado de exceção, nomeado após a ocorrência do fato107, por superiores hierárquicos, privilegiando-se o delegado natural e a sua imparcialidade e independência.

Aqui, cumpre salientar a importância de se garantir ao delegado tais garantias para que possa oficiar sem influências de poderes políticos e econômicos, devendo atuar unicamente conforme a sua consciência caso a caso.

Nesse sentido, é o entendimento de Eujecio Coutrim Lima Filho:

106 PERAZZONI, Franco. O Delegado de Polícia como Sujeito Processual e o Princípio do Juiz Natural. RDPJ, Brasília, ano 1, n. 2, p. 197/215, jul-dez, 2017. 107 Nesse sentido, conforme aponta Moacir Martini de Araújo, o princípio também afasta a ocorrência de dois tipos de vícios: “O primeiro, a figura do delegado-xerife que, no afã de perseguir um desafeto ou algo do tipo, leva às últimas consequências a investigação criminal e, não muito difícil, o resultado de meses de investigação, como podemos observar em algumas operações policiais supersensíveis, que acabaram sendo prejudicadas pelo fato de seu coordenador levá-las por circunstâncias pessoais. Por outro lado, a impunidade inerente ao agente que vive na política de ‘proteger os seus’ também será fadada ao insucesso diante da prática de tal princípio à autoridade policial.” (ARAÚJO, Moacir Martini de. O princípio do delegado natural como efetivação do estado democrática de direito. Revista Brasileira de Ciências Policiais. Brasília, v. 3, n. 1, p. 27-41, jan/jun 2012).

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Assim, a excessiva discricionariedade que havia na avocação de procedimentos investigativos e a possibilidade de designação de um delegado diferente daquele com atribuição original passou a ser limitada pelo princípio do delegado natural positivado no sistema jurídico brasileiro. Consequentemente, a remoção da autoridade policial só poderá ocorrer por ato fundamentado.108

Ademais, apesar de a jurisprudência ainda ser escassa a respeito do princípio do delegado natural, o Poder Judiciário já proferiu decisões reconhecendo a sua validade, como a do Juiz de Direito Fernando Antônio de Lima, que aponta de forma coerente a vigência do princípio em benefício da cidadania e em consonância com os direitos fundamentais fixados pela Constituição:

Para fins, pois, de garantia do interesse público nas investigações criminais, subtraindo os Delegados das pressões internas e externas, é possível dizer que hoje já exista o princípio do Delegado Natural. [...] Como o direito penal constitui a mais lancinante das penetrações estatais nos direitos fundamentais, a atividade persecutória penal cerca-se de limites sérios, graves, impositivos. Ultrapassá-los implica fragilizar, desestabilizar e até anular a atividade de apuração, acusação e julgamento dos crimes. Se a acusação e o julgamento não se contentam com o arremedo de proteção dos direitos humanos, isso permite supor que os titulares dessas atividades estatais terão funcionalmente certas garantias de independência, como a inamovibilidade, a vitaliciedade, o juiz natural. Mas, de nada bastará a garantia aos titulares dessas duas atividades persecutórias acusatória e de julgamento se a primeira ponta, a primeira que lida com o fato criminoso, a que chega primeiro, no início da manhã do delito, despir- se do mínimo de garantia de independência. Tais garantias, portanto, aos Delegados de Polícia os diretores e detentores primaciais do direito de investigar permitem que a investigação seja efetiva, coerente, eficaz, sem arranho a direitos fundamentais, sem receio de descontentamento a qualquer sorte de influência, seja externa, do poder político e do poder econômico, seja interna, da própria instituição da qual faz parte. [...] Trata-se, portanto, de uma garantia de que desfruta não apenas o Delegado de Polícia como ser humano mas, também, toda a sociedade, para a qual é interessante uma investigação criminal sem nódoas, sem perseguições, sem truculências, sem prevaricações. Uma investigação criminal simplesmente independente.109

108 LIMA FILHO, Eujecio Coutrim. Princípio do Delegado Natural e o sistema de garantias constitucionais. Disponível em https://canalcienciascriminais.com.br/principio-delegado-natural. Acesso em 04.11.2017. 109 Processo nº 0001985-98.2014.8.26.0297, Vara do Juizado Especial Cível e Criminal do Foro de Jales - SP.

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Destarte, tem-se que uma interpretação ampliativa dos dispositivos constitucionais, incluindo-se do próprio princípio do juiz natural, bem como considerando o disposto na legislação infraconstitucional atualmente em vigor, permite concluir pela solidificação do princípio do delegado natural, garantindo um delegado independente e imparcial e resguardando, em mais essa esfera, os direitos do cidadão.

2.5 Arbitragem e princípio do juiz natural

No Brasil, como é cediço, o Poder Judiciário é sobrecarregado com o excessivo número de demandas, oriundas da alta litigiosidade com a qual o cidadão brasileiro se habituou. Em consequência desse fato, tem-se que o referido Poder muitas das vezes não consegue, em tempo razoável, julgar as demandas que lhe são diariamente propostas.110

Esse cenário, evidentemente, traz significativo prejuízo para a cidadania no Brasil, ao se considerar que não poucas vezes os processos judiciais se arrastam por demasiado tempo, violando o direito fundamental à razoável duração do processo111, e, consequentemente, obstando a adequada perseguição da justiça112.

Nesse contexto, medidas alternativas à judicialização como a conciliação, a mediação e a arbitragem113 ganham cada vez mais destaque e importância, tendo em

110 Sobre esse dilema José Carlos Francisco pondera: “[...] A verdade é que a realidade brasileira mostra um alto índice de judicialização. O pensamento comum ordinariamente se volta para o Judiciário todas as vezes que surge um litígio, o que encontra respaldo jurídico na garantia fundamental de livre acesso à busca de solução judicial prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição de 1988 [...]. Cada vez mais esse quadro se agrava com a tendência natural à judicialização de todas as questões, em especial as matérias pertinentes às políticas públicas, tais como obras de construção civil (usinas, estádio, etc.), redistribuição de rendas e tributação e saúde. O índice de litigiosidade é expressivo para um número de juízes também importante mas notoriamente incapaz de dar conta dessa avalanche de ações com qualidade e com quantidade num ambiente globalizado e de risco.” (FRANCISCO, José Carlos. Busca por alternativas à judicialização e possibilidades, in Arbitragem em Geral e em Direito Tributário: Soluções alternativas de resolução de conflitos. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 2013, p. 14-15). 111 Art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal: a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. 112 A respeito da demora no processo, Rui Barbosa disse outrora que: “A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça, qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mão do julgador contraria o direito escrito das partes, e assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade.” (BARBOSA, Rui. Elogios acadêmicos e orações de paraninfo. Revista da Língua Portuguesa. São Paulo, Ed. Seguimento, 1924, p. 381.) 113 Athos Gusmão Carneiro subdivide os meios alternativos de solução de conflitos em “autocomposição” (conciliação e mediação) e “heterocomposição” (arbitragem) e explica que: “Na

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vista que, geralmente, são menos burocráticas e mais céleres do que o processo judicial. Ao mesmo tempo, o incentivo de ampliação dessas medidas alternativas contribui para desafogar o Poder Judiciário, de modo que a sociedade aufere ganhos de todas as perspectivas expostas.

Aqui, vale trazer a ponderação de Cândido Rangel Dinamarco, que chama atenção para as vantagens de se solucionar conflitos por meio da conciliação e da mediação, que, em muitos casos, trazem satisfação e pacificação para as partes com melhor qualidade e rapidez do que os meios judiciais ordinários. Conforme ressaltou a própria Exposição de Motivos do Código de Processo Civil: “entendeu-se que a satisfação efetiva das partes pode dar-se de modo mais intenso se a solução é por elas criada e não imposta pelo juiz”. 114

No que afeta ao presente trabalho, deve-se expor a relação do procedimento arbitral, que possui caráter jurisdicional115, com o princípio do juiz natural, visto que, numa análise superficial dos institutos, poder-se-ia vislumbrar eventual incompatibilidade.

Com efeito, Carlos Alberto Carmona define arbitragem como:

[...] uma técnica para a solução de controvérsias através da intervenção de uma ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção privada, decidindo com base nesta convenção sem intervenção do Estado, sendo a decisão destinada a assumir eficácia de sentença Judicial.116

autocomposição, os próprios interessados, com eventual colaboração de um terceiro, obtêm a solução de seu conflito. Na heterocomposição, quando não realizada pelas vias jurisdicionais estatais, um terceiro, escolhido pelos interessados, ‘substitui o juiz’ na missão de efetuar o julgamento.” (CARNEIRO, Gusmão Athos. Jurisdição e competência. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 78). 114 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: vol. I. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 486. 115 Nesse sentido: “Os árbitros, sim, decidem imperativamente com apoio em um poder que não vem da soberania como sucede com os juízes estatais, mas é um autêntico poder pelos litigantes outorgado a eles quando manifesta a vontade de valer-se dos caminhos da arbitragem. É indiscutivelmente jurisdicional a atividade do árbitro, como vem sendo reconhecido pela doutrina moderna.” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: vol. I. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 487). 116 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei 9.307/96. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 15.

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Dessa forma, o árbitro, nomeado pelas partes, substitui o juiz togado para instruir e julgar o procedimento arbitral, proferindo, ao final, sentença arbitral a qual possui força de verdadeiro título executivo judicial.117

A hipótese de o árbitro ser nomeado após o acontecimento dos fatos que deram ensejo ao conflito entre as partes poderia configurar um juízo de exceção, violando o princípio do juiz natural.

Essa eventual violação ao princípio do juiz natural não subsiste, contudo, a uma análise mais cuidadosa do procedimento arbitral. Isso porque, em primeiro lugar, tem-se que a arbitragem não pode ser instituída obrigatoriamente, sendo um compromisso realizado por mera liberalidade das partes que se valem de sua autonomia contratual. Aqui, deve-se frisar que apenas pessoas capazes podem recorrer a esse método de resolução de conflitos.118

Em segundo lugar, tem-se que a arbitragem só poderá versar sobre direitos disponíveis, sendo vedada para matéria atinente aos direitos indisponíveis. Nesse sentido, veja-se o entendimento de Nelson Nery Júnior:

Com a celebração do compromisso, as partes não estão renunciando ao direito de ação nem ao juiz natural. Apenas estão transferindo, deslocando a jurisdição, que, de ordinário, é exercida por órgão estatal, para um destinatário privado. Como o compromisso só pode versar sobre matéria de direito disponível, é lícito às partes assim proceder.119

Ademais, a própria imparcialidade e independência do árbitro é devidamente assegurada pela Lei nº 9307 de 1996 que regulamenta a arbitragem, ao afirmar em seu artigo 13º, § 6º o seguinte:

117 Conforme dispõe o artigo 515 do Código de Processo Civil: Art. 515. São títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título: [...] VII - a sentença arbitral; [...]. 118 É como dispõe o artigo 1º da Lei nº 9307 de 1996 que regula a arbitragem: Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. 119 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 12. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 200.

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Art. 13. Pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes. [...] § 6º No desempenho de sua função, o árbitro deverá proceder com imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição.

Sobre a imparcialidade e independência ao árbitro, Carlos Alberto Carmona faz adequada ponderação, comparando com os deveres dos juízes togados:

A primeira qualidade que se exige do árbitro é a imparcialidade, ou seja, a equidistância que o julgador deve guardar em relação às partes. O árbitro, da mesma forma que o juiz, coloca-se entre as partes e acima delas: esta condição básica para que o árbitro possa exercer sua atividade, garantindo justiça para os contendentes. [...] Espera-se que o julgador seja autônomo e livre, não tenha laços de subordinação espiritual, financeira ou política com qualquer dos litigantes.120

Destarte, tem-se que tais elementos – a imparcialidade e a independência do julgador – garantidos pelo princípio do juiz natural e essenciais para a cidadania, também estão devidamente assegurados no procedimento arbitral, de modo que o cidadão que optar por esse meio alternativo de resolução de conflitos terá, igualmente, o direito de obter um julgamento independente e imparcial.

Logo, tem-se que a arbitragem não viola, seja qual for a perspectiva adotada, o princípio do juiz natural, coexistindo em harmonia com o determinado na Constituição Federal.

2.6 Princípio do juiz natural relacionado à jurisdição e à competência

Explicitados o conceito, os elementos, e as diversas extensões do princípio do juiz natural, bem como a sua importância para Estado Democrático de Direito e para a cidadania plena, se faz de fundamental importância adentrar-se também no papel da jurisdição como função elementar do Estado a ser exercida pelo juiz natural.

Nesse sentido, o princípio do juiz natural se materializa por meio da jurisdição, atividade estatal, exercida pelo Poder Judiciário, com a finalidade de pacificar

120 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei 9.307/96. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 239 e 242.

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conflitos, ao determinar que ela deve ser exercida apenas pelo juiz competente do caso concreto:

A atividade jurisdicional é indeclinável, e somente pode ser exercida caso a caso pelo “juiz natural”. De conformidade com o princípio do juiz natural, a demanda deverá ser sempre formulada “perante um julgador cuja competência foi abstratamente fixada, em geral por regra legal prévia”.121

Maria Lúcia Karam traz aprofundado conceito, definindo a jurisdição da maneira seguinte:

Expressa a jurisdição função do Estado cuja finalidade formal é a interpretação e aplicação das leis, para dirimir conflitos, assegurar a defesa dos direitos legalmente protegidos e reprimir sua violação. Esta função do Estado – a função judiciária – consiste basicamente em dirimir, em cada caso concreto, as divergências surgidas por ocasião da aplicação das leis, assim solucionando conflitos entre particulares, entre estes e o Estado ou mesmo entre órgãos do próprio Estado, de forma a fazer valer o ordenamento jurídico coativamente toda vez que seu cumprimento não se dê sem resistência. Realizando esta função, o Estado, pelos órgãos integrantes do Poder Judiciário, se substitui aos titulares dos interesses em conflito, para, de forma imparcial e equidistante, fazer atuar, através do processo, a norma jurídica que deve disciplinar a situação que lhe é concretamente apresentada. Como expressão de uma das funções do Estado, a jurisdição é também manifestação do poder deste Estado, caracterizando-se pela imperatividade e imposição das decisões emanadas dos órgãos dela dotados. Expressão e manifestação de uma das funções e do poder do Estado, a jurisdição é necessariamente una, sendo abstratamente distribuída a todos os órgãos integrantes do Poder Judiciário, sua concretização se dando nas atividades expressadas pelo conjunto de atos realizados por estes órgãos no processo. As regras que, atribuindo a cada órgão ou grupo de órgãos jurisdicionais o exercício daquela função e daquele poder do Estado, determinam qual dos órgãos é o competente para determinado processo, operam esta concretização, assim realizando a adequação entre o processo e o órgão jurisdicional que através dele deve atuar.122

Cândido Rangel Dinamarco, em sentido conforme, define jurisdição como “o poder que o juiz ou árbitro exerce para pacificação de pessoas ou grupos e eliminação de conflitos”. O processualista também divide seu conceito em três diferentes vetores, veja-se:

121 CARNEIRO, Gusmão Athos. Jurisdição e competência. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 36-37. 122 KARAM. Maria Lúcia. Competência no Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 13-14.

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[...] À jurisdição costuma ser atribuída uma tríplice conceituação, dizendo-se habitualmente que ela é ao mesmo tempo um poder, uma função e uma atividade. Na realidade ela não é um poder, mas o próprio poder estatal, que é uno, enquanto exercido com os objetivos do sistema processual [...]. Como função a jurisdição caracteriza-se pelos escopos que mediante seu exercício o Estado-juiz busca realizar – notadamente o escopo social de pacificar pessoas, eliminando litígios. A atividade jurisdicional constitui-se dos atos que o juiz realiza no processo, segundo as regras do procedimento. 123

A jurisdição, além de ser una, possui diversas características inerentes, sendo indeclinável, inevitável, definitiva, provocada e substitutiva.

Dessa forma, tem-se, primeiramente a sua unidade, isto é, todos os juízes exercem a mesma jurisdição, que é una. A jurisdição também é indeclinável, portanto, ao juiz, não é autorizado delegar suas funções ou se eximir, por mera liberalidade, de julgar determinado processo.124

Outra característica inerente a jurisdição é a sua inevitabilidade, ao se considerar que o poder do Estado não depende da concordância das pessoas para ser exercido, conforme sua própria natureza impositiva. Já a definitividade estabelece o caráter irrefutável das decisões provenientes do poder jurisdicional, desse modo, ao contrário dos outros poderes do Estado que podem, eventualmente, ter suas decisões revistas pelo Judiciário, a jurisdição, por meio da coisa julgada material possui evidente caráter definitivo (ressalvada as hipóteses legais de ação rescisória e revisão criminal).125

A jurisdição é também uma atividade provocada, isto é, o Poder Judiciário deve ser provocado pelas partes para exercer a jurisdição, não estando a autorizado a iniciar ações de ofício. Esse elemento, nota-se, é basilar para a própria independência e imparcialidade dos magistrados.

123 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: vol. I. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 439-440. 124 CARNEIRO, Gusmão Athos. Jurisdição e competência. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 34. 125 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: vol. I. 8 ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 458-459.

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Finalmente, destaca-se a característica de “atividade substitutiva”, por conseguinte, tem-se que a jurisdição substitui a vontade das partes visando a solucionar determinado conflito adequando a situação aos dispositivos legais.126

Definida a jurisdição e demonstradas suas características, tem-se que a materialização da atividade jurisdicional pelos juízes acontece na medida de sua competência. A jurisdição será sempre una, mas distribuída entre os magistrados na medida de sua competência.

Nas palavras de Athos Gusmão Carneiro:

Todos os juízes exercem jurisdição, mas a exercem numa certa medida, obedientes a limites preestabelecidos. São, pois, “competentes” somente para processar e julgar determinadas causas. A “competência”, assim, “é a medida da jurisdição”, ou, ainda, éa jurisdição na medida em que pode e deve ser exercida pelo juiz.127

Por conseguinte, conforme visto ao longo dos capítulos anteriores, o art. 5º, inciso LIII da Constituição Federal, ao determinar que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente, bem como o inciso XXXVII do mesmo supracitado artigo, ao determinar que não haverá juízo ou tribunal de exceção consagram o princípio do juiz natural realizando expressa vinculação do juiz natural com o juiz competente.

Em outras palavras, o juiz natural do processo será sempre o juiz cuja competência foi abstratamente pré-definida pela Constituição ou pela lei, de modo que exercerá a sua jurisdição na medida da designação de sua competência.

Daí porque se mostra de fundamental importância que os critérios definidores da competência, tanto constitucionais quanto infraconstitucionais, sejam claros e

126 CARNEIRO, Gusmão Athos. Jurisdição e competência. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 35. 127 CARNEIRO, Gusmão Athos. Jurisdição e competência. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 97. O autor também traz a definição de Humberto Theodoro Júnior: “a competência é justamente o critério de distribuir entre os vários órgãos judiciários as atribuições relativas ao desempenho da jurisdição.” (JÚNIOR, Humberto Theodoro, Curso de direito processual civil, 35ª Ed. Rio de janeiro: Forense, 2000, p. 147) e de Eduardo Arruda Alvim: “a competência significa ideia da legitimidade do exercício de um determinado poder, num determinado momento e sob determinadas circunstâncias.” (ALVIM, Eduardo Arruda. Curso de direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 90).

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objetivos, limitando o máximo possível qualquer interpretação subjetiva por parte do aplicador da lei, para que, desse modo, se assegure plenamente a imparcialidade e a independência do magistrado.

Nesse sentido, no que tange ao presente trabalho, necessário se faz verificar, ainda que brevemente, as regras constitucionais e infraconstitucionais de competência, em especial, no processo penal, bem como as consequências da violação de tais normas para o processo, ao se considerar a abordagem do capítulo seguinte referente a consistência da aplicação do princípio do juiz natural na denominada Operação Lava Jato.

2.7 Competência no processo penal

O Código de Processo Penal traz em seu artigo 69 os seguintes critérios definidores da competência:

Art. 69. Determinará a competência jurisdicional: I - o lugar da infração: II - o domicílio ou residência do réu; III - a natureza da infração; IV - a distribuição; V - a conexão ou continência; VI - a prevenção; VII - a prerrogativa de função.

Conforme salienta Guilherme Madeira Dezem, o referido Código errou ao definir a conexão e a continência como critérios de determinação de competência. A natureza jurídica da conexão e da continência, como se verá com maior profundidade adiante, é melhor definida como critério de modificação da competência.128

Feita essa ponderação, tem-se que com base nos critérios acima expostos, a doutrina formulou questões visando a concretização da competência de determinado processo, como expõem Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes:

128 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 4. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018, p. 362-363.

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A observação dos dados fundamentais e das características da organização judiciária brasileira torna possível determinar os diversos passos da caminhada por meio da qual a jurisdição sai do plano abstrato e chega à realidade concreta da atribuição do seu exercício a determinado juiz, com referência a determinado processo. 129

Dos métodos apontados pela doutrina, o de Vicente Greco Filho se mostra bastante adequado, sustentando a divisão da competência em cinco níveis de indagação, quais sejam, a competência originária dos tribunais, ou pela prerrogativa de função, a competência das justiças especiais, a competência da Justiça Federal, a competência do foro e a competência de juízo.130

Nessa toada, quanto a competência originária ou pela prerrogativa de função tem-se que estas estão dispostas majoritariamente na própria Constituição Federal, possuindo também disposição nas Constituições Estaduais.

Referido critério de definição de competência estabelece que determinados cargos públicos possuem a prerrogativa de serem julgados originariamente pelos Tribunais – e não pelos juízes de primeiro grau, não tendo, essa prerrogativa, qualquer vinculação com a pessoa a ser julgada, mas, unicamente, vinculação ao cargo público ocupado.

A finalidade do instituto é a de resguardar as funções essenciais ao Estado Democrático de Direito, por conseguinte, a intenção do constituinte não foi a de conceder privilégios injustificados para determinadas pessoas, mas sim de salvaguardar os cargos fundamentais à democracia.

Nesse sentido, a Constituição estabelece, por exemplo, em seu artigo 102, inciso I, alínea b que compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar originariamente as infrações penais comuns cometidas pelo Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador Geral da República.

129 GRINOVER, Ada Pellegrini. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. FERNANDES, Antonio Scarance. As nulidades no processo penal. 12ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 39-40. 130 GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 8. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 138.

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No que se refere a competência das justiças especiais, tem-se que em matéria penal, a constituição instituiu a Justiça Eleitoral e a Justiça Militar as quais possuem, respectivamente, competência para julgamento dos crimes eleitorais e dos crimes militares. A Justiça do Trabalho não possui qualquer competência em matéria penal.

Já a Justiça Federal apesar de ser classificada como justiça comum – assim como as justiças estaduais, pois julga uma generalidade de infrações penais, inegavelmente possui um certo grau de especialidade quando comparada à Justiça Estadual cuja competência é residual.131

Nesse sentido, o artigo 109 da Constituição Federal estabelece uma série de competências especificas para a Justiça Federal, como, por exemplo, a competência para processar e julgar os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente, entre outros.132

131 GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 8. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 145. 132 Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho; II - as causas entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e Município ou pessoa domiciliada ou residente no País; III - as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional; IV - os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral; V - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente; V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo; VI - os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira; VII - os habeas corpus, em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição; VIII - os mandados de segurança e os habeas data contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos tribunais federais; IX - os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar; X - os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro, a execução de carta rogatória, após o "exequatur", e de sentença estrangeira, após a homologação, as causas referentes à nacionalidade, inclusive a respectiva opção, e à naturalização; XI - a disputa sobre direitos indígenas. § 1º As causas em que a União for autora serão aforadas na seção judiciária onde tiver domicílio a outra parte.

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Caso a competência para julgamento do crime não seja de nenhuma das justiças especiais nem da Justiça Federal, será, então, o caso de julgamento pelas Justiças dos Estados, que, como visto, possuem competência comum residual.

Definida a justiça competente para o julgamento, o Código de Processo Penal estabelece como regra geral, conforme expõe seu artigo 70, que o foro competente será o do lugar em que se consumar a infração, ou no caso de tentativa, no lugar em que realizado o último ato de execução.

Referido código adotou tal critério, conforme frisa Vicente Greco Filho, por duas principais razões, quais sejam:

Uma de ordem funcional, porque é no local do resultado que, nos crimes materiais, permanecem os vestígios, facilitando a colheita das provas; e uma de ordem social, porque é no local do resultado que ocorre, predominantemente, o strepitus delicti e o desequilíbrio social decorrente da infração, devendo, aí dar-se a reação social consistente na repressão penal.133

O Código de Processo Penal ainda estipula hipótese na qual o crime se consuma fora do território nacional, apesar de iniciado no Brasil. Nesse caso, a competência será determinada pelo local onde tiver sido praticado o último ato de execução no país. Já quando o último ato de execução for praticado no exterior, então será competente o juízo no qual o crime, embora parcialmente, tenha produzido ou devia produzir seu resultado.

§ 2º As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal. § 3º Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual. § 4º Na hipótese do parágrafo anterior, o recurso cabível será sempre para o Tribunal Regional Federal na área de jurisdição do juiz de primeiro grau. § 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal. 133 GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 8. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 151.

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Caso não seja conhecido o lugar da infração, a competência será do local de domicílio ou residência do réu. Exclusivamente nos casos de ação de ação penal privada, o querelante poderá escolher entre o foro do domicílio ou da residência do réu ou o do lugar da infração.

Definida a competência de foro, resta, finalmente, verificar qual o juízo competente, conforme explica Guilherme Madeira Dezem, o Código de Processo Penal apresenta três critérios para determinação dessa competência, sendo eles a distribuição, a natureza da infração e a prevenção.134

Nesse sentido, a distribuição ocorrerá quando no foro existir mais de um juízo com competências iguais.

No que tange à natureza da infração, há diversos foros, no Brasil, que possuem varas especializadas em determinadas matérias para julgamento, por exemplo, de crimes de lavagem de dinheiro e formação de organização criminosa, crimes de tráfico de drogas, e os próprios crimes dolosos contra a vida, que são de competência do tribunal do júri. Para esses casos, é a natureza da infração que determinará o juízo competente.

Quanto à prevenção, como se percebe do disposto nos artigos 75, parágrafo único e 83 do diploma processual penal, esta ocorrerá quando, na existência de mais de um juiz competente um deles anteceder o outro na prática de algum ato processual ainda que anterior a denúncia ou a queixa.

O Código de Processo Penal estabelece também os critérios de modificação de competência, por meio da conexão e continência. Tais critérios serão abordados e analisados com a devida profundidade no próximo capítulo.

Exposta a estrutura de concretização da competência no processo penal, surge questão lógica a respeito das consequências da violação das normas de competência tanto na esfera constitucional, quanto na esfera infraconstitucional.

134 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 4. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018, p. 425.

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2.8 Consequências do descumprimento do princípio do juiz natural

Conforme já frisado, o princípio do juiz natural, em uma de suas expressões, determina que os cidadãos deverão ser processados e sentenciados somente pela autoridade competente.

Desse modo, questão muito debatida, especialmente no âmbito do processo penal, é a de qual seria a consequência da violação do princípio do juiz natural, dada as disposições que estabelecem as competências tanto na esfera constitucional quanto na esfera infraconstitucional.

Nessa seara, a doutrina e a jurisprudência possuem posições bastante conflitantes. No que se refere as competências estabelecidas pela Constituição Federal há posições doutrinarias no sentido de que a sua violação ensejaria a inexistência dos atos praticados, bem como posições no sentido de que tais atos seriam apenas nulos.

No sentido de que a violação das competências postas pela Constituição ensejaria a inexistência dos atos praticados, se posicionam Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes e José Frederico Marques.

Para os três primeiros professores, que, conforme já visto, entendem que o princípio do juiz natural se refere apenas à autoridade constitucionalmente competente, o cumprimento do princípio seria uma condição para o exercício da jurisdição, um verdadeiro pressuposto de existência do processo. De modo que caso desrespeitadas as competências postas na Constituição, o referido processo seria inexistente.135

Para José Frederico Marques, cuja doutrina não limita o alcance do princípio apenas as competências colocadas pela constituição, a violação de dispositivos constitucionais sobre competência resulta na inexistência dos atos praticados devido

135 GRINOVER, Ada Pellegrini. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. FERNANDES, Antonio Scarance. As nulidades no processo penal. 12ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 42.

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à ausência de jurisdição dos atos proferidos em dissonância com a Constituição Federal (por exemplo, um Tribunal Militar julgar uma causa de competência da Justiça Federal).136

No sentido de que referida violação à Constituição geraria apenas a nulidade do processo, posicionam-se Maria Lúcia Karam e Gustavo Henrique Badaró.137 Para os referidos professores, a incompetência, mesmo que constitucional, não configura a inexistência do processo, pois o juiz, apesar de constitucionalmente incompetente, ainda possui jurisdição, que é uma só. Logo, para os mencionados professores, o vício da incompetência constitucional gera a nulidade de todo o processo e não a sua inexistência.

Situação diversa seria a de processo desenvolvido por pessoa que não pertence aos quadros do Poder Judiciário. Nesse caso, ausente a jurisdição, inexistentes são os atos jurídicos proferidos:

Não obstante a autoridade dos que sustentam o entendimento de que o processo instaurado perante órgão constitucionalmente incompetente seria inexistente, parece desnecessário recorrer a esta categoria da inexistência, para estabelecer os particulares e mais extensos efeitos da incompetência decorrente da inobservância de regras constitucionais. [...] Para sustentar a inexistência do processo, em tal hipótese, afirma-se que o juiz natural seria verdadeiro pressuposto de existência do processo, diante de cuja ausência não se poderia falar em mera nulidade da relação processual. Tal afirmação já não se compatibiliza com o fato de que, diante do princípio da unidade da jurisdição, o órgão competente não se confunde com o órgão dotado de jurisdição. Sendo uma só a função jurisdicional, abstratamente atribuída a todos os órgãos do Poder Judiciário, não se pode afirmar que o órgão jurisdicional que inadequadamente atue no processo, por ser constitucionalmente incompetente, não seja dotado de jurisdição. [...] A inexistência jurídica do processo só se dá quando este se desenvolve perante pessoa que, por não estar investida no cargo judiciário ou por já ter dele se desligado, não é órgão dotado de jurisdição.138

136 MARQUES, José Frederico. Da competência em matéria penal. Campinas: Millennium, 2000, p 391- 392. 137 BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 552. 138 KARAM. Maria Lúcia. Competência no Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 51-52.

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Referido posicionamento, em que pesem os entendimentos contrários, parece ser o mais acertado, pois coerente com a unidade de jurisdição e com os requisitos de existência e validade do processo.

Já no que se refere as consequências das violações das normas infraconstitucionais de competência tem-se que o artigo 567 do Código de Processo Penal estabelece que a incompetência do juízo anula somente os atos decisórios, devendo o processo, quando for declarada a nulidade, ser remetido ao juiz competente.

Desse modo, diferentemente do que ocorre na hipótese de violação dos dispositivos constitucionais de competência que enseja a nulidade de todo o processo, a legislação infraconstitucional estabeleceu consequência especifica, restringindo a nulidade aos atos decisórios proferidos pelo juiz incompetente.

Aqui, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes139, José Frederico Marques140 e Maria Lúcia Karam141 admitem a aplicação do mencionado artigo.

Em sentido contrário, Gustavo Henrique Badaró sustenta que o artigo 567 do Código de Processo Penal não tem aplicação nem mesmo para a legislação infraconstitucional, devendo, também nesse caso, ser decretada a nulidade de todo o processo.142

Respeitado o entendimento em sentido contrário, a posição dos que admitem a aplicação do referido artigo parece ser a mais acertada, dada a clareza do dispositivo legal.

139 GRINOVER, Ada Pellegrini. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. FERNANDES, Antonio Scarance. As nulidades no processo penal. 12ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 47. 140 MARQUES, José Frederico. Da competência em matéria penal. Campinas: Millennium, 2000, p. 391. 141 KARAM. Maria Lúcia. Competência no Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 50. 142 BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 552.

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O princípio do juiz natural, como já visto, afeta tanto as disposições constitucionais quanto infraconstitucionais. Desse modo, a lei infraconstitucional deve sempre estabelecer normas de concretização de competência em consonância com os elementos postos pelo princípio, de modo a garantir a imparcialidade e independência do juízo.

Por conseguinte, não podem os dispositivos infraconstitucionais estabelecer normas que tornem a escolha do magistrado passível de demasiada subjetividade, ou, normas que permitam, por exemplo, a escolha deliberada do juiz.

Isso não quer dizer, contudo, que os efeitos do princípio do juiz natural na legislação infraconstitucional exijam necessariamente a nulidade de todo o processo, de modo que o Código de Processo Penal ao determinar a nulidade dos atos decisórios com a consequente remessa ao juiz competente parece preservar a independência e imparcialidade do magistrado, com evidente ganho também para a preservação da efetividade e da razoável duração do processo.

Deve-se, ainda, esclarecer a questão do efeito do descumprimento do princípio do juiz natural relacionada a competência absoluta e relativa no processo penal.

É cediço na jurisprudência e em parte da doutrina que a competência absoluta é aquela que decorre de interesse majoritariamente público e a competência relativa é aquela que decorre do interesse predominante das partes.

Conforme explica Guilherme Madeira Dezem:

A competência absoluta é aquela estabelecida conforme interesse preponderantemente público, que pode ser conhecida mesmo de ofício pelo magistrado e também que não é objeto de preclusão, podendo até mesmo ser alegada em sede de revisão criminal depois de transitado em julgado o processo. Como a competência absoluta é retratada de forma a preponderar o interesse público, então ela não pode ser modificada, sendo improrrogável. Já a competência relativa é estabelecida no interesse preponderantemente particular, podendo ser prorrogada. Por poder ser prorrogada haverá preclusão para a parte caso não seja alegada

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no momento oportuno, de forma que não poderá ser alegada em sede de revisão criminal.143

Acontece que especificamente no processo penal, essa diferença entre competência absoluta e relativa é bastante mitigada, ao se considerar que mesmo a competência em razão do local do delito é aferida por interesse predominantemente público, veja-se, nesse sentido, o posicionamento de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes:

Todavia, no processo penal, em que o foro comum é o da consumação do delito (art. 70 do CPP), acima do interesse da defesa é considerado o interesse público expresso no princípio da verdade real: onde se deram os fatos é mais provável que se consigam provas idôneas que os reconstituam mais fielmente no espírito do juiz. Por isso, mitiga-se, no processo penal, a diferença entre competência absoluta e relativa [...].144

Além da maior facilidade de obtenção das provas, é evidente que a repercussão social do crime no local em que foi consumado tende a ser maior, de modo que é neste local que a sociedade espera uma resposta efetiva do Estado para restaurar a ordem social.

Ademais, o próprio Código de Processo Penal não faz qualquer distinção entre as competências absolutas ou relativas, limitando-se o seu artigo 109 a determinar que se em qualquer fase do processo o juiz reconhecer motivo que o torne incompetente, declará-lo-á nos autos, haja ou não alegação da parte devendo o processo ser remetido ao juízo competente.

Portanto, tem-se que toda essa distinção entre a competência absoluta e relativa e seus efeitos em relação ao descumprimento das normas de competência afeta muito mais ao processo civil, perdendo importância no âmbito do processo penal.145

143 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 4. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018, p. 348-349. 144 GRINOVER, Ada Pellegrini. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. FERNANDES, Antonio Scarance. As nulidades no processo penal. 12ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 41. 145 A jurisprudência dos tribunais superiores, contudo, tem se valido das mesmas regras de competência relativa do processo civil para o processo penal – posição com a qual se discorda, gerando preclusão caso não alegada no momento oportuno e não podendo ser determinada de ofício pelo juízo. Veja-se o seguinte julgado: “[...] 5. Eventual irregularidade quanto à competência territorial do Juiz de

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Finalmente, a jurisprudência não costuma se aprofundar tanto no tema ora discutido, aplicando o disposto no artigo 567 do Código de Processo Penal para qualquer espécie de incompetência, não fazendo distinção entre as constitucionais e infraconstitucionais, bem como dando a mesma solução (aplicação do art. 567 do CPP) tanto para os casos de competência absoluta, quanto para os casos de competência relativa.146

Expostas as consequências do descumprimento do princípio do juiz natural, máxime no que tange as regras de competência no processo penal, bem como, ao longo deste capítulo, todos os elementos e extensões do princípio na Constituição Federal, verificar-se-á, a seguir, a consistência de sua aplicação na chamada Operação Lava Jato.

Direito, que expediu o mandado de busca e apreensão e decretou a prisão cautelar em desfavor do paciente, se convalidou em virtude da ausência de impugnação no momento oportuno. Como é cediço, a competência territorial é relativa e não absoluta, como pretende o impetrante, motivo pelo qual deve ser impugnada pelo meio adequado e no momento apropriado, o que não ocorreu na hipótese dos autos. [...]” (STJ, Quinta Turma, HC 368.217/MA, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 02.05.2017). 146 PENAL. PROCESSUAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO. FALSIDADE IDEOLÓGICA. OCULTAÇÃO DA PROPRIEDADE DE EMPRESA ENVOLVIDA EM PROCEDIMENTO FISCAL. DECLÍNIO DE COMPETÊNCIA. APROVEITAMENTO DOS ATOS INSTRUTÓRIOS. RATIFICAÇÃO PELO JUÍZO COMPETENTE. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. PRECEDENTES. INÉPCIA DA DENÚNCIA. INOCORRÊNCIA. [...] 2. Nos termos da jurisprudência desta Corte, a modificação da competência não invalida automaticamente a prova regularmente produzida. Destarte, constatada a incompetência absoluta, os autos devem ser remetidos ao juízo competente, que pode ratificar ou não os atos já praticados. 3. Ausente nulidade no caso, porquanto verifica-se que o juízo ratificou os atos não meritórios até então praticados, tendo apenas intimado as partes para a apresentação de novas alegações finais ou de novos requerimentos, estando os autos conclusos para julgamento. [...] 6. Habeas corpus não conhecido. (STJ, Sexta Turma, HC 308.589/RJ, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 06.08.2016); PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. NÃO CABIMENTO. FRAUDES EM LICITAÇÕES PÚBLICAS. CONDENAÇÕES CONFIRMADAS PELO TRIBUNAL REGIONAL. PLEITO DE NULIDADE. NÃO DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO. APROVEITAMENTO DE ATOS PRATICADOS EM JUÍZO INCOMPETENTE. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DO ART. 567 DO CPP. WRIT NÃO CONHECIDO. [... ] 2. O reconhecimento de nulidades no curso do processo penal reclama uma efetiva demonstração do prejuízo à parte, sem a qual prevalecerá o princípio da instrumentalidade das formas positivado pelo art. 563 do CPP (pas de nullité sans grief). Precedentes. 3. "A remessa dos autos para a Justiça Federal não implica a declaração de nulidade de todos os atos judiciais praticados, conforme pretende o impetrante, mas tão- somente dos atos decisórios proferidos pelo juízo incompetente, nos termos do art. 567 do CPP" (HC 39.713/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, DJ 22/08/2005). [...] 7. Habeas corpus não conhecido. (STJ, Quinta Turma, HC 320.638/PE, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 24.10.2017).

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3. O CASO DA OPERAÇÃO LAVA JATO E A CONSISTÊNCIA DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO

Demonstrada a absoluta relevância da manutenção do direito de os cidadãos serem julgados por juiz independente e imparcial para a preservação da cidadania no Estado Democrático de Direito, bem como todo o arcabouço de garantias e vedações constitucionais essenciais à preservação do princípio do juiz natural e de suas extensões para outros institutos constitucionais, passa-se a analisar o caso denominado “Operação Lava Jato” o qual possui relevantes aspectos jurídicos atinentes ao tema do princípio do juiz natural.147

Com efeito, os crimes investigados pelo Ministério Público Federal na Operação Lava Jato ocorreram em diversos locais tais como a cidade de Curitiba, Londrina, São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, entre outros. Contudo, todas as ações penais relativas as primeiras etapas da operação tramitaram perante a 13ª Vara Federal de Curitiba, situação que evidentemente gera questionamentos acerca da competência – e, por consequência, acerca da estrita observância do princípio do juiz natural – do referido juízo para julgar os crimes ocorridos em diversos pontos do território nacional.

Referida operação, ademais, é cercada de considerável clamor popular, possuindo posição de destaque no cenário jornalístico brasileiro há mais de quatro anos. Nessa seara, o caso é objeto de constante debate por parte dos cidadãos leigos e também por parte da comunidade jurídica em geral, sendo inegável a enorme influência da operação no ambiente político e econômico do Brasil.

Em síntese, a investigação comandada pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal iniciou-se em 2014 e possuía como objeto principal apurar as condutas de quatro organizações criminosas lideradas por doleiros (Carlos Habib Chater, , Nelma Kodama e Raul Srour).148

147 Registre-se, desde logo, que não se pretende, neste capítulo, analisar a aplicabilidade do princípio do promotor natural e do delegado natural. O objeto do estudo será limitado à aplicabilidade do princípio do juiz natural. 148 Disponível em http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/caso-lava-jato/entenda-o-caso. Acesso em 03.01.2018.

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Inicialmente, apurou-se a conduta do doleiro Carlos Habib Chater e pessoas físicas e jurídicas a ele vinculadas os quais se envolveram em um esquema de lavagem de dinheiro com o ex-deputado federal José Mohamed Janene e empresas sediadas na cidade de Londrina, Estado do Paraná.

Conforme avançou com a primeira investigação acima mencionada, o Ministério Público Federal ampliou o objeto da operação para os outros doleiros que, apesar de possuírem atividades criminosas relacionadas entre si, formavam grupos autônomos razão pela qual foram criadas quatro operações: (i) a Operação Lava Jato, envolvendo o doleiro Carlos Habib Chater; (ii) a Operação Bidone, envolvendo o doleiro Alberto Youssef; (iii) as operações Dolce Vitta I e II, envolvendo a doleira Nelma Mitsue Penasso Kodama; (iv) e a operação Casablanca, envolvendo o doleiro Raul Henrique Srour.

Com o aprofundamento das investigações verificou-se que a organização criminosa chefiada por Alberto Youssef possuía participação ativa na prática de crimes em desfavor da . Tal situação deu ensejo a uma nova fase da Operação Lava Jato (nome ao qual passou-se a ser chamada a investigação como um todo) que deixou de investigar apenas os núcleos dos doleiros para abranger todas as grandes empreiteiras do país suspeitas de formarem um cartel para fraudar licitações da Petrobras, dentre outros crimes contra a ordem econômica, corrupção e lavagem de dinheiro.149

Com o desenrolar da investigação do cartel das empreiteiras, descobriu-se o envolvimento de diversos políticos no esquema ilícito, os quais eram responsáveis pela indicação de nomes para ocupar os mais altos cargos de diretoria da Petrobras. Em contrapartida, os diretores indicados cobravam propina das empresas interessadas em firmar contratos com a estatal e as repassavam aos políticos, que,

149 Disponível em http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/caso-lava-jato/atuacao-na-1a- instancia/parana/investigacao/historico/por-onde-comecou. Acesso em 19.06.2018.

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muitas das vezes, utilizavam os valores para realização de “caixa dois” em suas campanhas políticas.150

Neste derradeiro capítulo, será verificada, a seguir, a consistência da observância do princípio do juiz natural na operação Lava Jato. Primeiramente, será analisado o instituto da especialização de varas por resoluções de tribunais, sua finalidade, as resoluções que as definem e a sua interação com o princípio do juiz natural, dada a relevância da especialização para o desenvolvimento da operação.

Após, verificar-se-á a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar os casos da operação. Aqui, devido ao vultoso número de processos da Operação Lava Jato em trâmite nessa Vara e as denúncias que serão apresentadas futuramente, a presente dissertação se restringirá a analisar a consistência do princípio do juiz natural referente as ações penais relativas a primeira fase da operação151 afeta ao núcleo dos doleiros conforme acima explicitado.

Nesse sentido, será analisada a consistência do princípio do juiz natural nos dez processos penais relativos ao núcleo dos doleiros investigados na operação152. Para realizar tal analise, a metodologia utilizada será a verificação dos principais argumentos utilizados pelo juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba para decidir pela sua competência, quando do julgamento das exceções de incompetências opostas pelas partes.

Frise-se, que não se pretende, aqui, produzir uma verdadeira petição de defesa ou de acusação com profunda análise de todos os fatos alegados e provas

150 Conforme de extrai de uma das denúncias apresentadas pelo Ministério Público Federal (processo nº 5063130-17.2016.404.7000). Disponível em http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/caso-lava- jato/atuacao-na-1a-instancia/parana/denuncias-do-mpf/documentos/denuncialula_odebrecht.pdf. Acesso em 19.06.2018. 151 O Ministério Público Federal dividiu a operação em diferentes “fases”, a primeira fase se refere ao núcleo dos doleiros conforme se extrai do site do Ministério Público Federal (Disponível em http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/caso-lava-jato/atuacao-na-1a instancia/parana/denuncias-do- mpf. Acesso em 27.04.2018). 152 Processos nº 5025687-03.2014.404.7000, 5047229-77.2014.4.04.7000, 5026663- 10.2014.404.7000, 5025699-17.2014.404.7000, 5049898-06.2014.404.7000, 5026212- 82.2014.404.7000, 5025692-25.2014.404.7000, 5026243-05.2014.404.7000, 5025676- 71.2014.404.7000 e 5025695-77.2014.404.7000. Todos os processos relativos à Operação Lava Jato citados ao longo deste capítulo estão disponíveis para consulta pública no endereço eletrônico da Justiça Federal do Paraná: https://www.jfpr.jus.br. Acesso em 19.06.2018.

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produzidas, sendo o escopo desse presente capítulo restringir-se a verificar as razões de decidir pela competência da 13ª Vara Federal de Curitiba, demonstrando os principais fatores que sustentaram a manutenção da competência dos processos perante o referido juízo, bem como se esses fatores são compatíveis com o princípio do juiz natural.

Finalmente, será demonstrada a posição do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento de questão de ordem relativa a primeira fase da operação.

3.1 A criação de Varas especializadas confrontada com o princípio do juiz natural

Como é cediço, a 13ª Vara Federal de Curitiba, na qual tramita a grande maioria dos processos relativos à Operação Lava Jato, possui competência especializada para, dentre outras matérias, julgar crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos e valores, bem como os crimes realizados por organizações criminosas.

Dessa forma, antes de se adentrar na análise propriamente da competência do juízo para julgar os processos da Operação Lava Jato, necessário se faz verificar determinados aspectos da especialização das varas judiciais, ao se considerar evidente tendência do Poder Judiciário em especializar varas em razão de matérias específicas.

Isso porque, a especialização de varas influi diretamente na fixação da competência processual, e, portanto, possui relação direta com o princípio do juiz natural.

Por conseguinte, será analisada a seguir, os motivos e objetivos da especialização de varas – dando-se ênfase para a criação das varas especializadas no julgamento dos crimes contra a segurança nacional e de lavagem de dinheiro – bem como a questão da constitucionalidade da especialização determinada por resoluções de tribunais – como é o caso da 13ª Vara Federal de Curitiba.

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3.1.1 Finalidade da especialização – julgamentos mais céleres e efetivos

Atualmente, vigora considerável consenso no Poder Judiciário e na comunidade jurídica em geral da necessidade de uma maior especialização das varas judiciais.

A diversidade cada vez maior de problemas e situações enfrentadas pela sociedade moderna nas mais diversas áreas do conhecimento e do convívio social tornam cada vez mais difícil o trabalho do juiz “clínico geral” de primeiro grau153, configurando um claro contrassenso exigir de um mesmo magistrado que julgue com celeridade e eficiência matérias complexas do direito penal, do direito de família, do direito ambiental, do direito empresarial e etc...

Essa mesma dificuldade também é percebida entre os membros do Ministério Público e entre os delegados de polícia, os quais não raras vezes atuam investigando crimes que envolvem facções criminosas violentas, ao mesmo tempo em que devem lidar, por exemplo, com casos relativos ao direito de família ou ao direito ambiental.

Em um cenário no qual cada vez mais a advocacia se mostra segmentada e especializada nas diversas matérias do direito para oferecer aos seus clientes um trabalho com qualidade técnica elevada e em tempo suficiente, é de se esperar que o Poder Judiciário ofereça ao jurisdicionado uma tutela célere e efetiva – conforme determina a própria Constituição Federal.

153 A doutrina também possui entendimento claramente favorável à especialização do trabalho do juiz. Nesse sentido Gustavo Henrique Badaró ratificando o entendimento exarado por Cândido Rangel Dinamarco afirma: “Do ponto de vista técnico-processual, a criação de Justiças especializadas permite que, graças ao domínio específico de determinada matéria, os julgadores passem a ter um conhecimento mais profundo sobre os temas que lhes compete julgar, permitindo além de uma maior agilidade do exercício de suas funções, adquirir também uma ‘sensibilidade mais aguçada para as causas que lhes competem’ (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: vol I. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 381). Não há, pois, motivo para se olhar com desconfiança os juízes especiais ou especializados [...]. Ao contrário, uma vez que eles vivem mais perto da realidade social a que são chamados para julgar, serão mais sensíveis aos valores de que esta realidade é portadora, tendo condição de proferir um julgamento justo.” (BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 140).

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Atento a tais dificuldades e a necessidade de melhora na prestação jurisdicional, o Poder Judiciário tem se posicionado favoravelmente a especialização de varas, sendo bastante comum, tanto no âmbito cível, quanto no âmbito penal, a criação de varas segmentadas no direito de família, sucessões, infância e juventude, recuperação judicial e falência, empresarial, violência contra a mulher, organizações criminosas, e em crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem de dinheiro.

Essa política, conforme ventilado, visa a garantir ao jurisdicionado julgamentos mais céleres, técnicos, previsíveis e efetivos, ao se considerar que o juiz titular de uma vara especializada, evidentemente, estará em melhores condições de se aperfeiçoar, bem como de aperfeiçoar a sua estrutura de trabalho de modo a garantir uma justiça tempestiva. Igualmente, os servidores dessas varas também poderão especializar sua estrutura de trabalho melhorando o fluxo processual.

Nesse sentido, são inúmeros os posicionamentos recentes de órgãos relacionados ao Poder Judiciário. O Conselho Nacional de Justiça – CNJ, por exemplo, já recomendou aos tribunais de todo país a especialização de varas em julgamento de processos relacionados a saúde154. Nessa oportunidade, a conselheira Maria Cristina Peduzzi sustentou, na linha do acima exposto que “a especialização pode propiciar decisões mais adequadas e precisas”.

Em outras oportunidades o CNJ também já se manifestou favoravelmente a criação de varas especializadas em execução de penas alternativas155, de varas especializadas em conflitos decorrentes da lei de arbitragem156, entre outras.

154Disponível em http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/60547-cnj-recomenda-aos-tribunais-a-criacao-de- varas-para-saude. Acesso em 26.01.2018. 155Disponível em http://www.cnj.jus.br/noticias/68651-cnj-determina-criacao-de-varas-especializadas- em-execucao-de-penas-alternativas. Acesso em 26.01.2018. 156 Conforme determinou a Corregedoria Nacional de Justiça em suas metas para o exercício de 2015: “A Corregedoria Nacional de Justiça conclama: Atribuição de competência para duas varas cíveis, dentre as instaladas nas capitais, para processarem e julgarem os conflitos decorrentes da lei de arbitragem, transformando-as em juízos especializados nesta área.”. Disponível em http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques/arquivo/2015/05/4b745d50b26aeb6683d0756c632f20d 6.pdf. Acesso em 26.01.2018.

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Nesse mesmo diapasão, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, também tem se posicionado favoravelmente a política de especialização de varas. Recentemente, referido tribunal especializou duas varas empresariais e de conflitos relacionados a arbitragem tendo o Corregedor-geral de Justiça e presidente eleito para o biênio de 2018 e 2019, Desembargador Manoel Pereira Calças afirmado que:

“Este sonho contribuirá para lograrmos obter maior celeridade e maior qualidade técnica das decisões que serão proferidas em matéria empresarial, ganhando mais agilidade, maior profundidade, segurança jurídica, elementos indispensáveis ao regular funcionamento da economia brasileira, servindo ainda de incentivo para que São Paulo e o Brasil passem a figurar como destinatários relevantes para os investimentos internacionais no mercado brasileiro”157

Diversos outros órgãos do Poder Judiciário também já se manifestaram nesse sentido, como o colegiado do Conselho da Justiça Federal – CJF, que, apenas a título exemplificativo, aprovou em 2017 resolução que dispõe sobre proposta de especialização de varas federais em direito da concorrência e comércio internacional.158

Finalmente, e, no que concerne à operação Lava Jato, vale trazer os comentários do Ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça Gilson Langaro Dipp enaltecendo a especialização recomendada pelo CJF de varas federais em julgamentos de crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem de dinheiro, bem como de crimes cometidos por organizações criminosas, o que é o caso da 13ª Vara Federal de Curitiba:

Na Justiça Federal, a criação, em 2003, das varas especializadas no processamento e julgamento dos crimes de “lavagem” de dinheiro, contra o Sistema Financeiro Nacional e aqueles praticados por organizações criminosas, foi uma das mais vitoriosas ações concretizadas nos últimos anos. A essas unidades, verdadeiros centros de inteligência, pode ser creditado o aumento crescente no número de bens apreendidos originários da prática desses crimes, de prisões e de condenações efetivas. Um efeito inesperado da sua criação as torna ainda mais imprescindíveis: o capital político que essas unidades representam para o Poder Judiciário brasileiro. [...] O

157 Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-dez-09/vara-falencias-tj-sp-desloca-23-mil-volumes- papel. Acesso em 26.01.2018. 158 Disponível em http://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2017/maio/especializacao-de-varas-federais-em- direito-da-concorrencia-e-comercio-internacional-e-aprovada. Acesso em 26.01.2018.

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crime organizado, fenômeno de grande complexidade, é uma das mais graves ameaças à estabilidade social no Brasil. A espinha dorsal de toda e qualquer organização criminosa é o dinheiro obtido com a sua atividade espúria. A “lavagem” de dinheiro, prática obrigatória dessa criminalidade estruturada, além de financiá-la, serve para realimentar o rol de atividades ilícitas. É notória, portanto, a magnitude dos prejuízos sociais e econômicos que os crimes de “lavagem” de dinheiro causam à ordem pública e à sociedade. Daí a importância de perseguir esses recursos financeiros, apreendê-los e descapitalizar essas organizações. Assim como uma empresa sem recursos tende a falir, o crime organizado, sem capital de giro, desorganiza-se e quebra. [...] Pode-se afirmar que as operações de combate à “lavagem” de dinheiro hoje, com essa atuação cooperativa, são facilmente detectadas, mais bem apuradas e investigadas. Com isso, resultam em uma segura propositura de ação penal e em um célere e justo processamento e julgamento.159

Como se percebe, há uma forte tendência do Poder Judiciário em especializar varas com a finalidade de melhorar a prestação jurisdicional. Nessa seara, a especialização de varas para o julgamento de crimes de lavagem de valores e de organizações criminosas tem contribuído significativamente para a melhora dos resultados do combate a tais ilícitos.

Nessa linha, um dos grandes exemplos de sucesso dessa política (no que se refere a efetividade e celeridade do processo) é a Operação Lava Jato. Desde o início da investigação tem-se que, entre a repatriação de valores e bloqueio de quantias provenientes de ilícitos, a operação já atingiu cerca de quatro bilhões de reais160, montante que, certamente, seria de difícil acesso caso a operação estivesse sendo processada em uma vara não especializada.

Além disso, segundo dados apontados pelo Ministério Público Federal, até abril de 2018, a operação já havia resultado em 188 condenações entre os crimes de corrupção, lavagem de ativos, formação de organização criminosa, entre outros.161 A magnitude desses números, ao se considerar a complexidade das investigações e da instrução processual, bem como o curto espaço de tempo transcorrido, se colocam como clara referência de sucesso da política de especialização de varas apontando

159 DIPP, Gilson Langaro. Crime Organizado e a importância das varas especializadas da Justiça Federal. Revista CEJ, Brasília, Ano XX, n. 69, p. 24-26, maio/ago, 2016. 160 Disponível em http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/caso-lava-jato/atuacao-na-1a- instancia/parana/resultado. Acesso em 26.01.2018. 161 Disponível em http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/caso-lava-jato/atuacao-na-1a- instancia/parana/resultado. Acesso em 28.04.2018.

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para uma tendência de melhora na eficiência e celeridade da prestação jurisdicional nesses juízos.

3.1.2 Especialização por resoluções dos tribunais: A reserva de lei, a separação dos poderes e o princípio do juiz natural.

Exposta a política de especialização de varas atualmente implantada pelo Poder Judiciário e seus objetivos, passe-se a analisar a questão da constitucionalidade das resoluções emitidas pelos tribunais com a finalidade de promover tais especializações.

Com efeito, são dois os aspectos mais polêmicos em torno das mencionadas resoluções dos tribunais, quais sejam, se os tribunais teriam atribuição para emitirem tais resoluções, bem como se o conteúdo dessas normas estaria violando o princípio do juiz natural.

Quanto ao primeiro ponto, tem-se que tanto o Superior Tribunal de Justiça quanto o Supremo Tribunal Federal já firmaram entendimento no sentido de admitir as especializações de varas dos tribunais por meio de resoluções.

Nesse sentido, o leading case no Supremo Tribunal Federal foi o HC 88.660/CE de relatoria da Ministra Cármen Lúcia no qual prevaleceu o entendimento de que o artigo 96, I, a, da Constituição Federal confere autonomia ao Poder Judiciário para cuidar da distribuição das atribuições internas de seus órgãos, veja-se:

Art. 96. Compete privativamente: I - aos tribunais: a) eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos;

Dessa forma, entendeu-se que o disposto no inciso II, d, do mesmo artigo 96162 da Constituição não restringe a autonomia do Poder Judiciário no que se refere

162 Art. 96. Compete privativamente: [...]

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a organização da competência de seus órgãos, não estando tal matéria adstrita ao campo exclusivo de lei.

Destacou o Supremo Tribunal Federal, naquela oportunidade, que entendimento diverso – no sentido de ser competência restrita ao Poder Legislativo cuidar da organização das atribuições dos órgãos do Poder Judiciário – implicaria em mácula significativa ao princípio fundamental da separação dos poderes assegurado pela Constituição Federal, pois conferiria ao Poder Legislativo influência dominante sobre o Poder Judiciário, subtraindo a independência necessária para o adequado exercício da jurisdição.

Referido posicionamento do Supremo Tribunal Federal, contudo, é objeto de críticas por parte da doutrina que entende que as cada vez mais frequentes e numerosas resoluções possuem caráter menos legitimo do que uma lei em sentido estrito, não conferindo a publicidade e transparência necessária a tais atos:

[...] não se pode deixar de questionar a menor legitimidade da “escolha política” de um órgão interno do Poder Judiciário para editar um ato normativo que terá a mesma repercussão que uma lei em sentido estrito. A reserva de lei é expressão de democracia, já que reflete a vontade de que determinada matéria, por sua importância, seja disciplinada pelo Parlamento, isto é, o órgão que é expressão do corpo eleitoral e da soberania popular [...]. Ao mais, e como consequência do primeiro ponto, é de se observar, também, que a reserva de lei assegura maior transparência, estabilidade e uniformidade nos critérios de distribuição de competência, do que sua disciplina em regulamentos ou resoluções internas dos tribunais. Tais normas muitas vezes são absolutamente desconhecidas dos operadores do direito que, não raro, são surpreendidos ao verem declarada a competência ou incompetência de um órgão jurisdicional, com base em um ato cujo âmbito de publicidade é muitíssimo restrito.163

Quanto ao segundo aspecto polêmico das resoluções, referente ao cumprimento do princípio do juiz natural, tem-se que de forma frequente, referidas

II - ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo respectivo, observado o disposto no art. 169: [...] d) a alteração da organização e da divisão judiciárias; 163 BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 266-267.

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normas determinam a redistribuição de inquéritos e até de ações penais já em curso para a vara especializada.

Esse fato vem sendo ratificado pelos tribunais superiores sob o argumento de que a mera redistribuição genérica dos processos não violaria o princípio do juiz natural, justamente por não se tratar de redistribuição de processo especifico para determinado juiz e sim de todos os processos que versem sobre a matéria atinente a vara especializada, o que não configuraria juízo de exceção.

Outro argumento reiteradamente utilizado pelos tribunais superiores é o de que a alteração da competência absoluta em razão da matéria, exige a redistribuição dos processos para a nova vara competente, excetuando a regra da perpetuatio iurisdicionis, conforme determina, por analogia, o artigo 43164 do Código de Processo Civil.

A respeito de tais entendimentos, é oportuno colacionar os seguintes julgados:

HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. INSTALAÇÃO DE NOVAS VARAS POR PROVIMENTO DE TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL. REDISTRIBUIÇÃO DE PROCESSOS. NÃO-CONFIGURAÇÃO DE NULIDADE. PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA. 1. A al. a do inc. I do art. 96 da Constituição Federal autoriza alteração da competência dos órgãos do Poder Judiciário por deliberação dos tribunais. Precedentes. 2. Redistribuição de processos, constitucionalmente admitida, visando a melhor prestação da tutela jurisdicional, decorrente da instalação de novas varas em Seção Judiciária do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, não ofende os princípios constitucionais do devido processo legal, do juiz natural e da perpetuatio jurisdictionis. 3. Ordem denegada.165

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO. TRÁFICO DE DROGAS. REDISTRIBUIÇÃO DO PROCESSO. CRIAÇÃO DE NOVA VARA NA COMARCA. ALTERAÇÃO DA COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA. TESE DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL. NÃO OCORRÊNCIA. ORDEM NÃO CONHECIDA. 1. Consoante a jurisprudência desta Corte Superior, não ofende os princípios do juiz natural e da perpetuação da jurisdição a redistribuição de processo pela criação de nova vara especializada na Comarca com

164 Art. 43. Determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta. 165 STF, Segunda Turma, HC 108.749/DF, Rel. Min. Cármem Lúcia, julgado em 23.04.2013.

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consequente alteração da competência em razão da matéria, para fins de melhor prestar a jurisdição e não de remanejar, de forma excepcional e por razões personalíssimas, um único processo. 2. A redistribuição do processo do paciente não foi casuística, mas decorreu de alteração de regras de competência material do órgão judicial, por razões de reorganização judiciária. 3. Habeas corpus não conhecido.166

Em que pese a boa intenção desse entendimento por parte dos tribunais superiores, no sentido de melhorar e tornar mais célere a prestação jurisdicional, nota- se uma evidente fragilização do princípio do juiz natural, o qual garante ao jurisdicionado, no processo penal, um julgamento realizado pela autoridade competente predefinida em lei no momento do fato a ser julgado.

No caso da resolução nº 20/2003 do Tribunal Regional Federal da 4ª Região167, que especializou dentre outras varas a 2ª Vara Federal de Curitiba (que

166 STJ, Sexta Turma, HC 322.632/BA, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, julgado em 01.09.2015. Ainda, no mesmo sentido: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. PENAL E PROCESSUAL PENAL. CRIME DE GESTÃO FRAUDULENTA. ARTIGO 4º DA LEI Nº 7.492/86. COMPETÊNCIA. ALEGADA OFENSA AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL. IMPROCEDÊNCIA. AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO. OFENSA REFLEXA AO TEXTO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DOSIMETRIA DA PENA. MATÉRIA COM REPERCUSSÃO GERAL REJEITADA PELO PLENÁRIO DO STF NOS AUTOS DO AI Nº 742.460-RG. 1. O deslocamento da competência em decorrência de criação de vara especializada não ofende os princípios do juiz natural, da vedação ao juízo de exceção, ou da perpetuatio jurisdictionis. Precedentes: RHC 117.487-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe 7/3/2014, HC 108.749, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe 7/11/2013, RE 667.442, Rel. Min. , DJe 25/6/2013, ARE 723.727, Rel. Min. , DJe 7/2/2013, e HC 91.253, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJe 14/11/2007. [...] 5. Agravo regimental DESPROVIDO. (STF, Primeira Turma, ARE 802.238 AgR/SP, Rel. Min. , julgado em 05.08.2014); HABEAS CORPUS. DENÚNCIA POR QUADRILHA ARMADA, CONCUSSÃO, FALSIDADE IDEOLÓGICA, PROSTITUIÇÃO INFANTIL E CORRUPÇÃO DE MENOR. REDISTRIBUIÇÃO DOS AUTOS PARA VARA ESPECIALIZADA EM CRIMES CONTRA CRIANÇA E ADOLESCENTE. INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL. [...] 3 - A jurisprudência desta Corte e do Supremo Tribunal Federal têm admitido a especialização de Varas Criminais por meio de resolução, visto que a Constituição da República, em seu art. 96, I, "a", estabelece ser atribuição dos Tribunais dispor sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos. 4 - A criação de varas criminais especializadas vem ao encontro do propósito de organização de um sistema de justiça célere e apto a enfrentar satisfatoriamente as lides penais. 5 - Embora a competência, como regra, seja fixada no momento da propositura da ação penal, a criação de Vara especializada em função da matéria, de natureza absoluta, consubstancia motivo hábil à redistribuição do feito criminal, tal como na espécie. 6 - No caso, a Resolução nº 15/2007, do Tribunal de Justiça do Paraná, estabeleceu a competência da 12ª Vara Criminal do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba para o processamento e julgamento de determinados crimes contra a criança e adolescente, dentre eles, o de prostituição infantil (art. 244-A do ECA), a que responde o paciente. 7 - Ordem não conhecida. (STJ, Sexta Turma, HC 180.840/PR, Rel. Ministro Og Fernandes, julgado em 05.03.2013). 167 O PRESIDENTE DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO, usando de suas atribuições legais e regimentais, tendo em vista o decidido no PA nº 03.11.00025-8, pelo Conselho de Administração, em sessão realizada no dia 26 de maio de 2003, e

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posteriormente teve sua numeração alterada para 13ª Vara Federal de Curitiba168) para processar e julgar crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores em toda a Seção Judiciária do Paraná, tem-se que a referida resolução determinou a redistribuição dos inquéritos policiais e procedimentos em andamento para a vara especializada, ressalvando que as ações penais já em curso permaneceriam nas varas de origem.

Apesar do acerto da resolução ao não estabelecer a redistribuição das ações penais em curso, a determinação para que os inquéritos e demais procedimentos fossem redistribuídos não respeitou a garantia protegida pelo princípio do juiz natural que, conforme visto no capítulo segundo desta dissertação, estabelece que o cidadão deve ser julgado pela autoridade competente no momento do cometimento do fato.

Ou seja, para que a referida resolução respeitasse inteiramente o princípio do juiz natural, está deveria ter efeito apenas para os fatos acontecidos após o início de sua vigência. Todavia, como se percebe, a referida resolução alterou a competência de inquéritos e procedimentos de fatos já ocorridos, violando, portanto, o mencionado princípio.

CONSIDERANDO a determinação contida na Resolução nº 314, de 12 de maio de 2003, do Conselho da Justiça Federal, que determina a especialização de varas federais criminais para processar e julgar crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; CONSIDERANDO que a especialização de varas tem se revelado medida salutar, com notável incremento na qualidade e na celeridade da prestação jurisdicional; CONSIDERANDO as dificuldades de processamento dos delitos referidos, por conta da peculiaridade e complexidade da matéria envolvida; CONSIDERANDO que os Tribunais Regionais Federais possuem autorização legal para especializar varas, de acordo com o disposto nos arts. 11 e 12 da Lei nº 5.010/66 c/c o art. 11, parágrafo único, da Lei nº 7.727/89, resolve: Art. 1º Especializar as seguintes varas criminais para processar e julgar os crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores: [...] c) 2ª Vara Criminal de Curitiba, Paraná. [...] Art. 2º [...] §1º As varas criminais especializadas são consideradas juízo criminal especializado em razão da matéria e terão competência sobre toda a área territorial compreendida em cada seção judiciária. [...] Art. 6º Os inquéritos policiais e procedimentos em andamento, bem como seus apensos ou anexos, de competência das varas criminais especializadas serão a elas redistribuídos no prazo de noventa dias, observando-se as cautelas de sigilo, ampla defesa e devido processo legal. § 1º. Os inquéritos policiais e outros procedimentos em tramitação nas varas ora especializadas, relativos a outros delitos, serão redistribuídos às demais varas da circunscrição. § 2º. As ações penais não serão redistribuídas. [...]. 168 Vide resolução nº 99 de 11.07.2013, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

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A respeito desse tema, Guilherme Madeira Dezem possui o mesmo entendimento aqui exarado:

[...] entendemos que apenas os fatos cometidos após a instalação desta vara é que deveriam ter curso na vara especializada. Entendemos que a garantia do juiz natural é incompatível com a aplicação das exceções previstas no artigo 43 do novo CPC.169

Essa situação de não observância do princípio do juiz natural não ocorreu apenas na resolução acima explicitada de nº 20/2003 do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, tendo se repetido em diversos outros tribunais. Não raro, referidas resoluções determinam a redistribuição de ações já em curso perante outras varas, afrontando ainda mais o princípio. Tal cenário demonstra uma clara tendência do Poder Judiciário em privilegiar princípios como o da efetividade da justiça e da razoável duração do processo, em detrimento do princípio do juiz natural.

Como já ventilado, nota-se a boa intenção e o esforço dos tribunais estaduais e regionais, bem como dos tribunais superiores em melhorar a prestação jurisdicional tão criticada por sua excessiva morosidade. Não se pode deixar de pontuar, contudo, os reiterados descumprimentos ao princípio do juiz natural pelas resoluções dos tribunais que determinam a redistribuição dos processos e demais procedimentos relativos a fatos já ocorridos.

3.2 Análise da competência na Operação Lava Jato

Conforme já brevemente explicitado, a Operação Lava Jato teve início com a investigação do doleiro Carlos Habib Chater e de pessoas físicas e jurídicas com ele relacionadas com a finalidade de lavar dinheiro de origem ilícita pertencente ao ex- deputado federal José Mohamed Janene, razão pela qual, constituiu-se uma sociedade denominada Dúnel Industria com sede na cidade de Londrina, Estado do Paraná.170

169 DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 4. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018, p. 360. 170 Conforme de extrai de uma das denúncias apresentadas pelo Ministério Público Federal (nº 5022179-78.2016.4.04.7000). Disponível em http://www.mpf.mp.br/pr/sala-de- imprensa/docs/denuncia-gim-argello. Acesso em 19.06.2018.

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Referida investigação com origem nos inquéritos nº 2009.7000003250-0 e 2006.7000018662-8 distribuídos ao juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba resultou na ação penal nº 5047229-77.2014.4.04.7000, em trâmite na mencionada Vara, cujo objeto é a apuração de crimes de lavagem de dinheiro de produto de crime contra a Administração Pública Federal consumado na cidade de Londrina (supostamente cometido por Carlos Habib Chater e Alberto Youssef), bem como de crime de falsidade, apropriação indébita e tentativa de estelionato ocorridos também em Londrina, além de crime de associação criminosa, de local de incerto.

Além dessa ação penal, a investigação que, em um primeiro momento investigava o doleiro Carlos Habib Chater e seu grupo criminoso, descobriu o envolvimento do referido grupo com outros grupos criminosos também comandados por doleiros, quais sejam, Alberto Youssef, Nelma Kodama e Raul Srour, para cometer crimes, notadamente de lavagem de ativos ilícitos, evasão de divisas, entre outros.

Aqui, deve-se desde logo esclarecer que diversos dos crimes investigados na operação são de competência da Justiça Federal, como, por exemplo, os crimes de tráfico internacional de drogas, crimes financeiros como evasão de dividas, operação de instituição financeira irregular, entre outros, razão pela qual a competência é mesmo da mencionada Justiça.171

Desse modo, devido a aglomeração de fatos e provas, bem como dos diversos crimes apurados, o Ministério Público Federal optou por fracionar as ações para possibilitar um andamento mais organizado e célere dos feitos, dando-se origem às dez ações penais referentes ao núcleo de doleiros da Operação Lava Jato.

Ocorre que, como já frisado, dos crimes apurados, tem-se que muitos ocorreram em localidades diversas da cidade de Londrina, como por exemplo, na cidade São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, entre outras.

171 Nesse sentido o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento pacificado, como se percebe da leitura da súmula nº 122: “Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código de Processo Penal.”

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Não obstante esse fato, o juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba (com competência especializada para julgar crimes de lavagem de dinheiro em toda a Seção Judiciária do Paraná) decidiu pela sua competência para processar e julgar todas essas ações, tendo reconhecido a conexão e continência entre todas elas, e apontado como foro prevalecente a mencionada Vara.

A análise da consistência da aplicação do princípio do juiz natural, no que se refere a concretização da competência das referidas ações, portanto, converge justamente com a verificação dos institutos da conexão e da continência no processo penal, pois esses foram os argumentos fundamentais utilizados para sustentar que todas as ações deveriam tramitar perante o mesmo juízo.

Após essa análise, restará, então, verificar os critérios utilizados pelo juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba para definir o foro prevalecente, dado os diversos locais nos quais os crimes foram consumados.

3.2.1 Os institutos da conexão e da continência e a relevância para a definição da competência na operação

O Código de Processo Penal em seus artigos 76 e 77 estabelece, respectivamente, as hipóteses de conexão e continência, institutos que determinam que os processos sejam reunidos perante um único juízo.

Tais institutos possuem grande importância no ordenamento, pois trazem efetividade e coordenação para o julgamento de casos em que há vários crimes praticados por diversas pessoas em um mesmo contexto, possibilitando que o magistrado tenha adequado conhecimento da dimensão dos fatos e provas, bem como evitando que sejam proferidas decisões contraditórias.

Nessa linha, como bem ressalta a doutrina e a jurisprudência, nas palavras de José Frederico Marques e do Desembargador Federal José Marcos Lunardelli:

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É que a conexão, além de contribuir para a economia processual, evita decisões divergentes ou contraditórias, e, por possibilitar uma visão mais completa dos fatos e da causa, constitui fator de melhor aplicação jurisdicional do direito.172

PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. COMPETÊNCIA. PLEITO DE REUNIÃO DOS PROCESSOS. INVIABILIDADE DE REUNIÃO DOS PROCESSOS. SUMULA 235 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. A reunião de processos que tenham por objeto crimes conexos tem por finalidade precípua evitar decisões conflituosas [...]. Recurso em Sentido Estrito a que se nega provimento.173

Nesse sentido, no que tange à conexão, o legislador firmou três hipóteses para sua configuração, a conexão intersubjetiva, a conexão objetiva ou teleológica e a conexão instrumental.

A conexão intersubjetiva ocorre nos casos que em ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras.

Já a conexão objetiva ou teleológica, ocorre se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas.

Finalmente, a conexão será instrumental quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.

Essa última hipótese é evidentemente a mais ampla estabelecida pelo legislador e possui importância fundamental para a Operação Lava Jato, ao se considerar a possibilidade de reunião de processos que possuam provas que se relacionem, de modo a possibilitar o esclarecimento de crimes diversos.

172 MARQUES, José Frederico. Da competência em matéria penal. Campinas: Millennium, 2000, p. 363. 173 TRF-3, Décima Primeira Turma, RESE nº 0002466-81.2014.4.03.6005, Relator Desembargador Federal José Lunardelli, julgado em 09.06.2015.

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Se por um lado, o inciso III do artigo 76 do Código de Processo Penal, possibilita investigações mais efetivas e coesas, facilitando a colheita de provas e a instrução por parte do juízo, por outro lado, deve-se frisar a elevada dose de discricionariedade que o termo escolhido pelo legislador – influir – gera no processo de concretização da competência, possibilitando eventuais excessos na aplicação do dispositivo.

Com efeito, a jurisprudência tanto do Superior Tribunal de Justiça, quanto do Supremo Tribunal Federal aplicam o dispositivo de maneira bastante ampliativa, sem demonstrar grande preocupação em fixar critérios para restringir o alcance da conexão instrumental, conforme se extrai dos seguintes julgados, com destaque para os casos que versam sobre lavagem de dinheiro e crimes financeiros – objeto central dos processos referentes ao núcleo dos doleiros da Operação Lava Jato:

PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO. LEI Nº 7.492/86, ARTS. 4º, 16 E 22, PARÁGRAFO ÚNICO. CRIMES DE LAVAGEM DE DINHEIRO. LEI Nº 9.613/98, ART. 1º, VI E VII C/C ARTIGO 1º, § 1º, II C/C ARTIGO 1º, § 2º, II C/C ARTIGO 1º, § 4º. CONEXÃO HÁBIL A FIXAR A COMPETÊNCIA DO JUÍZO PREVENTO. [...] 1. A conexão probatória impõe a reunião das ações penais para julgamento simultâneo, máxime quando se trata de delitos financeiros apurados em determinado juízo de onde emanam informações de negócios cruzados entre as empresas envolvidas. [...].174

HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSUAL PENAL. [...] CONEXÃO INSTRUMENTAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. [...] Reunião dos processos, em virtude da existência de vínculo objetivo entre os diversos fatos delituosos e de estarem imbricadas as provas coligidas para os autos, nos quais foram apuradas as práticas das condutas incriminadas. II – Há conexidade instrumental: a prova relacionada à apuração de um crime influirá na do outro, razão pela qual é competente para conhecer da controvérsia a Justiça Federal. III – Ordem de habeas corpus indeferida, ficando mantida, em consequência, a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça no Conflito de Competência 111.309/SP.175

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS – CRIMES CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO E DE LAVAGEM DE DINHEIRO – COMPETÊNCIA POR CONEXÃO – TRANCAMENTO – AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA NÃO VERIFICADA – INÉPCIA DA DENÚNCIA – INOCORRÊNCIA – POSSIBILIDADE DE COEXISTÊNCIA ENTRE OS CRIMES DO ARTIGO 4º E 16 DA LEI 7.492/86 – NEGADO

174 STF, Primeira Turma, HC 93.368/PR, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 09.11.2011. 175 STF, Segunda Turma, HC 114.689/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 13.08.2013.

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PROVIMENTO AO RECURSO. Havendo ligação entre as provas do presente processo e aquelas de vários outros que correm perante a Vara Federal de Curitiba, impõe-se o reconhecimento da competência em razão da conexão, conforme artigo 76, III, do Código de Processo Penal. [...] Negado provimento ao recurso.176

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CORRUPÇÃO PASSIVA, FORMAÇÃO DE QUADRILHA, LAVAGEM DE CAPITAIS E OUTROS CRIMES. PRETENSÃO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL POR INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO PROCESSANTE. IMPOSSIBILIDADE. CONEXÃO PROBATÓRIA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO EM QUE PRATICADO O CRIME MAIS GRAVE. 1. No presente recurso, busca-se o reconhecimento da incompetência do Juízo da 3ª Vara Criminal da comarca de São Bento do Sul/SC para processar e julgar a ação penal movida contra o ora recorrente e outros, ao argumento de que os fatos imputados ao primeiro teriam ocorrido em Rio Negro/PR. 2. A competência para processar e julgar a ação penal é fixada, em regra, pelo critério do local em que o delito se consumou, podendo, contudo, a conexão determinar a sua modificação. 3. No caso, as instâncias ordinárias, de maneira fundamentada, entenderam pela competência do Juízo de São Bento do Sul/SC, em razão da existência da conexão instrumental, nos termos do art. 76, III, do Código de Processo Penal, entre os crimes atribuídos aos corréus e os delitos de corrupção passiva e formação de quadrilha imputados ao recorrente. 4. Verificado que as infrações tiveram o mesmo nexo fático e que as provas dos delitos narrados na inicial estão intimamente ligadas, não há como negar a ocorrência da chamada conexão probatória ou instrumental nem, por conseguinte, a necessidade de julgamento de todos os crimes em um mesmo processo, sob o comando de um único magistrado, a fim de preservar a segurança e a estabilidade jurídica dos pronunciamentos jurisdicionais. [...] 5. Recurso em habeas corpus improvido.177

176 STJ, Quinta Turma, RHC 19.909/PR, Rel. Min. Jane Silva, julgado em 13.11.2007. 177 STJ, Sexta Turma, RHC 42.139/SC, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 20.05.2014. Ainda, pode-se citar os seguintes julgados: PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO INTERPOSTO. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. ALEGADA INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO PROCESSANTE. [...] 3. Situação em que a mesma investigação deu origem a duas ações criminais cuja conexão probatória é incontroversa, tramitando em conjunto, e nas quais se investigam supostos delitos de concussão, corrupção ativa e passiva, crimes contra a Lei de Licitações e lavagem de dinheiro praticados por associação criminosa composta por servidores do Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte do Ceará (DNIT/CE), assim como por prepostos/responsáveis por empreiteiras e supervisores contratadas pela Autarquia Federal para a realização de serviços. [...]. 7. Habeas corpus não conhecido. (STJ, Quinta Turma, HC 317.704/CE, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 12.09.2017) e RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. PECULATO, CORRUPÇÃO, FRAUDE EM LICITAÇÕES, FALSIDADE IDEOLÓGICA E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. INCOMPETÊNCIA DA 2ª VARA FEDERAL CRIMINAL DE CURITIBA/PR. CONEXÃO DOS FATOS APURADOS NA PRESENTE AÇÃO PENAL COM OS INVESTIGADOS EM INQUÉRITO EM TRÂMITE PERANTE O MENCIONADO JUÍZO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE. 1. Não havendo dúvidas de a ação penal em tela e o Inquérito Policial n. 2004.7000037969-0 versam sobre crimes envolvendo as mesmas pessoas, e que teriam sido praticados em lapso temporal semelhante, sendo certo que as provas de algumas infrações influencia na das demais, tanto que o Ministério Público requereu a desconsideração do pedido de arquivamento formulado no referido procedimento investigatório em razão das evidências reunidas nos autos de interceptação telefônica realizada no processo criminal em apreço, mister o reconhecimento da competência da 2ª Vara Federal Criminal de Curitiba para processar e julgar os acusados. [...] 4. Recurso desprovido. (STJ, Quinta Turma, RHC 42.582/PR, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 02.12.2014).

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Como se percebe, os julgados se utilizam de expressões bastante amplas, tais como “a prova relacionada à apuração de um crime influirá na do outro”; “Havendo ligação entre as provas do presente processo”; “Verificado que as infrações tiveram o mesmo nexo fático e que as provas dos delitos narrados na inicial estão intimamente ligadas” e “sendo certo que as provas de algumas infrações influencia na das demais”.

Aqui, há uma ressalva feita pela jurisprudência para os casos de encontro fortuitos de provas. Nessa esteira, o entendimento do Supremo Tribunal Federal é que o mero encontro fortuito de provas que não tem qualquer relação com a investigação originária, não possui, por si só, o condão de gerar a conexão em sua modalidade instrumental, veja-se:

PENAL E PROCESSO PENAL. COMPETÊNCIA. CONEXÃO. INEXISTÊNCIA. ADITAMENTO DA DENÚNCIA. SISTEMA ACUSATÓRIO. [...] 5. A conexão no processo dá-se em favor da jurisdição de modo a facilitar a colheita da prova, evitar decisões contraditórias e permitir cognição mais profunda e exauriente da matéria posta a julgamento. O simples encontro fortuito de prova de infração que não possui relação com o objeto da investigação em andamento não enseja o simultaneus processus. [...] 7. Recurso parcialmente provido para remeter o aditamento da denúncia, apenas em relação ao recorrente, à Justiça Federal no Distrito Federal, com traslado integral dos autos.178

Não obstante tal ressalva, a interpretação dada ordinariamente pela jurisprudência, como visto, permite uma considerável dose de subjetividade para a reunião dos processos, conferindo ao magistrado amplo campo para interpretações diversas no que se refere ao reconhecimento da conexão instrumental.

Essa demasiada subjetividade coloca em risco o estrito cumprimento do princípio do juiz natural dando azo para possíveis manipulações da competência no caso concreto, situação que não deve ter lugar em um Estado Democrático de Direito.

Diga-se, mais uma vez, que não se nega a absoluta importância do instituto da conexão instrumental para a efetividade e a razoável duração do processo,

178 STF, Primeira Turma, RHC 120.379/RO, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 26.08.2014.

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princípios postos na Constituição Federal, ao possibilitar que o juiz da causa tenha amplo conhecimento do contexto fático e probatório, todavia, se faz importante destacar que a interpretação pouco restritiva dada pela jurisprudência e, principalmente, a escolha do termo “influir” pelo legislador, podem criar situações de insegurança quando da fixação do juiz natural do processo.

Por fim, quanto a continência, tem-se que, como nos casos de configurada a conexão, os processos também deverão ser reunidos perante um único juiz nas hipóteses fixadas pelo artigo 77 do Código de Processo Penal.

Nessa esteira, ocorrerá a continência quando duas ou mais pessoas forem acusadas pela mesma infração, bem como nos casos em que ocorrer concurso formal de delitos, erro de execução ou aberratio criminis.

Nota-se que tais institutos – a conexão e a continência – são muito semelhantes, sendo pouco relevante a tentativa de diferenciá-los, Vicente Grecco Filho, no entanto, aduz que é possível dizer que conexão resulta de vínculos objetivos ou subjetivos entre infrações e que a continência resulta da unidade da ação delituosa.179

Esclarecida a dinâmica da conexão e da continência no âmbito do direito processual penal, cumpre verificar como as decisões proferidas nas exceções de incompetência opostas pelos réus no âmbito da primeira fase da Operação Lava Jato (núcleo dos doleiros) fundamentaram a existência de conexão e de continência nos processos envolvidos.

Com efeito, os objetos das dez ações penais envolvidas são majoritariamente a apuração de crimes financeiros tais como evasão de divisas, operação de instituições financeiras irregulares, lavagem de dinheiro além de constituição de organizações criminosas, entre outros.

179 GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 8. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 160.

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Conforme já salientado, referidas infrações penais eram orquestradas, segundo as denúncias apresentadas pelo Ministério Público Federal, por quatro organizações criminosas diferentes chefiadas doleiros, essas organizações, apesar de autônomas, realizavam negócios em conjunto, como por exemplo, a realização de transações financeiras ilegais entre as organizações, geralmente por meio de empresas de fachada.

Nesse sentido, nas decisões proferidas nas exceções de incompetência opostas pelas partes, o juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, inicialmente, traz um panorama das dez ações propostas na Operação Lava Jato e seus respectivos objetos.

Para demonstrar a conexão entre as ações, sustenta-se que a partir de uma interceptação telefônica, passou-se a investigar o primeiro grupo de doleiros, comandado por Carlos Habib Chater. Dessa interceptação, descobriu-se que o referido grupo transacionava com os outros grupos de doleiros já mencionados, razão pela qual seria de rigor que todas as ações tramitassem no mesmo juízo, para possibilitar o adequado manejo do conteúdo probatório encontrado.

Afirma-se, ainda, que o reconhecimento da conexão das ações seria fundamental para evitar a dispersão de provas e eventuais decisões contraditórias por parte do Poder Judiciário.

Desse modo, vale trazer, aqui, trechos dos fundamentos utilizados pelo juízo para o reconhecimento da conexão entre todas as ações, extraídos da decisão proferida na exceção de incompetência nº 5044009-71.2014.404.7000, referente à ação penal nº 5025687-03.2014.404.7000. Referida argumentação foi reiteradamente utilizada em diversas das decisões proferidas nas exceções de incompetência opostas, veja-se:

Ademais disso, forçoso reconhecer conexão entre as diversas ações penais e inquéritos da assim denominada Operação Lavajato, dez delas acima relacionadas. [...] A partir de interceptação telefônica autorizada em 11/07/2013 no processo 5026387-13.2013.404.7000, passou-se a investigar o grupo criminoso dirigido por Carlos Habib Chater. No decorrer da interceptação, foram identificadas supostas

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transações criminosas do grupo criminoso dirigido por Carlos Habib Chater com o grupo criminoso dirigido por Alberto Youssef e com o grupo criminoso dirigido por Nelma Kodama. Também identificadas supostas transações criminosas entre o grupo criminoso dirigido por Alberto Youssef e o grupo criminoso dirigido por Nelma Kodama. Foram ainda identificadas supostas transações criminosas entre o grupo dirigido por Nelma Kodama com o grupo criminoso dirigido por Raul Henrique Srour. [...] Não obstante, evidente a conexão entre os crimes praticados pelos quatro grupos criminosos, inclusive alguns em conjunto. Se operadores do mercado de câmbio negro realizam operações entre si, caracterizando crimes financeiros ou de lavagem de dinheiro, é evidente a conexão entre os crimes, aplicando as regras dos arts. 76, I, II e III, do CPP. A prova em relação à natureza e origem dos recursos movimentados por um grupo é relevante para determinar da natureza e origem dos recursos movimentadas pelo outro grupo. [...] Não se trata apenas de aplicação de normas abstratas. A manutenção dos vários processos perante um único Juízo é necessária para evitar não só decisões contraditórias, mas dispersão de provas, já que os diversos acusados respondem inclusive por transações conjuntas. A ilustrar a conexão probatória, de se mencionar que inclusive a Defesa de Alberto Youssef chegou a arrolar como testemunhas de defesa Carlos Chater e Nelma Kodama, em ações penais nas quais estes não figuravam como acusados.180

Como se percebe do contexto trazido pelo decisum, nota-se que diversos dos crimes objetos das ações penais foram praticados em coautoria, bem como praticados para ocultar crimes anteriores (lavagem de dinheiro), situação que configura, como visto, a conexão e a continência dos delitos.

Ademais, do esquema perpetrado pelas organizações e principalmente pelo fato de elas agirem conjuntamente, tem-se que o arcabouço probatório de uma influi diretamente nas provas relativas à outra, tais como as ligações telefônicas, e-mails e mensagens transmitidas por celular, situação que também exige a conexão em sua modalidade instrumental, como destacou adequadamente o juízo.

Nota-se também, pela enorme extensão dos fatos, provas e crimes investigados, que o juízo optou por não apontar individualmente a conexão e a continência de cada crime, dando mais importância para a conexão instrumental entre as provas colhidas.

180 Disponível em https://eproc.jfpr.jus.br/eprocV2/controlador.php?acao=acessar_documento_publico &doc=701406819901771060030000000005&evento=692&key=b3bc68b14f8282b60c8fec71c3e17196 36fecc961f3d0a2da2b20fb6bea3181f&hash=6f9df58a4e50abf49bad27b0a83e6846. Acesso em 19.06.2018.

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Dos fundamentos acima expostos, notadamente no que tange a conexão instrumental, tem-se que a interpretação dada pelo juízo não destoa das interpretações usualmente dadas pelos tribunais superiores – de conferir bastante amplitude ao dispositivo, estando, portanto em consonância com a jurisprudência.

A complexidade da investigação e o grande número de réus envolvidos também justifica a cisão dos fatos entre as dez ações penais feita pelo Ministério Público Federal. De igual modo, justamente por essa complexidade dos fatos, a dispersão das provas entre diversas comarcas iria certamente dificultar o andamento da investigação, impossibilitando a busca da verdade real.

Do quadro acima exposto, tem-se que dada a complexidade dos fatos e provas envolvidos, é possível afirmar, considerando a amplitude conferida pelo legislador e o entendimento jurisprudencial sobre o tema, que ao menos no que se refere a conexão instrumental dos crimes, esta foi adequadamente reconhecida, de modo a ensejar a reunião das ações perante o mesmo juízo.

3.2.2 Critérios de definição do foro prevalecente na Operação Lava Jato e sua eventual conformidade com o princípio do juiz natural

Estabelecida e existência de conexão e continência entre as dez ações penais relativas ao núcleo dos doleiros da Operação Lava Jato, cumpre verificar se os critérios utilizados pelo juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba para a definição de sua competência estão de acordo com o disposto na legislação processual penal.

Dessa forma, primeiramente será analisado os critérios definidos pelo Código de Processo Penal para a definição do foro prevalecente. Após analisar-se-á as razões de decidir adotadas e sua eventual consonância com as regras trazidas pelo referido Código.

Nesse sentido, o Código de Processo Penal, em seu artigo 78 estabelece o seguinte:

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Art. 78. Na determinação da competência por conexão ou continência, serão observadas as seguintes regras: I - no concurso entre a competência do júri e a de outro órgão da jurisdição comum, prevalecerá a competência do júri; Il - no concurso de jurisdições da mesma categoria: a) preponderará a do lugar da infração, à qual for cominada a pena mais grave; b) prevalecerá a do lugar em que houver ocorrido o maior número de infrações, se as respectivas penas forem de igual gravidade; c) firmar-se-á a competência pela prevenção, nos outros casos III - no concurso de jurisdições de diversas categorias, predominará a de maior graduação; IV - no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta.

Com efeito, aqui, tem-se que os incisos II e IV merecem maior aprofundamento, pois são de fundamental importância para a compreensão dos critérios utilizados na Operação Lava Jato.

Nessa esteira, o inciso II do artigo 78 do Código de Processo Penal estabelece que no concurso de jurisdições da mesma categoria deverá ser seguida uma ordem de três diferentes critérios para a definição do foro prevalecente, tais critérios são subsidiários, portanto, caso o critério da alínea a não seja suficiente, deverá ser utilizado o disposto na alínea b, e assim sucessivamente.

Desse modo, primeiro deverá ser observado o local da infração do crime mais grave, devendo este local atrair os demais crimes conexos. Caso não exista um único crime mais grave, prevalecerá o local em que ocorrido o maior número de infrações. Finalmente, se o número de infrações também for igual em mais de um lugar, ou se não for possível aferir o número exato de infrações, o critério utilizado será o da prevenção.181

Quanto ao inciso IV que estabelece a prevalência da jurisdição especial em detrimento da jurisdição comum, há duas possíveis interpretações. A primeira é no

181 A doutrina é tranquila nesse sentido: “As alíneas do inc. II do art. 78 não são alternativas, mas sim subsidiárias. Há uma hierarquia entre elas, devendo inicialmente prevalecer a alínea a, e somente se esta não dirimir a questão, por ambos os processos terem penas máximas de igual gravidade, passa- se para a alínea b, que considera, então, subsidiariamente o número de infrações cometidas. E, finalmente, se os crimes forem da mesma gravidade e em igual número, somente neste caso é que o magistrado deverá se valer da alínea c e considerar a prevenção critério definidor do foro prevalecente [...].” (BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 367).

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sentido de que o termo “jurisdição especial” ao qual se refere o inciso abrange somente as justiças especiais estabelecidas pela Constituição Federal, quais sejam, no âmbito penal, a Justiça Militar e a Justiça Eleitoral.

Já a segunda interpretação possível é no sentido de que o termo “jurisdição especial” também englobaria as competências especiais definidas pela lei ou pelas resoluções de organização judiciaria, como, por exemplo, as varas especializadas em crimes financeiros e de lavagem de dinheiro.

Quanto a essa problemática relativa ao inciso IV do artigo 78 do Código de Processo Penal parcela considerável da doutrina entende pela primeira interpretação trazida, conforme expõe José Frederico Marques:

A regra do artigo 78, nº IV, não se aplica aos casos de conexão de infrações comuns, onde concorram juízos especiais criados pelas leis de organização judiciária. O Código, no citado dispositivo cuida da concorrência entre jurisdições diversas, tanto que fala em jurisdição comum e a especial, e nunca, da concorrência de competência entre juízes especiais do sistema judiciário ordinário, hipótese em que, não se tratando do tribunal do júri, a regra a aplicar-se é a do nº II do artigo 78.182

Gustavo Henrique Badaró também entende desse modo, ressaltando que, na pratica, o dispositivo só terá efeitos quando da conexão entre crime de competência da Justiça Eleitoral com crime de competência Justiça Comum, ao se considerar que as outras competências postas na Constituição Federal não podem ser alteradas por norma infraconstitucional:

A concorrência de jurisdições se refere à Justiças diversas, e não a juízos especiais de uma determinada Justiça. A “Jurisdição comum” a que se refere o dispositivo é composta pela Justiça Estadual e pela Justiça Federal. A Justiça Militar da União, a Justiça Eleitoral e a Justiça do Trabalho são “jurisdições especiais”. Todavia, diante da Constituição de 1988, o dispositivo será de aplicação mais restrita do que à primeira vista possa parecer. Isso porque, como já visto, não pode haver reunião de processo, por conexão ou continência, no caso em que concorram Justiças com competência constitucionalmente definidas. Assim sendo, o art. 78, IV, do CPP, somente tem aplicação no caso de concurso entre um crime de

182 MARQUES, José Frederico. Da competência em matéria penal. Campinas: Millennium, 2000, p. 375.

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competência da Justiça Comum dos Estados e outro da Justiça Eleitoral, uma vez que as regras constitucionais não definem, expressamente, as competências de tais Justiças, relegando tal tarefa para a legislação infraconstitucional.183

Finalmente, Vicente Grecco Filho e Guilherme Madeira Dezem ao comentarem o dispositivo também se limitam a afirmar, na mesma linha de Gustavo Henrique Badaró, a conexão entre a Justiça Comum e a Justiça Eleitoral.184

Ocorre que em que pese o entendimento doutrinário pela primeira interpretação exposta, parte da jurisprudência vem aplicando o dispositivo de acordo com a segunda interpretação, no sentido de entre os juízos de competência especial e de competência comum, deverá prevalecer a competência especializada.

Nesse ponto, deve-se salientar que a jurisprudência não tem dado tanta atenção para essas diferentes interpretações do inciso IV do artigo 78 do Código de Processo Penal, mas é possível encontrar julgados nos dois sentidos. A título exemplificativo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já aplicou o dispositivo conforme a segunda interpretação exposta, no sentido de que o termo “Jurisdição Especial” também abrangeria os juízos especiais, como nos casos das Varas especializadas:

RESE - Crimes de ameaça - VIOLÊNCIA DOMÉSTICA - Vítimas genitora e irmão Alegação de incompetência absoluta do Juízo Não cabimento - Filho que ameaçou a mãe na casa em que residem - Violência doméstica baseada no gênero - AMEAÇA CONTRA O IRMÃO - Conexão probatória evidente, nos termos do art. 76, III, do Código de Processo Penal, a determinar o julgamento dos feitos, eis que os fatos se deram no mesmo contexto fático Competência para ambos os casos do Juiz Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher - Recurso ministerial provido. “A conexão é causa de modificação de competência e, no concurso entre jurisdição comum e especial, esta deve prevalecer, nos termos do art. 78, IV, do CPP. Frise-se que, os crimes de ameaça foram cometidos em contexto de violência doméstica, tendo em vista que o recorrido, usuário de drogas e alcoólatra, chegou em casa, onde todos residiam, e ameaçou as vítimas de morte. Desse modo, embora o ofendido seja homem, percebe-se que restou evidenciado a conexão

183 BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 371-372. 184 GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 8. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 162 e DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 4. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018, p. 435.

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probatória de que trata o art. 76, inciso III, do CPP, em face do vínculo objetivo entre as imputações, em tais casos, a lei recomenda o julgamento em conjunto pelo Juízo Especializado, que exerce a vis attractiva sobre os crimes em conexão.”185

Essa divergência interpretativa entre a doutrina e parte da jurisprudência pode ser explicada, dentre outros fatores, pelo fato de o Código de Processo Penal ser datado de 1941, época em que o Poder Judiciário não dispunha de tamanha quantidade de varas especializadas.

Desse modo, considerando o tempo de vigência do código, a interpretação da legislação processual fica sujeita a alterações por parte do interprete do direito, dada a nova realidade de maior especialização das varas.

Expostas as regras legais definidas na legislação processual penal a respeito do foro prevalecente para os crimes em que configurada a conexão e a continência cumpre verificar se tais normas foram respeitadas pelo juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba quando do julgamento das diversas exceções de incompetências opostas nas ações penais relativas ao núcleo dos doleiros da Operação Lava Jato.

Nesse sentido, conforme visto, foi reconhecida a conexão entre todos os crimes cometidos nas dez ações penais referidas. Por conseguinte, para a definição do foro prevalecente, todos os crimes imputados nas diferentes ações penais devem ser analisados conjuntamente, já que conexos.

Antes de se adentrar nos critérios do artigo 78 para definição do foro prevalecente, deve-se refutar um argumento utilizado pelo juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba que se valeu do disposto no artigo 71 do Código de Processo Penal como parte de sua argumentação para definir a competência.

Com efeito, o artigo 71 estabelece que tratando-se de infração continuada ou permanente, praticada em território de duas ou mais jurisdições, a competência firmar- se-á pela prevenção.

185 TJSP, Quarta Câmara de Direito Criminal, RESE nº 0045412-73.2014.8.26.0224, Rel. Des. Edison Brandão, julgado em 24.05.2016.

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Segundo as diversas decisões que utilizaram tal dispositivo como um dos argumentos para sustentar a prevenção do juízo, por existirem diversos crimes de lavagem de dinheiro cometidos reiteradamente pelos doleiros e por seus grupos, seria o caso de se reconhecer a continuidade delitiva:

E entre os diversos crimes de lavagem e financeiros praticados em cada grupo, por exemplo, entre os crimes de lavagem imputados ao grupo de Carlos Habib nas três ações penais referidas (itens 5.1, 5.2 e 5.3), pode-se ainda cogitar de continuidade delitiva, aplicando-se no caso a regra da prevenção do art. 71 do CPP, sendo competente este Juízo, que primeiro conheceu e proferiu decisões no caso. Certamente o reconhecimento da continuidade depende de avaliação no momento próprio, quando do julgamento. O mesmo pode ser dito em relação aos crimes de lavagem e financeiros imputados ao grupo de Alberto Youssef nas cinco ações penais referidas acima (5.1, 5.2, 5.4, 5.5 e 5.6), sendo possível igualmente cogitar de continuidade delitiva, aplicando-se também no caso a regra do art. 71 do CPP, definindo também como competente este Juízo por prevenção. Certamente o reconhecimento da continuidade depende de avaliação no momento próprio, quando do julgamento. [...] Havendo, porém, a possibilidade de que as várias ações penais tenham por objeto crimes de lavagem e de crimes financeiros praticados em continuidade delitiva, o critério a ser observado é o da prevenção, previsto no art. 71 do CP, definindo a competência deste Juízo, e não o do local, ainda incerto, da prática da maioria dos crimes.186

Ocorre que conforme já demonstrado, e apontado pelo próprio juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, os crimes apurados nas dez ações penais relativas ao núcleo dos doleiros da Operação Lava Jato são conexos, desse modo, não tem aplicação o disposto no artigo 71 do Código de Processo Penal, devendo-se, necessariamente, ser utilizado um dos critérios trazidos pelo artigo 78 do referido Código, que traz as regras a serem respeitadas em caso de conexão e continência – não estando nessas regras qualquer menção à prevenção por continuidade delitiva.

186 Exceção de incompetência nº 5029451-94.2014.404.7000 referente ao processo nº 5025699- 17.2014.404.7000, 13ª Vara Federal de Curitiba. Disponível em https://eproc.jfpr.jus.br/eprocV2/contr olador.php?acao=acessar_documento_publico&doc=701407162971849810050000000006&evento=6 92&key=e58d1ecadcc8da66b235f476fa4a02119c768a52c379ee41db58a18b3028373f&hash=468666 ae1db3ae027eadea625cb68f90. Acesso em 19.06.2018.

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O artigo 71 do Código de Processo Penal não pode, portanto, ser utilizado como critério de definição do foro prevalecente.

No que se refere as razões de decidir atinentes ao artigo 78 do Código de Processo Penal, para o adequando entendimento da fundamentação utilizada, deve- se primeiramente analisar a decisão proferida na exceção de incompetência nº 5044009-71.2014.404.7000 referente a ação penal nº 5025687-03.2014.404.7000.

Referida ação penal tem por objeto a apuração de crime de tráfico internacional de drogas consumado em Araraquara e de lavagem de dinheiro com participação dos doleiros Carlos Habib Chater e Alberto Youssef. Aqui, deve-se desde logo apontar que o crime de tráfico internacional de drogas é o crime mais grave apurado não só na ação penal acima referida como em todas as dez ações conexas.

Nesse contexto, na decisão referente a exceção acima mencionada, sustentou-se o seguinte:

Embora ao crime de tráfico seja cominada a pena mais grave, prevalece a competência material da 13ª Vara Federal de Curitiba, já que especializada para o processo e julgamento de crimes de lavagem e financeiros. É que não tem a Vara Federal de Araraquara competência para processo e julgamento de crime de lavagem e financeiros, motivo pelo qual a regra aplicável é a do art. 78, IV, do CPP, fixando a competência da Justiça Federal em Curitiba. A regra do art. 78, II, 'a', do CPP citada pela Defesa de Rene só tem aplicação entre juízes de igual competência, o que não é o caso.187

Do trecho acima exposto nota-se que o critério utilizado foi o do artigo 78, IV, em detrimento do artigo 78, II, a, ambos do Código do Processo Penal, dando-se a interpretação contrária a que a doutrina adota.

Como visto anteriormente, para a doutrina, o artigo 78, IV só teria aplicação para os casos em que concorressem a jurisdição comum com a jurisdição especial entendendo-se por jurisdição especial criminal as Justiças Especiais Eleitoral e Militar,

187 Disponível em https://eproc.jfpr.jus.br/eprocV2/controlador.php?acao=acessar_documento_publico &doc=701406819901771060030000000005&evento=692&key=b3bc68b14f8282b60c8fec71c3e17196 36fecc961f3d0a2da2b20fb6bea3181f&hash=6f9df58a4e50abf49bad27b0a83e6846. Acesso em 19.06.2018.

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de modo que, nesse caso, deveria prevalecer a regra do artigo 78, II, a, sendo considerado o local da pena mais grave.

Contudo, o disposto no inciso, IV, do artigo 78, foi aplicado conforme a outra interpretação possível, no sentido de que por jurisdição especial pode-se entender juízos com competência especializada, o que é o caso da 13ª Vara Federal de Curitiba.

Desse modo, prevaleceu a competência da Vara especializada para julgamento de crimes financeiros de lavagem de dinheiro de Curitiba em detrimento da Vara Federal de Araraquara.

Essa questão influenciou diretamente a argumentação utilizada para definir a competência de outras ações penais, veja-se:

Na ação penal nº 5025699-17.2014.404.7000, por exemplo, cujo objeto é a apuração de crimes financeiros, lavagem de produto de crimes financeiros, evasão de divisas e operação de instituição financeira irregular ocorridos em primordialmente em São Paulo, foi sustentado pelo juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, quando do julgamento da exceção de incompetência nº 5029451-94.2014.404.7000, que não obstante a maioria dos crimes objetos da referida ação terem ocorrido em São Paulo essa ação individualmente considerada conteria apenas uma parte dos crimes conexos da Operação Lava Jato.

Após realizar tal assertiva, a decisão traz as razões que justificam a conexão entre as dez ações penais propostas (como já demonstrado anteriormente nesse trabalho, quando se abordou o tema da conexão), concluindo no sentido de que os crimes ocorridos em São Paulo não podem ser individualmente considerados, de modo que devem abranger também os demais crimes conexos, como os ocorridos na Seção Judiciária do Paraná.

Com isso, existindo delitos em diversas localidades, o juízo afirma o seguinte:

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Havendo, porém, a possibilidade de que as várias ações penais tenham por objeto crimes de lavagem e de crimes financeiros praticados em continuidade delitiva, o critério a ser observado é o da prevenção, previsto no art. 71 do CP, definindo a competência deste Juízo, e não o do local, ainda incerto, da prática da maioria dos crimes. Rigorosamente, caso aplicável o art. 78 do CPP, a competência seria firmada pelo crime mais grave, que é o de tráfico de drogas, que é objeto da ação penal 5.1 acima referida, e que se submete à competência desta 13ª Vara conforme razões expostas no julgamento de exceções de incompetência interpostas naquela ação penal.188

Do trecho acima exposto, deve-se, de pronto, refutar, conforme já explicitado acima, a tentativa de utilização do disposto no artigo 71, ao se considerar que a prevenção decorrente de infrações continuadas não é critério de definição do foro prevalecente de crimes conexos.

Resta, por conseguinte, a afirmação referente ao artigo 78 do Código de Processo Penal, na qual o juízo remete a fundamentação trazida na exceção de incompetência 5044009-71.2014.404.7000 referente a ação penal nº 5025687- 03.2014.404.7000, que, como visto, utiliza-se do inciso IV, do artigo 78 para apontar como competente o juízo de Curitiba em detrimento da Vara Federal de Araraquara.

Esse mesmo mecanismo foi utilizado para fundamentar a competência de outras ações penais cujos crimes individualmente considerados majoritariamente ocorreram também em São Paulo ou Brasília (como as ações nº 5049898- 06.2014.404.7000189, 5026212-82.2014.404.7000190, 5025692-25.2014.404.7000191 e 5025695-77.2014.404.7000192).

188 Disponível em https://eproc.jfpr.jus.br/eprocV2/controlador.php?acao=acessar_documento_publico &doc=701407162971849810050000000006&evento=692&key=e58d1ecadcc8da66b235f476fa4a0211 9c768a52c379ee41db58a18b3028373f&hash=468666ae1db3ae027eadea625cb68f90. Acesso em 19.06.2018. 189 Exceção de incompetência nº 5059494- 14.2014.404.7000. Disponível em https://eproc.jfpr.jus.br/e procV2/controlador.php?acao=acessar_documento_publico&doc=7014177836395264800100000000 04&evento=701&key=e7ea79b8824a41e9a91dd0a46c69ffe16a793f9fdc4e9a24fb360d81bfa36076&h ash=54c56f8945a3551fca7d88e107963c21. Acesso em 19.06.2018. 190 Exceção de incompetência nº 5042202- 16.2014.404.7000. Disponível em https://eproc.jfpr.jus.br/e procV2/controlador.php?acao=acessar_documento_publico&doc=7014081127603714200200000000 06&evento=692&key=bfdd9af4ad578dc2c9d09966a600531ba8ef0765a42c2ac2e038ed67c92639b6& hash=e6e27fe7c16e827fd02457231bf1d7e2. Acesso em: 19.06.2018. 191 Exceção de incompetência nº 5043955- 08.2014.404.7000. Disponível em https://eproc.jfpr.jus.br/e procV2/controlador.php?acao=acessar_documento_publico&doc=7014150228889927300500000000 01&evento=692&key=7c0afbc00d6fc3b7c6a19e14aedaa592484ee706ab1ebb2baa87efa014f984b5&h ash=e23bda207347764ea1c35b727f20af2d. Acesso em 19.06.2018. 192 Exceção de incompetência nº 5029384- 32.2014.404.7000. Disponível em https://eproc.jfpr.jus.br/e procV2/controlador.php?acao=acessar_documento_publico&doc=7014096687306204900400000000

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Nesse ponto, portanto, percebe-se a clara relevância da solução da controvérsia relativa a interpretação do inciso IV do artigo 78 do Código de Processo Penal para a definição do foro prevalecente.

Caso se adote a posição aderida pela doutrina no sentido de que o termo “jurisdição especial” do inciso IV se refere apenas as Justiças Especiais trazidas pela Constituição Federal (Eleitoral e Militar), deve-se concluir que o critério do referido inciso não poderia ter sido utilizado.

A competência dos dez processos aqui examinados da Operação Lava Jato, por essa interpretação, seria então estabelecida pelo inciso II, alínea a do artigo 78 do Código de Processo Penal que determina que no concurso de jurisdições da mesma categoria, preponderará a do lugar da infração, à qual for cominada a pena mais grave, prevalecendo, portanto, a competência da Vara Federal de Araraquara, Seção Judiciária de São Paulo.

Caso se adote – como se adotou – a interpretação de que o inciso IV versa sobre juízos de competência especializada, então poderia prevalecer a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba, pois especializada para o julgamento de crimes financeiros e de lavagem de dinheiro.

Nesse ponto, cabe esclarecer que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região acompanhou o entendimento adotado pelo juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, aplicando o inciso IV do artigo 78 do Código de Processo Penal.193

06&evento=692&key=b3541a5aa7545548de65589ab83fbb6b8ef02f5aa9644a6b3188e9fc3240c05b& hash=498b3d5fde3a1d17ebcbda382d72467d. Acesso em 19.06.2018. 193 PENAL. PROCESSUAL PENAL. 'OPERAÇÃO LAVA-JATO'. PRIMEIRA APELAÇÃO. COMPETÊNCIA. 13ª VARA FEDERAL DE CURITIBA. [...] COMPETÊNCIA DA 13ª VARA FEDERAL DE CURITIBA. Iniciada a investigação para apuração de crimes praticados no Estado do Paraná, a competência fixou-se no Juízo Federal da 13ª Vara de Curitiba/PR, sob a titularidade do Juiz Federal Sérgio Moro, especializada em crimes contra o sistema financeiro e de lavagem de dinheiro, competência esta que se prorroga inclusive para os crimes conexos, nos termos do art. 78, IV, do Código de Processo Penal. [...]. (TRF-4, Oitava Turma, Apelação nº 5025687-03.2014.4.04.7000, Relator Des. João Pedro Gebran Neto, julgado em 22.09.2015).

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Não obstante a essa questão, deve ser apontada, ainda, uma última incoerência verificada quando do julgamento da exceção de incompetência nº 5052019-07.2014.404.7000 referente a ação penal nº 5047229-77.2014.404.7000, que resultou das primeiras investigações relativas a apuração de crimes de lavagem de dinheiro ilícito do ex-deputado federal José Janene.

Com efeito, no caso da referida ação, os crimes ocorreram primordialmente em Londrina tendo o juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, por esse motivo, deixado de considerar todo o contexto de conexão entre as demais ações penais, veja-se:

Tendo este Juízo competência material sobre o crime de lavagem, ela atrai a competência sobre os demais crimes narrados na denúncia, já que conexos, nos termos do art. 78, IV, do CPP. Mesmo que fosse considerada atração pelo crime de pena mais grave, o da lavagem, o que avento apenas a título argumentativo, a competência também seria deste Juízo (art. 78, II, 'a', do CPP). Poder-se-ia ainda cogitar da interrelação entre todos os processos da Operação Lavajato, acima enumerados, a reclamar Juízo único para evitar dispersão de provas ou decisões contraditórias. Entretanto, deixo aqui de considerar essas questões, pois as ações penais acima referidas também tramitam por este Juízo, não alterando, portanto, o resultado das conclusões já exaradas.194

Como se percebe, no caso dessa ação penal, o juízo optou por considerar apenas os crimes que compunham essa ação individualmente considerada, sem considerar os outros diversos crimes conexos, como por exemplo, o crime de tráfico de drogas, cuja pena é mais grave do que o crime de lavagem de dinheiro. Método semelhante também foi utilizado nas ações nº 5026663-10.2014.404.7000195 e 5025676-71.2014.404.7000196.

194 Disponível em https://eproc.jfpr.jus.br/eprocV2/controlador.php?acao=acessar_documento_publico &doc=701408979514989330050000000010&evento=692&key=6b9667380b8f9599ce84c1f77228f187 40c864b9ab7637da61e751e0839be17e&hash=329782e8e6c01c66f007560488f3afba. Acesso em 19.06.2018. 195 Exceção de incompetência nº 5053738- 24.2014.404.7000. Disponível em https://eproc.jfpr.jus.br/ eprocV2/controlador.php?acao=acessar_documento_publico&doc=701408029870903620040000000 012&evento=692&key=a3906c404629d2c4ef69c8601e18cd0d0aed551591ac9602e19105d3e741564 5&hash=cecd5ca354f1e78d5d66adff80d6c244. Acesso em 19.06.2018. 196 Exceção de incompetência nº 5050790- 12.2014.404.7000. Disponível em https://eproc.jfpr.jus.br/e procV2/controlador.php?acao=acessar_documento_publico&doc=7014113992553347300500000000 05&evento=692&key=1328365199bcb31a126d27a7c2220550b90c79d9ae5a7c720defc9d44f394410& hash=4912b8d7d3ba7e4a759a5484b2368e24. Acesso em 19.06.2018.

120

Essa linha de argumentação se mostra evidentemente incorreta, pois sendo os crimes relativos às dez ações conexas, deveriam ter sido considerados em todas as decisões proferidas.

De todo o quadro acima exposto pode-se constatar algumas inconsistências relativas à aplicação das normas definidoras de competência postas no Código de Processo Penal.

Em muitas das decisões proferidas nas exceções de incompetência, é utilizado como um dos critérios para fixar a competência o disposto no artigo 71 da legislação processual penal, referido critério, contudo, não se aplica às hipóteses de competência por conexão, conforme já demonstrado.

Também se percebe que em parte das decisões analisadas não é utilizado como parâmetro para definição do foro prevalecente todos os crimes conexos ocorridos, restringindo-se a análise aos crimes objetos das ações individualmente consideradas. Tal linha de argumentação não pode ser tomada como correta, pois viola a premissa demonstrada de conexão entre todos os delitos apurados nessa fase da Operação Lava Jato.

Finalmente, ainda que se considere correta a interpretação dada pelo juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba no que tange a aplicação do inciso IV do artigo 78 do Código de Processo Penal, um fato que, ao que parece, passou desapercebido, é o de que a Seção Judiciária de São Paulo também possui varas especializadas para o julgamento de crimes financeiros e de lavagem de dinheiro que abrangem a Subseção Judiciária de Araraquara.197

197 Vide o Provimento 238 de 27.08.2004: A PRESIDENTE DO CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL DA TERCEIRA REGIÃO, ad referendum, no uso de suas atribuições regimentais, considerando o disposto no art. 12, da Lei 5.010, de 30 de maio de 1966; considerando a conveniência da especialização de órgãos judiciais na persecução criminal dos crimes previstos nas Leis nsº 7.492, de 16 de junho de 1986 e 9.613, de 03 de março de 1998; considerando o estabelecido na Resolução nº 314, de 12 de maio de 2003, do Conselho da Justiça Federal, R E S O L V E: [...] Art. 2º Especializar as 2ª e 6ª Varas Criminais da 1ª Subseção Judiciária de São Paulo, da Seção Judiciário do Estado de São Paulo, com competência exclusiva para processar e julgar os crimes contra o sistema financeiro nacional e os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores. Art. 3º Serão processados e julgados perante as varas criminais especializadas, os crimes a que se refere o art. 2º, deste Provimento, qualquer que seja o meio ou modo de execução.

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Considerando tal fato, perde força a aplicação do inciso IV do artigo 78 do Código de Processo Penal, porque, nesse caso, não haveria concurso entre juízos comuns e especiais pois a Subseção Judiciária de Araraquara faz parte da Seção Judiciária de São Paulo a qual também possui, como visto, competência especializada.

Em suma, da análise dos principais argumentos utilizados pelo juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, contatou-se, como visto, diversas inconsistências com relação a aplicação dos dispositivos trazidos pelo Código de Processo Penal que resultam, por conseguinte, em violações ao princípio do juiz natural.

Algumas dessas inconsistências são, em parte, compreensíveis ao se considerar dois diferentes fatores. Primeiramente, tem-se o fator da própria falta de clareza da legislação – que, como já ressaltado, é datada de 1941 – notadamente ao que se refere ao polêmico inciso IV do artigo 78 do Código de Processo Penal.

A falta de precisão do legislador ao redigir o dispositivo em comento, se utilizando de termos demasiadamente amplos, acabou por conferir ao inciso a possibilidade de interpretações diversas, elevando a dose de subjetividade para a escolha do juízo competente, situação que deve ser evitada pela legislação infraconstitucional em atenção ao princípio do juiz natural.

Por fim, outro fator de todo relevante é o da própria complexidade de fatos e provas relativos às investigações da Operação Lava Jato. Nesse sentido, constata-se a existência de inúmeras ações penais, bem como de investigações complexas que se prolongam ao longo de mais de quatro anos.

§ 1º As Varas Criminais especializadas são consideradas juízo criminal especializado em razão da matéria e terão competência jurisdicional em toda a área territorial da Seção Judiciária do Estado de São Paulo. § 2º Serão processados e julgados perante as varas criminais especializadas todos os feitos e incidentes relativos a sequestro e apreensão de bens, direitos ou valores, pedidos de restituição de coisas apreendidas, busca e apreensão, hipoteca legal e quaisquer outras medidas assecuratórias, bem como todas as medidas relacionadas com a repressão penal de que trata o caput deste artigo, incluídas medidas cautelares antecipatórias ou preparatórias

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Esse cenário de uma operação tão extensa e profunda envolvendo diversos crimes conexos, como se percebe, configura uma situação excepcional, que evidentemente não foi considerada pelo legislador quando da elaboração dos critérios de conexão e do foro prevalecente.

Desse modo, é compreensível que o interprete do direito tenha dificuldade para realizar a adequada subsunção dos fatos existentes com as regras definidoras do foro prevalecente, diante de tantos fatos e provas conexos.

Tal situação gera perceptível insegurança até mesmo quando da aplicação do inciso II do artigo 78 da legislação processual penal, ao se considerar também que, com a existência de extensas investigações ainda em curso, bem como com a necessidade de definir-se a competência das ações penais já propostas, possam existir mudanças relativas ao crime mais grave apurado, ou ao local em que se registra o maior número de infrações.

Por conseguinte, existindo a possibilidade de descoberta de infração mais grave (alínea a), ou mesmo a impossibilidade, com as investigações ainda em andamento, de se precisar o local em que ocorrido o maior número de infrações (alínea b), a solução mais adequada parece ser a trazida pela alínea c do dispositivo, que determina o critério da prevenção quando não for viável se utilizar das alíneas a e b.

Referido critério subsidiário, traria maior segurança e efetividade para o desenrolar dos processos, evitando a possibilidade de mudanças abruptas do foro prevalecente para os casos de investigações de grande complexidade que se prolonguem ao longo do tempo, com diversos crimes conexos.

Essa vertente, que como visto, não foi considerada pelo juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, teria trazido maior coerência para o processo de concretização de competência, notadamente nos casos de conexão e continência os quais exigem a utilização do artigo 78 do Código de Processo Penal.

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3.2.3 A questão de ordem apreciada pelo Supremo Tribunal Federal em virtude da Reclamação nº 17.623/PR

Finalmente, evento que merece ser salientado, no contexto da análise do princípio do juiz natural na Operação Lava Jato, máxime no que tange a análise da competência da primeira fase da operação (núcleo dos doleiros), é a questão de ordem analisada pelo Supremo Tribunal Federal quando da propositura de Reclamação por um dos réus da operação.

Referida Reclamação foi ajuizada contra o juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba sob o argumento de que o juízo havia usurpado a competência do Supremo Tribunal Federal ao proceder com investigação contra membro do Congresso Nacional.

Com efeito, o saudoso Ministro , então relator do caso, diante de informações prestadas pela 13ª Vara Federal de Curitiba e considerando o risco de ter sido usurpada a competência da Suprema Corte, deferiu, em 18 de maio de 2014, a liminar pleiteada para determinar a remessa das oito ações penais, procedimentos e inquéritos referentes à Operação Lava Jato para a Corte Superior, com a finalidade de se analisar a conveniência do desmembramento das investigações com relação aos parlamentares com prerrogativa de foro.

Essas oito ações penais, cujas denúncias foram oferecidas entre 21 e 25 de abril de 2014, eram as únicas até então em trâmite relativas a primeira fase da operação (núcleo dos doleiros).

Com isso, o Relator dos processos suscitou questão de ordem para que a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal decidisse sobre a eventual usurpação de competência da Corte.

Nesse sentido, a Segunda Turma do mencionado Tribunal decidiu por unanimidade a remessa à origem das oito ações penais, inquéritos e demais procedimentos referentes à Operação Lava Jato, realizando a cisão apenas no que aos procedimentos envolviam indícios de participação de parlamentar federal:

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EMENTA: AÇÃO PENAL. QUESTÃO DE ORDEM. COMPETÊNCIA POR PRERROGATIVA DE FORO. DESMEMBRAMENTO DE INVESTIGAÇÕES E AÇÕES PENAIS. PRERROGATIVA PRÓPRIA DA SUPREMA CORTE. 1. O Plenário desta Suprema Corte mais de uma vez já decidiu que é de ser tido por afrontoso à competência do STF o ato da autoridade reclamada que desmembrou o inquérito, deslocando o julgamento do parlamentar e prosseguindo quanto aos demais (Rcl 1121, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 04/05/2000, DJ 16-06- 2000 PP-00032 EMENT VOL- 01995-01 PP-00033). Nessa linha de entendimento, decidiu o Plenário também que, ‘até que esta Suprema Corte procedesse à análise devida, não cabia ao Juízo de primeiro grau, ao deparar-se, nas investigações então conjuntamente realizadas, com suspeitos detentores de prerrogativa de foro - em razão das funções em que se encontravam investidos -, determinar a cisão das investigações e a remessa a esta Suprema Corte da apuração relativa a esses últimos, com o que acabou por usurpar competência que não detinha’ (Rcl 7913 AgR, Relator(a): Min. , Tribunal Pleno, julgado em 12/05/2011, DJe-173 DIVULG 08-09-2011 PUBLIC 09-09-2011 EMENT VOL-02583-01 PP-00066). 2. Por outro lado, a atual jurisprudência do STF é no sentido de que as normas constitucionais sobre prerrogativa de foro devem ser interpretadas restritivamente, o que determina o desmembramento do processo criminal sempre que possível, mantendo-se sob a jurisdição especial, em regra e segundo as circunstâncias de cada caso, apenas o que envolva autoridades indicadas na Constituição (Inq 3515 AgR, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 13/02/2014). 3. No caso, acolhe-se a promoção do Procurador-Geral da República, para determinar o desmembramento dos procedimentos em que constam indícios de envolvimento de parlamentar federal, com a remessa dos demais à primeira instância, aí incluídas as ações penais em andamento.198

Como se percebe da ementa da decisão acima colacionada, foi respeitado o atual entendimento da Corte Suprema no sentido de realizar a cisão da investigação, permanecendo na instância superior apenas o que se refere ao membro do Congresso Nacional.

Nota-se que a decisão não entrou no mérito propriamente da competência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar as ações penais, tendo apenas se limitado a afirmar a competência do primeiro grau para o julgamento das ações haja vista não conterem réus com prerrogativa de função.

198 STF, Segunda Turma, AP 871/PR QO, Relator Ministro Teori Zavascki, julgado em 10.06.2014.

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Quanto a esse ponto, verifica-se que o entendimento do Supremo Tribunal seria posteriormente modificado. Atualmente, o entendimento é que além de realizar o juízo de conveniência do desmembramento do feito relativo aos réus que não possuem prerrogativa de foro, deve-se verificar, na mesma oportunidade, a competência dos processos desmembrados, que podem retornar a vara de origem, ou podem ser remetidos para outro juízo a depender das regras de concretização de competência.

Essa situação ocorreu, apenas a título exemplificativo, no âmbito da Operação Lava Jato, na questão de ordem no Inquérito 4.130/PR em que o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal decidiu, com a Relatoria do Ministro Dias Toffoli, pelo desmembramento da investigação de crimes relacionados ao Ministério do Planejamento, a qual continha indícios de participação de Senadora da República, tendo remetido a investigação, após a análise dos fatos, para a Seção Judiciária de São Paulo.199

O mesmo ocorreu na ação penal nº 963 na qual se apura crimes cometidos contra a Eletrobras Eletronuclear, na qual em decisão monocrática, o saudoso Ministro Teori Zavaski desmembrou o feito em relação a Parlamentar Federal e, procedendo a análise da competência, entendeu pela competência da Seção Judiciária do Rio de Janeiro.200

No que se refere, contudo, ao objeto de análise deste capítulo, qual seja, a análise de eventual violação do princípio do juiz natural nas ações penais que envolvem o núcleo dos doleiros da Operação Lava Jato, o Supremo Tribunal Federal se limitou, como visto, a remeter os processos ao primeiro grau sem proceder qualquer análise relativa ao foro competente.

199 STF, Tribunal Pleno, Inq 4.130/PR, Relator Ministro Dias Toffoli, julgado em 23.09.2015. 200 STF, decisão monocrática, AP 963/PR, Min. Teori Zavascki, julgado em 29.10.2015.

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Conclusão

Demonstrado todo o contexto que cerca o princípio do juiz natural, desde o seu surgimento no direito francês até sua sedimentação nas Constituições brasileiras, bem como nos tratados internacionais de direitos humanos, pode-se afirmar a inegável importância do instituto para a consolidação da cidadania plena no Estado Democrático de Direito.

Com efeito, o direito fundamental do cidadão de ser julgado por juiz independente e imparcial abstratamente pré-definido pela Constituição ou pela lei, se mostra requisito elementar para o fortalecimento da confiabilidade das instituições do Estado e, por conseguinte, da cidadania.

Nesse diapasão, a Constituição Federal de 1988 forneceu um arcabouço de garantias ao princípio, ao conferir plena independência ao Poder Judiciário e aos seus membros, além de determinar certas garantias e vedações visando a preservar, além da independência, a imparcialidade dos magistrados.

A referida Carta, não se limitou a apenas garantir um julgamento justo, devendo-se extrair também, do princípio do juiz natural, o direito de o cidadão obter uma acusação e um processo independente e imparcial, dado o tratamento conferido por ela ao Ministério Público, bem como as garantias dadas aos seus membros – e, numa interpretação ainda mais ampliativa, mas não menos conforme, admitiu também a ampliação do princípio para os delegados naturais, responsáveis pelo primeiro contato do acusado com o Estado.

Nessa toada, as regras de competência postas pela Constituição e pela própria legislação infraconstitucional estão diretamente ligadas ao princípio do juiz natural devendo se colocar de maneira a limitar o máximo possível a discricionariedade do interprete quando de sua aplicação.

No caso da Operação Lava Jato, notadamente no que tange ao fenômeno da especialização de varas por resolução dos tribunais tem-se que estas são de suma

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importância para a melhora da prestação jurisdicional aos cidadãos, sendo evidentes os resultados positivos da especialização para a operação.

Como restou demonstrado, o Poder Judiciário possui autonomia constitucional para editar tais resoluções, contudo, no que tange ao conteúdo das resoluções, tem-se observado reiteradas violações ao princípio do juiz natural, pois, não raramente, determinam a redistribuição de processos, procedimentos e inquéritos já em curso para a vara especializada.

Quanto a análise das decisões proferidas pelo juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba para afirmar a sua competência para julgar os processos relativos a primeira fase (núcleo dos doleiros) da Operação Lava Jato, também foram constatas violações em relação à aplicabilidade do princípio do juiz natural, máxime no que se refere as regras de competência trazidas pela legislação processual penal.

Nesse sentido, constatou-se equívoco cometido pelo referido juízo quando da aplicação do artigo 71 do Código de Processo Penal, dispositivo que não se aplica aos casos de definição da competência por conexão e continência.

Foram também encontradas incoerências em parte das decisões proferidas, pois não se considerou a totalidade dos crimes conexos ocorridos, restringindo-se a análise aos crimes objetos das ações individualmente consideradas.

Finalmente, mesmo ao se considerar a interpretação dada pelo juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba no que se refere à aplicação do inciso IV do artigo 78 do Código de Processo Penal, tem-se, como visto, que a Seção Judiciária de São Paulo também possui varas especializadas para o julgamento de crimes financeiros e de lavagem de dinheiro que abrangem a Subseção Judiciária de Araraquara, não se podendo falar, nesse caso, de concurso entre juízos comuns e especiais. Por conseguinte, a aplicação do referido inciso também se mostra inconsistente com o princípio do juiz natural.

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Anexos

Decisão proferida na exceção de incompetência nº 5044009-71.2014.404.7000 (ação penal nº 5025687-03.2014.404.7000);

Decisão proferida na exceção de incompetência nº 5029451-94.2014.404.7000 (ação penal nº 5025699-17.2014.404.7000) e

Decisão proferida na exceção de incompetência nº 5052019-07.2014.404.7000 (ação penal nº 5047229-77.2014.404.7000).

Processo 5044009-71.2014.4.04.7000/PR, Evento 10, DESP1, Página 1

        

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